Retórica clássica para o estudante moderno [1 ed.]
 6587404553, 9786587404554

Citation preview

RETÓRICA CLÁSSICA para o estudante

moderno EDWARD P. J. CORBETT ROBERT J. CONNORS

EDWARD PATRICK JOSEPH CORBETT nasceu na

Dakota do Norte em 1919, neto de imigrantes irlandeses, e aos dez anos mudou-se para Milwaukee; a familia sofreu com o desemprego c a pobreza da Grande Depressão. Estudou na Marquette University High School, instituição

jesuíta, onde começou os estudos de latim e grego, o que in uenciou sobremaneira o seu permanente interesse pelos clássicos. Formado

ali em 1938, estudou no seminário do Venard College na Pensilvânia, e no Maryknoll Apos tolic College em Nova York. Em 1946 alistou-se

na Marinha, e csteve como tecnico de radares na Ilha Majuro e na China. Foi no Pacifico Sul que conheceu a obra Como ler livros de Mortimer Adler, que teve nele uma profunda еретcussão. De 1973 a 1979, editou a revista College Composition and Communication (CCC), publicação da Conference on College Composition and Communication (CCCC), a maior organização

de pesquisa sobre teoria e ensino da escrita no mundo. De todos que participaram da redescoberta da retórica clássica para os estudos

fl

modernos de composição, Corbett foi o que exerceu a maior influência. Nos 24 anos em que trabalhou na Ohio State University, formou muitos alunos que continuaram seu trabalho, e inspirou inúmeros outros. Faleceu antes de completar os 79 anos, em Columbus, Ohio.

Retórica clássica para o estudante moderno

Retórica clássica

para o estudante moderno EDWARD P. J. CorBETT ROBERT J. CONNORS

Tradução

Bruno Alexander

KÍRION

Retórica clássica para o estudante moderno

Edward Corbett & Robert J. Connors

1ª edição — maio de 2022 — CEDET Título original: Classical Rhetoric for the Modern Student, 4ª ed., 1999 [1990, 1971, 1965]

Classical Rhetoric for the Modern Student was originally published in English in 1999. This translation is published

by arrangement with Oxford University Press. CEDET is solely responsible for this translation from the original work and Oxford University Press shall have no liability for any errors, omissions or inaccuracies or ambiguities in

such translation or for any losses caused by reliance thereon. Retórica clássica para o estudante moderno foi publicado originalmente em inglês em 1999. Esra tradução foi publicada mediante acordo com a Oxford University Press. O CEDET inteiramente responsável por esta tradução do livro original, e a Oxford University Press não se responsabiliza por quaisquer erros, omissões, imprecises ou ambigüidades em tal tradução ou por quaisquer danos causados por se fiar nela.

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

Sob responsabilidade do editor,

não foi adotado o Novo Acordo Ortográfico de 1990.

Editor: Felipe Denardi

Tradução: Bruno Alexander Revisão e preparação:

Gabriel Buonpater

Capa: Lucas Gabriel Goes de Macêdo

Diagramação: Pedro Spigolon Revisão de provas:

Lucas Falango Mariana Souto Figueiredo

Flávia Theodoro Natalia Ruggiero Os direitos desta edição pertencem ao

CEDET — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico

Av. Comendador Aladino Selmi, 4630

Condomínio GR Campinas 2 — módulo 8 CEP: 13069-096 — Vila San Martin, Campinas-SP Telefones: (19) 3249-0580 / 3327-2257 e-mail: [email protected]

Conselho editorial:

Adelice Godoy

César Kyn d'Ávila

Silvio Grimaldo de Camargo

Recórica ‹ lá

par o estudante mo

Este livro é dedicado com gratidão a nossas esposas e filhos, cuja imagem permanente de nós é a de homens debruçados sobre o teclado.

Sumário

Prefácio CAPÍTULO 1 — Introdução

Análise retórica de um anúncio de revista. Homero: "Os enviados suplicam a Aquiles"

Análise de "Os enviados suplicam a Aquiles"

• 13

• 14 • 19

• 23

Breve explicação da retórica clássica.

•• 31

Os cinco cânones da retórica

• 34

Os três tipos de discurso persuasivo.

41

A relevância da retórica em nosso tempo

•42

CAPÍTULO II — Descoberta de argumentos..

47

Formulando uma tese Os três modos de persuasão O apelo à razão Princípios de definição.

Outros métodos de definição

fi

II

47 53 •• 53

55

•58

O silogismo

61

O entimema

81

O exemplo.

• 92

As falácias

O apelo ético

•94 107

O apelo emocional

114

Os tópicos

123

Os tópicos comuns.

127

De nição

128

Comparação

134

Relação

145

Circunstância

155

Testemunho

161

Tópicos especiais

Manuel Bilsky, McCrea Hazlett, Robert E. Streeter e Richard M. Weaver: Procurando um argumento

172 185

Richard L. Larson: Um plano para o ensino de invenções retóricas

193

Auxílios externos à invenção.

199

Biografia.

201

Livros de citações e concordâncias

.207

Concordâncias bíblicas.

21I

Índices de periódicos

Outros índices de periódicos.

212 216

Manuais

221

Literatura inglesa

• 222

Literatura americana.

222

Drama mundial. Dicionários.

222 226

Outros dicionários especializados

233

Bibliografias

233

Alguns guias bibliográficos em várias disciplinas..

235

Bibliografias anuais

236 237

Syntopicon Ilustração do uso da estratégia de pesquisa

. 243

Rachel Carson: "A obrigação de suportar"

256 257

Análise de tópicos em "A obrigação de suportar", de Rachel Carson

266

"Apologia de Sócrates".

272

Análise de tópicos em "Apologia de Sócrates"

285

"Obituário de Katharine Sergeant White"

291

Leituras

Análise de tópicos no "Obituário de Katharine Sergeant White"

295 298

James Madison: "O Federalista no to".. Mark Ashin: O argumento de "O Federalista n° 10", de Madison Edmund Burke: "Carta a um nobre senhor"

• 320

Thomas Henry Huxley: "Ciência e cultura"

• 329

Matthew Arnold: "Literatura e ciência"

340

CAPÍTULO III — Disposição do conteúdo.

307

• 355

As partes de um discurso

• 359

Observações finais sobre a disposição ...

•400 •401

Leituras

401

Thomas da Sipo: area de do ano", de Thomas A. Sancton.

Martin Luther King Jr.: "Carta da cadeia de Birmingham" Análise da disposição em "Carta da cadeia de Birmingham" Henry David Thoreau: "Desobediência civil" CAPÍTULO IV — Estilo

463

Competência gramatical.

466

Escolha de dicção

468 485

Composição da frase Estudo estilístico Relatório de um aluno sobre estudo estilístico Figuras de linguagem Observações finais sobre as figuras de linguagem

Imitação Testemunhos sobre o valor da imitação Resumo

• 492

505 • 516

• 560 • 563 • 565

• 580

Exercícios de imitação

580

Leituras

613

Hugh Blair: Análise crítica do estilo do Sr. Addison no n° 411 de The Spectator.

613

John F. Kennedy: Discurso de posse..

627

Os editores da The New Yorker: discurso de posse de John F. Kennedy

631

Análise estilística do discurso de posse de John F. Kennedy

633

Um parágrafo de Virginia Woolf

a ser analisado quanto ao estilo.

645

Análise estilística do parágrafo de Virginia Woolf

646 650

Estatísticas sobre o parágrafo de Virginia Woolf. Análise do estilo como persuasão

na "Carta da cadeia de Birmingham", de Richard P. Fulkerson CAPÍTULO V — Os progymnasmata.

Uma sequência de atribuições CAPÍTULO VI — Pesquisa sobre retórica ...

651

661 662

669

Retórica clássica.

670

Retórica durante a Idade Média.

679

Alguns retóricos europeus

682

Retórica vernacular inglesa do século xvI..

685

Retórica inglesa do século xvII..

690

Retórica inglesa do século xvIII

697

Retórica dos séculos XIX e XX.

705

Bibliografia.

741

Prefácio

As três _derno primeiras foram publicadas edições deem Retórica 1965, 1971 lássica e 1990, para respectivamente. o estudante moEsta quarta edição, publicada em 1999, tem co-autoria de Robert ]. Connors. Trinta e três anos após a publicação inicial deste livro, exis-

tem muitas evidências de que alguns princípios e práticas da retórica

clássica ainda atuam em nossa sociedade à medida que entramos no século xxI. Uma das lições mais valiosas que aprendemos dos retóricos

e filósofos gregos e latinos é que, a menos que consideremos os seres humanos como entidades compostas de intelecto, vontade, paixões e fisicalidade, não produziremos cidadãos bem integrados a nenhuma sociedade. A retórica sempre existirá entre nós, de algum modo. O exercício da retórica parece tão natural e necessário para as criaturas humanas quanto respirar. Os gregos fizeram essa observação quando formularam pela primeira vez a arte da retórica. Os povos posteriores ampliaram e refinaram a arte de modo a adequá-la às necessidades e ao espírito de

sua época. Sem dúvida, haverá uma "nova retórica" para o século xxI, a retórica do ciberespaço, mais abrangente do que qualquer tratado que

tenha sido concebido até agora, uma retórica internacional, apropriada

a pessoas de muitas nações e culturas, mas nessa nova retórica haverá resíduos perceptíveis da retórica clássica. Assim, 33 anos após o apare-

11

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO cimento da primeira edição, não hesitamos em lançar mais uma edição

desta obra. A estrutura do livro continua a mesma das três edições anteriores. O

primeiro capítulo apresenta uma breve explicação do tipo de formação retórica característica das escolas do Ocidente por mais de 2.000 anos. Os três capítulos seguintes desenvolvem as três partes vitais da retórica: "descoberta de argumentos" (capítulo II), "disposição do conteúdo" (capítulo II) e "estilo" (capítulo Iv). Um breve novo capítulo v sobre

os progymnasmata, a sequência de composições em prosa que serviam de exercício para os alunos gregos, é obra de Robert J. Connors, assim

como a muito expandida história da retórica em "Pesquisa sobre retó-

rica" (capítulo vi) e a bibliografia atualizada no final do texto. No primeiro capítulo revisado, Edward P. J. Corbett analisa as características retóricas de um anúncio de revista contemporâneo, em quatro cores, que substitui o anúncio em preto e branco discutido na terceira edição.

Virginia Tiefel, diretora de educação para usuários de bibliotecas, da

Ohio State University, cuidou da seção "Estratégia de pesquisa", no capítulo II, extraída da terceira edição. Esperamos que as alterações feitas nesta edição tornem este livro

mais útil e atraente para professores e alunos. Não há palavras para agradecer a nossos colegas e alunos pelas percepções e sugestões ao longo dos anos. E somos profundamente gratos à equipe editorial da Oxford University Press, pelos conselhos sempre sábios e a fé inquebrantável no livro.

E.P.J.C.

R.J.C.,

Junho de 1998

12

CAPÍTULO I

Introdução

A retórica Lou escrito, é a artepara ou disciplina informar, persuadir que trata ou do motivar uso do discurso, um público, Calado seja esse público uma pessoa ou um grupo de pessoas. Definida assim amplamente, a retórica parece compreender todo tipo de expressão verbal, mas os retóricos costumam excluir modos informais de discurso, como "conversa mole", piadas, saudações ("Bom te ver"), exclamações ("Que dia lindo!"), fofocas, explicações simples ("Esta calculadora em miniatura funciona com bateria") e instruções ("Vire à esquerda no próximo

cruzamento, ande cerca de três quarteirões até o primeiro semáforo, depois..."). Embora seja possível alcançar objetivos informativos, diretivos ou persuasivos na forma de diálogo, a retórica tradicional diz respeito a casos de monólogo formal, premeditado e prolongado, em que uma pessoa busca exercer um efeito sobre o público. Essa noção de "efeito sobre o público", a própria essência do discurso retórico, está implícita em definições como a de Marie Hochmuth Nichols: "Um meio de ordenar o discurso de tal forma que produza um efeito no ouvinte

ou leitor"; de Kenneth Burke: "O uso da linguagem como meio simbólico de induzir a cooperação em seres que por natureza respondem a símbolos"; ou de Donald Bryant: "A função de adaptar idéias às pessoas

e pessoas às idéias". Os retóricos clássicos parecem ter restringido o efeito particular do discurso retórico à persuasão. Aristóteles, por exem-

plo, definiu a retórica como "a faculdade de descobrir todos os meios

13

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO de persuasão disponíveis". Mas quando lembramos que a palavra grega para persuasão deriva do verbo grego "acreditar", vê-se que a definição

de Aristóteles compreende não só os modos de discurso "argumenta-

tivos", mas também os modos de discurso "expositivos", que buscam ganhar aceitação para informações ou explicações. De qualquer maneira, quer estejamos buscando, como disse George Campbell, retórico escocês do século xvIiI, "iluminar a razão, satisfazer a imaginação, mover as paixões ou influenciar a vontade", deve-

mos adotar as estratégias que nos ajudarão a alcançar nosso objetivo da melhor forma. Estratégia é uma boa palavra retórica, pois pressupõe a escolha dos recursos disponíveis para atingir um m. Não é por acaso que a palavra estratégia tem associações militares, pois a raiz dessa palavra está na palavra grega para exército. Assim como um general adota as táticas com maior probabilidade de derrotar o inimigo nas batalhas,

o comandante da linguagem buscará o melhor argumento e o melhor estilo para "ganhar" a audiência. Vejamos uma das formas mais comuns em nossa sociedade de discurso destinado a influenciar uma audiência: um anúncio de revista. Após o anúncio, procederemos a uma análise da retórica desse discurso.

ANÁLISE RETÓRICA DE UM ANÚNCIO DE REVISTA Talvez a forma mais comum de discurso persuasivo em nossa sociedade seja a publicidade, tanto visual quanto sonora. Não temos como evitá-la: os anúncios estão em toda parte, aparecendo em jornais, revistas, catálogos, folhetos, outdoors, rádio e televisão. "Anúncios" são

formas de discursos orais ou gráficos (ou combinações de discursos orais e gráficos, como os comerciais de TV) que tentam fazer o leitor ou

ouvinte comprar um produto ou serviço. Em nossa sociedade, desen-

volveu-se uma grande indústria para preparar e divulgar esses anúncios. "Madison Avenue" é a forma gurativa de referir-se a essa indústria (no

capítulo sobre estilo, você descobrirá que a gura de linguagem representada pelo termo "Madison Avenue" é antonomásia). Os redatores de anúncios estão entre os retóricos mais hábeis da nossa sociedade. Eles

podem nunca ter estudado retórica clássica, mas empregam muitas das estratégias dessa arte milenar, a fim de influenciar as atitudes e ações

daqueles que são expostos aos anúncios que eles criam. A análise a se-

fi

fi

fi

14

INTRODUÇÃO guir mostrará algumas estratégias retóricas que os redatores usaram no anúncio da Hewlett Packard.

O chamado "triângulo de comunicação" é frequentemente usado como representação gráfica dos componentes do ato retórico:

Assunto

Texto Ouvinte / leitor

Orador / escritor

Na maioria dos anúncios, como na maioria das formas de redação técnica, o componente menos visível é o orador/escritor. Quem está se

dirigindo a nós no anúncio? A maioria dos anúncios é redigida pela

equipe da agência de publicidade contratada por uma empresa ou fabricante. O orador ou escritor de um anúncio, ao contrário do orador ou escritor de um discurso ou ensaio, não é uma pessoa específica. Geralmente, é uma persona corporativa criada pela agência de publici-

dade. No anúncio de página inteira, não há um único uso do pronome

eu ou do pronome nós, mas, em uma página subseqüente da revista,

ocupando uma só coluna, há quatro reproduções de uma mulher com uma tampa de lata de lixo amarela na cabeça, e, logo abaixo, um pa-

rágrafo que começa assim: "Ligue agora ou entre em contato conosco

em http://www.hp.com/info/1133, que nós lhe enviaremos amostras de impressão, apresentando a incrível qualidade de reprodução a cores da HP CopyJer". Observe o uso dos dois pronomes de primeira pessoa do plural, conosco e nós. Esses pronomes representam a voz corporativa do anúncio, mas, de qualquer maneira, há um éthos tranquilizador nessa frase e nas três frases seguintes do parágrafo. Portanto, se o anúncio de

página inteira nos interessar o suficiente para que consideremos investir nessa impressora-copiadora, o ethos reconfortante que aparece nas qua-

tro frases do parágrafo de uma só coluna em outra página da revista pode nos levar a fazer mais perguntas sobre essa CopyJet.

Outro componente do triângulo de comunicação que não aparece claramente é o ouvinte/leitor. A quem se dirige o anúncio? A resposta

15

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO geral mais óbvia a essa pergunta é "ao leitor do anúncio", normalmente

representado pelo pronome de terceira pessoa você no parágrafo de uma

só coluna em uma página subseqüente. Mas quem é esse você [you), um

indivíduo ou um grupo de pessoas? Um possível candidato para o pronome você é o administrador de uma empresa responsável pela compra de equipamentos, como máqui-

nas de escrever, computadores ou impressoras para os funcionários. Nesse caso, você representa um indivíduo. No entanto, você pode representar um grupo de pessoas em busca de uma impressora colorida. O ponto é que o público da maioria dos anúncios não é tão facilmente definível quanto o público de um discurso de nomeação em uma convenção política nacional, por exemplo. Sabemos apenas que o redator quer persuadir alguém (de preferência, milhares de pessoas) a comprar algo. Os componentes retóricos mais visíveis nos anúncios são o assunto e o texto que expõe o assunto. Neste caso, o assunto é a impressora-co-

piadora colorida Hewlett Packard. De acordo com a terceira linha do anúncio, a HP CopyJet é a primeira impressora-copiadora colorida. As duas mudanças mais significativas ocorridas nos últimos cinco ou seis

anos são: (1) os anúncios de página inteira das revistas aparecem em cores; e (2) as imagens, os ícones, vendem o produto melhor do que as palavras. Na maioria dos anúncios de carros novos, por exemplo, vemos

uma grande foto colorida do automóvel, estacionado em algum lugar

ou em alta velocidade na estrada. Há poucas palavras sobre o carro. E a

palavra mais importante é o nome do carro. Na metade superior do anúncio da Hewlett Packard, vemos uma

grande impressão colorida de uma mulher em um traje estranho e quinze cópias coloridas da mesma mulher. Na metade inferior do anúncio, no canto esquerdo da página, há uma imagem, em preto e branco, da impressora-copiadora e vinte linhas de impressão em preto, em vários tamanhos. Sob as letras grandes da imagem, encontramos as

palavras "Ela imprime" e, nas quinze cópias, as palavras "Ela copia". Sob essas duas frases curtas, entre parênteses, há uma terceira frase "Infelizmente, ela não controla o gosto". Neste ponto, não temos certeza a que se refere o pronome ela, mas essa última frase, que também começa com ela, faz um comentário sobre o mau gosto da mulher que aparece em todas as fotos da metade superior da página. De qualquer maneira, são as imagens que prendem a nossa atenção e nos fazem ler

16

INTRODUÇÃO o texto impresso. O que surpreende nas fotos é a qualidade notável das

cópias coloridas e a incongruência chocante entre o vestido formal da mulher atraente, os óculos de sol enormes e a tampa da lata de lixo em tom amarelo brilhante na cabeça dela. A genialidade do redator do anúncio está justamente nessa incongruência chocante, porque é ela que nos faz ler o texto abaixo das imagens. Mesmo que não estejamos interessados em comprar uma impressora-copiadora colorida, somos levados a ler o que está escrito na metade inferior da página. Mas, se estivermos interessados em adquirir uma impressora-copiadora colorida, na página seguinte, temos um número de telefone e um endereço de e-mail, que podemos usar para obter mais informações sobre a máquina que produziu aquelas cópias coloridas tão incríveis. Depois de analisar a parte pictórica do anúncio, consideremos a retórica do texto. A primeira coisa que notamos no texto é que ele é esparso em comparação com a imagem do anúncio. Essa observação está em consonância com nossa observação anterior, de que, nos últimos anos, as imagens ocupam mais espaço do que as palavras em anúncios de revistas. Essa mudança pode ser atribuída ao aumento de nossa exposição a comerciais na televisão. Existem palavras impressas e faladas em comerciais de TV, mas o que mais chama a nossa atenção são as imagens que aparecem na tela. Os textos dos anúncios fornecem

informações sobre o produto que não são facilmente discerníveis nas

imagens. No caso da Hewlett Packard, as palavras impressas, em vários tamanhos, dizem que o produto retratado no lado esquerdo inferior do anúncio imprime e copia, além de ser a primeira impressora-copiadora

colorida; em uma fonte maior, o texto informa que o produto custa apenas R$12.600. Em uma página subseqüente, somos informados com

palavras sobre como entrar em contato com a Hewlett Packard para obter mais informações sobre a máquina. E a frase final do anúncio, "[...] que o deixará bonito, não importa o que você esteja vestindo", garante que aqueles que virem as cores nítidas e vivas produzidas por essa máquina ficarão impressionados com a "reprodução perfeita" das impressões e cópias. Vamos dar uma olhada mais de perto na retórica do parágrafo final do anúncio. Observe as três primeiras frases desse parágrafo final, que estão no modo imperativo: "Repare nas cores vivas. Veja a reprodução perfeita. Não olhe para o chapéu". Como observamos

17

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO anteriormente, um dos quatro componentes do triângulo retórico é o

ouvinte/leitor, o público. Mais adiante nesse parágrafo, o público do anúncio é mencionado várias vezes com o uso do pronome você. Esse você refere-se ao leitor desse anúncio. E se você se lembra das aulas de gramática na escola, sabe que você é o sujeito implícito dessas três

primeiras frases imperativas. No restante do anúncio, o redator está falando diretamente com o leitor, você. O redator quer persuadir o leitor do anúncio a comprar a HP CopyJet por R$12.600 ou induzir o chefe ou colegas de trabalho a investir na HP CopyJet m por R$16.170.

É fácil imaginar o leitor do anúncio levando o anúncio intrigante para o trabalho e mostrando-o ao chefe ou aos colegas de trabalho. Retórica é persuasão.

Mesmo que você não esteja procurando uma impressora-copiadora colorida no momento, provavelmente ficou intrigado o suficiente com as impressões coloridas para desejar ler o anúncio. Por que cargas d'água essa mulher está usando uma tampa de lata de lixo amarela na cabeça? O anúncio nunca responde a essa pergunta, mas questiona o mau gosto da mulher que usa esse chapéu e o induz a ler as palavras na metade inferior da página. Mesmo se você não comprar essa impressora-copiadora ou não tentar persuadir outra pessoa a comprá-la, o

redator do anúncio prendeu sua atenção por alguns minutos, talvez fa-

zendo-o sorrir e informando-o sobre um novo produto no ciberespaço. Os retóricos clássicos teriam admirado a habilidade do(s) redator(es)

desse anúncio. Para que não pensemos, entretanto, que essa exibição de retórica deliberativa é mais um dos gloriosos produtos da nossa era tecnológica, vejamos mais um exemplo desse tipo de esforço persuasivo. O exemplo foi extraído de uma das maiores obras-primas do mundo, escrita muitos séculos antes que a arte da retórica fosse formulada. É a famosa cena do livro Ix da Ilíada, de Homero, em que Odisseu, Fênix e Ajax vão ao acampamento de Aquiles implorar que ele volte para a batalha. Aquiles

está amuado em sua tenda desde o livro 1, quando Agamenon, o líder

das forças gregas que sitiavam a cidade de Tróia, afrontou-o ao tomar Briseida, um de seus prêmios de guerra. Depois que Aquiles retirou as tropas das linhas de frente, a sorte da guerra foi de mal a pior para os gregos. O exército de Agamenon está desesperado. Os enviados precisam convencer Aquiles a retornar para a batalha.

18

INTRODUÇÃO Veremos apenas os dois primeiros discursos dessa cena: o apelo de

Odisseu a Aquiles e a resposta de Aquiles.

HOMERO: "OS ENVIADOS SUPLICAM A AQUILES" 1. "Salve, Aquiles! De festins compartilhados não somos carentes, nem na tenda de Agamenon, filho de Atreu, nem agora aqui: pois à nossa

frente temos muita comida animadora do espírito com que nos banquetearmos. Só que manjares deliciosos não nos interessam, ó criado por Zeus! É grande e enorme o sofrimento que vemos e receamos. Está em dúvida se salvamos ou perdemos as naus bem construídas, se não te vestires com a tua força. Perto das naus e da muralha estão bivacados os altivos Troianos e seus aliados famigerados. Ateando muitos fogos ao longo do exército, não pensam ser resistidos e atirar-se-ão sobre as escuras naus. Zeus Crônida, mostrando-lhes do lado direito sinais favoráveis, relampeja; e Heitor exultando grandemente na sua força desvaira furiosamente, confiado em Zeus, e não respeita deuses nem homens. Dele se apoderou uma loucura potente. Ele reza para que rapidamente surja a Aurora divina e ameaça que das naus irá cindir os altos postes das popas, para depois lhes deitar fogo consumidor; e junto delas dizimará os Aqueus, tresloucados por causa do fumo. E terrivelmente que receio estas coisas, não vão os deuses cumprir-lhe as jactâncias, pelo que seria nosso destino morrermos em Tróia, longe de Argos apascentadora de cavalos. Ergue-te, então, se estás disposto, ainda que tarde, a defender os filhos dos Aqueus, oprimidos, do grito de guerra dos Troianos! Para ti mesmo sofrimento haverá no futuro. E remédio de mal praticado não se encontrará. Mas antes que seja tarde demais reflete sobre como poderás afastar dos Dânaos o dia funesto. 2. O amigo! Foi a ti que teu pai Peleu deu esta incumbência naquele dia em que te mandou da Fria a Agamenon: "Meu filho, Atena e Hera te darão força, se quiserem; mas tu, domina o coração orgulhoso que tens no peito. A afabilidade é preferível. Abstém-te da discórdia geradora de conflitos, para que te honrem ainda mais Aqueus novos e velhos". Disto te incumbiu o ancião, mas olvidaste. Cessa agora, deixa a cólera opressora do coração. E Agamenon dar-te-á dignos presentes, se abandonares a ira. Se tu me ouvires, eu te enumerarei todos os dons que na sua tenda Agamenon te prometeu: sete trípodes sem marca de fogo,

19

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO dez talentos de ouro, vinte caldeirões resplandecentes, doze poderosos

cavalos premiados, que ganharam prêmios pela velocidade. Desprovido

de despojos não seria o homem a quem tais coisas coubessem, nem lhe

faltaria ouro precioso, se fosse senhor de tais prêmios como os que para Agamenon obtiveram seus cavalos de casco não fendido. Dará ainda sete mulheres peritas em trabalhos irrepreensíveis, mulheres de Lesbos; quando tomaste Lesbos bem construída escolheu-as, elas que pela beleza vencem todas as raças das mulheres. Serão estas que te dará, e entre elas estará a que te tirou, a filha de Briseu. E jurará também um grande

juramento: nunca com ela foi para a cama nem a ela se uniu como é norma, ó rei, entre os humanos, homens e mulheres. Todas estas coisas serão já preparadas; e se de futuro os deuses permitirem saquear a grande cidadela de Príamo, que tu lá entres e enchas uma nau com ouro e bronze, quando nós Aqueus fizermos a divisão dos despojos; e que sejas tu próprio a escolher vinte mulheres Troianas, as que sejam mais belas depois de Helena, a Argiva. E se regressarmos à aquéia Argos, terra riquíssima, tu serás seu genro. Honrar-te-á como a Orestes, que nasceu tarde e em grande fausto está a ser criado. São três as filhas que tem no palácio bem construído: Crisótemis, Laódice e Ifianassa. Destas leva a que quiseres, sem a cortejares com presentes, para casa de Peleu; e ele pela sua parte oferecerá um dote muito rico, como nenhum homem ainda deu pela filha. Sete cidades te dará, bem populosas: Cardámile, Enope e Hira atapetada de relva; as sagradas Feras e Antéia com seus prados profundos; a bela Epéia e Pédaso coberto de vinhas. Todas são

perto do mar, nos limites de Pilos arenosa; e nelas habitam homens ricos em rebanhos e em gado, que te honrarão com presentes como se fosses um deus e sob teu cetro cumprirão tuas prósperas ordenações. Estas coisas ele cumprirá se tu abandonares a tua cólera. Mas se o Atrida for por ti demasiado detestado em teu coração, tanto ele como seus dons, compadece-te de todos os outros Aqueus oprimidos no exército, eles que te honrarão como se fosses um deus, pois perante eles magno renome granjearás. É agora que poderias matar Heitor, pois próximo de ti ele chegaria na sua mortífera loucura, já que afirma como ele não haver ninguém entre os Dânaos que as naus aqui trouxeram". 3. Respondendo-lhe assim falou Aquiles de pés velozes: "Filho de Laertes, criado por Zeus, Odisseu de mil ardis! Impõe-se que eu diga a minha palavra claramente, do modo como penso e como irá cumprir-

20

INTRODUÇÃO -se, para que não estejais para aí sentados a grasnar aos meus ouvidos.

Como os portões do Hades me é odioso aquele homem que esconde uma coisa na mente, mas diz outra. Pela minha parte direi aquilo que

me parecer melhor. Não penso que o Atrida Agamenon me persuadirá, nem os outros Dânaos, visto que não há consideração para quem luta

permanentemente contra homens inimigos. Igual porção cabe a quem fica para trás e a quem guerreia; na mesma honra são tidos o cobarde e o

valente: a morte chega a quem nada faz e a quem muito alcança. Nunca

tive vantagem alguma por sofrer dores no coração ao pôr constantemente em risco a minha vida na guerra. Tal como a ave que leva no bico

a seus pintos implumes aquilo que encontra, enquanto ela própria passa mal, de igual modo eu mantive vigília durante muitas noites e suportei

dias sangrentos em atos de guerra, combatendo homens inimigos por

causa das suas mulheres. Doze cidades de homens eu destruí com as minhas naus; por terra a rmo que saqueei onze na terra fértil de Tróia. Destas cidades retirei numerosos e excelentes despojos, e carregando todas as coisas dava-as a Agamenon, o Atrida, enquanto ele cava para trás, nas suas naus velozes, para receber. Depois distribuía pouco e cava com muito. Alguns despojos ele deu como prêmios a nobres e reis,

que caram com eles, incólumes; mas dentre os Aqueus só a mim tirou

o prêmio e cou com a mulher que me agradava. Que durma com ela e tire o seu prazer. 4. Mas por que razão têm os Aqueus de combater os Troianos? Por que reuniu e trouxe para aqui a hoste o Atrida? Por causa de Helena? São apenas os lhos de Atreu que gostam das suas mulheres, entre os homens mortais? Todo aquele que é bom homem e no seu perfeito juízo ama e estima a mulher, tal como eu amava aquela, apesar de ela ser cativa da minha lança. Agora que me tirou o prêmio das mãos e me ludi-

briou, não pretenda ele tentar-me: bem o conheço. Não me convencerá. 5. Ó Odisseu! Que juntamente contigo e com os outros reis ele pense como afastar das naus o fogo abrasador. Na verdade ele fez muita

coisa sem precisar da minha ajuda, até construiu uma muralha e fez escavar ao pé uma vala, grande e ampla, e nela posicionou estacas. Mas nem assim consegue resistir ao ímpeto de Heitor matador de homens.

Enquanto eu lutava no meio dos Aqueus, Heitor não pensava em combater longe da muralha, mas só até às Portas Esquéias e ao carvalho

avançava. Aí me esperou uma vez em combate singular, mas a custo

fi

fi

fi

fi

fi

fi

21

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

fugiu da minha arremetida. Visto que agora não quero lutar contra Heitor divino, amanhã sacrificarei a Zeus e aos deuses todos; depois de encher bem as naus, lançá-las-ei ao mar. Tu verás, se quiseres e se isso te interessar, à aurora as minhas naus a navegar sobre o piscoso Helesponto, e a bordo estarão homens ávidos de dar aos remos. Se me conceder boa viagem o famoso Sacudidor da Terra, no terceiro dia terei chegado à Ftia de férteis sulcos. Muitos haveres lá tenho, que deixei ao vir para aqui. Mas daqui levarei mais ouro e fulvo bronze, e as mulheres

de bela cintura e o ferro cinzento que me calharam por sorte. Porém o prêmio, que ele me deu, de novo na sua insolência mo tirou o poderoso

Agamenon, о Atrida. 6. Declarai-lhe tudo, como eu digo, às claras, para que se encoleri-

zem os outros Aqueus, não vá ele ter a esperança de intrujar outro den-

tre os Dânaos, ele que é sempre desavergonhado. Mas na minha cara não ousaria ele olhar, embora tenha desfaçatez de cão. Não deliberarei

com ele conselhos, nem façanha alguma. Totalmente ele me enganou e ofendeu. Nunca mais me seduzirá com palavras. Chega! Que sossegado encontre a destruição, visto que o juízo lhe tirou Zeus, o conselheiro.

7. São-me detestáveis os seus presentes, não lhes dou valor algum.

Nem que me oferecesse dez vezes mais ou vinte vezes mais do que agora oferece, e que a isso acrescentasse outros dons, nem que fossem os te-

souros de Orcómeno, ou da egípcia Tebas, onde nas casas jaz a maior

quantidade de riqueza; Tebas com seus cem portões, e de cada um arremetem duzentos guerreiros equipados com carros e cavalos! Nem que me desse tantos presentes como grãos de pó e areia, nem assim Agamenon conseguiria convencer o meu espírito, antes que tenha pago todo o preço daquilo que me mói o coração. 8. Não desposarei a filha de Agamenon, filho de Atreu, nem que com

a dourada Afrodite ela competisse em beleza e que Atena de olhos garços igualasse nos lavores. Nem assim eu a desposaria. Que ele escolha outro dos Aqueus, que seja mais parecido com ele e detentor de maior realeza. Pois se os deuses me salvarem e eu conseguir chegar a casa,

decerto o próprio Peleu tratará de me escolher uma esposa. Muitas são as aquéias na Hélade e na Ftia, filhas de nobres, daqueles que protegem as cidades: dessas escolherei a que eu quiser para ser minha mulher. Aí, muitas vezes, me veio a meu espírito viril a vontade de desposar uma

mulher, que fosse a esposa adequada, para assim me deleitar com a

22

INTRODUÇÃO fortuna que Peleu granjeou. De valor comensurável à minha vida não são os tesouros que dizem possuir Ilion, cidadela bem habitada, dantes

em tempo de paz, antes de virem os filhos dos Aqueus; nem sequer os tesouros contidos na soleira marmórea do archeiro Febo Apolo nos

penhascos de Delfos. Pois extorquíveis são bois e robustas ovelhas e adquiríveis são trípodes e flavos cavalos; mas que a vida de um homem volte de novo, depois de lhe passar a barreira dos dentes, isso não é possível por extorsão ou aquisição. Na verdade me disse minha mãe, Tétis dos pés prateados, que um dual destino me leva até ao termo da morte: se eu aqui ficar a combater em torno da cidade de Tróia, perece o meu

regresso, mas terei um renome imorredouro; porém se eu regressar a casa, para a amada terra pátria, perece o meu renome glorioso, mas terei uma vida longa, e o termo da morte não virá depressa ao meu encontro.

9. Aliás também aos outros eu recomendaria que para casa navegásseis de novo, uma vez que já não atingireis o objetivo de saquear a íngreme Ilion. Na verdade Zeus que vê ao longe estende sobre ela a sua mão e as suas gentes enchem-se de coragem. Mas ide então vós, e aos comandantes dos Aqueus transmiti a minha mensagem (pois esse é privilégio de conselheiros), para que deliberem no espírito outro plano melhor que este, um que lhes salve as naus e o exército dos Aqueus junto das côncavas naus, já que não lhes saiu bem este plano, que conceberam em sua mente, por causa da minha cólera. No entanto, que Fênix aqui fique conosco a dormir, para que amanhã siga comigo nas naus para a pátria amada, no caso de ele assim querer; pois à força eu não o levaria".}

ANÁLISE DE "OS ENVIADOS SUPLICAM A AQUILES" A situação dramatizada nessa cena da Ilíada vemos representada com frequência hoje em dia, possivelmente em nossa própria vida, certamente na vida pública: uma pessoa ou um grupo de pessoas tentando persuadir alguém a fazer algo ou concordar com algo. Hoje, pode ser uma jovem implorando ao pai para deixá-la usar o carro da família para um encontro no sábado à noite ou uma delegação de chefes de partido tentando induzir um candidato relutante a concorrer a um alto 1 Iliada, de Homero. Tradução de Frederico Lourenço, Lisboa: Editora Quetzal, 2019 — NT.

23

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO cargo político. Essa situação bastante comum exige poderes retóricos

incomuns. Do ponto de vista narrativo, trata-se de uma cena intensamente dra-

mática, que Homero colocou no nono livro de seu épico; do ponto de

vista retórico, é uma situação que exigirá que os homens enviados para essa missão crucial dêem o melhor de si. Agamenon escolheu seus embaixadores com inteligência: Odisseu, o homem "de mil ardis"; Ájax, considerado o mais poderoso guerreiro grego depois de Aquiles; Fênix, o velho e amado tutor de Aquiles. Cada um deles trabalhará no ofendido e descontente Aquiles à sua maneira.

Os heróis homéricos orgulhavam-se tanto de sua habilidade com as palavras quanto de sua destreza com as armas. Na súplica a Aquiles, Fênix lembrou ao ex-aluno que ele o havia ensinado a ser "orador de discursos e fazedor de façanhas". E em toda a llíada, Aquiles demonstra orgulho da desenvoltura na oratória, reconhecida pelos companheiros. Odisseu tem consciência de que não é um guerreiro tão grande quanto Aquiles, mas sabe que é superior a ele em termos de retórica. No livro In da Iliada, Antenor descreve Odisseu quando vai à corte de Tróia para negociar o retorno de Helena: "Mas quando do peito emitia a sua voz poderosa, suas palavras como flocos de neve em dia de inverno, então outro mortal não havia que rivalizasse com Odisseu". E foi Odisseu, lembre-se, que, no livro II, impediu os gregos, com o poder da retórica, de correr para os navios e navegar de volta para casa. Fênix também teve importância aqui. Como disse Quintiliano: "O professor deve, portanto, distinguir-se tanto pelo caráter quanto pela eloquência e, como Fênix na Iliada, ser capaz de ensinar o aluno a agir e falar" (Instituição oratória, II, iii, 12). Não é de admirar que os retóricos considerassem Homero uma rica fonte de citações e ilustrações, pois a Ilíada e a Odisséia estão repletas de modelos de quase todos os tipos de eloquência. Quintiliano observou que os magníficos discursos do primeiro, segundo e nono livros "apresentam todas as regras da arte a serem seguidas na oratória forense ou deliberativa" (Instituição oratória, x, i, 47). Hoje achamos quase cômico ler sobre guerreiros parando no calor da batalha, como fazem em algumas cenas da Iliada, para proferir longos discursos uns contra os outros. Mas a tradição da oratória já estava bem estabelecida (embora ainda

24

INTRODUÇÃO não bem formulada) no tempo de Homero, e essa tradição persistiu e

fortaleceu-se durante a Idade de Ouro de Atenas. Portanto, devemos levar a oratória exibida nessa cena tão a sério quanto os participantes a

levaram e devemos saborear o prazer com que eles se entregaram a esse

duelo de palavras. Os participantes desse duelo de palavras estão claramente engajados no que os retóricos clássicos chamam de discurso deliberativo. Ao classificar os três tipos de oratória, Aristóteles assinalou que a oratória deliberativa preocupa-se com o tempo futuro; que os meios usados nesse tipo de oratória são a exortação e a dissuasão; e que os tópicos especiais que mais aparecem nesse tipo de discurso estão relacionados à idéia

de algo ser útil ou inútil, vantajoso ou prejudicial. Em outras palavras, quando estamos tentando persuadir uma pessoa a fazer algo, procuramos mostrar que a linha de ação recomendada é um bem em si (e, por-

tanto, digno de ser perseguido por suas vantagens intrínsecas) ou algo que bene ciará a pessoa. Os enviados estão tentando exortar Aquiles a empreender uma ação no futuro (no dia seguinte, se ele quiser) que será

vantajosa para ele e para os gregos. Aquiles está empenhado em refutar as exortações.

Nossa seleção dessa cena reproduz somente o apelo de Odisseu a Aquiles e a resposta de Aquiles a Odisseu. Vejamos as estratégias de argumentação nesses dois discursos.

Já observamos que Odisseu tinha a reputação de ser o orador mais talentoso entre os gregos. De fato, seu discurso aqui é um modelo em miniatura da oração bem organizada. Possui exórdio, narração, prova e peroração. Nenhuma dessas partes é desenvolvida a ponto de ser uma oração deliberativa completa, mas o discurso está de acordo com a dispositio ou disposição padrão estabelecida pelos professores de retórica. Odisseu começa o discurso saudando Aquiles, fazendo o que muitas vezes é feito no exórdio ou introdução de um discurso: tentar quebrar o gelo, para atrair o público indiferente, relutante ou hostil (qualquer que

seja o termo que melhor descreve o humor de Aquiles no momento). Todos os retóricos enfatizam a importância de levar o público a um estado de espírito receptivo, especialmente se o público for descon ado

ou hostil. A necessidade de dispor uma audiência favoravelmente ex-

plica por que tantos oradores começam com uma piada ou uma anedota cômica.

fi

fi

25

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Odisseu passa então à narratio, ou exposição do estado de coisas

no momento (parágrafos 2 e 3), descrevendo para Aquiles a situação

desesperadora em que os gregos se encontram. Desse modo, ele em-

prega o recurso da enárgeia, que, como diz Quintiliano, "faz com que pareçamos não tanto narrar, mas expor a cena real, com emoções não menos intensas do que se estivéssemos presentes na ocasião de fato" (Instituição oratória, vI, ii, 32). Assim, Odisseu apresenta para Aquiles

as incontáveis fogueiras de vigia acesas no bivaque de Tróia, fora da linha dos navios gregos; o presságio favorável dado pelo raio de Zeus; e

o "fogo consumidor" que ameaça engolir as naus. Todas essas imagens

de fogo são sutilmente calculadas para despertar a raiva de Aquiles, uma vez que, para a mente grega, o fogo estava intimamente associado à emoção da raiva. Ao retratar Heitor em ataque frenético, arrogante e triunfante aos navios, Odisseu procura mexer com o orgulho e a inveja

de Aquiles. Ele está provocando Aquiles: "Deixarás Heitor jactar-se de que derrubará nossas insígnias, afundando nossos navios em fogo e fumaça?". Se um apelo como esse não ferir o orgulho de Aquiles, talvez desperte seu senso de lealdade e patriotismo. Odisseu, então, inicia aquela parte do discurso que os retóricos latinos chamavam de confirmatio: a prova do caso. Nessa seção, o orador apresenta "todos os meios de persuasão disponíveis" para defender a causa que está apoiando. Primeiro, Odisseu tenta influenciar Aquiles, lembrando-o da advertência do pai, Peleu, de dominar o orgulho e evitar discórdias. Além de

seu valor intrínseco, o domínio do orgulho também dispõe o homem para lutar com mais eficácia, fazendo com que os deuses, em cujas mãos

repousa nossa fortuna, olhem com clemência para nossa causa. Odisseu

apela à piedade filial. Aquiles não se distingue por pietas tanto quanto aquele herói épico posterior, Enéias, mas em uma sociedade fortemente

patriarcal como a que existia na Grécia antiga, um filho não ficava totalmente imune aos conselhos do pai. Se esse lembrete de uma adver-

tência esquecida não convence Aquiles, é somente porque ele sente que algo maior justifica sua raiva.

Depois disso, Odisseu enumera para Aquiles todos os presentes que Agamenon está disposto a dar-lhe se ele voltar para a batalha. Aristóteles apontou na Retórica que a exortação e a dissuasão voltam-se, em última análise, para considerações sobre a felicidade ou, de modo mais geral,

26

INTRODUÇÃO sobre o bem. Sempre que tentamos persuadir alguém a fazer algo, ten-

tamos mostrar os benefícios que resultarão da ação recomendada. De acordo com a maioria das pessoas, alguns bens que contribuem para a

felicidade são bens externos, como uma família respeitada, amigos leais, riqueza, fama e honra, além de bens pessoais, como saúde, beleza e força. De todos esses bens, Odisseu prioriza a riqueza, tentando seduzir Aquiles com a lista de todo o ouro, cavalos, servas e propriedades que lhe concederá Agamenon. Ele só não terá de volta a jovem Briseida, o objeto do conflito original com Agamenon, mas terá o privilégio de desposar uma de suas filhas.

Odisseu está claramente apelando para o interesse próprio de Aquiles, que, mesmo a contragosto, vê-se tentado pelas ofertas generosas do rei, pois, nessa sociedade aristocrática, uma das marcas de honra para um herói eram as posses abundantes. Além disso, tais ofer-

tas generosas seriam uma manifestação da capitulação humilhante de

Agamenon em relação a Aquiles. Veremos, quando considerarmos a refutação de Aquiles, como ele foi capaz de resistir a uma oferta tão

tentadora. É claro que Odisseu não precisou inventar esses apelos. Ele apenas

repete, textualmente, a oferta que Agamenon havia feito, no início do

livro Ix, perante o conselho que imediatamente precedeu essa embai-

xada. Odisseu usou todos os meios de persuasão disponíveis, mas não precisou criar esses meios.

Uma observação precisa ser feita, no entanto, sobre esse relato tex-

tual da oferta de Agamenon: o astuto Odisseu omitiu parte do discurso

de Agamenon no conselho. No final, Agamenon disse: "Estas coisas eu cumprirei se ele abandonar a sua cólera. Que se domine (pois o Hades é inapelável e indomável e por isso é detestado pelos mortais e por todos

os deuses) e se submeta a mim, pois sou detentor de mais realeza, além de que declaro pela idade ser mais velho do que ele". Odisseu sabia que, se repetisse essas palavras, só aumentaria a raiva de Aquiles, pois essas

palavras revelam que a capitulação de Agamenon esconde rancor e in-

diferença. E certamente a insistência do rei de que ele ainda é superior teria repelido Aquiles, em vez de atraído.

Odisseu conclui o apelo com um tom ligeiramente diferente. Se Aquiles não for capaz de superar o ódio por Agamenon, que ele considere a honra que pode conquistar para si mesmo destruindo Heitor

27

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO e resgatando os gregos, outro apelo ao interesse próprio, mas em um

plano mais elevado do que o lembrete anterior de recompensas materiais. Para o herói homérico, a glória pessoal era o bem maior. Odisseu

reservou o apelo mais forte para o clímax da argumentação.

A resposta de Aquiles é imediata e impulsiva. Não há pausa reflexiva para pesar os argumentos. Temos a impressão de que Aquiles fez ouvi-

dos moucos ao apelo de Odisseu e espera impacientemente que Odisseu pare de falar para poder pronunciar-se. Não nos surpreendemos, então, ao descobrir que a fala de Aquiles é emocionalmente carregada e, con-

seqüentemente, desorganizada.

Aquiles parece não tanto responder a Odisseu, mas expressar, de modo vigoroso e insistente, seu desprezo pela oferta de Agamenon, declarando sua determinação de não lutar. A princípio, ele fala como se

não tivesse dado ouvidos a Odisseu: diz que não lutará mais porque não recebe agradecimentos ou recompensas por arriscar a vida. Mas Odisseu acaba de lhe falar sobre os agradecimentos e as recompensas que receberá se retornar à batalha: ele obterá não só o que tinha antes do conflito, mas recompensas adicionais em superabundância. À medida que a torrente de palavras de Aquiles avança, no entanto, fica claro que ele ouviu Odisseu. Aquiles mostra-se ciente de todos os detalhes da oferta de Agamenon, mas a rejeita. Um preço mais alto não o faria mudar de idéia: ele rejeitaria a oferta, mesmo que ela fosse in-

finitamente maior. Algumas outras considerações influenciam Aquiles

agora. Algo aconteceu com Aquiles enquanto ele estava meditando em sua tenda: ele começou a avaliar a lógica da guerra em geral e daquela guerra em particular. Por que eles guerreiam há dez anos? Para resgatar Helena? Mas essa é uma causa absurda pela qual lutar e morrer. Por que centenas de esposas ficariam viúvas para que o irmão do rei pudesse recuperar a esposa? A absoluta estupidez da guerra e a flagrante arrogân-

cia de Agamenon em mobilizar tantos nobres guerreiros para lutar em tal guerra aumentam o insulto a Aquiles. Agamenon realmente pensa que pode compensar tudo isso com seus insigni cantes presentes? Aquiles também não ignorou o apelo de Odisseu com base na honra pessoal. Como já observamos, a perspectiva de conquistar a glória pessoal exercia uma forte atração sobre os heróis gregos, mas, tendo visto

fi

28

INTRODUÇÃO aquela guerra da perspectiva adequada, Aquiles não considera mais a

atração da honra pessoal tão forte quanto antes. Há algo mais caro para ele agora do que honra e riqueza: a vida. Aquiles diz: "De valor co-

mensurável à minha vida não são os tesouros que dizem possuir Ilion,

cidadela bem habitada, dantes em tempo de paz, antes de virem os filhos dos Aqueus; nem sequer os tesouros contidos na soleira marmórea do archeiro Febo Apolo nos penhascos de Delfos". E um pouco mais adiante, ele diz: "[...] porém se eu regressar a casa, para a amada terra pátria, perece o meu renome glorioso, mas terei uma vida longa, e o termo da morte não virá depressa ao meu encontro". Nesse momento, Aquiles concluiu que a vida é um bem maior do que fama ou a riqueza. Para chegar a essa conclusão, Aquiles empregou um dos tópicos comuns de Aristóteles: o tópico dos graus. Quando as pessoas deliberam sobre uma linha de ação, a escolha nem sempre é entre um bem e um mal; às vezes, a escolha é entre dois ou mais bens. Ao fazer uma escolha entre vários bens, as pessoas decidem com base no grau: qual desses bens é o bem maior? E é a esse tópico que Aquiles recorre aqui. Como os leitores da Ilíada sabem, Aquiles, mais tarde, muda de idéia e elege a honra sobre a vida. Mas, no momento e em resposta aos apelos persuasivos de Odisseu, ele declara sua preferência pela vida, em detrimento da riqueza e da honra. Esse é todo o raciocínio por trás da refutação de Aquiles. A maior parte de seu discurso vale-se de linguagem bombástica, embora eloquente. No final, porém, uma coisa fica clara: ele não lutará. E parece que Odisseu, o renomado orador, o homem de mil ardis, fracassou totalmente na tarefa de convencer Aquiles. Agora é a vez de Fênix apelar para ele e depois Ájax, mas não reproduziremos esses dois discursos aqui. Que lições de retórica podemos tirar desse episódio, uma cena dramática de um poema narrativo, mas apresentada na forma de debate oratório? Aprendemos, por um lado, que apesar das centenas de anos que separam nossa sociedade da sociedade de Homero, as pessoas agiam

e reagiam da mesma forma que hoje. As pessoas ainda cam de mau humor por causa de uma afronta, real ou não, ao seu orgulho ou dignidade; outras pessoas tentam curar as feridas do insulto. Os valores

dominantes de uma sociedade podem mudar com o passar do tempo

fi

29

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

(hoje, por exemplo, damos mais importância a ações que contribuam para o bem-estar público do que a ações que contribuam apenas para a honra pessoal), mas as paixões e motivações humanas básicas de hoje são as mesmas que as da época de Homero. Nesse episódio, vemos homens discutindo da mesma forma que discutimos hoje. O que fazemos quando queremos mudar a atitude de alguém ou conseguir que alguém faça algo? Como Odisseu, Fênix e Ájax, recorremos a uma variedade de apelos, esperando que um ou outro (ou uma combinação deles) sirva para persuadir a pessoa a mudar

de idéia ou a agir de determinada maneira. Tentamos mostrar à pessoa

que uma linha de ação proposta é um bem em si ou resultará em consideráveis benefícios pessoais. As recompensas materiais que sugerimos

podem não ser trípodes sofisticadas e velozes cavalos de corrida, mas serão iscas semelhantes: dinheiro, automóveis caros ou relógios Rolex. Outra estratégia é tentar mostrar à pessoa quanta honra, poder ou fama ela terá, ou mostrar quão tolo ou perigoso seria deixar de agir. Se esses apelos ao interesse pessoal não convencerem, podemos recorrer a outras abordagens. Podemos tentar induzir emoções como raiva, medo, pena, vergonha, inveja, desprezo. Como a ação é contro-

lada pela vontade e o apelo às emoções é um dos meios mais poderosos

de despertar a vontade, veremos que, em algumas circunstâncias, um

apelo emocional é a tática mais eficaz. Também recorremos ao apelo

ético para in uenciar o indivíduo relutante: se o indivíduo perceber, por nossos esforços de persuasão, que somos homens e mulheres inteligentes, pessoas de bom caráter e boa vontade, ele ouvirá e responderá aos nossos apelos lógicos e emocionais.

Em suma, o que aprendemos com a exibição de retórica nesse episódio da Ilíada é que, em circunstâncias semelhantes, empregamos as mesmas estratégias de apelo dos enviados. Fazemos uso de "todos os meios de persuasão disponíveis". Podemos usar mais ou diferentes ar-

gumentos, organizá-los de outra maneira, com um estilo mais moderado ou floreado para transmitir nossos argumentos, mas, em essência, nossas estratégias serão as mesmas dos enviados. Este texto abordará as estratégias de discurso dirigidas a um público

específico, com um propósito específico.

fl

30

INTRODUÇÃO

BREVE EXPLICAÇÃO DA RETÓRICA CLÁSSICA Acabamos de ver dois exemplos de discurso persuasivo, cuja análise introduziu uma terminologia que pode ser desconhecida. A terminologia é estranha porque pertence a uma arte formulada há muitos séculos, que deixou de ser uma disciplina vital em nossas escolas em algum momento do século xix. Embora os alunos modernos possam ter ou-

vido o termo retórica com freqüência, eles provavelmente não sabem muito bem o que ele significa. Essa incerteza é compreensível, porque a palavra adquiriu muitos significados. A retórica pode ser associada em sua mente com a escrita de composições e temas, com estilo (figuras de linguagem, floreios de dicção, variedade de padrões e ritmos de frases) ou com a noção de linguagem vazia e bombástica, como vem implícito na expressão popular "mera retórica". Talvez, em algum lugar de sua consciência, esteja a noção de retórica como o uso da linguagem para fins persuasivos.

O que todas essas noções têm em comum é que a retórica pressupõe

o uso ou manipulação de palavras. Aliás, um olhar sobre a etimologia da palavra retórica revela que o termo está profundamente enraizado na noção de "palavras" ou "discurso". As palavras gregas rhèma (uma palavra) e rhētor (um professor de oratória), da mesma família, derivam, em última análise, do verbo grego eiro (eu digo). O substantivo retórica,

em português, deriva do adjetivo feminino grego retorike, construção elíptica para retorike techne (a arte do retórico ou orador). O termo inglês retoric deriva imediatamente de rhétorique, em francês.

Essa investigação da etimologia do termo, de certa forma, aproxima-nos do significado original de retórica: algo relacionado com o ato

de falar, orar. Desde sua origem no século v a.C., na Grécia, até seu

florescimento em Roma e seu reinado no trivium medieval, a retórica foi associada principalmente à arte da oratória. Durante a Idade Média, os preceitos da retórica clássica começaram a ser aplicados à escrita de

cartas. Só no Renascimento, após a invenção da imprensa no século XV, é que os preceitos que regem a arte oral começaram a ser aplicados, em grande escala, ao discurso escrito.

A retórica clássica associava-se ao discurso persuasivo. Seu objetivo

era convencer ou persuadir um público a pensar ou agir de determinada maneira. Mais tarde, os princípios da retórica foram estendidos

31

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

para aplicação nos modos de discurso informativo ou expositivo, mas, no início, eles eram aplicados quase exclusivamente nos modos de discurso persuasivos. A retórica como discurso persuasivo ainda é muito exercida entre nós, mas os estudantes modernos provavelmente não tiveram uma educação formal na arte da persuasão. Freqüentemente, o único resquício dessa educação nas escolas é a atenção prestada à argumentação no estudo das quatro formas de discurso: argumentação, exposição, descrição e narração. Esse estudo, porém, acaba sendo um curso acelerado

de lógica. Para o retórico clássico, a lógica era uma disciplina auxiliar, mas distinta. Aristóteles, por exemplo, falou da retórica como sendo "um desdobramento" ou "uma contrapartida" da lógica ou, como ele chamava, dialética. O orador pode empregar a lógica para persuadir o público, mas a lógica era apenas um entre muitos "meios de persuasão disponíveis". Portanto, aqueles que estudam argumentação nas salas de aula hoje não estão realmente expostos à disciplina riquíssima e alta-

mente sistematizada que os alunos anteriores conheceram quando esta-

vam aprendendo a arte da persuasão. Embora a retórica clássica tenha praticamente desaparecido de nos-

sas escolas, houve um tempo em que ela esteve muito viva. Por longos períodos durante 2.000 anos de história, a retórica foi a disciplina cen-

tral do currículo. A retórica gozou de tal importância, porque, durante

esses períodos, a habilidade na oratória ou no discurso escrito era fundamental para o sucesso nos tribunais, no foro e na igreja. Uma das razões pelas quais o estudo (ou até a prática) da retórica perdeu a força em nossos tempos é que, em uma sociedade industrial e tecnológica como a nossa, existem caminhos para o sucesso além das habilidades de comunicação. Reza a lenda que, no período entre 1870 a 1910, alguns americanos semi-analfabetos tornaram-se milionários. Ironicamente, alguns deles fundaram bibliotecas e patrocinaram universidades mais

tarde. Um fato curioso na história da retórica é seu ressurgimento durante períodos de ascensão social e política. Sempre que a velha ordem começa

a extinguir-se, dando passagem a uma nova ordem, a habilidade no uso

da palavra falada ou escrita faz-se necessária. Basta relembrar eventos

históricos como o Renascimento na Itália, a Reforma na Inglaterra e a Revolução nos Estados Unidos para encontrar evidências dessa neces-

32

INTRODUÇÃO sidade desesperada, em tempos de mudança ou crise, do talento de es-

pecialistas nas artes persuasivas. Como Jacob Burckhardt apontou em A cultura do Renascimento na Itália, o orador e o professor de retórica desempenharam um papel essencial no movimento humanístico do século xv, que estava se livrando do jugo da Igreja medieval. Depois que Henrique vin rompeu com Roma, as cortes Tudor da Inglaterra vibraram com os argumentos de centenas de advogados engajados em instaurar processos judiciais sobre propriedades monásticas confiscadas. Estudantes da Revolução Americana só precisam relembrar os panfletos incendiários de Tom Paine, os discursos inflamados de Patrick Henry, a

ousada Declaração de Independência, de Thomas Jefferson, e os esfor-

ços de Hamilton e Madison para vender democracia constitucional nos

Federalist Papers para se convencerem de que, em tempos de mudança ou turbulência, confiamos fortemente nos serviços daqueles equipados

com línguas ou canetas persuasivamente eloqüentes. Um tipo similar de atividade retórica grassa hoje entre os nacionalistas que lutam pela

independência nos países africanos e asiáticos. Mais recentemente, no nosso próprio país, assistimos ao furioso movimento retórico, expresso

tanto em palavras quanto em manifestações públicas, nos debates entre grupos pró-escolha e pró-vida. Aqueles que quiserem saber mais a respeito da longa história da retórica podem ler a pesquisa sobre retórica no capítulo final deste livro, dando continuidade ao estudo com alguns dos textos primários e secundários sobre retórica listados na bibliografia. Antes de adentrar o estudo da retórica no próximo capítulo, porém, os alunos podem querer obter algum conhecimento geral sobre o sistema clássico de retórica

e sua terminologia. Na época em que Cícero escreveu seus tratados sobre retórica, o estudo da retórica estava dividido, principalmente por conveniência pedagógica, em cinco partes: inventio, dispositio, elocutio,

memoria e pronuntiatio. Visto que este texto professa ser uma adaptação da retórica clássica, os estudantes precisam de uma explicação desses e de outros termos-chave para que possam compreender melhor o tipo de retórica apresentada nos próximos três capítulos.

33

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

OS CINCO CÂNONES DA RETÓRICA Inventio é o termo latino (heuresis era o termo grego equivalente) para "invenção" ou "descoberta". Teoricamente, os oradores podiam falar sobre qualquer assunto, porque a retórica, como tal, não tinha um assunto específico. Na prática, porém, cada discurso representava um desafio único. Os oradores tinham que encontrar argumentos para fundamentar qualquer idéia ou ponto de vista que estivessem defendendo. De acordo com Cícero, o orador confiava no talento inato (no método ou na arte) ou na diligência para encontrar argumentos apropriados. Obviamente, o indivíduo estava em grande vantagem se tivesse intuição para argumentos adequados, mas, na falta de tal dom, ele poderia recorrer à diligência obstinada ou a algum sistema para encontrar argu-

mentos. Inventio era um sistema ou método para encontrar argumentos.

Segundo Aristóteles, existem dois tipos de argumentos ou meios de persuasão disponíveis para o orador. Em primeiro lugar, temos os meios de persuasão não-artísticos ou não-técnicos (atechnoi pistis, em grego).

Na verdade, esses modos de persuasão não faziam parte da arte da retórica, vieram de fora, e os oradores não tiveram que inventá-los, apenas

utilizá-los. Aristóteles citou cinco tipos de provas não-artísticas: leis, testemunhos, contratos, torturas, juramentos. Aparentemente, o advogado defendendo um caso no tribunal faz mais uso desse tipo de prova, mas o político ou o panegirista também pode usá-las. Hoje, por exemplo, os deputados, tentando persuadir os cidadãos a adotar estatísticas de cotação de impostos sobre vendas, valem-se de contratos legais, leis existentes, documentos históricos e depoimentos de especialistas para convencê-los. Eles não precisam inventar esses argumentos de reforço,

pois eles já existem. É verdade que, em certo sentido, eles precisam encontrá-los: precisam estar cientes de que eles existem e precisam saber a

quais departamentos ou registros recorrer para descobri-los. (Uma das seções no próximo capítulo fornece trechos de alguns livros de referên-

cia, com fatos, números e testemunhos de respaldo para argumentos). Mas os deputados não precisam imaginar esses argumentos, criá-los ou inventá-los, no sentido clássico do termo.

O segundo modo geral de persuasão de que fala Aristóteles inclui a prova "artística", no sentido de que entra no campo da arte retórica: apelo racional (logos), apelo emocional (pathos) e apelo ético (ēthos). Ao

34

INTRODUÇÃO exercer o apelo racional, o orador apela para a razão ou compreensão

do público. O orador "argumenta", em outras palavras. Quando argumentamos, raciocinamos dedutivamente ou indutivamente, ou seja, tiramos conclusões de proposições afirmativas ou negativas (por exem-

plo: nenhum homem pode alcançar felicidade perfeita nesta vida; João é homem; portanto, João não pode alcançar felicidade perfeita nesta vida) ou procedemos a generalizações, depois de observar uma série de fatos análogos (por exemplo: toda maçã verde que eu comi tinha um sabor azedo; todas as maçãs verdes devem ser azedas). Na lógica, o

modo dedutivo de argumentar é comumente referido pelo termo aristotélico silogismo. Na retórica, o equivalente ao silogismo é o entimema. O

equivalente retórico da indução completa na lógica é o exemplo. Como o próximo capítulo fornecerá uma explicação elaborada de silogismo, entimema, indução e exemplo, não vamos nos alongar sobre eles aqui. Um segundo modo de persuasão é o apelo emocional. Uma vez que, por natureza, somos animais racionais, deveríamos ser capazes de tomar

decisões sobre nossa vida pública e privada somente à luz da razão, mas também somos dotados de livre-arbítrio e muitas vezes nossa vontade

é influenciada mais por nossas paixões ou emoções do que por nossa razão. Aristóteles expressou o desejo de que a retórica pudesse lidar exclusivamente com apelos racionais, mas ele era realista o suficiente

para reconhecer que muitas vezes somos impelidos a fazer ou aceitar algo por meio das emoções. E se a retórica era, conforme sua definição, a arte de descobrir "todos os meios de persuasão disponíveis", ele

precisava dedicar um espaço na Retórica a uma investigação dos meios de despertar as emoções. Assim, ele dedicou a maior parte do livro I

de sua obra a uma análise das emoções humanas mais comuns, marcando o início da ciência da psicologia humana. Para poder manipular as emoções das pessoas, o orador deve, primeiro, saber que emoções são

essas e como elas podem ser provocadas ou subjugadas. Um terceiro modo de persuasão é o apelo ético. Esse apelo origina-se

no caráter do orador, principalmente porque esse caráter é evidenciado

no próprio discurso. Um indivíduo agradará ao público, ganhando sua confiança e admiração, se conseguir passar a impressão de que é inteligente, benevolente e correto. De acordo com Aristóteles, o apelo ético tal-

vez seja o mais poderoso dos três modos de persuasão. Toda a habilidade

de um orador em convencer o intelecto e despertar a vontade do público

35

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

pode ser inútil se o público não estimar o orador e não confiar nele. Por essa razão, os políticos que buscam a eleição para cargos públicos tomam muito cuidado para criar uma imagem adequada de si mesmos aos olhos dos eleitores. Foi também por essa razão que Cícero e Quintiliano

enfatizaram a necessidade do alto caráter moral no orador. Quintiliano

definiu o orador ideal como "um homem bom, que fala bem". Na Etica a Nicômaco, Aristóteles explorou o ethos próprio do indivíduo; na Política,

o éthos próprio dos indivíduos que vivem juntos em uma sociedade. O método que os retóricos clássicos conceberam para ajudar o orador a encontrar argumentos nos três modos de apelo são os tópicos. Tópicos é a tradução da palavra grega topoi e da palavra latina loci. Literalmente, topos ou locus significa "lugar" ou "região" (daí nossas palavras topogra-

fia e local). Na retórica, um tópico é um lugar, acervo ou dicionário de sinônimos ao qual o indivíduo recorre para encontrar o que dizer sobre um determinado assunto. Mais especificamente, um tópico é um título geral ou linha de raciocínio que sugere material como base para as provas. Dito de outra forma, os tópicos representam um método de sondar um assunto para descobrir formas de desenvolvê-lo. Aristóteles

distinguiu dois tipos de tópico: (1) os tópicos especiais (que ele chamou de idioi topoi ou eide); (2) os tópicos comuns (koinoi topoi). Os tópicos especiais são argumentos apropriados a tipos particulares de discurso. Em outras palavras, alguns tipos de argumentos são usados exclusivamente nos tribunais; alguns estão restritos ao fórum público; outros

aparecem somente em discursos cerimoniais. Os tópicos comuns, por outro lado, são um conjunto bastante limitado de argumentos, que po-

dem ser usados em qualquer ocasião ou tipo de discurso. Aristóteles

nomeou quatro tópicos comuns: (1) mais e menos (o tópico do grau); (2) o possível e o impossível; (3) fato passado e fato futuro; (4) grandeza

e pequenez (o tópico do tamanho em oposição ao tópico do grau). No

próprio texto, veremos como os tópicos são colocados em prática. Todas as considerações das últimas duas ou três páginas encontram-se no campo da inventio. O capítulo 11, intitulado "Descoberta de argumentos", tratará deste aspecto da retórica: como "descobrir" algo a dizer sobre determinado assunto, que é o problema crucial da maioria dos escritores. A principal razão para a falta de articulação dos escritores em certos assuntos é a falta de experiência ou leitura para guarnecer seu reservatório de idéias. Outras vezes, a falta de articulação decorre

36

INTRODUÇÃO da incapacidade de olhar para um determinado assunto a fim de des-

cobrir o que já sabem sobre esse assunto. Como inventio é uma forma sistematizada de descobrir ou produzir idéias sobre algum assunto, os escritores podem achar útil esta abordagem retórica. A segunda parte da retórica é dispositio (taxis, em grego), termo que pode ser traduzido como "disposição", "estrutura", "organização". Essa é a seção da retórica referente à estrutura eficaz e ordenada das partes de um discurso escrito ou falado. Uma vez que as idéias ou argumentos são encontrados, resta selecioná-los, ordená-los e organizá-los para cumprir a finalidade do discurso. Em termos mais simples, pode-se dizer que qualquer discurso pre-

cisa de um começo, um meio e um fim, mas essa divisão é evidente e não ajuda muito. Os retóricos explicaram as divisões de um discurso de forma mais específica e funcional. Segundo Aristóteles, um discurso tem somente duas partes essenciais: a exposição do caso e a prova, mas,

na prática, os oradores acrescentam mais duas partes: uma introdução

e uma conclusão. Os retóricos latinos, como o autor de Ad Herennium, desenvolveram essas divisões, reconhecendo seis partes: (1) a introdu-

ção (exordium); (2) a declaração ou exposição do caso em discussão (narratio); (3) o esboço dos pontos ou etapas do argumento (divisio); (4)

a prova do caso (confirmatio); (s) a refutação dos argumentos opostos (confutatio); (6) a conclusão (peroratio).

Essa divisão pode parecer arbitrária, mecânica e rígida aos escritores.

Duas coisas podem ser ditas em defesa desse padrão convencional: ele

estabeleceu princípios claros de organização, e escritores inexperientes não precisam de nada mais do que princípios simples e definidos para

guiá-los na organização do material. Além disso, os retóricos permitiram alguns ajustes nesse esquema. Aceitando a noção aristotélica dos "meios de persuasão disponíveis", eles reconhecem que, em algumas ocasiões, é conveniente omitir completamente certas partes (por exem-

plo, se alguém achar difícil apresentar argumentos opostos, pode ser aconselhável omitir o estágio de confutatio) ou reorganizar algumas das

partes (por exemplo, pode ser mais eficaz refutar os argumentos opos-

tos antes de apresentar os próprios argumentos).

Inquestionavelmente, há uma estreita inter-relação entre inventio e dispositio: em muitos livros de retórica, essas duas divisões eram trata-

37

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO das com o mesmo título. A disposição era considerada apenas mais um aspecto da invenção; inventio era o aspecto originador e dispositio era o

aspecto organizador. Como se pode aprender com a história da retórica no último capítulo, Pierre de la Ramée e seus seguidores, como Francis

Bacon, queriam relegar a invenção e a disposição ao domínio da lógica e limitar a retórica a considerações de estilo, memória e declamação. O capítulo in deste livro, intitulado "Disposição", tratará desse aspecto da retórica.

A terceira parte da retórica é elocutio (lexis, hermèneia ou frasis em

grego). A palavra elocução significa algo muito diferente para nós do que significava para o retórico clássico. Associamos a palavra ao ato de falar (daí o concurso de eloquência). Essa noção de falar, evidentemente, está implícita no verbo latino do qual o termo deriva, loqui, "falar" (cf. grego, legein, "falar"). Temos várias palavras baseadas nesse verbo latino: loquaz, coloquial, eloquente, interlocutor. Só após a volta do

interesse pela declamação, na segunda metade do século xvIII, é que a palavra elocução começou a adquirir seu significado atual, mas para o retórico clássico, elocutio significava "estilo".

Estilo é um conceito difícil de definir, embora a maioria de nós sinta

que sabe o que é. Definições famosas de estilo, como a de Buffon, "o estilo é o homem", a de Swift, "as palavras certas nos lugares certos", a de

Newman, "estilo é a reflexão em forma de linguagem", e a de Blair, "a maneira peculiar de expressar nossas concepções", são boas, mas vagas

e genéricas demais, de modo que não esclarecem muito o que é estilo.

Nenhum dos principais retóricos tentou apresentar uma definição de estilo, mas a maioria deles tinha muito a dizer a respeito. Na verdade,

parte da retórica do Renascimento dedicava-se exclusivamente à consideração do estilo.

Um dos pontos que suscitou muita discussão foi a classificação dos

estilos. Vários termos foram usados para nomear os tipos de estilo, mas houve um consenso sobre três níveis: o estilo baixo ou simples (attenuata, subtile); o estilo médio ou vigoroso (mediocris, robusta); e o estilo alto ou florido (gravis, florida). De acordo com Quintiliano, cada um desses estilos adequa-se a uma das três funções que ele atribuiu à retórica. O estilo simples era mais apropriado para instruir (docendi), o médio para mover (movendi) e o alto para encantar (delectandi).

38

INTRODUÇÃO Todas as considerações retóricas de estilo envolviam alguma discussão sobre a escolha de palavras, geralmente sob tópicos como correção, pureza (por exemplo, a escolha de palavras nativas em vez de palavras estrangeiras), simplicidade, clareza, adequação, ornamentação. Outro assunto a ser considerado é a composição ou disposição de pala-

vras em expressões ou orações (para usar o termo retórico, períodos), o que inclui discussões sobre sintaxe ou colocação de palavras; padrões de

frases (por exemplo, paralelismo, antítese); uso adequado de conjunções

e outros artifícios de correlação, tanto dentro da frase quanto entre as frases; a eufonia de frases, assegurada pela justaposição engenhosa de vogais agradáveis e combinações consonantais e pelo uso de padrões rítmicos apropriados. Evidentemente, muita atenção foi dada aos tropos e figuras (schèmata,

em grego, daí o termo esquema, freqüentemente usado no lugar de figuras). Como o conceito de tropos e esquemas é muito complexo, é melhor adiar qualquer definição e ilustração desses termos para a seção apropriada do texto. Também envolvidos nas considerações de estilo havia argumentos sobre (1) o caráter funcional versus o caráter embelezador do estilo; (2) asianismo versus aticismo; (3) o estilo escrito versus o estilo oral; (4) eco-

nomia de palavras versus abundância de palavras. Esses pontos de discussão são assuntos bastante periféricos, mas é incrível quanto tempo e energia os retóricos devotaram a tais controvérsias. O quarto capítulo deste livro será dedicado à consideração do estilo.

A quarta parte da retórica é memoria (mnèmé, em grego), referente à memorização dos discursos. Das cinco partes da retórica, a memoria foi

a que recebeu menos atenção nos livros, provavelmente porque que não

há muito o que dizer, de forma teórica, sobre o processo de memorização. Além disso, depois que a retórica passou a lidar principalmente

com o discurso escrito, não havia mais necessidade de memorização. Esse processo, no entanto, recebeu alguma atenção nas escolas de retórica criadas pelos sofistas. A memória do orador era exercitada, em

grande parte, com a prática constante (assim como os atores profissionais hoje adquirem uma incrível facilidade em memorizar roteiros), mas os retóricos sugeriram vários artifícios mnemônicos para facilitar

a memorização de discursos. Os cursos que às vezes vemos anunciados

39

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO em jornais ou revistas, "aprenda a memorizar qualquer coisas em trinta

dias", são manifestações modernas dessa divisão da retórica. Não haverá consideração neste livro sobre esse aspecto da retórica. A quinta seção da retórica é pronuntiatio (hypokrisis, em grego) ou de-

clamação. Como no caso da memória, a teoria da declamação foi visivelmente negligenciada nos textos retóricos até o início do movimento

de elocução, em meados do século xvIII, mas a maioria dos retóricos reconhecia a importância da declamação eficaz no processo persuasivo.

Quando Demóstenes, o maior dos oradores gregos, foi questionado sobre o que ele considerava ser a parte mais importante da retórica, ele res-

pondeu: "Declamação, declamação, declamação". Apesar da negligência com a declamação nos livros de retórica, muita atenção foi devotada a esse aspecto nas escolas de retórica grega e romana. Evidentemente, a

melhor maneira de adquirir habilidade na declamação não é ouvindo discussões teóricas a respeito dessa arte, mas com a prática real e a

análise da declamação de outras pessoas. De maneira bastante compreensível, as discussões sobre declamação, bem como sobre memória, pas-

saram a ser ainda mais ignoradas em textos retóricos após a invenção da imprensa, quando a maior parte do estudo retórico voltou-se para o discurso escrito.

Como parte da declamação, havia a preocupação com a modulação da voz e os gestos (actio). Foram estabelecidos preceitos sobre a modula-

ção da voz, de modo a de nir o tom, a ênfase e o volume apropriado, e sobre pausas e fraseados. No que diz respeito à ação, os oradores aprendiam gesticulação, postura adequada do corpo e controle dos olhos/ expressões faciais, ou seja, um treinamento na arte de representar. Não

é por acaso que todos os grandes oradores da história tenham sido também grandes "canastrões".

Não há como negar a importância da declamação em cumprir o m a que nos propomos. Muitos discursos e sermões, embora bem preparados e elegantemente escritos, não despertaram interesse por causa de uma declamação inepta. Já os escritores, por não terem contato face a face com o público, como os oradores, têm de compensar essa desvantagem sendo brilhantes no estilo.

fi

fi

40

INTRODUÇÃO

OS TRÊS TIPOS DE DISCURSO PERSUASIVO Todos os retóricos distinguiram três tipos de orações, e essa classificação tripartida é quase exaustiva. Primeiro, há a oratória deliberativa, também conhecida como oratória política, exortativa ou consultiva, na qual se deliberava sobre assuntos públicos, sobre qualquer coisa que

tivesse a ver com política, no sentido grego do termo, seja ir para a guerra, cobrar um imposto, formar uma aliança com uma potência estrangeira, construir uma ponte, um reservatório ou um templo. De maneira mais geral, porém, o discurso deliberativo é aquele em que buscamos persuadir alguém a fazer algo ou a aceitar nosso ponto de vista, como nos dois exemplos que consideramos no início deste capítulo. Segundo Aristóteles, a oratória política sempre esteve voltada para o futuro (o que está em jogo é algo que faremos ou não faremos); seus tópicos especiais são o conveniente e o inconveniente; e seus meios são a exortação e a dissuasão.

Em segundo lugar, temos a oratória forense, às vezes chamada de oratória legal ou judiciária. E a oratória dos advogados em tribunal, mas pode ser estendida para abranger qualquer tipo de discurso em que uma pessoa busca defender ou condenar as ações de alguém. (O famoso discurso de Checkers, de Richard Nixon, perante uma audiência televisiva nacional, pode ser considerado um exemplo de retórica forense; a Apologia Pro Vita Sua, de Newman, é outro exemplo de discurso forense). A oratória forense, de acordo com Aristóteles, está voltada para o tempo passado (os julgamentos nos tribunais estão sempre relacionados

a ações ou crimes cometidos no passado); seus tópicos especiais são justiça e injustiça; e seus meios são acusação e defesa.

Terceiro, temos a oratória epidíctica, também chamada de oratória demonstrativa, declamatória, panegírica e cerimonial. É a oratória de exibição, o tipo de oratória exemplificado no Discurso de Gettysburg e nos tradicionais discursos de 4 de julho. Nesse tipo de discurso, a idéia

não é tanto persuadir o público, mas agradá-lo ou inspirá-lo. O discurso cerimonial (o termo que usamos neste texto) é o mais "literário" e geralmente o mais ornamentado dos três tipos de discurso. Aristóteles teve dificuldade de encontrar a correspondência temporal dessa forma de oratória, mas, em benefício da clareza, estabeleceu que a oratória cerimonial está voltada para o presente. Seus tópicos especiais são honra

41

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO e desonra, e seus meios são elogios e críticas. Os antigos não tinham

espaço em sua retórica para sermões ou homiléticas. Mais tarde, porém, quando a retórica passou a ser estudada na cultura cristã, a arte da pregação foi considerada oratória epidíctica, embora os pregadores também se preocupem com as ações passadas e futuras das pessoas.

A RELEVÂNCIA DA RETÓRICA EM NOSSO TEMPO O tipo formalizado de sistema retórico complicado descrito nas seções

anteriores pode parecer distante das preocupações e necessidades da sociedade contemporânea. Na verdade, alguns exercícios que os alunos das escolas gregas e romanas tiveram que fazer são totalmente dispensáveis. Práticas e princípios não precisam ser preservados simplesmente

porque se tornam veneráveis com o tempo. Eles devem ser seguidos somente se forem relevantes e úteis.

Em primeiro lugar, a retórica é uma atividade inevitável na vida.

Estamos sempre envolvidos nela, seja de modo ativo ou passivo. Todo

mundo que vive em comunidade com outras pessoas, querendo ou não, é um retórico. Um pai usa retórica com o filho; um professor, com os

alunos; um vendedor, com os clientes; um supervisor, com os traba-

lhadores. A cada meia hora que passamos na frente de um aparelho de televisão, somos submetidos, três ou quatro vezes, aos esforços de alguém para que compremos algo. Durante o período eleitoral, somos bombardeados pelos apelos dos candidatos por nosso voto. Mesmo quando estamos dirigindo, nossos olhos são constantemente atacados por discursos de vendas em enormes outdoors.

A publicidade pode ser o exemplo mais onipresente de uma atividade que pratica o que Aristóteles pregava, mas muitas outras áreas da vida moderna também dependem da retórica. O diplomata é um retórico viageiro. O profissional de relações públicas é um praticante da retórica cerimonial, aquela variedade de retórica que busca enaltecer uma pessoa ou instituição. O direito é uma profissão tão multifacetada hoje em dia que poucos advogados têm a chance de praticar retórica forense no tribunal, mas mesmo aqueles advogados cuja função princi-

pal é preparar sumários para os Clarence Darrows' da vida podem ser 2 Advogado americano que ficou conhecido por ter defendido os adolescentes assassinos Leopold e Loeb no seu julgamento pelo assassinato de Bobby Franks (de 14 anos) e por ter defendido

42

INTRODUÇÃO considerados engajados nos aspectos inventio e dispositio da retórica. Os corretores de seguros e o pessoal de vendas praticam a retórica deli-

berativa todos os dias, muitas vezes com bastante eficácia. Pregadores, assessores de imprensa, senadores e deputados, conselheiros, líderes sindicais, executivos e lobistas exercem ativamente habilidades retóricas

como nunca.

Existem algumas formas de retórica praticadas hoje que vemos com desconfiança, até mesmo com desdém. Uma delas é a propaganda. O termo propaganda já foi neutro, significando a disseminação da ver-

dade, mas, como algumas pessoas usaram a propaganda para fins inescrupulosos, propaganda assumiu conotações claramente negativas. Intimamente ligada a essa forma de retórica vergonhosa está a demagogia. Os nomes dos demagogos mais bem-sucedidos do século xx estão gravados tão profundamente em nossa memória que nem precisam ser citados. Estamos falando de indivíduos que exploraram argumentos capciosos, meias-verdades e apelos emocionais baratos para obter vantagem pessoal, em vez de promover o bem-estar público. Outra variedade de retórica perigosa é a lavagem cerebral. Ainda não existe uma análise definitiva dessa técnica diabólica, mas há um esboço a respeito nos terríveis capítulos finais do romance 1984, de George Orwell. Mais

um termo foi tirado do romance de Orwell para designar outra forma perigosa de retórica, linguagem ambígua, uma tentativa deliberada de usar a linguagem de forma a enganar ou confundir ouvintes ou leitores.

Um bom argumento para um estudo intensivo da retórica é que, assim, os cidadãos poderão proteger-se dos massacres dessas formas odiosas de

persuasão. Se a "retórica" é uma atividade tão difundida na sociedade contemporânea, convém estarmos cientes das estratégias e princípios básicos

dessa arte milenar. No mínimo, o conhecimento dessa arte nos preparará para responder criticamente aos esforços retóricos dos outros, tanto orais quanto escritos. Originalmente, a retórica era uma arte sintética: uma arte para "construir", "compor", alguma coisa. Mas a retórica também pode ser usada como arte analítica: uma arte para "decompor" o que foi composto, ajudando-nos, assim, na compreensão da leitura. Como Malcolm Cowley disse certa vez, a nova crítica de esJohn T. Scopes no julgamento que cou conhecido como "Monkey Trial", opondo-se a William Jennings Bryan — NT.

fi

43

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO critores como Cleanth Brooks e Robert Penn Warren representou uma

aplicação dos princípios retóricos à leitura atenta de textos poéticos. Em Como ler livros, Mortimer Adler apresenta uma técnica retórica para a leitura de prosa expositiva e argumentativa. Wayne C. Booth, em seu livro A retórica da ficção, mostra as operações sutis da retórica em formas narrativas como o conto e o romance. E o conhecimento da retórica pode nos ajudar a responder de forma crítica e criteriosa a todos os tipos de anúncios, comerciais, mensagens políticas, sátiras, ironia e linguagem ambígua. A retórica também pode nos ajudar a nos tornarmos escritores mais eficazes. Um dos principais valores da retórica, concebida como um sistema para reunir, selecionar, organizar e expressar conteúdo, é que ela representa uma abordagem positiva em relação às questões da escrita.

Muitos alunos viram-se inibidos na escrita pela abordagem negativa da composição ("não faça isso, tome cuidado com aquilo"). A retórica clássica também tinha prescrições negativas, mas, no geral, oferecia conselhos positivos para ajudar os escritores na composição de um tipo específico de discurso, dirigido a um público definido, com um propósito particular. Evidentemente, a retórica não pode nos dizer o que fazer em qualquer situação. Nenhuma arte pode dar esse tipo de conselho. Mas a retórica pode estabelecer os princípios gerais que os escritores adaptarão para uma situação particular. Pelo menos, pode fornecer-lhes

um conjunto de procedimentos e critérios que os orientarão na tomada

de decisões estratégicas no processo de composição.

Os alunos podem temer que uma abordagem tão sistematizada da

composição iniba em vez de facilitar a escrita. Não há como negar que a fórmula pode retardar (e retardou) a inventividade e a criatividade, mas admitir que a fórmula pode inibir os escritores não é admitir que

ela inibe sempre. Quase todos os principais escritores ingleses, desde o Renascimento até pelo menos o século xvIII (Chaucer, Jonson, Shakespeare, Milton, Dryden, Pope, Swift, Burke) tiveram um curso intensivo de retórica na escola secundária ou universidade. Não podemos afirmar que o estudo da retórica tornou-os grandes escritores, mas

podemos dizer que o estudo da retórica não os impediu de se tornarem grandes escritores e talvez tenha até os tornado melhores escritores do que eles teriam sido só com base no talento.

44

INTRODUÇÃO Para não criar falsas esperanças, no entanto, deve ficar claro que essa

adaptação da retórica clássica não é uma fórmula mágica para o sucesso

na escrita. Os alunos terão de trabalhar muito para beneficiar-se das instruções oferecidas neste livro, pois nem tudo é fácil de entender e o que é aprendido deve ser aplicado. O caminho para a eloqüência é um caminho árduo e solitário, e a jornada não é para os fracos. Mas se, como dizem, a habilidade de usar palavras para comunicar pensamentos e sentimentos é nossa realização mais distintamente humana, poucas satisfações na vida igualam-se ao orgulho que sentimos quando dominamos as palavras. Como disse

Quintiliano: "Busquemos, portanto, incansavelmente, a verdadeira grandiosidade de expressão, o mais belo presente de Deus ao homem, sem o qual tudo é desenxabido, carente tanto da glória presente quanto da aclamação imortal da posteridade. Prossigamos, pois, rumo à excelência, porque, dessa forma, chegaremos ao cume ou, pelo menos, veremos muitos outros bem abaixo de nós".

45

CAPÍTULO II

Descoberta de argumentos

FORMULANDO UMA TESE O início de todo discurso é um tópico, uma questão, um problema. Esse tópico, questão ou problema pode ser considerado o assunto do discurso. O assunto é o res da combinação res-verba de que falavam os retóricos latinos. A descoberta do res (o que se diz) tornou-se o domínio daquela parte da retórica que trata da "invenção". Verba (como se diz) refere-se a duas outras partes da retórica, "estilo" e "declamação".

Obviamente, não podemos tomar nenhuma decisão sensata sobre a parte relacionada à expressão de nosso discurso até que tenhamos definido clara e firmemente o assunto.

Muitas vezes, alguém escolhe o assunto por nós. O professor anuncia em sala de aula: "Para a próxima sexta-feira, quero que vocês

escrevam uma carta de quinhentas palavras para o editor do jornal

da escola, dando a opinião de vocês sobre o aumento proposto nas mensalidades'"; o editor de uma revista nos escreve e nos pede para fazer um artigo de trezentas palavras sobre as manifestações contra a

construção de uma usina nuclear em nossa comunidade; o presidente da empresa em que trabalhamos nos pede para preparar um relatório

para a próxima reunião de negócios sobre o sucesso da última campanha publicitária. Algumas vezes, escolhemos nosso próprio assunto,

47

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO mas geralmente, em projetos coletivos que envolvem redação, alguém escolhe por nós.

De qualquer forma, a escolha de um assunto é só o começo, podendo se tornar um beco sem saída, se algo mais não for feito para

defini-lo. Não basta decidir que vamos escrever sobre "democracia". Para que a "democracia" se torne um assunto real de discurso, o sujeito deve ter um predicado. O assunto deve ser convertido em uma tese; deve, para usar um termo da lógica, ser enunciado na forma de uma proposição, uma frase completa que afirma ou nega algo sobre o sujeito. Portanto, nosso vago assunto "democracia" deve ser transformado em uma frase como: "Democracia é a melhor forma de governo para o cidadão realizar seu potencial como ser humano", ou: "Uma democracia não pode funcionar efetivamente se seus cidadãos forem analfabetos".

Agora temos um tema ou uma tese sobre a qual escrever, uma noção precisa do que vamos dizer sobre o assunto "democracia". John Henry Newman, em uma seção intitulada "Estudos elementares" em A idéia de uma universidade, aponta a importância de enunciar um assunto na forma de proposição. Seu fictício Sr. Black está falando sobre uma composição escrita por um garoto chamado Robert: "Veja bem", diz ele, "o assunto é fortes fortuna adjuvat. Trata-se de uma propo-

sição, a afirmação de um princípio geral, e é exatamente nesse ponto que um garoto comum escorrega, como Robert escorregou. Ele se entusiasma com a palavra 'sorte', que não era seu tema. A tese deveria simplesmente lhe servir

de guia, para seu próprio bem. Ele se recusa a usar andadeiras, soltando-se e fugindo, à sua maneira, ao campo aberto, em desvairada perseguição à 'sorte',

em vez de se concentrar em um único assunto que, por ser definitivo, o teria

ajudado Teria sido muito cruel dizer a um menino que escrevesse sobre 'sorte': seria

como perguntar a ele sua opinião 'sobre as coisas em geral'. A sorte é 'boa', 'ruim', caprichosa', 'inesperada', dez mil coisas ao mesmo tempo (conforme consta no Gradus), e tanto uma quanto outra. Dez mil coisas podem ser ditas sobre ela: diga-me uma, e escreverei a respeito. Não posso escrever sobre mais

de uma. Robert preferiu escrever sobre todas".

Centenas de estudantes fracassam todos os anos nas aulas de redação por não conseguir definir o assunto. Os retóricos latinos usa-

48

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS ram uma fórmula, conhecida como status ou stasis, para determinar o

ponto em questão em um julgamento, uma fórmula que pode ajudar os alunos a tomar decisões sobre uma tese. A fórmula consiste em três

perguntas feitas sobre o assunto em discussão: An sit (se algo é) — uma questão de fato

Quid sit (o que é) — uma questão de definição Quale sit (de que tipo é) — uma questão de qualidade

Em um julgamento de homicídio, por exemplo, a tese de acusação ou defesa pode girar em torno de uma das três questões: 1. Bruto, como foi alegado, matou César? (se uma coisa é)

2. Se Bruto tiver realmente matado César, o ato foi assassinato ou legítima defesa? (o que é) 3. Se tiver sido, de fato, assassinato,

Bruto tinha justificativa para assassinar César? (de que tipo é)

A aplicação dessa fórmula resolve a questão em um julgamento e, por sua vez, sugere os tópicos aos quais os advogados recorrem para defender suas idéias. O uso dessa fórmula não definirá a tese do discurso, mas pode ajudar os alunos a determinar em que aspecto do assunto eles focarão, o que lhes dará condições de formular uma tese. Suponhamos que a professora tenha pedido aos alunos que escrevam uma carta ao editor sobre o aumento da mensalidade. Em primeiro lugar, eles devem determinar de que aspecto do assunto eles falarão. Haverá realmente um aumento nas mensalidades no próximo semestre ou o aumento foi apenas proposto? Pode ter sido boato? Alguns alunos podem saber que o conselho de administração está considerando um aumento nas mensalidades, mas ainda não votou formalmente sobre a proposta. Nesse caso, o tema central da carta que eles escreverão será algo como: "Os alunos desta

universidade estão em alvoroço por algo que ainda não é um fato. Se

tivessem se dado ao trabalho de apurar os fatos, saberiam que ainda não têm nenhum motivo para reclamar". Suponhamos, no entanto, que o relatório sobre o aumento das mensalidades tenha sido confirmado. Que aspecto resta discutir? Bem, os

49

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO alunos podem direcionar a atenção para a questão da definição. A mu-

dança de R$250 para R$280 por crédito de horas é realmente um aumento nos custos do curso? Não, se considerarmos que o conselho de administração também votou para reduzir o número de créditos que os alunos devem acumular no semestre. Portanto, embora o custo por cré-

dito tenha aumentado, o custo total do ensino por semestre continuará o mesmo. É evidente que, neste caso, uma discussão sobre a definição de aumento poderia virar um mero jogo de palavras, mas com outros assuntos, como "democracia" ou "saúde pública", existe a oportunidade de definição de termos-chave. Suponhamos, porém, que uma mudança na mensalidade tenha sido aprovada e que essa mudança constitua um aumento substancial no custo da mensalidade. Agora, a terceira questão (quale sit) pode revelar o real foco da discussão. O aumento foi necessário? Ele pode ser

justificado? Em comparação com o aumento geral do custo de vida, o aumento da mensalidade é mínimo? O aumento da mensalidade garantirá a continuidade, ou mesmo a melhoria, da qualidade do ensino

que os alunos recebem? Ou o aumento impedirá que muitos alunos continuem os estudos? A aplicação da terceira pergunta levanta uma série de questões para discussão.

O assunto considerado em relação à situação atual e ao público mui-

tas vezes dita qual das três questões é a mais aplicável. De qualquer maneira, a aplicação da questão pertinente de status ajuda a definir o assunto a ser discutido. Uma vez definido esse aspecto, os alunos devem

estar preparados para formular a declaração da tese: o que cada um quer dizer sobre esse assunto?

O princípio fundamental é enunciar a tese em uma única frase declarativa. E importante que a tese seja formulada em uma única frase. Fazer uso

de uma segunda frase para formular a tese introduzirá conteúdo adicio-

nal ou secundário, violando a unidade da tese. É igualmente importante formular a tese em uma frase declarativa. Frases de encorajamento, como

"vamos lutar para preservar a integridade de nossa democracia", e frases interrogatórias, como "a democracia é uma forma de governo viável",

deixam o assunto confuso, pois ambos os tipos de frase têm um tom hesitante ou incerto. A tese será a rmada de forma clara e precisa se o predicado a rmar ou negar algo sobre o assunto: "A integridade de nossa

fi

fi

50

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS democracia só pode ser preservada se lutarmos para mantê-la", ou: "A democracia é (não é) uma forma viável de governo".

A declaração da tese é um bom ponto de partida no processo de composição, porque obriga o escritor a determinar, desde o início, exa-

tamente o que ele quer dizer sobre o tema escolhido ou designado. Além disso, estabelece as bases para um discurso unificado e coerente,

sugerindo também alguns tópicos que podem ser usados para desenvolver o assunto.

Digamos, por exemplo, que para um artigo que você quer escrever para um curso de ciências políticas, você se fixou na tese: "A democracia

é uma forma de governo viável para os países emergentes da África Sub-

Saariana". Essa declaração de ne com precisão a proposição que você

quer defender no artigo: uma forma democrática de governo funcionará na África Sub-Saariana. Se você mantiver esse objetivo em mente,

o artigo provavelmente terá unidade, mas a mera verbalização da tese também sugere algumas linhas de desenvolvimento. Você precisará, por exemplo, definir, no início do ensaio, ao menos dois termos-chave da declaração da tese: democracia e viável. Além disso, é aconselhável es-

pecificar quais países da África Sub-Saariana você tem em mente. Você

pode ainda reforçar a idéia da viabilidade de um governo democrático em alguns países da África Sub-Saariana, comparando a situação nestes países com a de outros países nos quais a democracia teve êxito. Como você pode ver, a declaração da tese já sugeriu os tópicos de definição e

comparação como possíveis linhas de desenvolvimento, indicando também uma possível organização do ensaio, o que conduzirá à coerência.

Definir a tese em uma única frase declarativa também ajuda a de-

terminar se você conseguirá lidar com o tema escolhido ou designado

dentro do limite de palavras definido. O assunto "democracia" é tão amplo que não dá para prever a extensão necessária para tratá-lo de

maneira adequada. Uma proposição como "a democracia é a melhor forma de governo" ainda é um tanto ampla e vaga, mas pelo menos fixa alguns limites ao assunto. Talvez não seja possível escrever uma tese

dessas em quinhentas palavras, mas com um limite de 2 mil palavras o

assunto pode ser bem explorado. Por outro lado, uma proposição como "a democracia representativa permite que cada cidadão exerça alguma

influência na conduta do governo" pode ser tratada adequadamente com quinhentas palavras.

fi

51

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Por mais simples que seja o princípio, alguns escritores têm difi-

culdade em resumir a tese em uma única frase declarativa. Parte dessa dificuldade decorre do fato de que eles não têm uma compreensão clara de suas idéias no momento de formular a declaração da tese. O pensamento e a linguagem interagem entre si. Hugh Blair, retórico escocês do século xvIiI, disse certa vez: "Podemos ter certeza de que, quando

nos expressamos mal, há, além da má gestão da linguagem, na maior

parte dos casos, algum erro em nossa maneira de conceber o tema. Geralmente (se não sempre), frases confusas, obscuras e bobas são o resultado de pensamentos confusos, obscuros e bobos".

Normalmente, os alunos precisam praticar bastante até adquirir a

habilidade de definir uma tese com precisão. Uma forma de impulsionar o desenvolvimento dessa habilidade é criar o hábito de formular de-

clarações de tese para qualquer prosa formal que lemos. As vezes, o au-

tor da prosa ajuda, declarando a tese em algum lugar do ensaio. Nesse caso, o único trabalho é localizar essa frase temática. Em outros casos, porém, a idéia central de um ensaio não é explicitamente declarada em nenhum lugar, de modo que os leitores devem ser capazes de abstrair a idéia central do texto. Essa capacidade de generalização costuma ser a última habilidade que adquirimos ao aprender a ler. Se não formos capazes abstrair uma tese do que lemos, provavelmente não teremos muito sucesso na formulação de nossas próprias declarações de tese. Devemos adquirir essa habilidade se quisermos nos comunicar de maneira clara e coerente com os outros por meio da prosa escrita. A

falta de de nição precisa do assunto é a principal causa do discurso difuso e desuni cado. Começos vagos conduzem a nais caóticos. O

público de um discurso, seja escrito ou oral, jamais compreenderá a tese melhor do que o escritor ou orador. Na verdade, descontando o que inevitavelmente se perde no processo de transmissão, o alcance do público sempre será menor do que o dos escritores ou oradores. Portanto, voltamos ao que foi dito no início deste capítulo: o início

da escrita coerente e unificada é uma tese bem definida. Mas assim que esse princípio geral é enunciado, ele sugere alguma qualificação. Alguém disse certa vez: "Não sei realmente o que quero dizer até que tenha dito". E, de fato, em alguns casos, pode ser vantajoso começar a escrever antes de ter uma idéia clara da tese, pois o ato de passar para o papel os pensamentos ainda confusos pode se tornar parte do processo

fi

fi

fi

52

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS de invenção, levando à descoberta do que finalmente se quer dizer sobre o tema escolhido ou designado. A articulação da tese só virá depois

de escrito o rascunho. Podemos dizer, no entanto, que, mesmo nesses casos, a articulação da tese será o ponto de partida, o catalisador, o artifício de foco para a redação do produto final.

OS TRÊS MODOS DE PERSUASÃO A tese que formulamos serve de objetivo para o discurso que pretende-

mos compor, especificando a idéia que gostaríamos de transmitir para outras pessoas. No discurso argumentativo, a tese indica a verdade ou

proposta que queremos que nosso público aceite ou tome como base para ação. Mas como fazer com que os outros aceitem nosso ponto de vista? Como fazer com que os outros, nos termos de Kenneth Burke, "identifiquem-se" conosco?

Aristóteles disse que persuadimos os outros de três maneiras: (1) com o apelo à razão (logos); (2) com o apelo às emoções (pathos); (3) com o apelo de nossa personalidade ou caráter (ethos). Podemos usar só um desses meios ou usar os três. Qual desses meios usaremos será determinado em parte pela natureza da tese que estamos discutindo, em parte pelas circunstâncias do momento, em parte (talvez principalmente) pelo tipo de audiência a que estamos nos dirigindo. Todos desenvolvem instintos para adaptar-se ao assunto, ocasião e público, mas algumas pessoas, com o estudo e a experiência, conseguem refinar esses

instintos de tal forma que o sucesso em lidar com os outros não pode ser considerado mero talento, mas uma arte. E quando as atividades de persuasão aproximam-se da condição de arte, podemos dizer que elas entram no domínio da retórica. Antes de discutirmos os tópicos, o sistema que os retóricos clássicos criaram para ajudar-nos a encontrar algo a dizer sobre qualquer assunto, consideraremos as estratégias desses três modos de apelo.

O APELO À RAZÃO A racionalidade é a característica essencial da humanidade. É o que nos torna humanos, diferenciando-nos dos outros animais. Em tese, a razão deve dominar nossos pensamentos e ações, mas, na prática, somos fre-

53

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO quentemente influenciados por paixões, preconceitos e costumes. Dizer

que as pessoas costumam reagir a motivações irracionais não é dizer que elas nunca ouvem a voz da razão. Devemos acreditar não só que as pessoas são capazes de ordenar a vida pelos ditames da razão, mas que, na maioria das vezes, elas estão dispostas a fazer isso. Como os retóri-

cos tinham essa fé nas pessoas, eles consideravam a retórica um ramo da lógica, a ciência do raciocínio humano. "A retórica é a contraparte da dialética", disse Aristóteles na primeira frase de sua obra Retórica.

Aristóteles lidou com a lógica estrita nos seis tratados coletivamente

chamados de Órganon, e em dois desses tratados, Analíticos anteriores e Analíticos posteriores, ele focou no raciocínio dedutivo e indutivo. A

dialética era a forma popular de "analítica" ou lógica, assim como a retórica era a forma popular de demonstração estrita das ciências. Os Diálogos de Platão, com seu jogo de perguntas e respostas, são um bom

exemplo da maneira informal como as pessoas discutem logicamente umas com as outras. Da mesma forma, a retórica é a arte prática pela

qual aprendemos a manipular todos os meios disponíveis para persuadir um público grande, heterogêneo, talvez sem instrução. Os apelos à razão que um orador pode usar não violam os princípios estritos da lógica; eles são apenas adaptações da lógica. Assim, enquanto o silogismo

e a indução são as formas que o raciocínio assume na lógica, o entimema e o exemplo são as formas que o raciocínio assume na retórica.

Sempre que a lógica dedutiva ou indutiva formal for "um meio de persuasão disponível", devemos, é claro, fazer uso dela. Em periódicos literários e científicos, freqüentemente encontramos autores de artigos

apresentando grande quantidade de evidências ou empregando raciocínio dedutivo completo para convencer os colegas profissionais da validade de seus experimentos ou teses. Mesmo em artigos populares sobre assuntos complexos, onde não esperamos obter toda a panóplia de demonstrações lógicas, os autores, zelosos de sua reputação profissional,

tomarão cuidado para não violar os princípios do raciocínio lógico.

Como base para a discussão dos apelos retóricos à razão, revisare-

mos alguns princípios da lógica. Primeiro, consideremos a questão da

definição.

54

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

PRINCÍPIOS DE DEFINIÇÃO A exposição e a argumentação normalmente dependem da definição. A exposição, na verdade, é uma forma de definição. Para explicar uma coisa, devemos dizer o que é essa coisa, descrevê-la, enumerar suas partes ou demonstrar seu funcionamento. Um dicionário é uma obra expositiva, uma obra que define, não coisas, mas palavras que representam coisas. Todos os livros de "como fazer" são basicamente expositivos, porque, ao mostrar como uma coisa funciona, esses livros, em certo sentido, estão explicando ou definindo essa coisa. Discursos que analisam ou classificam coisas também são exemplos de definição expositiva. Em Tópicos, um de seus tratados sobre lógica, Aristóteles estabelece

os princípios que regem o que é comumente chamado de "definição essencial". Uma definição essencial é a designação daquilo que torna

uma coisa o que ela é, distinguindo-a de todas as outras coisas; em outras palavras, é a explicação da natureza fundamental de uma coisa.

Por exemplo, a definição essencial amplamente aceita de homem é a

seguinte: "Um homem é um animal racional". O predicado "animal racional" designa a essência de um homem e não pode ser usado para

nenhuma outra criatura. Um dos testes para determinar se chegamos a uma definição essencial é ver se podemos converter a proposição, isto é, inverter o sujeito e

o predicado sem comprometer a verdade da proposição. A proposição

"um homem é um animal racional" pode ser convertida em "um animal racional é um homem". A proposição é tão verdadeira na segunda forma quanto na primeira. Apliquemos esse teste a outra definição de

homem: "O homem é um animal bípede". Quando convertemos a pro-

posição para "um animal bípede é um homem", podemos ver claramente que a "verdade" foi prejudicada, porque, embora seja verdade

que todo homem é um animal bípede, não é verdade que todo animal

bípede é um homem. O bipedismo é uma característica do homem, mas não designa sua essência. A racionalidade designa a essência do homem, não só porque é uma característica do homem, mas porque "pertence" exclusivamente ao homem. Em uma definição essencial, o sujeito e o predicado são termos equi-

valentes. Em um sentido mais amplo, uma definição essencial estabe-

55

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO lece uma equação: homem = animal racional; animal racional = homem. Para usar outra analogia, o sujeito em uma de nição essencial deve "pesar" tanto quanto o predicado. Devemos ser capazes de trocar os pesos

na balança e ainda manter a balança em equilíbrio. Esse é o problema com os termos homem e animal bípede: eles não têm o mesmo peso.

Foi Aristóteles, com sua paixão de biólogo por classificações, que nos mostrou como formular uma definição essencial. Colocamos a "coisa a ser definida" (o definiendum) em um genus ou classe geral e então apresentamos as differentiae ou diferenças específicas que distingüem essa

coisa de todas as outras coisas compreendidas na mesma classe geral. Na definição essencial que usamos, "animal" é o genus, e "racional" é a differentia que distingue o homem de qualquer outra criatura que pode ser classificada como animal. O aluno não deve concluir que a differentia será sempre apresentada com uma única palavra, como em nossa definição de homem. Às vezes, temos que designar várias diferenças para distinguir a coisa de outras

coisas da mesma classe. Considere esta definição, por exemplo: "Um

automóvel é um veículo que anda sobre quatro rodas". Temos o genus (veículo) e uma differentia (anda sobre quatro rodas), mas obviamente essa diferença não é suficiente para distinguir um automóvel de outros

veículos que andam sobre quatro rodas. A etimologia da palavra sugere outra differentia que ajuda a distinguir um automóvel: auto, "próprio",

e mobilis, "móvel". Portanto, podemos acrescentar que esse veículo de quatro rodas é movido por um motor interno. Se isso não for suficiente

para distinguir um automóvel, podemos adicionar differentide que especifiquem o tipo de motor que o impulsiona, o material de que o veículo é feito, seu formato e para que ele é usado. As differentide em uma definição geralmente especificam uma ou mais das quatro causas de uma coisa: material, formal, eficiente e final. Por exemplo, para a explicação de uma mesa, podemos dizer que uma mesa é um móvel (o genus) de madeira (causa material), feito por um carpinteiro (causa eficiente), com um tampo largo e plano apoiado horizontalmente em quatro pernas (causa formal), na qual colocamos coisas, geralmente pratos para uma refeição (causa final, o fim ou propósito da coisa). Nem é preciso dizer que as differentide mudarão na definição de vários tipos de mesa. Algumas mesas são feitas de metal ou pedra por metalúrgicos ou pedreiros; algumas mesas apóiam-se em

fi

56

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS três pernas, outras em seis; as pessoas usam as mesas para diversas fi-

nalidades, por exemplo, para escrever, desenhar ou cortar tecidos, em pé ou sentadas. Um procedimento bastante instrutivo é abrir o dicionário aleatoriamente e olhar as definições dos substantivos na página aberta. Os estudantes descobrirão que a maioria das definições de substantivos segue o padrão aristotélico; o substantivo é atribuído a uma classe geral e então diferenciado de uma ou mais maneiras. Eles também verão que um dicionário nem sempre atinge ou mesmo busca uma definição essencial. Para fins práticos, nem sempre precisamos da precisão ou exclusividade de uma definição essencial. Além disso, é extremamente difícil chegar (e saber se chegamos) a uma definição essencial. A maioria de nós acharia frustrante especificar a essência de uma máquina de escrever (embora sejamos capazes de escolher uma máquina de escrever dentre um grupo de outros artefatos) e, a menos que tenhamos muita necessidade de uma definição essencial, não nos daremos ao trabalho

de buscar uma, contentando-nos com uma definição útil de máquina de escrever. Por outro lado, os filósofos buscaram uma definição essen-

cial de homem porque parecia importante determinar qual é a essência

do homem. As definições de qualquer coisa variam, evidentemente, de acordo com o ponto de vista dos definidores e a base particular de classificação

de cada um. Na verdade, uma das formas de distinguir os diversos ramos do conhecimento é observar os métodos e bases de definição de

cada ciência. Um biólogo, por exemplo, pode definir o homem como "um mamífero gigante, ereto, bípede, com forma corporal relativamente não-especializada". Ou, se estiver buscando uma definição ope-

rativa, o biólogo pode definir o homem como "a única criatura capaz de modificar seu futuro evolutivo". Um cientista comportamental pode definir o homem como um "animal social", uma "criatura capaz de fabricar ferramentas"ou uma "criatura que prepara a própria comida com fogo". Um teólogo pode de nir o homem como "um lho adotivo de Deus". Cada uma dessas de nições é verdadeira e cada uma nos diz

algo útil sobre o homem. Para alguns propósitos, acharemos a definição de homem dos biólogos mais útil do que a definição dos lógicos.

(No fascinante romance de Vercors, You Shall Know Them, um julgamento de assassinato revela se as estranhas criaturas que um cientista

fi

fi

fi

57

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO descobriu na selva e trouxe de volta à civilização podem ser classificadas

como humanas. Em nossa Era Espacial, podemos enfrentar um problema semelhante se encontrarmos alguma forma de vida primata em outros planetas). Um retórico está especialmente interessado no fato de

que as palavras admitem uma variedade de definições válidas.

OUTROS MÉTODOS DE DEFINIÇÃO SINÔNIMOS Existem outras maneiras de definir palavras além do método aristotélico de apresentar o gênero e as diferenças específicas. Uma das formas

mais comuns é citar sinônimos. Costumamos recorrer a esse método no caso de adjetivos, substantivos e verbos. Portanto, se quisermos transmitir o significado de inflexível, podemos citar sinônimos como duro, implacável, obstinado, rígido, inquebrantável; para esclarecer o

significado de inferir, podemos oferecer sinônimos como deduzir, con-

cluir, julgar, depreender. Aristóteles questionou esse método de definição, afirmando que uma definição real só pode ser apresentada com uma frase. E ele provavelmente estava certo, pois, embora um sinônimo possa ajudar a esclarecer o significado de uma palavra desconhecida, ele não nos informa sobre o modo de ser dessa palavra. Mesmo assim, os sinônimos desempenham um papel utilíssimo no esclarecimento de palavras usadas para transmitir idéias ou sentimentos. ETIMOLOGIA Intimamente aliada à definição por sinônimos está a definição por referência à etimologia. Podemos explicar o significado de inflexível ob-

servando que a palavra é construída com o prefixo latino in-, que significa "não" neste caso, o verbo latino flectere, que significa "dobrar", e

o sufixo -ivel, que significa "capaz de ser", significando, portanto, "in-

capaz de ser dobrado". Um estudo da etimologia pode lançar luz sobre o significado das palavras, sugerindo nuances e servindo como recurso

mnemônico, especialmente para aqueles que têm algum conhecimento das línguas-mãe. Mas uma ressalva deve ser feita em relação a confiar na etimologia para explicar o significado das palavras: muitas vezes,

58

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS o significado está muito distante das raízes etimológicas. Para dar só um exemplo, a palavra polícia desviou-se consideravelmente de sua raiz grega polites, que significa "cidadão". Citar a etimologia de democracia

pode suscitar discussão em vez de resolvê-la. DESCRIÇÃO Outro método de definição, frequentemente usado para apresentar

uma organização ou mecanismo complexo, é a descrição estendida. Essas descrições mencionam o gênero e várias propriedades e particula-

discursiva, nis am frases incas como no dicionario. Comparaçoes analogias, metáforas e símiles são empregados para facilitar as definições por descrição.

EXEMPLO Um método especialmente útil para definir abstrações é dar um exem-

plo. A sintaxe duvidosa "honestidade é quando..." geralmente é um sinal de que estamos prestes a obter uma definição por meio deste mé-

todo. Uma definição pelo exemplo pode ser algo assim: Você me perguntou o que é honestidade. Bem, vou lhe dizer. Certa noite, por

volta das roh3o, um homem bastante idoso caminhava para o metrô depois do trabalho, quando avistou uma bolsa preta jogada na calçada. Alguma mulher deve ter deixado cair a bolsa ao entrar em um táxi. O homem olhou ao redor.

Não havia mais ninguém na rua no momento. Ele pegou a bolsa e abriu-a. Dentro da bolsa havia um maço de notas de dez dólares preso com um elástico. Devia ter uns duzentos dólares ali. A única identificação na bolsa era um

envelope com o nome e endereço de um advogado. O que ele deveria fazer? Ninguém o tinha visto pegar a bolsa. A mulher que largou a bolsa obviamente

não precisava do dinheiro tão desesperadamente quanto ele. O dinheiro poderia resolver grande parte dos seus problemas financeiros em casa. Ele ficou tentado, mas sabia que não dormiria à noite se levasse a bolsa para casa. Então,

decidiu fechá-la e, mesmo tendo que se desviar de seu caminho, foi até a dele-

gacia entregá-la. Você me perguntou o que é honestidade. Isso é honestidade.

59

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Definir pelo exemplo sempre foi o artifício favorito de pregadores, ora-

dores e professores. O exemplum, uma historieta ou conto com moral,

já desempenhou um papel proeminente na literatura. As Fábulas, de Esopo, e Os contos de Canterbury, de Chaucer, são apenas dois exemplos

desse gênero.

Em suma, três regras devem reger nossas tentativas de definição de

termos: 1. Os termos utilizados para definição devem ser mais claros e familiares do que o termo a ser definido.

Esse princípio é tão evidente que nem precisaria ser dito, mas devemos fazer uma observação. A definição notória do Dr. Johnson de rede como um "tecido reticulado, decussado em intervalos regulares, com interstícios nas interseções" não é muito esclarecedora para quem não sabe o que é uma rede, embora esta definição tão ridicularizada seja incrivelmente precisa. Ao usar palavras mais familiares, os dicionários modernos conseguem transmitir uma idéia mais clara de rede. A verdadeira dificuldade em observar a primeira regra surge quando precisamos definir um objeto cotidiano relativamente simples. Como definir um ovo? Os termos de definição não serão necessariamente palavras "mais difíceis" do que o termo a ser definido? 2. A definição não deve repetir o termo a ser definido ou usar sinônimos e derivados.

Como dissemos acima, sinônimos não definem de fato; são apenas palavras semelhantes, talvez mais familiares, que servem para esclarecer o significado de uma palavra desconhecida. A repetição da mesma palavra (ou de uma palavra derivada por flexão) tampouco esclarece o significado do definiendum. Assim, devemos evitar definições como estas: "Justiça é uma virtude que leva um homem a lidar com justiça com outro homem"; "O homem é uma criatura que possui uma natureza humana"; ou definições como a de Bardolfo, em Henrique IV, parte 2, ato III, cena II: "Acomodado, isto é, quando o indivíduo está, como se

diz, acomodado; ou, quando ele está, estando, por onde se possa imaginar que esteja acomodado, o que é uma excelente coisa".

60

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

3. A definição, sempre que possível, deve ser declarada positivamente, não negativamente.

A expressão "sempre que possível" deve ser inserida aqui, porque às vezes um conceito é tão obscuro ou ambíguo que é difícil defini-lo positivamente; em tais casos, temos algum ganho se nos for dito, pelo menos, o que o conceito não é. Claro, conceitos negativos em significado dificilmente podem ser definidos positivamente. Portanto, um conceito como escuridão deve ser definido negativamente como "a ausência de luz". Pode haver uma vantagem retórica também no uso de definições

negativas (por exemplo, uma série de afirmações que dizem o que uma coisa não é antes de dizer o que ela é). O tipo de definição contra a qual a terceira regra adverte é assim: "A democracia é a forma de governo que não priva seus cidadãos de suas liberdades civis". Se essa for a única definição de democracia, ninguém terá muita idéia do que é democracia.

O SILOGISMO O silogismo é um artifício esquemático que Aristóteles inventou para analisar e testar o raciocínio dedutivo. Na vida real, não costumamos argumentar de forma estritamente silogística, mas o silogismo é um recurso útil para analisar nosso método ou forma de raciocínio dedutivo. Não podemos dar um curso completo de lógica aqui, mas estabeleceremos alguns princípios básicos que governam essa forma de raciocínio

dedutivo.

O silogismo raciocina a partir de afirmações ou proposições. Essas proposições são chamadas de premissas. O raciocínio segue este curso: se a é verdadeiro e b é verdadeiro, c deve ser verdadeiro. Antes de considerarmos o silogismo em si, devemos dizer algo sobre os tipos de proposições que aparecem nos silogismos categóricos. Comecemos com o quadrado de oposições, um artifício que os lógicos inventaram, principalmente para fins mnemônicos (veja a figura na próxima página). O quadrado de oposições apresenta esquematicamente os quatro tipos de proposições categóricas, isto é, proposições que afirmam ou negam algo, sem condições ou alternativas propostas. A proposição A (todos os homens são mortais) é uma afirmação universal.

61

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO A proposição E (nenhum homem é mortal) é uma negação universal. A proposição I (alguns homens são mortais) é uma afirmação particular.

A proposição o (alguns homens não são mortais) é uma negação particular.

As letras anexadas a essas proposições são as primeiras quatro vogais do alfabeto, mas essas letras foram escolhidas para rotular as pro-

posições porque são as duas primeiras vogais em dois verbos latinos pertinentes: AFFIRMO — portanto, A e I estão vinculados às proposições afirmativas.

NEGO — portanto, E e o estão vinculados às proposições negativas.

Na argumentação, normalmente é necessário classificar as proposi-

ções quanto à sua quantidade e qualidade. Quando perguntamos sobre

a quantidade de uma proposição, estamos procurando determinar se a

proposição é universal ou particular, isto é, se a proposição refere-se a uma classe inteira ou só a uma parte da classe. Quando perguntamos sobre a qualidade de uma proposição, estamos procurando determinar se a proposição é afirmativa ou negativa, isto é, se o predicado afirma algo sobre o sujeito ou nega algo sobre o sujeito. Observe que as duas proposições acima da linha horizontal traçada no quadrado de oposições são proposições universais; as duas proposições abaixo da linha são proposições particulares. As duas proposições à esquerda da linha vertical são proposições afirmativas; as duas proposições à direita da linha vertical são proposições negativas.

Todos os homens são mortais.

Contrárias

Nenhum homem é mortal.

E

ditórias Subalternas

I Alguns homens são mortais.

Subalternas

Subcontrárias

62

Alguns homens não são mortais.

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

Cada idioma tem seus próprios artifícios lexicais e gramaticais para indicar a quantidade e a qualidade das proposições. Em português, as proposições universais são sinalizadas por palavras como todos e nenhum antes do termo sujeito das proposições. As proposições particulares são sinalizadas por palavras como alguns, a maioria, muitos, grande

parte e poucos. A presença do advérbio não no predicado indica que a proposição é negativa, mas as proposições também podem ser tornadas negativas em português pela presença de nenhum, nada, ninguém, nem todos no sujeito.

Ao classificar proposições, a dificuldade não está em determinar a qualidade de uma proposição (se a proposição é afirmativa ou negativa), mas a quantidade (se a proposição é universal ou particular). Qual é a quantidade, por exemplo, de uma proposição com nome próprio como sujeito? Por exemplo: "John Smith é mortal". Parece que, uma vez

que estamos a rmando algo sobre uma pessoa particular, a proposição deve ser particular. A maioria dos lógicos, entretanto, classi caria essa

proposição como uma afirmação universal, porque a mortalidade é o predicado de todo o sujeito da mesma forma que na proposição "todos os homens são mortais" a mortalidade é o predicado de toda a classe de homens. Pelo mesmo raciocínio, a proposição "John Smith não é mortal" seria classificada como uma negação universal. Como classificamos a quantidade de uma proposição como: "Os homens são mais estáveis emocionalmente do que as mulheres"? Se estivermos conversando pessoalmente com alguém, podemos interromper nosso interlocutor e pedir-lhe que esclareça a quantidade de suas proposições: — Olha, você acabou de dizer que os homens são mais estáveis emocionalmente do que as mulheres. Você quer dizer todos os homens ou alguns

homens? — Quero dizer alguns homens. Pensando bem, a maioria dos homens. — Tudo bem, continue, mas lembre-se dos limites que você colocou na extensão do termo.

Sempre que estamos envolvidos em conversas ou discussões com alguém que está na nossa frente, geralmente interrompemos a pessoa para pedir esclarecimentos sobre o que ela falou, mas diante de propo-

fi

fi

63

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

sições categóricas impressas, não temos como pedir esclarecimentos ao autor. A prática comum em tais circunstâncias é presumir, sobretudo se a proposição tiver o tom de uma declaração geral (por exemplo, "os quakers são pacifistas zelosos e sinceros" ou "os pássaros são animais com penas") que o autor quis que a proposição fosse considerada universal. Ao reconstruir o argumento para fins de análise, colocaríamos um "todos" antes do termo sujeito. Como classificamos uma proposição como: "Todos os homens não são mortais"? Trata-se claramente de uma proposição negativa, mas, apesar do termo "todos" no sujeito, essa proposição não tem o mesmo significado da proposição E, "nenhum homem é mortal". "Todos os homens não são mortais" é a forma contraditória de "todos os homens são mortais". No quadrado de oposições, as proposições contraditórias são opostas diagonalmente. Portanto, "todos os homens não são mortais", na verdade, é uma proposição o, equivalente, em termos de significado,

a "alguns homens não são mortais". O mesmo seria verdadeiro se a proposição assumisse a forma de "nem todos os homens são mortais". O teste final deve ser sempre o significado, não a forma, da proposição. É comum e útil colocar as proposições categóricas da seguinte forma: Exemplo:

(termo quantitativo) (substantivo) (verbo de ligação)

Todos

são

os homens

(substantivo) seres mortais

Muitas vezes, as proposições colocadas nesse formato serão estranhas e pouco idiomáticas. "Todos os homens são mortais" é certamente

mais idiomático do que "todos os homens são seres mortais". Além

disso, normalmente as afirmações são feitas com verbos transitivos ou intransitivos. Por exemplo: "Os homens correm mais rápido do que as mulheres", ou: "A maioria dos homens consegue lançar uma bola de golfe mais longe do que a maioria das mulheres". Colocar tais proposições categóricas na forma prescrita costuma resultar em locuções estranhíssimas:

64

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS "Os homens correm mais rápido do que as mulheres" → "Todos os homens são corredores mais rápidos do que as mulheres"

"A maioria dos homens consegue lançar uma bola de golfe mais longe do que a maioria das mulheres" → "Alguns homens são atletas capazes de lan-

çar uma bola de golfe mais longe do que a maioria das mulheres"

A razão para colocar as proposições na forma prescrita é que, nos

silogismos, ela facilita a escolha de termos para o iniciante. Como veremos, algumas regras para um silogismo válido envolvem a distribuição de termos. Portanto, é importante que possamos verificar os termos. Os substantivos, com seus modificadores, são mais fáceis de identificar do que termos ocultos em adjetivos predicativos ou verbos de ação. Depois

de praticar a análise de argumentos, os estudantes podem dispensar esse processo de conversão e lidar com as proposições em sua forma natural.

Podemos aprender muito sobre o processo de raciocínio dedutivo

estudando as relações das proposições no quadrado de oposições. Eis as deduções válidas que podemos fazer a partir das várias proposições: 1. Se a proposição A é verdadeira, a proposição 1 tem de ser verdadeira; da mesma forma, se a proposição E é verdadeira, a proposição o tem de ser

verdadeira. Se é verdade que todos os homens são mortais, segue-se logicamente que alguns homens são mortais. E se é verdade que nenhum homem é mortal, é igualmente verdade que alguns homens não são mortais. 2. Se a proposição 1 é verdadeira, nenhuma dedução pode ser feita sobre a proposição A; da mesma forma, se a proposição o é verdadeira, nenhuma dedução pode ser feita sobre a proposição E.

Se determinarmos que alguns homens são mortais, não podemos inferir desse fato que todos os homens são mortais. Em outras palavras, não podemos inferir a verdade da proposição universal a partir da proposição particular; temos que provar a verdade da proposição universal.

65

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 3. Se a proposição A é verdadeira, a proposição E é falsa; da mesma forma, se a proposição E é verdadeira, a proposição A é falsa.

Sabemos, a priori, que se uma das proposições contrárias for verdadeira, a outra será necessariamente falsa. O bom senso nos diz que, se todos os homens são mortais, a proposição contrária, "nenhum homem é mortal", deve ser falsa. 4. Se a proposição A é falsa, nenhuma dedução pode ser feita sobre a proposição E; da mesma forma, se a proposição E é falsa, nenhuma dedução pode ser feita sobre a proposição A. Embora, como vimos em (3), as proposições contrárias não possam ser ambas verdadeiras, ambas podem ser falsas. Portanto, se a proposição "ne-

nhum homem é mortal" é falsa, não podemos concluir que todos os homens são mortais. Essa proposição também pode ser falsa.

5. No caso de proposições contraditórias (A e o; E e 1), uma delas deve ser verdadeira e a outra falsa. Conseqüentemente, estas são as deduções válidas

que podemos fazer sobre as proposições opostas diagonalmente no quadrado de oposições:

a. Se A é verdadeiro, o tem de ser falso.

b. Se A é falso, o tem de ser verdadeiro. c. Se o é verdadeiro, A tem de ser falso.

d. Se o é falso, A tem de ser verdadeiro. e. Se E é verdadeiro, I tem de ser falso. f. Se E é falso, I tem de ser verdadeiro.

g. Se 1 é verdadeiro, e tem de ser falso.

h. Se 1 É falso, E tem de ser verdadeiro.

A lei das contradições parte do princípio de que uma coisa não pode ser

e não ser ao mesmo tempo. Essa lei desempenha um papel importante como um dos meios de prova lógica no discurso persuasivo.

66

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS 6. Se a proposição I é verdadeira, nenhuma dedução pode ser feita sobre a

proposição o; da mesma forma, se a proposição o é verdadeira, nenhuma dedução pode ser feita sobre a proposição 1.

Se a proposição I é falsa, a proposição o é verdadeira; da mesma forma, se a proposição o é falsa, a proposição I é verdadeira.

No caso das subcontrárias (as proposições opostas horizontalmente na parte inferior do quadrado de oposições), ambas podem ser verdadei-

ras, mas ambas não podem ser falsas (compare isso com a relação entre

as proposições contrárias). É mais fácil ver que ambas as subcontrárias podem ser verdadeiras se considerarmos as proposições "alguns homens

são republicanos" e "alguns homens não são republicanos". Mas não

podemos deduzir a verdade de uma da verdade da outra. Podemos, entretanto, inferir a verdade de uma a partir da falsidade da outra.

Agora, estamos prontos para ver um silogismo. O seguinte silogismo

tornou-se o Exemplo I em quase todos os manuais de lógica: Todos os homens são mortais.

Sócrates é homem.

Logo, Sócrates é mortal.

Esse silogismo apresenta toda a cadeia de raciocínio implícita em uma declaração como esta: "Sócrates está fadado a morrer também, porque ele é, como o resto de nós, um ser humano". O silogismo é composto por três proposições categóricas, sendo as duas primeiras chamadas premissas, e a última, a conclusão extraída dessas premissas. O silogismo

categórico é constituído de três termos: um termo maior, um termo menor e um termo médio. Eis os critérios simples para escolher esses

termos: O termo maior é o termo predicado da conclusão ("mortais"). O termo menor é o termo sujeito da conclusão ("Sócrates"). O termo médio é o termo que aparece em ambas as premissas, mas não aparece na conclusão ("homens" e sua forma singular "homem").

67

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

O silogismo é feito de três proposições: uma premissa maior, uma premissa menor e uma conclusão. A premissa maior é a proposição que contém o termo maior ("Todos os homens são mortais"). A premissa menor é a proposição que contém o termo menor ( Sócrates é homem"). Na construção de um silogismo, geralmente colocamos a premissa maior primeiro, embora devamos saber que, no raciocínio de-

dutivo real, a premissa maior pode aparecer em qualquer ordem ou nem aparecer (ver a discussão posterior sobre entimema).

Não é tão fácil definir a conclusão. Poderíamos dizer que a conclusão é a proposição deduzida das duas premissas ou que a conclusão é a proposição que contém o termo maior e o termo menor, mas não o termo médio. Mas tais definições nos envolvem em um argumento circular. Não podemos determinar a premissa maior e a premissa menor se não conhecermos o termo maior e o termo menor, e não podemos determinar o termo maior e o termo menor se não soubermos qual proposição é a conclusão. Se removêssemos a palavra logo da terceira proposição em nosso silogismo modelo e se embaralhássemos a ordem das proposições, seria impossível dizer qual das proposições é a conclusão. Qualquer uma das proposições poderia servir de conclusão, embora apenas uma combinação (a combinação em nosso modelo) produza um silogismo válido.

O ponto principal é que não podemos reconstruir um silogismo a partir do raciocínio dedutivo, como costuma acontecer no caso do discurso argumentativo, a menos que reconheçamos a conclusão. No entimema, "Sócrates está fadado a morrer também, porque ele é, como o resto de nós, um ser humano", a primeira oração é claramente a conclusão, porque sinaliza uma das razões ou premissas para a conclusão. No discurso argumentativo, as conclusões são freqüentemente sinalizadas pelo uso de palavras funcionais como logo, portanto, conseqüentemente, assim. O contexto de um argumento também servirá de guia para a conclusão. Até aqui, falamos sobre a forma do silogismo. Antes de estabele-

cermos as regras para um silogismo válido, precisamos estabelecer dois pontos importantes. O primeiro é a distinção entre verdade e validade. A verdade tem a ver com o assunto do silogismo; a validade tem a ver com a forma do silogismo. Quando perguntamos sobre a verdade de um silogismo, estamos perguntando se uma proposição é

68

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

verdadeira ou falsa. "Todos os homens são mortais". Essa é uma proposição verdadeira? Você concorda? Quando indagamos sobre a validade de um silogismo, não estamos nem um pouco preocupados se as proposições são verdadeiras, mas apenas em saber se as inferências são justificáveis, se podemos logicamente tirar essa conclusão dessas premissas. Todas as regras para o silogismo dizem respeito à forma, à validade, do silogismo. É extremamente importante que os estudantes mantenham essa distinção em mente. Se eles negam assentimento a uma conclusão, eles devem saber se estão objetando à verdade da premissa ou à validade do raciocínio. Se eles detectarem um argumento inválido, poderão destruir totalmente o argumento de seu opositor em questão de minutos. Se estiverem objetando à verdade de uma proposição, o caso é mais difícil, pois pode levar muito tempo para demonstrar que a declaração de seu opositor é falsa. Devemos estar satisfeitos tanto com a verdade das premissas quanto com a validade do raciocínio antes de concordarmos com uma conclusão. Mas a força peculiar de um argumento silogístico reside nisto: se concordarmos com a verdade das premissas e se concordarmos que o raciocínio é válido, necessariamente concordaremos com a conclusão. Nessas condições, os seres racionais não têm como resistir à conclusão. O segundo ponto que precisamos estabelecer é o significado do termo distribuição. Na lógica, distribuição significa a extensão completa de um termo para cobrir todos os objetos ou indivíduos da classe denotada. Na frase "todos os homens", diz-se que o termo homens é distribuído, porque todos designa o número total de indivíduos na classe de homens. Na frase "alguns homens", o termo homens é não-distribuído, porque alguns designa algo menos do que o número total de indivíduos na classe. Às vezes, chamamos o termo distribuído de termo universal e o termo não-distribuído de termo particular. No silogismo, geralmente não temos dificuldade em determinar se o termo sujeito das proposições é distribuído, porque as palavras quantitativas (todos, nenhum, alguns, a maioria), se presentes, nos dirão. Uma vez que, como observamos, a maioria dos lógicos considera uma proposição com um nome próprio como sujeito como sendo uma proposição universal ("Sócrates é um animal racional"), o nome próprio

69

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO pode ser considerado um termo distribuído (o predicado aplica-se ao sujeito inteiro).

É um pouco mais difícil determinar (ou pelo menos reconhecer) se os termos predicados são distribuídos. Para alunos iniciantes, é bom que eles usem esta fórmula simples: 1. Os termos predicados de todas as proposições afirmativas (as proposições A ou I) são não-distribuídos.

2. Os termos predicados de todas as proposições negativas (as proposições E ou 0) são distribuidos.

Vejamos por que isso acontece. Quando afirmamos que "todos os homens são mortais", fica claro que "mortais" é atribuído a cada

membro da classe dos homens. Ao mesmo tempo, porém, não estamos dizendo: "Todos os homens são todos os seres mortais que existem". Talvez isso possa ser esclarecido com um sistema de círculos: um círculo representa toda a classe de homens, e o outro círculo representa toda a classe de seres mortais. Esta é a imagem da proposição "todos os

homens são mortais'":

Seres mortais

Homens

A proposição afirma que toda a classe de homens está "dentro" da

classe dos mortais, mas como os círculos deixam claro, a classe dos homens não tem uma extensão tão ampla (não cobre tanta área) quanto a classe dos mortais. Existem outros seres mortais (pássaros, animais,

peixes) que não são homens. Em seguida, fizemos uma afirmação sobre toda a classe de homens, mas não sobre toda a classe de mortais. Portanto, o termo homens é distribuído, mas o termo mortais é não-distribuído. Agora, eis uma imagem da proposição "nenhum homem é mortal":

70

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

Seres

Homens

mortais

A rmamos que nenhum membro da classe dos homens está "dentro" da classe dos mortais: ou, dito de outra forma, toda a classe dos homens está excluída de toda a classe dos mortais. Ambos os termos estão sendo

usados na medida mais ampla possível e, portanto, tanto o termo su-

jeito quanto o termo predicado de uma proposição E são distribuídos. O esquema de círculos também pode ilustrar a distribuição dos termos predicados nas proposições I e 0:

Proposiçao I: Alguns homens são mortais.

Proposiçao O: Alguns homens não são mortais.

Seres mortais

Seres mortais

Homens

Homens

Na proposição 1, parte do círculo dos homens (a área marcada com x) sobrepõe-se à parte do círculo dos seres mortais e, portanto, está claro que

nem o termo sujeito nem o termo predicado são distribuídos, pois em nenhum dos casos a classe inteira está envolvida. Na proposição o, parte do círculo dos homens (a área marcada com x) está fora do círculo dos se-

res mortais; conseqüentemente, o termo sujeito homens é não-distribuído (existe uma predicação sobre algo menos do que toda a classe de homens),

mas o termo predicado mortais é distribuído ("alguns homens", representado pelo x, está totalmente fora de toda a classe de seres mortais).

fi

71

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO A distribuição de termos predicados não é um conceito fácil de entender. Se os diagramas de círculo não tiverem esclarecido esse conceito,

os estudantes devem confiar (até conseguirem entender o assunto) nas fórmulas simples de que os termos predicados de todas as proposições afirmativas são não-distribuídos e os termos predicados de todas as proposições

negativas são distribuídos. Essa questão de distribuição é importante,

porque duas regras para um silogismo válido envolvem distribuição de termos e porque grande parte das falácias no raciocínio dedutivo são resultado de uma inferência com base em termos não-distribuídos.

Estamos prontos agora para examinar as regras de um silogismo válido. Lembre-se de que essas regras dizem respeito à forma ou à lógica do argumento, não à verdade das proposições: 1. Deve haver três termos e somente três termos.

2. O termo médio deve ser distribuido pelo menos uma vez. 3. Nenhum termo pode ser distribuido na conclusão se não for distribuido nas

premissas.

A maioria dos silogismos inválidos será detectada pela aplicação des-

sas três regras. Ocasionalmente, no entanto, um silogismo passará no teste dessas três regras e ainda não será um silogismo válido. Portanto, devemos adicionar mais três regras: 4. Nenhuma conclusão pode ser tirada de duas premissas particulares (em oposição a premissas universais).

5. Nenhuma conclusão pode ser tirada de duas premissas negativas.

6. Se uma das premissas for negativa, a conclusão será negativa.

Apliquemos essas seis regras ao nosso silogismo modelo para ver se o raciocínio é válido. Eis o silogismo novamente: Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal.

A primeira regra é que deve haver três termos e somente três termos. Nos estágios elementares do teste de silogismos, os estudantes devem contar os termos, de fato. Depois de terem contado três termos, eles não

72

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

devem parar por aí; eles devem continuar para certificar-se de que existem somente três termos. Na primeira proposição, existem dois termos, homens e mortais. Na proposição seguinte, existem dois termos, Sócrates e homem. Visto que Sócrates é um termo claramente distinto dos termos homens e mortais da primeira proposição, constatamos que há três termos nesse silogismo. Devemos, porém, verificar se o silogismo não tem mais do que três termos. Homem na segunda proposição não será um quarto termo? Esse termo não é diferente do termo homens na primeira proposição? O termo homens difere gramaticalmente do termo homem,

sendo a forma plural do substantivo singular, mas, do ponto de vista léxico, os dois termos não diferem, uma vez que ambos têm o mesmo referente. Os termos são "iguais", são unívocos, para usar o termo dos lógicos, se o referente dos termos for idêntico. Se, por exemplo, substituíssemos Sócrates por ele na conclusão, não estaríamos introduzindo um quarto termo no silogismo, porque o referente ou antecedente de ele é, presumivelmente, Sócrates. (Naturalmente, estaríamos introduzindo outro termo se o antecedente do pronome não fosse Sócrates). Às vezes,

ao conversar com alguém, pedimos um esclarecimento em relação à ambigüidade da referência do pronome. "Quem são eles?", perguntamos ao nosso interlocutor, só para nos certificarmos de que ele não mudou os referentes. Da mesma forma, podemos usar sinônimos ou perífrase sem introduzir um novo termo. Se na conclusão substituíssemos mortal por "um homem que morrerá", não estaríamos introduzindo outro termo. Em tais casos, evidentemente, o sinônimo ou perífrase deve ter

o mesmo significado do termo que está substituindo.

Devemos ter muito cuidado para não usar termos com significados

diferentes, pois incorreríamos no que os lógicos chamam de equívoco. Vejamos primeiro um exemplo óbvio de equívoco: Todos os homens têm coração. Todas as bananeiras têm coração.

Nenhum orador nativo de português seria enganado pela mudança de significado nos dois usos da palavra coração. O segundo coração é claramente um novo termo. A confusão decorre das mudanças sutis de denotação. Devemos estar bastante alertas para perceber uma mudança sutil como esta:

73

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Todos os desenhistas valem-se de esquemas. Todos os políticos valem-se de esquemas.

Pode-se dizer que, do ponto de vista dos lógicos, as mudanças na denotação resultarão em raciocínio falacioso, mas, do ponto de vista dos retóricos, as mudanças na denotação podem ser usadas para certos efeitos estilísticos, caso em que o público está ciente de ambos os significados. O trocadilho, a figura de linguagem que os retóricos chamam de paronomásia, é um exemplo desse tipo de mudança na denotação. Um dos exemplos famosos de paronomásia foi a promessa de Cristo ao chefe dos apóstolos: "Tu és Pedro [petra, em grego, que significa rocha], e sobre esta rocha edificarei minha Igreja". Efeitos retóricos também são alcançados por mudanças na conotação das palavras. Discutiremos isso mais adiante, no capítulo sobre estilo. Voltemos agora à contagem dos termos em nosso silogismo modelo. Examinamos as duas premissas e descobrimos que tínhamos três termos distintos, concluindo que homem na segunda premissa não é um quarto termo. Na conclusão, Sócrates é uma repetição de um termo da premissa menor e mortal é uma repetição, no singular, de um termo da premissa maior. Portanto, nosso silogismo modelo passa no primeiro teste: ele tem três termos e somente três termos.

Agora, para testar o silogismo pela segunda regra: o termo médio deve ser distribuído pelo menos uma vez. O termo médio, dissemos, é o termo que aparece em ambas as premissas, mas não na conclusão. Nosso termo médio aqui é homens (homem). Devemos determinar se ele é distribuído, se é usado, pelo menos uma vez, incluindo toda a classe. "Todos os homens são mortais" é nossa premissa maior. O termo médio homens é distribuído. Podemos dizer que ele é distribuído observando a palavra todos. O termo médio é distribuído na premissa

menor, "Sócrates é homem"? Não. Aqui ele é o termo predicado de uma

proposição afirmativa, que, como dissemos, nunca é distribuído. Mas, como nosso termo médio é distribuído uma vez, nosso silogismo passa no teste da segunda regra. Mais adiante, veremos exemplos da falácia

do termo médio não-distribuído, uma das falácias mais comuns no raciocínio dedutivo. De acordo com a terceira regra para um silogismo válido, nenhum termo pode ser distribuído na conclusão se não for distribuído nas pre-

74

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS missas. A conclusão de nosso silogismo modelo é: "Logo, Sócrates é

mortal". Se, como observamos, as proposições com um nome próprio como sujeito devem ser consideradas proposições universais, Sócrates

é um termo distribuído. Portanto, devemos verificar se esse termo é distribuído nas premissas. Sócrates, descobrimos, é o sujeito do mesmo

tipo de proposição na premissa menor, sendo, portanto, um termo dis-

tribuído. Sócrates é distribuído na conclusão, mas Sócrates também é distribuído na premissa; portanto, nossa terceira regra é satisfeita. O

termo predicado (mortal) da conclusão é não-distribuído (lembre-se: o termo predicado das proposições afirmativas é não-distribuído). Se

descobrirmos que algum termo na conclusão é não-distribuído, não precisamos verificar se o termo é distribuído nas premissas.

Nosso silogismo modelo passou no teste das três primeiras regras e, geralmente, isso indica que o raciocínio é válido. Mas, só para ter

certeza, temos que aplicar a quarta, quinta e sexta regras. Podemos fazer isso rapidamente. A quarta regra é que nenhuma conclusão pode ser tirada de duas premissas particulares. Ambas as premissas de nosso silo-

gismo modelo são universais. A quinta e a sexta regras não se aplicam,

porque nenhuma das premissas é negativa. Portanto, o raciocínio em nosso silogismo modelo é totalmente válido. Estamos satisfeitos com a forma do argumento. Agora, antes de concordar com a conclusão, devemos estar satisfeitos com o assunto, isto é, com a verdade das premissas. E verdade que todos os homens são mortais, que todos os homens estão destinados a morrer? Concordamos que Sócrates é homem, que Sócrates é uma espécie do gênero homem? Se respondermos "sim" a ambas as perguntas, devemos concordar com a conclusão. Se, por outro lado, negarmos a verdade de qualquer uma das premis-

sas, teremos que nos limitar a demonstrar que a premissa é falsa ou ouvir os argumentos de nossos opositores de que a premissa é verdadeira.

As discussões sobre a verdade das premissas podem durar muito tempo

e não levar a lugar nenhum. Normalmente, as discussões intermináveis giram em torno da verdade ou falsidade das proposições. Mesmo os debates paralisados pela falta de consenso sobre a definição dos termos giram em torno do assunto, não da forma do argumento. Sempre que puder ser demonstrado que o modo de argumentação é ilógico, a disputa é resolvida rapidamente. As regras para um silogismo válido foram

75

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO derivadas indutivamente de um estudo da maneira pela qual a mente humana raciocina e ninguém conseguiu negar a validade dessas regras.

Mesmo para quem não tem nenhum treinamento formal em lógica e sua terminologia técnica, podemos demonstrar rapidamente, com termos leigos, que seu raciocínio é inválido, se for.

Uma vez que os estudantes tenham sido instruídos sobre a forma, a terminologia e as regras do silogismo, a proficiência na detecção de

falácias no raciocínio dedutivo é simplesmente uma questão de prática com silogismos de amostra. Vários silogismos são fornecidos nos exercícios imediatamente após esta seção. Nos estágios iniciais, os estudantes talvez apliquem as regras, uma a uma, de maneira mecânica. Depois de alguma prática com silogismos, eles serão capazes de dizer rapidamente se o silogismo é válido ou não. Por exemplo, sempre que encontrarem um silogismo com esta forma, eles detectarão a falácia do termo médio

não-distribuído: Todo A é B. Todo c é B.

: Todo c é A. Sempre que o termo médio (B) for o termo predicado de duas premissas afirmativas, ele será não-distribuído, e, conseqüentemente, nenhuma conclusão lógica pode ser tirada dessas premissas.

Visto que os argumentos baseados no tópico do antecedente e consequente tomam com frequência a forma de uma proposição hipotética ou condicional, devemos considerar os princípios que governam a validade do raciocínio no silogismo hipotético. Quando argumentamos na forma de uma proposição hipotética, estamos propondo que a verdade do antecedente (a oração iniciada pela conjunção se) implica a verdade do conseqüente (a oração principal). Portanto, dizemos: "Se ele tiver leucemia, ele morrerá". A verdade do conseqüente, entretanto, não implica necessariamente a verdade do antecedente: "Se ele morrer, ele tem leucemia" não é necessariamente verdade. Se construirmos um argumento dedutivo a partir da proposição hipotética, podemos detectar, por outro ângulo, que a verdade do ante-

76

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS cedente não decorre da verdade do consequente. Primeiro, vejamos um argumento dedutivo válido: 1. Se ele tiver leucemia, ele morrerá.

Ele tem leucemia.

Logo, ele morrerá. (VÁLIDO)

Aqui, a segunda premissa afirma que o antecedente é verdadeiro. Se for

confirmado que um homem tem leucemia, e se todo mundo que tem leucemia invariavelmente morre, segue-se logicamente que esse homem

morrerá. Agora, vejamos o que acontece com a validade da argumentação quando a segunda premissa afirma o conseqüente: 2. Se ele tiver leucemia, ele morrerá. Ele morrerá. Logo, ele tem leucemia. (INVÁLIDO)

Diante deste argumento, a maioria de nós diria: "De alguma forma, não sinto que a conclusão decorra da premissa". Nosso sentimento sobre a conclusão seria correto. Um lógico rotula essa forma de argumentação

de "falácia da afirmação do conseqüente". O bom senso nos diz que, com base nessa sequência de proposições, não podemos inferir validamente que o homem tem leucemia pela afirmação de que ele morrerá. Se o conseqüente for negado, uma conclusão válida pode ser tirada.

Podemos usar o mesmo tipo de proposições para ilustrar essa forma de

argumentação: 3. Se ele tiver leucemia, ele morrerá.

Ele não morrerá. Logo, ele não tem leucemia. (VÁLIDO)

A validade dessa conclusão pode não ser imediatamente aparente,

mas se refletirmos um pouco sobre o que as premissas dizem, somos

forçados a concordar com a conclusão. Se um homem com leucemia

inevitavelmente morre e se um médico afirma que esse homem não

77

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO está em perigo aparente de morte, a única coisa que podemos afirmar definitivamente é que esse homem, agora, não tem leucemia.

Vejamos um exemplo da "falácia da negação do antecedente": 4. Se ele tiver leucemia, ele morrerá.

Ele não tem leucemia. Logo, ele não morrerá. (INVÁLIDO)

O bom senso nos diz que, mesmo que ambas as premissas sejam verdadeiras, a conclusão não é verdadeira, porque sabemos que um ho-

mem pode morrer de outra coisa além de leucemia. Eis uma tabela simples de critérios para testar a validade de silogis-

mos hipotéticos: Se a premissa menor (ou seja, a segunda premissa):

(1) a rma o antecedente: a conclusão é válida (silogismo I) (2) a rma o consequente: a conclusão é inválida (silogismo 2) (3) nega o conseqüente: a conclusão é válida (silogismo 3)

(4) nega o antecedente: a conclusão é inválida (silogismo 4)

Visto que os argumentos baseados no tópico da contradição às vezes

assumem a forma de proposições "ou/ou" ou disjuntivas, podemos dar uma olhada em alguns princípios que governam esse tipo de raciocínio

dedutivo. A questão em um argumento pode assumir a seguinte forma: "Ou ele cometeu o assassinato ou ele não cometeu o assassinato". Reconhecemos

que essas são as duas únicas possibilidades. Portanto, se uma das possibilidades for refutada, a outra será necessariamente verdadeira. Como sabe qualquer pessoa que já testemunhou um drama fictício ou real em um tribunal, às vezes é necessário um julgamento prolongado para provar ou refutar uma das alternativas apresentadas em nossa proposição disjuntiva modelo. Mas, quando provamos que uma das alternativas é verdadeira, estamos provando automaticamente que a outra é falsa.

Ao estabelecer a proposição disjuntiva, entretanto, devemos ter o cuidado de estabelecer alternativas mutuamente exclusivas. A proposição

"ela é ou aluna ou professora" tem a forma de uma proposição disjuntiva, mas as alternativas (o assunto do enunciado disjuntivo) não são

fi

fi

78

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS mutuamente exclusivas, pois ela pode ser professora e aluna ao mesmo

tempo. No entanto, se disséssemos: "Ou ela é professora ou ela não é professora", criamos alternativas mutuamente exclusivas, pois ser professor e não ser professor são as duas únicas possibilidades neste caso.

*** ExercÍcIo Teste a validade dos seguintes silogismos. Sempre que necessário, con-

verta as proposições na forma de termos substantivos em ambos os la-

dos do verbo de ligação. Onde não houver nenhum termo quantitativo, presuma que todos precede o termo sujeito se a proposição for afirmativa

ou que nenhum precede o termo sujeito se a proposição for negativa.

Por exemplo: Homens não são felizes → Nenhum homem é feliz. Visto que não devemos nos preocupar com a verdade das proposições quando estamos testando a validade de um silogismo, palavras ou símbolos sem

sentido serão ocasionalmente usados para os termos das proposições.

1. Nenhum aluno de fora do estado é contribuinte. Alguns calouros são alunos de fora do estado. :: Alguns calouros são contribuintes. 2. Todos os católicos são protestantes.

Todos os protestantes são batistas. : Todos os católicos são batistas. 3. Todos os tufões são tempestades de vento destrutivas. Todos os ciclones são tempestades de vento destrutivas. :: Todos os ciclones são tufões.

4. Todos os graduados universitários são potenciais assalariados. Nenhum graduado do ensino médio é graduado universitário. :: Nenhum graduado do ensino médio é um potencial assalariado.

5. Nenhum russo é democrático. Todos os americanos são democráticos. : Todos os americanos são russos.

79

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 6. Todos aqueles que contribuem para o fundo de caridade são caridosos.

John Smith não contribui para o fundo de caridade. :: John Smith não é caridoso.

7. Todas as apostas em corridas de cavalos são jogos de azar.

Alguns jogos de azar são ilegais. : Algumas apostas em corridas de cavalos são ilegais. 8. Alguns fuzileiros navais foram condecorados com a Cruz de Serviço

Distinto. Nenhum civil foi premiado com a Cruz de Serviço Distinto. :: Alguns civis não são fuzileiros navais. 9. Aqueles que tiram boas notas estudam diligentemente. Todos os alunos estão ansiosos para tirar boas notas. : Todos os alunos estudam diligentemente. 10. Todas as briluzes são lesmolisas touvas. Nenhuma lesmolisa touva é pintalouva.

:: Nenhuma pintalouva é briluz.' 11. Nenhum planeta é Sol. Nenhum planeta é satélite. : Nenhum satélite é Sol.

12. Todos os cosmonautas são pessoas altamente treinadas. Alguns pilotos de teste não são pessoas altamente treinadas.

:: Alguns cosmonautas não são pilotos de teste.

13. Todo A é B.

Algum в é c. : Algum c é A. 14. Algum A é B.

Todo в é c.

: Algum c é A. 1 Poema "Jaguadarte", de Lewis Carroll; tradução: Augusto de Campos — NT.

80

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS 15. Tudo o que possuo é meu.

Eu possuo sua caneta. : Sua caneta é minha.

16. Todos os contratos são baseados em um acordo entre duas partes.

As Nações Unidas são baseadas em um acordo entre vários países.

Logo, as Nações Unidas também podem ser classificadas como um

contrato.

18. Como os tordos são criaturas de duas pernas e todos os pássaros são criaturas de duas pernas, segue-se que todos os tordos são pássaros.

19. Visto que só os radicais querem subverter o governo devidamente constituído de um país, este homem não pode ser radical, porque quer

preservar o governo do país.

20. Prabusks certamente não são panbuls. Eu sei disso porque plocucks são panbuls e prabusks são plocucks.

O ENTIMEMA Nosso tratamento dos silogismos categóricos, hipotéticos e disjuntivos foi breve, mas todos os fundamentos foram abordados. Esses princípios fundamentais devem nos fornecer orientação su ciente para a construção ou análise do raciocínio dedutivo de acordo com as leis

da lógica formal. Não esgotamos de forma alguma todas as facetas e complexidades da lógica aristotélica ou escolástica, nem abordamos a lógica simbólica, desenvolvida a partir dos estudos matemáticos de

homens como Gottlob Frege, Alfred North Whitehead e Bertrand Russell e de estudos de semântica apresentados por homens como C. K. Ogden, I. A. Richards e Alfred Korzybski. Mas nossa preocupação primária é com a retórica, de modo que permaneceremos no campo da lógica apenas o tempo suficiente para reunir alguns princípios básicos úteis.

fi

81

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Voltamo-nos agora para uma consideração do entimema, que é o equivalente retórico do silogismo. Nos tempos modernos, o entimema passou a ser considerado um silogismo abreviado, isto é, uma declara-

ção argumentativa que contém uma conclusão e uma das premissas, estando a outra premissa implícita. Uma declaração como esta seria considerada um entimema: "Ele deve ser socialista, porque defende um imposto de renda progressivo". Aqui, a conclusão (ele é socialista) foi

deduzida de uma premissa expressa (ele defende um imposto de renda

progressivo) e uma premissa implícita (ou [A] Qualquer um que defende um imposto de renda progressivo é socialista ou [B] Socialista é qual-

quer um que defende um imposto de renda progressivo). A propósito, o estudante que já desenvolveu alguma habilidade em analisar a validade

dos silogismos detectará que se a premissa implícita for [B], a conclusão (ele é socialista) é tirada de forma inválida, porque o termo médio (qualquer um que defende um imposto de renda progressivo) é não-distribuído em ambas as premissas do silogismo totalmente reconstruído. A noção moderna do entimema como um silogismo truncado está provavelmente implícita na afirmação de Aristóteles: "O entimema deve consistir em poucas proposições, geralmente menos do que aquelas que constituem um silogismo normal" (Retórica, 1, 2). Mas, de acordo com o que Aristóteles disse em Analíticos anteriores (livro II, cap. 27), a diferença essencial é que o silogismo leva a uma conclusão necessária a partir de premissas universalmente verdadeiras, mas o entimema leva a uma conclusão provisória a partir de premissas prováveis. Ao lidar com assuntos humanos contingentes, nem sempre podemos descobrir ou con rmar o que é a verdade. Pense em como muitas vezes é difícil

provar que o réu é culpado do crime de que é acusado; quão mais difícil é provar a sensatez ou a vantagem de uma linha de ação futura, por exemplo, que um corte de impostos proposto contribuirá para a

prosperidade geral do país. Mas freqüentemente, para dar continuidade aos assuntos da vida, temos que tomar decisões com base em incertezas ou probabilidades. A função da retórica é persuadir, quando não puder convencer, uma audiência. E em questões onde a verdade não pode ser

facilmente apurada, a retórica pode persuadir uma audiência a adotar um ponto de vista ou uma linha de ação com base no meramente provável, isto é, com base no que geralmente acontece ou no que as pessoas acreditam ser possível acontecer.

fi

82

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Podemos ilustrar a diferença observando um silogismo e um entimema. Nosso silogismo modelo é um bom exemplo do tipo de raciocínio dedutivo que pode levar a uma conclusão inconteste. A principal

premissa desse silogismo, "todos os homens são mortais", enuncia uma verdade universal. Tanto a história quanto a evidência de nossos pró-

prios sentidos nos dizem que todos os homens morrem. A premissa menor, "Sócrates é homem", é uma verdade que pode ser verificada de

forma inequívoca. A partir dessas duas "verdades", então, podemos chegar à conclusão

infalível de que Sócrates também morrerá.

Mas suponha que alguém argumente desta forma: "João será re-

provado no exame porque não estudou". Aqui temos um entimema, tanto no sentido de um silogismo truncado quanto no sentido de um argumento dedutivo baseado em premissas prováveis. A verdade da premissa menor aqui, "João não estudou", pode ser confirmada. A premissa provável reside na proposição não expressa: "Qualquer um que não estudar será reprovado no exame". Todos nós sabemos que a última

proposição não é universalmente verdadeira. Mas também sabemos que

quem não estuda costuma ser reprovado nos exames. Em outras palavras, é provável que aqueles que não estudarem fracassem. Para todos os fins práticos, essa probabilidade é suficiente para nos persuadir de

que na próxima semana veremos o nome de João na lista de reprovados. Aristóteles foi astuto o suficiente para perceber que baseamos argu-

mentos persuasivos não só no que geralmente acontece, mas também no que as pessoas acreditam ser verdade. Por essa razão, aqueles que

buscam persuadir um público específico devem informar-se sobre as opiniões normalmente defendidas por esse grupo. Se for sabido, por exemplo, que certo grupo de pessoas acredita que o deus do fogo controla as chuvas, poderíamos usar essa informação para persuadir nosso

público de que a seca prologada é culpa deles, pois eles não conseguiram aplacar a fúria desse deus. Cada civilização tem um conjunto de opiniões aceitas que influenciam a condução de seus assuntos, um conjunto de "verdades" que nunca foram realmente demonstradas, mas nas quais as pessoas acreditam, quase a ponto de aceitá-las como óbvias. O entimema, então, "uma espécie de silogismo", como diz Aristóteles,

é o instrumento de raciocínio dedutivo peculiar à arte da retórica. Freqüentemente, suprime alguns dos elos na cadeia de argumentação,

83

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO porque o público não tem paciência ou capacidade para acompanhar o tipo de argumento bem fundamentado associado à lógica formal. E

o público fica satisfeito com prováveis conclusões, porque reconhece a natureza contingente das coisas de que trata a retórica. O modo de inferência do entimema é semelhante ao do silogismo. Uma das premissas pode estar faltando, mas a premissa faltante é for-

necida tão prontamente quanto as partes faltantes de uma estrutura gramatical elíptica. Quando estamos tentando refutar o entimema de outra pessoa, às vezes devemos atacar justamente a premissa faltante, porque a proposição implícita é o ponto vulnerável do argumento. Por exemplo, considere o entimema: "Ele deve ser comunista porque defende os direitos civis dos grupos minoritários". Não podemos realmente julgar a validade da conclusão ("ele deve ser comunista") até examinar a premissa implícita. Podemos sentir que a conclusão é injustificada, mas antes de expor a proposição implícita, não podemos demonstrar que a conclusão é injustificada. Em outras palavras, não podemos determinar se a conclusão é verdadeira se não a analisarmos em relação à premissa expressa e à premissa implícita.

Qual é a premissa implícita neste caso? Na discussão do silogismo, dissemos que se pudermos determinar qual proposição de um argumento dedutivo é a conclusão, podemos reconstruir o silogismo completo. O termo menor, aprendemos, é o sujeito da conclusão; o termo maior é o predicado da conclusão. Como "ele" é o sujeito da conclusão, sabemos que a premissa expressa (ele defende os direitos civis dos grupos minoritários) é a premissa menor do silogismo completo. Também sabemos que a premissa maior do silogismo completo conterá o termo

predicado da conclusão ("comunista"), mas, embora saibamos que a premissa implícita conterá esse termo, não sabemos ao certo se esse termo maior é o sujeito da premissa maior ou o predicado. A premissa implícita pode assumir uma destas formas: Todos os comunistas são defensores dos direitos civis dos grupos minori-

tários. Todos os defensores dos direitos civis dos grupos minoritários são comu-

nistas.

84

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

E importante que sejamos capazes de determinar qual a forma da premissa implícita, porque, caso contrário, não poderemos determinar se o argumento é vulnerável e em que ponto. Se a pessoa que propôs o entimema quis sugerir que "todos os comunistas defendem os direitos civis dos grupos minoritários", não precisamos gastar nosso tempo discutindo se essa proposição é verdadeira: podemos rapidamente apontar que esse argumento é inválido, porque o termo médio (*defensores dos direitos civis"), sendo o termo predicado de duas proposições afirmativas, é não-distribuído. Se nosso opositor não entender o que significa dizer que um termo é "não-distribuído", podemos mostrar que o argumento não estabelece que só os comunistas defendem os direitos civis dos grupos minoritários. No fundo, essa é a falácia por trás de todas as afirmações de culpa por associação. Se, por outro lado, a premissa implícita for "todos os defensores dos direitos civis dos grupos minoritários são comunistas", o raciocínio será válido, porque agora o termo médio é distribuído ("todos os defensores"). Portanto, podemos contestar apenas a verdade da proposição

implícita. É verdade que quem defende os direitos civis é comunista? Quer julguemos essa proposição do ponto de vista do que é necessariamente verdadeiro (o domínio da lógica estrita) ou do ponto de vista do que é provavelmente verdadeiro (o domínio da retórica), devemos negar que essa proposição é verdadeira. Portanto, embora o argumento neste caso seja válido, não concordamos com a conclusão, porque a premissa implícita é patentemente falsa. Aristóteles disse que os materiais dos entimemas são probabilidades e sinais. Já tratamos das proposições prováveis, que constituem as premissas de um entimema e, aos olhos de Aristóteles, a distinção essencial entre entimemas e silogismos. Um sinal é uma indicação, ou concomitante, de outra coisa; pode ocorrer antes, simultaneamente ou depois de

outra coisa. A fumaça, por exemplo, é um sinal de fogo; o relâmpago é um sinal de trovão iminente; o trovão é um sinal de relâmpago recente.

Um sinal não é uma causa ou razão para algo acontecer; é apenas uma

indicação de que algo aconteceu, está acontecendo ou acontecerá. Os sinais, como as probabilidades, podem constituir as premissas de um

entimema. Aristóteles distinguiu dois tipos de sinais que figuram em um entimema: infalíveis e falíveis. Um sinal infalível é aquele que invariavel-

85

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO mente acompanha alguma outra coisa. Diz-se, por exemplo, que inva-

riavelmente a fumaça acompanha o fogo. Conseqüentemente, sempre que vemos fumaça ou sentimos cheiro de fumaça, concluímos que há fogo em algum lugar. E se foi realmente fumaça que vimos ou cheiramos, é certo que haverá fogo em algum lugar. Ora, o que torna infalível uma conclusão tirada desse tipo de sinal não é só que a fumaça invaria-

velmente acompanha o fogo, mas que a fumaça acompanha exclusivamente o fogo. Se o que comumente conhecemos como fumaça às vezes acompanhasse algo além do fogo, não poderíamos concluir infalivelmente que a presença de fumaça é um sinal da presença de fogo.

Se um sinal não acompanha invariavelmente e exclusivamente alguma outra coisa, ele é falível, isto é, qualquer conclusão tirada de um sinal desse tipo estará sempre sujeita a refutação. Por exemplo, a respiração rápida costuma ser um sinal de que uma pessoa está com febre, mas, como a febre nem sempre vem acompanhada de respiração rápida e como a respiração rápida acompanha outras condições físicas, não podemos concluir infalivelmente que uma pessoa está com febre pelo simples fato de que ela está respirando rapidamente. A condição de res-

piração rápida justifica a conclusão de que a pessoa provavelmente está

com febre, mas não mais do que isso. A probabilidade de que a pessoa esteja com febre aumenta, é claro, se a respiração rápida for acompanhada de outros sinais ou sintomas de febre: temperatura alta, boche-

chas vermelhas. As evidências circunstanciais em um julgamento em tribunal geralmente se baseiam em uma série de sinais falíveis. O advogado de acusação lembra ao júri uma série de circunstâncias suspeitas: o acusado foi

encontrado com sangue no casaco; seu rosto estava muito arranhado;

a camisa estava rasgada; havia um hematoma feio em sua pele. "Não são estes sinais", pergunta o promotor ao júri, "de luta física intensa.". O promotor espera que o júri responda mentalmente "sim" a essa pergunta retórica. As provas circunstanciais nunca provam absolutamente que uma pessoa é culpada. Por essa razão, muitos países não aprovam a pena de morte com base somente nesse tipo de prova. Mas as evidências circunstanciais, sobretudo quando adquiriram força cumulativa pela

citação de um grande número de particulares incriminadores, podem ter grande poder de persuasão em relação a um júri.

86

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Portanto, os retóricos usarão sinais infalíveis para seus entimemas

sempre que tais sinais estiverem disponíveis, mas eles também usarão sinais falíveis, porque esses sinais também têm força persuasiva, mesmo

cientes de que os argumentos construídos com base em sinais falíveis estão sempre sujeitos a contestação. Sinais falíveis são como analogias:

nunca provam, mas podem persuadir.

Enfatizaremos novamente dois pontos sobre o uso do entimema retórico: (1) é importante determinar a premissa implícita de um en-

timema, porque a premissa ou suposição implícita pode ser o ponto vulnerável do argumento; (2) as proposições prováveis e os sinais falí-

veis usados em entimemas retóricos não levam a conclusões necessária e universalmente verdadeiras, mas podem ser efetivamente persuasivos.

Como os alunos podem reconhecer um entimema no discurso comum? Felizmente, os entimemas assumem um padrão sintático bastante comum, acompanhado por um número limitado de palavras fun-

cionais. Geralmente, os entimemas assumem a forma de um período

composto, com as duas orações unidas por conjunções coordenativas, como pois ou então, ou ligadas logicamente por conjunções conclusivas, como portanto, logo, conseqüentemente; ou ainda tomam a forma de um período complexo, com as orações unidas por conjunções (ou locuções) subordinativas, como já que ou porque. Ilustraremos a forma sintática do entimema pegando duas proposições e ligando-as gramaticalmente de várias maneiras para formar um entimema. Estas são as duas proposições: Maria Gonzalez não seria uma boa governadora.

Ela tem inclinações comunistas.

Essas duas orações independentes, justapostas com parataxe (ou seja, sem conjunção coordenativa), poderiam constituir um entimema. O contexto dessas duas frases pode sugerir ao ouvinte ou leitor uma relação lógica entre as duas a rmações: a segunda a rmação fornece os fundamentos para a primeira a rmação. Um público alerta e so s-

ticado detectará prontamente a conexão entre as duas declarações. Em vez de con ar na relação implícita, entretanto, a maioria dos oradores ou escritores vinculará as duas a rmações explicitamente. Observe as várias maneiras pelas quais eles podem vincular as orações:

fi

fi

fi

fi

fi

fi

87

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 1. Maria Gonzalez não seria uma boa governadora, pois ela tem inclinações comunistas.

porque ela tem inclinações comunistas. já que ela tem inclinações comunistas.

2. Maria Gonzalez tem inclinações comunistas, então ela não seria uma

boa governadora.

3. Maria Gonzalez tem inclinações comunistas;

portanto, ela não seria uma boa governadora. conseqüentemente, ela não seria uma boa governadora. logo, ela não seria uma boa governadora.

Nem toda frase que emprega conjunções como pois, porque e portanto

constituirá um entimema. Considere, por exemplo, uma declaração como esta: Ele não foi à palestra na noite passada porque estava com dor de cabeça. Aqui, a oração iniciada pela conjunção porque simplesmente apresenta uma razão para ele não ter ido à palestra; não é uma premissa da qual a conclusão é deduzida. Se vincularmos a primeira declaração

a uma declaração diferente, no entanto, teremos um entimema: Ele não

foi à palestra na noite passada, então ele deve diferir ideologicamente do orador convidado. Agora, a primeira declaração torna-se o fundamento ou a premissa para a inferência declarada na segunda oração.

As vezes, haverá uma ambigüidade sobre a relação das orações. Considere esta declaração, por exemplo: Ele não matou sua mãe porque a amava. Qual é a importância desta declaração? Esta declaração está simplesmente negando a razão dada para o assassinato? Pode significar algo assim: Ele não matou sua mãe porque a amava e queria livrá-la de

qualquer agonia adicional de sua doença incurável; não, ele a matou porque queria receber o dinheiro do seguro. Ou pode significar isso: Ele amava sua mãe; portanto, é ridículo sugerir que ele a matou. Neste último caso, temos um verdadeiro entimema. A importância da declaração depende se a oração iniciada pela conjunção porque é restritiva ou não-restritiva. Caso a oração seja restritiva, negamos o motivo alegado

para o crime. Se a oração for não restritiva, estamos declarando uma premissa na qual baseamos nossa conclusão de que ele não assassinou

88

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS a mãe. Se estivéssemos falando essa frase, indicaríamos se a oração é restritiva ou não-restritiva (e, portanto, a importância de toda a de-

claração) por algum artifício fonêmico de entonação. Se estivéssemos escrevendo essa frase, esclareceríamos o signi cado por um destes dois recursos: (1) reformulando a frase para remover a ambigüidade; (2) colocando uma vírgula antes de porque se a oração for não-restritiva ou

omitindo a vírgula se a oração for restritiva. A menos que quiséssemos que a declaração fosse ambígua, seria melhor reformular a frase para que o significado ficasse claro. Oradores e escritores às vezes deixam declarações desse tipo ambíguas de propósito. Às vezes, eles procuram desacreditar alguém por meio de insinuações. Se tornarem vaga a relação entre as declarações, podem fazer com que o público aceite uma implicação que não é respaldada pelos fatos. Devemos estar alertas o suficiente para detectar tal tramóia e escrupulosos o suficiente para não empregarmos nós mesmos esses meios tortuosos. Isso não significa negar que a ambigüidade pode

ser um recurso literário eficaz e legítimo, como em um poema, por exemplo.

*** EXERCÍCIO

As expressões de raciocínio dedutivo no discurso prático, na maioria das vezes, assumirão a forma das afirmações do exercício a seguir, isto é, a forma do entimema. Para testar a verdade e a validade do raciocínio, converta essas afirmações em um silogismo completo, fornecendo a premissa implícita que falta. As vezes, a premissa implícita pode assu-

mir duas formas e, nesses casos, você terá que considerar as duas formas

da premissa. Por exemplo, no entimema "esta maçã deve estar azeda, porque está dura e verde", ", a premissa implícita pode ser (A) todas as ma-

çãs duras e verdes são azedas ou () todas as maçãs azedas são duras e verdes. Se a premissa implícita for (B), você rejeitará a conclusão porque

o raciocínio é inválido (o termo médio "duras e verdes" é não-distribu-

ído em ambas as premissas). Se a premissa implícita for (A), você pode

rejeitar a conclusão porque não concorda que todas as maçãs duras e verdes são azedas. Às vezes, ao reconstruir o silogismo completo, talvez você precise reformular as proposições, mas se o zer, certi que-se de

fi

fi

fi

89

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO preservar o sentido da declaração original. Por exemplo, o entimema

"restaria no po as reje mula fos por inosa longa radição de

Qualquer coisa que promova a prosperidade é boa.

O sistema de livre-iniciativa é algo que promove a prosperidade.

Logo, o sistema de livre-iniciativa é bom.

1. Ele deve estar feliz, porque está sorrindo o tempo todo. 2. Uma guerra nuclear é inevitável, pois nosso inimigo figadal, a China

comunista, agora tem a bomba de hidrogênio.

3. Ele não tomaria a coroa. Portanto, é certo que ele não era ambicioso.

— Shakespeare, Júlio César, ato III, cena 2, 118. 4. Como 29,8% das frases de Thurber são frases simples, podemos dizer que boa parte de seu ensaio é fácil de entender. — Frase de um aluno.

5. Já que você não falou em minha defesa na reunião, você deve ser tão

contra mim quanto o resto deles.

6. John certamente não pegou o carro na noite passada. Ele nunca coloca o carro no lado direito da garagem.

7. Não, o fusível não está queimado. É a lâmpada que está ruim. Quando você liga o interruptor de parede, todas as outras luzes da sala acendem, não é?

8. Em sua declaração, os senhores a rmam que nossas ações, embora pací cas, devem ser condenadas porque provocam a violência. — Martin Luther King Jr., "Carta da cadeia de Birmingham". 9. Visto que a bala obviamente entrou pelas costas, temos que descartar o suicídio; certamente ele foi assassinado.

fi

fi

90

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS 10. Devemos concluir que ele não é loiro natural. Você não viu o frasco de tintura para cabelo no banheiro dele? 11. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque eles verão a Deus.

12. A evidência mais convincente de que o tabagismo causa câncer de

pulmão é que o número de não-fumantes que morrem de câncer de pulmão é mínimo, a ponto de ser desprezível.

a cacias do didato mundo crited que de 5 porare a única civilização que podemos esperar, porque o mundo deve se unir ou será despedaçado. — Robert M. Hutchins, "Morals, Religion, and Higher Education". 14. Você nega que não pegou nenhum bombom de chocolate no armário. Mas olhe bem para suas mãos.

para pôr em dia os deveres da escola.

16. É melhor morrer, pois a morte é mais suave do que a tirania. — Ésquilo, Agamenon, versos 1450-51.

17 aderen perdidorques do car em gum char de bixa quando estava pagando a conta e colocá-las no balcão.

18. Você diz que ele é um grande rebatedor. Besteira! Um grande rebatedor não é eliminado 113 vezes por temporada.

19. Como o cultivo da mente vale a pena por si só, chegamos mais uma vez à conclusão [...] de que existe um conhecimento desejável, embora nada provenha dele. — John Henry Newman, A idéia de uma universidade.

91

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 20. Como posso saber se a "maioria silenciosa" é realmente uma maioria? Eles elegeram um presidente conservador, não foi?

O EXEMPLO Todo conhecimento é adquirido e toda prova é obtida por dedução ou indução. O silogismo é o artifício formal que Aristóteles concebeu

para analisar e sistematizar o raciocínio dedutivo. O entimema, como

acabamos de ver, é uma espécie de silogismo imperfeito, que produz, não a demonstração conclusiva que obtemos na ciência e na lógica, mas

crença ou persuasão. Assim como o raciocínio dedutivo tem seu equivalente retórico no entimema, o raciocínio indutivo tem seu equivalente retórico no exemplo.

Na indução, passamos do particular para o geral. Conseqüentemente, em uma demonstração científica ou na lógica, chegamos indutivamente a uma generalização por meio da observação de uma série de particulares. A validade e a verdade da generalização estarão em proporção

direta ao número de detalhes pertinentes estudados. A generalização "as mulheres são motoristas mais cuidadosas do que os homens" será "mais verdadeira" e "mais válida" se for baseada em um estudo dos hábitos de direção de um milhão de homens e mulheres do que se for baseada em um estudo de apenas cem mil homens e mulheres, presumindo, é claro, que os mesmos critérios de cuidado tenham sido usados em ambos os

estudos. A razão para a maior confiabilidade da generalização feita a partir de uma série de casos é que há menos "salto indutivo". Tanto a dedução quanto a indução fazem uso da inferência. A diferença é que a dedução faz inferências a partir de declarações, enquanto a indução faz inferências a partir de fenômenos verificáveis. A indução salta de fatos

conhecidos e observados, sobre uma área de casos desconhecidos e não observadas, para uma generalização. Quanto mais fatos ou casos forem observados, mais estreito será o intervalo do desconhecido que deve ser saltado e, portanto, mais confiável será a generalização.

Aristóteles percebeu que um orador dirigindo-se a um público não

pode apresentar uma série de exemplos particulares para fundamentar uma generalização. Os cientistas, evidentemente, devem oferecer as evidências de centenas, até milhares, de experimentos se quiserem

92

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS convencer os colegas da validade de sua generalização. Mas um orador

tem uma quantidade limitada de tempo e um escritor tem uma quantidade limitada de espaço para apresentar seu caso ao público, e eles não podem arriscar entediar a audiência com um catálogo exaustivo de evidências. Normalmente, eles oferecem apenas um ou dois exemplos convincentes como respaldo para suas generalizações.

Ilustremos o uso do exemplo retórico imaginando o tipo de argumento que poderíamos empregar ao tentar persuadir nossos colegas no Senado a não declarar guerra contra um país vizinho. O que queremos enfatizar, a generalização que buscamos estabelecer, é que travar uma guerra contra um vizinho será desastroso para o país que está iniciando

a guerra. Se tivéssemos tempo, poderíamos citar dezenas de exemplos

de como as guerras travadas contra os vizinhos foram desvantajosas

para o país que iniciou o conflito. Em vez disso, citamos um único exemplo, análogo à situação atual, de preferência da história americana e recente o suficiente para impressionar. Podemos, por exemplo, citar

o exemplo da Guerra Hispano-Americana ou da Guerra do México. Podemos dizer algo assim: Olha, é verdade que vencemos esta guerra, mas considere o preço que pa-

gamos por travar uma guerra contra um país vizinho. Desorganizamos nossa economia, gastando milhões de dólares para financiar a invasão. Enviamos dez mil jovens à morte prematura, numa época em que o mercado de trabalho doméstico era assustadoramente escasso. Milhões de dólares em propriedades americanas foram danificadas ou destruídas. Além disso, afastamos a boa vontade das potências européias dominantes. E, em vez de manter um Estado-tampão neutro em nossa fronteira sul, produzimos

uma nação hostil e vingativa que, na primeira oportunidade, entraria de bom grado em uma aliança com qualquer grande potência que quisesse nos invadir. O preço que pagamos por aquela guerra excedeu em muito os benefícios que colhemos. Senhores, digo-vos que uma guerra agora contra a vizinhança teria conseqüências igualmente desastrosas.

Uma das estratégias abertas aos senadores que defendem a ida à guerra contra o país vizinho seria oferecer exemplos de outras guerras trava-

das contra vizinhos que não tenham sido desastrosas para o agressor.

Muitas considerações determinariam qual desses exemplos conflitantes

93

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO convenceria mais o público, mas uma das considerações certamente é o grau de semelhança nas situações do passado e do presente.

Um argumento com base no exemplo não prova nada, pois, como o entimema retórico, o exemplo leva, na maioria das vezes, a uma mera probabilidade. Mas como uma probabilidade é o que geralmente acontece ou o que se acredita que aconteça, o exemplo tem valor persuasivo. O exemplo, é claro, está sempre sujeito a refutação. A oposição pode contra-atacar com o lembrete de que, com base na lógica estrita, um único exemplo não prova nada, como uma andorinha só não faz o verão. Outra maneira de neutralizar a força persuasiva do exemplo é, como já

observamos, citar outro exemplo semelhante em que o resultado foi exatamente o oposto do citado. Em tais casos, a questão será decidida

por um complexo de considerações concomitantes: (1) a importância relativa e a pertinência dos exemplos conflitantes; (2) a capacidade de

persuasão dos outros argumentos oferecidos em apoio à controvérsia; (3) a persuasão do estilo dos discursos; (4) o "apelo ético" das duas

pessoas que oferecem exemplos; (s) a força dos "apelos emocionais"; (6) a atmosfera emocional da época (ver o tratamento de "exemplo" no

tópico "Testemunho", pp. 161).

AS FALÁCIAS Antes de terminarmos esta seção sobre os modos lógicos de apelo, devemos considerar, pelo menos brevemente, as falácias comuns no raciocínio dedutivo e indutivo. A consciência dessas falácias pode nos ajudar quando estamos procurando refutar argumentos que se opõem à posição que defendemos e também pode nos impedir de cair em raciocínios

capciosos em nossos próprios discursos. Na linguagem comum, a palavra falácia tem dois significados: (1) uma declaração falsa e errônea, uma mentira; (2) raciocínio inválido, capcioso ou enganoso. O primeiro desses significados tem a ver com o assunto do argumento; o segundo, com a forma ou modo de argumen-

tação. A lógica formal está preocupada principalmente, embora não exclusivamente, com a forma de argumentação, mas visto que a falácia,

para a maioria das pessoas, significa uma "declaração falsa", devemos dizer algumas palavras sobre o assunto falacioso.

94

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS FALÁCIAS DO ASSUNTO

Uma declaração falsa só pode ser detectada e refutada se soubermos

qual é a verdade. A a rmação de que a Terra era o centro de nosso sistema solar não foi detectada como uma falsidade até que Copérnico descobriu o fato corretivo: que o centro de nosso sistema solar era o Sol.

Podemos suspeitar de uma declaração (como Copérnico deve ter sus-

peitado da visão ptolemaica do universo), mas não podemos refutá-la até que tenhamos descoberto os fatos. Um dos princípios fundamentais do argumento é que o ônus da prova recai sobre aquele que desa a a visão geralmente aceita das coisas. Uma vez que a maioria dos astrônomos sustentam que não existe vida humana, como a conhecemos, nos

outros planetas de nosso sistema solar (em outras palavras, visto que temos o testemunho de especialistas), o ônus da prova de que existe vida nesses outros planetas recai sobre aqueles que fazem a contestação.

A exploração do espaço sideral pode revelar os "fatos" que confirmarão ou corrigirão a visão geralmente aceita. Como a verdade é o único corretivo da falsidade, é extremamente importante que todos nós aprendamos, por meio da experiência ou do estudo, o máximo de fatos possível sobre nosso mundo (neste caso, para nossa existência efetiva e intencional) ou, pelo menos, como e onde obter fatos. A pessoa de conhecimento inferior ou inadequado estará sempre em desvantagem no trato com outras pessoas. Quantas vezes não ficamos frustrados em uma discussão por ter que admitir: "Não posso contestar sua afirmação porque, no momento, não disponho de fatos".

Se, no decorrer de uma discussão sobre a taxa de crescimento econô-

mico, alguém a rma que pelo menos um terço das famílias do país tem uma renda anual total inferior a us$2.000, não podemos contestar essa a rmação simplesmente dizendo: "Não é bem assim". Podemos

pedir e questionar a fonte das informações de alguém, mas minaremos uma afirmação de forma mais eficaz apresentando evidências de que aquela afirmação é falsa. A segunda melhor coisa do que ter em mãos as informações refutativas é saber onde podemos encontrar os fatos que

desacreditarão a afirmação de nossos opositores. Um ponto precisa ser enfatizado aqui: a mera afirmação, em qual-

quer um dos lados de um argumento, não constitui prova. E incrível a frequência com que a argumentação é conduzida somente com afir-

fi

fi

fi

fi

95

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO mações e contra-afirmações. Uma discussão dessas é como a de dois garotos, gritando um com o outro: "Meu pai é melhor que o seu", "não é, não", "é, sim", "até parece!". Ou seja, uma discussão que não leva

a lugar nenhum. No entanto, um número surpreendente de pessoas parece pensar que sim (basta dar uma olhada na coluna de cartas ao editor de seu jornal local).

Isso não quer dizer que toda vez que fazemos uma declaração categórica, precisamos justificar nossa declaração. Existem algu-

mas afirmações que a maioria das pessoas considera evidentes. Por

exemplo: um todo é igual à soma de suas partes. Os redatores da Declaração de Independência fizeram algumas afirmações nos parágrafos iniciais desse documento, dizendo que era óbvio que "todos os homens são criados iguais", "todos são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis". Uma proposição evidente foi defi-

nida como uma declaração com a qual todas as pessoas ou a maioria

delas concordariam imediatamente, assim que entendessem os termos da declaração. Por serem evidentes, tais declarações não preci-

sam ser provadas. Outro tipo de afirmação que normalmente não precisa ser provada é a afirmação considerada "verdadeira por definição": "Dois mais dois

é igual a quatro", "Democracia é governo do povo, pelo povo e para o povo"; "Maioria é qualquer pluralidade superior a cinquenta por cento

do número total". Tais afirmações são "verdadeiras" no sentido de te-

rem sido definidas por consenso. Em algum momento no futuro, o consenso pode estabelecer que a maioria é uma pluralidade de sessenta por cento do número total. Quase todas as leis e estatutos, por exemplo,

podem ser considerados "verdadeiros por definição". O terceiro tipo de declaração que não exige prova é a declaração so-

bre assuntos que mesmo a pessoa minimamente informada deve saber:

"Existem cinquenta estados nos Estados Unidos"; "Todos os adultos assalariados na América devem apresentar um relatório de imposto de renda uma vez por ano"; "Uma vasta extensão de água separa a América

do Norte da Europa". A natureza do assunto e a composição da audiência determinarão quais afirmações desse tipo precisam ser comprovadas. Muitas afirmações sobre física que podem precisar ser compro-

vadas para um público de leigos não precisam ser provadas para um

público de físicos.

96

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Não devemos exigir mais precisão e exatidão nas declarações do que

a ocasião exige. Quando nosso opositor afirma que "cento e cinqüenta

mil proprietários de imóveis não pagaram a hipoteca no ano passado",

pareceremos tolos se respondermos: "De acordo com o Bureau de Estatísticas do Governo, apenas cento e quarenta e seis mil, novecentos e oitenta e sete proprietários de imóveis deixaram de pagar a hipotecas

no ano passado". Uma declaração corretiva como esta é mera formalidade e não ajuda a fortalecer nosso próprio argumento, nem a enfraquecer o argumento de nosso opositor. Há ocasiões, é claro, em que se

deve insistir na estrita exatidão. Quando alguém, a fim de apresentar um argumento, afirma que o candidato vitorioso para o cargo de presidente recebeu uma clara maioria dos votos eleitorais, pode ser útil para nossos propósitos observar que o candidato teve uma margem de somente 345.330 votos, apenas 0,1% do total de votos, e que, portanto, ele não teve uma vitória esmagadora. Cuidado também com a falácia da meia-verdade, que pode ser uma tática de argumentação particularmente odiosa, mas surpreendentemente eficaz. Na meia-verdade, tudo o que é dito é verdadeiro, isto é, verificável como fato, mas como não é dito o suficiente, a imagem total é distorcida. Essa omissão de detalhes oculta ou distorce o contexto de uma situação. Imagine alguém tentando contestar a lealdade de uma cientista nuclear com uma narrativa como esta: "Por anos, a professora x manteve uma correspondência ativa com os principais cientistas soviéticos, assinando pelo menos seis revistas científicas russas. Em 1956,

ela foi vista almoçando em um restaurante de Nova York com quatro cientistas soviéticos. Em 1958, fez uma viagem a Moscou. Um estranho padrão de afinidade com a ideologia soviética, não é?". A professora x fez, de fato, tudo o que lhe foi atribuído aqui, e até admitiria que sim, mas não admitiria as implicações derivadas do que foi dito, pois

uma série de fatos relevantes, que colocam seu relacionamento com os

cientistas soviéticos na perspectiva adequada, foram omitidos. De fato, ela mantinha correspondência com cientistas soviéticos, mas todas as cartas foram aprovadas pelo Departamento de Estado. De fato, ela assinou seis periódicos russos, mas todo acadêmico que quisesse se manter atualizado sobre o desenvolvimento da ciência precisava ler a literatura periódica de outros países. De fato, ela almoçou com quatro cientistas russos, mas também estavam presentes no almoço quatro outros físicos

97

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO americanos, incluindo o professor x, cuja lealdade ninguém questionou.

A viagem que ela fez a Moscou em 1958 foi patrocinada pela Comissão de Energia Atômica, somente após liberação do FBL. Este é um exemplo claro da falácia da meia-verdade, mas sua própria

obviedade ajuda a ilustrar como funcionam exemplos mais sutis dessa falácia, pois mostra como o que não foi dito pode distorcer o quadro total. É por esse motivo que as testemunhas em tribunal são levadas a jurar que dirão "toda a verdade e nada mais que a verdade". Como cada declaração categórica é, em certo sentido, única, resta-nos somente estabelecer as precauções e princípios gerais com respeito às falácias do assunto. Cada declaração de um fato suposto deve ser exa-

minada em seus próprios termos e em seu próprio contexto. A falsidade de uma a rmação só pode ser detectada e exposta pelo conhecimento

dos fatos. Uma mera a rmação não constitui prova, mas nem toda a rmação precisa ser comprovada. Além disso, não se deve exigir precisão quando tal precisão for irrelevante ou inconseqüente. Devemos, no entanto, ter em mente que, cedendo à meia-verdade, podemos, paradoxalmente, contar mentiras ao falar "nada além da verdade". • FALÁCIAS DE RACIOCÍNIO

Todas as falácias de raciocínio, sejam indutivas ou dedutivas, podem ser classificadas como non sequiturs (ilogismos), isto é, conclusões ou

generalizações que "não seguem" as premissas. Uma falácia lógica é, no fundo, um exemplo de incongruência: a cadeia de raciocínio não se

fecha. Uma vez que tratamos extensamente nas seções anteriores de non sequiturs indutivos e dedutivos, aqui nos limitaremos a listar as falácias,

com um mínimo de comentários e com referências cruzadas às seções onde essas falácias foram elaboradas.

A. FALÁCIAS DE RACIOCÍNIO NA DEDUÇÃO

1. Equívoco: É a falácia de usar o mesmo termo com dois ou mais significados ou referentes. No raciocínio silogístico, o equívoco introduz um

quarto termo no processo. Nenhuma conclusão válida pode ser tirada de premissas com quatro termos. O equívoco também pode invalidar

fi

fi

fi

98

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS o raciocínio indutivo. Se o referente do termo usado para especi car os particulares continuar mudando, nenhuma generalização válida pode ser feita sobre a série de particulares (pp. 73-74).

2. Termo médio não-distribuído: Essa falácia comum resulta basicamente na falta de um elo na cadeia de argumentos, uma falha em estabelecer que o termo maior e o termo menor coincidem. Um diagrama de uma forma dessa falácia apontará o elo que faltava. Este sistema de círculos pode ser uma representação esquemática de um

Termo médio

Termo menor

Termo

maior

argumento como o seguinte: Todos os comunistas são pessoas. Todos os americanos são pessoas.

Logo, todos os americanos são comunistas. Os círculos e c estão compreendidos no círculo A maior, mas o círculo c não está dentro do círculo B, nem mesmo se sobrepõe ao círculo в. Em outras palavras, as duas premissas não estabelecem qualquer conexão entre B e c. Essa falha em estabelecer uma conexão é o elo que falta nesse tipo de argumento, e até que o elo seja fornecido, não pode-

mos chegar a nenhuma conclusão (p. 74).

3. Processo ilícito: É a falácia em que a extensão de um termo na con-

clusão é maior do que nas premissas. Dito de outra forma, um termo é

fi

99

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

distribuído ou universal na conclusão, mas não-distribuído ou particular na premissa. Evidentemente, não podemos tirar nenhuma conclusão sobre as pessoas se nas premissas estivermos falando somente sobre

pessoas. Essa conclusão simplesmente não é lógica (p. 75).

4. Conclusão de duas premissas negativas: Como duas premissas negativas não estabelecem nenhuma relação entre os três termos de uma cadeia de raciocínio silogística, nenhuma conclusão, seja afirmativa ou negativa, pode ser tirada. As premissas negativas excluem relações. A menos que uma das premissas seja afirmativa de modo que possa incluir

uma relação, não podemos chegar a nenhuma conclusão válida (p. 72).

5. Conclusão afirmativa de uma premissa negativa: Como uma premissa

negativa exclui uma relação entre dois dos termos em um silogismo,

o único tipo de conclusão a que se pode chegar logicamente é uma proposição que exclui qualquer relação entre um desses termos e um terceiro termo.

Homens

livres

Russos

Ateus

Esta é uma representação diagramática das duas premissas a seguir, com o x indicando a área especificada pela segunda premissa:

Nenhum russo é livre. Alguns russos são ateus.

Deve ficar claro a partir do diagrama que é logicamente impossível

reunir os termos homens livres e ateus em qualquer tipo de predicação afirmativa. Pode haver uma relação afirmativa entre homens livres e

100

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS ateus (por exemplo, a área do círculo ateus que está fora do círculo russos pode estar dentro do círculo homens livres), mas essa relação

deve ser demonstrada, não podendo ser inferida a partir desse con-

junto de premissas. A partir desse conjunto de premissas, podemos

chegar logicamente a uma conclusão apenas: Alguns ateus não são livres. (Como a área x está dentro do círculo russos e nenhuma parte do círculo russos está no círculo homens livres, é lógico que a área x não pode estar no círculo homens livres). Moral da história: não deixe ninguém, nem você mesmo, tirar uma conclusão afirmativa de uma

proposição negativa (p. 72).

6. Falácia "oulou": Esta é uma falácia comum àqueles que tendem a julgar a vida por um sistema de dois valores, em vez de um sistema de vários valores. Os psicólogos designam essa tendência como "clivagem"

ou "dissociação". Existem algumas situações "ou/ou" das quais podemos tirar inferências válidas; a condição para uma inferência válida é que as alternativas sejam esgotantes. Se partirmos da premissa "ou votaram no candidato, ou não votaram nele", podemos inferir uma alternativa, legitimamente, a partir da prova ou refutação da outra alternativa. A inferência é válida, porque uma das duas situações deve existir. Como a premissa é expressa, nenhuma outra situação é possível. Mas se partirmos da premissa: "Ou votaram no candidato, ou votaram no adversário do candidato", não propusemos alternativas que levam em consideração todas as ações possíveis no caso. Votar neste ou naquele candidato não é a única possibilidade; o povo pode não ter votado ou pode ter votado em um terceiro candidato. Portanto, se provarmos que eles não votaram no candidato, não podemos inferir que eles votaram no adversário do candidato; precisamos provar que votaram no adversário do candidato (p. 78).

7. Falácia da afirmação do consequente: Esta é a falácia que ocorre no

raciocínio dedutivo que começa com uma proposição hipotética. Por

exemplo: Se ele fizer concessões ao embaixador russo,

o prestígio dos Estados Unidos diminuirá.

101

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO O conseqüente é afirmado: "O prestígio dos Estados Unidos diminuiu'. A falácia agora é a conclusão tirada desta afirmação do consequente: "Ele deve ter feito concessões ao embaixador russo". Essa con-

clusão é claramente um non sequitur (pp. 77-78).

8. Falácia da negação do antecedente: Esta é outra falácia que pode ocor-

rer no raciocínio a partir de proposições hipotéticas. Por exemplo:

Se ela obtiver os votos indecisos, ela ganhará a eleição.

O antecedente é negado: "Ela não obteve os votos indecisos". A falácia agora é a conclusão tirada dessa negação: "Ela não ganhou a eleição". Essa conclusão seria lógica se tivesse sido estabelecido que a única maneira de ganhar a eleição é obtendo os votos indecisos. Teríamos que começar com esta premissa: "Ela só ganhará a eleição se obtiver os votos indecisos" (pp. 77-78). B. FALÁCIAS DE RACIOCÍNIO NA INDUÇÃO 1. Generalização falha: Estamos sujeitos a esta falácia quando "tiramos

uma conclusão precipitada" de evidências inadeqüadas. As evidências

podem ser inadequadas de várias maneiras: (1) os detalhes podem ser irrelevantes; (2) os detalhes podem não ser representativos; (3) os de-

talhes podem não ser numerosos o suficiente para garantir a conclu-

são. Todas essas inadequações dizem respeito a evidências coletadas por observação ou estudo. Às vezes, nossas generalizações são baseadas

em evidências derivadas de autoridade. Generalizações baseadas em evidências derivadas de autoridade podem ser falhas quando a autoridade citada é (1) tendenciosa ou preconceituosa; (2) incompetente; (3)

antiquada. Mesmo quando a autoridade citada é objetiva, competente e confiável, uma generalização a partir das provas fornecidas por essa autoridade pode ser errada se a autoridade for (1) citada incorretamente; (2) mal interpretada; (3) citada fora de contexto.

2. Generalizações causais falhas: São falácias às quais todas as inferências

de causa e efeito estão sujeitas. Estas falácias podem ocorrer quando

apresentamos (1) uma causa com base em um efeito ou (2) um efeito

102

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS com base em uma causa. Incorremos na primeira violação (1) quando

atribuímos uma causa inadequada a um efeito; (2) quando deixamos de levar em conta o fato de que pode haver mais de uma causa para o

mesmo efeito. Incorremos na segunda violação (I) quando deixamos de estabelecer que uma causa potencial de um efeito pode existir em

uma situação particular; (2) quando deixamos de levar em conta que

uma mesma causa pode produzir diversos efeitos. Um dos exemplos mais comuns de generalização causal falha é a falácia comumente referida como post hoc, ergo propter hoc ("depois disso, logo, por causa disso"). Esta falácia resulta da suposição de que, por haver uma relação

temporal entre os eventos (um aconteceu depois do outro), também

há uma relação causal. Por exemplo: "Nossas vendas aumentaram 25% depois que começamos a usar aquele jingle musical em nossa campanha publicitária". O uso do jingle musical pode realmente ter sido um dos motivos para o aumento das vendas, mas não podemos presumir que foi uma causa; devemos provar que foi uma causa. 3. Analogia falha: O argumento por analogia é sempre o mais vulnerável de todos os modos de argumento. Está sempre sujeito à acusação: "Essa analogia não se sustenta". Mas algumas analogias são mais vulneráveis

do que outras. As analogias são especialmente vulneráveis quando se concentram em semelhanças irrelevantes e inconseqüentes entre duas situações e ignoram as diferenças pertinentes e significativas. O argu-

mento analógico "onde há fumaça, há fogo", comumente usado para lançar suspeitas sobre o caráter ou atividade de alguém, é freqüentemente aberto à objeção de que a capacidade de persuasão das semelhan-

ças é enfraquecida, ou até totalmente anulada, pelas dissemelhanças.

Embora seja verdade que o argumento por analogia sempre repousa em terreno instável, é possível que o indivíduo se torne tão mesquinho em

sua atitude quanto à analogia que acabe coando mosquitos e engolindo camelos. Talvez possamos evitar esse hábito de censura, lembrando que

uma analogia nunca prova nada; na melhor das hipóteses, persuade alguém com base na probabilidade. É o grau de probabilidade que estará sujeito a contestação

103

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO C. FALÁCIAS DIVERSAS Várias falácias serão agrupadas aqui sob o título "diversas", porque não

são falácias peculiares ao raciocínio indutivo ou dedutivo, mas uma mistura de falácias materiais, falácias formais e falácias emocionais.

1. Petição de princípio: Essa falácia, rotulada de petitio principii pelos

lógicos escolásticos, é encontrada com mais freqüência no raciocínio dedutivo do que no raciocínio indutivo. Trata-se, resumidamente, de um raciocínio circular. No raciocínio silogístico, por exemplo, esta falácia ocorre quando assumimos na premissa a conclusão que estamos tentando provar. Um advogado incorreria neste tipo de falácia se de-

clarasse perante o júri: "Meu cliente não roubaria, porque é um homem honesto". Podemos detectar mais facilmente a petitio principii se

reconstruirmos toda a cadeia de raciocínio a partir do entimema do

advogado: Um homem honesto não rouba. Meu cliente é honesto. Logo, meu cliente não roubaria.

A segunda premissa e a conclusão dizem a mesma coisa com palavras diferentes, por causa da definição tautológica estabelecida na primeira premissa. A discussão gira em círculos, sem chegar a lugar nenhum. Vemos esse mesmo tipo de argumento circular em uma sequência como esta: "Deus existe". "Como você sabe que Deus existe?"

"A Bíblia diz isso". "Por que devo colocar minha fé no que a Bíblia

diz?". "Porque é a palavra de Deus". Deus é digno de um argumento

mais convincente do que este. Uma das formas mais comuns e sutis desta falácia é o epíteto de petição de princípio: "Este assassino deve ser condenado para o resto da vida". "Não queremos figuras polêmicas como oradores neste estado".

"Este socialismo traiçoeiro não enganará o povo americano". A ocorrência de certas fórmulas deve servir de alerta para um caso de petição de princípio à espreita na verborragia. Devemos ficar atentos sempre que encontrarmos expressões como "obviamente", "é claro", "como todos sabem", "realmente", "inquestionavelmente". (Sempre que você vir uma

104

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

dessas expressões neste livro, olhe novamente a frase em que essas expressões aparecem para ver se o que o autor disse é realmente óbvio ou inquestionável).

2. Argumento "ad hominem" (contra o homem): Esta é uma forma de argumentação emocional, a falácia de passar de uma discussão de assunto para uma discussão de personalidade. Se descobrirmos que não

podemos refutar o argumento de alguém, podemos atacar o caráter dessa pessoa. "Os argumentos do meu opositor são muito impressionantes, mas, lembre-se, este homem abandonou a fiel esposa e a família depois de ter conquistado a primeira vitória política". A julgar por sua prevalência ao longo da história, essa tendência de denegrir o caráter de

quem defende uma causa de argumento, em vez de avaliar a causa ou o argumento por seus próprios méritos, parece natural. Às vezes, vemos este tipo de coisa na crítica literária. A atenção é desviada da própria obra literária para uma discussão do caráter odioso do autor; o trabalho

é considerado ruim porque o autor é um libertino notório. Como disse

Alexander Pope: Algum juiz de nomes de autores, não de obras, e então

Não elogia nem culpa os escritos, mas os homens.

— Ensaio sobre a crítica, II, 412-13.

O caráter de uma pessoa pode ter alguma relevância em um argumento, quando, por exemplo, estamos tentando avaliar a confiabilidade

do testemunho de alguém ou a probabilidade de alguém ter feito algo, mas uma discussão sobre o caráter de uma pessoa torna-se irrelevante,

e, portanto, uma forma de falácia, quando tal discussão é usada somente para desviar a atenção do assunto em questão. Cuidado com a tática da "fonte contaminada". 3. Argumento "ad populum" (para o povo): Este é outro apelo emocio-

nal tortuoso, semelhante ao argumento ad hominem. Esta é a tática de apelar para medos irracionais e preconceitos a fim de evitar que o público enfrente os problemas de maneira direta. Termos honoríficos, como americanismo, patriotismo, individualismo, são usados para criar um clima emocional favorável; termos pejorativos, como socialismo, im-

105

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

piedade, radicalismo, reacionarismo, são usados para despertar reações

hostis. Nenhum desses termos é "bom" ou "ruim" em si. Tornam-se "palavras vazias" quando afetam a atmosfera emocional de uma discussão de tal maneira que as pessoas passam a aceitar como comprovado

o que foi somente a rmado. Os apelos às emoções são legítimos. Aliás,

os retóricos dizem que as pessoas só partem para a ação quando são motivadas pelas emoções. Mas os apelos às emoções são repreensíveis quando obscurecem a questão, quando anestesiam nossas faculdades racionais, quando nos levam a fazer ou aceitar coisas que não faríamos nem aceitaríamos em sã consciência ou em pleno uso de razão. 4. A pista falsa (arenque vermelho): Esta é outra tática diversiva. "Arenque

vermelho" é um termo de caça que se refere à prática de arrastar um peixe defumado de cheiro forte no caminho para enganar e distrair cães de caça na perseguição à presa. O termo clássico para essa falácia

é ignoratio elenchi (literalmente, "ignorância da refutação"). Como os argumentos ad hominem ou ad populum, trata-se de outra forma de ignorar ou evitar o assunto. Encurralados em uma discussão, todos nós estamos propensos a desviar a conversa para um problema secundário.

"Você me acusa de trapacear no imposto de renda, mas todo mundo não trapaceia um pouco?". "E daí que o general perdeu aquela batalha? Pense em todas as suas gloriosas vitórias no passado". O disputante que

permite que o opositor "mude de assunto", fugindo da questão principal, pode acabar perdendo a disputa, porque o opositor mudou-se para um terreno mais seguro. 5. A pergunta complexa: Um exemplo comum deste tipo de pergunta é: "Quando você parou de bater na sua esposa?". É impossível dar uma

resposta simples a tal pergunta sem incriminar-se. O que está errado aqui é que uma pergunta como essa tem duas partes: 1. "Você bate na sua esposa?". 2. "Quando você parou de bater nela?". É uma forma de

petição de princípio. Assim como um advogado de defesa se levantaria para protestar contra a pergunta do promotor: "Por que você roubou o anel de diamante?", qualquer pessoa confrontada com uma questão dupla deve insistir que a questão implícita seja tratada primeiro. "Espere

um minuto. Primeiro, precisamos determinar se realmente bati na minha esposa". Uma prática legislativa comum é adicionar cláusulas a um

fi

106

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

projeto de lei importante. Quando o projeto é submetido a votação, os legisladores deparam-se com um dilema. Eles podem ser a favor do projeto de lei principal, mas opor-se às cláusulas adicionais, ou vice-versa. De qualquer maneira, eles são colocados em uma situação em que precisam aceitar ou rejeitar o pacote inteiro. Em um debate, felizmente, podemos insistir que uma questão complexa seja tratada parte

por parte.

O APELO ÉTICO Na seção anterior, tratamos mais detalhadamente do pistis lógico, os materiais e métodos de prova ou persuasão que apelam para a razão. Idealmente, as pessoas deveriam ser capazes de conduzir uma discussão ou argumento exclusivamente no nível da razão, mas os retóricos foram realistas o suficiente para reconhecer que os seres humanos são

criaturas de intelecto, bem como de paixão e vontade. Temos de lidar

com as pessoas como elas são, não como deveriam ser. Se concebermos a retórica como a arte de descobrir todos os meios de persuasão disponíveis, estaremos dispostos a fazer uso de quaisquer meios eficazes (e,

esperamos, legítimos) que estejam à nossa disposição. Como foi obser-

vado anteriormente, Aristóteles reconheceu um segundo meio no apelo ético: o valor persuasivo do caráter do orador ou escritor.

O apelo ético pode ser o tipo de apelo mais eficaz; mesmo o apelo mais inteligente e sólido poderia cair em ouvidos moucos se o público reagisse desfavoravelmente ao caráter do orador. O apelo ético é espe-

cialmente importante no discurso retórico, porque aqui lidamos com questões sobre as quais a certeza absoluta é impossível e as opiniões estão divididas. Quintiliano achava que, dos três tipos de discurso retórico, a oratória deliberativa era a que mais carecia de apelo ético (auc-

toritas). Como disse Quintiliano: "Pois aquele que deseja que todos os

homens confiem em seu julgamento quanto ao que é conveniente e honrado deve possuir e ser considerado como possuidor de sabedoria genuína e excelência de caráter". — Instituição oratória, III, viii, 13.

Segundo Aristóteles, o apelo ético entra em ação quando o próprio

discurso impressiona o público, mostrando que o orador é uma pessoa de bom senso (phronesis), alto caráter moral (arete) e benevolência (eu-

noia). Observe que é o próprio discurso que deve criar essa impressão.

107

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Assim, uma pessoa totalmente desconhecida do público (e isso geralmente acontece quando ouvimos um discurso ou lemos um artigo em uma revista) poderia, por si só, inspirar esse tipo de confiança. Algumas pessoas, é claro, já têm uma reputação familiar a um público, e essa reputação, se for boa, disporá favoravelmente esse público em relação a elas, mesmo antes de proferirem qualquer palavra. Em última análise, porém, é o próprio discurso que deve estabelecer ou manter o apelo ético, pois o que uma pessoa diz em determinado discurso pode enfraquecer ou destruir qualquer reputação previamente estabelecida. Como criar a impressão, por meio de um discurso, de que somos pessoas de bom senso, alto caráter moral e benevolência? A questão é crucial; infelizmente, a resposta deve ser expressa em termos bastante gerais. Uma resposta óbvia e genérica é que devemos realmente possuir essas qualidades. "Ninguém pode dar o que não tem", como diz a máxima latina. A formação desse caráter, contudo, não está no campo da retórica, exceto, talvez, de forma indireta. Embora seja verdade que a pessoa está envolvida por completo em qualquer discurso comunicativo, a retórica pode treinar apenas as faculdades envolvidas na descoberta, disposição e expressão de idéias. Se admitirmos que uma pessoa fortemente imbuída de bom senso, elevado caráter moral e boa vontade para com os outros provavelmente conduzirá um discurso de maneira a exercer um forte apelo ético, podemos estabelecer outros preceitos positivos? Preceitos positivos, sim, mas não mais específicos do que o que acabamos de propor. Para exibir o bom senso de uma pessoa, o discurso deve mostrar que o orador ou escritor tem uma compreensão adequada, ou até erudita, do assunto que está sendo tratado, conhece e observa os princípios do raciocínio válido, é capaz de ver a situação na perspectiva adequada, leu muito e tem bom gosto e discernimento. Para refletir o caráter moral de uma pessoa, o discurso deve exibir aversão a táticas inescrupulosas e raciocínio capcioso, respeito pelas virtudes comumente reconhecidas e integridade inabalável. Para manifestar a boa vontade de uma pessoa, o discurso deve mostrar seu interesse sincero pelo bem-estar do público e prontidão para sacrificar qualquer auto-engrandecimento que entre em conflito com o benefício de outros. Também ajudará se o discurso mostrar um conhecimento sólido da psicologia humana e um senso apropriado de estilo. O orador ou escri-

108

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS tor deve estar ciente do tipo de êthos de que Aristóteles falou no livro II,

capítulos 12-17 da Retórica: a natureza das várias formas de governo e o caráter de diferentes períodos da vida (juventude, meia-idade, velhice)

e de diferentes condições de vida (riqueza, pobreza, educação, analfa-

betismo, saúde, doença). Ciente da disposição das pessoas em várias idades e em várias condições de vida, o orador ou escritor adapta o tom de acordo com o público. Os idosos, por exemplo, não pensam, agem e vêem as coisas da mesma forma que os adolescentes. Os jovens, em geral, são mais explosivos, inconstantes, impetuosos, idealistas; os idosos tendem a ser mais fleumáticos, conservadores, deliberados e pragmáticos. As mulheres reagem a certas coisas de maneira diferente dos homens. Pessoas ricas e pobres vêem as coisas de maneiras diferentes. Pessoas acostumadas a um modo de vida democrático reagem a certas opiniões e argumentos de uma maneira diferente das pessoas criadas durante uma ditadura. O discurso todo deve manter a "imagem" que o orador ou escritor busca estabelecer. O apelo ético, em outras palavras, deve permear todo o discurso. O efeito do apelo ético pode ser destruído por um único lapso de bom senso, boa vontade ou integridade moral. Um tom de irritação, um toque de malevolência, um lampejo de mau gosto, uma demonstração repentina de imprecisão ou falta de lógica podem comprometer todo o esforço persuasivo do indivíduo. De qualquer maneira, embora o apelo ético deva ser mantido como

um todo, pode haver lugares no discurso em que o autor fará uma tentativa explícita especial de estabelecer uma relação com o público

ou agradá-lo. Os dois lugares do discurso onde os autores comumente fazem tais aberturas explícitas são a introdução e a conclusão. O autor

não chama explicitamente a atenção para o fato de que está procurando

impressionar ou conquistar o público, mas o esforço para impressionar a audiência é óbvio e calculado. A seguinte citação, do parágrafo de abertura de um dos discursos de Benjamin Franklin, exemplifica perfeitamente esse esforço: É com relutância que me levanto para expressar minha desaprovação a qualquer artigo do plano, pelo qual somos muito gratos ao honrado cavalheiro que o apresentou. Desde a sua primeira leitura, mostrei-lhe boa vontade e, em geral, desejei-lhe sucesso. Nesse particular dos salários do Poder Executivo,

109

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO por acaso, eu discordo; e, como minha opinião pode parecer nova e quimérica,

é somente por estar convencido de que é o certo e por um senso de dever que me arrisco a expô-la. O comitê julgará minhas razões quando as tiver ouvido,

e seu julgamento pode mudar o meu. Vejo inconveniente na indicação de salários; não vejo nenhum inconveniente em rejeitá-los, mas, pelo contrário,

grandes vantagens (Discurso na Convenção Constitucional sobre o Assunto dos Salários, 2 de junho de 1787, Benjamin Franklin).

Franklin está prestes a argumentar contra uma proposta feita à Convenção Constitucional, mas deve dispor sua audiência para ouvir seus contra-argumentos. Assim, ele tenta mostrar que não nutre ne-

nhuma má vontade para com o homem que fez a proposta ("pelo qual somos muito gratos ao honrado cavalheiro que o apresentou"; "mostrei-

-lhe boa vontade"); que é motivado em sua objeção, não por considerações partidárias, mas por princípio ("por estar convencido de que é o

certo e por um senso de dever"); que não está tão convencido de seus próprios pontos de vista a ponto de ser imune à correção ("seu julga-

mento pode mudar o meu"). A impressão geral criada por esta breve

abertura é a de um cavalheiro modesto, magnânimo e imparcial. Até mesmo seus opositores na assembléia estariam dispostos a ouvir seus

contra-argumentos. Eis um exemplo de uma tentativa especial de exercer um apelo ético no parágrafo final de um discurso: Nesta obra, quando for descoberto que muito foi omitido, não deve ser esque-

cido que, da mesma forma, muito foi realizado. E embora nenhum livro tenha

sido poupado, por ternura em relação ao autor, e o mundo não queira saber de onde procedem as falhas daquilo que ele condena, talvez satisfaça a curio-

sidade informá-lo que o English Dictionary foi escrito com pouca ajuda dos

eruditos e sem qualquer patrocínio dos grandes; não na suave penumbra da reclusão ou no abrigo das alcovas acadêmicas, mas em meio a inconveniências

e distrações, doenças e tristezas. Pode reprimir o triunfo da crítica maligna observar que, se nossa linguagem não é aqui totalmente exposta, falhei somen-

te em uma iniciativa que nenhum poder humano completou até agora. Se os léxicos de línguas antigas, agora fixados de modo imutável e compreendidos em alguns volumes, ainda são, após o trabalho de eras sucessivas, inadequados e ilusórios; se o conhecimento agregado e a diligência cooperativa dos acadê-

110

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS micos italianos não os protegeram da censura de Beni; se os críticos da França,

depois de cinqüenta anos gastos em seu trabalho, foram obrigados a mudar a economia e dar à segunda edição outra forma, eu certamente ficaria contente sem o elogio da perfeição, que, se me coubesse, nesta soturna solidão, de que me valeria? Prolonguei meu trabalho até que a maioria daqueles que desejava agradar afundasse na sepultura, e sucesso e aborto fossem palavras vazias: portanto, rejeito-o com frígida tranquilidade, tendo pouco a temer de censura ou elogio (Prefácio ao English Dictionary, Samuel Johnson, 1755).

Aqui, boa parte do apelo ético deve-se ao estilo, pois esta é certamente uma magnífica obra de prosa inglesa. Mas Johnson também faz um esforço deliberado, dizendo coisas sobre si mesmo e seu trabalho, para que o público fique com uma opinião favorável sobre ele. Ao longo do extenso discurso que precedeu este parágrafo final, Johnson havia explicado o que esperava fazer em seu dicionário, as dificuldades que enfrentou para realizar seu propósito e quais foram seus sucessos e fracassos. A própria exposição elaborada ajudou a criar a impressão de um estudioso inteligente, abnegado e nobre. Aqui, neste parágrafo final, ele faz um esforço aberto para reforçar a impressão de si mesmo. O que chega ao público é uma mistura adequada de modéstia e confiança, de arrependimento e auto-congratulação, de animosidade e perdão. Seria fácil encontrar ilustrações em cartas, discursos e artigos contemporâneos de discursos que não conseguiram criar impressões favoráveis das pessoas que os compuseram. Mas, como não é muito respeitoso expor publicamente alguém, vivo ou morto, como exemplo de pessoa sem princípios, estúpida, malévola ou repulsiva, tomemos como exemplo uma pessoa fictícia. Eis um trecho de Orgulho e preconceito, no

qual Mr. Collins propõe casamento a Elizabeth Bennet: Minhas razões para casar, são: primeiro, penso que é uma obrigação para to-

dos os pastores que se encontrem em boa situação, como eu, o bom exemplo à sua paróquia. Em segundo lugar estou convencido de que isto contribuirá grandemente para a minha felicidade. E o terceiro motivo, que eu devia talvez

ter mencionado primeiro, é o conselho e a expressa recomendação da muito nobre senhora que eu tenho a honra de chamar a minha protetora. Duas vezes ela condescendeu em dar-me a sua opinião sobre este assunto, sem que eu lha

pedisse. E na noite que precedeu a minha partida de Hunsford, durante um

111

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO jogo de cartas e enquanto Miss Jenkinson punha um tamborete sob os pés de Miss de Bourgh, Lady Catherine disse: "Mr. Collins, o senhor precisa se casar. Um pastor como o senhor tem a obrigação de se casar. Escolha uma mulher educada, é o que lhe peço; e para seu interesse, escolha uma pessoa ativa, útil, que não tenha sido mimada pelos pais, mas que saiba administrar uma casa com economia. Encontre uma pessoa nessas condições o mais depressa possível, traga-a para Hunsford e eu irei visitá-la". Permita-me a propósito observar,

minha encantadora prima, que eu não considero a atenção e a amabilidade de Lady Catherine uma das menores vantagens que estão em meu poder oferecer-lhe; penso que o seu espírito e a sua vivacidade a tornarão aceitável aos

olhos de Lady Catherine, especialmente se combinar estas qualidades com a veneração e o respeito que a posição de Lady Catherine hão de provocar inevi-

tavelmente em seu espírito. Isto quanto à minha opinião geral a favor do ma-

trimônio. Resta-me explicar por que lancei as minhas vistas sobre Longbourn de preferência ao lugar onde resido, em que, posso lhe assegurar, encontraria

muitas moças encantadoras. Mas o fato é que sendo eu o herdeiro do seu honrado pai, que no entanto pode ainda viver longos anos, achei que era do meu dever escolher uma esposa entre as suas filhas, para que o prejuízo destas

pessoas pudesse ser o menor possível, quando se der aquele triste acontecimen-

to; o qual entretanto, como eu já disse, pode demorar ainda muitos anos. Este

foi o meu motivo principal, minha estimada prima, e estou certo de que ele não me diminuirá aos seus olhos. E agora nada me resta senão lhe exprimir, na

linguagem mais apaixonada, a violência da minha afeição. Sou perfeitamente indiferente à fortuna e não farei nenhuma exigência dessa natureza a seu pai,

pois sei perfeitamente que ela não poderia ser atendida. Sei também que as mil libras a quatro por cento, que só serão suas depois da morte de sua mãe, são tudo a que a minha prima tem direito. Sobre esse assunto, portanto, eu me conservarei silencioso. Pode ficar certa de que nenhuma observação pouco generosa atravessará os meus lábios depois que nos casarmos" (Orgulho e preconceito, capítulo 19, Jane Austen [tradução de Ivo Barroso, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2017]).

Há certamente uma situação retórica estabelecida aqui nesta cena de um romance do início do século xIx: um homem tentando induzir uma jovem a se casar com ele. Embora um apelo à razão dificilmente seja desprezível em um momento como este, as emoções provavelmente

desempenham um papel mais importante em levar duas pessoas a tal

112

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

decisão. E se há um momento em que o apelo ético de um homem deve

ser forte, é o momento em que ele pede uma mulher em casamento. Provavelmente, o homem exerceu um apelo ético durante todo o relacionamento, mas quando chega o momento de realmente propor matrimônio, ele não desejará dizer algo que possa destruir a visão positiva que a mulher tem dele. Este discurso fornece um exemplo clássico de um homem que pretende transmitir uma impressão favorável de si mesmo, mas só consegue desacreditar-se pelo que diz e pela maneira como o diz. Há dois

públicos para o discurso de Mr. Collins: Elizabeth e o leitor. Jane Austen claramente pretende revelar o caráter oportunista, pomposo, hipócrita e egocêntrico de Mr. Collins, mas não podemos presumir que Elizabeth reagirá exatamente da mesma maneira que nós ao discurso de seu pretendente. Devemos dar um desconto para os costumes da época e para o tipo de pessoa que a própria Elizabeth é. Uma jovem daquela época esperava que um homem a pedisse em casamento na linguagem altamente formal que Mr. Collins usa e ela provavelmente não caria tão impressionada quanto nós com as considerações mercenárias do sujeito. Mesmo dando esse desconto para as diferenças de reação desses dois

tipos de audiência, não dá para acreditar que, após a exposição dos motivos de Mr. Collins, Elizabeth poderia considerá-lo um homem de "bom senso, boa vontade e elevado caráter moral". Antes desse momento, ela

já havia desenvolvido por ele uma antipatia que tal demonstração de retórica nada podia fazer senão confirmar. Conseqüentemente, não nos surpreendemos com a firmeza e franqueza de sua rejeição: "Minha recusa é perfeitamente séria. O senhor não me poderia tornar feliz. E es-

tou convencida de que sou a última mulher do mundo capaz de fazê-lo feliz". E se nós, leitores, precisarmos de qualquer confirmação adicional

de nossa impressão desfavorável dele, podemos recorrer à carta de condolências deliciosamente detestável que ele envia à família Bennet no capítulo 48, por ocasião da fuga de Lydia.

Não há como negar o papel que o apelo ético desempenha no processo persuasivo. Em certo sentido, o apelo ético é o "persuasor oculto". Em nosso mundo, atividades como relações públicas, psicologia motivacional, pesquisa de mercado e publicidade estão voltadas para a busca de estímulos eficazes e a criação da "imagem" adequada.

fi

113

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO A base para todas essas atividades foi lançada por Aristóteles há dois

mil anos. Aristóteles abordou o apelo ético, não só por reconhecer o quão vital

ele era na persuasão, mas também porque queria responder aos inimigos da retórica, como Sócrates, que diziam que os retóricos sanciona-

vam qualquer tipo de conhecimento superficial, raciocínio sofístico e

táticas inescrupulosas para conseguir o que queriam com a persuasão.

Se a persuasão depende muito do apelo ético, o persuasor não pode criar a impressão, pelo discurso, de que é superficial, imoral ou mali-

cioso. Cícero e Quintiliano, com sua insistência no "homem bom, que fala bem", podem ter dado maior ênfase à importância da imagem ética do que Aristóteles, mas eles não apresentaram nada que Aristóteles tenha negligenciado inteiramente.

O APELO EMOCIONAL O terceiro modo de persuasão especificado por Aristóteles e reconhecido por todos os retóricos posteriores é o apelo às emoções do público.

As pessoas ficam um tanto envergonhadas em reconhecer que suas opiniões podem ser afetadas por suas emoções. Elas têm a sensação incômoda de que há algo indigno em ser levado a agir por meio das emoções. E, de fato, em alguns casos, há algo de indigno no fato de uma criatura racional ser precipitada para a ação por meio do estímulo

de paixões despertadas. Todos nós já sentimos vergonha de algo que fizemos sob a pressão de fortes emoções. A fonte de nossa vergonha não é tanto o fato de termos sido impelidos a agir por nossas emoções,

mas o fato de termos feito algo lamentável. Não temos vergonha de nos apaixonar, embora o ato de apaixonar-se seja motivado por uma forte emoção, mas temos vergonha de atirar um vaso contra a parede

em um acesso de raiva. O que faz a diferença aqui são as consequências de nosso estresse emocional. Como apaixonar-se é "positivo", não sentimos nenhum remorso; como quebrar o vaso é "negativo", sentimos vergonha de nosso ato impulsivo. Não há nada necessariamente repreensível em ser movido à ação por meio de nossas emoções; na verdade, é algo perfeitamente normal. Visto que é a nossa vontade que nos move para a ação e as emoções têm uma in uência poderosa sobre a vontade, muitas de nossas ações são

fl

114

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS induzidas pelo estímulo de nossas emoções. Quando não é a pura emo-

ção que estimula nossa vontade, é uma combinação de razão e emoção. Esse fato tem grande influência nas estratégias da retórica. George

Campbell, retórico escocês do século xvIII, enfatizou bastante a im-

portância das emoções no processo persuasivo: "Parece-me um método nada injusto de persuasão despertar as paixões, pois não há persuasão sem paixão" (Philosophy of Rhetoric, livro 1, cap. 7).

Richard Whately, retórico inglês do século xIx, analisou o pro-

cesso persuasivo da seguinte maneira: "Pois, para que a vontade

possa ser influenciada, duas coisas são necessárias: (1) que o objetivo proposto pareça desejável; e (2) que os meios sugeridos sejam comprovadamente conducentes à realização desse objetivo" (Elements of Rhetoric, parte II, cap. 1). É o argumento (o apelo à razão) que produz a convicção sobre a capacidade dos meios de conduzir ao fim desejado; é o apelo às emoções que faz o fim parecer desejável. Para levar

um povo a um clima de guerra, seria preciso fazer duas coisas: (I) lembrar ao povo que a liberdade e a segurança de uma nação são um fim desejável; (2) convencê-los de que ir para a guerra é o melhor meio de garantir esse m. A ordem dessas duas atividades pode variar. As vezes, será melhor excitar o desejo primeiro e depois mostrar que há alguma conexão entre a ação proposta e o m; em outras ocasiões, será mais conveniente primeiro convencer a razão e depois despertar as emoções. Algumas pessoas não brincam com as emoções de outras pessoas para ns inescrupulosos? Claro que sim. Todos nós poderíamos citar

meia dúzia de exemplos da história sem muito esforço. O fato de algumas pessoas explorarem as emoções para fins inescrupulosos pode constituir uma advertência sobre o uso do apelo emocional, mas não constitui uma condenação desse tipo de apelo. Algumas pessoas usam argumentos sofísticos, mas não condenamos todos os argumentos como meio de produzir convicção. Uma consideração importante para a retórica é que nossas emoções

não estão sob o controle direto da volição. Não podemos nos obrigar a ficar com raiva de alguém. Por outro lado, nossas faculdades intelec-

tuais, razão e memória, estão sob o controle direto de nossa vontade. Podemos, por um ato de vontade, forçar-nos a recordar fatos históricos, a fazer cálculos, a analisar um todo ou a sintetizar partes.

fi

fi

fi

115

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Existem duas conseqüências para a retórica do fato de que nossa

vontade não tem controle direto sobre nossas emoções. A primeira consequência é que é perigoso anunciar ao público que vamos tocar

nas emoções. Assim que informamos uma audiência de tal intenção, colocamos em risco, se não destruímos totalmente, a eficácia do apelo

emocional. No caso do apelo à razão, é diferente: normalmente, é van-

tajoso anunciar ao público que estamos prestes a embarcar em uma

determinada linha de raciocínio. Conseqüentemente, não hesitamos em chamar a atenção para a conclusão que esperamos estabelecer, para

os passos que tomaremos a m de provar nosso ponto de vista ou para nosso método de argumentação.

A segunda consequência para a retórica é que devemos chegar às emoções indiretamente. Não podemos despertar uma emoção, seja em nós mesmos ou nos outros, pensando nela. Despertamos a emoção ao contemplar o objeto que suscita essa emoção. Portanto, se quisermos despertar a raiva do público, devemos descrever um tipo de pessoa ou

situação que deixará o público com raiva. A raiva pode ser provocada mesmo com uma descrição bastante imparcial. Horácio estava certo quando disse que, se você quer que eu sinta uma emoção, você deve primeiro sentir essa mesma emoção (si vis me flere, dolendum est primum ipsi tibi), mas é possível sentir uma emoção sem exibi-la muito. Na ver-

dade, haverá momentos em que, quanto mais imparcial for a descrição que provoca emoções, mais intensa será a emoção despertada.

Eis um bom exemplo de como despertar uma resposta emocional no público ao descrever uma cena. Apelando ao patriotismo de seu público inglês, Macaulay quer despertar sua justa indignação contra o arrogante, cruel e despótico Surajah Dowlah, para que poder posteriormente justificar a expedição punitiva que Robert Clive liderou contra

a colônia indiana. Ele poderia ter descrito a mesma cena de forma a despertar o orgulho de um inglês pela bravura das tropas coloniais, mas

aqui ele descreve a cena de forma a despertar a ira do público contra as tropas nativas e seu comandante. Eis o relato de Macaulay sobre o infame episódio do Buraco Negro de Calcutá: Então foi cometido aquele grande crime, memorável pela atrocidade singular, notável pela tremenda retaliação que suscitou. Os cativos ingleses foram deixados à mercê dos guardas, que decidiram prendê-los durante a noite na

fi

116

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS masmorra da caserna, uma câmara conhecida pelo temível nome de Buraco Negro. Mesmo para um único malfeitor europeu, aquela prisão, em tal clima, seria muito estreita. O espaço tinha menos de dois metros quadrados. Os mínimos orifícios de ventilação estavam obstruídos. Era o solstício de verão,

a estação em que o forte calor de Bengala chega a ser quase intolerável para

os nativos da Inglaterra, mesmo em salões elevados e com o movimento constante de leques. O número de prisioneiros era cento e quarenta e seis. Quando

receberam ordem de entrar na cela, imaginaram que os soldados estavam brin-

cando e, muito animados com a promessa do nababo de poupar suas vidas, riram e zombaram do absurdo da idéia. Eles logo descobriram que estavam

equivocados. Protestaram. Imploraram. Mas em vão. Os guardas ameaçaram cortar todos os que hesitassem. Os cativos foram conduzidos para a cela à pon-

ta da espada, vendo o portão trancar-se imediatamente atrás de si.

Nada na história ou na ficção, nem mesmo a história que Ugolino contou no mar de gelo eterno, depois de limpar os lábios ensangüentados no couro cabeludo do seu assassino, aproxima-se dos horrores relatados pelos poucos sobreviventes daquela noite. Eles clamaram por misericórdia, esforçaram-se para arrombar a porta. Holwell, que, mesmo nessas condições extremas, manteve alguma presença de espírito, ofereceu grandes subornos aos carcereiros. Mas a resposta foi que nada poderia ser feito sem as ordens do nababo, que o nababo estava dormindo e que ficaria irado se alguém o acordasse. Então, os prisioneiros enlouqueceram de desespero, pisoteando uns aos outros, lutando pelos lugares nas janelas, disputando a ninharia de água com que a misericórdia cruel dos assassinos zombava daquela agonia. Eles deliravam, rezando, blasfemando, implorando aos guardas que atirassem neles. Enquanto isso, os carcereiros, aproximando o candeeiro às grades, gargalhavam da luta frenética de suas vítimas. Por fim, o tumulto terminou em suspiros e gemidos. O dia amanheceu. O nababo havia apagado durante a orgia, permitindo que o portão fosse aberto, mas demorou algum tempo para que os soldados conseguissem chegar até os sobreviventes, empilhando de cada lado os montes de cadáveres sobre os quais o clima escaldante já havia começado a fazer seu repugnante trabalho. Quando, por fim, uma passagem foi aberta, vinte e três figuras medonhas, irreconhecíveis à própria mãe, saíram cambaleando, uma a uma, para fora daquele ossuário. Um poço foi cavado instantaneamente. Os cadáveres, cento e vinte e três ao todo, foram atirados ali de qualquer jeito e cobertos em seguida ("Lord Clive", em Critical and Historical Essays, Thomas Babington Macaulay, 1843).

117

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

O tipo de descrição calculada para provocar emoção na audiência deve apelar à imaginação, com o uso de detalhes sensoriais especí cos. Macaulay utiliza muitos detalhes sensoriais em sua descrição, dramatizando a cena para aumentar o impacto emocional. Infelizmente, porém, ele não se contenta em permitir que um relato vívido da cena

crie o efeito emocional desejado: ele tenta despertar uma vibração extra editorializando a cena ("nada na história ou na ficção...") e carregando

a descrição com palavras hiperbólicas e provocativas ("grande crime",

"atrocidade singular", "repugnante trabalho", "figuras medonhas"). Por

outro lado, observe como Marco Antônio, falando após o assassinato de César, desperta a raiva de seu público: Conheceis este manto. Ainda me lembro quando César o estreou; era uma tarde de verão, em sua tenda, justamente no dia em que vencera os fortes nérvios. Vede o furo deixado pela adaga de Cássio; contemplai o estrago feito pelo

invejoso Casca; através deste apunhalou-o o muito amado Bruto, e ao retirar

seu aço amaldiçoado, observai com cuidado como o sangue de César o seguiu, como querendo vir para a porta, a fim de convencer-se se era Bruto, realmente,

quem batia por modo tão grosseiro, porque Bruto, como o sabeis, era o anjo do finado. Julgai, ó deuses!, quanto o amava César. De todos, foi o golpe mais

ingrato, pois quando a Bruto viu o nobre César, a ingratidão, mais forte do que o braço dos traidores, de todo o pôs por terra. O coração potente, então,

partiu-se-lhe e, no manto escondendo o rosto, veio cair o grande César ao pé da estátua de Pompeu, que sangue todo o tempo escorria Júlio César, III, cena 2, de William Shakespeare). Marco Antônio não diz à turba: "Irai-vos, cidadãos de Roma!". Ele também não procura despertar a raiva da turba chamando os assassinos

de "canalhas" e "traidores". Em vez disso, ele faz o povo contemplar

o manto rasgado e manchado de sangue que César usava no dia em que foi morto. É a visão desse objeto, dramaticamente exibido, com o signi cado evocado pelos comentários patéticos de Marco Antônio e seguido pelas observações incendiárias sobre a brutalidade e ingratidão do feito, que incita o povo a um frenesi de ódio e vingança. Acabamos de ver dois exemplos de como despertar uma resposta emocional no público por meio da descrição nítida de uma cena. Existe

outro método que oradores e escritores usam para despertar emoções,

fi

fi

118

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS embora não seja tão confiável quanto o método que estamos descre-

vendo. Este segundo método não "ganha" uma resposta emocional: "implora" por ela, baseando-se no uso de palavras carregadas de emoção. O autor faz uso de termos honoríficos ou pejorativos, de conotações de palavras favoráveis ou desfavoráveis, de modo a provocar o

público. Veja como Edmund Burke tentou despertar o ressentimento do leitor contra a multidão revolucionária que invadiu o palácio real de Versalhes no início da Revolução Francesa em 1789, capturando a rainha, Maria Antonieta: Faz agora dezesseis ou dezessete anos que eu vi a rainha de França, então Del-

fina, em Versalhes. Visão mais encantadora seguramente que nunca brilhou neste mundo, que ela apenas ao de leve parecia tocar. Vi-a quando despontava

no horizonte, decorando e animando a elevada esfera para a qual tinha acabado de entrar, brilhando como a estrela da manhã, cheia de vida, de esplen-

dor e de alegria. Oh! que mudança! E que coração precisaria eu de ter, para

contemplar sem emoção tal elevação e tal queda! Mal sonhava eu, quando ela acumulava protestos de veneração e de amor entusiástico, distante e respeitoso, que alguma vez ela seria obrigada a esconder no seu peito o antídoto pronto

contra a desgraça! Mal eu sonhava que haveria de viver para ver tais desastres

caírem sobre ela numa nação de homens galantes, de homens de honra e de cavaleiros! Eu pensava que dez mil espadas deveriam ter saltado da bainha para

vingar até um olhar que a ameaçasse de insulto. Mas a idade da cavalaria já se foi. Sucedeu-lhe a dos sofistas, dos economistas, dos calculadores e a glória

da Europa extinguiu-se para sempre. Nunca, nunca mais nós veremos aquela lealdade generosa à posição social e ao sexo, aquela submissão orgulhosa,

aquela obediência dignificada, aquela subordinação do coração, que mantém vivo, mesmo na própria servidão, o espírito de uma liberdade exaltada! A graça

da vida, que se não pode comprar, a defesa desinteressada das nações, o berço

do sentimento viril e do empreendimento heróico, desapareceu! Foi-se aquela

sensibilidade de princípio, aquela castidade da honra que sente o desdouro como uma ferida, que inspira coragem enquanto mitiga a ferocidade, que enobrece tudo aquilo em que toca e, sob a qual, o próprio vício perde metade do seu mal ao perder toda a sua grosseria! (Reflexões sobre a Revolução em França,

de Edmund Burke, 1790 [tradução de Ivone Moreira, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015]).

119

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Edmund Burke começa a retratar a rainha para que o público possa contemplá-la e sentir a mesma emoção que ele sente por ela, mas a imagem dela nunca aparece na chama da "retórica" de Burke. Ela brilha no horizonte "como a estrela da manhã", mas nunca realmente conseguimos vê-la. Burke apodera-se de nossas emoções com o ritmo grandiloqüente de sua prosa e com sua ladainha de termos honoríficos ("protestos de veneração", "homens de honra", "homens galantes", "idade da cavalaria", "lealdade generosa", "submissão orgulhosa"," obe-

diência dignificada", "castidade da honra" etc.). É um tanto injusto arrancar esse linguajar rebuscado de seu contexto, porque quando o vemos no longo panfleto que Burke escreveu, ele não parece tão sentimental quanto isoladamente. Mas o trecho ilustra muito bem o que um

indivíduo hábil na escolha e manipulação de palavras pode fazer com as emoções de uma audiência. Quando Aristóteles volta-se para uma consideração das emoções no livro 11, capítulos 2-17 da Retórica, ele pretende fornecer ao estudante de retórica tópicos para um apelo às emoções de uma audiência. Tomando algumas das emoções comuns, em pares de opostos (por exemplo, raiva

e mansidão, amor e ódio, medo e ousadia, vergonha e falta de vergonha), ele analisa essas emoções de três ângulos: (1) sua natureza; (2) seu

objeto, isto é, o tipo de pessoa por quem experimentamos a emoção; (3) suas causas motivadoras. Aristóteles afirma que devemos saber essas três coisas sobre uma emoção para despertá-la em outras pessoas. Esta análise é uma das primeiras iniciativas no campo da psicologia. Reconhecidamente, a psicologia de Aristóteles é primitiva e incipiente. John Locke e filósofos escoceses do século xvIII, como David Hume, Thomas Reid, Francis Hutcheson e Lord Kames, fizeram grandes avan-

ços com base na psicologia primitiva de Aristóteles; e, claro, os principais avanços modernos na psicologia foram iniciados por Sigmund Freud. Mas a análise das emoções de Aristóteles pode ser valiosa para o estudante que não é formado em psicologia, porque essa análise, em certo sentido, é bastante sólida e baseia-se na observação comum de pessoas que até mesmo um amador é capaz de realizar. Pelo conhecimento de nosso próprio mecanismo emocional e pela observação das reações emocionais dos outros, estamos familiarizados com as emoções comuns, de modo que somos capazes de manipulá-las para propósitos

persuasivos.

120

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS O estudante deve ler a análise das emoções de Aristóteles no livro II

da Retórica. O que podemos fazer aqui é citar alguns trechos da análise da raiva, de Aristóteles, para mostrar o nível elementar e a sagacidade

das observações não-profissionais de Aristóteles sobre as emoções humanas. Ao ler estes trechos, os estudantes devem fazer uma pausa ocasional para se perguntar se essas observações estão em consonância com suas próprias observações de pessoas com raiva.

É possível definir a cólera como uma inclinação penosa para uma manifesta vingança de um desdém manifesto e injustificável de que nós mesmos ou nossos amigos fomos vítimas. Se a cólera for isso que supomos que seja, sempre será necessariamente experimentada contra um indivíduo particular, por exemplo contra Cleonte, mas jamais contra o ser humano em geral. [...] Todo sentimento de cólera [embora de natureza penosa] é sempre acompanhado de um certo prazer no antegozo da expectativa da vingança. Com efeito, sente-se prazer em pensar que se obterá o objeto do próprio desejo, e ninguém, de resto, deseja o que lhe parece impossível conseguir, mas somente o que se lhe

afigura obtenível. [...] Um certo prazer acompanha a cólera, também porque a

vingança povoa nossos pensamentos e as imagens evocadas produzem prazer, tal como as imagens dos sonhos.

O desdém expressa uma opinião sustentada ativamente em relação a algo que evidentemente carece de importância e não merece consideração. [...] O desdém assume três formas: o desprezo, a malevolência e a insolência. O desprezo é uma espécie de desdém (indiferença); sentimos desprezo pelo que jul-

gamos sem importância, que é exatamente aquilo que nos causa indiferença. A malevolência é outra forma assumida pelo desdém e consiste em criar entraves para os desejos alheios, não para tirarmos proveito da situação, mas para que

a vítima de nossa ação não obtenha nenhum proveito. [...] A insolência tam-

bém é uma forma de desdém (indiferença), na medida em que consiste em dizer e fazer coisas que prejudicam e afligem nossa vítima e que, sobretudo, a

humilham. Na insolência não se busca qualquer proveito pessoal, e tampouco qualquer acerto — visa-se apenas à própria satisfação. [...] A causa do prazer

fruído pelo insolente é imaginar-se como sendo muito superior aos outros ao

maltratá-los. [...] Pensamos que uma grande consideração nos é devida da parte daqueles que nos são inferiores quanto ao nascimento, o poder, a virtude e, em geral, em todas as esferas em que apresentamos superioridade; por

exemplo, no tocante às riquezas, o rico em relação ao pobre; na oratória, o

121

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO homem eloquente em relação ao que carece de toda capacidade de discursar; o

governante em relação ao governado, e aquele que se julga digno de governar

relativamente àquele que merece ser governado.

[...] Os indivíduos com os quais nos encolerizamos são os que riem, zombam e gracejam de nós, pois essa sua conduta insolente nos ultraja. Encoleri-

zamo-nos igualmente com aqueles que nos causam todas as ofensas que têm a marca da insolência. [...] Nossa cólera volta-se também contra aqueles que se

revelam maledicentes em relação a nós e desdenham o que constitui o objeto principal de nossos esforços — por exemplo, os que anseiam obter a reputação de filósofos encolerizam-se com os que desprezam esse propósito e sua filoso-

fia; os que se orgulham de sua boa aparência com os que desprezam sua aparência. O mesmo se aplica aos outros casos. [...] Por outro lado, nos encoleri-

zamos mais com nossos amigos do que com outras pessoas, pois julgamos que

os primeiros devem nos tratar bem e não mal. Encolerizamo-nos contra os que costumavam nos honrar e nos considerar se ocorre uma mudança e eles passam a ter uma atitude diferente conosco. Pensamos então que nos desprezam, pois caso contrário, nos tratariam como antes. [...] Ademais, contra os que nos desdenham na presença de cinco classes de pessoas, a saber: nossos rivais,

indivíduos que admiramos, indivíduos que gostaríamos que nos admirassem, aqueles que respeitamos, aqueles que nos respeitam; se desdenhados diante de tais pessoas, a cólera em nós despertada revela-se especialmente intensa.

[..] Indicamos as pessoas com as quais nos encolerizamos, a disposição de

espírito em que experimentamos a cólera e os motivos que nos levam a experimentá-la. E evidente que o orador, através de seu discurso, deve colocar seus ouvintes na disposição de espírito dos que se predispõem à cólera; deve, igualmente, mostrar que os adversários são os responsáveis pela causa da cólera e que se assemelham àqueles com os quais nos encolerizamos (Retórica, livro II,

capítulo 2 [tradução de Edson Bini, São Paulo: Edipro, 2019]).

O que quero dizer sobre a análise das emoções de Aristóteles (ou qualquer outra análise de emoções) é que, depois de ler a análise, os es-

tudantes devem "esquecê-la", da mesma forma que alguém que leu um manual sobre rebatidas deve esquecer o que leu quando pega um taco

na mão e começa a rebater os arremessos. Na verdade, os estudantes não esquecerão o que leram; eles incorporarão inconscientemente o que

aprenderam sobre as emoções em seu apelo. Esta é apenas uma maneira de exortá-los a "serem naturais". Todos nós, em algum nível, apelamos

122

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS continuamente às emoções dos outros. A partir de nossas relações com outras pessoas e de nossa experiência com nossas próprias reações emocionais, desenvolvemos certos instintos sobre as emoções. É sobre esses

instintos que nos baseamos quando fazemos um apelo emocional. Os instintos de algumas pessoas são mais desenvolvidos do que os

de outras pessoas. Quando dizemos que alguém "tem muito jeito" ou é "safo", provavelmente estamos homenageando o talento natural ou desenvolvido dessa pessoa para produzir o toque emocional certo no momento certo. Fazer um estudo consciente das emoções e estar cientes de que estamos apelando para as emoções de alguém não nos tornará

necessariamente mais aptos a esse tipo de apelo, mas um conhecimento consciente de qualquer arte aumenta a probabilidade de que a pratique-

mos com habilidade. A pessoa que aprendeu a tocar piano de ouvido não será prejudicada por estudar música, mas essa pessoa pode muito bem ser ajudada a tocar melhor. Para resumir o que dissemos sobre o apelo emocional: esteja ciente

de que o apelo emocional desempenha um papel vital no processo persuasivo; a convicção intelectual muitas vezes não é suficiente para mo-

ver a vontade de ação das pessoas. Esteja alerta para apelos emocionais de outras pessoas; não permita que seu coração o incite a fazer algo de que sua razão ou consciência se arrependeriam mais tarde. Seja natural;

deixe que a natureza do assunto, a ocasião ou o público provoquem o

tipo apropriado e a quantidade certa de apelo emocional. Lembre-se de que você não pode ordenar a si mesmo ou aos outros a ter emoções; você deve evocar a cena, situação ou pessoa que fará com que o público

experimente as emoções que você deseja despertar nele. Esteja ciente,

como será observado novamente no capítulo sobre "disposição", que as pessoas às vezes precisam estar no humor emocional certo antes de

ouvirem os apelos à razão; em outras ocasiões, é melhor começar com

apelos à razão e então levar o público à atmosfera emocional apropriada em uma peroração grandiloqüente.

OS TÓPICOS Depois de converter um assunto em uma tese bem definida, os estudantes deparam-se com a tarefa de desenvolver esse assunto. Se eles estão engajados em um discurso persuasivo, eles precisam encontrar

123

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO "argumentos" para desenvolver o tema. Na seção anterior, vimos que

qualquer pessoa empenhada em persuadir os outros faz uso de um ou mais dos três modos de apelo: o apelo à razão, o apelo às emoções e o apelo do caráter. Se alguém decidir fazer uso do apelo à razão, deverá

desenvolver os argumentos de modo indutivo ou dedutivo. No primeiro caso, ele deve recorrer ao silogismo ou, mais provavelmente, ao

entimema. No segundo caso, ele deve recorrer à indução completa ou

ao exemplo. Seja qual for o modo de apelo, lógico, emocional ou ético, devemos ter algo a dizer ou encontrar algo a dizer. Às vezes, por experiência, estudo ou leitura, os estudantes já terão algo a dizer. Em muitos assuntos sobre os quais são solicitados a escrever nas aulas da faculdade, os alunos são capazes de escrever um tema de quinhentas a oitocentas palavras com bastante facilidade, pois eles têm um estoque suficiente de idéias sobre esses assuntos para serem capazes

de escrever sem pensar muito. E mais provável que tenham muito a dizer quando têm uma opinião estabelecida a respeito de alguma coisa, pois, então, as idéias parecem surgir espontaneamente. Neste capítulo, entretanto, estamos preocupados com os problemas dos escritores que não têm (ou pensam que não têm) algo a dizer sobre determinado assunto. Pode-se dizer que os escritores não têm "nada a

dizer"quando (1) não têm nenhuma idéia sobre um assunto, (2) têm apenas algumas idéias ou idéias insuficientes para desenvolver um as-

sunto de forma adequada, ou (3) têm um conjunto de idéias vagas,

idéias confusas, imprecisas ou insustentáveis. Esses escritores precisam encontrar, descobrir ou, para usar o termo retórico, inventar seu conteúdo. Alguma medida de invenção estará envolvida em todas as quatro

formas de discurso: exposição, argumentação, descrição e narração. Mas a invenção figura mais proeminentemente no discurso expositivo e argumentativo, porque na descrição ou no discurso narrativo, o escritor tem mais oportunidade de "criar" o conteúdo do que "inventá-lo". Quais são os recursos dos escritores para encontrar conteúdo? Seus principais recursos serão sempre os frutos de sua educação, leitura, observação e reflexão. Tanto Cícero quanto Quintiliano sustentavam que a formação mais valiosa para um orador é a educação liberal, porque uma educação ampla facilita o trabalho diante da necessidade de inventar argumentos sobre diversos assuntos.

124

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS No entanto, a experiência, a reflexão, a educação e a leitura vêm apenas com tempo e esforço. Sendo assim, aqueles que ainda não colheram os benefícios da experiência e do estudo estão condenados à falta de articulação? Existe algum sistema que possa suprir as deficiências de recursos? Os retóricos dizem que sim: os tópicos.

Como vimos na seção do capítulo 1 dedicada às definições de termos-chave, os tópicos são os cabeçalhos gerais sob os quais são agru-

pados os argumentos para um determinado assunto ou ocasião. Eles são as "regiões", os "locais", os "lugares" onde residem certas categorias de argumentos. De certa forma, Pierre de la Ramée e seus seguidores no século xvII tinham razão de relegar os tópicos ao campo da lógica,

pois o sistema dos tópicos é realmente uma consequência do estudo de

como a mente humana funciona. A mente humana, é claro, pensa sobre coisas particulares, mas sua tendência constante é elevar-se acima das particularidades e abstrair, generalizar, classificar, analisar e sintetizar.

Os tópicos representam o sistema que os retóricos clássicos construíram

sobre essa tendência da mente humana. Os retóricos viram, por exemplo, que uma das tendências da mente

humana é buscar a natureza das coisas. Então, eles estabeleceram o tópico da definição. Outra tendência da mente humana é comparar as coisas e, quando as coisas são comparadas, descobrem-se semelhanças

ou diferenças, em tipo ou grau. Quando alguém é apresentado a um assunto, ele procura descobrir se esse assunto apresenta uma oportuni-

dade de definição ou comparação, para um propósito específico.

Talvez os escritores tenham uma noção mais clara da função dos

tópicos se pensarem nos tópicos como "sugestões", "estimuladores" ou "iniciadores", uma "lista de verificação" de idéias sobre algum assunto.

Como são noções ou categorias gerais, os tópicos "preparam o terreno", por assim dizer; ao sugerir estratégias gerais de desenvolvimento, eles

ajudam a superar a inércia. Assim como o motor de partida de um automóvel faz o motor girar até que o sistema de compressão esteja ativo,

os tópicos iniciam uma linha de pensamento, que então avançará em seu próprio ritmo.

Um dos termos que usamos no parágrafo anterior para esclarecer a função dos tópicos foi "lista de verificação". O termo "lista de ve-

rificação" sugere que devemos percorrer a lista de tópicos, um a um, perguntando se esse tópico específico resultará em algum material para

125

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO o desenvolvimento do assunto. Nos estágios iniciais, os escritores talvez

precisem fazer exatamente isso, acabando por descobrir, porém, que alguns dos muitos tópicos disponíveis não serão adequados para certas

situações. O técnico de futebol não manda vir qualquer um do banco

quando precisa de um substituto. Ele chama do banco o jogador que foi treinado para uma determinada posição e que pode servir da melhor

maneira ao caso particular que se apresenta em campo. Como disse

Quintiliano: Eu também gostaria que os estudantes de oratória considerassem que nem todas as formas de argumento que acabei de apresentar podem ser encontradas

em todos os casos e que, depois de proposto o assunto sobre o qual devemos

falar, não devemos considerar cada tipo separado de argumento, querendo

descobrir se eles servem para provar nosso ponto de vista, exceto enquanto estivermos na posição de meros aprendizes (Instit. Orat., V, x, 122).

Quintiliano entrevia o tempo em que, como resultado do estudo e da prática, os estudantes adquiririam aquela "penetração inata" e "poder de adivinhação imediato" que os levaria diretamente aos argumentos adequados para seu caso particular. Eventualmente, eles chegariam à feliz condição em que os argumentos "viriam espontaneamente ao

pensamento" Na parte restante deste capítulo, consideraremos as formas de ajuda à invenção divididas em três categorias principais: (1) os tópicos comuns; (2) os tópicos especiais; (3) os auxílios externos à invenção. Os

tópicos comuns fornecerão aos estudantes um conjunto de linhas gerais de argumentação que podem ser usadas no desenvolvimento de qualquer assunto. Os tópicos especiais fornecerão linhas de argumentação pertinentes ao tipo particular de discurso persuasivo em questão: deliberativo, judicial ou cerimonial. Os auxílios externos à invenção direcionarão os estudantes a alguns livros de referência comuns que lhes

fornecerão os fatos e números necessários para fundamentar seus pró-

prios argumentos ou refutar argumentos opostos. Devemos observar que essas ajudas à invenção são organizadas em escala crescente de especialização: os tópicos comuns geram argumentos para praticamente qualquer assunto; os tópicos especiais geram argumentos para um tipo particular de discurso; e os auxílios externos à invenção fornecem da-

126

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS dos para um caso especí co. Como Aristóteles assinalou, os tópicos comuns são os auxílios que pertencem mais propriamente à retórica; à

medida que subimos na escala e contamos com um conhecimento mais especializado para nossos argumentos, estamos saindo do domínio da

retórica e entrando no domínio de outras disciplinas, como direito, história, ética, política e ciência.

OS TÓPICOS COMUNS Antes de considerarmos os tópicos comuns em detalhes, apresentaremos, de forma resumida, os tópicos comuns e seus subtópicos: DEFINIÇÃO

A. Gênero B. Divisão

COMPARAÇÃO A. Semelhança B. Diferença

C. Grau

RELAÇÃO A. Causa e efeito

B. Antecedente e conseqüente

C. Contrários D. Contradições CIRCUNSTÂNCIA

A. Possível e impossível

B. Fato passado e fato futuro

TESTEMUNHO

A. Autoridade B. Depoimento C. Estatísticas

fi

127

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Todas essas questões de definição foram importantes no julgamento e tiveram que ser apresentadas e resolvidas no início. Imagina quantas palavras foram gastas para resolver essas questões! Com este exemplo, os estudantes vêem como o tópico da definição pode ser útil para eles quando se depararem com o problema de desenvolver um assunto. A

julgar pela freqüência com que os alunos começam seus temas com uma definição do dicionário ("Como diz o Aurélio..."), eles parecem perceber instintivamente o valor da definição como um trampolim para o desenvolvimento de um assunto. O problema com a maioria dos estratagemas desse tipo ("Como diz o Aurélio") em temas estudantis

é que eles não têm nenhuma função útil. As definições estão lá na introdução porque os alunos não sabem como entrar no assunto. Elas são uma tática antiestagnação que os alunos usam enquanto tentam

ganhar impulso para o empurrão principal. Uma definição se torna realmente funcional quando é usada como Matthew Arnold faz na refutação de "Ciência e cultura", de Thomas Henry Huxley, um dos ensaios reproduzidos entre as leituras no final deste capítulo. Cheguemos a um acordo sobre o significado dos termos que estamos usando. Falo de conhecer os melhores exemplos de pensamento e expressão no mundo; o professor Huxley diz que isso significa conhecer literatura. Literatura é uma palavra extensa; pode significar tudo o que é escrito com letras ou está impresso em livros. Os Elementos, de Euclides, e Os princípios matemáticos da filosofia

natural, portanto, são literatura. Todo conhecimento que chega até nós por meio dos livros é literatura. Mas, por literatura, o professor Huxley quer dizer belles lettres. Segundo ele, estou dizendo que conhecer os melhores exemplos de pensamento e expressão das nações modernas é conhecer suas belles lettres.

E isso não é suficiente, argumenta ele, para uma crítica à vida moderna. Mas por conhecer a Roma antiga, não quero dizer conhecer mais ou menos as belles lettres latinas, sem levar em consideração o trabalho militar, político, jurídico e administrativo de Roma no mundo; e por conhecer a Grécia antiga, quero dizer conhecê-la como o berço da arte grega e um guia para o uso livre e correto da razão e do método científico, além de fundadora da nossa matemática, física, astronomia e biologia, ou seja, conhecê-la por tudo isso e não só por certos poemas, histórias, tratados e discursos gregos. O mesmo vale para o conhecimento das nações modernas.

129

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Quando procuramos esclarecer alguns termos importantes em uma discussão, podemos citar definições de um dicionário, mas as definições do dicionário só servirão ao nosso propósito quando essas definições aceitas estiverem em consonância com nossas idéias. Às vezes, porém, temos que criar nossas próprias definições, seja porque as definições aceitas são muito vagas, ou porque acreditamos que são errôneas ou inadeqüadas. Nesses casos, estipulamos o significado que atribuiremos a certos termos em nossa discussão. Como Coleridge descobriu que as definições existentes de um poema não condiziam com suas idéias a respeito desse gênero, ele formulou uma definição que considerou correta: A definição final, então, deduzida, pode ser assim formulada. Um poema é aquela espécie de composição que se opõe às obras da ciência ao propor para seu objeto imediato o prazer, não a verdade; e de todas as outras espécies (ten-

do este objeto em comum com ele), é discriminado por propor a si mesmo tal deleite do todo, compatível com uma gratificação distinta de cada parte isolada (Biographia Literaria, Samuel Taylor Coleridge, capítulo xIv, 1817).

GÊNERO

O tópico da definição pode ser usado não apenas para esclarecer o ponto em questão, mas também para sugerir uma linha de argumentação. Na Apologia de Sócrates, obra reproduzida entre as leituras no final deste capítulo, vemos Sócrates usando o tópico da definição para defender-se da acusação de ser ateu. Perguntando o que significava "divino", Sócrates propôs que se referisse aos deuses, ou às obras ou agentes dos

deuses. Ele, então, argumenta, a partir desta definição, que não pode ser considerado um ateu: Ora, você não a rma que não só ensino, mas que também creio em coisas numinosas, quer novas, quer antigas? Portanto, em coisas numinosas pelo menos eu creio, de acordo com seu discurso, e a esse respeito você até jurou

no ato de indiciamento... Se creio em coisas numinosas, decerto é muito imperioso que eu creia também em numes; não é assim? (Silêncio) Mas é!

Vou colocá-lo reconhecendo que sim, já que não responde. E quanto aos

fi

130

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS numes, não os consideramos, com efeito, deuses ou filhos de deuses? [tra-

dução de André Malta, L&PM, 2008].

Na última frase desta citação, Sócrates está recorrendo a um argu-

mento baseado no primeiro subtópico em definição: o subtópico do gênero. Sempre que o predicado de uma proposição coloca o sujeito em uma classe geral de coisas ("os americanos são amantes da liberdade",

"o suicídio é um crime contra a sociedade"), o sujeito está, em certo sentido, sendo definido, porque os limites estão sendo fixados para o termo. Mas tais proposições também podem apresentar um argumento. A força retórica do tópico do gênero deriva do princípio de que o que é verdadeiro (ou falso) em relação ao gênero deve ser verdadeiro (ou falso) em relação à espécie. Se todos os homens são mortais, então

John Smith, se for homem, também deve ser mortal. Cícero, em sua obra Topica, dá este exemplo de argumento de gênero. Se um homem, diz ele, legou toda a prata em sua posse à sua esposa, um advogado

poderia argumentar que o homem pretendia deixar para sua esposa não só toda a sua louça de prata, estátuas de prata e castiçais de prata, mas também todas as moedas em seus cofres, pois a moeda é uma espécie de prata tanto quanto a louça, as estátuas e os castiçais.

Predicar o gênero de algum sujeito só constituirá uma "prova" quando o público concordar com a verdade da classificação. O pre-

gador que declara do púlpito "o assassinato é um pecado grave", presume que sua congregação concordará com ele. Sempre que oradores ou escritores não puderem presumir tal consentimento imediato, eles devem, é claro, justificar suas classificações. Talvez o uso mais comum das definições em argumentos seja como

uma premissa para um argumento adicional. Uma forma disso é a proposta de uma definição como norma e, em seguida, a demonstração de que algo mais está (ou não) em conformidade com esse padrão. Vemos outra forma disso em O Federalista n° 1o, obra reproduzida entre as leituras no final deste capítulo. No parágrafo 13 desse discurso, James Madison define "uma democracia pura" como "uma sociedade consistindo num pequeno número de cidadãos, que se reúnem e administram o governo em pessoa". Depois de apontar no restante do parágrafo as deficiências de tal sistema de governo, Madison passa a indicar, nos

131

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO próximos dois parágrafos, a direção que sua argumentação tomará no resto do discurso: Uma república, e refiro-me a um governo no qual existe o esquema de representação, abre uma perspectiva diferente, e promete o remédio que temos

estado a procurar. Examinemos os pontos nos quais ela varia em relação à

democracia pura, e compreenderemos tanto a natureza do remédio como a eficácia que terá, derivada da União.

Os dois grandes pontos de diferença entre uma democracia e uma repúbli-

caepública são, primeiro, a delegação do governo, na úlcima, a um pequeno número de cidadãos eleitos pelos restantes; segundo, a maior quantidade de cidadãos e a maior esfera de território sobre o qual a última se pode estender

[tradução de Viriato Soromenho-Marques e João C. S. Duarte, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011].

Madison usará as diferenças entre a natureza de uma república e a natureza de uma democracia pura como meio de provar sua tese de que uma confederação de estados é a melhor maneira de controlar facções. DIVISÃO

Na verdade, definimos algo quando enumeramos as partes que o compõem e quando designamos as espécies de um gênero. Estaríamos esclarecendo a natureza do Estado se designássemos, como Sócrates fez nos primeiros livros da República, as várias ocupações necessárias para

fazê-lo funcionar. Da mesma forma, a análise do governo em suas vá-

rias espécies (monarquia, democracia, oligarquia, tirania etc.) ajuda a lançar alguma luz sobre o conceito.

Um uso retórico do tópico da divisão é apresentar a organização

da exposição ou argumento que se seguirá. Vemos um exemplo disso nos parágrafos iniciais do discurso de Francis Bacon sobre os ídolos da

mente: Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham

implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam.

132

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS São de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor apresentá-los, lhes assinamos nomes, a saber: Ídolos da Tribo; Ídolos da

Caverna; Ídolos do Foro e Ídolos do Teatro (Novum Organum, Francis Bacon, 1630 [tradução de José Aluysio Reis de Andrade]).

Bacon aborda cada um desses ídolos por vez, explica o que são

e mostra como inibem o pensamento claro. Para outro exemplo

desse tipo de divisão, consulte o parágrafo 6 da "Carta da cadeia de Birmingham" de Martin Luther King, em que o autor especifica as quatro etapas básicas de uma campanha não violenta. Os parágrafos subseqüentes da carta desenvolvem cada uma dessas etapas básicas sucessivamente. Além desse uso da divisão como princípio organizador, ela também

pode ser usada para estabelecer os fundamentos de um argumento. Vemos um exemplo desse uso no parágrafo 13 do ensaio de Matthew Arnold reproduzido entre as leituras no final deste capítulo: Parece-me que negar completamente os fatos ele não poderá. Dificilmente ele

poderá negar, quando enumerarmos os poderes necessários à edificação da vida humana, a saber, o poder da conduta, o poder do intelecto e do conhecimento, o poder da beleza e o poder da vida social e das boas maneiras, que

esse esquema, embora traçado em linhas grosseiras, sem pretender exatidão científica, apresenta uma representação bastante fiel da questão. A natureza

humana é construída por esses poderes; temos a necessidade de todos eles.

Quando tivermos atendido e ajustado corretamente as reivindicações de todos eles, estaremos, então, em condições de obter sobriedade e justiça com sabedoria. Isso é bastante evidente, e os amigos da ciência física o admitiriam

("Literatura e ciência", Matthew Arnold).

Em seguida, Arnold usa esta divisão em quatro "poderes" para argu-

mentar que a educação humana é superior a uma educação exclusivamente científica, porque a educação humana conduz ao desenvolvi-

mento de todos esses poderes no homem, enquanto a educação meramente científica não.

A divisão também pode ser usada para definir um argumento por

eliminação. Podemos estabelecer alternativas ("um indivíduo é um cidadão por nascimento ou por naturalização") e, então, ao provar (ou refutar) uma alternativa, refutamos (ou provamos) a outra. Ou podemos

133

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO enumerar uma série de possibilidades e eliminá-las uma por uma. Por

exemplo, um advogado de defesa pode argumentar assim: Uma pessoa nessas circunstâncias pode roubar por qualquer um dos seguintes motivos: (4)...; (B)...; (C)....; (D)... Estabelecemos que A e B não podem ter sido

os motivos de meu cliente. Além disso, nem mesmo a promotoria sugeriu neste

julgamento que c ou D poderiam ser os motivos de meus clientes. Uma vez que nenhum dos motivos possíveis é aplicável neste caso, está claro que meu cliente

é inocente da acusação de roubo.

Se o advogado de defesa teve o cuidado de considerar todos os possíveis motivos para o crime, o júri considerará esse argumento bastante

persuasivo. Mostramos que a divisão pode ser útil como princípio de organização

e como base para um argumento. Em conclusão, podemos dizer que, como a explicação às vezes requer a análise do todo em partes, a divisão pode ser útil tanto na escrita expositiva quanto no discurso argumentativo.

COMPARAÇÃO O segundo tópico comum que consideraremos é a comparação. Com o propósito de aprender, explicar ou debater, freqüentemente recorremos à estratégia de reunir duas ou mais coisas para estudá-las em busca de semelhanças, diferenças, superioridade ou inferioridade. Essa tendência de comparar as coisas é tão natural para as pessoas quanto a tendência de definir as coisas. As pessoas em seus estados mais primitivos devem ter se voltado desde cedo para a comparação, na tentativa de compreender o mundo desconcertante à sua volta e estabelecer uma escala de valores, descobrindo que o familiar muitas vezes as ajudava a entender o que não era familiar e aprendendo que, ao comparar uma coisa com a outra, é possível discriminar o "mais" do "menos". Nesta seção, investigaremos algumas maneiras de usar o tópico da comparação para descobrir o que dizer sobre um determinado assunto. SEMELHANÇA Um resultado possível da comparação de coisas é a detecção de semelhança entre duas ou mais coisas. A semelhança é o princípio básico por

134

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS trás de todo argumento indutivo e de toda analogia. Na indução, nota-

mos semelhança entre vários casos e fazemos uma inferência sobre um

outro caso não observado ou não confirmado. Na analogia, argumentamos que, se duas coisas são semelhantes em uma ou duas características, provavelmente são semelhantes em outra característica. A forma

retórica de indução, como vimos, é o exemplo: tirar uma conclusão

provável de um único exemplo de semelhança. Talvez a maneira mais

simples de diferenciar analogia de indução pelo exemplo seja dizer que, enquanto a analogia baseia-se nas semelhanças de coisas diferentes, o exemplo baseia-se nas semelhanças de coisas semelhantes.

Eis a forma mais simples e comum de argumento com base na semelhança: "Se o autocontrole é uma virtude, a abstinência também é". Aqui, observando a semelhança de tipo entre autocontrole e abstinência e observando que a virtude pode ser atribuída ao autocontrole, infere-se que a abstinência também deve ser uma virtude. A pessoa comum recorre a este tipo de argumento todos os dias: "O aluno que cola do

vizinho na prova e o aluno que permite ou incentiva o vizinho a colar dele são igualmente culpados. Ambas as ações são formas de trapaça". "Na última vez que tentamos proibir a venda de bebidas alcoólicas, tivemos todo tipo de abuso. Se a presente proposta de proibir a venda

de entorpecentes for aprovada, teremos o mesmo tipo de confusão legal

e moral". O estudante encontrará muitos argumentos de semelhança entre as leituras deste livro. Veremos somente um exemplo, o do parágrafo 25 da "Carta da cadeia de Birmingham", de Martin Luther King, em que o Dr. King responde à acusação de que as manifestações de seu grupo devem ser proibidas, porque tendem a incitar a violência: Em sua declaração, os senhores afirmam que nossas ações, embora pacíficas, devem ser condenadas porque provocam a violência. Mas seria essa uma afir-

mação lógica? Não significa condenar um homem que foi assaltado porque o fato de ter dinheiro provocou esse ato malévolo? Não é como condenar Sócrates porque suas investigações filosóficas e seu compromisso inflexível com a

verdade provocaram a ação da turba desencaminhada que o fez beber cicuta?

Não é como condenar Jesus porque sua consciência de um único Deus e sua permanente devoção à vontade dele provocaram o ato maligno de sua crucifi-

cação? Temos de perceber que, tal como têm sustentado consistentemente os

135

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO tribunais federais, é errado pressionar um indivíduo a interromper seus esforços para garantir seus direitos constitucionais básicos porque essa busca pode gerar violência. A sociedade deve proteger o assaltado e punir o assaltante.

Aqui, em uma série de perguntas retóricas, o Dr. King está argumentando com base na semelhança em situações comparáveis existentes na mesma ordem. Quando, no entanto, fazemos nossas comparações entre coisas semelhantes existentes em ordens diferentes (como, por exemplo, quando comparamos a estrutura de uma sociedade com a organização de uma colméia), estamos entrando no domínio de outra variedade de tópico de semelhança: a analogia.

Poderíamos ter tratado a analogia junto com alguns princípios básicos da lógica, mas a analogia, como a maioria dos argumentos retóricos, produz apenas provas prováveis. Portanto, apresentaremos aqui alguns princípios que a regem. A analogia gira em torno do princípio de que duas coisas que se assemelham em vários aspectos se assemelham em um aspecto adicional inverificável. Esse princípio pode ser represen-

tado graficamente por este esquema:

A 1 2 3 4 → 5 B I 2 34 → (5) Duas coisas, A e B, assemelham-se em quatro aspectos conhecidos e

verificáveis. A partir desses pontos de semelhança, argumentamos que B assemelha-se a A em um quinto aspecto (5, conhecido e verificável no

caso de A, mas não no caso de B). Como no argumento indutivo, há um salto do conhecido para o desconhecido. E por causa desse salto indutivo que a analogia tem mais probabilidade do que certeza.

Vejamos um exemplo de argumento por analogia: Só existe uma cura para os males que a liberdade recém-adquirida produz, e essa cura é a liberdade. Quando um prisioneiro sai pela primeira vez de sua cela, ele não consegue suportar a luz do dia: ele é incapaz de discriminar cores

ou reconhecer rostos. O remédio, todavia, não é mandá-lo de volta ao calabou-

ço, mas acostumá-lo aos raios do sol. O resplendor da verdade e da liberdade

pode, a princípio, deslumbrar e confundir as nações que se tornaram meio cegas na casa da servidão. Mas permita que elas olhem e logo elas serão capazes

de suportar. Em poucos anos, os homens aprendem a raciocinar. A extrema

136

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS violência de opinião diminui. Teorias hostis corrigem-se mutuamente. Os elementos dispersos da verdade param de repelir-se e começam a aglutinar-se. E, finalmente, um sistema de justiça e ordem é formado a partir do caos (Essay on

Milton, Thomas Babington Macaulay, 1825).

Macaulay expõe sua tese na primeira frase desta passagem: ele afirma que a cura para os males que acompanham a emancipação recém-conquistada é a liberdade. Observando as semelhanças entre a condição de uma nação que conquistou sua independência e a de um homem que acaba de ser libertado da prisão, ele elabora essa semelhança para fortalecer seu argumento. Como já observamos, uma analogia realmente não prova nada, mas pode ter valor persuasivo. Às vezes, a natureza de uma audiência determinará quão eficaz será um argumento por analogia. Na maioria dos casos, no entanto, a capacidade de persuasão da analogia dependerá, em grande parte, da adesão a estes dois princípios: 1. As semelhanças entre duas coisas devem dizer respeito aos aspectos pertinentes e significativos das duas coisas. 2. A analogia não deve ignorar as diferenças pertinentes entre as duas coisas que estão sendo comparadas.

Por exemplo, um antropólogo pode tentar provar que certa ilha do Pacífico já foi habitada, comparando-a com outra ilha do Pacífico que se sabe ter sido habitada. Ele pode observar que ambas as ilhas tinham

palmeiras, praias arenosas, lagoas tranquilas, clima ameno e abrigo contra ventos fortes. No entanto, ao ignorar o fato de que a ilha questionável tinha uma precipitação pluviométrica anual muito baixa e que

a ilha estava muito longe de qualquer continente ou outra ilha para tornar provável que as pessoas pudessem ter chegado a ela de barco a

vela ou canoa, o antropólogo estaria ignorando fatores que são importantes para o problema em questão: Será que alguém poderia chegar

a essa ilha e, se chegasse, sobreviveria? Na maioria das vezes, quando dizemos "sua analogia não se sustenta", estamos expondo uma analogia que evitou a consideração de diferenças importantes. Por exemplo, no exemplo citado acima, Macaulay apontou uma série de semelhanças entre a situação de um prisioneiro libertado e a situação de uma nação

137

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO emancipada. Mas não existem algumas diferenças relevantes entre as duas situações? Não existe uma diferença significativa entre uma nação

de pessoas e uma única pessoa, uma diferença que poderia justificar uma diferença de tratamento? A analogia é frequentemente usada também para fins de exposição.

Comparando algo desconhecido ou confuso com algo familiar, simplificamos a explicação. Eis um exemplo desse uso em um ensaio do Dr. J. Robert Oppenheimer, no qual ele usa a analogia de uma árvore para

mostrar como o conhecimento tende a ramificar-se: Como acontece? Ao estudar as diferentes partes da natureza, o indivíduo ex-

plora com diferentes instrumentos, explora diferentes objetos e obtém uma

ramificação do que outrora era algo comum: o bom senso. Cada marca desenvolve novos instrumentos, idéias, palavras adequadas para descrever aque-

la parte do mundo da natureza. Essa estrutura em forma de árvore, todas

crescendo a partir do tronco comum da experiência primordial comum do

homem, tem ramos não mais associados à mesma questão, nem às mesmas palavras e técnicas. A unidade da ciência, para além do fato de tudo ter uma

origem comum na vida cotidiana do homem, não é uma unidade com base em derivar uma parte da outra, nem encontrar uma identidade entre uma parte e outra, entre, digamos, genética e topologia, para citar dois exemplos impossíveis, onde de fato existe alguma conexão ("On Science and Culture", J. Robert Oppenheimer).

No parágrafo 19 da "Carta a um nobre senhor", de Edmund Burke, reproduzida entre as leituras neste capítulo, vemos outro uso da analo-

gia. Ao comparar sua situação atual com a de um carvalho caído, Burke tenta despertar as emoções de seu público: Mas um Senhor, a cujo poder somos pouco capazes de resistir e cuja sabedoria

não cabe a nós contestar, ordenou de outra maneira e (por mais que me queixe

por fraqueza) muito melhor. A tempestade passou sobre mim; e sou como um

daqueles velhos carvalhos, que o último furacão destroçou. Estou despojado de todas as minhas honras, dilacerado pelas raízes, prostrado por terra! Ali, derrubado ali, reconheço, sem fingimento, a justiça divina e, em certo grau, submeto-me a ela.

138

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS DIFERENÇA Outro resultado possível da comparação de duas ou mais coisas é a de-

tecção de diferenças. Em algum momento da vida acadêmicas, os estudantes devem ter sido solicitados a responder a uma questão dissertativa

que começa com a fórmula: "Compare e diferencie...". A parte "compare dessa fórmula pede aos alunos que apresentem as semelhanças entre as coisas; a parte "diferencie" pede que eles observem as diferenças.

No século xvIII, aqueles críticos que foram influenciados pela psicolo-

gia do conhecimento de John Locke costumavam definir sagacidade, a faculdade imaginativa, como a capacidade de ver semelhanças entre as

coisas, e definir julgamento, a faculdade racional, como a capacidade de ver diferenças entre as coisas. Em outras palavras, a sagacidade era a faculdade sintética, e o julgamento, a faculdade analítica. Seria bom desenvolver julgamento e sagacidade. Os retóricos utilizaram o tópico da diferença para reunir argumentos de confirmação ou refutação. O ensaio de Edmund Burke no final deste capítulo, "Carta a um nobre senhor", é um bom ensaio para o estudante conhecer o tópico da diferença. Nessa apologia, Burke baseia a maior parte de sua defesa na diferença. Ele passa muito tempo, por exemplo, comparando a pensão que recebeu do governo com a que a família do Duque de Bedford recebeu muitos anos atrás. Eis apenas um exemplo, do parágrafo 3 do ensaio, do argumento de Burke com base na diferença: Realmente não consigo traçar qualquer tipo de paralelo entre os méritos públicos de Vossa Graça, pelos quais ele justifica as concessões que possui, e esses meus serviços, em cuja construção favorável obtive o que Vossa Graça tanto

desaprova. Na vida privada, não tenho a honra de conhecer o nobre duque, mas devo presumir, e não me custa nada fazê-lo, que ele merece toda a estima

e o amor daqueles que convivem com ele. Quanto ao serviço público, porém, não seria mais ridículo comparar-me em termos de posição, fortuna, esplêndi-

da decência, juventude, força ou presença com o Duque de Bedford do que fazer um paralelo entre seus serviços e minhas tentativas de ser útil ao meu país.

Não seria adulação grosseira, mas ironia rude, dizer que ele tem algum mérito

público para manter viva a idéia dos serviços pelos quais suas vastas pensões

fundiárias foram obtidas. Meus méritos, quaisquer que sejam, são originais e

139

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO pessoais; os dele são derivados. Foi um ancestral dele, o pensionista original, que acumulou seu fundo inesgotável de mérito, o que torna Vossa Graça tão delicada e ressentida em relação ao mérito de todos os outros donatários da Coroa. Se ele tivesse me permitido ficar em silêncio, eu deveria ter dito: esta é sua propriedade. É sua por lei. O que tenho a ver com isso ou com sua história? Ele teria naturalmente dito do seu lado: esta é a fortuna desse homem. Ele é tão bom agora quanto meu ancestral foi há duzentos e cinquenta anos.

Sou um homem novo com pensões muito antigas; ele é um homem velho com pensões muito novas. Isso é tudo.

Você pode estudar o tópico da diferença conforme ocorre nas leituras

reproduzidas no final deste capítulo. No parágrafo Is de O Federalista

n° 10, por exemplo, James Madison, após definir os termos "democracia pura" e "república", contrasta a eficiência dessas duas formas de

governo. Matthew Arnold faz uso freqüente do tópico da diferença em seu ensaio "Literatura e ciência"; no parágrafo 11, para apresentar ape-

nas um exemplo, Arnold marca as diferenças entre as ciências físicas ("conhecimento das coisas") e as ciências humanas ("conhecimento das

palavras"). No parágrafo 16 da "Carta da cadeia de Birmingham", o Dr. King aponta as diferenças cruciais entre uma lei justa e uma lei

injusta. Um estudo desses e de outros exemplos deverá convencê-lo de como o tópico da diferença é comum no discurso e de como esse tópico pode ser útil para fins de exposição ou persuasão.

GRAU Mais e menos, o tópico ao qual atribuímos o rótulo "grau", foi um dos quatro tópicos comuns que Aristóteles discutiu na Retórica. Aristóteles

percebeu que, ao comparar as coisas, às vezes descobrimos, não uma diferença de tipo, como no tópico anterior, mas uma diferença de grau. Uma coisa será melhor do que outra, ou será pior. A relevância desse fato para a retórica é que às vezes, quando buscamos persuadir outros a fazer algo ou a aceitar algo, temos que mostrar ao nosso público que a

escolha diante deles não é entre um bem e um mal, mas entre um bem maior e um bem menor (ou entre um mal maior e um mal menor). Questões de grau não são fáceis de resolver, principalmente porque os julgamentos sobre tal diferença costumam ser relativos e subjetivos.

140

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Com o intuito de ajudar os oradores a encontrar argumentos para deci-

dir questões de grau, Aristóteles forneceu um conjunto de critérios no livro I, capítulo 7 da Retórica. Eis alguns de seus critérios: 1. Um número maior de coisas pode ser considerado mais desejável do que um número menor das mesmas coisas.

A decisão de questões de grau por superioridade numérica deve ser tratada com alguns cuidados. A superioridade numérica, em primeiro lugar, deve ser considerada em relação a coisas da mesma espécie. Dez notas de um dólar são obviamente um bem maior do que cinco notas de um dólar; mas dez notas de um dólar não são um bem maior do que cinco notas de dez dólares. Então, a superioridade numérica torna-se um determinante de grau útil apenas quando todas as outras condições

são iguais. Um legislador parlamentar pode argumentar que um projeto de lei tributária que trará quatro bilhões de dólares de receita é uma

proposta melhor do que a lei tributária que trará apenas três bilhões de

dólares. Mas o argumento do legislador persuadirá seus colegas apenas

se várias outras considerações forem iguais: se os dois projetos forem igualmente justos; se ambos os projetos forem igualmente viáveis; se ambos os projetos puderem ser administrados a um custo relativamente próximo. A superioridade numérica também é influenciada pela qua-

lidade das coisas envolvidas. Pode-se argumentar, por exemplo, que o técnico de futebol que convocou vinte jogadores fez um trabalho meThor do que o técnico que convocou apenas quinze jogadores, mas o técnico que convocou apenas quinze jogadores pode ter convocado um número maior de jogadores bons ou dois ou três jogadores que valem mais para uma equipe do que todos os vinte jogadores convocados pelo

outro técnico.

2. Aquilo que é um fim é um bem maior do que aquilo que é só um

meio. O princípio subjacente a este critério é que um meio é desejável so-

mente por causa de outra coisa, mas um fim é algo desejável em si mesmo. A saúde, por exemplo, é um bem maior do que o exercício, por-

que fazemos exercício para adquirir ou manter a saúde. O exercício é

141

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO um meio para um bem fora de si, mas, em relação ao exercício, a saúde é um fim, algo desejável por si só.

3. O que é escasso é maior do que o que é abundante.

Este princípio é a base da maioria dos sistemas monetários. As moedas de prata são mais valiosas do que as de cobre porque a prata é um

metal mais raro que o cobre; o ouro é mais valioso do que a prata pelo

mesmo motivo. Devemos estar cientes, entretanto, que em algumas circunstâncias o princípio oposto pode ser usado como um critério de

valor superior. Poderíamos argumentar que o que é abundante é um bem maior do que o que é escasso, porque o que é abundante é mais

útil. Assim, embora a água seja mais abundante do que o ouro, em algumas circunstâncias a água seria considerada o bem maior, porque

é mais útil. 4. O que uma pessoa de sabedoria prática escolheria é um bem maior do que o que uma pessoa ignorante escolheria. Os muitos argumentos de Platão sobre a "unidade" e a "multiplicidade" são exemplos da aplicação deste critério. O que está envolvido aqui é a força de autoridade. Na prática, todos nós confiamos nos jul-

gamentos de especialistas. Quando os julgamentos sobre valores entram em conflito, a probabilidade é que o julgamento do especialista

seja mais confiável do que o julgamento do amador. No quinto tópico

comum, discutiremos mais detalhadamente o papel que o testemunho ou a opinião profissional desempenha na exposição e na argumentação.

5. O que a maioria das pessoas escolheria é melhor do que o que a minoria escolheria.

Esse critério, o oposto do anterior, se parece muito com o método de recenseamento para determinar o valor. "Se você quiser descobrir quais

são os romances atuais mais interessantes, consulte as listas de best-sellers". "O melhor candidato é aquele que o povo elege". Este critério terá um valor persuasivo com pessoas que concebem o bem no sentido aristotélico daquilo que é desejável por si mesmo. Desejabilidade é uma

142

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

coisa bem diferente de valor. Todos nós sabemos que o que todas as pessoas ou a maioria das pessoas desejam nem sempre é um bem no sentido moral ou estético. Mas se, em qualquer discussão, as pessoas estão pensando no bem em termos do que é desejável, então a preferência da maioria será persuasiva.

Os anunciantes usam muito esse critério. "Mais pessoas bebem Pepsi do que qualquer outro refrigerante de cola". Às vezes, é claro, o que todas as pessoas ou a maioria das pessoas escolhem é, de fato, o bem mais valioso. Há uma certa evidência presuntiva de que o produto que a maioria das pessoas compra é o melhor produto. Evidentemente, outros fatores influenciam a popularidade de um produto (o preço, o prestígio, a publicidade), mas se houver alguma validade para a máxima "não se pode enganar todo mundo o tempo todo", estamos inclinados a acreditar que é a qualidade do produto que mantém o nível alto das vendas. 6. O que as pessoas realmente gostariam de possuir é um bem maior do que aquilo que as pessoas simplesmente gostariam de mostrar que possuem. Em O príncipe, Maquiavel disse que a reputação de virtuoso era tão

importante para a imagem que um governante precisa criar que, se ele

não fosse realmente um homem virtuoso, deveria pelo menos dar a aparência de ser um homem virtuoso. Com base neste sexto critério, a

visão de Maquiavel sugere que o poder é um bem maior do que a virtude, porque poder é o que o governante realmente deseja e para obtê-lo ele está pronto para vestir uma máscara de virtude. Aristóteles usa um exemplo semelhante: pode-se argumentar que a saúde é um bem maior do que a justiça, porque enquanto as pessoas podem se contentar com a mera reputação de serem justas, elas preferem ser saudáveis a apenas parecer saudáveis. 7. Se uma coisa não existe onde é mais provável que exista, não existirá onde é menos provável.

Esta é uma linha de argumentação à qual os lógicos comumente atribuem o rótulo latino a fortiori ratione ("por uma razão mais forte"). John Donne, no soneto que deprecia o poder e o terror da morte, usou

143

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO um argumento a fortiori para desenvolver sua tese. Eis as primeiras seis

linhas desse soneto: Morte, não te orgulhes, embora alguns te provem Poderosa, temível, pois não és assim.

Pobre morte: não poderás matar-me a mim, E os que presumes que derrubaste, não morrem. Se tuas imagens, sono e repouso, nos podem

Dar prazer, quem sabe mais nos darás? Enfim [...].

Uma paráfrase da sintaxe elíptica nas linhas 5 e 6 esclarecerá o argumento a fortiori implícito nessas linhas. Na linha 5, Donne diz que o sono e o repouso são como a morte, são "imitações" da morte. Todos nós sabemos que obtemos muito prazer com o sono e o repouso; portanto, devemos derivar ainda mais prazer daquilo que eles imitam, a morte. Se tanto prazer da coisa menor, quanto mais prazer da coisa maior. Portanto, a morte não pode ser tão terrível quanto fomos levados

a crer. Um argumento a fortiori pode funcionar em dois sentidos: (1) do maior para o menor, ou (2) do menor para o maior. Donne começa com uma consideração do menor e então faz uma inferência sobre o maior. Um argumento a fortiori que funciona no outro sentido teria uma forma como esta: "Se um homem roubasse de um amigo, ele roubaria de um estranho".

Um argumento a fortiori estabelece duas possibilidades, uma das quais será mais provável do que a outra. Tudo o que pode ser afirmado sobre o menos provável pode ser afirmado com ainda maior força sobre o mais provável. Como a maioria dos argumentos retóricos, um argumento a fortiori não leva à certeza, mas a uma probabilidade mais ou menos forte.

Uma série de argumentos do tópico dos graus são apontados nas análises de ensaios inteiros neste e no capítulo seguinte. Eis dois exemplos para argumentos de grau em leituras que não foram analisadas: Quase cheguei à lamentável conclusão de que o grande obstáculo que o ne-

gro enfrenta em seu caminho para a liberdade não é o membro do Conselho

dos Cidadãos Brancos ou da Ku Klux Klan, mas o branco moderado, mais

144

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS devotado à "ordem" do que à justiça; que prefere uma paz negativa, que é a ausência de tensão, a uma paz positiva, que consiste na presença da justiça;

que constantemente afirma: "Concordo com você em relação ao seu objetivo, mas não posso concordar com seus métodos de ação direta"; que acredita paternalisticamente ser capaz de estabelecer a agenda para a liberdade de outro homem; que vive segundo um conceito mítico de tempo e que constantemente aconselha o negro a esperar por um "momento mais conveniente". A compreensão superficial das pessoas de boa vontade é mais frustrante do que

a incompreensão absoluta daquelas de má vontade. A aceitação indiferente é mais desconcertante do que a rejeição direita (do parágrafo 23 da "Carta da

cadeia de Birmingham", de Martin Luther King). Se, então, deve haver divisão e escolha entre as letras humanas, de um lado,

e as ciências naturais, do outro, a grande maioria da humanidade, todos os que não têm aptidões excepcionais para o estudo da natureza, faria bem, não posso deixar de pensar, em escolher as letras humanas em vez das ciências naturais. As letras desenvolverão seu ser em mais pontos, fazendo-os viver mais (do parágrafo final de "Literatura e ciência", Matthew Arnold).

RELAÇÃO CAUSA E EFEITO

O primeiro subtópico que consideraremos sob o título geral de relação é causa e efeito. Assim como as pessoas sempre demonstraram um desejo de conhecer a natureza das coisas e uma curiosidade pelas semelhanças e diferenças, também sempre sentiram o desejo de descobrir • "porquê" de algo. Uma criança apresenta os primeiros lampejos de racionalidade quando passa do estágio de perguntar "o que" sobre o mundo ao seu redor para o estágio de perguntar "por quê". "O que é isso, papai?". "Isso é chuva, querida. É a água que cai dessas nuvens escuras". "Por quê, papai?". Tendo notado um efeito, a criança começa a fazer perguntas sobre a causa.

As pessoas aceitam como axiomático o princípio de que todo efeito deve ter uma causa. Muitos dos argumentos para a existência de Deus,

por exemplo, foram baseados neste princípio. Tendo observado o uni-

verso em sua maravilhosa imensidão, harmonia e complexidade, as

145

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO pessoas postularam que este mundo teve seu início em Deus, o Motor Imóvel, a Causa Primeira. As relações de causa e efeito constituem uma das fontes mais frutífe-

ras de argumentos, mas antes de explorarmos os usos retóricos de causa

e efeito, devemos revisar alguns princípios que governam esse tipo de raciocínio.

Primeiro, devemos reconhecer que um efeito pode ter várias causas possíveis. No caso de uma janela quebrada, por exemplo, sabemos que várias coisas podem ser responsáveis por isso: uma pedra jogada, o

vento, tremores na terra, o estrondo sônico de um avião a jato. Embora todas essas sejam possíveis causas, apenas uma será a causa dessa janela

quebrada. A tarefa é determinar qual causa. A maioria das histórias de detetive começa com um assassinato. O detetive deve identificar, de todas as causas possíveis ou prováveis, a causa desse assassinato em

particular; ele deve descobrir o assassino. Em segundo lugar, a causa que atribuímos a um efeito deve ser capaz

de produzir o efeito. Em outras palavras, deve ser uma causa adequada.

Se um detetive descobrir que um homem muito forte foi estrangulado até a morte, ele imediatamente descarta como suspeitos a tia idosa, o

sobrinho de doze anos e a camareira de cinquenta quilos. Todas essas pessoas são capazes de matar alguém, até mesmo por estrangulação, mas não conseguiriam estrangular aquele sujeito robusto estendido no tapete da biblioteca. Agora, o praticante de jiu-jitsu que estava cortejando a filha da vítima...

Terceiro, uma vez que temos uma causa provável e adequada para algo, devemos considerar se existem outras causas adequadas para o efeito. Sim, havia aquele praticante de jiu-jitsu, mas também aquele mordomo alto e desengonçado e aquele jardineiro magro e irascível. Eles também poderiam ter estrangulado o homem. Quarto, devemos considerar se havia condições ou circunstâncias para a causa em questão. Em um experimento controlado, como aqueles que um químico conduz no laboratório, condições como tempo, temperatura, umidade, proporções podem ser estabilizadas ou variadas para testar se a causa hipotética é a causa real. No caso de seres humanos atuando como causas eficientes, condições como oportunidade e motivação devem ser consideradas.

146

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Por último, devemos também considerar se a causa hipotética sempre produz um efeito e se ela invariavelmente produz o mesmo efeito.

Em suma, devemos estabelecer não só que uma causa putativa poderia

produzir um determinado efeito, mas também que produz o efeito. Um dos erros mais comuns no raciocínio de causa e efeito é a falácia geralmente referida como post hoc, ergo propter hoc ("depois disso, logo, por causa disso"). É o erro de supor que, onde existe uma relação de tempo entre dois eventos, também existe uma relação de causa e efeito. Uma série de superstições são construídas sobre essa falácia. John Smith foi atropelado por um carro no cruzamento daquela rua com a rua principal porque, cinco minutos antes, ele havia passado por baixo de uma escada. E compreensível, claro, que as pessoas costumem supor que, quando um evento segue cronologicamente outro evento, o evento posterior foi causado pelo evento anterior. Mas devemos provar a relação de causa e efeito; não podemos simplesmente presumi-la. Tente provar que o fato de John Smith ter passado por baixo de uma escada resultou em ser atropelado por um carro. A julgar por isso, a ação não parece ser uma causa adequada para o efeito. Sua caminhada sob a escada pode indicar descuido geral, e esse descuido, sim, pode explicar por que ele foi atropelado enquanto passava por um cruzamento movimentado, mas não há uma relação direta entre os dois eventos.

Os princípios que revisamos em conexão com relações de causa e efeito são os princípios normalmente discutidos em uma aula de lógica.

No entanto, um retórico consciencioso deve estar ciente desses princí-

pios também e deve observá-los em sua apresentação de argumentos, sendo especialmente cuidadoso na observância desses princípios ao dirigir-se a um público sofisticado, que não aceita um raciocínio causal

barato. No discurso persuasivo, os argumentos baseados em relações causais funcionam em dois sentidos. Podemos argumentar de um efeito de volta a uma causa ou podemos começar com uma causa e argumentar que ela produzirá um determinado efeito (ou efeitos). Vemos um exemplo de um argumento da causa para o efeito em Modesta proposta, de Jonathan Swift. Depois de fazer sua "modesta proposta" de que os pobres da Irlanda deveriam vender seus bebês de um ano como comida para os ricos, ele ressalta que a implementação de sua proposta teria os seguintes efeitos:

147

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Fiz uma digressão demasiado longa e vou, portanto, retornar a meu assunto. Penso que as vantagens da proposta que venho apresentando são evidentes e numerosas, assim como da mais alta importância. Primeiramente, como já observei, ela diminuiria bastante o número de papistas que anualmente nos invadem, já que eles são os principais reprodutores

da nação, assim como o de nossos inimigos mais perigosos, e permanecem no

país com o propósito, com a intenção, de entregar o Reino ao Pretendente, esperando beneficiar-se da ausência de tantos bons protestantes que preferiram deixar seu país a ficar em casa e pagar, contra a sua consciência, o dízimo a um

idólatra vigário episcopal. Em segundo lugar, os arrendatários mais pobres terão algo de valor que lhes pertença, que serviria legalmente de garantia em caso de necessidade e ajudaria a pagar a renda a seu senhor, pois seu trigo e seu rebanho já foram

apreendidos, e o dinheiro é uma coisa que desconhecem.

Em terceiro lugar, como a manutenção de cem mil crianças com mais de dois anos não pode ser calculada em menos de dez xelins por cabeça ao ano, serão com isso acrescidas cinqüenta mil libras por ano, ao Tesouro Nacional,

além do lucro de um novo prato, introduzido nas mesas de todos os cava-

lheiros de fortuna do Reino cujo paladar tenha um mínimo de requinte, e o dinheiro circulará entre nós mesmos, já que os produtos são inteiramente

desenvolvidos e manufaturados por nós [tradução de Dorothée de Bruchard,

São Paulo: Editora UNESP, 2002].

Swift prossegue citando um quarto, quinto e sexto efeito de sua proposta, mas este trecho é suficiente para ilustrar nosso ponto. Como sabe qualquer estudante que leu este famoso ensaio irônico, Swift não

estava oferecendo seriamente uma proposta que ele esperava que o governo adotasse. Ele estava usando a terminologia e o tipo de argumento

que um mercantilista obstinado do século xviI poderia ter usado na tentativa de persuadir os outros de que "as pessoas representam as ri-

quezas de uma nação". Se for bastante evidente, como neste caso, que a causa produzirá os efeitos propostos e se os efeitos propostos parecerem desejáveis ao público, a mera descrição dos efeitos será persuasiva.

Se, por outro lado, não for evidente que os efeitos propostos re-

sultarão de uma causa particular, então o indivíduo deve provar suas afirmações. Antes que o Dr. Jonas Salk, por exemplo, ganhasse a apro-

vação do Departamento de Saúde, Educação e Bem-estar dos Estados

148

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Unidos para colocar sua vacina no mercado, ele tinha que apresentar

ampla evidência de que, como ele afirmou, ela preveniria a poliomielite. Com algo tão crucial como uma vacina, seria necessário apresentar provas suficientes para criar certeza sobre seus efeitos. Em muitos assuntos públicos, entretanto, como uma proposta de que uma redução nas taxas de ocupação atrairia dezenas de novas indústrias para uma comunidade, basta o legislador produzir um alto grau de probabilidade para conseguir persuadir seus colegas. A outra maneira de argumentar causalmente é do efeito de volta à causa. James Madison argumenta do efeito para a causa no parágrafo 7 de O Federalista n° 10: Mas a mais comum e duradoura fonte de facções tem sido a diversa e desi-

gual distribuição de propriedade. Os que têm e os que não têm propriedade constituíram sempre interesses distintos na sociedade. Os que são credores

e os que são devedores enquadram-se numa discriminação semelhante. Um interesse terratenente, um interesse manufatureiro, um interesse mercantil, um interesse financeiro, com muitos interesses menores, desenvolvem-se todos necessariamente nas nações civilizadas, e dividem-nas em diferentes classes, movidas por diferentes sentimentos e pontos de vista. A regulamentação destes interesses, vários e em interferência, constitui a tarefa principal da Legislação

moderna, e envolve o espírito de partido e de facção nas necessárias e ordiná-

rias operações do governo.

Mais uma vez, vale observar que, nos assuntos humanos, nem sempre é necessário demonstrar, com a mesma certeza rigorosa que esperamos na lógica ou na ciência, que um determinado efeito foi produzido por uma determinada causa e nenhuma outra. Muitas vezes é suficiente que produzamos um alto grau de probabilidade. ANTECEDENTE E CONSEQÜENTE

Intimamente relacionado ao tópico de causa e efeito está o tópico de antecedente e conseqüente. Na verdade, o último pode ser considerado apenas uma forma mais livre dos argumentos de causa e efeito praticados na lógica. A etimologia do termo conseqüente (o verbo latino sequi,

"seguir") é a chave para compreender a maneira como a retórica utili-

149

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO zou esse tópico. O persuasor segue esta linha de argumentação: Dada essa situação (o antecedente), o que se segue (a conseqüente) disso? Se

ele puder detectar uma relação de causa e efeito entre o antecedente e o conseqüente, ele se valerá dessa relação para fortalecer sua idéia. Mas

ele também fará uso de tipos menos convincentes de consequentes (coisas que se seguem). Por exemplo, ele pode argumentar que, uma vez que Jane Smith não era a esposa legal de John Smith na época de sua morte, segue-se que ela não tem direito aos bens dele. Aqui não há relação de causa e efeito, mas algum julgamento decorre da situação existente. Costumamos usar esse tipo de argumento de antecedente-consequente em nossos assuntos cotidianos. "Se as mulheres são admitidas na universidade como estudantes em tempo integral, elas devem ter os mesmos direitos e privilégios que os estudantes do sexo masculino". "Se

esses alunos violaram os regulamentos da universidade sobre beber em reuniões patrocinadas pela escola, eles devem ser suspensos". "Se esta mulher é uma cidada deste Estado, ela tem o direito de votar". Às vezes,

o conseqüente resulta da definição do termo antecedente. Por exemplo: "Se esta figura é um quadrado, tem quatro ângulos retos", ou: "Se esta

criatura é um homem, trata-se de um animal racional".

Os estudantes devem notar que geralmente há uma premissa implí-

cita sempre que um argumento assume esta forma. Quando dizemos: "Se as mulheres são admitidas na universidade como estudantes em tempo integral, elas devem ter os mesmos direitos e privilégios que os estudantes do sexo masculino", sugerimos que todos os estudantes em tempo integral têm os mesmos direitos e privilégios. De um modo geral, essa premissa não expressa, essa suposição, é justamente o ponto vulnerável de uma discussão. Portanto, quando se está procurando uma abertura para refutar tal argumento, seria bom buscar a suposição. Você deve se lembrar que em uma seção anterior deste capítulo, onde

alguns dos princípios básicos da lógica foram revisados, a proposição de

antecedente-conseqüente serviu como a premissa maior do silogismo

hipotético. ("Se este indivíduo for um cidadão deste Estado, ele tem o direito de votar". "Este indivíduo é um cidadão deste Estado. Logo, ele tem o direito de votar"). Você deve revisar as regras que governam a validade de tal raciocínio dedutivo para ser guiado na formulação de seus próprios argumentos de antecedente-consequente e na detecção de

falácias nos argumentos dos outros.

150

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Eis alguns exemplos de argumentos de antecedente-consequente das leituras apresentadas neste livro: Não podemos saber todos os melhores pensamentos e dizeres dos gregos, a me-

nos que conheçamos o que pensaram a respeito dos fenômenos naturais. Não

podemos apreender sua crítica da vida, a menos que entendamos a extensão em

que aquela análise crítica foi afetada por concepções científicas. Usurpamos a condição de herdeiros de sua cultura, a menos que sejamos tomados, como foram os melhores intelectos entre eles, por uma inabalável fé em que o livre

emprego da razão, coerente com o método científico, é o único método para a consecução da verdade (do parágrafo 30 de "Ciência e cultura", de Thomas Henry Huxley [tradução de Jézio Gutierre, São Paulo: Editora UNESP, 2009]).

Quem reconhece esse impulso vital que engolfou a comunidade negra deve entender prontamente por que essas manifestações públicas estão acontecendo. O negro tem muitos ressentimentos contidos e frustrações latentes, e precisa dar vazão a eles. Assim, deixem que ele faça passeatas; deixem que realize

peregrinações de oração à sede da prefeitura; deixem que faça as viagens da liberdade — e tentem compreender por que ele precisa fazer tudo isso. Se essas

emoções reprimidas não tiverem vazão por vias não violentas, vão manifestar-se por meio da violência; não é uma ameaça, mas um fato histórico. Por isso

eu não disse ao meu povo: "Livrem-se de sua insatisfação." Em vez disso, tentei dizer que essa insatisfação normal e saudável pode ser canalizada para o escoa-

douro criativo da ação direta não-violenta. E agora essa abordagem está sendo

chamada de extremista (do parágrafo 30 de "Carta da cadeia de Birmingham",

de Martin Luther King).

CONTRÁRIOS

À primeira vista, o tópico dos contrários pode parecer muito o tópico

da diferença, mas há uma distinção sutil entre os dois. A diferença envolve coisas distintas ou não semelhantes, coisas que diferem em tipo; os contrários, por outro lado, envolvem coisas opostas ou incompatíveis, do mesmo tipo. As diferenças tornam-se aparentes quando comparamos as coisas: os contrários tornam-se aparentes quando relacionamos as coisas. Liberdade e licença seriam um exemplo de diferença; liberdade e escravidão seriam um exemplo de contrários.

151

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Antes de discutir os usos retóricos do tópico dos contrários, conside-

raremos brevemente alguns dos princípios lógicos que regem os contrá-

rios. Termos contrários são termos opostos entre si na mesma ordem ou gênero. Frio e alto são termos diferentes, mas não são termos contrários,

porque o frio diz respeito à ordem da temperatura, e alto, à ordem do som. Frio e quente, alto e baixo seriam termos contrários. Portanto, se uma pessoa dissesse: "Este livro é ruim" e a outra pessoa dissesse: "Este

livro é bom", diríamos que as proposições são opostas como contrárias.

Estas são as coisas que sabemos sobre proposições contrárias a

priori, isto é, antes do exame ou análise: (1) Se uma das proposições é verdadeira, a outra é falsa; em outras palavras, proposições contrárias são incompatíveis; (2) Se uma das proposições é falsa, a outra não é necessariamente verdadeira; em outras palavras, ambas as proposições podem ser falsas. (Ver o "quadrado de oposições" na seção sobre lógica). Portanto, em uma discussão com proposições contrárias sobre o mesmo assunto, pode-se desacreditar a afirmação do outro provando

que a própria afirmação é verdadeira; nesse caso, não é necessário provar que a outra afirmação é falsa (se eu provar que o livro é vermelho, não preciso provar que o livro não é verde). Por outro lado, se alguém prova que a proposição do opositor é falsa, a própria proposição não é automaticamente verdadeira; deve-se provar que a própria proposição é

verdadeira. (Se eu provar que o livro não é verde, não posso presumir que o livro é vermelho; afinal, o livro pode ser azul).

Na retórica, discussões envolvendo proposições contrárias ou opos-

tas às vezes assumem uma forma na qual os termos do sujeito e os termos do predicado são ambos contrários. No livro 11, capítulo 23, da Retórica, Aristóteles dá um exemplo de argumento baseado no tópico dos contrários: "O autocontrole é benéfico porque a licenciosidade é prejudicial". Aqui, os termos sujeito autocontrole e licenciosidade são contrários; e os termos predicados benéfico e prejudicial também são contrários. Estabelecemos a verdade da primeira proposição ("o autocontrole é benéfico"), mostrando que o oposto de benéfico (ou seja, prejudicial) pode ser predicado do oposto de autocontrole (ou seja, licencio-

sidade). Se tivéssemos que argumentar: "Se a guerra é a causa de nossa miséria, a paz é o caminho para promover nossa felicidade", estaríamos

apresentando o mesmo tipo de argumento, pois na verdade estaríamos dizendo: "A paz deve ser um bem porque a guerra é um mal".

152

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

No trecho a seguir, Henry David Thoreau argumenta com base em contrários: diligência (esforço) versus preguiça (lentidão), pureza (casti-

dade) versus impureza (sensualidade) e sabedoria versus ignorância, alegando que, enquanto a preguiça torna o homem ignorante e impuro, a diligência o tornará sábio e puro: A sensualidade é uma só, mesmo que assuma muitas formas; a pureza é uma só. Tanto faz se um homem come, bebe, coabita ou dorme sensualmente. São o mesmo apetite, e basta ver uma pessoa fazer qualquer uma dessas coisas para saber até onde vai sua sensualidade. Os impuros não conseguem car de pé nem sentados com pureza. Quando o réptil é atacado num buraco de sua toca, ele reaparece em outro. Se vocês querem ser castos, precisam ter temperança.

O que é a castidade? Como um homem sabe se é casto? Não sabe. Ouvimos falar desta virtude, mas não sabemos o que é. Falamos conforme os rumores

que ouvimos. Do empenho vêm a sabedoria e a pureza; da preguiça, a ignorância e a sensualidade. No estudioso, a sensualidade é um hábito preguiçoso da mente. Uma pessoa impura é universalmente preguiçosa, que se senta junto à estufa, deita-se ao calor do sol, repousa sem estar cansada. Se vocês querem

evitar a impureza e todos os pecados, trabalhem com empenho, mesmo que seja limpando um estábulo (extraído de "Leis Superiores", Walden, 1854 [tradução de Denise Bottmann, 18PM, 2010]).

CONTRADIÇÕES Nas discussões anteriores, vimos que proposições como "a água está quente" e "a água está fria" são proposições contrárias. Proposições con-

traditórias seriam opostas desta forma: "A água está quente"; "a água

não está quente". Ao estudar o quadrado de oposições na seção sobre lógica, vimos também que as proposições A e o são contraditórias ("to-

dos os pais são membros da espécie masculina" e "alguns pais não são membros da espécie masculina") e que as proposições E e 1 são contra-

ditórias ("nenhum pai é membro da espécie masculina" e "alguns pais são membros da espécie masculina"). A contradição é construída com base no princípio de que uma coisa não pode, ao mesmo tempo e no mesmo aspecto, ser e não ser.

fi

153

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Como no caso das proposições contrárias, há algumas coisas que sabemos a priori sobre proposições contraditórias: (1) uma das proposições deve ser verdadeira e a outra deve ser falsa; (2) se uma das propo-

sições é verdadeira, a outra é falsa; (3) se uma das proposições é falsa, a outra é verdadeira. Então, se um grupo de especialistas médicos diz que fumar cigarro causa câncer de pulmão e outro grupo diz que não causa câncer de pulmão, sabemos, antes mesmo de investigar os fatos, que um desses grupos está certo e o outro está errado. Como sabemos pela acalorada controvérsia sobre essa questão na imprensa, os dois gru-

pos têm tido di culdade provar conclusivamente que sua a rmação é a correta, mas sabemos que um desses grupos tem de estar certo. Algum dia, cientistas e médicos poderão provar qual deles está certo. Até lá, as pessoas serão orientadas na decisão de fumar ou não pelo grupo que apresentar os argumentos mais persuasivos ou prováveis.

Ao preparar argumentos, seja para confirmação ou refutação, reco-

nheceremos as contradições como um tópico útil sempre que virmos

duas proposições relacionadas de tal forma que a verdade de uma acar-

reta a falsidade da outra. Portanto, podemos começar uma seção de nosso discurso da seguinte maneira: "Algumas pessoas afirmam que a Constituição garante o direito de voto de todo cidadão; outros afirmam que a Constituição não estabelece esse direito". A partir dessas duas proposições contraditórias, poderíamos continuar defendendo uma ou outra afirmação. Às vezes, começaremos configurando uma situação "ou/ou": "Ou ele está disposto a fazer um juramento de lealdade, ou não está disposto", Uma coisa que sabemos com certeza é que esse misterioso primo na Austrália ou é homem ou é mulher". E se as alternativas na proposição

disjuntiva forem de fato mutuamente exclusivas, sabemos que, se puder-

mos provar que uma das alternativas é verdadeira, teremos provado que a outra é necessariamente falsa. Às vezes, a contradição entre duas pro-

posições relacionadas é implícita em vez de explícita e, nesse caso, nossa linha de argumentação será apontar a inconsistência ou, como dizemos, "a contradição dos termos". Portanto, podemos lançar uma refutação da

seguinte maneira: "Meu opositor afirma ser um fervoroso defensor da democracia. Mas ele não deixou bem claro que negaria o voto a certos cidadãos com base na cor?". Ao mostrar que as duas posições são incompatíveis, estaríamos efetivamente provando que nosso opositor não é um fervoroso defensor da democracia.

fi

fi

154

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

CIRCUNSTÂNCIA O POSSÍVEL E O IMPOSSÍVEL

O primeiro subtópico a ser considerado sob o título geral das circuns-

tâncias é o possível e o impossível. Freqüentemente, quando buscamos

persuadir outras pessoas a fazer algo, devemos mostrar-lhes que a linha de ação proposta é possível; da mesma forma, quando procuramos desencorajar outras pessoas de fazer algo, podemos mostrar-lhes que a linha de ação proposta é impossível. Mesmo quando as pessoas reconhecem que uma linha de ação é desejável, às vezes elas hesitam em adotá-la, porque duvidam que seja viável. Uma maneira comum de inspirar uma audiência em relação à pra-

ticidade de uma linha de ação proposta é citar exemplos de pessoas que realizaram algo semelhante ou idêntico. Os exemplos serão persuasivos em proporção à semelhança das ações e das circunstâncias. Também podemos argumentar dedutivamente sobre o possível. Em sua Retórica, Aristóteles propôs algumas linhas de argumentação sobre

o possível. Ele não apresentou outro conjunto de argumentos para o impossível, mas sugeriu no final da ação sobre o possível: "No que diz respeito ao impossível, é evidente que é necessário extrair os argumentos dos princípios contrários aos que indicamos". O estudante reconhecerá que, ao argumentar o possível, freqüentemente empregamos alguns dos outros tópicos que já discutimos. Eis algumas linhas de argumentação que Aristóteles apresenta: 1. De dois contrários, se um pode ser ou ter sido, o outro parecerá possível.

A suposição aqui é que quaisquer dois contrários, por sua natureza como contrários, são possíveis. Por exemplo, se você pode ficar bom, também pode ficar doente. Deve ser observado, entretanto, que em

alguns casos o par de contrários pode não ser igualmente possível. Por exemplo, em alguns casos, podemos não ser capazes de argumentar

que, se você ficar doente, poderá ficar bom, porque você pode estar sofrendo de uma doença incurável. Como sempre na retórica, devemos aproveitar os argumentos disponíveis para o caso particular em questão.

155

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 2. Se um semelhante é possível, o outro semelhante o é igualmente.

Por exemplo, se é possível para uma pessoa tocar órgão, é possível para essa pessoa tocar piano. O fato de que as pessoas sempre argumentaram sobre a possibilidade de uma coisa apontando para a possibilidade de uma coisa semelhante sugere que o princípio envolvido aqui é

evidente. 3. Se o que é mais dificil é possível, o que é mais fácil o é igualmente.

Por exemplo, um porta-voz da Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço pode um dia argumentar perante o Congresso que, se é possível enviar um único astronauta a Marte, é possível enviar vários astronautas

à Lua. O estudante pode reconhecer aqui a operação do argumento a fortiori que discutimos em conexão com o tópico do grau. 4. Se o início de uma coisa é possível, também o é o seu fim; e, inversamente, Se o fim de uma coisa é possível, seu começo o é igualmente.

O princípio sobre o qual este argumento se baseia é que nada do que é impossível existe ou pode começar a existir. O exemplo clássico de Aristóteles de uma impossibilidade, de algo que não pode ter um começo e, portanto, não pode ter um fim, é a quadratura de um círculo.

Aristóteles não está sugerindo que tudo que tem um começo estará necessariamente finalizada. O que ele está dizendo é que todo começo implica um fim e que todo fim implica um começo. A pessoa que usa este tópico para obter aceitação em relação a uma proposta argumenta com base na viabilidade ou facilidade do plano, não em sua mera possibilidade. O indivíduo afirma que "começar bem já é metade do caminho", que aquilo que foi iniciado, com fé, perseverança e trabalho árduo, pode ser terminado. 5. Algo cujas partes são possíveis também é possivel na sua totalidade; reciprocamente, se a totalidade é possível, suas partes também são possíveis. Podemos imaginar um grupo de cientistas espaciais usando essa li-

nha de argumentação para convencer membros do Congresso de que é

156

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS possível colocar um homem em órbita. Ao mostrar que todas as partes

componentes de um veículo lançador foram fabricadas ou poderiam ser fabricadas, eles poderiam argumentar que é possível construir um

foguete capaz de colocar um homem no espaço. Os redatores de O Federalista usaram um argumento como esse quando propuseram que uma confederação de estados era possível porque os componentes de tal

confederação já existiam. O poder de persuasão de um argumento no outro sentido, do todo para as partes, é evidente. Se existe uma unidade

em funcionamento, todas as peças necessárias para essa unidade em

funcionamento devem existir.

6. Se uma coisa pode existir sem arte e sem preparo, com maior razão

pode existir uma coisa que contou com arte e cuidados.

Este é um tipo de argumento a fortiori, mas difere ligeiramente da linha de argumentação sugerida em (3) acima. O princípio (3) refere-se à discussão sobre se uma coisa pode ser feita; (6) está preocupado em saber se a coisa pode ser bem feita.

*** No parágrafo 24 de seu ensaio "Literatura e ciência", Matthew Arnold pergunta: "As letras humanas, a poesia e a eloquência, então, têm o poder aqui atribuído a elas de envolver as emoções.". Para substanciar sua afirmação de que as humanidades podem envolver as emoções, ele se refere à experiência comum das pessoas: "A resposta está na experiência. A experiência mostra que para a grande maioria dos homens, para a humanidade em geral, elas têm esse poder". A suposição por trás de todos os apelos à experiência ou ao exemplo histórico é que, se algo foi feito, pode ser feito novamente. Uma das vantagens que James Madison atribui a uma confederação de estados é que há menos chance de indivíduos indignos tomarem o controle do governo. Ele não diz que é impossível que pessoas indignas tomem o poder em uma confederação de estados, mas diz que é mais

difícil que isso aconteça. Ele coloca desta forma no parágrafo 8 de O Federalista n° 10:

157

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Em seguida, como cada representante será escolhido por um maior número de cidadãos na república grande em comparação com a república pequena, será mais árduo para os candidatos sem mérito a prática com sucesso das artes

viciosas por meio das quais as eleições são tantas vezes ganhas; e sendo mais livres os sufrágios do povo, será mais provável que se centrem em homens que possuem o mais atraente dos méritos e as personalidades mais expansivas e

dotadas.

Os estudantes descobrirão muitos outros exemplos de argumentos do possível e do impossível nas leituras reproduzidas neste livro. FATO PASSADO E FATO FUTURO

O tópico do fato passado diz respeito a se algo aconteceu ou não. Na retórica antiga, esse tópico desempenhou um papel importante na oratória forense, pois para a definição de um julgamento era importante

determinar se um ato havia sido cometido ou não. O fato futuro (ou, mais precisamente, a probabilidade futura) diz respeito à possibilidade de algo acontecer ou não; este tópico foi usado com mais frequência na oratória deliberativa.

Sempre que houver evidências ou testemunhos disponíveis para pro-

var que algo aconteceu, é claro que eles devem ser apresentados para fundamentar as alegações que foram feitas sobre eventos passados, mas normalmente não é fácil (às vezes é impossível) descobrir as evidências

ou testemunhos capazes de confirmar a ocorrência de um evento. Em tais casos, deve-se recorrer ao argumento da probabilidade de algo ter

ocorrido. Como dissemos diversas vezes, o provável é o campo de jogo do retórico; afinal, não existe discussão sobre o que é certo.

Onde o fato passado não pode ser estabelecido empiricamente, entra

em cena o raciocínio dedutivo: argumentando com base em premissas

prováveis, tiramos conclusões mais ou menos prováveis. Eis algumas linhas de argumentação que podemos usar para persuadir os outros sobre um fato passado: 1. Se o menos provável de dois eventos ocorreu, é provável que o evento mais provável também tenha ocorrido.

158

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Eis o argumento a fortiori novamente. Os estatísticos, entre outros, usam essa linha de argumentação para estabelecer a probabilidade de ocorrências passadas. Se vários trigêmeos nasceram, então um número proporcional de gêmeos também nasceu. Imagine um advogado de acusação usando esta linha de argumentação para persuadir um júri sobre a culpa do réu: "Se, como foi admitido, este homem é culpado de roubar dinheiro de seu pai, seria muito difícil acreditar que ele tenha desviado dinheiro de seu empregador?". O grau de probabilidade aumenta, é claro, com a frequência da ocorrência. 2. Se algo que segue naturalmente alguma outra coisa ocorreu, então essa outra coisa também ocorreu; e, inversamente, se os antecedentes estavam presentes, então as consequências naturais também ocorreram.

As pessoas raciocinam instintivamente dessa maneira. Se ouvirmos um trovão, presumimos que tenha havido um relâmpago, embora não tenhamos visto o clarão do raio. Ou se virmos um relâmpago, ouviremos um trovão. Se alguém esqueceu algo, presumimos que ele já o soube. Se uma criança está com febre, supomos que ela tenha sido acometida por alguma doença. Se um homem aparece com o olho roxo e o lábio inchado, a suposição natural é que ele brigou com alguém ou bateu em uma porta. 3. Se alguém tinha o poder, o desejo e a oportunidade de fazer algo, então ele o fez.

O princípio que sustenta a probabilidade aqui é que as pessoas irão satisfazer seus desejos quando tiverem a chance, seja por falta de autocontrole ou por um apetite natural por aquilo que percebem como um bem. Os advogados de acusação empregam essa linha de argumentação ao tentar convencer um júri de que o réu é culpado. É claro que tais argumentos não podem estabelecer nada mais do que uma forte suspeita de culpa, mas combinados com outras evidências incriminadoras, eles têm grande poder de persuasão. Os argumentos contra a probabilidade de algo ter ocorrido podem ser encontrados nos opostos das linhas de argumentação anteriores.

159

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO É preciso confiar em argumentos prováveis mais para estabelecer fatos futuros do que para estabelecer fatos passados, porque, quando algo ocorreu, sempre há a chance de descobrir a prova de que, de fato,

aquilo ocorreu, mas os eventos futuros sempre envolvem incerteza. Eis algumas linhas de argumentação sugestivas para persuadir outros sobre a probabilidade de um evento futuro: 1. Se o poder e o desejo de fazer algo estiverem presentes, então esse algo

será feito. Um dos fortes argumentos apresentados em apoio ao desarmamento nuclear é que a mera posse de armas atômicas representa uma tentação constante para uma nação de usá-las contra um inimigo. Alguns paci-

fistas chegam a argumentar que o uso da bomba nuclear não é apenas provável, mas inevitável. 2. Se os antecedentes de algo estiverem presentes, as consequências naturais ocorrerão.

"Se nuvens escuras se acumularem, choverá" (até o meteorologista admitirá que esse evento é apenas uma probabilidade). "Se uma multidão enfurecida se reuniu em praça pública, haverá violência". Algumas consequências ocorrem com tanta regularidade que a alta probabilidade beira a certeza. Quando uma sala totalmente fechada está cheia de gás, é praticamente certo que se alguém riscar um fósforo nessa sala,

ocorrerá uma explosão.

3. Se os meios estiverem disponíveis, o fim será alcançado.

Os apostadores em Las Vegas certamente escolherão como vencedor da World Series o time de beisebol que parece ser mais forte no papel,

mas, como todos sabem, a equipe com os "melhores meios" nem sem-

pre vence a World Series. Essa linha de argumentação é comum no

debate político. Agora que sabemos como fabricar um carro elétrico confiável a um preço razoável, parece provável que, em um futuro próximo, seremos capazes de fabricar, em grande escala, automóveis que não poluirão a atmosfera com suas efusões de gás.

160

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

No parágrafo 44 da "Carta da cadeia de Birmingham", o Dr. King, fazendo uso de uma combinação habilidosa do tópico dos fatos futuros e dos fatos passados, justifica sua afirmação de que o negro acabará triunfando em sua luta pela liberdade e igualdade: Espero que a Igreja como um todo possa encarar o desafio deste momento decisivo. Mas mesmo que ela não venha a ajudar a justiça, não me desespero em relação ao futuro. Não tenho dúvidas sobre o resultado de nossa luta em

Birmingham, mesmo que atualmente nossos motivos sejam incompreendidos.

Vamos atingir o objetivo da liberdade em Birmingham e em toda a nação

porque o objetivo deste país é a liberdade. Embora maltratados e desprezados, nosso destino está ligado ao dos Estados Unidos. Antes de os peregrinos aportarem em Plymouth, nós estávamos aqui. Antes que a pena de Jefferson gravasse as grandiosas palavras da Declaração de Independência nas páginas da história, nós estávamos aqui. Por mais de dois séculos, nossos antepassados

trabalharam neste país sem ganhar salários; fizeram do algodão um rei; construíram as casas de seus senhores sofrendo enorme injustiça e vergonhosa hu-

milhação — e mesmo assim, com uma vitalidade imensurável, continuaram a florescer e a se desenvolver. Se as inexprimíveis crueldades da escravidão não

conseguiram fazer-nos parar, a oposição que agora enfrentamos certamente vai fracassar. Vamos ganhar nossa liberdade porque a herança sagrada de nos-

sa nação e a eterna vontade de Deus estão incorporadas a nossas clamorosas

demandas.

TESTEMUNHO Sob o título geral de testemunho, consideraremos seis subtópicos: autoridade, depoimento, estatística, máximas, lei, precedentes. Ao contrário dos outros tópicos, que derivam seu material da natureza da questão em discussão, o testemunho deriva material de fontes externas. Na próxima seção deste capítulo, intitulada "Auxílios externos à invenção", o estudante conhecerá algumas obras de referência que podem servir de material de apoio para exposição ou argumentação.

161

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO AUTORIDADE O primeiro subtópico a ser considerado no tópico de testemunho é

a autoridade. De fato, a opinião ou autoridade avalizada talvez tenha menos peso hoje em dia do que antes. Em uma época caracterizada por uma atitude científica e um espírito democrático, as pessoas não se impressionam tanto com a voz da autoridade e não são tão influenciadas pelo pronunciamento de pessoas que estão "por dentro". Em situações nas quais os fatos podem ser recuperados (e a tecnologia

moderna ampliou muito o domínio do empírico), preferimos fatos

a opiniões. Não aceitamos algo como verdadeiro simplesmente porque alguém disse que é verdade. Para nós, a força persuasiva está nos "fatos". Embora as pessoas hoje não estejam tão dispostas a acatar a au-

toridade como seus avós acatavam, elas freqüentemente são forçadas pelas circunstâncias a confiar na autoridade. A opinião avalizada ainda desempenha um papel central na conduta dos assuntos humanos. Por um lado, o conhecimento é tão diversificado e especializado em nossa época que ninguém pode afirmar, como fez Francis Bacon, que possui

todo o conhecimento, e uma vez que os assuntos cotidianos de uma

sociedade não esperam todos os cidadãos acompanharem as últimas descobertas, as pessoas são obrigadas a acatar a "palavra" de algum especialista sobre os fatos. Por outro lado, uma vez que as pessoas discutem principalmente sobre questões incertas e imprevisíveis, elas frequentemente precisam recorrer a opiniões avalizadas para orientá-las na resolução de questões ou na tomada de decisões. Embora a opinião avalizada não seja infalível, ela tem grande força

persuasiva. Temos a tendência de dar mais crédito ao testemunho de especialistas do que ao testemunho de amadores; confiamos mais na opinião de quem se pronuncia sobre assuntos relacionados com sua área de conhecimento do que na opinião de quem fala fora da sua área de competência. Um comitê do Congresso que investiga o perigo potencial de precipitação nuclear prestará mais atenção ao físico renomado do que ao cidadão comum, por mais interessado e culto que seja o cidadão. E claro que houve casos em que o especialista revelou estar errado e o amador, certo, mas sempre há uma probabilidade maior de que o especialista esteja certo.

162

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Às vezes, os especialistas apresentam opiniões con itantes. Ao avaliar testemunhos conflitantes de especialistas igualmente competentes,

devemos nos basear em outros critérios para decidir qual opinião aceitar. Nesses casos, fazemos perguntas como estas: 1. Existe algo inconsistente, contraditório ou ilógico na opinião em si? 2. Os especialistas nutrem algum preconceito que possa influenciar ou distorcer a opinião proferida?

3. Algum dos especialistas tem interesse pessoal, uma vantagem a ganhar, uma conta a acertar?

4. A opinião de um especialista é baseada em informações mais recentes e confiáveis do que as outras?

5. A opinião de um especialista é aceita por mais especialistas ou pelos especialistas mais abalizados?

6. Quais são as suposições básicas por trás das opiniões apresentadas? Alguma dessas suposições é vulnerável? A exposição dessas suposições revela que o conflito entre os especialistas é mais aparente do que real, porque eles estão vendo o mesmo assunto de pontos de vista diferentes?

Respostas a perguntas de sondagem como essas determinarão quais das opiniões conflitantes terão a maior força persuasiva para uma determinada ocasião e um determinado público. DEPOIMENTO

Semelhante ao tópico da autoridade é a estratégia do depoimento, que assume várias formas: a carta de recomendação, o anúncio berrante, a propaganda, a avaliação do caráter da testemunha, a pesquisa de opinião, a lista de best-sellers, a classificação do público. Tudo isso representa tentativas de influenciar a opinião, ação ou aceitação. O depoimento não precisa vir de uma fonte abalizada e imparcial para ser persuasivo. Às vezes, a força persuasiva de um depoimento provém da estima que temos pela pessoa ou das realizações de quem oferece a recomendação. "Jesse Lewis usa Adidas". Um slogan publicitário como esse poderia influenciar milhares de pessoas a comprar tênis Adidas, porque

Jesse Lewis é um atleta renomado. O que um slogan como este tenta fazer é transferir a estima que temos pela pessoa para o produto que nos

fl

163

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO é recomendado. Na terminologia retórica, o depoimento tem apelo

ético", o tipo de apelo que Aristóteles diz ser frequentemente mais eficaz em persuadir o público do que apelos à razão ou apelos às emoções. As pessoas tendem a esquecer que a habilidade de Jesse Lewis como corredor não o qualifica necessariamente para ser um bom juiz de tênis de corrida; que Jesse Lewis está sendo pago para dar sua recomendação; que o depoimento de Jesse Lewis não prova necessariamente nada sobre a qualidade da Adidas. Duas observações gerais podem ser feitas: (1) o depoimento pode ser extremamente persuasivo em certas circunstâncias e com certos públicos; (2) o depoimento é incrivelmente vulnerável a refutação. É claro

que nem todo depoimento deve ser considerado desonesto, insincero ou irrelevante. O importante é não aceitá-lo acriticamente.

ESTATÍSTICAS Semelhante ao depoimento é a citação de estatísticas. "Cinco mi-

lhões de pessoas compraram produtos (marca) no ano passado". ",8% das novas casas construídas no ano passado foram equipadas com aparelhos à prova de vazamentos". Às vezes, essa estratégia é chamada de

"efeito manada": se todo mundo está fazendo, deve ser bom. Agora, não

há como negar que a preferência por um produto em relação a outro pode ser uma indicação de que o produto preferido é superior em qualidade aos outros produtos. A maioria das pessoas acredita que os produtos de qualidade superior, se todos os outros fatores forem iguais, acabarão prevalecendo sobre os produtos de segunda categoria. Portanto, as estatísticas podem ser um tópico útil e eficaz em muitas discussões. O que devemos evitar no uso de estatísticas é fazer inferências injustificadas. As estatísticas, se precisas e obtidas de forma legítima, confir-

mam um fato, mas nem sempre servem de respaldo para uma inferência feita a partir desse fato. O fato de um livro estar no topo da lista de

best-sellers por doze meses ou mais confirma o fato de que muitas pes-

soas o compraram. Esse fato, no entanto, não justifica necessariamente

a afirmação posterior: "Este best-seller é o melhor romance publicado

no ano passado", ou: "Você também se emocionará com o drama deste surpreendente best-seller"

164

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Nos parágrafos anteriores, consideramos as estatísticas comparati-

vas: pares ou grupos de figuras e porcentagens que ajudam a definir questões de mais e menos. As estatísticas, porém, podem ser usadas na

argumentação para outros fins que não a definição de superioridade, por exemplo, para resolver proposições contrárias e contraditórias.

Suponha que uma das partes em uma discussão afirme que "a maioria dos americanos possui uma casa própria", e que a outra parte afirme que "a maioria dos americanos não possui uma casa própria". Se as duas partes envolvidas na discussão concordam quanto ao significado de própria, essas duas afirmações são diretamente contraditórias. Como vimos na discussão do tópico da contradição, uma dessas afirmações é verdadeira e a outra é falsa. Uma maneira óbvia de determinar qual afirmação é verdadeira é citar estatísticas: "O Censo de 1960 revela que (número) americanos ou (número) porcento dos cidadãos com mais de

21 anos de idade já quitaram a hipoteca da casa em que moram". As estatísticas podem ser usadas para confirmar ou desacreditar todos os tipos de afirmação. O principal cuidado a ser observado com relação ao uso desse tópico é que não devemos aceitar estatísticas acriticamente. As estatísticas estão sempre sujeitas a contestações como estas: 1. Qual é a fonte dessas estatísticas?

2. Esta é uma fonte confiável e imparcial? 3. Como eles chegaram a esses números?

4. A amostragem da pesquisa é representativa? 5. Quando esses números foram coletados?

6. Esses números con ituam com números de outras fontes?

As pesquisas de opinião desempenham um papel cada vez mais importante na vida moderna. As melhores agências de pesquisa, ao desenvolver fórmulas científicas para projetar os resultados com base nas amos-

tras, alcançaram um incrível recorde de precisão. Os computadores ele-

trônicos também aumentaram a confiabilidade das interpretações e previsões feitas a partir das estatísticas. Devemos estar cientes, no entanto,

de que as técnicas de pesquisa, especialmente aquelas que dependem de entrevistas com pessoas, têm certas limitações inerentes. A formulação de uma pergunta feita a uma pessoa na rua influencia a resposta. Sempre

que uma palavra de petição de princípio entrar em uma pergunta, a res-

fl

165

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO posta será tendenciosa. As respostas a uma pergunta como: "Você é a favor da abolição de impostos excessivos?" não podem ser interpretadas

como significando que a maioria das pessoas é a favor da abolição de impostos. Às vezes, a justaposição de perguntas pode distorcer as respostas. Se a pergunta "as organizações subversivas devem ser banidas nos Estados Unidos?" for seguida pela pergunta "o Partido Comunista deve ser banido nos Estados Unidos?"", a resposta à segunda pergunta será, sem dúvida, prejudicada pela resposta à primeira pergunta.

Outro problema inerente à entrevista pessoal decorre de duas suposições feitas pelos pesquisadores: (1) que as pessoas sempre sabem o que pensam sobre as perguntas que lhes são feitas; (2) que as pessoas darão respostas verdadeiras às perguntas que lhes forem feitas. As

pessoas na rua sempre sabem, em qualquer estágio de uma campanha

presidencial, qual candidato defendem? Se elas estiverem indecisas ou confusas, talvez respondam qualquer coisa, porque têm vergonha de admitir ao pesquisador que não sabem realmente qual candidato defendem no momento. Quando a pergunta diz respeito a um assunto mais complexo, aumenta a probabilidade de que os entrevistados não saibam o que pensam. Os pesquisadores tomam providências para essa incerteza, permitindo que o entrevistado responda "indeciso", mas às vezes a pessoa fica indecisa até mesmo sobre se está indecisa. Quanto à outra

suposição, por uma razão ou outra, algumas pessoas enganam deliberadamente o pesquisador, dando uma resposta falsa. Reconhecendo esse fato, os pesquisadores incluem um fator de desconto em suas fórmulas para projetar o resultado com base nas informações que coletaram. Todas as observações acima sobre os pontos fortes e pontos fracos das estatísticas sugerem as maneiras de usá-las para embasar nossos

próprios argumentos ou refutar os argumentos apresentados pelo opositor. Empregada discretamente, a estatística pode ser um tópico valioso na escrita expositiva e argumentativa. MÁXIMAS

Usaremos o termo máximas (gnomai, em grego; sententiae, em latim) abrangendo preceitos, provérbios, ditos famosos, pronunciamentos epigramáticos, verdades evidentes, generalizações sentenciosas, ou seja, todos os tipos de declarações carismáticas introduzidas em uma

166

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS discussão. Em Retórica, livro II, capítulo 21, Aristóteles tratou as máximas como um prelúdio para sua discussão do entimema, porque, como

ele observou, as máximas geralmente constituem uma das premissas de um argumento silogístico. Por exemplo, em uma discussão sobre questões financeiras, pode-se imaginar uma das partes dizendo: "Um tolo e seu dinheiro logo se separam". O argumento completo sugerido por esse provérbio seria mais ou menos assim: Um tolo e seu dinheiro logo se separam.

John Smith é inegavelmente um tolo quando se trata de questões financeiras.

John Smith certamente perderá seu investimento.

Máximas são declarações, não sobre questões particulares, mas sobre questões universais. Portanto, a declaração "Aquele Cássio é seco

demais" não seria uma máxima, mas teria o tom de uma máxima se fosse alterada para "Deve-se ter cuidado com homens muito secos". Nem todas as afirmações gerais, entretanto, podem ser consideradas máximas. "Uma linha reta é a distância mais curta entre dois pontos"

não é uma máxima. Máximas são declarações gerais sobre as ações humanas, sobre coisas que devem ser escolhidas ou evitadas.

O valor das máximas, segundo Aristóteles, é que elas proporcionam ao discurso um "caráter moral", com aquele apelo ético tão importante

na persuasão. Como as máximas falam de verdades universais sobre a vida, elas ganham o consentimento imediato da audiência, e devido ao tom de antiga sabedoria, são dotadas de uma santidade peculiar, pare-

cendo, portanto, mais apropriadas, como observou Aristóteles, quando

vêm da boca de pessoas mais velhas e experientes. Uma máxima é tão

verdadeira quando dita por um jovem como quando dita por uma pessoa mais velha, mas, em certas circunstâncias, uma máxima apresentada por um jovem imaturo soará pretensiosa, até mesmo ridícula.

Felizmente, grande parte dos leitores de Alexander Pope não sabia que o autor da coleção de preceitos sábios e espirituosos do livro Ensaio sobre a crítica tinha apenas 21 anos de idade. As máximas não devem ser evitadas por serem bem conhecidas. Sua própria familiaridade pode ser uma vantagem. O familiar muitas vezes parece evidente e, por esse motivo, ganha aceitação acrítica. Entretanto,

167

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

existe um perigo aqui: a citação familiar, o slogan, o chavão e o lugar-comum conseguem adquirir imunidade à crítica. Por essa razão, muitas vezes recorremos à tautologia santificada quando buscamos aceitação para nossa causa. Em vez de obter consentimento, subornamos o

público. Além de correr o risco de sermos antiéticos, tal prática pode induzir hábitos preguiçosos. Quando a máxima sobre a qual baseamos um argumento é contestada, podemos estar despreparados para defender sua verdade. Às vezes também concordamos equivocadamente com um argumento porque não nos demos ao trabalho de questionar a premissa aparentemente "verdadeira". Esses lembretes não têm a intenção de desencorajar o uso das máximas, mas nos alertar para os perigos da aceitação acrítica daquilo "que

muitas vezes foi pensado". O estudante deve ter em mente a grande observação de Platão: "Uma vida irrefletida não vale a pena ser vivida". LEIS

No tópico das leis serão incluídos todos os estatutos, contratos, tes-

tamentos, registros e documentos que podem ser utilizados para fun-

damentar ou refutar uma afirmação. A evidência registrada tem força

de convencimento em qualquer discussão. Uma discussão sobre a data

de nascimento de uma pessoa, por exemplo, pode ser sumariamente

resolvida com uma certidão de nascimento ou registro de Batismo. A apresentação de um testamento genuíno pode silenciar os pretendentes

rivais de uma herança. Quando um crítico aduz uma declaração de diários ou cartas sobre a intenção de um autor em uma obra literária, ele não necessariamente determina sua interpretação, mas certamente a fortalece. As pessoas têm grande admiração pela palavra escrita ou impressa. Quantas vezes ouvimos a declaração: "Mas está escrito, bem aqui no

livro". O respeito pela palavra registrada é, em muitos aspectos, uma

coisa boa. Dificilmente poderíamos conduzir os assuntos da vida cotidiana se a sociedade não mantivesse o respeito pelo que foi "posto preto no branco". Sem escrituras e contratos, todos os direitos de propriedade, por exemplo, seriam tênues. Um contrato verbal entre um proprietário de carro e um revendedor não terá validade no tribunal,

168

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS mas uma garantia escrita, devidamente assinada por ambas as partes,

dá ao juiz algo concreto e definitivo sobre o qual resolver um litígio. Devemos lembrar, contudo, que as evidências documentais não excluem necessariamente o debate posterior; as palavras gravadas estão abertas a contestação e a interpretação. Podemos objetar, dizendo, por exemplo, que um documento apresentado como prova não é autêntico.

As seguintes objeções também podem ser apresentadas para testar a autenticidade de um documento: 1. Não há prova de que o documento em questão tenha realmente sido emitido pelas mãos do suposto autor.

2. O documento não foi devidamente testemunhado. 3. O documento é apenas uma transcrição ou reprodução de um original supostamente existente. 4. No processo de transmissão, a redação do documento foi alterada. 5. As autoridades que poderiam atestar a autenticidade do documento não

são acessíveis. 6. Outro documento ou um documento posterior invalida este.

Além disso, a formulação dos documentos está sempre aberta à interpretação. A Constituição dos Estados Unidos, por exemplo, é o do-

cumento genuíno no qual nosso governo se baseia. Mas uma das prin-

cipais funções da Suprema Corte é interpretar a redação já autenticada da Constituição. Em nossos próprios dias, vimos disputas acaloradas sobre a doutrina da separação entre a Igreja e o Estado no Artigo 1 da Declaração de Direitos ("O Congresso não fará nenhuma lei que respeite o estabelecimento de uma religião ou proíba seu livre exercício") e sobre a doutrina dos direitos dos Estados no Artigo 1o ("Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nem proibidos por ela aos Estados, são reservados aos Estados, respectivamente, ou ao povo"). O significado das leis estatutárias também é constantemente discutido nos tribunais. PRECEDENTES (EXEMPLOS)

O último dos subtópicos a serem considerados dentro do testemunho são os precedentes ou exemplos. Etimologicamente, precedente de-

169

fi

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO riva de um verbo latino que significa "vir antes"; daí o sentido moderno

de "algo que aconteceu antes". Em um de seus sentidos modernos, precedente é um termo jurídico, que designa uma decisão judicial do passado que pode ser usada como padrão para julgamentos sobre casos subseqüentes semelhantes. Como os juízes costumam ser guiados por decisões anteriores, os advogados, ao preparar sua defesa, buscarão as decisões que outros juízes tomaram em casos semelhantes. A tarefa do advogado é convencer o juiz de que o caso em questão é de fato semelhante ao anterior. Na verdade, o argumento dos advogados é mais ou menos assim: Meritíssimo, mostrei que o caso em consideração tem precedente no caso de Nova York vs. John Smith, n° 2.435, julgado em 29 de outubro de 1919 perante

a juíza Mary Snodgrass. Nesse caso, a juíza Snodgrass determinou que o réu

não tinha que pagar impostos ao demandante sobre bens que haviam sido confiscados antes da data de vencimento dos impostos. A juíza concluiu que,

embora John Smith continuasse a ocupar a propriedade por três meses, ele deixou de ser o dono da propriedade na data em que assinou os papéis de con-

sco, não sendo mais responsável pelos impostos, uma vez que transferiu a titularidade do imóvel, ainda que continuasse, por acordo, a ocupá-lo sem pagar aluguel por três meses. Visto que as circunstâncias deste caso são semelhantes

às do caso de Nova York e que as leis tributárias neste estado são semelhantes

às que vigoravam em Nova York naquela época, proponho respeitosamente que uma decisão semelhante seja tomada aqui.

O advogado adversário, é claro, tentará provar que os dois casos não são semelhantes, que uma diferença importante foi omitida ou que uma consideração relevante foi distorcida. Talvez o advogado cite, se

houver, outros precedentes com uma sentença bem diferente. Quando

precedentes opostos são apresentados, os advogados argumentam que um precedente deve substituir o outro. Cada advogado tentará mostrar que seu precedente é mais relevante, mais lógico, mais recente, mais

confiável (porque vem de uma fonte mais confiável) ou mais convincente (porque há mais precedentes deste tipo que do outro).

Falamos do precedente no sentido legal. Em um sentido mais amplo, precedente ou exemplo é trazer para um caso presente o que foi

feito em um caso semelhante no passado. Aristóteles considerava o

170

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS exemplo o equivalente retórico da indução completa na lógica ou na demonstração científica, porque no discurso prático o orador ou escri-

tor não tem tempo para apresentar, nem o público tem paciência para ouvir, toda a série de particularidades que confirmam uma generalização a que se chegou através do processo indutivo; há tempo e paciência

só para um ou dois exemplos. Em uma discussão, por exemplo, sobre como nanciar a construção de uma ponte, as partes envolvidas na discussão citarão alguns exemplos de como outros Estados nanciaram tal projeto e o sucesso dos métodos. A inferência que o persuasor espera que público faça em relação ao caso análogo é que tal e tal método de nanciamento será igualmente bem-sucedido (ou malsucedido) no caso em consideração. Os exemplos podem ser históricos (e, portanto, veri cáveis ou familiares) ou ctícios, como no caso das freqüentes parábolas de Jesus Cristo em seu ministério público. Os auxílios externos à invenção, discutidos neste capítulo, são os recursos a serem consultados para exemplos históricos adequados, se tais exemplos não estiverem disponíveis.

*** Acontece que os subtópicos que consideramos no testemunho não aparecem com destaque nas leituras reproduzidas no final deste capítulo.

Não há usos, por exemplo, de estatísticas em nenhuma das leituras neste capítulo. De qualquer maneira, embora não haja muitos exemplos do uso de testemunho nas leituras, tais exemplos não estão totalmente

ausentes. Os estudantes podem consultar os seguintes locais para ob-

servar como os vários subtópicos do testemunho produziram argumentos para os autores:

Autoridade: Huxley, 9 2, 20; Arnold, g 11, 18, 21; King, 9 15, 32.

Depoimento: Huxley, 9 14; Arnold, 9 5, 17, 19, 24; King, 9 31, 46.

Máximas: Huxley, 9 39; King, 9 12, 16. Leis: Burke, g 6, 15; King, 9 18, 47. Precedentes (exemplos): Burke, f 5, 19; Arnold, g 27, 28; King, 9 6, 7, 14, 21, 43, 45.

fi

fi

fi

fi

fi

171

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Em nossa era tecnológica, de conhecimento cada vez mais especiali-

zado, além de armazenamento e recuperação de informações altamente sofisticados, o tópico do testemunho provavelmente será cada vez mais utilizado, tanto no discurso profissional quanto no discurso popular.

TÓPICOS ESPECIAIS Conforme observado nos comentários introdutórios da seção anterior, os retóricos costumam dividir os tópicos em dois tipos gerais: tópicos comuns e tópicos especiais. Os tópicos comuns são conjuntos de argumentos gerais aos quais podemos recorrer ao discutir praticamente qualquer assunto. Os tópicos especiais, por outro lado, são linhas de argumentação mais específicas às quais podemos recorrer ao discutir algum assunto específico. Nos três principais tipos de atividade retórica (deliberativa, judicial e cerimonial) tendemos a recorrer, com bastante regularidade, a certos tópicos mais específicos do que os tópicos comuns e, no entanto, mais gerais do que o conhecimento especializado. Em um caso jurídico, por exemplo, não se pode esperar que o professor de retórica instrua os alunos em todos os pontos jurídicos peculiares ao caso, mas ele pode indicar aos alunos que a maioria dos processos judiciais gira em torno de um número limitado de tópicos recorrentes. O valor dos tópicos especiais no processo de composição é que, uma vez determinado o tipo de discurso retórico, os escritores sabem imediatamente qual é o seu objetivo geral e também os tipos especiais de argumento que devem utilizar para atingir esse objetivo. Sua composição, portanto, não se escreverá sozinha, mas eles têm nos tópicos especiais um trampolim para lançá-los na direção certa. E uma vez que tenham sua direção geral fixada, eles detectarão com mais facilidade quais tópicos comuns e quais conhecimentos especializados são pertinentes ao caso e, portanto, especialmente úteis. Vejamos agora os tópicos especiais para cada um dos três tipos de discurso persuasivo. TÓPICOS ESPECIAIS PARA O DISCURSO DELIBERATIVO

Existem denominadores comuns entre os apelos que usamos quando estamos empenhados em exortar alguém a fazer ou não fazer algo, a acei-

172

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS tar ou rejeitar uma visão particular das coisas? Sim, existem. Quando tentamos persuadir as pessoas a fazer algo, tentamos mostrar-lhes que o

que queremos que elas façam é bom ou vantajoso. Todos os nossos apelos neste tipo de discurso podem ser reduzidos a estas duas categorias: (1) o

que é valioso, digno (dignitas) ou bom (bonum) e (2) o que é vantajoso,

conveniente ou útil (utilitas). Os termos traduzidos não expressam com precisão o significado dos termos latinos, mas talvez transmitam a idéia

geral de "o que é bom em si mesmo" (e, portanto, digno de ser buscado)

e "o que é bom para nós" (um bem relativo, conveniente para nós pelo que pode fazer por nós ou pelo que podemos fazer com ele). John Henry

Newman usou mais ou menos as mesmas distinções na obra A idéia de uma universidade, ao falar das diferenças entre "conhecimento liberal" e "conhecimento útil". Existem alguns assuntos ou disciplinas, diz

Newman, que cultivamos por seu próprio valor, independentemente do poder que nos dão ou do uso que possam ter. Existem outros assuntos ou disciplinas que cultivamos principalmente (senão exclusivamente) pelo uso que podemos lhes dar. Se estamos tentando convencer alguém a estudar poesia, por exemplo, podemos insistir que o cultivo da poesia é um bem em si e, portanto, digno de ser buscado, lembrando que não se deprecia a poesia ao admitir que seu estudo não tem nenhuma aplicação prática. Por outro lado, podemos conduzir nosso apelo em um nível menos exaltado, mostrando que o estudo da poesia pode produzir resultados práticos: seu estudo pode nos ensinar, por exemplo, como ser leitores mais frequentes, como ser escritores mais precisos, como ser observadores mais atentos do mundo ao nosso redor. Se nos baseamos mais no tópico do valor ou no tópico da vantagem dependerá, em grande parte, de duas considerações: (1) a natureza de nosso assunto, (2) a natureza de nosso público. Deve ser óbvio que algumas coisas são intrinsecamente mais valiosas do que outras. É mais fácil demonstrar, por exemplo, que o estudo da poesia é um bem em

si do que demonstrar que construir uma ponte é um bem em si. No último caso, seria mais sensato (porque é o caminho mais fácil e convincente) explorar o tópico da vantagem. Quando se tenta convencer um grupo de contribuintes a votar pelo financiamento da construção de uma ponte, é mais provável que se consiga impressioná-los demonstrando a utilidade de tal ponte do que mostrando seu valor estético.

173

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Da mesma forma, a natureza de nosso público influenciará nossa

decisão sobre o tópico especial a ser enfatizado em um determinado discurso deliberativo. Como o público é o principal determinante dos melhores meios para atingir determinado fim, devemos ter pelo menos uma noção geral do temperamento, dos interesses, dos costumes e do nível educacional de nosso público. Se percebermos que nosso

público ficará mais impressionado com apelos baseados no tópico do que é valioso, nosso conhecimento do público terá que ser um pouco mais completo e preciso, porque agora devemos ter, além de uma noção geral do temperamento do público, algum conhecimento de que coisas são consideradas "boas" para esse público e qual a hierarquia das coisas boas. Sendo as pessoas como são, no entanto, provavelmente o tópico da vantagem, como Cícero e o autor de Ad Herennium observaram, atraia mais pessoas do que o tópico do valor. Todos os discursos deliberativos estão preocupados com o que devemos escolher ou o que devemos evitar. Aristóteles observou que o m que determina o que as pessoas escolhem e o que evitam é a felicidade e suas partes constituintes. A felicidade, então, pode ser considerada como o tópico especial nal em discursos deliberativos, uma vez que buscamos o que é valioso e vantajoso porque isso conduz à nossa felicidade. Inquestionavelmente, as pessoas diferem em seus conceitos de

felicidade. Aristóteles apresentou algumas das definições comumente aceitas: Admitamos que a felicidade é um êxito combinado com a virtude, ou uma existência suprida de recursos suficientes, ou ainda uma vida repleta de pra-

zeres acompanhada de segurança, ou ainda uma abundância de bens aliada a um bom estado do corpo, juntamente com a capacidade de conservá-los e deles fazer uso. Quase todos concordam ser a felicidade uma ou mais de uma

dessas coisas (Retórica, 1, s).

Mesmo hoje, a maioria das pessoas, se perguntadas, diria que a felicidade é uma ou outra dessas condições, ou talvez alguma combinação ou variação delas. Elas provavelmente concordariam também com as especificações de Aristóteles das partes constituintes da felicidade: "Bom berço, muitos amigos, amizade de pessoas de bem, riqueza, filhos bem constituídos,

fi

fi

174

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

muitos filhos, uma velhice feliz, ao que se deve juntar qualidades físicas como a saúde, a beleza, o vigor, uma avantajada compleição, a capacidade atlética, juntamente com boa reputação, honra, boa sorte e virtude". Um tema recorrente no mundo da fantasia é a situação em que uma fada permite três desejos a uma pessoa. Diante dessa oportunidade, a pessoa escolhe as três principais coisas que a farão feliz, e geralmente as escolhas são os itens enumerados na lista de Aristóteles. Os estudantes podem se perguntar o que eles diriam se tivessem três opções. Suas escolhas revelariam não apenas muito sobre sua escala de virtudes, mas também como sua visão do que constitui felicidade difere pouco das visões que as pessoas sustentaram ao longo dos tempos. Em resumo, então, digamos que, quando estamos engajados em qualquer tipo de discurso deliberativo, estamos tentando convencer al-

guém a adotar certa linha de ação porque ela conduz à felicidade ou a

rejeitar determinada linha de ação porque ela levará à infelicidade. Os dois principais tópicos especiais sob o título geral de "felicidade" são o valor e a vantagem. No desenvolvimento desses tópicos especiais, às vezes teremos oportunidade de usar alguns tópicos comuns, como o possível e o impossível (ao insistir na vantagem, por exemplo, de uma determinada linha de ação, talvez tenhamos que mostrar que a linha de ação que propomos é viável ou fácil) e o tópico de mais e menos (ao buscar direcionar uma escolha entre uma série de bens, por exemplo, precisamos de critérios que nos ajudem a discriminar os graus de

bem). Ao desenvolver os tópicos especiais, também precisaremos de um

fundo de conhecimento especializado pertinente ao assunto que estamos debatendo. Ao discutir questões de política pública, por exemplo,

precisamos de muito conhecimento específico e exato sobre os tipos

de governo, as leis e a constituição de um Estado, o mecanismo da

legislação. Além disso, devemos ter ao nosso alcance, ou saber onde encontrar, um número suficiente de fatos, precedentes ou estatísticas para sustentar nossas afirmações. Não é competência especial da retó-

rica fornecer esse conhecimento especializado, mas um texto retórico

como este pode direcionar os escritores às fontes de tais informações. Em uma seção posterior deste capítulo, os escritores serão informados das obras de referência que podem fornecer-lhes o conhecimento especializado necessário para desenvolver seu discurso.

175

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Para uma análise dos tópicos especiais, bem como dos tópicos comuns, em um discurso deliberativo, veja a análise de "A obrigação de

suportar" no final deste capítulo. TÓPICOS ESPECIAIS PARA O DISCURSO JUDICIAL

Quem lê livros de retórica clássica logo descobre que o ramo da retórica que mais chamou a atenção foi o judicial: a oratória do tribunal. Litígios em tribunais na Grécia e em Roma eram uma experiência extremamente comum até mesmo para o cidadão livre comum (geralmente o chefe de família do sexo masculino), e era raro o cidadão que não fosse ao tribunal pelo menos meia dúzia de vezes durante o curso de sua vida adulta. Além disso, muitas vezes esperava-se que o cidadão comum servisse como seu próprio advogado perante um juiz ou júri. O cidadão comum não possuía o conhecimento abrangente da lei e de seus aspectos técnicos como o advogado profissional, mas era muito vantajoso para ele ter um conhecimento geral das estratégias de defesa e acusação. Como resultado, as escolas de retórica prosperaram no treinamento de leigos para se defender no tribunal ou processar um vizinho infrator. Ao defender a utilidade da arte da retórica, Aristóteles disse: Por outro lado, seria absurdo afirmar que alguém devesse envergonhar-se por ser incapaz de defender-se com seus membros físicos, mas não de ser incapaz de defender-se mediante o discurso racional quando o uso do discurso racional distingüe mais o ser humano do que o uso de seus membros (Retórica, 1, 1).

Em nossa época, a maioria dos cidadãos raramente comparece ao tribunal (exceto talvez por infrações de trânsito). Se tiverem de ir ao tribunal, eles podem, tecnicamente, servir como seus próprios advogados, mas geralmente contratam um advogado profissional. Alguns dos estudantes que estão lendo este texto se tornarão advogados e, antes de

se formarem na faculdade de direito, terão recebido um treinamento intensivo nos aspectos técnicos da lei e na condução de julgamentos. Para a maioria das pessoas hoje, no entanto, não há necessidade de se familiarizar com as sutilezas da lei ou treinar para se tornarem defensores astutos e eloquentes perante um juiz ou júri.

176

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS O treinamento neste tipo de retórica, entretanto, não é totalmente

dispensável. Todos nós temos a oportunidade de nos envolver nesse tipo de discurso persuasivo. Podemos nunca ter que enfrentar toda a panóplia do tribunal, mas às vezes temos que defender nossas ações ou pontos de vista, impugnar as ações de outros ou contestar a redação, interpretação e aplicação de textos de todos os tipos. Os tópicos especiais para o discurso judicial desenvolveram-se a par-

tir dos esforços para determinar o status de um caso. Como vimos na seção inicial deste capítulo dedicada à formulação da tese, os retóricos elaboraram uma fórmula útil para definir com precisão a questão a ser discutida. Para identificar o problema ou tese, eles fizeram três perguntas sobre o assunto geral: se algo é (an sit), o que é (quid sit), de que tipo é (quale sit). Uma vez definida a questão (e só então), o pleiteador, seja para a defesa ou para a acusação, pode determinar os tópicos especiais que serão pertinentes ao desenvolvimento do caso. Os tópicos especiais por excelência para todo discurso judicial são justiça e injustiça. Os termos certo e errado podem servir como termos substitutos se os considerarmos em seu sentido legal, não moral. Os subtópicos usados para desenvolver os tópicos especiais de justiça e injustiça podem ser agrupados nas três questões que servem para estabelecer a questão: A. Se algo aconteceu

O principal subtópico aqui é a evidência. Ao desenvolver este tópico, queremos saber:

1. Quais são as evidências?

2. Como, quando, onde e por quem as evidências foram coletadas? 3. E quanto à confiabilidade das evidências? a. Elas são precisas? b. Elas são relevantes? c. Elas são consequentes? d. Elas são meramente circunstanciais? 4. E quanto à credibilidade das testemunhas que apresentam as evidências? a. Elas são parciais?

177

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO b. Elas são confiáveis?

c. Elas são competentes? d. Elas são coerentes? 5. E quanto às evidências con itantes?

B. O que é O principal subtópico aqui é a de nição. Ao desenvolver este tópico, queremos saber: 1. Qual é a acusação especí ca?

2. Qual é a definição legal da suposta injustiça? 3. Que lei supostamente foi violada? a. Uma lei escrita e promulgada? b. Uma lei natural não escrita?

(Por exemplo, na peça de Sófocles, Antígona alega que, embora tivesse violado a lei escrita da comunidade ao enterrar seu irmão Polinice, ela estava obedecendo a uma lei superior). 4. Quem foi prejudicado pela suposta injustiça? a. Um indivíduo?

b. A comunidade? s. A vítima sofreu o dano contra sua vontade?

6. Qual foi a extensão do dano?

C. A qualidade do que aconteceu O principal subtópico aqui são os motivos ou causas da ação. Ao desenvolver este tópico, queremos saber: 1. A alegada injustiça foi feita de modo intencional ou inintencional? 2. Se foi inintencional, qual a causa da ação?

a. Acaso?

b. Coação?

c. Inclinação natural? 3. Se foi intencional, qual a causa da ação?

a. Hábito? b. Deliberação?

fi

fi

fl

178

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS c. Paixão?

d. Desejo? 4. Se foi intencional, qual o motivo do malfeitor?

a. Lucro?

b. Vingança? c. Castigo? d. Prazer? 5. Que tipo de pessoa executou o ato? 6. Que tipo de pessoa foi vítima da suposta injustiça?

7. Houve circunstâncias atenuantes?

Os tópicos que acabamos de revisar são os assuntos que invariavel-

mente discutimos quando procuramos nos eximir de culpa ou incriminar alguém. Esses tópicos são especialmente úteis nos julgamentos em tribunais que envolvem crimes e outras violações da lei civil, mas são

úteis também em discussões sobre a justiça e injustiça de atos humanos não tão graves quanto crimes (pequenos delitos, erros de julgamento, incompetência, negligência de deveres, maldade etc.). As perguntas estabelecidas em cada subtópico podem servir como "sugestões" ou "incitadores" da direção que nossa discussão pode tomar quando estamos engajados nesse tipo de atividade persuasiva. Para o desenvolvimento dos tópicos especiais, tópicos comuns pertinentes aparecerão como outros recursos. A natureza do caso em consideração determinará quais tópicos especiais e quais tópicos comuns são relevantes. Para uma análise dos tópicos especiais, bem como dos tópicos comuns, em um discurso judicial, consulte a análise sobre Apologia de Sócrates no final deste capítulo.

TÓPICOS ESPECIAIS PARA O DISCURSO CERIMONIAL Talvez seja mais fácil entender a natureza do discurso cerimonial do que a diferença entre o discurso cerimonial e os outros dois tipos de discurso. Às vezes, o discurso cerimonial transforma-se em discurso

deliberativo, às vezes em discurso judicial. Os oradores cerimoniais parecem estar mais empenhados em impressionar o público com a eloquência de seus esforços laudatórios do que em persuadi-lo a adotar

179

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO uma determinada linha de ação. Mesmo assim, ao elogiar alguém, eles sugerem, ao menos indiretamente, que o público faça o mesmo. Assim,

sugerindo uma linha de ação, eles adentram o reino do discurso deliberativo. Da mesma forma, quando elogiam ou censuram alguém, invadem o domínio do discurso judicial, porque, como o advogado no tribunal, parecem empenhados em inocentar ou desacreditar alguém. Apesar dessa sobreposição de tipos de discurso, o discurso cerimonial ou epidíctico é um tipo distinto: difere do discurso deliberativo porque

seu objetivo principal é elogiar ou censurar alguém, não persuadir os outros a fazer ou não fazer algo; difere do discurso judicial porque seu

objetivo principal não é convencer juízes ou júris da culpa ou inocência

de alguém acusado de crime ou má conduta. Se não reconhecermos esse terceiro tipo de curso como uma categoria distinta, não teremos onde colocar discursos como discursos de independência, discursos fúnebres, discursos de nomeação em convenções políticas, comerciais de campanha em época de eleições, discursos de formatura, obituários, cartas de referência, citações e aquelas observações que os mestres de cerimônia fazem ao apresentar um orador destacado. Devemos ter uma categoria separada para aqueles discursos em que o objetivo principal é exaltar ou depreciar o valor de um indivíduo, um grupo de indivíduos, uma instituição, uma nação etc. Quais são, então, os tópicos especiais relevantes para esse tipo de discurso? Todos os retóricos concordam que o objetivo geral do discurso cerimonial é elogiar ou censurar uma pessoa ou grupo de pessoas. Sendo este o objetivo, os tópicos específicos óbvios seriam (1) qualidades e defeitos e (2) bens e realizações pessoais. Ao elogiar alguém, enfatizamos as qualidades e realizações notáveis da pessoa; ao censurar alguém, enfatizamos seus defeitos e a ausência de realizações significativas. Ao analisar o valor de alguém, consideramos o que a pessoa é e o que ela faz. Alguns atributos representam dons naturais; outros representam hábitos adquiridos. Embora pareça injusto elogiar alguém

pelos atributos com os quais ele nasceu (saúde, boa aparência, força), tanto os dons naturais quanto os hábitos adquiridos são comumente considerados dignos de elogio. É mais provável que encontremos discursos de elogio do que discursos de censura. Por causa das leis que regem a calúnia e a difamação de caráter, raramente vemos impressos discursos contra o caráter de uma

180

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS pessoa. Houve uma época, ainda no século xvIII, em que as leis que

protegiam a reputação pública de uma pessoa eram tão frouxas que difamações eram freqüentemente impressas e divulgadas. É difícil imaginar John Dryden sendo capaz de publicar hoje seu "Mac Flecknoe", um descrédito inteligente, mas brutal, do poeta irlandês Flecknoe. Ainda temos colunistas promotores de escândalos, mas eles costumam ter o cuidado de preservar o anonimato da pessoa cujos assuntos estão sendo expostos. Podemos examinar algumas virtudes (ou defeitos) comuns e os bens e realizações pessoais comuns (ou a falta deles) que aparecem nos discursos de elogio (ou censura). Devemos observar que, embora algumas virtudes, bens e realizações sejam universalmente reconhecidos e estimados por todas as pessoas, em todas as idades, outros gozam de uma estima mais elevada em alguns períodos e civilizações do que em outros. A humildade, por exemplo, parece não ter sido uma virtude tão valorizada na civilização que Homero retratou na Iliada e na Odisséia, mas na maioria das culturas cristãs, a humildade é considerada uma das virtudes supremas. Então, mais uma vez, devemos lembrar-nos da

importância da audiência e do contexto como determinantes do que é dito em um discurso persuasivo. A idade e o sexo de um público, seu nível econômico e educacional, suas afinidades políticas e religiosas, seus interesses e valores, tudo isso tem grande influência sobre os tipos de virtude, bem e realização que tendemos a enfatizar para uma audiência particular, em um determinado momento da história. A gentileza de um homem pode ser a virtude a enfatizar diante de uma audiência composta exclusivamente por mulheres; a coragem de um homem pode ser a virtude a enfatizar diante de uma audiência de trabalhadores. A seguir, algumas das virtudes comumente discutimos quando procuramos elogiar alguém (entre parênteses, os defeitos correspondentes, as falhas morais que mencionamos quando procuram desacreditar

alguém): 1. Coragem (covardia): bravura e força são comumente usadas como sinônimos desta virtude, mas força é um termo mais amplo, significando imperturbabilidade em face não apenas de situações perigosas, mas de qualquer

situação difícil (falamos, por exemplo da força de uma pessoa diante de problemas de saúde crônicos).

181

2. Moderação (indulgência): a virtude (e defeito) conectada com prazeres

físicos de todos os tipos: comer, beber, fumar, fazer sexo. A moderação na

satisfação desses desejos geralmente é considerada louvável na maioria das

culturas. 3. Justiça (injustiça): esses termos devem ser tomados em um sentido um

pouco mais restrito do que como tópicos especiais no discurso judicial. Aqui, podemos de nir justiça como a virtude de respeitar os direitos natu-

rais e legais dos outros.

4. Liberalidade (egoismo): generosidade é outra palavra para a virtude de dedicar tempo, dinheiro ou esforço para o bem dos outros. Altruismo é outro sinônimo próximo. s. Prudência (imprudência): a virtude intelectual de tomar decisões sensatas. Esta virtude é a base do bom senso ou da sabedoria prática.

6. Gentileza (brutalidade): bondade, por ser mais abrangente em suas impli-

cações, pode ser um termo melhor para esta virtude.

7. Lealdade (deslealdade): fidelidade a uma pessoa, um grupo, uma insti-

tuição, uma nação, um ideal, é uma qualidade universalmente admirada.

Esta lista de virtudes (e defeitos) evidentemente não é completa, ser-

vindo apenas para mostrar o tipo de qualidade de caráter que as pessoas

da maioria das culturas e épocas valorizam no homem ou na mulher e que contribuem para sua estima. Em geral, as virtudes que produzem benefícios para os outros serão mais valorizadas do que as virtudes que são boas principalmente para quem as possui. Vale observar que muitas das bem-aventuranças que Cristo mencionou em seu famoso Sermão da Montanha são virtudes sociais, virtudes que resultam em benefícios para os outros. Elogiamos uma pessoa pela santidade pessoal (e a santicação pessoal deve ser o objetivo principal de cada pessoa), mas é mais

fácil elogiar uma pessoa cujas virtudes beneficiam os outros. Por isso, entre outras coisas, São Paulo designou a caridade como a maior das

virtudes. Mas, novamente, precisamos enfatizar que as circunstâncias específicas ou o público específico podem ditar se seria melhor enfatizar as virtudes pessoais ou sociais de alguém. Embora a virtude seja um dos tópicos especiais a que recorremos

quando desejamos compor um discurso de louvor, existem outros bens e realizações que procuramos descobrir. Por exemplo, considere o seguinte:

182 fi

fi

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS 1. Atributos físicos: agilidade, força, boa aparência, saúde, resistência.

2. Circunstâncias externas: histórico familiar, educação, status econômico,

afiliações políticas, sociais e religiosas, amigos ("Diz-me com quem andas e te direi quem és"). 3. Conquistas: trabalho realizado, serviços prestados, homenagens recebidas, cargos ocupados; provérbios sábios, depoimentos de outras pessoas.

Muitos dos recursos usados no discurso cerimonial são os artifícios que romancistas, dramaturgos e contistas usam para caracterizar os personagens em suas ficções. O escritor de ficção usa diálogo (o que uma pessoa diz e como ela diz), ação (o que uma pessoa faz e como ela faz), descrição da aparência física, testemunho de outros personagens

na história e exposição direta da personalidade para dar aos leitores uma idéia dos personagens que aparecem na história. O escritor do discurso cerimonial tende a ser mais seletivo, entretanto, do que o escritor de ficção, concentrando-se nos aspectos mais proeminentes e favoráveis de uma pessoa. Aristóteles observou que o tópico comum de amplificação e depreciação desempenha um importante papel no discurso cerimonial, pois quando buscamos elogiar alguém, naturalmente tentamos magnificar ou amplificar suas virtudes e minimizar ou subestimar seus defeitos; e quando pretendemos censurar alguém, fazemos exatamente o contrário: ampliamos os defeitos e minimizamos as virtudes. Aristóteles apontou algumas maneiras úteis de ampliar ou aumentar o efeito do

elogio: 1. Mostrar que a pessoa é a primeira ou a única (ou quase a única) a fazer

algo. 2. Mostrar que a pessoa fez algo melhor do que qualquer outra, pois qualquer tipo de superioridade revela excelência. 3. Mostrar que a pessoa alcançou o mesmo sucesso com frequência, pois a freqüência indicará que o sucesso não foi devido ao acaso, mas aos próprios poderes da pessoa.

4. Mostrar as circunstâncias em que a pessoa realizou algo, pois isso redun-

dará em mais crédito se puder ser demonstrado que ela realizou algo, por exemplo, em circunstâncias adversas.

183

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 5. Comparar a pessoa com outras pessoas famosas, pois o elogio de uma

pessoa será ampliado se pudermos mostrar que ela se igualou ou superou indivíduos renomados.

Variações desses pontos podem ser usadas para depreciar alguém. Se pudermos mostrar, por exemplo, que muitas pessoas fizeram a mesma coisa, podemos minimizar as realizações de uma pessoa.

*** Nesta seção, revisamos os tópicos especiais que utilizamos quando queremos convencer um público de que um indivíduo ou grupo de indivíduos é grande, nobre, virtuoso ou competente (ou o contrário, que o indivíduo ou grupo de indivíduos é insignificante, vil, defeituoso ou inepto). Esses tópicos especiais nem sempre produzirão material a ser incorporado a um discurso de elogio (ou censura). Se uma pessoa não possuir uma virtude particular ou, pelo menos, não em um grau considerável, evidentemente não poderemos exaltar essa virtude na pessoa. Se uma determinada virtude não tem apelo especial para um determinado público, não seria sensato insistirmos nela. E se uma determinada virtude não é especialmente pertinente à ocasião, não adianta discorrer sobre esse atributo como forma de elogio. Péricles, autor de um dos exemplos clássicos de discurso cerimonial ou epidíctico, sua "Oração fúnebre", que canta os louvores aos soldados atenienses que lutaram e morreram na primeira campanha da Guerra

do Peloponeso contra Esparta, conta, no terceiro parágrafo dessa famosa oração, sobre as di culdades especí cas que acompanham esse

tipo de discurso: É realmente difícil falar com propriedade numa ocasião em que não é possível

aquilatar a credibilidade das palavras do orador. O ouvinte bem informado e disposto favoravelmente pensará talvez que não foi feita a devida justiça em face de seus próprios desejos e de seu conhecimento dos fatos, enquanto outro menos informado, ouvindo falar de um feito além de sua própria capacidade, será levado pela inveja a pensar em algum exagero. De fato, elogios a outras

pessoas são toleráveis somente até onde cada um se julga capaz de realizar

qualquer dos atos cuja menção está ouvindo; quando vão além disto, provo-

fi

fi

184

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS cam a inveja, e com ela a incredulidade (História da Guerra do Peloponeso, livro II, capítulo 4, de Tucídides [tradução de Mário da Gama Kury, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001]).

Devemos manter essas palavras criteriosas em mente quando estivermos compondo nosso próprio discurso de elogio ou analisando o discurso de elogio de outra pessoa. Nosso elogio não será ouvido se não parecer sincero, confiável e aceitável para nossos ouvintes ou leitores.

MANUEL BILSKY, MCCREA HAZLETT,

ROBERT E. STREETER E RICHARD M. WEAVER:

PROCURANDO UM ARGUMENTO Até este ponto, estivemos discutindo os tópicos de forma abstrata, com breves ilustrações ocasionais dos tópicos no discurso real e, posteriormente neste capítulo, forneceremos análises dos tópicos em discursos inteiros. Tais ilustrações e análises fornecem evidências de como os tó-

picos produziram conteúdo para um discurso já composto. Mas, na retórica antiga, os tópicos eram considerados artifícios geradores de conteúdo para um discurso ainda não composto. No artigo a seguir, os autores relatam como fizeram uso de quatro tópicos em uma aula de redação na Universidade de Chicago para ajudar seus alunos a encontrar algo a dizer em seus temas designados. 1. De um modo geral, acredita-se que os cursos de composição devem lidar com a argumentação, mas poucos lembram que a argumentação está relacionada à lógica. Muitos professores de inglês enfatizam

a importância de um pensamento "claro" ou "direto", implementando suas convicções com uma formação mais ou menos sistemática nos caminhos labirínticos do silogismo, o que é evidentemente valioso. Como a lógica fornece a forma de um bom argumento, ela deve ser tratada com algum rigor. 2. No entanto, a maioria das discussões modernas de argumentação parte do princípio de que todo o problema pode ser resolvido por meio da lógica. Os alunos serão capazes de argumentar bem, dizem, se aprenderem os princípios da lógica, praticarem a detecção de falácias

185

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO e forem levados a pensar honestamente. Para o ensino da composição, tal ponto de vista não é completamente satisfatório, porque os lógicos

excluem deliberadamente o assunto. Se isso não for demonstrado pelos complexos conjuntos de símbolos não lingüísticos que eles inventaram,

pode ser claramente estabelecido por um silogismo sem sentido: Se Gilbert e Sullivan escreveram Iolanthe, a queda de Napoleão foi, em grande parte, provocada por sua invasão da Rússia. Gilbert e Sullivan escreveram Iolanthe. Logo, a queda de Napoleão foi, em grande parte, provocada por sua invasão da Rússia.

Formalmente, este é um silogismo hipotético válido, mas devemos enfatizar que este silogismo é irrepreensível apenas no sentido formal. Uma única leitura revela que o argumento é ridículo. Claramente, professores e alunos de composição não podem parar no mesmo lugar do lógico. 3. Nosso principal objetivo é ensinar nossos alunos a escrever bem. Embora o desenvolvimento da análise lógica seja um meio valioso para

esse fim, precisamos de outras técnicas e ferramentas que ajudarão no processo de criação: precisamos descobrir maneiras de ajudar os alunos a encontrar argumentos relevantes e eficazes. Por ser formal em sua natureza e analítica em seu uso, a lógica, embora básica para o estudo da argumentação, não atende completamente a essa necessidade. Reconhecendo esse problema, a equipe de inglês da Universidade de Chicago explorou recentemente uma solução concreta. O que se segue é um resumo da teoria e prática desse experimento. 4. Podemos começar lembrando nossa concepção de que o aluno instruído em lógica está apenas parcialmente instruído em retórica. Ele aprendeu a escrever um argumento, mas o silogismo é apenas a estru-

tura de um argumento. A vaga sensação de frustração em relação ao

silogismo, freqüentemente apresentada pelos alunos, pode ser explicada

pelo fato de que o "argumento" ainda não passa de uma fórmula. No processo argumentativo, ainda falta o que os retóricos tradicionais chamam de invenção, ou seja, a descoberta de conteúdo, de material de

apoio relevante.

186

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS 5. Tudo isso aponta para a verdade de que, para ter qualquer poder

de comoção, um argumento deve dizer algo inteligível sobre o mundo real. Como os argumentos reais são feitos de tais predicações, encontra-

mos a maior parte do conteúdo para nossos argumentos interpretando e classificando nossas experiências. As mais fundamentais dessas cate-

gorias de interpretação são ser, causa e semelhança. Negá-las é negar

toda possibilidade de argumentação. Mas, na prática, ninguém as nega, pois assim que começamos a falar sobre o mundo, dizemos que tal e tal coisa existe como membro de tal e tal classe, ou que tal fator é a causa conhecida de determinado efeito (e vice-versa), ou que tal elemento tem certos pontos de semelhança com algum outro elemento. Esses aspectos

reconhecidos dos fenômenos fornecem exemplos do que os escritores clássicos chamam de topoi, "regiões", que veio a ser traduzido como

"tópicos". 6. Os tópicos são assim chamados porque constituem regiões de experiência das quais o conteúdo de um argumento pode ser extraído. No dia a dia, argumentamos dizendo que x é um tipo de coisa, ou que

x tem um efeito de nido conhecido, ou que x tem pontos importantes de semelhança com algo melhor compreendido do que ele mesmo. Os "tópicos" representam apenas uma análise desses tipos de elementos previsíveis que podem aparecer nos argumentos. Suponhamos, por exemplo, que um dia você seja parado por um ladrão, que o ameaça com um revólver, pedindo que você lhe passe todo o seu dinheiro. Se você tivesse oportunidade de argumentar, talvez variasse entre as se-

guintes "regiões" ou possibilidades: 1. Dizer-lhe que o que ele está tentando fazer é crime. Este seria o argumento do gênero. 2. Dizer-lhe que seu ato pode resultar em prisão. Este seria o argumento da consequência. 3. Dizer-lhe que ele também não gostaria de ser roubado. Este seria o argumento da semelhança. 4. Dizer-lhe que o roubo é proibido pela Bíblia. Este seria o argumento da autoridade.

Embora possa parecer que estamos abusando da paciência de nosso

ladrão hipotético, devemos admitir que cada um desses argumentos

fi

187

fi

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO tem certo grau de força, que o silogismo abstrato não pode ter. É por

isso que dizemos que agora inventamos argumentos. As áreas das quais eles podem ser extraídos aqui começam a surgir com alguma nitidez, e,

portanto, temos o início de um "tópico". 7. Em nosso ensino, costumamos nos referir a esses tópicos como as "fontes" de argumentação, que é outra maneira de indicar sua natureza.

Voltando à sala de aula para ilustração: suponha que agora o aluno re-

ceba a tarefa de escrever um argumento sobre liberdade de expressão,

democracia ou federação mundial. Com essas fontes delineadas, ele pode começar a desenvolver sua idéia, consultando áreas reconhecidas

de experiência e observação, como gênero, consequência, semelhança etc. Mesmo o aluno de habilidade limitada descobrirá que tem mais a dizer sobre o assunto do que pensava inicialmente. II

8. Naturalmente, a introdução da abordagem de tópicos em um curso de redação universitária exige algumas decisões práticas. Uma das mais importantes delas diz respeito à escolha dos tópicos especícos a serem apresentados. Quando nos comprometemos a ensinar os

tópicos como parte do curso de redação de Chicago, decidimos utilizar só alguns tópicos, mas de forma que eles pudessem ser relacionados a uma lista muito mais longa. Isso dá margem de manobra ao professor latitude, permitindo-lhe enfatizar um ou outro aspecto de qualquer um dos tópicos. Em seguida, tínhamos em mente que queríamos tópicos úteis na arte de ensinar composição. O resultado foi uma lista relativamente limitada, mas pedagogicamente útil, com um considerável grau

de flexibilidade. GÊNERO 9. O argumento do gênero ou definição compreende todos os argumentos feitos com base na natureza de algo. Ao apresentar este tipo de

argumento, simplesmente remetemos qualquer fato ou idéia que seja o assunto de nossa deliberação à sua classe. Se o nosso público ficar

suficientemente impressionado com a classe (ou seja, com uma classe que contém esse elemento, entre outros), ele admitirá que tudo o que é

188

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS verdade para a classe é verdade para o fato ou idéia em questão. Esse é

o objetivo de nosso argumento.

10. Por exemplo: suponha que alguém esteja tentando argumentar que determinada política scal do governo é indesejável. O que ele pode fazer, se estiver usando o argumento do gênero, é remeter essa política à

classe "in ação". Ora, se ele tiver sucesso nisso, ele transferirá o signi cado da in ação (e, supostamente, o sentimento em relação a ela) para

a política scal do governo que está atacando. Estamos presumindo aqui que o orador diz apenas "isso é in ação". Se ele entrar nas consequências da in ação, estará deixando o argumento do gênero para apresentar o argumento adicional da consequência. A mesma análise vale para "isso é traição", "isso é uma traição da classe trabalhadora", "isso é americanismo de verdade" e para qualquer outro argumento com motivações baseadas em um gênero xo previsível. A propósito, vale ressaltar que o treinamento no uso crítico e preciso do gênero é a melhor proteção possível contra "abusos verbais" irresponsáveis.

11. Ao ensinar os tópicos, pode ser necessário, em algum ponto, levar em consideração o fato empírico de que os argumentos empregam

dois tipos de definição (e pode ser possível distingui-los como [1] gênero

e [2] definição). O primeiro tipo emprega convenções universalmente aceitas, para as quais o orador não sente que seja necessária uma descrição, análise ou "prova", bastando nomeá-las. Provavelmente, para

um pastor com uma congregação um tanto ortodoxa, "pecado" é um termo assim. Portanto, quando ele categoriza, seja de modo categórico ou por meio de uma longa exposição, tal e tal ação como "pecado", ele já defendeu sua tese. O gênero está tão estabelecido que ele nem precisa justificar suas idéias.

12. De qualquer maneira, há muitos termos cujo escopo não é, de

forma alguma, fixo, de modo que qualquer emprego bem-sucedido deles requer definição explícita. É preciso defini-los, porque sabemos que

suas definições corretas não são percebidas. Um bom exemplo desse

tipo de termo é "liberdade" no famoso ensaio de John Stuart Mill com esse nome. Mill propõe-se a discutir certas proposições sobre a liberdade e o indivíduo, mas antes, precisa passar por um longo processo de definição. Só depois ele pode usar "liberdade" como um gênero de base para aprovar ou desaprovar certas ações. Hoje em dia, devemos fazer a mesma coisa ao discutir sobre "democracia". O termo "democracia" é

fi

fl

fi

fi

fl

fi

fl

fl

189

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO cercado de tanta nebulosidade que não podemos esperar um consenso

quanto à sua concepção até que ele seja definido. Ou seja, o gênero não está claro na mente do público. 13. Naturalmente, o processo de argumentação é o mesmo em ambos os casos, mas, no primeiro, o gênero está pronto, no segundo, ele deve ser definido. É bom saber disso, porque os alunos encontrarão em suas leituras muitos argumentos voltados, na maior parte, à concepção dos gêneros. Só depois de fixados esses pontos, o escritor está preparado para fazer proposições com referência a casos específicos. CONSEQÜÊNCIA

14. No argumento da consequência, são apresentadas as relações causais entre as experiências. Tal como acontece com os argumentos de gênero e definição, esses argumentos podem empregar ligações causais evidentes e comumente aceitas, ou o escritor pode procurar estabelecer ligações menos conhecidas. Esses argumentos costumam ir direto da causa para o efeito ou do efeito para a causa. O simples argumento de causa-efeito é bem ilustrado no Speech on American Taxation, "Discurso

sobre a tributação americana", de Burke, onde o argumento passa da causa (tratamento injusto das colônias americanas) para o efeito (descontentamento, desordem, desobediência). O argumento clássico do efeito para a causa é a prova da existência de Deus a partir da existência

de ordem no universo. O argumento aqui consiste em observar o efeito e, então, postular uma causa que explicará esse efeito. 15. Um argumento mais complexo às vezes é chamado de "argu-

mento do sinal". Muitas causas têm uma multiplicidade de efeitos. Uma onda de frio não apenas produzirá gelo nos lagos, mas fará com que as pessoas se agasalhem bem. Quando alguém observa alguns efeitos e argumenta a partir deles para a causa e daí para outro efeito, está argumentando a partir do sinal. O gelo e o uso de agasalhos são efeitos

da causa, o frio. Ao observar um efeito, podemos raciocinar para a causa e daí para outro efeito, que, neste exemplo, é uma linha de ação. 16. Todos esses argumentos estão em uso constante em nossa civilização. O político argumenta que, se for eleito (causa), haverá melhor governo (efeito); ele argumenta que a atual corrupção no governo (efeito) deve ter sido produzida por uma administração corrupta (causa); e que

190

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

seu lar feliz, carreira de sucesso e firmes afiliações religiosas e cívicas são sinais claros de que ele administrará o cargo que busca com inteligência

e honestidade. SEMELHANÇA E DIFERENÇA 17. Na verdade, semelhança e diferença são dois tópicos separados,

mas, como sua estrutura é bastante parecida, eles podem ser agrupados.

Não há diferença significativa entre semelhança e o que chamamos de

"analogia". Da mesma forma, a diferença corresponde ao que alguns lógicos chamam de "analogia negativa". Uma coisa importante a lembrar em ambas as analogias é que elas se baseiam em dois casos; isto é, ao usar semelhança ou diferença, argumentamos de um caso para outro, ao contrário da indução, quando argumentamos de um grande número de casos particulares para uma regra ou lei geral. 18. Às vezes, é feita uma distinção entre dois usos de semelhança (ou analogia). O retórico Whately, por exemplo, sugere que ela pode ser usada não só "para provar a proposição em questão, mas para que ela seja compreendida com maior clareza. Quando lembramos que o termo "analogia" às vezes é usado como sinônimo de "metáfora", vemos que a

situação pode complicar ainda mais. Para nosso propósito, no entanto, podemos desconsiderar tais distinções. Na verdade, podemos a rmar que todas as comparações são usadas como argumento. Portanto, não erraremos muito se tratarmos tanto a analogia quanto a metáfora como argumentos. TESTEMUNHO E AUTORIDADE 19. O testemunho e a autoridade diferem dos outros tópicos, pois

raramente aparecem sozinhos como a fonte primária de um argumento extenso. Trata-se de uma fonte "externa" de argumentação, porque sua força deriva não do assunto imediato do discurso, mas da consideração

da competência e integridade da testemunha: se homens bons e sensatos acreditam nisso, deve ser assim. Este tópico pode ser direcionado para a confirmação de uma proposição geral ou de uma circunstância específica. O testemunho e a autoridade envolvem também as tentativas dos escritores de estabelecer sua própria credibilidade como teste-

fi

191

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO munha ou probidade como juiz e, inversamente, em alguns casos, um esforço para mostrar que seu opositor é descuidado com os fatos e in-

fundado no julgamento. Finalmente, o próprio estilo, por meio do uso

da terminologia ou mesmo da sintaxe, associado a pessoas, idéias ou

instituições reverenciadas, pode constituir um apelo sutil à autoridade. III

20. Podemos objetar que, embora essa abordagem para o ensino da argumentação tenha atratividade teórica, sua relevância para o trabalho

diário de escrever uma composição é um tanto tênue. Alguns podem sentir, como alguns de nós sentimos durante as discussões preliminares

da idéia, que, por mais plausível que a introdução dos tópicos possa parecer em tese, sua prática só criaria confusão em sala de aula, pois re-

presenta outra barreira de terminologia entre o pensamento dos alunos

e sua argumentação escrita. No entanto, podemos dizer, por experiên-

cia, que os tópicos estão intimamente relacionados com os problemas dos alunos ao escrever argumentos, ajudando-os a esclarecer as idéias

que eles desejam colocar no papel e cumprindo seu propósito central:

estimular a capacidade do aluno de encontrar argumentos relevantes e eficazes.

21. Talvez a natureza dessa interação entre teoria e prática possa ser esclarecida com um breve relato da maneira como familiarizamos nossos alunos com a análise de tópicos. Primeiramente, para mostrar o que é um tópico e exempli car os quatro tópicos escolhidos, apresentamos uma série de pequenos trechos argumentativos, classi cados de acordo com o principal tópico empregado em cada um. Assim, em gênero, mostramos que Tom Paine utiliza uma de nição de constituição "verdadeira" como base para seu argumento de que o governo britânico é fundamentalmente sem lei. Assim que os alunos demonstram alguma habilidade para compreender e reconhecer tópicos específicos, eles devem escrever uma série de argumentos breves, nos quais experi-

mentam a adequação de várias abordagens tópicas. Deve-se observar que os alunos não são instruídos a criar um argumento ilustrando um determinado tópico, mas a escrever argumentos a favor ou contra certas

proposições escolhidas por sua simplicidade, proximidade aos interesses dos alunos e capacidade de gerar polêmica.

fi

fi

fi

192

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS 22. Obviamente, em qualquer argumento razoavelmente complexo, um escritor habilidoso recorrerá a uma variedade de tópicos, transitando facilmente entre eles para expor tudo o que tem a dizer. Conseqüentemente, depois de apresentar os tópicos por meio de trechos breves e categorizados, voltamos nossa atenção para o exame de vários argumentos substanciais (entre eles O Federalista n° 10; Primeiro dis-

curso inaugural, de Lincoln; Desobediência civil, de Thoreau; Modesta

proposta, de Swift; A Free Man's Worship, de Bertrand Russel; "O co-

nhecimento como fim em si mesmo", de Newman), em que várias abordagens tópicas podem ser observadas no contexto menos artificial de uma discussão rica e real. Acompanhando o estudo desses textos está a escrita de dois ou três argumentos razoavelmente longos, nos quais

o aluno tem a oportunidade de praticar não apenas sua habilidade de reconhecer tópicos relevantes, mas também de incorporar vários argumentos tópicos em um todo sistemático e persuasivo. 23. O resultado mais significativo e visível da experimentação com

o programa descrito acima foi um aumento impressionante na riqueza

dos argumentos dos alunos. Com os tópicos como referência, nossos escritores mostram muito menos timidez em se lançar ao cerne das situ-

ações argumentativas, em vez de contornar o assunto, de forma tímida

e cautelosa, como faziam no passado. Graças a isso, fortalecemos nossa

convicção de que o ensino da argumentação tem um papel primordial no curso de redação. Na medida em que a familiaridade com os tópicos retóricos melhora a capacidade dos jovens escritores de procurar e reconhecer os argumentos racionais apropriados à linha de pensamento

ou ação que eles defendem, o método que descrevemos possibilita uma

abordagem séria à argumentação. Os alunos que sabem empregar os

tópicos dificilmente se desesperarão, demonstrando que, com uma técnica para auxiliá-los na detecção e avaliação de argumentos, eles têm algo a dizer sobre qualquer assunto, até os mais polêmicos.

RICHARD L. LARSON: UM PLANO PARA O ENSINO DE INVENÇÕES RETÓRICAS Um dos problemas dos tópicos como artifício de composição, especialmente quando são apresentados como no início deste capitulo e no artigo anterior,

193

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO como categorias ou títulos, como definição, semelhança, diferença, é que eles tendem a ser inertes. Conseqüentemente, os alunos não sabem utilizar os tópicos para encontrar idéias sobre algum assunto ou tese. Quando os tópicos são colocados na forma de perguntas, no entanto, eles parecem funcionar melhor para os alunos como artifícios geradores de idéias, talvez porque uma pergunta, por sua própria natureza, estimule uma resposta. A fórmula de perguntas de uma única palavra, frequentemente ensinada nas escolas de jornalismo como orientação para o que deve ser incluído no parágrafo introdutório de uma notícia (Quem? O quê? Quando? Onde? Como?), é um artifício tópico desse tipo. Na seleção a seguir, Richard L. Larson apresenta uma série de perguntas tópicas que podem ajudar o aluno a encontrar idéias para escrever sobre assuntos ou proposições. Na primeira parte do artigo de onde foi tirada esta lista de perguntas, o professor Larson diz: "Proponho, portanto, que em nosso ensino de 'invenção' façamos um esforço constante para obrigar o aluno a se familiarizar tanto quanto possível com os fatos, as possíveis relações entre os fatos, as experiências sobre as quais ele pode escrever, obrigando-o a entrar em contato com essas experiências e a examinar os fatos subjacentes aos conceitos que ele considera importantes e o conteúdo das proposições que servirão de base para sua composição. [...] Proponho que os alunos cheguem a esse conhecimento completo de suas experiências, conceitos e proposições por meio de um processo de questionamento sistemático e pessoal, não conduzido pelo professor. [...] É claro que nem todas as perguntas produzirão respostas úteis para todos os assuntos, e o aluno deve aprender quais perguntas fornecem idéias valiosas sobre determinados assuntos e quais são comparativamente infrutíferas"

1. "Tópicos" que suscitam comentários A. Escrevendo sobre itens únicos (atualmente existentes) Quais são suas características físicas (forma, dimensões, composição etc.)?

Em que aspectos ele difere de coisas semelhantes?

Qual é seu "intervalo de variação" (o quanto podemos mudá-lo e ainda identificá-lo como aquilo com que começamos)?

2 Extraído de "Discovery Through Questioning: A Plan for Teaching Rhetorical Invention", College

English, 30 (novembro de 1968): 126-34. Copyright 1968 do National Council of Teachers of English. Reproduzido com permissão.

194

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Ele lembra outros objetos que observamos anteriormente na vida? Por

quê? Em que aspectos? De que pontos de vista ele pode ser examinado?

Que tipo de estrutura ele tem? Como suas partes funcionam em conjunto? Como suas partes são unidas? Quais são as proporções entre as partes? A que estrutura (classe ou sequência de itens) ele pertence? Quem ou o que o produziu dessa forma? Por quê? Quem precisa dele? Quem o usa? Para quê? A que propósito ele pode servir? Como ele pode ser avaliado para esses fins?

B. Escrevendo sobre eventos únicos concluídos ou partes de um processo

em andamento (estas perguntas podem aplicar-se a cenas e imagens, bem como a obras de ficção e drama) O que aconteceu exatamente? (Diga a sequência precisa: Quem? O quê? Quando? Como? Por quê? Quem fez o que a quem? Por quê? O que fez o que a quê? Como?).

Quais foram as circunstâncias em que o evento ocorreu? Como elas contribuíram para que isso acontecesse? Quais as semelhanças e diferenças entre esse evento e eventos parecidos? Quais foram suas causas?

Quais foram suas consequências? O que implica sua ocorrência? Que ação (se houver) é necessária? O que foi afetado (indiretamente) por esse evento? O que ele revela ou enfatiza sobre alguma condição geral? A que grupo ou classe ele pode ser atribuído?

Esse evento é (em geral) bom ou ruim? Com base em qual padrão? Como

chegamos ao padrão?

Como sabemos sobre o evento? Qual é a base das nossas informações? Quão confiável é nossa fonte? Como sabemos que é ela confiável (ou não confiável)?

Como o evento poderia ter sido alterado ou evitado?

195

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO A quais outros eventos ele estava conectado? De que maneira? A que tipo de estrutura (se houver) ele pode ser atribuído? Baseado em quê?

C. Escrevendo sobre conceitos abstratos (por exemplo, "religião",

"socialismo") A quais itens específicos, grupos de itens, eventos ou grupos de eventos a(s) palavra(s) se conecta(m), em sua experiência ou imaginação?

Que características um item ou evento deve ter para que o nome do conceito se aplique a ele? Em que aspectos as referências desse conceito diferem das coisas que

nomeamos com conceitos semelhantes (por exemplo, "democracia" e "so-

cialismo")? Como o termo foi usado por escritores que você leu? Como eles o definiram implicitamente? A palavra tem valor "persuasivo"? O uso dela em conexão com outro conceito parece enaltecer ou condenar o outro conceito?

Você é a favor de todos os fatores incluídos no conceito? Por que ou por que não? D. Escrevendo sobre conjuntos de itens (atualmente existentes) [Estas

perguntas vão além das perguntas sobre itens individuais, que evidentemente se aplicam a cada item do grupo] O que, exatamente, os itens têm em comum?

Se eles têm características em comum, em que aspectos eles diferem?

Como os itens se relacionam entre si, se não por características comuns? O que é revelado sobre eles pela possibilidade de agrupá-los dessa forma?

Como o grupo pode ser dividido? Que bases de divisão podem ser encontradas? Que correlações, se houver, podem ser encontradas entre os vários subgrupos possíveis? Algo é revelado pelo estudo dessas correlações? Em que classe, se houver, o grupo como um todo pode ser colocado?

E. Escrevendo sobre grupos de eventos concluidos, incluindo processos

[Estas perguntas são além das perguntas sobre eventos individuais con-

cluídos, que evidentemente se aplicam a cada evento do grupo. Estas

196

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

perguntas também se aplicam a obras literárias, principalmente ficção e drama] Quais são os eventos em comum? Se eles têm características em comum, em que aspectos eles diferem?

Como os eventos estão relacionados entre si (se eles não fazem parte de uma sequência cronológica)? O que é revelado pela possibilidade de agrupá-los dessa(s) forma(s)?

O que é revelado pelos eventos quando considerados em grupo?

Como o grupo pode ser dividido? Em que base? Que possíveis correlações podem ser encontradas entre os vários subgrupos? Em que classe, se houver, os eventos tomados como um grupo podem se encaixar?

O grupo pertence a alguma outra estrutura além de simplesmente um grupo maior de eventos semelhantes? (É parte de uma sequência cronológica mais inclusiva? Existe mais uma evidência que pode apontar para uma conclusão sobre a história? E assim por diante).

A quais antecedentes o grupo de eventos remete? Onde eles podem ser

encontrados? Quais implicações, se houver, o grupo de eventos tem? O grupo aponta para a necessidade de algum tipo de ação?

II. "Tópicos" com "comentários" já anexados

A. Escrevendo sobre proposições (declarações a serem aprovadas ou

refutadas) O que deve ser estabelecido para os leitores acreditarem na proposição?

Em quais subproposições, se houver, a proposição pode ser decomposta? (Que declarações menores que ela contém?).

Quais são os significados de suas palavras-chave?

De qual linha de raciocínio ela é aparentemente uma conclusão?

Como podemos contrastá-la com outras proposições semelhantes? (Como podemos mudá-la, se é que podemos, e ainda ter mais ou menos a mesma proposição?). A que classe (ou classes) de proposições ela pertence?

Quão inclusiva (ou quão limitada) ela é?

197

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO O que está em questão, se alguém tentar provar a proposição? Como ela pode ser ilustrada?

Como ela pode ser provada (com que tipo de evidência)? O que pode ser dito em oposição a ela? Ela é verdadeira ou falsa? Como sabemos? (observação direta, autoridade, dedução, estatísticas, outras fontes).

Por que alguém pode não acreditar nela?

O que ela pressupõe? (Em que outra proposição ela se baseia?).

O que ela implica? (O que se segue dela?).

Segue-se da proposição que algum tipo de ação deve ser realizado? O que ela revela (significa, se for verdadeira)? Se for uma previsão, quão provável é? Em que observações de experiências passadas ela se baseia?

Se for uma chamada à ação, quais são as possibilidades de que a ação seja realizada? (Ela é viável?).

Quais são as probabilidades de que a ação, se realizada, cumpra seu propósito? (A ação exigirá trabalho?).

B. Escrevendo sobre perguntas (frases interrogativas) A pergunta se refere ao tempo passado, presente ou futuro? O que a pergunta pressupõe?

Com base em que dados as respostas podem ser buscadas? Por que surge a pergunta?

O que, fundamentalmente, está em dúvida? Como testar e avaliar isso? Que proposições podem ser apresentadas em resposta? Cada proposição é verdadeira?

Se for verdadeira: O que acontecerá no futuro? O que se segue disso?

Quais dessas previsões são possíveis? E prováveis?

Quais ações devem ser tomadas (evitadas) em consequência? [A maioria das outras questões listadas em "proposições" também se aplica

aqui]

198

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

AUXÍLIOS EXTERNOS À INVENÇÃO Consideramos os tópicos como aqueles "lugares" aos quais o escritor pode recorrer a fim de obter ajuda para inventar ou encontrar argumentos. Os tópicos podem ser chamados de "meios de persuasão artísticos" (entechnoi pistis), porque são os meios ensinados pela arte da retórica. Além deles, Aristóteles falou dos "meios de persuasão não-artísticos" (atechnoi pistis), "não-artísticos" no sentido de que esses recursos não pertenciam especificamente à arte da retórica: eles existiam fora da arte.

Se os livros de referência existissem em abundância na Atenas do século Iv, Aristóteles certamente teria encorajado seus alunos a consultá-los como auxílios externos à invenção. Devido à necessidade de um grande conjunto de conhecimentos especiais, Cícero e Quintiliano sustentavam que uma ampla educação liberal era a melhor formação para

um orador. Os estudantes contemporâneos ainda podem obter uma ampla educação liberal, mas, além disso, eles têm bibliotecas bem abas-

tecidas à sua disposição para preencher as lacunas de conhecimento. Eles também podem recorrer às informações armazenadas em computadores, mas, por enquanto, nem todos os alunos têm acesso a um computador e, por isso, eles deverão contentar-se com os recursos de uma biblioteca. Para tirar proveito dos ricos recursos da biblioteca, porém, o indivíduo deve conhecer o conteúdo da biblioteca e desenvolver alguma estratégia para acessar esse conteúdo. O que será proposto aqui será uma estratégia de pesquisa, uma série

de etapas que podem ajudá-lo, de forma sistemática, a ter acesso aos recursos mais relevantes e úteis de uma biblioteca para seus propósitos.

Nesta sequência de etapas, passamos sucessivamente das obras de referência mais gerais para as mais específicas. Normalmente, seguimos

linearmente de uma etapa para outra, mas sempre podemos voltar às etapas anteriores se julgarmos necessário. Por exemplo, dicionários são

as obras de referência a serem consultadas na segunda etapa, mas você pode julgar necessário retornar aos dicionários várias vezes durante a

pesquisa. Além disso, ao investigar alguns assuntos, você chegará à conclusão de que pode pular algumas etapas da sequência. Depois de um tempo de experiência, você saberá quais etapas da sequência podem ser puladas em um determinado assunto.

199

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO As etapas desta estratégia de pesquisa são as seguintes:

1. Enciclopédias

2. Dicionários

3. Manuais

4. Bibliografias 5. Catálogo de fichas 6. Índices de periódicos, jornais e citações 7. Índice de ensaio e literatura geral

8. Índices biográficos e de resenhas de livros

9. Concordâncias e livros de citações 10. Fontes estatísticas e documentos governamentais

Depois de consultar essas categorias de fontes de referência, na maioria dos casos, você terá grande riqueza de informações sobre o assunto que está pesquisando. Se, eventualmente, você tiver que fazer seleções no monte de informações que coletou, provavelmente você deverá ava-

liar as informações quanto à relevância, exatidão e credibilidade. A avaliação sobre a exatidão e a credibilidade das informações podem depender do conhecimento ou reputação do autor, e para descobrir sobre esse conhecimento ou reputação, talvez você tenha que consultar uma ou mais obras de referência biográ ca. Para avaliar a con abilidade das informações, você também pode consultar as resenhas dos livros em que as encontrou (um trabalho de referência como o Book Review Digest pode ajudá-lo) ou pode ler as descrições dos periódicos em obras de referência como Classified List of Periodicals for the College Library, sa

ed., de Evan Ira Farber (Westwood, Mass.: Faxon, 1972) e Magazines for Libraries: For the General Reader and School, Junior College, College

University, and Public Libraries, 4ª ed., de William A. Katz e Linda

Sternberg Katz (Nova York: Bowker, 1982). Na seção a seguir, apresento algumas obras de referência que se en-

quadram em uma ou outra das dez categorias da estratégia de pesquisa

mencionada. Para descrições de outras obras de referência úteis não

abordadas aqui, você pode consultar o Guide to Reference Materials, 4ª ed., de Albert J. Walford (Londres: The Library Association, 1980), 3 vols. ou Guide to Reference Books, 9ª ed., de Eugene P. Sheehy (Chicago: American Library Association, 1976; Suplementos em 1980 e 1984).

fi

fi

200

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

Lembre-se também de que você pode, e deve, pedir ajuda ao pessoal que trabalha na biblioteca.

Após a apresentação dos trabalhos de referência selecionados, Virginia M. Tiefel, Diretora de Educação do Usuário de Biblioteca das Bibliotecas da Universidade Estadual de Ohio, utilizará um tópico de amostra nas dez etapas da estratégia de pesquisa para ilustrar como o sistema funciona.

BIOGRAFIA Dictionary of National Biography, ed. Leslie Stephen e Sidney Lee. Originalmente publicado em 63 volumes por Smith, Elder & Co., 1885-1901; reeditado em 21 volumes (combinando três volumes em um) por Macmillan, 1908-09.

Uma enciclopédia da biografia britânica sobre o plano e o escopo de algumas outras coleções biográficas européias (as francesas, 40 volumes, 1843-63; as holandesas, 24 volumes, 1852-78; as austríacas, 60 volumes, 1856-91; as alemãs, 55 volumes, 1875-1900). Em I de janeiro de 1885, apareceu o primeiro volume do Dictionary of National

Biography (abreviado como DNB), com sos biografias escritas por 87

colaboradores. Em quinze anos, esta obra monumental de 63 volumes, contendo 29.120 biografias, foi concluída. No outono de 1901, três vo-

lumes suplementares foram publicados, contendo cerca de 800 esboços

biográficos de notáveis ingleses que morreram durante o andamento de seu trabalho e cerca de 200 memórias de celebridades que haviam sido esquecidas na lista original. (Esses três volumes tornaram-se o volume xxII da reedição de Macmillan). Em 1912, Macmillan publicou o segundo suplemento em três volumes para cobrir os anos 1901-I911.

Desde 1920, a Oxford University Press é a editora do DNB e do segundo ao sétimo suplemento (1912-1971), cada um cobrindo uma década. O DNB é valioso por ser, muitas vezes, a única fonte de informação

biográfica sobre homens e mulheres britânicos importantes o suficiente

para ter merecido menção em jornais e livros, mas não importantes o suficiente para ter merecido uma biografia completa ou mesmo um

esboço biográfico em uma enciclopédia. O DNB também é útil para quem busca biografias relativamente breves, mas confiáveis, de esta-

201

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO distas, generais, clérigos, cientistas, escritores, pintores etc. A biografia

mais longa do DB é a biografia de 49 páginas que Sidney Lee escreveu

sobre Shakespeare. Embora muitas das biografias tenham menos de uma página, a maioria das celebridades recebe um tratamento extenso, mas compacto. Fontes adicionais de informações biográficas, quando disponíveis, são listadas na bibliografia ao final de cada artigo.

Dictionary of American Biography, ed. Allen Johnson e outros (Nova York: Charles Scribner's Sons, 1928-1937), 20 volumes e índice; Suplementos 1-4, Scribner's 1944-74. Esta coleção de biografias americanas, iniciada pelo American Council of Learned Societies em 1922, foi padronizada no Dictionary of National Biography. O comitê editorial estabeleceu estas restrições negativas para inclusão: (1) nenhuma pessoa viva; (2) nenhuma pessoa que não tenha vivido no território conhecido como Estados Unidos; (3) nenhum oficial britânico servindo nos Estados Unidos depois que as colônias

declararam sua independência. A qualificação positiva para inclusão foi declarada em termos bastante gerais: "Aqueles que fizeram alguma contribuição significativa para a vida americana". Esses critérios permi-

tiram a admissão no DAB de pessoas que não são, a rigor, americanas: Lafayette, por exemplo.

Os vinte volumes originais continham 13.633 artigos biográ cos. Os suplementos 1-4 adicionaram biogra as de 2.371 americanos que morreram no período entre 1935 e 1950.

Como o DNB, o DAB costuma ser a única fonte de informações biográ cas sobre americanos falecidos e relativamente desconhecidos, mas

O DAB também fornece esboços biográ cos compactos de americanos

falecidos importantes. O livro de memórias de Benjamin Franklin, por exemplo, ocupa 25 colunas completas no volume vI. James Franklin (1696/7-1735), seu meio-irmão, ocupa apenas uma coluna e meia no mesmo volume. As biografias são baseadas em fontes originais e confiáveis, muitas listadas em bibliografias cuidadosamente selecionadas no final de cada artigo. As biografias são organizadas alfabeticamente, de

acordo com o sobrenome da pessoa.

fi

fi

fi

fi

202

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

Who's Who in America, "A Biographical Dictionary of Notable Living Men and Women" (Chicago: A. N. Marquis Co., 1899). Esta é uma fonte valiosa de dados biográficos sobre proeminentes ame-

ricanos vivos. Iniciado em 1899, este trabalho é revisado e reeditado a cada dois anos. A introdução ao volume xxx fornece os critérios de

inclusão: Os padrões de admissão dividem os elegíveis em duas classes: (1) aqueles sele-

cionados por conta de destaque especial em vidas de esforço dignas de crédito,

tornando-os objetos de amplo interesse, investigação ou discussão; (2) aqueles

incluídos arbitrariamente por causa da posição civil, militar, religiosa, educacional, corporativa ou organizacional. Entre os da segunda categoria estão todos os membros do Congresso e do Gabinete, juízes federais, governadores de Estados, reitores de gran-

des universidades, oficiais militares acima do posto de general de bri-

gada, membros da Academia Nacional, bispos e principais eclesiásticos

das maiores denominações religiosas. Insistindo que seus biografados

levam "vidas dignas de crédito", a Marquis Company automaticamente exclui de volumes posteriores qualquer biografado que tenha sido con-

denado por um delito ou crime grave.

A maioria dos biografados fornece suas próprias informações biográficas. Embora os tipos de informação sejam fixados pelos editores, a

quantidade de informações fornecidas é deixada, em grande parte, para

o biografado. No volume xxx, por exemplo, o Presidente Eisenhower

tem apenas 19 linhas; seu irmão Milton, então presidente da John Hopkins University, tem 52 linhas.

Os estudantes devem lembrar que esta é uma fonte de referência apenas para americanos vivos. Quando uma pessoa morre, ela pode ser

relegada a outra publicação da Marquis, Who Was Who in America. Para encontrar informações sobre uma pessoa em particular, os estudantes devem consultar o livro quando a pessoa ainda está viva e ocupa

uma posição de destaque/cargo público que automaticamente ganha acesso a Who's Who in America.

203

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO A Marquis Company também publica periodicamente quatro

obras biográficas regionais: Who's Who in the East; Who's Who in the Midwest; Who's Who in the West; Who's Who in the South and Southwest.

Enquanto apenas três de cada 10.000 americanos vivos são importantes o suficiente para merecer inclusão na lista nacional Who's Who in America, outros doze de cada 10.000 americanos vivos foram incluídos em um dos quatro volumes regionais. Portanto, se os estudantes não encontrarem uma pessoa no volume nacional, devem consultar o volume regional correspondente. A Marquis Company também publicou trabalhos de referência biográfica sobre pessoas associadas a uma profissão ou negócio, por exemplo, Who's Who in Finance and Industry; pessoas associadas a um grupo estrangeiro-americano, por exemplo, Italian-American Who's Who; pessoas associadas a um determinado grupo religioso ou racial, por exemplo, American Catholic Who's Who e Who's Who in Colored America.

Who's Who Londres: Adam e Charles Black; Nova York: St. Martins 1849, revisado e reeditado anualmente. O trabalho Who's Who, publicado pela primeira vez na Grã-Bretanha em 1848, serviu de modelo para o dicionário biográfico americano de cidadãos vivos importantes, fornecendo informações biográficas sobre notáveis britânicos vivos. Seus critérios de elegibilidade são praticamente os mesmos do equivalente americano. Cada volume de Who's Who começa com uma lista das pessoas importantes que morreram desde a edição do último volume. Depois de falecidos, esses indivíduos aparecem em um volume posterior de uma obra associada, chamada Who Was Who. Seis volumes de Who Was Who foram publicados, cada um abrangendo cerca de uma década, desde 1897 até 1970. O título Who's Who tornou-se tão familiar quanto Webster, de modo que as pessoas costumam usar esse título também para a edição americana, embora ela seja intitulada Who's Who in America.

International Who's Who Londres: Europa Publications, 1935.

204

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS As biografias nesta compilação anual são muito breves, mas muitas pes-

soas famosas no mundo inteiro aparecem aqui. Grande parte das per-

sonalidades abrangidas nesta obra está incluída nos diversos dicionários biográficos nacionais, mas esta é uma obra de referência conveniente para aquelas pessoas ou bibliotecas que não têm dinheiro para comprar

vários dicionários nacionais. Outro ponto forte deste trabalho é a inclusão de indivíduos notáveis de países menores, cujas biografias não estão disponíveis nas fontes usuais. Current Biography Nova York: H. W. Wilson Company, 1940. A Current Biography, publicada anualmente, é outra fonte valiosa de informações biográ cas sobre pessoas importantes da atualidade, diferindo de Who's Who e Who's Who in America em vários aspectos. Cada volume contém apenas 300-350 novas biogra as, mas a abrangência

é mundial. Os esboços biográficos são compostos por membros da equipe editorial, não fornecidos pelos biografados. Eis a organização padrão de um volume da Current Biography: 1. Seção biográfica, organizada pelo sobrenome em ordem alfabética. Esta seção contém biografias completas (geralmente duas ou três páginas) de celebridades vivas em diversos países selecionados para aquele ano específico

e também contém breves obituários de algumas personalidades mundiais que morreram naquele ano.

2. Uma necrologia: uma lista de todas as pessoas importantes que morreram naquele ano.

3. Um índice de biografias (naquele volume específico) por profissão.

4. Um índice cumulativo de biografados que foram apresentados em um dos volumes anteriores. Esta seção encaminhará o pesquisador ao volume específico e aos números exatos das páginas em que a biografia de uma pessoa em particular aparece (se essa pessoa já apareceu na Current Biography).

Embora cada volume tenha um índice de biografias publicadas anteriormente, os pesquisadores economizarão tempo se consultarem o índice cumulativo mais recente, que lista todas as pessoas abrangidas em todos os volumes publicados até o momento.

fi

fi

205

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Contemporary Authors,

Detroit: Gale Research, 1962. Ao contrário de outras obras de referência biográfica mencionadas até agora, esta se concentra nos membros de uma única profissão: escritores vivos e ativos. Romancistas, contistas, poetas, dramaturgos, escritores de televisão, jornalistas, escritores de livros didáticos etc., todos são elegíveis para inclusão, mas os escritores já devem ter publicado algum trabalho. Uma análise das listas de Contemporary Authors revelou que mais de 75% dos escritores não foram incluídos em nenhuma outra fonte biográfica. As informações biográficas nos vários volumes desta fonte são apresentadas em seções muito bem organizadas, que seguem este padrão: pessoal (detalhes sobre nascimento, educação, casamento, filhos, religião, endereço); carreira (cargos ocupados, homenagens e prêmios recebidos); escritos (bibliografia completa de todos os livros publicados); trabalho em progresso; informações adicionais (hobbies, diversões, comentários sobre realizações e personalidade, feitos por terceiros e, às vezes, pelos próprios autores); fontes biográficas e críticas (se houver alguma publicada sobre o autor). Para ter uma idéia do escopo deste trabalho, com a publicação do volume 109 em 1983, a cA apresenta dados biográficos de mais de 74.000 escritores (incluindo profissionais da mídia).

Biography Index, Índice cumulativo de material biográfico em livros e revistas (Nova York: H. W. Wilson Company, 1946).

O Biography Index é um guia útil para material biográfico em livros e

panfletos publicados em inglês, em mais de 1.500 periódicos, em algu-

mas revistas jurídicas e médicas e nos obituários do New York Times.

Todo tipo de material biográfico é indexado: "biografia, material crítico com teor biográfico, autobiografia, cartas, diários, memórias, diários, genealogias, ficção, drama, poesia, bibliografias, obituários, obras pictóricas e literatura juvenil".

206

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

O Biography Index tem duas partes principais: (1) índice de assuntos, organizado em ordem alfabética pelo sobrenome; (2) índice de profissões e ocupações (grandes categorias, como escritores, são listadas por nacionalidade: americanos, australianos, britânicos etc.). Esta última seção é valiosa porque ela direciona o pesquisador a todo material biográfico escrito em algum ano específico sobre indivíduos associados a alguma pro ssão. Se a pessoa for escrever um artigo, digamos, sobre

físicos atômicos desde a Segunda Guerra Mundial, basta consultar esta seção para encontrar rapidamente a bibliogra a completa do material

biográfico. Como evidência da incrível abrangência deste trabalho, a primeira brochura do Biography Index (janeiro de 1946 a julho de 1949) contém os nomes de mais de 40.000 biografados, classificados em cerca de

1.000 categorias no índice de profissões e ocupações. Suplementos em

brochura são publicados trimestralmente e encadernados em um volume separado a cada ano, com um índice cumulativo. Posteriormente, uma edição de três anos é publicada em um volume separado.

LIVROS DE CITAÇÕES E CONCORDÂNCIAS Bartlett's Familiar Quotations, A Collection of Passages, Phrases, and Sayings Traced to Their Sources in Ancient and Modern Literature, de John Bartlett, 12ª ed.,

rev. e ampl. por Christopher Morley e Louella D. Everett (Boston: Little, Brown and Company, 1948); 13ª ed.; Centennial, 1955; 14ª ed., 1968; ed. 16ª ed., 1992.

Bartlett's Familiar Quotations é o guia de referência para citações mais

conhecido e talvez o mais usado. John Bartlett, um editor da Nova Inglaterra, compilou seu primeiro livro de citações em 1855 e continuou a editá-lo até sua nona edição em 1891. Em 1914, Nathan Haskell Dole editou a décima edição. Christopher Morley e Louella D. Everett

editaram o livro em sua décima primeira (1937) e décima segunda (1948) edições; a décima terceira (1955) e a décima quarta (1968) edições foram compiladas pela equipe da Little, Brown, sob a direção de Emily Morison Beck.

fi

fi

207

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Todos nós, em um momento ou outro, precisamos de uma citação adequada para ilustrar, realçar ou fundamentar algo que escrevemos ou das palavras exatas de uma citação, do autor da citação, do nome da obra em que a citação apareceu pela primeira vez ou do lugar exato em uma obra (por exemplo, a linha especí ca de um poema) em que

a citação apareceu. Se soubermos qualquer palavra-chave da citação, é provável que encontremos a resposta para tais questões em uma obra de referência como Bartlett's Familiar Quotations. Suponhamos que queremos descobrir a fonte da citação: "A esperança brota eterna no seio humano". Visto que as citações não são indexadas sob preposições, pronomes, conjunções, artigos e palavras comuns como é e foi, podemos encontrar esta citação indexada em qualquer uma das cinco palavras-chave: Esperança, brota, eterna, seio, humano. Se procurarmos essa citação sob a palavra brota, provavelmente a encontraremos mais cedo do que se procurarmos sob a palavra humano. Procurando a palavra brota no índice da décima terceira edição (centenária) de Bartlett's, encontraremos, quatro palavras abaixo na lista, esta

referência: "esperança, eterna, 316a". Voltando para a primeira metade do Bartlett's, para a coluna a (a coluna da esquerda da página de duas

colunas) na página 316, descobriremos que "A esperança brota eterna no seio humano" é a 95a linha de Ensaio sobre o homem, Epístola 1, de

Alexander Pope. A décima quarta edição de Bartlett's é um livro de mais de 1.750 pá-

ginas, contendo mais de 20.000 citações de 2.250 autores; o índice tem cerca de 117.000 verbetes. Exceto pelas citações de fontes anônimas e de obras coletivas como o Livro de Oração Comum e a Bíblia, que aparecem no final da parte de texto do livro, as citações em Bartlett's são organizadas cronologicamente, de acordo com a época em que o autor escreveu. Ocasionalmente, há notas de rodapé que explicam, ampliam ou correlacionam as citações. Como as edições posteriores de Bartlett's omitem algumas citações e adicionam novas, às vezes podemos encontrar uma citação consultando uma edição anterior.

Se não encontramos a citação em Bartletts, podemos recorrer às outras obras básicas de citações:

Hoyt's New Cyclopedia of Practice Quotations, ed. Jehiel Keeler Hoyt, nova ed. (Nova York: Somerset Books, 1947).

fi

208

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

Home Book of Quotations, Classical and Modern,

ed. Burton Egbert Stevenson, 10a ed. (Nova York: Dodd, Mead, 1967).

A New Dictionary of Quotations on Historical Principles from Ancient and Modern Sources, ed. H. L. Mencken (Nova York: Knopf, 1946).

The Oxford Dictionary of Quotations,

ed. Bernard Darwin, 4ª ed. (Londres: Oxford University Press,

1996) Dictionary of Quotations, ed. Bergen Evans (Nova York: Delacorte Press, 1968).

A concordância de H. L. Mencken contém muitas citações cômicas, iconoclásticas ou excêntricas que não são encontradas em outras concordâncias. Uma característica distintiva do The Oxford Dictionary of Quotations é que ele traz citações de autores gregos, latinos, france-

ses, alemães e italianos na língua original (com traduções em inglês

anexadas). As 791 páginas de citações no livro de Bergen Evans são

temperadas com mais de 2.000 espirituosos comentários históricos e explicativos do editor. Como as citações nesta concordância são orga-

nizadas em ordem alfabética de acordo com o tópico ou idéia, é mais fácil encontrar uma citação adequada para um determinado assunto no livro de Evans do que nos outros mencionados.

John Bartlett, New and Complete Concordance or Verbal Index to Words, Phrases, and Passages in the Dramatic Works of Shakespeare with a Supplementary Concordance to the Poems (Londres: Macmillan, 1894; reimpresso em Nova York: St. Martins Press, 1953).

Martin Spevack, A Complete and Systematic Concordance to the Works of Shakespeare, 6 volumes (Hildesheim: Georg Olms, 1969-70). Existe uma concordância para todos os principais poetas ingleses: Chaucer, Spenser, Milton, Pope, Wordsworth, Byron, Keats, Downing, Tennyson e muitos outros "grandes". Existem concordâncias até mesmo

209

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO para alguns poetas menores, como Thomas Wyatt, Robert Herrick,

Thomas Gray, Oliver Goldsmith, Robert Burns e A. E. Houseman.

Embora os compêndios sejam preparados como guias de leitura de escritores de prosa famosos, as concordâncias para obras de escritores de prosa são raras. Ocasionalmente, no entanto, como no caso de James Joyce, as concordâncias são publicadas para obras em prosa individuais. Como era de se esperar, muitas concordâncias foram preparadas para os trabalhos de Shakespeare. A melhor e mais abrangente é aquela compilada pelo mesmo John Bartlett que publicou Familiar Quotations. As concordâncias para as obras de escritores notáveis funcionam da mesma forma que os dicionários de citações. Na concordância de Bartlett para o maior dramaturgo da Inglaterra, todos os versos dos poemas e peças de Shakespeare são indexados sob todas as palavras significativas do verso. Bartlett indica o ato, a cena e a numeração da linha conforme fornecidos na edição Globe de 1891 de Shakespeare, e sempre apresenta a linha inteira no índice, não só uma parte dela.

Além de usar uma concordância como essa para encontrar a localização exata de uma citação de Shakespeare, algumas pessoas a usam a fim de reunir dados para um estudo estilístico do autor ou, mais es-

pecificamente, para um estudo de sua dicção. Shakespeare alguma vez usou tal e tal palavra? Quantas vezes ele usou uma palavra específica? E quanto à extensão e variedade de seu vocabulário? Qual é o número total de substantivos em seu vocabulário operacional? Um estudo da imagística de Shakespeare também pode ser elaborado com a ajuda de uma concordância. A concordância de Martin Spevack foi feita com o auxílio de um computador IBM e baseia-se no texto do Riverside Shakespeare, de G. Blakemore Evans. Essa concordância pode fornecer dados valiosos para todos os tipos de estudos lingüísticos, pois uma de suas características é registrar a freqüência de cada palavra e a freqüência relativa (ex-

pressa em porcentagem) de cada palavra na peça e nas falas de cada personagem.

210

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

CONCORDÂNCIAS BÍBLICAS James Strong, The Exaustive Concordance of the Bible (as versões autorizadas e revisadas do texto de King James) (Nashville, Tenn.: Abingdon, 1894; reimpresso em 1947, 1963, 1970).

Newton Wayland Thompson e Raymond Stock, Complete Concordance to the Bible (versão Douay) (St. Louis: Herder, 1942; edição rev. 1945).

Nelson's Complete Concordance of the Revised Standard Version of the Bible, compilada pela Univac sob a supervisão de John W. Ellison (Nova York: Thomas Nelson, 1957). Somente três das muitas concordâncias bíblicas são listadas acima: uma para a King James ou versão autorizada da Bíblia; uma para a Revised Standard Version, concluída em 1952; uma para a versão Douay

ou católica romana. Toda biblioteca universitária e a maioria das biblio-

tecas públicas têm uma ou mais concordâncias bíblicas nas prateleiras de referência. James Strong levou cerca de trinta anos para compilar sua concordância; o computador Univac, da Remington Rand, levou apenas cerca de mil horas para indexar mais de 350.000 contextos bíblicos da RsvB. Todas as concordâncias para futuras traduções da Bíblia, sem dúvida, serão feitas no computador. O sistema de indexação de uma concordância bíblica é similar ao que encontramos em Bartlett's Familiar Quotations, mas enquanto Bartlett's reproduz as citações, as concordâncias bíblicas não incluem o texto da Bíblia; elas meramente indicam o livro, o capítulo e o versículo

da Bíblia onde está a citação. Uma concordância completa indexa todas as passagens da Bíblia, não apenas as citações mais conhecidas. Se você conseguir se lembrar de qualquer palavra-chave de uma citação, poderá encontrar o que está procurando.

Existem outros usos para uma concordância. Você pode usar a concordância, por exemplo, para descobrir se a palavra sacramento já apa-

receu no Antigo ou no Novo Testamento. Você pode descobrir quando uma palavra como bispo tornou-se parte da terminologia eclesiástica, se

os profetas do Antigo Testamento alguma vez usaram essa palavra, se

211

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Cristo usou essa palavra nos Evangelhos ou se ela é encontrada apenas

nos Atos do Apóstolos ou nas epístolas. Uma concordância também

pode servir como um tipo de harmonia, isto é, um guia de referência para várias passagens da Bíblia em que ocorrem idéias ou expressões

idênticas.

ÍNDICES DE PERIÓDICOS The Readers' Guide to Periodical Literature (Nova York: H. W. Wilson Company, 1900). De todos os índices de periódicos, o Readers' Guide é aquele que os

alunos mais usam durante os anos do Ensino Médio. É um guia de referência extremamente útil para artigos, contos, peças de teatro e poemas publicados em mais de 100 revistas americanas durante o século xx. Desde março de 1935, ele sai duas vezes por mês. A indexação é cumulativa, primeiro em volumes anuais e depois em volumes de dois anos, que contêm, em uma única lista alfabética, todos os verbetes do

período tratado. O Readers' Guide é, basicamente, um índice de assuntos e autores, mas contos, poemas, peças e filmes são listados por título, bem como

pelo nome do autor. Quando os verbetes aparecem sob o nome de um indivíduo em duas listas diferentes, o primeiro grupo refere-se aos arti-

gos desse indivíduo como autor; o segundo grupo de artigos refere-se a artigos sobre esse indivíduo como assunto. Eis dois exemplos, primeiro de um verbete referindo-se ao indivíduo como autor, depois, referindo-se a ele como assunto:

WALKER, John S. Reações termonucleares: podem ser usadas em benefício do homem? For. Affairs 33: 605-14, jul. 's5.

A primeira coisa que aparece sob o nome do autor é o título do artigo (normalmente, só a primeira palavra do título é maiúscula). Em seguida, temos o nome da revista, de forma abreviada (cada volume inclui uma lista das abreviações). Este artigo foi publicado na Foreign Affairs. Após o título, há uma série de números especificando o número

212

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

da revista em que o artigo apareceu. O número antes dos dois pontos é o número do volume dos periódicos (a brochura do periódico na biblioteca geralmente tem esse mesmo número). Depois dos dois pontos estão os números das páginas do artigo. Um sinal de mais (+) após um número de página indica que o artigo continua nas páginas seguintes. Em seguida, temos a data da publicação de forma abreviada. Se a revista for mensal, como neste caso, apenas o mês (julho) e o ano (1955) são fornecidos; se a revista for semanal (veja abaixo), são fornecidos o mês (março), o dia (12) e o ano (1955). Aqueles que estão compilando uma lista de artigos para investigação posterior devem ter o cuidado de

registrar o número exato do volume e a data da revista, pois precisarão

dessas informações quando procurarem as brochuras nas prateleiras da

biblioteca ou mesmo se quiserem pedir ajuda ao bibliotecário.

CENSURA Censura de arte. H. Smith. Sat R 38:24 mar. 12 '$5 Luz em San Diego. Nation 180:389 maio 7'55

Minnesota ameaçado por censores vigilantes. Christian Cent 72:468-9

abr. 20'55 Este segundo exemplo de verbete é o título de um assunto (censura). Todos os artigos publicados sobre esse assunto durante o período coberto por este volume em particular serão listados, e geralmente haverá referências a outros títulos de assunto ("ver também"). Nos verbetes de assunto, os títulos dos artigos aparecem primeiro. Em seguida, é forne-

cido o nome do autor (aqui, o primeiro nome do autor é representado apenas pela inicial maiúscula). A ausência de um nome após o título do

artigo indica um artigo anônimo ou não-assinado.

International Index (Nova York: H. W. Wilson Company, 19071965); entre 1965-74, intitulado Social Sciences and Humanities Index; desde 1974, duas obras: Humanities Index e Social Sciences Index.

O International Index é um suplemento útil para o Readers' Guide. Durante os primeiros cinquenta anos, o International Index abrangia

periódicos em língua estrangeira, bem como periódicos em inglês, mas os títulos estrangeiros foram abandonados após a Segunda Guerra

213

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Mundial. O título dos volumes deste guia periódico publicado entre junho de 1965 e março de 1974 foi alterado para Social Sciences and Humanities Index. A partir de junho de 1974, essa fonte de referência foi dividida em dois índices separados: Humanities Index e Social Sciences Index. Com essas mudanças no título, a inclusão de periódicos

científicos e de língua estrangeira foi progressivamente reduzida em favor da concentração nos periódicos mundiais de língua inglesa mais acadêmicos que tratam das ciências sociais e humanas. Atualmente, este trabalho de referência indexa cerca de 200 periódicos. Como índice de assuntos e autores, ele usa o mesmo estilo de notação que o Readers' Guide. Aqueles que procuram uma extensa bibliogra a de artigos de revistas sobre algum assunto devem consultar este importante índice de periódico, além do Readers' Guide. Para certos assuntos (por exemplo, tópicos de interesse mais acadêmico), é um guia de referência para literatura periódica mais útil do que o Readers' Guide. The Nineteenth-Century Readers' Guide,

1890-99, 2 volumes (Nova York: H. W. Wilson Co., 1944).

Enquanto o Readers' Guide e o International Index abrangem a literatura periódica do século xx, o Nineteenth-Century Guide está voltado para a última década do século xIx. Publicado em dois volumes, este guia periódico indexa material de 57 revistas inglesas e americanas publicadas no final do século xIx. Em alguns casos, a indexação foi estendida além dos limites especificados pelo título. A National Geographic Magazine, por exemplo, é indexada de 1888, ano em que iniciou sua publicação, até dezembro de 1908, quando passa a ser indexada pelo Readers' Guide. O Cornhill Magazine, periódico inglês que publicou contribuições de escritores ilustres como Thackeray, Ruskin, Arnold e Trollope, foi indexado de janeiro de 1890 a dezembro de 1922, quando

foi assumido pelo International Index. O The Nineteenth-Century Readers' Guide adota a lista padrão de títulos de assuntos e referências cruzadas usada pelos outros guias de periódicos, tem verbetes de autor e fornece índices de títulos de contos, romances, peças de teatro e

poemas.

fi

214

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Poole's Index to Periodical Literature, ed. William Frederick Poole

e William 1. Fletcher, 6 volumes (Nova York: Houghton Mifflin, 1882-1907).

O Poole's Index é o único índice de periódicos em língua inglesa do século xIx até 1890. Foi iniciado por William F. Poole, bibliotecário da Biblioteca Mercantil de Boston, das bibliotecas públicas em Cincinatti

e Chicago e, na época de sua morte em 1894, da famosa Biblioteca Newberry em Chicago. Seu colega William Fletcher participou da preparação de todos os volumes e, após a morte de Poole, foi auxiliado por Franklin O. Poole e Mary Poole. O Pool's Index, com seus cinco suplementos, abrange 479 periódicos diferentes em um período de 105 anos e inclui mais de 590.000 referências. O Poole's Index é um índice só de assuntos. Os escritores são incluí-

dos apenas quando são tratados como assunto. Assim, as contribuições

de Thomas Babington Macaulay para a Edinburgh Review são inseridas

não sob o nome de Macaulay, mas sob os assuntos sobre os quais ele

escreveu: Milton, igreja e Estado, Clive, Maquiavel etc. Artigos críticos sobre poesia, drama e prosa de ficção aparecem sob o nome do autor cujo trabalho está sendo criticado. Portanto, um artigo crítico sobre o romance vitoriano Dombey e lho apareceria como "Charles Dickens". Poole não fornece a data da revista em suas referências. Uma referência típica após o título de um artigo é mais ou menos assim: "Fortn

29:816". A tabela de abreviações incluída no início do livro mostra que "Fortn" é a abreviatura da revista Fortnightly Review. O número antes dos dois pontos é o número do volume; o número depois dos dois pontos é a primeira página do artigo. Consultando o índice, o pesquisador descobrirá que o volume 29 da Fortnightly Review foi lançado em 1878. O índice cronológico também indica os números dos volumes da mesma data em outros periódicos, de modo que, com base nessa tabela,

o pesquisador pode localizar a discussão de um assunto em diversos

periódicos contemporâneos. Uma brochura, Poole's Index: Date and Volume Key, de Marion V. Bell e Jean C. Bacon (Chicago: Association of College and Reference

Libraries, 1957), geralmente encontrado nas prateleiras ao lado do Poole's Index, organiza os 479 títulos do periódico em uma única lista alfabética, com o ano de cada volume.

fi

215

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

OUTROS ÍNDICES DE PERIÓDICOS Eis uma lista, com breves descrições, de alguns outros índices de periódicos, que geralmente podem ser encontrados nas prateleiras de referência de bibliotecas públicas e universitárias. Todos eles, exceto o Catholic

Periodical Index, foram publicados pela H. W. Wilson Company de Nova York. Agricultural Index (1916-1964); continuou como Biological and Agricultural Index, 1964. Publicado mensalmente. Posteriormente,

publicado em brochuras anuais e bianuais. Um índice de assuntos relacionado a agricultura, biologia e ciências afins em periódicos, panfletos, boletins e documentos publicados por agências agrícolas federais e estaduais. Art Index (1929-). Publicado trimestralmente. Posteriormente, as edições separadas são compiladas em uma brochura. Um índice de assuntos e autores para periódicos e boletins de museu nas áreas de arqueologia, arquitetura, cerâmica, ornamento, gravura, artes gráficas, paisagismo, pintura e escultura. Education Index (1929-). Publicado mensalmente, exceto em julho e agosto e, posteriormente, compilado em volumes anuais e bianuais. Indexa cerca de 240 periódicos, anais, monografias, boletins e relatórios sobre tudo relacionado a educação. Até 1961, os livros e artigos eram listados sob os cabeçalhos de autor e assunto, mas desde 1961, existem apenas cabeçalhos de assunto, e os livros sobre educação não são mais indexados.

Industrial Arts Index (1913-1957); continuou desde 1958 como dois índices separados: Applied Science and Technology Index (1958) e Business Periodicals Index (1958). Publicado mensalmente, exceto em julho, com subseqüentes edições anuais. Este é um índice de assuntos para apenas 225 periódicos em inglês. O Applied Science and Technology Index abrange aeronáutica, automação, química, construção, comunicação elétrica, engenharia, geologia, metalurgia, física e transporte. O

216

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

Business Periodicals Index inclui campos como contabilidade, seguros, administração pública, tributação e assuntos relacionados. Catholic Periodical Index (Nova York: Catholic Library Association, 1939-1967); continuou como Catholic Periodical and Literature Index

(1967). Este índice abrange cerca de 200 periódicos publicados nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Irlanda, alguns dos quais não incluídos em obras de referência como o Readers' Guide e o International Index. Este índice de autores e assuntos lista anualmente cerca de 2.500 livros de interesse para leitores católicos, fornecendo também citações

de resenhas de livros no final dos volumes cumulativos.

Essay and General Literature Index, 1900-33 (Nova York: H. W. Wilson Co., 1934); atualizado com uma série de suplementos (193469) / (1969-presente).

Este é um índice de autores e assuntos (com entradas de título quando necessário) para coleções de ensaios, artigos e obras diversas de algum valor de referência. O volume básico, abrangendo os anos 190033, indexou mais de 40.000 ensaios e artigos reimpressos em 2.144 coleções ou obras diversas. Os suplementos reunidos, abrangendo o período de 1934-1969, listam mais de 150.000 ensaios e artigos reimpressos em mais de 7.000 coleções. O valor do Essay and General Literature Index é que este trabalho de referência pode guiar os pesquisadores para coleções com impressões de ensaios, artigos, histórias, poemas etc. há muito esgotados ou indisponíveis em edições anteriores/brochuras de periódicos. Às vezes, os pesquisadores conhecem, ou descobrem por meio dos guias de periódicos,

um ensaio ou artigo que seria extremamente útil para um artigo que eles estão escrevendo, mas, ao verificar a biblioteca, ficam sabendo, para

seu desânimo, que a biblioteca não tem o livro ou a brochura em que esse texto apareceu originalmente. No entanto, eles não devem abandonar a esperança de obter uma cópia do texto: o Essay and General Literature Index pode indicar que ele foi impresso em uma coleção ou antologia que a biblioteca tem em suas prateleiras. No final de cada brochura, há uma lista de todos os livros indexados naquele volume, e muitos bibliotecários colocam uma marca ao lado dos títulos que a

217

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO biblioteca tem em suas prateleiras. Os ensaios e artigos reimpressos nos

"leitores" que os alunos possam ter comprado para alguns de seus cursos estão (ou serão) indexados nesta obra de referência.

New York Times Index (Nova York: New York Times, 1913).

Times Official Index (Londres: Times Office, 1906).

Algumas bibliotecas públicas e universitárias possuem um arquivo dos jornais locais, com algum tipo de índice para esses jornais. É mais

provável, entretanto, que elas tenham arquivos de jornais grandes, como o Times de Londres e o New York Times, ambos com índices anuais. Anteriormente, as bibliotecas e os "necrotérios" de jornais guardavam cópias dos jornais, mas essas pilhas eram difíceis de armazenar, difíceis de manusear e suscetíveis a lenta deterioração. Agora, graças ao processo de microfilmagem, um ano inteiro de publicação de um

determinado jornal pode ser guardado em alguns rolos de filme ou em alguns cartões de microficha. Usando um leitor de microfilme ou microficha, os pesquisadores podem ser rapidamente direcionados aos assuntos e artigos específicos em que estão interessados e fazer anotações da reprodução ampliada do jornal. O New York Times Index é um índice de assuntos apenas para a edição Late City do jornal diário. Os artigos e assuntos não são inseridos pelos títulos ou manchetes que tinham no jornal. Em vez disso, os compiladores fornecem uma frase que descreve concisamente o conteúdo do artigo. Para cada entrada, são fornecidos a data, o número da página e a coluna (para as edições de domingo, o número da seção do jornal também é fornecido). Por exemplo, Je 8, III, 3:4, 8 de junho (o ano é fornecido pelo volume anual específico que está sendo usado), seção 3, página 3, coluna 4.

Aqueles que procuram um assunto noticiado por vários dias podem, voltando o microfilme ou o leitor de microfichas para edições anteriores

ou posteriores, encontrar material adicional sobre o assunto que estão

explorando. Qualquer um desses índices de jornais também serve como guia para outros jornais, pois os principais acontecimentos provavel-

mente serão cobertos pelos jornais locais na mesma data em que foram cobertos pelos principais jornais mundiais.

218

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

Science Citation Index (Filadélfia: Institute for Scientific Information, 1961). Social Sciences Citation Index (Filadélfia: Institute for Scientific Information, 1973).

Arts and Humanities Citation Index (Filadélfia: Institute for

Scientific Information, 1978).

Quando os alunos chegam à faculdade, a maioria deles nunca usou um índice de citações, e muitos nem mesmo sabem que existe tal trabalho de referência. Mas esses índices podem ser muito úteis para pesquisadores, especialmente para assuntos atuais, porque nos orientam para livros e artigos que abordam um determinado assunto, de um determinado autor, em um determinado ano. Pode parecer que os índices de citações fornecem o mesmo tipo de serviço que os índices de periódicos, mas eles são diferentes.

A melhor maneira de aprender a usar este tipo de trabalho de re-

ferência é conseguir um volume de um dos três índices de citações

listados acima e ler as instruções impressas na área interna da capa e da contracapa e, em seguida, seguir essas instruções ao fazer uma pesquisa bibliográfica sobre algum autor ou assunto de sua escolha. Um índice de citações sempre tem vários volumes, mesmo quando abrange apenas um ano, e esses múltiplos volumes possibilitam que conduzamos

quatro tipos básicos de pesquisa bibliográfica. Por exemplo, embora haja volumes anuais do Social Sciences Citation Index, há uma edição de cinco anos que abrange os anos 1976-1980. Os volumes 1-9 dessa edição são rotulados como Indice de Citações; o volume 1o é rotulado como Índice Corporativo; os volumes II-19 são rotulados como Indice de Fonte; e os volumes 20-22 são rotulados como Índice Permuterm de Assuntos. Cada uma dessas quatro partes fornece um sistema de indexação diferente para artigos publicados durante o período de cinco

anos. Se, por exemplo, você souber um único bloco ou artigo que trata de um tópico sobre o qual deseja escrever um trabalho, poderá consultar um dos volumes (dispostos em ordem alfabética) do Indice de Citações com o sobrenome do autor desse livro ou artigo para ver se outros livros ou artigos listados mencionam ou abordam esse artigo ou livro. Se esse livro ou artigo fez uma contribuição significativa para os

219

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO estudos do assunto de que trata, é provável que haja várias referências a outros livros ou artigos publicados posteriormente que mencionam ou abordam o livro ou artigo que você descobriu. Se esses outros livros

ou artigos mencionarem o trabalho, é provável que eles estejam tratando do mesmo assunto sobre o qual você está interessado em escrever.

Usando o sobrenome dos autores listados no Índice de Citações, você pode obter informações bibliográficas completas sobre esses livros ou artigos relacionados, consultando o volume apropriado, disposto em ordem alfabética, do Índice de Fonte. Você pode encontrar trabalhos relacionados adicionais consultando outros anos do índice, mas você não encontrará referências a um trabalho até que, pelo menos, um ano tenha decorrido desde que o trabalho foi publicado pela primeira vez.

Se o livro ou artigo com o qual você começou não tiver um nome de autor anexado a ele, você pode consultar o Indice Corporativo para

encontrar referências a um trabalho que foi publicado anonimamente

ou que foi produzido por alguma organização, como uma universidade ou fundação de pesquisa, ou em um local específico, como uma cidade

nos Estados Unidos.

Se, no entanto, você não tiver nenhuma informação de um livro ou

artigo a respeito do assunto sobre o qual deseja escrever, você pode con-

sultar os volumes do Índice Permuterm de Assuntos, para obter uma bibliografia sobre o assunto. Por exemplo, digamos que você queira escrever um artigo sobre um assunto indicado por um título como "O efeito da construção de usinas nucleares no desemprego na indústria de mineração de carvão na região apalachiana dos Estados Unidos". Você poderia começar a reunir alguns livros e artigos pertinentes, consultando o volume do Índice Permuterm de Assuntos, organizado em ordem alfabética, com um ou outro termo-chave desse título, como desemprego, energia nuclear, indústria de mineração. Suponha que você tenha olhado o volume que relaciona a palavra-chave desemprego. Sob a palavra DESEMPREGO, impressa em letras maiúsculas e em negrito, é provável que você encontre listados em letras maiúsculas romanas vários termos associados, ou seja, outras palavras que apareceram com a palavra DESEMPREGO nos títulos dos livros e artigos publicados durante

o ano abrangido pelo volume que você está consultando. O valor desses termos comuns é que eles o ajudarão a restringir sua pesquisa, passando

do tópico geral "desemprego" a um tópico mais próximo daquele no

220

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS qual você está interessado. Talvez seja uma boa idéia procurar livros e

artigos que tenham no título, além da palavra DESEMPREGO, palavras

COMO ENERGIA NUCLEAR, CARVÃO, APALACHES. Artigos que abordam a situação do desemprego na indústria do aço no sul de Chicago não o

ajudarão muito. Os índices de citações são um novo tipo de ferramenta de referência

bibliográfica, mas eles são tão ricos em informações sobre conteúdo relacionado a tópicos específicos que qualquer pesquisador sério deve familiarizar-se com eles e aprender a usá-los. O principal problema com

os índices de citações como ferramentas de referência é que eles forne-

cem tantas indicações que fica difícil saber por onde começar a pesquisa, de modo que precisamos aprender a ser criteriosamente seletivos

ao usá-los.

MANUAIS World Almanac and Book of Facts (Nova York: New York WorldTelegram and Sun Corporation, 1868-presente). Information Please Almanac (1947-presente; vários editores, atualmente Houghton Mifflin, Boston). Estes almanaques são fontes tão ricas em informações que todo aluno

deveria comprar um. Grande parte dos almanaques é reimpressa todos os anos sem nenhuma alteração, porque certos tipos de dados, como os nomes dos presidentes e vice-presidentes dos Estados Unidos ou das capitais de cada estado, não estão sujeitos a alterações. Para esse tipo de informação, um almanaque de 1940 é tão útil quanto um almanaque de 1990. Outros tipos de informação, entretanto, mudam de ano para ano. Quem busca estatísticas sobre a arrecadação de impostos federais

em 1980 deve consultar um almanaque referente a esse ano.

O World Almanac and Book of Facts é o mais abrangente dos almanaques americanos de informações diversas, mas o Information Please

Almanac contém mais artigos assinados do que o World Almanac, e sua abrangência de países estrangeiros é mais extensa. Devido à diversidade das informações, nenhum dos almanaques é organizado em ordem alfabética, mas cada volume apresenta índices extremamente detalhados do material, além de referências cruzadas, que apontam para

221

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

material adicional. Almanaques como esses fornecem informações tão

úteis, com tanta variedade, que todos nós deveríamos ter um deles na

biblioteca de casa, além de um bom minidicionário.

LITERATURA INGLESA The Oxford Companion to English Literature, ed. Sir Paul Harvey, s* ed. revisado por Margaret Drabble (Oxford: Clarendon Press, 1985).

Crofts, 1967).

LITERATURA AMERICANA The Oxford Companion to American Literature, ed. James D. Hart, 6ª ed. (Nova York: Oxford University Press, 1995).

The Reader's Encyclopedia of American Literature, ed. Max J. Herzberg (Nova York: Thomas Y. Crowell, 1962).

DRAMA MUNDIAL The Oxford Companion to the Theatre, ed. Phyllis Hartnoll, 4* ed. (Nova York: Oxford University Press, 1983). The Reader's Encyclopedia of World Drama, ed. John Gassner e Edward Quinn (Nova York: Thomas Y. Crowell, 1969).

Todos esses manuais fornecem o mesmo tipo de informação sobre

literatura e artes. Seu escopo é definido pelos títulos. Eis os tipos de

informação que podem ser encontrados nestes manuais organizados em ordem alfabética: 1. Pequenos esboços biográficos de poetas, romancistas, contistas, dramaturgos, ensaístas, artistas, músicos.

relação com a literatura.

3. Resumos de romances, peças, óperas e longos poemas narrativos.

222

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS 4. Fichas dos principais poemas líricos, didáticos e satíricos.

5. Identificação de personagens principais em romances, peças, óperas e

poemas narrativos.

6. Explicações de alusões bíblicas, clássicas e mitológicas.

7. Definições de termos literários, por exemplo, dístico heróico, soneto shakespeariano, falácia patética. 8. Pequenos ensaios sobre tendências e movimentos literários: realismo, existencialismo, nova crítica, desconstrucionismo.

9. Explicações de referências históricas e geográficas que têm alguma pertinência para a literatura e as artes, por exemplo, Conspiração da Pólvora,

Fleet Street, Waterloo.

10. Pequenos ensaios sobre composições musicais famosas e obras de arte

que tiveram alguma in uência na literatura, por exemplo, Mármores de Elgin, Mona Lisa, Don Giovanni de Mozart.

Algumas dessas informações podem ser encontradas em qualquer um dos seis manuais de literatura listados no início desta seção, mas

quem busca informações sobre um escritor ou romance americano provavelmente encontrará as informações mais completas em um dos manuais dedicados exclusivamente à literatura americana. Para tudo o

que se relaciona com o teatro, os artigos do Oxford Companion to the Theatre são provavelmente mais completos e mais satisfatórios do que os dos outros manuais. Os estudantes devem compreender, no entanto, que todos esses manuais apresentam somente fatos essenciais; para estudos em profundidade, eles devem recorrer a outras fontes.

Cassell's Encyclopaedia of World Literature, ed. J. BuchananBrown, rev. ed., 3 volumes (Londres: Cassell, 1973). The Reader's Encyclopedia, ed. William Rose Benét, 2ª ed. (Nova York: Crowell, 1965).

Enquanto os manuais mencionados anteriormente tratam da literatura e da arte de determinados países ou de uma forma de arte especial,

estes dois manuais fornecem os mesmos tipos de informações sobre li-

teratura e arte mundiais. O manual de William Rose Benét abrange as principais literaturas mundiais: inglesa, francesa, alemã, italiana, russa,

fl

223

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

grega e latina. Cassell's abrange, além dessas literaturas, outras literaturas menores, como a armênia, a basca, a bretã, a esquimó, a polinésia e

a iídiche, culturas geralmente negligenciadas por obras de referência em língua inglesa. O primeiro volume de Cassell's trata das histórias da lite-

ratura nacional, de vários gêneros e movimentos literários, e de termos literários importantes. Esses artigos variam em extensão de duas linhas

às 10.000 palavras dedicadas à Bíblia. Os volumes 2 e 3 apresentam breves esboços biográficos de figuras literárias e observações sobre obras literárias específicas. A maioria dos artigos inclui uma bibliografia seletiva para referência futura. A Reader's Encyclopedia não é tão abrangente quanto a Cassell', mas é uma fonte útil de informações essenciais sobre literatura mundial e artes em um único volume.

The Oxford Companion to Classical Literature, 2ª ed. M. C. Howaton (Oxford: Oxford University Press, 1989).

The New Century Classical Handbook, ed. Catherine B. Avery (Nova York: Appleton-Century-Crofts, 1962). The Meridian Handbook of Classical Literature, ed. Lillian Feder

(Nova York: New American Library, 1986).

Estes três manuais são ricas minas de tradição clássica, por (1) iden-

tificar as figuras do mito e da lenda; (2) fornecer biografias de dramaturgos, poetas, escultores, pintores, filósofos, generais e estadistas; (3)

fornecer fichas de épicos como a Ilíada, Odisséia e Eneida e dos dramas

de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes; (4) fornecer informações sobre locais de interesse mitológico, histórico e arqueológico; (s) incluir

artigos sobre rios, montanhas, santuários, obras de arte antigas, ruínas

e monumentos; (6) definir termos clássicos. O New Century Classical Handbook tem muitas ilustrações e fotografias e esclarece pronúncias foneticamente anglicizadas de nomes próprios clássicos, um recurso es-

pecialmente útil. Algumas informações sobre assuntos clássicos podem

ser encontradas nos manuais de literatura inglesa, americana e mundial, mas como estes manuais concentram-se na tradição clássica, sua abrangência é mais extensa.

224

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

The New Grove Dictionary of Music and Musicians, ed. Stanley Sadie, 2o volumes (Londres: Macmillan, 1980). The Oxford Companion to Music, ed. Percy A. Scholes, 10* ed. revisada e editada por John Owen Ward (Londres: Oxford University Press, 1970). Sir George Grove publicou a primeira edição desta famosa obra de referência sobre música em 1879, incluindo importantes artigos sobre Beethoven, Mendelssohn e Schubert. Esses artigos foram repetidos nas edições subseqüentes até a Quinta Edição (1954), a edição que precedeu a versão completamente nova do Grove Dictionary publicada em 1980, cem anos após a primeira edição. Para ter uma idéia de quanto o material foi ampliado, a nova versão do dicionário, New Grove, possui vinte volumes, enquanto a versão antiga, a Quinta Edição, tinha nove. Menos de três por cento do material das edições anteriores foi mantido e agora existem entradas sobre música de praticamente todos os países do mundo. Mais de 2.000 colaboradores especializados escreveram artigos sobre assuntos como: (I) definições de termos musicais; (2) explicações sobre as formas e métodos de composição musical; (3) estudos

da origem, desenvolvimento e estrutura dos instrumentos musicais; (4) histórias de sociedades musicais; (5) observações sobre composição,

produção e conteúdo de obras musicais importantes; (6) listas das principais coleções de música publicadas; (7) biografias de compositores, cantores, músicos, patronos, professores etc. Devido ao crescente inte-

resse pela música popular em vários países, agora você provavelmente

encontrará um artigo sobre os Beatles, assim como um artigo sobre

Beethoven, além de informações tanto sobre o verbete "banjo" quanto sobre "fagote". O Oxford Companion to Music não tem a pretensão de rivalizar com o New Grove, mas as 1.189 páginas de coluna dupla da edição de 1970 fornecem uma grande riqueza de informações sobre música e músicos. Espalhados ao longo do texto, há mais de 1.100 retratos e imagens. No final do livro, encontramos um glossário de pronúncia e cerca de 7.000 termos e nomes que aparecem nos artigos.

225

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO An Encyclopedia of World History: Ancient, Medieval, and Modern,

Chronologically Arranged, ed. William L. Langer, sa ed. (Cambridge, Mass.: Houghton Mifflin, 1972). Encyclopedia of American History, ed. Richard B. Morris, 7a ed. (Nova York: Harper Collins, 1996). O livro de Langer é uma reformulação do Epitome of History que o professor alemão Dr. Karl Ploetz preparou e que William H. Tillinghast traduziu para o inglês em 1883. Nesta sa edição, este rico acervo de fatos históricos chega até o final de 1970, com algumas seções que discutem a exploração do espaço e os recentes avanços científicos e tecnológicos. Se os estudantes tiverem dificuldade em localizar as informações que

procuram seguindo os indicadores geográficos e cronológicos no topo

de cada página, eles podem consultar o índice altamente detalhado. A narrativa histórica é intercalada com muitos mapas em preto e branco e quase uma centena de tabelas genealógicas das principais famílias go-

vernantes. No apêndice, encontramos listas dos imperadores romanos e bizantinos, dos papas e dos ministros britânicos, franceses e italianos.

O livro de Morris é um manual comparável da história americana, com três divisões principais: Parte 1, organizada cronologicamente, com os principais eventos políticos e militares da nação desde a era

pré-colombiana até a posse do Presidente John F. Kennedy em janeiro de 1961; Parte II, organizada por tópicos, com os aspectos não-políticos

da história americana, como desenvolvimentos constitucionais, expansão para o oeste e tendências econômicas, científicas e culturais; Parte III, organizada em ordem alfabética, com breves esboços biográficos

de cerca de soo americanos notáveis. Espalhados pelas mais de 1.245 páginas de coluna dupla da edição ampliada do bicentenário, de 1976, há gráficos, tabelas e mapas históricos. Um índice extremamente detalhado serve como chave para a riqueza de informações deste manual.

DICIONÁRIOS Todo estudante sério deve ter um bom minidicionário. Esse dicionário fornece informações úteis sobre grafia, silabação, pronúncia e significados de palavras, mas também fornece informações breves sobre os no-

226

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

mes próprios de pessoas, lugares e instituições. Eis os títulos de alguns minidicionários recomendados:

American College Dictionary, ed. Clarence L. Barnhart (Nova York: Random House, 1966).

American Heritage Dictionary of the English Language, ed. William Morris (Nova York: American Heritage, 1992). Funk e Wagnalls Standard College Dictionary. Edição de texto (Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1980).

Random House Dictionary of the English Language. Rev. ed. (Nova

York: Random House, 1988). Webster's Ninth New Collegiate Dictionary. (Springfield, Mass.: Merriam-Webster, 1983).

Webster's New World Dictionary of the American Language. 3ª ed. Editado por David B. Guralnik (Nova York: World, 1988). Embora estes minidicionários forneçam informações úteis sobre palavras, os estudantes devem estar familiarizados com alguns dicionários

completos e outros dicionários específicos, estando cientes dos tipos de informação que podem ser fornecidos por esses dicionários, que geralmente estão disponíveis nas prateleiras de referência das bibliotecas. Eis alguns desses dicionários específicos:

The Oxford English Dictionary on Historical Principles, ed. James A. H. Murray, Henry Bradley, William A. Craigie e C. T. Onions. 12 volumes. (Oxford: Clarendon Press, 1888-1928). The Compact Edition of the Oxford English Dictionary. 2 volumes. (Oxford: Clarendon Press, 1971). The Oxford English Dictionary on Historical Principles, 2ª ed., Ed. John Simpson e Edmund Weiner. 20 volumes. (Oxford: Clarendon, 1989).

O maior dicionário da língua inglesa é o New English Dictionary (NED) ou, como tem sido chamado desde cerca de 1895, o Oxford English Dictionary (OED). Este abrangente dicionário originou-se de uma suges-

tão que Richard Chevenix Trench, então decano de Westminster, fez para a Sociedade Filológica da Inglaterra em 1857. Foi decidido, desde

227

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO o início, que este dicionário forneceria um estudo histórico da língua,

e centenas de leitores foram contratados para selecionar e transcrever citações que formariam a base do registro histórico. Antes da conclusão

do projeto, cerca de 1.300 leitores voluntários, a maioria deles estu-

dantes não profissionais da língua, selecionaram mais de meio milhão

de citações de mais de 5.000 autores de todos os períodos. Quando o volume final do dicionário original foi publicado em 1928, o OED tinha

um total de 15.487 páginas e trazia definições de 414.825 palavras e 1.827.306 citações ilustrativas. Entre 1933 e 1986, a Oxford University

Press publicou quatro volumes suplementares ao dicionário, os três últimos deles sob a direção de R. W. Burchfield.

No prefácio do primeiro volume, os editores declararam: "O objetivo deste dicionário é fornecer uma descrição adequada do significado,

origem e história das palavras em inglês em uso geral agora ou em

qualquer momento dos últimos setecentos anos". De acordo com esse

objetivo, o OED fornece (1) as variantes de grafia que uma palavra vem apresentando ao longo dos anos; (2) a etimologia da palavra, estabele-

cida pelos métodos da moderna ciência filológica; (3) a pronúncia da palavra (geralmente a pronúncia que prevalecia na época em que aquele

volume específico foi publicado); (4) os vários significados que uma palavra teve; (5) citações que ilustram as grafias e significados, desde

a primeira ocorrência conhecida da palavra em obras impressas até as ocorrências recentes da palavra em textos modernos. Cada questão ilustrativa é precedida pela data da ocorrência, o nome do autor, uma refe-

rência abreviada à fonte e o número da página na fonte. Vale observar

que a data mais antiga fornecida não é necessariamente a data em que

a palavra foi usada pela primeira vez; essa data indica o registro escrito mais antigo descoberto do uso da palavra.

A publicação em dois volumes Compact Edition of the Oxford English

Dictionary possibilitou que as pessoas tivessem em suas bibliotecas privadas o conteúdo da primeira edição em vários volumes do OED. Graças

ao milagroso processo de foto-redução, quatro páginas do texto original foram reproduzidas em uma única página, com letras tão pequenas

que precisamos de uma lupa para ler. Mas agora qualquer um pode se dar ao luxo de ter uma cópia desse grande tesouro de palavras em inglês. Então, em 1988, a Oxford University Press publicou uma versão em CD-ROM da primeira edição do OED. Com essa versão do dicionário,

228

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS os usuários conseguem encontrar mais rapidamente a palavra que estão

buscando, além de poderem compilar listas de palavras, citações e autores relacionados com os oito índices incluídos aqui. Em 1989, 71 anos após a publicação original deste grande dicionário, a Clarendon Press da Oxford University lançou a segunda edição do Oxford English Dictionary, o OED2. Vendida a um preço de US$2.500, a segunda edição de 20 volumes contém 21.728 páginas, define 616.500

palavras e termos usando quase 60 milhões de palavras (34% a mais que o primeiro OED) e reproduz 2.435.671 citações ilustrativas. Esses 20 volumes contêm toda a primeira edição (com algumas correções e acréscimos), o conteúdo dos quatro suplementos e cerca de 5.000 novas palavras ou expressões que entraram em uso a partir do início da década de 1970. A maioria dessas novas palavras são gírias ou palavras dos campos de ciência, negócios ou medicina. Mas o verbete mais longo do OED2 é uma das palavras mais antigas e curtas do idioma: o verbo set,

cuja definição contém mais de 60.000 palavras. Eventualmente, será

lançada uma versão em CD do OED2.

A Dictionary of American English on Historical Principles, ed. Sir

William A. Craigie e James R. Hulbert, 4 volumes (Chicago: University of Chicago Press, 1938-44). A Dictionary of Americanisms on Historical Principles, ed. Mitford M. Mathews, 2 volumes (Chicago: University of Chicago Press, 1951).

William A. Craigie, um dos editores do OED, trabalhou com o professor James R. Hulbert, da Universidade de Chicago, para produzir um dicionário histórico do inglês americano. Como os editores disseram no prefácio, este dicionário incluiria "não só palavras e frases de origem claramente americana ou com maior uso aqui do que em outros lugares, mas também toda palavra que denote algo relacionado com o desenvolvimento do país e a história de seu povo". Usando o princípio histórico que inspirou o OED e fornecendo o mesmo tipo de informação, Craigie e Hulbert visavam mostrar como o inglês americano distingue-se do inglês da Inglaterra e de outros países de língua inglesa. As referências abreviadas usadas nas citações são ampliadas na bibliografia de

23 páginas. O final do século xix foi arbitrariamente escolhido como o ponto de corte para a admissão de palavras ao léxico, mas muitas das

229

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO citações ilustrativas são tiradas de obras publicadas durante os primei-

ros 25 anos do século xx.

Em janeiro de 1944, o ano em que o último volume do DAE foi publi-

cado, Mitford M. Mathews e sua equipe começaram a preparação de A Dictionary of Americanisms (abreviado DA). O DA parecia supérfluo, mas

o professor Mathews sentiu que o DAE havia considerado como americanismos muitos termos que ele tinha motivos para rejeitar e havia

omitido alguns termos que eram claramente americanismos. O escopo mais restrito do DA deve-se à definição de Mathews de "americanismo": "Uma palavra ou expressão originada nos Estados Unidos". Esse critério admitia na lista de palavras "cunhagens diretas", como apendicite, hidrante, tularemia, palavras como adobe, campus, gorila, que se tornaram inglesas primeiro nos Estados Unidos; e termos como faculdade, fraternidade, refrigerador, quando usados em sentidos dados a eles pela primeira vez no uso americano. Uma bibliografia de 33 páginas fornece os títulos completos das obras citadas nas citações ilustrativas. Para muitos tipos de informações históricas, culturais e lingüísti-

cas sobre americanismos, o estudante deve consultar um desses dois

dicionários.

The Century Dictionary and Cyclopedia, ed. William Dwight Whitney e Benjamin E. Smith, 12 volumes (Nova York: The Century Company, 1889-1914). O Century Dictionary é geralmente considerado o melhor dicionário completo em vários volumes já produzido por uma editora comercial na América. Sob a redação geral de William Dwight Whitney, a primeira edição foi lançada entre 1889 e 1891. Uma enciclopédia de nomes apa-

receu em 1894, um atlas, em 1897, e dois volumes suplementares, em

1909. A edição final de 1914 tem 12 volumes, com mais de 500.000 palavras. Desde cerca de 1920, este grande dicionário, que tipograficamente é o dicionário mais atraente e legível já produzido, está esgotado.

A maioria das bibliotecas universitárias, entretanto, tem uma coleção completa nas prateleiras de referência e, ocasionalmente, pode-se en-

contrar um exemplar em algum sebo. Este dicionário foi projetado para ser o registro mais completo pos-

sível do inglês literário. Um de seus valores para o estudante de litera-

230

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS tura é a inclusão generosa de palavras e formas obsoletas, como o inglês

comum da época de Chaucer. Além disso, as palavras e expressões idiomáticas da literatura dos séculos XVI e xvII são tratadas de modo mais

adequado do que em qualquer outro dicionário americano. O Century Dictionary fornece citações ilustrativas, apresenta informações etimológicas completas e precisas, lista sinônimos para cerca de 7.000 palavras e, para muitas palavras, adiciona um breve ensaio informativo.

O subtítulo da Cyclopedia of Names revela o escopo deste volume: A dictionary of pronunciation and etymology of names in geography, biography, mythology, history, ethnology, art, archeology, ction, etc. [um dicionário de pronúncia e etimologia de nomes nos campos da geogra a,

biografia, mitologia, história, etnologia, arte, arqueologia, ficção etc.). Este valioso dicionário de nomes próprios foi disponibilizado em uma publicação separada: The New Century Cyclopedia of Names, em 3 volumes (Nova York: Appleton-Century-Crofts, 1954). Entre os 305 mapas coloridos altamente detalhados do atlas mun-

dial, há quarenta mapas históricos. Existe um índice contendo 170.000 nomes de vilas, aldeias, cidades, montanhas, rios etc., com indicações de onde localizá-los nos mapas impressos no atlas.

Webster's Third New International Dictionary of the English Language, ed. Philip B. Gove (Springfield, Mass.: Merriam-Webster,

1986). Esta edição é uma revisão em grande escala da segunda edição de 1934 deste famoso dicionário americano completo da língua inglesa. Mais de 100.000 novos verbetes foram adicionados, muitos deles sendo novos significados de palavras antigas ou termos científicos e técnicos

que ganharam popularidade desde a segunda edição, mas como nomes próprios e muitos termos obsoletos e raros foram eliminados, o número total de verbetes nesta edição foi reduzido de aproximadamente

600.000 para aproximadamente 450.000. O dicionário geográ co e o

dicionário biográfico, que faziam parte da segunda edição, também foram retirados. Por causa dessas omissões, a maioria das bibliotecas guardou pelo menos uma cópia da segunda edição. Mas o Webster's Third New International Dictionary, com seu rico acervo de palavras vivas e milhares de citações ilustrativas (a maioria selecionada de fontes

fi

fi

fi

231

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO atuais) continua sendo o registro mais completo da língua inglesa como

é usada nos Estados Unidos na segunda metade do século xx.

Em 1976, a Merriam-Webster Company publicou 6,000 Words: A

Supplement to Webster's Third New International Dictionary, com algumas das novas palavras e novos significados que entraram na língua durante os quinze anos desde a publicação da terceira edição. No caso de uma língua dinâmica como o inglês, um suplemento como este pode ser necessário a cada quinze anos ou menos.

Origins: A Short Etymological Dictionary of Modern English, ed. Eric Partridge, 4* ed. (Londres: Routledge and Paul, 1966). Ao contrário dos outros dicionários que examinamos nesta seção, o Origins não apresenta a pronúncia ou o significado das palavras. A obra

limita-se à etimologia ou derivação de cerca de 12.000 das palavras mais comuns do inglês moderno. Mas a seção de 1s páginas sobre prefixos, a seção de 22 páginas sobre sufixos e a seção de 100 páginas sobre elementos formadores de compostos ajudarão os estudantes a compreender e lembrar centenas de palavras cultas e palavras técnicas do

idioma. Estudantes de medicina, por exemplo, ao detectarem alguma forma do elemento glosso- (da palavra grega que significa "língua") conseguem adivinhar o significado de palavras como glossógrafo, glossologia, glossotomia, glotoscópio, glotogênico.

Embora sejam usadas várias abreviações, as etimologias neste dicionário são apresentadas em prosa discursiva, facilmente compreensível para o leigo interessado. Uma característica valiosa do dicionário é que todos os cognatos (palavras derivadas da mesma raiz) são reunidos sob um título, com suas etimologias apresentadas nessa seção. Sob a palavra luz, por exemplo, mais de cinquenta cognatos são agrupados, palavras como lume, Lúcia, iluminar, lúcido, lucubração, luminar, lunático, sublunar, brilho, luxo, elucidar, alumiar, ilustrar, leucemia. O bônus de tal disposição é que, ao procurar a etimologia da palavra luz (ou alguma outra palavra relacionada nesse grupo), os estudantes passam a conhecer muitas outras palavras derivadas.

Qualquer um dos dicionários mencionados nesta seção fornecerá in-

formações etimológicas sobre as palavras, mas para obter informações mais extensas sobre a história das palavras, os alunos devem recorrer ao

Origins ou a um dos seguintes trabalhos:

232

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

The Oxford Dictionary of English Etymology, ed. C. T. Onions com a assistência de W. W. S. Friedrichsen e R. W. Burchfield (Oxford: Clarendon Press, 1966).

An Etymological Dictionary of the English Language, ed. Walter W. Skeat, rev. ed. (Oxford: Clarendon Press, 1956). A Concise Etymological Dictionary of Modern English, ed. Ernest Weekley, rev. ed. (Londres: Secker & Warburg, 1952).

OUTROS DICIONÁRIOS ESPECIALIZADOS Os títulos dos seguintes dicionários indicam sua natureza e escopo:

A Dictionary of Slang and Unconventional English, ed. Eric Partridge, 8a ed. (Londres: Macmillan, 1984).

Dictionary of American Slang, with a Supplement, ed. Harold Wentworth e Stuart Berg Flexner (Nova York: Thomas Y. Crowell, 1967)

A Dictionary of the Underworld, British and American, ed. Eric

Partridge, za ed. (Nova York e Londres: Macmillan, 1968).

English Dialect Dictionary, ed. Joseph Wright, 6 volumes (Londres:

H. Frowde; Nova York: G. P. Putnam, 1898-1905). A Pronouncing Dictionary of American English, ed. John S. Kenyon

e Thomas A. Knott, 2ª ed. (Springfield, Mass.: G. & C. Merriam Co.,

1953).

BIBLIOGRAFIAS Uma bibliografia é uma lista de livros e artigos sobre um determinado

assunto ou autor. A bibliografia de um autor lista obras do autor el ou sobre ele. Cada campo de estudo tem trabalhos de referência que direcionam os pesquisadores ao material publicado na disciplina e, à medida que os pesquisadores progridem em sua especialização, eles se familiarizam com os guias bibliográficos de sua área. Aqui, revisaremos alguns guias gerais de bibliografias em todos os campos e, a seguir, listaremos alguns dos principais guias bibliográficos nas principais áreas

de estudo.

233

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO A World Bibliography of Bibliographies, ed. Theodore Besterman,

4ª ed. (Lausanne: Societas Bibliographica, 1965-1966), s volumes. Esta obra de referência, publicada pela primeira vez em privado por seu editor em 1939-40, é a mais notável das bibliografias de bibliografias em inglês. A expressão "bibliografia de bibliografias" pode parecer um jogo de palavras, mas é simplesmente o termo para uma obra de referência que fornece todas as informações sobre a publicação de bibliografias em diversas áreas. Um aluno com a incumbência de fazer um trabalho sobre bruxaria pode gostar de saber que existe uma bibliografia sobre o assunto. A obra de Besterman não lista os títulos das obras sobre bruxaria, mas fornece os títulos de bibliografias dessas obras. Se a biblioteca tiver cópias dessas bibliografias, o aluno poderá montar uma lista de livros e artigos pertinentes à bruxaria. O trabalho de Besterman

é um ponto de partida lógico para qualquer um que esteja iniciando uma pesquisa importante. Como o título sugere, o trabalho de Besterman é internacional, abrangendo bibliografias de ciências humanas, ciências gerais e tecnologia, mas é limitado a bibliografias publicadas separadamente, ou seja,

livros, monografias ou panfletos dedicados exclusiva ou principalmente

a bibliografia. Conseqüentemente, as bibliografias fornecidas no final dos capítulos ou no final de um livro não são listadas em Besterman. As bibliografias em Besterman são organizadas em ordem alfabética, de acordo com o assunto. Um índice de autoria remete o aluno ao volume e às páginas de Besterman onde a bibliografia de um determinado autor está listada. Como os pesquisadores de uma bibliografia geralmente não sabem o nome dos compiladores de bibliografias, provavelmente terão de consultar o índice de assuntos. Referências cruzadas freqüentes direcionam os pesquisadores a bibliografias sobre assuntos relacionados.

Bibliographic Index: A Cumulative Bibliography OfBibliographies, 1937 (Nova York: H. W. Wilson, 1938).

O Bibliographic Index é um complemento ou suplemento valioso para a obra A World Bibliography of Bibliographies, de Besterman, uma vez que fornece cobertura contínua das bibliografias publicadas desde

a época em que o trabalho de Besterman foi editado pela última vez,

234

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

listando não somente bibliogra as publicadas separadamente, mas

também bibliografias incluídas em livros e periódicos. Na busca por bibliografias, os compiladores revisam entre 1.000 e 1.900 periódicos todos os anos, muitos deles escritos em línguas estrangeiras.

United States Catalog: Books in Print, January 1, 1928, 4ª ed. (Nova York: H. W. Wilson, 1928). Cumulative Book Index, a World List of Books in the English Language, 1928/32- (Nova York: H. W. Wilson, 1933).

Juntos, o United States Catalog e o Cumulative Book Index (CBr) fornecem um registro bastante abrangente de livros publicados nos Estados Unidos de 1898 até o presente. Todo livro publicado é catalogado pelo menos três vezes em uma única lista alfabética: uma vez com o sobrenome do autor; uma vez com a primeira palavra signi cativa nos títulos; e pelo menos uma vez em um cabeçalho de assunto (há referências cruzadas freqüentes para outros cabeçalhos de assunto). A entrada com sobrenome do autor fornece as informações mais completas sobre

um livro: (1) nome completo do autor (incluindo pseudônimo, se houver); (2) título completo do livro; (3) nome da editora (ou fonte na qual o livro pode ser obtido); (4) data de publicação; (5) paginação; (6) preço do livro; (7) número no catálogo da Biblioteca do Congresso. Os estudantes podem usar o United States Catalog e o CBI como

auxílio bibliográfico, consultando os cabeçalhos de assunto. Para um artigo que trata de "lingüística no currículo", eles podem consultar o assunto "lingüística" ou alguma subdivisão desse título em todos os volumes publicados de ambas as obras de referência, obtendo, assim, a bibliografia completa de todos os livros publicados sobre lingüística nos Estados Unidos desde 1898. Dessa lista completa, eles podem selecionar os livros que mais lhes interessarem.

ALGUNS GUIAS BIBLIOGRÁFICOS EM VÁRIAS DISCIPLINAS Cambridge Bibliography of English Literature, ed. F. W. Bateson (Cambridge: Cambridge University Press, 1940-1957; Nova York: Macmillan, 1941-1957), 5 volumes.

fi

fi

235

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Literary History of the United States, ed. Robert E. Spiller et al., 4* ed. (Nova York: Macmillan, 1972), o volume 2 é a bibliografia.

Harvard Guide to American History, ed. Frank Freidel, rev. ed. (Cambridge, Mass.: Belknap Press of Harvard University, 1974), 2 volumes. Bibliography of British History, 2ª ed. (Oxford: Clarendon Press, 1928-1970), 3 volumes. Lubomyr Roman Wynar, Guide to Reference Materials in Political

Science: A Selective Bibliography (Denver, Colo.: Bibliographic Institute, 1966-1968), 2 volumes. Lloyd H. Swift, Botanical Bibliographies: A Guide to Bibliographic Materials Applicable to Botany (Minneapolis, Minn.: Burgess, 1970). Charles Kenneth Moore e Kenneth John Spencer, Electronics: A

Bibliographical Guide (Londres: MacDonald; Nova York: Plenum Press, 1961-65), 2 volumes. Rebecca Laurens Love Notz, Legal Bibliography and Legal Research,

3ª ed. (Chicago: Callaghan, 1952). Vincent Harris Duckles, Music Reference and Research Materials: An Annotated Bibliography, 4ª ed. (Nova York: Free Press, 1994).

BIBLIOGRAFIAS ANUAIS Qualquer bibliografia começa a ser datada assim que é publicada. Evidentemente, a bibliografia continua sendo útil como registro dos livros e artigos publicados durante o período que abrange, mas o registro necessariamente termina pouco antes da data de publicação. Vários periódicos especializados mantêm o acadêmico informado sobre todas as publicações importantes em uma disciplina particular durante o ano anterior. No curso de graduação e, certamente, na escola de pós-graduação, os estudantes devem se familiarizar não apenas com guias bibiográficos, como os discutidos na seção anterior, mas também com as bibliografias anuais que são publicadas em seu campo de estudo. Para obter orientação sobre os guias bibliográficos e essas bibliografias anuais, eles devem consultar a seção apropriada de uma obra de referência como Guide to Reference Books, 9ª ed., de Eugene P. Sheehy (Chicago:

American Library Association, 1976).

236

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

SYNTOPICON The Great Ideas: A Syntopicon of Great Books of the Western World, ed. Mortimer J. Adler e William Gorman, 2 vols. (Chicago: Encyclopaedia Britannica, Inc., 1952).

O Syntopicon, volumes 2 e 3 da coleção de 54 volumes de The Great Books of the Western World, é uma obra de referência tão única e valiosa que merece uma exposição mais completa do que a de outras obras de referência neste livro. O termo syntopicon significa "coleção de tópicos". Como uma coleção de tópicos, o syntopicon é um recurso de referência que os antigos retóricos desejariam que estivesse disponível em sua

época como guia para o conhecimento relativamente mais especializado de que oradores e escritores precisam para desenvolver um determinado assunto. Mortimer Adler disse sobre esse extenso índice que ele é "o inverso exato dos comptômetros gigantes que as pessoas alimentam de dados e que pensam por elas; o syntopicon alimenta as pessoas de dados (os problemas e as várias premissas sobre eles) e permite que a mente humana pense sozinha". Cerca de 443 obras de 74 autores são reimpressas nos volumes 4-54 de Great Books, e o professor Adler teve de decidir sobre uma lista bá-

sica de grandes idéias que serviriam como índice detalhado para os

tópicos discutidos na seção "grandes livros" e na Bíblia, cujo texto não é apresentado no conjunto. Ele reduziu sua lista de grandes idéias para 102, incluindo tópicos como aristocracia, beleza, democracia, evolução, destino, bem e mal, amor, natureza, prazer e dor, retórica, sinal e sím-

bolo, tempo, riqueza. Uma equipe de indexadores fez uma série de leituras de Great Books para reunir referências às discussões dessas idéias pelos grandes autores. No final, as idéias básicas foram subdivididas em cerca de 3.000 tópicos. Cada um dos 102 capítulos do Syntopicon consiste em cinco partes: 1. Introdução. Trata-se de um ensaio que resume a história da discussão

da idéia tratada naquele capítulo. As várias interpretações da idéia são revisadas, e os problemas e controvérsias levantados pelo contínuo "debate" sobre a idéia são discutidos.

237

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 2. Esboço dos tópicos. Esta seção apresenta, em linhas gerais, os principais

temas da discussão sobre a idéia. Embora haja uma média de trinta tópicos para cada capítulo, o número real varia de apenas seis tópicos em um

capítulo a 76. 3. Referências. Esta seção, organizada por tópicos, é a principal parte do syn-

topicon. Em cada tópico, é indicada a localização exata de todas as passagens da coleção Great Books relacionadas a esse tópico. Eis uma entrada típica: 35 Locke Entendimento humano Lv. II, cap. xxi, 178a-200d

O investigador é direcionado ao volume 35 da coleção Great Books, onde

o Ensaio sobre o entendimento humano (1690), de John Locke, é reproduzi-

do em sua totalidade. "Lv. II, cap. xxi" é uma referência à divisão do autor de seu tratado, uma referência que permite encontrar a passagem relevante em alguma outra edição da obra do autor se a coleção Great Books não estiver prontamente disponível. O "178a-200d" cita a primeira e a última página, junto com a seção da página, da passagem relevante no volume 35.

A ordem em que as referências são organizadas permite ao investigador

prosseguir na discussão de algum tema em uma sequência histórica ou de acordo com um grupo seleto de autores ou um período específico. As referências à Bíblia, se houver, são sempre listadas primeiro.

4. Referências cruzadas. Esta seção direciona o pesquisador a outros capí-

tulos no syntopicon, onde são tratados tópicos semelhantes ou relacionados. Além de direcionar os leitores a materiais afins, as referências cruzadas os conscientizam das inter-relações entre as grandes idéias.

5. Leituras adicionais. Esta seção remete os leitores a outras obras não

reimpressas na coleção Great Books. Essas bibliografias são divididas em duas seções: (1) obras escritas por autores representados nos volumes 4 a 54

dos Great Books of the Western World; (2) obras de autores não incluídos na coleção Great Books. Nesta seção, as leituras adicionais são listadas apenas

por autor e título, mas na Bibliografia de Leituras Adicionais, no final do

segundo volume do Syntopicon, são fornecidas as informações bibliográficas completas sobre cada obra.

Outro recurso de referência valioso do Syntopicon é o inventário de

termos. Esta seção serve como uma espécie de índice. Mortimer Adler comenta sobre esta seção em sua introdução:

238

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS A pessoa que deseja usar o Syntopicon como um livro de referência, a fim de

aprender o que os grandes livros têm a dizer sobre um determinado assunto, deve ser capaz de encontrar esse assunto entre os 3.000 tópicos. A principal

função do Inventário de Termos é capacitá-lo a encontrar o tópico ou tópicos

que expressam claramente ou representam o assunto de sua investigação.

Por exemplo, um dos termos que provavelmente está envolvido em uma discussão sobre retórica é persuasão. Consultando o termo per-

suasão no Inventário de Termos, os pesquisadores encontrariam esta

notação: Persuasão: ver RETÓRICA, 1-5/b ver também DIALÉTICA 5; EMOÇÃO

5d; INDUÇÃO 40; LINGUAGEM 8; OPINIÃO 2C; PRAZER E DOR I0b;

RAZÃO {d Os termos impressos em maiúsculas remetem o pesquisador a um dos 102 capítulos dispostos alfabeticamente no Syntopicon; os números e letras minúsculas referem-se à subdivisão particular da seção de referências daquele capítulo. Esta seção, por sua vez, direcionará o in-

vestigador às passagens de Great Books em que o termo persuasão é o principal termo da discussão. Não existem palavras para expressar, de forma adequada, a riqueza de informações encontrada nas páginas desta obra de referência única ou esclarecer totalmente como ela funciona. Os estudantes devem navegar por ela para descobrir por si mesmos a natureza, o escopo e o método deste valioso guia para a sabedoria de todos os tempos.

***

ExeRcÍcIo

Como nenhuma quantidade de palestras o ajudará a familiarizar-se com as obras de referência tanto quanto consultar as obras para encon-

trar respostas a perguntas especí cas, este exercício foi projetado para mostrar-lhe como usar as obras de referência discutidas na seção sobre auxílios externos à invenção. As respostas a algumas perguntas a seguir podem ser encontradas em uma das enciclopédias comuns, no catálogo de chas da biblioteca

fi

fi

239

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

ou em um minidicionário. Em todo caso, você deve consultar a obra de referência onde é mais provável encontrar as informações. Por exemplo, se você quiser a data de publicação do romance A feira das vaidades, poderá encontrar essas informações em um manual de literatura mundial, como The Reader's Encyclopedia, de William Rose Benét; mas, como

William Makepeace Thackeray, autor de A feira das vaidades, é um romancista inglês, é mais provável que você encontre essas informações em um manual dedicado exclusivamente à literatura inglesa, como

Oxford Companion to English Literature ou The New Century Handbook of English Literature. Ao fazer este exercício, você deve (1) escrever o problema conforme declarado abaixo; (2) escrever a resposta para o problema (às vezes, isso envolverá copiar a resposta como aparece na obra de referência; neste

caso, ela deve ser copiada textualmente e colocada entre aspas); (3) designar a fonte das informações: título da obra de referência (subli-

nhado), edição da obra (se a obra consultada for uma edição posterior à primeira, por exemplo, uma edição revisada, segunda edição etc.), o

número do volume (apenas no caso de uma obra de referência de vários volumes), o número exato da página em que a resposta foi encontrada. Abaixo, um possível formato para este exercício.

Problema: Quem fundou o quarteto de cordas americano conhecido como Flonzaley Quartet?

Resposta: Edward J. De Coppet, da cidade de Nova York, fundou o Flonzaley Quartet. Fonte: Groves Dictionary of Music and Musicians, 3ª ed., II, 254.

Você quer descobrir:

1. Quando Sir Robert Peel, o homem responsável pela revogação das Corn Laws em 1842, tornou-se reitor da Universidade of Glasgow. 2. Em qual dos romances de Frank Norris o personagem Curtis Jadwin

apareceu. 3. Se o Dictionary of American English e The Dictionary of Americanisms concordam com a data em que "o.k." foi usado pela primeira vez como

240

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

um verbo no sentido de "aprovar". (Forneça a data e a fonte da primeira ocorrência conforme encontrada em cada dicionário).

4. Quando e onde Sir Harold Nicolson, o notável biógrafo contemporâneo, nasceu.

5. Se o termo bispo ocorre no Novo Testamento (em caso afirmativo, cite as passagens em que o termo ocorre). 6. Alguns artigos de revistas sobre censura de imagens em movimento que apareceram em publicações em inglês publicadas fora dos Estados Unidos durante os anos 1955-1958.

7. Quando e onde Margaret Thatcher, primeira-ministra da GráBretanha, nasceu e em que área ela obteve seu diploma universitário.

8. Em que ano John Hancock foi eleito o primeiro governador do es-

tado de Massachusetts.

9. Durante quantos anos Ignazio Raimondi, o violinista e compositor

napolitano, atuou como diretor de concertos em Amsterdam. 10. Pelo menos seis artigos publicados em revistas americanas em 198082 sobre o assunto de estudantes estrangeiros nos Estados Unidos.

11. Se existe alguma compilação das obras de Thomas Babington Macaulay. 12. Por que Juan Luis Vives, o humanista espanhol e professor de retó-

rica, foi preso por Henrique vi. 13. Uma cópia do poema Vitória, de Eileen Duggan. 14. O significado da alusão, em um livro sobre os gregos, "Batalha de

Leuctra".

241

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Is. Se o ensaio "The Frontier in American History", de Frederick Jackson Turner, foi reimpresso em alguma coleção ou antologia publi-

cada entre 1948 e 1954.

16. Em que romance de Dostoiévski apareceu o personagem Nikolay

Vsievolódovitch Stavróguin.

17. Pelo menos três estudos biográficos do tamanho de um livro da poetisa Emily Dickinson. 18. O primeiro uso registrado da palavra knight como descrição de uma ordem ou posto e, em seguida, o primeiro uso registrado da palavra, no mesmo sentido, escrita com sua grafia atual.

19. Os nomes de alguns titereiros contemporâneos (como Burr

Tillstrom) e, em seguida, alguns artigos biográficos sobre esses titereiros em periódicos e jornais entre 1949 e 1952. 20. A fonte da citação: "Não há queixa que seja objeto de reparação pela

lei da turba". 21. Há quantos anos Walter Paul Paepcke serviu como presidente da Container Corporation of America.

22. Que título Juan Bautista Diamante, o dramaturgo espanhol do

século xvII, deu à sua adaptação da peça Le Cid, de Corneille.

23. Se o Oxford English Dictionary e o Century Dictionary concordam que a palavra rampeira, como substantivo que signi ca "uma garota alegre e animada que se entrega a jogos impetuosos", começou a ser usada durante os primeiros anos do século xvIII. 24. Pelo menos seis artigos sobre as Corn Laws que apareceram em qualquer época durante os primeiros setenta e cinco anos do século xIx.

25. Se uma bibliografia já foi compilada sobre o assunto da bruxaria (em caso afirmativo, liste duas ou três).

fi

242

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS 26. O que signi ca o termo literário "estrofe spenseriana". 27. Se Shakespeare alguma vez usou a palavra retórica em suas peças (e em caso afirmativo, onde).

28. O significado do termo astronauta.

29. Seis artigos de revistas publicados em 1893 sobre a World's

Columbian Exposition de Chicago. 30. Quando Pierre-Lambert Goossens, arcebispo católico de Mechelen, na Bélgica, foi nomeado cardeal.

ILUSTRAÇÃO DO USO DA ESTRATÉGIA DE PESQUISAS As informações são importantes porque vivemos em uma sociedade de informações. A capacidade de encontrar, avaliar e usar informações melhorará a qualidade do trabalho escolar e também permitirá que você tome melhores decisões ao escolher uma carreira, ajudando-o a progredir no mercado de trabalho. O processamento de informações com rapidez e eficiência certamente aumentará seu tempo de lazer. Qual é a melhor forma de buscar informações? Se você tiver apenas necessidades muito específicas, como informações sobre uma pessoa em particular, vá diretamente às fontes de referência que fornecem esse tipo de informação, por exemplo, índices biográficos. Se suas necessi-

dades, no entanto, são mais amplas, como pesquisar um tópico para um artigo e obter informações sobre o tópico escolhido, é necessário adotar uma abordagem diferente: elaborar um plano de ação, como você faria para quase qualquer empreendimento importante. Um desses planos é o que chamamos de "estratégia de pesquisa", um método passo a passo para encontrar informações, indo das informações mais gerais para conteúdo cada vez mais relevante e útil para suas necessidades. Com essa estratégia, você não apenas examinará todas as áreas

Desenvolvido e escrito por Virginia M. Tiefel, Diretora de Educação do Usuário de Bibliotecas, Ohio State University Libraries.

fi

243

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

pertinentes da biblioteca, mas também fará um uso mais eficiente de seu tempo. Como foi observado anteriormente, uma estratégia de pesquisa é uma série de etapas que, normalmente, devem ser seguidas em ordem, mas podem ser consultadas posteriormente, conforme necessário. Com um pouco de experiência, você saberá quando saltar algumas das etapas, que provavelmente não produzirão informações muito úteis sobre o assunto específico que você está investigando. Logo, você saberá qual

das etapas apresenta a maior quantidade de informações pertinentes aos seus objetivos. De qualquer maneira, ao aprender a usar a estratégia de pesquisa, é aconselhável seguir todas as etapas na ordem prescrita: (1) enciclopédias, (2) dicionários, (3) manuais, (4) bibliografias, (s) catálogo de fichas, (6) índices de periódicos e jornais, (7) índice de ensaio e literatura geral (8) índices biográficos e de resenhas de livros, (9) concordâncias e livros de citações, (10) fontes estatísticas e documentos

governamentais. A seção de auxílios externos às invenções forneceu informações específicas sobre muitos livros de referência específicos dentro dessas categorias.

Para ilustrar o uso da estratégia de pesquisa, examinarei um assunto

específico em cada uma das dez etapas sucessivamente. Suponhamos que eu tenha que definir um tópico para um trabalho final de uma aula de sociologia. Por muito tempo, interessei-me pelo tópico da morte por

misericórdia, mas tenho apenas uma vaga noção do que é uma morte

por misericórdia e não tenho a mínima idéia de onde posso encontrar informações úteis sobre o assunto. Portanto, passarei por cada uma das dez etapas, começando com as fontes de informação mais gerais e avançando para fontes de informação cada vez mais específicas. ETAPA UM — ENCICLOPÉDIAS

Sabendo que enciclopédias são bons lugares para começar uma pes-

quisa quando se sabe pouco sobre um assunto, procuro "morte por misericórdia" no índice da Encyclopedia Americana e encontro este verbete: "morte por misericórdia: ver eutanásia". Aparentemente, eutanásia é outro termo para morte por misericórdia. Volto, então, para o volume

da enciclopédia que trata de assuntos que começam com a letra E e, folheando as páginas desse volume, chego ao artigo sobre eutanásia.

244

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Lá, fico sabendo que eutanásia é uma palavra grega que significa, lite-

ralmente, "boa morte" ou, mais precisamente, "morte fácil" ou "morte

pacífica". O artigo passa a apresentar alguns antecedentes históricos e filosóficos sobre o assunto, observando que a "morte fácil" é um tópico de debate antigo e persistente e que as atitudes a respeito têm variado com o tempo e o lugar. Para obter mais informações, passo, em seguida, a outra enciclopédia: a Encyclopedia Britannica. A Micropaedia (o índice detalhado dessa enciclopédia) define o termo e dá referências a outras seções da enciclopédia que tratam dos aspectos legais da morte, de ações legislativas e oposição à eutanásia, além de problemas médicos e éticos relacionados ao assunto. Parece que já existem muitas informações a respeito. Por isso, preciso restringir e refinar o tópico.

ETAPA DOIS — DICIONÁRIOS Visto que desejo entender melhor o termo, consulto alguns dicionários específicos abordados em "auxílios externos à invenção". O comen-

tário sobre o Oxford English Dictionary nessa seção afirma que o OED é

o dicionário de inglês mais completo já compilado, apresentando o desenvolvimento histórico de todas as palavras inglesas em uso entre 1150

e 1933. Procurando eutanásia no OED, encontro: "morte suave e fácil no

século xvII e que mais tarde seria chamada de "meio de provocar uma morte suave e fácil". Na segunda metade do século xIx, o termo assumiu seu significado atual: "a ação de induzir uma morte suave e fácil".

Nesse ponto, não me interessam muito os aspectos médicos, sociais

ou históricos da eutanásia, mas os aspectos legais de "induzir uma morte suave e fácil" me intrigam e sugerem que esse pode ser o aspecto do assunto que buscarei para meu trabalho de conclusão de curso. Portanto, agora vejo que preciso buscar algumas definições especificamente legais de morte e eutanásia. Sabendo que existem dicionários específicos, na maioria das disciplinas, que abrangem tópicos e palavras com mais detalhes do que os dicionários gerais, encontro Black's Law Dictionary entre os muitos dicionários específicos na sala de referência da biblioteca. Nesse dicionário legal, o termo morte é definido como

"a cessação da vida", e o termo eutanásia é definido como "o ato ou prática de levar à morte, sem dor, pessoas que sofrem de uma doença incurável e angustiante; uma morte fácil ou agradável". O termo as-

245

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

sassinato, aqui, é definido como "assassinato ilegal de um ser humano por outrem com malícia premeditada, expressa ou implícita ("malícia premeditada é a predeterminação de cometer um ato sem justificativa legal ou pretexto"). ETAPA TRÊS — MANUAIS Como parece haver alguma imprecisão nas definições jurídicas de alguns termos-chave relacionados ao assunto, preciso reunir mais in-

formações básicas antes de estender minha pesquisa. Os manuais são boas fontes para uma visão geral dos assuntos (geral, mas que fornece

informações mais detalhadas do que as normalmente encontradas nas

enciclopédias). Os manuais, portanto, são uma boa ponte entre as enciclopédias e o tratamento aprofundado encontrado em livros e artigos especializados sobre um determinado assunto. Decido fazer uma pesquisa por assunto no catálogo de fichas para ver se há um manual sobre o meu assunto. Consultando a obra Library

of Congress Subject Headings (LCSH), de dois volumes, descobri que "Eutanásia, Aspectos Sociais" é o cabeçalho de um assunto estabelecido, mas que "Eutanásia, Manuais" não está listado. De qualquer ma-

neira, talvez haja um manual sobre o tópico mais amplo de "morte".

Procurando a palavra morte na LCSH, encontro o subtópico "Morte, Manuais". Uma pesquisa no catálogo de fichas com o título desse as-

sunto revela um manual intitulado Sourcebook on Death and Dying, que está arquivado na sala de referência da biblioteca. Depois de localizar o livro nas prateleiras, examino seu índice. Em "Parte 1, Questões

Atuais", há uma seção intitulada "O direito de morrer: eutanásia". Essa

seção contém uma visão geral extensa dos aspectos legais da eutaná-

sia e uma bibliografia (não comentada) de livros. O artigo cita muitos casos e ramificações legais, define "eutanásia voluntária/involuntária" e "eutanásia ativa/passiva", descreve as responsabilidades da família e

dos médicos em tais casos e observa a importante questão do direito à privacidade. Esse artigo do manual, redigido por um médico advogado, continua, apontando as diferenças entre quatro formas de eutanásia: (1) voluntária/ativa (direta); (2) voluntária/passiva (indireta); (3) involuntária/ativa; e (4) involuntária/passiva. "Eutanásia voluntária" denota

246

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS casos em que o paciente ou seu representante dá consentimento para um ato que resulta em morte; "eutanásia involuntária" aplica-se quando

não houve consentimento dado para um ato que resulta em morte. "Ativo" refere-se a um ato que evidentemente resulta em morte, como dar veneno a alguém; "passivo" refere-se ao ato de suspender ou inter-

romper o tratamento que prolonga a vida, de forma que a doença siga seu curso e o paciente morra.

Uma vez que essas diferenciações ajudam a esclarecer como a eutanásia é categorizada, posso agora restringir ainda mais meu tópico aos aspectos legais da eutanásia voluntária/passiva. Continuando a discussão dos aspectos legais da eutanásia, o autor observa que nove Estados (em 1986) aprovaram leis cuidadosamente redigidas autorizando a eutanásia voluntária/passiva. Finalmente, esse capítulo cita o caso de Karen Quinlan como um exemplo clássico de eutanásia voluntária/passiva. Na noite de 14 de abril de 1975, Karen ingeriu tranquilizantes pouco antes de sair para beber com algumas amigas. Ela entrou em coma e

permaneceu em coma pelos próximos dez anos, incapaz de falar ou ver. Seus pais, Joseph e Julia Quinlan, entraram com uma petição nos tribunais para autorizar a retirada de todos os equipamentos de suporte vital de Karen, e a Suprema Corte do estado de Nova Jersey aprovou o pedido, com base no direito à privacidade. Mas quando os respiradores foram desligados, Karen continuou viva, embora em estado vegetativo, por vários anos. Em junho de 1985, por fim, ela veio a falecer. Como esse caso se tornou o caso clássico do século xx, decidi que o exploraria mais como parte de meu projeto de pesquisa. ETAPA QUATRO — BIBLIOGRAFIAS

Meu próximo passo foi consultar bibliografias, que muitas vezes são uma maneira rápida de encontrar material sobre um assunto específico. As enciclopédias e manuais geralmente fornecem bibliografias no final dos artigos, e o manual Sourcebook on Death and Dying forneceu uma

longa lista de títulos, mas a maioria desatualizada. Além disso, como eu havia restringido meu tópico, nenhum dos títulos nessa bibliografia era específico o suficiente. Uma busca por assunto no catálogo de fichas freqüentemente revela bibliografias, como aconteceu em minha busca por um manual. Usando a Library of Congress Subject Headings nova-

247

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO mente, descobri que "Eutanásia, Bibliografia" é um título de assunto

comum, encontrando a Direito de morrer como outro título. Portanto, quando passar para a próxima etapa, o catálogo de fichas, usarei esses

cabeçalhos de assunto para encontrar algumas bibliografias pertinentes. ETAPA CINCO — CATÁLOGO DE FICHAS

Eu copio todas as informações de citação que encontro no catálogo de fichas e anoto o código completo de cada citação. O código de catálogo de um livro é semelhante ao endereço residencial de uma pes-

soa: ele informa onde o livro está localizado no sistema da biblioteca. Copiar o código de catálogo com cuidado pode poupar tempo depois na obtenção de materiais na biblioteca. Uma letra ou número incorreto pode nos levar à seção errada da coleção, e a única maneira de corrigir esse erro é voltar ao catálogo de fichas e copiar novamente o código. Sob o título "Eutanásia, Bibliografia"no catálogo de fichas, encontro Euthanasia and the Right to Die [Eutanásia e o Direito de

Morrer], publicado em 1977 pelo Departamento de Saúde, Educação

e Bem-Estar de um governo. Não há nada sob o título "Direito de Morrer, Bibliografia", mas o título "Direito de Morrer" tem vários títu-

los listados, incluindo Karen Ann: The Quinlans Tell Their Story [Karen

Ann: Os Quinlans Contam Sua História], de Joseph e Julia Quinlan,

publicado em 1977. Como a bibliografia listada no catálogo de fichas

pode ser útil, decido dar uma olhada nela e também no livro sobre Karen Quinlan. ETAPA SEIS — ÍNDICES DE PERIÓDICOS E JORNAIS

A primeira decisão que devo tomar é se devo consultar primeiro o índice do periódico ou o índice do jornal. Na maioria dos casos, os índices de periódicos são os mais úteis e, em alguns casos, não há necessidade de usar índices de jornais. Você deve estar ciente de que os jornais geralmente não contêm estudos profundos, que muitos tópicos não têm destaque o suficiente para serem incluídos nos jornais e que o tempo e o espaço são considerações importantes nesse tipo de edição. Os periódicos são menos limitados por restrições de tempo do que os

248

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS jornais e normalmente (sobretudo os periódicos acadêmicos) dedicam mais espaço a um determinado assunto do que os jornais.

Como o caso Quinlan era uma notícia importante e recente nos

noticiários, decidi começar pelos índices dos jornais, e o que escolhi consultar primeiro foi o The New York Times Index. Sei que esse índice geralmente contém resumos de histórias importantes, de modo que posso obter uma breve visão geral do caso a partir desses resumos e, então, buscar mais detalhes sobre a história em edições específicas do próprio jornal. Consultando o Index de 1975, descobri que vários artigos e alguns resumos sobre o caso Quinlan apareceram no jornal naquele ano. Apenas com os resumos, fiquei conhecendo grande parte dos fatos sobre o caso que listei brevemente no final da etapa três —

manuais, incluindo a luta dos pais nos tribunais de Nova Jersey para ganhar o direito de permitir que Karen morresse em paz. Muitos artigos adicionais estão listados no Index de 1976 e alguns artigos estão listados no Index de 1977. Só do New York Times, poderei reunir material mais do que suficiente sobre o caso Quinlan para meu trabalho de conclusão de curso. De qualquer maneira, decido buscar mais informações na bibliografia que extraio da biblioteca. Encontrei notícias de vários artigos sobre

o caso Quinlan em revistas médicas. Como esses artigos provavelmente são muito completos, copio as citações de vários desses artigos médi-

cos para consulta posterior. Consulto o Readers' Guide to Periodical Literature e o Social Sciences and Humanities Index, mas como esses índices nos direcionam a revistas populares como TIME e Newsweek, concluo que não obterei informações tão úteis nesses índices quanto

em revistas médicas.

ETAPA SETE — O ÍNDICE DE ENSAIO E LITERATURA GERAL

The Essays and General Literature Index (EGLI) indexa ensaios indi-

viduais em livros que são coleções. Por exemplo, você pode não conseguir encontrar um ensaio sobre a eutanásia no catálogo de fichas, porque ele traz o título de livros que geralmente não listam seu conteúdo separadamente. Portanto, para encontrar um ensaio individual

publicado entre muitos outros em um único livro, você pode consultar O EGLI, onde os itens são indexados por autor e por assunto. O volume

249

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

de 1975-1979 dessa obra de referência tem uma citação sob o título de assunto de Quinlan, Karen. O autor deste ensaio é listado como "Tribunal Superior de Nova Jersey" e o título do ensaio é "No caso de Karen Quinlan, uma suposta incompetência", e o ensaio ocorre nas páginas 271-77 de um livro editado pela Weir e intitulado Ethical Issues in Death and Dying. Encontrando o livro listado no catálogo de fichas,

eu o examino e descubro que uma seção inteira do livro consiste em ensaios sobre a eutanásia, mas apenas o ensaio sobre Karen Quinlan interessa ao meu trabalho final. Como esse ensaio nunca foi publicado em periódico, não estaria listado em nenhum dos índices de periódicos, e se eu não tivesse consultado o EGLI, nunca o teria descoberto. O ensaio fornece informações valiosas para meus propósitos, porque traz os detalhes dos processos judiciais de Quinlan, primeiro no Tribunal Superior de Nova Jersey, onde o juiz concluiu que desligar o respirador de Karen seria equivalente a homicídio, e depois na Suprema Corte de Nova Jersey, que determinou que os pais estavam autorizados a retirar todos os aparelhos de suporte à vida de Karen. O EGLI nem sempre apresenta informações adicionais sobre algum assunto, mas os estudantes devem estar cientes de sua existência e do tipo de informação que ele fornece. ETAPA OITO — ÍNDICES BIOGRÁFICOS E DE RESENHAS DE LIVROS

Os índices biográficos podem nos levar rapidamente a livros, artigos e ao tipo de fontes de referência discutidas na seção de biografia de auxílios externos à invenção. Para alguns projetos de pesquisa, é importante encontrar informações biográficas sobre pessoas específicas, especialmente pessoas da atualidade que não se destacaram o suficiente para merecer uma biografia do tamanho de um livro. Acontece que encontrar informações biográficas sobre Karen Quinlan não era tão

importante para meu projeto de pesquisa quanto poderia ser em outros projetos. O Biographical Index listou o livro que descobri no catálogo de fichas e peguei na biblioteca, o livro que os pais de Karen, Joseph e Julia Quinlan, publicaram em 1977, Karen Ann: The Quinlans Tell Their Story. Se eu não tivesse encontrado esse trabalho em uma das etapas da estratégia de pesquisa, o Biographical Index teria me levado a ele.

250

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Mas outro uso valioso que pode ser feito dos índices biográficos e

de resenhas de livros é que eles podem nos levar a trabalhos que nos ajudarão a avaliar a reputação e a confiabilidade dos autores e a importância de livros específicos. Se, por exemplo, o material que encontramos apresenta visões conflitantes sobre um determinado assunto, poderíamos usar esses índices para encontrar biografias e resenhas de livros que nos ajudassem a avaliar a qualificação relativa dos autores e a

qualidade relativa dos livros. Por exemplo, ao avaliar as credenciais de dois autores de artigos que

eventualmente poderei usar em meu trabalho de conclusão de curso, consultei algumas obras de referência biográfica que fornecem informações diretas e confiáveis sobre profissionais vivos. Um excelente ponto

de partida para obter informações sobre cientistas é o livro American

Men and Women of Science. Na décima quinta edição dessa obra, pu-

blicada em 1982, encontrei esta informação pertinente sobre Alexander Morgan Capron, autor de um dos artigos que tenho arquivado: Capron graduou-se em direito pela Yale University e atualmente é professor

de direito e reitor assistente na Universidade da Pensilvânia; entre suas nomeações de prestígio está a diretoria executiva da Comissão de Presidentes para o Estudo de Problemas Éticos em Medicina, Biomedicina e Pesquisa Comportamental. Na 8a edição do Directory of American Scholars, encontrei esta informação pertinente sobre Paul Ramsey, autor de outro artigo importante sobre o caso de Karen Ann Quinlan: Ramsey tem doutorado em religião pela Universidade de Yale e é professor emérito de religião na Universidade de Princeton; além disso, lecionou em inúmeras instituições e foi nomeado para diversos conselhos e comissões importantes. Informações desse tipo me ajudarão a julgar as qualificações desses autores para falar sobre os tópicos que eles discutem em seus artigos. Usei o livro Magazines for Libraries, de William Katz e Linda Katz, mencionado nos parágrafos introdutórios de auxílios externos à invenção, para me ajudar a avaliar a reputação e a con abilidade de duas

revistas médicas que publicaram artigos aparentemente úteis para meu trabalho de conclusão de curso. Os Katz declaram que o New England Journal of Medicine, órgão da Massachutts Medical Society, é uma das "principais revistas de medicina" do país. Além disso, eles descrevem o Hastings Center Report, publicado pelo Institute of Society, Ethics, and

fi

251

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

the Life Sciences, como um jornal "acadêmico, mas não técnico", que abrange questões éticas das ciências biológicas e médicas, bem como questões relacionadas nas áreas sociais e ciências comportamentais. Para me ajudar a avaliar o livro biográfico Karen Ann: The Quinlans Tell Their Story (1977) que peguei na biblioteca, consultei o volume de 1978 do Book Review Digest, que lista a localização de várias resenhas desse livro, resenhas que poderei ler mais tarde para me ajudar a avaliar o relato da vida de Karen por seus pais. Esse trabalho de referência também fornece trechos de resenhas do livro publicadas em dois periódicos, America e Library Journal. Visto que o resumo das resenhas nesse trabalho de referência geralmente inclui resenhas favoráveis, semifavoráveis e negativas de um livro, os leitores podem obter uma visão

equilibrada do livro com base apenas nesses trechos. ETAPA NOVE — CONCORDÂNCIAS E LIVROS DE CITAÇÕES

Citações adequadas podem não ser tão importantes para o meu trabalho de conclusão de curso como poderiam ser em um trabalho sobre outro assunto, um trabalho, por exemplo, sobre um grande evento histórico ou um grande personagem histórico, mas uma citação incisiva de alguma pessoa famosa ou alguma obra literária famosa pode ser útil como epígrafe para meu artigo sobre eutanásia e Karen Ann Quinlan. Talvez a obra de referência mais conhecida sobre citações famosas seja Familiar Quotations, de John Barlett. Sob a palavra morte no índice da edição de 1948 dessa obra, encontro várias citações que incorporam a noção de morte. Uma que parece especialmente oportuna ao meu artigo é sugerida por esta frase: "desejá-la e não alcançá-la". Abro na página referente à frase e encontro esta citação apropriada da peça Electra, de Sófocles: A morte não é o pior; antes, em vão

Desejar a morte e não alcançá-la.

Eis uma citação apropriada para a questão da eutanásia. Conforme explicado em auxílios externos à invenção, uma concordância fornece um índice para todas ou para a maioria das pas-

sagens das obras de um autor em particular. Duas das concordâncias

252

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

mais usadas são as concordâncias completas da Bíblia e das obras de Shakespeare. A palavra morte no indice do Home Book of Shakespeare Quotations (1937) me encaminha a uma página e ao número da seção do livro que contém uma citação adequada do ato I1, cena 2, linhas 32-37 da peça Júlio César, de Shakespeare: Muito antes de morrer, morre o covarde; só uma vez o homem forte prova a morte. Das coisas raras de que tenho ciência, sempre me pareceu a mais estranha terem os homens medo, embora saibam que a morte, um fim a todos necessário, vem quando vem.

Eis uma citação muito comovente em conexão com o caso trágico

de Karen Quinlan.

ETAPA DEZ — FONTES ESTATÍSTICAS E DOCUMENTOS GOVERNAMENTAIS

O Statistical Abstract of the United States, publicado anualmente, é a melhor fonte de estatísticas sobre todos os aspectos dos Estados Unidos.

Ao examinar uma edição recente, não encontrei a eutanásia listada, mas havia uma análise detalhada das estatísticas sob o título de "mortes acidentais", com os dados sobre mortes em veículos motorizados nos últimos quinze anos (diminuindo continuamente) e suicídio (aumentando). Algumas das outras causas de morte listadas são acidentes ferroviários, aéreos e espaciais, quedas, afogamento, incêndio, drogas e

medicamentos. A categoria "drogas e medicamentos" oscila de 1,2% de todas as mortes acidentais em 1970 para 1,1% em 1980 e 1,5% em 1985,

uma flutuação que demonstra um declínio e, em seguida, um aumento geral. As estatísticas de morte acidental também são discriminadas por sexo, idade e local de residência. Essas estatísticas, embora não estejam

diretamente relacionadas ao tópico em que estou me concentrando, podem colocar a eutanásia no contexto da morte e de suas causas. Como o governo dos Estados Unidos é um dos maiores editores do mundo, as publicações do governo fornecem grande riqueza de informações que deve ser considerada ao pesquisar quase qualquer tópico. Os documentos do governo são indexados no Monthly Catalog of United States Government Publications. Para continuar minha pesquisa sobre eutanásia, procuro no índice de assuntos da coleção Monthly Catalog

253

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO em "Eutanásia, Estados Unidos". Encontro um relatório intitulado "Decidindo renunciar ao tratamento que sustenta a vida: um relatório sobre as questões éticas, médicas e legais nas decisões de tratamento". Após

registrar o número do catálogo (semelhante ao código de catálogo de um livro), vou ao Monthly Catalog e descubro que o documento é um relató-

rio da Comissão de Presidentes para o Estudo de Problemas Éticos em Medicina, Biomedicina e Pesquisa Comportamental. O relatório tem 554

páginas, com mapas, uma bibliografia e um índice. Provavelmente conterá informações úteis que podem não estar disponíveis em sua totalidade

em nenhum outro lugar. Faço anotações cuidadosas do título e número do documento e vou à seção de documentos do governo na biblioteca. Para finalizar esta exposição sobre estratégia de pesquisa, devo men-

cionar que a tecnologia nos trouxe novas ferramentas para recuperar informações que são mais fáceis e rápidas de usar do que os índices im-

pressos comuns. Agora, existe uma variedade de índices disponíveis em CD-ROM, basicamente bibliografias e índices de revistas, periódicos e

jornais, que devem ser considerados quando alguém estiver executando

as etapas 3 e 6. Esses índices incluem títulos como Art Index, Applied Science and Technology Index, Infotrac II-Academic Index (semelhante ao Reader's Guide, mas abrangendo um grande número de periódicos), Modern Language Association Bibliography, Sociofile (sociologia política,

psicologia social etc.) e Medicine (medicina, enfermagem, psiquiatria etc.). Uma desvantagem dessa ferramenta de pesquisa é que a maioria dos índices em CD-RoM cobre apenas os últimos 4 a 6 anos de publicação. Você provavelmente terá que conversar com um bibliotecário sobre quais materiais estão disponíveis em cD na biblioteca onde está trabalhando. Raramente cobram pelo uso de CD-RoM. A pesquisa on-line (banco de dados) é outro avanço tecnológico na busca de informações, com certas vantagens sobre o CD, pois vários índices podem ser pesquisados ao mesmo tempo, e eles normalmente abrangem mais anos do que os CDS. Mas a pesquisa on-line geralmente tem um custo. Um bibliotecário pode aconselhá-lo sobre a melhor forma de atender às suas necessidades de informação, seja por meio do

uso de materiais impressos tradicionais, de CD-RoM ou de pesquisa em

banco de dados. Os recursos das bibliotecas acadêmicas estão mudando

e melhorando constantemente, de modo que vale a pena ouvir as atualizações periódicas sobre tecnologia de seu bibliotecário de referência.

254

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

Você também pode tirar proveito da pesquisa de informações na Internet e na World Wide Web. As pesquisas na Internet são fei-

tas usando um mecanismo de pesquisa baseado em texto chamado

Gopher. O escritório de informática e serviços de informação na maioria dos campi poderá ajudá-lo a obter acesso ao Gopher e aprender a usar suas regras simples para pesquisas de palavras-chave. Se você tem uma conexão Ethernet mais rápida e um computador poderoso o suficiente para tirar vantagem disso, deve tentar pesquisar informações na Internet. A Web é um conjunto poderoso de tecnologias associadas que permitem a pesquisa global de criações gráficas complexas chamadas sites ou home pages, que são criadas especificamente para serem vistas, analisadas e usadas por programas de software chamados navegadores da Web. Esses navegadores, dos quais os programas Netscape e Explorer são os mais conhecidos, permitem pesquisas por palavras-chave de vários tipos. Como o Netscape permite acesso a outros mecanismos de pesquisa mais poderosos e como novos sites são adicionados à www todos os dias, você nunca sabe ao certo o que encontrará até tentar. O problema mais sério para pesquisadores na Web não é encontrar informações, mas saber peneirá-las e ltrá-las. Um número imenso de

sites está disponível e você precisa aprender a diferenciar o joio do trigo se quiser usar a www de maneira eficiente. Finalmente, nada melhor

do que a prática para aprender a usar a World Wide Web. Basta conectar-se e passar algum tempo aprendendo a linguagem especializada da pesquisa on-line. E se você quiser alguma informação sobre a retórica clássica, pode buscar nesses URLS (Universal Resource Locators, o termo da Web para os "endereços" desses sites):

Retórica clássica e recursos históricos: http://rhetoric.agoff.umn.edu/ Rhetoric/misc/classic.html

Retórica e composição da cU: http://english-www.hss.cmu.edu/rhetoric/ Um glossário de termos retóricos: http://www.uky.edulArtsSciences/Classics/rhetoric.html

fi

255

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

LEITURAS As leituras a seguir são fornecidas como textos de estudo dos princípios da lógica e da retórica abordados neste capítulo, servindo de exemplo e prova da teoria. Muitos dos autores aqui representados estavam cientes dos princípios retóricos, embora não tenham tido uma educação formal na área. Mesmo os autores que não sabiam da tradição retórica confir-

mam, com a prática, a solidez e a viabilidade dos princípios a que os retóricos chegaram indutivamente. Embora as leituras possam ser usadas para o estudo de muitos pontos discutidos neste capítulo (raciocínio indutivo e dedutivo, apelo ético, apelo emocional, auxílios externos à invenção), seu principal objetivo é a análise dos tópicos comuns e dos tópicos especiais. No processo de composição, os tópicos servem como iniciadores de uma linha de raciocínio. Ao analisar esses textos em busca de evidências da operação dos tópicos, você está trabalhando de trás para frente, desde o texto acabado até o início do processo, consciente ou inconsciente. Este exercício tem dois benefícios: você verá que os tópicos são, de fato,

uma ajuda para a descoberta dos "meios de persuasão disponíveis"; e você desenvolverá outra técnica para a leitura atenta de textos. Quando começamos a ler um texto do ponto de vista dos tópicos, é surpreendente como logo detectamos os tópicos em qualquer prosa expositiva ou argumentativa que leiamos. As três primeiras leituras são, respectivamente, exemplos de discurso deliberativo, discurso judicial e discurso cerimonial. Em seguida, apresento análises detalhadas dessas três leituras, fornecidas como modelos para sua análise das outras leituras. Você deve começar a análise classificando o texto de acordo com o tipo, uma vez que tal classificação irá alertá-lo para os tópicos especiais que estarão operando no texto. Outra sugestão é fazer um esboço das principais divisões do texto que está analisando. Além de sua própria análise das leituras, outro exercício pode ser realizado aqui. As análises apresentadas não focaram na validade dos argumentos e na eficácia da retórica. Continuando de onde essas análises pararam, você pode avaliar essas leituras e as outras que se seguem.

Para facilitar a referência às partes dos textos, os parágrafos foram numerados.

256

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

RACHEL CARSON: "A OBRIGAÇÃO DE SUPORTAR"4 Rachel Carson (1907-1964) foi uma bióloga marinha empregada durante boa parte de sua vida adulta no Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos EUA. Seus

primeiros três livros foram sobre o mar: Sob o mar-vento (1941), O mar que nos cerca (1951) e Beira-mar (1955). No início da década de 1960, ela publicou uma série de artigos na revista The New Yorker, alertando sobre os perigos do uso irresponsável de inseticidas químicos para a vida animal, vegetal e humana. Esses artigos, posteriormente publicados como um livro sob o título Primavera silenciosa, foram os primeiros a aumentar a consciência pública neste pais sobre a poluição do meio ambiente por seus habitantes humanos, situação que Thomas A. Sancton aborda em um artigo da TIME, reimpresso e analisado no próximo capítulo. Em nossa análise desse discurso deliberativo, focaremos nos tópicos geradores dos argumentos que Rachel Carson utilizou em sua tentativa de persuadir os leitores de suas obrigações em face desse perigo letal.

1. A história da vida sobre a Terra tem sido uma história de interação entre as coisas vivas e o seu meio ambiente. Em grande parte, a forma física e os hábitos da vegetação da Terra, bem como a sua vida animal, foram moldados pelo seu meio ambiente. Tomando-se em consideração a duração toda do tempo terrenal, o efeito oposto, em que a vida modifica, de fato, o seu meio ambiente, tem sido relativamente breve. Apenas dentro do momento de tempo representado pelo século presente é que uma espécie, o Homem, adquiriu capacidade significativa para alterar

a natureza do seu mundo. 2. Durante o passado quarto de século, esta capacidade não somente

aumentou até atingir inquietante magnitude, mas também se modi cou quanto ao caráter. O mais alarmante de todos os assaltos contra o meio ambiente, efetuados pelo Homem, é representado pela contaminação do ar, da terra, dos rios e dos mares, por via de materiais perigosos e até letais. Esta poluição é, em sua maior parte, irremediável; a cadeia de males que ela inicia, não apenas no mundo que deve sustentar

a vida, mas também nos tecidos viventes, é, em sua maior parte, irrever-

sível. Nesta contaminação, agora universal, do meio ambiente, as substâncias químicas são os parceiros, sinistros e poucos reconhecíveis, das Copyright © 1962 de Rachel L. Carson, renovado em 1990 por Roger Christie. Reproduzido com permissão da Houghton Miffin Company. Todos os direitos reservados.

fi

257

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

radiações, na tarefa de modificação da própria natureza do mundo, da própria natureza da vida que palpita nele. O estrôncio 90, desprendido por explosões nucleares, e pairante no ar atmosférico, desce à Terra por meio das chuvas, ou vagueia ao léu, na forma de resíduos atómicos; assim, embebe-se no solo, penetra nas ervas, no inilho, no trigo, que nesse solo se plantam, e, a seu tempo, vai alojar-se nos ossos de um ser humano, para ali permanecer até à morte desse ser humano. De modo semelhante, as substâncias químicas, difundidas sobre terras de cultivo, ou sobre florestas, ou sobre jardins, fixam-se por longo tempo no solo;

dali, entram nos organismos vivos; passam de um ser vivo a outro ser

vivo; e iniciam uma cadeia de envenenamentos e de mortes. Ou, então, passam misteriosamente, de uma área para outra, por via de correntezas subterrâneas, até que emergem à flor do chão; a seguir, através da alquimia do ar e da luz do Sol, se combinam sob novas formas que vão matar a vegetação, enfermar o gado e produzir males ignorados nos seres que bebem água dos poços outrora puros. Como Albert Schweitzer disse: "O Homem mal consegue reconhecer até mesmo os males de sua própria criação". 3. Foram necessárias centenas de milhões de anos para se produzir a

vida que agora habita a Terra; idades de tempo, para que essa vida, desenvolvendo-se, evoluindo e diversificando-se, alcançasse um estado de ajustamento e de equilíbrio com o seu meio ambiente. O meio ambiente, dando conformação e dirigindo, rigorosamente, à vida que amparava, continha elementos que eram ao mesmo tempo hostis e sustentadores. Certas rochas emanavam radiações perigosas; até mesmo dentro da luz do Sol, de que todas as formas de vida recebem a sua ener-

gia, existiam radiações de onda curta, com potência bastante para lesar. Com o correr do tempo, do tempo não em anos, e sim em milênios, a vida ajustou-se, e um equilíbrio foi conseguido. Porquanto o tempo é ingrediente essencial; mas, no mundo moderno, não há tempo.

4. A rapidez da mudança e a velocidade com que novas situações se criam acompanham o ritmo impetuoso e insensato do Homem, ao invés de acompanhar o passo deliberado da Natureza. A radiação, agora, não é mais apenas a radiação, de plano secundário, das rochas; nem é mais o bombardeio dos raios cósmicos, e menos ainda os raios ultravio-

leta do Sol, que já existiam antes que houvesse qualquer forma de vida

258

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS sobre a Terra. A radiação, agora, é a criação não-natural dos malfazeres

do Homem com o átomo. As substâncias químicas, em relação às quais a vida é solicitada a efetuar os seus ajustamentos, já não são mais mera-

mente cálcio, o silício e o cobre, juntamente com todo o resto dos minerais lavados pelas chuvas, e por elas levados para longe das rochas, a caminho dos rios e dos mares; tais substâncias são as criações sintéticas

do espírito inventivo do Homem; são substâncias compostas nos laboratórios, e que não têm as contrapartes correspondentes na Natureza. 5. Para que a vida se ajustasse a estas substâncias químicas, seria neces-

sário tempo, numa escala que é apenas da Natureza; requerer-se-iam não somente os anos da vida de um homem, mas também da vida de gerações. E até mesmo isto, se isto se tornasse possível por algum milagre, seria ato fútil, porque as novas substâncias químicas saem dos nossos laboratórios, numa torrente interminável. Cerca de quinhentas delas, todos os anos, encontram caminho para entrar no uso geral, só nos Estados Unidos. Os algarismos são desconcertantes, e as suas decorrências implícitas não são facilmente percebidas: 500 novas subs-

tâncias químicas, a que o corpo do Homem e dos animais é induzido

de algum modo a adaptar-se a cada novo ano; substâncias químicas totalmente fora dos limites da experiência biológica.

6. Entre tais substâncias, figuram muitas que são utilizadas na guerra

do Homem contra a Natureza. A partir de meados de 1940, mais de 200 substâncias químicas, de ordem básica, foram criadas, para uso na

matança de insetos, de ervas daninhas, de roedores e de outros orga-

nismos que, no linguajar moderno, se descrevem como sendo "pestes"

ou "pragas"; e elas são vendidas sob vários milhares de denominações diferentes de marcas. 7. Estes borrifos, estes pós, estes aerossóis são agora aplicados quase universalmente em fazendas, em jardins, em orestas, em residências; são substâncias químicas não-seletivas, que têm poder para matar toda

espécie de insetos, tanto os "bons" como os "maus"; têm poder para silenciar o canto dos pássaros e para deter o pulo dos peixes nas correntezas; para revestir as folhas das plantas com uma película mortal, e para perdurar, embebidas no solo. Tudo isto, de uma só vez, ainda que o objetivo desejado seja apenas a eliminação de umas poucas ervas, ou uns poucos insetos. Pode alguém acreditar que seja possível instituir

fl

259

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO semelhante barragem de venenos, sobre a superfície da Terra, sem a tornar inadequada para a vida toda? Tais substâncias não deveriam ser

denominadas "inseticidas" e sim "biocidas".

8. O inteiro processo do borrifamento ou de pulverização de substân-

cias químicas parece que foi colhido por uma espiral sem fim. A partir de quando o DDT foi colocado a disposição do uso civil, um processo de escalação tem estado em marcha, pelo qual materiais cada vez mais tóxicos devem ser encontrados. Isto aconteceu porque os insetos, numa reivindicação triunfante do princípio de Darwin, relativo à sobrevivência dos mais fortes e mais adequados, desenvolveram super-raças imunes aos efeitos do inseticida em particular usado contra eles; daí resultou a necessidade de se prepararem substâncias químicas ainda mais mortíferas, cada vez mais letais, e, depois, outras, ainda mais propiciadoras de morte. Isso aconteceu também porque, por motivos que serão descritos mais adiante, os insetos destrutivos com frequência passam por súbitos retrocessos, isto é, por uma fase de ressurgência depois dos borrifamentos, em quantidades ainda maiores do que antes de tais borrifamentos. Assim, a guerra química não é ganha nunca; e a vida toda é colhida no seu violento fogo cruzado.

9. Juntamente com a possibilidade da extinção da humanidade por meio da guerra nuclear, o problema central da nossa Idade se tornou, portanto, o da contaminação do meio ambiente total do Homem, por força do uso das referidas substâncias de incrível potência para produzir danos; são substâncias que se acumulam nos tecidos das plantas e dos animais, e que até conseguem penetrar nas células germinais, a fim de estilhaçar ou alterar o próprio material em que a hereditariedade se consubstancia, e de que depende a forma do futuro.

10. Alguns dos prováveis arquitetos do nosso futuro olham para uma

época em que será possível modificar o plasma germinal humano, de acordo com planos bem delineados. Mas nós podemos facilmente estar fazendo isso agora, por inadvertência, visto que muitas substâncias quí-

micas, como as radiações, provocam mutações nos genes. É irônico o ato de pensar que o Homem possa determinar o seu próprio futuro por meio de alguma coisa tão aparentemente trivial como a escolha de um borrifamento contra insetos.

260

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS II. Todo esse risco foi enfrentado. Para quê? Os historiadores futuros

bem poderão sentir-se admirados em face do nosso distorcido senso das

proporções. Como poderiam seres inteligentes procurar controlar umas poucas espécies não-desejadas, por meio de um método que pode contaminar todo o meio ambiente, e que corporifica ameaça de enfermidades e de morte até mesmo para a sua própria espécie? Não obstante, é precisamente isto o que nós fizemos. Fizemo-lo, ademais, por motivos

que se inutilizam e se dissipam no instante em que os examinamos. Informamos que o uso enorme, e cada vez mais amplo, dos pesticidas, é necessário para sustentar a produção das fazendas agrícolas. Contudo, não é, porventura, o nosso problema, o da superprodução? As nossas fazendas, a despeito das medidas destinadas a retirar áreas da finalidade da produção, e a pagar fazendeiros para que não produzam, têm produzido tamanhos e tão desnorteadores excessos de colheitas, que o pagador norte-americano de impostos, em 1962, está pagando a média de mais de um bilhão de dólares anuais, a título de custo total de execução do programa de armazenamento do excesso de alimento produzido. E

será que a situação é melhorada quando um ramo do Departamento da Agricultura procura reduzir a produção, ao passo que outro declara, como o fez em 1958: "Acredita-se geralmente que a redução de áreas de

produção, de acordo com as provisões do Banco do Solo, estimulará o interesse pelo uso de substâncias químicas destinadas à obtenção de um máximo de produção da terra conservada para o cultivo e para as colheitas"?

12. E tudo isto não equivale a dizer que não há problema de insetos,

nem que não há necessidade de controle. Estou afirmando, ao contrário, que o controle precisa ser conjugado com as realidades, e não com

situações imaginárias; estou afirmando que os métodos empregados

devem ser de tal ordem que não nos destruam, a nós, ao mesmo tempo que destroem os insetos.

13. O problema, cuja solução, apenas tentada, já provocou semelhante encadeamento de desastres, em sua esteira, constitui um acompanhamento da nossa moderna maneira de viver. Muito antes da Idade do Homem, os insetos já habitavam a Terra, compondo um grupo de seres extraordinariamente variados e extraordinariamente adaptáveis.

No curso do tempo, a contar do advento do Homem, uma pequena

261

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO percentagem de mais de meio milhão de espécies de insetos entrou em

conflito com o bem-estar humano, por duas formas principais: como

competidores no consumo do abastecimento de víveres, e como transmissores de enfermidades humanas. 14. Os insetos transmissores de moléstias se fazem importantes onde os seres humanos vivem aglomerados, particularmente sob condições nas quais os recursos sanitários são poucos, como acontece em tempo de desastres naturais, ou de guerra, ou em situações de extrema pobreza,

ou de privação extrema. Então, o controle de alguma espécie se torna necessário. E fato reconfortante, entretanto, como passaremos agora a

ver, o de que o método de controle químico maciço só tem conseguido êxitos limitados; esse controle, ademais, vem ameaçando piorar as pró-

prias condições que teve o propósito de eliminar. 15. Sob as condições agrícolas primitivas, o fazendeiro enfrentava poucos problemas relativos a insetos. Tais problemas surgiram com a intensificação da agricultura, com a entrega de imensas quilometragens quadradas a um único gênero de colheita. Esse sistema preparou o terreno para aumentos explosivos de populações de insetos específicos. O

cultivo da terra com um único gênero de plantação não tira vantagem dos princípios pelos quais a Natureza opera; a agricultura, dessa ma-

neira, é agricultura como o engenheiro a concebe. A Natureza intro-

duziu grande variedade na paisagem; mas o Homem vem acusando inclinação para simplificá-la. Assim, o Homem desfaz os controles e

os equilíbrios intrínsecos, por meio dos quais a Natureza mantém as

espécies dentro de determinados limites. Um controle natural, muito importante, é o que impõe um limite à quantidade de área habitável adequada para cada espécie. Obviamente, pois, um inseto que vive no trigo pode elevar a sua população a níveis muito mais altos, numa fazenda dedicada ao trigo, do que numa fazenda em que o trigo se apresenta interpolado por outras plantas, às quais o mencionado inseto não

está adaptado.

16. A mesma coisa acontece em outras situações. Há uma geração ou pouco mais, as cidades de grandes áreas dos Estados Unidos margi-

navam suas ruas com essas nobres árvores que são os olmos. Agora, a beleza que elas, esperançosas, criaram, está ameaçada de destruição

completa, uma vez que uma enfermidade devasta os olmos. Essa enfer-

262

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS midade é transmitida de árvore em árvore por meio de um besouro que nunca teria tido mais do que limitadas possibilidades de formar gran-

des populações, nem de se espalhar passando de uma árvore a outra, se os olmos houvessem continuado a ser apenas as árvores ocasionais que tinham sido, antes, em meio a plantações ricamente diversificadas.

17. Outro fator, relativo ao moderno problema dos insetos, é um que

precisa ser encarado de encontro a um pano de fundo feito de história geológica e de história humana. Trata-se da difusão de milhares de espécies diferentes de organismos, que saem dos seus territórios nativos, para invadir áreas para eles novas. Esta migração, em escala mundial, já foi estudada graficamente, e também graficamente descrita pelo ecologista britânico, Charles Elton, em seu livro recente intitulado The Ecology of Invasions (A Ecologia das Invasões). Durante o Período

Cretáceo, há cerca de algumas centenas de milhões de anos, mares inundantes suprimiram muitas pontes terrestres entre continentes; e os seres vivos se viram confinados naquilo que Elton denomina "colossais reservas separadas da Natureza". Ali, isolados de outros indivíduos de sua espécie, aqueles seres vivos desenvolveram muitas outras espécies.

Quando algumas das massas terrestres se juntaram de novo, há cerca

de 15 milhões de anos, as mencionadas espécies começaram a mudar-se para os novos territórios, num movimento que não somente ainda se encontra em progresso, mas que também está recebendo, agora, considerável assistência da parte do Homem.

18. A importação de plantas é o agente primacial da moderna difusão de espécies, porque os animais quase que invariavelmente se transferem

juntamente com as plantas; note-se que a quarentena é inovação com-

parativamente recente, e ainda assim, não é completamente eficaz. O Departamento de Introdução de Plantas, dos Estados Unidos, sozinho, introduziu cerca de 200.000 espécies e variedades de plantas, de todas as partes do mundo. Cerca da metade dos 180, ou coisa que o valha, principais insetos inimigos de plantas, nos Estados Unidos, resultou de importações acidentais, procedendo do exterior; e a maioria de tais insetos viajou para os Estados Unidos de carona com plantas. 19. Fora do alcance do efeito limitador dos inimigos naturais, que mantinham em determinado nível a sua quantidade, na terra nativa, uma planta invasora, ou um animal invasor, tem possibilidade de se tomar

263

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO enormemente abundante, no novo território. Assim, não é por acaso que os nossos insetos mais aborrecedores são de espécies que foram

importadas. 20. Estas invasões, tanto as que ocorrem naturalmente, como aquelas que dependem da contribuição humana, têm toda probabilidade de prosseguir sendo efetuadas indefinidamente. A quarentena e as maciças campanhas com emprego de substâncias químicas são apenas recursos dispendiosos para ganhar tempo. Nós nos defrontamos, ao que afirma o Dr. Elton, "com uma necessidade, de vida ou de morte, que não se resume somente em encontrar novos meios tecnológicos de suprimir esta planta, ou aquele animal"; ao contrário; em lugar disso, nós precisamos conquistar um conhecimento básico das populações animais, bem como de suas relações com os respectivos meios ambientes, para que possamos "promover um equilíbrio estável e manter sob controle o poderio explosivo de novos surtos e de novas invasões". 21. Grande parte do conhecimento indispensável já se encontra disponível; mas nós ainda não fazemos uso dele. Nós treinamos ecologistas nas nossas universidades, e até os empregamos nas nossas repartições

governamentais; mas raramente lhes seguimos os conselhos. Deixamos que a chuva de morte química desabe, como se não houvesse alternativa alguma, ao passo que a verdade é que há muitas alternativas; ademais, o nosso engenho e as nossas aptidões logo descobrirão muitas alternativas

mais, desde que se lhes dê oportunidade para isso.

22. Será que nós caímos em estado de mesmerização que nos induza a aceitar como sendo inevitável o que é inferior, ou o que causa detri-

mento? Será que perdemos a vontade, ou a visão, para exigir o que é

bom? Este modo de pensar nas palavras do ecologista Paul Shepard, "idealiza a vida com apenas a cabeça fora da água poucas polegadas

acima dos limites da tolerância da corrução do seu próprio meio am-

biente. [...] Por qual razão deveríamos nós tolerar uma dieta de venenos fracos, um lar em meio a arredores insípidos, um círculo de conhecidos

que não sejam propriamente nossos inimigos, o barulho de motores com o alívio apenas suficiente para evitar a insanidade? Quem desejaria viver num mundo que apenas não chega a ser de todo fatal?". 23. Contudo, essa espécie de mundo nos está sendo impingida. A cruzada no sentido de criar um mundo quimicamente estéril, inteiramente

264

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS livre de insetos, parece que engendrou certo zelo fanático da parte de

muitos especialistas, e da maioria das chamadas repartições de controle. De todos os lados surgem evidências de que as pessoas empenha-

das em operações de borrifamento exercem autoridade discricionária.

"Os entomologistas reguladores [...] funcionam como promotores públicos, juízes e jurados, e também como lançadores de impostos e coletores de taxas, além de funcionarem igualmente à maneira de xerifes,

no propósito de fazer com que sejam cumpridas suas próprias ordens",

disse o entomologista Neely Turner, de Connecticut. Os abusos mais flagrantes são praticados sem repressão, tanto da parte das repartições estaduais, como das repartições federais.

24. Não quero dizer que os inseticidas químicos não devam ser usa-

dos nunca. Afirmo, não obstante, que pusemos, indiscriminadamente, substâncias químicas venenosas, biologicamente potentes, nas mãos de

pessoas de todo ignorantes, ou quase, quanto à capacidade que tais substâncias têm de produzir danos. Submetemos quantidades enormes de gente ao contato com venenos, sem o consentimento dessa gente, e, com freqüência, também sem o seu conhecimento. Se a Declaração de Direitos não contém garantia alguma que afirme que o cidadão deve ser protegido contra os venenos letais, distribuídos seja por indivíduos particulares, seja por funcionários públicos; isso se dá, por certo, apenas

porque os nossos antepassados, a despeito de sua considerável sabedoria

e do seu notável descortino, não poderiam conceber o aparecimento de

semelhante problema. 25. Afirmo, ademais, que temos permitido que as mencionadas substâncias químicas sejam usadas sem que se haja procedido a investigação

alguma, ou a apenas uma investigação insuficiente, quanto aos seus efeitos sobre o solo, sobre a água, sobre a vida dos animais silvestres e

também sobre o próprio homem. As gerações futuras não nos perdoarão, com toda probabilidade, a nossa falta de prudente preocupação a respeito da integridade do mundo natural que sustenta a vida toda.

26. Ainda há pouca consciência, uma consciência muito limitada, quanto à natureza da ameaça. Esta é uma época de especialistas; cada

especialista vê apenas o seu próprio problema; e é alheio, ou não tolera o estudo da visão de conjunto, em que a sua especialização se enqua-

dra. Esta é, também, uma era dominada pela indústria; nesta época,

265

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO o direito de auferir lucros, seja lá por que custo for, muito raramente

é discutido. Quando o público protesta, depois de se defrontar com algumas inegáveis evidências de resultados danosos, decorrentes do emprego de pesticidas, esse público recebe umas poucas pílulas tranqüilizadoras, na forma de esclarecimentos que são apenas meias verdades. Nós precisamos urgentemente pôr um fim a tais falsas seguranças; precisamos acabar com o engodo que consiste em açucarar os fatos desagradáveis. E o público que está sendo solicitado a assumir os riscos que os controladores dos insetos calculam. E é o público que deve decidir se deseja continuar no caminho presente; e o público só poderá fazer isso quando estiver na plena posse dos fatos. Nas palavras de Jean Rostand: "A obrigação de tolerar, de suportar, dá-nos o direito de saber"'

ANÁLISE DE TÓPICOS EM "A OBRIGAÇÃO

DE SUPORTAR", DE RACHEL CARSON Em 1962, muito antes que a poluição de nosso meio ambiente se tornasse uma questão pública, Rachel Carson publicou o livro Primavera

silenciosa, um alerta precoce sobre a contaminação perigosa do meio ambiente pelo uso indiscriminado de inseticidas químicos. Para avaliar sua eficácia como persuasora, seria necessário examinar o livro inteiro,

mas aqui examinaremos apenas um trecho, o capítulo 2, "A obrigação de suportar", observando suas estratégias retóricas em geral e especu-

lando sobre os tópicos que geraram seus argumentos. Esse trecho é um exemplo claro de discurso deliberativo, uma ten-

tativa de mudar as atitudes e ações do público em relação a um assunto de interesse público. Como todo discurso deliberativo, este trata, em última instância, do futuro. Claro, ele fala do que está acontecendo no momento, mas essa conversa sobre a situação presente tem o propósito

de efetuar uma mudança nas políticas públicas no futuro (o futuro próximo).

Como observamos anteriormente neste capítulo, os tópicos especiais que prevalecem no discurso deliberativo são o digno/indigno e o vantajoso/desvantajoso. Destes dois pares de tópicos especiais, Rachel Carson abordará o vantajoso/desvantajoso. Para nos afastar de nossas 5 Tradução de Raul de Polillo, Edições Melhoramentos [revisada] — NT.

266

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS práticas atuais, ela precisa nos persuadir de que essas práticas são desvantajosas, são prejudiciais ao bem-estar da sociedade, e que as práticas que ela defende são vantajosas, capazes de mitigar ou eliminar os efeitos prejudiciais de nossa política atual. Antes de examinarmos o modo de argumentação de Rachel Carson nesse discurso deliberativo, devemos ter uma visão geral da estrutura do trecho. No próximo capítulo, analisaremos em detalhes a disposição ou organização de um ensaio longo, especulando sobre os motivos do autor para organizar as partes do ensaio de uma maneira particular.

Aqui, nosso objetivo é simplesmente delinear as principais divisões do

discurso. Eis as principais divisões do segundo capítulo do livro de Rachel Carson: Introdução (parágrafo 1) 1. Exposição da situação em que as pessoas desenvolveram a enorme capaci-

dade de contaminar o meio ambiente por meio de radiação nuclear e sprays químicos (parágrafos 2-12). 11. Exposição da situação em que os remédios inventados para neutralizar os insetos transmissores de doenças e destruidores de safras tornaram-se

piores do que o problema (parágrafos 13-25).

Conclusão (parágrafo 26).

Como você pode ver nesse panorama geral, a autora dedicou quase o mesmo número de parágrafos às duas partes principais do discurso em numeração romana. A primeira parte define qual é o problema; a segunda parte explica como o problema se desenvolveu. Podemos dizer que existe uma relação de causa e efeito entre as duas partes: a parte I é o efeito e a parte i é a causa. E veremos mais tarde que os tópicos de causa e efeito e antecedente e consequente produziram muitos dos argumentos de Rachel Carson.

Já na primeira frase do parágrafo 1, que constitui a introdução a este trecho, a autora enuncia a premissa sobre a qual fundamenta sua exposição do desenvolvimento do problema: "A história da vida sobre a Terra tem sido uma história de interação entre as coisas vivas e o seu meio ambiente". Em seguida, ela aponta uma mudança que ocorreu nesse relacionamento básico. Enquanto por séculos o meio ambiente manteve o poder predominante sobre os seres vivos, no século atual,

267

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO uma espécie de seres vivos, os seres humanos, assumiu o poder sobre o

meio ambiente. No próximo parágrafo, que inicia o corpo de seu argumento, a autora argumenta que a diferença na relação entre o meio ambiente e os seres vivos é uma diferença não apenas em grau, mas em espécie. Além

de aumentar a uma taxa acelerada, o poder dos seres humanos sobre o meio ambiente agora está exercendo uma influência letal e irreversível sobre ele, sobretudo por meio da liberação de radiação nuclear e sprays químicos. No final desse parágrafo, há uma citação de Albert Schweitzer, que constitui um argumento de Maxim: "O Homem mal consegue reconhecer até mesmo os males de sua própria criação". No parágrafo 3, a autora aponta outra diferença entre a situação de antes e a situação de agora: no passado, havia muito tempo para a vida ajustar-se às mudanças naturais do ambiente, mas hoje, o tempo necessário para esse tipo de ajuste não existe mais. Ao comparar o passado com o presente, pode-se dizer que Carson está explorando os tópicos do possível e do impossível para o futuro. Na seqüência de parágrafos a seguir (4-8), a autora explora as razões pelas quais não temos mais o tempo necessário para ajustes (e aqui os argumentos são produzidos principalmente pelo tópico de causa e efeito ou pelo tópico de antecedente e conseqüente): (1) a aceleração do ritmo de contaminação (parágrafo 4); (2) a aceleração da taxa de criação de novos produtos químicos (parágrafos 5-6); (3) a aceleração da taxa de destrutividade indiscriminada por inseticidas (parágrafo 7); (4) a aceleração do grau de toxicidade nas novas pulverizações (parágrafo 8).

No parágrafo 9, temos uma de nição do "problema central da nossa Idade" (ou seja, um problema além do perigo sempre presente de extin-

ção da humanidade pela guerra nuclear): como evitar a contaminação de todo o meio ambiente com sprays químicos.

Um argumento do fato futuro é introduzido acidentalmente no parágrafo 1o: além de poluir nosso meio ambiente, os sprays químicos têm

o potencial, como a radiação nuclear, de causar mutações genéticas.

No parágrafo II, Rachel Carson levanta a questão provocativa que

foi a principal responsável por ela escrever não só esse capítulo, mas todo o livro: "Como poderiam seres inteligentes procurar controlar umas poucas espécies não-desejadas, por meio de um método que pode contaminar todo o meio ambiente [..]?". Ela, então, refuta um dos

fi

268

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS argumentos comumente apresentados para o uso de sprays químicos, a saber, o argumento de que devemos usar pesticidas para sustentar nossa

produção agrícola. Ela expõe a fraqueza desse argumento ao observar que nossa produção agrícola atual é tão alta que temos de gastar bilhões de dólares todos os anos para armazenar o excedente. No parágrafo 12, o parágrafo final da primeira seção principal do discurso, Rachel Carson enuncia sua alegação principal, sua tese: não que não precisamos controlar a população de insetos, mas que o "o controle precisa ser conjugado com as realidades, e não com situações imaginárias; estou afirmando que os métodos empregados devem ser de tal ordem que não nos destruam, a nós, ao mesmo tempo que destroem os insetos". Essa é a política que ela defenderá mais adiante no livro, depois de nos convencer do "perigo claro e presente" da situação atual. Na próxima grande seção do ensaio (parágrafos 13-25), ela continuará mostrando quais são as "realidades"para poder neutralizar as "situações imaginárias"que têm ditado nossas práticas até agora. Nessa primeira seção principal, vimos que a estratégia retórica de Rachel Carson tem sido começar com uma proposição geral e, então, gradualmente reduzir a discussão ao problema central abordado. Ela começa com a premissa geral de que existe uma inter-relação natural

entre os seres vivos e seu ambiente. Em seguida, observa que houve uma mudança profunda na predominância dos dois fatores nesse relacionamento. Então, concentra-se em duas das maneiras pelas quais os

seres humanos assumiram a predominância sobre o meio ambiente: por meio da radiação nuclear e por meio de sprays químicos. Quando chega ao fim dessa primeira seção principal, ela reduz a discussão a uma única

forma de spray químico: os pesticidas, assunto que ocupará o restante

desse capítulo.

Na segunda seção principal do discurso, Rachel Carson está engajada em apresentar os fatos históricos e biológicos que explicam como a população de insetos tornou-se uma ameaça para a humanidade. Ela argumentará, entretanto, que o método de controle que os seres humanos inventaram, borrifar inseticidas químicos na atmosfera, piorou a condição que pretendia corrigir. Os tópicos que geram a maioria de seus argumentos nessa segunda parte são causa e efeito, antecedente e conseqüente, testemunho e estatística.

269

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO No parágrafo 13, depois de enfatizar que os insetos habitavam a Terra muito antes das pessoas, Rachel Carson recorre ao tópico da di-

visão para deixar claro que, com o tempo, uma pequena porcentagem

de insetos tornou-se uma ameaça para a humanidade de duas formas

principais: "como competidores no consumo do abastecimento de víveres, e como transmissores de enfermidades humanas". No parágrafo 14, ela trata brevemente de uma dessas ameaças: "Os insetos transmissores de moléstias". Depois de retratar as situações que intensificam a ameaça dos insetos transmissores de doenças, ela admite que algum controle desses insetos é necessário, mas afirma que o remé-

dio que as pessoas inventaram é pior do que a doença. Há um elemento

do tópico contrários em seu argumento aqui: a doença é ruim; um remédio deve ser bom; mas o remédio, neste caso, é pior do que a doença.

Daqui até o final do discurso, a autora trata da segunda ameaça: os insetos que competem com os seres humanos pelo suprimento de alimentos. No parágrafo 15, ela recorre à comparação para apontar a diferença entre as condições agrícolas primitivas e as condições agrícolas

atuais. Ao contrário das condições agrícolas primitivas, que tinha seu próprio sistema intrínseco de controles e equilíbrios, o cultivo da terra

com um único gênero de plantação hoje intensificou o crescimento da população de insetos. No próximo parágrafo (16), ela recorre à com-

paração novamente para apontar a situação análoga em que havia um plantio generalizado de uma única espécie de árvore (olmos) em muitas

cidades dos Estados Unidos no início do século xx.

Nos parágrafos 17-19, Rachel Carson trata de outro fator que con-

tribuiu para a intensificação do crescimento da população de insetos em nosso tempo: a migração de milhares de novas espécies de insetos de seu habitat natural para os Estados Unidos. Ela cita a autoridade do ecologista britânico Charles Elton para mostrar que esse influxo ocorreu como resultado natural da separação geológica e, em seguida, da reintegração de massas terrestres pela ação dos mares. No parágrafo 18, Carson a rma que esse in uxo ocorreu acidentalmente, como resultado de insetos que pegaram carona em plantas importadas para esse

país. Ela cita a estatística de que quase metade dos 180 principais insetos inimigos das plantas foram introduzidos nos Estados Unidos dessa forma. No parágrafo 19, ela recorre a um argumento de grau, dizendo que os insetos invasores são freqüentemente mais devastadores do que

fl

fi

270

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS as variedades nativas, porque em seu novo ambiente, livres dos contro-

les e equilíbrios naturais de seu habitat, eles proliferam enormemente. No parágrafo 20, Carson apresenta um argumento de antecedente e conseqüente. Como essas invasões provavelmente continuarão indefinidamente, precisamos saber mais sobre as populações animais e suas relações com o meio ambiente. Ela cita um testemunho do livro de Charles Elton novamente sobre esse assunto. No próximo parágrafo (21), ela menciona o fato irônico de que, embora grande parte desse co-

nhecimento indispensável esteja agora disponível com entomologistas e

ecologistas, a maioria de nós não dá ouvidos a essa autoridade. A autora levanta a questão, no parágrafo 22, de por que aceitamos como inevitável "o que é inferior, ou o que causa detrimento? Será que perdemos a vontade, ou a visão, para exigir o que é bom?". Ela cita um testemunho do ecologista Paul Shepard sobre uma aceitação inexplicável de uma situação ecológica intolerável. No próximo parágrafo (23), Carson recorre novamente a um argumento de antecedente e consequente, sustentando que sofremos tanta lavagem cerebral sobre a necessidade de um mundo quimicamente estéril e livre de insetos que demos liberdade às repartições de controle para exercer seus poderes de forma impiedosa e indiscriminada. Ela cita a autoridade de Neely Turner, um entomologista de Connecticut, para ressaltar que os abusos mais flagrantes dos "entomologistas reguladores" não foram controlados nem pelas repartições estaduais, nem pelas repartições federais.

Nos parágrafos 24-25, os dois parágrafos finais da segunda seção

principal, a autora repete a tese deste capítulo e de todo o livro: "....] pusemos, indiscriminadamente, substâncias químicas venenosas, biologicamente potentes, nas mãos de pessoas de todo ignorantes, ou quase, quanto à capacidade que tais substâncias têm, de produzir danos". Ao repetir a tese pela segunda vez, ela quer deixar claro para seus leitores o que ela está defendendo: não uma rejeição categórica do uso de inseticidas químicos, mas um uso responsável e discriminador desses produtos químicos letais.

No parágrafo final (26), Carson conclui esta seção de seu argumento, sugerindo uma política que o público deve adotar em resposta à ameaça dos inseticidas poluentes: "E é o público que deve decidir sobre se deseja continuar no caminho presente; e o público só poderá

271

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO fazer isso quando estiver na plena posse dos fatos". A citação (quase

uma máxima) de Jean Rostand com a qual ela conclui o parágrafo: "A

obrigação de tolerar, de suportar, dá-nos o direito de saber", além de servir de título para o capítulo, sugere que a decisão que ela está pedindo ao público não é uma questão de indiferença, mas de obrigação. Uma conseqüência de nossa obrigação de suportar é o direito de saber os fatos. No restante do livro, a autora fornece a seus leitores "fatos" específicos sobre inseticidas químicos que os ajudarão a tomar a decisão obrigatória. Ao longo desse capítulo, ela foi aumentando a apreensão dos leitores quanto aos perigos potenciais de um uso indiscriminado e irresponsável de sprays químicos, preparando-os para os duros fatos que apresentará no restante do livro por meio de testemunho de especialistas, exemplos e estatísticas. Sabemos, pela história subseqüente, que Rachel Carson conseguiu despertar a consciência de um grande segmento do público americano sobre os perigos de "sujar nosso próprio ninho". Seus argumentos foram eficazes.

"APOLOGIA DE SÓCRATES" Nascido em 469 a.C., Sócrates fazia parte daquele notável grupo de poetas, dramaturgos, filósofos, oradores, estadistas e generais responsáveis pela Idade de

Ouro de Atenas no século v a.C. Ele próprio não legou nenhum escrito à posteridade. Sua vida, sua filosofia e seu método dialético são conhecidos por nós apenas por meio das obras de Platão e Xenofonte. Em 599 a.C., aos setenta anos

de idade, ele foi levado a julgamento em Atenas, aparentemente sob a acusação

de que estava corrompendo a juventude e defendendo a adoração de novos deuses. Na verdade, ele se tornara um cidadão problemático, questionando as políticas e os valores da elite ateniense. No seguinte exemplo de retórica judicial, ele se defende (o significado primário de "apologia") das acusações levan-

tadas contra ele. Embora Sócrates fale na forma de monólogo na parte inicial da Apologia, seu método mais usual de conduzir um discurso é ilustrado no diálogo de perguntas e respostas com Meleto, que começa no parágrafo 13.

1. O que vocês, varões atenienses, sentiram com os meus acusadores, não sei; mas até eu mesmo, com eles, por pouco não me esqueci de mim, tão convincentemente falavam! Porém, de verdadeiro, a bem di-

272

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS zer, nada disseram. E das muitas mentiras que disseram, quei mais espantado com uma — esta: quando falaram que vocês deveriam tomar cuidado para não serem enganados por mim, porque eu seria hábil em falar! Não terem vergonha de serem imediatamente refutados pelos fatos, quando não me mostrar nem de uma maneira nem de outra hábil em falar — isso me pareceu a coisa mais desavergonhada da parte deles.

A não ser que chamem de "hábil em falar" aquele que fala a verdade: pois se é disso que estão falando, então eu reconheceria ser — não à maneira deles — um orador... Esses, então, como estava dizendo, quase nada de verdadeiro disseram. Mas vocês de mim vão ouvir toda a

verdade — porém não, varões atenienses, por Zeus, discursos "beletrificados", como os deles, nem bem ordenados nas expressões e palavras; vocês vão ouvir sim coisas ditas de improviso, com as palavras que me ocorrerem (pois acredito que são justas as coisas que digo), e que nenhum de vocês espere algo diferente! Certamente nem ficaria bem, varões, nesta minha idade me dirigir a vocês fabricando discursos como um adolescente. Contudo, com intensidade, peço e solicito isto a vocês,

varões atenienses: se vocês me ouvirem me defender com os mesmos discursos que costumo proferir não só na ágora, junto às bancas (onde

muitos de vocês têm me ouvido), mas também em outros lugares, não

fiquem espantados nem façam tumulto por causa disso. Pois a situação

é esta: subo agora, com setenta anos de idade, pela primeira vez ao tribunal; logo, a linguagem daqui me é simplesmente estranha... E da mesma maneira que vocês, caso eu fosse de fato estrangeiro, certamente

seriam condescendentes comigo, se eu falasse com aquele sotaque e aqueles modos em que fui criado, também agora peço isso a vocês, con-

forme me parece justo: que deixem de lado meus modos de linguagem (seriam talvez piores, talvez melhores), e examinem propriamente isto e nisto prestem atenção — se falo coisas justas ou não. Pois enquanto a

virtude do jurado é essa, a do orador é falar a verdade. 2. Em primeiro lugar então, varões atenienses, acho justo me defender das primeiras acusações mentirosas contra mim e dos primeiros acusadores, e em seguida das últimas e dos últimos. Pois acusadores meus junto a vocês tem havido muitos, e já há muitos anos, que nada de verdadeiro dizem, aos quais temo mais que aos que estão em torno de Anito, ainda que estes também sejam hábeis. Mas aqueles, varões,

fi

273

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO são mais hábeis — os que, se encarregando da educação da maioria de vocês desde meninos, tentavam convencê-los e me acusar de algo ainda

mais não verdadeiro: de que há um certo Sócrates, homem sábio, pensador das coisas suspensas no ar, e que tem investigado tudo que há sob a terra, e que torna superior o discurso inferior. Esses, varões atenienses,

os que espalharam essa fama — esses são os meus mais hábeis acusado-

res, pois os que lhes deram ouvidos consideram que os que investigam essas coisas também não crêem em deuses. Depois, esses acusadores são

muitos e têm me acusado já faz muito tempo, falando junto a vocês,

além do mais, naquela idade em que mais seriam convencidos (alguns

de vocês eram meninos ou adolescentes), simplesmente acusando de

forma isolada — sem que houvesse defesa. E o mais inominável de

tudo é que não é possível saber e dizer nem seus nomes, a não ser de um que por acaso é comediógrafo. E todos que, servindo-se da inveja e da calúnia, tentavam convencê-los, mais os que, uma vez convencidos eles mesmos, iam convencendo outros — todos esses são os mais

inacessíveis, pois não é possível fazer subir aqui nem refutar a nenhum deles; simplesmente é imperioso bater-se como que com sombras ao se defender e refutar sem que haja resposta. Aceitem então vocês também, segundo estou lhes dizendo, que se repartem em dois os meus acusadores — de um lado os que me acusaram há pouco, e de outro os que há tempos (dos quais eu estava falando), e pensem que é preciso que eu me defenda destes primeiro, pois vocês os ouviram me acusar antes e muito mais que os últimos. Pois bem. 3. Devo então me defender, varões atenienses, e tentar arrancar de dentro de vocês a calúnia — essa que vocês cultivaram por muito tempo — assim, em pouco tempo... Gostaria mesmo que as coisas se passassem desse modo, uma vez que é melhor tanto para vocês quanto para mim, e que eu me saísse bem em minha defesa. Mas penso que isso é difícil,

e não me escapa inteiramente qual é a dificuldade... No entanto, que a coisa siga por onde for caro ao deus. À lei devo obedecer, e devo me defender. 4. Retomemos então do princípio qual é a acusação, com base na qual surgiu a calúnia, a que precisamente dando crédito Meleto fez esta denúncia contra mim. Pois bem. O que diziam os caluniadores ao me caluniarem? É preciso ler a declaração juramentada deles, como se de

274

acusadores de fato: "Sócrates age mal e faz mais do que deveria ao investigar as coisas sob a terra e as celestes, e ao tornar superior o discurso in-

ferior, e ao ensinar a outros essas mesmas coisas". É alguma coisa assim.

Vocês mesmos já viram isso na comédia de Aristófanes, um Sócrates lá

(aponta para o alto), balançando, afirmando "aeroandar" e asneando muitas outras asneiras sobre as quais não entendo coisa alguma, nem

muito nem pouco... E não falo desse tipo de conhecimento para desmerecê-lo, uma vez que há quem seja sábio em tais coisas (não quero de

modo algum me defender de Meleto em tantas causas...). Mas o fato é que nelas não tomo parte alguma, varões atenienses. Apresento como testemunhas a maioria de vocês mesmos, e peço que vocês digam e se informem entre si, todos que alguma vez me ouviram dialogando (e muitos de vocês estão nessa situação) — que digam entre si então se alguma vez, seja pouco, seja muito, algum de vocês me ouviu dialogando sobre essas coisas. E, a partir disso, vocês saberão que ocorre o mesmo também com as outras que a maioria fala sobre mim.

5. Mas não, não há nada disso, nem — se vocês já ouviram de alguém — que eu tenciono educar os homens e que faço dinheiro; isso também

não é verdade. Porque isso também me parece belo — alguém ser capaz

de educar os homens como Górgias de Leontini, e Pródico de Ceos, e

Hípias de Elis! Cada um deles, varões, é capaz de, indo a cada uma das cidades, convencer os jovens — aos quais é possível conviver de graça com os concidadãos seus que quiserem — a que deixem aquele convívio e com eles convivam, dando-lhes dinheiro e, além de tudo, devendo-lhes gratidão! Aliás, há por aqui também outro sábio varão, de Paros, que eu soube estar na cidade porque encontrei, por acaso, o homem que tem gastado com os so stas mais dinheiro que todas as demais pessoas juntas — Cálias, lho de Hipônico -, e a ele perguntei (já que tem dois lhos): "Cálias", eu disse, "se seus dois lhos fossem potros ou bezerros,

nós teríamos como arranjar e pagar um instrutor para eles, o qual iria torná-los belos e bons nas respectivas virtudes; esse seria ou um cavala-

riço ou um lavrador; mas uma vez que são humanos, que instrutor você tem em mente arranjar para eles? Quem nesse tipo de virtude — humana e política — é instruído? Pois penso que você, por ter tido filhos,

tem examinado isso. Existe alguém", eu falei, "ou não?" "Com certeza", ele disse. "Quem?", eu disse, " de que lugar? e por quanto ensina?"

fi

fi

275 fi

fi

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO "Eveno, Sócrates", ele disse, "de Paros; por cinco minas". E eu felicitei

esse Eveno, se possui verdadeiramente essa arte e assim comedidamente a ensina! Eu mesmo ficaria envaidecido e convencido se fosse instruído

nessas coisas; mas uma vez que não sou, varões atenienses... 6. Um de vocês poderia então talvez retrucar: "Mas Sócrates, sua ativi-

dade qual é? De onde surgiram essas calúnias contra você? Certamente não foi depois de você ter uma atividade em nada mais extravagante que as dos outros que surgiu tamanha fama e falação; só se você de fato fazia algo diverso do que a maioria faz.... Diga-nos então o que é, para que não nos precipitemos a seu respeito". Quem fala assim me parece falar coisas justas, e eu tentarei lhes mostrar o que é isso que me trouxe tal nome e calúnia. Escutem então. A alguns de vocês vai parecer talvez que estou brincando, porém fiquem sabendo: vou lhes dizer toda a verdade. Pois eu, varões atenienses, não obtive esse nome por nenhuma

outra razão a não ser por causa de uma certa sabedoria. Que tipo de

sabedoria é essa? A sabedoria que é humana, talvez. Na realidade, nessa corro o risco de ser sábio, mas aqueles que eu mencionava há pouco

seriam talvez sábios numa sabedoria maior que a humana — ou não sei o que dizer... Nela, porém, eu mesmo não sou instruído, e quem

diz que sim não só mente como fala para me caluniar. (Alvoroço no tribunal) Não façam tumulto, varões atenienses, nem se parecer que lhes falo de um modo excessivo, "pois não será meu o discurso", o que quer que eu venha a dizer: vou antes o atribuir a um falante que, para vocês, é digno de fé. Pois como testemunha da minha sabedoria — se é de fato uma e qual é — vou apresentar o deus de Delfos. Vocês conhecem Querefonte, eu presumo. Ele era meu companheiro desde moço e companheiro também de vocês — da maioria —, e foi junto com vocês para o recente exílio e junto retornou. E vocês sabem como era Querefonte, o quão intenso naquilo em que se lançava. Pois certa vez,

indo a Delfos, se atreveu a solicitar esta adivinhação (como eu estava dizendo, não façam tumulto, varões): perguntou se alguém seria mais sábio que eu. Retrucou então a Pítia que não havia ninguém mais sábio. A respeito disso este seu irmão (aponta para o irmão) lhes dará testemunho, uma vez que ele mesmo já morreu. 7. Examinem por que razão estou dizendo isso; é que vou lhes ensinar de onde surgiu a calúnia contra mim. Depois de ouvir aquelas palavras,

276

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

fiquei refletindo assim: "O que é que o deus está dizendo, e o que é que está falando por enigma? Pois bem sei comigo mesmo que não sou sábio

— nem muito, nem pouco. O que ele está dizendo então, ao afirmar que sou o mais sábio? Certamente não está mentindo, pois para ele não é algo lícito". E depois de car muito tempo em aporia (o que será que ele está dizendo?), a muito custo me voltei para uma investigação disso, da seguinte maneira: fui até um dos que parecem ser sábios, porque, se

havia um lugar, era esse onde eu refutaria o adivinhado e mostraria ao oráculo — "este aqui é mais sábio do que eu, e você afirmava que era eu...". Ao examinar bem então esse homem (não preciso absolutamente

chamá-lo pelo nome; era um dos envolvidos com a política esse junto ao qual tive, examinando-o, esta impressão) e ao dialogar com ele, varões atenienses, me pareceu que parecia ser sábio para muitos outros homens e principalmente para si próprio, mas que não era. Em seguida, fiquei tentando lhe mostrar que ele pensava ser sábio, mas que não era. A partir daí me tornei odioso a ele e a muitos dos circunstantes e, indo embora, fiquei então raciocinando comigo mesmo — "Sou sim mais sábio que esse homem; pois corremos o risco de não saber, nenhum dos dois, nada de belo nem de bom, mas enquanto ele pensa saber algo, não sabendo, eu, assim como não sei mesmo, também não penso saber.... E provável, portanto, que eu seja mais sábio que ele numa pequena coisa, precisamente nesta: porque aquilo que não sei, também não penso sa-

ber". Daí me dirigi a um outro — dentre os que pareciam ser ainda mais sábios que aquele — e me pareceu a mesma coisa; e também aí me tornei odioso não só a esse homem mas também a muitos outros! 8. Depois disso me dirigi a uma série, percebendo com perturbação e temor que me tornava odioso — e no entanto parecia imperioso ter na mais alta conta o dito do deus! "Devo ir então — para examinar o que o oráculo está dizendo — até todos aqueles que parecem saber algo". E, pelo cão, varões atenienses, já que é preciso lhes dizer a verdade, realmente, a impressão que eu tive foi esta: enquanto os mais benquistos por pouco não me pareceram (a mim que investigava em conformidade com o deus) carentes máximos de uma conduta reflexiva, outros — que parecem ser homens mais banais — mais razoáveis me pareceram! Mas é preciso que eu exponha para vocês minha perambulação, que foi como enfrentar certos trabalhos só para que a adivinhação se tornasse

fi

277

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

irrefutável para mim... Depois dos envolvidos com a política, me dirigi aos poetas (aos das tragédias, aos dos ditirambos e aos restantes), para que aí sim eu viesse a me pegar em flagrante — como sendo mais ignorante que eles. Tomando então seus poemas, aqueles que me pareciam mais bem realizados, eu lhes perguntava o que estavam dizendo, para

que ao mesmo tempo aprendesse também algo com eles. Tenho vergonha, varões, de lhes dizer a verdade... Porém devo falar! A bem dizer,

por pouco todos os circunstantes teriam falado melhor do que eles so-

bre as coisas que eles próprios tinham poetado! Em pouco tempo então

também a respeito dos poetas percebi isto: que não era por sabedoria

que poetavam o que poetavam, mas por uma certa natureza e inspirados, tal como os adivinhos divinos e os proferidores de oráculos, pois

também esses dizem muitas e belas coisas, mas nada sabem do que di-

zem. Os poetas me mostraram passar também por uma situação assim. Ao mesmo tempo, percebi que eles, por causa da poesia, pensavam ser

os mais sábios dos homens também nas demais coisas — nas quais não eram! Saí então também daí pensando me destacar pelo mesmo motivo pelo qual me destacava em relação aos envolvidos com a política.

9. Por m, me dirigi aos técnicos. Sabia comigo mesmo que eu, a bem dizer, não conhecia nada, mas quanto a eles — sabia que os descobriria conhecedores de muitas e belas coisas! E nisso não estava enganado: conheciam sim o que eu não conhecia, e por aí eram mais sábios que eu. Porém, varões atenienses, me parecerem ter, também esses bons

trabalhadores, o mesmo defeito que os poetas: por efetuar belamente sua arte, cada um se achava também o mais sábio nas demais coisas (nas mais importantes!), e esta desmedida deles ocultava aquela sabedoria... De modo que fui perguntando a mim mesmo — em nome do oráculo — se eu preferiria ser assim como sou, nem sábio na sabedoria deles nem ignorante na ignorância, ou possuir essas duas coisas que eles

possuem. Respondi então a mim mesmo e ao oráculo que seria mais proveitoso para mim ser como sou. 10. Foi precisamente por causa dessa "inspeção", varões atenienses, que surgiram muitos ódios contra mim, e assim tão duros e pesados, que a partir deles então muitas calúnias começaram a surgir — e fui chamado desse nome, de "sábio".... Pois os circunstantes toda vez pensam que eu mesmo sou sábio nas coisas a respeito das quais refuto alguém,

fi

278

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS mas corre-se o risco, varões, de na realidade o deus ser sábio, e com

aquele oráculo afirmar isto: que a sabedoria humana pouco ou nada vale. Parece ainda que ele não fala aquilo de Sócrates, mas se serve do

meu nome para fazer de mim um modelo, como se dissesse — "Entre vocês homens o mais sábio é qualquer um que, como Sócrates, tenha reconhecido que, na verdade, em sabedoria não vale nada". Por isso, então, ainda agora circulando, investigo e interrogo em conformidade com o deus — se penso que alguém, seja dos cidadãos, seja dos estrangeiros, é sábio. E sempre que me parece que não, prestando um auxílio

ao deus, mostro-lhe que não é sábio. Com essa falta de tempo, não

tive tempo de realizar nem uma atividade da cidade digna de menção, nem familiar, e estou, por causa da servidão ao deus, numa penúria extrema...

II. Além do mais, os jovens que seguem comigo — os que têm mais tempo livre, entre os mais ricos, por vontade própria — gostam de ou-

vir os homens sendo "inspecionados", e eles mesmos muitas vezes me imitam, ou seja, tentam "inspecionar" outros... Como conseqüência,

descobrem, penso eu, grande abundância de homens que pensam saber algo, mas que pouco ou nada sabem. A partir daí então os "inspecio-

nados" por eles passam a odiar a mim, e não a si mesmos, e a dizer que

Sócrates é um miasmático e corrompe os jovens... E quando alguém lhes pergunta o que ele faz e o que ensina, não têm nada a dizer — ignoram -, mas, para que não pareça que estão em aporia, falam aquilo que anda sempre à mão contra todos que losofam — "as coisas suspensas no ar e as sob a terra, e a não crer em deuses, e a tornar superior

o discurso inferior". Porque a verdade (penso eu) eles não gostariam de

dizer: que há evidência de que, nada sabendo, só ngem saber. Assim, por serem (penso eu) amigos do prestígio, intensos e numerosos, eles têm enchido os ouvidos de vocês — tanto antes quanto agora — com intensas calúnias. Foi com base nisso que Meleto veio para cima de mim, junto com Anito e Lícon -Meleto tomando as dores dos poetas, Anito as dos trabalhadores e dos envolvidos com a política, e Lícon as

dos oradores. De modo que, como eu dizia no princípio, ficaria espan-

tado se conseguisse arrancar de dentro de vocês, em tão pouco tempo, uma calúnia que está tão funda... Essa é, varões atenienses, a verdade,

e falo sem ocultar a vocês nem muito nem pouco, e sem empregar sub-

fi

fi

279

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO terfúgios. Naturalmente, sei que em geral me torno odioso exatamente por isso, o que ainda comprova que estou dizendo a verdade, e que essa é a calúnia contra mim e que as causas são essas. É o que vocês, quer as

investiguem agora, quer depois, descobrirão!

12. A respeito então das coisas de que me acusavam meus primeiros acusadores, essa defesa perante vocês é suficiente. Depois disso, perante Meleto — esse homem "bom e patriota", conforme diz ser — e perante

os últimos tentarei me defender. Mais uma vez (como se fossem diferentes esses acusadores...), tomemos a declaração juramentada deles; é mais ou menos isto: "Sócrates age mal", diz, "ao corromper os jovens e ao não crer nos deuses em que a cidade crê, mas em coisas numinosas diferentes, novas". É uma queixa assim. Mas inspecionemos cada ponto dessa queixa. Diz que ao corromper os jovens ajo mal. Mas eu, pessoalmente, varões atenienses, digo que Meleto age mal, porque fica se divertindo com o que é sério, ao conduzir homens a júri de modo leviano, ao fingir levar a sério e se afligir por questões pelas quais ele absolutamente jamais militou! Que isso é assim, tentarei demonstrar também a vocês. 13. Me diga aqui, Meleto: você faz outra coisa senão ter na mais alta conta que os mais jovens sejam os melhores possíveis? 14 "É o que faço".

15. Ande então, diga a estes (aponta para o júri): quem os faz melhores?

Pois é claro que você sabe, militante que é! Depois de descobrir quem (como você diz) os corrompe, você me convoca à presença destes aqui e me acusa. Mas quem os faz melhores, ande, lhes diga e revele: quem é?

(Silêncio) Você está vendo, Meleto, como você se cala e não tem o que dizer? Na realidade, não lhe parece algo vergonhoso e prova suficiente do que eu dizia — que por isso você não tem absolutamente militado? Vamos, fale, bom homem: quem os faz melhores? 16. "As leis".

17. Mas não é isso que eu estou perguntando, ótimo homem, mas qual a pessoa, primeiro, que sabe exatamente isto — as leis. 18. "Eles, Sócrates, os jurados". (Aponta para o júri) 19. O que você está dizendo, Meleto? Que estes aqui têm condições de educar os jovens e fazê-los melhores?

280

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

20. "Com certeza". 21. Todos têm, ou alguns deles sim e outros não?

22. "Todos". 23. Por Hera, você fala bem — e de uma grande abundância de beneficiadores! Mas e estes aqui, os ouvintes (aponta para a plateia), os fazem melhores ou não? 24. "Eles também". 25. E os conselheiros? 26. "Os conselheiros também".

27. Mas então, Meleto, não me diga que os que vão à assembléia corrompem os jovens? Ou eles todos também os fazem melhores? 28. "Eles também". 29. Pelo jeito então todos os atenienses os fazem belos e bons, menos eu: só eu os corrompo. E isso que você está dizendo? 30. "Com certeza, é isso mesmo que estou dizendo".

31. Imenso é o infortúnio que você me imputou! Me responda ainda: também com os cavalos lhe parece ser realmente assim — são todos os

homens que os fazem melhores, enquanto é um só que os corrompe? Ou é inteiramente o contrário disso, tendo um só condições de fazê-los

melhores, ou muito poucos — os cavalariços -, enquanto a maioria, se com cavalos convive e deles se serve, os corrompe? Não é assim, Meleto,

seja com os cavalos, seja com todos os outros animais? Decerto que é,

totalmente, quer você e Anito digam que sim, quer digam que não! Pois imensa seria para os jovens a bem-aventurança, se um só os cor-

rompesse, enquanto os demais os beneficiassem.... Mas você, Meleto, demonstra suficientemente que jamais deu atenção aos jovens e exibe

claramente sua não-militância — porque você não tem absolutamente

militado pelas coisas em nome das quais me convoca. 32. Mas nos diga ainda, Meleto, em nome de Zeus: é melhor viver entre cidadãos prestativos ou sofríveis? (Silêncio) Responda, meu que-

rido, pois não estou perguntando nada complicado. Os sofríveis não realizam algo de mau para os que estão sempre muito próximos deles, enquanto os bons algo de bom? 33. "Com certeza".

281

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 34. Há então quem prefira ser prejudicado por aqueles com que convive

a ser beneficiado? (Silêncio) Responda, bom homem! A lei o manda responder! Há quem prefira ser prejudicado?

35. "Certamente que não".

36. Muito bem. Você me convoca até aqui por eu corromper os mais jovens e fazê-los mais sofríveis voluntária ou involuntariamente?

37. "Voluntariamente, penso eu...". 38. Mas como, Meleto?! Você, que está com tal idade, é tão mais sábio

que eu, que estou com esta, a ponto de você mesmo já ter percebido que

os maus realizam algo de mau sempre para os que estão muito perto deles, e os bons algo de bom, enquanto eu vou tão longe em minha ignorância a ponto de não perceber até isto — que, se tornar mesqui-

nho um dos que convivem comigo, correrei o risco de receber dele algo

de mau -, e portanto fazer esse mal tamanho voluntariamente, como você está dizendo? A mim você não convence disso, Meleto, e penso que tampouco a nenhum outro homem... Ou eu não corrompo ou, se corrompo, o faço involuntariamente, de modo que você, em ambos os casos, mente! E se corrompo involuntariamente, por erros tais — invo-

luntários — a lei não manda que se convoque até aqui, mas sim que se

aborde a pessoa em particular, para ser ensinada e repreendida. Pois é claro que, em aprendendo, vou parar de fazer o que involuntariamente

faço... Mas conviver comigo e me ensinar você evitava e nunca quis — e agora me convoca até aqui, aonde a lei manda convocar os que precisam de castigo, não de ensino...

39. Mas isso, a esta altura, está claro, varões atenienses (conforme eu dizia): que Meleto por essas coisas jamais militou, nem muito, nem pouco. Ainda assim, fale para nós: de que maneira, Meleto, você afirma que eu corrompo os mais jovens? Sim, claro, conforme está na denúncia que você fez: "Ensinando a não crer nos deuses em que a cidade crê, mas em coisas numinosas diferentes, novas". Não é ao ensinar isso que você está dizendo que os corrompo? 40. "Mas com certeza, é isso mesmo que estou dizendo". 41. Em nome então desses próprios deuses, Meleto, de que falamos

agora, diga ainda mais claramente, para mim e para estes varões (aponta para o júri), pois eu, pessoalmente, não sou capaz de compreender se

282

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS você está dizendo que ensino a crer na existência de alguns deuses (e

então eu próprio creio na existência de deuses e não sou absolutamente ateu nem é por aí que ajo mal) — porém não exatamente naqueles em que a cidade crê, mas em diferentes, e é por isso que você me intima, porque diferentes -, ou se você está afirmando cabalmente que eu próprio não creio em deuses e ensino isso aos demais...

42. "É isso que estou dizendo, que você não crê absolutamente em deuses".

43. Admirável Meleto, com que finalidade você diz isso? Eu não creio então nem que Sol nem que Lua são deuses, como os demais homens?

44. "Não, por Zeus, varões jurados, uma vez que afirma que o Sol é pedra e que a Lua é terra!". 45. Você pensa que está acusando Anaxágoras, caro Meleto, e despreza assim estes aqui (aponta para o júri), pensando que são tão sem-recursos nas letras a ponto de não saberem que os livros de Anaxágoras de Clazômena é que estão cheios desses discursos? E dizem que é comigo

que os jovens aprendem essas coisas, quando eles podem comprá-las por uma dracma ou menos no mercado de livros e rir de Sócrates caso

venha a fingir que essas idéias são suas, sobretudo sendo elas tão estranhas? Mas então, em nome de Zeus, é isso mesmo que lhe parece, que não creio na existência de deus algum?

46. "Que não, por Zeus, nem de uma maneira nem de outra!"

47. Você é inacreditável, Meleto! E assim como parece ser para mim,

deve parecer para você mesmo... Pois este homem (aponta para Meleto), varões atenienses, me parece ser muito soberbo e insolente, e simplesmente fazer esta denúncia por uma soberba, uma insolência, uma molecagem. Ele se assemelha a quem põe à prova compondo como que um enigma: "Será que Sócrates, o sábio, vai perceber que fico me divertindo e entrando em contradição comigo mesmo, ou vou enganar por completo a ele e aos demais ouvintes?". Pois me parece que este homem entra em contradição consigo mesmo em sua denúncia, como se dissesse: "Sócrates age mal ao não crer em deuses, embora crendo em

deuses...". Mas isso é de quem está brincando!

48. Examinem então comigo, varões, por que ele me parece falar assim.

Você, Meleto, responda-nos, e vocês, conforme lhes pedi no princípio,

283

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO lembrem-se de não fazer tumulto, caso elabore meus discursos da maneira habitual.

49. Há dentre os homens, Meleto, quem creia na existência de assun-

tos humanos, mas na de homens não creia? (Meleto protesta em voz

baixa) Que ele responda, varões, e não promova um tumulto atrás do outro! Há quem não creia na de cavalos, mas na de assuntos de cavalaria sim? Ou não creia na existência de flautistas, mas na de assuntos de flauta sim? (Silêncio) Não há, melhor dos homens! Se você não quer responder, falo para você e para estes outros (aponta para o júri). Mas responda pelo menos ao que decorre disto: há quem creia na existência de assuntos numinosos, mas na de numes não creia? so. "Não há". 51. Que bom que você respondeu, mesmo que a muito custo, forçado

por estes aqui! Ora, você não afirma que não só ensino, mas que também creio em coisas numinosas, quer novas, quer antigas? Portanto, em coisas numinosas pelo menos eu creio, de acordo com seu discurso, e a esse respeito você até jurou no ato de indiciamento... Se creio em

coisas numinosas, decerto é muito imperioso que eu creia também em numes; não é assim? (Silêncio) Mas é! Vou colocá-lo reconhecendo que sim, já que não responde. E quanto aos numes, não os consideramos, com efeito, deuses ou filhos de deuses? Você diz que sim ou não? 52. "Com certeza". 53. Ora, se eu considero os numes (como você mesmo diz) e se os numes são determinados deuses — eis por que digo que você fala por enigma e fica se divertindo, ao afirmar que eu, embora não considere os deuses, volto a considerar por sua vez os deuses, já que os numes pelo menos eu

considero... E se os numes, por sua vez, são determinados filhos bastardos dos deuses, nascidos de ninfas ou de outras mães quaisquer (das que também se diz que são), qual dos homens consideraria a existência dos filhos dos deuses, mas dos deuses não? Seria igualmente estranho se se considerasse a existência dos filhos dos cavalos, ou mesmo dos jumentos — as mulas -, mas não a dos cavalos e a dos jumentos... O fato, Meleto, é que não há como não ser para nos pôr à prova que você fez esta denúncia, ou então porque você estava em aporia quanto à verdadeira má ação pela qual me intimaria... Mas para que você possa convencer algum dos homens, mesmo que tenha pouco bom senso, de

284

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS que a pessoa que considera coisas numinosas não é a mesma que considera coisas divinas, e que por sua vez é a mesma que não considera nem

numes, nem deuses, nem heróis — meio algum existe! 54. De todo modo, varões atenienses, não me parece ser o caso para uma extensa defesa (de que não ajo mal como diz a denúncia de Meleto): isso

mesmo já é suficiente. Mas aquilo que eu dizia anteriormente — que contra mim surgiu muito ódio, e junto a muitos -, fiquem sabendo que é verdade. E é isso que me condenará, se é que vai mesmo me condenar:

não Meleto, nem Anito, mas a calúnia e a inveja de muitos! Coisa que a muitos varões, belos e bons, tem condenado e ainda vai (penso eu)

condenar; não há perigo algum de que pare em mim...

ANÁLISE DE TÓPICOS EM

"APOLOGIA DE SÓCRATES" Embora apenas cerca de metade da Apologia de Sócrates seja reproduzida aqui, temos uma boa amostra para análise desse exemplo clássico de retórica judicial. A retórica judicial é exercida com mais frequência no tribunal, mas esse tipo de discurso persuasivo abrange também defesas extrajudiciais de ações e caráter. Se entendermos o termo apologia em seu sentido grego de "defesa" e o termo categorização em seu sentido grego de "acusação", temos dois termos que descrevem mais apropriadamente as funções básicas do discurso judicial, que aparece em obras tão diversas como Apologia Pro Vita Sua, de Newman, J'accuse, de Zola, Epístola ao Dr. Arbuthnot, de Pope, e o catálogo de acusações contra o rei da Inglaterra na Declaração de Independência. Se fôssemos intimados a comparecer no tribunal hoje, provavelmente confiaríamos nossa defesa a um advogado. Mas pode haver muitas ocasiões na vida em que seremos chamados a justificar nossa conduta fora do tribunal. A defesa de Sócrates é um assunto sério, pois Sócrates é passível de pena de morte se o júri o julgar culpado. Como toda criança em idade escolar sabe, Sócrates perdeu o caso e foi levado a beber o fatal "cálice

de cicuta". Quase todos hoje que lêem a Apologia sentem que Sócrates respondeu com sucesso às acusações contra ele. O júri que ouviu o eloquente apelo de Sócrates na assembléia ateniense não foi mais obtuso do que os leitores modernos, mas uma série de considerações extrajudi-

285

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

ciais influenciaram o veredicto. Ignoraremos aqui essas considerações extrajudiciais para nos concentrarmos no discurso em si.

Como vimos, os temas especiais que figuram no discurso judicial são justiça e injustiça (ou certo e errado, entendidos em seu sentido

jurídico). Ao buscar esses tópicos especiais, o orador ou escritor judicial está preocupado principalmente com uma destas três questões: (1) se a acusação é verdadeira (an sit); (2) qual a natureza da acusação (quid sit); (3) qual a gravidade da acusação (quale sit). No decorrer de um julgamento, o tribunal pode considerar essas três questões, mas, em última análise, deve decidir qual delas está em debate em um caso particular.

Se an sit for o ponto em questão, a evidência será o principal tópico especial; se for quid sit, será definição; se for quale sit, serão os motivos ou causas do ato. Na busca pela questão, o pleiteador judicial também abordará vários tópicos comuns. Vejamos como os vários tópicos aparecem na Apologia de Sócrates. Em primeiro lugar, devemos considerar um esboço geral da parte da Apologia aqui reproduzida: 1. Observações introdutórias de Sócrates à assembléia (parágrafo I). 2. Narratio: a declaração das acusações (parágrafo 2). 3. Refutação das antigas acusações (parágrafos 4-12). 4. Refutação das acusações recentes: interrogatório de Sócrates a Meleto (parágrafos 13-53). 5. Observações finais (parágrafo 54).

No parágrafo inicial, Sócrates define o tom do apelo ético que ele espera que todo o seu discurso exerça. Com a típica modéstia irônica, Sócrates elogia a eloquência de seus acusadores e deprecia sua própria

habilidade como orador. Sem habilidade retórica, ele colocará sua confiança na justiça de sua causa, acreditando que falar a verdade, e nada mais que a verdade, o exonerará. O lembrete de que ele tem setenta anos pode ser visto como um apelo emocional à simpatia ou misericór dia do tribunal, mas, como Sócrates não se expressa assim em nenhum outro lugar do discurso, ele parece relutante em basear seu desagravo na resposta emocional de seus ouvintes. Estrategicamente, evitar o apelo emocional pode ter sido um erro, mas desconfiar da emoção era típico de Sócrates.

286

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Recorrendo ao tópico comum da divisão no segundo parágrafo, Sócrates divide as acusações em duas classes gerais, a antiga e a recente,

e anuncia que responderá aos dois grupos de acusações um de cada vez. Ele não especifica as acusações sob esses dois cabeçalhos gerais, limitando-se aqui a indicar a organização geral de sua defesa.

No parágrafo 4 (após o terceiro parágrafo, de transição), Sócrates

especifica as antigas acusações. De acordo com a "declaração juramen-

tada", ele é acusado de (1) ser um estudante de filosofia natural; (2) fazer a pior causa parecer a melhor; (3) ser um professor dessas doutrinas e receber dinheiro por seu ensino. Para determinar se a primeira acusação é verdadeira (an sit), Sócrates nega a acusação, sustentando que ele nunca se envolveu em especulações sobre questões físicas. Para

confirmação de sua afirmação, ele pede o testemunho dos presentes.

"Apresento como testemunhas a maioria de vocês mesmos, e peço que vocês digam e se informem entre si, todos que alguma vez me ouviram dialogando (e muitos de vocês estão nessa situação) — que digam entre si então se alguma vez, seja pouco, seja muito, algum de vocês me ouviu

dialogando sobre essas coisas". Este convite encontra um silêncio pétreo da audiência. A implicação desse silêncio é que não há evidências para sustentar essa antiga acusação, que simplesmente não é verdade. Visto

que isso não é verdade, Sócrates não precisa continuar a considerar a natureza do ataque e a gravidade do ataque.

Também não há nenhuma evidência para fundamentar a acusação de que ele é professor e cobra por seus serviços. É curioso que ninguém

na assembléia tenha questionado a negação de Sócrates quanto a ser professor. Sócrates é conhecido por nós, como deve ter sido por seus

contemporâneos, como professor. Provavelmente, o que está envolvido aqui é uma questão de definição. O que Sócrates pode estar sugerindo

aqui (e parece argumentar no próximo parágrafo, onde questiona se é um homem sábio) é que, do ponto de vista técnico, ele não se qualifica

e não pode se qualificar como professor. Depois de negar a acusação, Sócrates toca por um momento na quale sit do ataque. Mesmo se fosse um professor qualificado que cobra por seus serviços, como fazem os sofistas Górgias, Pródico, Hípias e Evenus, ele não consideraria isso um crime. Recorrendo à analogia, Sócrates lembra ao público que, assim como não consideraríamos um crime se um instrutor cobrasse uma taxa para melhorar potros ou bezerros, também não devemos conside-

287

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO rar um crime se um professor receber dinheiro para melhorar as mentes dos jovens.

Sócrates não confronta a acusação de que ele faz com que a pior

causa pareça a melhor, mas uma negação dessa acusação parece estar

implícita em sua negação das outras duas acusações, e essa acusação é realmente refutada por alguns dos argumentos posteriores. No parágrafo 6, Sócrates passa a considerar a razão pela qual essas falsas acusações foram feitas contra ele. Certamente, deve haver algum fundamento para tais acusações. Sua origem, pensa Sócrates, está no pronunciamento do oráculo de Delfos: "Sócrates é o homem mais sábio". Quando esse pronunciamento délfico foi relatado a Sócrates, ele

raciocinou na forma de um entimema: "O deus deve estar certo, porque um deus não pode mentir". Mas em que sentido o deus pode estar certo ao afirmar que Sócrates é o mais sábio dos homens? Ao buscar uma resposta para essa pergunta, Sócrates volta-se, no parágrafo 7 para o tópico comum da definição. Ele relata (nos parágrafos 7, 8, 9) suas experiências com políticos, poetas e artesãos, aos quais

visitou porque eles eram supostamente sábios, e ele queria descobrir por que eles eram sábios. Mas esses supostos "sábios" desiludiram-no: eles não eram sábios e, para piorar, não reconheciam que eram ignorantes. Como resultado dessas investigações, Sócrates descobriu o sentido em que se poderia dizer que ele era o mais sábio dos homens: só ele sabia que não sabia.

E essa superioridade um tanto paradoxal que explica a animosidade

contra Sócrates. Além disso, os jovens, que por natureza apreciam a

exposição de fingidores, começaram a imitar Sócrates inspecionando charlatões. Os que fingem saber, descontentes com sua exposição, recorreram às acusações padronizadas, mas não comprovadas, feitas contra todos os filósofos: que eles ensinam coisas suspensas no ar e sob

a terra, não crêem em deuses e tornam superior o discurso inferior. O preconceito, então, motivou as duras acusações indiscriminadas. O preconceito incitou não só os antigos acusadores, mas também os recentes. Meleto toma as dores dos poetas; Anito, dos artesãos e dos políticos; Lícon, dos retóricos. Sócrates conclui essa parte de sua defesa

com um apelo a uma lógica bastante duvidosa: "Naturalmente, sei que em geral me torno odioso exatamente por isso, o que ainda comprova que estou dizendo a verdade". Ele considera o ódio como um sinal. Pelas

288

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS regras da lógica estrita, esse sinal não pode levar a uma conclusão infalí-

vel. Mas o estudante deve lembrar que Aristóteles também reconheceu a eficácia, para fins retóricos, de sinais que levam apenas a conclusões

prováveis. Esse tipo de sinal, como no caso de todas as probabilidades,

pode produzir somente crença, não convicção. No parágrafo 12, Sócrates especifica as acusações feitas pelo se-

gundo grupo de acusadores: (1) que ele age mal; (2) que corrompe a

juventude; (3) que não crê nos deuses em que a cidade crê; (4) que criou outros deuses. Sócrates reverte a primeira acusação a Meleto; ele se esforçará para mostrar que é Meleto quem faz o mal, porque ele não leva realmente a sério esses assuntos. Essa reversão da acusação é um artifício recomendado por todos os retóricos clássicos, pois coloca o acusador na defensiva e, se a contra-acusação puder ser comprovada, tira a pressão do defensor. Nos parágrafos 13-53, como vimos no esboço, Sócrates interroga Meleto, passando do método discursivo da parte inicial de sua defesa para o estilo dialético de perguntas e respostas. De qualquer maneira, mesmo com essa mudança, ele não abandona os tópicos comuns e os tópicos especiais.

Nos parágrafos 18-38 dessa seção, Sócrates avalia a justiça da acu-

sação de que ele corrompe a juventude. No início desse interrogatório, Sócrates recorre ao tópico comum dos contrários, querendo dizer:

"Se corrompo a juventude, deve haver algumas pessoas que, segundo Meleto, beneficiam a juventude". Quem são esses beneficiadores da ju-

ventude? Sócrates consegue fazer com que Meleto afirme que os jurados, a platéia, os conselheiros, os membros da assembléia (na verdade,

todos os atenienses, exceto Sócrates) melhoram a juventude. Sócrates

passa a reduzir essa afirmação ao absurdo, recorrendo a uma analogia

(o tópico da semelhança). Assim como os cavalos são melhorados, não por todos, mas por um único indivíduo que sabe treinar cavalos, a juventude não é melhorada por muitos, mas por um só. Portanto, a afirmação de Meleto de que só Sócrates corrompe a juventude e que todos os outros melhoram a juventude é manifestamente absurda. (Observe que há um argumento a fortiori implícito na aplicação da analogia). Nos parágrafos 32-38, Sócrates aborda a mesma acusação de outro ângulo. Em primeiro lugar, ele induz Meleto a concordar com a verdade de três proposições: (1) os bons fazem o bem ao próximo, os maus

289

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO fazem o mal; (2) todos preferem ser beneficiados do que prejudicados

por outros; (3) ele corrompe os jovens ou voluntariamente ou involuntariamente. Tendo garantido assentimento em relação a essas três

proposições, Sócrates usa a terceira delas como ponto de partida de sua refutação. Como vimos na exposição de contradições no tópico comum de comparação, proposições contraditórias são incompatíveis, isto é, não podem ser ambas verdadeiras. E vimos também que, se uma proposição for comprovadamente falsa, a outra será automaticamente verdadeira. A estratégia de Sócrates é mostrar que a proposição "Sócrates corrompe os jovens voluntariamente" é falsa. Observe como ele utiliza habilmente as outras duas proposições com as quais Meleto concordou: Mas como eu poderia corromper a juventude voluntariamente? Se eu os corromper, eles se tornam maus. Uma vez que eles se tornam maus, eles provavelmente me prejudicarão (porque, como já concordamos, os maus fazem o mal). Mas como eu (ou qualquer um) preferiria ser beneficiado a ser prejudicado pelo próximo, não é provável que eu produzisse voluntariamente o tipo de indivíduo que me prejudicaria. Portanto, podemos descartar a acusação de que corrompo os jovens voluntariamente.

O argumento foi reduzido agora a duas possibilidades (e podemos considerá-las contrárias): ou ele não corrompe os jovens, ou os corrompe involuntariamente. Sócrates agora lida com esses contrários

desta maneira: Vamos descartar arbitrariamente a primeira possibilidade, já que você me acu-

sou formalmente de corromper a juventude. Isso nos deixa com a possibili-

dade de eu corromper a juventude involuntariamente. Mas se eu corromper os jovens involuntariamente, não estou sujeito à lei e nem deveria estar neste

tribunal.

Ao demonstrar o absurdo da acusação de Meleto, Sócrates provou indiretamente o que disse que provaria: que Meleto não poderia ter feito essas acusações a sério e que, portanto, ele é o verdadeiro malfeitor.

Nos parágrafos 39-53, Sócrates demonstra a inconsistência da acusação de que ele é ateu, detectando nos itens 3 e 4 dessa acusação uma contradição flagrante: o item 3 afirma que ele não acredita nos deuses;

o item 4 implica que ele acredita nos deuses. Para provar que o item

290

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

3 é falso, Sócrates faz uso dos tópicos comuns de semelhança, gênero e espécie. Ele faz Meleto admitir que não se pode acreditar na humanidade sem acreditar nos seres humanos, na equitação sem acreditar nos cavalos, na flauta sem acreditar nos flautistas; em outras palavras, não se pode acreditar no gênero sem acreditar na espécie. Da mesma forma, não se pode acreditar em agentes divinos (como afirma o item 4) sem acreditar em espíritos e semideuses. Portanto, a acusação de que Sócrates não acredita nos deuses é totalmente falsa. Pelo princípio da contradição, se uma proposição em uma oposição contraditória é falsa, a outra proposição é verdadeira. Portanto, Sócrates acredita nos deuses.

No parágrafo 54, o último parágrafo da seleção aqui reproduzida, Sócrates observa que respondeu com sucesso às acusações feitas por

Meleto e Anito. Ele reconhece, no entanto, que durante a vida, incorreu na inimizade de muitas pessoas e que é essa inimizade, e não as acusações, que acabará se revelando sua ruína. Ao longo dessa metade da Apologia, Sócrates empregou uma estratégia negativa, a estratégia da refutação, mas, a partir desse ponto, ele apresentará argumentos positivos para sua inocência. Podemos observar, finalmente, que grande parte da estratégia de Sócrates ao longo dessa seção foi no sentido de minimizar o apelo ético de Meleto. Ao mesmo tempo que refuta as acusações de Meleto, ele mostra indiretamente que Meleto não é um homem de bom senso, bom caráter e boa vontade. O apelo ético de Meleto é reduzido ainda mais

por sua freqüente relutância em responder às perguntas pontuais de Sócrates. O toque final é a ironia extra de chamar Meleto de "amigo",

uma ironia que se torna tão prejudicial quanto o uso de Marco Antônio

do epíteto "homens honrados" no famoso discurso "Amigos, romanos, conterrâneos", em Júlio César, de Shakespeare.

"OBITUÁRIO DE KATHARINE SERGEANT WHITE"6 Como vimos antes, o discurso epidíctico ou cerimonial concentra-se em elogiar

ou culpar alguma pessoa ou grupo de pessoas, instituição ou situação. Algumas formas comuns desse tipo de discurso são discursos fúnebres, apologias em defesa de uma determinada conduta, discursos de formatura, discursos proferidos em

6The New Yorker, 53 (1° de agosto de 1977), p. 72. Copyright © 1977 The New Yorker Magazine Inc. Reproduzido com permissão.

291

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO feriados nacionais e discursos de abertura em convenções de nomeação. Depois

dos sermões proferidos em funerais, talvez a forma mais comum de discurso cerimonial em nossa sociedade seja o obituário que aparece nos jornais locais

sobre pessoas importantes. O seguinte obituário foi publicado na The New Yorker sobre uma mulher notável que esteve envolvida com essa famosa revista

desde o primeiro ano de sua fundação. Analisaremos, em seguida, os tópicos retóricos que renderam o "elogio" que permeia este discurso.

1. Para muitos de nós, Katharine White foi uma presença monumental

no mundo, uma mulher imutável em meio à mudança, uma figura de ordem, certeza, serenidade e firmeza. Ela estava sempre presente. Até

que, na semana passada, aconteceu o que não queríamos nem imaginar: aos 84 anos, ela faleceu. Katharine White, esposa de Ernest Angell,

veio trabalhar na The New Yorker em 1925, seis meses depois que a revista foi fundada por Harold Ross. Ela começou como leitora de manuscritos, mas logo estava envolvida em tudo o que acontecia a redação. Ross, aproveitando sua inteligência, sua energia, seu gosto aristocrático,

seu ar de autoridade e sua incrível força de caráter, resolveu colocá-la para trabalhar na jovem revista. No caos rotineiro de uma publicação lutando para se encontrar, ela exercia uma in uência para lá de estabilizadora. Com uma estética própria e padrões literários bem estabele-

cidos, ela ampliava as idéias e interesses de Ross. Quando Ross sabia o que queria, mas não sabia como conseguir, ele começou a consultar Katharine. Quando não sabia exatamente o que queria, consultava-a para descobrir. Quando estava inseguro de si mesmo, tinha nela um porto seguro. Em pouco tempo, ela passou a ser sua colaboradora mais valiosa. Mais do que qualquer outro editor, exceto o próprio Harold Ross, Katharine White deu à The New Yorker sua forma, definindo seu

curso. 2. Com o passar dos anos, o funcionamento da revista tornou-se muito mais complexo e compartimentado, de modo que a Sra. White passou

a dirigir o Departamento de Ficção, onde permaneceu por cerca de dez anos, até que fez uma tentativa de aposentar-se, recluindo-se em uma fazenda em North Brooklin, Maine, com o marido, Andy (E. B.) White. Lá, como editora de meio expediente, ela fez muito mais do que em um trabalho de tempo integral. No final da década de 1950, para atender a uma emergência, ela voltou à cidade e trabalhou mais

fl

292

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS dois anos como editora de ficção, retomando, em seguida, a extenuante

semi-aposentadoria no Maine. 3. As qualidades de Katharine White como editora não têm paralelo. Ela dava a cada escritor com quem que trabalhava uma quantidade aparentemente ilimitada de atenção. Era como se não houvesse outros escritores. No entanto, havia muitos escritores, e ela conseguia dedicar-se a todos eles: conversava com cada um por horas a o e mantinha uma prodigiosa correspondência com eles. Além disso, interessava-se genuinamente pela vida pessoal desses escritores, encorajando-os, tranqüi-

lizando-os, consolando-os, aconselhando-os, mimando-os. Katharine enviou centenas de cartas para escritores instando-os a escrever, e eles

o fizeram. A história da ficção americana nos últimos cinqüenta anos não teria sido a mesma sem Katharine White. Seus padrões e seu gosto

tiveram muito a ver com isso, mas havia algo mais: Katharine tinha

uma misteriosa capacidade de estimular o desejo literário, conseguindo extrair trabalhos até mesmo de escritores parados, que se julgavam sem

inspiração para continuar. Não há como estimar o quanto a boa escrita teria sido menos boa não fosse por Katharine White, ou quantos livros não teriam sido escritos se ela não estivesse esperando, em sua mesa,

para recebê-los. Para muitos escritores, ela era a única musa de que

precisavam. 4. Uma mulher calma, reservada, majestosa e bela (tão bela na casa dos oitenta quanto na dos trinta), Katharine iniciou sua carreira editorial

na The New Yorker como se só isso fosse o que ela estava destinada a fazer, e então, quis o destino que ela se casasse com o principal redator

da revista. Em algum momento do processo, ela descobriu ser possível contribuir para a revista com uma série de ensaios sobre livros infantis

e, mais tarde, uma série de ensaios eruditos, poéticos, bem-humorados e entusiásticos sobre jardinagem. Nos últimos vinte anos de sua vida, ela ficou bastante doente (suas aflições não davam trégua, com três ou

quatro problemas de saúde por vez), mas sua coragem também não se arredou, e ela seguiu em frente. Mesmo com toda a dor, continuou a escrever maravilhosamente sobre o jardim de flores que ainda cultivava, os jardins de que se lembrava e os jardins de sua imaginação. E escrevia

cartas, aos montes, cartas longuíssimas para os amigos, entre eles os

escritores que trabalharam com ela, páginas e páginas de perguntas,

fi

293

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO pensamentos, informações, detalhes, sempre fascinantes, da vida di-

ária que levava com Andy, e boletins sobre muitas outras vidas que

ela acompanhava. Suas notícias, redigidas por uma mão pródiga, eram presentes para os amigos. Um dia antes de morrer, ela recebeu uma carta de um dos colaboradores da revista, dizendo: "Receber sua carta

afetuosa e calorosa encheu-me de esperança, aliás, como você sempre fez". Vários escritores poderiam ter dito o mesmo.

5. As lealdades de Katharine White eram numerosas, intensas e fixas:

Brookline, Massachusetts, onde ela foi criada; a revista St. Nicholas, para a qual contribuiu na infância; Bryn Mawr, onde se formou; a cidade de Nova York, um amor incondicional; o estado do Maine; o Boston Red Sox; suas flores; a própria The New Yorker; seus colegas de revista; cada escritor com quem já trabalhou; seu adorado Andy; seus filhos, netos, bisnetos, amigos, vizinhos; e a palavra escrita, particularmente a palavra escrita por E. B. White e por seu filho Roger Angell. É E. B. White quem, em uma entrevista para a Paris Review, descreveu melhor do que ninguém Katharine em plena atividade editorial: 6. "Ela foi uma das primeiras editoras a serem contratadas e não consigo imaginar o que teria acontecido com a revista se ela não tivesse aparecido. [...] Katharine logo estava participando das reuniões de arte e planejando sessões, editando ficção e poesia, incentivando e conduzindo autores e artistas pelos caminhos que eles estavam ansiosos para seguir,

aprendendo composição e edição a lápis, chefiando o Departamento de

Ficção, compartilhando as angústias e dilemas pessoais de inúmeros colaboradores e funcionários em desespero, em suma, aceitando toda a indisciplina de uma revista oscilante com a alegria e a dedicação de uma mãe amorosa. Tive uma visão panorâmica de tudo isso, porque, no meio do processo, tornei-me seu marido. Durante o dia, vi-a trabalhando no escritório; no final do dia, observava-a trazendo toda a bagunça para casa, em um portfólio barato e volumoso. A luz ficava acesa até tarde, nossa cama estava sempre cheia de provas de página e nossa casa, repleta de risos e do espírito penetrante de sua dedicação e diligência"

294

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

ANÁLISE DE TÓPICOS NO "OBITUÁRIO DE KATHARINE SERGEANT WHITE" O obituário é uma das formas mais comuns de retórica cerimonial. Mesmo os cidadãos mais desconhecidos recebem algumas linhas de obituário no jornal local se suas famílias pagarem para que o anúncio seja publicado. É claro que figuras públicas importantes têm longos obituários publicados sobre elas em revistas nacionais e em jornais de prestígio fora da cidade em que viveram e morreram. O obituário de Katharine White foi publicado na The New Yorker, a revista nacional em ela trabalhou muitos anos. A morte de entes queridos, de figuras célebres e de heróis nacionais invariavelmente suscita homenagens generosas, sentimentos sinceros e resoluções nobres. O mais comovente de todos os acontecimentos humanos geralmente consegue escapar da desgraça do sentimentalismo provavelmente porque nós, os sobreviventes, sentimos que toda palavra, por mais extravagante que seja, é bem-vinda nessa hora. No entanto, com o passar do tempo, o envolvimento emocional com a ocasião e com o falecido perde a força, e todas as elegias nos parecem piegas. É a perspectiva do tempo que separa a prosa imortal da verborragia perecível. O Discurso de Gettysburg, de Lincoln, e a Oração fúnebre, de Péricles, dois exemplos clássicos de discurso epidíctico sobre soldados do "nosso lado" que morreram em batalha, impressionam-nos por serem tão eloquentes e genuínos agora como eram no dia em que foram proferidos no pódio.

O obituário de Katharine Sergeant White foi escrito por um editor anônimo da revista, provavelmente alguém que a conhecia há muito tempo. O que esse escritor tem a dizer sobre a falecida representa sua

opinião sobre os fatos e opiniões que provavelmente lançarão a luz mais favorável sobre sua vida e seu caráter. Todo redator de obituários certamente dirá coisas sobre o falecido que ninguém pensou em dizer, mas muitas coisas, sobretudo os fatos sobre a carreira pública do indivíduo, serão mencionadas em todos os obituários. Esse obituário parece estar igualmente dividido entre os detalhes da

carreira profissional de Katharine White e sua vida privada, podendo ser esboçado desta forma:

295

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 1. Sua carreira profissional (parágrafos 1-3)

A. Sua conexão de longa data com a The New Yorker (parágrafos 1-2).

в. Seus méritos como editora (parágrafo 3).

2. Sua vida privada (parágrafos 4-6) A. Sua vida doméstica (parágrafo 4).

B. Suas muitas lealdades (parágrafo s). c. Testemunho de seu marido (parágrafo 6).

O tópico comum que produz a maior parte do material para obituários é o testemunho, ou seja, questões de registro público e as opiniões/

análises daqueles que conheciam a pessoa intimamente. A maior parte

do material nesse obituário também vem do testemunho, um testemunho que trata de "fatos" sobre sua carreira editorial, seu casamento, seus escritos, suas lealdades, seu local de nascimento, educação e residências.

A avaliação de sua carreira e de sua vida baseia-se, em grande parte, no testemunho sobre ela apresentado pelo redator do obituário, mas

há também o testemunho do escritor que lhe escreveu pouco antes de sua morte (parágrafo 4) e, no último parágrafo, o testemunho de seu marido, E. B. White. O tópico comum de comparação aparece pelo menos duas vezes, revelando diferenças de grau: "Mais do que qualquer outro editor, exceto

o próprio Harold Ross" (parágrafo 1) e "As qualidades de Katharine White como editora não têm paralelo" (parágrafo 2). O tópico comum de causa e efeito aparece na discussão da in uência que seu diligente incentivo aos escritores teve no curso da literatura neste país: "Não há

como estimar o quanto a boa escrita teria sido menos boa não fosse por

Katharine White" (parágrafo 3) e "A história da ficção americana nos

últimos cinquenta anos não teria sido a mesma sem Katharine White"

(ibid.). Todo o primeiro parágrafo pode ser considerado como uma definição de seu papel no destino da revista. Mas, como geralmente acontece no discurso cerimonial, os tópicos especiais produziram grande parte do conteúdo desse obituário: as virtudes, atributos e realizações particulares do assunto do tributo. Podemos revisar, em primeiro lugar, as virtudes particulares que o escritor enfatiza sobre Katharine White. No parágrafo 4, o escritor men-

fl

296

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

ciona sua extraordinária coragem ou força diante da doença e da dor prolongadas. Um dos pontos difundidos no tributo é a insistência em sua liberalidade ou generosidade em despender tempo e esforço para incentivar escritores e escrever longas cartas para amigos (parágrafos 3 e 4). O parágrafo I enfatiza sua prudência, aquela virtude intelectual de

inteligência e bom gosto, que a tornou uma conselheira e colaboradora

tão valiosa para Harold Ross, o editor fundador da revista. Há uma indicação de sua gentileza ou delicadeza na menção de duas de suas ocupações: escrever livros infantis e cuidar de seus jardins de flores (parágrafo 4). Sua lealdade inabalável permeia todo o obituário e chega a um crescendo no parágrafo 5, onde suas muitas e variadas lealdades são listadas. A designação de vários de seus traços e realizações pessoais contribui para a imagem dela como pessoa, pelo menos de uma maneira geral: "seu ar de autoridade" (parágrafo 1); "uma mulher calma, reservada,

majestosa e bela (tão bela na casa dos oitenta quanto na dos trinta)" (parágrafo 4). Vários detalhes sobre sua formação familiar, educação, vida doméstica e amigos são fornecidos: sabemos que ela foi criada em Brookline, Massachusetts; estudou em Bryn Mawr; tinha uma legião de amigos; casou-se com "o principal redator da New Yorker", E. B. White; era mãe do famoso jornalista esportivo Roger Angell; retirou-se para o Maine; amava jardinagem e flores. Além de sua extraordinária realização em moldar a The New Yorker e promover dezenas de escritores, ela publicou grandes ensaios sobre livros infantis e jardinagem. Se estivéssemos procurando passagens que resumissem sua vida e caráter, iríamos encontrá-las em uma frase do primeiro parágrafo ("uma figura de ordem, certeza, serenidade e firmeza") e na frase final do testemunho de seu marido no parágrafo final ("o espírito penetrante de sua dedicação e diligência"). Na seção "tópicos especiais para o discurso cerimonial", vimos as fórmulas que Aristóteles propôs para potencializar os efeitos do elogio. O escritor desse obituário usou pelo menos três dessas fórmulas: "Mostrar que a pessoa fez algo melhor do que qualquer outra" ("Mais do que qualquer outro editor, exceto o próprio Harold Ross, Katharine White deu à The New Yorker sua forma, definindo seu curso"; "As qualidades de Katharine White como editora não têm paralelo"); "Mostrar que a pessoa alcançou o mesmo sucesso com frequência" (seu sucesso de

297

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO dez anos como editora de ficção da revista, com um período adicional de dois anos após sua aposentadoria); "Mostrar as circunstâncias em que

a pessoa realizou algo" (seu fiel desempenho de seus deveres, apesar da

dor de sua doença durante os últimos vinte anos de sua vida).

Esse obituário exemplifica como procedemos quando queremos elogiar alguém. Comentamos ou discorremos sobre as virtudes, atributos, feitos, realizações e testemunhos que engrandecem a pessoa sendo exaltada. A mesma estratégia básica é usada quando queremos desacreditar

alguém (embora, seja por considerações de caridade ou pelas leis de difamação, raramente vejamos demonstrações públicas de aviltamento de um indivíduo). Os satíricos costumam pintar imagens nada lisonjeiras de tipos de pessoas, mais do que de pessoas específicas, muitas vezes disfarçando o alvo do ataque com um nome fictício. No discurso cerimonial, talvez mais do que nos outros dois tipos de discurso, a natureza do sujeito será o principal fator a determinar o que pode ser dito, pois o sucesso desse tipo de discurso depende principalmente da verdade ou da credibilidade do que se diz. Elogios baseados em detalhes inventados ou exagerados sobre a vida e o caráter de uma pessoa não serão convin-

centes no final.

JAMES MADISON: "O FEDERALISTA N° 10" Em 17 de setembro de 1787, a Constituição dos Estados Unidos foi finalmente redigida e assinada pelos cinquenta membros da Convenção Constitucional da Filadélfia. A Constituição recém-redigida, entretanto, ainda precisava ser ratificada pelas convenções estaduais de pelo menos nove das treze colônias originais. Nós, que consideramos nossa Constituição tão garantida, achamos dificil acreditar que esse documento incomparável teve que ser "vendido" ao

povo da nova confederação de estados. Mas os antifederalistas logo reuniram suas forças para derrotar as ramificações da Constituição, argumentando que o forte governo central estabelecido pela Constituição era uma ameaça à autonomia dos estados, que a Constituição dava muito poder ao chefe do executivo,

que instituía um perigoso sistema de tribunais federais e que abria caminho para tributação opressiva. Cinco pequenos estados, entretanto, ratificaram a

Constituição rapidamente (Delaware, Maryland, New Jersey, Connecticut e Carolina do Sul). A oposição mais formidável veio da Pensilvânia, Massa-

chusetts, Virginia e Nova York. Como Nova York era um estado-chave na

298

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS oposição, Alexander Hamilton, com apenas trinta anos na época, teve a idéia de publicar uma série de artigos refutando as objeções à Constituição e exal-

tando suas virtudes, e pediu a ajuda de James Madison, da Virgínia, e John Jay, de New York. Em uma série de 85 artigos, publicados em vários jornais de

Nova York de outubro de 1787 a abril de 1788, Publius (o pseudônimo adotado para todos os trabalhos) exerceu toda a habilidade retórica do seu dispor para

persuadir a convenção de Nova York a adotar o Constituição. James Madison, que escreveu apenas cerca de um terço dos artigos federalistas (Jay escreveu apenas cinco), foi o autor do n° 1o, que apareceu no New York Packet no dia 23 de novembro de 1787. Esse artigo exemplifica o estilo claro e eloqüente, além da lógica convincente, de Hamilton, Madison e Jay na defesa de sua idéia. A eventual ratificação de Nova York por uma margem estreita foi inconseqüente, porque naquela época os nove estados necessários haviam adotado a Constituição. No artigo que se segue imediatamente a "O Federalista n° 10", Mark Ashin fornece uma análise tópica completa do argumento de Madison. 1. Entre as numerosas vantagens prometidas por uma União bem ide-

alizada, nenhuma merece ser mais meticulosamente desenvolvida do que a sua tendência para quebrar e controlar a violência das facções.

O adepto de governos populares nunca fica mais alarmado quanto ao carácter e destino deles do que quando contempla a sua propensão para

este perigoso vício. Não deixará, portanto, de atribuir o devido valor a qualquer plano que, sem violar os princípios aos quais se devota, providencia um remédio adequado. A instabilidade, a injustiça e a confusão introduzidas nos conselhos públicos têm sido, na verdade, doenças mortais sob cujos golpes os governos populares por todo o lado pereceram, tal como continuam a ser os tópicos favoritos e frutíferos de que os adversários da liberdade extraem as suas mais ardilosas declamações. Os valiosos aperfeiçoamentos introduzidos pelas Constituições americanas nos modelos mais populares, tanto antigos como modernos, certamente que não podem ser admirados em demasia, mas seria uma injustificável parcialidade argumentar que têm evitado o perigo vindo deste lado tão eficazmente como era desejado e esperado! Ouvem-se por todo o lado queixas dos nossos mais considerados e virtuosos cidadãos, igualmente amigos da honestidade pública e privada, e da liberdade pública e pessoal: que os nossos governos são demasiado instáveis; que o bem público é menosprezado nos conflitos de partidos rivais; e que

299

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

as medidas são com demasiada frequência decididas, não de acordo com as normas da justiça e com os direitos do partido minoritário, mas pela força superior de uma maioria interessada e opressora. Por mais ansiosamente que possamos desejar que essas queixas não tenham fundamento, a evidência dos factos conhecidos não nos permite negar que elas sejam em parte verdadeiras. É verdade que, num simples reexame da nossa situação, descobriremos que algumas das aflições que nos esmagam foram erradamente imputadas à operação dos nossos governos; mas descobriremos, ao mesmo tempo, que outras causas não explicam por si sós muitas das nossas mais pesadas desditas, e, em particular, essa

prevalecente e crescente desconfiança face às obrigações públicas, e in-

quietação relativamente aos direitos privados, que ecoam de uma ponta à outra do continente. Isto deve ser principalmente, se não totalmente, o efeito da instabilidade e injustiça com que um espírito faccioso tingiu

as nossas administrações públicas.

2. Por facção entendo um determinado número de cidadãos, quer cons-

tituam uma maioria ou uma minoria face ao todo, que são unidos e animados por algum impulso comum de paixão, ou de interesse, adverso aos direitos dos outros cidadãos, ou aos interesses permanentes e

globais da comunidade. 3. Existem dois métodos para remediar os males das facções: um, eliminar as suas causas; outro, controlar os seus efeitos.

4. Por sua vez, existem dois métodos de eliminar as causas das facções:

um, destruindo a liberdade que é essencial para a existência delas; ou-

tro, dando a cada cidadão as mesmas opiniões, as mesmas paixões e os

mesmos interesses. 5. Do primeiro remédio, nada mais verdadeiro se pode afirmar do que ser ele pior do que a doença. A liberdade está para as facções como o

ar está para o fogo, um alimento sem o qual ele instantaneamente se extingue. Mas não seria menor loucura abolir a liberdade, porque alimenta as facções, do que desejar a supressão do ar, que é essencial à vida

animal, só porque ele dá ao fogo a sua capacidade destruidora.

6. O segundo recurso é tão impraticável como o primeiro seria insensato. Enquanto a razão humana continuar a ser falível e o homem tiver

a liberdade de exercê-la, formar-se-ão diferentes opiniões. Enquanto subsistir a conexão entre a sua razão e o seu amor-próprio, as suas opi-

300

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS niões e as suas paixões influenciar-se-ão reciprocamente umas às outras e as primeiras serão objetos aos quais as últimas se afeiçoarão. A diver-

sidade das faculdades humanas, em que têm origem os direitos de propriedade, não é menos um obstáculo insuperável a uma uniformidade de interesses. A proteção dessas faculdades é o primeiro objetivo do governo. Da proteção de faculdades diferentes e desiguais de adquirir propriedade resulta imediatamente a posse de diferentes graus e espécies de propriedade; e da influência destes nos sentimentos e pontos de vista dos respectivos proprietários segue-se uma divisão da sociedade em diferentes interesses e partidos. 7. As causas latentes de facção estão assim disseminadas na natureza do homem e vemo-las por toda a parte conduzidas a diferentes graus de atividade, segundo as diferentes circunstâncias da sociedade civil: um desvelo por diferentes opiniões a respeito da religião, a respeito do governo, e muitos outros pontos, tanto na especulação como na prática; uma delidade a diferentes chefes, competindo por preeminência e po-

der, ou a pessoas de outros géneros cuja sorte foi interessante para as paixões humanas. Estas causas têm, sucessivamente, dividido a humanidade em partidos, inflamado estes com uma animosidade mútua, e têm-nos tornado muito mais dispostos para provocar e oprimir-se mu-

tuamente do que para cooperar para o bem comum de todos. Tão forte

é esta propensão da humanidade para cair em animosidades mútuas que, quando não se apresenta nenhuma razão de peso, foram suficientes as mais frívolas e extravagantes distinções para despertar paixões

inamistosas e provocar os violentos conflitos. Mas a mais comum e duradoura fonte de facções tem sido a diversa e desigual distribuição de

propriedade. Os que têm e os que não têm propriedade constituíram sempre interesses distintos na sociedade. Os que são credores e os que são devedores enquadram-se numa discriminação semelhante. Um interesse terratenente, um interesse manufatureiro, um interesse mercantil, um interesse financeiro, com muitos interesses menores, desenvolvem-se todos necessariamente nas nações civilizadas, e dividem-nas em

diferentes classes, movidas por diferentes sentimentos e pontos de vista. A regulamentação destes interesses, vários e em interferência, constitui a tarefa principal da Legislação moderna, e envolve o espírito de par-

tido e de facção nas necessárias e ordinárias operações do governo.

fi

301

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 8. A ninguém é permitido que seja juiz em causa própria, porque o seu interesse decerto que influenciaria o seu discernimento, e não é impro-

vável que corrompesse a sua integridade. Com igual, mais ainda, com

maior razão, uma assembléia de homens não serve para ser simultaneamente juiz e parte. E, todavia, o que são muitos dos mais importantes atos de legislação senão outras tantas determinações judiciais, que na verdade não respeitam aos direitos de pessoas singulares, mas respeitam aos direitos de vastos grupos de cidadãos? E o que são as diferentes clas-

ses de legisladores senão advogados e partes nas causas que eles próprios

decidem? É uma lei respeitante a dívidas privadas? Trata-se de uma questão em que os credores estão de um lado e os devedores do outro. A justiça deve manter o equilíbrio entre eles. E, todavia, os partidos são, e

devem ser, os próprios juízes, e deve esperar-se que prevaleça o partido

mais numeroso, ou, por outras palavras, a facção mais poderosa. Devem

as manufaturas domésticas ser encorajadas, e em que medida, por meio de restrições aplicadas às manufaturas estrangeiras? São perguntas que serão decididas de maneira diferente pelas classes terratenentes e manu-

fatureiras, e é provável que nenhuma delas considere apenas a justiça e

o bem público. A distribuição dos impostos pelos vários tipos de bens é um ato que parece requerer a mais rigorosa imparcialidade; e, todavia, talvez não haja ato legislativo em que sejam dadas ao partido predominante tanta oportunidade e tanta tentação para menosprezar as regras

da justiça. Cada centavo com que sobrecarregam os de menos posses é um centavo poupado para as próprias algibeiras. 9. É em vão que se diz que os estadistas esclarecidos serão capazes de harmonizar estes interesses desencontrados, e de os tornar a todos sub-

servientes do bem público. Nem sempre estarão ao leme estadistas es-

clarecidos. E em muitos casos é absolutamente impossível conseguir

essa harmonização sem ter em atenção considerações indiretas e remotas, que raramente prevalecerão sobre o interesse imediato que um partido pode obter por menosprezar os direitos de outro ou o bem de

todos. 10. A inferência a que somos conduzidos é a de que as causas da facção

não podem ser eliminadas; e que o lenitivo só pode ser procurado nos meios para controlar os seus efeitos.

302

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS 11. Se uma facção não tem a maioria, o lenitivo é fornecido pelo princí-

pio republicano, que permite à maioria derrotar os sinistros planos das facções através de votações regulares. A facção pode emperrar a administração, pode convulsionar a sociedade, mas será incapaz de fazê-lo mascarando a sua violência sob as formas da Constituição. Por outro lado, quando a facção possui a maioria, a forma de governo popular permite-lhe sacrificar à sua paixão ou interesse, tanto o bem público como os direitos dos outros cidadãos. Proteger o bem público e os direitos privados contra o perigo de uma facção desse tipo, e preservar simultaneamente o espírito e a forma do governo popular é, pois, o grande objetivo para que se orientam as nossas investigações. Deixem-me acrescentar que é o grande desiderato, o único por meio do qual esta forma

de governo pode ser salva do opróbrio que tão longamente pesou sobre ela, e ser recomendada à estima e à escolha da humanidade. 12. Por que meios se pode atingir este objetivo? Evidentemente por um

de entre dois únicos meios. Ou a existência ao mesmo tempo da mesma paixão ou interesse numa maioria tem de ser impedida; ou a maioria,

tendo essa paixão ou interesse coexistente, tem de ser, por meio do seu número e situação local, tornada incapaz de se concertar e levar a efeito esquemas de opressão. Se for tolerado que coincidam o impulso e a oportunidade, sabemos bem que não se poderá confiar em motivos morais ou religiosos como constituindo um controle adequado. Estes não funcionam assim na injustiça e violência dos indivíduos, e perdem

a sua eficácia em proporção ao número dos que juntamente se reúnem,

isto é, na proporção em que a sua eficácia se torna necessária.

13. Desta maneira de ver o assunto pode ser concluído que uma democracia pura, termo com que pretendo referir-me a uma sociedade consistindo num pequeno número de cidadãos, que se reúnem e administram o governo em pessoa, não pode admitir um remédio para as ações prejudiciais das facções. Em quase todos os casos, uma maioria do todo sentirá uma paixão ou terá um interesse comum; a comunicação e a concertação resultam da própria forma do governo; e não existe nada para manter em respeito os incitamentos a sacrificar o partido mais fraco ou um indivíduo odioso. Por isso é que essas democracias deram sempre um espetáculo de turbulência e discórdia, e nunca foram consideradas compatíveis com a segurança pessoal ou os direitos de

303

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

propriedade, e tiveram em geral vidas tão curtas como violentas foram as suas mortes. Os políticos teóricos, que patrocinaram essa espécie de

governo, supuseram erradamente que, dando aos homens uma perfeita

igualdade de direitos políticos, estes ficariam, ao mesmo tempo, perfeitamente igualizados e assimilados nos bens, nas opiniões e nas paixões.

14. Uma república, e refiro-me a um governo no qual existe o esquema de representação, abre uma perspectiva diferente, e promete o remédio que temos estado a procurar. Examinemos os pontos nos quais ela varia em relação à democracia pura, e compreenderemos tanto a natureza do remédio como a eficácia que terá, derivada da União.

15. Os dois grandes pontos de diferença entre uma democracia e uma república são, primeiro, a delegação do governo, na última, a um pequeno número de cidadãos eleitos pelos restantes; segundo, a maior quantidade de cidadãos e a maior esfera de território sobre o qual a última se pode estender.

16. O efeito da primeira diferença é, por um lado, refinar e ampliar os pontos de vista do público, filtrando-os através de uma assembléia escolhida de cidadãos, cuja sageza pode discernir melhor o verdadeiro interesse do seu país, e cujo patriotismo e amor da justiça terá menor probabilidade de sacrificar esse interesse a considerações temporárias ou parciais. Com tais normas, pode muito bem acontecer que a opinião pública, expressa pelos representantes do povo, seja mais consonante com o bem público do que se fosse expressa pelo próprio povo, reunido

para o efeito. Por outro lado, o efeito pode ser inverso. Os homens de temperamento faccioso, com preconceitos locais, ou com desígnios sinistros, podem, por meio da intriga, da corrupção ou de outros meios, começar por obter os sufrágios, e em seguida trair os interesses, do povo. A questão resultante é saber se as repúblicas pequenas são mais favoráveis do que as grandes à eleição dos guardiães adequados do bem-estar público, e é claramente decidida em favor das últimas por causa de duas considerações óbvias.

17. Em primeiro lugar, deve notar-se que, por mais pequena que possa ser a república, os representantes não devem ser demasiado poucos, de maneira a precaver contra as cabalas de uma minoria; e que, por maior que possa ser, devem ser limitados a um certo número, de maneira a precaver o tumulto das multidões. Por este motivo, não sendo o

304

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

número de representantes nos dois casos proporcional ao número dos constituintes, e sendo proporcionalmente maior na república pequena, segue-se que, se a proporção de pessoas capazes na república maior não for inferior à da mais pequena, a primeira oferecerá mais opções, e, conseqüentemente, uma maior probabilidade de uma boa escolha

18. Em seguida, como cada representante será escolhido por um maior número de cidadãos na república grande em comparação com a república pequena, será mais árduo para os candidatos sem mérito a prática com sucesso das artes viciosas por meio das quais as eleições são tantas vezes ganhas; e sendo mais livres os sufrágios do povo, será mais provável que se centrem em homens que possuem o mais atraente dos méritos e as personalidades mais expansivas e dotadas.

19. Deve confessar-se que nisto, como em muitos outros casos, há um termo médio, em ambos os lados do qual se encontrarão inconvenien-

tes. Alargando demasiado o número de eleitores, faz-se com que os representantes estejam pouco familiarizados com todas as suas circuns-

tâncias locais e interesses menos importantes; tal como, reduzindo-os demasiado, se tornam aqueles indevidamente afeitos a essas circunstân-

cias e interesses, e muito pouco capazes para compreender e promover objetivos grandes e nacionais. A Constituição federal constitui uma feliz combinação a este respeito; os interesses grandes e globais são confiados à legislatura nacional, os locais e particulares às dos Estados.

20. O outro ponto de diferença é que o número de cidadãos e a extensão de território que podem ser abrangidos pelo governo republicano são maiores do que pelo governo democrático, e é principalmente esta circunstância que torna a combinação facciosa menos de temer

no primeiro caso do que no segundo. Quanto menor é a sociedade, menores serão provavelmente os partidos e interesses distintos que a compõem; quanto menores os partidos e interesses distintos, mais fre-

quentemente será encontrada uma maioria de um só partido; e quanto

menor o número de indivíduos que formam uma maioria e menor a área em que estão situados, mais facilmente se concertarão e executarão os seus planos de opressão. Alargue- se a esfera e admitir-se-á nela uma

maior variedade de partidos e interesses; far-se-á com que seja menos

provável que uma maioria venha a ter um motivo comum para usurpar os direitos dos outros cidadãos; ou, se existir um tal motivo comum,

305

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO será mais difícil para todos os que o sentem a descoberta da sua própria

força, e a atuação em uníssono uns com os outros. Além de outros

impedimentos, pode observar-se que, onde existe uma consciência de desígnios injustos ou desonrosos, a comunicação é sempre contida pela desconfiança na proporção do número daqueles cuja concorrência é necessária. 21. Por este motivo, é claramente patente que a mesma vantagem que uma república tem sobre uma democracia, no controlo dos efeitos da facção, é desfrutada por uma grande república mais do que por uma

pequena, é desfrutada pela União mais do que pelos Estados que a compõem. Consiste esta vantagem na substituição dos representantes, cujos pontos de vista esclarecidos os põem acima dos preconceitos locais e dos esquemas de injustiça? Não se negará que a representação da

União possuirá provavelmente esses dotes indispensáveis. Consiste na maior segurança proporcionada por uma maior variedade de partidos, contra a eventualidade de um partido qualquer ser capaz de exceder em número e oprimir os restantes? A acrescida variedade de partidos abran-

gida pela União aumentará em igual medida essa segurança. Consiste, por fim, nos maiores obstáculos opostos à concertação e realização dos

desejos secretos de uma maioria injusta e interesseira? Aqui, uma vez

mais, a extensão da União dá-lhe a vantagem mais palpável.

22. A influência de chefes facciosos pode despertar uma chama no interior dos seus Estados particulares, mas será incapaz de espalhar uma con agração generalizada através dos outros Estados; uma seita religiosa

pode degenerar numa facção política numa parte da Confederação; mas a variedade de seitas dispersas por toda a superfície dela deve proteger as assembléias nacionais contra qualquer perigo com essa origem;

uma paixão pelo papel-moeda, pela abolição das dívidas, pela igual

divisão da propriedade, ou por qualquer outro projeto impróprio ou malévolo, será menos capaz de se infiltrar na totalidade do corpo da União do que num membro particular dela; na mesma proporção em que uma doença dessas infecta um condado ou distrito particular mais provavelmente do que um Estado inteiro.

23. Por conseguinte, na extensão e conveniente estrutura da União contemplamos um remédio republicano para as doenças que mais afetam o governo republicano. E conformemente ao grau de prazer e orgulho

fl

306

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS que sentimos em ser republicanos, assim deveria ser o nosso desvelo em

acalentar o espírito e apoiar a reputação dos federalistas.

Publius (1787)

MARK ASHIN: O ARGUMENTO DE "O FEDERALISTA N° 10", DE MADISON? Na edição de janeiro da College English, alguns membros da equipe de inglês da Universidade de Chicago questionaram o valor de tentar ensinar argumentação em um curso de redação concentrando-se exclusivamente na técnica da lógica formal. A alegação deles era que, embora o ensino das formas indutiva e dedutiva da lógica possibilitasse ao aluno julgar a validade dos argumentos já construídos, ele não supre sua maior necessidade: uma técnica para construir argumentos. Após uma análise desse problema, eles recomendaram a introdução de um sistema retórico atualizado, com base no que os retóricos clássicos chamam de "tópicos", um termo que pode ser traduzido como "as fontes das quais os argumentos são extraídos". As quatro fontes de argumentação que eles descreveram em detalhes (e que os funcionários ingleses da universidade testaram na prática) são as idéias de gênero ou de nição, consequência, semelhança e diferença e autoridade. Os leitores interessados na teoria por trás desse ponto de vista podem ler o

artigo em questão.' No entanto, mesmo aqueles que estão convencidos

de que essa nova abordagem ao problema do ensino da argumentação parece promissora em teoria certamente terão muitas perguntas sobre como essa abordagem retórica é aplicada em sala de aula. O objetivo do presente artigo é satisfazer essa curiosidade, pelo menos em parte,

aplicando considerações "tópicas" à análise e interpretação de um texto de sala de aula, uma famosa obra-prima da polêmica: O Federalista n°

10, de Madison. Esse artigo federalista específico, sobre o controle das facções nos governos populares, há muito alcançou a imortalidade política como 7 College English, xv (outubro de 1953), 37-45. Reproduzido com permissão do National Council of Teachers of English e do professor Ashin. 8 Bilsky, Hazlert, Streeter e Weaver, "Looking for an Argument", College English, XIV (janeiro de 1953), 210-16. Copyright 1953 do National Council of Teachers of English. Reproduzido com

permissão

fi

307

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO uma defesa clássica da teoria do republicanismo. Sua utilidade como instrumento de ensino foi igualmente demonstrada: leitura obrigatória nos cursos de ciências cívicas e sociais, o artigo dá aos alunos uma com-

preensão clara das bases teóricas de nossa Constituição, servindo ao

professor de lógica e argumentação como um exemplo convincente do

poder do raciocínio silogístico. Praticamente todos os textos da história

social e intelectual dos Estados Unidos mencionam esse artigo para ilustrar a posição federalista durante a controvérsia política em torno da adoção da Constituição. Até Vernon L. Parrington, cujo grande livro é uma cruzada contra o conservadorismo federalista, prestou homena-

gem a esse artigo como um inimigo digno, chamando-o de "notável décimo número, que resume em poucas páginas praticamente toda a teoria federalista da ciência política". Não há como negar que os modos convencionais de análise lógica podem ajudar a revelar a eficácia do raciocínio de Madison, uma vez que o ensaio é praticamente feito sob

encomenda como uma amostra do silogismo em operação. No entanto,

acredito que complementar uma análise formal com uma consideração das principais fontes das quais o autor retira o material para seus

argumentos pode enriquecer incomensuravelmente o manejo da dedução pelos professores de inglês, uma vez que apresenta, em um nível compreensível a todos, o modo de pensar característico de Madison no

decorrer de suas demonstrações.

Como será visto, as principais fontes de argumento para Madison

são definições e consequências. Em qualquer declaração de teoria política, definições cuidadosas de termos-chave, usadas tanto como pontos de partida (ver a definição de "facção" no parágrafo 2) quanto como estágios do argumento (ver a definição implícita de "homem" no parágrafo 6), servem para esclarecer uma posição. Além disso, para induzir o público a aceitar uma determinada linha de ação recomendada, não existe motivo mais convincente do que aquele que enfatiza as consequências positivas de adotar nossa proposta e as consequências negativas de adotar qualquer outra idéia. O problema que Madison aborda e a direção de seu raciocínio são indicados em suas frases iniciais: Entre as numerosas vantagens prometidas por uma União bem idealizada, ne-

nhuma merece ser mais meticulosamente desenvolvida do que a sua tendência

308

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS para quebrar e controlar a violência das facções. O adepto de governos popula-

res nunca fica mais alarmado quanto ao caráter e destino deles do que quando contempla a sua propensão para este perigoso vício. Não deixará, portanto, de atribuir o devido valor a qualquer plano que, sem violar os princípios aos quais

se devota, providencia um remédio adequado.

No entanto, a declaração explícita de seu objetivo é reservada para o

parágrafo 11, depois que ele descartou a tese visionária de que as causas

da facção podem ser eliminadas e voltou-se para a tarefa prática de descrever como controlar seus efeitos. Em primeiro lugar, indicando que uma facção majoritária, e não minoritária, é o principal perigo no governo popular, ele afirma: Proteger o bem público e os direitos privados contra o perigo de uma facção

desse tipo, e preservar simultaneamente o espírito e a forma do governo popular é, pois, o grande objetivo para que se orientam as nossas investigações.

Madison, portanto, propõe-se a defender um projeto particular de governo que fornecerá um "remédio republicano" para os distúrbios fac-

cionais promovidos pelo governo popular, enquanto, ao mesmo tempo, preserva o espírito e a forma de governo popular. De um ponto elevado na escala da abstração, esse objetivo parece impossível, pois parece exigir a eliminação de um efeito, preservando a causa que leva a esse efeito. A própria natureza desse objetivo exige a discriminação cuidadosa de causas e efeitos, característica da argumentação de Madison. O padrão formal da lógica de Madison é uma série de silogismos do tipo "isso ou aquilo", que, ao eliminar as alternativas rejeitadas, restringe progressivamente a investigação à conclusão particular de que

uma república federal, como aquela delineada na Constituição proposta, pode controlar melhor os efeitos da facção. Em seu primeiro parágrafo, ele apresenta uma justificativa retórica convincente para sua preocupação com os perigos das facções. De que campo geral de consideração da fonte do argumento ele poderia derivar melhor os detalhes que deixarão seus leitores igualmente preocupados? As experiências de seis anos de governo sob os Artigos da Confederação (experiências compartilhadas íntima e dolorosamente pela maioria de seu público)

309

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

podem ser generalizadas em uma declaração das consequências' que resultam da operação das facções em um ambiente de liberdade. Então

começa a acusação. Os governos populares revelam uma propensão para "este perigoso vício", as facções. Uma vez existentes, as facções levam diretamente à instabilidade, injustiça e confusão nos conselhos públicos, o que, por sua vez, acaba por provocar a morte dos governos populares, que "continuam a ser os tópicos favoritos e frutíferos" de que os adversários da liberdade extraem as suas mais ardilosas declamações". Embora as várias constituições estaduais da América sejam um

aprimoramento dos modelos populares do mundo antigo e moderno, elas não impediram o surgimento de conflitos faccionais na forma de partidos rivais, nem controlaram efetivamente sua disseminação. É importante notar que, em seu parágrafo introdutório, Madison estabelece a dicotomia básica por trás de todo o seu argumento. Os termos opostos são justiça", "o bem público" e "direitos das minorias", de um lado, e, do outro, "facções majoritárias". Ouvem-se por todo o lado queixas dos nossos mais considerados e virtuosos cidadãos, igualmente amigos da honestidade pública e privada, e da liberdade pública e pessoal: que os nossos governos são demasiado instáveis; que o bem público é menosprezado nos conflitos de partidos rivais; e que as medidas são com demasiada frequência decididas, não de acordo com as normas da justiça e com os direitos do partido minoritário, mas pela força superior de uma maioria interessada e opressora.

A mesma dicotomia fundamenta a definição de facção no parágrafo 2: Por facção entendo um determinado número de cidadãos, quer constituam uma maioria ou uma minoria face ao todo, que são unidos e animados por algum impulso comum de paixão, ou de interesse, adverso aos direitos dos outros cidadãos, ou aos interesses permanentes e globais da comunidade.

Tendo demonstrado as consequências desastrosas das facções no governo popular e tendo definido esse termo-chave, Madison pode pros9 Os termos "definição", "conseqüências", "semelhança-diferença" e "autoridade-testemunho" foram colocados em itálico para ressaltar o uso das fontes de argumentação.

10 O uso do termo "tópicos" por Madison nesta citação segue a mesma tradição clássica que motiva presente artigo. "Instabilidade", "injustiça" e "confusão" são simplesmente consequências

específicas das facções nos governos populares.

310

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

seguir, no parágrafo 3, para o desenvolvimento lógico de seu argumento. O silogismo alternativo aí estabelecido controla a direção da idéia no resto do ensaio. "Existem dois métodos para remediar os males das facções: um, eliminar as suas causas; outro, controlar os seus efei-

tos". Isso nos apresenta um silogismo com a seguinte forma: Tanto A [podemos eliminar as causas] quanto B [podemos controlar os efeitos).

A premissa menor, desenvolvida na primeira metade do argumento de Madison [parágrafos 3-10], é que não podemos eliminar as causas das facções, uma vez que elas estão baseadas na natureza do homem: Não A [não podemos eliminar as causas]. Segue-se que devemos dedicar nossos esforços para controlar os efeitos: Logo, в [podemos controlar os efeitos].

Uma análise do argumento para a premissa menor revela que A, a tentativa de eliminar as causas das facções, é composta de duas alternativas: Por sua vez, existem dois métodos de eliminar as causas das facções: um, destruindo a liberdade que é essencial para a existência delas; outro, dando a cada

cidadão as mesmas opiniões, as mesmas paixões e os mesmos interesses.

Essas alternativas podem ser simbolizadas formalmente como A, e A. A, (destruir a liberdade) é descartada fácil e rapidamente por meio de

uma analogia ou, em outras palavras, por um argumento baseado nas

semelhanças e diferenças: A liberdade está para as facções como o ar está para o fogo, um alimento sem o qual ele instantaneamente se extingue. Mas não seria menor loucura abolir a

liberdade, porque alimenta as facções, do que desejar a supressão do ar, que é essencial à vida animal, só porque ele dá ao fogo a sua capacidade destruidora.

A primeira proporção analógica [Liberdade: Facções; Ar: Fogo], que logicamente levaria à inferência de que devemos destruir a liberdade, uma vez que leva a facções, é imediatamente modificada pela alteração do segundo e quarto termos na proporção [Liberdade: Vida Política;

311

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Ar: Vida Animal]. A loucura de abolir a liberdade como uma cura para as facções é evidente. Madison não precisa dedicar tempo a esse argumento, uma vez que parte de seu objetivo fundamental era preservar o

espírito e a forma de governo popular. Qualquer medida que curasse as facções ao abolir a liberdade é, como ele mesmo diz, um remédio pior do que a doença."

O argumento contra A, [dar a cada cidadão as mesmas opiniões, as mesmas paixões e os mesmos interesses é muito mais complexo e merece um estudo mais aprofundado. Madison conclui que essa alternativa é impraticável, e suas razões para essa conclusão estão relacionadas à sua visão da natureza humana ou, em outras palavras, de proposições extraídas da fonte de definição. Nos parágrafos 6-10, Madison usa os princípios da psicologia lockeana para provar que o homem, por natureza, possui faculdades que tornam os conflitos faccionais inevitáveis. Os homens têm uma razão falível que, em um ambiente de liberdade, levará à formação de opiniões diferentes. Existe uma conexão entre a razão e o amor-próprio que irá direcionar as paixões criadas por este em apoio às opiniões resultantes daquela. Além das características fundamentais (razão e amor-próprio), os homens possuem uma série de outras faculdades que são a origem de diferentes direitos de propriedade. Uma vez que o objetivo primordial do governo é proteger essas faculdades diversas e, assim, proteger a posse de diferentes graus e espécies de propriedade, e uma vez que diversos interesses de propriedade inevitavelmente influenciarão os sentimentos e pontos de vista dos respectivos

proprietários, a sociedade será sempre dividida em diferentes interesses e partidos. Como resultado, "as causas latentes de facção estão assim disseminadas na natureza do homem". No parágrafo 7 Madison desenvolve as consequências da definição que ele estabeleceu. Tudo o que é semeado na natureza do homem brotará em tudo o que ele fizer. Essas causas latentes revelam-se em todos os aspectos da sociedade civil. As facções podem resultar de um desvelo por diferentes opiniões a respeito da religião, a respeito do governo e, na verdade, de todos os assuntos especulativos e práticos da humanidade; de um apego emocional a líderes ambiciosos; ou de conflitos até mesmo 11Essa analogia, por mais simples que pareça, pode abrir caminho para uma refutação devastadora do argumento de que o Estado totalitário ou de partido único é melhor do que um governo livre, porque pode eliminar facções.

312

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

por distinções frívolas e extravagantes. No entanto, "a mais comum e duradoura fonte de facções tem sido a diversa e desigual distribuição de propriedade". E aqui Madison expressa simples e diretamente uma visão da base econômica do governo político que deriva de uma tradição muito mais antiga do que a de Marx: Os que têm e os que não têm propriedade constituíram sempre interesses dis-

tintos na sociedade. Os que são credores e os que são devedores enquadram-se numa discriminação semelhante. Um interesse terratenente, um interesse manufatureiro, um interesse mercantil, um interesse financeiro, com muitos interesses menores, desenvolvem-se todos necessariamente nas nações civilizadas, e dividem-nas em diferentes classes, movidas por diferentes sentimentos e pontos de vista. A regulamentação destes interesses, vários e em interferência, constitui a tarefa principal da Legislação moderna, e envolve o espírito de partido e de facção nas necessárias e ordinárias operações do governo.

A última proposição (que existe um espírito de facção envolvido nas operações ordinárias do governo) requer que consideremos outra esfera

da definição de homem apresentada anteriormente, para refutar uma possível objeção. Alguém pode contra-argumentar que, uma vez que a natureza dos homens os divide em partes conflitantes, é tarefa do governo, de alguma forma, posicionar-se acima dos conflitos e resolvê-los

no interesse da justiça e do bem público. Essa tese implicaria que os legisladores são superiores aos homens comuns, por não serem influenciados por seus próprios interesses. Para refutar esse possível ponto de

vista, Madison continua no parágrafo 8 com uma definição dos dois principais elementos do governo: os atos legislativos e os legisladores. Os atos legislativos, como as leis relativas a dívidas privadas, taxas al-

fandegárias e impostos sobre a propriedade, são definidos por Madison como determinações judiciais relativas aos direitos de vastos grupos de

cidadãos; e os legisladores são definidos como advogados e partes nas causas que eles próprios decidem. O amor-próprio dos legisladores resultará inevitavelmente em decisões que representam, não os princípios da justiça abstrata, mas seus próprios interesses partidários. Segundo

Madison, é inútil depender da influência de "estadistas esclarecidos" para ajustar o conflito de interesses diversos à luz da justiça e do bem público. Além do fato de que esses estadistas nem sempre estarão no

313

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO comando, em muitos casos, as questões legislativas serão tão complexas e urgentes que será quase impossível, para os estadistas, agir de maneira

esclarecida. Assim, a primeira metade do artigo, consistindo em dois argumentos poderosos baseados em definições de homem e de governo, levou à conclusão de que os cidadãos não podem ser iguais em suas paixões, opiniões e interesses. Como resultado, "a inferência a que somos conduzidos é a de que as causas da facção não podem ser eliminadas; e que o lenitivo só pode ser procurado nos meios para controlar os seus efeitos". Se olharmos novamente para o silogismo alternativo: Tanto A [podemos eliminar as causas] quanto B [podemos controlar os efeitos),

Não A, Logo, B, veremos que o argumento da semelhança e diferença (contra A,) e o ar-

gumento da definição (contra A) forneceram suporte para a premissa menor: não podemos eliminar as causas da facção. O restante do ensaio de Madison é dedicado a fundamentar a conclusão: logo, podemos controlar seus efeitos.

O argumento a favor de B é muito mais complexo do que o argu-

mento contra A, indicando a orientação prática de Madison, como teórico político, ao controle dos efeitos, não à eliminação das cau-

sas. Eliminar as causas de algo é uma alternativa drástica, mas superficialmente simples, ao passo que controlar os efeitos geralmente

envolve uma variedade de métodos incertos, cujos graus de sucesso

dependem de uma multiplicidade de fatores que requerem uma análise cuidadosa.

Antes de abordar o problema dos meios adequados para controlar os efeitos das facções, Madison esclarece ainda mais a questão distin-

guindo entre os perigos resultantes de facções minoritárias e majoritárias. Essa distinção fundamental, como vimos, foi estabelecida na definição inicial de "facção" no parágrafo 2: "Um determinado número de cidadãos, quer constituam uma maioria ou uma minoria face ao todo [...]". No parágrafo 11, Madison usa outro argumento de definição para descartar os perigos de uma facção minoritária:

314

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS Se uma facção não tem a maioria, o lenitivo é fornecido pelo princípio republicano, que permite à maioria derrotar os sinistros planos das facções através de votações regulares.

Se isso soa como indiferença diante de um problema sério que atormenta qualquer Estado, Madison mostra-se ciente do que uma minoria fanática é capaz de fazer em uma sociedade livre, mas também despre-

ocupado. "A facção pode emperrar a administração, pode convulsionar a sociedade, mas será incapaz de fazê-lo mascarando a sua violência sob

as formas da Constituição". O perigo de uma facção minoritária, por

mais sério que seja, está no domínio da administração prática e pode, na pior das hipóteses, ser eliminado pelo poder político do Estado. Por outro lado, quando a maioria do povo une-se em uma facção, a própria forma de governo popular permite que essa facção atropele os direitos de outros cidadãos e sacrifique o bem público à sua paixão dominante. Aqui, exatamente, residia a preocupação dos teóricos federalistas. Como a maioria, operando em um clima de agressão repentina e combinada, pode ser impedida de violar os direitos das minorias e os interesses gerais da comunidade? A importância crucial dessa questão para Madison é indicada pelo fato de que, imediatamente após a distinção entre facção minoritária e facção majoritária no parágrafo II, ele explicita o objetivo de seu ensaio: Proteger o bem público e os direitos privados contra o perigo de uma facção desse tipo, e preservar simultaneamente o espírito e a forma do governo popular é, pois, o grande objetivo para que se orientam as nossas investigações.

O argumento na segunda metade do ensaio envolve a resposta a duas questões: (1) Em teoria, quais são os melhores meios de controlar os efeitos da facção majoritária? e (2) Qual forma de governo popular é mais capaz de colocar esses meios em prática? Na forma, o segundo argumento principal assemelha-se ao primeiro, pois também começa com uma divisão de alternativas. Existem dois meios para controlar os efeitos da facção majoritária: Ou a existência ao mesmo tempo da mesma paixão ou interesse numa maioria tem de ser impedida; ou a maioria, tendo essa paixão ou interesse coexistente,

315

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO tem de ser, por meio do seu número e situação local, tornada incapaz de se concertar e levar a efeito esquemas de opressão.

Essas alternativas podem ser simbolizadas como B, e B. Para uma ima-

gem verdadeira do procedimento lógico de Madison, é importante notar que, no primeiro argumento, tanto A, como A, foram rejeitados, dando-nos, assim, uma premissa menor negativa. No entanto, a conclusão é positiva. Isso significa que tanto B, quanto B, são meios aceitáveis de prevenção da opressão da maioria, com B, atuando como um método auxiliar no caso de ser impossível alcançar B. Usando esses dois métodos como padrões de julgamento, Madison pode voltar sua atenção à análise das duas principais formas de governo popular, a democracia pura e a república, para ver qual, por natureza, pode controlar melhor os efeitos da facção majoritária. Novamente usando a fonte de definição, Madison conclui que uma democracia pura, "termo com que pretendo referir-me a uma sociedade consistindo num pequeno número de cidadãos, que se reúnem e administram o governo em pessoa, não pode admitir um remédio para as ações prejudiciais das facções". Tal governo, como sua forma permite a criação e a afirmação imediata de uma paixão ou interesse da maioria, será capaz de sacrificar os direitos das minorias ou mesmo de indivíduos odiosos à maioria. Madison talvez tenha pensado na condenação de Sócrates pela maioria dos cidadãos atenienses, uma vez que baseia sua análise teórica aqui em uma referência à história: Por isso é que essas democracias deram sempre um espetáculo de turbulência

e discórdia, e nunca foram consideradas compatíveis com a segurança pessoal ou os direitos de propriedade, e tiveram em geral vidas tão curtas como violentas foram as suas mortes.

O efeito geral desse argumento é semelhante ao da primeira metade do ensaio, uma vez que a democracia pura falha porque acredita que, ao tornar todos os homens politicamente iguais, pode igualar seus bens, suas opiniões e suas paixões. Madison já descartou essa esperança

visionária. Por definição, uma república difere de uma democracia pura em dois

aspectos importantes: em sua forma e na magnitude de seu possível funcionamento. É uma forma de governo popular em que o poder é

316

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS delegado a representantes eleitos pelo povo e, portanto, pode ser esten-

dido a um maior número de cidadãos e a uma área maior do que em uma democracia pura. As definições dessas duas formas de governo popular preparam o caminho para o raciocínio bastante complicado que começa no parágrafo 16 e vai até o fim. Esses parágrafos podem ser relacionados ao resto do argumento considerando-os como afirmações detalhadas das consequências resultantes dos dois principais pontos de diferença entre uma democracia e uma república. Os parágrafos 16-19 lidam com os efeitos da diferença na forma, o parágrafo 20, com a diferença na magnitude. A diferença formal (o princípio do poder de delegação) não oferece, por si só, uma garantia de que as facções majoritárias serão controladas.

Atuando como causa, pode produzir efeitos opostos. Quando as opiniões do povo são filtradas por um corpo de representantes que pode ser influenciado pelo patriotismo e pelo amor à justiça, o processo pode resultar no refinamento e na ampliação das opiniões públicas e, prova-

velmente, levar a decisões que promovam o bem público. No entanto, o efeito pode ser facilmente invertido. Como diz Madison: Os homens de temperamento faccioso, com preconceitos locais, ou com desígnios sinistros, podem, por meio da intriga, da corrupção ou de outros meios, começar por obter os sufrágios, e em seguida trair os interesses, do povo.

Uma vez que o governo de delegação por si só não fornece certeza de que as facções majoritárias podem ser controladas, Madison, então,

prossegue para alguns corolários, perguntando em que tipo de repú-

blica, pequena ou grande, elegem-se melhores legisladores. Os parágrafos 17 e 18 apresentam duas considerações que decidem a questão a favor da grande república. Fundamentalmente, esses dois parágrafos apresentam as prováveis consequências da menor proporção entre representantes e constituintes que caracteriza a grande república em contraste com a pequena. Um exemplo hipotético esclarecerá o raciocínio bastante próximo desses parágrafos. Madison parte do pressuposto de que, independentemente do tamanho da república, os representantes devem ser numerosos o suficiente para se proteger das cabalas de alguns e limitados o suficiente para evitar o tumulto das multidões. Suponhamos que o intervalo de um órgão legislativo eficiente seja de

317

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 100 a 500 representantes. Se o menor número, 100, for selecionado pe-

los constituintes de uma pequena república, digamos 10.000 eleitores,

a proporção é de 1:100. Se o maior número, 500, for selecionado por 5.000.000 de eleitores, a proporção é de 1:10.000. Portanto, se a pro-

porção de homens capazes for a mesma em ambos os Estados, a grande

república apresentará uma escolha muito mais ampla e, conseqüentemente, maior probabilidade de uma escolha adequada. A segunda consideração a favor de uma república grande é que, uma vez que cada representante será eleito por muito mais votos, haverá menos chance

de que os eleitores sejam enganados por candidatos indignos usando

as artimanhas do demagogo. A força do argumento do parágrafo 17 baseia-se somente em razões numéricas. Haverá mais homens capazes

em uma grande república para fazer uma escolha sensata. O parágrafo 18 acrescenta a consideração de que será mais difícil enganar a muitos do que enganar a poucos.

Madison, então, volta à segunda diferença principal entre uma democracia e uma república: o maior número de cidadãos e a maior extensão de território que abrange a forma republicana. E aqui ele resume as consequências de suas definições de modo a enfatizar novamente a superioridade de uma república sobre a democracia, por um lado, e de uma grande república sobre uma pequena, por outro: Quanto menor é a sociedade, menores serão provavelmente os partidos e interesses distintos que a compõem; quanto menores os partidos e interesses distintos, mais freqüentemente será encontrada uma maioria de um só partido; e quanto menor o número de indivíduos que formam uma maioria e menor a área em que estão situados, mais facilmente se concertarão e executarão os seus planos de opressão. Alargue-se a esfera e admitir-se-á nela uma maior va-

riedade de partidos e interesses; far-se-á com que seja menos provável que uma

maioria venha a ter um motivo comum para usurpar os direitos dos outros cidadãos; ou, se existir um tal motivo comum, será mais difícil para todos os

que o sentem a descoberta da sua própria força, e a atuação em uníssono uns

com os outros.

Assim, uma grande república pode controlar os efeitos das facções me-

lhor do que qualquer outra forma de governo popular e "na extensão

e conveniente estrutura da União contemplamos um remédio republi-

318

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS cano para as doenças que mais afetam o governo republicano". Madison

conclui identificando o verdadeiro republicanismo com a defesa federalista da Constituição proposta. O poderoso apelo de Madison por uma república federal pode ser sentido mais fortemente quando as fontes de seu argumento são trazidas à luz e suas proposições particulares são vistas na forma dedutiva, que passa implacavelmente de suposições e premissas para conclusões. Muitos professores de inglês ficarão satisfeitos em esclarecer os métodos argumentativos dos quais O Federalista n° 10 deriva seu poder lógico. Mas outros, talvez aqueles com interesse em teoria política, desejarão que seus alunos examinem as suposições e questionem as conclusões do argumento de Madison. Embora possíveis refutações estejam além do escopo deste artigo, uma compreensão das fontes pode ajudar a delinear algumas linhas de abordagem promissoras. Por exemplo, a dicotomia

fundamental estabelecida por Madison é entre o "bem público", por um lado, e as "facções majoritárias", por outro. Madison é cuidadoso em definir a que se opõe, mas o termo "bem público" permanece um ideal indefinido, que controla seus julgamentos, mas nunca é definido. Para aqueles de nós que, quase sem pensar, identificam o bem público

com a vontade da maioria, a análise de Madison parece chocantemente

antidemocrática. Cabe a pergunta: Como o bem público pode ser alcançado (ou, neste caso, conhecido) se a facção majoritária é conside-

rada o principal perigo em uma república? Outro ponto de possível refutação repousa na definição cética de homem nos parágrafos 6 e 7. Uma definição jeffersoniana ou talvez até crista do homem levaria a conclusões diferentes? Finalmente, algumas questões poderiam ser levantadas sobre a superioridade das grandes repúblicas de produzir le-

gisladores de maior qualidade do que as pequenas. Madison argumenta que os representantes nacionais seriam, muito provavelmente, melhores do que aqueles em uma legislatura estadual. No entanto, podemos perguntar se nosso Congresso hoje pode se comparar em qualidade com a muito menor Convenção Constitucional ou, se tal comparação for

injusta, mesmo com o Congresso da época de Madison. Essas perguntas, e outras, seriam direcionadas para despertar o interesse do aluno não apenas no assunto vital do artigo de Madison, mas também nos rigores instigantes do procedimento lógico. Com a reconstrução passo a passo do argumento de Madison, o aluno pode ver

319

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO como criar um impressionante artigo de retórica. Ao estudar as fontes

de argumentação de Madison e verificar como as formas de raciocínio silogístico são preenchidas com material extraído dos reinos da teoria e da experiência, o escritor estudante, diante do desafio de apoiar uma proposição, pode aprender a usar essas idéias direcionadoras, as fontes, para tornar seus próprios argumentos mais ricos, mais controlados e, em última análise, mais convincentes.

EDMUND BURKE: "CARTA A UM NOBRE SENHOR" Em 1794, após o julgamento de Warren Hastings, no qual ele havia sido um dos implacáveis promotores, Edmund Burke (1729-97) aposentou-se da Câmara dos Comuns, onde serviu por quase trinta anos, e seu filho Richard foi nomeado para seu lugar. Como recompensa por seu longo tempo de serviço no governo, Burke foi indicado para a nobreza, com o título de Lord Beaconsfield, mas após a morte de seu filho Richard em agosto de 1794, perdeu todo o interesse em quaisquer honras titulares. O Rei George II, então, concedeu uma pensão a Burke, mas não conseguiu passar pela formalidade de submeter a sentença ao Parlamento para aprovação. Francis Russell (1762-1802), o quinto Duque de Bedford, levantou uma objeção à pensão na Câmara dos Lordes. Como fez Martin Luther King em sua "Carta da cadeia de Birmingham", Burke tentou

justificar-se na forma de uma "carta aberta", que John Morley, o crítico do século xIx, chamou de "a réplica mais esplêndida da língua inglesa". Somente um terço da carta de 1796 é reproduzido aqui; cerca de vinte parágrafos do início da carta foram omitidos e aproximadamente o mesmo número de pará-

grafos do final. No parágrafo imediatamente anterior ao primeiro parágrafo impresso aqui, Burke disse: "O terrível estado da época, e não eu mesmo ou minha própria justificativa, é meu verdadeiro objetivo no que agora escrevo ou venha a escrever ou dizer".

1. O Duque de Bedford concebe que é obrigado a chamar a atenção da Câmara dos Pares para a concessão que Sua Majestade fez a mim, a qual ele considera excessiva e disparatada. 2. Não sei como isso aconteceu, mas realmente parece que, enquanto

Sua Graça meditava a respeito de sua criteriosa censura sobre mim, ele caiu em uma espécie de sono. Homero acena com a cabeça; e o Duque de Bedford pode sonhar; e como os sonhos (mesmo seus sonhos

320

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS dourados) tendem a ser truncados e desconexos, Sua Graça preservou sua idéia de reprovação a mim, mas levou o assunto das concessões da Coroa para sua própria família. Esta é "a matéria de que se fabricam os sonhos". Nessa forma de colocar as coisas, Sua Graça está perfeita-

mente correta. As doações para a casa de Russell eram tão enormes que, além de indignar a economia, desconcerta o mais crédulo. O Duque de

Bedford é o leviatã entre todas as criaturas da Coroa: arrasta a figura grotesca; brinca e diverte-se no oceano da generosidade real. Enorme como é, e embora "Autue sobre várias jeiras", ele ainda é uma criatura. Suas costelas, suas nadadeiras, suas barbatanas de baleia, sua gordura, os próprios espiráculos através dos quais jorra uma torrente de salmoura contra sua origem, encharcando-me com esguicho, tudo dele vem do trono. Cabe a ele questionar a dispensação do favor real?

3. Realmente não consigo traçar qualquer tipo de paralelo entre os méritos públicos de Sua Graça, pelos quais ele justifica as concessões que

possui, e esses meus serviços, em cuja construção favorável obtive o

que Sua Graça tanto desaprova. Na vida privada, não tenho a honra de

conhecer o nobre duque. Devo presumir, contudo, e não me custa nada fazê-lo, que ele merece abundantemente a estima e o amor de todos os

que o cercam. Mas, quanto ao serviço público, na verdade, não seria

mais ridículo, para mim, comparar-me em posição, em fortuna, em descendência, em juventude, força ou figura, com o Duque de Bedford, do que fazer um paralelo entre seus serviços e minhas tentativas de ser útil ao meu país. Não seria adulação grosseira, mas ironia rude, dizer

que ele tem algum mérito público próprio para manter viva a idéia dos serviços pelos quais suas vastas pensões fundiárias foram obtidas. Meus méritos, quaisquer que sejam, são originais e pessoais; os seus são derivados. É seu ancestral, o pensionista original, que acumulou esse fundo de mérito exaurível, o que torna Sua Graça tão delicada e ressentida sobre o mérito de todos os outros donatários da Coroa. Se ele tivesse me permitido ficar em silêncio, eu deveria ter dito: esta é sua propriedade. É sua por lei. O que tenho eu a ver com isso ou com sua história? Naturalmente, ele teria dito do seu lado: esta é a fortuna desse homem. Ele é tão merecedor agora quanto meu ancestral há 250 anos.

Sou um jovem com pensões muito antigas; ele é um velho com pensões muito novas. Isso é tudo.

321

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 4. Sua Graça, ao atacar-me, obriga-me, com relutância, a comparar

meu pequeno mérito àquele que obtiveram da Coroa esses prodígios de doação abundante, com a qual ele pisoteia a mediocridade de indi-

víduos humildes e laboriosos. Eu o relegaria de bom grado ao colégio dos arautos, que a filosofia dos sans-culottes (muito mais orgulhosos

do que todos os Garters, Norroys, Clarencieux e Rouge Dragons, que

sempre desfilavam em uma procissão do que seus amigos chamam de aristocratas e déspotas) abolirá com insolência e desprezo. Esses histo-

riadores, registradores e arautos de virtudes e armas diferem totalmente da outra descrição de historiadores, que nunca atribuem nenhum ato

político a um bom motivo. Esses gentis historiadores, ao contrário, mergulham suas penas no leite da bondade humana. Eles não buscam o mérito mais do que o preâmbulo de uma patente ou a inscrição em uma tumba. Com eles, todo homem criado par é, antes, um herói pronto. Eles julgam a capacidade de cada indivíduo pelos cargos que ele já ocupou; e quanto mais cargos, maior a capacidade. Para eles, todo

oficial general é um Marlborough; todo estadista é um Burleigh; todo

juiz é um Murray ou um Yorke. Aqueles que, vivos, eram ridicularizados ou rebaixados por todos os seus conhecidos, são representados de modo tão favorável quanto os melhores deles nas páginas de Guillim,

Edmondson e Collins. 5. A esses registradores, tão cheios de boa índole para com os grandes

e prósperos, eu deixaria, de boa vontade, o primeiro Barão Russell e

o Conde de Bedford, junto com os méritos de suas doações. Mas o supervisor, o pesador, o medidor de concessões, não permitirá que con-

cordemos com o julgamento do príncipe reinante na época em que elas foram feitas. Elas nunca são boas para aqueles que as conquistam. Pois

bem. Visto que os novos donatários foram confrontados pelos antigos em relação a elas, e que não podemos confiar na palavra do soberano, voltemos os olhos para a história, na qual os grandes homens têm sempre o prazer de contemplar a origem heroica de sua casa.

6. O primeiro par do nome, o primeiro comprador das concessões, foi um tal de Sr. Russell, indivíduo de uma família de antigos cavalheiros, criado por ser um assecla de Henrique vIn. Como essas relações baseiam-se geralmente em alguma semelhança de caráter, o favorito era muito provavelmente outro como seu mestre. A primeira dessas con-

322

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS cessões imoderadas não foi tirada do antigo domínio da Coroa, mas do recente con sco da antiga nobreza da terra. O leão, tendo sugado o sangue de sua presa, jogou a carcaça de restos para o chacal que o esperava. Tendo sentido uma vez o gosto do con sco, os favoritos tornaram-se ferozes e famintos. A primeira concessão desse digno favorito

foi da nobreza leiga. A segunda, in nitamente maior do que a primeira, foi do saque da igreja. Na verdade, talvez seja perdoável a antipatia de Sua Graça a uma concessão como a minha, tão diferente da sua, não só em quantidade, mas em qualidade.

7. A minha veio de um soberano gentil e benevolente; a dele, de Henrique VIII. 8. A minha não proveio do assassinato de pessoas inocentes da classe

ilustre ou da pilhagem de cadáveres inofensivos; a dele proveio dos fundos agregados e consolidados de julgamentos iniquamente legais e de

posses voluntariamente entregues pelos legítimos proprietários, com uma forca à espera.

9. O mérito do donatário de quem ele deriva foi o de ser um instrumento rápido e ganancioso de um tirano nivelador, que oprimiu todas

as classes de seu povo, mas que caiu com particular fúria sobre tudo o que era grande e nobre. O meu tem sido tentar proteger cada homem, de cada classe, da opressão e, particularmente, defender os altos e eminentes, que nos tempos difíceis de confisco de príncipes, governadores e demagogos, são os mais expostos ao ciúme, à avareza e à inveja.

10. O mérito do donatário original das pensões de Sua Graça estava em pôr as mãos à obra e compartilhar o despojo com um príncipe, que saqueava uma parte da igreja nacional de seu tempo e país. O meu foi

defender a totalidade da igreja nacional do meu próprio tempo e do meu próprio país (e a totalidade das igrejas nacionais de todos os países)

dos princípios e exemplos que conduzem à pilhagem eclesiástica, daí ao desprezo de todos os títulos prescritivos, daí à pilhagem de todas as

propriedades e daí à desolação universal. 11. O mérito da origem da fortuna de Sua Graça foi ser o favorito e conselheiro principal de um príncipe, que não deixou nenhuma liberdade para seu país natal. O meu foi obter liberdade para o município em que nasci e para todas as classes e denominações nele contidas. Além disso, defendi, com vigilância incansável, todos os direitos, todos os privilé-

fi

fi

fi

323

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO gios, todas as liberdades neste meu país adotado, mais querido e mais

abrangente; e não somente para preservar esses direitos na principal

sede do império, mas em cada nação, em cada terra, em cada clima,

língua e religião, no vasto (e maior) domínio sob a proteção da Coroa Britânica.

12. Os méritos de seu fundador foram, pelas artes nas quais serviu a seu mestre e fez fortuna, trazer pobreza, miséria e despovoamento a seu país. Os meus foram, sob um príncipe benevolente, promover o comércio, a manufatura e a agricultura de seu reino; naquilo que Sua Majestade dá um exemplo notável, pois até em seus divertimentos ele é um patriota, e nas horas de lazer, um melhorador de seu solo nativo. 13. O mérito de seu fundador foi o mérito de um cavalheiro criado pelas artes de uma corte, e a proteção de um Wolsey, à eminência de um grande e poderoso senhor. Seu mérito nessa eminência foi, ao instigar um tirano à injustiça, provocar a rebelião de um povo. Meu mérito foi despertar a parte sóbria do país, para que eles pudessem se colocar em guarda contra qualquer senhor poderoso, ou qualquer número maior de senhores poderosos, ou qualquer combinação de grandes líderes de qualquer tipo, se alguma vez eles tiverem de seguir o mesmo caminho, mas na ordem inversa, isto é, instigando uma população corrompida à rebelião e, por meio dessa rebelião, introduzindo uma tirania ainda pior do que a tirania que o ancestral de Sua Graça apoiava e da qual ele lucrou, como vemos no despotismo de Henrique vIn.

14. O mérito político do primeiro pensionista da casa de Sua Graça, como conselheiro de Estado, era o de aconselhar e por sua vez executar as condições de uma paz desonrosa com a França: a rendição da fortaleza de Boulogne, então nossa guarda na Europa. Com essa rendição, Calais, a chave da França e o freio na boca desse poder, foi, não muitos anos depois, nalmente perdida. Meu mérito foi resistir ao poder e ao

orgulho da França, sob qualquer forma de governo, opondo-me a ela com o maior zelo e seriedade, quando esse governo apareceu da pior forma possível, pior do que todo o mal concebível. Empenhei-me em despertar o espírito da Casa onde tive a honra de receber uma cadeira, por levar adiante, com vigor e determinação, a guerra mais justa e necessária que esta ou qualquer outra nação já travou; para salvar meu país do jugo de ferro de seu poder e do contágio mais terrível de seus

fi

324

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS

princípios; preservar, enquanto podem ser preservados, puros e imaculados, a antiga integridade consanguínea, a piedade, a bonomia e o bom humor do povo da Inglaterra, da terrível pestilência que, começando na França, ameaça devastar toda a moral e, em grande medida, todo o mundo físico, por pura maldade. 15. Os trabalhos do fundador de Sua Graça mereceram as maldições, não ruidosas, mas profundas, dos Comuns da Inglaterra, sobre os quais ele e seu mestre haviam efetuado uma reforma parlamentar completa, tornando-os, em sua escravidão e humilhação, os verdadeiros e adequados representantes de um povo aviltado, degradado e arruinado.

Meus méritos foram ter tido uma participação ativa, embora nem sempre ostensiva, em cada ato, sem exceção, de indiscutível utilidade constitucional em minha época, e ter apoiado, em todas as ocasiões, a autoridade, a eficiência e o privilégio dos Comuns da Grã-Bretanha. Terminei meus serviços com uma declaração registrada e totalmente fundamentada em seus próprios diários sobre seus direitos constitucionais e uma reivindicação de sua conduta constitucional. Trabalhei em todas as coisas para merecer sua aprovação interior e (com a ajuda do

maior e melhor de meus empreendimentos) recebi seu agradecimento

gratuito, imparcial, público e solene.

16. Eis, portanto, o relato dos méritos das concessões da Coroa que compõem a fortuna do Duque de Bedford em comparação com minha. Em nome do bom senso, por que o Duque de Bedford pensa que nin-

guém além da Casa de Russell tem direito ao favor da Coroa? Por que ele imagina que nenhum rei da Inglaterra foi capaz de julgar o mérito, exceto o Rei Henrique vin? Na verdade, ele vai me perdoar, mas ele está um pouco enganado. As virtudes não terminaram no primeiro Conde de Bedford. O discernimento não deixa de existir quando o Criador fecha os olhos. Que ele remeta seu rigor à desproporção entre mérito e recompensa nos outros, e eles não farão nenhuma investigação sobre a origem de sua fortuna. Eles considerarão com muito mais satisfação, como ele contemplará com prazer, tudo o que em seu pedigree foi poupado, por uma exposição à influência do Céu em um longo fluxo de gerações, da tintura ácida e metálica da nascente. Não há dúvida de que vários de seus antepassados nessa longa série degeneraram em honra e virtude. Que o Duque de Bedford (tenho certeza que o fará) re-

325

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

jeite com desprezo e honra os conselhos dos oradores, aqueles perversos cúmplices da avareza e da ambição, que o tentariam, nos problemas de

seu país, a buscar outra enorme fortuna do confisco de outra nobreza e pilhagem de outra igreja. Que ele (e acredito que ainda assim o fará) empregue toda a energia de sua juventude e todos os recursos de sua riqueza para esmagar os princípios rebeldes sem fundamento na moral e os movimentos rebeldes sem provocação na tirania. 17. Então, serão esquecidas as rebeliões que, por uma duvidosa prioridade no crime, seu ancestral provocou e extinguiu. Com tal conduta no nobre duque, muitos de seus compatriotas poderiam, com algum pretexto, ceder ao entusiasmo de sua gratidão e, no estilo arrojado de

alguns antigos declamadores, afirmar que se o destino não encontrou

nenhuma outra maneira de dar um Duque de Bedford e sua opulência como escoras para um mundo cambaleante, a carnificina do Duque de

Buckingham pode ser tolerada; pode ser considerada até com complacência, enquanto no herdeiro do confisco eles viram o consolador simpatizante dos mártires que sofreram sob o confisco cruel desta época; enquanto eles contemplam com admiração sua proteção zelosa da nobreza virtuosa e leal da França e seu apoio varonil a seus irmãos, as

persistentes nobreza e aristocracia de sua terra natal. Então, o mérito de Sua Graça seria puro e renovado, recém-cunhado na casa da moeda da honra. Como quisesse, ele poderia refletir a honra sobre seus predecessores ou lançá-la sobre aqueles que o sucederiam. Ele poderia ser o propagador do estoque de honra ou a raiz dele, como lhe parecesse conveniente.

18. Se fosse agradar a Deus alentar esperanças de sucessão para mim, eu teria sido, de acordo com minha mediocridade e a mediocridade da época em que vivo, uma espécie de fundador de uma família; teria deixado um filho que, em todos os pontos em que o mérito pessoal pode ser visto, na ciência, na erudição, no talento, no gosto, na honra, na generosidade, na humanidade, em cada sentimento liberal e em cada realização liberal, não teria se mostrado inferior ao Duque de Bedford ou a qualquer um de sua estirpe. Sua Graça muito em breve desejaria toda a plausibilidade em seu ataque àquela cláusula que pertencia mais aos meus do que a mim. Ele logo supriria todas as deficiências e simetrizaria todas as desproporções. Aquele sucessor não precisaria recorrer

326

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS a qualquer reservatório estagnado de desperdício de mérito em mim ou

em qualquer ancestralidade. Ele tinha em si mesmo uma fonte viva de ação generosa e incisiva. Cada dia que vivesse teria recomprado a gene-

rosidade da Coroa e dez vezes mais, se dez vezes mais tivesse recebido. Ele seria uma criatura pública e não teria nenhum prazer a não ser no cumprimento de algum dever. Nesse momento exigente, a perda de um homem acabado não é facilmente suprida. 19. Mas um Senhor, a cujo poder somos pouco capazes de resistir e cuja

sabedoria não cabe a nós contestar, ordenou de outra maneira e (por mais que me queixe por fraqueza) muito melhor. A tempestade passou sobre mim; e sou como um daqueles velhos carvalhos, que o último furacão destroçou. Estou despojado de todas as minhas honras, dilacerado pelas raízes, prostrado por terra! Ali, derrubado ali, reconheço, sem fingimento, a justiça divina e, em certo grau, submeto-me a ela. Mas, embora me humilhe diante de Deus, não sei se é proibido repelir os ataques de homens injustos e sem consideração. A paciência de Jó é proverbial. Depois de algumas lutas convulsivas por conta de nossa natureza irritável, ele se submeteu e se arrependeu em pó e cinzas. Mesmo assim, não o considero culpado por repreender, e com considerável grau de aspereza verbal, aqueles seus vizinhos mal-humorados, que visitavam seu monturo para ler sermões morais, políticos e econômicos sobre

sua miséria. Estou sozinho. Não tenho ninguém para enfrentar meus inimigos no portão. Na verdade, meu Senhor, nesta época difícil, engano-me se disser que trocaria um pedaço de refugo de trigo por toda fama e honra do mundo. Este é o apetite, mas de poucos. É um luxo, é um privilégio, é uma indulgência para aqueles que estão à vontade. Mas todos nós fomos feitos para evitar a desgraça, assim como fomos feitos para recuar diante da dor, da pobreza e da doença. É um instinto; e sob a direção da razão, o instinto está sempre certo. Eu vivo em ordem invertida. Aqueles que deveriam ter me sucedido se foram antes de mim. Aqueles que deveriam ter sido para mim como posteridade estão no lugar dos ancestrais. Devo ao parente mais querido (que deve sempre subsistir na memória) aquele ato de piedade que ele teria feito comigo; devo a ele mostrar que ele não descendia, como diria o Duque de Bedford, de um pai indigno.

327

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 20. A Coroa considerou-me após um longo serviço; ao Duque de

Bedford, pagou adiantado. Ele tem um longo crédito por quaisquer serviços que possa realizar no futuro; está seguro e por muito tempo poderá estar seguro com seu adiantamento, quer execute serviços ou não. Mas que tome cuidado em como põe em risco a segurança daquela constituição que garante sua própria utilidade ou sua própria insignificância; ou como desencoraja aqueles que empunham armas, mesmo insignificantes, para defender uma ordem de coisas que, como o sol, brilha igualmente sobre o útil e o inútil. Suas concessões são enxertadas no direito público da Europa, cobertas pela terrível quantidade de incontáveis eras. Guardadas pelas sagradas regras de prescrição, encon-

tram-se naquele tesouro de jurisprudência com base no qual a esterili-

dade e a penúria de nossa lei municipal têm gradualmente enriquecido

e se fortalecido. Contribuí (de forma bastante plena) para levar tal prescrição à perfeição. O Duque de Bedford permanecerá enquanto durar a lei prescritiva, enquanto as grandes leis estáveis de propriedade, comuns a nós todos, com todas as nações civilizadas, forem mantidas em sua integridade e sem mistura de leis, máximas, princípios ou precedentes da grande Revolução. Elas estão protegidas contra todas as alterações, exceto uma. Todo o sistema revolucionário, institutos, resumos, códigos, romances, textos, glosas, comentários, não só não são os mesmos, mas são o próprio reverso, com princípios reversos, de todas as leis sobre

as quais a vida civil tem sido mantida até agora em todos os governos

do mundo. Os eruditos professores dos direitos do homem consideram a prescrição, não como um título para barrar toda reivindicação, armada contra toda posse, mas como uma barreira contra o possuidor e o

proprietário. Eles consideram a posse imemorial não mais do que uma injustiça prolongada e, portanto, agravada. 21. Tais são suas idéias, tal sua religião e tal sua lei. Mas quanto ao nosso

país e nossa raça, enquanto a estrutura compactada de nossa igreja e Estado, o santuário, o santo dos santos daquela antiga lei, defendido pela reverência, defendido pelo poder, uma fortaleza e um templo ao mesmo tempo, permanecer inviolável na fronte do Sião Britânico, enquanto a monarquia britânica, não mais limitada do que cercada pelas

ordens do Estado, como a orgulhosa Fortaleza de Windsor, elevar-se na majestade das proporções e cingir-se com o cinturão duplo de suas

328

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS torres afins e coevas, enquanto essa estrutura horrível supervisionar

e proteger a terra dominada, os montes e diques do baixo nível de

Bedford não terão nada a temer em relação às picaretas dos niveladores da França. Enquanto nosso senhor soberano, o rei e seus súditos fiéis, os Senhores e os Comuns deste reino, a corda tripla que nenhum homem pode arrebentar; a promessa solene, juramentada e constitucional desta nação; as garantias firmes uns dos outros e dos direitos uns dos outros;

as garantias solidárias, cada uma em seu lugar e ordem, para toda espécie e qualidade de propriedade e dignidade; enquanto durarem, o Duque de Bedford estará seguro. E todos nós estaremos seguros juntos: os superiores, das pragas da inveja e espoliações da rapacidade; os inferiores, da mão de ferro da opressão e do insolente desprezo.

THOMAS HENRY HUXLEY: "CIÊNCIA E CULTURA" Nas duas seleções que se seguem, observamos Thomas Henry Huxley (1825-95) e Matthew Arnold (1822-88) engajados em um vigoroso debate sobre os méritos

relativos do que C.P. Snow em nossa época chamou de as "duas culturas", as ciências e as humanidades. Huxley foi o mais eloqüente porta-voz das ciências

do século xIx. Tendo estudado medicina quando jovem, ele se tornou ampla-

mente conhecido por suas pesquisas em anatomia comparada e embriologia, por sua corajosa defesa das teorias da evolução de Charles Darwin, por sua defesa do ensino superior para mulheres e negros, por suas palestras em várias faculdades de artes e por suas contribuições à sociologia e à ética. Seu ensaio

"Ciência e cultura" foi proferido como um discurso na abertura do Sir Josiah

Mason's Science College em Birmingham, Inglaterra, em 1º de outubro de 1880. Esse ensaio é apresentado aqui em uma versão abreviada: quinze parágrafos foram omitidos do início e quatro parágrafos do final.

Junto com John Henry Newman, Matthew Arnold se destaca como um dos mais destemidos defensores da educação liberal do século xIx. Filho do famoso Dr. Thomas Arnold, da Rugby, Arnold obteve somente um diploma de segunda classe no Balliol College, Oxford, em 1844, mas, no ano seguinte, ganhou

uma bolsa no Oriel College, também em Oxford. Distinto poeta, crítico e ensaista por mérito próprio, ele foi duas vezes eleito para a Cátedra de Poesia de Oxford. Por trinta e cinco anos, ele serviu como inspetor de escolas na Inglaterra, um trabalho no qual exerceu sua influência no sentido de promover

329

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO a educação obrigatória para jovens de todos os estratos sociais. Seu trabalho

"Literatura e ciência" foi apresentado pela primeira vez na Rede Lecture da

Universidade de Cambridge e posteriormente publicado na edição de agosto de

1882 da Nineteenth Century. Em uma versão ligeiramente revisada, o texto foi novamente apresentado durante sua turnê de palestras nos Estados Unidos, de 1883-84. Ele também é reproduzido aqui em uma versão abreviada, mas esta seção é essencialmente a mesma palestra que ele proferiu em Cambridge e na América. Vale a pena observar esses dois formidáveis polemistas discutindo sobre um assunto que ambos levavam muito a sério.

1. Efetivamente, abraço com muita firmeza duas convicções. A primeira é que nenhuma disciplina nem tema da educação clássica têm importância direta para o estudante de ciência física a ponto de justificar o dispêndio de valioso tempo sobre qualquer deles. E a segunda é que, para o propósito de obtenção de verdadeira cultura, uma educação exclusivamente cientí ca é ao menos tão e ciente quanto uma educação exclusivamente literária.

2. Não preciso salientar aos senhores que essas opiniões, especialmente a última, são diametralmente opostas àquelas da grande maioria dos ingleses cultos, influenciados pelas tradições escolar e universitária. Para

eles, cultura seria obtenível apenas por meio de uma educação liberal;

e uma educação liberal é sinônimo não apenas de educação e instrução em literatura, mas de uma forma particular de literatura, a saber, aquela

da Antigüidade greco-romana. Sustenta-se que o homem que aprende Grego e Latim, mesmo que superficialmente, seja educado; ao passo

que aquele versado em outros ramos do conhecimento, ainda que em profundidade, seja um especialista de respeitabilidade discutível, não

admissível na casta cultivada. O emblema de homem educado, o grau universitário, não é para ele.

3. Estou bastante familiarizado com a generosa universalidade espiritual, a verdadeira simpatia pelo pensamento científico que perpassa os escritos de nosso principal apóstolo da cultura para associá-lo a essas

opiniões. No entanto, podem-se colher, entre algumas das epístolas aos

Filisteus — que tanto prazer dão a todos que não respondem por este

nome —, sentenças que lhes emprestam algum apoio.

fi

fi

330

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS 4. O Sr. Arnold diz que o significado de cultura é "saber o melhor que

tem sido pensado e dito no mundo". E a crítica da vida presente na literatura. Crítica que considera "a Europa, para todos os propósitos

intelectuais e espirituais, como uma grande confederação destinada a uma ação conjunta e ao trabalho para um resultado comum, e cujos membros partilham, por vestuário uniforme, do conhecimento da Antigüidade grega, romana e oriental, e do conhecimento que tinham uma sobre a outra. Desconsideradas as vantagens específicas, locais e

temporárias, a nação moderna que mais meticulosamente levar a cabo este programa, maior progresso terá na esfera intelectual e espiritual. E

como não concluir daí que nós também, todos nós, como indivíduos, quanto mais rigorosamente o levarmos adiante, mais progrediremos?".

5. Devemos aqui considerar duas proposições distintas. A primeira, que a crítica da vida é a essência da cultura; a segunda, que a literatura contém materiais suficientes para a elaboração de tal análise.

6. Penso que todos nós devemos concordar com a primeira proposição. Cultura certamente significa algo totalmente distinto de aptidão para a aprendizagem ou para a técnica. Envolve a posse de um ideal e o hábito de estimar criticamente o valor das coisas tomando como base um padrão teórico. A cultura perfeita deve empregar uma completa teoria de vida, fundada sobre um claro conhecimento de suas possibilidades

e limitações. 7. No entanto, podemos concordar em tudo isso e, ainda assim, discordar radicalmente a respeito da tese de que unicamente a literatura é competente para fornecer esse conhecimento. Após ter aprendido tudo

o que a Antigüidade grega, romana e oriental ensinou e disse, e tudo o que as literaturas modernas têm a nos dizer, não é evidente para nós que tenhamos estabelecido fundamentos suficientemente amplos e profundos para a crítica da vida que constitui a cultura. 8. De fato, para qualquer pessoa familiarizada com o âmbito da ciência física, isso não é de modo algum evidente. Ao considerar o progresso apenas na "esfera intelectual e espiritual", sou totalmente incapaz de

admitir que nações ou indivíduos realmente avancem caso, para sua vestimenta uniforme, não obtenham nada dos armazéns da ciência fí-

sica. Diria que um exército, sem armas de precisão e sem uma base de operações particular, teria mais possibilidades de sucesso ao entrar

331

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO em uma campanha no Reno do que um homem, destituído de conhecimento sobre o que conquistou a ciência física ao longo do último século, teria na análise crítica da vida.

9. Quando um biólogo encontra uma anomalia, instintivamente vol-

ta-se para o estudo do desenvolvimento para esclarecê-la. A base para

opiniões contrárias pode, com idêntica fidedignidade, ser procurada na

História. 10. Felizmente, não é inédito que ingleses tenham empregado sua fortuna para a construção e o provimento de instituições voltadas a propósitos educacionais. Entretanto, há cinco ou seis séculos, seus estatutos

de fundação expressavam ou sugeriam condições tão próximas quanto possível do inverso daquelas que foram consideradas oportunas por Sir Josiah Mason. Ou seja, a ciência física era praticamente ignorada, ao passo que um certo treinamento literário era agregado como meio de aquisição de conhecimento de cunho basicamente teológico. II. A razão para essa singular contradição entre as ações de homens

igualmente imbuídos de forte e desinteressado anseio de promover o bem-estar de seus semelhantes é facilmente desvendada. 12. Àquela época, de fato, para qualquer um desejoso de conhecimento que transcendesse o obtenível por sua própria observação ou pela con-

versação comum, a primeira necessidade era aprender Latim, uma vez que todo o conhecimento superior do mundo ocidental estava contido

em trabalhos escritos nessa língua. Portanto, a gramática latina, conjuntamente à lógica e retórica estudadas nesse idioma, era o fundamento da educação. No que diz respeito à substância do conhecimento propiciado por essa via, sustentava-se que as Escrituras judaicas e cristás, tal como interpretadas e suplementadas pela Igreja romanizada, continham um corpo de informação completo e infalível. 13. Os pronunciamentos teológicos eram, para os pensadores daqueles tempos, o que os axiomas e as definições de Euclides são para os ge-

ômetras de hoje. O mister dos filósofos da Idade Média era, a partir

dos dados fornecidos pelos teólogos, deduzir conclusões coerentes com

decretos eclesiásticos. Era-lhes concedido o alto privilégio de expor, por processo lógico, como e por que era verdadeiro aquilo que a Igreja havia dito. E se suas demonstrações não alcançavam ou excediam esses limi-

332

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS tes, a Igreja estava maternalmente pronta a corrigir suas aberrações, se

necessário, com a ajuda do braço secular.

14. Entre os dois, nossos ancestrais eram equipados com uma completa

e compacta crítica da vida. Ensinavam-lhes como o mundo começou e como terminaria; aprendiam que toda a existência material não seria

senão uma grosseira e insignificante mancha na bela face do mundo

espiritual, e que a natureza era, para todos os propósitos e para todas as intenções, local de recreio do demônio; aprendiam que a Terra era o centro do universo visível e o homem, o cerne das coisas terrestres; e mais especialmente inculcado era que o curso da natureza não tinha ordem fixa, mas que poderia ser, e constantemente foi, alterado pela agência de inumeráveis seres espirituais, bons e maus, conforme acionados pelos feitos e pelas preces dos homens. O resultado e a substância da doutrina integral era produzir a convicção de que a única coisa que realmente valeria a pena saber neste mundo seria como assegurar um lugar em outro melhor, prometido, sob certas circunstâncias, pela Igreja.

15. Nossos ancestrais tinham uma vívida crença nessa teoria da vida e agiam em conformidade com ela ao lidar com a educação, como com todos os demais assuntos. Cultura significava santimônia — conforme os padrões dos santos daqueles tempos; a educação que levava a ela era, necessariamente, teológica; e a via para a teologia era dada pelo Latim.

16. Que o estudo da natureza — além do que era necessário para a satisfação das necessidades diárias — deveria ter qualquer relevo para

a vida humana era algo afastado do pensamento de homens treinados dessa maneira. Efetivamente, como em apanágio do homem, a natureza havia sido amaldiçoada; chegava- se à óbvia conclusão de que todos os

que lidavam com a natureza provavelmente entrariam em íntimo contato com Satã. E, se alguém com inata inclinação para a investigação científica seguisse seus instintos, poderia ficar seguro de que adquiriria

a reputação e, provavelmente, sofreria o destino de um feiticeiro.

17. Caso o mundo ocidental tivesse sido relegado a si mesmo, em isolamento chinês, não se pode dizer quanto teria durado tal estado de coisas. No entanto, felizmente, não foi circunscrito a isso. Mesmo antes do século xxI, o desenvolvimento da civilização mourisca na Espanha

e o grande movimento das Cruzadas introduziram o fermento que,

333

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

desde aqueles dias até hoje, nunca parou de agir. Inicialmente, pela intermediação das traduções árabes e, depois, pelo estudo dos originais,

as nações ocidentais da Europa familiarizaram-se com os escritos de filósofos e poetas antigos e, com o passar do tempo, com toda a vasta literatura da Antigüidade.

18. O que havia de aspiração intelectual ou talento singular na Itália, França, Alemanha e Inglaterra foi despendido por séculos na aquisição da rica herança legada pela finada civilização da Grécia e de Roma. Maravilhosamente auxiliada pela invenção da imprensa, a erudição clássica expandiu-se e floresceu. Aqueles que a possuíam, orgulhavam-se por ter alcançado a mais elevada cultura então ao alcance da

humanidade. 19. E faziam-no com razão. Salvo Dante, em seu pináculo solitário, não havia figura na literatura moderna ao tempo da Renascença que se comparasse aos homens da Antigüidade; não havia arte que se comparasse a sua escultura; e não havia ciência física a não ser aquela criada pela Grécia. Acima de tudo, não havia outro exemplo de perfeita liberdade intelectual — de inquebrantável aceitação da razão como único guia para a verdade e supremo árbitro da conduta. 20. A nova ilustração rapidamente exerceu influência profunda sobre a educação. A linguagem dos monges e escolásticos parecia pouco melhor que tagarelice para estudiosos recém-versados em Virgílio e Cícero, e o estudo do Latim foi colocado sobre novas bases. Mais que isso, o

próprio Latim deixou de ser a única chave para o conhecimento. O estudante que procurasse o mais elevado pensamento da Antigüidade encontraria apenas reflexões de segunda mão na literatura romana e voltaria sua face para a plena luz dos gregos. E, depois de uma batalha

— não totalmente distinta dessa atualmente travada sobre o ensino da ciência física -, o estudo do Grego foi reconhecido como um elemento essencial para toda a educação superior.

21. Desse modo, os humanistas, como eram chamados, ganharam a

disputa, e a grande reforma que efetuaram teve inestimável valor para a humanidade. Entretanto, a Nêmesis de todo reformador é a finitude; e os reformadores da educação, tal como aqueles da religião, caíram no profundo, conquanto comum, erro de confundir o fim com o começo do trabalho de reforma.

334

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS 22. Os representantes dos humanistas do século xIx, de maneira tão firme como se ainda estivessem na época da Renascença, sustentam ser a educação clássica a única via para a cultura. Porém, evidentemente,

as correntes relações intelectuais entre os mundos moderno e antigo são muito diferentes daquelas constantes três séculos atrás. Mesmo dei-

xando de lado a existência de uma grande e característica moderna literatura, da pintura moderna e, especialmente, da música moderna,

existe um traço do estado atual do mundo civilizado que o separa de forma mais radical da Renascença do que a Renascença era separada da

Idade Média. 23. Este traço distintivo de nossos tempos repousa no amplo e constantemente crescente relevo assumido pelo conhecimento natural. Não apenas é nossa vida diária moldada por ele, não apenas a prosperidade

de milhares de pessoas depende dele, mas toda nossa teoria de vida tem sido por muito tempo influenciada, consciente ou inconscientemente, pelas concepções gerais do universo, que têm sido impostas sobre nós pela ciência física. 24. De fato, a mais elementar familiaridade com os resultados da investigação científica mostra-nos que eles oferecem ampla e marcante oposição às opiniões implicitamente aceitas e ensinadas na Idade Média. 25. As noções de um começo e de um fim do mundo, abraçadas pelos

nossos antepassados, não são mais críveis. E bem seguro que a Terra não é o principal corpo do universo material e que o mundo não está

subordinado à utilidade para o homem. É ainda mais certo que a natureza é a expressão de uma ordem definida com a qual nada interfere e que a principal tarefa da humanidade é aprender aquela ordem e agir em conformidade com ela. Mais ainda, esta "crítica científica da vida"

apresenta-se a nós com credenciais diferentes de qualquer outra. Ela

depende não da autoridade ou do que qualquer um possa ter pensado ou dito, mas da natureza. Admite que todas nossas interpretações do fato natural são mais ou menos imperfeitas e simbólicas e convida o estudioso a procurar pela verdade não entre as palavras, mas entre as coisas. Avisa-nos que uma a rmação que não leva em conta a evidência

é não apenas um erro, mas um crime.

26. A educação puramente clássica, defendida, em nossos dias, pelos representantes dos humanistas, não faz nem mesmo uma alusão a tudo

fi

335

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO isso. Pode-se ser um erudito melhor que Erasmo e não saber mais do que ele a respeito das principais causas da presente fermentação inte-

lectual. Pessoas doutas e pias, dignas de todo o respeito, oferecem-nos alocuções sobre o triste antagonismo da ciência, à sua maneira medieval de pensar, que expõem uma ignorância dos primeiros princípios da investigação científica, uma incapacidade para entender o que um homem de ciência entende por veracidade e uma inconsciência do peso das verdades científicas estabelecidas que chega a ser quase cômica.

27. Não há grande força no argumento do tu quoque, caso contrário, os advogados da educação científica poderiam razoavelmente replicar aos modernos humanistas que podem estes ser ilustrados especialistas, mas não possuem base plausível para a análise crítica da vida, no sentido que merece o nome de cultura. E, realmente, se estivéssemos dispostos à crueldade, poderíamos requisitar dos humanistas que dirigissem seus ataques a eles mesmos, não porque estejam imbuídos demais do espírito grego, mas porque dele carecem.

28. O período da Renascença é comumente nomeado como o da "revivescência das letras", como se as influências então exercidas sobre o espírito da Europa ocidental tivessem sido totalmente esgotadas no campo da literatura. Creio ser muito comumente olvidado que a revivescência da ciência, levada a efeito pelos mesmos agentes, embora não

tão conspícua, não foi menos marcante.

29. De fato, os então poucos e esparsos estudantes da natureza, para desvendar seus segredos, apanharam a chave que, mil anos antes, caiu das mãos dos gregos. Os fundamentos da Matemática foram tão bem estabelecidos por eles que nossos filhos aprendem sua Geometria a partir de um livro escrito para as escolas de Alexandria há dois mil anos. A moderna Astronomia é a continuação e o desenvolvimento naturais do trabalho de Hiparco e Ptolomeu; como é a Física moderna do de Demócrito e Arquimedes; custou muito até que a moderna Biologia suplantasse o conhecimento legado por Aristóteles, Teofrasto e Galeno.

30. Não podemos saber todos os melhores pensamentos e dizeres dos gregos, a menos que conheçamos o que pensaram a respeito dos fenômenos naturais. Não podemos apreender sua crítica da vida, a menos que entendamos a extensão em que aquela análise crítica foi afetada por

concepções cientí cas. Usurpamos a condição de herdeiros de sua cul-

fi

336

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS tura, a menos que sejamos tomados, como foram os melhores intelectos

entre eles, por uma inabalável fé em que o livre emprego da razão, coerente com o método científico, é o único método para a consecução

da verdade.

31. Assim, aventuro-me a pensar que as pretensões de nossos humanistas modernos à posse do monopólio da cultura e à exclusiva herança do espírito da Antigüidade devem ser temperadas, se não mesmo abandonadas. No entanto, muito lamentaria caso algo do que tenha citado seja tomado — como poderia ser e, algumas vezes, é — como um desejo de minha parte de depreciar o valor da educação clássica. As capacidades inatas dos seres humanos variam não menos que suas oportunidades

e, se a cultura é uma só, a via pela qual um homem pode alcançá-la é extremamente diferente daquela mais vantajosa para outro. Além disso, ao passo que a educação científica é ainda nascente e hesitante, a educação clássica é rigorosamente bem organizada sobre a experiência

prática de gerações de professores. De tal forma, garantindo-se que se possua um extenso período de aprendizagem e destinação para a vida comum, ou para uma carreira literária, não penso que um jovem inglês

à procura de cultura possa fazer algo melhor do que seguir o curso usu-

almente designado para ele, pelos seus próprios meios, suplementando as de ciências daquela via.

32. Mas para aqueles que pretendem se ocupar seriamente da ciência; que tencionam seguir a pro ssão médica; ou que são obrigados a ingressar precocemente nos trâmites da vida; para todos esses, em minha

opinião, a educação clássica é um erro. E é por esta razão que co feliz em ver "a educação e a instrução meramente literárias" excluídas

do currículo da faculdade de Sir Josiah Mason, considerando que sua inclusão muito provavelmente levaria ao corriqueiro conhecimento superficial do Latim e do Grego.

33. Não obstante, sou a última pessoa a questionar a importância da educação literária ou a supor que a cultura intelectual possa ser com-

pleta sem ela. Um treinamento exclusivamente científico suscitaria um

desvio mental, tanto quanto um treinamento exclusivamente literário.

O valor da carga não compensa o adernamento do barco; e eu lamentaria muito se o Scientific College não formasse mais do que pessoas

desbalanceadas.

fi

fi

fi

337

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 34. Não há razão, todavia, para que tal catástrofe ocorra. Providencia-se

o ensino do Inglês, do Francês e do Alemão e, destarte, as três mais importantes literaturas do mundo moderno são disponibilizadas ao estudante. O Francês e o Alemão, especialmente este último, são absolutamente indispensáveis para aqueles que desejam conhecimento integral em qualquer campo da ciência. Mesmo que se admita que o conhecimento dessas línguas adquiridas não é mais que suficiente para propósitos puramente científicos, todos os ingleses têm, em sua língua nativa, um quase perfeito instrumento de expressão literária; e, em sua própria literatura, modelos de todos os matizes de excelência literária. Se um inglês não puder adquirir cultura literária a partir de sua Bíblia, seu Shakespeare ou seu Milton, não creio que isso lhe possa ser dado pelo mais profundo estudo de Homero e Sófocles, Virgílio e Horácio. 35. Destarte, já que os estatutos da faculdade prevêem condições suficientes tanto para a educação literária quanto para a científica, e dado que a instrução artística também é contemplada, parece-me que uma cultura razoavelmente integral é oferecida a todos aqueles que dela desejem tirar proveito.

36. Porém, não estou certo de que, a esta altura, o homem "prático", ferido, mas não morto, não indague sobre o que toda esta fala sobre cultura teria a ver com uma instituição que define como objeto "promover a prosperidade das manufaturas e da indústria do país". Ele pode sugerir que o que se objetiva com a definição deste fim não é a cultura nem mesmo a disciplina puramente científica, mas simplesmente o conhecimento da ciência aplicada.

36. Frequentemente, gostaria que a expressão "ciência aplicada" nunca tivesse sido cunhada, pois sugere a existência de um tipo de conhecimento científico de uso prático direto, que pode ser um estudo à parte de outro tipo de conhecimento científico, sem utilidade prática, e que é rotulado de "ciência pura". Mas não há falácia mais completa que essa. O que as pessoas chamam de ciência aplicada não é nada mais que a aplicação da ciência pura nas classes específicas de problemas. Consiste de deduções feitas a partir daqueles princípios gerais estabelecidos pelo raciocínio e pela experiência, que constituem a ciência pura. Ninguém pode levar a cabo tais deduções antes de obter um sólido domínio dos princípios; e só se pode obter tal domínio com base na experiência pes-

338

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS soal das operações da observação e do raciocínio sobre as quais estão

fundados. 38. Quase todos os processos empregados nas artes e manufaturas en-

contram-se no âmbito da Física ou da Química. Para aperfeiçoá-los é necessário entendê-los integralmente; e ninguém terá a chance de entendê-los realmente sem que se tenha obtido o controle dos prin-

cípios e o hábito de lidar com os fatos dados pelo continuado e bem-dirigido treinamento puramente científico no laboratório de Física e de Química. Assim, não há dúvida quanto à necessidade da disciplina puramente científica, mesmo se o trabalho da faculdade fosse limitado à mais restritiva interpretação de seus objetivos declarados.

39. Quanto à desejabilidade de uma cultura mais ampla que aquela propiciada exclusivamente pela ciência, deve-se lembrar que o aperfeiçoamento do processo manufatureiro é apenas uma das condições que contribuem para a prosperidade da indústria. A indústria é um meio e não um fim; e a humanidade trabalha apenas para a obtenção de algo que almeja. O que algo é depende, em parte, de desejos inatos e, em parte, de adquiridos.

40. Se a riqueza resultante da indústria próspera deve ser gasta na satisfação de desejos desprezíveis, e se o crescente aperfeiçoamento do processo manufatureiro for acompanhado pela degradação daqueles que o levam adiante, não vejo o bem trazido pela indústria e pela prosperidade. 41. Ora, é perfeitamente verdadeiro que as idéias dos homens sobre o que é desejável dependem de sua personalidade; e que as tendências inatas a que damos nome não são tocadas por qualquer patamar de instrução. Mas daí não se segue que mesmo a mera educação intelectual não possa, até um ponto indefinido, modificar a manifestação prática do caráter dos homens em suas ações, equipando-os com motivos desconhecidos para o ignorante. Uma personalidade amante do prazer obterá prazer de algum tipo, mas se lhe for dada a oportunidade, pode preferir prazeres que não o degradem em lugar daqueles que o façam. E essa escolha é oferecida para todo homem que possui, na cultura literária ou artística, uma fonte jamais abalada de prazeres, que não são ressecados pela velhice, trivializados pelo costume nem lembrados com amargor pelas dores do sentimento de culpa.

339

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

MATTHEW ARNOLD: "LITERATURA E CIÊNCIA" 1. Será que o vigoroso movimento atual para afastar as letras de sua

antiga predominância na educação, transferindo-a para as ciências naturais, prevalecerá? Antecipo uma objeção que pode ser levantada. Meus próprios estudos têm sido quase todos no âmbito das letras e minhas incursões no campo das ciências naturais têm sido breves e inadequadas, embora essas ciências sempre tenham despertado minha curiosidade. Talvez digam que um homem de letras não terá competência para discutir os méritos comparativos das letras e da ciência natural como meio de educação. A essa objeção, respondo, em primeiro lugar, que sua incompetência, se ele tentar a discussão, mas for realmente

incompetente para tal, será patente; ninguém será enganado; ele terá muitos observadores atentos e críticos para salvar a humanidade desse perigo. Mas a linha que seguirei é, como vocês logo descobrirão, tão

simples, que talvez possa ser seguida mesmo por alguém que, para uma linha de discussão mais ambiciosa, seria bastante incompetente. 2. Alguns de vocês talvez se lembrem de uma frase minha que foi objeto

de muitos comentários; uma observação no sentido de que em nossa cultura, objetivando conhecer a nós mesmos e ao mundo, temos, como meio para tanto, conhecer o que de melhor foi pensado e dito no mundo. Um homem de ciência, que também é um excelente escritor e o rei dos debatedores, o professor Huxley, em um discurso na inauguração

da faculdade de Sir Josiah Mason, em Birmingham, agarrando-se a esta frase, expandiu-a, citando mais algumas palavras minhas, que são estas: "O mundo civilizado deve ser considerado agora, para ns intelectuais e espirituais, uma grande confederação, obrigado a uma ação conjunta e trabalhando para um resultado comum. Seus membros possuem, como equipamento adequado, um conhecimento da Antigüidade grega, romana e oriental, e o conhecimento uns dos outros. Desconsiderando vantagens locais e temporárias, essa nação moderna, na esfera intelectual e espiritual, fará mais progresso se executar esse programa da forma mais completa".

3. Agora, na minha frase, assim ampliada, o professor Huxley observa que quando falo do conhecimento como algo que nos permite conhecer

a nós mesmos e ao mundo, eu afirmo que a literatura contém os mate-

fi

340

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS riais de que precisamos para conhecer a nós mesmos e ao mundo. Mas não está claro, diz ele, que depois de aprender tudo o que as literaturas antigas e modernas têm a nos dizer, teremos uma base suficientemente ampla e profunda para a crítica da vida, aquele conhecimento de nós mesmos e do mundo, que constitui a cultura. Ao contrário, o profes-

sor Huxley declara que se acha "totalmente incapaz de admitir que as nações ou os indivíduos realmente progredirão sem extrair nada das ciências físicas. Um exército sem armas de precisão e sem nenhuma base de operações terá mais sucesso ao entrar em uma campanha no Reno do que um homem desprovido de conhecimento do que a ciência física realizou no último século ao aventurar-se a uma crítica da vida". 4. Isso mostra quão necessário é, para aqueles que discutirão qualquer assunto juntos, ter um entendimento comum quanto ao sentido dos termos que empregam (quão necessário e quão difícil). O que o profes-

sor Huxley diz implica apenas a reprovação tão comum ao estudo das belles lettres, como são chamadas: que o estudo é elegante, mas leviano

e ineficaz; um pouco de grego e latim e outras coisas ornamentais, de pouca utilidade para qualquer pessoa cujo objetivo seja chegar à verdade

e ser um homem prático. Assim também M. Renan fala do "humanismo superficial" de um curso escolar que nos trata como se fôssemos

todos poetas, escritores, pregadores, oradores, e opõe esse humanismo à ciência positiva ou à busca crítica pela verdade. E sempre há uma ten-

dência, nos que protestam contra o predomínio das letras na educação,

de entender por letras belles lettres e por belles lettres um humanismo super cial, o oposto da ciência ou do verdadeiro conhecimento. 5. Mas quando falamos de conhecer a Antigüidade grega e romana, por exemplo, que é o conhecimento que as pessoas chamam de humanida-

des, de minha parte, quero dizer um conhecimento além de um humanismo super cial, decorativo. Diz Wolf, o crítico de Homero: "Chamo de cientí co todo ensino sistematicamente apresentado e remetido às suas fontes originais. Por exemplo: um conhecimento da Antigüidade clássica é cientí co quando os vestígios da Antigüidade clássica são

estudados corretamente nas línguas originais". Wolf está totalmente certo: todo aprendizado sistematicamente apresentado e remetido às suas fontes originais é científico, de modo que um humanismo genuíno pode ser científico.

fi

fi

fi

fi

341

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 6. Quando falo em conhecer a Antigüidade grega e romana, portanto,

como uma ajuda para conhecermos a nós mesmos e ao mundo, quero

dizer mais do que o conhecimento de vocabulário, gramática, trechos de livros em grego e latim. Quero dizer conhecer os gregos e romanos, sua vida e forma de pensar, o que eles eram e faziam no mundo, o que recebemos deles e qual o seu valor. Isso, pelo menos, é o ideal. E quando falamos em nos esforçarmos para conhecer a Antigüidade grega e romana, como uma ajuda para conhecermos a nós mesmos e ao mundo, queremos dizer esforçar-nos para conhecê-los a fim de satisfazer esse ideal, por mais que não consigamos de maneira perfeita. 7. O mesmo vale para o conhecimento de nossa própria nação e outras nações modernas, com o objetivo de compreendermos a nós mesmos e ao mundo. Saber o que de melhor foi pensado e dito pelas nações modernas é saber, diz o professor Huxley, "somente o que a literatura moderna tem a nos dizer; trata-se da crítica da vida contida na literatura moderna". E, no entanto, "o caráter distintivo de nossos tempos", insiste ele, "reside no vasto e crescente papel desempenhado pelo conhecimento natural". Assim, como um homem desprovido de conhecimento do que a ciência física realizou no século passado poderia aventurar-se a uma crítica da vida moderna?

8. Cheguemos a um acordo sobre o signi cado dos termos que estamos usando. Falo de conhecer os melhores exemplos de pensamento e expressão no mundo; o professor Huxley diz que isso significa conhecer literatura. Literatura é uma palavra extensa; pode significar tudo o

que é escrito com letras ou está impresso em livros. Os Elementos, de

Euclides, e Os princípios matemáticos da filosofia natural, portanto, são literatura. Todo conhecimento que chega até nós por meio dos livros é literatura. Mas, por literatura, o professor Huxley quer dizer belles lettres. Segundo ele, estou dizendo que conhecer os melhores exemplos de pensamento e expressão das nações modernas é conhecer suas belles

lettres. E isso não é su ciente, argumenta ele, para uma crítica à vida moderna. Mas por conhecer a Roma antiga, não quero dizer conhecer mais ou menos as belles lettres latinas, sem levar em consideração o tra-

balho militar, político, jurídico e administrativo de Roma no mundo; e por conhecer a Grécia antiga, quero dizer conhecê-la como o berço da arte grega e um guia para o uso livre e correto da razão e do método

fi

fi

342

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS científico, além de fundadora da nossa matemática, física, astronomia

e biologia, ou seja, conhecê-la por tudo isso e não só por certos poemas, histórias, tratados e discursos gregos. O mesmo vale para o conhecimento das nações modernas. Por conhecer as nações modernas, quero dizer não apenas conhecer suas belles lettres, mas também saber o

que foi feito por homens como Copérnico, Galileu, Newton, Darwin. "Nossos ancestrais aprenderam", diz o professor Huxley, "que a Terra é o centro do universo visível e que o homem é o centro das coisas terrestres. Além disso, foi estabelecido que o curso da natureza não tinha uma ordem fixa, podendo ser constantemente alterado". Mas, para nós agora, continua o professor Huxley, "as noções de início e fim do mundo adotadas por nossos antepassados não são mais confiáveis. Já sabemos que a Terra não é o principal corpo do universo material e que o mundo não está subordinado ao uso do homem. Além disso, sabemos que a natureza é a expressão de uma ordem definida, na qual nada interfere". "E, no entanto", exclama ele, "a educação puramente clássica defendida pelos representantes dos humanistas em nossos dias

não faz nenhuma alusão a tudo isso!".

9. No devido tempo, abordarei a problemática questão da educação clássica, mas, no momento, a questão é saber o que significa conhecer

o melhor que as nações modernas pensaram e disseram. O que se quer

dizer não é conhecer suas belles lettres. Conhecer as belles lettres italianas não é conhecer a Itália e conhecer as belles lettres inglesas não é conhe-

cer a Inglaterra. Conhecer a Itália e a Inglaterra envolve muito mais coisas, Galileu e Newton entre elas. A censura de representar um humanismo superficial, uma tintura de belles lettres, pode ser ligada com bastante razão a algumas outras disciplinas, mas à disciplina particular recomendada quando propus conhecer o que de melhor foi pensado e dito no mundo, ela não se aplica. Nisso, certamente incluo o que foi pensado e dito atualmente pelos grandes observadores e conhecedores

da natureza. 10. Não há, portanto, nenhuma questão entre mim e o professor Huxley quanto a conhecer os grandes resultados do estudo científico

moderno da natureza como parte de nossa cultura, assim como conhecer os produtos da literatura e da arte. Mas seguir os processos pelos

quais esses resultados são alcançados, dizem os amigos da ciência física,

343

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO deve tornar-se o elemento básico da educação para a maior parte da humanidade. E aqui surge uma questão entre aqueles a quem o profes-

sor Huxley chama com sarcasmo brincalhão de "os levitas da cultura"

e aqueles que o pobre humanista às vezes pode considerar como seus

Nabucodonosores. 11. Estamos de acordo em conhecer os grandes resultados da investigação cientí ca da natureza, mas quanto de nosso estudo devemos dedicar aos processos pelos quais esses resultados são alcançados? Os resultados

têm uma relação visível com a vida humana, mas todos os processos também, todos os fatos pelos quais esses resultados são alcançados e

estabelecidos, são interessantes. Todo conhecimento é interessante para um homem sábio, e o conhecimento da natureza é interessante para todos os homens. É muito interessante saber que da clara albuminosa do ovo o pintinho no ovo obtém os nutrientes para sua carne, ossos, sangue e penas, enquanto da gema gordurosa do ovo ele obtém o calor e

a energia que o habilitam finalmente a quebrar a casca e começar a viver no mundo. E menos interessante, talvez, mas ainda é interessante, saber

que quando uma vela queima, a cera é convertida em ácido carbônico e

água. Além disso, é bem verdade que o hábito de lidar com os fatos, o que se dá pelo estudo da natureza, é, como os amigos da ciência física dizem, uma excelente disciplina. No estudo da natureza, preconiza-se a capacidade de observação e experimentação, não só em teoria, mas na prática. Podem nos dizer que a cera da vela queimando é convertida em ácido carbônico e água, assim como podem nos dizer, se quiserem, que Caronte navega com sua barca no rio Estige, que Victor Hugo é um

poeta sublime ou que Mr. Gladstone é o mais admirável dos estadistas, mas no caso da vela, vemos que a conversão em ácido carbônico e água realmente acontece. É esta realidade do conhecimento natural que

faz os amigos da ciência física contrastá-la, enquanto conhecimento,

com o conhecimento humanista, que é, segundo eles, o conhecimento

das palavras. E, portanto, o professor Huxley acaba estabelecendo que,

"com o propósito de atingir uma verdadeira cultura, uma educação exclusivamente cientí ca é no mínimo tão e caz quanto uma educação exclusivamente literária". E certo presidente da seção de ciências me-

cânicas da associação britânica é, na expressão das Escrituras, "muito ousado", declarando que "um homem que em sua formação intelectual

fi

fi

fi

344

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS substituiu a ciência natural pela literatura e história escolheu a alternativa menos útil'. Mas, indo ou não tão longe, devemos admitir que, na ciência natural, o hábito adquirido de lidar com fatos é uma disciplina valiosíssima e todos deveriam investir um pouco em desenvolver esse

hábito. 12. De qualquer maneira, os reformadores exigem mais do que isso: fazer das ciências naturais a principal parte da educação, pelo menos para a grande maioria da humanidade. E aqui, confesso, separo-me dos amigos da ciência física, com quem até aqui tenho concordado. Ao diferir deles, entretanto, desejo proceder com a maior cautela. Tenho plena consciência de que meu conhecimento em relação às disciplinas da ciência natural é parco e temo cometer uma injustiça com essas disciplinas. Por conta de sua habilidade e combatividade, os partidários da ciência natural acabam sendo ótimas pessoas para contestar. O tom de investigação experimental, que convém a um ser de faculdades duvidosas e conhecimento limitado, é o tom que eu gostaria de adotar e manter. No momento, parece-me que aqueles que pretendem dar ao conhecimento natural (como eles o chamam) o principal lugar na educação da maioria da humanidade ignoram um ponto fundamental: a constituição da natureza humana. Digo isso com base em alguns fatos bem conhecidos, passíveis de serem enunciados da maneira mais simples possível, de modo que o homem de ciência não terá como não lhes dar o devido peso.

13. Parece-me que negar completamente os fatos ele não poderá. Dificilmente ele poderá negar, quando enumerarmos os poderes necessários à edificação da vida humana, a saber, o poder da conduta, o poder do intelecto e do conhecimento, o poder da beleza e o poder da vida social e das boas maneiras, que esse esquema, embora traçado em linhas grosseiras, sem pretender exatidão científica, apresenta uma representação bastante fiel da questão. A natureza humana é construída

por esses poderes; temos a necessidade de todos eles. Quando tivermos atendido e ajustado corretamente as reivindicações de todos eles, estare-

mos, então, em condições de obter sobriedade e justiça com sabedoria. Isso é bastante evidente, e os amigos da ciência física o admitiriam.

14. Mas talvez eles não tenham observado su cientemente outra coisa:

os vários poderes que acabamos de mencionar não estão isolados, ha-

fi

345

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO vendo, de modo geral, uma tendência perpétua de relacioná-los uns aos

outros de diversas maneiras. Em uma dessas maneiras de relacioná-los decidi concentrar-me agora. Seguindo nosso instinto de intelecto

e conhecimento, adquirimos pedaços de conhecimentos, e, logo em seguida, surge na maioria de nós o desejo de relacionar esses pedaços

de conhecimento com nosso senso de conduta, nosso senso de beleza. A frustração desse senso gera cansaço e frustração. Ora, nesse desejo

reside, creio eu, a força daquela influência que as letras têm sobre nós. 15. Como eu disse há pouco, todo conhecimento é interessante; e mesmo partes de conhecimento que, pela natureza do caso, não podem ser relacionadas, devendo permanecer isoladas em nossa mente, têm seu

encanto. Mesmo as listas de exceções têm seu encanto. Se estivermos

estudando acentos gregos, é interessante saber que pais e pas, como alguns outros monossílabos com a mesma forma de declinação, não assumem o circunflexo na última sílaba do plural genitivo, mas variam,

a este respeito, em relação à regra comum. Se estivermos estudando fisiologia, é interessante saber que a artéria pulmonar carrega sangue escuro e a veia pulmonar carrega sangue claro, diferenciando-se, a esse

respeito, da regra comum de divisão do trabalho entre veias e artérias. Mas todos sabem que procuramos naturalmente combinar as partes de nosso conhecimento, colocá-las sob regras gerais, relacioná-las com princípios, e que seria insatisfatório e cansativo continuar aprendendo para sempre listas de exceções ou acumulando fatos que devem permanecer isolados.

16. Pois bem, essa mesma necessidade de relacionar nosso conhecimento, que opera aqui dentro da esfera de nosso próprio conhecimento,

opera também fora dessa esfera. À medida que aprendemos e conhecemos, experimentamos (a grande maioria de nós experimenta) a necessidade de relacionar o que aprendemos e conhecemos com nosso senso de conduta, nosso senso de beleza. 17. Diotima, profetisa grega de Mantineia, em Arcádia, certa vez explicou ao filósofo Sócrates que amor, impulso e qualquer outro tipo de inclinação, na verdade, nada mais são do que o desejo dos homens de que o bem esteja sempre presente para eles. Esse desejo pelo bem, Diotima assegurou Sócrates, é nosso desejo fundamental, do qual cada impulso

em nós é somente uma forma particular. E, portanto, é esse desejo

346

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS fundamental, suponho (esse desejo nos homens de que o bem esteja sempre presente para eles) que atua em nós quando sentimos o impulso

de relacionar nosso conhecimento com nosso senso de conduta e nosso

senso de beleza. De qualquer forma, esse instinto existe nos homens em geral: essa é a natureza humana. E esse instinto é puro, de modo

que a natureza humana é preservada por seguirmos o exemplo de seus

instintos puros. Portanto, ao buscar gratificar esse instinto em questão, estamos seguindo o instinto de autopreservação da humanidade.

18. Mas, sem dúvida, alguns tipos de conhecimento não podem servir diretamente ao instinto em questão, não podem ser diretamente relacionados ao senso de beleza, ao senso de conduta: são os chamados conhecimentos instrumentais, que conduzem a outros conhecimentos que podem. Um homem que passa a vida no conhecimento instrumental torna-se um especialista, é verdade. Esses conhecimentos podem servir de instrumento para produzir algo, para aqueles que têm o dom de empregá-los, e podem ser disciplinas em si, de modo que todos devem ter alguma idéia do que eles tratam. Mas é inconcebível que a maioria das pessoas passe a vida inteira debruçada sobre acentos gregos

ou a lógica formal. Meu amigo professor Sylvester, um dos melhores

matemáticos do mundo, defende doutrinas transcendentais quanto à

virtude da matemática, mas essas doutrinas não são para homens comuns. No próprio Senado e no coração de nossa Cambridge inglesa, uma vez me aventurei, embora não sem um pedido de desculpas pela profanação, a afirmar que, para a maioria das pessoas, um pouco de matemática já é o suficiente. É claro que essa minha opinião condiz

com o fato de que a matemática tem imensa importância como instrumento, mas são poucos os que têm aptidão para usá-la, não a maior

parte da humanidade. 19. As ciências naturais, entretanto, não estão no mesmo nível desses

conhecimentos instrumentais. De acordo com a experiência, a maioria das pessoas tem mais interesse em aprender que a cera é convertida em ácido carbônico e água quando a vela queima, aprender como se forma o orvalho ou aprender sobre a circulação do sangue do que aprender que o genitivo plural de pais e pas não leva acento circunflexo na ter-

minação. E um conhecimento natural leva a outro, que leva a outro, e

chegamos a proposições interessantíssimas, como a famosa proposição

347

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO do Sr. Darwin de que "nosso ancestral era um quadrúpede peludo, com

cauda e orelhas pontudas, provavelmente herbívoro". Ou chegamos a proposições de tal alcance e magnitude como aquelas que o professor Huxley oferece, quando diz que as noções de nossos antepassados sobre o início e o fim do mundo estavam todas erradas e que a natureza é a expressão de uma ordem definida na qual nada interfere. 20. De fato, são interessantes e importantes esses resultados da ciência,

e todos nós devemos estar familiarizados com eles. Mas o que desejo

que vocês observem agora é que ainda estamos, quando eles nos são

propostos, na esfera do intelecto e do conhecimento. A maioria das pessoas, ao aceitar a proposição de que seu ancestral era "um quadrúpede peludo, com cauda e orelhas pontudas, provavelmente herbívoro", descobrirá o surgimento de um desejo incontrolável de relacionar essa proposição a seu senso de conduta e seu senso de beleza, mas isso os homens de ciência não farão por nós e dificilmente professarão fazer. Eles nos darão outras informações, outros fatos, sobre outros animais e seus ancestrais, ou sobre plantas, pedras ou estrelas; e eles podem finalmente

nos levar a essas grandes "concepções gerais do universo, que têm sido

impostas sobre nós pela ciência física", diz o professor Huxley, mas ainda será conhecimento apenas o que eles nos dão, conhecimento apresentado para nós sem relação com nosso senso de conduta, nosso senso de beleza, conhecimento sem emoção, que, depois de certo tempo, torna-se insatisfatório e cansativo para nós e para a maioria das pessoas.

21. Não para o naturalista nato, admito. Mas o que queremos dizer com naturalista nato? Queremos dizer um homem em quem o zelo pela observação da natureza é tão incomumente forte que o distingue do grosso da humanidade. Tal homem passará sua vida feliz, reunindo conhecimento natural e raciocinando sobre ele, sem pedir nada mais

(ou quase nada). Ouvi dizer que o sagaz e admirável naturalista que perdemos não muito tempo atrás, o Sr. Darwin, certa vez admitiu para um amigo que, de sua parte, ele não sentia a necessidade de duas coisas que a maioria das pessoas consideram fundamentais: religião e poesia. A ciência e as afeições domésticas, dizia ele, bastavam. Para um naturalista nato, posso entender muito bem que assim seja. Tão envolvente é sua ocupação com a natureza, tão forte seu amor por sua ocupação, que ele vai adquirindo conhecimento natural e raciocinando sobre ele,

348

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS de modo que lhe sobra pouco tempo ou inclinação para pensar em relacioná-lo com nosso desejo de conduta e de beleza. Ele mesmo re-

laciona esse conhecimento ao senso de conduta e beleza à medida que avança, na medida em que sente necessidade, tirando das afeições do-

mésticas todo o consolo adicional necessário. Mas os Darwins da vida

são extremamente raros. Outro grande e admirável mestre do conhecimento natural, Faraday, era um sandemaniano, ou seja, relacionava seu conhecimento a seu instinto de conduta e a seu instinto de beleza

com a ajuda daquele respeitável secretário escocês, Robert Sandeman. E tão forte, em geral, é a demanda da religião e da poesia para fazer parte do homem, de seu saber, trazendo-lhe alívio e alegria, que, provavelmente, para um homem com disposição para fazer como fazia Darwin a esse respeito, há pelo menos cinqüenta com disposição para fazer como Faraday.

22. A educação apodera-se de nós, atendendo a essa demanda. O professor Huxley despreza a educação medieval com sua negligência do conhecimento da natureza, sua pobreza até mesmo de estudos literários, sua lógica formal dedicada a "expor como e por que era verdadeiro aquilo que a Igreja havia dito". Acontece que as grandes universidades medievais não foram criadas, podemos ter certeza, pelo zelo em oferecer uma educação simplista e desprezível. Os reis e as rainhas têm sido seus cuidadores, mas não por isso. As universidades medievais surgiram porque o suposto conhecimento, transmitido pelas Escrituras e pela Igreja, envolveu profundamente os corações dos homens, por se relacionar de forma tão simples, fácil e poderosa com seu desejo de conduta, seu desejo de beleza. Todos os outros saberes eram dominados por esse suposto saber e a ele estavam subordinados, pela força insuperável do domínio que ganhava sobre as afeições dos homens, por aliar-se tão fortemente ao seu sentido de conduta, seu sentido de beleza.

23. Mas agora, diz o professor Huxley, a ciência física impõe-nos concepções do universo fatais para as noções sustentadas por nossos antepassados. Digamos que elas sejam realmente fatais: que as novas concepções logo se tornem conhecidas em todos os lugares e que todos finalmente concordem que elas são fatais para as crenças de nossos antepassados. A necessidade das letras humanas, como são chamadas, porque atendem ao desejo supremo dos homens de que o bem esteja

349

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO sempre presente para eles, em estabelecer uma relação entre as novas

concepções e nosso instinto de beleza, nosso instinto de conduta, é somente a mais visível. A Idade Média poderia passar sem letras hu-

manas, assim como poderia passar sem o estudo da natureza, porque seu suposto conhecimento visava envolver as emoções. Se esse suposto

conhecimento desaparecesse, seu poder de envolvimento naturalmente desapareceria junto, mas as emoções em si permaneceriam. Agora, se descobrirmos, por experiência, que as letras humanas têm um poder inegável de envolver as emoções, sua importância na formação do homem torna-se não menor, mas maior, em proporção ao sucesso da ci-

ência moderna em extirpar o que chama de "pensamento medieval".

24. As letras humanas, a poesia e a eloquência, então, têm o poder aqui atribuído a elas de envolver as emoções? E elas exercem esse poder? Em caso afirmativo, como elas influenciam o senso de conduta e beleza

do homem? Finalmente, mesmo que elas influenciem os sentidos em

questão, como se relacionam com os resultados (modernos) da ciência natural? Todas essas perguntas podem ser feitas. Primeiro, a poesia e a eloquência têm o poder de evocar emoções? A resposta está na experiência. A experiência mostra que para a grande maioria dos homens, para a humanidade em geral, elas têm esse poder. Em seguida, elas o exercem? Sim. Mas como elas influenciam o senso de conduta e beleza

do homem com esse poder? Aqui, talvez caibam as palavras do pregador: "Por mais que trabalhe o homem para a descobrir, não a achará; e,

ainda que diga o sábio que a conhece, nem por isso a poderá compreender". Por que haveria de ser uma coisa, em seu efeito sobre as emoções,

dizer: "A paciência é uma virtude", e outra coisa bem diferente, em seu

efeito sobre as emoções, dizer, como Homero: TÂntòv yỏp Moipar Avuor

écav ¿vApátoLor, "pois um coração perseverante reservou o destino

aos filhos dos homens"? Por que haveria de ser uma coisa, em seu efeito sobre as emoções, dizer, como o filósofo Spinoza: Felicitas in ea consistit quad homo suum esse conservare potest, "A felicidade do homem consiste em ser capaz de preservar sua própria essência", e outra coisa bem

diferente, em seu efeito sobre as emoções, dizer, como o Evangelho: "Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vem a per-

12 Ecl 8, 17 — NT.

350

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS der-se a si mesmo e se causa a sua própria ruína?" 3 Como surge essa

diferença de efeito? Não sei e não estou muito preocupado em saber; o que importa é que ela existe e que podemos lucrar com ela. Mas como, afinal, a poesia e a eloquência exercem o poder de relacionar os resultados modernos da ciência natural ao instinto de conduta e beleza do homem? E aqui, novamente, respondo que não sei como, mas tenho certeza de que exercem. Não estou dizendo que os poetas filosóficos modernos e os moralistas filosóficos modernos devem relacionar para nós, em termos expressos, os resultados da pesquisa científica moderna a nosso instinto de conduta e beleza. O que estou dizendo é que descobriremos, pela experiência, se conhecermos o que de melhor foi pensado e dito no mundo, que a arte, a poesia e a eloquência de homens que viveram, talvez há muito tempo, com um conhecimento natural bastante limitado e as concepções mais errôneas sobre diversos assuntos importantes, têm, de fato, não só o poder de nos revigorar e deleitar, mas também, como a força e o valor da crítica de seus autores à vida, um poder fortificante, elevado, catalisador e sugestivo, capaz de nos ajudar a relacionar maravilhosamente os resultados da ciência moderna à nossa necessidade de conduta e beleza. As concepções de Homero sobre o universo físico eram, imagino, grotescas, mas, para dizer a ver-

dade, diante do choque de ouvir da ciência moderna que "o mundo não está subordinado ao uso do homem e que o homem não é o centro do universo", ainda prefiro o consolo do verso de Homero que citei agora mesmo: Tìntòv yảp Moipar Avuòv lécav &vOpútoIrv, "pois um coração perseverante reservou o destino aos filhos dos homens"!

25. E quanto mais as mentes dos homens são desobstruídas, mais os resultados da ciência são aceitos, mais a poesia e a eloquência passam a ser recebidas e estudadas pelo que realmente são (uma crítica da vida

realizada por homens talentosos, vivos e ativos, com poderes extraordi-

nários em muitos aspectos), mais o valor das letras humanas e da arte,

uma expressão com poder semelhante, será reconhecido, assegurando seu lugar na educação. 26. Evitemos, pois, todos nós, na verdade, tanto quanto possível, qual-

quer comparação invejosa entre os méritos das letras humanas, como meio de educação, e os méritos das ciências naturais. Mas quando al-

13 Lc 9,25 - NT.

351

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO gum presidente de uma seção de ciências mecânicas insiste em fazer a

comparação e nos diz que "um homem que em sua formação intelectual

substituiu a ciência natural pela literatura e história escolheu a alternativa menos útil", devemos responder que o estudante de letras humanas conhecerá, pelo menos, as grandes concepções trazidas pela ciência física moderna, pois a ciência, como diz o professor Huxley, impõe-se a nós todos, mas o estudante das ciências naturais provavelmente nada saberá das letras humanas. Sem falar que, ao empenhar-se em acumular perpetuamente o conhecimento natural, ele propõe-se a fazer o que só os especialistas, em geral, têm o dom de fazer com alegria. E então ele provavelmente ficará insatisfeito, ou pelo menos incompleto, e ainda mais incompleto do que o estudante de letras humanas.

27. Certa vez, mencionei em um relatório escolar o caso de um jovem de uma de nossas faculdades de inglês, que, tendo de parafrasear a passagem em Macbeth que começa com Não podes remediar uma mente enferma?

transformou esta frase em: "Não podes atender ao lunático?". E observei que curioso seria se cada aluno de nossas escolas nacionais soubesse, digamos, que a Lua tem cerca de três mil e quinhentos quilômetros de diâmetro, e pensasse, ao mesmo tempo, que uma boa paráfrase para "Não podes remediar uma mente enferma?" é: "Não podes atender ao lunático?". Se tivesse de escolher, acho que preferiria um jovem que não conhece o diâmetro da Lua, mas sabe que "não podes atender ao lunático?" é ruim, a um jovem cuja educação foi suficiente para resolver o desafio de outra maneira (e não resolveu). 28. Ou, indo além dos alunos de nossas escolas nacionais, lembro-me de um membro do nosso Parlamento britânico que vem aqui para a América, depois relata suas viagens e mostra um conhecimento realmente magistral da geologia deste grande país e de suas capacidades

de mineração, mas que acaba gravemente sugerindo que os Estados Unidos deveriam tomar emprestado um príncipe de nossa família real e torná-lo rei, criando uma Câmara dos Lordes de grandes proprietários de terras segundo o nosso padrão; e então a América, diz ele, teria

um futuro feliz e perfeitamente assegurado. Certamente, neste caso, o

próprio presidente da seção de ciências mecânicas dificilmente diria que

352

DESCOBERTA DE ARGUMENTOS nosso membro do Parlamento, ao concentrar-se em geologia, mineralo-

gia e assim por diante, sem dar atenção à literatura e história, "escolheu a alternativa mais útil"

29. Se, então, deve haver divisão e escolha entre as letras humanas, de

um lado, e as ciências naturais, do outro, a grande maioria da huma-

nidade, todos os que não têm aptidões excepcionais para o estudo da natureza, faria bem, não posso deixar de pensar, em escolher as letras

humanas em vez das ciências naturais. As letras desenvolverão seu ser

em mais pontos, fazendo-os viver mais.

353

CAPÍTULO II

Disposição do conteúdo

Drosvenção que os ou escritores descoberta,encontram, algo a dizer por sobre meio um determinado do processo assunto, de in eles se deparam com o problema de selecionar e organizar o conteúdo

disponível para cumprir seu propósito. Como geralmente não é possível nem recomendável usar todo o conteúdo disponível, eles devem selecionar os trechos mais pertinentes e convincentes. Esse conteúdo selecionado deve, então, ser colocado em alguma ordem, pois, sem ordem, até o melhor conteúdo, mesmo escolhido com rigoroso critério, perde a força. Os retóricos clássicos lidaram com os problemas de seleção e disposição naquela parte da retórica que os gregos chamavam de taxis e os latinos chamavam de dispositio; usaremos o termo disposição. Se quisermos aproveitar os preceitos clássicos sobre dispositio, devemos chegar a um entendimento claro do que dispositio significava para os antigos. Para muitas pessoas, disposição significa simplesmente o estudo das várias partes de um discurso: (1) o exordium ou introdução;

(2) a narratio ou declaração de fatos ou circunstâncias que precisam ser conhecidos sobre o assunto de nosso discurso; (3) a confirmatio ou prova de nosso caso; (4) a refutatio ou descrédito das visões opostas; (s) a peroratio ou conclusão. A retórica clássica, de fato, baseava-se nessas partes e nessa sequência, mas considerava também o planejamento estratégico de toda a composição.

355

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Quintiliano ressalta a importância da disposição quando diz que a

disposição está para a oratória assim como a estratégia militar está para a guerra. Seria tolice sujeitar um general a uma disposição fixa e predeterminada de suas forças. Ele deve ficar livre para distribuir as tropas na

ordem e proporção mais adequadas a cada momento. Dependendo do caso, ele concentrará algumas tropas em um determinado ponto da linha de combate, diminuirá o efetivo em outros pontos, manterá outras

tropas na reserva e talvez concentre os principais soldados na área mais

crucial. Guiado pelo juízo e pela imaginação, o general está pronto para fazer quaisquer ajustes na estratégia.

Cícero tornou explícito o duplo aspecto da disposição quando disse que o orador "deve primeiro descobrir o que deve dizer; em seguida,

dispor e organizar seu assunto, não só em uma determinada ordem, mas de acordo com a importância do assunto e o julgamento do orador" (De Oratore, 1, 31). Aqueles que buscam persuasão serão guiados nas decisões sobre a disposição adequada de seus recursos por uma série de considerações: 1. O tipo de discurso utilizado: deliberativo, judicial ou cerimonial.

2. A natureza do assunto: uma consideração que, por sua vez, determinará a quantidade e a qualidade do assunto disponível. 3. O próprio ethos: sua personalidade, seu viés moral e filosófico, suas limitações e capacidades.

4. A natureza do público: sua idade, seu nível social, político, econômico e educacional, seu estado de espírito no momento.

O que tudo isso sugere é que disposição é o que Aristóteles quis dizer com techne: uma arte pela qual se adaptam os meios a um fim.

O que os retóricos clássicos pareciam estar buscando com dispositio era aquela "forma subordinada" da qual Ronald S. Crane falava quando descreveu a própria experiência de compor um ensaio. A passagem merece ser citada na íntegra: O processo de composição literária tem sido frequentemente dividido de forma

bastante grosseira (especialmente por autores de livros didáticos sobre a escrita em inglês) em dois estágios: um estágio de leitura preparatória, pensamento, pla-

nejamento, incubação, e um estágio de colocação dos materiais assim reunidos em palavras; e o que acontece no segundo estágio geralmente tem sido descrito

356

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO como uma transferência direta para o papel das idéias ou imaginações que o escritor obteve no primeiro estágio, uma questão simples, isto é, a questão de

dar ao conteúdo adquirido uma expressão verbal apropriada. Eu mesmo ensinei essa doutrina simplista aos alunos, mas creio ter abandonado essa prática desde

que comecei a meditar sobre o fato perturbador de que muitas vezes, ao tentar escrever um ensaio depois de longa e dedicada concentração no assunto, além de observar muitas idéias interessantes/termos-chave e construir o que parecia ser

um esboço perfeito, descobri-me incapaz de compor a primeira frase ou mesmo de saber do que deveria tratar, ou, tendo me forçado a continuar, de trazer a coisa a uma conclusão satisfatória, ao passo que, em outras ocasiões, sem grandes

preparações, desejo de escrever e estado de espírito, descobri, para minha alegria, que quase tudo se encaixou rapidamente, as palavras certas vieram (ou pelo menos palavras que eu não poderia mudar mais tarde), e as frases e parágrafos

seguiram-se sem problemas, e em uma ordem que ainda me parecia inevitável quando eu voltava a reler o ensaio a sangue-frio.

Tive muito mais experiências do primeiro tipo do que do segundo, de modo que tentei isolar o motivo da diferença. E a melhor maneira de explicar é dizer

que o que não consegui alcançar nos primeiros casos, e no último consegui de

alguma forma, em algum momento do processo, foi uma espécie de vislumbre

intuitivo de uma possível forma de subsunção do conteúdo, ou pelo menos da-

queles trechos aos quais atribuí mais importância, que reuni em minha mente e em anotações, uma forma su cientemente coerente e inteligível, como forma mental, para que eu soubesse imediatamente o que deveria ou poderia fazer, o que não precisaria ou não deveria, em que ordem e com que ênfase, ao desenvolver meus argumentos e colocá-los em palavras. Nunca fui capaz de escrever nada que me parecesse, em retrospecto, possuir qualquer qualidade de totalida-

de orgânica, por mais desinteressante ou tênue, exceto em resposta a uma idéia

tão sintetizadora. É mais do que uma intenção geral, mais do que um "tema" e mais do que um esboço no sentido usual da palavra; é, como eu disse, uma causa

modeladora ou direcionadora, envolvendo, ao mesmo tempo e com algum tipo de correlação, a forma conceitual particular que meu assunto deve assumir em meu ensaio, o modo particular de argumento ou retórica que estou acostumado

a usar ao discutir e o m especí co de minha discussão: devo saber, de alguma forma, pelo menos essas três coisas antes de prosseguir com sucesso.'

Ronald S. Crane, The Languages of Criticism and the Structure of Poetry, The Alexander Lectures,

1951-52. Reproduzido com permissão da University of Toronto Press.

fi

fi

fi

357

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Se a análise do professor Crane do processo de escrita for precisa,

a composição parece exigir do escritor uma série de julgamentos e

decisões preliminares, bem como atuais. No livro vIi, capítulo 1o de Instituição oratória, Quintiliano assinalou que a disposição está relacionada a julgamentos e decisões sobre questões como estas: 1. Quando é necessária uma introdução e quando ela pode ser omitida ou

abreviada? 2. Quando devemos tornar nossa declaração de fatos contínua e quando devemos dividi-la e inseri-la passim (aqui e ali)?

3. Em que circunstâncias podemos omitir totalmente a declaração dos fa-

tos? 4. Quando devemos começar lidando com os argumentos apresentados por nossos opositores e quando devemos começar apresentando nossos próprios argumentos? 5. Quando é aconselhável apresentar nossos argumentos mais fortes primeiro e quando é melhor começar com nossos argumentos mais fracos até chegar aos mais fortes? 6. Quais de nossos argumentos nosso público aceitará prontamente e quais eles devem ser induzidos a aceitar?

7. Devemos tentar refutar os argumentos de nossos opositores como um todo ou lidar com eles em detalhes? 8. Quanto apelo ético devemos exercer para atrair o público? 9. Devemos reservar nossos apelos emocionais para a conclusão ou distri-

buí-los ao longo do discurso? 10. Que evidências ou documentos devemos usar e onde, no discurso, esse

tipo de argumento será mais eficaz?

Os escritores enfrentarão essas e muitas outras questões quando se sentarem para planejar composições, devendo utilizar todos os seus poderes discricionários para decidir. Seu bom senso e intuição naturais serão indispensáveis quando eles tiverem que tomar decisões cruciais sobre estratégias apropriadas, mas a retórica pode estabelecer certos princípios gerais para orientá-los nesse estágio. Cabe aos escritores, contudo, discernir onde e como esses princípios serão aplicáveis a uma situação particular.

358

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO Aqui, devemos enfatizar que a disposição do conteúdo não é uma questão aleatória. A importância de uma disposição adequada é exemplificada por um incidente: os dois grandes oradores atenienses,

Ésquines e Demóstenes, envolveram-se em uma disputa oratória sobre

a proposta de Cresifonte de recompensar Demóstenes por seus servi-

ços com uma coroa de ouro. Naquela ocasião, Ésquines propôs aos juízes que Demóstenes fosse obrigado a observar a mesma ordem de argumento que ele havia seguido ao apresentar o seu, mas Demóstenes

percebeu logo que a ordem de Esquines seria desvantajosa para sua

própria apresentação. Conseqüentemente, ele implorou aos juízes que The permitissem seguir qualquer ordem que considerasse adequada. Demóstenes percebeu que a disposição de seus argumentos poderia ser o fator decisivo na disputa. O melhor dos argumentos pode ser enfraquecido ou anulado se inserido no lugar errado ou apresentado com ênfase ou proporção inadequada.

AS PARTES DE UM DISCURSO A maioria dos retóricos reconhecia cinco partes no discurso argumen-

tativo usual: exordium, narratio, confirmatio ou probatio, refutatio e peroratio. Esses termos foram explicados resumidamente no capítulo introdutório deste livro. Neste texto, trataremos de quatro partes, utilizando os seguintes rótulos: introdução, declaração de fatos, confirmação e conclusão. Esse tipo de divisão do discurso difere do sistema resumido que o aluno pode ter aprendido, que geralmente é organizado por tópicos, enquanto esse sistema de partição é determinado pelas funções das várias partes do discurso.

Usaremos essas quatro partes como princípio organizador deste capítulo, mas, de acordo com a visão clássica da dispositio, estaremos constantemente apontando os possíveis ajustes na seqüência, proporção, ênfase e matiz de acordo com o assunto, a ocasião, o propósito ou

o público.

INTRODUÇÃO Etimologicamente, introdução significa "conduzir a". Os termos retóricos gregos e latinos para essa parte traziam a mesma sugestão. O termo

359

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

grego proemium significa "antes da canção"; o termo latino exordium significava "iniciar uma teia", montando uma trama ou dispor uma urdidura. A função básica da introdução é conduzir o público ao discurso. Instintivamente, sentimos que uma entrada abrupta e imediata no corpo de nosso discurso desestabilizaria e confundiria o público. Na maioria dos casos, o público deve ser "preparado" para o assunto do discurso. Geralmente, essa preparação da audiência tem um duplo aspecto: (1) informa a audiência sobre o fim ou objetivo de nosso discurso e (2)

dispõe a audiência para ser receptiva ao que dizemos. É concebível que

um público possa estar suficientemente bem informado sobre um assunto e suficientemente predisposto a nosso favor para que a introdução

seja muito breve ou totalmente dispensável. Mesmo nessas condições, entretanto, a maioria de nós sentiria que algum tipo de prelúdio seria

necessário (ou uma piada, uma citação apropriada, uma anedota divertida, uma insinuação gestual). Aristóteles observou que a introdução a alguns discursos é comparável aos floreios preliminares que os flautistas

faziam antes de sua apresentação, uma abertura na qual os músicos simplesmente exibiam seus dons a fim de ganhar o favor e a atenção do público para a apresentação principal. Sem esse tipo de introdução

"ornamental", o discurso teria um ar abrupto, negligente, inacabado.

Portanto, é um discurso raro aquele que mergulha diretamente no "cerne da questão".

INfORMAR O PÚBLICO

Admitindo, então, que a maioria das composições requer algum tipo de prelúdio, consideremos a primeira das duas funções principais da in-

trodução: informar o público sobre o fim ou assunto de nosso discurso.

Ao fazê-lo, procuramos orientar o público; porém, mais importante ainda, procuramos convencer as pessoas de que o assunto de nosso dis-

curso merece sua atenção. Podemos tornar nosso assunto atraente para

o público, mostrando que ele é importante, surpreendente ou agradá-

vel. Evidentemente, a natureza do assunto com o qual lidamos determinará qual desses tópicos exploraremos. Um assunto trivial, por mais

engenhoso que seja o orador, jamais parecerá importante, mas ele pode parecer agradável ou exótico o suficiente para merecer nossa atenção.

360

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

Richard Whately, em sua obra Elements of Rhetoric inventou uma série de termos para designar os vários tipos de introdução destinados a despertar o interesse por nosso assunto:

1. Introdução inquisitiva: para mostrar que nosso assunto é importante, curioso ou interessante.

Neste exemplo de "introdução inquisitiva", Arnold J. Toynbee faz uma pergunta provocativa e, em seguida, busca sustentar o interesse do leitor, sugerindo a importância para o mundo moderno da resposta a essa pergunta: A história se repete? Em nosso mundo ocidental dos séculos XVIII e xIx, essa

questão costumava ser debatida como um exercício acadêmico. O feitiço do bem-estar que nossa civilização estava desfrutando naquela época deslumbrou

nossos avós com a curiosa noção farisaica de que eles "não eram como os outros homens'"; eles passaram a acreditar que nossa sociedade ocidental estava

isenta da possibilidade de cair nos erros e percalços que arruinaram certas civilizações cuja história, do começo ao fim, é um livro aberto. Para nós, em nossa geração, a velha questão assumiu repentinamente um significado novo

e muito prático. Despertamos para a verdade (como pudemos estar tão cegos para ela?) de que o homem ocidental e suas obras não são menos vulneráveis do que as civilizações agora extintas dos astecas e incas, dos sumérios e dos hititas.

Então, hoje, com certa apreensão, pesquisamos as escrituras do passado para

descobrir se elas contêm uma lição que podemos decifrar. A história nos dá alguma informação sobre nosso futuro? Em caso afirmativo, qual o peso dessa

informação? Ela representa uma condenação inexorável, que devemos simplesmente esperar de mãos postas, resignando-nos, da melhor maneira possível,

a um destino que não podemos evitar ou mesmo modificar com nossos próprios esforços? Ou somos informados, não de certezas, mas de probabilidades (ou possibilidades vazias) em relação ao futuro? A diferença prática é grande,

pois, nesta segunda alternativa, longe de ficarmos atordoados na passividade, devemos ser estimulados à ação. Nesta segunda alternativa, a lição da história

não seria como um horóscopo astrológico, mas uma carta de navegação, que dá ao navegante capaz de utilizá-la uma esperança muito maior de evitar um naufrágio do que quando navegava às cegas, porque lhe proporciona os meios,

361

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO se ele tiver habilidade e coragem de usá-los, de traçar uma rota entre as rochas

e recifes mapeados.?

2. Introdução paradoxal: para mostrar que, embora os pontos que estamos tentando estabelecer pareçam improváveis, eles devem, afinal,

ser admitidos.

Eis aqui um exemplo de "introdução paradoxal", escrito pelo crítico

dramático britânico Kenneth Tynan: A peça inglesa mais característica sobre o amor físico é Antônio e Cleópatra, de

Shakespeare, porque não tem cenas de amor. Os ingleses, conforme seu drama os representa, são uma nação que se comunica o tempo todo sobre o amor, sem nunca apreciá-lo. Relacionamentos físicos genuínos, que envolvem deleite mútuo, são tabus teatrais. Tem preferência o amor frustrado, do tipo sobre o qual

Coward escreveu em Brief Encounter, em que duas pessoas casadas (casadas, é claro, com duas outras pessoas) formam um vínculo triste e limitado, sem

serem capazes de desenvolvê-lo. No final de uma peça sobre um assunto bem diferente (religião, talvez, ou política), o herói costuma dizer, como faz em

Robert's Wife: "Eu estava profundamente apaixonado por uma bela mulher", e

a esposa responder: "Meu querido e doce marido", mas não há nenhuma indicação em outro lugar no texto de que eles têm mais do que delicadeza ao falar.?

3. Introdução corretiva: para mostrar que nosso assunto foi negligenciado, mal compreendido ou mal representado.

No primeiro parágrafo da seguinte "introdução corretiva", George Orwell afirma que existe um consenso geral sobre o problema, mas que existe um mal-entendido generalizado sobre a causa e a importância do problema; então, no segundo parágrafo Orwell sugere a linha "corretiva" que seu ensaio tomará: As pessoas que dão alguma importância à questão admitiriam, na sua maior parte, que a língua inglesa vai mal, mas presume-se geralmente que nada há que se possa fazer em termos de ação consciente. A nossa civilização está de-

2

Civilization on Trial, de Arnold J. Toynbee, Copyright 1948 por Oxford University Press, Inc.; renovado em 1975 por Arnold Joseph Toynbee. Reproduzido com permissão do editor.

3

Curtains, de Kenneth Tynan. Atheneum Publishers, 1961.

362

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO cadente, e a nossa língua, segundo este argumento, tem inevitavelmente de partilhar o colapso geral. Segue-se que qualquer luta contra os abusos de lin-

guagem é um arcaísmo sentimental, como preferir velas à luz elétrica ou cabriolés a aviões. Subjacente a isto está a crença semiconsciente de que a língua é uma coisa natural e não um instrumento a que damos forma em função dos nossos propósitos.

Ora, é claro que o declínio de uma língua tem de ter, em última análise, causas políticas e econômicas; não se deve apenas à má in uência deste ou

daquele autor. Mas um efeito pode tornar-se uma causa, reforçando a cau-

sa original e produzindo o mesmo efeito de forma intensificada, e assim por diante sem fim. Um homem pode entregar-se à bebida porque sente que é um fracassado, e depois ser um fracassado mais completo porque bebe. É precisamente a mesma coisa que está a acontecer à língua inglesa. Torna-se feia e imprecisa porque os nossos pensamentos são tolos, mas o desmazelo da nossa língua permite que mais facilmente tenhamos pensamentos tolos. O que importa é que se pode inverter o processo. O inglês moderno, especialmente o escrito, está cheio de maus hábitos que se espalham por imitação e que podem ser evitados se quisermos dar-nos a esse incômodo. Se nos livrarmos destes hábitos, podemos pensar mais claramente, e pensar mais claramente é um primeiro passo necessário em direção à regeneração política; de modo que lutar contra o mau inglês não é frívolo e não interessa exclusivamente a escritores profissionais. Voltarei a este aspecto, e espero que nessa altura o significado do

que aqui afirmei se tenha tornado mais claro. Entretanto, eis cinco espécimes

da língua inglesa tal como é hoje habitualmente escrita.+

4. Introdução preparatória: para explicar um modo incomum de desenvolver nosso assunto, para evitar algum equívoco em relação a nosso propósito ou para desculpar-se por algumas deficiências.

Aqui, no primeiro parágrafo de O mar que nos cerca, de Rachel Carson, temos um exemplo de "introdução preparatória", uma introdução na qual a Srta. Carson explica como ela procederá, sem relatos

de testemunhas oculares, para contar a história do início do oceano:

"Política e língua inglesa", em Atirando num elefante, de George Orwell, copyright © 1950 € reproduzido com permissão de Harcourt Brace Jovanovich, Inc. [tradução de Desidério Murcho).

fl

363

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Os inícios tendem a ser sombrios, e o mesmo ocorre com o início da grande

mãe da vida, o mar. Muitas pessoas têm discutido a respeito da origem do oceano na Terra, sem chegar a um consenso, pois a verdade inescapável é que ninguém estava lá para ver, e, na ausência de relatos de testemunhas oculares,

é provável que haja certa discordância. Portanto, se eu contar aqui a história

de como o jovem planeta Terra adquiriu um oceano, deverá ser uma história reconstituída a partir de muitas fontes, com capítulos inteiros cujos detalhes

só poderemos imaginar. A história baseia-se no testemunho das rochas mais antigas da Terra, que eram jovens quando a Terra era jovem; em outras evidên-

cias escritas na face do satélite terrestre, a Lua; e nas pistas contidas na história

do Sol e de todo o universo do espaço estrelado. Pois embora nenhum homem

estivesse lá para testemunhar esse nascimento cósmico, as estrelas, a Lua e as

rochas estavam lá e, de fato, tinham muito a ver com o fato de que existe um

oceano! 5. Introdução narrativa: para despertar o interesse por nosso assunto.

A abertura narrativa é um dos artifícios mais antigos e eficazes para prender a atenção do leitor. De um artigo do The Nation sobre o miste-

rioso assassinato da mãe e do pai de Melvin Dean Nimer, de oito anos,

eis um exemplo de "introdução narrativa": Acendeu uma luz na mesa telefônica central do escritório da New York Tele-

phone Company, na Forest Avenue, West Brighton, S. I., exatamente às 2h04

do dia z de setembro de 1958. A Sra. Catherine B. Thompson, uma das operadoras de plantão, conectou a linha e ouviu o som de uma respiração pesada. "Alô", disse ela, "alô", mas não houve resposta. Apenas o som da respiração. A

Sra. Thompson voltou-se para outra operadora, a Sra. Florence Parkin, e pediu-lhe para rastrear a ligação. A Sra. Parkin descobriu rapidamente que vinha

de uma casa no número 242 da Vanderbilt Avenue. Então, ela interrompeu a linha, deixando-a aberta, enquanto a Sra. Thompson notificava a polícia de que algo parecia estar errado.

Enquanto a Sra. Thompson falava com o sargento da delegacia de St. George, a Sra. Parkin ouviu a respiração difícil na linha transformar-se em voz.

"Fui esfaqueada", murmurou uma mulher.

O mar que nos cerca, de Rachel L. Carson, copyright © 1950, 1951, 1961 por Rachel L. Carson; renovado em 1979 por Roger Christie. Reproduzido com permissão de Oxford University Press, Inc.

364

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO A operadora imediatamente colocou a polícia na linha, e ela e o oficial ou-

viram a mulher repetir: "Fui esfaqueada. Fui atacada com uma faca". Um segundo depois, a voz acrescentou: "Meu marido também foi esfaqueado". Então, fez-se silêncio, que durou apenas um segundo. Uma nova voz surgiu

na linha. Era a voz de um menino. "Minha mãe está sangrando", disse ele. A Sra. Thompson avisou ao menino que a polícia já estava a caminho. "Vou esperar a polícia lá fora", respondeu ele.

"Não", exclamou ela. "É melhor você ficar com sua mãe". Esse foi o início de um drama que chocaria a nação.°

Essas são as maneiras comuns pelas quais os autores despertam inte-

resse por seu assunto ao mesmo tempo em que informam seus leitores

sobre o objetivo de seu discurso. Obviamente, haverá momentos em que não precisaremos despertar interesse pelo assunto, pois o assunto

será suficientemente interessante em si mesmo (o Dr. Kinsey teve de despertar interesse por seu relatório sobre o comportamento sexual de homens e mulheres?), as circunstâncias particulares tornarão o assunto interessante (Winston Churchill teve de despertar interesse por seu as-

sunto quando subiu na Câmara dos Comuns para fazer seu discurso "Sangue, trabalho, lágrimas e suor"?) ou o assunto terá seu próprio in-

teresse para um tipo especí co de público (o orador em uma convenção de geneticistas teve que despertar interesse por um relatório sobre DNA,

o elemento que pode conter a chave para a criação da vida humana em

um tubo de ensaio?). Considerações desse tipo determinarão se o ora-

dor ou o escritor deverá despender algum tempo na introdução com o propósito de despertar interesse por seu assunto. INSINUAR-SE AO PÚBLICO

Mesmo quando não precisamos despertar interesse por nosso assunto, às vezes precisamos dedicar um tempo à introdução para estabelecer uma relação de con ança com o público. Essa função da introdu-

6 Fred J. Cook e Gene Gleason, "He Never Had a Chance", publicado pela primeira vez no The

Nation, reproduzido de A View of The Nation: An Antology, 1955-1959, ed. H. M. Christman, pp. 152-53. Copyright © 1959 por The Nation Company, Inc. Reproduzido com permissão de The Nation, 72 Fifth Avenue, New York.

fi

fi

365

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO ção, que os retóricos latinos chamam de insinuatio, está intimamente

ligada ao apelo ético que um discurso deve exercer. Em alguns casos, os escritores precisam convencer o público de que estão qualificados para falar sobre determinado assunto. Em outros casos, eles devem neutralizar preconceitos ou equívocos sobre si mesmos ou sobre o assunto de seu discurso ou despertar hostilidade contra aqueles cujo ponto de vista

irão atacar. Como sugere o termo insinuação, os autores devem, ao estabelecer sua autoridade ou contrariar preconceitos, proceder com muita sutileza. Expor abertamente suas qualificações intelectuais e morais ("exibir seus clippings", por assim dizer) poderia parecer mera ostentação para o público, anulando, assim, o efeito pretendido. O bom senso e o bom gosto devem guiar o escritor na apresentação de suas credenciais. Uma audiência geralmente aceitará a exibição de credenciais qualifica-

das de uma pessoa se os fatos forem relatados com a devida contenção e humildade. A pessoa que diz: "Passei quinze anos estudando os problemas da delinqüência juvenil em cidades como Nova York, Chicago e Los Angeles", conseguirá estabelecer suas qualificações melhor do que a pessoa que diz: "Os profundos estudos que realizei sobre os problemas da delinquência juvenil em muitas partes do país desacreditam as idéias simplórias daqueles que investigaram os problemas com mais zelo do que sabedoria". A pessoa que se vangloria do que fez geralmente desperta mais antipatia do que confiança. No exemplo a seguir, observamos C. P. Snow apresentando modestamente suas qualificações para escrever sobre "as duas culturas", as ciências e as humanidades: Há cerca de três anos, publiquei o esboço de um problema que me ocupava a mente havia algum tempo. Um problema que eu não podia ignorar, dadas as próprias circunstâncias da minha vida. As únicas credenciais que tinha para ruminar sobre o assunto vinham dessas circunstâncias, de nada mais que um conjunto de coincidências. Qualquer pessoa com vivência semelhante teria

sentido as mesmas coisas e, creio, teria feito os mesmos comentários sobre elas. Aconteceu que era uma vivência incomum. Por formação, eu era um cientista; por vocação, um escritor. Isso era tudo. Um golpe de sorte, se quiserem, que nasceu do fato de eu vir de uma família pobre.

366

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO Mas a minha história pessoal não vem ao caso. Tudo o que preciso dizer é que vim para Cambridge e aqui desenvolvi algumas pesquisas durante um período de extrema atividade científica. Tive o privilégio de assistir da primeira

fila a um dos momentos mais extraordinariamente criativos de toda a física. E graças aos acasos da guerra, inclusive o de encontrar W. L. Bragg no buffet da estação Kettering numa manhã muito fria de 1939, fato que teve uma inAluência determinante na minha vida prática, fui capaz, e mesmo moralmente forçado, a manter desde então essa visão de primeira fila. Assim, por trinta anos mantive contato com cientistas, não apenas por curiosidade, mas como parte do meu trabalho. Durante esses mesmos trinta anos tentei dar forma aos

livros que queria escrever, o que, no devido tempo, me levou ao convívio com

escritores?

Aqueles que precisam minimizar os preconceitos contra eles devem ser igualmente discretos, mas podem ser mais abertos do que o indivíduo que deve estabelecer suas qualificações. Ninguém antipatiza com alguém que se esforça abertamente para se livrar de acusações e equívo-

cos. O senso natural de lisura do público o predispõe a ouvir "o outro lado da história".

Na tentativa de remover preconceitos, os oradores e escritores têm várias possibilidades: 1. Negar as acusações que criaram os preconceitos contra eles.

2. Admitir as acusações, mas negar sua alegada magnitude.

3. Citar uma ação ou virtude compensatória.

4. Atribuir a ação desacreditadora a um erro honesto de sua parte, um acidente ou uma compulsão inevitável.

s. Citar outros que foram culpados da mesma coisa, mas não foram acu-

sados. 6. Substituir o alegado motivo por outro diferente. 7. Criticar as calúnias e insinuações maliciosas em geral.

8. Citar o testemunho daqueles que têm uma visão diferente sobre o as-

sunto.

Reproduzido com permissão da Cambridge University Press, 1965. As duas culouras e uma segunda leitura, tadução de Geraldo Gerson de Souza e Renato de Azevedo Rezende Neto, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.

367

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Eis um breve exemplo de um homem que busca remover o preconceito contra ele. Por causa de seus escritos favoráveis aos colonos americanos, Edmund Burke, o grande parlamentar britânico, era suspeito de tendências pró-americanas e de fundamentar sua simpatia não tanto em princípios abstratos, mas em considerações de conveniência. Observe como ele responde a essas acusações: Sou acusado de ser americano. Se a afeição por aqueles sobre os quais reivindico participação na autoridade for um crime, sou culpado dessa acusação. Mas garanto-vos (e aqueles que me conhecem pública e privadamente darão testemunho de mim) que, se alguma vez um homem viveu mais zeloso pela supremacia do Parlamento e pelos direitos desta coroa imperial, esse homem sou eu. De fato, muitos outros podem saber mais sobre a extensão ou a base desses

direitos. Não pretendo ser um antiquário, advogado ou metafísico. Nunca me aventurei a colocar vossos sólidos interesses em bases especulativas. O fato de eu ter recusado constantemente a fazê-lo foi atribuído à minha incapacidade para tais dissertações; e estou inclinado a acreditar que, em parte, essa é a

causa. Jamais terei vergonha de confessar que sou tímido onde sou ignorante.

Na verdade, não estou muito empenhado em me livrar dessa incapacidade imputada, porque homens ainda menos familiarizados com esse tipo de sutileza e colocados em posições a que não devo aspirar, muitas vezes, pela mera força

da discrição civil, conduziram os negócios de grandes nações com distinta

felicidade e glória.°

Despertar hostilidade contra o opositor é geralmente mais eficaz na conclusão do que na introdução, pois é mais fácil desacreditar o êthos de uma pessoa depois de demolir seus argumentos. Mas às vezes é mais conveniente criar animosidade logo na introdução. Se as circunstâncias

dificultarem ou impossibilitarem a eliminação de preconceitos ou sus-

peitas, podemos conseguir ser ouvidos mostrando que nosso opositor é

um tolo ou um patife. E essa estratégia funciona melhor quando ado-

tada na introdução. Vimos que Sócrates, no início da Apologia, procurou levantar suspeitas sobre a integridade de Meleto. Assim, Sócrates "preparou" o público para sua subsequente refutação das acusações de

Meleto. 8 A Letter to John Farr and John Harris, Esqurs, Sheriffs of the City of Bristol, on the Affairs of America, 1777.

368

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

Nestes parágrafos de abertura de Os direitos do homem (1791-92), Thomas Paine tenta colocar o público contra Edmund Burke, o homem cujas visões políticas e sociais Paine atacará no corpo principal de seu livro: Dentre as incivilidades por meio das quais nações e indivíduos se provocam e se irritam entre si, o panfleto do Sr. Burke sobre a Revolução Francesa é um caso extraordinário. Nem o povo da França, nem a Assembléia Nacional se preocupavam com os assuntos da Inglaterra ou com o Parlamento Inglês. Que o Sr. Burke tenha desencadeado um ataque que eles não provocaram, no parlamento e em público, constitui uma conduta inescusável, do ponto de vista dos costumes, e injustificável desde uma perspectiva diplomática.

Dificilmente se poderá encontrar na língua inglesa um termo insultuoso com o qual o Sr. Burke não tenha maltratado a nação francesa e a Assembléia Nacional. Tudo que o ressentimento, o preconceito, a ignorância ou o conhecimento poderiam sugerir é espalhado na copiosa fúria de quase quatrocentas páginas. Com a tensão e o propósito que o Sr. Burke escrevia, poderia ter chegado a milhares. Quando a língua ou a pena é solta em um frenesi de paixão, é o homem e não o assunto que se esgota. Até agora, o Sr. Burke tem se equivocado e frustrado nas opiniões que for-

mou sobre os assuntos da França; mas sua esperança é tão engenhosa, ou seu desespero tão maligno, que lhe fornece novos pretextos para seguir em frente.

Houve um tempo em que era impossível fazer o Sr. Burke crer que haveria qualquer revolução na França. Sua opinião então era de que os franceses não

tinham entusiasmo para empreendê-la, nem firmeza para mantê-la. Agora que

há uma, ele tenta escapar condenando-a?

O que dissemos sobre o conteúdo e a estratégia da introdução soma-se a isso: a introdução busca fazer com que o público se torne atencioso,

benevolente, isto é, bem-disposto em relação ao escritor e sua causa, e

dócil, isto é, sujeito à persuasão. A fim de determinar o que deve ser

feito na introdução para conseguir isso, devemos considerar (1) o que temos a dizer, (2) diante de quem, (3) em que circunstâncias, (4) quais

as prováveis predisposições do público (s) quanto tempo ou espaço nos foi concedido. Uma abordagem honesta dessas considerações nos dirá não somente o que devemos fazer na introdução, mas também quanto 9 Tradução de Ricardo Doninelli-Mendes, 18PM, 2009 — NT.

369

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO tempo ela deve durar. Se percebermos que não há necessidade de tornar

nosso público atencioso, benevolente e dócil, nossa introdução pode ser muito breve: alguns floreios insinuantes e uma breve exposição da

tese bastam. Mas se a ocasião exigir que o público seja "condicionado", nossa introdução talvez tenha de ser mais elaborada. Um cuidado deve ser enfatizado aqui: as introduções tendem a ser desproporcionalmente longas. Em algum momento, os estudantes provavelmente já ouviram o conselho clássico: "Jogue fora a primeira pá-

gina de seu rascunho e comece seu rascunho final no topo da segunda página". Obviamente, não podemos seguir esse conselho de maneira mecânica, mas o princípio aqui é correto. Nosso primeiro rascunho costuma ser sobrecarregado com excesso de gordura. Uma das razões pelas quais um longo "aquecimento" é tão comum é que existe uma inércia natural a ser superada antes de podermos começar. Freqüentemente, são os escritores com pouco a dizer sobre um tópico atribuído a eles que produzem a introdução mais pesada. Eles precisam escrever um texto de oitocentas palavras. Se puderem gastar quatrocentas dessas palavras em preliminares, poderão adiar aquele terrível momento em que precisam ir direto ao assunto... e faltam apenas quatrocentas palavras! Se a

disciplina dos tópicos puder encher os "poços secos", talvez possamos evitar essa tendência de carregar a introdução. A designação do número de palavras está se tornando uma consideração cada vez mais relevante na determinação da extensão das introduções. Devido à importância do espaço de publicação nos jornais e revistas atuais, os editores estão insistindo na estrita observância de limites específicos de palavras. Pode ser que a natureza de nosso assunto ou de nosso público exija uma introdução bastante elaborada, mas fomos solicitados a desenvolver nossa tese com mil e duzentas pa-

lavras. Portanto, teremos que ignorar os receios e entrar no corpo do nosso discurso o mais rápido possível. A escrita pode beneficiar-se com

a disciplina de observar os limites de palavras: nada parece melhor para

cortar a gordura de um texto. Um indivíduo que escreve resenhas de livros de até 350 palavras logo aprende muitas lições valiosas sobre economia de recursos. Nenhuma menção foi feita até agora ao tipo de abertura que imediatamente captura o interesse do leitor. Em livros sobre a técnica da ficção ou história de personagens, esse tipo de abertura é freqüentemente

370

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

chamado de "gancho". Uma pergunta provocativa, uma hipérbole surpreendente, um paradoxo intrigante: esses são alguns dos artifícios que somos aconselhados a usar para atrair nosso leitor. Norman Cousins usa a pergunta provocativa de forma eficaz nos parágrafos de abertura

de seu artigo "Não renuncie à raça humana": Você já se perguntou o que diria se de repente fosse chamado para defender a

raça humana?

Suponha que você tenha sido convidado para participar de um grande debate ou, melhor ainda, de um julgamento simulado com o objetivo de decidir se a espécie humana justificou seu direito de existir, se, com base em suas virtudes e fraquezas, tem realmente direito ao dom da vida. Suponha que seu trabalho fosse o de advogado de defesa. O que você faria para coletar suas evidências? Que testemunhas chamaria? Que argumentos usaria?'°

Há uma série de razões pelas quais essa abertura chama atenção. Em

primeiro lugar, embora a pergunta inicial seja uma pergunta retórica (não requer uma resposta direta e imediata do público ou do leitor), ela desafia o público, deixando-o mais alerta. Outra razão para a eficácia dessa pergunta em particular é que se trata de um questionamento incomum (imagine sugerir que a raça humana deve justificar seu direito

de existir!) e uma questão importante (por talvez dizer respeito à nossa própria existência). Portanto, os elementos de surpresa e importância estão contribuindo para a eficácia da estratégia. O segundo parágrafo nos desa a ainda mais ao apresentar uma situação hipotética: suponha

que você tenha sido chamado para ser o advogado de defesa da raça humana. As três perguntas nais sugerem alguns problemas que enfrentaríamos nesse contexto. Assim, os parágrafos iniciais nos alertam

e nos desconcertam. Instigados pela importância da pergunta feita e talvez um pouco chateados por não termos uma resposta pronta, agora estamos "preparados" para ouvir a resposta da pessoa.

Os escritores devem exercer bom gosto e discernimento na abertura

para prender a atenção. A abertura excessivamente inteligente pode repelir os leitores em vez de atraí-los. (The New Yorker tem um nome para

tais aberturas: cartas que nunca terminamos de ler). Como de costume,

10 Saturday Review, 7 de agosto de 1948. Reproduzido com permissão.

fi

fi

371

o guia mais confiável para conseguir formular aberturas atraentes é a

natureza e o temperamento do público. As linhas finais da introdução devem conduzir naturalmente à pró-

xima seção do discurso. O problema da transição é basicamente um

problema de coerência. Queremos que as partes de nosso discurso estejam "costuradas" e, embora desejemos que as suturas sejam o mais discretas possível, queremos que nossos leitores saibam que estão passando para outra seção do discurso. O próprio Aristóteles, esse grande mestre da exposição, não hesita em explicitar as transições. Por exemplo, no nal do capítulo 1 do livro 1 da Retórica, ele diz: "Tentemos agora expor o próprio método da retórica, indicando os meios e os princípios que nos permitirão atingir nosso objetivo. Como se voltássemos ao nosso ponto de partida, antes abordar outros pontos que lhe dizem respeito, comecemos por de nir o que é a retórica". Ao longo da Retórica (na verdade, ao longo da maioria de seus tratados), Aristóteles insere cuidadosamente esses marcadores de transição, muitas vezes no nal de um capítulo, às vezes no início, ocasionalmente em divisões de exposições especialmente longas e intrincadas. Em alguns casos, o desenvolvimento lógico do raciocínio nos permite entrar naturalmente na próxima seção sem necessidade de indicação. Não existe regra prática para saber quando precisamos de marcadores explícitos e quando podemos confiar na lógica do raciocínio para transportar o leitor à próxima seção. A esse respeito, como vimos tantas vezes na discussão de estratégias retóricas, a situação particular ditará suas próprias exigências.

Um último ponto sobre as apresentações. Aquilo que nos empenhamos em fazer na introdução (para ganhar a atenção do público e predispô-lo à nossa exposição) às vezes tem de ser feito em vários pontos

do discurso, especialmente em discursos longos. Como alguns retóri-

cos observaram, em alguns casos é melhor até empenhar-se para chamar a atenção do público em um estágio posterior do discurso do que na introdução, pois, no início de nosso discurso, geralmente podemos

contar com certa atenção natural de nossa audiência. O que acontece é que essa atenção pode enfraquecer no decorrer da apresentação. Por isso, talvez seja necessário atrair nossa audiência novamente. Da mesma

forma, quando estamos prestes a iniciar uma discussão particularmente

delicada, pode ser necessário um preâmbulo para despertar a boa vontade do público.

fi

372 fi

fi

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO DECLARAÇÃO DE FATOS Usamos o termo declaração de fatos para designar a segunda seção de um discurso por falta de um termo melhor para traduzir a narratio latina.

O termo narração tem significados que não existiam para os romanos.

Declaração de fatos, embora seja um termo ambíguo, sugere com mais precisão o que fazemos nesta parte da prosa expositiva e argumentativa.

A declaração de fatos aparece, com maior destaque, na oratória forense. Nessa divisão de discurso forense, o advogado expõe os fatos es-

senciais do caso em consideração. "Na noite de Is de março", podemos imaginar o defensor dizendo, "Caio Máximo foi assassinado em um beco próximo ao Fórum. Alega-se que meu cliente, visto no Fórum naquela noite e dito inimigo político do falecido, tenha sido o assassino. A suspeita sobre meu cliente não se desfez com a revelação de que, na hora do assassinato, meu cliente foi visto [...]". Se o advogado de acusação já havia estabelecido esses fatos anteriormente, o advogado de defesa pode usar essa parte em seu discurso para acrescentar fatos pertinentes ou para corrigir detalhes na declaração da acusação. Em um julgamento, essa parte do julgamento normalmente é iniciada com a leitura da acusação formal contra o réu, em outras palavras, a definição do caso em questão. Por exemplo, eis a acusação lida pelo procurador-geral A. T. Stewart no segundo dia do "Julgamento do Macaco", em julho de 1925, um julgamento que se tornou uma causa célebre em parte devido ao conflito entre William Jennings Bryan e Clarence Darrow no tribunal: John Thomas Scopes, em 24 de abril de 1925, no condado supracitado, ensinou

voluntária e ilegalmente, nas escolas públicas do condado de Rhea, Tennessee

(observe-se que as escolas públicas são apoiadas, em parte e na totalidade, pelo fundo do Estado), certas teorias que negam a história da criação divina do homem conforme ensinada na Bíblia, ensinando, em seu lugar, que o homem descendeu de uma ordem inferior dos animais, sendo ele, John Thomas

Scopes, na época, e antes disso, professor das escolas públicas do condado de

Rhea, Tennessee, já citado, contra a paz e a dignidade do Estado."

11 Transcrição o cial do julgamento Estado do Tennessee vs. John Thomas Scopes, 5231 e 5232, Circuit Court de Rhea, Tennessee, p. 123.

fi

373

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Qualquer pessoa familiarizada com o julgamento ou com O vento será tua herança, a peça baseada no julgamento, sabe que o argumento frequentemente se distanciava da acusação especificada. Mas, apesar de toda a oratória pirotécnica sobre as questões maiores envolvidas nesse

caso, o júri acabou chegando ao veredicto de "culpado".

Como a esfera do discurso forense é o passado, geralmente há um conjunto de fatos ou detalhes a serem apresentados para o juiz e o júri.

Esses "fatos" devem ser declarados antes que possam ser comprovados ou refutados, e assim a narratio tornou-se uma parte regular da oratória forense. A oratória deliberativa, por outro lado, trata do futuro e, con-

seqüentemente, não há, a rigor, "fatos" a serem apresentados. Como a oratória deliberativa argumenta sobre coisas que devem ser feitas, em vez de coisas que já foram feitas, a narratio era considerada uma parte desnecessária, certamente dispensável, desse tipo de discurso.

Mas o orador deliberativo (assim como o orador cerimonial) nor-

malmente sente a necessidade de apresentar fatos do passado como

base para recomendações sobre o futuro. Como resultado, a narratio começou a gurar na oratória deliberativa e cerimonial, bem como na forense. Se a declaração de um fato é ou não uma parte necessária

do discurso deliberativo ou cerimonial, é discutível; mas fato é que a maioria dos discursos, de qualquer tipo, dedica uma seção (aquela

imediatamente após a introdução) à declaração de fatos. Reconhecendo que a declaração de fatos pode muitas vezes ser dispensada, prossigamos e consideremos o que é feito, e de que maneira, nessa parte do discurso. A declaração de fatos é fundamentalmente expositiva. Nesta seção, estamos informando nossos leitores das circunstâncias que precisam ser conhecidas em nosso assunto. Se os leitores estiverem suficientemente informados do assunto em questão, podemos dispensar totalmente esta parte. Mas na maioria das vezes, mesmo leitores bem informados, que não precisam dessas informações, apreciarão a consideração das circunstâncias, os detalhes da questão.

Os autores de artigos acadêmicos costumam resumir brevemente a idéia que abordarão em seu artigo. Eis um exemplo desse tipo de declaração de fatos em um artigo intitulado "Contribuição de Charles

Lamb para a Teoria da Ilusão Dramática". A frase final da introdução

do autor fornece uma transição para a declaração de fatos: "Antes de

discutir a visão de Lamb, produto de inúmeras visitas ao teatro, seria

fi

374

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO bom ter em mente as linhas gerais das principais teorias apresentadas

antes do período romântico". O artigo continua: A teoria neoclássica estava comprometida (ou pensava-se que estava comprometida) em defender as unidades dramáticas de tempo, lugar e ação, uma vez que insistia na necessidade de ilusão literal. Como era de se esperar, no final

do século xVII, enfatizava-se o aspecto racional das unidades: não é razoável

julgar, argumentava-se, que o espectador será capaz de fingir que algumas horas poderão comportar os eventos de dois dias, ou exigir que o público, depois de transportado para a Ásia, seja obrigado a saltar para a África alguns

momentos depois. Fazer tais exigências é injusto, e pensar que o público pode cumpri-las é, segundo esta visão, irracional. Mas, no século XVIII, uma réplica

ganhou aceitação cada vez maior do público e da crítica literária. Razoável ou

não, dizia tal contra-argumento, a mente pode se transportar da Ásia para a

Africa com a mesma facilidade com que pode viajar para a Asia no início. O

problema não é de "razão" ou "razoabilidade", mas do que, de fato (não em teoria), a imaginação é capaz de fazer. O Dr. Johnson está, de alguma forma, nesta segunda tradição, mas ele não se limita a dizer que a mente é capaz de

saltar de um lugar para outro e condensar o tempo e o espaço como bem entende. Ele insiste que o dramaturgo não deve se restringir às unidades (o que,

na melhor das hipóteses, impede que um homem seja um mau dramaturgo, mas nunca faz dele um bom profissional da área), mas nega que o espectador

seja literalmente iludido (pela imaginação ou pela razão), acreditando que está

assistindo a uma realidade e não a uma peça. Essa é a ampla generalização teó-

rica de Johnson. Talvez devêssemos ter em mente sua prática, a relutância, por exemplo, em ler Rei Lear, porque a morte de Cordélia lhe causava muita dor."

Devido ao público para o qual este artigo foi escrito (basicamente pro-

fessores de inglês em nível universitário), este resumo das doutrinas anteriores é mais abreviado do que seria se o artigo fosse dirigido a um

público leigo. O resumo lembra mais do que informa. Como neste exemplo de artigo acadêmico, muitas vezes teremos que apresentar um resumo do que outros pensaram ou disseram sobre o tema que desenvolveremos em nosso trabalho. Intimamente ligado a

12 Setembro de S, pris de hepto ano a Troia da Not a antag ANo or of America

375

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO esse tipo de resumo das visões relevantes apresentadas por outros está

o resumo das visões que nós mesmos defenderemos ou refutaremos em nosso ensaio. No exemplo a seguir, Norman Podhoretz resume as principais teses do livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, das quais ele discordará em seu artigo. A frase final da introdução do Sr. Podhoretz, que fornece uma transição para esta declaração de fatos,

diz: "O ponto de partida, então, é a tese da Srta. Arendt, e o problema a resolver é se ela justifica as distorções de perspectiva que cria e o tratamento arrogante das evidências que impõe". Então, De acordo com a Srta. Arendt, os nazistas, a fim de realizar seu plano genocida

contra os judeus, precisavam da cooperação judaica, que, de fato, receberam "a

um ponto verdadeiramente extraordinário". Essa cooperação assumiu a forma de "trabalho administrativo e policial" e estendeu-se "às comunidades judaicas altamente assimiladas da Europa Central e Ocidental", não menos do que às "massas falantes do iídiche no Leste". Diz a Srta. Arendt: Em Amsterdã assim como em Varsóvia, em Berlim como em Budapeste, os funcionários judeus mereciam toda confiança ao compilar as listas de pessoas e de suas propriedades, ao reter o dinheiro dos deportados para abater as des-

pesas de sua deportação e extermínio, ao controlar os apartamentos vazios, ao suprir forças policiais para ajudar a prender os judeus e conduzi-los aos

trens, e até, num último gesto, ao entregar os bens da comunidade judaica em

ordem para o confisco final [tradução de José Rubens Siqueira, Companhia das Letras, 1999].

Tudo isso é conhecido há muito tempo. O que é novo é a afirmação da Srta. Arendt de que se os judeus (ou melhor, seus líderes) não tivessem cooperado dessa forma, "teria havido caos e muita miséria, mas o número total de vítimas dificilmente teria ficado entre 4 milhões e meio e 6 milhões de pessoas".

Isso quanto aos judeus. Quanto aos nazistas, cumprir a política de genocídio

não exigia que fossem monstros nem odiadores patológicos de judeus. Pelo contrário: uma vez que o assassinato de judeus foi ditado pela lei do Estado, e uma vez que a lealdade altruísta à lei era considerada pelos alemães na ditadura

de Hitler como a mais alta das virtudes, o que Eichmann e seus companheiros fizeram requeria até mesmo certo idealismo. A Srta. Arendt cita, a este respei-

to, a famosa observação atribuída a Himmler: "Ter chegado ao topo e, a não

376

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO ser pelas exceções causadas pela fraqueza humana, ter permanecido decentes, isso é o que nos enrijeceu". Eichmann, então, estava falando a verdade quando negou ter sido anti-semita: ele cumpriu seu dever o melhor que pôde e o teria

cumprido com igual zelo, mesmo se amasse os judeus. Do mesmo modo, o promotor israelense Gideon Hausner estava absurdamente errado ao retratar

Eichmann como um bruto, um sádico e um demônio: na verdade, Eichmann

tinha uma personalidade banal, sendo uma nulidade cuja maldade não vinha de seu próprio caráter, mas de sua posição no sistema nazista.

Este sistema, naturalmente, é conhecido como totalitarismo, e é o totalitarismo que une as duas metades da tese da Srta. Arendt. Há muito tempo, David Rousset, Bruno Bettelheim e a própria Srta. Arendt nos ensinaram que garantir a cumplicidade da vítima é um dos diferenciais dos Estados totalitários, e sua história de cumplicidade judaica aqui é apresentada (pelo menos na

superfície) como mais uma ilustração desse ponto. Há muito tempo também, ela e seus colegas nos ensinaram que os Estados totalitários visam a destruição

da realidade do senso comum e a criação de uma nova realidade moldada aos

contornos da ideologia oficial, e sua concepção de Eichmann como um homem comum, cuja consciência foi levada a funcionar "ao contrário", é similar-

mente estabelecida para ilustrar o ponto mais geral. Obviamente, porém, esse

homem comum não poderia ter se tornado tão grande e devotado perpetrador do mal se o sistema não fosse tão fechado, isto é, se houvesse vozes de protesto

ou gestos de resistência. As vozes que existiam, no entanto, eram, na opinião da Srta. Arendt, pateticamente pequenas e fracas, e os gestos de resistência,

relativamente insignificantes. A "boa sociedade de todas as partes" aceitou a

Solução Final com "zelo e empenho", mas os próprios judeus aquiesceram e até cooperaram, como vimos, "a um ponto verdadeiramente extraordinário". Eis, então, a conclusão da leitura da Srta. Arendt da Solução Final e a explicação que ela apresenta para insistir na cumplicidade judaica: este capítulo da

história, diz ela, "oferece uma visão notável da totalidade do colapso moral

que os nazistas provocaram na respeitável sociedade européia, não apenas na

Alemanha, mas em quase todos os países, não só entre os perseguidores, mas também entre as vítimas".!}

13 Norman Podhoretz, "Hannah Arendt on Eichmann: A Study in the Perversity of Brilliance", em

Commentary, xxxvI, set. de 1963, pp. 201-8 Copyright 1963 do American Jewish Committee e

reproduzido com permissão de Norman Podhoretz.

377

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO A passagem que acabamos de citar pode parecer ao estudante uma declaração de fatos excessivamente longa, mas não se considerarmos o artigo inteiro, que ocupa oito páginas de coluna dupla da revista.

Citamos uma passagem longa para mostrar a possível proporção de uma declaração de fatos em um discurso extenso. Em um artigo mais curto, evidentemente, a declaração de fatos teria que ser condensada.

Como sempre, a importância/complexidade do assunto e a profundidade que quisermos dar a ele também ditarão a extensão adequada da declaração de fatos. Se estivesse escrevendo uma mera resenha do livro da Srta. Arendt, o Sr. Podhoretz não poderia ter dado tanto espaço para a narratio.

Quintiliano aconselha que a instrução do público na declaração de fatos seja lúcida, breve e plausível. Essas três qualidades, obviamente, relacionam-se à fala. Uma exposição lúcida e plausível para um determinado público pode não ser para outro. Portanto, como em nossa

discussão das estratégias de introdução, não podemos estabelecer regras rigorosas sobre o manejo da declaração de fatos. Devemos adaptar nossos meios à situação específica. Tudo o que podemos fazer aqui é indicar algumas maneiras para alcançar as qualidades mencionadas por Quintiliano, cabendo aos escritores a seleção daquelas que melhor se adaptem à situação em que se encontram. Lucidez, em grande parte, é uma questão de estilo: selecionar e organizar as palavras para comunicar com facilidade o que queremos dizer ao público. Adiaremos nossa discussão sobre esse meio de assegurar lucidez até o próximo capítulo, sobre estilo. Evidentemente, a lucidez deve caracterizar todas as partes do discurso. Mencionaremos aqui apenas os meios de assegurar lucidez peculiares à declaração de fatos. Seremos claros se, antes de tudo, expusermos todos os fatos que precisam ser

conhecidos. Uma abreviação dessa exposição pode resultar em obscuridade. Por outro lado, uma elaboração excessiva pode obscurecer os pontos principais. Uma apresentação ordenada dos fatos também ajuda na lucidez. Às vezes, a ordem cronológica será o princípio organizador de nossa exposição: primeiro, aconteceu isso, depois, aquilo, depois, aquilo

outro etc. Outras vezes, empregaremos uma ordem que passa do geral para o particular ou do mais familiar para o menos familiar. Outra ajuda à lucidez é o artifício que os gregos chamam de enárgeia e que podemos traduzir como palpabilidade ou vivacidade. A enárgeia

378

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO será especialmente útil quando nossa declaração de fatos se prestar mais

a um tratamento narrativo do que a um tratamento expositivo, como,

por exemplo, em uma apresentação de eventos passados. Aqui, se pu-

dermos retratar a cena em vez de meramente contar o que aconteceu, podemos produzir a vivacidade (sem falar no impacto emocional) que gravará os "fatos" na imaginação de nossos leitores. Pode-se imaginar

um advogado de acusação descrevendo o crime de Raskólnikov em palavras como estas: Tirou o machado por inteiro, levantou-o com as duas mãos, mal se dando conta de si, e quase sem fazer força, quase maquinalmente, baixou-o de costas

na cabeça dela [...] A velha, como sempre, estava de cabeça descoberta. Os cabelos claros com tons grisalhos, ralinhos, habitualmente besuntados de óleo,

formavam uma trança à moda de rabo de rato e estavam presos a um resto de pente de chifre que se destacava na nuca. O golpe acertara em plenas têmpo-

ras, para o que contribuíra a sua baixa estatura. Ela deu um grito, mas muito fraco, e súbito arriou inteira no chão, mas ainda conseguiu levantar ambas as mãos até à cabeça.'4

No romance de Dostoiévski, essa vívida narrativa não faz parte da

acusação de um advogado no tribunal, mas tal descrição é uma boa representação da maneira como os advogados valem-se da declaração

de fatos. Não há dúvida sobre a clareza e e cácia de tal apresentação. E embora a enárgeia possa ser empregada em outras partes do discurso, na

maioria das vezes ela é utilizada nesse momento.

Antes de deixarmos o assunto da lucidez, devemos observar que a clareza nem sempre serve ao nosso propósito. Em algumas ocasiões, talvez seja conveniente ofuscar deliberadamente a exposição. Se os fatos

depoem contra nós, pode ser melhor omitir totalmente a declaração de fatos ou tornar nossa exposição ambígua. Às vezes, um relato franco e lúcido dos fatos distancia tanto nosso público que eles se indisporão a ouvir nossas provas mais tarde. A situação ditará quando é prudente adotar a estratégia de omissão ou ofuscação. A brevidade da declaração, como observamos em nossos comentários sobre a passagem citada do artigo de Norman Podhoretz, também 14 Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski, parte 1, capítulo 7 (tradução de Paulo Bezerra, Editora 34,

2009]

fi

379

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO será determinada pela situação particular. Aristóteles zombava daqueles que diziam que a declaração de fatos deve ser breve. Por que a declaração

de fatos deve ser curta ou longa? Não pode ser na medida? Com essa in-

sistência característica na via mediana, Aristóteles pede o comprimento adequado às necessidades do momento. O princípio de "só o suficiente" é a única prescrição geral que tem validade aqui. Alcançaremos essa brevidade se (1) começarmos nossa apresentação no ponto em que ela começa a interessar nossos leitores (comparável ao conceito de Horácio, de que devemos começar uma história in medias res em vez de ab ovo); (2) excluirmos todas as irrelevâncias; (3) eliminarmos qualquer coisa,

por mais relevante que seja, que pouco ou nada contribua para a com-

preensão de nosso caso ou para a disposição amigável para com nossa causa por parte dos leitores.

A plausibilidade da declaração de fatos resultará, em parte, do tom

ético do próprio discurso ou da imagem ética do escritor. Os leitores acreditarão que a situação é como foi descrita se confiarem na autoridade ou no caráter do escritor. O apelo ético, evidentemente, é impor-

tante em todas as partes do discurso, mas não devemos minimizar sua

importância nesta parte específica, dedicada a uma simples exposição dos fatos. Podemos aumentar ainda mais a credibilidade de nossa declaração de fatos, tendo o cuidado de não dizer nada contrário à natureza ou ao fato histórico, atribuindo causas ou razões verossímeis aos eventos,

con ando mais no eufemismo do que na hipérbole. O público é incrivelmente rápido em detectar um escritor que "protesta demais". Se perdermos a credibilidade de nossos leitores nesse estágio do discurso, colocaremos em risco nossas chances de "ganhá-los" quando chegar-

mos à tão importante declaração de prova. CONFIRMAÇÃO

O uso do termo con rmação para rotular esta parte pode sugerir que essa seção gura somente no discurso persuasivo, mas se considerarmos

a con rmação ou prova como a parte em que chegamos ao assunto prin-

cipal de nosso discurso, este termo pode abarcar tanto a prosa expositiva quanto a prosa argumentativa. As partes discutidas anteriormente (introdução e declaração de fatos) certamente aparecem no discurso

fi

fi

fi

fi

380

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

expositivo e no discurso argumentativo. Se essas duas partes são consideradas preliminares, a confirmação pode ser considerada o núcleo, a parte central de nosso discurso, a parte em que fazemos o que nos propusemos a fazer, seja explicar ou persuadir. Evidentemente, grande parte do que dizemos sobre a con rmação é aplicável apenas ao discurso argumentativo, mas muitos preceitos relativos a essa parte do

discurso são igualmente aplicáveis à prosa expositiva. Quando falamos de confirmação no sentido estrito de demonstrar ou refutar um argumento, isso ficará totalmente claro para o aluno.

Devido à dificuldade de ilustrar a disposição dos argumentos citando passagens curtas, como as que usamos para ilustrar as duas partes anteriores, adiaremos a exemplificação dos pontos levantados até que cheguemos a considerar ensaios inteiros nas leituras ao final deste capítulo. É principalmente nesta parte do discurso que usamos o material que reunimos no processo de invenção. Devemos selecionar e organizar o conteúdo para obter o máximo de eficácia. Os processos de invenção

e disposição não são realmente tão independentes um do outro como podemos ter sugerido, dando-lhes tratamentos separados. Na leitura, a atividade de avaliação pode ocorrer quase simultaneamente com a atividade de compreensão. Da mesma forma, ao compor, muitas vezes nos ocupamos com a questão de selecionar e organizar nosso conteúdo, mesmo quando estamos empenhados em descobri-lo. Discutimos invenção e disposição separadamente, em parte porque devemos descobrir

antes de organizar e em parte porque há uma conveniência pedagógica em uma discussão separada desses dois processos.

Um dos principais problemas que enfrentamos nesta parte do dis-

curso é a questão da sequência. Que ponto abordamos primeiro? Uma

vez abordado esse ponto, que ponto abordamos em seguida? No discurso expositivo, podemos organizar o conteúdo seguindo uma ordem cronológica (por exemplo, ao explicar um processo relativamente sim-

ples, como trocar um pneu). Na exposição de um assunto mais complexo, podemos ter que passar do geral para o particular ou do familiar

para o desconhecido. Normalmente, a natureza da coisa a ser explicada

sugere o procedimento apropriado. No discurso argumentativo, entretanto, esses princípios organizado-

res nem sempre são confiáveis, pois nos deparamos com questões como

fi

381

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO estas: devo começar com meus argumentos mais fracos e desenvolver o assunto até chegar a meus argumentos mais fortes? Devo refutar os

argumentos contrários primeiro e depois apresentar meus argumentos ou devo apresentar minha idéia primeiro e depois refutar a oposição? Como de costume, a situação particular ditará a estratégia apropriada. Mas podemos estabelecer algumas diretrizes para o escritor.

Como regra geral, ao apresentar nossos argumentos, não devemos descer dos argumentos mais fortes para os mais argumentos mais fracos. Na maioria das vezes, essa ordem anticlimática enfraquece consi-

deravelmente a eficácia de nossos esforços de persuasão. Queremos que

nosso público saia com o argumento mais forte na cabeça; portanto, geralmente o colocamos na posição final, de ênfase. Se apresentarmos

nossos argumentos mais fortes primeiro e, em seguida, adicionarmos uma série de argumentos mais fracos, diminuiremos a eficácia dos ar-

gumentos fortes. O público pode ter a impressão de que nossa idéia,

sólida à primeira vista, está começando a desmoronar. Os argumentos mais fracos parecerão "reflexões tardias", sugerindo que não temos realmente confiança na força de nossos argumentos fortes, pois sentimos a necessidade de fazer alguns acréscimos. Se revelarmos falta de confiança, perderemos a confiança de nossos leitores. Se tivermos à nossa disposição vários argumentos de valor ordenado, podemos organizar esses argumentos em praticamente qualquer ordem, mas, mesmo nesse caso, podemos ser guiados por certos princípios. Quando nossos argumentos têm força relativamente igual, é melhor apresentar primeiro aqueles argumentos que provavelmente são familiares a nossos leitores. Se obtivermos concordância em relação aos argumentos familiares, condicionamos nossos leitores a aceitar os não-familiares. Confirmamos o que eles suspeitavam e, em seguida, acrescentamos o que eles não sabiam antes.

Se tivermos à nossa disposição vários argumentos relativamente fortes e fracos, é melhor começar com um argumento forte, inserir

alguns argumentos mais fracos e, então, terminar com o argumento mais forte. O argumento inicial forte condiciona o público a aceitar os argumentos mais fracos; mas então, justamente quando os argumentos mais fracos ameaçam diminuir a eficácia de nosso argumento inicial, apresentamos nosso argumento mais forte. A surpresa que acompanha a introdução de um argumento forte exatamente quando parecia que

382

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO havíamos "queimado os últimos cartuchos" aumentará a força do ar-

gumento final.

REFUTAÇÃO

Até agora, lidamos somente com a sequência estratégica de argumentos, quando temos apenas que con rmar nossa própria idéia. Existem alguns problemas adicionais quando precisamos também refutar pontos de vista opostos. Em um debate público, diversos pontos de vista opostos são expressos. Nesse caso, devemos decidir qual dos argumentos opostos abordar e se refutaremos os argumentos primeiro e depois apresentaremos nossa idéia ou se apresentaremos nossa idéia primeiro

e depois refutaremos os argumentos opostos. Quando nos sentamos para escrever um texto argumentativo, não há opositor a confrontar e

responder. Porém, na questão que estamos discutindo, geralmente há

uma visão oposta implícita, que devemos abordar e refutar. Em tais casos, não é suficiente apresentar nossa idéia. Por mais convincentes que sejam nossos argumentos, nossos leitores continuarão em dúvida se não prevermos as possíveis objeções à nossa tese e não respondermos a essas objeções.

Se os pontos de vista opostos foram bem recebidos pelo público, normalmente é aconselhável que refutemos esses pontos de vista antes de tentarmos apresentar nossos próprios argumentos. Pessoas favoravelmente dispostas ao ponto de vista oposto não se abrirão tao facilmente para nossos argumentos, por mais válidos e convincentes que eles se-

jam. O terreno deve ser limpo, por assim dizer, antes de edificarmos nossa teoria. De qualquer maneira, essa regra, de primeiro refutar os argumentos contrários antes de apresentarmos os nossos, deve ser flexível. Quando

os argumentos contrários são relativamente fracos, podemos atrasar sua resposta até apresentar nossa idéia. Em tais casos, a força de nossos ar-

gumentos fará com que o público reconheça a fraqueza dos argumentos contrários. E mesmo quando os argumentos contrários têm força e são

recebidos favoravelmente pelo público, às vezes será conveniente atrasar sua refutação. Por exemplo, quando uma audiência é excessivamente

hostil à nossa visão, a estratégia mais sensata é ignorar os argumentos opostos o máximo possível. Lembrar uma audiência hostil dos argu-

fi

383

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO mentos opostos no início do discurso acaba fortalecendo a hostilidade

dessa audiência, de modo que as pessoas não prestarão mais atenção à nossa refutação desses argumentos. Nessas circunstâncias, apresentar nossos próprios argumentos primeiro dispõe o público a pelo menos ouvir nossa refutação. Como tem sido constantemente enfatizado neste capítulo, não podemos estabelecer nenhuma regra inflexível sobre o que deve ser feito e em que sequência. Os escritores devem estar preparados para adaptar os meios aos fins, ajustando as estratégias de acordo com cada situação. Eles devem "sentir" qual é o caminho certo em cada caso. Como alguns escritores têm um senso natural (ou desenvolvem esse senso) para saber qual é esse caminho, eles geralmente têm sucesso onde outros fracassam. Infelizmente, a retórica não fornece regras gerais que abran-

jam todas as situações, mas podemos revisar brevemente alguns meios

disponíveis para refutar pontos de vista contrários. REFUTAÇÃO COM BASE NO APELO À RAZÃO

Existem duas maneiras gerais para refutar uma proposição: podemos provar a contradição dessa proposição; podemos demolir os argumentos que sustentam a proposição. Como vimos no capítulo anterior, se provarmos que uma das duas proposições contraditórias é verdadeira,

provamos automaticamente que a outra proposição é falsa. Provar a contradição de uma proposição é o tipo de refutação mais convincente,

uma vez que todas as pessoas, por sua natureza racional, reconhecem

prontamente o princípio de que uma coisa não pode ao mesmo tempo ser e não ser.

No entanto, nem sempre temos a conveniência de argumentos con-

traditoriamente opostos. De modo geral, somos confrontados com o desafio de refutar proposições contrárias. Um lado afirma que certa linha de ação é sensata e o outro lado afirma que é insensata. Nesse caso,

devemos derrubar os suportes que sustentam a afirmação contrária. Podemos fazer isso (1) negando a verdade de uma das premissas sobre

as quais o argumento se baseia e provando, talvez por meio de evidência

ou testemunho, que a premissa é falsa, ou (2) objetando às inferências

feitas a partir das premissas. Ao rejeitar as inferências, dizemos coisas como: "Admito o princípio, mas nego que leve a tal consequência",

384

"admito o princípio, mas nego que se aplique neste caso" ou "sua afir-

mação é verdadeira, mas não tem força como argumento para justificar

sua conclusão". Essas são algumas maneiras de refutar argumentos com base na ló-

gica, mas às vezes lidamos com probabilidades, que não podem ser demolidas por meio da lógica estrita. Nesse caso, devemos recorrer a entimemas e exemplos que, mesmo se não refutarem a oposição de forma conclusiva, têm valor persuasivo. Os apelos emocionais e éticos, que

discutimos no capítulo anterior, também ajudam na refutação. REFUTAÇÃO COM BASE NOS APELOS EMOCIONAIS

Conhecer o público é fundamental, sobretudo quando recorremos aos apelos emocionais. Um erro de cálculo sobre o temperamento da própria audiência pode destruir ou inverter o efeito pretendido. O apelo emocional errado, um apelo emocional aplicado em um lugar impróprio no discurso ou um apelo emocional desproporcional não diminui somente a e cácia de nossa refutação, mas também a con ança na prova previamente estabelecida.

Evidentemente, os apelos emocionais terão melhores resultados com

alguns públicos do que com outros. O problema dos apelos emocionais é a heterogeneidade do público. Podemos imaginar o dilema do Senador Richard Nixon em 1952, ao ter de tomar decisões sobre o tipo e o grau de apelo emocional a ser empregado em seu discurso para uma

audiência televisiva nacional em defesa de seu manejo de fundos de campanha. A julgar pela resposta ao discurso, podemos concluir que o Sr. Nixon resolveu o dilema com sabedoria. Suas referências ao "casaco

de pano" e ao "cachorrinho Checkers" apartaram totalmente um segmento da audiência, mas, para a maioria do público, essas referências foram os toques emocionais que coroaram sua apologia. Ao dirigir-se a um público grande e heterogêneo, deve-se estimar quais apelos emocionais têm maior probabilidade de ter sucesso com a maior parte do público. Em outras palavras, podemos ter de sacricar a concordância de uma parte de nossa audiência a m de obter o consentimento da maioria. O autor que escreve um artigo para a New Republic, Commonweal ou The National Review tem, em muitos aspectos, uma tarefa mais fácil do que o autor que escreve um texto

fi

fi

385 fi

fi

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO argumentativo para a Life ou TV Guide, porque o escritor de revistas de

circulação limitada pressupõe certa homogeneidade política, filosófica

ou religiosa entre os leitores, o que não acontece com o escritor de revistas de grande circulação. REFUTAÇÃO COM BASE NO APELO ÉTICO

O apelo ético deve permear todas as partes do discurso, mas em nenhum lugar é mais importante do que na parte em que procuramos defender nossa idéia ou refutar a oposição. O apelo ético é tão

importante para a persuasão que Aristóteles disse "mais convém ao homem de bem exibir sua própria probidade e destacar seu valor do que mostrar-se um perspicaz argumentador capaz de articular um discurso

preciso" (Retórica, III, 17). Às vezes, quando nosso argumento é fraco, o apelo ético, exercido pela imagem do escritor ou pelo tom do discurso,

é a melhor opção. A eficácia do apelo ético quando o argumento é fraco ficou particularmente evidente no discurso do General Douglas MacArthur perante o Congresso em 1951, ao retornar para os Estados Unidos após ser destituído de seu comando na Coréia. Os velhos soldados morrem, mas às vezes alcançam uma espécie de imortalidade na mente das pessoas a quem serviram. REPUTAÇÃO COM BASE NO HUMOR

O Conde de Shaftesbury certa vez afirmou que "o ridículo é o teste da verdade". Shaftesbury estava sugerindo que, se aquilo que é apresentado como verdade puder sobreviver ao ataque do ridículo, é realmente verdade. Se a afirmação de Shaftesbury puder ser aceita, ela deve ser aceita com ressalvas. Uma verdade genuína pode ser reduzida ao absurdo por um retórico espirituoso, mas continuar sendo verdade, apesar de ter sido desacreditada na mente do público. Piadas, sarcasmo e ironia podem ser ferramentas de refutação eficazes, mas devem ser usadas com moderação. O retórico grego Górgias disse que devemos "matar a seriedade de nossos opositores com nosso ridículo e o ridículo deles com nossa seriedade". Górgias era astuto o suficiente para perceber que muitas vezes não podemos contra-atacar a oposição empregando táticas semelhantes. E uma vez que normal-

386

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

mente é difícil superar uma demonstração de humor, a melhor estratégia é não tentar competir com nosso opositor e adotar uma postura de seriedade. Por outro lado, às vezes podemos destruir a eficácia de um argumento apresentado com sobriedade reduzindo o argumento ao absurdo. Aqui cabe uma advertência aos escritores: o apelo ético pode ser dissipado se seu humor for meramente um disfarce para argumentos fracos ou capciosos. Réplicas espirituosas, mas vazias, podem enganar algumas pessoas algumas vezes, mas o indivíduo escrupuloso em suas táticas não sacrificará a integridade pelo sucesso. Uma piada pode ser usada simplesmente para desarmar ou "ganhar" uma audiência. Nesse caso, ela costuma ser colocada na introdução, o lugar mais óbvio para os artifícios cujo propósito é quebrar o gelo com o público. Mas a piada desarmante também pode ser usada na confirmação (por exemplo, quando estamos prestes a iniciar uma discussão que suspeitamos que não terá aceitação imediata). A piada também pode ser usada para fins de refutação, se fornecer

algum tipo de analogia com ponto que estamos tentando desacreditar. Esse tipo de piada pode induzir o público a uma visão objetiva do ponto que está sendo discutido. Se conseguirmos fazer o público rir de

uma situação um tanto distante do ponto que está sendo atacado, será mais fácil fazê-lo perceber o absurdo desse ponto quando fizermos uma

aplicação da analogia. Com certos públicos, as variedades mais sofisticadas de humor terão

melhor resultado. Um dos tipos mais eficazes de humor sofisticado, especialmente com o propósito de desarmar o público, são os comentários depreciativos e bem-humorados que os oradores ou escritores fazem sobre si mesmos. Quase todos respondem favoravelmente àqueles que se rebaixam um pouco, principalmente porque todos gostam de sentir

que uma pessoa, por mais exaltada que seja, é humana e não exagera sua própria importância ou suas realizações. A depreciação dos outros às vezes pode ser um tiro pela culatra, mas o menosprezo em relação a nós mesmos nunca desperta ressentimento em ninguém e raramente diminui nossa credibilidade. O leve toque resultante do domínio inteligente das palavras é outra forma de humor que agrada a determinados públicos, especialmente aos mais cultos. Como veremos no próximo capítulo sobre estilo, muitas figuras de linguagem podem ser usadas nesse tipo de humor verbal

387

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO cativante. Os trocadilhos, por exemplo, passaram a ser considerados uma forma baixa de humor, mas a maioria dos grandes escritores, de

Shakespeare a James Thurber, entregava-se a jogos de palavras (que os retóricos chamam de paronomásia) e não sentia necessidade de desculpar-se por suas acrobacias verbais. A ironia é uma forma sutil de engenhosidade verbal e, embora natural para a maioria das pessoas ("Minha querida, que lindo o seu chapéu!"), devemos ter muito cuidado ao usar esse tropo. Por causa de sua sutileza, a ironia pode ser facilmente mal interpretada. Ainda hoje há estudantes universitários que interpretam mal a irônica Modesta proposta, de Swift. O sarcasmo é outro modo de humor que requer maestria, pois seu uso muitas vezes dá errado. O sarcasmo parece ter mais sucesso quando é dirigido a um indivíduo; é arriscado quando é dirigido a nacionalidades, classes, níveis ou vocações. É bastante curioso que seja assim, pois, de todos os modos de humor satírico, o sarcasmo é o que mais se aproxima da falta de benevolência. Poderíamos pensar que, uma vez

que troçar de um indivíduo viola a virtude da benevolência mais do que troçar de um grupo de pessoas, o sarcasmo pessoal provavelmente provocaria reações desfavoráveis na platéia. Mas a natureza humana é constituída de modo a tolerar, até mesmo desfrutar, a injúria de um indivíduo. A mesma sociedade londrina que riu do retrato mordaz de Lord John Hervey, feito por Alexander Pope sob o disfarce de "Esporo", teria ficado irritada se o retrato tivesse sido dirigido à classe de cortesãos aristocráticos que Lord Hervey representava. A psicologia por trás desse prazer perverso é indicada pela famosa máxima de La Rochefoucauld: "Muitas vezes encontramos algo que nos agrada mesmo na desgraça de nossos melhores amigos". Os retóricos são unânimes em sua condenação dos gracejos obscenos no discurso formal. A "história suja" pode provocar risos quando

contada em pequenos grupos íntimos, mas em um discurso público, quase invariavelmente ofende e afasta um público maior. Da mesma forma, geralmente reagimos desfavoravelmente a uma piada obscena

quando a vemos impressa. É difícil imaginar qualquer situação em que tal piada sirva ao nosso propósito. Por razões retóricas, então, bem

como por razões morais, devemos evitar o uso de obscenidade e duplo

sentido em nossos discursos.

388

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

O tipo de literatura que mais utiliza, para fins retóricos, as variedades de humor que abordamos (e algumas que não abordamos, como a paródia e o burlesco) é a sátira. E é curioso que alguns dos maiores satiristas ingleses, como Ben Jonson, John Dryden, Alexander Pope e Jonathan Swift, fossem profundamente educados na retórica clássica. As melhores lições sobre o uso hábil do humor para fins retóricos vêm da leitura dos grandes satiristas. E os estudantes adquirirão outro método de leitura e análise da literatura satírica se a abordarem como uma manifestação do tipo de retórica que estudamos neste livro. Quintiliano disse uma vez (Instit. Orat., vI, ili, 26) que "não há gracejos tão insípidos quanto aqueles que exibem o fato de que pretendem ser espirituosos". Podemos tomar essas palavras como uma advertência geral sobre o uso de humor para fins retóricos. O humor que apenas

chama a atenção para nosso desejo de ser "engraçado" ou de "fazer parte" afasta mais gente do que atrai. O humor é uma arte extremamente difícil, e se os estudantes não tiverem um dom natural ou uma

habilidade adquirida para o humor, é melhor evitar esse meio de persuasão. E eles também devem se lembrar de que, em muitas ocasiões, qualquer tipo de humor é totalmente impróprio. Voltamos finalmente ao princípio fundamental da retórica: o assunto, a ocasião, o público e a personalidade do orador ou escritor ditarão os meios que ele deve empregar para realizar seu propósito. CONCLUSÃO Um olhar sobre os termos que os retóricos clássicos usaram para de-

signar a conclusão nos dará uma idéia de como os eles concebiam a função dessa parte no discurso. O termo grego mais comum é epilogos, do verbo epilegein, que significa "dizer em acréscimo". Um termo grego ainda mais instrutivo para essa parte é a anakephalaiosis, que equivale ao termo em latim recapitulatio, de onde vem a palavra "recapitulação".

O termo latino comum para essa parte é peroratio [peroração], palavra que sugere, pelo pre xo per, a " nalização" da exposição. O que os latinos queriam dizer com "finalização" é sugerido pelos dois títulos que

Quintiliano usou para tratar da peroração: enumeratio (enumeração ou resumo) e affectus (produção da emoção apropriada na audiência).

fi

fi

389

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Embora seja óbvio que alguns discursos, pela natureza do assunto/

situação ou pelas limitações de tempo/número de palavras, podem prescindir de uma conclusão elaborada, a tendência natural para nós, quando falamos ou escrevemos formalmente, é "arredondar" o que estivemos moldando nas partes anteriores do discurso. Sem uma conclusão, o discurso parece simplesmente parar em vez de terminar. Também sabemos que, como a conclusão vem no final do discurso, é a parte que "fica com" o público, a que fica por mais tempo na memória. Conseqüentemente, essa é a parte em que sentimos o desejo de extrapolar, exibindo nossa eloquência estilística e intensidade emocional. Por causa dessa necessidade natural de utilizar todos os nossos recursos estilísticos e emocionais, às vezes exageramos nesses efeitos e, assim, diminuímos as realizações das partes anteriores do discurso. A discrição aqui vale tanto quanto nas partes anteriores.

Aristóteles ensinou que geralmente desejamos quatro coisas na conclusão: 1. Transmitir ao público uma impressão favorável sobre nós e uma impressão desfavorável sobre nossos opositores;

2. Ampliar a força das idéias que apresentamos na seção anterior e atenuar a força das idéias apresentadas pela oposição;

3. Despertar as emoções apropriadas na audiência;

4. Reafirmar, de forma resumida, nossos fatos e argumentos.

Aristóteles está sugerindo que essas são as coisas que podemos fazer na conclusão, não que devemos fazer em todos os discursos. As limita-

ções de espaço podem impedir que cheguemos a uma conclusão elaborada. A natureza de nosso assunto ou de nosso público pode tornar desaconselhável qualquer tipo de apelo emocional. Quando nossos argumentos são diretos e descomplicados, talvez não haja necessidade de recapitulá-los ou ampliá-los. O conselho aqui, como em outras partes do discurso, é que devemos fazer o que precisa ser feito, não o que a convenção diz que deve ser feito.

Das quatro coisas que Aristóteles designa, a recapitulação é a que

mais freqüentemente aparecerá na conclusão. Normalmente, quando

chegamos ao final de um discurso, sentimos a necessidade de reafirmar em termos gerais os pontos que expusemos em detalhes no corpo do

390

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO discurso. Essa inclinação talvez seja motivada por nosso sentimento de que devemos refrescar a memória do público. Além disso, acreditamos que fatos e argumentos cuja força foi embotada pelos detalhes crescem

quando apresentados de forma resumida no final do discurso. Às vezes, os autores sinalizam explicitamente que estão prestes a recapitular os pontos que fizeram no corpo do ensaio. Eis um exemplo de uma recapitulação formalmente anunciada, junto com a declaração do autor dos motivos da recapitulação, extraído dos parágrafos finais de um artigo, cuja tese foi exposta na primeira frase do texto: "Sustento que os costumes democráticos, tipificados pela prática de chamar o chefe pelo primeiro nome, chegaram a um ponto em nosso país em que conduzem não à preservação da dignidade pessoal, mas à submissão abjeta de um homem a outro". Quase terminei. Mas sei que algum tolo (provavelmente, algum Ph.D.) lerá este artigo e afirmará, como um fato óbvio, que anseio pela restauração do czarismo, pelo revigoramento do sistema de castas hindu e pela verdadeira subjugação chinesa de mulheres e crianças. Portanto, deixe-me recapitular, acrescentando um ou dois pontos que esqueci de mencionar.

Um sistema de costumes formalmente sensato tem vários benefícios. Além

de atuar como lembrete constante de alguns fatos importantes da vida, proporciona aos seres humanos a satisfação distintamente humana da expressão simbólica. Além de possibilitar a convivência, proporciona ao indivíduo, graças às suas formalidades, uma armadura protetora contra as pressões coletivas. Pois essas formalidades permitem ao indivíduo submeter-se à ordem social, ao mesmo tempo em que reserva seu julgamento final sobre ela; capacitam-no a jurar lealdade a homens em posição de autoridade sem fazer os ajustes finos cujos resultados de longo prazo equivalem aos da lavagem cerebral.

Os costumes democráticos na América estão acabando com a democracia americana. Sem uma forma especial de saudar o sistema e a posição que um determinado oficial ocupa nele, devemos prostrar-nos diante do homem. Há um país onde essa prostração é ainda mais forte do que nos Estados Unidos.

Lá, o cidadão mais humilde chama seu poderoso governante de camarada.

Sugiro uma reforma prudente nos costumes americanos, não uma revolução. Se a única alternativa aos modos igualitários for uma sociedade sem coragem, exaurida por protocolos e cerimônias, esta discussão é inútil. Mas essa

não é a única alternativa, exceto na mente dos jacobinos modernos, para quem

391

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO as estratificações do Ancien régime são mais reais do que as proletarizações de

seu próprio tempo. Existem soluções intermediárias, sintonizadas com a realidade, mas que resistem a formulações simples e consistentes, como os ingleses

sabem, e como os americanos, a seu modo, podem descobrir. Os pedantes democratas presumem falar em nome da sabedoria, da capacidade criativa e do serviço, em oposição ao mero dinheiro no banco. Mas, sem uma retificação dos costumes, a maioria dos homens preferirá ter um Cadillac a tais virtudes,

pois essas virtudes, não reconhecidas de forma regular, não são visíveis em

um homem, pelo menos não claramente, enquanto um Cadillac é claramente visível em qualquer um."

Para perceber o valor de tal recapitulação, o aluno teria que estudar

essa passagem em conjunto com o corpo do artigo, onde o autor desen-

volveu seus pontos com mais detalhes. E embora o autor aqui informe explicitamente a seus leitores que recapitulará os pontos que apresentou no artigo, dizendo-lhes por que sente a necessidade de fazê-lo, na maio-

ria das vezes, os escritores passam à recapitulação sem aviso prévio.

Na maioria dos casos, é bastante óbvio que o autor está resumindo os

pontos apresentados anteriormente.

Em nenhum lugar a importância da recapitulação é demonstrada de maneira mais dramática do que em um julgamento. O júri passou dias, às vezes semanas, ouvindo depoimentos e interrogatórios altamente detalhados. Com certeza, ao final desse período, o júri terá todo

o material necessário para chegar a um veredicto. Mas, como qualquer pessoa que testemunhou um julgamento real ou fictício sabe, tanto os

promotores quanto os defensores apresentam um resumo do caso antes que o júri seja dispensado para deliberar o veredicto. O promotor e

o defensor passam a maior parte do tempo nesse resumo, lembrando

ao júri os principais pontos apresentados ao longo do julgamento. As questões e argumentos, por virem em rápida sucessão, ganham força cumulativa nesse momento. Vejamos um exemplo fictício de tal resumo. Como o resumo aqui é

rigidamente controlado pelo romancista, é provavelmente menos incoerente do que os resumos que os advogados apresentam em julgamentos

15 Morton J. Cronin, "The Tyranny of Democratic Manners", em The New Republic, 20 de janeiro de 1958. Reproduzido com permissão do autor e do The New Republic, 1244 Nineteenth St.,

Washington, DC.

392

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO reais. Nesta cena do romance O sol é para todos, Atticus, o advogado

que defende um homem negro falsamente acusado de estuprar uma garota branca, faz seu apelo final ao júri:

— Senhores — ele disse. Jem e eu nos entreolhamos de novo. Era como se ele tivesse dito: "Scout". A voz tinha perdido a secura e a imparcialidade, e

ele falava com os jurados como se fossem pessoas que tivesse encontrado na esquina dos correios.

— Senhores, serei breve, mas gostaria de usar o tempo que me resta para lembrá-los que este caso é simples, não exige o exame detalhado de fatos com-

plexos, mas exige que os senhores tenham absoluta certeza da culpa do acusado. Para começar, este caso não deveria ter ido a julgamento. É tão simples

quanto preto no branco. O Estado não produziu nenhuma prova médica do crime que Tom Robinson teria cometido. Confiou apenas no depoimento de duas testemunhas, cujas declarações foram seriamente questionadas durante o interrogatório e enfaticamente negadas pelo acusado. O réu não é culpado, mas alguém aqui neste tribunal é.

Só tenho a lastimar pela situação da principal testemunha apresentada pelo Estado, mas não a ponto de aceitar que ela coloque em risco a vida de um homem, na tentativa de se ver livre da própria culpa.

Culpa sim, senhores, pois a testemunha de acusação foi movida pela culpa.

Ela não cometeu nenhum crime, apenas quebrou um rígido e antigo código de conduta da nossa sociedade, um código tão rígido que quem o rompe é afastado do nosso meio, e o convívio com essa pessoa é considerado inaceitável. Ela é vítima da pobreza e da ignorância absolutas, mas não consigo ter pena dela, porque é branca. Ela tinha absoluta consciência da dimensão de seu erro, mas,

como seu desejo era mais forte do que o código que ia romper, ela persistiu.

Persistiu, e sua reação posterior é algo que todos nós já vimos um dia: agiu como uma criança e tratou de afastar de si a prova de seu erro. Mas, nesse caso,

não se trata de uma criança tentando esconder algo que pegou escondido: ela atacou a vítima, precisava afastá-la, tirá-la da sua presença, deste mundo. Pre-

cisava destruir a prova do seu erro.

E qual é a prova do seu erro? Tom Robinson, um ser humano. Ela precisava afastar Tom Robinson, que a fazia lembrar diariamente do que havia feito. E o

que ela havia feito? Tinha tentado seduzir um negro. Ela é branca e tentou seduzir um negro. Fez algo inaceitável na nossa socie-

dade: beijou um negro. Não um preto velho, mas um negro jovem e forte. Na

393

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO hora, ela não se importou com nenhum código social, mas depois foi atingida

violentamente por esse código.

O pai dela assistiu a tudo e o réu testemunhou sobre o que ele disse na

ocasião. O que fez o pai? Não sabemos, mas há provas circunstanciais que

indicam que Mayella Ewell foi brutalmente espancada por alguém que usa quase exclusivamente a mão esquerda. Mas sabemos em parte o que o Sr. Ewell

fez, o que qualquer branco respeitável e temente a Deus faria numa situação

dessas: conseguiu um mandado de prisão para o acusado e assinou-o com a mão esquerda. E agora Tom Robinson está diante de todos os senhores, após prestar o juramento levantando sua única mão útil: a direita.

E assim, um negro calmo, respeitável, humilde, que cometeu a imperdoável

temeridade de "ter pena" de uma mulher branca, tem que colocar sua palavra de honra contra a de dois brancos. Não preciso lembrar aos senhores o

comportamento e a aparência deles na tribuna, os senhores viram com seus

olhos. "As testemunhas de acusação, com exceção do xerife do condado, se apresentaram diante dos senhores e deste tribunal com a cínica segurança de que seus depoimentos não seriam postos em dúvida, certos de que os senhores aceitariam a tese deles, a diabólica tese de que todos os negros mentem, todos os negros são, por princípio, imorais, que nenhum deles deve ser deixado perto de nossas mulheres, tese que podemos associar com mentes do calibre da deles.

Sabemos, senhores, que se trata de uma mentira tão negra quanto a pele de Tom Robinson, uma mentira que não preciso explicar aos senhores. Os senhores sabem a verdade: alguns negros mentem, alguns negros são imorais, alguns negros não merecem a confiança de ficar perto das mulheres, sejam elas

brancas ou negras. Mas essa verdade se aplica à raça humana, sem distinção.

Não existe ninguém neste tribunal que nunca tenha mentido, que nunca tenha feito algo imoral, não existe um homem vivo que nunca tenha olhado para

uma mulher com desejo" 6

Atticus prossegue por mais três parágrafos, apelando para o tema da justiça igual para todos nos tribunais. Qualquer pessoa que leu O

sol é para todos ou viu o filme baseado no romance lembra com que

habilidade Atticus Finch apresentou os pontos que está resumindo aqui e como isso foi necessário, considerando o tipo de júri com o qual ele teve de lidar, para relembrar ao júri os argumentos do caso e conduzir o 16 O sol é para todos, capítulo 20, Harper Lee [tradução de Beatriz Horta, Rio de Janeiro: José Olympio, 2015].

394

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

julgamento na sua perspectiva adequada. Um sumário final como este não serve apenas para lembrar o público dos pontos mais importantes do caso: ele reforça a persuasão, que é o objeto principal do discurso. Portanto, embora a recapitulação de Atticus seja amplamente expositiva, em essência, ela é argumentativa.

Estreitamente ligada ao tipo de conclusão que recapitula ou resume está a que generaliza. E a conclusão que amplia e desenvolve a visão do problema ou questão que estamos considerando no corpo do discurso, que considera as últimas consequências das opiniões que defendemos ou refutamos, que recomenda uma atitude a adotar ou uma

linha de ação a seguir. Em outras palavras, este é o tipo de conclusão que apresenta as conclusões gerais a que chegamos ao considerar nosso assunto.

Na convenção de 1959 do National Council of Teachers of English, o professor Warner G. Rice defendeu a abolição do curso de inglês para calouros na faculdade. Em resposta, o professor Albert R. Kitzhaber defendeu uma revisão do atual curso de inglês. Aqui, no parágrafo final de seu discurso, o professor Kitzhaber generaliza os pontos que apresentou no corpo de seu discurso: Posso resumir muito brevemente minha posição a respeito da questão que

estamos discutindo. Estou insatisfeito com o atual curso de inglês para calouros em sua forma típica; mas estou convencido de que qualquer melhoria

radical deve esperar, não preceder, as mudanças no currículo de inglês no

Ensino Médio. A tentativa de coerção dos professores de inglês do Ensino Médio não nos levará a lugar nenhum. Eles gostariam de melhorar o ensino da escrita tanto quanto nós gostaríamos que o fizessem; mas devemos ajudá-

-los, trabalhando com eles como iguais, em um problema que nem eles nem nós fomos capazes de resolver adequadamente. Se nossos esforços combinados

levarem aos resultados que desejamos, a necessidade desse curso para calouros atual desaparecerá, mas não a necessidade de um novo curso para calouros que

aproveite e amplie os cursos revisados do Ensino Médio. A meu ver, tal curso terá tanto valor para o calouro quanto qualquer outro curso que ele possa fazer nesse ano, porque se concentrará em elevar o nível de sua habilidade escrita da

competência para a distinção e porque contribuirá significativamente para sua

educação liberal por meio do estudo contínuo da literatura e da linguagem.

395

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Ambas são preocupações legítimas de um departamento de inglês. Na verdade, acho que são obrigações."

É no tipo de conclusão resumida que temos a melhor oportunidade

de nos envolver no que os retóricos chamam de ampli cação e atenuação.

A amplificação é o processo de destacar e engrandecer os pontos que apresentamos, uma forma de lembrar o público da importância, força ou superioridade de nossas idéias. A atenuação é exatamente o oposto:

mostramos que os pontos levantados pela oposição são insignificantes,

fracos ou inferiores. Os tópicos comuns a que mais recorremos quando

procuramos ampliar nossos próprios pontos ou minimizar os pontos de

nossos opositores são o tópico do tamanho e o tópico dos graus. Em

outras palavras, tentamos enfatizar ou diminuir a magnitude absoluta ou relativa das idéias que apresentamos. É claro que tentamos fazer isso

ao apresentar nossos argumentos, mas pode ser útil para nossa causa incluir uma forma resumida de ampli cação e atenuação na conclusão. Uma advertência final sobre a recapitulação: ela deve ser breve. Do

contrário, a conclusão assumirá as proporções de um segundo discurso e servirá apenas para cansar o público. Nada exaspera tanto o público

quanto oradores ou escritores que falam sem parar depois de anunciar que estão prestes a concluir. Uma conclusão desproporcional é geral-

mente mais prejudicial ao efeito de um ensaio do que uma introdução

desproporcional. Um público descansado pode perdoar uma introdução longa e cansativa, mas um público cansado certamente se ressentirá

da conclusão interminável.

Os apelos emocionais, como vimos, são apropriados em qualquer parte do discurso. Tradicionalmente, porém, a conclusão tem sido a parte em que os apelos emocionais têm figurado de forma mais destacada. Os alunos de hoje não foram muito expostos ao estilo Chautauqua

de oratória, muito popular nos primeiros anos deste século, mas uma olhada nos discursos de um orador extravagante como William Jennings Bryan mostra como os oradores se entregavam ao desejo natural de retirar todas as barreiras emocionais da peroração. Provavelmente mais

familiar para os estudantes modernos, Sir Winston Churchill foi um orador da grande tradição antiga. Um exemplo do tipo estimulante de

17 Albert R. Kitzhaber, "Death, or Transfiguration?", College English, 21, abril de 1960: pp. 367-

73. Reproduzido com permissão do autor e do National Council of Teachers of English.

fi

fi

396

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO apelo emocional é encontrado na peroração do famoso discurso de Sir

Winston Churchill na Câmara dos Comuns, em 13 de maio de 1940: Direi à Câmara o mesmo que disse aos ministros que se juntaram a este gover-

no: não tenho nada a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor. Temos

diante de nós uma dura provação. Temos diante de nós muitos meses de luta

e sofrimento. Perguntam-me qual é a nossa política. Digo que é fazer a guerra, seja por terra, por mar ou no ar, com todo o nosso poder e todas as forças que Deus nos dá; travar guerra contra uma tirania monstruosa, sem precedente no sombrio e lamentável catálogo dos crimes humanos. Essa é a nossa política. Perguntam-me qual é o nosso objetivo. Posso responder em uma palavra: vitória. Vitória a todo custo (vitória a despeito de todo terror), vitória, por mais longa e difícil que seja a estrada, pois sem vitória não há sobrevivência.

Compreendam bem: não há sobrevivência para o Império Britânico, não há

sobrevivência para tudo o que o Império Britânico representou, não há sobrevivência para o desejo de que a humanidade avance em direção ao seu objetivo.

Assumo minha tarefa com ânimo e esperança. Tenho certeza de que nossa causa não perecerá entre os homens. Nesta conjuntura, neste momento, sinto-me no direito de reivindicar a ajuda de todos e dizer: "Unamos as nossas forças e avancemos juntos".

Mesmo hoje, a maioria de nós tem um carinho nostálgico por esse tipo de oratória e, ocasionalmente, como em uma convenção de nomeações, somos presenteados com um discurso desse tipo. Geralmente, entretanto, suspeitamos das explorações grandiloqüentes de nossas emoções. E embora provavelmente tenhamos julgado mal nossa suscetibilidade aos apelos emocionais, as demonstrações bombásticas de emoção real-

mente já saíram de moda.

Hoje, é mais provável que consideremos adequado o tipo moderado de apelo emocional que Abraham Lincoln exerceu em seu "Segundo discurso inaugural". Neste exemplo, boa parte do apelo emocional é produzida pela escolha da dicção e pelo ritmo e estrutura das frases: O Todo-Poderoso tem Seus propósitos. "Ai do mundo por causa dos escândalos! Eles são inevitáveis, mas ai daquele homem por quem vem o escândalo!". Se supusermos que a escravidão americana é um dos escândalos que, na

397

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO providência de Deus, deve vir, mas que, tendo continuado até o momento designado, agora Ele deseja remover, e que Ele dá, tanto ao Norte quanto

ao Sul, essa guerra terrível, como a desgraça devido àqueles por quem veio o

escândalo, discerniremos nisso qualquer desvio daqueles atributos divinos que os crentes em um Deus vivo sempre atribuem a Ele? Esperamos muito, oramos

com fervor, para que este poderoso flagelo da guerra passe rapidamente. No entanto, se Deus quiser que continue até que toda a riqueza acumulada pelos escravos durante 250 anos de trabalho não remunerado se esgote e até que cada

gota de sangue arrancada com o chicote seja paga por outra produzida pela espada, devemos dizer, como foi dito há três mil anos: "Os juízos do Senhor

são verdadeiros e justos ao mesmo tempo".

Sem maldade em relação a ninguém, só bondade, com rmeza no que é cer-

to, se Deus nos permitir ver o que é certo, devemos nos esforçar para terminar a obra em que estamos, para curar as feridas da nação, para cuidar daquele que enfrentou a batalha, de sua viúva e seu órfão, fazer tudo o que pudermos para

alcançar e nutrir uma paz justa e duradoura entre nós e com todas as nações.

Observar o fim do estilo bombástico não é admitir que deixamos de responder aos apelos emocionais ou que deixamos de empregá-los. O

que aconteceu é que os apelos emocionais, especialmente conforme aparecem nas conclusões, tendem a ser mais sutis e contidos do que antes, mesmo cinqüenta anos atrás. Parece que estamos confiando menos em apelos emocionais diretos e mais em meios indiretos, como as graças do estilo. Os ritmos de nossas frases, por exemplo, exercem uma

influência sobre as emoções que não é menos real por ser quase imper-

ceptível. Consideraremos esses efeitos emocionais com mais detalhes no capítulo sobre estilo.

Se precisaremos recorrer aos apelos emocionais na conclusão e em

que nível dependerá, em grande parte, da natureza de nosso público. E extremamente importante que o orador ou escritor avalie, com a maior

precisão possível, o temperamento do público, seja ele conhecido ou não. Alguns públicos serão menos suscetíveis a apelos emocionais do

que outros. Um grupo profissional, por exemplo, inclinado, por tem-

peramento ou formação, a aceitar ou rejeitar propostas com base em seus méritos comprovados, pode ser imune, até hostil, a qualquer apelo

emocional em questões de interesse profissional. Evidentemente, a sus-

cetibilidade do público aos apelos emocionais pode variar de acordo

fi

398

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO com o assunto a ser discutido. Um grupo de médicos, por exemplo,

pode se sentir ofendido por apelos emocionais quando instado a adotar alguma nova droga ou técnica, mas em assuntos como subsídio governamental para planos de saúde, esse mesmo grupo mostra-se aberto a

esse tipo de apelo. Da mesma forma, quando os meios de persuasão ló-

gica disponíveis sobre um determinado assunto são fracos (ou pelo menos mais fracos do que os da oposição), pode ser conveniente recorrer à persuasão emocional. Quintiliano viu a e cácia do apelo emocional em tal situação: "Ora, as provas certamente conseguem que os juízes considerem nossa causa como a melhor; as emoções fazem com que também a queiram como melhor; no entanto, fazem com que também acreditem no que querem" (Instit. Orat., vI, ii, 5). Quintiliano chegou

a afirmar que "o espírito e a alma dessa tarefa oratória residem nas

emoções"' (vI, ii, 7). O grande retórico latino pode parecer encorajar o uso de qualquer tipo de meio antiético para cumprir nosso propósito,

mas quem lembra da visão de Quintiliano, de que o orador ideal é "o homem bom, que fala bem", rejeitará essa imputação. Quintiliano

está apenas reconhecendo o fato de que, devido à natureza humana, o apelo emocional será, em algumas circunstâncias, o mais eficaz dos

meios de persuasão disponíveis. Esse reconhecimento não é o mesmo que sancionar toda e qualquer exploração da emoção, pois os retóricos

clássicos não consideravam os apelos emocionais como ilegítimos per se. Às vezes, as pessoas abusam desse meio de persuasão, mas o fato de alguns abusarem desse poder não invalida todos os usos desse recurso.

A quarta coisa que podemos fazer (e às vezes nos sentimos compelidos a fazer) na conclusão é dispor o público favoravelmente em relação

a nós. Se não tivermos exercido um apelo ético nas partes anteriores de nosso discurso, provavelmente será tarde demais para exercê-lo na

conclusão. Vimos que, logo na introdução, talvez tenhamos que nos

insinuar a um público hostil ou apresentar nossas credenciais para um público cético, e, em partes posteriores do discurso, muitas vezes temos que reforçar o crédito estabelecido. Deixar a criação de uma imagem favorável de nós para a conclusão normalmente põe em risco nossas chances de persuasão. Portanto, quando fazemos um esforço na conclusão para dispor o público favoravelmente em relação a nós, devemos estar meramente renovando e reforçando o apelo ético que já funcionou nas partes anteriores do discurso.

fi

399

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Os tipos de apelo ético que parecem mais apropriados na conclusão

são a confissão franca de nossas deficiências, o reconhecimento honesto da força da idéia oposta e gestos magnânimos direcionados a opositores vingativos. É bom deixar nossa audiência com a impressão de que não temos ilusões sobre nós mesmos ou nossa posição, que temos respeito pela verdade, onde quer que ela esteja, e que somos capazes de responder à maldade com benevolência. O público fica com a impressão de que a pessoa capaz de fazer confissões francas e reconhecer a verdade não é apenas uma boa pessoa, mas uma pessoa tão confiante na força de sua posição que pode se dar ao luxo de fazer concessões à oposição. Observamos na seção sobre a introdução que, se acharmos necessário despertar hostilidade contra nosso opositor, geralmente é melhor

fazer isso na conclusão do que na introdução. É mais fácil, por um lado, despertar hostilidade contra um opositor depois de demolir seus argumentos. As circunstâncias, entretanto, podem ditar que despertemos essa hostilidade no início do discurso. Na leitura da Apologia no capítulo anterior, vimos que Sócrates considerou necessário incitar a animosidade contra Meleto bem no início de seu discurso de defesa.

OBSERVAÇÕES FINAIS SOBRE A DISPOSIÇÃO Neste capítulo, revisamos as partes usuais de um discurso extenso, observando o que normalmente é feito em cada uma dessas partes e observando os ajustes que precisam ser realizados em cada situação particular. Quase nenhuma regra sobre disposição é inflexível. Tudo deve "curvar-se" às exigências do momento, ou seja, as demandas do assunto, o tipo de discurso, a personalidade ou habilidade do escritor e o temperamento do público. Com tantos ajustes necessários para cada situação específica, pouquíssimos preceitos rígidos podem ser estabelecidos. Alguns escritores são mais bem-sucedidos do que outros nesses ajustes estratégicos, porque foram dotados de instintos sólidos para o que é eficaz em cada situação. Mas outros escritores, não tão talentosos, podem, por meio da experiência, da prática e da orientação, adquirir parte dessa habilidade. Experiência e prática os escritores devem ganhar por conta própria; este texto visa fornecer a orientação geral de que eles podem precisar.

400

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

Tudo o que a retórica pode fazer é indicar, dentro de um assunto, propósito ou público determinado, o que os escritores podem fazer em partes específicas do discurso, e como fazê-lo. A disposição, portanto, não se limita ao sistema convencional de organização de um discurso, uma forma de delinear a composição: a disposição é uma disciplina que treina os escritores nos critérios de seleção e no uso dos meios disponí-

veis para o m desejado.

Visto que tantas decisões sobre disposição dependem da situação específica, é aconselhável que os escritores estudem agora algumas leituras, para ver como alguns autores lidaram com a disposição.

LEITURAS THOMAS A. SANCTON: "PLANETA DO ANO"18 "Na primeira edição de ano novo, a revista TIME publica sua edição de Homem

do Ano (ou Mulher do Ano). Na edição de 2 de janeiro de 1989, em vez de

nomear a Pessoa do Ano, a TIME designou nossa Terra ameaçada de extinção

como o Planeta do Ano. (Uma vez antes, em 1982, a TIME nomeou o compu-

tador como a Máquina do Ano). O ensaio de Thomas A. Sancton veio em um pacote com trinta e três páginas, que incluía dez outros ensaios e um poema in-

titulado "Magnitude'", de Howard Nemerov, comumente considerado o atual

poeta de ouro dos Estados Unidos. Cada um dos ensaios subsequentes ao ensaio

de Sancton abordava, com alguma profundidade, um aspecto da deterioração de nosso planeta. Eis uma lista parcial dos títulos desses ensaios: The Death of Birth — Man is recklessly wiping out life on earth.

Deadly Danger in a Spray Can — Ozone-destroying CFCs [chlorofluorocarbons) should be banned. A Stinking Mess — Throwaway societies befoul their land and seas.

Too Many Mouths —Swarms of people are running out offood and space. Preparing for the Worst — If the sun turns killer and the well runs dry, how

will humanity cope?

18 TIME, 2 de janeiro de 1989, pp. 26-30. Copyright 1988 The Time Inc. Magazine Company. Reproduzido com permissão.

fi

401

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Na edição de 13 de fevereiro de 1989 da TIME, os editores relataram que essa

edição do Planeta do Ano recebeu 1.687 cartas, "à maior correspondência para

uma edição do Homem do Ano desde que a TIME escolheu Ayatollah Khomeini

em 1979". A julgar pelo volume de cartas ao editor, estaríamos seguros em afir-

mar que o tópico tratado nesta edição especial tocou em um ponto sensível de seus leitores. Depois do ensaio, procederemos a uma análise de sua disposição.

Uma geração vai, outra geração vem:

mas a Terra permanece para sempre.

— Eclesiastes 1, 4

1. Não, não para sempre. No limite externo, a Terra provavelmente durará mais 4 bilhões ou 5 bilhões de anos. A essa altura, prevêem os cien-

tistas, o Sol terá queimado tanto do seu próprio combustível de hidrogênio que irá expandir e incinerar os planetas circundantes, incluindo a Terra. Um cataclismo nuclear, por outro lado, pode destruir a Terra amanhã. Em algum lugar entre esses extremos está a expectativa de vida deste maravilhoso globo rodopiante. Quanto tempo ele durará e a qualidade de vida que terá não dependem somente das leis imutáveis da física. Pois o homem atingiu um ponto de sua evolução em que tem o poder de afetar, para melhor ou para pior, o estado presente e futuro do planeta.

2. Durante a maior parte de seus 2 milhões de anos ou mais de existência, o homem tem se desenvolvido bem na Terra, talvez bem demais. Em 1800, havia I bilhão de seres humanos dominando o planeta. Esse

número dobrou em 1930 e dobrou novamente em 1975. Se as taxas de natalidade atuais se mantiverem, a atual população mundial de 5,1 bi-

lhões dobrará novamente em mais 40 anos. A ironia assustadora é que esse crescimento exponencial da população humana, o próprio sinal do

sucesso do homo sapiens como organismo, pode condenar a Terra como

habitat humano. 3. A razão não está tanto nos números absolutos, embora 40.000 bebês morram de fome todos os dias nos países do Terceiro Mundo, mas na maneira imprudente como a humanidade tem tratado seu hospedeiro planetário. Como os gênios do mal que saíram da caixa de Pandora,

402

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO os avanços tecnológicos forneceram os meios de perturbar o equilíbrio

da natureza, esse intrincado conjunto de interações biológicas, físicas

e químicas que constituem a teia da vida. No alvorecer da Revolução

Industrial, chaminés começaram a lançar gases nocivos na atmosfera, fábricas despejam resíduos tóxicos em rios e córregos, automóveis engolem combustíveis fósseis insubstituíveis, contaminando o ar com seus detritos. Em nome do progresso, florestas foram desmatadas, lagos, contaminados com pesticidas, matando aquíferos subterrâneos. Durante décadas, os cientistas alertaram sobre as possíveis consequências de toda essa prodigalidade. Ninguém deu muita bola.

4. Este ano, a Terra falou, como Deus avisando Noé sobre o dilúvio. Sua mensagem era alta e clara e, de repente, as pessoas começaram a ouvi-la, a refletir sobre os presságios que a mensagem continha. Nos EUA, uma seca de três meses assolou a região da Califórnia à Geórgia, reduzindo em 31% a safra de grãos do país e matando milhares de cabeças de gado. Uma insistente onda de calor de sete semanas elevou as temperaturas acima de 37°C em grande parte do país, aumentando os temores de que o temido "efeito estufa" (aquecimento global como resultado do acúmulo de dióxido de carbono e outros gases na atmosfera) pode já estar a caminho. Ressecadas pela falta de chuva, as florestas ocidentais dos EUA, incluindo o Parque Nacional de Yellowstone, pegaram fogo, gerando uma amarga controvérsia conservacionista. E em muitas praias do país, lixo, esgoto não tratado e resíduos médicos vieram à tona, estragando a diversão dos banhistas e confrontando-os pessoalmente com a crescente espoliação dos oceanos. 5. Poluição semelhante interditou praias no Mediterrâneo, no Mar do Norte e no Canal da Mancha. Furacões assassinos devastaram o Caribe e enchentes devastaram Bangladesh, lembretes da força brutal da natureza. Na Armênia soviética, um monstruoso terremoto matou cerca de 55.000 pessoas. Outro desastre natural, mas o alto número de vítimas, em grande parte devido à construção de prédios baratos em uma área de falha conhecida, ilustra o descuido habitual da humanidade no trato

da natureza.

6. Houve outros presságios de desastre ambiental. Nos EUA, descobriu-

-se que fábricas federais de fabricação de armas haviam imprudente e secretamente espalhado lixo radioativo em grandes áreas. O esgota-

403

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO mento adicional da camada de ozônio da atmosfera, que ajuda a bloquear os raios ultravioleta cancerígenos, atesta o uso excessivo de cloro-

Auorcarbonos, provenientes de tubos de aerossol e condicionadores de ar, que destroem a atmosfera. Talvez o mais fatídico seja a destruição das florestas tropicais, lar de pelo menos metade das espécies vegetais e

animais da Terra, a uma taxa equivalente a um campo de futebol por

segundo. 7. A maioria desses males já vinha acontecendo há muito tempo, e al-

guns dos piores desastres aparentemente não tinham nada a ver com o comportamento humano. No entanto, este ano, o clima bizarro e as histórias de terror ambiental pareceram atuar como um poderoso cata-

lisador para a opinião pública mundial. De repente, todos perceberam

que este globo giratório, este precioso repositório de toda a vida que conhecemos, estava em perigo. Nenhum indivíduo, nenhum evento, nenhum movimento capturou a imaginação ou dominou as manchetes mais do que o aglomerado de rocha, solo, água e ar que é nosso lar

comum. Assim, em um raro, mas não sem precedentes, afastamento de sua tradição de nomear o Homem do Ano, a TIME designou a Terra em perigo como o Planeta do Ano de 1988. 8. Para ajudar na cobertura, a TIME convidou 33 cientistas, administradores e líderes políticos de dez países para uma conferência de três dias

em Boulder, em novembro. O grupo incluiu especialistas em mudanças

climáticas, população, destinação de resíduos e preservação de espécies. Além de explicar as complexidades desses problemas interligados, os especialistas apresentaram uma ampla gama de idéias práticas e sugestões que a TIME transformou em um programa de ação ambiental. Esse

programa, acompanhado de histórias sobre cada um dos principais problemas ambientais, aparece ao longo das páginas a seguir.

9. O que acontecerá se não fizermos nada sobre o estado de ameaça da Terra? De acordo com projeções de computador, o acúmulo de co, na atmosfera pode elevar a temperatura média do planeta de -16°0 para -12°C em meados do próximo século. Isso pode fazer com que os oceanos subam vários metros, inundando regiões costeiras e arruinando grandes extensões de terras agrícolas por meio da salinização. A

mudança dos padrões climáticos pode tornar grandes áreas inférteis ou

404

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

inabitáveis, desencadeando movimentos de refugiados sem precedentes

na história. 10. Resíduos tóxicos e contaminação radioativa podem levar à escassez

de água potável, condição sine qua non da existência humana. E em um mundo com uma população entre 8 e 14 bilhões de habitantes em meados do século xxI, há uma forte probabilidade de fome em massa. É até possível imaginar o mundo profetizado de forma tão irônica e assustadora pela barata datilógrafa de Archy and Mehitabel, de Donald Marquis: "O homem está fazendo desertos da terra/ não demorará muito/ para que ele a destrua por completo/ para que nada além de formigas/ centopéias e escorpiões/ consigam sobreviver aqui". II. Há quem acredite que os piores cenários são alarmistas e infundados. Alguns cientistas contestam a teoria do aquecimento global ou prevêem que os processos naturais neutralizarão seus efeitos. Kenneth E. F.

Watt, professor de estudos ambientais da Universidade da Califórnia, em Davis, chegou a chamar o efeito estufa de "a risada do século". S.

Fred Singer, geofísico que trabalha para o Departamento de Transporte dos EUA, prevê que qualquer aquecimento global será contrabalançado por um aumento nas nuvens refletoras de calor. Os céticos podem estar certos, mas é muito arriscado não fazer nada enquanto se espera a prova absoluta do desastre. 12. Qualquer que seja a validade desta ou daquela teoria, a Terra não

permanecerá como é agora. Desde o seu início como um pedaço de rocha derretida e gás, cerca de 4,5 bilhões de anos atrás, o planeta viu

continentes se formarem, se moverem e se separarem como peças de um quebra-cabeça. As Eras Glaciais sucessivas fizeram com que geleiras

descessem das calotas polares. Cadeias de montanhas projetaram-se do

leito oceânico e massas de terra desapareceram sob as ondas.

13. Mudanças anteriores no clima ou na topologia da Terra foram acompanhadas por ondas de extinções. O exemplo mais espetacular é a morte dos grandes dinossauros durante o período cretáceo (136 milhões

a 65 milhões de anos atrás). Ninguém sabe exatamente o que matou os

dinossauros, embora uma mudança radical nas condições ambientais pareça ser uma resposta provável. Uma teoria popular é que um enorme meteoro caiu na Terra e levantou nuvens de poeira tão vastas que a luz

405

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

do Sol foi obscurecida, e as plantas, destruídas. Resultado: os dinossauros morreram de fome. 14. Quer essa teoria seja correta ou não, um evento de não menos mag-

nitude está ocorrendo neste exato momento, mas desta vez seu agente é o homem. As queimadas e desmatamentos no Brasil e em outros países, como um grande exemplo, estão destruindo espécies insubs-

tituíveis todos os dias. E. O. Wilson, biólogo de Harvard, disse: "As extinções em andamento em todo o mundo prometem ser pelo menos

tão grandes quanto a extinção em massa que ocorreu no nal da era

dos dinossauros". 15. A atual relação predatória da humanidade com a natureza re ete uma visão de mundo centrada no homem, que evoluiu ao longo dos tempos. Quase todas as sociedades têm seus mitos sobre a Terra e suas

origens. Os antigos chineses retratavam Caos como um enorme ovo cujas partes se separaram, formando a Terra e o Céu, yin e yang. Os gregos acreditavam que Gaia, a Terra, foi criada imediatamente após Caos

e deu à luz os deuses. Em muitas sociedades pagás, a Terra era vista como mãe, uma fértil doadora de vida. A natureza (o solo, a floresta, o mar) era dotada de divindade e os mortais estavam subordinados a ela. 16. A tradição judaico-cristã introduziu um conceito radicalmente diferente. A Terra foi criação de um Deus monoteísta, que, depois de moldá-la, ordenou aos seus habitantes, nas palavras do Gênesis: "Crescei e multiplicai-vos, e enchei a Terra, e sujeitai-a, e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a Terra". A idéia de domínio pode ser interpretada como um convite para usar a natureza de modo conveniente. Assim, a disseminação

do cristianismo, que teria pavimentado o caminho para o desenvolvimento da tecnologia, pode, ao mesmo tempo, ter carregado as sementes da exploração desenfreada da natureza que costuma acompanhar o

progresso técnico.

17. Essas tendências foram agravadas pela noção iluminista de um universo mecanicista, que o homem poderia moldar para seus próprios fins por meio da ciência. O otimismo exuberante dessa visão de mundo esteve por trás de algumas das maiores conquistas dos tempos modernos: a invenção de máquinas que poupam trabalho, a descoberta de anestésicos e vacinas, o desenvolvimento de sistemas eficientes de transporte

fl

fi

406

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO e comunicação. Mas a tecnologia vem se deparando, cada vez mais,

com a lei das consequências inesperadas. Os avanços na área da saúde

aumentaram a longevidade, reduziram as taxas de mortalidade infantil

e, assim, agravaram o problema populacional. O uso de pesticidas aumentou o rendimento das safras, mas poluiu as águas. A invenção dos automóveis e aviões a jato revolucionou as viagens, mas prejudicou a

atmosfera.

18. Ainda assim, o avanço da tecnologia nunca destruiu a admiração e reverência do homem pela beleza da Terra. A chegada da Revolução Industrial na Inglaterra, com seus "negros moinhos satânicos", coinci-

diu com extraordinário da poesia romântica, grande parte delao sobre a glória daflorescimento natureza. Muitas pessoas nesse século expressaram os mesmos sentimentos ternos ao ver as primeiras imagens da Terra vistas da Lua. A visão daquela bola cintilante e luminescente contra o vazio negro inspirou até mesmo os astronautas, normalmente prosaicos, a vôos de eloqüência. Edgar Mitchell, que viajou para a Lua a bordo da Apollo 14 em 1971, descreveu o planeta como "uma jóia cintilante, azul e branca, [...] rodeada de véus claros girando lentamente,

[..] como uma pequena pérola em um mar espesso de mistério negro". Fotos da Terra vistas do espaço levaram o geólogo Preston Cloud a es-

crever: "A Mãe Terra nunca mais será a mesma. Nenhum ser pensante

poderá continuar considerando este pequeno planeta [...] como um infinito palco de ação, provedor de recursos para o homem, concedendo-lhe novas benesses a cada demanda sem limites". Essa conclusão parece ainda mais imperativa na esteira dos choques ambientais de 1988.

19. Sem ilusões. Tomar medidas eficazes para deter o dano massivo ao meio ambiente da Terra exigirá uma mobilização da vontade política, cooperação internacional e sacrifícios desconhecidos, exceto em tempos de guerra. No entanto, a humanidade está em guerra agora, e não é exagero chamá-la de guerra pela sobrevivência. E uma guerra em que todas as nações devem aliar-se. Tanto as causas quanto os efeitos

dos problemas que ameaçam a Terra são globais e devem ser atacados

globalmente. "Todas as nações estão ligadas em um destino comum",

observa Peter Raven, diretor do Jardim Botânico do Missouri. "Todos nós estamos enfrentando um problema comum: Como fazer com que este único recurso que temos, o mundo, continue sendo viável?".

407

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 20. À medida que o homem caminha para a última década do século xx, ele se encontra em um ponto crucial: as ações daqueles que estão vivos

agora determinarão o futuro e, possivelmente, a própria sobrevivência

da espécie. "Não temos gerações, temos somente alguns anos para ten-

tar mudar as coisas", lembra Lester Brown, presidente do Worldwatch

Institute, com sede em Washington. Cada pessoa no planeta deve estar ciente de sua vulnerabilidade e da necessidade urgente de preservá-lo. Nenhuma tentativa de proteger o meio ambiente terá sucesso a longo prazo, a menos que as pessoas comuns (a dona de casa da Califórnia, o camponês mexicano, o operário soviético, o agricultor chinês) estejam dispostas a ajustar seu estilo de vida. Nossos caminhos perdulários e descuidados devem se tornar coisa do passado. Devemos reciclar mais, procriar menos, desligar as luzes, usar o transporte coletivo, fazer mil coisas de forma diferente em nosso dia a dia. Devemos isso não apenas a nós mesmos e a nossos filhos, mas também às gerações que ainda não nasceram, que um dia herdarão a Terra. 21. A mobilização desse tipo de compromisso de massa exigirá uma liderança extraordinária, do tipo que apareceu antes em tempos de crise:

a eloqüência de Churchill estimulando seus conterrâneos em guerra a viver "seu melhor momento", o idealismo pragmático de Roosevelt dando esperança e empregos aos americanos vítimas da Depressão. Agora, mais do que nunca, o mundo precisa de líderes que possam inspirar seus concidadãos com um vigoroso senso de missão, não uma campanha nacionalista ou militar, mas uma cruzada universal para sal-

var o planeta. A menos que a humanidade abrace essa causa totalmente e sem demora, as únicas alternativas que lhe restam são o estrondo do

holocausto nuclear ou o gemido da lenta extinção.

ANÁLISE DA DISPOSIÇÃO EM "PLANETA DO ANO", DE THOMAS A. SANCTON O ensaio "Planeta do ano", de Thomas A. Sancton, serve como um prelúdio ou prefácio de uma série de artigos assinados, na primeira edição

da revista TIME de 1989, sobre o tema geral "Terra em perigo". Cada um dos artigos trata de uma ameaça particular ao bem-estar do nosso planeta, como a superpopulação, a poluição do meio ambiente, o aque-

408

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO cimento global, tentando alertar os leitores sobre as ameaças, infor-

mando-os de fatos pertinentes e demonstrando as consequências desses fatos se não fizermos nada a respeito. Neste artigo inicial, Thomas Sancton apresenta aos leitores uma visão geral da situação. Poderíamos fazer uma análise da força e da validade dos fatos e dos ar-

gumentos que Sancton apresenta neste ensaio introdutório, mas aqui nos

concentraremos na disposição do texto. Não existe uma maneira única e

ideal de organizar um ensaio informativo ou argumentativo. A organização de quase qualquer discurso representa o julgamento de um autor particular sobre como ordenar as partes. Podemos analisar essa organização e fazer nossos próprios julgamentos sobre a eficácia ou ineficácia da ordem que o autor impôs às partes. Nem sempre podemos dizer que a ordenação das partes de um determinado ensaio era inevitável, mas podemos dizer que a ordem foi judiciosa ou justificável. Podemos ver por

que um autor teve que falar sobre isso antes daquilo ou podemos mostrar que foi um erro estratégico falar sobre isso antes daquilo. A sequência de

argumentos pode ser crucial para o sucesso dos esforços persuasivos de

um autor, mas as leis que governam a melhor sequência em um caso par-

ticular ou mesmo em um caso geral não estão gravadas em pedra. Dada

a função do ensaio de Sancton, vejamos como o autor optou, consciente ou inconscientemente, por organizar seu discurso.

O ensaio tem vinte e um parágrafos. O que temos que fazer ao delinear o ensaio é ver que agrupamentos podemos fazer desses parágrafos. Onde estão os grandes blocos de parágrafos e como esses blocos se rela-

cionam uns com os outros? Pode haver algumas diferenças de opinião entre os leitores sobre exatamente onde ocorre uma costura específica

na estrutura do texto, mas provavelmente chegaremos a algum consenso sobre as principais divisões do ensaio.

Embora possamos analisar a disposição de um ensaio em termos das partes ciceronianas de uma oração — introdução (exordium), declaração de fatos (narratio), divisão (divisio), prova (confirmatio e refuta-

tio), conclusão (peroratio) —, usaremos aqui outra maneira de analisar a estrutura de um ensaio: traçando o esboço original em algarismos

romanos: Introdução (parágrafos 1-3) 1. Evidência da deterioração do planeta (parágrafos 4-7).

409

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO II. O que a revista TIME fez para nos alertar sobre o perigo (parágrafo 8).

III. Respostas para a pergunta: "O que acontecerá se não fizermos nada sobre o estado de ameaça da Terra?" (parágrafos 9-11).

Iv. Mudanças passadas e presentes no meio ambiente (parágrafos

12-14).

v. Vários mitos sobre a origem do mundo (parágrafos 15-18). Conclusão (parágrafos 19-21). Tendo disposto os agrupamentos dos parágrafos nesse formato, analisaremos mais de perto cada uma dessas divisões principais. No primeiro parágrafo da introdução, Thomas Sancton declara sua discordância com a epigrafe do texto bíblico do Eclesiastes, que afirma que "a Terra permanece para sempre". Contrariando essa afirmação, Sancton enuncia a tese de seu ensaio: A duração da Terra dependerá não

apenas das leis da física, mas do comportamento dos habitantes do planeta.

No segundo parágrafo, ele observa que os seres humanos têm se desenvolvido bem demais na Terra. Ironicamente, o aumento fenomenal no número de habitantes desde 1800 pode condenar nosso planeta. No terceiro parágrafo da introdução, ele observa que não é somente o aumento

do número de habitantes que condena o planeta, mas a maneira imprudente como os habitantes o tratam. Só os grandes avanços tecnológicos dos últimos duzentos anos já poluem perigosamente a atmosfera. Esses três parágrafos introdutórios alertam os leitores sobre o assunto desse ensaio e dos ensaios subseqüentes, apresentando a tese dessa edição especial da TIME. Em seguida, do parágrafo 4 ao parágrafo 7, inicia-se o corpo do ensaio. Nesses quatro parágrafos, o autor cita algumas evidências da fatídica deterioração de nosso planeta. No parágrafo 4, ele fala sobre a deterioração que ocorreu nos Estados Unidos apenas em 1988, com desastres naturais como secas, incêndios, terremotos, furacões e descarte de lixo e outros resíduos. No parágrafo seguinte, ele fala de desastres semelhantes ocorridos no mesmo ano em outros países do mundo. No sexto parágrafo, o autor lembra outras poluições recentes causadas pelo homem em nosso meio ambiente: contaminação com resíduos radioativos espalhados por fábricas de armas federais, esgotamento contínuo da camada de ozônio, destruição desenfreada de florestas tropicais. O parágrafo 7, último parágrafo da primeira divisão principal do ensaio, é um parágrafo de resumo.

410

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO A segunda divisão principal do ensaio consiste em um único parágrafo, o parágrafo 8. Aqui, o autor nos conta o que a TIME Corporation fez para alertar as pessoas sobre os perigos resultantes do desenvolvi-

mento destrutivo descrito na seção principal anterior. Em conjunto

com seu plano de designar a Terra como Planeta em Perigo em sua

edição habitual de Homem (ou Mulher) do Ano em janeiro de 1989, a TIME reuniu 33 cientistas, administradores e líderes políticos de dez

países para uma conferência de três dias em Boulder, Colorado, em novembro de 1988. Os resultados dessa conferência estão na série de artigos dessa edição, sobre os principais problemas ambientais tratados por essa venerável assembléia.

A terceira divisão em algarismos romanos do ensaio de Thomas Sancton fornece quatro respostas para a pergunta: "O que acontecerá se não zermos nada sobre o estado de ameaça da Terra?". A primeira

resposta diz respeito às consequências de um aumento substancial na

temperatura do planeta: o aumento das temperaturas pode fazer com

que os oceanos subam, inundando regiões costeiras e arruinando terras agrícolas, e a mudança dos padrões climáticos pode tornar muitas regiões "inférteis ou inabitáveis". A segunda resposta diz respeito às conse-

quências dos resíduos tóxicos: haverá um sério esgotamento em nosso suprimento de água potável. A terceira resposta diz respeito às conse-

quências de um aumento desenfreado da população de nosso planeta,

provocando fome em massa em todas as partes do mundo. A quarta resposta aponta para a consequência geral da deterioração de nosso planeta: toda a Terra se tornaria inóspita para qualquer tipo de vida.

Mas no parágrafo II, o último parágrafo desta terceira divisão, o autor observa que muitos cientistas conceituados discordam das visóes alarmistas expressas nos dois parágrafos anteriores desta seção e cita

dois desses cientistas, E. F. Watt e S. Fred Singer. A quarta divisão principal do ensaio, que consiste nos parágrafos 12, 13 e 14, trata de algumas mudanças passadas e presentes no ambiente terrestre. No início desta seção, em resposta às visões conflitantes apre-

sentadas na divisão principal anterior (parágrafos 9-II), o autor diz: "Qualquer que seja a validade desta ou daquela teoria, a Terra não per-

manecerá como é agora". Ao apresentar as mudanças cataclísmicas que ocorreram e estão ocorrendo em nosso meio ambiente, o autor quer nos mostrar que mudanças semelhantes e talvez mais desastrosas ocorrerão

fi

411

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO em nosso planeta. A consequência geral dessas mudanças será a extin-

ção da vida humana, animal e vegetal. A quinta e última divisão principal do ensaio de Sancton, consis-

tindo nos parágrafos 15-18, trata dos mitos que os seres humanos criaram ao longo dos tempos sobre as origens do mundo. Esta é a seção em que o leitor pode ter grande dificuldade em discernir como a discussão

aqui se relaciona com o assunto e a tese do ensaio como um todo. Mesmo com o relato de alguns mitos sobre a origem da Terra, ele pode ter dificuldade em detectar a pertinência desse relato para o tópico geral do ensaio. Uma pista de como o autor vê a relação desta seção final com o que aconteceu antes pode ser indicada na primeira frase do parágrafo 15: "A atual relação predatória da humanidade com a natureza re ete uma visão de mundo centrada no homem, que evoluiu ao longo dos tempos". Ao revisar os mitos sobre a origem do mundo nas antigas culturas chinesa, grega e judaico-cristã e, em seguida, o desenvolvimento

de uma visão mecanicista do universo na era do iluminismo, Sancton

pretende nos mostrar como a "visão de mundo centrada no homem [..] evoluiu ao longo dos tempos" Em todo caso, é ainda mais difícil ver a ligação do parágrafo 18, o

último parágrafo do corpo do ensaio, com o resto do texto. A primeira frase desse parágrafo parece ser uma declaração de tese: "Ainda assim,

o avanço da tecnologia nunca destruiu a admiração e reverência do ho-

mem pela beleza da Terra". Mas como essa tese se relaciona com o que o autor falou no resto do ensaio?

Os parágrafos 19, 20 e 21 constituem a conclusão do texto. O tema desta seção final parece ser mais ou menos o seguinte: Parar ou reverter

a deterioração massiva do meio ambiente da Terra exigirá a mobilização

das lideranças políticas de todas as nações. Thomas Sancton sugere que, se não conseguirmos mobilizar essa vontade política coletiva, nosso futuro está seriamente comprometido. O tempo é inexorável. Vimos como o autor organizou este ensaio, revisando as sucessivas partes do texto. Se tivéssemos de escrever sobre esse assunto, usaríamos

uma organização diferente, mas, de modo geral, é possível discernir

pelo menos uma razão plausível para a sequência particular de par-

tes adotada no ensaio. É verdade que tivermos di culdade em explicar

como a seção final (parágrafos 15-18) do corpo do ensaio se relaciona

com as partes anteriores, mas mesmo essa seção não é tão imperti-

fl

fi

412

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO nente. O efeito cumulativo das informações e argumentos apresentados nas cinco grandes divisões do corpo do ensaio é predispor o leitor, até

mesmo compeli-lo, a concordar com o que o autor afirma na conclusão:

é imperativo que todas as nações do mundo cooperem em um esforço conjunto para deter e reverter a deterioração galopante de nosso meio

ambiente. Quanto de nossa aceitação da conclusão se deve à força dos argumentos apresentados e quanto se deve à eficácia da organização do texto é uma questão sobre a qual vale a pena refletir.

MARTIN LUTHER KING JR.: "CARTA DA CADEIA DE BIRMINGHAM"19 Durante a segunda metade da década de 1950 e a maior parte da década de 1960, a figura mais carismática no movimento pelos direitos civis, especialmen-

te na fase de resistência passiva e não-violenta, foi certamente o Rev. Martin Luther King Jr. Nascido em Atlanta, Geórgia, em Is de janeiro de 1929, ele recebeu seu bacharelado em artes no Morehouse College, em Atlanta, e concluiu

o doutorado na Universidade de Boston, em 1955. Martin Luther King ganhou destaque público pela primeira vez quando liderou o bem-sucedido boicote dos ônibus em Montgomery, Alabama, após a prisão da Sra. Rosa Parks, uma costureira negra, em Iº de dezembro de 1955, que se recusou a ceder a um bran-

co seu assento na fileira da frente (destinada a pessoas negras) de um ônibus

a caminho de casa, voltando do trabalho. Foi eleito presidente da Southern Christian Leadership Conference (SCLC), organização que buscava mobilizar a consciência da nação e efetivar a aprovação da legislação social por meio das estratégias de desobediência civil herdadas de Mahatma Gandhi e, em última instância, de Henry David Thoreau. Em 1964, o Dr. King recebeu o 19 Minha resposta à declaração publicada pelos oito colegas sacerdotes do Alabama (Bispo C.C.J. Carpenter, Bispo Joseph A. Durick, Rabino Milton L. Grafman, Bispo Paul Hardin, Bispo Nolan

B. Harmon, Reverendo George M. Murray, Reverendo Edward V. Ramage e Reverendo Earl Stallings) foi escrita em circunstâncias um tanto restritivas. Eu não tinha à minha disposição nada

parecido com um bloco de anotações ou papel de carta. Comecei escrevendo nas margens do jornal em que a declaração apareceu, prossegui utilizando fragmentos de papel de carta fornecidos por um

detento negro amigável e terminei num bloco que meus advogados acabaram tendo a permissão de me fornecer. Consegui passar o texto para fora da cadeia, por meio de um advogado, a um de meus assistentes. Embora o texto permaneça substancialmente inalterado, usei minha prerrogativa

de autor para lhe dar um polimento. — Nota de Martin Luther King, extraída de "Letter from Birmingham Jail", em Why We Can't Wait, de Martin Luther King Jr. Copyright © 1963 de Martin Luther King Jr. Reproduzido com permissão de Harper & Row, Publishers, Inc.

413

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Prêmio Nobel da Paz, tornando-se o homem mais jovem a ganhar esse prêmio.

Em 4 de abril de 1968, foi assassinado em Memphis, Tennessee. A influência

de Martin Luther King deve-se principalmente à sua oratória, eloquência e participação em passeatas e protestos. Na seção a seguir, entretanto, temos um exemplo de seus talentos retóricos na mídia escrita, já que, na época, ele estava

preso em uma cadeia em Birmingham. ("Nunca tinha escrito uma carta tão longa", ele nos diz na própria carta). A carta foi motivada por uma declaração pública feita em 1z de abril de 1963, pelos oito sacerdotes mencionados na nota

de rodapé do autor, deplorando o uso de manifestações de rua e exortando os

cidadãos brancos e negros do Alabama "a observar os princípios da lei, da or-

dem e do bom senso". Esta retórica judicial, lançada na forma de uma "carta aberta", tem uma audiência dupla: os oito sacerdotes que assinaram a declaração pública e as pessoas da nação, até mesmo o mundo (16 de abril de 1963).

Meus prezados colegas sacerdotes

1. Embora confinado na cadeia municipal de Birmingham, tive acesso a sua recente declaração em que minhas atuais atividades são consideradas "imprudentes e inoportunas". Dificilmente faço uma pausa para responder a críticas sobre meu trabalho e minhas idéias. Se fosse responder a todas as críticas que chegam à minha mesa, meus secretários

teriam pouco tempo para fazer outra coisa durante o dia senão lidar com essa correspondência, e eu não teria tempo para realizar um trabalho construtivo. Mas como sinto que os senhores são verdadeiramente homens de boa vontade e que suas críticas foram feitas com sinceridade,

vou tentar responder a suas declarações em termos que espero serem

pacientes e razoáveis.

2. Penso que deveria esclarecer por que estou aqui em Birmingham, já que os senhores foram influenciados pela visão contrária à "presença

de forasteiros". Eu tenho a honra de ocupar o cargo de presidente da Conferência da Liderança Cristã do Sul, uma organização que opera em todos os estados sulistas, com sede em Atlanta, Geórgia. Temos cerca de 85 organizações afiliadas em toda a região, e uma delas é o Movimento Cristão pelos Direitos Humanos do Alabama. Freqüentemente compartilhamos equipes, recursos educacionais e financeiros com nossas afiliadas. Vários meses atrás, a afiliada aqui

414

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

de Birmingham pediu que nos preparássemos para nos envolvermos num programa de ação direta não-violenta caso isso se fizesse necessário. Consentimos prontamente e, quando chegou a hora, mantivemos a promessa. Desse modo, eu, juntamente com vários membros de minha equipe, estou aqui porque fui convidado. Estou aqui em função de meus vínculos organizacionais. 3. Mais basicamente, porém, estou em Birmingham porque a injustiça está aqui. Tal como os profetas do século viiI a.C. abandonaram suas aldeias e levaram o seu "assim disse o Senhor" para muito além dos limites de suas cidades natais, e tal como o apóstolo Paulo deixou sua vila de Tarso e levou o Evangelho de Jesus para os confins do mundo greco-romano, assim também me sinto compelido a levar o evangelho da liberdade para além de minha terra natal. Tal como Paulo, tenho sempre de responder ao pedido de ajuda dos macedônios. 4. Além disso, tenho consciência do inter-relacionamento de todas as comunidades e de todos os estados. Não posso ficar placidamente sentado em Atlanta sem me preocupar com o que acontece em Birmingham. A injustiça em algum lugar constitui uma ameaça à justiça em toda parte. Estamos presos a uma rede inescapável de mutualidade, atados às ves-

tes comuns do destino. O que afeta alguém diretamente afeta a todos de forma indireta. Não podemos mais conviver com a idéia estreita e

provinciana do "agitador vindo de fora". Qualquer um que viva nos Estados Unidos jamais pode ser considerado um forasteiro em algum lugar no interior de suas fronteiras.

5. Os senhores deploram as manifestações que estão ocorrendo em

Birmingham. Mas sua declaração, lamento dizer, deixa de expressar uma preocupação semelhante com as condições que nos levaram a essas

manifestações. Estou certo de que nenhum dos senhores ficaria satisfeito com o tipo superficial de análise social que trata meramente dos efeitos sem se preocupar com as causas subjacentes. É triste que essas manifestações estejam ocorrendo em Birmingham, porém é ainda mais triste que a estrutura do poder branco da cidade deixe a comunidade negra sem alternativa.

6. Em toda campanha não-violenta há quatro etapas básicas: a compilação de fatos que determinem se existe injustiça, a negociação, a autopurificação e a ação direta. Em Birmingham nós passamos por todas

415

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO essas etapas. Não é possível contestar o fato de que esta comunidade está mergulhada na injustiça racial. Birmingham é talvez a cidade mais

rigorosamente segregada dos Estados Unidos. Sua terrível história de

brutalidade é amplamente conhecida. Os negros têm recebido um tratamento amplamente injusto nos tribunais. Há mais casos não resolvidos de casas e igrejas de negros destruídas por bombas em Birmingham do que em qualquer outra cidade desta nação. Esses são os fatos, duros,

brutais. Com base nessas condições, os líderes negros tentaram negociar com as autoridades municipais. Mas estas sempre se recusaram a se

envolver numa negociação honesta.

7. Assim, em setembro último veio a oportunidade de conversarmos

com líderes da comunidade econômica de Birmingham. No curso das negociações, os comerciantes fizeram algumas promessas — por exemplo, retirar das lojas os humilhantes letreiros raciais. Com base nessas

promessas, o reverendo Fred Shuttlesworth e os líderes do Movimento

Cristão pelos Direitos Humanos do Alabama concordaram em interromper todas as manifestações. Com o passar das semanas e dos meses,

percebemos que fomos vítimas de uma falsa promessa. Uns poucos letreiros, temporariamente removidos, voltaram para onde estavam, en-

quanto os outros permaneceram. 8. Tal como em muitas experiências anteriores, nossas esperanças fo-

ram frustradas e a sombra de uma decepção profunda se projetou sobre

nós. Não tínhamos alternativa senão nos prepararmos para uma ação direta, pela qual pudéssemos usar nossos próprios corpos como meio

de apresentar nosso caso diante da consciência da comunidade local

e nacional. Cientes das di culdades envolvidas, decidimos empreender um processo de autopuri cação. Começamos uma série de o cinas sobre a não-violência e várias vezes indagamos a nós mesmos: "Você é capaz de aceitar agressões sem revidar?", "você é capaz de aguentar a provação da cadeia?". Resolvemos agendar nosso programa de ação

direta para a época da Páscoa, percebendo que, fora o Natal, esse é o

principal período de compras do ano. Sabendo que um forte programa de retraimento econômico seria um produto colateral da ação direta, percebemos que esse seria o melhor momento para pressionar os comerciantes pela necessária mudança.

fi

fi

fi

416

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO 9. Então nos ocorreu que a eleição para prefeito de Birmingham iria

acontecer em março e rapidamente resolvemos adiar nossa ação para

depois da eleição. Quando descobrimos que o comissário de segurança

pública, Eugene "Bull" Connor, tinha conseguido um número suficiente de votos para que houvesse um turno de desempate, decidimos mais uma vez adiar as manifestações de modo que elas não pudessem ser usadas para objetivos escusos. Tal como muitos outros, esperávamos que o Sr. Connor fosse derrotado, e por isso fizemos todos esses adiamentos. Tendo atendido a essa necessidade da comunidade, percebemos que nosso programa de ação direta teria de ser posto em prática sem mais delongas.

10. Os senhores podem muito bem perguntar: "Por que ação direta? Por que sit-ins, passeatas, e assim por diante? A negociação não é um caminho melhor?". Os senhores estão muito certos quando defendem a negociação. Com efeito, esse é o verdadeiro propósito da ação direta. A ação direta não-violenta busca instaurar uma crise e fomentar tensóes de tamanha proporção que uma comunidade que tenha se recusado permanentemente a negociar seja forçada a confrontar essa questão. Ela busca dramatizar um assunto de tal modo que ele não possa continuar sendo ignorado. Quando menciono a criação de tensão como parte do trabalho do participante de uma ação não-violenta, isso pode parecer

muito chocante. Mas devo confessar que não tenho receio da palavra "tensão". Tenho manifestado sinceramente uma oposição à tensão violenta, mas existe um tipo de tensão construtiva, não-violenta, que é necessária para o crescimento. Tal como Sócrates percebeu ser necessário criar uma tensão mental a fim de que os indivíduos pudessem escapar da submissão aos mitos e meias-verdades para o reino de liberdade da análise criativa e da avaliação objetiva, vemos da mesma forma a necessidade de estímulos não-violentos para criar na sociedade o tipo de tensão que ajudará os homens a sair das profundezas sombrias do preconceito e do racismo para os píncaros majestosos da compreensão e da fraternidade. 11. O propósito de nosso programa de ação direta é criar uma situação de tal maneira crítica que isso abrirá inevitavelmente as portas da negociação. Desse modo, concordo com os senhores em sua defesa da ne-

417

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO gociação. Nosso amado Sul tem se atolado há tempo demais no esforço

trágico de viver num monólogo e não num diálogo.

12. Um dos pontos básicos de sua declaração é que a ação que meus companheiros e eu empreendemos em Birmingham é inoportuna. Alguns perguntaram: "Por que vocês não deram tempo à nova administração municipal para que ela pudesse agir?". A única resposta que posso dar a essa pergunta é que a nova administração de Birmingham

deve ser incitada a agir, da mesma forma que sua antecessora, para que venha a fazê-lo. Estaríamos seriamente equivocados se achássemos que a eleição de Albert Boutwell para prefeito traria para Birmingham uma

era de prosperidade. Embora o Sr. Boutwell seja uma pessoa muito mais gentil do que o Sr. Connor, ambos são segregacionistas, devotados à manutenção do status quo. Tenho esperança de que o Sr. Boutwell seja suficientemente racional para perceber a futilidade de uma resistência sistemática à dessegregação. Mas ele não conseguirá perceber isso sem que haja pressão da parte dos devotos dos direitos civis. Meus amigos,

devo dizer-lhes que não conseguimos uma única vitória em matéria de direitos civis sem certo grau de pressão legítima e não-violenta. Por mais lamentável que seja, é um fato histórico que os grupos privilegiados dificilmente abrem mão de seus privilégios de maneira voluntária. Os indivíduos podem enxergar a luz da moral e abandonar voluntariamente uma postura injusta; mas, como nos lembra Reinhold Niebuhr, os grupos tendem a ser mais imorais que os indivíduos. 13. Graças a uma dolorosa experiência, sabemos que a liberdade nunca

é voluntariamente concedida pelo opressor; deve ser exigida pelo opri-

mido. Para ser franco, ainda estou por me envolver numa campanha de ação direta que seja considerada "oportuna" na visão daqueles que não padeceram indevidamente da moléstia da segregação. Já faz anos agora que ouço dizerem "Espere!". Isso soa aos ouvidos de todos os negros com uma excruciante familiaridade. Esse "Espere!" quase sempre significa "Nunca". Temos de reconhecer, acompanhados de um de nossos mais distintos juristas, que "a justiça por muito tempo retardada é uma justiça negada'".

14. Já esperamos mais de 340 anos por nossos direitos constitucionais e garantidos por Deus. As nações da Ásia e da África agora estão caminhando à velocidade de um jato no sentido de obterem a inde-

418

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO pendência política, mas nós ainda nos movemos a passo de cágado para termos direito a uma xícara de café numa lanchonete. Talvez seja

fácil para quem nunca sentiu os ferrões pontiagudos da discriminação

dizer "Espere!". Mas quando você viu turbas perversas lincharem à vontade suas mães e seus pais e estrangularem seus irmãos e irmãs por

puro capricho; quando viu policiais tomados pelo ódio ofenderem, baterem e até matarem seus irmãos e irmãs negros; quando vê a ampla

maioria de seus 20 milhões de irmãos negros sufocando nas cavernas

herméticas da pobreza em meio a uma sociedade abastada; quando

subitamente percebe sua língua enrolada e sua fala gaguejante ao tentar explicar a sua filha de seis anos de idade por que ela não pode ir a um parque de diversões que acabou de ser anunciado na televisão, e vê as lágrimas verterem de seus olhos quando lhe dizem que a Cidade da Diversão está fechada para crianças de cor, e vê as nuvens sinistras da inferioridade começando a se formar em seu pequeno céu mental, e a vê começando a distorcer sua personalidade ao desenvolver um ressentimento inconsciente em relação às pessoas brancas; quando você tem de formular uma resposta a um filho de cinco anos que pergunta: "Papai, por que os brancos tratam tão mal as pessoas de cor?"; quando você faz uma viagem interestadual e é obrigado a dormir noite após

noite no espaço desconfortável de seu automóvel porque nenhum motel o aceita; quando você é humilhado dia após dia por cartazes perturbadores indicando "brancos" e "pessoas de cor"; quando seu primeiro nome passa a ser "crioulo", seu nome do meio passa a ser "moleque" (independentemente de sua idade), seu último nome passa a ser "João" e sua esposa e sua mãe nunca são tratadas respeitosamente

pelo título de "senhora"; quando você é assolado de dia e assombrado

à noite pelo fato de ser um negro, vivendo constantemente com cautela, sem nunca saber o que vai acontecer em seguida, e é atormentado por medos internos e ressentimentos externos; quando enfrenta

eternamente o sentimento corrosivo de "não ser ninguém" — então você vai compreender por que achamos difícil esperar. Chega um mo-

mento em que o copo do desespero transborda e homens e mulheres

não mais se dispõem a serem lançados no abismo da desesperança.

Espero, senhores, que sejam capazes de entender nossa legítima e inevitável impaciência.

419

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 15. Os senhores manifestam bastante ansiedade em relação a nossa

disposição de violar as leis. Trata-se, decerto, de uma preocupação legítima. Uma vez que exortamos tão entusiasticamente as pessoas a obedecer à decisão da Suprema Corte de 1954 que considerou ilegal a segregação nas escolas públicas, à primeira vista pode parecer um paradoxo violarmos as leis de maneira consciente. Poder-se-ia muito bem indagar: "Como vocês podem defender que algumas leis sejam violadas e outras, obedecidas?". A resposta está no fato de que há dois tipos de leis: as justas e as injustas. Eu seria o primeiro a defender a obediência às leis consideradas justas. Temos uma responsabilidade não apenas jurídica, mas também moral, de obedecer às leis que consideramos justas. Inversamente, temos a responsabilidade moral de desobedecer às leis que consideramos injustas. Eu concordaria com Santo Agostinho quando ele afirma que "uma lei injusta não é absolutamente uma lei'. 16. Ora, qual é a diferença entre as duas? Como se determina se uma

lei é justa ou injusta? Uma lei justa é um código elaborado pelo homem que se enquadra na lei moral ou na lei divina. Uma lei injusta

é um código que não se harmoniza com a lei moral. Para usarmos os

termos de São Tomás de Aquino: uma lei injusta é uma lei humana que não tem raízes na lei natural e eterna. Toda lei que eleva a perso-

nalidade humana é justa. Toda lei que a degrada é injusta. Os estatutos da segregação são todos injustos porque a segregação distorce a alma e prejudica a personalidade. Ela dá àquele que segrega um falso sentimento de superioridade e ao que é segregado um falso sentimento de inferioridade. A segregação, para usarmos a terminologia do filósofo

judeu Martin Buber, substitui uma relação "eu-tu" por uma relação "eu-isso", e acaba rebaixando pessoas à condição de coisas. Logo, a segregação não é apenas incorreta do ponto de vista político, econômico e sociológico, mas também é moralmente errônea e pecaminosa. Paul Tillich disse que o pecado é uma forma de separação. A segregação não seria uma expressão existencial da trágica separação humana, seu pavoroso estranhamento, sua terrível degradação? E por isso que posso exortar os homens a obedecer à decisão da Suprema Corte de 1954, por ser moralmente correta, e ao mesmo tempo incitá-los a desobedecer às posturas segregacionistas, por serem moralmente ilegítimas.

420

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO 17. Consideremos um exemplo mais concreto de leis justas e injustas.

Uma lei injusta é um código que um grupo majoritário em termos numéricos ou de poder impõe a um grupo minoritário, mas não a si mesmo. Essa é a diferença juridicamente legitimada. No mesmo sen-

tido, uma lei justa é um código que uma maioria impõe a uma minoria estando ela mesma disposta a segui-lo. É a igualdade juridicamente

legitimada. 18. Deixem-me dar outra explicação. Uma lei é injusta se é imposta a uma minoria que, em resultado de lhe ser negado o direito de voto, não participou de sua aprovação ou elaboração. Quem é capaz de dizer que o legislativo do Alabama responsável pela introdução de leis segregacionistas foi democraticamente eleito? Por todo esse estado, todo tipo de métodos perversos é utilizado para evitar que os negros se registrem como eleitores, e existem alguns condados em que, embora a maioria da população seja negra, não há um único negro em condições de votar. Será que alguma lei adotada em tais circunstâncias poderia ser vista como democraticamente estruturada? 19. Por vezes uma lei é aparentemente justa, porém injusta em sua aplicação. Por exemplo, eu já fui preso sob a acusação de participar de uma

passeata não autorizada. Ora, não há nada de errado em haver uma postura que exija autorização para se fazer uma passeata. Mas essa postura se torna injusta quando usada para manter a segregação e negar a cidadãos o privilégio, garantido pela Primeira Emenda, de se reunirem e protestarem pacificamente.

20. Espero que os senhores consigam perceber a distinção que estou tentando assinalar. De modo algum defendo que se contorne ou desafie a lei, como faria um segregacionista fanático. Isso levaria à anarquia.

Quem infringe uma lei injusta deve fazê-lo abertamente, de maneira amorosa e com a disposição de aceitar a penalidade. Eu afirmo que um

indivíduo que infringe uma lei considerada injusta por sua consciência, e que aceita de boa vontade a pena de prisão a fim de despertar a consciência da comunidade em relação a essa injustiça, está na realidade expressando o maior respeito possível pela lei.

21. Evidentemente, não há nada de novo em relação a esse tipo de desobediência civil. Ela foi exposta de maneira sublime na recusa de Sadraque, Mesaque e Abednego a obedecer às leis de Nabucodonosor,

421

com base em que uma lei moral mais elevada estava em jogo. Também foi soberbamente praticada pelos primeiros cristãos, que se dispunham

a enfrentar leões sanguinários e a dor excruciante das lacerações em

vez de se submeterem a determinadas leis do Império Romano. Até certo ponto, a liberdade acadêmica é hoje em dia uma realidade porque

Sócrates praticou a desobediência civil. Em nossa nação, a Festa do Chá

de Boston representou um grande ato de desobediência civil. 22. Nunca deveríamos esquecer que tudo aquilo que Adolf Hitler fez na

Alemanha foi "legal" e tudo o que os lutadores pela liberdade zeram

na Hungria foi "ilegal". Era "ilegal" ajudar e confortar um judeu na Alemanha hitlerista. Mesmo assim, estou certo de que, se tivesse vivido

na Alemanha naquela época, eu teria ajudado e confortado meus irmãos judeus. Se hoje em dia eu vivesse num país comunista em que cer-

tos princípios caros à fé cristã são reprimidos, defenderia abertamente a desobediência às leis anti-religiosas desse país.

23. Devo fazer honestamente duas con ssões a vocês, meus irmãos cris-

tãos e judeus. Em primeiro lugar, devo confessar que nos últimos anos

quei seriamente decepcionado com os brancos moderados. Quase

cheguei à lamentável conclusão de que o grande obstáculo que o negro enfrenta em seu caminho para a liberdade não é o membro do Conselho dos Cidadãos Brancos ou da Ku Klux Klan, mas o branco moderado, mais devotado à "ordem" do que à justiça; que prefere uma paz negativa, que é a ausência de tensão, a uma paz positiva, que consiste na presença da justiça; que constantemente a rma: "Concordo com você em relação ao seu objetivo, mas não posso concordar com seus métodos de ação direta"; que acredita paternalisticamente ser ca-

paz de estabelecer a agenda para a liberdade de outro homem; que vive segundo um conceito mítico de tempo e que constantemente aconselha o negro a esperar por um "momento mais conveniente". A compreensão

super cial das pessoas de boa vontade é mais frustrante do que a incompreensão absoluta daquelas de má vontade. A aceitação indiferente é mais desconcertante do que a rejeição direta. 24. Eu esperava que os brancos moderados compreendessem que a lei e

a ordem existem com a nalidade de estabelecer a justiça e que quando não atingem esse propósito se tornam represas perigosamente estrutu-

radas que bloqueiam o fluxo do progresso social. Eu esperava que os

fi

fi

fi

fi

422 fi

fi

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO brancos moderados entendessem que a atual tensão no Sul é uma fase de transição necessária de uma paz repugnantemente negativa, em que o negro aceitava passivamente uma condição injusta, para uma paz po-

sitiva e substantiva, em que todos os homens irão respeitar a dignidade e o valor da personalidade humana. Na verdade, os que se envolvem na ação direta não-violenta não são os responsáveis pela tensão. Apenas trazemos à superfície a tensão oculta já existente. Nós a trazemos para o ar livre, onde pode ser vista e enfrentada. Como um furúnculo que não pode ser curado enquanto estiver oculto, mas precisa ser exposto com toda a sua feiura à medicina natural do ar e da luz, também a injustiça deve ser exposta, com todas as tensões criadas por essa exposição, à luz da consciência humana e ao ar da opinião nacional para que possa ser

curada. 25. Em sua declaração, os senhores afirmam que nossas ações, embora pacíficas, devem ser condenadas porque provocam a violência. Mas seria essa uma afirmação lógica? Não significa condenar um homem que foi assaltado porque o fato de ter dinheiro provocou esse ato malévolo? Não é como condenar Sócrates porque suas investigações filosóficas e seu compromisso inflexível com a verdade provocaram a ação da turba desencaminhada que o fez beber cicuta? Não é como condenar Jesus porque

sua consciência de um único Deus e sua permanente devoção à vontade dele provocaram o ato maligno de sua crucificação? Temos de perceber que, tal como têm sustentado consistentemente os tribunais federais, é errado pressionar um indivíduo a interromper seus esforços para garantir seus direitos constitucionais básicos porque essa busca pode gerar violên-

cia. A sociedade deve proteger o assaltado e punir o assaltante.

26. Eu também esperava que os brancos moderados rejeitassem o mito referente ao tempo em relação à luta por liberdade. Acabei de receber

uma carta de um irmão branco do Texas. Diz ele: "Todos os cristãos sabem que as pessoas de cor vão acabar obtendo a igualdade de direitos, mas é possível que vocês estejam numa corrida religiosa rápida demais. A cristandade levou quase 2 mil anos para ser o que é. Os ensinamen-

tos de Jesus levam algum tempo para se transformar em realidade". Essa atitude deriva de uma visão do tempo tragicamente incorreta, da noção estranhamente irracional de que existe algo no próprio fluxo do tempo que irá curar de maneira inevitável todos os males. Na verdade,

423

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

o tempo em si é neutro; pode ser usado de modo construtivo ou destrutivo. Sinto cada vez mais que as pessoas de má vontade têm usado o tempo de modo mais eficaz do que as de boa vontade. Teremos de nos arrepender nesta geração não somente das palavras e ações odiosas dos maus, mas também do silêncio estarrecedor dos bons. O progresso humano nunca avança sobre as rodas da inevitabilidade; ele vem por meio dos esforços incessantes de homens desejosos de serem colaboradores

de Deus, e sem esse trabalho duro o tempo em si se transforma num aliado das forças da estagnação social. Devemos usar o tempo de maneira criativa, conscientes de que sempre é possível fazer o certo. Agora

é hora de concretizar a promessa da democracia e transformar nossa iminente elegia nacional num salmo criativo de fraternidade. É chegado o momento de tirar nossa política nacional das areias movediças da injustiça racial e levá-la para a rocha sólida da dignidade humana. 27. Os senhores classificam nossa atividade em Birmingham de extremista. A princípio fiquei muito desapontado pelo fato de colegas de sacerdócio considerarem extremistas nossos esforços não-violentos. Comecei a pensar sobre o fato de que estou no meio de duas forças opostas na comunidade negra. Uma delas é a da complacência, constituída em parte de negros que, em resultado de longos anos de opressão, foram de tal modo privados do respeito próprio e do senso de "ser alguém" que se ajustaram à segregação, e em parte de uns poucos negros de classe média que, em função de um diploma acadêmico e da segurança econômica, e também porque lucram de alguma forma com a segregação, tornaram-se insensíveis aos problemas que afligem as massas. A outra força é a do ressentimento e do ódio, que se aproxima perigosamente da apologia à violência. Ela se expressa nos vários grupos de nacionalistas negros que se espalham pelo país, o maior e mais conhecido deles sendo o movimento muçulmano de Elijah Muhammad. Nutrido pela frustração do negro em função da permanência da discriminação racial, esse movimento é constituído de pessoas que perderam a fé em seu país, repudiaram totalmente a cristandade e concluíram que o homem branco é um incorrigível "demônio". 28. Tentei equilibrar-me entre essas duas forças, dizendo que não de-

vemos imitar nem o "não fazer nada" dos complacentes nem o ódio e

o desespero dos nacionalistas negros. Pois existe um caminho muito

424

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO melhor de amor e protesto não-violentos. Sou grato a Deus porque,

mediante a influência da igreja negra, a via não-violenta se tornou parte de nossa luta.

29. Se essa filosofia não tivesse surgido, a esta altura muitas ruas do Sul estariam, estou convencido, cobertas de sangue. E também estou convencido de que se nossos irmãos brancos desprezarem como "demagogos" e "agitadores forasteiros" aqueles de nós que empregam a ação direta não-violenta, e se se recusarem a apoiar essa ação, milhões de negros irão buscar, por frustração e desespero, o consolo e a segurança nas ideologias nacionalistas negras — o que levaria inevitavelmente a um pesadelo racial assustador. 30. As pessoas oprimidas não podem permanecer nessa condição eternamente. O anseio por liberdade acaba se manifestando, e foi isso que aconteceu com o negro americano. Alguma coisa interior o fez lembrar de seu direito de nascença à liberdade e alguma coisa exterior o fez lembrar de que isso pode ser obtido. Conscientemente ou não, ele foi tomado pelo Zeitgeist e, juntamente com seus irmãos negros da África e seus irmãos morenos e amarelos da Ásia, da América do Sul e do Caribe, o negro dos Estados Unidos está caminhando, com um forte

sentido de urgência, em direção à terra prometida da justiça racial. Quem reconhece esse impulso vital que engolfou a comunidade negra deve entender prontamente por que essas manifestações públicas estão acontecendo. O negro tem muitos ressentimentos contidos e frustrações latentes, e precisa dar vazão a eles. Assim, deixem que ele faça passeatas; deixem que realize peregrinações de oração à sede da prefeitura; deixem que faça as viagens da liberdade — e tentem compreender por que ele precisa fazer tudo isso. Se essas emoções reprimidas não tiverem vazão por vias não-violentas, vão manifestar-se por meio da violência; não é uma ameaça, mas um fato histórico. Por isso eu não disse ao meu

povo: "Livrem-se de sua insatisfação"". Em vez disso, tentei dizer que essa insatisfação normal e saudável pode ser canalizada para o escoadouro criativo da ação direta não-violenta. E agora essa abordagem está sendo chamada de extremista. 31. Mas embora eu, de início, tenha ficado desapontado ao ser classificado de extremista, continuando a pensar no assunto, fui ficando cada vez mais satisfeito com o rótulo. Jesus não foi também um extremista

425

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO do amor? "Amai vossos inimigos, abençoai quem vos amaldiçoa e re-

zai pelos que vos desprezam e perseguem". Amós também não foi um extremista da justiça? "Que o direito fua como água e a justiça como

riacho perene". Paulo também não foi um extremista do evangelho cristão? "Trago no corpo as marcas do Senhor Jesus". Martinho Lutero também não foi um extremista? "Eis-me aqui; não posso fazer de outra forma, que Deus me ajude". E John Bunyan: "Prefiro ficar na prisão até

o fim dos meus dias a fazer uma carnificina em minha consciência".

E Abraham Lincoln: "Esta nação não pode sobreviver sendo metade escrava e metade livre". E Thomas Jefferson: "São verdades incontestá-

veis para nós: todos os homens nascem iguais...". Assim, a questão não é se seríamos extremistas, mas que tipo de extremistas seríamos nós. Seríamos extremistas do amor ou do ódio? Seríamos extremistas pela preservação da injustiça ou pela ampliação da justiça? Naquele cenário dramático do monte Calvário, três homens foram crucificados. Não

devemos esquecer que os três tinham sido condenados pelo mesmo crime — o crime de extremismo. Dois eram extremistas da imoralidade, portanto estavam abaixo do padrão de seu meio. O outro, Jesus, era um extremista do amor, da verdade e da bondade, e assim estava acima do padrão de seu meio. Talvez o Sul, a nação, o mundo tenham uma enorme carência de extremistas criativos.

32. Eu esperava que os brancos moderados pudessem perceber essa necessidade. Talvez estivesse sendo otimista demais, talvez tivesse uma

expectativa exagerada. Suponho que deveria ter percebido que poucos membros da raça opressora podem entender os gemidos profundos e os

anseios apaixonados da raça oprimida, e que um número menor ainda tem uma visão que lhes permita enxergar que a injustiça pode ser eli-

minada por uma ação poderosa, persistente e determinada. Sou grato,

contudo, pelo fato de alguns de nossos irmãos brancos do Sul terem apreendido o significado desta revolução social e se comprometido com

ela. Ainda são poucos em quantidade, mas grandes em termos de qua-

lidade. Alguns — como Ralph McGill, Lillian Smith, Harry Golden, James McBride Dabbs, Ann Braden e Sarah Patton Boyle — têm escrito sobre nossa luta com termos eloqüentes e proféticos. Outros têm se unido a nós em passeatas por inúmeras ruas do Sul. Têm se exaurido em fétidas cadeias infestadas de baratas, sofrendo o abuso e a bruta-

426

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

lidade da parte de policiais que os vêem como "imundos amantes de crioulos". Diferentemente de tantos de seus irmãos e irmãs moderados, eles reconheceram a urgência do momento e perceberam a necessidade

de vigorosos antídotos de "ação" para combater a doença da segregação.

33. Permitam-me falar de minha outra decepção. Fiquei enormemente desapontado com a Igreja e sua liderança. Evidentemente, há algumas

notáveis exceções. Não me esqueci de que cada um dos senhores já assumiu posições importantes sobre esse tema. Eu o cumprimento, reverendo Stallings, por sua postura cristã no último sábado, ao dar boas-vindas aos negros que compareceram ao serviço religioso de sua igreja naquele dia, realizado com base na integração. Eu cumprimento os líderes católicos deste estado por terem integrado, vários anos atrás, o Spring Hill College.

34. A despeito, porém, dessas notáveis exceções, devo honestamente reiterar que tenho ficado desapontado com a Igreja. Não estou dizendo isso como aqueles críticos negativos que sempre conseguem encontrar alguma coisa errada na Igreja. Digo isso como um ministro do evangelho que ama a Igreja, que se nutriu no seu peito, que tem sido sustentado por suas bênçãos espirituais e que permanecerá el a ela enquanto

a corda da vida continuar se esticando.

35. Quando fui subitamente catapultado à liderança do protesto dos

ônibus em Montgomery, Alabama, alguns anos atrás, achei que seríamos apoiados pela Igreja branca. Achei que os pastores, padres e rabinos brancos do Sul estariam entre os nossos mais fortes aliados. Em vez

disso, alguns têm sido adversários declarados, recusando-se a entender

o movimento pela liberdade e difamando seus líderes, enquanto muitos outros se mostraram mais cautelosos que corajosos e permaneceram em

silêncio com a proteção anestésica dos vitrais de suas igrejas.

36. Apesar de meus sonhos frustrados, vim para Birmingham com a esperança de que a liderança religiosa branca desta comunidade pudesse perceber a justiça de nossa causa e, com um profundo interesse moral, fosse capaz de funcionar como um canal através do qual nossas queixas pudessem chegar à estrutura de poder. Eu esperava que cada um dos senhores pudesse entender. Mais uma vez, porém, fiquei desapontado.

37. Ouvi numerosos líderes religiosos do Sul aconselhando os fiéis de suas igrejas a obedecerem à decisão contra a segregação porque essa é

fi

427

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

a lei, mas queria ouvir pastores brancos declarando: "Sigam esse decreto porque a integração é moralmente correta e porque o negro é seu irmão". Em meio às gritantes injustiças infligidas ao negro, vi religiosos brancos colocando-se de lado e vocalizando irrelevâncias piedosas e trivialidades farisaicas. Em meio a uma vigorosa luta para livrar nossa nação da injustiça racial e econômica, ouvi muitos pastores dizerem:

"Trata-se de questões sociais nas quais o evangelho não tem nenhum interesse real". E vi muitas igrejas se dedicando a uma religião total-

mente transcendental que estabelece uma distinção estranha, não bí-

blica, entre corpo e alma, sagrado e secular. 38. Viajei de cima a baixo pelo Alabama, pelo Mississippi e por todos os estados do Sul. Em dias abafados de verão e frescas manhãs de outono, observei as belas igrejas do Sul com suas torres elevadas apontando para o céu. Contemplei as silhuetas de seus amplos prédios destinados à edu-

cação religiosa. E muitas vezes me percebi perguntando: "Que tipo de pessoa frequenta essa igreja? Qual é o Deus delas? Onde estavam suas vozes quando os lábios do governador Barnett verteram palavras de discordância e negação? Onde estavam elas quando o governador Wallace fez um apelo estridente ao desafio e ao ódio? Onde estavam as vozes de

apoio quando homens e mulheres negros humilhados e fatigados decidiram sair das masmorras sombrias da complacência para as luminosas colinas do protesto criativo?"

39. Sim, essas perguntas ainda estão em minha mente. Com uma profunda decepção, tenho lamentado a indiferença da Igreja. Mas tenham

certeza de que minhas lágrimas são de amor. Não pode haver uma decepção profunda se não houver um amor igualmente profundo. Sim,

eu amo a Igreja. Como poderia ser de outra forma? Estou na posição verdadeiramente singular de filho, neto e bisneto de pastores. Sim,

vejo a Igreja como o corpo de Cristo. Mas, sim, como maculamos e

desfiguramos esse corpo com o descaso social e o medo de sermos não-conformistas! 40. Houve um tempo em que a Igreja era muito poderosa — o tempo em que os primeiros cristãos se regozijavam por serem considerados dignos

de sofrer por sua crença. Naqueles dias a Igreja não era meramente um termômetro que registrava as idéias e os princípios da opinião popular;

era um termostato que transformava os costumes da sociedade. Sempre

428

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO que os antigos cristãos entravam numa cidade, as pessoas no poder

ficavam incomodadas e imediatamente tentavam prendê-los por serem "perturbadores da paz" e "agitadores forasteiros". Mas os cristãos continuavam sua marcha, na convicção de que constituíam "uma colônia do Céu", da qual se exigia a obediência a Deus, não aos homens. Pequenos

em número, eram grandes em seu compromisso. Estavam intoxicados

demais pelo divino para serem "astronomicamente intimidados". Com seu esforço e exemplo, puseram fim a perversidades antigas como o infanticídio e as lutas de gladiadores. 41. Agora as coisas são diferentes. Assim, com freqüência a Igreja é uma voz fraca, improdutiva, com um som ambíguo. Assim, com frequência

a Igreja é uma arquidefensora do status quo. Longe de ser ameaçada pela presença da Igreja, a estrutura de poder da comunidade em geral é consolada por sua aprovação silenciosa — e muitas vezes declarada — das coisas como elas são. 42. Mas o julgamento divino se impõe à Igreja como nunca antes. Se a Igreja de hoje não recuperar o espírito de sacrifício da Igreja antiga, vai perder a autenticidade, alienar a lealdade de milhões e ser desprezada como um clube social irrelevante sem significado no século xx.

Todo dia travo conhecimento com jovens cuja decepção com a Igreja se transformou em repulsa declarada. Pode ser que mais uma vez eu

tenha sido demasiado otimista. Será que a religião organizada é tão inextricavelmente ligada ao status quo que seja incapaz de salvar a nação

e o mundo?

43. Talvez eu deva orientar minha fé para a igreja espiritual interna, a igreja dentro da Igreja, como a verdadeira ecclesia e a esperança do futuro. Mais uma vez, porém, agradeço a Deus pelo fato de algumas almas nobres das leiras da religião organizada terem rompido as ca-

deias paralisantes do conformismo e se juntado a nós como participantes ativos da luta pela liberdade. Elas abandonaram suas congregações seguras e caminharam junto conosco pelas ruas de Albany, Geórgia. Atravessaram as rodovias do Sul em tortuosas viagens pela liberdade.

Sim, elas foram para a cadeia conosco. Algumas foram desligadas de suas igrejas, perderam o apoio de seus bispos e colegas pastores. Mas

agiram na fé de que o certo derrotado é mais forte do que o mal triunfante. Seu testemunho tem sido o sal espiritual que preserva o verda-

fi

429

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO deiro significado do evangelho nestes tempos atribulados. Elas cavaram um túnel de esperança atravessando a montanha sombria da decepção. 44. Espero que a Igreja como um todo possa encarar o desa o deste momento decisivo. Mas mesmo que ela não venha a ajudar a justiça,

não me desespero em relação ao futuro. Não tenho dúvidas sobre

o resultado de nossa luta em Birmingham, mesmo que atualmente nossos motivos sejam incompreendidos. Vamos atingir o objetivo da

liberdade em Birmingham e em toda a nação porque o objetivo deste país é a liberdade. Embora maltratados e desprezados, nosso destino está ligado ao dos Estados Unidos. Antes de os peregrinos aportarem em Plymouth, nós estávamos aqui. Antes que a pena de Jefferson gra-

vasse as grandiosas palavras da Declaração de Independência nas pá-

ginas da história, nós estávamos aqui. Por mais de dois séculos, nossos antepassados trabalharam neste país sem ganhar salários; zeram

do algodão um rei; construíram as casas de seus senhores sofrendo enorme injustiça e vergonhosa humilhação — e mesmo assim, com uma vitalidade imensurável, continuaram a florescer e a se desenvol-

ver. Se as inexprimíveis crueldades da escravidão não conseguiram fazer-nos parar, a oposição que agora enfrentamos certamente vai fra-

cassar. Vamos ganhar nossa liberdade porque a herança sagrada de nossa nação e a eterna vontade de Deus estão incorporadas a nossas clamorosas demandas.

45. Antes de concluir sinto-me forçado a mencionar outro aspecto de sua declaração que me perturbou profundamente. Os senhores elogia-

ram enfaticamente a polícia de Birmingham por ter mantido a "ordem" e "evitado a violência". Duvido que os senhores tivessem elogiado com tanta ênfase a força policial se tivessem visto seus cães cravando os

dentes em negros desarmados, não-violentos. Duvido que os senhores tivessem sido tão rápidos na decisão de elogiar os policiais se tivessem

observado o tratamento ofensivo e desumano dispensado aos negros aqui na cadeia municipal; se os tivessem visto empurrando e ofendendo mulheres e jovens negros; se os tivessem visto esbofeteando e chutando

velhos e meninos negros; se estivessem lá para observar quando eles,

em duas ocasiões, se recusaram a nos dar comida porque desejávamos

cantar nossos hinos em conjunto. Não posso juntar-me aos senhores quando elogiam o departamento de polícia de Birmingham.

fi

fi

430

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO 46. É verdade que a polícia exerceu certo grau de disciplina ao lidar com

os manifestantes. Nesse sentido, sua conduta em público foi "não-violenta". Mas para que fim? Para preservar o sistema perverso da segre-

gação. Nos últimos anos tenho afirmado freqüentemente em minhas

pregações que a não-violência exige que os meios que usamos sejam tão

puros quanto nossos objetivos. Tentei deixar claro que é errado usar meios imorais para atingir objetivos morais. Mas agora devo afirmar que é igualmente errado, ou talvez ainda mais, usar meios morais para

atingir objetivos imorais. Talvez o Sr. Connor e seus policiais tenham sido suficientemente não-violentos em público, da mesma forma que o chefe Pritchett em Albany, Geórgia, mas eles usaram os meios morais da não-violência para manter o objetivo imoral da injustiça racial. Como disse T. S. Eliot: "A suprema tentação é a maior traição: fazer a coisa certa pelo motivo errado". 47. Gostaria que tivessem elogiado os manifestantes e participantes dos

sit-ins de Birmingham por sua coragem sublime, sua disposição de sofrer e sua surpreendente disciplina em meio a grandes provocações. Um

dia o Sul vai reconhecer seus verdadeiros heróis. Eles serão os James Merediths, dotados do nobre senso de propósito que os capacita a enfrentar turbas desdenhosas e hostis, e com a solidão angustiante que caracteriza a vida dos pioneiros. Eles serão as mulheres negras idosas,

oprimidas, agredidas, simbolizadas por uma senhora de 72 anos de

Montgomery, Alabama, que se levantou com seu senso de dignidade e juntamente com seu povo resolveu não viajar em ônibus segregados e que respondeu com uma profundidade em desacordo com as normas da gramática a uma pessoa que lhe perguntou sobre sua disposição: "Meus pés tá cansado, mas minha alma tá sossegada". Eles serão os jovens alunos de ensino secundário e universitário, os jovens ministros do evangelho e uma multidão de parentes mais velhos, sentando-se, de forma corajosa e não-violenta, em lanchonetes e dispostos a ir para a cadeia por motivo de consciência. Um dia o Sul vai saber que, quando esses filhos deserdados de Deus ocuparam essas lanchonetes, estavam na verdade defendendo

o que há de melhor no sonho americano e os valores mais sagrados da herança judaico-cristã, trazendo, assim, nossa nação de volta às grandes fontes da democracia que foram abertas pelos pais fundadores ao formularem a Constituição e a Declaração de Independência.

431

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 48. Nunca tinha escrito uma carta tão longa. Temo que seja longa demais para tomar seu precioso tempo. Posso lhes garantir que ela seria

bem mais curta se eu a estivesse redigindo numa escrivaninha confor-

tável, mas que se pode fazer quando se está sozinho numa pequena cela senão escrever longas cartas, ter longos pensamentos e rezar longas

orações? 49. Se eu disse alguma coisa nesta carta que exagere os fatos, indicando

uma impaciência irracional, peço-lhes que me perdoem. Se disse al-

guma coisa que os minimize, indicando que minha impaciência me permite concordar com algo que esteja aquém da fraternidade, peço a

Deus que me perdoe. so. Espero que esta carta os encontre fortes em sua fé. Também espero que as circunstâncias logo tornem possível que eu me encontre com cada um dos senhores, não como líder integracionista ou dos direitos civis, mas como colega de sacerdócio e irmão cristão. Esperemos que as nuvens sombrias do preconceito racial logo se afastem e a neblina profunda da incompreensão se disperse de nossas comunidades merguThadas no medo, e que num amanhã não muito distante as reluzentes estrelas do amor e da fraternidade venham a brilhar sobre nossa grande nação com toda a sua cintilante beleza. Seu irmão na causa da Paz e da

Fraternidade, Martin Luther King.?°

ANÁLISE DA DISPOSIÇÃO EM "CARTA DA CADEIA DE BIRMINGHAM"21 A "Carta da cadeia de Birmingham" de Martin Luther King é incomumente longa para uma "carta aberta": tem cinquenta parágrafos, totalizando cerca de sete mil palavras. Normalmente, uma carta aberta destinada a publicação na imprensa seria consideravelmente mais curta do que esta e uma resposta escrita como base para um discurso teria metade do tamanho deste texto. (Em um ritmo normal de fala, o presente texto levaria pelo menos uma hora para ser apresentado oralmente). 20 Tradução de Carlos Alberto Medeiros, em A autobiografia de Martin Luther King, Zahar, 2014 - NT.

21 Todas as contagens desta seção referem-se ao original em inglês — NT.

432

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO Mas, nas circunstâncias de sua prisão por um ato de desobediência

civil, o Reverendo King tinha muito tempo (embora pouco conforto e conveniência) para compor uma resposta efusiva à carta que recebera dos oito sacerdotes. Como King diz no nal de sua carta (parágrafo 48), onde confessa que essa é a carta mais longa que ele já escreveu: "Posso lhes garantir que ela seria bem mais curta se eu a estivesse redi-

gindo numa escrivaninha confortável, mas que se pode fazer quando se está sozinho numa pequena cela senão escrever longas cartas, ter longos pensamentos e rezar longas orações?".

Ao analisar a disposição de "Carta da cadeia de Birmingham", estamos examinando um texto que já foi escrito, tentando determinar quantas partes existem no todo, onde cada parte começa e termina e como as partes estão inter-relacionadas, especulando sobre por que o autor escolheu organizar o texto dessa maneira. Naturalmente, esse processo é invertido quando escrevemos. No processo de invenção, descobrimos uma série de coisas que podemos dizer sobre um determinado assunto, fazemos uma seleção dessas coisas e, em seguida, tomamos algumas decisões sobre a ordem em que organizaremos as informações. Às vezes, a ordem das partes assume a forma de um esboço formal ou informal. Nossas decisões sobre a organização do discurso são governadas por considerações como assunto, ocasião, público e propósito. Tais decisões são cruciais para a eficácia final de nossa comunicação. "Carta da cadeia de Birmingham" é um exemplo de retórica judicial: uma justi cativa para as ações de uma pessoa. Como nos informa

o próprio autor, a carta foi escrita em resposta a uma declaração publi-

cada por oito sacerdotes do Alabama, e na primeira frase da carta de resposta, Martin Luther King diz: "Embora con nado na cadeia muni-

cipal de Birmingham, tive acesso a sua recente declaração em que minhas atuais atividades são consideradas 'imprudentes e inoportunas". Na última frase desse primeiro parágrafo, ele nos diz: "[...] vou tentar responder a suas declarações em termos que espero serem pacientes e razoáveis". Portanto, este discurso segue a tradição de notáveis "apologias", como a Apologia de Sócrates e a Apologia Pro Vita Sua de John

Henry Newman. O assunto da resposta de Martin Luther King foi determinado pela declaração publicada dos sacerdotes. O autor responderá, por sua vez, a algumas ou todas as acusações sobre suas ações "imprudentes e ino-

fi

fi

fi

433

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO portunas". Embora o conteúdo das várias partes da carta tenha sido de-

terminado pela declaração dos sacerdotes, o autor deve tomar algumas decisões sobre como estruturar as partes da resposta. Evidentemente,

podemos somente especular sobre os motivos do autor ao tomar certas decisões quanto à organização do texto, mas examinando esta carta

publicada, temos a oportunidade de conferir as decisões que ele realmente tomou. O quão deliberadamente ele tomou essas decisões é outro assunto sobre o qual podemos somente especular. Sem o testemunho do próprio autor (e nunca seremos capazes de obter esse testemunho agora), resta-nos determinar quais são as partes, verificar onde cada uma começa e termina e oferecer algumas razões prováveis para tal organização.

A melhor maneira de começar é definir as principais divisões da carta, as partes que seriam indicadas com algarismos romanos em um rascunho formal. Em qualquer divisão (ou subdivisão) de um todo, devemos ter pelo menos duas partes, mas devemos suspeitar de nossa divisão se terminarmos com mais de quatro ou cinco divisões principais. Se tivermos mais de cinco divisões principais em um documento deste tamanho, provavelmente não estamos analisando sua estrutura em partes grandes o suficiente. Devemos procurar categorias amplas sob as quais agrupar as partes principais. Uma das formas de considerar a estrutura deste ou de qualquer ou-

tro discurso é a tradicional divisão em introdução, corpo e conclusão ou, para usar os termos de Aristóteles, princípio, meio e m. Portanto, podemos começar determinando se o discurso tem uma introdução ou um começo e até onde vai essa introdução. Em seguida, veri camos se o

discurso tem uma conclusão ou um m e onde essa conclusão começa.

Se descobrirmos que o discurso tem uma introdução e uma conclusão

e determinarmos onde essas partes começam e terminam, provavelmente, tudo entre a introdução e a conclusão constituirá o corpo ou o meio. O verdadeiro desa o será determinar quantas divisões principais de numeração romana existem no corpo ou no meio e onde elas começam e terminam. Nem sempre é fácil determinar as costuras de um ensaio, especialmente de um tão longo como este, e diferentes leitores

às vezes determinam diferentes costuras no tecido de um discurso. 22 No capítulo sobre estilo, reproduzi a análise estilística da carta de King, do artigo de Richard Fulkerson: "The Public Letter as a Rhetorical Form: Structure, Logic, and Style in King's Letter

fi

fi

fi

fi

434

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO O que se segue no restante desta análise é a minha percepção das

costuras na carta de Martin Luther King. O primeiro parágrafo constitui a introdução. Considerando a extensão de todo o texto, este único parágrafo de quatro frases pareceria uma introdução excepcionalmente breve. Mas um único parágrafo normalmente basta para introduzir uma carta, sem falar que a nota do autor, que apareceu em todas as versões impressas da carta, pode ser

considerada parte da introdução também. O parágrafo de quatro frases e a nota do autor cumprem seu propósito: informam-nos da ocasião da carta, falam sobre as circunstâncias em que foi escrita, indicam o que o autor pretende fazer no restante dela e aludem a seu êthos. Esperamos que o autor apresente suas credenciais, mas ele já é tão conhecido que não precisa apresentar suas qualificações para falar sobre o assunto tra-

tado ali. Mas há mais quarenta e nove parágrafos na carta. A próxima etapa é determinar se a carta tem uma conclusão. A conclusão da carta consiste nos três últimos parágrafos (48, 49 e 50). Nesses três parágrafos, o autor está claramente encerrando sua discussão. Há toques sutis de emoção nesses parágrafos conclusivos e tentativas evidentes de estabelecer ou reforçar seu éthos: gestos de boa vontade, humildade e gratidão. Depois do vigor com que o autor defen-

deu sua idéia, esses parágrafos finais trazem um tom de paz e esperança. Tendo determinado onde a introdução e a conclusão começam e ter-

minam, podemos presumir que os parágrafos que se encontram entre esses extremos constituem o corpo ou o meio do discurso. Agora vem o verdadeiro desafio: determinar quantas divisões principais e subdivisões existem no corpo do texto e onde essas divisões começam e terminam. O corpo parece ser composto de duas divisões principais: a seção em que o autor responde às perguntas específicas feitas pelos sacerdotes em sua declaração pública (parágrafos 2-22) e a seção em que o autor apresenta argumentos mais gerais em defesa de suas ações (parágrafos 23-47). Antes de continuar a considerar a eficácia retórica desta orga-

from Birmingham Jail", Quarterly Journal of Speech, 65 (1979), 121-36. Na seção do artigo em que trata da estrutura da carta de King (uma seção não reproduzida neste livro), Fulkerson descreve a carta em termos das partes tradicionais de uma oração clássica: exordium, narratio, propositio, partitio, confirmatio, refutatio e peroratio.

435

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO nização, vamos dar uma olhada em um esboço completo da carta, com

as subdivisões de primeiro nível (letras maiúsculas): Introdução: o autor indica a ocasião e o objetivo de sua carta (parágrafo I

e nota do autor) I. Resposta às perguntas específicas feitas pelos sacerdotes em sua declara-

ção pública (parágrafos 2-22).

A. Primeira pergunta: Por que você veio para Birmingham? (parágrafos

2-4). B. Segunda pergunta: Por que você recorreu a manifestações em vez de negociações? (parágrafos 5-II). c. Terceira pergunta: Suas ações não são inoportunas? (parágrafos 12-14). D. Quarta pergunta: Como você justifica a violação da lei? (parágrafos

15-22). 11. Apresentação dos argumentos mais gerais em defesa de suas ações (pa-

rágrafos 23-47). A. Sua grande decepção com os brancos moderados (parágrafos 23-32).

B. Sua grande decepção com a igreja branca e sua liderança (parágrafos

33-44). c. Sua grande decepção com os oito sacerdotes por elogiar a ação da po-

lícia de Birmingham em vez da ação dos manifestantes (parágrafos 45-47).

Conclusão: o autor faz alguns gestos conciliatórios em direção a seu público imediato e amplia o contexto da discussão (parágrafos 48-50).

Esse esboço delineia perfeitamente a estrutura de todo o discurso. Alguns leitores podem detectar outras costuras no discurso ou ver as costuras em lugares diferentes, mas esse esboço aponta as partes principais do texto e sua disposição. Evidentemente, Martin Luther King não traçou qualquer esboço formal antes de começar a escrever sua carta.

Na verdade, dadas as circunstâncias em que a carta foi redigida, o autor provavelmente tinha apenas uma vaga idéia de um plano organizacional quando começou a escrever. O que vemos no produto acabado é a estrutura que o discurso acabou assumindo.

Embora não possamos afirmar que Martin Luther King tenha feito

um esboço detalhado como o anterior, podemos presumir que ele fez

436

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO algumas escolhas, consciente ou inconscientemente, de uma estratégia

de disposição. Basicamente, a estrutura é refutação e confirmação. Ele poderia ter escolhido a ordem inversa: apresentar primeiro os argumentos mais gerais e positivos em defesa de suas ações e, em seguida, refutar, ponto por ponto, as acusações dos sacerdotes. Pelo visto, King concluiu que seria mais eficaz e natural primeiro limpar o terreno das questões imediatas levantadas pelos eventos perturbadores do momento e, em seguida, justificar suas ações com base em princípios mais globais. Se ele puder responder às perguntas dos leitores sobre a prudência e opor-

tunidade das ações dos manifestantes naquele dia específico em uma

cidade específica, o público estará mais disposto a ouvir os argumentos que justificam os movimentos pelos direitos civis em qualquer lugar, a qualquer hora.

Dentro de cada parte principal, algumas decisões tiveram de ser tomadas sobre a ordem das partes na subdivisão. Na primeira seção principal, por exemplo, a ordem em que as perguntas são levantadas

e respondidas talvez tenha sido ditada pela ordem das perguntas na declaração pública dos sacerdotes, mas fato é que há uma sequência natural perceptível na qual as perguntas são levantadas e respondidas.

O que você, um forasteiro, está fazendo em Birmingham? Tudo bem, você nos convenceu de que tinha o direito, a necessidade de estar em

Birmingham neste momento, mas por que não recorreu a negociações com as autoridades da cidade em vez de organizar manifestações? Tudo

bem, você nos convenceu de que a manifestação era a única alternativa disponível a essa altura, mas não era um momento desfavorável para recorrer a manifestações, uma vez que a cidade estava passando por uma

mudança de administração e possivelmente uma mudança de ânimo? Tudo bem, você nos convenceu de que teve de se envolver em um ato de desobediência civil não-violenta nesse momento, mas como justificar a violação das leis de uma comunidade para atingir seus objetivos? Sim,

de fato, a ordem que o Reverendo King adotou aqui parece ser uma sequência natural para apresentar as perguntas e as respostas.

Na subdivisão da segunda parte principal, há também uma ordem

discernível e lógica para as partes. A ordem adotada nessa subdivisão não é a única ordem possível, mas é justi cável. O autor fala primeiro de seu desapontamento com os brancos moderados em geral, o único

grupo do qual os negros esperavam obter algum apoio para sua causa.

fi

437

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Então, ciente da profissão a que pertencem seus bem-intencionados

acusadores, ele fala sobre sua decepção com a igreja branca moderada e seus líderes. Na terceira parte dessa subdivisão, King restringe a discussão a um ato decepcionante particular dos oito representantes da igreja branca moderada: elogiar a ação da polícia de Birmingham. Essa sequência de etapas mostra que todo o movimento dos direitos civis é uma coisa só, seja em um contexto local ou nacional.

Poderíamos descer para o próximo nível de subdivisão (o nível que

geralmente é marcado com números arábicos em um esboço formal) e, assim, obter uma análise ainda mais detalhada da ordem de argumentos específicos. Mas este exame das vigas principais da estrutura é suficiente para nos mostrar que esta longa carta, escrita ao longo de vá-

rios dias em circunstâncias muito adversas, tem uma ordem discernível e justificável. A organização, no entanto, não é tão compartimentada quanto o esboço leva a crer. Existem certa digressão e hesitação dentro das partes, de modo que, em alguns lugares, as linhas entre as partes

tornam-se menos nítidas. No geral, contudo, a apologia clássica de Martin Luther King não é o discurso divagante que, dadas as circunstâncias em que foi composta, poderia ter sido. Ao contrário, é um texto bem ordenado, que avança o tempo todo em vez de girar em círculos. Se entendemos claramente a mensagem que Martin Luther King quis transmitir a seu

público imediato e também a seu público maior, o sucesso de seu ato de comunicação deve-se tanto à forma de organização da mensagem quanto à solidez dos argumentos e à eloquência do estilo. Os eventos que ocorreram antes da redação desta carta podem ter produzido uma certa dose de caos na cidade de Birmingham, mas Martin Luther King certamente impôs ordem à potencial confusão da mensagem que ele queria transmitir a seu duplo público.

HENRY DAVID THOREAU: "DESOBEDIÊNCIA CIVIL" A principal inspiração para as muitas manifestações de "retórica corporal" (passeatas, sit-ins, lie-ins, confrontos), parte tão importante do cenário mundial na década de 1960, é o ensaio de Henry David Thoreau, "Desobediência civil. Mabatma Gandhi confessou que, quando jovem, baseou o nome e as

438

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO táticas de seu movimento de resistência passiva no ensaio de Thoreau. O termo desobediência civil, disse ele, era o equivalente mais adequado da palavra in-

diana Satyagraha. Apresentado pela primeira vez como palestra, com o título "Resistência ao governo civil", o texto foi posteriormente publicado em 1849

em Aesthetic Papers. Recém-saido de sua famosa estada em Walden Pond (1845-47), para onde tinha ido, ele nos diz que, para "enfrentar apenas os fatos

essenciais da vida", Thoreau sentiu-se compelido a escrever este artigo a fim de

despertar seus concidadãos contra os males da Guerra do México e da iminente

Lei do Escravo Fugitivo. Thoreau havia estudado retórica em Harvard com Edward T. Channing, o terceiro professor de retórica e oratória de Boylston. Certa vez, ele disse: "A única grande regra de composição, e se eu fosse professor

de retórica, insistiria nisso, é falar a verdade". Mas a e cácia de Thoreau como persuasor não se limita a "falar a verdade". Ele é conhecido por seu estilo vigo-

roso, aforístico e paradoxal. O "apelo ético" do próprio homem também exerce

forte influência. E apesar da sequência aparentemente associativa de sua prosa, há uma ordem discernível na disposição de seus argumentos.

1. Aceito de bom grado a divisa "O melhor governo é o que menos governa", e gostaria de vê-la aplicada de modo mais rápido e sistemático. Levada a cabo, ela resulta por fim nisto, em que também acredito: "O melhor governo é o que absolutamente não governa", e quando os homens estiverem preparados para tanto, esse será o tipo de regência que terão. Na melhor das hipóteses, o governo não é mais que uma conveniência; mas a maioria deles é, em geral (e alguns o são, às vezes), inconveniente. As objeções levantadas contra um exército permanente — e elas

são muitas e convincentes, e merecem se impor — podem também ser levantadas afinal contra um governo permanente. O exército permanente é somente um braço do governo permanente. O governo em si, que é apenas o modo que o povo escolheu para executar sua vontade, está igualmente sujeito ao abuso e à perversão antes que o povo possa agir por meio dele. Prova disso é a atual guerra mexicana, obra de relativamente poucos indivíduos que usam o governo permanente como seu instrumento, pois, desde o princípio, o povo não teria consentido semelhante iniciativa.

2. O que é este governo americano senão uma tradição, ainda que re-

cente, empenhada em se transmitir intacta à posteridade, mas a cada instante perdendo um pouco de sua integridade? Não tem a vitalidade e a força de um único homem vivo, pois um único homem pode do-

fi

439

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO brá-lo à sua vontade. É uma espécie de revólver de brinquedo para o

próprio povo. Mas nem por isso é menos necessário; pois o povo precisa

dispor de um ou outro maquinário complicado, e ouvir seu estrondo, para satisfazer sua idéia de governo. Os governos nos mostram, desta maneira, com que êxito os homens podem ser subjugados, inclusive por si mesmos, em proveito próprio. E ótimo, devemos todos admitir. No entanto, esse governo nunca levou a cabo empreendimento algum, a não ser pela presteza com que deixa livre o caminho. Não é ele que mantém o país livre. Não é ele que coloniza o Oeste. Não é ele que educa. O caráter inerente ao povo americano é que fez tudo o que se

conseguiu até agora, e teria feito ainda pouco mais, se o governo às vezes não atrapalhasse. Pois o governo é um expediente mediante o qual os homens, de bom grado, deixariam uns aos outros em paz; e, como foi dito, quanto mais conveniente ele for, mais os governados serão deixados em paz. O comércio e os negócios, se não fossem feitos de borracha da Índia, nunca conseguiriam saltar os obstáculos que os

legisladores estão pondo o tempo todo em seu caminho. Se julgássemos esses homens apenas pelos resultados de suas ações, e não por suas

intenções, eles mereceriam ser enquadrados e punidos junto com as pessoas malévolas que obstruem as estradas de ferro.

3. Mas, para falar em termos práticos e me expressar como cidadão, à

diferença daqueles que se dizem antigovernistas, eu não peço a imediata abolição do governo, mas um que seja melhor agora mesmo. Que cada homem faça saber qual é o tipo de governo capaz de conquistar seu respeito, e isso já será um passo na direção de alcançá-lo.

4. Afinal, quando o poder está nas mãos do povo, a razão prática pela qual uma maioria tem permissão para governar (e assim o faz por um longo período) não é o fato de essa maioria provavelmente estar certa, nem tampouco que isso possa parecer mais justo à minoria, mas sim porque ela é fisicamente mais forte. Mas um governo no qual a decisão da maioria se impõe em todas as questões não pode ser baseado na

justiça, mesmo no entendimento limitado que os homens têm desta. Não poderia existir um governo em que não são as maiorias que decidem virtualmente tudo o que é certo e errado, e sim a consciência? No qual as maiorias decidissem apenas as questões em que fosse aplicável a regra da conveniência? Será que o cidadão deve, ainda que por um

440

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO momento e em grau mínimo, abrir mão de sua consciência em prol do

legislador? Nesse caso, por que cada homem dispõe de uma consciência? Penso que devemos ser primeiro homens, e só depois súditos. Não é desejável cultivar tanto respeito pela lei quanto pelo que é direito. A única obrigação que tenho o direito de assumir é a de fazer em qualquer tempo o que julgo ser correto. Já se disse, com muita razão, que uma corporação não tem consciência alguma; mas uma corporação de homens conscienciosos é uma corporação com uma consciência. A lei nunca tornou os homens sequer um pouquinho mais justos; e, por força de seu respeito por ela, até mesmo os mais bem-intencionados são convertidos diariamente em agentes da injustiça. Um resultado comum e natural do respeito indevido pela lei é que se pode ver uma la de soldados, coronel, capitão, cabo, recrutas, carregadores de explosivos e tudo o mais, marchando em ordem admirável pelos caminhos mais tortuosos para a guerra, contra sua vontade, pior ainda, contra sua sensatez e sua consciência, o que torna a marcha realmente muito dura e

faz o coração palpitar. Eles não têm dúvida de que estão envolvidos numa atividade execrável; são todos de inclinação pacífica. Então, o

que eles são? Homens, na acepção do termo? Ou casamatas e paióis ambulantes, a serviço de algum homem inescrupuloso no poder? Basta visitar o estaleiro da Marinha e contemplar um fuzileiro naval, assim

é um homem que um governo norte-americano é capaz de produzir,

ou transformar com sua magia negra — uma mera sombra ou reminiscência de humanidade, um homem deixado vivo e em pé, mas já,

poderíamos dizer, enterrado sob armas com acompanhamento fúnebre, embora talvez seja o caso de que: Nenhum tambor se ouviu, nem nota fúnebre, Enquanto para a vala seu corpo foi levado; Nenhum soldado disparou seu tiro de adeus Sobre a cova onde nosso herói foi enterrado.

5. Assim, a massa de homens serve ao Estado não na qualidade de homens, mas como máquinas, com seus corpos. São o exército permanente, as milícias, os carcereiros, os policiais, os membros de destaca-

mentos etc. Na maioria dos casos, não há, em absoluto, o livre exercício

do julgamento ou do senso moral; ao contrário, eles se rebaixam ao

fi

441

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO nível da madeira, da terra e das pedras; e homens de madeira talvez

pudessem ser manufaturados para servir aos mesmos propósitos. Não suscitam mais respeito que espantalhos ou bonecos de lama. Têm valor comparável ao de cavalos ou cães. No entanto, homens assim são

geralmente estimados como bons cidadãos. Outros — como a maioria

dos legisladores, políticos, advogados, ministros e funcionários públicos — servem ao Estado sobretudo com a cabeça; e, como raramente fazem qualquer distinção moral, podem tanto servir ao Diabo, sem ter a intenção, como a Deus. Pouquíssimos — tais como os heróis, patriotas, mártires, reformadores em sentido amplo e homens — servem ao Estado também com sua consciência, e portanto necessariamente resistem a ele a maior parte do tempo; e costumam ser tratados por ele como inimigos. Um homem sábio só será útil na condição de homem, e não se rebaixará a ser "barro" e "tapar um buraco para deter o vento", mas deixará esta tarefa, quando muito, para suas cinzas: Tenho origem nobre demais para me submeter a outro, Para ser subordinado no comando, Ou serviçal e instrumento útil

A qualquer estado soberano mundo afora.

6. Aquele que se entrega inteiramente a seus semelhantes é visto por estes como inútil e egoísta; mas aquele que se entrega parcialmente é considerado um benfeitor e filantropo.

7. Qual é o comportamento que convém a um homem com relação ao governo norte-americano atual? Respondo que ele não pode, sem se desonrar, associar-se a ele. Não posso, nem por um instante, reconhecer

como meu governo essa organização política que é também o governo do escravo.

8. Todos os homens reconhecem o direito de revolução; isto é, o direito de recusar obediência ao governo, e de resistir a ele, quando sua tirania ou sua ine ciência são grandes e intoleráveis. Mas quase todos dizem

que não é esse o caso agora. No entanto, tal era o caso, julgam eles, na Revolução de 75. Se alguém me dissesse que aquele era um mau governo porque taxava certos bens estrangeiros trazidos a seus portos, é muito provável que eu não me importasse, já que posso passar sem

fi

442

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO eles. Todas as máquinas têm sua fricção, e possivelmente isso tem um

efeito su cientemente bom para contrabalançar o ruim. De qualquer modo, é um grande mal fazer alvoroço em torno disso. Mas quando a fricção passa a comandar a máquina, e a opressão e a ladroagem são organizadas, eu digo: Não vamos mais manter essa máquina. Em ou-

tras palavras, quando um sexto da população do país que se apresenta

como refúgio da liberdade é composto de escravos, e uma nação in-

teira é injustamente atacada, conquistada por um exército estrangeiro e submetido à lei militar, penso que não é cedo demais para os homens honestos se rebelarem e fazerem a revolução. O que torna ainda mais urgente esse dever é o fato de que o país assim atacado não é o nosso, pois nosso é o exército invasor. 9. Paley, uma notória autoridade em questões morais, em seu capítulo sobre o "Dever de submissão ao governo civil", reduz toda a obrigação civil à conveniência; e prossegue dizendo que só enquanto o interesse de toda a sociedade assim o exigir, isto é, só enquanto não se puder resistir ao governo estabelecido ou mudá-lo sem inconveniência pública, é vontade de Deus que o governo estabelecido seja obedecido. Admitido esse

princípio, a justeza de cada caso particular de resistência se reduz ao cálculo, por um lado, da quantidade de perigo e calamidade que ele encerra, e, por outro, da probabilidade e do custo de remediá-la. Quanto a

isso, diz ele, cada homem deve julgar por conta própria. Mas Paley parece não ter jamais contemplado aqueles casos aos quais a regra da conveniência não se aplica, nos quais um povo, bem como um indivíduo,

precisa fazer justiça, custe o que custar. Se eu, injustamente, arranquei à força a tábua de salvação de um homem que estava se afogando, devo devolvê-la mesmo que eu me afogue. Isso, de acordo com Paley, seria inconveniente. Mas aquele que quer salvar sua vida dessa maneira deve perdê-la. Este povo deve parar de manter escravos, e de guerrear contra

o México, ainda que isso custe a ele sua existência como povo.

10. Em sua prática, as nações concordam com Paley; mas será que alguém julga que Massachusetts faz exatamente o que é certo na crise atual? Uma meretriz de classe, uma rameira com roupa de prata Ergue a cauda do vestido, e arrasta a alma na lama.

fi

443

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Falando em termos práticos, os adversários de uma reforma em Massachusetts não são 100 mil políticos do Sul, mas 100 mil comerciantes e fazendeiros daqui, que estão mais interessados no comércio e na agricultura do que na humanidade, e não estão preparados para fazer justiça aos escravos e ao México, custe o que custar. Não discuto com

inimigos distantes, mas com aqueles que, perto da minha casa, obedecem e cooperam com os que estão longe, e que sem eles seriam inofensivos. Estamos habituados a dizer que as massas são despreparadas; mas o aprimoramento é lento, porque a minoria não é essencialmente mais sábia ou melhor que a maioria. Mais importante do que haver muitos que sejam bons como você é haver em algum lugar a excelência absoluta, pois isso fará fermentar a massa como um todo. Há milhares que se opõem em tese à escravidão e à guerra, mas que nada fazem efetivamente para pôr fim a elas. Há muitos que, considerando-se filhos de Washington e Franklin, ficam sentados de braços cruzados, dizendo que não sabem o que fazer, e nada fazem; muitos que até mesmo su-

bordinam a questão da liberdade à questão do livre-comércio, e que lêem tranqüilamente, depois do jantar, as cotações do dia junto com as últimas notícias vindas do México, e possivelmente adormecem sobre ambas. Quanto vale um homem honesto e patriota nos dias de hoje? Eles hesitam, lamentam e às vezes reivindicam; mas não fazem nada a sério e para valer. Esperarão, com boa vontade, que outros curem o mal, para que eles não mais tenham que lastimá-lo. Na melhor das hipóteses, eles se limitarão a dar um voto fácil, um débil apoio e um desejo de boa sorte aos corretos, quando a ocasião se apresentar. Há 999 arautos

da virtude para cada homem virtuoso. Porém é mais fácil lidar com o real possuidor de uma coisa do que com seu guardião temporário.

11. Toda votação é uma espécie de jogo, como damas ou gamão, com um leve matiz moral, uma brincadeira em que existem questões morais, o certo e o errado, e evidentemente é acompanhada de apostas. O caráter dos votantes não entra em jogo. Deposito meu voto, talvez, de acordo

com o que julgo correto; mas não estou vitalmente preocupado com a

vitória do certo. Estou disposto a deixar isso para a maioria. A obrigação do voto, portanto, nunca vai além do que é conveniente. Mesmo votar pelo que é correto não é o mesmo que fazer alguma coisa por ele. É apenas expressar debilmente aos outros o desejo de que o certo prevaleça. Um

444

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO homem sábio não deixará o que é correto à mercê da sorte, nem desejará

que ele prevaleça mediante o poder da maioria. Há pouca virtude na

ação das massas. Quando a maioria finalmente votar pela abolição da escravidão, isso se dará porque a escravidão lhe é indiferente, ou porque terá restado pouca escravidão a ser abolida por seu voto. A essa altura serão eles, os da maioria, os únicos escravos. Só pode apressar a abolição o voto daquele que afirma sua própria liberdade por meio do voto.

12. Ouço dizer que será realizada em Baltimore, ou alhures, uma convenção para a escolha de um candidato à presidência, com a participação predominante de editores e políticos pro ssionais; mas me pergunto: Para qualquer homem independente, inteligente e respeitável,

que importância pode ter a decisão tomada pela convenção? Não usufruiremos, de todo modo, do privilégio da sabedoria e da honestidade desse homem? Não podemos contar com alguns votos independentes? Não existem neste país muitos indivíduos que não participam de convenções? Mas não: descubro que o homem respeitável, ou assim cha-

mado, abandonou prontamente sua posição e não espera mais nada de seu país, quando é o seu país que tem mais motivos para nada mais esperar dele. Ele mais que depressa adota um dos candidatos assim

escolhidos como o único disponível, provando desse modo que ele próprio está disponível para todos os propósitos do demagogo. Seu voto não tem mais valor do que o de qualquer forasteiro sem princípios ou nativo mercenário, que pode muito bem ter sido comprado. Oh, mas um homem que é de fato um homem, como diz meu vizinho, tem uma

coluna dorsal que não se verga! Nossas estatísticas estão incorretas: gente demais foi computada. Quantos verdadeiros homens existem em cada quilômetro quadrado neste país? Quando muito, um. Será que a América não oferece atrativos para que os homens aqui se estabeleçam? O homem norte-americano foi definhando até virar um Odd Fellow — alguém conhecido pela hipertrofia de seu caráter gregário, por uma

manifesta falta de intelecto e de animada autoconfiança; alguém cuja principal preocupação, ao vir para este mundo, é saber se os abrigos de pobres estão em boas condições; e que, antes mesmo de vestir a túnica viril, angaria donativos para o sustento de viúvas e órfãos; alguém, em suma, que só ousa viver com a ajuda da companhia de Auxílio Mútuo, que lhe prometeu um enterro decente.

fi

445

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 13. Não é obrigação de um homem, evidentemente, dedicar-se à er-

radicação de um mal qualquer, nem mesmo do maior que exista; ele pode muito bem ter outras preocupações que o absorvam. Mas é seu dever, pelo menos, manter as mãos limpas e, mesmo sem pensar no assunto, recusar o apoio prático ao que é errado. Se eu me dedico a outros planos e atividades, devo antes de mais nada garantir, no mínimo, que para realizá-los não estarei pisando nos ombros de outro

homem. Devo sair de cima dele para que também ele possa perseguir

seus objetivos. Vejam como uma incoerência das mais graves é to-

lerada. Ouvi alguns de meus conterrâneos dizerem: "Queria ver se me convocassem para ajudar a reprimir uma insurreição dos escravos

ou para marchar contra o México: eu não iria de jeito nenhum". No entanto, cada um desses mesmos homens, seja diretamente, com sua conivência, seja indiretamente, com seu dinheiro, propicia o envio de

um substituto. O soldado que se recusa a lutar numa guerra injusta é

aplaudido por aqueles que não se recusam a apoiar o governo injusto que faz a guerra; é aplaudido por aqueles cujos atos e cuja autoridade ele despreza; como se o Estado fosse penitente a ponto de contratar alguém para açoitá-lo enquanto ele peca, mas não a ponto de deixar

de pecar por um instante sequer. Assim, em nome da Ordem e do Governo Civil, somos todos levados, em última instância, a prestar homenagem e apoio a nossa própria torpeza. Depois do enrubescimento inicial de vergonha pelo pecado vem a indiferença; e de imoral,

o pecado se torna, por assim dizer, amoral, e não totalmente desne-

cessário à vida que edi camos. 14. O erro mais amplo e freqüente requer a virtude mais desinteressada

para se sustentar. É o homem nobre o mais propenso a fazer as leves ressalvas a que geralmente está sujeita a virtude do patriotismo. Aqueles

que, embora desaprovando o caráter e as medidas de um governo, em-

penham a ele sua obediência e seu apoio são sem dúvida seus defensores mais conscienciosos, e por conta disso, com muita freqüência, os mais

sérios opositores das reformas. Alguns estão reivindicando ao estado que dissolva a União, desprezando as determinações do presidente. Por que eles próprios não dissolvem a união entre eles e o estado, recusando-se a pagar sua cota ao tesouro nacional? Acaso eles não mantêm uma relação com o estado semelhante àquela que este mantém com a

fi

446

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO União? E as razões que impedem o estado de resistir à União não são as

mesmas que os impedem de resistir ao estado?

IS. Como pode um homem se satisfazer em ter uma opinião e se deleitar com ela? Que deleite pode haver nisso, se sua opinião for a de que ele

está sendo lesado? Se seu vizinho lhe subtrai por artimanhas um sim-

ples dólar, você não ficará satisfeito apenas em saber que foi ludibriado,

ou em proclamar o fato, ou mesmo em reivindicar a ele que pague o que lhe é devido; imediatamente você tomará medidas efetivas para reaver a quantia completa e assegurar-se de que nunca mais seja tapeado. A ação baseada em princípios, a percepção e a prática do que é certo, isso muda as coisas e as relações; é algo necessariamente revolucionário,

e não condiz de forma integral com qualquer coisa preexistente. Uma ação assim não divide apenas estados e igrejas, ela divide famílias; mais que isso, divide o indivíduo, separando o que há de diabólico nele do que há de divino. 16. Leis injustas existem: devemos nos contentar em obedecê-las? Ou nos empenhar em aperfeiçoá-las, obedecendo-as até obtermos êxito? Ou devemos transgredi-las imediatamente? Em geral, sob um governo como o nosso, os homens julgam que devem esperar até que tenham convencido a maioria a alterar as leis. Pensam que, se resistissem, o

remédio seria pior que os males. Mas é culpa do próprio governo que o remédio seja de fato pior que os males. É ele, o governo, que o

torna pior. Por que ele não se mostra mais inclinado a se antecipar e

a providenciar as reformas? Por que não valoriza suas minorias sensatas? Por que ele chora e resiste antes mesmo de ser ferido? Por que não encoraja seus cidadãos a estar alertas para apontar suas falhas, e

assim melhorar sua atuação para com eles? Por que ele sempre cruci-

fica Cristo, excomunga Copérnico e Lutero e declara Washington e Franklin rebeldes? 17. Poder-se-ia pensar que a única transgressão nunca cogitada pelo go-

verno é a da deliberada negação prática da sua autoridade; se assim não

fosse, por que ele não teria determinado para ela uma penalidade defi-

nida, adequada e proporcional? Se um homem sem propriedades se recusa uma única vez a pagar nove xelins de tributo ao Estado, é colocado

na prisão por um período não limitado por nenhuma lei conhecida, mas determinado unicamente pelo arbítrio daqueles que o puseram lá;

447

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO mas se ele roubar noventa vezes a mesma quantia do Estado, logo terá permissão para ficar livre de novo. 18. Se a injustiça faz parte da necessária fricção da máquina de governo,

deixe estar: talvez ela acabe por suavizar-se — certamente a máquina se desgastará. Se a injustiça tiver uma mola própria e exclusiva, ou uma

polia, ou uma corda, ou uma manivela, talvez seja o caso de avaliar se o remédio não seria pior que o mal; mas se ela for do tipo que requer que você seja o agente da injustiça contra outra pessoa, então, eu digo: Viole a lei. Deixe que sua vida seja uma contrafricção que pare a máquina. O

que eu tenho a fazer é cuidar, de todo modo, para não participar das mazelas que condeno.

19. Quanto a adotar os métodos que o Estado propicia para remediar o mal, não sei nada sobre eles. Levam muito tempo, e a vida de um homem pode acabar antes de eles vingarem. Tenho outros afazeres aos

quais me dedicar. Não vim a este mundo predominantemente para fa-

zer dele um bom lugar, mas para viver nele, seja bom ou ruim. Um homem não tem obrigação de fazer tudo, mas alguma coisa; e o fato de não poder fazer tudo não o obriga a fazer alguma coisa errada. Não é

minha tarefa reivindicar ao governador ou ao Legislativo, assim como não é tarefa deles me fazer reivindicações; e, se eles não ouvirem a mi-

nha reivindicação, o que devo fazer? Mas, neste caso, o Estado não

deixa saída: o mal está em sua própria constituição. Isto pode parecer demasiado duro, obstinado e intransigente; mas é para tratar com a mais extrema bondade e a mais extrema consideração os únicos espíritos capazes de apreciá-la e merecê-la. Assim é toda mudança para melhor, como o parto e a morte, que convulsionam o corpo.

20. Não hesito em dizer que aqueles que se autodenominam abolicionistas deveriam retirar imediatamente seu apoio, pessoal e material, ao governo de Massachusetts, em vez de esperar até constituir uma apertada maioria para fazer o bem prevalecer por meio dela. Penso que basta que tenham Deus ao seu lado, sem precisar esperar pelo voto que lhe dê maioria. Além do mais, qualquer homem mais direito que seus vizinhos constitui em si uma maioria de um. 21. Uma vez por ano, não mais, me avisto diretamente, cara a cara, com

este governo norte-americano, ou com seu representante, o governo do estado, na pessoa de seu cobrador de impostos. É a única ocasião em que

448

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO um homem da minha situação tem necessidade de se deparar com este governo; e é então que ele, o governo, diz claramente: Reconheça-me.

E a maneira mais simples, mais efetiva e, na atual conjuntura, mais indispensável de tratar com ele, de expressar-lhe nosso escasso conten-

tamento e apreço, é simplesmente negá-lo. Meu vizinho e concidadão,

o cobrador de impostos, é o mesmo homem com quem tenho de lidar

— pois, afinal de contas, é com homens que eu discuto, não com papéis — e ele escolheu por vontade própria ser um agente do governo. De

que modo ele saberá discernir o que é e o que faz como funcionário do governo, ou como homem, enquanto não for obrigado a avaliar se deve tratar a mim, seu vizinho, pelo qual tem respeito, como um vizinho e um homem de boa índole, ou como um maníaco perturbador da paz? Como saberá se pode superar esse obstáculo à sua sociabilidade sem um

pensamento mais impetuoso ou uma palavra mais rude condizentes com sua atividade? De uma coisa estou certo: se mil homens, se cem homens, se dez homens que pudessem ser assim chamados — se apenas dez homens honestos — ah, se um único homem honesto, neste estado de Massachusetts, deixasse de ter escravos, abandonando assim sua co-participação, e por isso fosse preso na cadeia local, isso seria a abolição da escravidão na América. Pois não importa quão pequeno possa parecer o ponto de partida: o que é bem-feito é para sempre. Mas gostamos mais de falar sobre o assunto: dizemos ser essa a nossa missão. As reformas têm um grande número de jornais a seu serviço, mas nem sequer um único homem. Se, em vez de ser ameaçado de prisão na Carolina, meu estimado concidadão, o embaixador do estado de Massachusetts, que dedica seus dias à resolução da questão dos direitos humanos na Câmara do Conselho, fosse prisioneiro de Massachusetts, o estado que

é tão ansioso em imputar o pecado da escravidão ao estado irmão — embora, hoje, só possa apontar um ato de inospitalidade como causa de

desavença com ele —, a Legislatura não deixaria inteiramente de lado

o assunto no próximo inverno. 22. Em um governo que aprisiona qualquer um injustamente, o verdadeiro lugar para um homem justo é também a prisão. O local apropriado

hoje, o único que Massachusetts propicia para seus espíritos mais livres e menos desesperançados, são as prisões, nas quais serão enfiados e excluídos do estado por ação deste, os mesmos homens que se retiraram a

449

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO si mesmos por seus próprios princípios. É ali que deveriam encontrá-los o escravo fugitivo, o prisioneiro mexicano em liberdade condicional e o índio que protesta contra as injustiças sofridas por sua raça; naquele ter-

reno recluso, porém mais livre e honrado, onde o Estado coloca os que não estão com ele, mas contra ele — a única casa num estado escravo na

qual um homem livre pode viver honradamente. Se alguém julga que sua influência ali se perderá, que sua voz não atingirá mais os ouvidos

do Estado, e que não será um inimigo efetivo dentro de suas muralhas, é porque não sabe o quanto a verdade é mais forte do que o erro, nem o

quanto pode combater a injustiça com mais eloquência e eficácia quem

experimentou um pouco dela em sua própria pessoa. Expresse seu voto por inteiro, não por meio de uma simples folha de papel, mas por toda

a sua influência. Uma minoria é impotente enquanto se conforma à maioria; não chega nem a ser uma minoria, então; mas é irresistível

quando intervém com todo o seu peso. Se a alternativa for entre colocar todos os homens justos na prisão ou desistir da guerra e da escravidão, o Estado não hesitará em sua escolha. Se mil homens deixassem de pagar seus impostos este ano, isso não seria uma atitude violenta e sangrenta;

violento e sangrento seria pagá-los, capacitando o Estado a cometer violência e derramar sangue inocente. Esta é, com efeito, a definição de uma revolução pacífica, se tal coisa é possível. Se o coletor de impostos, ou qualquer outro servidor público, perguntar-me, como já fez uma vez, "Mas então o que devo fazer?", minha resposta será: "Se quer mesmo fazer alguma coisa, demita-se de seu cargo". Quando o súdito recusa sua submissão e o funcionário se demite do cargo, a revolução se consuma. Mas suponhamos, até, que se chegue a derramar sangue. Já não há uma espécie de derramamento de sangue quando a consciência é ferida? Por esse ferimento escorrem a verdadeira hombridade e a imortalidade de um homem, e ele sangra até a morte definitiva. Vejo agora mesmo esse sangue correr. 23. Refleti sobre o encarceramento do infrator, e não sobre a apreensão

de seus bens — embora ambos os atos sirvam ao mesmo propósito —, porque os que se batem pela mais pura justiça, e conseqüentemente

são mais perigosos para um Estado corrupto, não costumam dedicar

muito tempo a acumular propriedades. A esses o Estado presta comparativamente poucos serviços, e um pequeno imposto costuma ser

450

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO considerado exorbitante, sobretudo se eles são obrigados a pagá-lo com dinheiro obtido com trabalho braçal. Se houvesse alguém que vivesse inteiramente sem o uso do dinheiro, o próprio Estado hesitaria em exigir-lhe algum. Mas o homem rico — sem querer fazer uma comparação invejosa — está sempre vendido à instituição que o torna rico. Falando

em termos gerais, quanto mais dinheiro, menos virtude, pois o dinheiro se interpõe entre um homem e seus objetivos, e os alcança para ele, e certamente não há grande mérito em alcançá-los dessa maneira. Agindo assim, ele deixa de lado muitas questões que, de outro modo, seria obrigado a responder; ao passo que a única nova questão que ele se coloca é a difícil e supérflua de saber como gastar o dinheiro. Assim, seu terreno moral é tirado de sob seus pés. As oportunidades de viver

diminuem na mesma proporção em que se acumulam os chamados "meios". Quando fica rico, o melhor que um homem tem a fazer por sua cultura é tentar levar a cabo os planos que cogitava quando era po-

bre. Cristo respondeu aos súditos de Herodes de acordo com a situação

deles. "Mostrai-me o dinheiro dos tributos", disse; e um dos homens

tirou do bolso uma moeda. Se vocês usam dinheiro com a imagem

de César gravada, e que se tornou corrente e válido, isto é, se vocês são homens do Estado, e com alegria usufruem as vantagens do governo de César, então restituam-lhe um pouco do que é dele quando ele o exige: "Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus", disse, deixando-os sem saber mais do que antes sobre qual era qual, pois eles mesmos não queriam saber. 24. Quando converso com os mais livres dos meus concidadãos, percebo que, não importa o que eles possam dizer sobre a magnitude e a seriedade da questão, e qualquer que seja seu apreço pela tranquilidade

pública, o fato é que eles não podem abrir mão da proteção do governo atual e temem as conseqüências da desobediência sobre suas proprieda-

des e suas famílias. De minha parte, não gosto de pensar que um dia venha a depender da proteção do Estado. Mas, se eu nego sua autoridade quando ele impõe seus tributos, ele logo tomará e devastará todas as minhas propriedades, e importunará a mim e a meus filhos para sempre. Isso é duro. Isso torna impossível a um homem viver honestamente, e ao mesmo tempo com conforto, no que diz respeito ao aspecto exterior. Não valerá a pena acumular bens; com certeza seriam tomados

451

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

de novo. O que se deve fazer é arrendar ou tomar posse de uma terra qualquer e não cultivar senão uma pequena lavoura, se alimentando logo de sua produção. Viver para a própria subsistência e não depender senão de si próprio, sempre com uma muda de roupa à mão e pronto para recomeçar, sem se prender a muitos negócios. Um homem pode ficar rico até mesmo na Turquia, se for, sob todos os aspectos, um bom súdito do governo turco. Confúcio disse: "Se um Estado é governado pelos princípios da razão, pobreza e desgraça são objetos de vergonha; se um Estado não é governado pelos princípios da razão, as riquezas e honrarias são objetos de vergonha". Não: até eu precisar que a proteção de Massachusetts me seja proporcionada em algum distante porto do Sul, onde minha liberdade esteja em perigo, ou até que eu me dedique exclusivamente a construir um patrimônio na minha terra por meio de um empreendimento pacífico, estou em condições de recusar minha lealdade a Massachusetts, e o direito deste estado sobre minha propriedade e minha vida. Custa-me menos, em todos os sentidos, sofrer as penas decorrentes da desobediência ao Estado do que me custaria obedecê-lo. Neste caso, eu me sentiria diminuído em meu valor.

25. Há alguns anos, o Estado me procurou em nome da Igreja, e me intimou a pagar uma certa quantia para o sustento de um sacerdote a cuja pregação meu pai comparecia, mas à qual eu mesmo nunca assisti. "Pague", eles me disseram, "ou será trancafiado na cadeia". Recusei-me a pagar. Mas, infelizmente, outro homem achou conveniente pagar por mim. Eu não via por que o mestre-escola deveria pagar tributo para sustentar o sacerdote, e não o contrário; pois eu não era o mestre-escola

do estado, mas me mantinha por meio de subscrição voluntária. Eu não via por que a escola não poderia apresentar sua conta de impostos e fa-

zer com que o estado atendesse às suas demandas, assim como a Igreja.

No entanto, a pedido dos conselheiros municipais, concordei em prestar a seguinte declaração por escrito: "Saibam todos, pela presente, que

eu, Henry Thoreau, não desejo ser visto como membro de nenhuma sociedade constituída à qual não tenha me associado". Entreguei essa declaração ao escrivão municipal, que a mantém com ele. O estado, sa-

bendo deste modo que eu não desejava ser visto como membro daquela igreja, nunca voltou a me fazer uma exigência parecida; mas declarou que precisava se manter fiel a seus pressupostos originais. Se eu tivesse

452

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO como nomeá-las, teria então me desligado minuciosamente de todas as sociedades às quais nunca me associara; mas eu não sabia onde encontrar uma lista completa delas.

26. Não pago há seis anos o imposto individual, pré-requisito para votar. Por causa disso, certa vez fui colocado na prisão, onde passei uma

noite. E, enquanto contemplava as paredes de rocha sólida, com dois ou três pés de espessura, a porta de madeira e ferro de um pé de espessura

e a grade de ferro que filtrava a luz, não pude deixar de me espantar

com a insensatez daquela instituição que me tratava como mero amontoado de carne, sangue e ossos a ser trancafiado. Fiquei pensando que

ela decerto concluíra por fim que aquele era o melhor uso que poderia

me dar, e que jamais pensara em se valer dos meus serviços de alguma

maneira. Percebi que, se havia uma parede de pedra entre mim e meus concidadãos, havia um muro ainda mais difícil de transpor ou atraves-

sar para que eles fossem tão livres quanto eu. Nem por um momento me senti con nado, e as paredes me pareciam um grande desperdício de pedras e argamassa. Sentia-me como se somente eu, entre meus con-

cidadãos, tivesse pago meu imposto. Eles claramente não sabiam como me tratar, mas se comportavam como pessoas de pouca educação. Em cada ameaça e em cada cumprimento havia um erro grosseiro, pois eles

pensavam que meu principal desejo era estar do outro lado daquela parede de pedra. Eu não podia deixar de sorrir ao constatar o modo laborioso como trancavam a porta às minhas re exões, que no entanto os seguiam sem qualquer obstáculo ou di culdade, sendo que eram elas tudo o que havia de perigoso. Como não podiam me alcançar, eles

tinham resolvido punir meu corpo, como meninos que, por não ter como atingir alguém a quem odeiam, maltratam-lhe o cão. Percebi que o Estado era tolo, medroso como uma mulher solitária com seus talheres de prata, e que não sabia distinguir seus amigos de seus inimigos, e perdi todo o resto de respeito que ainda tinha por ele, passando a sentir somente pena.

27. Desse modo, o Estado nunca confronta intencionalmente a consciência, intelectual ou moral, de um homem, mas apenas seu corpo, seus

sentidos. Não dispõe de inteligência ou honestidade superiores, mas só de força física maior. Não nasci para ser coagido. Respirarei à minha

própria maneira. Vamos ver quem é mais forte. Que força tem uma

fl

fi

fi

453

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO multidão? Só podem me coagir aqueles que obedecem a uma lei mais elevada que a minha. Eles me obrigam a ser como eles. Nunca ouvi falar de homens que tenham sido obrigados pelas massas a viver desta ou

daquela maneira. Que espécie de vida seria essa? Quando me deparo

com um governo que me diz "a bolsa ou a vida", por que eu deveria me apressar em lhe dar meu dinheiro? Ele pode estar atravessando um grande aperto, e não saber como agir: nada posso fazer para ajudá-lo. Ele

deve ajudar a si próprio; fazer como eu. Não vale a pena se lamuriar a

respeito. Não sou responsável pelo bom funcionamento da máquina da sociedade. Não sou o filho do maquinista. Observo que, quando uma bolota de carvalho e uma castanha caem lado a lado, uma delas não fica inerte para dar espaço à outra, mas ambas obedecem a suas próprias leis, brotando, crescendo e florescendo o melhor que podem, até que uma, talvez, eclipse e destrua a outra. Se uma planta não pode viver de acordo com sua natureza, ela morre. O mesmo ocorre com um homem.

28. A noite na prisão foi bastante inusitada e interessante. Quando entrei, os prisioneiros, em mangas de camisa, conversavam e desfrutavam o ar da noite perto da porta. Mas o carcereiro disse: "Vamos, rapazes, está na hora de trancar"; e então eles se dispersaram, e ouvi o som de seus passos retornando às celas vazias. Meu companheiro de cela me foi apresentado pelo carcereiro como "um camarada de primeira e um homem esperto". Quando a porta foi trancada, ele me mostrou onde pendurar o chapéu e contou como lidava com as coisas por ali. As celas eram caiadas uma vez por mês, e pelo menos aquele em que estávamos era o aposento mais branco, de mobiliário mais simples e, provavelmente, o mais limpo da cidade. Ele naturalmente quis saber de onde eu vinha, e o que me trouxera até ali. E, depois de lhe contar, perguntei-lhe

igualmente como ele fora parar ali, presumindo que fosse um homem honesto, evidentemente; e, pelo modo como anda o mundo, acho que de fato era. "Ora", disse ele, "eles me acusam de incendiar um celeiro, mas nunca fiz isso". Até onde pude perceber, ele provavelmente tinha ido dormir num celeiro quando estava bêbado, e fumara seu cachimbo ali, e assim o celeiro pegara fogo. Tinha a reputação de ser um homem inteligente, estava ali havia três meses à espera de seu julgamento, e teria de esperar outro tanto. Mas estava plenamente manso e satisfeito, já que tinha pouso e comida de graça, e julgava estar sendo bem tratado.

454

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO 29. Ele ocupava uma janela e eu a outra. Percebi que, se alguém ficava

muito tempo ali trancado, sua principal ocupação era olhar pela janela. Em pouco tempo eu havia lido todos os folhetos deixados ali, e examinado por onde antigos presos haviam fugido e onde uma grade havia sido serrada, e ouvido a história de vários ocupantes daquela cela.

Descobri que mesmo ali havia histórias e rumores que nunca circulavam fora dos muros da prisão. Provavelmente aquela é a única residência na cidade em que versos são compostos e impressos em seguida em forma de circular, mas jamais publicados. Mostraram-me uma lista bem longa de versos compostos por alguns jovens detidos numa tentativa de fuga, e que se vingavam cantando-os.

30. Extraí tudo o que pude do meu companheiro de cela, por receio de não voltar jamais a vê-lo; mas por fim ele me mostrou qual era minha cama e me deixou a tarefa de apagar a lamparina.

31. Passar uma noite ali foi como viajar por um país distante, que eu nunca houvesse cogitado visitar. Pareceu-me nunca ter ouvido antes o

relógio da cidade dar as horas, nem os ruídos noturnos do povoado, pois dormimos com as janelas abertas, gradeadas por fora. Foi como enxergar minha aldeia natal à luz da Idade Média, e nosso Concord transformado num afluente do Reno, e visões de cavaleiros e castelos

desfilaram diante dos meus olhos. Eram as vozes dos antigos moradores

dos burgos que eu ouvia nas ruas. Fui um involuntário espectador e ouvinte de tudo o que era feito e dito na cozinha da estalagem adjacente — uma experiência completamente nova e extraordinária para mim. Era uma visão mais detida de minha cidade natal. Eu estava bem

no fundo dela. Nunca antes enxergara suas instituições. Aquela era uma de suas instituições peculiares, pois a cidade era sede do condado.

Comecei a compreender o que interessava a seus habitantes. 32. Pela manhã, nosso desjejum foi enfiado cela adentro por um buraco na porta, em pequenas vasilhas retangulares de lata, feitas sob medida para a fresta, que continham meio litro de chocolate, pão de centeio e

uma colher de ferro. Quando pediram as vasilhas de volta, fui ingênuo

o suficiente para devolver todo o pão que não havia comido, mas meu companheiro o apanhou e disse que eu deveria guardá-lo para o almoço

ou o jantar. Logo depois, deixaram-no sair para trabalhar num campo de feno nas vizinhanças, para onde ele ia todos os dias, e não voltava

455

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO antes do meio-dia. Então ele se despediu de mim, dizendo duvidar que ainda voltaria a me ver.

33. Quando saí da prisão — pois alguém interveio e pagou o imposto

—, não percebi grandes mudanças nas coisas cotidianas, tais como as que observa alguém que entra ali jovem e sai já velho, grisalho e cambaleante. No entanto, apresentou-se diante dos meus olhos uma mudança

no cenário — a cidade, o estado e o país —, uma mudança maior do que a que poderia ter produzido aquela passagem de tempo tão exígua.

Vi com nitidez ainda maior o estado em que vivia. Vi até que ponto poderia con ar, como concidadãos e amigos, nas pessoas entre as quais eu vivia. Constatei que sua amizade era só para os bons momentos; que

eles não se dedicavam muito a praticar o bem; que eram uma raça tão

distinta da minha, por seus preconceitos e superstições, quanto são os chineses e os malaios; que, em seus sacrifícios pela humanidade, não arriscavam coisa alguma, nem mesmo suas propriedades; que, afinal de contas, eles não eram nada nobres, pois tratavam o ladrão da mesma forma que este os tratara, e esperavam salvar suas almas ao cumprir certos ritos exteriores e proferir algumas orações, e ao trilhar de quando em quando um determinado caminho reto, embora inútil. Este talvez seja um julgamento demasiado severo de meus concidadãos, pois acredito que muitos deles não estejam cientes de que têm uma instituição como o cárcere em seu povoado. 34. Antigamente, quando um devedor pobre saía da prisão, era costume em nossa aldeia que seus conhecidos o cumprimentassem olhando através dos dedos, cruzados de maneira a representar as grades de uma cela, e dissessem "Como vai?". Meus concidadãos não me saudavam dessa maneira, mas olhavam primeiro para mim, depois uns para os outros, como se eu houvesse retornado de uma longa viagem. Fui preso quando ia ao sapateiro buscar um sapato que estava no conserto. Quando fui

solto, na manhã seguinte, resolvi completar minha pequena tarefa e, tendo calçado meu sapato consertado, fui me juntar a um grupo empenhado em colher mirtilos e que esperava impaciente que eu lhes servisse

de guia. Em meia hora — pois o cavalo foi arreado prontamente — eu

estava no centro de um campo de mirtilos, em uma das colinas mais altas, a quatro quilômetros de distância, e dali o Estado não podia ser

visto em parte alguma.

fi

456

35. Essa é toda a história das "Minhas prisões".

36. Nunca deixei de pagar o imposto das estradas, porque tenho tanto

desejo de ser um bom concidadão quanto de ser um mau súdito; e no

que diz respeito à sustentação das escolas, estou fazendo minha parte pela educação de meus compatriotas. Não é por nenhum item particular da relação de impostos que me recuso a pagá-los. Eu simplesmente desejo recusar a sujeição ao Estado, afastar-me dele e ficar fora de seu alcance. Não me interessaria rastrear o percurso do meu dólar, mesmo que pudesse, para ver se ele compra um homem ou um mosquete para matar um — o dólar é inocente —, mas me preocupo em rastrear os efeitos de minha sujeição. Na verdade, declaro silenciosamente guerra ao Estado, à minha maneira, embora eu ainda siga fazendo uso dele e obtendo as vantagens que ele pode me dar, como é comum nesses casos. Se outros, por solidariedade ao Estado, pagam o imposto que é exigido de mim, não fazem mais do que já fizeram em seus próprios casos, ou melhor, encorajam a injustiça num grau maior do que o requerido pelo

Estado. 37. Se eles pagam o imposto por conta de um interesse equivocado pelo

indivíduo tributado, para salvar seu patrimônio ou evitar que ele vá para a cadeia, isso ocorre porque eles não avaliaram devidamente até que ponto deixam que seus sentimentos particulares interfiram no bem público. 38. Esta é, portanto, minha posição no momento. Mas não se pode car demasiado em guarda num caso assim, sob pena de que sua ação seja rotulada de teimosia, ou de excessiva preocupação com as opiniões

alheias. Que cada um trate de fazer apenas o que lhe cabe, e no tempo

certo. 39. Penso que às vezes, a nal, essas pessoas têm boas intenções, só que

são ignorantes. Agiriam melhor se soubessem como fazê-lo: por que dar a meus semelhantes o trabalho de me tratar de um modo que foge à sua inclinação? Mas, pensando melhor, isso não é razão para que eu devesse fazer como eles fazem, ou permitir que outros sofram um tormento muito maior de outra espécie. E digo ainda algumas vezes a mim mesmo: quando milhões de homens, sem ardor, sem malevolência, sem qualquer tipo de ressentimento pessoal, exigem de você apenas

alguns xelins, sem a possibilidade — pois assim é a constituição deles

457 fi

fi

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

— de retirar ou alterar sua demanda atual, e você, por sua vez, não tem a possibilidade de apelar a outros milhões, por que se expor a essa

esmagadora força bruta? Você não resiste com a mesma obstinação ao frio e à fome, aos ventos e marés, mas se submete pacificamente a mil injunções semelhantes. Você não mete a cabeça na fogueira. Mas, na mesma medida em que não considero esta força inteiramente bruta, mas sim parcialmente humana, e mantenho relações com esses milhões de homens e com outros tantos milhões, e não simplesmente com coisas brutas ou inanimadas, vejo que lhes é possível apelar, primeiro e de

imediato, ao seu Criador e, em segundo lugar, a eles mesmos. Mas, se eu coloco deliberadamente minha cabeça no fogo, não há apelo possível ao fogo ou ao Criador do fogo, e só posso culpar a mim mesmo. Se eu pudesse me convencer de que tenho algum direito a estar satisfeito com os homens tais como são, e a tratá-los de modo correspondente, e não de acordo com as minhas exigências e expectativas de como eles e eu, em alguns aspectos, deveríamos ser, então, como um bom muçulmano e fatalista, eu teria de me empenhar para car satisfeito com as coisas tais como elas são, e dizer que assim é a vontade de Deus. E, acima de tudo, há uma diferença entre resistir a essa força e a outra puramente bruta ou natural, que é a que posso resistir com alguma e cácia, mas não posso ter a pretensão de, a exemplo de Orfeu, mudar a natureza das rochas, árvores e animais.

40. Não desejo brigar com nenhum homem ou nação. Não desejo me perder em minúcias, fazer distinções sutis ou me colocar acima de meus semelhantes. Ao contrário, posso dizer que até procuro uma desculpa para acatar as leis do país. Estou mesmo muito disposto a acatá-las. De fato, tenho razões para descon ar de mim mesmo quanto a este tópico; e a cada ano, quando o coletor de impostos aparece, eu me vejo resol-

vido a passar em revista os atos e posições dos governos geral e estadual,

bem como o espírito do povo, a fim de descobrir um pretexto para a obediência. Devemos ter afeto por nosso país como temos por nossos pais; E se em algum momento deixarmos de honrá-lo Com o nosso amor ou com nossa dedicação, Devemos respeitar as aparências e ensinar à alma

fi

fi

fi

458

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO As coisas da consciência e da religião,

E não o desejo de poder ou benefício.

Acredito que o Estado logo será capaz de me tirar das mãos todo tra-

balho desse tipo, e então não serei mais patriota que o restante de meus patrícios. Contemplada de um ponto de vista menos elevado, a Constituição, com todas as suas falhas, é muito boa; a lei e os tribunais são muito respeitáveis; até mesmo este estado e este governo americano são, em vários aspectos, bastante admiráveis e extraordinários, e devemos ser gratos a eles, como muitos já disseram. Mas, de um ponto de vista um pouco superior, são como os descrevi; e vistos de mais acima ainda, do alto de tudo, quem poderia dizer o que são essas instituições, ou o quanto vale a pena examiná-las e refletir sobre elas? 41. No entanto, o governo não me preocupa muito, e dedicarei a ele a menor quantidade possível de pensamentos. Não são muitos os momentos da vida nos quais vivo sob um governo, mesmo neste mundo tal

como ele é. Se um homem tem pensamento, fantasia e imaginação livres, de tal modo que o que não é jamais lhe pareça ser por muito tempo,

governantes insensatos não podem interrompê-lo de nitivamente.

42. Sei que a maioria dos homens pensa de modo diferente do meu, mas aqueles cujas vidas são, por ofício, dedicadas ao estudo de seme-

lhantes assuntos satisfazem-me tão pouco quanto os demais. Estadistas e legisladores, estando tão completamente entranhados na instituição,

nunca conseguem observá-la de modo distinto e franco. Falam da so-

ciedade em movimento, mas não têm nenhum lugar de repouso fora dela. Podem ser homens de certo discernimento e experiência, e sem dúvida inventaram sistemas engenhosos e mesmo úteis, pelos quais lhes somos sinceramente gratos; mas toda a sua perspicácia e sua utilidade

situam-se dentro de limites não muito amplos. Têm o hábito de esquecer que o mundo não é governado por diretrizes e conveniências.

Webster nunca chega aos bastidores do governo, e portanto não pode falar com autoridade a seu respeito. Suas palavras são sinônimo de sa-

bedoria para os legisladores que não cogitam fazer nenhuma reforma essencial no governo vigente. Mas, para os pensadores, e para aqueles que legislam para todos os tempos, ele nem chega a vislumbrar o assunto. Sei de alguns cujas especulações serenas e sábias sobre o tema

fi

459

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO logo revelariam os limites do alcance e da receptividade da mente dele.

No entanto, comparadas com a atuação reles da maioria dos reformistas, e com a ainda mais reles sabedoria e eloquência dos políticos em geral, as palavras de Webster são quase as únicas sensíveis e valiosas, e damos graças aos Céus por sua existência. Comparativamente, ele é sempre vigoroso, original e, acima de tudo, prático. Ainda assim, sua

virtude não é a da sabedoria, mas a da prudência. A verdade de um advogado não é a Verdade, mas a coerência, ou uma conveniência coerente. A Verdade está sempre em harmonia consigo mesma, e não está

preocupada primordialmente em revelar a justiça que possa porventura ser compatível com o mal. Webster bem merece ser chamado, como foi, de Defensor da Constituição. De fato, não há golpes que ele desfira que não sejam de defesa. Ele não é um líder, mas sim um seguidor. Seus líderes são os homens de 87. "Nunca empreendi iniciativa alguma", diz ele, "e nunca me propus a isso; nunca apoiei iniciativa alguma, nem pretendo, no sentido de perturbar o acordo original pelo qual os vários estados constituíram a União". No entanto, pensando na chancela que a Constituição concede à escravidão, ele diz: "Por fazer parte do pacto original, que continue". Não obstante sua notável argúcia e habilidade, ele é incapaz de separar um fato de seu contexto meramente político e de contemplá-lo de modo absoluto, tal como se apresenta ao intelecto — por exemplo, o que cabe a um homem fazer, na América atual, no tocante à escravidão. Porém, se aventura a fazer (ou é levado a isso) afirmações desesperadas como as que se seguem, embora admitindo estar falando em termos absolutos, e como homem particular; que novo e singular código de deveres sociais pode ser inferido disso? "O modo como", diz ele, "os governos dos estados onde existe a escravidão devem regulamentá-la é de seu próprio arbítrio, levando em consideração sua responsabilidade perante seus eleitores, perante as leis gerais da pro-

priedade, humanidade e justiça, e perante Deus. Associações formadas

alhures, nascidas de um sentimento humanitário, ou de outra causa qualquer, nada têm a ver com isso. Elas nunca receberam qualquer encorajamento de minha parte, e nunca receberão".

43. Aqueles que não conhecem fontes mais puras da verdade, que não

foram mais longe correnteza acima, apegam-se, prudentemente, à

Bíblia e à Constituição, e delas bebem com reverência e humildade.

460

DISPOSIÇÃO DO CONTEÚDO Mas aqueles que avistam de onde ela vem para desaguar neste lago ou

naquela lagoa, aprumam o corpo mais uma vez e continuam sua pere-

grinação até a nascente.

44. Nenhum homem dotado de gênio para legislar apareceu até hoje na América. Eles são raros na história do mundo. Há oradores, políticos e homens eloqüentes aos milhares, no entanto ainda não tomou a palavra o orador capaz de esclarecer as questões mais controversas do momento. Amamos a eloqüência pela eloquência, e não por alguma verdade que ela possa expressar, ou algum heroísmo que possa inspirar. Nossos legisladores ainda não aprenderam o valor comparativo que

têm, para uma nação, o livre-mercado e a liberdade, a união e a retidão.

Eles não têm gênio ou talento sequer para questões relativamente mo-

destas de tributação e finança, comércio, manufatura e agricultura. Se contássemos apenas com a verborrágica esperteza dos legisladores do Congresso para nos guiar, sem que ela fosse corrigida pela devida experiência e pelas queixas válidas do povo, a América deixaria de ocupar sua posição entre as nações. Há 1800 anos, embora talvez eu não tenha o direito de dizê-lo, foi escrito o Novo Testamento; no entanto, onde está o legislador com suficiente sabedoria e talento prático para se valer da luz que essas escrituras lançam sobre a ciência da legislação? 45. A autoridade do governo, mesmo aquela a que estou disposto a me submeter — pois obedecerei satisfeito àqueles que sabem mais e fazem

melhor do que eu, e em muitos casos mesmo àqueles que nem sabem

tanto e nem fazem tão bem —, é ainda uma autoridade impura: para

ser rigorosamente justa, ela deve ter a aprovação e o consentimento dos

governados. Ele não pode ter sobre minha pessoa e meu patrimônio senão o direito que eu lhe concedo. O progresso de uma monarquia ab-

soluta para uma monarquia limitada, de uma monarquia limitada para uma democracia, é um progresso em direção a um verdadeiro respeito

pelo indivíduo. Mesmo o filósofo chinês era sábio o bastante para ver no indivíduo a base do Império. Será a democracia, tal como a conhecemos, o último aperfeiçoamento possível em matéria de governo? Não

será possível dar um passo adiante em direção ao reconhecimento e à organização dos direitos do homem? Jamais um Estado será verdadei-

ramente livre e esclarecido se não reconhecer o indivíduo como um

poder mais elevado e independente, do qual deriva todo o seu próprio

461

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO poder e autoridade, e não o tratar de modo apropriado. Agrada-me

imaginar um Estado que enfim possa se permitir ser justo com todos os homens, e tratar o indivíduo respeitosamente como semelhante; que nem mesmo considere uma ameaça à sua própria tranquilidade o fato de alguns indivíduos se apartarem dele, deixando de imiscuir-se nele ou de ser por ele abarcados, desde que cumpram todos os seus deveres de cidadãos e seres humanos. Um Estado que gerasse esse tipo de fruto, e o deixasse cair tão logo amadurecesse, prepararia o caminho para um Estado ainda mais perfeito e glorioso, que também já imaginei, mas ainda não avistei em nenhuma parte.?}

23 Tradução de José Geraldo Couto, Penguin-Companhia das Letras, 2012 — NT.

462

CAPÍTULO IV

Estilo

A terceira _vez descobertos, parte da retórica selecionados clássica epreocupava-se organizados oscom argumentos, o estilo. Uma eles tinham de ser expressos em palavras. As palavras, sejam os símbolos sonoros ou os símbolos gráficos, servem como meio de comunicação entre oradores ou escritores e seu público. Elocutio, a palavra latina para estilo, passava essa idéia de "falar abertamente". Lexis, a palavra grega para estilo, carregava a noção tripla de "pensamento", "palavra" (ambas as noções contidas na palavra grega logos) e "fala" (legein). A implicação tripla de lexis indica que os retóricos gregos concebiam o estilo como a

parte da retórica em que pegamos os pensamentos produzidos pela invenção e os colocamos em palavras, que serão declamadas. A definição de estilo do Cardeal Newman apresenta praticamente a mesma idéia: "Estilo é um modo de pensar posto em linguagem".

É esse "modo de pensar posto em linguagem" que representa o maior problema de composição para muitos alunos. A visão de uma folha de papel em branco pode paralisá-los. Talvez sirva de consolo para esses alunos saber que passar palavras para uma folha de papel pode ser difícil até para escritores profissionais. Escrever fica menos difícil com tempo, mas nunca é fácil. Alfred North Whitehead disse uma vez: "O estilo, em seu sentido mais refinado, é a última aquisição da mente educada; é também o mais útil". A dificuldade que todos têm, em graus variados, de transformar pensamentos em linguagem decorre,

463

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO em parte, da inércia que deve ser superada no início de qualquer tarefa;

em parte, da falta de algo a dizer; em parte, da indecisão sobre o que

dizer primeiro; e em parte, da variedade de maneiras possíveis de dizer

algo. A inércia é um problema que só pode ser superado com força de vontade. Devemos simplesmente sentar e decidir escrever algo em um pedaço de papel. A falta de coisas a dizer pode ser resolvida pelos procedimentos discutidos no capítulo sobre a descoberta de argumentos. A indecisão quanto à ordem das partes pode ser resolvida voltando-se para as sugestões apresentadas no capítulo sobre disposição. Os problemas apresentados pelo fato de que pensamentos e sentimentos podem ser formulados de várias maneiras serão a principal preocupação deste capítulo. Uma idéia sobre estilo que precisa ser apagada logo no início é que

estilo é aquilo que "veste o pensamento". E difícil determinar qual escola de retórica popularizou a noção de que estilo é ornamento ou embelezamento, como o ouropel pendurado nos galhos de uma árvore de Natal, mas é certo que nenhum dos retóricos clássicos famosos (Isócrates, Aristóteles, Demétrio, Longino, Cícero, Quintiliano) pregou essa doutrina. Todos eles ensinaram que existe uma relação integral

e recíproca entre matéria e forma. "Pensamento e discursos são insepa-

ráveis um do outro". Essas palavras de John Henry Newman expressam

a visão de estilo dos melhores retóricos. De acordo com essa visão, a matéria deve ser ajustada à forma e a forma à matéria. Essa noção da relação integral entre matéria e forma é a base para qualquer compreensão verdadeira da função retórica do estilo, excluindo a visão de que o estilo é somente um ornamento do pensamento ou um veículo para a expressão do pensamento. De fato, o estilo é um veículo para a expressão do pensamento e pode ser ornamental, mas não se limita a isso. Trata-se de mais um dos "meios de persuasão disponíveis", outra forma de provocar a resposta emocional desejada na audiência e estabelecer a imagem ética adequada. Se os estudantes adotarem essa noção funcional de estilo, já terão resolvido boa parte dos problemas de escrita, pensando como Stendhal: Le style est ceci: Ajouter à une pensée donnée toutes les circonstances propres à produire tout l'effet que doit produire cette pensée ("Estilo é isto: adicionar a um determinado pensamento todas as

464

ESTILO

circunstâncias necessárias para produzir o efeito que o pensamento se destina a produzir"). Os estudantes serão guiados na escolha das "circunstâncias necessárias para produzir o efeito" pela consideração do assunto, da ocasião, do propósito, da própria personalidade e do público. A definição de estilo de Jonathan Swift, "palavras apropriadas em lugares apropriados", não ajudará muito os estudantes se eles não tiverem alguns critérios para determinar o que é apropriado. E

só é possível determinar o que é apropriado tomando como base as

considerações mencionadas acima. Visto que apropriado é um termo relativo, não pode haver um "melhor estilo" absoluto. Um escritor deve dominar uma série de estilos, a fim de utilizar o estilo mais apropriado à situação. Isso não quer dizer

que esses vários estilos serão radicalmente diferentes uns dos outros.

Assim como há um ponto em comum na gama de dialetos presentes na fala, também na escrita persistirá certo teor, variando da prosa mais

formal à prosa mais relaxada. Em outras palavras, cada pessoa tem um

idioma, reconhecível em todos os seus dialetos e estilos. Os vários estilos resultarão das variações que o escritor ou orador fizer com base nesse teor comum. Como os escritores adquirem a variedade de estilos necessária para a diversidade de assuntos, ocasiões e público que eles fatalmente encontrarão? Os retóricos clássicos ensinavam que adquirimos versatilidade de estilo de três maneiras: (1) por meio de um estudo de preceitos ou princípios (ars), (2) por meio da prática da escrita (exercitatio), (3) por meio da imitação da prática de outros (imitatio). Os livros didáticos de retórica preocupam-se principalmente em estabelecer os princípios que orientarão o estudante na aquisição de estilos eficazes. A prática e a imitação são exercícios que o aluno costuma realizar fora da sala de aula. Como dever de casa, o aluno deve escrever temas; ou ele pode ser solicitado a ler "bons escritores", escrever uma análise estilística de

algum escritor ou imitar passagens de um bom texto. Embora este capítulo trate principalmente dos preceitos da escrita eficaz, alguns exemplos de prosa serão apresentados posteriormente para observação, análise e imitação. A prática da escrita está incluída

nas tarefas de escrita estabelecidas pelo instrutor, mas nesse ponto é importante lembrar ao aluno que essa prática é o mais benéfico dos três

meios. Preceitos e imitações podem ensinar o aluno a escrever, mas só

465

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO escrevendo ele aprenderá a escrever. Aprendemos a escrever escrevendo.

Apesar de ser um clichê, trata-se de uma verdade de valor inestimável. Com essas poucas observações gerais, estamos prontos para considerar alguns preceitos sobre o estilo.

COMPETÊNCIA GRAMATICAL No estudo estilístico, devemos ser claros sobre os domínios da gramática e da retórica. Assim como a confusão entre gramática e prática produziu muitas controvérsias desnecessárias, a confusão entre gramática e retórica pode dificultar uma discussão inteligente sobre o uso eficaz da linguagem. Evidentemente, há ocasióes em que as considerações gramaticais se transformam em considerações retóricas. Mas, embora geralmente seja verdade que devemos possuir competência gramatical para desenvolver um estilo eficaz, "boa gramática"nem sempre produz "boa retórica", nem uma "gramática ruim" invariavelmente produz "retórica ruim". Em abril de 1927, enquanto aguardava a execução na prisão, Bartolomeo Vanzetti fez esta declaração a um repórter: If it had not been for these thing, I might have live out my life, talking at street corners to scorning men. I might have die, unmarked, unknown, a failure. Now we are not a failure. This is our career and our triumph. Never in our full life can we hope to do such work for tolerance, for justice, for man's

understanding of man, as now we do by an accident.

Há vários erros gramaticais e idiomáticos aqui, mas a declaração é tão

comovente em termos de eloquência que se tornou o ponto mais lembrado do famoso caso Sacco-Vanzetti. Se corrigido ou traduzido, o trecho perde grande parte de sua e cácia retórica. A menor unidade do domínio da retórica é a palavra. Ao contrário

da gramática, a retórica não se preocupa com as partes das palavras, como os morfemas (as menores unidades lingüísticas com signi cado) e os fonemas (menor unidade de som de uma língua, que permite a um falante nativo "ouvir" palavras diferentes). Coloquemos, lado a lado, os domínios da gramática e da retórica:

fi

fi

466

ESTILO GRAMÁTICA: fonema-sílaba-palavra-frase-oração RETÓRICA:

palavra-frase-oração-parágrafo-divisão~

-composição total Vemos que a gramática e a retórica se sobrepõem nas áreas da pala-

vra, da frase e da oração, mas embora tenham esses elementos em comum, seu tratamento é diferente. Normalmente, julgamos a gramática como uma disciplina voltada para a "correção", e a retórica como uma

disciplina voltada para a "eficácia". O que queremos dizer (ou o que deveríamos querer dizer) quando falamos que a gramática está voltada para a "correção" é que ela está preocupada com a forma como uma determinada língua funciona: como as palavras são formadas e como elas podem ser dispostas em frases e orações. O que queremos dizer quando dizemos que a retórica está voltada para a "eficácia" é que ela trata da escolha da "melhor" expressão dentre uma série de expressões possíveis em um idioma.

Podemos ilustrar a diferença olhando para uma frase em inglês: He already forgave them for leaving, before the curtain fell, the theater.

[Ele já os perdoou por terem saído, antes que a cortina caísse, do teatro].

O que o gramático atacaria aqui seria a palavra forgave, "perdoou", ob-

servando que, no inglês moderno, formamos o tempo perfeito do verbo

na terceira pessoa do singular com o verbo auxiliar has + o particípio

passado do verbo principal. Uma vez alterado o verbo nesta frase para has forgiven, o gramático não teria mais erros gramaticais a corrigir na frase, ou seja, não faria mais nenhuma alteração na ordem das palavras, inflexões ou palavras funcionais. Mas se o gramático assumisse o papel adicional de retórico, ele provavelmente sugeriria outras alterações. Embora seja gramaticalmente possível colocar a palavra já e a oração antes que a cortina caísse nas posições que agora ocupam na frase, seria retoricamente aconselhável alterar a ordem das palavras. O retórico recomendaria que, em circunstâncias normais, a frase fosse assim: He has already forgiven them for leaving the theater before the curtain fell.

[Ele já os perdoou por terem saído do teatro antes que a cortina caísse].

467

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO O retórico provavelmente justificaria as mudanças na ordem das pa-

lavras, alegando que a frase é lida de maneira mais natural, mais eu-

fônica, dessa forma. Talvez haja uma situação retórica em que a oração adverbial caria melhor onde estava na frase original, mas é difícil

imaginar que situação seria essa. Por outro lado, é fácil imaginar uma situação em que already pode vir no início da frase. Se, por exemplo, quiséssemos enfatizar o elemento tempo, poderíamos dizer: Already he has forgiven them. A gramática preocupa-se com a disposição de uma palavra ou oração

apenas se ela for impossível ou mudar o significado da frase. A gramática inglesa não permitiria esta disposição de palavras, por exemplo: He has forgiven already them [Ele os já perdoou]. E se disséssemos: He had forgiven them before the curtain fell for leaving [Ele os tinha perdoado antes que a cortina caísse por terem saído], o gramático poderia ignorar

a colocação estranha da oração adverbial, mas precisaria observar que ela muda o significado da frase: a oração adverbial agora modifica had forgiven, "tinha perdoado"; na frase original, a oração adverbial modifica for leaving, "por terem saído".

Evidentemente, a retórica e a gramática estão interessadas em algo mais do que colocação de palavras e expressões em uma frase, mas essa discussão sobre a disposição ilustra a diferença de enfoque entre a gramática e a retórica.

ESCOLHA DE DICÇÃO UM VOCABULÁRIO ADEQUADO

Os retóricos clássicos costumavam considerar o estilo sob dois aspectos principais: escolha da dicção e formação de frases. Abordemos primeiro a escolha da dicção.

Para desenvolver um bom estilo, os estudantes devem ter, além de competência gramatical, um vocabulário amplo. Como eles adquirem o vocabulário necessário para desenvolver um bom estilo? Não existe uma fórmula mágica; o melhor conselho que se pode dar aos estudantes é incentivá-los a ler sempre que puderem. Não há dúvida de que a leitura constante aumenta bastante o vocabulário. Todo professor afir-

mará que os melhores textos são escritos por alunos que lêem muito.

fi

468

ESTILO

Esses alunos, além de um repertório maior, também têm à disposição as palavras necessárias para expressar o que têm a dizer. Lembramos mais facilmente as palavras que encontramos repetidamente em nossa

leitura. Ninguém sabe como lembramos as palavras no momento apropriado, mas fato que não podemos dar o que não temos. O indivíduo que lê muito tem mais probabilidade de encontrar novas palavras do que aqueles que simplesmente prestam atenção ao que dizem ao seu redor. A razão é que o vocabulário para conversas é consideravelmente mais limitado do que o vocabulário para a prosa escrita.

Os escritores que encontram prontamente as palavras apropriadas

quando precisam delas podem dizer que adquiriram domínio sobre as palavras. Eles devem sentir a segurança demonstrada pelo centurião no Novo Testamento: "Eu digo a um: 'vai"', e ele vai, e a outro: 'vem', e ele

vem"' O melhor dessa facilidade verbal é que as palavras encontradas

provavelmente são as "palavras apropriadas em lugares apropriados"

Quando precisamos nos esforçar para obter o mot juste, sempre existe o perigo de que a palavra escolhida seja inapropriada. Portanto, os estudantes que desejarem adquirir um bom vocabulário devem seguir o conselho de ler, ler e ler. Mas eles não devem confiar

somente na aquisição inconsciente. Embora absorvam muitas palavras novas apenas por encontrá-las com freqüência, a assimilação de novas palavras acelerará bastante se eles se derem ao trabalho de pesquisar

o significado das palavras desconhecidas. Como disse Henry James: "Tente ser uma daquelas pessoas em quem nada se perde!". Os estudantes ficarão surpresos com a rapidez e solidez com que seu vocabulário cresce se eles se derem ao trabalho de consultar o dicionário sempre que

encontrarem uma palavra nova. Consultar o significado de palavras novas à medida que as encontramos é o melhor método consciente de aumentar o vocabulário, pois é funcional: buscamos o significado das palavras que precisamos saber

para compreender o que estamos lendo. Existem outras maneiras conscientes de acelerar a aquisição de um vocabulário rico. Uma delas é estudar listas de palavras "novas", "incomuns" ou "úteis". Podemos aumentar rapidamente nosso repertório com um estudo sistemático de listas de palavras, e aqueles que se sen1 Mt 8,9 — NT.

469

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO tem mais deficientes em vocabulário podem acelerar o processo apren-

dendo e revisando constantemente uma lista de palavras recomendada. Existem muitos exercícios de vocabulário disponíveis. Os estudantes que desejam aumentar rapidamente seu conhecimento de palavras devem consultá-los. De qualquer forma, é bom que os alunos saibam que este é o menos satisfatório dos métodos de estudo de vocabulário, pois eles estudam

palavras isoladamente, não em um contexto, o que pode trazer uma série de consequências desastrosas. Primeiro, o conhecimento das pa-

lavras tende a se tornar um fim em si mesmo, em vez de um meio.

Depois, é mais difícil guardar o significado das palavras estudadas fora de contexto. Os professores que já submeteram os alunos ao estudo de listas de palavras selecionadas contam que ficam bastante decepcionados, pois poucas dessas palavras aparecem nos textos que os alunos escrevem. A terceira conseqüência de estudar palavras fora do contexto é que os alunos costumam usar essas palavras de maneira inapropriada

ou não-idiomática. O aluno que escreve "George comeu seu frango com gosto hedonístico" parece estar ciente de que hedonismo tem alguma relação com o prazer sensual, mas também revela que ainda não sabe como utilizar as palavras. Também não ajuda muito insistir que os alunos componham uma frase usando a palavra que acabaram de consultar, porque, se não viram ou ouviram a palavra usada adequadamente, eles não têm nenhuma orientação para seu uso. Evidentemente, os alunos não devem ser desencorajados de buscar os significados das palavras que encontram em alguma lista recomendada, porque sempre há algum lucro em tal busca, mas eles devem estar cientes das limitações de tal método. As principais ferramentas que encontraremos na mesa de um escritor são um dicionário e um tesauro (dicionário de sinônimos). Os escritores costumam recorrer ao dicionário para ver como se escreve uma palavra, sua divisão silábica e seu signi cado. O dicionário de sinônimos não é consultado com a mesma frequência que o dicionário, mas é raro o escritor que não sentiu necessidade de consultar um dicio-

nário de sinônimos em algum momento. O dicionário de sinônimos,

de fato, é um valioso auxílio em termos de vocabulário, quando não encontramos a palavra exata de que precisamos.

fi

470

ESTILO O dicionário de sinônimos mais famoso (aquele que se tornou tão

associado à sinonímia quanto Webster à lexicografia e Bulfinch à mitologia) é o Roget's Thesaurus of English Words and Phrases, compilado originalmente por um médico inglês, Peter Mark Roget, e publicado pela primeira vez em Londres, no ano de 1852. Roget organizou seu "tesouro de palavras" por tópicos. Editores subseqüentes revisaram o Thesaurus original, adicionando novas palavras e retirando algumas que haviam se tornado obsoletas. E editores mais recentes organizaram os verbetes em ordem alfabética, para facilitar o uso. Existem muitas edições baratas do Rogets disponíveis hoje em dia, assim como outros dicionários de sinônimos preparados por editores atuais. Os estudantes usarão bastante o dicionário de sinônimos, de modo que sua compra é justificada. Um dicionário de sinônimos apenas lista sinônimos (e alguns antônimos) para cada verbete, com referências cruzadas a outros verbetes. Como os sinônimos raramente ou nunca têm o mesmo significado, os estudantes precisam de um conhecimento considerável das palavras e de bastante bom senso para conseguir usar um dicionário de sinônimos de maneira inteligente. Suponha que uma aluna esteja escrevendo um parágrafo descrevendo as pessoas que compareceram à abertura de uma temporada de ópera. Em uma das frases, ela quer passar a idéia de que as mulheres que compareceram a esse evento exibiam falta de bom gosto e moderação no modo de vestir. Eis a frase: As senhoras exibiram ostensivamente suas sedas, cetins e diamantes.

Mas ela não está satisfeita com a frase. Por um lado, ela não gosta da estranheza de exibiram. Por outro lado, ela sente que há algo repetitivo em exibiram ostensivamente (ostentação não significa exibição?). Bem, ela terá de reformular a frase. Se as novas palavras ou expressóes não surgirem imediatamente, ela pode buscar ajuda em um dicionário de sinônimos. Mas por onde começar no dicionário de sinônimos? Parte da dificuldade em usar um dicionário de sinônimos é saber exatamente qual verbete deve ser consultado. Se alguém deseja apenas um substituto para uma palavra, basta consultar essa palavra no dicio-

nário de sinônimos. Mas às vezes queremos transmitir uma idéia, mas

não sabemos com que palavras. Nesse caso, devemos encontrar alguma

471

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO palavra ou conceito (e aqui as categorias divididas por tópicos do Roget's

são bastante úteis) que se aproxima da idéia que desejamos transmitir.

Mesmo uma palavra remota dará ao escritor um ponto de partida no

dicionário de sinônimos. Sinônimos dessa palavra e referências cruzadas a outras palavras o aproximarão da palavra exata. A aluna de nosso exemplo, entretanto, não tem certeza se precisa apenas de outra palavra ou de uma maneira totalmente nova de expressar o que pretende dizer. Mas como "exibir" é a idéia geral que ela quer transmitir com essa frase, ela decide começar consultando o verbete ostentação. No Roget's, ela descobre, como acontecerá na maioria dos dicionários de sinônimos, que os sinônimos são agrupados sob títulos de partes do discurso: substantivo, verbo, adjetivo, advérbio. Essa lista de sinônimos que aparece em cada classe gramatical pode ajudar o aluno a reformular sua frase. Aqui, ela gostaria de manter, se possível, "sedas, cetins e diamantes" na frase, porque são palavras concretas e sensoriais (a aluna acabou utilizando a gura de linguagem chamada sinédoque, em que o material representa a coisa feita a partir dele). Com base nos substantivos listados sob ostentação, ela experimenta várias

combinações: As senhoras fizeram uma exposição (ou mostra, apresentação, exibição) de suas sedas, cetins e diamantes.

Talvez adicionar o adjetivo vulgar (ou berrante, espalhafatoso, cintilante) revele seu juízo de valor, sua atitude em relação à cena: As senhoras fizeram uma exposição vulgar de suas sedas, cetins e diamantes.

Em seguida, ela experimenta alguns verbos sugeridos pelos sinônimos listados sob ostentação: exibir, expor, apresentar, ostentar, revelar. Por fim, decide usar o verbo ostentar, que combina todas as idéias que ela queria transmitir em sua frase original; e o verbo ostentar, por ser concreto e pitoresco, combina bem com a gura de linguagem que o segue. As senhoras ostentaram suas sedas, cetins e diamantes.

Um dicionário de sinônimos pode ser uma ajuda valiosa quando "a palavra apropriada no lugar apropriado" não se apresentar imediatamente. Mas os estudantes devem estar atentos para as tentações ofere-

fi

fi

472

ESTILO cidas por tal tesouro. Aqueles que passaram por um período de grande esforço para melhorar seu estilo se lembrarão de como era difícil às vezes resistir à tentação de substituir todas as palavras monótonas e or-

dinárias pelas palavras resplandecentes e polissilábicas descobertas em

um dicionário de sinônimos. Um aluno, por exemplo, pode escrever uma frase como esta:

Depois que o incêndio foi apagado, a polícia cercou a rua e impediu que os observadores passassem pelas ruínas carbonizadas.

Mas a frase está muito apagada, diz ele a si mesmo. Então, explorando sua mina lexicográfica em busca de algumas pepitas sesquipedais, ele enfeita sua frase monótona desta maneira: Extinta a conflagração, a polícia obstruiu a via pública e evitou que os espectadores curiosos perambulassem diante dos resíduos incinerados da catástrofe pirogênica.

Felizmente, os alunos que persistem em seus esforços para melhorar o estilo acabam superando sua propensão para tais anfractuosidades polissilábicas. Talvez o preço a pagar por um vocabulário rico seja um período de dependência de palavras "difíceis". A provação não causará danos permanentes se os alunos puderem "largar o hábito" em seus estágios iniciais. PUREZA, ADEQUAÇÃO E PRECISÃO DA DICÇÃO

Até agora, em nossa discussão sobre dicção, abordamos duas qualificações necessárias para melhorar o estilo: os estudantes devem saber a

gramática da língua e devem ter um vocabulário adequado. Nosso foco

daqui em diante será a competência retórica que os alunos devem ter para fazer escolhas sensatas entre as palavras. George Campbell distinguiu a competência gramatical da competência retórica desta forma: "A arte gramatical está para a arte retórica assim como o trabalho do pedreiro está para trabalho do arquiteto". A qualidade primordial da prosa é a clareza, ou, para usar o sonoro termo do latim, perspicuidade. Visto que o objetivo da prosa retórica é a persuasão, segue-se que tal prosa deve comunicar àqueles que serão

473

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO persuadidos. E se a prosa retórica deve comunicar, segue-se que deve,

acima de tudo, ser clara. Como se poderia esperar de quem conside-

rava a retórica como uma atividade que sempre envolvia um público, Aristóteles sustentava que "a linguagem que não transmite um signi-

ficado claro falha em desempenhar a própria função da linguagem".

Lord Macaulay, um dos mestres da prosa, colocou desta forma: "A primeira regra de toda escrita, à qual todas as outras estão subordinadas, é que as palavras usadas pelo escritor devem transmitir perfeitamente seu significado para a maioria dos leitores". A clareza vem da seleção e organização cuidadosa das palavras. Deixando de lado o problema da disposição por enquanto, como os escritores podem aprender a selecionar as palavras adequadas? Eles precisam ter em mente três critérios: pureza, adequação e precisão. É verdade que esses critérios dependem do contexto, do assunto, do propósito e do público, mas ainda é possível dizer algo sobre a pureza, a adequação e a precisão de palavras isoladas. A discussão sobre pureza de dicção nos envolve, quer queira quer não,

em uma consideração daqueles critérios muito difamados que George Campbell estabeleceu no século xvII para determinar o "bom uso". Para merecer o selo de aprovação, as palavras devem estar, de acordo com Campbell, em uso confiável, nacional e atual. Apesar da relatividade desses critérios, parece haver pouca dificuldade prática em usar pelo menos dois dos critérios (uso nacional e uso atual) para determinar se nossa dicção é "pura" e, portanto, clara. Se quisermos nos comunicar com um público contemporâneo, é lógico que devemos usar palavras e expressões idiomáticas atuais, isto é, palavras e expressões idiomáticas, por mais "antigas" que sejam, que são compreendidas pelas pessoas hoje em dia. Da mesma forma, devemos usar palavras que tenham circulação nacional. Este critério exige que evitemos palavras dialéticas,

palavras técnicas, palavras novas e palavras estrangeiras, mas isso é relativo. Se considerarmos as palavras em relação a uma audiência, por exemplo, veremos que algumas situações exigem regionalismos, jargões técnicos, neologismos e até palavras estrangeiras. Quando tentamos o terceiro critério, o uso confiável, encontramos mais dificuldades. Campbell propôs este padrão para detectar locuções

respeitáveis: "Quaisquer modos de discurso considerados bons pela obra de um grande número, senão da maioria, de autores célebres". 474

ESTILO Mas será que, em uma sociedade pluralista moderna, podemos chegar a qualquer consenso sobre quem são nossos "autores célebres"? Além

disso, se houver conflito sobre uma questão de uso entre dois "autores célebres", qual autor devemos seguir? Aquele que é mais célebre? E será que o indivíduo comum é capaz de determinar em todos os casos, ou mesmo em muitos casos, se uma determinada locução é aprovada por um "grande número" ou "a maioria" dos autores célebres?

Essas dificuldades práticas levam muitas pessoas a confiar em algum árbitro de uso. A melhor fonte de tal orientação é uma obra de referência que ousadamente afirma ser um árbitro. Felizmente, existem alguns bons dicionários de uso disponíveis. Esses dicionários oferecem

uma orientação confiável, porque os homens ou mulheres que os pre-

pararam tinham bom gosto lingüístico e refinaram seu gosto com um

estudo cuidadoso do uso real. A mais famosa dessas obras de referência é A Dictionary of Modern English Usage, de H. W. Fowler, publicado pela primeira vez em 1926,

mas muitas vezes reimpresso. Este livro se tornou uma Bíblia para muitos escritores e editores famosos. O próprio Fowler era lexicógrafo, tendo compilado, com a ajuda de seu irmão Francis George Fowler, The Concise Oxford Dictionary. Além do profundo conhecimento da língua

inglesa, Fowler tinha sentido de discernimento e escrevia com tanta graça e inteligência que ele próprio era um exemplo do "bom inglês" que defendia. Foi Fowler quem nos garantiu, de uma vez por todas, que às vezes é permitido, até aconselhável, dividir um infinitivo ou terminar uma frase com uma preposição [em inglês]. E ele criou expressões conhecidas para alguns dos títulos em seu dicionário organizado em ordem alfabética, como Battered Ornaments, Cannibalism, Elegant Variation, Out of the Frying Pan, Sturdy Indefensibles. Os alunos devem consultar A Dictionary of Modern English Usage

para descobrir por conta própria o valor desta admirável obra de referência Mas aqui vai um gostinho da inteligência e perspicácia de Fowler, tirado de seu artigo sobre o assunto que acabamos de discutir, pureza

de dicção: PURISMO. Vez ou outra, podemos ouvir alguém "confessar", com aquele orgu-

lho disfarçado de humildade, que é "um pouco purista"; mas purista e purismo,

475

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO em geral, são "palavras-mísseis", que lançamos contra qualquer um que nos insulta por julgar que não é bom o suficiente para ele algum modo de falar que

é bom o suficiente para nós. É nesse sentido depreciativo que as palavras são usadas neste livro; por purismo deve ser entendido uma insistência desnecessária e irritante na pureza ou correção da linguagem. O inglês puro, no entanto,

mesmo sem considerar o grande número de elementos (vocabulário, gramá-

tica, expressões idiomáticas, pronúncia e assim por diante) que o compõem,

é um termo tão relativo que quase todo homem é potencialmente purista e desleixado ao mesmo tempo para pessoas que olham para ele de uma posição inferior e superior à sua na escala. As palavras, portanto, não têm sido usadas com muita liberdade; que elas deveriam ser abandonadas por completo seria esperar demais, considerando o assunto do livro. Mas os leitores que encontram um uso estigmatizado como purismo têm o direito de saber o lugar dos estigmatizadores na escala purista, para que seu estigma tenha algum valor. Conseqüentemente, sob os títulos de vários assuntos com os quais o purismo está preocupado, alguns artigos são mencionados agora, para ilustrar o tipo de visão que pode ser esperada em outros artigos de natureza semelhante: [...J.?

Com o passar do tempo, o dicionário de Fowler foi ficando desatualizado, pelo menos em algumas questões de uso. E à medida que a lacuna entre o inglês britânico e o inglês americano se ampliou, os escritores americanos começaram a ver que a obra de Fowler não era relevante para algumas locuções que passaram a ser usadas nos Estados

Unidos. Para preencher a necessidade de um dicionário de uso atualizado que prestasse especial atenção ao inglês americano, a Oxford University Press publicou, em 1957, A Dictionary of American-English Usage, de

Margaret Nicholson. No prefácio, a Srta. Nicholson anuncia que seu livro é uma adaptação, não uma substituição do MEU, de Fowler. Ela manteve muitos dos longos artigos de Fowler, resumiu outros e acrescentou uma série de entradas próprias sobre americanismos modernos. Em 1965, a Clarendon Press publicou uma edição revisada de A Dictionary of Modern English Usage, de Sir Ernest Gower. Agora, a Clarendon Press em Oxford está desenvolvendo uma edição completamente nova de A Dictionary of Modern English Usage, de Fowler.

2 H. W. Fowler, A Dictionary of Modern English Usage, Oxford University Press, pp. 474-75. Copyright © 1965 da Clarendon Press, Oxford University Press. Reproduzido com permissão.

476

ESTILO Em 1957, Bergen Evans e Cornelia Evans publicaram um dicionário

de uso americano completamente novo, A Dictionary of Contemporary American Usage (Random House). Os escritores que são leais a Fowler continuarão a usar devido a apenas em estruturas adjetivas (sua ausência

foi devido a doença, mas não o governo falhou devido ao descontentamento

generalizado com suas políticas). Mas aqueles escritores que passaram a

confiar no estudo meticuloso que os Evans fizeram sobre o uso real provavelmente serão guiados por esta declaração sobre o estado atual de devido a: devido a pode ser usado para qualificar um substantivo, como em um erro devido ao descuido. Este uso de devido a foi considerado pelo Dr. Johnson

como "adequado, mas não usual". Desde então, tornou-se uma forma familiar

de discurso e ninguém pensa em se opor a ela. Mas as palavras também são usadas hoje para qualificar um verbo, como em ele falhou devido ao descuido. Esta construção é relativamente nova e é condenada por alguns gramáticos. Em ambos os casos, as palavras devido a estão sendo usadas como em razão de. Alega-se que devido a é aceitável no primeiro caso, mas não no segundo, e

que apenas a forma em razão de pode ser usada com um verbo. Esta distinção

não pode ser defendida em bases teóricas, uma vez que devido a e em razão de são gramaticalmente semelhantes. Os críticos geralmente se contentam em dizer que "devido a não pode ser usado para qualificar um verbo". Mas é usa-

do para quali car um verbo, milhões de vezes todos os dias. E é usado desta forma em lugares muito respeitáveis. Uma placa na frente da Old State House

na Filadélfia diz: Aqui o Congresso Continental reuniu-se, desde a data de sua convocação, em 10 de maio de 1775, até o fim da Revolução, exceto quando, em

1776-77, a reunião ocorreu em Baltimore, e em 1777-78, em Lancaster e York, devido à ocupação temporária da Filadélfia pelo exército britânico. (Ver também

razão)?

Qualquer um dos três dicionários de uso que apresentamos seria uma aquisição valiosa para sua biblioteca. Se seu dicionário não esclarece suas dúvidas sobre a "pureza" de uma determinada expressão, um dicionário de uso pode ajudar bastante. Você deve tomar cuidado, entretanto, para não desenvolver uma preocupação neurótica com o

3

Bergen Evans e Cornelia Evans, A Dictionary of Contemporary American Usage. Copyright © 1957. Reproduzido com permissão da Random House Inc.

fi

477

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO uso. Se as escolas americanas se preocupassem tanto com a gramática, a lógica e a retórica quanto com o "bom uso", a qualidade da escrita dos

alunos hoje em dia seria muito melhor do que geralmente é. O principal ponto a ser enfatizado sobre a pureza da dicção é que a

linguagem deve ser inteligível e aceitável para o público. Há um certo nível de dicção abaixo do qual um orador ou escritor jamais irá, por mais rude e iletrado que seja o público. Existe um grande reservatório de palavras básicas que sempre serão inteligíveis e aceitáveis. Os desvios

dessas palavras serão governados pela natureza do público a que nos dirigimos.

A adequação ou apropriação é a qualidade da dicção que menos

pode ser julgada isoladamente, pois sempre implica um juízo feito em relação a alguma outra coisa. Podemos olhar para palavras isoladas e determinar se elas são atuais, nacionais ou confiáveis, mas é impossível julgar a adequação de palavras isoladas. A dicção é apropriada quando se adequa ao assunto, ao propósito, à ocasião e ao público. Infelizmente, não existem manuais para julgar a adequação da dicção. Todo ser humano parece dotado de um senso mínimo de adequação, devido à experiência de viver em sociedade. Instintivamente, "tonificamos" nossa linguagem cotidiana quando passamos de uma situação em que estamos nos dirigindo a nossos colegas e familiares para uma situação em que estamos nos dirigindo, digamos, ao reitor da faculdade. Fazemos ajustes semelhantes em nossa dicção de acordo com o assunto, a ocasião e o propósito. Os refinamentos desse senso mínimo de adequação virão naturalmente, com a experiência e o estudo, e se desenvolverão com base em nossa inteligência e nossos esforços conscientes para fortalecê-lo. Assim

como certas pessoas parecem herdar e desenvolver a capacidade de se

relacionar com os outros, algumas desenvolvem um senso mais aguçado para a adequação da linguagem.

Envolvidas nesta questão de adequação estão as conotações das palavras. Quando estamos preocupados com a pureza ou precisão da

dicção, estamos voltados principalmente para as denotações das palavras, ou seja, seu significado básico, mas, em nossa escolha da dicção apropriada, também devemos levar em consideração suas conotações, ou seja, as qualidades emocionais e tonais associadas às palavras. Não podemos controlar as conotações que uma palavra acaba assumindo;

478

ESTILO podemos apenas estar cientes dessas conotações e tirar proveito delas. Faz uma grande diferença chamar alguém de "político" ou "diplomata".

Por causa das conotações associadas a essas duas palavras, a primeira palavra tende, na maioria dos casos, a desonrar o indivíduo, enquanto a segunda tende a honrá-lo. As conotações das palavras têm grande valor retórico (por exemplo, ao promover o apelo emocional de um discurso). Robert H. Thouless demonstrou habilmente o valor emocional das conotações em sua análise da dicção de dois versos de John Keats. Em A véspera de Santa Inês, Keats escreveu:

O luar de inverno cintilava nos vitrais,

Espargindo raios rubros nos alvos seios de Madeline.

Lindos versos. Notemos quanto de sua beleza decorre da escolha adequada de

palavras com cores emocionais e como isso se perde completamente se essas palavras forem substituídas por palavras neutras. As palavras com significados surpreendentemente emocionais são vitrais, rubros, Madeline, alvos e seios. Vitrais significa simplesmente uma espécie de janela com associações emocionais

e românticas. Rubros é o nome heráldico do vermelho, com a sugestão de romance que acompanha toda heráldica. Madeline é simplesmente um nome feminino, mas que evoca emoções favoráveis, ausentes em um nome relativamente simples e direto. Alvos significa simplesmente, na verdade objetiva, que

sua pele era branca ou sem cor, condição necessária para que se vissem os re-

flexos da janela, mas também indica uma preferência emocional por uma pele descolorida em vez de amarela, roxa, preta ou qualquer uma das outras cores que a pele possa ter. Seios também tem significados emocionais semelhantes, e o objetivo de descrição científica poderia ter sido igualmente alcançado se esse

termo tivesse sido substituído por uma palavra neutra como peito.

Experimentemos agora manter a métrica desses dois versos, mas substituindo todas as palavras com teor emocional por outras neutras, fazendo o míni-

mo de mudanças possível. Podemos dizer:

O luar de inverno cintilava na janela,

Produzindo reflexos vermelhos no peito branco de Madeline.

479

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Ninguém duvidará de que todo o valor poético se perdeu com essas mudanças,

embora os versos ainda tenham o mesmo significado objetivo. Isso acontece porque foi o significado emocional que foi destruído.4

Você provavelmente já sabe que os poetas exploram os valores emocionais das palavras, mas talvez nem sempre repare nos efeitos emocionais sutis exercidos pela conotação em um texto em prosa. Diante da evidência de The American Language, estudo acadêmico do inglês americano, em três volumes, de H. L. Mencken, devemos admitir que ele tinha um conhecimento profundo de sua língua nativa, mas talvez você não saiba como ele manipulou as conotações das palavras para alcançar seu propósito retórico. Considere este exemplo, em que Mencken está tentando influenciar nossa atitude em relação a um certo tipo de professor: Esses idiotas, apesar do surgimento da pedagogia "científica", não despareceram. Acredito que nossas escolas estão cheias deles, tanto de pantalonas quan-

to de saia. Existem fanáticos que amam e veneram a ortografia como um gato

ama e venera a erva-dos-gatos. Existem gramatomaníacos; professorzinhos que preferem analisar a comer; especialistas em casos objetivos que não existem em inglês; seres estranhos, mas sãos e até mesmo inteligentes e atraentes,

que sofrem com um infinitivo dividido como você e eu sofreríamos com uma gastroenterite. Existem malucos por geografia, capazes de ligar a Mesopotâmia e o Baluquistão. Existem fanáticos por divisões longas, especialistas em

tabuada, adoradores lunáticos do teorema binomial. Mas o sistema os mantém sob controle, combatendo seu entusiasmo natural de forma diligente e impla-

cável, tentando convertê-los em meros técnicos ou máquinas canhestras!

Não podemos examinar todas as técnicas utilizadas por Mencken em seus escritos satíricos, mas podemos observar aqui a maneira sutil como

ele provoca nossas reações simplesmente com escolha de palavras. Boa parte do efeito deste trecho é produzida pelos "insultos" de Mencken, fortemente carregados de conotações emocionais: idiotas, fanáticos, professorzinhos (um de seus epítetos depreciativos favoritos), malucos, ado-

4 Robert H. Thouless, How To Think Straight. Holder e Stoughton Ltd., Copyright 1932 de Robert

H. Thouless.

5

H. L. Mencken, "Pedagogy", em A Mencken Chrestomathy, Nova York: Alfred A. Knopf, 1949, p.

305. Reproduzido com permissão do editor.

480

ESTILO radores lunáticos. Todas essas palavras carregam a conotação desabona-

dora de compromisso extremo e irracional com uma causa: a mancha

de "entusiasmo" que muitos críticos atribuíam às seitas evangélicas na Inglaterra dos séculos xvIII e xIx. Onde Mencken não encontra um epíteto emocional adequado a seu propósito, ele inventa um: gramatomaníacos. A maioria dos leitores não sabe o que significa gastroenterite, mas nem precisam saber, pois a palavra sugere algo horrível. Observe como Mencken, na segunda frase deste trecho, indica que está falando de professores e professoras: "[...] tanto de pantalonas quanto de saia". Pantalonas foi uma escolha especialmente inteligente. Calça teria sido a palavra que a maioria de nós teria escolhido como contrapartida de saia, mas Mencken detectou o valor conotativo extra da palavra pantalonas, sugerindo ao público moderno algo arcaico, ligeiramente feminino. Observe também como Mencken usa um símile na terceira frase para depreciar o objeto de sua sátira, comparando os devotos da gra a correta ao humilde gato de rua. Uma das palavras mais fatais é mero. Mencken usa essa palavra com e cácia devastadora no nal desta passagem, onde começa a mudar seu campo de ataque, observando que esses pedagogos "entusiasmados" agora correm o risco de se tornarem

máquinas frias como resultado de sua exposição ao contra-senso da "fa-

culdade de professores". O que é mais assustador do que ser chamado de "mero técnico"? Vemos, então, que as conotações das palavras não podem ser igno-

radas em nenhum julgamento sobre a adequação da dicção. E a sensi-

bilidade em relação a essas conotações não pode ser ensinada: deve ser desenvolvida. O que é ainda mais difícil para o aluno adquirir é bom senso para saber até onde explorar a força emocional das conotações. Mencken talvez vá longe demais na passagem que acabamos de considerar. Na maior parte de seus escritos satíricos, ele con ou demais na técnica de choque derivada do uso de dicção simplista e hiperbólica.

Resultado: essa linguagem descomedida acaba afastando as pessoas mais do que persuadindo. O excesso de inteligência às vezes pode ser burrice. Ninguém precisa de uma marreta para cravar um prego. Voltamo-nos agora para a terceira qualidade: a precisão. A palavra precisão tem suas raízes no verbo latino praecidere, "cortar". Uma palavra precisa é aquela despojada de todas as noções supérfluas e irrelevantes, que significa exatamente o que pretendemos dizer, nem mais, nem

fi

fi

fi

fi

481

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO menos. As palavras podem ser taxadas de "imprecisas": (1) quando não

expressam exatamente o que pretendíamos dizer; (2) quando expressam

a idéia, mas não totalmente; (3) quando expressam a idéia, mas com

algo a mais do que pretendíamos. Se escrevermos: "Fiquei satisfeito com seu elogio pomposo", talvez não tenhamos dito o que pretendíamos dizer. Se consultarmos o significado de pomposo no dicionário ("repugnante ou ofensivo, principalmente por seu excesso ou falta de sinceridade"), veremos o quão longe do alvo chegamos. Se escrevermos: "Achei a performance incrível", transmitimos a idéia geral de que aprovamos a performance, mas não passamos a idéia exata de como essa performance foi "incrível". Se escrevermos: "As analisar as falhas básicas da situação, ele encontrou uma solução radical para o problema", escolhemos uma palavra adequada, radical (uma solução que chega à raiz do problema), mas inadvertidamente sugerimos um significado adicional que não pretendíamos (uma solução extravagante ou subversiva). Uma palavra, então, será inexata se expressar muito pouco, demais ou se for muito geral.

Talvez seja melhor abordar os erros no uso de expressões idiomáticas aqui do que sob o título de dicção pura, pois, como a dicção citada no parágrafo anterior, a expressão idiomática incorreta "erra o alvo", pela imprecisão. A razão pela qual os lapsos nessa área constituem uma das falhas mais comuns nos textos dos alunos é que as expressões idiomáticas, assim como a conotação, são aspectos ardilosos da linguagem. Os

dicionários e manuais de uso serão mais úteis em questões de expressões idiomáticas do que em questões de conotação, mas o guia mais confiável para corrigir as expressões idiomáticas é a própria percepção de como a língua nativa é falada. Aqueles que não leram muito ou que não prestaram muita atenção aos modos de falar são os que têm maior probabilidade de violar as expressões idiomáticas do idioma. O termo "modos de falar" na frase anterior sugere uma observação importante sobre as expressões idiomáticas. Nenhuma palavra, considerada isoladamente, pode ser declarada não-idiomática. Se dissermos que "falantes nativos do idioma não usam essa palavra", estamos dizendo simplesmente que tal palavra não existe na língua. Uma palavra pode ser classificada como não-idiomática apenas em relação a alguma outra palavra (ou palavras). Ninguém poderia dizer que a palavra for [em inglês) é não-idiomática; ou ela existe em inglês, ou não existe.

482

ESTILO For pode se tornar não-idiomática apenas quando é usada em conjunto

com outra palavra, como com a palavra unequal, na frase: The judge

proved to be unequal for the task. Nesse caso, podemos observar que falantes nativos da língua não usam a preposição for com unequal; eles dizem "unequal to the task".

O que complica é que a gramática não ajuda o aluno a tirar conclusões sobre as expressões idiomáticas. Não há nada agramatical na locução "unequal for the task". As expressões idiomáticas estão relacionadas ao uso, não à gramática: falantes nativos simplesmente não dizem unequal for. Nem a lógica ajuda muito aqui. Quando dizemos, por exemplo, he looked up the word in the dictionary [ele localizou a palavra

no dicionário], estamos, em certo sentido, violando a lógica, porque

quando consultamos uma palavra no dicionário, é mais provável que

precisemos look down [olhar para baixo] na página para encontrar a palavra do que look up [olhar para cima]. Mas look up é a expressão correta, simplesmente porque é assim que as pessoas falam. As vezes, os prefixos das palavras fornecem uma pista para a preposição idiomática que acompanha essas palavras. Dizemos: "a multidão debandou do lugar", "o peixe emergiu do aquário", "ele é adverso à proposta", "eles a compararam com a primeira versão", "a perua colidiu com a motocicleta", "ele se absteve de todas as bebidas alcoólicas". Mas o significado léxico desses prefixos latinos nem sempre indica a preposição adequada, pois também dizemos: "Em contraste a" (assim como "em contraste com"), "a multidão debandou para o lugar," "ela o comparou a um urso".

Visto que nem a gramática nem a lógica são confiáveis quando o assunto é expressão idiomática, devemos prestar atenção à maneira peculiar como os falantes nativos da língua dizem certas coisas. Talvez o grau máximo de domínio de uma língua estrangeira seja saber usar as expressões idiomáticas dessa língua.

Todos sabem que a melhor maneira de sintonizar nossos ouvidos com as expressões idiomáticas de uma língua estrangeira é viver por um tempo em um lugar onde só se fala essa língua. Portanto, para aprender as expressões idiomáticas de nossa própria língua, devemos ouvir o que

falam ao nosso redor e observar cuidadosamente os modos de falar na prosa contemporânea que lemos. Os professores podem apontar erros nas expressões idiomáticas e corrigi-las no texto, mas na ausência

483

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO de quaisquer "regras" sobre o assunto, devemos desenvolver um senso próprio para as idiossincrasias de expressão. Devemos prestar atenção

não somente nas expressões idiomáticas apropriadas, mas também nas mudanças sutis de significado e tom produzidas por elas. Em um artigo sobre a preposição idiomática, John Nist ilustrou alguns caprichos das expressões idiomáticas:

Doting grandparents may indulge in loving pride and make over a favorite one-toothed blue-eyed darling. But a pouting lover had better make

up with his sweetheart first; his chances of making out are otherwise very slim. An imbiber can conceivably be sleeping in while sleeping out for the sole sake ofsleeping it off. How many a long-suffering son-in-law has

had a run in with her whose kiss is colder than a mackerel because he intended to run out on his wife by running off with the understanding secretary? One of the favorite maxims of chilly age for flaming youth goes

like this: Be careful how you live it up; you may never live it down! A philosopher chews upon a difficult thought; an able prosecutor chews up the defense attorney's arguments; a catcher chews over the signals with his pitcher; a diner chews around the bone; and an angry man chews out his offensive neighbor. A cutup at the party may cut out from the stag line and cut in on the belle of the ball. And he who goes all out in tracking down the tricky idiomatic preposition will undoubtedly find himself all in.

— John Nist, "The Idiomatic Preposition". Muitas outras observações podem ser feitas sobre a dicção: ela deve ser "natural", "vigorosa", "concreta", "graciosa", "harmoniosa", mas es-

ses epítetos representam apenas maneiras alternativas de dizer que a dicção deve ser pura, adequada e precisa. Além disso, nossos julgamen-

tos sobre a naturalidade, vigor, concretude, graciosidade e harmonia da dicção (ou, para usar nossos próprios termos, a pureza, adequação e precisão da dicção) serão mais acertados se considerarmos a dicção no contexto de uma frase e em relação ao nosso propósito retórico. Em algumas ocasiões, por exemplo, nosso propósito pode exigir que nossa dicção seja artificial, débil, abstrata, deselegante ou inarmoniosa. 6 Com permissão. Extraído de uma edição de dezembro do Word Study © 1963 por Merriam-Webster Inc., editora dos dicionários Merriam-Webster.

484

ESTILO Em resumo: como as palavras são os blocos de construção de nossas

frases, é óbvio que devemos ter um suprimento adequado de palavras

para erguer o tipo de edifício que planejamos. Quando nosso estoque de palavras é baixo, temos de fazer algum esforço para aumentá-lo.

Nosso vocabulário prático crescerá naturalmente com a experiência e o estudo, mas podemos acelerar o processo com muita leitura e constantes consultas a dicionários e tesauros. Como queremos nos comunicar

com os outros, é lógico que nossa dicção deve, antes de mais nada, ser inteligível, isto é, inteligível para um determinado público. Será principalmente o público que determinará se podemos usar palavras cultas, termos técnicos, palavras estrangeiras ou gíria. A audiência, o assunto, a ocasião e nosso propósito constituem os critérios para julgar a adequação de nossa dicção. Além de escolher uma dicção inteligível e

apropriada, devemos escolher uma dicção tão precisa quanto a situação permite e exige. Dicionários e manuais de uso ajudarão a resolver alguns de nossos problemas com uso, expressões idiomáticas e conotação, mas devemos desenvolver nossa própria sensibilidade a esses aspectos da linguagem.

COMPOSIÇÃO DA FRASE Palavras são símbolos de idéias, mas não "dizem" nada enquanto não as juntamos. As frases, que são unidades sintáticas compostas de palavras, "dizem" algo, em parte por causa do conteúdo lexical (o significado) das palavras e em parte por causa das formas gramaticais que governam

as palavras reunidas em padrões. Até agora, falamos sobre o aspecto lexical das palavras. Ao passarmos para a discussão sobre composição

da frase, devemos começar a nos preocupar com a sintaxe. Por fim, seremos levados a uma discussão sobre outro aspecto da linguagem: como as formas retóricas das frases, os esquemas, constituem um terceiro portador de significado.

Como observamos na seção anterior sobre escolha de dicção, para desenvolver um estilo, o indivíduo precisa ter um domínio básico da gramática da língua. Presumimos que o estudante possui esse domínio

básico e, portanto, está pronto para desenvolver a competência retórica de que necessita para compor frases eficazes.

485

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO A competência retórica desempenha seu papel no processo de escrita

quando há escolhas a serem feitas entre duas ou mais possibilidades gramaticais. Variações estilísticas na sintaxe da frase não podem igno-

rar a gramática da língua. Todas as mudanças que fizermos devem ser

gramaticais. Como ponto de partida para nossa discussão sobre a retórica da frase, tomemos esta frase mínima: O menino ama a menina.

Os falantes nativos da língua reconhecem isso como um padrão de

palavras que formam uma afirmação. Eles conhecem o significado

das palavras e estão familiarizados com a gramática da frase: a palavra

funcional o, a concordância exional entre o sujeito e o predicado e a ordem das palavras. Quem quiser fazer uma a rmação, neste idioma, sobre certa atitude emocional de um jovem macho da espécie humana por uma jovem fêmea da mesma espécie encontrará limitação nas palavras que podem ser escolhidas para expressar tal idéia e mais ainda na maneira como essas palavras podem ser ordenadas para dizer o que se pretende. No que diz respeito à retórica, há muito pouco que possamos fazer com esta frase. Podemos fazer algumas escolhas diferentes de pa-

lavras (substantivos próprios para prefaciar o menino e a menina ou um verbo sinônimo para substituir ama) para tornar a frase retoricamente

mais eficaz, mas não há quase nada que possamos fazer para alterar a

gramática da frase. Não podemos dizer "menino ama menina" ou "ama o menino a menina". Não. Devemos dispor quaisquer palavras que es-

colhermos no padrão usual de uma afirmação, sujeito-verbo-complemento (s-V-c), e usar as formas flexionais adequadas.

A importância da retórica está na ampliação desse padrão de frase

mínima. Existem várias maneiras de ampliar essa frase e, dentro de cada uma dessas maneiras, geralmente existem alternativas, o que sig-

nifica que existem escolhas a serem feitas; e uma vez que escolhas devem ser feitas, a retórica entra em cena. Uma das maneiras de ampliar nossa frase mínima é adicionando modificadores (uma palavra, frase ou oração) à palavra principal no s, v ou c. Por exemplo: O menino alto e bonito ama sinceramente a menina baixa e feia.

fi

fl

486

ESTILO Podemos alterar a ordem de qualquer um desses modificadores? Sim,

podemos fazer algumas mudanças (mudanças que são gramatical e lingüisticamente possíveis, mas nem sempre estilisticamente aconselháveis). Por exemplo, podemos fazer estas alterações: O alto e bonito menino ama sinceramente a menina baixa e feia.

Os adjetivos modificadores também podem ser colocados antes da palavra principal no complemento: ...] ama sinceramente a baixa e feia menina. Outra ordem possível é: Alto e bonito, o menino ama a menina baixa e feia, sinceramente.

Poderíamos escolher esta ordem, por exemplo, se quiséssemos enfatizar a altura e beleza do menino e a sinceridade de seu amor pela menina. Outra maneira de ampliar a frase mínima é usar frases preposicio-

nais como modificadores de uma ou todas as palavras principais no padrão s-v-C: O menino de Montana ama, com fervor incomum, a menina de Missouri. Frases preposicionais usadas como modificadores adjetivos são quase

sempre colocadas após o substantivo ou pronome que modificam. Existem alguns casos, no entanto, em que a frase preposicional usada

adjetivamente será colocada antes do substantivo que ela modifica. Por exemplo: Sobre esse acontecimento, ele não recebeu nenhum aviso com antecedência.

(Aqui, a frase sobre esse acontecimento modifica aviso).

As frases preposicionais usadas adverbialmente têm mais liberdade de movimento do que as frases preposicionais usadas adjetivamente. Existem três outros lugares onde com fervor incomum poderia ser colocado em nossa frase: Com fervor incomum, o menino de Montana ama a menina de Missouri.

O menino de Montana ama a menina de Missouri com fervor incomum. O menino de Montana, com fervor incomum, ama a menina de Missouri.

Existem várias outras maneiras de ampliar nossa frase mínima:

487

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 1. Aumentar as palavras principais no padrão s-v-c.

2. Justapor aposições às palavras principais no padrão s-v-c.

3. Usar verbos ou locuções verbais (com particípio, gerúndio e in nitivo)

no padrão s-v-c. 4. Usar orações substantivas para servir como s ou C no padrão s-v-c.

5. Usar orações adjetivas para modi car a palavra principal s ou c no pa-

drão s-v-c. 6. Usar orações adverbiais para modi car o v no padrão s-v-c.

Poderíamos continuar, ilustrando esses métodos de ampliação da frase, e investigar as alternativas (se houver) na ordem das palavras de cada um desses métodos, mas podemos prosseguir com essas questões

observando a gramática estrutural e transformacional agora disponível. Esta breve excursão pela sintaxe da frase serve para dar uma idéia geral do que queremos dizer com retórica da frase.

Diante de uma série de escolhas sintáticas, todas elas gramatical e lingüisticamente possíveis, elegeremos a possibilidade que melhor atende ao nosso propósito no momento. Se, por exemplo, uma das possibilidades nos permite colocar uma palavra ou expressão em uma posição enfática e se a ênfase nessa palavra ou frase é o que queremos naquele momento, devemos aproveitar essa possibilidade. Há momentos em que queremos diminuir a ênfase de uma palavra ou expressão e, nesse caso, devemos eleger a possibilidade que "esconderá" a palavra

ou expressão em algum lugar dentro da frase. Podemos eleger outra possibilidade gramatical com base no fato de que essa disposição das palavras melhorou o ritmo da frase. Às vezes, podemos rejeitar uma possibilidade gramatical por causa da ambigüidade. (Tal seria o caso do "modificador distribuído" na frase: "O mestre da banda desfilou corajosamente girando uma batuta"). E é claro que às vezes elegemos uma possibilidade gramatical somente para evitar a monotonia da estrutura

frasal. Há outro ponto a ser observado aqui sobre a retórica da frase. O estilo, assim como a gramática, faz parte do sistema de expressão de uma língua. Assim como os recursos gramaticais (a ordem e as inflexões das palavras, por exemplo) são portadores de significado, as formas das fra-

ses, os esquemas, como diziam os retóricos da Renascença, também expressam significado. Por exemplo, consideremos o artifício retórico do

fi

fi

fi

488

ESTILO paralelismo. Quando temos que expressar uma série de "significados" semelhantes ou equivalentes, geralmente recorremos ao artifício gramatical da coordenação e reforçamos o valor coordenado dos elementos compostos com o artifício retórico do paralelismo. Podemos ilustrar como o paralelismo serve para exprimir significado observando uma frase em que ele é uma característica pronunciada: Espera-se que ele [o presidente de uma grande e complexa universidade] seja

um amigo dos alunos, um colega do corpo docente, um bom sujeito com os ex-alunos, um administrador confiável para os curadores, um bom orador para o público, um astuto negociador com as fundações e as agências federais,

um político com os poderes legislativos estaduais, um amigo da indústria, do trabalho e da agricultura, um diplomata persuasivo com os doadores, um defensor da educação em geral, um defensor das profissões (especialmente direito e medicina), um porta-voz da imprensa, um estudioso por seus próprios méritos, um servidor público nos níveis estadual e nacional, um devoto da ópera e do futebol na mesma medida, um ser humano decente, um bom marido e pai, um membro ativo da igreja (de Clark Kerr, The Uses of the University)?

Esta é uma frase incomumente longa, mas tão bem articulada que transmite seu significado com clareza. A ampliação, que ocorre toda na parte complementar da frase, é realizada com uma série de estruturas paralelas. O aluno pode aprender toda a arte do paralelismo com um estudo atento desta frase memorável. Uma análise da frase revela vários níveis de paralelismo e variação suficiente no padrão básico para quebrar o ritmo monótono. O padrão básico é este: artigo definido

substantivo

frase preposicional

um um

amigo

dos alunos

colega

do corpo docente

O Dr. Kerr varia o ritmo desse padrão básico de várias maneiras: (1) introduzindo um adjetivo antes do substantivo ("um bom sujeito com os ex-alunos"); (2) lançando mão de um advérbio ("um defensor da educa-

7 Copyright © 1963. Reproduzido com permissão da Harvard University Press.

489

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO ção em geral"); (3) inserindo um parêntese ("especialmente direito e medicina"); (4) combinando os objetos da preposição ("um amigo da indústria, do trabalho e da agricultura") ou os adjetivos que modificam o objeto da preposição ("um servidor público nos níveis estadual e nacional"). A principal idéia que queremos mostrar com esta frase, no entanto, é que a forma retórica é uma das portadoras de significado. O tema do ensaio do Dr. Kerr é que a universidade moderna se tornou tão grande e complexa que ela não pode mais ser considerada uma universidade,

devendo ser chamada de multiversidade. O que ele está enfatizando na seção do ensaio da qual a frase acima foi tirada é que o presidente de tal multiversidade deve desempenhar várias funções, deve ser muitas coisas para muitas pessoas. Nesta frase, ele enumera algumas das funções que se espera que o presidente exerça, usando uma série de expressões. Essa coordenação (sem conjunções, em sua maior parte) é

um dos recursos de expressão para indicar a variedade de papéis que o

presidente deve desempenhar. Mas, como o Dr. Kerr também deseja indicar que se espera que o presidente desempenhe cada uma dessas funções igualmente bem, ele usa o artifício do paralelismo, que serve para reforçar o valor coordenado dessas várias capacidades. O Dr. Kerr não espera que seu leitor se lembre de todos esses papéis; ele quer apenas transmitir a impressão geral do pesado fardo que o presidente carrega.

Aliás, o comprimento da frase também tem função retórica: a longa enumeração pesa e é exaustiva para o leitor, assim como o trabalho para • presidente.

Na próxima frase, mas uma, o Dr. Kerr faz uso da antítese, outro artifício retórico, para transmitir a noção das qualidades contrárias que o presidente deve combinar em sua personalidade. Eis uma frase de 110 palavras: Ele deve ser firme, mas gentil; sensível aos outros, insensível a si mesmo; olhar

para o passado e o futuro, mas estar firmemente instalado no presente; ser visionário e seguro; afável, mas reflexivo; conhecer o valor de um dólar e perceber que idéias não podem ser compradas; ser inspirador em suas visões, mas cauteloso no que faz; um homem de princípios, mas capaz de negociar; um homem com visão ampla que seguirá os detalhes conscienciosamente; um bom americano, mas pronto para criticar o status quo sem medo; um buscador da

verdade onde a verdade não doa tanto; um manancial de pronunciamentos

490

ESTILO públicos quando eles não refletem sobre sua própria instituição (de Clark Kerr, The Uses of the University).s

Os vários níveis de paralelismo e antítese nesta frase têm a seguinte aparência quando dispostos de forma esquemática: Ele deve ser firme / mas gentil sensível (aos outros) / insensível (a si mesmo)

olhar (para o passado e o futuro) / mas estar firmemente instalado

(no presente) ser visionário / e seguro afável / mas reflexivo conhecer o valor de um dólar / e perceber que idéias não podem ser compradas ser inspirador (em suas visões) / mas cauteloso (no que faz)

um homem (de princípios) / mas capaz (de negociar) [a antítese persiste, mas o paralelismo é violado: um substantivo, homem, unido a um adjetivo, capaz, homem modificado por frase preposicional, mas capaz modificado por frase infinitiva]

um homem com visão ampla que seguirá os detalhes conscienciosamente [mais uma vez, a antítese está nas palavras, visão ampla | detalhes, não na estrutura] um bom americano / mas pronto (para criticar o status quo sem medo) [abandono do paralelismo novamente]

um buscador da verdade onde a verdade não doa tanto um manancial de pronunciamentos públicos quando eles não re etem sobre sua própria instituição.

Como deixaremos claro ao abordar as guras de linguagem, os retóricos costumavam associar os vários esquemas e tropos aos tópicos de 8 Copyright © 1963. Reproduzido com permissão da Harvard University Press.

fi

fl

491

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO logos, pathos e ethos. A antítese, por exemplo, estava ligada ao tópico da

dessemelhança ou ao tópico dos contrários. No livro I da Retórica, Aristóteles apontou o valor da antítese no discurso: "O estilo, quando apresenta essa forma, gera satisfação porque os contrastes (contrários)

são de facílima compreensão e quando colocados um ao lado do outro, são ainda mais facilmente compreensíveis". Se o Dr. Kerr estava ciente da teoria da antítese, não importa. O importante é que, ao justapor seus

"contrastes", ele conseguiu transmitir melhor o que queria dizer.

Até este ponto, concentramo-nos apenas em alguns recursos estilís-

ticos: ordem das palavras, métodos de ampliação, paralelismo, antítese. Agora, abordaremos uma gama mais ampla de características estilísticas, não só para saber quais são essas várias características e como elas funcionam, mas para obter o máximo benefício dos exercícios de imitação apresentados mais adiante neste capítulo e poder incorporar alguns desses recursos em nosso próprio estilo.

ESTUDO ESTILÍSTICO Antes de poder beneficiar-se de uma observação atenta das características estilísticas, devemos ter alguma técnica para analisar o estilo da prosa. Como você passou pouco tempo (ou nem isso) analisando esse estilo, talvez não saiba o que procurar em frases e parágrafos. Sem dúvida, você ficou impressionado com o estilo de certos escritores de

prosa, mas quase gaguejou quando lhe pediram para apontar o que você admira particularmente no estilo deles. O melhor que você pode fazer é caracterizar vários estilos com epítetos gerais e subjetivos como "claro", "nítido", "urbano", "grandiloquente", "caprichoso", "pesado", "fluido", "staccato". A nova crítica deu aos alunos uma técnica e uma

terminologia para analisar poesia, mas a maioria deles não sabe por onde começar se tiver que analisar o estilo de um texto em prosa. Primeiro, esbocemos as características a procurar ao analisar um texto em prosa. A. Tipos de dicção 1. geral ou específica

2. abstrata ou concreta

3. formal ou informal

492

ESTILO 4. latina (geralmente polissilábica) ou anglo-saxã (geralmente monossilábica) 5. palavras comuns ou jargão

6. referencial (denotativa) ou emotiva (conotativa) B. Comprimento das frases (medido em número de palavras)

c. Tipos de frase 1. gramatical: simples, composta, complexa, complexa composta

2. retórica: livre, periódica, equilibrada, antitética 3. funcional: afirmação, pergunta, imperativo, exclamação D. Variedade de padrões de frases

1. inversões 2. iniciadores de frase 3. método e localização de ampliação

E. Eufonia da frase F. Meios de articulação de frases (artifícios de coerência)

G. Figuras de linguagem

H. Divisão em parágrafos 1. extensão (medida em número de palavras e número de frases)

2. tipo de movimento ou desenvolvimento nos parágrafos

3. uso de artifícios de transição 1. Relatório de um aluno sobre estudo estilístico

A maioria dos itens neste esboço representa características que se prestam ao estudo objetivo. Algumas das combinações "ou/ou" no "tipo de dicção" são relativas, e as opiniões sobre elas podem variar. Mas, como dissemos, a maioria dos recursos se presta ao estudo objetivo da mesma forma que os recursos gramaticais (ordem das palavras, flexões, palavras funcionais). Existem inúmeras características de estilo sobre

as quais talvez nunca cheguemos a um consenso, mas, se quisermos desenvolver um sistema para analisar a prosa, devemos começar com aquelas características que são objetivamente observáveis.

TIPOS DE DICÇÃO

O tipo de dicção que um escritor costuma usar pode nos dizer muito sobre a qualidade de sua mente e estilo. Afirmamos anteriormente que

493

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO um escritor deve dominar vários estilos, para que possa adaptar sua visão a vários assuntos, ocasiões, propósitos e públicos, mas, mesmo dentro dessa gama de estilos, haverá um estilo preponderante associado

a esse autor. O Dr. Johnson e Oliver Goldsmith demonstraram sua versatilidade experimentando vários gêneros literários, mas quer estivessem escrevendo poemas, peças, romances, textos familiares ou ensaios críticos, eles mantiveram um traço peculiar que caracterizava seu estilo. Esse traço peculiar foi alcançado, em parte, pelo tipo de dicção que eles usavam: a dicção filosófica, polissilábica e latina de Johnson; a dicção concreta, familiar e coloquial de Goldsmith. O "peso" do estilo de uma pessoa pode ser medido, em parte, pela composição silábica das palavras. O "tom" do estilo pode ser medido, em parte, pela textura das palavras, ou seja, seus valores fônicos, sua abstração ou concretude relativa, seu nível de uso. Os julgamentos sobre a formalidade ou informalidade do estilo baseiam-se, principalmente, no nível de dicção usado. COMPRIMENTO DAS FRASES

O comprimento médio das frases também pode levar a algumas generalizações válidas sobre o estilo de uma pessoa. A prosa moderna é caracterizada por frases geralmente mais curtas do que nos séculos anteriores (as estreitas colunas nas quais a prosa jornalística deve encaixar-se, sem dúvida, tiveram alguma influência no encurtamento das

frases), mas ainda vemos variações consideráveis no comprimento das

frases dos escritores modernos. Podemos chegar a uma generalização con ável sobre o comprimento típico de uma frase de um determinado

escritor contando as palavras em, digamos, quinhentas frases consecutivas e, em seguida, dividindo o número total de palavras pelo número de frases. Tendo determinado esse comprimento médio, voltamo-nos

para a consideração mais importante: Qual a relação desse comprimento com a situação retórica? TIPOS DE FRASE Algumas observações muito interessantes podem ser feitas sobre o

estilo e hábitos de pensamento de um indivíduo, estudando os tipos de frases usadas e as proporções em que os vários tipos são usados.

fi

494

ESTILO W. K. Wimsatt, por exemplo, em seu valioso estudo The Prose Style of

Samuel Johnson, viu no uso persistente de orações paralelas e antitéticas

pelo Dr. Johnson um reflexo da inclinação de sua mente: "A prosa de Johnson é um exagero formal (em alguns lugares, uma caricatura) de um par de motivações complementares, o desejo de assimilar idéias e o desejo de distingui-las, de reunir e separar". Assim, o Dr. Johnson dispunha suas idéias em estruturas paralelas, reforçando as distinções entre elas justapondo-as em estruturas antitéticas. A história da prosa da maioria das línguas ocidentais revela uma evolução gradual de uma sintaxe paratáctica (sequência de frases justapostas sem conjunção coordenativa) até o mais sofisticado dos padrões de frase, a subordinação. No anglo-saxão (o registro mais antigo existente da língua inglesa), por exemplo, notamos a falta do pronome relativo e da conjunção subordinada, dois recursos gramaticais pelos quais o inglês moderno torna as orações dependentes. Quando catalogamos os tipos de frases gramaticais encontrados na prosa profissional moderna, por incrível que pareça, encontramos poucas frases compostas. Os escritores modernos ampliam suas frases mais por subordinação e aposição do que por coordenação. A observação das classes gramaticais de frases pode nos dizer muito sobre o estilo da prosa de alguém, além de relevar de ciências signi cativas em nosso

próprio estilo. VARIEDADE DE PADRÕES DE FRASES

Um estudo da variedade de padrões de frases também traz algumas li-

ções valiosas sobre estilo. Por um lado, tal estudo pode desfazer grande

parte dos mitos sobre prosa. É verdade que escritores pro ssionais dominam uma variedade maior de recursos lexicais e sintáticos em comparação a escritores inexperientes, mas eles não fazem da variedade em

si um fetiche. Por exemplo, o professor Francis Christensen realizou um estudo de iniciadores de frase nas primeiras duzentas frases de algumas obras narrativas e expositivas escritas por escritores americanos modernos. Aqui estão os resultados de suas descobertas em relação aos

textos expositivos:

fi

fi

fi

495

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Expositiva Carson, O mar que nos cerca

Iniciadores Conj. Adverbiais Verbais Invertidos Coord. de frase

79

74

4 4

M. Chute, Shakespeare of

London

16

De Voto, Easy Chair

47 72 77

45

2 2

72

4

60

57

3

32

32

Edman, Arts and the Man Highet, A arte de ensinar

Mencken, Vintage Mencken

Lloyd & Warfel, American English

Thrilling, Liberal imagination (pp. 216-34) Van Doren, Shakespeare; Four Tragedies Wilson, Literacy Chronicle: 1920-1950 (pp. 9-29;

2

14 22 9

4

34 29

3

2

14

24

7

175

1,15

0,40

422-27)

TOTAL

575

PORCENTAGEM

28,75

544 27,20

8,75

De Francis Christensen, "Notes Toward a New Rhetoric: I. Sentence Openers", College English, 25 (outubro de 1963), 9?

Os números da primeira coluna indicam o número de frases, entre as

duzentas estudadas em cada obra, que possuíam iniciadores de frase (palavras, expressões ou orações que não fazem parte do agrupamento temático); os números nas próximas quatro colunas indicam os vários

tipos de iniciadores de frase. Rachel Carson teve a maior porcentagem de iniciadores de frase (39,5%), Mark van Doren teve a porcentagem mais baixa (16%), mas as porcentagens combinadas mostram que quase três quartos das frases escritas por esses autores começam com o grupo

de assuntos, em vez de iniciadores de frase, e que quase 95% dos 575

iniciadores de frase são do tipo adverbial. Esses números parecem indicar que alguns de nossos estimados escritores modernos, ao contrário da opinião comum e dos conselhos dados em alguns textos sobre composição, não buscam muita variedade 9 Copyright 1963 do National Council of Teachers of English. Reproduzido com permissão.

496

ESTILO na maneira de iniciar suas frases. E os números também invalidam a prescrição de não começar uma frase com uma conjunção coordenativa. Estudos descritivos de outros aspectos da prosa na prática provavelmente destruiriam algumas ilusões adicionais sobre como escritores profissionais criam seus efeitos. EUFONIA DA FRASE O ritmo da prosa é um dos aspectos do estilo mais difíceis de analisar.

Talvez a coisa mais próxima que tenhamos da elaborada prosódia que os

gregos e romanos criaram para suas línguas quantitativas seja o sistema de escansão da frase em inglês que George Saintsbury elaborou em A History of English Prose Rhythm (Edimburgo, 1912). A eufonia e o ritmo

das frases, sem dúvida, desempenham um papel importante no processo comunicativo e persuasivo, especialmente na produção de efeitos emocionais, mas os estudantes seriam imprudentes se gastassem muito tempo aprendendo um sistema para escandir frases em prosa. A eufonia e o ritmo apresentam-se ao ouvido, de modo que é recomendável que os alunos leiam seus textos em voz alta para captar ritmos estranhos, combinações de vogais e consoantes conflitantes (como naquela frase de cinco palavras) e sons que distraem. Se, por exemplo, o aluno que escreveu a frase a seguir a tivesse lido em voz alta, ele provavelmente

teria percebido a repetição desagradável do som ectlet: "Detectei como

o testemunho afetou alguns aspectos indiretamente conectados aos ju-

rados". Esse teste é particularmente importante na preparação de um discurso oral, mas a maioria dos bons escritores aplica esse teste também à prosa que eles sabem que será lida silenciosamente. A frase difícil

de enunciar geralmente é uma frase gramatical ou retórica incorreta.

Mas se os escritores não estiverem confiantes em seus ouvidos para testar o ritmo de suas frases, eles podem recorrer ao método bastante

simples de marcar as acentuações em séries de palavras. Com um pouco mais de destreza, eles podem agrupar as sílabas tônicas e não tônicas em pés. Na escansão da poesia, devemos conhecer os cinco pés mais comuns da prosódia clássica: iambo (v-), troqueu (-v), anapesto (uv-),

dátilo (-v) e espondeu (-). Para a escansão da prosa, entretanto, precisamos de muito mais combinações. Em seu livro, The Anatomy of Prose, Marjorie Boulton define 23 combinações diferentes, que cons-

497

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO tituem, segundo ela, "todos os pés possíveis usados na prosa inglesa".

(Os estudantes que quiserem veri car esses detalhes técnicos podem consultar as páginas 55-57 de seu livro). Para ilustrar esse sistema de escansão, eis a maneira como a Srta. Boulton escandiu os primeiros nove

versículos do Salmo 90, na Versão Autorizada da Bíblia: Lord, thoul hast beenl our dwelling placel in all generations./ Beforel the mountainsl were brought forth,I or everl thou hadst

formedl the earthl and the world,I evenl from everlastingl to everlasting,/ thou

art God.I Thou turnest manl to destruction; and sayest,/ Return,I ye children! of men.! For a thousandl years inl thy sightl are butl as yesterdayl when it is past,l and as

a watchl in the night.! Thou carriestl them awayl as with a ood;l they are as a sleep: in the morning/ they are like grassl which groweth up./

In the morningl it ourisheth, and groweth up;/ in the eveningl it is cut down,l

and withereth.I For we are consumedl by thine anger,I and by thy wrathl are we troubled.!

Thou hast setl our iniquitiesl before thee,l our secret sinsl in the lightl of thy countenance./

For alll our daysl are passedl awayl in thy wrath;l we spendl our yearsl as a talel

that is told.I — De Marjorie Boulton, The Anatomy of Prose.!°

A Srta. Boulton diz sobre esta passagem: Minhas acentuações não serão muito combatidas, creio eu, embora mesmo aqui

alguns ouvidos possam se opor; muitos leitores provavelmente discordarão da divisão em pés em algum ponto. No entanto, agora podemos ver o contraste de terminações monossilábicas tônicas e terminações mais leves, com a finalidade da acentuação no final em um monossílabo pesado. Vemos também como as

palavras importantes são colocadas em posições nas quais, com a força de seu sentido, elas são cercadas por acentuações fracas para torná-las mais fortes por contraste. Também podemos notar, se formos iniciantes, que os pés de quatro e cinco sílabas são necessários para descrever a prosa com precisão. 10 Copyright © 1954 de Marjorie Boulton. Reproduzido com permissão do National Council of Teachers of English e Marjorie Boulton.

fl

fi

fl

498

ESTILO MEIOS DE ARTICULAÇÃO DE FRASES

Investigar as maneiras pelas quais os escritores articulam suas frases pode ser um dos exercícios mais frutíferos para estudantes que desejam melhorar a qualidade de sua própria prosa. A coerência é uma questão problemática para a maioria dos alunos. Eles geralmente desenvolvem um senso de unidade e ênfase muito antes de dominarem a coerência. Cultivar o hábito de pensar de maneira ordenada e lógica é a melhor forma de garantir a coerência na expressão de nossos pensamentos, mas escritores experientes usam uma série de recursos lingüísticos para isso.

Vejamos como um escritor talentoso como Matthew Arnold torna sua prosa "coesa". Alguns dos recursos verbais que ele utiliza para promover a coerência estão em itálico; outros serão apontados posteriormente no comentário. O poder crítico é inferior ao poder criativo. Verdade, mas ao concordar com esta proposição, uma ou duas coisas devem ser mantidas em mente. É inegá-

vel que o exercício de um poder criativo, de uma atividade criativa livre, é a

função suprema do homem; é assim que o homem encontra sua verdadeira felicidade. Mas é inegável, também, que os homens podem ter a sensação de exercer essa atividade criativa livre de outras maneiras que não na produção de

grandes obras de literatura ou arte; se não fosse assim, todos, exceto alguns

poucos homens, seriam excluídos da verdadeira felicidade de todos os homens.

Eles podem ter felicidade em fazer o bem, podem ter felicidade em aprender,

podem ter felicidade mesmo em criticar. Isso é uma coisa que devemos ter em mente. A outra é que o exercício do poder criativo na produção de grandes obras de literatura ou arte, por mais elevado que seja esse exercício, não é possível

em todas as épocas e em qualquer contexto; e, portanto, o trabalho de tentar alcançá-lo pode ser vão; mais vale preparar-se para ele, tornando-o possível.

Esse poder criativo funciona com elementos, com materiais; e se ele não tiver esses materiais, esses elementos, prontos para seu uso? Nesse caso, ele certamente

deve esperar até que eles estejam prontos (de Matthew Arnold, "The Function of Criticism at the Present Time", em Essays in Criticism, First Series, 1865).

A maioria dos artifícios de coerência (pronomes pessoais, pronomes demonstrativos, palavras e frases repetidas e algumas conjunções)

refere-se ao que acabou de ser dito, conectando, assim, o que foi dito

499

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO com o que está para ser dito. Um dos recursos mais comuns na prosa

de Matthew Arnold (tão comum, na verdade, que se tornou uma marca distintiva de seu estilo) é a repetição frequente de palavras e expressões-

-chave. Arnold era um grande criador de expressões e, depois de cunhar

uma expressão que continha o tema do ensaio, repetia essa expressão várias vezes no texto. Tão visível era esse maneirismo em sua prosa que

se acredita que o princípio fundamental de sua técnica expositiva era

a famosa máxima pedagógica: "A repetição é a mãe do aprendizado". A repetição mais utilizada neste trecho é a palavra criativo, a palavra-

-chave deste parágrafo e uma das duas palavras-chave de todo o ensaio.

Assim, a repetição de palavras substantivas é um dos meios lingüísticos de costurar nossas frases.

Arnold também usa freqüentemente pronomes demonstrativos (isto, aquilo; estes, aqueles) e pronomes pessoais. O significado original da

palavra demonstrar é "mostrar, apontar". Os pronomes demonstrativos geralmente apontam para trás, ligando o que se segue ao que aconteceu antes. Por sua própria natureza, todos os pronomes (exceto os indefi-

nidos, como ninguém e alguém) apontam para um referente. Por causa da estreita relação entre o pronome e seu referente, é extremamente

importante ter certeza de que o referente é claro. Quando é vago ou, pior ainda, quando o referente não existe, a coerência de nossa escrita é prejudicada.

Bons escritores também utilizam bastante as conjunções e advér-

bios conjuntivos para costurar frases. A principal função gramatical das conjunções coordenativas é unir palavras, frases e orações. Mas quando as conjunções coordenativas são colocadas no início da frase (e o gráfico do professor Christensen revela com que freqüência os escritores modernos usam iniciadores de frase), essas conjunções assumem a função retórica de fornecer uma ponte lógica entre as frases. Advérbios conjuntivos (palavras como no entanto, não obstante, além disso, também, de fato, portanto) são recursos ainda mais comuns para auxiliar a coerência. Podemos fortalecer a relação lógica entre as frases simples-

mente inserindo a palavra conjuntiva apropriada.

Falaremos somente de mais dois artifícios utilizados por Arnold para conectar suas frases. Frases fragmentadas às vezes podem forta-

lecer a coerência. Temos um exemplo disso na segunda frase do parágrafo de Arnold. A palavra verdade constitui uma frase elíptica. Sem

500

ESTILO elipse, a frase seria mais ou menos assim: "É verdade o que foi dito".

A palavra verdade, sozinha, tem um signi cado apenas pela justaposição à frase anterior; como depende da frase anterior para ter sentido, ela está "amarrada" a essa frase. Este mesmo princípio de "signi cado dependente" prevalece na conversa, onde freqüentemente falamos em frases fragmentadas ("Aonde você vai esta noite?". "Ao cinema". "Com

quem?". "Charlotte"). Outro artifício usado por Arnold neste parágrafo é o paralelismo, reforçado pela gura da anáfora (repetição de palavras idênticas no início de frases sucessivas). Três orações independentes são estabelecidas,

uma após a outra. ("Eles podem ter felicidade em fazer o bem, podem ter felicidade em aprender, podem ter felicidade mesmo em criticar"). Embora não haja conjunções (assíndeto) para ligar as orações gramaticalmente, as orações são conectadas por uma estrutura paralela e pala-

vras idênticas. Além das funções que observamos na análise das duas frases de Clark Kerr, o paralelismo também pode ser usado em prol da

coerência.

A passagem citada de Matthew Arnold exemplifica a maioria dos artifícios verbais que bons escritores usam para articular suas frases, e

tais artifícios são usados de forma tão discreta que as suturas raramente aparecem, marcando a diferença entre a clareza de determinados textos e a imprecisão de outros. FIGURAS DE LINGUAGEM Visto que dedicaremos uma longa seção deste capítulo à discussão das figuras de linguagem, este não é o lugar para discuti-las em detalhes.

Basta dizer que elas constituem uma das características mais reveladoras da prosa de um escritor. Se forem apropriadas e originais, podem contribuir bastante para a clareza, vigor e atratividade do texto. Mas elas não devem ser cultivadas por suas vantagens intrínsecas. O uso excessivo e forçado de figuras de linguagem provou ser prejudicial à "graciosidade" que os escritores eufuísticos do século xvI buscavam em sua prosa. Por outro lado, a ausência ou escassez de linguagem figurativa pode ter um efeito embotador sobre o estilo. Embora não seja verdade que Jonathan Swift tenha excluído toda linguagem gurativa de sua prosa, ele usava esse tipo de linguagem com moderação. A parcimônia

fi

fi

fi

fi

501

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO no uso de linguagem metafórica pode ter sido o que o Dr. Johnson

tinha em mente quando fez seu famoso comentário sobre o estilo de Swift: "Para fins meramente didáticos, quando algo que não era conhecido antes deve ser dito, [seu estilo] está no mais alto grau concebível, mas contra aquela desatenção pela qual verdades conhecidas são negligenciadas, ele não garante; instrui, mas não persuade". DIVISÃO EM PARÁGRAFOS

Assim como existe um estilo de estrutura frasal, existe um estilo de divisão em parágrafos. A divisão em parágrafos, assim como a pontuação, é uma característica exclusiva da linguagem escrita. Na verdade, podemos considerar a divisão em parágrafos como um artifício tipográfico para pontuar unidades de pensamento maiores do que o pensamento transmitido por uma única frase. Estamos tão acostumados a ver, no material impresso que lemos, indentações de segmentos de pensamento, que passamos a considerar a divisão em parágrafos tão natural quanto o movimento da esquerda para a direita das palavras impressas. E como

essas indentações estão sempre presentes, não percebemos o quanto a marcação das unidades de pensamento facilita a nossa leitura. Talvez a

melhor maneira de mostrar como os artifícios tipográficos contribuem

para a legibilidade da prosa impressa seja reproduzir um texto sem pontuação, letras maiúsculas ou divisão em parágrafos: parece-me que estava longe de ser certo que o professor de inglês em yale, o professor de literatura inglesa na columbia e wilkie collins emitissem opiniões

sobre a literatura de cooper sem ter lido parte dela teria sido muito mais decoroso calar-se e deixar as pessoas que leram cooper falarem a arte de cooper

tem alguns defeitos em um lugar em deerslayer e no espaço restrito de dois terços de uma página cooper fez cento e quatorze ofensas contra a arte literária

de um total de cento e quinze o que quebra o recorde há dezenove regras que

regem a arte literária no domínio da ficção romântica alguns dizem que são vinte e duas em deerslayer cooper violou dezoito delas essas dezoito exigem que um conto realize algo e chegue a algum lugar mas deerslayer não realiza

nada e não chega a lugar nenhum que os episódios de um conto sejam partes necessárias do conto e ajudem a desenvolvê-lo mas como deerslayer não é um conto não realiza nada e não chega a lugar nenhum os episódios não têm lugar

502

ESTILO de direito na obra uma vez que não há nada para eles desenvolverem que os personagens de um conto estejam vivos exceto no caso de cadáveres e que o leitor seja capaz de distinguir os cadáveres dos outros mas esse detalhe muitas

vezes foi ignorado em deerslayer.

Se tivermos dificuldade em entender essa enxurrada de palavras, devemos ser gratos aos impressores e gramáticos que conceberam artifi-

cios tipográficos para separar segmentos significativos do pensamento. Depois de tentar várias combinações, talvez compreendamos o texto, especialmente nas seções em que há sinais gramaticais suficientes para nos dizer quais palavras estão relacionadas. Provavelmente faremos um progresso mais rápido na decifração se lermos o texto em voz alta, porque a voz acrescentará outro elemento gramatical: a entonação, que é o equivalente vocal das marcas grá cas de pontuação. Mas haverá pontos

que permanecerão ambíguos, porque a gramática permitirá, nesses casos, duas ou mais combinações de palavras, todas com sentido.

Agora, vejamos o texto como Mark Twain o escreveu, restaurando sua pontuação, letras maiúsculas e divisão em parágrafos: Parece-me que estava longe de ser certo que o professor de inglês de Yale, o

professor de literatura inglesa da Columbia e Wilkie Collins emitissem opiniões sobre a literatura de Cooper sem ter lido parte dela. Teria sido muito mais decoroso calar-se e deixar as pessoas que leram Cooper falarem.

A arte de Cooper tem alguns defeitos. Em um lugar em Deerslayer, e no

espaço restrito de dois terços de uma página, Cooper fez cento e quatorze ofensas contra a arte literária, de um total de cento e quinze, o que quebra o recorde. Há dezenove regras que regem a arte literária no domínio da cção romântica (alguns dizem que são vinte e duas). Em Deerslayer, Cooper violou dezoito delas. Essas dezoito exigem:

1. Que um conto realize algo e chegue a algum lugar, mas Deerslayer não realiza nada e não chega a lugar nenhum. 2. Que os episódios de um conto sejam partes necessárias do conto e ajudem

a desenvolvê-lo, mas como Deerslayer não é um conto, não realiza nada e não

chega a lugar nenhum, os episódios não têm lugar de direito na obra, uma vez que não há nada para eles desenvolverem.

fi

fi

503

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 3. Que os personagens de um conto estejam vivos, exceto no caso de cadáveres, e que o leitor seja capaz de distinguir os cadáveres dos outros, mas esse

detalhe muitas vezes foi ignorado em Deerslayer [...].

[Twain passa a designar, em uma série de parágrafos curtos e numerados, as quinze "regras" restantes]."

Evidentemente, o artifício tipográfico que mais contribui para esclarecer a sintaxe de uma sucessão de palavras é aquele que delimita os

limites das frases: uma letra maiúscula inicial e pontuação final (ponto, ponto de interrogação, ponto de exclamação). Talvez subestimemos o quanto outros artifícios tipográficos contribuem para a clareza, coisas simples como vírgulas, letras maiúsculas, itálico, hífens, aspas. E não devemos nos esquecer de como a divisão em parágrafos facilita a leitura, o que ficou evidente no trecho de Mark Twain apresentado aqui. O recuo marca as mudanças no desenvolvimento do pensamento e indica a relação das partes. Simplesmente definindo as regras violadas em parágrafos separados e posteriormente marcando-as com números, Mark Twain deixa claro que está especificando uma série de partes.

Um estudo da densidade do parágrafo de um autor nos diz muito sobre o "peso" de seu estilo. Evidentemente, o tamanho dos parágrafos é ditado por diversas considerações, como o assunto, a ocasião e o público. A narrativa, por exemplo, sobretudo quando se trata de ação rápida, desenvolve-se em uma série de parágrafos curtos. Também no diálogo, cada mudança de orador é indicada por um novo parágrafo. Para fins de transição ou ênfase, o autor inserirá um parágrafo de uma ou duas frases. E se estivermos escrevendo para as estreitas colunas de um jornal, iremos, de forma bastante arbitrária, dividir nossa prosa em parágrafos bem curtos. De qualquer maneira, descontando tais convenções e algumas situações retóricas, os escritores profissionais geralmente escrevem parágra-

fos mais longos do que os escritores inexperientes. Muitos parágrafos de

uma ou duas frases que os alunos escrevem não têm qualquer justi cativa retórica, revelando simplesmente que os alunos não desenvolveram seus pensamentos de maneira adequada. Eles não têm mais nada a dizer, ou pensam que não têm mais nada a dizer, sobre a idéia apresentada

11 Mark Twain, Fenimore Cooper's Literary Offenses, 1895.

fi

504

ESTILO naquele parágrafo. Talvez, recorrendo aos tópicos para encontrar algo a

dizer, eles sejam capazes de desenvolver os parágrafos.

RELATÓRIO DE UM ALUNO SOBRE ESTUDO ESTILÍSTICO Dedicamos várias páginas a uma discussão das características objetivamente observáveis do estilo, porque é por meio desse tipo de análise minuciosa que aprendemos como o estilo de um autor produz seus efeitos e também como fazer para melhorar nosso próprio estilo. Para ilustrar

o ganho obtido com esse tipo de estudo detalhado, apresentaremos os resultados de um projeto de aluno!?

Dois grupos de alunos receberam a tarefa de fazer uma análise

comparativa do comprimento de frases e parágrafos em um número específico de parágrafos no ensaio de F. L. Lucas, "O que é estilo?",

e em todos os parágrafos de um de seus próprios textos expositivos.

Para os fins desse estudo, uma frase foi definida como "um grupo de

palavras começando com uma letra maiúscula e terminando com alguma marca de pontuação final". Os alunos foram informados de que deviam selecionar oito parágrafos do ensaio de Lucas, evitando parágrafos curtos de transição e parágrafos contendo duas ou mais citações.

A folha mimeografada que eles receberam tinha os seguintes itens a

serem preenchidos:

AVALIAÇÃO

PROFISSIONAL

ALUNO

A. Número total de palavras no texto estudado

B. Número total de frases no texto estudado

c. Frase mais longa (em número de palavras) D. Frase mais curta (em número de palavras)

E. Frase média (em número de palavras)

F. Número de frases que contêm mais de dez

palavras acima da média

12 Para um relato de projetos semelhantes, concebidos para um curso de composição avançada na Universidade de Nebraska, consulte Margaret E. Ashida e Leslie T. Whipp, "A Slide-Rule Composition Course", College English, xxv (outubro de 1963), pp. 18-22.

505

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

G. Porcentagem de frases que contêm mais de

dez palavras acima da média

H. Número de frases que contêm cinco palavras (ou mais) abaixo da média

1. Porcentagem de frases que contêm cinco palavras (ou mais) abaixo da média J. Extensão do parágrafo parágrafo mais longo (em número de frases)

parágrafo mais curto (em número de frases) parágrafo médio (em número de frases)

Os números que os alunos inseriram na primeira coluna diferiram de acordo com os parágrafos selecionados, mas podemos apresentar al-

guns números médios de quatro itens da lista: 1. O comprimento médio das frases de Lucas foi de 20,8 palavras. 2. Cerca de 17% das frases de Lucas tinham dez palavras (ou mais) acima

da média. 3. Cerca de 40% das frases de Lucas tinham cinco palavras (ou mais) abai-

xo da média. 4. O texto de Lucas tem, em média, 7,6 frases por parágrafo (um parágrafo bem desenvolvido).

A maioria dos alunos descobriu que o comprimento médio de suas frases correspondia ao comprimento médio das frases de Lucas. Muitos ficaram surpresos ao constatar, porém, que tinham uma porcentagem maior de frases acima da média e uma porcentagem notavelmente menor de frases abaixo da média. Talvez a diferença mais dramática que os

alunos identificaram foi no desenvolvimento do parágrafo. Pelo menos metade do grupo descobriu que tinha, em média, três ou quatro frases

por parágrafo. Além de preencher a folha mimeografada, os alunos deviam entre-

gar um texto comentando o que aprenderam sobre estilo com o exercício. Trechos desse trabalho são reproduzidos a seguir.

Em primeiro lugar, alguns comentários dos alunos sobre o comprimento e a variedade das frases:

506

ESTILO Descobri que a porcentagem de frases no ensaio de Lucas que contêm mais de dez palavras em relação à frase média é de 17%, enquanto a minha é de apenas 3%. Mas a porcentagem de frases no texto de Lucas que contêm cinco

palavras (ou mais) abaixo da média é de 39%, em comparação com meus 16%. Vejo agora que devo me esforçar para conseguir maior variedade na estrutura e comprimento de frases em meus textos para que eles sejam mais eficazes.

* O comprimento médio das minhas frases é muito próximo ao comprimento médio das frases do Sr. Lucas, o que me parece esquisito, pois em meu traba-

lho no jornal do colégio, adquiri o hábito de reunir mais de um pensamento

em uma única frase. O comprimento das minhas frases é bom, mas o conteúdo pode melhorar. Outro fator que ficou evidente é que tendo a usar menos frases curtas do que os escritores profissionais. Acho que essa falta de frases

curtas deve-se ao assunto dos textos que escrevo. Percebi que, no passado, eu usava frases mais longas, mais envolventes (e menos claras) para escrever sobre

coisas sobre as quais não me sentia completamente à vontade para escrever. Uso frases curtas para apresentar idéias que são muito claras para mim.

* Uma coisa que descobri é que uma boa prosa não precisa necessariamente conter frases longas e palavras polissilábicas.

* Não há variedade suficiente de comprimento ou padrão em minhas frases. Mesmo minhas frases mais longas tendem a ser do tipo composto, em vez do

tipo complexo ou complexo composto.

Agora, alguns trechos dos comentários dos alunos sobre a divisão em parágrafos: Esta análise dos parágrafos revelou algumas diferenças drásticas de estilo. Por

incrível que pareça, meus parágrafos são consideravelmente mais longos do que os parágrafos de Lucas: o número médio de frases por parágrafo em meu trabalho é de doze, enquanto a média do Sr. Lucas é de oito, aproximadamen-

507

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO te. Meu parágrafo mais longo tem dezesseis frases, o dobro da média dos pro-

fissionais, o que pode indicar uma falha de planejamento minha, em termos de divisão em parágrafos. Meus parágrafos extensos parecem frases contínuas,

provavelmente cansativas.

* Meu parágrafo mais longo tem 17 frases, quase 10 frases acima do comprimento médio de um parágrafo profissional; o parágrafo mais longo de Lucas

tem 10 frases, menos de 3 frases acima do comprimento médio de seus parágrafos. Além disso, nesse parágrafo longo, o comprimento médio das frases é de 14 palavras, o que significa 7 palavras por frase abaixo da média de todo

o texto. E no meu parágrafo mais longo, das 17 frases, 12 contêm 5 palavras ou mais abaixo da frase média. A razão para esse parágrafo ser bastante dife-

rente do meu parágrafo médio é que usei um estilo diferente de escrita aqui.

Tentei um apelo emocional para sustentar meus argumentos, valendo-me de perguntas curtas e afirmações concisas. Pensando em apresentar um discurso apaixonado, afastei-me de meu estilo usual de prosa; portanto, esse parágrafo não é representativo do meu estilo usual de divisão em parágrafos.

No texto de Lucas, há uma média de 126 palavras por parágrafo, enquanto eu

tenho uma média de apenas 70 palavras por parágrafo. Eu provavelmente deveria usar mais palavras para desenvolver minhas idéias, não por uma questão

de loquacidade, mas para ser melhor compreendido. Acabo deixando de fora exemplos e explicações, que podem ser vitais para a clareza do texto.

* Nos parágrafos que escolhi estudar, o Sr. Lucas usou um total de 56 frases, en-

quanto eu usei um total de 54. A média é de aproximadamente sete frases por parágrafo em ambos os ensaios. No entanto, essa semelhança não é totalmente

válida. Ao selecionar os parágrafos de Lucas, tive o cuidado de escolher apenas

aqueles que eram de tamanho "médio"; pulei propositalmente os parágrafos que pareciam curtos. Um dos parágrafos do meu texto continha apenas três

frases, mas tive que contá-lo, o que diminuiu o número médio de frases do

508

ESTILO meu trabalho, enquanto a média do Sr. Lucas foi ligeiramente in ada porque apenas os parágrafos "médios" foram estudados.

* Outra coisa que percebi ao fazer esse estudo estilístico é que, no trabalho dos escritores pro ssionais, os parágrafos encaixam-se como as peças de um quebra-cabeça. Cada parágrafo desenvolve um pensamento separado, mas se

torna parte integrante do todo. Tenho di culdade em amarrar minhas idéias. Embora todas as minhas idéias se relacionem com o tema do texto, muitas vezes descubro que elas não seguem um padrão lógico.

Além de comentar frases e parágrafos, vários alunos comentaram sobre outras características de estilo que observaram ao realizar o estudo. Aqui estão alguns trechos desses comentários: Vejo agora que é necessário ampliar meu vocabulário para melhorar meu estilo. Não quero dizer necessariamente que devo começar a usar palavras maiores; o que quero dizer é que devo aprender quando certas palavras devem ser usadas. Devo aprender a usar palavras difíceis somente quando elas se en-

caixam naturalmente no assunto e podem ser totalmente compreendidas pelo público-alvo. Os escritores profissionais nem sempre usam palavras difíceis,

mas seu conhecimento das palavras permite que eles usem a palavra certa no

momento certo.

* Uma característica do estilo Lucas de que não gosto e que procurei evitar na minha escrita é o uso excessivo de parênteses e travessões. Sei que os parênteses e os travessões são apropriados às vezes. Aliás, usei travessão quatro vezes

neste meu texto. Mas, a meu ver, o Sr. Lucas exagera nesse quesito. Sinto que a

linha de pensamento do leitor é interrompida quando a escrita contém muitos parênteses e travessões.

* Lucas dá vida à sua escrita com o uso de figuras de linguagem. Quando ele diz: "Os homens são frequentemente levados, como coelhos, pelas orelhas",

fl

fi

fi

509

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO sua escrita se torna vívida e distinta. Outra figura de linguagem do Sr. Lucas:

"Assinaturas estrondosas voam pela página como espigas de milho curvadas diante de uma tempestade", mostra que ele evita as guras banais, usadas em excesso. Ele busca expressões novas. Percebi que em meu texto não havia uma

única comparação, metáfora ou personificação.

* Embora a frase mais longa de Lucas seja duas vezes mais longa do que a minha frase mais longa, a minha frase é mais difícil de entender. Essa diferença

na legibilidade pode ser atribuída, em parte, ao número de silabas. Embora a

contagem de silabas não tenha sido incluída na folha de estudo, ela tem uma grande influência na clareza da prosa. A maioria das palavras nas frases de

Lucas são monossilábicas. Por causa da dicção monossilábica, o interesse do leitor não se esgota, como acontece com palavras pesadas.

* Esse estudo também confirmou algo de que eu já suspeitava: não escrevo frases

muito longas. Acredito que isso se deva ao fato de que tenho medo da pontuação que uma frase longa exige. É muito mais simples escrever corretamente

duas frases curtas do que escrever corretamente uma frase longa. Como fomos avaliados na escola mais por correção do que por estilo, adquiri o hábito de

preferir duas frases mais curtas a uma longa. Acho que devo começar a me preocupar com estilo também, além da correção, se quiser me tornar um bom escritor.

* Percebi que as partes do ensaio do Sr. Lucas são bem proporcionais, ao con-

trário das minhas. Um olhar mais atento me mostrou que desenvolvo demais o início de meus ensaios, geralmente deixando o meio pouco desenvolvido.

* Tenho notado que, às vezes, minhas frases soam artificiais e rígidas, porque coloco orações adverbiais e formas nominais dos verbos onde eles não se encai-

xam naturalmente. [...] Bons escritores profissionais dominam a arte da ade-

fi

$10

quação. Descobri que as frases longas da maioria dos escritores pro ssionais são surpreendentemente fáceis de entender, enquanto minhas frases longas são

intrincadas demais para serem compreendidas

Eis alguns trechos dos comentários dos alunos sobre o valor geral de

um estudo detalhado como este. Incrivelmente, os alunos mantiveram seu senso de perspectiva, dizendo que não viam nenhum mérito em cultivar qualquer característica de estilo por si só; um artifício estilistico só é uma virtude quando contribui para a e cácia do trecho em

que foi utilizado: Sei que esse estudo do comprimento de frases e parágrafos foi bené co para mim, mas gostaria de considerar a escolha e a disposição das palavras de escritores pro ssionais. Posso estar errado, mas, para mim, a escolha e a disposição

das palavras dos escritores são mais importantes do que o comprimento de suas frases e parágrafos.

* Acredito, entretanto, que essa comparação entre minha prosa e a prosa de Lucas revela simplesmente uma diferença de estilo e que nenhuma decisão de-

nitiva pode ser tomada sobre o que devo fazer com meu estilo de prosa. Para

tomar tal decisão, eu teria que comparar meu vocabulário e a estrutura das minhas frases com o vocabulário e estrutura das frases do Sr. Lucas, ambos escrevendo sobre o mesmo assunto.

* Em geral, o estilo depende da individualidade e do conhecimento básico de gramática, não do comprimento de frases. O Sr. Lucas combinou com sucesso

a gramática inglesa com seu toque pessoal para produzir uma boa prosa. No

meu caso, o estilo é prejudicado, porque ainda não tenho conhecimento de gramática su ciente como base para a minha individualidade de expressão.

* Embora esse estudo não possa determinar definitivamente se meu estilo é bom

ou ruim (já que não existe um estilo inteiramente bom ou ruim), ele pode

fi

fi

fi

fi

511 fi

fi

ESTILO

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO mostrar as principais semelhanças e diferenças entre meu estilo e um estilo moderno padrão.

* O estilo de um pro ssional, neste caso, F. L. Lucas, não deve ser meramente

copiado, pois é apenas desenvolvendo seu próprio estilo que o aluno ganha domínio su ciente da língua para se tornar um bom escritor.

Aqui vão mais três grá cos para a tabulação de outras características

estilísticas. Os estudantes podem criar seus próprios grá cos para o estudo quantitativo de características estilísticas objetivamente observáveis não incluídas aqui. ESTUDO ESTILÍSTICO — II (CLASSES GRAMATICAIS DAS FRASES)

Uma frase simples é aquela que começa com letra maiúscula, contém

uma oração independente e termina com pontuação final.

Uma frase composta é aquela que começa com uma letra maiúscula,

contém duas ou mais orações independentes e termina com pontuação final.

Uma frase complexa é aquela que começa com uma letra maiúscula,

contém uma oração independente e uma ou mais orações dependentes, e termina com pontuação final.

Uma frase complexa composta é aquela que começa com uma letra maiúscula, contém duas ou mais orações independentes e uma ou mais orações dependentes, e termina com pontuação final.

Título do ensaio profissional

Autor

fi

fi

fi

fi

512

ESTILO ALUNO

PROFISSIONAL

A. Número total de frases no ensaio

B. Número total de frases simples c. Porcentagem de frases simples

D. Número total de frases compostas

E. Porcentagem de frases compostas

F. Número total de frases complexas G. Porcentagem de frases complexas H. Número total de frases complexas compostas

1. Porcentagem de frases complexas compostas

SEQÜÊNCIA DE CLASSES GRAMATICAIS

Defina a seqüência de classes gramaticais nos parágrafos _ usando estas abreviações: S, Cp, Cx, Cx-Cp. No parágrafo _ No parágrafo _

_ e.

ESTUDO ESTILÍSTICO — III (INICIADORES DE FRASE)

Título do ensaio profissional

Autor Neste estudo, use apenas frases declarativas, sem frases interrogativas

ou imperativas.

Aluno _

Número total de frases declarativas: Profissional

PROFISSIONAL Frases começando com

N° A. Sujeito (por exemplo: John quebrou a janela. O alto custo de vida

compensará...)

513

%

ALUNO



%

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

B. Expletivo (por exemplo: É durante janeiro que... Vão-se os anéis, ficam-se os

dedos. Exclamações: Ai de...)

c. Conjunção coordenativa (por exemplo: e, mas, nãol nem, pois, no entanto, então)

D. Advérbio (por exemplo: primeiramente, assim, ademais, entretanto, a saber)

— —

B. Locução conjuntiva (por exemplo: por outro lado, de maneira que)

F. Locução prepositiva (por exemplo, depois do jogo, em frente à janela)

G. Locução verbal (com particípio, gerúndio ou infinitivo)

H. Oração adjetiva (por exemplo: Cansados, mas felizes, nós...)

1. Oração reduzida (por exemplo: Tendo o navio chegado com segurança, nós...)

J. Oração adverbial (por exemplo:

Quando o navio chegou com segurança,

nós...)

k. Mudança frontal (por exemplo, ordem invertida das palavras: "o preço

não podíamos pagar". "Foi-se o vento".



"Felizes ficaram de estar vivos")

ESTUDO ESTILÍSTICO — IV

(DICÇÃO) Título do ensaio profissional

Autor Nesta análise, limite-se a este intervalo de parágrafos: do parágrafo.

ao parágrafo _ Na análise de sua própria prosa, limite-se a um nú-

mero comparável de parágrafos.

Em A, B e c, abaixo, conte apenas palavras substantivas: substantivos,

pronomes, verbos, formas verbais, adjetivos e advérbios.

514

ESTILO

PROFISSIONAL

ALUNO

A. Número total de palavras substantivas в. Número total de palavras substantivas

monossilábicas c. Porcentagem de palavras substantivas

monossilábicas

D. Número total de substantivos e pronomes

E. Número total de substantivos e pronomes concretos F Porcentagem de substantivos e

pronomes concretos G. Número total de verbos finitos em todas

as orações coordenadas e subordinadas

H. Que porcentagem G representa de A?

1. Número total de verbos de ligação J. Porcentagem de verbos de ligação

(usando A) k. Número total de verbos ativos (sem contar verbos de ligação)

1. Porcentagem de verbos ativos (usando

A) M. Número total de verbos passivos (sem contar verbos de ligação)

N. Porcentagem de verbos passivos

(usando A) o. Número total de adjetivos (sem contar particípios ou artigos)

P. Número médio de adjetivos por frase

(dividir pelo número total de frases)

Para desenvolver seu próprio estilo e uma técnica para analisar o estilo, sugerimos que você faça alguns dos exercícios de imitação recomendados em uma seção posterior deste capítulo. Solicitamos também

515

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO que leia as análises estilísticas sobre o ensaio de Addison publicado em

The Spectator e sobre o discurso de posse do Presidente Kennedy no final deste capítulo.

FIGURAS DE LINGUAGEM Chegamos agora às figuras de linguagem. É justo considerar as figuras de linguagem como a "graça da linguagem", como a "roupa do pensamento", como "enfeites", pois, de fato, elas "adornam" nossa prosa, dando-lhe um "estilo", como o estilista no mundo da moda. Mas seria um erro considerar o embelezamento a principal ou única função das figuras. Os retóricos clássicos certamente não as viam como meros artifícios decorativos. De acordo com Aristóteles, a metáfora, além de conferir "charme e distinção" ao nosso discurso, é outra forma de dar "clareza" e "vivacidade" à expressão de nossos pensamentos. Em sua opinião, o uso das figuras é uma das melhores maneiras de atingir o feliz equilíbrio entre "o óbvio e o obscuro", de modo que nosso público possa compreender logo nossas idéias e, assim, aceitar nossos argumentos. "Qual é, então, o poder da imagem retórica?", perguntou Longino. Ele foi ainda mais explícito do que Aristóteles ao apontar a função retórica das figuras: "É talvez o de dar aos discursos muitos e diversos

momentos de veemência e emoção que, combinados com argumentos eficazes, não só persuadem o ouvinte como também o escravizam" (Do

sublime, xv, 9)."3

Foi Quintiliano quem mais explicitamente relacionou as figuras ao logos, pathos e éthos da argumentação. Quintiliano via as figuras como mais um meio de dar "credibilidade aos nossos argumentos", "provocar as emoções" e obter aprovação para nosso papel de suplicantes" (Instit. Orat., Ix, i). Essa visão da função das figuras talvez seja a atitude mais confiável a adotar em relação a esses artifícios de estilo. Como as figuras podem tornar nossos pensamentos concretos, elas nos ajudam na clareza e eficácia da comunicação com nosso público; como provocam respostas emocionais, podem carregar a verdade, para usar a expressão de Wordsworth, "viva ao coração pela paixão"; e como suscitam 13 Tradução de Marta Isabel de Oliveira Várzeas, Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume Editora, 2015 — NT.

516

ESTILO admiração pela eloqüência do orador ou escritor, podem exercer um

poderoso apelo ético. A irmã Miriam Joseph, em seu livro Shakespeare's Use of the Arts of Language, reclassificou as mais de duzentas figuras distinguidas pelos retóricos Tudor de acordo com as quatro categorias: gramática, logos, pathos e ethos. Ao classificar as figuras dessa maneira, ela foi capaz de

demonstrar, de forma bastante convincente, que as três "escolas" de retórica da Renascença (os ramistas, os tradicionalistas e os figuristas) consideravam as figuras intimamente ligadas aos tópicos da invenção. A metáfora, por exemplo, que envolve comparação de coisas similares, está ligada ao tópico da semelhança; a antítese, que envolve a justaposição de opostos, está ligada ao tópico da dessemelhança ou dos contrários. Depois, havia figuras, como o apóstrofe, calculadas para trabalhar diretamente sobre as emoções, e figuras, como comprobatio, calculadas para estabelecer a imagem ética do orador ou escritor. Em nosso estudo, apontaremos a relação das figuras com a gramática ou com os três modos de apelo persuasivo.

A menção de duzentas figuras de linguagem no parágrafo anterior

assusta qualquer um. Sob pressão, você poderia nomear, mesmo sem definir ou ilustrar, meia dúzia de figuras de linguagem. Mas de onde vieram essas outras figuras e que figuras são essas? Em sua paixão por

anatomizar e categorizar o conhecimento, os humanistas da Renascença deliciavam-se em classificar e subclassificar as figuras. E bem verdade

que eles foram excessivamente sutis ao distinguir tal quantidade de

figuras. O manual clássico mais usado nas escolas da Renascença, Rhetorica ad Herennium, exigia que os estudantes aprendessem somente

65 figuras. Susenbrotus, em seu popular Epitome troporum ac schema-

tum (1540), distinguiu 132 figuras. Mas Henry Peacham, em sua edição de 1577 de The Garden of Eloquence, aumentou esse número para 184. Pobres crianças da escola Tudor, de quem se esperava que definissem,

ilustrassem e usassem em suas composições um bom número dessas figuras. Não vamos atormentá-lo com um longo catálogo de figuras, mas apresentaremos mais figuras do que você encontrou em seu estudo anterior de estilo. No mínimo, você deverá se dar conta, por meio desta exposição, que sua linguagem possui mais recursos figurativos do que você imaginava. E você pode descobrir que usou grande parte das figuras

517

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO de linguagem ao longo da vida, pois as pessoas não começaram a usar figuras de linguagem só depois que os acadêmicos as classificaram e definiram. Ao contrário, as figuras foram classificadas e definidas depois que as

pessoas as usaram por séculos. Como os princípios da gramática, poética e retórica, a doutrina das figuras foi elaborada indutivamente. Os retóricos simplesmente deram "nomes" às práticas verbais dos seres humanos.

O que queremos dizer com o termo "figuras de linguagem"? Queremos dizer a mesma coisa que Quintiliano quer dizer quando usou o termo figura: Qualquer desvio, seja no pensamento ou na expressão, do modo comum e simples de falar, uma mudança análoga às diferentes posições que nossos cor-

pos assumem quando nos sentamos, nos deitamos ou olhamos para trás. [...] A definição de figura, portanto, é uma forma de discurso engenhosamente diferente do uso comum (Ergo figura sit arte aliqua novata forma dicendi) (Instit.

Orat., Ix, i, 11).

Usaremos "figuras de linguagem" como o termo genérico para qualquer desvio engenhoso do modo comum de falar ou escrever, mas dividiremos as figuras de linguagem em dois grupos principais: os esquemas e os tropos. Um esquema (schèma, em grego, "forma", "formato") envolve um desvio do padrão ou disposição comum de palavras. Um tropo (tropein, em grego,"virar") envolve um desvio do significado comum e principal de uma palavra.

Ambos os tipos de figuras envolvem algum tipo de alteração: no tropo, uma alteração de significado; no esquema, uma alteração de or-

dem. Quando Marco Antônio, de Shakespeare, disse: "Bruto é homem honrado", ele estava usando o tropo chamado ironia, porque estava alterando o significado comum da palavra honrado para transmitir um

significado diferente para o público. Se Marco Antônio tivesse dito: "Honrado é o homem que dá a vida por seu país", ele estaria usando

uma espécie de hipérbato, porque estaria alterando a ordem usual de palavras. Em certo sentido, claro, tanto os esquemas quanto os tropos envolvem mudança de "signi cado", uma vez que ambos resultam em modos diferentes de expressão. Mas, para todos os efeitos práticos,

nossa distinção é clara o su ciente para permitir que o leitor diferencie entre um esquema e um tropo.

fi

fi

518

ESTILO Os termos usados para designar as várias figuras parecem formidá-

veis: palavras estranhas e polissilábicas, a maioria delas transliteradas do

grego. Mas os termos técnicos, em qualquer disciplina, são sempre difíceis à primeira vista, porque não são familiares. Sempre que estudamos uma nova disciplina, temos que aprender os "nomes" de coisas peculiares a essa disciplina. Inevitavelmente, esses termos especializados serão in-

trigantes, mas permanecerão intrigantes só até aprendermos a conectar o signo com o conceito ou coisa que ele representa. A palavra árvore só é difícil para a criança até que ela aprenda a associar o som ou a gra a dessa

palavra com o que ela designa. O termo prosopopéia pode assustá-lo no

início, mas quando você conseguir associar imediatamente o termo com seu significado, prosopopéia não será mais assustador do que os termos familiares metáfora e símile. Poderíamos, como o retórico renascentista George Puttenham tentou fazer, inventar termos em nosso idioma para as várias figuras, mas, como seriam termos inventados, isso não significa que eles seriam necessariamente mais fáceis de aprender do que os termos clássicos. De qualquer maneira, sempre que existir um termo traduzido para uma figura, usaremos esse termo em vez do termo clássico. Mesmo assim, não devemos considerar a terminologia como um fim em si mesmo. Assim como podemos falar e escrever em nossa língua na-

tiva sem saber os nomes das classes gramaticais, também podemos usar a linguagem figurativa sem saber os nomes das figuras. A nomenclatura, em qualquer estudo, é uma conveniência para fins de classificação e discussão, mas o conhecimento das várias figuras de linguagem pode aumentar nossos recursos verbais e, se fizermos um esforço consciente para

aprendê-las, provavelmente recorremos a elas com mais frequência.

OS ESQUEMAS ESQUEMAS DE PALAVRAS Não nos deteremos muito em esquemas de palavras, porque, embora ocorram com frequência na poesia (especialmente na poesia dos séculos anteriores), raramente aparecem na prosa. Os esquemas de palavras (às

vezes chamados de esquemas ortográ cos, porque envolvem mudanças

na gra a ou no som das palavras) são formados (1) adicionando ou subtraindo uma letra ou sílaba no início, no meio ou no nal de uma

fi

fi

fi

fi

519

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO palavra, ou (2) trocando sons. Termos como os seguintes interessam mais ao gramático e ao prosodista do que ao retórico: prótese: adição de uma sílaba no início da palavra (alembrar em vez de

lembrar). epêntese: adição de uma sílaba no meio da palavra (florzinha em vez de

florinha). paralepse: adição de uma sílaba no final da palavra (cânone em vez de cânon).

aférese: supressão de fonema no início da palavra (tá em vez de está).

sincope: supressão de fonema no meio da palavra (pra em vez de para).

apócope: supressão de fonema no final da palavra (mui em vez de muito).

metátese: troca de posição de um fonema dentro de um vocábulo (soverte em vez de sorvete).

antistecon: mudança de som (melecina em vez medicina).

Podemos ver facilmente que tudo isso envolve uma mudança na forma

ou configuração das palavras. Os poetas costumavam empregar tais esquemas de acordo com a rima ou o ritmo de um verso, e como essas mudanças estão associadas principalmente à poesia, é costume considerar essas palavras alteradas como "dicção poética". Talvez o caso em

que mais usamos esquemas de palavras na prosa moderna seja o diálogo. Se um personagem costuma cortar sílabas de palavras ou pronunciar algumas palavras incorretamente, podemos indicar esses hábitos de

fala com mudanças ortográficas. Os leitores de Finnegans Wake podem

fornecer inúmeros exemplos de outros usos que James Joyce fez dos esquemas ortográficos em sua prosa incrivelmente engenhosa.

ESQUEMAS DE CONSTRUÇÃO 1. Esquemas de equilíbrio

PARALELISMO: similaridade de estrutura em um par ou série de palavras, frases ou orações relacionadas.

Exemplos: Ele tentou tornar a lei clara, precisa e justa. [...] em apoio a esta declaração,

com firme confiança na proteção da Proteção Divina, juramos mutuamen-

520

ESTILO te um ao outro nossas vidas, nossas fortunas e nossa sagrada honra. — De-

claração de Independência.

Devemos agora esperar que o Sr. Moynahan devote sua próxima década a

mais quatro ou cinco romances que banirão suas vacilações e incertezas,

purgarão suas influências desnecessárias e aperfeiçoarão seus dons nativos para a linguagem, paisagens e retratos. — L. E. Sissman, The New Yorker. É certo que se contemplasses a mulher inteira, havia aquela dignidade em seu aspecto, aquela compostura em seus movimentos, aquela complacência em suas maneiras, de modo que se sua forma te dá esperança, seu mérito te dá medo. — Richard Steele, The Spectator, n° 113. Sou um simples cidadão que quer viver em paz e não ser taxado até a morte, ou envenenado por oxigênio, ou despojado de minha sanidade e de minha casa por todas as coisas que você faz para me ajudar, para me defender, para fornecer-me velocidade, eletricidade, prestígio nacional e liberdade contra insetos. — Talk of the Town, The New Yorker.

Antes, cumpre-nos a nós, os presentes, dedicarmo-nos à grande tarefa que temos pela frente: que, diante dos combatentes mortos, devotemo-nos ainda mais à causa pela qual eles deram o exemplo máximo de devoção. Cumpre-nos a nós fazer com que esses homens não tenham morrido em vão, que esta nação, com a ajuda de Deus, assista ao renascimento da liber-

dade e que o governo do povo, pelo povo, para o povo, não desapareça da

face da terra. — Abraham Lincoln.

O paralelismo é um dos princípios básicos da gramática e da retórica.

O princípio exige que coisas equivalentes sejam estabelecidas em es-

truturas gramaticais coordenadas. Assim, os substantivos devem ser

combinados com substantivos, frases preposicionais com frases preposicionais, orações adverbiais com orações adverbiais. Quando esse princípio é ignorado, não apenas a gramática da coordenação é violada, mas a retórica da coerência é distorcida. Os alunos devem ser levados a perceber que as violações do paralelismo são graves, não apenas porque prejudicam a comunicação, mas porque refletem desordem de pensamento. Sempre que você vir uma conjunção coordenativa em uma

521

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO de suas frases, verifique se os elementos unidos pela conjunção são da

mesma classe gramatical. Essa verificação pode impedi-lo de escrever frases como estas, todas retiradas de trabalhos de alunos: Os adolescentes que dançam frug ou jerk são delinqüentes descontrolados,

juvenis ou ambos. Outras queixas comuns são a falha do Webster's Third em incluir material enciclopédico e por sua técnica de definição.

Este ato foi racional e premeditado, ou foi irracional e movido por impulso?

Ele soa como um nobre ameaçado pela revolução e que teme a libertação

das massas.

Essa situação não é apenas um problema para o torcedor, mas também afeta os atletas. (Uma violação comum de paralelismo quando conjunções correlativas são usadas).

Quando os elementos paralelos são semelhantes não só na estru-

tura, mas no comprimento (ou seja, quando têm o mesmo número de palavras, até o mesmo número de sílabas), o esquema é denominado isocólon. Por exemplo: Seu propósito era impressionar os ignorantes, desconcertar os hesitantes e confundir os escrupulosos. A adição de simetria de

comprimento à similaridade de estrutura contribui muito para o ritmo das frases. Obviamente, não precisamos de isocólon em toda estrutura

paralela. Essa regularidade de ritmo aproxima-se da batida recorrente

do verso. Visto que o paralelismo é um arti cio a que recorremos quando especi camos ou enumeramos pares ou séries de coisas semelhantes, é

fácil ver a relação íntima entre esse artifício da forma e o tópico da semelhança. Veja a análise do efeito retórico do paralelismo na frase de

Clark Kerr na seção anterior. ANTÍTESE: justaposição de idéias contrastantes, freqüentemente em

estrutura paralela.

fi

fi

522

ESTILO Exemplos: Embora estudioso, ele era popular; embora argumentativo, ele era modes-

to; embora in exível, ele era sincero; e embora metafísico, ele era ortodoxo.

— Dr. Samuel Johnson sobre o caráter do Reverendo Zacariah Mudge, no London Chronicle, 2 de maio de 1769. Essex achava que ele carecia de zelo como amigo; Elizabeth achava que ele carecia de função como sujeito. — Thomas Babington Macaulay, "Francis Bacon" (1837).

Nosso conhecimento tanto separa quanto une; nossas ordens desintegram e também integram; nossa arte nos aproxima e nos afasta. — J. Robert Oppenheimer, The Open Mind (1955).

Os que foram deixados de fora, tentaremos trazer para dentro. Os que ficarem para trás, ajudaremos a seguir adiante. — Richard M. Nixon, Discurso Inaugural, 20 de janeiro de 1969.

Um pequeno passo para um homem, um grande salto para a humanidade. — Neil Armstrong, ao pisar na lua, domingo, 20 de julho de 1969.

É o melhor dos tempos, mas o pior dos tempos: vivemos em uma época de prosperidade excepcional, mas passamos fome; a ciência moderna realiza milagres para salvar vidas, mas morremos na guerra; equilibramo-nos delicadamente na lua, mas destruímos o delicado equilíbrio da terra. Os jovens procuram um sentido na vida, mas estão confusos, desmoralizados,

frustrados. — Jesse E. Hobson e Martin E. Robbins, de um artigo na America, 27 de dezembro de 1969.

Quando ele estiver vazio, a vida estará cheia. — Legenda de um anúncio de

revista retratando um frasco de Canoe, uma colônia masculina da Dana.

Foi o autor desconhecido de Retorica ad Alexandrum quem mais claramente observou que a oposição em uma antítese pode residir nas palavras, nas idéias ou em ambas:

fl

523

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Uma antítese ocorre quando tanto as palavras quanto o sentido (ou somente um dos dois) opõem-se em contraste. Eis uma antítese tanto de palavras quan-

to de sentido: "Não é justo que meu oponente fique rico possuindo o que me pertence, enquanto eu sacrifico minha propriedade e viro mendigo". Na frase

seguinte, temos uma antítese meramente verbal: "Os ricos e abastados devem ajudar os pobres e necessitados"; e uma antítese só de sentido aqui: "Cuidei dele quando ele estava doente, mas ele tem sido causa de grande desgraça para

mim". Aqui não há antítese verbal, mas as duas situações são contrastadas. A dupla antítese (ou seja, tanto de sentido quanto de palavras) é a mais indicada,

mas os outros dois tipos também são antíteses (de Retorica ad Alexandrum, cap. 26, trad. E. S. Forster).

Bem utilizada, a antítese pode produzir o efeito de asseio aforístico e dar ao autor a reputação de sagacidade. A antítese está obviamente relacionada ao tópico da dessemelhança e ao tópico dos contrários. (Veja a análise de antítese na frase de Clark Kerr). 2. Esquemas de ordem de palavras incomum ou invertida (hipérbato)

ANÁSTROFE: Inversão da ordem natural ou usual das palavras.

Exemplos: Organizadas as frases estão de trás para frente, até embaraçar a mente (de

uma paródia ao estilo da TIME Magazine).

A questão entre a pregação extemporânea e com base em um discurso escrito, não está no âmbito deste tratado discutir, exceto o que pode ser

chamado de princípios retóricos. — Richard Whately, Elements of Rhetoric

(1828).

Do isolamento emocional, da preocupação com Deus e consigo mesmo,

das lutas pela liberdade, que parecem ter possuído muitos de meus amigos na mesma idade, não sei quase nada a respeito. — C. P. Snow, The Search.

Idiotas pomposos, Arcangeli e Bottini sem dúvida são. — Richard D. Altick e James F. Loucks, Browning's Roman Murder Story (1968).

524

ESTILO Fui, no que se refere ao momento imediato, embora. — Henry James, A volta do parafuso.

Rico, famoso, orgulhoso, um papa déspota pode ser, mas ele era de classe

média! — V. S. Pritchett, em uma crítica na New York Review of Books, 27

de fevereiro de 1969.

Bons músicos eles são. Bonitos eles são. Necessários, poderíamos dizer, eles

são. — Trabalho de aluno.

Pessoas que ele conhecia a vida toda, na verdade, ele não conhecia. — Tra-

balho de aluno.

Um único anúncio uma pesquisa não constitui. — Legenda de um anúncio de automóveis Peugeot.

A anástrofe encaixa-se perfeitamente em nossa definição de esquema:

"desvio do padrão ou disposição comum de palavras". Como esse desvio surpreende as expectativas, a anástrofe pode ser um artifício eficaz

para chamar a atenção. Mas sua função principal é garantir a ênfase. É

comum que o início e o fim de uma oração sejam as posições de maior destaque. Palavras colocadas nessas posições chamam atenção especial,

e quando essas palavras iniciais ou finais normalmente não são encontradas nessas posições, elas recebem uma ênfase extraordinária.

PARÊNTESE: inserção de alguma unidade verbal em uma posição que interrompe o fluxo sintático normal da frase.

Exemplos:

[..] Entretanto, de tudo aquilo de que outrem se ufana (falo como um insensato), disso também eu me ufano. [...] São ministros de Cristo? Falo

como menos sábio: eu, ainda mais. — 2Cor 11, 21, 23.

Mas quando Savage era provocado, e pequenas ofensas bastavam para provocá-lo, ele executava sua vingança com aspereza máxima, até que a paixão

diminuísse. — Samuel Johnson, Life of Richard Savage.

525

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO No momento, tudo o que faltava era decidir onde eu faria pós-graduação,

e essa questão foi resolvida, os "esnobes" estavam certos, por uma bolsa

Kellett e, além disso, uma bolsa Fulbright depois. — Norman Podhoretz,

Making It (1967). Qualquer teoria da sociedade pós-histórica — nossa sensação de estar "na

história" é, em grande parte, determinada pela pressão dos con itos políticos e sociais — terá que considerar o dilema das motivações humanas na cidade justa. — George Steiner, Linguagem e silêncio (1967).

Por mais que os intérpretes alterem o texto (outro exemplo notório são as

interpretações "espirituais" rabínicas e cristãs do Cântico dos Cânticos, claramente erótico), eles devem concordar que estão lendo um sentido que

já existe ali. — Susan Sontag, Contra a interpretação (1966). Ele disse que supervisionava dez editores, outro eufemismo, em seu departamento, que limpa 90% da programação de entretenimento da NBC, incluindo filmes. — Joan Barthel, de um artigo na Life, 1° de agosto de 1969.

Existe até, e é a grande realização deste livro, uma curiosa sensação de

felicidade em seus parágrafos. — Norman Mailer, de uma resenha de livro em Canibais e cristãos (1966).

A marca distintiva dos parênteses é que o membro interpolado é "cor-

tado" da sintaxe do resto da frase. Um parêntese insere, de modo abrupto (e geralmente breve), um pensamento pela tangente. Embora a questão entre parênteses não seja necessária para a completude gramatical da frase, ela tem um efeito retórico pronunciado. Por um breve momento, ouvimos a voz do autor, comentando, editorializando e, por isso, a frase ganha uma carga emocional que de outra forma não teria. Observe, por exemplo, a diferença de efeito se o elemento entre parên-

teses na primeira frase de São Paulo estiver sintaticamente integrado

com o resto da frase: "Entretanto, falo como um insensato se afirmo

que de tudo aquilo de que outrem se ufana, eu também me ufano".

fl

526

ESTILO APOSIÇÃO: colocação, lado a lado, de dois elementos coordenados, onde o segundo serve como uma explicação ou modificação do primeiro.

Exemplos:

John Morgan, presidente dos Filhos da República, não pôde ser contatado por telefone. Homens desse tipo — mercenários, habitués de salões de bilhar, gigolôs,

catadores de praia — desperdiçam seus talentos em banalidades. — Tra-

balho de aluno.

Além da associação do latim com a retórica como arte, este último fato

mencionado, de que o latim era totalmente controlado pela escrita, por mais que fosse usado para a fala, produziu outros tipos específicos de im-

pulsos em direção à oralidade no mundo acadêmico. — Walter J. Ong, de

um artigo no PMLA, junho de 1965.

Portanto, teríamos ido juntos, os ortodoxos e eu. — George Steiner, de um

artigo no Commentary, fevereiro de 1965.

Uma lista variada, esta, mas todos os itens nela são caracterizados pelos

mesmos mal-entendidos e equívocos sobre a natureza do poder america-

no; e todos têm isto em comum, o fato de desa ar a solução enquanto as

energias e recursos da nação são monopolizados pela guerra no Vietnã. — Henry Steele Commager, em uma resenha de livro na New York Review of Books, 5 de dezembro de 1968.

A aposição é um método tão comum de ampliação na prosa moderna que di cilmente parece estar em conformidade com a nossa de nição de um esquema como "desvio engenhoso dos padrões comuns da linguagem". Mas se re etirmos sobre nossa própria experiência, deve-

remos reconhecer que estruturas apositivas raramente ocorrem na fala

improvisada. A aposição pode não ser propriedade exclusiva da prosa escrita, mas certamente ocorre com mais frequência aí, ou seja, em uma situação em que temos tempo para fazer uma escolha consciente em re-

lação à disposição das palavras. Portanto, o uso da aposição requer ha-

bilidade. Embora a aposição não perturbe o fluxo natural da frase tão

fi

fi

fl

fi

527

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO violentamente quanto as expressões entre parênteses (principalmente

porque a aposição é gramaticalmente coordenada com a unidade que segue), ela interrompe o fluxo, fornecendo alguma informação ou ex-

plicação de modo aparentemente fortuito. 3. Esquemas de omissão ELIPSE: omissão deliberada de uma palavra ou de palavras que estão implícitas no contexto.

Exemplos: E ele com vocês para a Inglaterra. — Hamlet, Ix, ili, 4.

Kant, podemos supor, ficou mais surpreso com a aparente destruição de Hume de todas as bases para a certeza filosófica; Reid, com as conseqüên-

cias remanescentes para a moralidade e a teologia. — Sir Leslie Stephen, History of English Thought in the Eighteenth Century (1876).

A água era tão singularmente clara que, quando tinha apenas seis ou nove metros de profundidade, o fundo parecia flutuar! Sim, onde tinha até vinte

e cinco metros de profundidade. Cada pedrinha era distinta, cada truta colorida, cada palmo de areia. — Mark Twain, Roughing It.

O que vale para a religião vale para a educação. Na Nova Inglaterra co-

lonial, a educação era abrangente, mas, ainda assim, elitista; e em suas

suposições básicas, intelectualista. — David Marquand, de um artigo no

Encounter, março de 1964.

O rios pe do tu de do aduto, da burguesia e sore, 2 de agosto de 1969.

vembro de 1968.

528

ESTILO O mestrado é concedido por setenta e quatro departamentos, e o doutora-

do, por sessenta. — Trabalho de aluno.

A elipse pode ser um meio elegante e envolvente de garantir economia

de expressão. Devemos cuidar, entretanto, para que as palavras compreendidas sejam gramaticalmente compatíveis. Se escrevêssemos: "O líder foi enforcado, e seus cúmplices, presos", incorreríamos em solecismo, porque o foi compreendido não é gramaticalmente compatível com o sujeito plural (cúmplices) da segunda oração. E damos mancada se dissermos: "Enquanto estava na quarta série, meu pai me levou ao zoológico". ASSÍNDETO: omissão deliberada de conjunções entre uma série de orações relacionadas. Exemplos: Vim, vi, venci.

Eles podem ter felicidade em fazer o bem, podem ter felicidade em aprender, podem ter felicidade mesmo em criticar. — Matthew Arnold.

A infantaria avançou com difculdade, os tanques posicionaram-se com estrépito, os grandes canhões apontaram seus focinhos para as colinas, os

aviões varreram a vegetação rasteira com tiros.

Os retóricos Tudor tinham um nome especial para a omissão de

conjunções entre palavras ou frases isoladas: Eles teriam rotulado as

seguintes orações como exemplos de BRAQUILOGIA: ...] e que o governo do povo, pelo povo, para o povo, não desapareça da

face da terra. — Abraham Lincoln.

1. o querer guar ao por quas uma to, coroataremos qualquer adversário para assegurar a perpetuação e o sucesso da

liberdade. — John F. Kennedy.

529

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Mas parece não haver nenhuma boa razão para não podermos usar o termo assindeto para todas essas instâncias de omissão de conjunções. O principal efeito do assíndeto é produzir um ritmo acelerado na frase.

Aristóteles observou que o assíndeto era especialmente apropriado para

a conclusão de um discurso, porque ali, talvez mais do que em outros lugares, queremos produzir a reação emocional provocada, entre outros

meios, pelo ritmo. E Aristóteles conclui sua Retórica com um exemplo de assíndeto que é perceptível até na tradução: "Eu disse, vós ouvistes, conheceis os fatos, julgai".

O esquema oposto é o POLISSÍNDETO (uso deliberado de muitas con-

junções). Observe como a proliferação de conjunções na seguinte citação desacelera o ritmo da prosa e produz um tom impressionantemente solene: E disse Deus: Produza a terra alma vivente conforme a sua espécie; gado, e répteis e feras da terra conforme a sua espécie; e assim foi. E fez Deus as feras da

terra conforme a sua espécie, e o gado conforme a sua espécie, e todo o réptil da terra conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.'4

Ernest Hemingway usa polissíndeto para criar outro efeito. Observe como o e repetido na seguinte passagem sugere o uxo e a continuidade da experiência: Perguntei quem tinha matado, ele disse que não sabia, mas que o cara estava

morto. Já era noite, tinha água parada na rua, não havia luz, e havia janelas quebradas e barcos em toda a cidade e árvores caídas e tudo rachado, peguei

uma baleeira e saí e encontrei meu barco onde eu o tinha deixado em Mango

Key, e ele estava inteiro, só que cheio d'água.'

O polissindeto pode ser usado para produzir ênfase. Observe a diferença no efeito destas duas frases: Neste semestre, estou estudando inglês, história, biologia, matemática, so-

ciologia e educação física.

14 Gn 1,24-25.

15 Ernst Hemingway, Depois da tempestade [tradução de José J. Veiga, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014 — NT].

fl

530

ESTILO Neste semestre, estou estudando inglês e história e biologia e matemática e

sociologia e educação física.

4. Esquemas de repetição ALITERAÇÃO: repetição de fonemas consonantais iguais ou semelhantes em duas ou mais palavras adjacentes.

Exemplos:

Era uma floresta de zibelina silenciosa e solene.

— James Thomson, "The Castle of Indolence", 1, 38.

Progresso não é proclamação nem palavrório. É probidade, sem parcialidade. Não é a perturbação de um povo predisposto à paixão, nem uma

promessa proposta. — Warren G. Harding nomeando William Howard

Taft em 1912. Embarcações americanas já haviam sido achadas, apreendidas e aniquiladas. — John F. Kennedy, Profiles in Courage.

A lúgubre lua levitava sobre a névoa da lavoura nada longínqua. — Vladi-

mir Nabokov, Fala, memória.

Que chegasse a ouvi-la voar entre as elevadas relvas

E acordasse na fazenda finda para sempre nessa terra sem filhos.

— Dylan Thomas, "Fern Hill", 11, 50-51.

Obedeça sua sede. — Legenda de um anúncio da Sprite.

Destilamos duas vezes uma dose de cada vez, em vez de virar tudo, velozes.

— Legenda de um anúncio do bourbon Old Grand-Dad.

Na poesia anglo-saxônica, a aliteração, em vez da rima, era o recurso

para unir os versos. Por contribuir para a eufonia do verso ou prosa, a

531

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO aliteração tornou-se uma característica comum da prosa eufuística e da

poesia romântica, mas raramente é usada na prosa moderna, por ser um maneirismo. Às vezes, ela é usada para criar efeitos específicos, como um

artifício mnemônico de slogans (Better Business Builds Bigger Bankrolls) e frases publicitárias (Sparkling... Flavorful... Miller High Life.... The

Champagne of Bottle Beer... Brewed only in Milwaukee). Outras vezes, a aliteração é deliberadamente usada para obter um efeito cômico: Ele era

um proponente, para lá de pomposo, do precioso pedantismo.

ASSONÂNCIA: repetição de sons de vogais semelhantes, precedidos e seguidos por consoantes diferentes, nas sílabas tônicas de palavras

adjacentes. Exemplos:

An old man, blind, despised, and dying king — Princes, the dregs of their dull race, who flow Through public scorn — mud from a muddy Spring —

— Shelley, "Sonnet: England in 1819". Had Gray written ofen thus, it had been vain to blame and useless to praise him. — Samuel Johnson, Life of Thomas Gray.

Sob um pé de zimbro cantavam os ossos, espalhados, reluzentes É bom que estejamos espalhados, pouco fizemos uns pelos outros,

Sob uma árvore no frescor do dia, com a bênção da areia. - TS. Eliot, "Quarta-feira de cinzas" 16 Whales in the wake like capes and Alps

Quaked the sick sea and snouted deep

— Dylan Thomas, "Ballad of the Long-Legged Bait". No rosto, o gosto pela vida. — Legenda de um anúncio de navios da linha

francesa. 16 Tradução de Caetano W. Galindo: Companhia das Letras, 2018 — NT.

532

ESTILO A assonância, um artifício sonoro, como a aliteração, é usada prin-

cipalmente na poesia. Um escritor de prosa pode usar deliberadamente a assonância para produzir certos efeitos onomatopoéticos ou cômicos, mas esse é o perigo da repetição descuidada de sons vocálicos semelhantes, produzindo frases estranhas. ANÁFORA: repetição da mesma palavra ou grupo de palavras no início de orações sucessivas.

Exemplos: O Senhor se assentou sobre o dilúvio; o Senhor se assenta como Rei, perpetuamente. O Senhor dará força ao seu povo; o Senhor abençoará o seu

povo com paz — Salmo 29.

Devemos lutar nas praias, devemos lutar nas pistas de pouso, devemos lutar nos campos e nas ruas, devemos lutar nas colinas. — Winston Chur-

chill, discurso na Câmara dos Comuns, 4 de junho de 1940.

Estamos caminhando na terra da liberdade. Vamos [...] marchar rumo à realização do sonho americano. Vamos marchar sobre as moradias segrega-

das [...]. Vamos marchar sobre as escolas segregadas [...]. Vamos marchar

sobre a pobreza [...]. Vamos marchar sobre as urnas, marchar sobre as urnas até que os engodos raciais desapareçam da arena política. Vamos marchar sobre as urnas até que os Wallaces desta nação se afastem tremendo e

em silêncio. — Martin Luther King Jr., em marcha pelos direitos civis de Selma para Montgomery, Alabama, 1965,7

Eles são comuns, assim como roubo, trapaça, perjúrio e adultério sempre

foram comuns. Eles eram comuns, não porque as pessoas não soubessem o que era certo, mas porque gostavam de fazer o que era errado. Eles eram

comuns, embora proibidos por lei. Eles eram comuns, embora condenados pela opinião pública. Eles eram comuns, porque naquela época a lei e a opinião pública não tinham força suficiente para conter a ganância de

17 Em A autobiografia de Martin Luther King — NT.

533

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO magistrados poderosos e sem princípios. — Thomas Babington Macaulay,

"Francis Bacon", 1837

Por que os brancos devem possuir todas as lojas da nossa comunidade? Por

que os brancos devem dirigir os bancos da nossa comunidade? Por que a

economia da nossa comunidade deve estar nas mãos do homem branco?

Por quê? — Discurso de Malcolm X. É um luxo, é um privilégio, é uma indulgência para aqueles que estão à vontade. — Edmund Burke, "Carta a um nobre senhor", 1796. Já estamos em 1969, e 1965 parece quase uma memória de infância. Ali,

éramos os conquistadores do mundo. Ninguém poderia nos impedir. Iamos acabar com a guerra. Íamos acabar com o racismo. Íamos mobilizar os

pobres. Íamos dominar as universidades. — Jerry Rubin, em um artigo na New York Review of Books, 13 de fevereiro de 1969.

Sempre que ocorre anáfora, podemos ter certeza de que o autor a usou deliberadamente. Visto que a repetição das palavras ajuda a estabelecer um ritmo marcante na sequência das orações, esse esquema costuma ser reservado para as passagens em que o indivíduo deseja produzir um forte efeito emocional. Observe como Reinhold Niebuhr

combina anáfora com jogos de palavras para produzir este aforismo simples: "A capacidade do homem para a justiça torna a democracia possível; mas a inclinação do homem para a injustiça torna a democracia necessária". EPÍSTROFE: repetição da mesma palavra ou grupo de palavras no final de orações sucessivas. Exemplos: SHYLOCK: Terei minha fiança! Não fales contra a fiança! Jurei que terei minha fiança! — O mercador de Veneza, Ii, ili.

Para o bom americano, muitos assuntos são sagrados: o sexo é sagrado, as mulheres são sagradas, as crianças são sagradas, os negócios são sagrados,

534

ESTILO

Maria odas aquis que cerias unto peit fogue pado peno precisarmos ser. [...] Não podemos aprender uns com os outros até que

paremos de gritar uns com os outros. — Richard M. Nixon, Discurso Inaugural, 20 de janeiro de 1969.

Talvez essa seja a lição mais importante a tirar da vida na praia: simplesmente a memória de que cada ciclo da maré é válido, cada ciclo de ondas é

válido, cada ciclo de uma relação é válido. — Anne Lindbergh, Gift from

the Sea.

Sul, lutar contra os japoneses, você sangrou. — Discurso de Malcolm X.

Em um bolo, nada é tão gostoso como manteiga de verdade, nada umedece

como manteiga de verdade, nada enriquece como manteiga de verdade, nada satisfaz como manteiga de verdade. — Legenda de um anúncio da Pillsbury.

Ele está aprendendo rápido. Você está juntando rápido? — Legenda de um

anúncio da Aetna Life Insurance.

a insemit por real espace um impor arado, no ganda

EPANALEPSE: repetição no final de uma oração da palavra que ocorreu no início da oração.

Exemplos: Sangue comprou sangue, e golpes responderam golpes: força combinada

com força e poder confrontado com poder. — Shakespeare, Rei João, 11, i.

535

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO O ano persegue o ano, a decadência persegue a decadência. — Samuel

Johnson, "The Vanity of Human Wishes". Possuindo o que ainda não nos possuía, Possuídos pelo que não possuíamos mais. — Robert Frost, "The Gift Outright". E quando a sombra desaparece e não existe mais, a luz que permanece torna-se uma sombra para outra luz. — Kahlil Gibran, O Profeta.

Um indivíduo louco por nuts faz qualquer loucura para comer nuts. — Legenda de um anúncio da manteiga de amendoim Skippy.

As formas dos relatórios variam tanto quanto as formas das pessoas. — Legenda de um anúncio da Nekoosa Paper Company.

A epanalepse é rara na prosa, provavelmente porque, quando surge a situação emocional que pode tornar adequado tal esquema, a poesia parece ser a única forma de expressar adequadamente a emoção. Seria perfeitamente natural para um pai expressar sua tristeza pela morte de um filho amado desta forma: "Ele era carne da minha carne, osso dos meus ossos, sangue do meu sangue". Mas o pai estaria falando em prosa ou poesia? Talvez a única resposta possível é que se trata de uma linguagem intensa, o tipo de linguagem que, apesar de parecer planejada, surge espontaneamente de emoções profundas. A repetição, sabemos, é uma das características da linguagem altamente emocional. E, neste caso, que melhor maneira para o pai expressar a intimidade da relação com o filho do que pela repetição de palavras no início e no final de sucessivos grupos de palavras? Talvez o melhor conselho geral sobre o uso da epanalepse (na verdade, de todos os esquemas apropriados somente para circunstâncias extraordinárias) seria: "Se você decidir conscientemente usar a epana-

lepse, não use". Quando chegar o momento apropriado, o esquema se apresentará espontaneamente.

536

ESTILO ANADIPLOSE: repetição da última palavra de uma oração no início da oração seguinte.

Exemplos: O trabalho e o cuidado são recompensados com o sucesso, o sucesso produz confiança, a confiança relaxa a indústria e a negligência arruína a repu-

tação que a diligência construiu. — Dr. Johnson, Rambler n° 21. Eles dizem o que é totalmente óbvio, mas raramente percebido: que se você

tem muitos móveis que não dá para mover muito, esses móveis exigem es-

panadores, espanadores exigem criados, criados exigem selos de garantia. ...] Ela [a propriedade] produz homens de peso. Homens de peso não podem, por definição, voar do Oriente para o Ocidente. — M. Forster, "My

Wood", Abinger Harvest.

O crime foi comum, comum a dor. — Alexander Pope, "Eloisa to Abelard".

A risada tinha que ser exagerada ou se transformaria em soluço, e soluçar seria perceber, e perceber seria desesperar-se. — John Howard Griffin, Bla-

ck Like Me.

Ter poder isola [a liderança totalitária); o isolamento gera insegurança; a inse-

gurança gera suspeita e medo; suspeita e medo geram violência. — Zbigniew K. Brzezinski, The Permanent Purge, Politics in Soviet Totalitarianism.

Queeg: "A bordo do meu navio, 'excelente' é desempenho padrão. De-

sempenho padrão é subpadrão. Subpadrão não é permitido". — Herman

Wouk, The Caine Mutiny.

CLÍMAX: disposição de palavras, frases ou orações em ordem cres-

cente de importância.

Exemplos: Não só isso, mas nos gloriamos até das tribulações. Pois sabemos que a

tribulação produz a paciência, a paciência prova a fidelidade e a fidelida-

537

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO de, comprovada, produz a esperança. E a esperança não engana. Porque o

amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que

nos foi dado (Rm 5, 3-s).

Que o homem reconheça as obrigações para com sua família, seu país e seu

Deus. — Trabalho de aluno.

Renunciar a meu amor, minha vida, a mim mesmo e a ti. — Alexander Pope, "Eloisa to Abelard".

Acho que chegamos a um ponto crucial, não só para nossa nação, não só para toda a humanidade, mas para a vida na Terra. — George Wald, "A Generation in Search of a Future", discurso proferido na MIT em 4 de

março de 1969.

Quando um menino deixa de lado seus piões, suas bolinhas de gude e sua

bicicleta em favor de uma menina, outra menina e ainda outra menina, ele se torna um jovem. Quando o jovem deixa de lado sua primeira menina e sua segunda menina por escolher a menina, ele se torna um solteiro. E quando o solteiro não agüenta mais, ele se torna um marido. — Alan Beck, em um artigo na Good Housekeeping, julho de 1957. Destrói os nervos, vivissecciona a psique e pode até matar de susto muitos espectadores. — Resenha publicada na TIME, 7 de janeiro de 1966.

O clímax pode ser considerado um esquema de repetição apenas quando, como no primeiro exemplo citado acima, é uma anadiplose contínua envolvendo três ou mais membros. Caso contrário, como no

segundo e terceiro exemplos, é simplesmente um esquema que organiza uma série em ordem crescente de importância. Este tipo de clímax

pode ser considerado um esquema relacionado ao tópico dos graus, e é

o que você encontrará com mais freqüência na prosa moderna e provavelmente usará em sua própria prosa.

538

ESTILO ANTIMETÁBOLE: repetição de palavras, em orações sucessivas, em ordem gramatical reversa.

Exemplos: Devemos comer para viver, não viver para comer. — Molière, L'Avare. O principal esforço do escritor deve ser distinguir a natureza do costume: o que é estabelecido porque é certo e o que é certo somente porque foi es-

tabelecido. — Samuel Johnson, Rambler, n° 156.

Pensei que ele [Lord Chesterfield] fosse um lorde entre homens sagazes,

mas vejo que ele é somente um homem sagaz entre lordes. — Samuel Johnson, conforme citado em A vida de Samuel Johnson, de James Bowell.

A humanidade deve pôr fim à guerra ou a guerra porá fim à humanidade.

— John F. Kennedy, Discurso das Nações Unidas, 1961.

Não perguntem o que seu país pode fazer por vocês, mas o que vocês po-

dem fazer por seu país. — John F. Kennedy, Discurso de posse, 1961. O negro precisa do homem branco para libertá-lo de seus medos. O homem branco precisa do negro para libertá-lo de sua culpa. — Martin Luther King Jr., em um discurso proferido em 1966.

Você pode tirar Salem do país, mas não pode tirar o país de Salem. — Le-

genda de um anúncio de cigarro Salem.

Você gosta dela, ela gosta de você. — Slogan publicitário da Seven-Up.

Todos esses exemplos têm o tom da "frase perfeita", o tipo de frase que

figura na maioria dos aforismos memoráveis. Será que frase do discurso de posse do presidente Kennedy seria tão frequentemente citada se fosse algo como "não perguntem o que os americanos podem fazer por vocês; seria melhor perguntar se o seu país precisa dos seus serviços"? O apelo

perdeu a "magia". Um bom exercício para o estudante é converter os

539

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO esquemas apresentados nesta seção em prosa comum, pois esse exercício

relevará a importância dos esquemas para a expressão do pensamento.

QUIASMO: ("o cruzamento") reversão de estruturas gramaticais em frases ou orações sucessivas.

Exemplos: Durante o dia, a brincadeira, e a dança à noite. — Samuel Johnson, "The

Vanity of Human Wishes".

Seu tempo, um momento, e um ponto, seu espaço. — Alexander Pope, Ensaio sobre o homem, Epístola 1.

Exalta os inimigos, os amigos destrói. — John Dryden, "Absalom and Achitophel". É difícil ganhar dinheiro, mas gastá-lo é fácil. — Trabalho de aluno.

O quiasmo é semelhante à antimetábole porque também envolve uma reversão das estruturas gramaticais em frases ou orações sucessivas, mas sem repetição de palavras. Tanto o quiasmo quanto a antimetábole podem ser usados para reforçar a antitese. POLIPTOTO: repetição de palavras derivadas da mesma raiz.

Exemplos:

Os gregos são robustos e muito hábeis na bravura, ousados sem confronto na habilidade, bravos na ousadia. — Shakespeare, Troilo e Créssida, 1, i, 7-8.

Essays (1955).

540

ESTILO Afirmo aqui minha firme convicção de que a única coisa que devemos temer

é o próprio temor. — Franklin Delano Roosevelt, Primeiro Discurso de Posse, março de 1933.

Mas, neste país deserto, eles podem ver a terra tornando-se inútil pelo uso

excessivo. — Joseph Wood Krutch, The Voice of the Desert (1955).

Gostaríamos de conter a figura incontível em um cálice. — Loren Eiseley,

em um artigo da Harpers, março de 1964.

Não como um chamado para guerrear, embora estejamos em guerra. — John F. Kennedy, Discurso de posse, 1961. A nação sangra o sangue deles, perdendo sua confiança sangüinea. — Tra-

balho de aluno. Please, Please Me [Por favor, favoreça-me]. — Título de uma música dos

Beatles.

O poliptoto é muito parecido com os jogos de palavras que investigaremos na próxima seção sobre tropos. OS TROPOS METÁFORA E SÍMILE METÁFORA: comparação implícita entre duas coisas de natureza di-

ferente, mas com algo em comum.

SÍMILE: comparação explícita entre duas coisas de natureza dife-

rente, mas com algo em comum.

Exemplos (todos de trabalhos de alunos): Ele estava encurvado como um ponto de interrogação. (símile)

No exame final, vários alunos tomaram bomba. (metáfora)

541

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Como uma flecha, o promotor foi direto ao ponto. (símile) A questão da ajuda federal para escolas paroquiais é espinhosa. (metáfora) O silêncio caiu sobre a audiência como um bloco de granito. (símile)

Logo que as manchetes começaram a registrar o estopim de Birmingham, manifestações explodiram por todo o país. (metáfora)

Abordaremos metáfora e símile juntos, porque são tropos muito pa-

recidos. A diferença entre metáfora e símile reside principalmente na maneira de expressar a comparação. Enquanto a metáfora diz: "Davi foi um leão na batalha", o símile diz: "Davi foi como um leão na batalha". Ambos os tropos estão relacionados ao tópico da semelhança, pois embora a comparação seja feita entre duas coisas de natureza diferente (Davi e leão), há algum aspecto em que eles são semelhantes (por exemplo, eles são corajosos, lutam ferozmente ou são invencíveis). Temos aqui uma transferência de sentido: Davi não é literalmente um leão, mas é um leão em algum outro sentido. Uma metáfora estendida ou contínua é conhecida como alegoria. Vemos uma dessas metáforas sustentadas em The Battle of the Books, onde Jonathan Swift compara os escritores clássicos, não à aranha, que tece sua teia das próprias entranhas, mas à poderosa abelha: Quanto a nós, os antigos, somos semelhantes à abelha, no sentido de que sabemos que nada é nosso, além de nossas asas e nossas vozes, isto é, nossos

vôos e nossa linguagem. Quanto ao resto, tudo o que temos foi por meio

de infinito trabalho e busca, percorrendo todos os cantos da natureza; a diferença é que, em vez de terra e veneno, escolhemos encher nossas colméias com mel e cera, fornecendo, assim, à humanidade as duas coisas mais nobres, que são a doçura e a luz.

Intimamente relacionada a essa forma de metáfora estendida está a parábola, narrativa episódica concebida para passar uma lição moral. Os exemplos mais famosos de parábolas são aqueles encontrados no Novo Testamento. Na parábola do semeador, por exemplo, nosso interesse não está tanto na história de um homem que saiu para semear, mas no que cada detalhe do relato "representa", no que os detalhes "significam". Sempre que os discípulos ficavam intrigados sobre o sig-

542

ESTILO nificado de uma parábola em particular, pediam a Cristo que a interpretasse para eles.

E enquanto estamos falando sobre esses tropos analógicos, devemos alertar os escritores contra a "metáfora mista", que ocorre quando

eles perdem de vista os termos de suas comparações. Quando Joseph

Addison disse: "Não existe uma única visão da natureza humana que não seja suficiente para extinguir as sementes do orgulho", é óbvio que

ele está misturando duas metáforas. Poderíamos dizer "extinguir as chamas do orgulho" ou "regar as sementes do orgulho", mas não podemos misturar a idéia de "extinguir" com "sementes". Os retóricos às vezes chamavam essa "distorção de palavras" de CATACRESE. SINÉDOQUE: figura de linguagem em que uma parte representa o todo.

Exemplos: Gênero substituído pela espécie:

embarcação por navio, arma por espada, criatura por homem, armas por rifles, veículo por bicicleta.

Espécie substituída pelo gênero: pão por comida, matador por assassino.

Parte substituída pelo todo: vela por navio, mãos por ajudantes, tetos por casas.

Matéria-prima substituída pelo produto final: prata por dinheiro, lona por vela, aço por espada.

Em geral, temos uma instância de sinédoque quando a parte, gênero

ou adjunto mencionado sugere outra coisa. É uma maneira indireta de falar. Todos os itens a seguir ilustram esse tropo: "O pão nosso de

cada dia nos dai hoje", "Todas as mãos foram convocadas para o tom-

badilho", "Nem o mármore, nem os monumentos dourados dos príncipes sobreviverão à poderosa rima", "Eles enfrentaram as ondas para

proteger sua pátria", "Brandi vosso aço, homens", "Não há tetos nesta cidade que abriguem um homem honrado?", "É agradável contemplar

543

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO uma manufatura subindo gradualmente de seu estado inicial medíocre

pelos sucessivos trabalhos de inúmeras mentes". — Johnson, Rambler n° 9. "A porta fechou-se para o cirurgião e a parteira extemporâneos, e

Roaring Camp, do lado de fora, fumava seu cachimbo e esperava". — Bret Harte, "A sorte de Roaring Camp". METONÍMIA: uso de alguma palavra atributiva ou sugestiva em vez do que realmente significa.

A metonímia e a sinédoque são tão parecidas que George Campbell,

retórico do século xvIII, questionou se deveríamos fazer algum grande esforço para distingui-las. Os retóricos que se esforçaram para

discriminar esses dois tropos chamariam os seguintes exemplos de

metonímia: Se a proximidade de nossa última necessidade trouxesse mais conformidade em relação a ela, haveria felicidade nos fios de cabelo grisalhos e não

haveria nenhuma calamidade nos meios sentidos. [...] e Carlos V não pode

esperar viver dentro de dois Matusaléns de Heitor. — Sir Thomas Browne, Urn-Burial (1658).

Não tenho nada a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor. — Sir

Winston Churchill, discurso na Câmara dos Comuns, em 13 de maio de

1940.

[...] E com firme confiança na justiça, liberdade e paz na terra que elevará

os corações e as esperanças da humanidade para aquele dia distante em

que ninguém brandirá um sabre e ninguém arrastará correntes. — Adial Stevenson, discurso de aceitação, 21 de julho de 1952.

Na Europa, rejeitamos De Gaulle, e agora ele dá uma mão calorosa a Mao

Tse-Tung. — Richard M. Nixon, discurso de campanha, 1960.

544

ESTILO Vocês não podem ler a história dos Estados Unidos, meus amigos, sem conhecer a incrível história desses milhares de mulheres anônimas. E se alguma vez contarem a história com franqueza, vocês saberão que foi o

chapéu de sol, e não o sombreiro, que colonizou o país. — Edna Ferber,

Cimarron (1930).

O capital aprendeu a sentar e falar com o trabalho. — George Meany, discurso em 1966. Rompendo a Parede Branca da Justiça do Sul. — Título de artigo na TIME,

Is de abril de 1966. Em outra canção escrita por [Bob] Dylan e cantada pelos Turtles, ele

fala de vinhas cansadas que só querem um ombro forte onde se apoiar.

— Resenha na TIME, 17 de setembro de 1966.

TROCADILHOS: nome genérico para figuras com jogo de palavras.

(1) ANTANÁCIASE: repetição de uma palavra com dois sentidos diferentes.

Mas que não me condenem por introduzir licenciosidade quando oponho-

-me a que se estabeleçam licenças [...]. — John Milton, Areopagitica (1644).

Se não executarmos o plano de união, seremos executados. — Benjamin

Franklin.

Your argument is sound, nothing but sound. — Benjamin Franklin.

Embora vivamos à parte um do outro, você ainda faz parte de mim.

— Letra da música "On Blueberry Hill'". Nada está mais próximo do lugar-comum supremo de nossa era comum do

que sua preocupação com o nada. — Robert Martin Adams, Nil (1966).

545

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Você pode achar esse scotch suave como o Barrymore, mas Barrymore não era scotch.8 — Anúncio do uísque Seagram's.

O cigarro longo que tem longo sabor. — Anúncio do cigarro Pall Mall.

Pensamos no bem do cliente, com viagens bem mais tranquilas. — Anúncio

da Overseas National Airways.

(2) PARONOMÁSIA: uso de palavras semelhantes no som, mas dife-

rentes no significado. Neither hide nor hair of him had been seen since the day that Kwame Nkru-

mah had been ostrichized, accused of being the biggest cheetah in Ghana, but safaris anyone knew, no fowl play was involved. — Artigo na TIME, 8 de

abril de 1966. Anquinhas: Um traseiro traiçoeiro. — Vladimir Nabokov, Lolita.

Dando pérgulas aos mortos. — Marshall McLuhan. Fran [Elizabeth Taylor] is a chorine waiting for her paramour to obtain a divorce and alter her situation. — Crítica de filme na TIME, 9 de março de 1970.

O fim do plano pleno, explanado. — Anúncio da Braniff International. One's metaphoric retch exceeds one's metaphoric gasp. — John Leonard, co-

luna na Esquire, fevereiro de 1969.

Independência é o que o menino sente quando quer ficar em paz, sem os pais. — Minneapolis Star, 26 de abril de 1966. A incrível idéia nas viagens de negócios: Hilton Inns. — Anúncio da rede

Hilton Inns. (3) SILEPSE: uso de uma palavra compreendida de forma diferente em relação a duas ou mais palavras que ela modifica ou governa.

18 Jogo de palavras com a palavra scotch, que significa "escocês" e "uísque" — NT.

546

ESTILO Exemplos: Aqui está, grande Anna, a quem três reinos obedecem, às vezes toma um conselho, às vezes chá.

— Alexander Pope, The Rape of the Lock.

A peça apresenta um humor irascível, e a atuação contundente de Nicol

Williamson provoca risos e também contusões. — Resenha na TIME, 1° de abril de 1966.

Há um certo tipo de mulher que prefere passar um bife a roupas. — Anúncio de ternos Peck & Peck.

As luzes têm tanta probabilidade de atrair uma bala vietcongue quanto

um mosquito. — Artigo na TIME, 10 de setembro de 1966.

Who was the first to wrap up a case: Scotland Yard or Alexander Gordon? — Anúncio do uísque Gordon's. The ink, like our pig, keeps running out of the pen.

— Trabalho de aluno

O zeugma é um pouco parecido com a silepse, mas enquanto na silepse a palavra única é gramatical e lingüisticamente compatível com as outras palavras que governa, em um zeugma a palavra única não se encaixa gramatical ou lingüisticamente com um membro do par. Se dissermos: "Jane assassinou seu pai e tu também" ou "ele manteve um florescente negócio e cavalo de corrida", estaríamos produzindo um zeugma, porque em ambas as frases a palavra em itálico é gramatical ou lingüisticamente incongruente com um membro (nestes exemplos, o segundo membro) do par que governa. Estas duas frases de The Rape of the Lock, de Pope, freqüentemente classificadas como zeugma, "ou manchar sua honra, ou seu novo brocado" e "ou perder seu coração, ou o colar, em um baile", de acordo com nossa definição, seriam exemplos de silepse. Silepse é a única dessas duas figuras que pode ser considerada uma forma de trocadilho. O zeugma, se utilizado habilmente, pode ser

547

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO uma impressionante demonstração de inteligência, mas com bastante frequência, nada mais é do que um uso incorreto da elipse.

ANTIMERIA: substituição de uma parte do discurso por outra.

Exemplos: Descabelarei tua cabeça. — Shakespeare, Antônio e Cleópatra, 11, v, 64.

Uma milha antes de sua tenda tombar, ajoelhando

O caminho para sua misericórdia. — Shakespeare, Coriolano, v, i, 5.

O trovão não quis paci car ao meu comando.

— Shakespeare, Rei Lear, Iv, vi, 103. Esse pensamento horrível consumia toda a sua alegria,

desparaisando os reinos de luz. — Edward Young, The Complaint, or Night Thoughts.

George Rogers Clark deve ter parado debaixo daquela árvore, enquanto

o búfalo sestava à sombra, espantando moscas. — Aldo Leopold, A Sand County Almanac (1949).

Eles bamay in ou as do calo branco de danielo e Finese Eu, dicionarizando pesado: "Onde estava aquele a que eles estavam assis-

tindo?". — Ernest Hemingway, Green Mills of Africa. Presenteie-o com a Playboy. — Carta promocional da revista Playboy.

Dezenas de outros exemplos de antimeria poderiam ser citados nas pe-

ças de Shakespeare. Se uma palavra não estava disponível para o que ele queria expressar, Shakespeare cunhava uma palavra ou usava uma palavra antiga de uma maneira nova. Os escritores de hoje devem usar

fi

548

ESTILO a antimeria raramente e com grande discrição, a menos que sejam real-

mente mestres na língua. Por outro lado, uma criação adequada pode produzir um efeito impactante e memorável. O inglês hoje é uma língua rica e flexível, porque tem muitas palavras emprestadas, alteradas

e criadas. Pense em todas as maneiras como uma palavra como smoke tem sido usada desde que entrou pela primeira vez no idioma: A fumaça (smoke) saía da chaminé. A chaminé fumega (smokes).

Ele defumou (smoked) o presunto. Ele fuma (smokes).

Ela pediu um cigarro (smoke). Ele se opôs à fumaça (smoke) sem sentido.

Ela percebeu a atmosfera enfumaçada (smoky). Ele tentou fumar (smoke) às escondidas.

Seus sonhos viraram fumaça (smoke). A Ferrari fumegou (smoked) na pista molhada.

Algum dia alguém dirá, se ainda não foi dito: "Ele olhou para ela com

um ar esfumaçado (smoky)".

PERÍFRASE: substituição de uma palavra ou frase descritiva por um

nome próprio ou de um nome próprio por uma qualidade associada ao

nome. Exemplos:

O Splendid Splinter conseguiu mais dois round-trippers hoje. Em seus últimos anos, ele se tornou, de fato, a mais assustadora de suas

próprias criaturas: um Quixote das Cotswolds, que abdicou de seu século

e depois viveu em delírios quase medievais, terminando em melancolia. — Artigo sobre Evelyn Waugh na TIME, 22 de abril, 1966. Eles não escapam da Jim Crow;" simplesmente encontram outra varieda-

de, não menos assassina. — James Baldwin, Nobody Knows My Name.

19 As leis de Jim Crow foram leis estaduais e locais que impunham a segregação racial no sul dos

Estados Unidos — NT.

549

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO A Pollyanna da Disney parece mais uma Lolita envelhecida, mas tudo bem. — Artigo na TIME, 1° de abril de 1966.

Rapazes pálidos com costeletas grossas, de tom preto Valentino. — Dylan

Thomas, "Memoirs of an August Bank Holiday".

Quando acabou Schlitz, acabou a cerveja. — Slogan publicitário da cerveja

Schlitz.

A frequência com que encontramos esse tropo, mesmo na prosa moderna, é evidência do desejo do homem de expressar idéias familiares de maneiras incomuns. Circunlocuções e epítetos podem se tornar clichês cansativos (como costuma acontecer na página de esportes), mas quando exibem inventividade, conferem graça à escrita. É a expressão indireta banal ou excessivamente engenhosa que cansa o leitor. PERSONIFICAÇÃO OU PROSOPOPÉIA: atribuição de qualidades ou ha-

bilidades humanas a abstrações ou objetos inanimados. Exemplos: O solo tem sede de chuva.

— Trabalho de aluno. Ele olhou para a grama coberta de orvalho, e ela piscou de volta para ele.

— Trabalho de aluno. Uma árvore cuja boca faminta está colada

Contra o seio doce e abundante da terra. — Joyce Kilmer, "Arvores". E tempo de fato haverá

Para a fumaça amarela que flui pela rua, Roçando o dorso nas janelas.

- T. S. Eliot, "A canção de amor de ]. Alfred Prufrock".

550

ESTILO A língua materna é uma mulher auto-suficiente.

—Charlton Laird, The Miracle of Language.

As belas casas na rua do colégio não estavam totalmente despertas,

mas pareciam muito simpáticas. — Lionel Trilling, "Of This Time, Of That Place".

A personificação é uma figura tão familiar que não há necessidade

de muitos exemplos. Esta é uma das figuras que devem ser reservadas para trechos destinados a despertar emoções. Outra figura emocional,

intimamente aliada à personificação, é o apóstrofe (dirigir-se a uma pessoa ausente ou a uma abstração personificada). Eis um exemplo de apóstrofe de History of the World, de Sir Walter Raleigh: Ó eloquente, justa e poderosa Morte! a quem ninguém poderia aconselhar,

tu persuadiste; o que ninguém ousou, tu o fizeste; e a quem todos têm lisonjeado, tu apenas rejeitaste o mundo e desprezaste. Tu reuniste toda a grandeza, todo o orgulho, crueldade e ambição do homem, e cobriste tudo com estas duas palavras curtas: Hic jacet.

HIPÉRBOLE: uso de termos exagerados para fins de ênfase.

Exemplos: Sua eloquência destroçava pedras.

em O apanhador no campo de centeio.

Minha perna esquerda está pesando três toneladas, embalsamada em especia-

rias como uma múmia. Não consigo me mover. Não me movo há cinco mil anos. Sou da época do Faraó. — Thomas Bailey Aldrich, "Marjorie Daw".

"Rozelle está certo", comentou o único homem em Nova York que ainda usava um corte escovinha de 1951. — Rex Reed, em artigo na Esquire,

outubro de 1969.

551

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Ele não gosta da imprensa, que, segundo ele, deturpa suas palavras no-

venta por cento das vezes, pelo que devemos entender, em um mundo de

hipérboles cada vez mais comuns no universo do esporte (como deve ser difícil para o jornalista esportivo não poder relatar que Joe Namath correu duzentos metros para um touchdown!), que ocasionalmente o entendemos errado. — William F. Buckley Jr., artigo na Esquire, outubro de 1969. Comprarei qualquer coisa, QUALQUER COISA, que custe um terço do preço

original. — Jean Kerr, The Snake Has All the Lines.

Caminhamos por uma estrada em Cumberland e paramos, porque o céu estava muito baixo. — Thomas Wolfe, Look Homeward, Angel.

A hipérbole é tão comum que a maioria nem a vê como uma figura de linguagem. Anunciantes e adolescentes raramente falam sem usar superlativos. Talvez não nos divertíssemos tanto com a saudação oriental: "Bem-vindo, honrado senhor, à nossa miserável morada", se parássemos para considerar o quão exageradas são muitas de nossas formas de saudação, discurso e elogio.

A hipérbole pode ser uma gura de linguagem útil se aprendermos a usá-la com moderação. Com a emoção, ela sairá naturalmente, soando apropriada. Se aprendermos a inventar novas hipérboles, seremos

capazes de produzir o tom certo de ênfase (como no primeiro exemplo acima) ou humor (como na citação de Aldrich). Por estar relacionada ao tópico dos graus, a hipérbole é como a figura

chamada AUXESE (aumento da importância ou gravidade de alguma coisa, referindo-se a ela com um nome desproporcional). Portanto, um

advogado tentará impressionar um júri referindo-se a um arranhão no

braço como "um ferimento" ou a um furto da caixa de ofertas como "desfalque". Podemos aceitar a referência de Marco Antônio à ferida que Bruto infligiu a César como "o corte mais cruel de todos", mas a ocasião parecia não justificar a observação clássica do Senador Joseph McCarthy: "Essa é a coisa mais inaudita que já ouvi".

LITOTES: uso deliberado de eufemismo, não para enganar, mas para

aumentar o impacto do que dizemos.

fi

552

ESTILO

Exemplos: Sou cidadão de uma cidade não pouco célebre. — São Paulo.

Escrever, na verdade, não é um emprego nada desagradável. — Samuel Johnson, Adventurer, n° 138.

Na semana umapior. mulher esfolada e,Swift, por incrível que isso alterou sua passada, aparênciavipara — Jonathan A fábula depareça, um barril.

Com sua explosão oratória, a sessão ocupou mais de 33.250 páginas no Registro do Congresso, outro recorde que custou aos contribuintes módicos US$3.000.000. — Artigo na TIME, 29 de outubro de 1965.

Dick estava acordado. Na verdade, mais do que isso: ele e Inez estavam fazendo amor. — Truman Capote, A sangue frio.

Frank Sinatra não é um artista do tipo muito paciente. — Artigo na Newsweek, Is de novembro de 1965.

Não é nada sério. Estou só com um tumorzinho no cérebro. — J. D. Salinger, O apanhador no campo de centeio. Por quatro gerações, temos fabricado medicamentos como se a vida das pessoas dependesse deles. — Anúncio da Eli Lilly Drug Company.

Litotes é uma forma de MEIOSE (uma diminuição). O mesmo advogado que vimos na seção anterior usando auxese pode representar outro cliente, referindo-se a um caso de vandalismo como "brincadeiras de adolescente". Uma rosa, com qualquer outro nome, continuará tendo um aroma agradável, mas um crime, chamado por um nome que não seja tão claramente desproporcional, pode perder um pouco de sua

hediondez.

553

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO PERGUNTA RETÓRICA (EROTEMA): pergunta, não com o propósito de obter uma resposta, mas com o propósito de afirmar ou negar algo

indiretamente.

Exemplos: O quê? Cavalheiros, eu não deveria prever ou, prevendo, não deveria me esforçar para salvá-los de todas essas travessuras e desgraças mulciplicadas?

[..] Fui irlandês naquele dia em que resisti corajosamente ao nosso orgulho? Ou no dia em que baixei a cabeça e chorei de vergonha e silêncio pela

humilhação da Grã-Bretanha? Tornei-me impopular na Inglaterra por um e na Irlanda por outro. E daí? Que obrigação tinha de ser popular? — Edmund Burke, Speech in the Electors of Bristol.

O culto a James não era um símbolo revelador de uma época e sociedade que queria habitar, como ele, um falso mundo de arte falsa e cultura falsa?

— Maxwell Geismar, Henry James and His Cult.

Como os pobres podem sentir que participam de um sistema que diz que os ricos têm direito ao devido processo legal, mas os pobres não? Como podem os incultos ter fé em um sistema que diz que tirará o máximo pro-

veito deles? Como as pessoas podem ter esperança quando lhes dizemos que elas não têm a mínima chance se entrarem em conflito com o sistema de justiça do estado? — Senador Edward Kennedy, debate no Senado sobre

• Omnibus Crime Control and Safe Streets Act, 1968.

Um bom corpo discente talvez seja o fator mais importante em uma gran-

de universidade. Como fazer vinho bom com uvas ruins? — Trabalho de

aluno. A pergunta retórica é um recurso comum em discursos apaixonados, mas também pode ser usada na prosa escrita. Pode ser um artifício de persuasão eficaz, influenciando sutilmente o tipo de resposta que se

deseja obter do público. A maneira como a pergunta é formulada pode levar a uma resposta negativa ou afirmativa. Se dissermos: "Isso foi um

ato de heroísmo?", o público responderá, no contexto adequado, com uma resposta negativa. Ao induzir o público a dar a resposta apro-

554

ESTILO priada, a pergunta retórica pode muitas vezes ser mais eficaz como artifício de persuasão do que uma afirmação direta.

IRONIA: uso de uma palavra de forma a transmitir um significado oposto ao significado literal. Exemplos:

Bruto é homem honrado, como os outros; todos, homens honrados. — Shakespeare, Júlio César, 1, ii, 88-89. É uma vez mais objetado, como sendo um absurdo e ridículo costume, que um grupo de homens possa sofrer, muito menos empregados e contratados, a gritar um dia em sete contra a legalidade dos métodos mais usados para a prossecução de grandeza, riqueza e prazer, que são prática constante em todos os homens vivos dos outros seis. Mas esta objeção é, penso eu, pouco refinada para uma época como a nossa. — Swift, Um argumento contra a abolição do cristianismo.2°

Na primavera, se Deus fosse bom, todos os maravilhosos privilégios dos piolhos das trincheiras, gás mostarda, miolos espalhados, pulmões per-

furados, tripas rasgadas, asfixia, lama e gangrena poderiam ser seus. — Thomas Wolfe, Look Homeward, Angel.

"Gosto dos ingleses", disse Fiedler, sorrindo. [...] "Você não imagina como fico feliz em ouvir isso", retorquiu Leamas.

— John Le Carré, O espião que saiu do frio. Nem o sindicato nem qualquer outra pessoa conseguiu persuadir uma única pessoa a se mudar para este "estabelecimento modelo". — John Barron, artigo sobre a FHA na Reader's Digest, abril de 1966.

Eu estava felicissima com a idéia de deixar meu namorado e voltar para a escola para fazer as provas finais. — Trabalho de aluna.

20 Tradução de Pedro Ventura: Editora Alfabeto, 2011 — NT.

555

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Claro que você poderia viver sem as Páginas Amarelas (ou sem jornais,

automóveis e relógios). — Anúncio da Bell Telephone.

Como um tropo em que definitivamente há transferência de significado, a ironia está relacionada ao tópico dos contrários ou ao tópico da contradição. Por ser um artifício altamente sofisticado, a ironia deve ser usada com grande cautela. Se seu público não for tão inteligente quanto você pensava, ele pode interpretar suas palavras no sentido apresentado, sem captar a ironia. Os retóricos Tudor tinham um nome especial para o tipo de ironia em que o indivíduo se propunha a deixar de lado algum assunto, mas, ainda assim, conseguia sutilmente revelá-lo: PRETERIÇÃO. Um exemplo notável de preterição é encontrado no famoso discurso de Marco Antônio "Concidadãos, romanos, bons amigos", em Júlio César:

[..] é o testamento dele. Caso o povo sua leitura ouvisse, desculpai-me, mas não pretendo lê-lo, correriam todos a depor beijos nas feridas do morto César.

[...] Acalmai-vos, bons amigos. Não posso lê-lo; não convém ficardes sabendo

quanto César vos amava. [...] Conveniente não é ficardes todos sabendo que os herdeiros sois de César (II, ii, 136-51).

Uma olhada em todo o discurso mostrará que Marco Antônio, apesar de sua declaração em contrário, conseguiu fazer com que a multidão

soubesse o que havia no testamento de César.

ONOMATOPÉIA: modo de formação de palavras que consiste na imitação fonética do som emitido pelo referente.

Exemplos: 'Tis not enough no harshness gives offense,

The sound must seem an echo to the sense: Soft is the strain when Zephyr gently blows,

And the smooth stream in smoother numbers flows; But when loud surges lash the sounding shore, The hoarse, rough verse should like the torrent roar:

When Ajax strives some rocks vast weight to throw,

556

ESTILO The line too labors, and the words move slow;

Not so, when swift Camilla scours the plain,

Flies er the unbending corn, and skims along the main. — Pope, Essay on Criticism, II, 364-73.

Over the cobbles he clattered and clashed in the dark innyard. — Alfred Noyes, "The Highwayman". Gongos fortes gemem, com os canhões longe a ribombar. — G. K. Chesterton, Lepanto.

My days have crackled and gone up in smoke. — Francis Thompson, "The

Hound of Heaven".

A talking twitter all they had to sing. — Robert Frost, "Our Singing Strength". The birds chirped away. Fweet, Fweet, Bootchee-Fweet. — Saul Bellow, "Masbys Memoirs", The New Yorker, 20 de julho de 1968. Na passagem de Pope citada acima, alguns dos efeitos onomatopoé-

ticos são produzidos tanto pelo ritmo dos versos quanto pelos sons das palavras. Como a onomatopéia busca combinar som e sentido, é fácil ver por que essa figura era comumente associada ao tópico da semelhança. A onomatopéia será usada com muito menos freqüência na prosa do que na poesia, mas ainda assim pode contribuir quando os efeitos sonoros ajudam a definir o tom emocional ou ético de um texto. Ao procurar desacreditar uma pessoa ou um ato, podemos reforçar o efeito da dicção pejorativa com cacofonia. Em uma expressão como "uma atitude pérfida", revelamos nossa atitude em relação ao evento não apenas pelas conotações desagradáveis de pérfida, mas também pelo som áspero da palavra. OXIMORO: junção de dois termos normalmente contraditórios.

Exemplos: expressões como doce veneno, inimigo amistoso, ilustre des-

conhecido, gentileza cruel, silêncio ensurdecedor, guerra pacifica, declaração tácita, lenta pressa.

557

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Combinando assim elementos contraditórios, os escritores produzem um efeito surpreendente e podem, se seus oximoros forem recentes

e adequados, passar a imagem de pessoas espirituosas. Nesta figura,

assim como na maior parte da linguagem metafórica, vemos o que Aristóteles considerava uma marca especial de gênio: a capacidade de encontrar semelhanças. Eis alguns exemplos de oximoro: Trata muito de ódio, e mais de amor.

Então, amor odiento, ódio amoroso, Oh qualquer coisa que nasceu do nada! Densa leveza, vaidade tão séria,

Caos deformado de bela aparência!

Pluma de chumbo, fumaça brilhante, Fogo frio, sarde doentia,

Sono desperto que nega o que é! Esse amor sem amor é o que eu sinto.?'

— William Shakespeare, Romeu e Julieta, 1, i. Ó miserável abundância, ó miseráveis riquezas!

— John Donne, Devotions Upon Emergent Occasions.

Uma alma imortal, consumindo-se em chamas, Desperdiçando sua força em extenuante ociosidade.

— Edward Young, The Complaint, or Night Thoughts.

Há uma espécie de gente banal, mortos-vivos, que mal têm consciência de

viver, exceto no exercício de alguma ocupação convencional. — Robert Louis Stevenson, "An Apology for Idlers".

A nova mostra no Museu de Arte Moderna consegue, de alguma forma, evitar o ruído visual. — Aline Saarinen, reportagem sobre uma exibição de cartazes publicitários na mostra Huntley-Brinkley, 24 de janeiro de 1968.

[..] ou, possivelmente, um rascunho de Edward Kennedy, cuja ausente presença constituiu um dos poucos fenômenos que não eram familiares 21 Tradução de Bárbara Heliodora, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011 — NT.

558

ESTILO para aqueles que tinham visto o Early Show em Miami Beach. — Richard H. Rovere, "Letter from Chicago", The New Yorker, 7 de setembro de 1968.

A suave tensão da música dos Beatles reflete a inquietação da geração ado-

lescente. — Trabalho de aluno.

Esses artifícios foram calculados para levar o público a uma histeria racional.

— Trabalho de aluno.

Intimamente aliado ao oximoro está o PARADOXO, afirmação aparen-

temente contraditória que, no entanto, contém certa verdade. O paradoxo é como o oximoro no sentido de que ambos são construídos sobre contraditoriedades, mas o paradoxo pode não ser um tropo, porque envolve não tanto uma "virada" de significado em palavras justapostas, mas uma virada" de significado em toda a declaração. Eis alguns exemplos de paradoxo: A arte é uma forma de mentir para dizer a verdade. — Pablo Picasso.

copiarmos os antigos renomados, nos assemelharemos aQuanto eles. —menos Edward Young, Conjectures on Originalmais Composition.

O complexo de Portnoy, um romance na forma de monólogo psicanalítico narrado por um solteiro cheio de culpa, é engraçado demais para não ser levado a sério. — Resenha de livro na TIME, 21 de fevereiro de 1969.

setembro de 1966.

Ele (Joseph K., em O processo, de Kafka) é culpado de ser inocente. — J. Mitchell Morse, artigo na College English, maio de 1969.

Mas a essência dessa feiúra é o que sempre a tornará bela. — Gertrude

Stein, "How Writing Is Written".

559

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Sabemos demais para sabermos muito. — Robert Oppenheimer, The Open

Mind. O passado é o prólogo. — Paul Newman, em especial da NBC "From Here

to the Seventies", 7 de outubro de 1969.

OBSERVAÇÕES FINAIS SOBRE AS FIGURAS DE LINGUAGEM O conhecimento das figuras apresentadas neste capítulo não garante que você conseguirá inventar suas próprias figuras ou que, ao usá-las, as usará de maneira adequada e eficaz. O benefício de tal investigação é que, tendo sido informado dos vários esquemas e tropos existentes, você poderá fazer um esforço consciente para usar as figuras quando perceber que elas se adéquam ao seu propósito. Ao adquirir qualquer habilidade, devemos primeiro fazer conscientemente o que os especialistas fazem automaticamente; ou, como disse o Dr. Johnson, "O que esperamos fazer com facilidade, devemos primeiro aprender a fazer

com diligência". E, durante esse período de aprendizagem, provavelmente faremos de maneira estranha o que os especialistas fazem de maneira natural. Com a prática, entretanto, chegaremos ao feliz estado de naturalidade de que falou Longino em Do sublime: Portanto, a melhor figura é aquela que esconde isso mesmo: que é uma figura.

[..] Pois a arte é perfeita quando parece ser natureza, e, por seu lado, a nature-

za atinge o seu fim quando tem em si, de forma imperceptível, a arte.

*** ExERCÍCIO

Instruções: Encontre exemplos, na prosa ou poesia do século xx, do seguinte: (Os números das páginas referem-se à seção em Retórica clássica para o estudante moderno em que a figura é discutida e ilustrada).

560

ESTILO ESQUEMAS

Paralelismo: similaridade de estrutura em um par ou série de palavras, frases ou orações relacionadas (p. 520). Isocólon: semelhança não apenas de estrutura, mas de comprimento (p.

522). Antitese: justaposição de idéias contrastantes, freqüentemente em estrutura paralela (p. 522). Anástrofe: inversão da ordem natural ou usual das palavras (p. 524).

Parêntese: inserção de alguma unidade verbal em uma posição que in-

terrompe o uxo sintático normal da frase (p. 525). Aposição: colocação, lado a lado, de dois elementos coordenados, onde o segundo serve como uma explicação ou modi cação do primeiro (p. 527).

Elipse: omissão deliberada de uma palavra ou de palavras que estão

implícitas no contexto (p. 528). Assindeto: omissão deliberada de conjunções entre uma série de orações relacionadas (p. 529).

Polissíndeto: uso deliberado de muitas conjunções (p. 530).

Aliteração: repetição de fonemas consonantais iguais ou semelhantes em duas ou mais palavras adjacentes (p. 531). Assonância: repetição de sons de vogais semelhantes, precedidos e seguidos por consoantes diferentes, nas sílabas tônicas de palavras adjacentes (p. 532).

Anáfora: repetição da mesma palavra ou grupo de palavras no início de orações sucessivas (p. 533).

Epistrofe: repetição da mesma palavra ou grupo de palavras no final de orações sucessivas (p. 534). Epanalepse: repetição no final de uma oração da palavra que ocorreu no início da oração (p. 535).

Anadiplose: repetição da última palavra de uma oração no início da oração seguinte (p. 537).

fi

fl

561

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Clímax: disposição de palavras, frases ou orações em ordem crescente

de importância (p. 537). Antimetábole: repetição de palavras, em orações sucessivas, em ordem gramatical reversa (p. 539). Quiasmo: reversão de estruturas gramaticais em frases ou orações sucessivas, mas sem repetição de palavras (p. 540).

Poliptoto: repetição de palavras derivadas da mesma raiz (p. 540). TROPOS

Metáfora: comparação implícita entre duas coisas de natureza diferente

(p. 541). Simile: comparação explícita entre duas coisas de natureza diferente (p.

541). Sinédoque: figura de linguagem em que uma parte representa o todo

(p. 543). Metonímia: uso de alguma palavra atributiva ou sugestiva em vez do que realmente significa (p. 544). Antanáclase: repetição de uma palavra com dois sentidos diferentes (p.

545). Paronomásia: uso de palavras semelhantes no som, mas diferentes no significado (p. 546). Silepse: uso de uma palavra compreendida de forma diferente em relação a duas ou mais palavras que ela modifica ou governa (p. 546).

Antimeria: substituição de uma parte do discurso por outra (p. 548). Perifrase (antonomásia): substituição de uma palavra ou frase descritiva

por um nome próprio ou de um nome próprio por uma qualidade associada ao nome (p. 549).

Personificação (prosopopéia): atribuição de qualidades ou habilidades humanas a abstrações ou objetos inanimados (p. 550). Hipérbole: uso de termos exagerados para fins de ênfase (p. S51).

562

ESTILO Litotes: uso deliberado de eufemismo (p. 552).

Pergunta retórica: pergunta, não com o propósito de obter uma resposta, mas com o propósito de afirmar ou negar algo indiretamente (p. 554). Ironia: uso de uma palavra de forma a transmitir um significado oposto ao significado literal (p. 555).

Onomatopéia: modo de formação de palavras que consiste na imitação fonética do som emitido pelo referente (p. 556).

Oximoro: junção de dois termos normalmente contraditórios (p. 557). Paradoxo: afirmação aparentemente contraditória que, no entanto, contém certa verdade (p. 559).

IMITAÇÃO Até aqui, abordamos os preceitos de estilo. Agora, passaremos à segunda maneira de aprender a escrever ou a melhorar a escrita: a imitação. Os livros de retórica clássica estão repletos de testemunhos sobre o valor da imitação para o refinamento das muitas habilidades envolvidas na fala ou na escrita eficaz. Afinal, o estilo é a habilidade imitável que mais ajuda a produzir um discurso eficaz. Os retóricos recomendavam uma variedade de exercícios para promover a imitação consciente. As crianças romanas em idade escolar, por exemplo, recebiam regularmente a tarefa de traduzir passagens do grego para o latim e vice-versa. Em algumas escolas da Inglaterra renascentista, os alunos traduziam entre grego, latim e inglês. Os professores (os melhores, pelo menos) estavam cientes de que as diferenças gramaticais entre essas três línguas exigiam certos ajustes estilísticos na tradução de uma língua para outra. Apesar dessas diferenças, no entanto, os alunos aprendiam muitas lições valiosas sobre a estrutura das frases.

Outro exercício era a prática de transformar poesia em prosa. Aqui, novamente, muitos ajustes de estilo tinham de ser feitos. Além de ensinar aos alunos as principais diferenças entre o meio poético e o meio

prosaico, esse exercício fazia com que os alunos prestassem muita atenção às potencialidades da dicção precisa e concreta, da disposição en-

563

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO fática das palavras e das figuras de linguagem. Ainda hoje, há quem sustente que a melhor maneira de melhorar a prosa é estudar ou escre-

ver poesia. Outra prática comum era dar aos alunos a tarefa de dizer algo de várias maneiras. Esse processo geralmente começava com uma frase modelo, que precisava ser convertida em uma variedade de formas, cada uma contendo o pensamento básico da frase original. Erasmo, por exemplo, no capítulo 33 de seu livrinho bastante usado, De duplici copia verborum ac rerum, apresenta aos alunos 150 maneiras de formu-

lar a frase em latim tuae literae me magnopere delectarunt (sua carta me deliciou muito). Essa variedade é alcançada, em parte, pela escolha de palavras diferentes, em parte pela disposição das palavras. Eis uma amostra do trabalho de Erasmo: Sua epístola me alegrou muito.

Seu bilhete foi uma ocasião de incomum júbilo para mim. Quando sua carta chegou, fui tomado de um prazer extraordinário. O que você escreveu para mim foi encantador. Ao ler sua carta, fiquei felicíssimo.

Sua carta me proporcionou grande contentamento.

Obviamente, nem todas as 150 frases são igualmente satisfatórias ou apropriadas; na verdade, algumas chegam a ser aberrações. Mas, ao experimentar artificialmente várias formas, os alunos conscientizam-se da flexibilidade do idioma em que estão trabalhando e ampliam seu próprio leque de opções. Por fim, eles aprendem que, embora haja muitas maneiras de dizer algo, existe uma "maneira melhor", dependendo do assunto, da ocasião ou do público. A "melhor" maneira para uma determinada ocasião ou público não é a "melhor" maneira para outra ocasião ou público. Este texto lhe dará a oportunidade de praticar dois tipos de imitação: a cópia de trechos de prosa e a imitação de vários padrões de frase. Antes de iniciarmos esses exercícios, porém, vejamos o testemunho de alguns escritores famosos sobre como eles aprenderam a escrever. Veremos que a imitação é fundamental para a formação do estilo.

564

ESTILO

TESTEMUNHOS SOBRE O VALOR DA IMITAÇÃO MALCOLM X

Cheguei à conclusão de que a melhor coisa que podia fazer era arrumar

um dicionário, a fim de estudar, de aprender algumas palavras. Tive sorte também ao raciocinar que precisava igualmente melhorar a caligrafia. A minha era terrível. Nem mesmo conseguia escrever em linha reta. As duas idéias juntas é que me levaram a pedir um dicionário, assim como alguns cadernos e lápis, na escola da Prisão-Colônia de

Norfolk. Passei dois dias apenas folheando as páginas do dicionário, indeciso. Nunca imaginara que existissem tantas palavras! Eu não sabia quais as palavras que precisava aprender. Finalmente, só para iniciar alguma ação, comecei a copiar. Lentamente, com a maior dificuldade, nos meus garranchos, copiei num caderno tudo o que estava impresso na primeira página do dicionário, até os sinais de pontuação.

Creio que levei um dia inteiro. Depois, em voz alta, li para mim mesmo tudo o que havia escrito. E li repetidas vezes.

Acordei na manhã seguinte pensando naquelas palavras, imensamente orgulhoso por compreender que não apenas escrevera tanto de uma só vez, mas também escrevera palavras que nunca antes pensara

que existissem no mundo. Além disso, com um pouco de esforço, eu

podia lembrar o que muitas dessas palavras significavam. Repassei as palavras cujo significado me escapava. Uma coisa engraçada: neste momento, a palavra que me surge à mente, daquela primeira página de dicionário, é dardvark (uma espécie de porco africano). O dicionário tinha uma fotografia do bicho, de rabo comprido, orelhas compridas, um mamífero africano, que vive de térmitas, pegando-as com a língua como os tamanduás fazem com as formigas.

Fiquei tão fascinado que segui em frente, copiando a página seguinte do dicionário. A mesma experiência ocorreu quando a estudei. A cada página subseqüente, eu aprendia mais alguma coisa de pessoas, lugares e ocorrências da história. Na verdade, o dicionário é como uma enciclopédia em miniatura. Acabei finalmente de copiar toda a letra A do dicionário, ocupando um caderno inteiro. Passei

565

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

para a letra B. Foi assim que comecei a copiar o que acabaria sendo todo o dicionário. Passei a avançar muito mais depressa depois que alguma prática ajudou-me a escrever mais rapidamente. Entre o que escrevia nos cadernos e as cartas que enviava, acho que escrevi cerca de um milhão de palavras, durante o resto do tempo que passei na

prisão.? — Em Autobiografia de Malcolm X."3 BENJAMIN FRANKLIN

Nessa época, encontrei um curioso volume do Spectator. Era o terceiro. Jamais tinha visto um. Comprei-o, li-o diversas vezes e gostei muito dele. Achei a escrita excelente e desejei, se possível, imitá-la. Com isso em mente, peguei alguns daqueles exemplares, z algumas anotações a respeito das opiniões expressas em cada frase e deixei

as folhas de lado por alguns dias. Mais tarde, sem consultar o impresso, tentei recompor os exemplares expressando detalhadamente cada opinião anotada, tão completamente quanto haviam sido dis-

postas, usando todas as palavras que me ocorressem e parecessem adequadas. Comparei então o meu Spectator com o original, percebi alguns dos meus erros e os corrigi. Mas descobri que me faltava um estoque de palavras, ou a prontidão para recordá-las e usá-las, o que julguei que já devia ter adquirido antes, se tivesse continuado a fazer meus versos — uma vez que a ocasião recorrente de palavras com o

mesmo sentido, mas de tamanhos diferentes, a fim de que coubessem na métrica, ou de sonoridade distinta, a fim de que formassem a rima, teria me exigido a constante necessidade de buscar a variedade

e me forçado também a fixar tal variedade na minha memória e a dominá-la. Peguei, pois, alguns dos contos e versifiquei-os; e, depois

de um tempo, quando já não me lembrava nem um pouco da prosa, passei-os de novo para a forma original. Às vezes eu também misturava o conjunto de minhas anotações e as confundia, e depois de

umas semanas esforçava-me por reduzi-las novamente à ordem mais 22 Tradução de A. B. Pinheiro de Lemos, Rio de Janeiro: Editora Record, 1992 — NT. 23 The Autobiography of Malcolm X, Grove Press Paperback Edition, 1966, p. 172. Reproduzido com permissão de Grove Press, Inc. Copyright © 1964 de Alex Haley e Malcolm X. Copyright © 1965 de Alex Haley e Betty Shabazz.

fi

566

ESTILO apropriada, antes de começar a formar as frases inteiras e a recompor

o exemplar todo. Isso servia para que eu aprendesse o método de organizar o pensamento. Comparando, depois, o meu trabalho com a versão original, percebi muitos erros e os corrigi; mas outras vezes tive o prazer de notar, em certos detalhes de menor importância, que eu havia logrado aprimorar o método ou a linguagem, e isso me encorajou a pensar que talvez, com o tempo, eu pudesse me tornar um escritor tolerável da língua inglesa, para o que eu nutria uma ambição

extrema. — Em Autobiogra a, de Benjamin Franklin, 1771. WINSTON S. CHURCHILL

Quase um ano continuei nessa despretensiosa posição. Contudo, por car tanto tempo entre os mais atrasados levei imensa vantagem sobre os mais espertos. Eles todos estudaram latim, grego e coisas igualmente es-

plêndidas. A mim, ensinaram inglês. Eramos considerados tão broncos que só podíamos aprender inglês. O Sr. Somervell, homem encantador a quem muito devo, era encarregado de ensinar aos meninos mais estú-

pidos a matéria mais desprezada, ou seja, escrever em inglês simples. Ele

sabia ensinar como ninguém. Não só aprendemos pela análise gramatical, como praticamos seguidamente análise lógica. O Sr. Somervell tinha um método todo próprio de ensinar. Tomava uma oração bastante longa, separava-a em seus componentes por meio de tinta preta, vermelha, azul e verde. Sujeito, Predicado, Objeto Direto, Indireto etc., cada qual tinha a sua cor e a sua chave. Era uma espécie de brinquedo, todo dia. Como fiquei na última classe três vezes mais tempo do que os outros, tive três vezes mais tempo para aprender. Esgotei a matéria. Desde então, incorporei aos meus ossos a estrutura essencial da oração inglesa comum — o que é um nobre resultado. E quando mais tarde meus colegas que conquistavam prêmios e honrarias por escreverem as tais belas poesias latinas e vigorosos epigramas gregos tiveram de voltar ao inglês de cada dia para ganhar a vida ou abrir caminho, não me senti inferior a eles. Como é natural, sou todo a favor do ensino intensivo de inglês aos meninos. Desejaria que todos aprendessem sua língua; aos mais inteligentes, seria permitido estudar latim, como uma honra, ou

fi

fi

567

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

grego, como um banquete. Mas a única razão para espancá-los seria a ignorância do inglês. Por isto, eu os espancaria muito.4 —Em Minha mocidade.25 SOMERSET MAUGHAM

I× Quanto a isso, tive de aprender comigo mesmo. Passei uma vista de olhos pelas histórias que escrevera quando ainda era muito moço, a fim de descobrir que aptidóes naturais tinha eu, e qual o meu estoque original antes que fosse desenvolvê-las por estudo. O tom era de uma severidade que talvez os anos escussassem e uma irascibilidade que era um defeito de natureza; mas aqui somente me refiro à maneira como me expressava. Parece-me que tinha uma clareza natural e bastante jeito para escrever diálogos.

Quando Henry Arthur Jones, naquela época um conhecido dramaturgo, leu a minha primeira novela, disse a um amigo que, pelo visto, eu deveria ser um dos autores teatrais de mais sucesso da época.

Suponho que ele vira naquela minha produção um modo direto de entrar em matéria e um meio efetivo de apresentar uma cena que denotavam o sentido teatral. Minha linguagem era cheia de lugares-comuns, meu vocabulário limitado, minha gramática indecisa e minhas frases vulgares. Mas escrever era um instinto que me parecia tão natural como respirar, e eu não me detinha para considerar se escrevia bem ou mal. Só alguns anos mais tarde foi que começou a parecer-me que se tratava de uma delicada arte que devia ser penosamente adquirida. Fui forçado a essa descoberta pela di culdade que encontrava em pôr meu pensamento no papel. Eu escrevia os diálogos uentemente, mas, quando chegava a uma página descritiva, via-me emaranhado em toda espécie de di culdades. Tinha de lutar um bom par de horas com duas ou três sentenças a que não conseguia dar um jeito. Quebrei a cabeça para aprender por conta própria como escrever. Infelizmente não tinha

24 Tradução de Carlos Lacerda, Rio de Janeiro: Harper Collins, 2021 - NT. 25 My Early Life: A Roving Commission, de Winston Churchill. Copyright 1930 Charles Scribner's

Sons; Direitos autorais renovados © 1958 Winston Churchill. Reproduzido com permissão de

Charles Scribner's Sons, uma marca da Macmillan Publishing Company.

fl

fi

fi

568

ESTILO ninguém para ajudar-me. Cometi muitos erros. Se tivesse alguém para guiar-me, como o amável professor de quem falei há pouco, poderia ter

poupado muito tempo. Esse guia me faria ver que meus dons naturais tendiam para determinada direção e que só nessa direção deviam ser orientados; escusado tentar qualquer coisa para a qual eu não tivesse aptidões. Mas naquele tempo admirava-se a prosa florida. A riqueza de texto era conseguida por meio de frases de ourivesaria e sentenças recheadas de epítetos exóticos: o ideal era um brocado tão pesado de ouro que ficava de pé por si mesmo. Os jovens inteligentes liam Walter Pater com entusiasmo. Meu bom-senso me segredava que aquilo era um anêmico miolo; por detrás daqueles rebuscados e graciosos períodos, eu sentia uma personalidade cansada e lânguida. Eu era jovem, robusto e enérgico; queria ar fresco, ação, violência, e achava difícil respirar aquela morta e pesada atmosfera e sentar naquelas silenciosas salas em que era indecoroso falar num tom acima do sussurro. Mas eu não queria ouvir o meu bom-senso. Convenci-me a mim mesmo de que aquilo era o supra-sumo da cultura, e virava desdenhosamente as costas para o mundo exterior, onde os homens gritavam e praguejavam, faziam tolices, caíam na perdição e na bebedeira. Lia as Intenções e O retrato de Dorian Gray. Vivia intoxicado com o colorido e raridade

das fantásticas palavras que adensavam as páginas de Salomé. Chocado

com a pobreza de meu próprio vocabulário, ia ao Museu Britânico,

armado de lápis e papel, e anotava os nomes de curiosas joias, o matiz bizantino dos antigos esmaltes, a sensualidade tátil dos tecidos, e fazia trabalhosas frases com isso tudo. Infelizmente nunca achei oportuni-

dade para usá-las, e lá estão no meu caderno de notas, às ordens de quem quer que tenha disposição para escrever tolices. Naqueles tempos,

pensava-se geralmente que a Versão Autorizada da Bíblia era o maior

espécime de prosa que a língua inglesa jamais produziu. Eu a li com toda a aplicação, especialmente o Cântico dos Cânticos, anotando para uso futuro os torneios de frase que me impressionaram, e fazendo listas de inusitados ou belos termos. Estudei o Santo moribundo de Jeremias Taylor. A fim de assimilar o seu estilo, copiava passagens e depois ten-

tava escrevê-las novamente de memória. O primeiro fruto desse labor foi um livrinho sobre a Andaluzia inti-

tulado A terra da Virgem Santa. Tive ocasião de ler alguns trechos num

destes últimos dias. Conheço a Andaluzia muito melhor do que então,

569

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO e mudei de idéia a respeito de muitas coisas sobre as quais escrevi. Mas

como a referida obra continua a ter nos Estados Unidos uma pequena venda, ocorreu-me que valeria a pena revisá-la. Logo vi que era coisa impossível. O livro fora escrito por alguém a quem eu havia completa-

mente esquecido. Aborreceu-me a ponto de me distrair da leitura. Mas

é à prosa que me re ro, pois havia escrito um exercício de estilo. É uma prosa distraída, devaneante, rebuscada. Não tem naturalidade nem fu-

ência. Cheira a plantas de estufa e a jantar de domingo. Há enorme quantidade de adjetivos sonoros. O vocabulário é sen-

timental. Não lembra a ninguém um brocado italiano, com seu rico bordado de ouro, mas um pano de boca desenhado por Burne-Jones e reproduzido por Morris.

Não sei se foi um sentimento subconsciente de que essa maneira de escrever era contrária às minhas inclinações, ou uma feição de espí-

rito naturalmente metódica, que me levou a voltar minha atenção para os escritores do período augustano. Conclui que essa era a per-

feita maneira de escrever, e comecei a estudar Swift da mesma maneira como estudara Jeremias Taylor. Escolhi A fábula de um barril.

Diz-se que Deão, quando tornou a lê-la na velhice, exclamou: "Que

gênio eu tinha naquele tempo!". Para mim, o seu gênio se revela

melhor em outras obras. É uma enfadonha alegoria, e a ironia é fácil. Mas que admirável estilo! Não concebo que o inglês possa ser mais bem escrito. Nada de floridos períodos, fantásticas construções de frases ou alcandoradas imagens. É uma prosa civilizada,

natural, discreta e sutil. Não há nenhuma intenção de surpreender

com um vocabulário extravagante. Dir-se-ia que Swift empregava a primeira palavra que tinha à mão, mas, como fosse um espírito lógico e agudo, era sempre a palavra exata, e ele a colocava no lugar

exato. A força e o ritmo de suas sentenças são devidos a um refinado

gosto. Como fizera antes, copiei passagens e depois tentei escrevê-

-las novamente de memória. Tentei mudar palavras ou a ordem em que se achavam. E vi que as únicas palavras possíveis eram aquelas

que Swift havia usado e que a ordem em que as colocara era a única

ordem possível. É uma prosa impecável.

fi

570

ESTILO Mas a perfeição tem um grave defeito: tende para a monotonia. A

prosa de Swift é como um canal francês, marginado de álamos, que corre através de uma graciosa e ondulada planície. Seu tranquilo en-

canto nos enche de contentamento, mas não excita as emoções nem estimula a imaginação. A gente anda, e anda, e afinal fica um pouco

entediado. Assim, por mais que se admire a maravilhosa clareza de Swift, sua ternura, sua naturalidade, sua falta de afetação, depois de algum tempo a nossa atenção começa a vagabundear, a menos que o assunto particularmente nos interesse. Creio que, se me fossem devolvidos aqueles tempos, dedicaria à prosa de Dryden o mesmo acurado estudo que dediquei à Swift. Mas só a descobri quando já havia perdido a inclinação para entregar-me a tamanho trabalho. A prosa de Dryden é deliciosa. Não tem a perfeição de Swift nem a fácil elegância de Addison, mas tem uma alegria primaveril, uma facilidade de conversação, uma vívida espontaneidade que são verdadeiramente de encantar. Dryden foi um excelente poeta, mas não é de consenso geral que ele tenha possuído qualidades líricas; o curioso é que seja exatamente

isso que transparece no suave brilho de sua prosa. Até então nunca se escrevera assim na Inglaterra; poucas vezes se escreveu assim desde en-

tão. Tinha ele nas veias a solidez barroca da linguagem jacobiana e, por influência da graça luminosa e polida que aprendera com os franceses, fez do seu estilo um instrumento não só adequado aos temas solenes, mas também à suave meditação do momento que foge. Foi o primeiro artista de estilo rococó. Se Swift nos lembra um canal francês, Dryden nos sugere um rio da Inglaterra, serpeando por entre colinas, através de cidades entregues a seus trabalhos de paz e à beira de esquecidas aldeias, descansando agora num remanso, para depois correr impetuoso no recesso da mata. E vivo, variado, espontâneo. E tem o grato cheiro de ar livre da Inglaterra. O trabalho que z foi certamente muito útil para mim. Comecei a escrever melhor: eu não escrevia bem. Escrevia aplicada e conscien-

ciosamente. Procurava dar um padrão as minhas frases, mas não via

que o padrão era evidente. Tomava cuidado na colocação das palavras, mas não refletia que uma ordem que era natural no princípio do século xvIII não o era no princípio do nosso século. Minha tentativa de escrever à maneira de Swift me impossibilitava de alcançar

o efeito direto que era precisamente o que eu tanto admirava nele.

fi

571

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Comecei a escrever peças e deixei de ocupar-me com outra coisa que fosse a dialogação. Só passados cinco anos foi que me dispus a es-

crever uma novela. Já nessa época me havia passado toda e qualquer ambição de tornar-me um estilista. Eu queria escrever sem o mínimo adorno, da maneira mais nua e desafetada que pudesse. Pensava que, se se conseguia encontrar o termo exato, era escusado aplicar-lhe um

qualificativo. Tal como o desejava, meu livro teria a aparência de um telegrama imensamente longo, em que, por economia, era deixada de parte qualquer palavra que não contribuísse para a clareza do sentido. Não mais o li desde que corrigi as provas e não sei até que ponto me aproximei do meu objetivo. Minha impressão é que está redigido pelo menos mais naturalmente do que qualquer coisa que eu haja escrito antes; mas estou certo de que é amiúde desmazelado e receio que contenha uma boa porção de erros de gramática. Desde então tenho escrito muitos outros livros: e, embora tenha cessado o meu estudo metódico dos velhos mestres (pois se o espírito é forte, a carne é fraca), tenho-me esforçado, com crescente assiduidade, por escrever melhor. Descobri as minhas limitações, e pareceu-me que o melhor seria ver até que grau de excelência poderia subir dentro dessas limitações. Reconheci que não tinha qualidades líricas.

Meu vocabulário era pequeno, e pouco me adiantou o esforço que fiz para ampliá-lo. Parco era meu dom metafórico; poucas vezes me ocorria o original e incisivo símile. Os vôos poéticos e os vastos remígios da imaginação se achavam acima de minhas forças. Admiro-os nos outros, como admiro os seus rebuscados tropos e a inusitada mas sugestiva linguagem com que vestem os seus pensamentos, mas minha própria inventiva nunca me presenteava com tais belezas; e cansei-me de tentar fazer o que não me ocorria com facilidade. Por outro

lado, eu possuía um agudo poder de observação, e parecia-me que podia ver uma porção de coisas que os outros deixavam passar. Podia contar em termos claros o que via. Possuía senso lógico e, se não tinha grande sensibilidade para a riqueza e estranheza das palavras, sabia apreciar o seu valor fonético. Sabia que nunca escreveria tão bem como desejava, mas achava que, com trabalho, poderia chegar a escrever tão bem como me permitiam os meus defeitos naturais. Pensando bem, parecia-me que eu devia visar antes de tudo a clareza,

572

ESTILO a simplicidade e a eufonia. Escrevi essas três qualidades na ordem da importância que lhes assinalava.36 — Em Confissões?? ROLLO WALTER BROWN: COMO O MENINO FRANCÊS APRENDE A ESCREVER Assim que um professor americano entra em contato direto com o sistema educacional francês, ele se maravilha com o grande lugar que a escrita ocupa nas escolas e em sua vida cotidiana. Em primeiro lugar,

não importa em que sala de aula um menino se encontra, ele sempre

está com seu chário, no qual registra todas as tarefas, todos os problemas, todos os experimentos, todas as citações a serem aprendidas, todas as observações geográ cas e históricas e todos os mapas, bem como muitos exercícios especí cos; e a linguagem que ele emprega nesse tra-

balho é cuidadosamente avaliada pelo professor. Em segundo lugar, as composições são numerosas. Desde o momento em que o menino é considerado maduro o suficiente para pensar consecutivamente, ele escreve textos em intervalos regulares. Em algumas turmas, ele escreve dois exercícios curtos a cada três ou cinco dias. Nas escolas primárias elementares, mesmo quando o menino tem treze ou quatorze anos, os textos mais curtos, uma ou duas vezes por semana, parecem ter grande preferência. Variam em extensão, normalmente, de 150 a 400 palavras (são um pouco mais longos do que os textos diários dos americanos, em média), e as composições menos freqüentes e mais longas variam normalmente de seiscentas a mil e quinhentas palavras. Nas séries superiores, há ainda muitos trabalhos de história, educação cívica, filosofia e literatura. Podemos ver, portanto, que o menino tem muitas oportu-

nidades de escrever. Na verdade, não é exagero dizer que ele escreve o tempo todo. Em todo caso, sua prática é tão contínua que, mais cedo ou mais tarde, ele passa a fazer o trabalho com uma disposição perfeitamente normal, da mesma forma que realiza seus outros trabalhos de

escola. 26 Tradução de Mario Quintana, São Paulo: Globo, 2006 - NT. 27 The Summing Up, de W. Somerset Maugham. Copyright 1938, de W. Somerset Maugham. Reproduzido com permissão da A.P. Watt Limited.

fi

fi

fi

573

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO O volume da escrita, no entanto, é considerado menos importante

do que a qualidade. Se um menino pensa e escreve mal, ele é visto como um infeliz que merece piedade ou desprezo. Se, por outro lado, ele é capaz de pensar e escrever com habilidade, é muito honrado por seus professores e colegas. E esse interesse pela habilidade de escrever é evidente fora da sala de aula. Autores de livros e artigos discutem os perigos da língua materna pura como se estivessem lidando com uma questão de ética ou de política nacional. Os pais (descobri quando estava compilando composições para este livro) geralmente desejam preservar a obra

escrita de seus filhos. Além disso, quando os alunos tiram boas notas nos exames, que na França sempre são redações, eles recebem prêmios e menções públicas, como se fossem campeões de atletismo. Ninguém deve inferir, entretanto, que os torneios intelectuais devem substituir as competições esportivas. O menino francês ama, tanto quanto o menino americano, os esportes ao ar livre, atividade que estão ocupando um lugar cada vez maior na vida escolar. Mas o ideal de escrever bem foi apresentado ao colegial francês por tanto tempo, e com tal seriedade, que ele atribui mais importância a habilidades desse tipo do que o garoto americano comum. Quando tanta importância é atribuída à habilidade de escrever, não surpreende que, tanto no ensino primário quanto no ensino secundário, o estudo da língua materna dê tanto destaque ao treinamento sistemático em composição. Os professores, assim como o Ministério da Educação, acreditam que o estudo da gramática, da retórica e da literatura só tem sentido se contribuir para que os alunos consigam expressar seus pensamentos de forma plena e inteligente. Além disso, as teorias de ensino, e todas as mudanças propostas no programa, parecem ser con-

sideradas em primeiro lugar no que diz respeito à sua influência nessa habilidade do aluno. A expressão não é o único objetivo, mas em todas as escolas primárias é o objetivo principal. E, por outro lado, a principal responsabilidade pela expressão dos alunos recai sobre o professor de língua materna. Como veremos mais tarde, o que o menino escreve nas aulas de história, geometria e outras matérias contribui para sua habilidade geral no que se refere à escrita, mas é o professor de língua materna quem carrega o maior fardo. Sua tarefa é difícil, demandando tempo e energia, mas, ao mesmo tempo, extremamente importante.

574

ESTILO Sem entrar em detalhes de objetivos específicos ou métodos pessoais, vejamos o que ele procura realizar e de que maneira.

De modo geral, dois grupos de exercícios preliminares são considerados essenciais para o trabalho de composição original. Os do primeiro grupo têm como objetivo ampliar e organizar o vocabulário dos alunos.

Ora, estou ciente de que, olhando por cima os exercícios destinados a melhorar o vocabulário, é provável que eles pareçam muito artificiais

e ineficazes. E, na verdade, podem ser. Nas mãos de um professor mal

preparado ou sem jeito para ensinar, não existe exercício mais inútil. Mas essa possibilidade parece ser ignorada pelos educadores franceses. Eles admitem que esse exercício pode ser inútil, ou mesmo prejudicial, quando o professor é ruim (e que exercício não seria?), mas isso não sig-

nifica que ele deva ser abandonado. O bom professor deve ser a norma.

Com base nisso, esses educadores dedicaram-se seriamente à tarefa de evitar os perigos e desenvolver as vantagens de uma educação cujo valor parece-lhes inquestionável.

A teoria na qual essa educação se baseia não reflete a opinião indi-

vidual de um professor específico: trata-se da doutrina aceita em todo o país. No volume de Instruções, emitido pelo Ministério da Educação aos professores do ensino secundário, encontramos o seguinte resumo: Os exercícios anteriores de gramática ajudam o aluno a compreender a sua língua materna e a enriquecer o seu vocabulário; mas, para este último propósito, não se deve confiar apenas neles ou mesmo em conversações, ditados, leituras ou interpretações de textos. O aluno deve aprender palavras, mas sempre dentro de um contexto; ele deve ser capaz de apreender seu significado e suas nuances; e deve acostumar-se a encontrar as palavras rapidamente quando precisa. Daí o valor dos exercícios dedicados especialmente ao estudo do

vocabulário.

O ensino do vocabulário que descobri divide-se em três partes: (1)

ampliação; (2) aprimoramento; (3) aceleração. Com certeza, a educação não é dividida em três processos separados, mas o professor tem um

objetivo triplo que determina seu método. De qualquer maneira, não se verão todos os aspectos do método em uma aula, nem em várias. Ainda assim, os princípios enfatizados em Instruções aos professores secun-

575

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO dários, nos livros didáticos das escolas primárias, nas aulas de língua

materna em ambos os sistemas escolares, e mesmo em muitas aulas de inglês, apresentam um esboço dos vários detalhes do trabalho. No exercício destinado a ampliar o vocabulário, considera-se absolu-

tamente essencial que o aluno relacione a palavra de forma inequívoca com o objeto ou idéia que ela representa. Embora seja muito mais difícil

ter uma palavra em mente sem relacioná-la com alguma idéia do que geralmente supomos, o professor de francês parece não correr riscos, orien-

tando o aluno a perceber a inutilidade das palavras se elas não forem símbolos de algo real, seja físico ou mental. Em segundo lugar, o aluno

deve relacionar uma palavra nova com outras palavras já existentes no

seu vocabulário de trabalho, de modo a fixá-la. A nova palavra pode

estar ligada a um sinônimo conhecido do aluno, ser comparada com palavras já conhecidas por ele ou simplesmente estar ligada a um grupo de idéias que, dadas as circunstâncias, lhe vêm à mente com freqüência,

mas de alguma maneira ele é levado a associá-la a palavras que conhece bem. Em terceiro lugar, a palavra é colocada em contextos normais (às vezes, antes de seu significado ser explicado), para que o aluno aprenda

a usá-la. E, finalmente, na definição ou explicação que uma palavra ou

grupo de palavras pode exigir, o início deve ser específico, em vez de geral, concreto, em vez de abstrato. Em teoria, pelo menos, o professor

deve estabelecer o significado de sincero na mente do aluno antes de abordar a qualidade abstrata, a sinceridade; deve mostrar que muitas coisas são ricas antes de explicar a riqueza ou nobres antes de explicar

a nobreza. Além disso, se uma palavra tiver muitas definições, a mais simples, a mais compreensível, a que mais facilmente se associa ao repertório de idéias e imagens concretas do aluno deve ser explicada antes

daquelas que são predominantemente abstratas ou figurativas. Partimos do princípio de que, para que uma palavra tenha valor para o aluno, ela

deve representar uma idéia claramente estabelecida em sua mente.

Nos exercícios destinados a aprimorar o uso das palavras, existem muitos meios pelos quais uma palavra é introduzida na vida do aluno. Ele deve defini-la, encontrar exemplos de seus usos aceitos, aprender seu significado original (seu significado literal quando a palavra é fi-

gurativa), compará-la com outras palavras de significado semelhante e, acima de tudo, contrastá-la com palavras de signi cado contrário.

fi

576

ESTILO Não é exagero dizer que a base de todo ensino de vocabulário é o con-

traste, não a semelhança. Se uma determinada palavra for usada prin-

cipalmente como substantivo, o professor não deixa o aluno associar livremente adjetivos sinônimos a ela, ajudando a compreender o que são adjetivos e como usá-los com substantivos. Se a palavra for um adjetivo ou um verbo, ele mostra advérbios relacionados e outros que parecem estranhos e não-idiomáticos. De maneira semelhante, o professor orienta o aluno a ver as distinções, estabelecidas pelo uso, entre substantivos que, em geral, são sinônimos. Para dar um exemplo muito simples, se a palavra stem [caule] aparecesse em uma lição, o professor deve ser extremamente cuidadoso em destacar a diferença entre stem e stalk [haste], stem e trunk [tronco], e stalk e trunk, de modo que o aluno nunca incorra no erro de usar esses termos um no lugar do outro. Por meio de inúmeros exercícios desse tipo, o aluno começa a perceber que

as palavras não têm o mesmo valor e que a escolha entre elas não depende de de nições rígidas, mas de um conhecimento de seu uso. Quanto aos exercícios de evocar rapidamente as palavras, pouco precisa ser dito. Geralmente, consistem em perguntas curtas sobre a palavra, seu uso, seus sinônimos e antônimos, com prática oral ou escrita sobre assuntos que provavelmente colocarão em uso as palavras de uma determinada classe. Não vi nenhuma transformação de verso em prosa, mas vi muitos exercícios que exigiam que os alunos transformassem um tipo de prosa em outro. Na maioria dos casos, o professor simplesmente lê uma história ou um ensaio para a turma e, em seguida,

pede aos alunos que o repitam com sua própria linguagem. Depois de

um pouco de prática, um menino acaba adotando, inconscientemente,

muitas palavras que ele entendeu bem, mas que não faziam parte de seu vocabulário de trabalho. O aluno não renuncia à individualidade,

como deve fazer (pelo menos, momentaneamente) ao imitar outros autores; antes, encontra-se em estado de receptividade, que encoraja a

impressão definida do que lê ou ouve.

O escopo das aulas de vocabulário é amplo. Quando um menino atinge a idade de doze anos, ele não só tem prática em chamar objetos simples pelos seus nomes corretos, mas também já se relaciona com o mundo ao seu redor, tendo familiaridade com palavras pertencentes a uma grande variedade de contextos. Ele sabe falar, de modo concatenado, sobre as profissões, as ocupações dos trabalhadores, a agricultura,

fi

577

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

a vida social, a vida política; é capaz de discutir os fenômenos mais conhecidos da atmosfera, as características físicas de seus amigos, suas virtudes morais e seus defeitos de caráter; consegue usar com precisão as palavras que surgem de relações como comércio, guerra, colonização, vida na cidade ou no campo; e sabe falar ou escrever sobre meios

de comunicação, como ferrovias, navios a vapor, estradas de ferro, o telégrafo e o telefone. Essa habilidade ele adquire não com mergulhos esporádicos ou cegos, mas por meio de um estudo ordenado e sistemático. A educação não é rígida, nem mecânica. Visitando as salas de aula, mesmo durante alguns meses, nem parece que há um programa estruturado. No entanto, é a organização cuidadosa que torna possível o amplo escopo do trabalho. A simplicidade não resulta de um esforço individual, isolado, mas de um plano bem elaborado. O segundo exercício preliminar universalmente empregado pelo professor de francês como língua materna é o ditado. Na América, o

ditado parece ter sido posto de lado para dar lugar a algo novo. Os professores de francês, entretanto, não hesitam em usar um método ou recurso antiquado se eles o consideram bom. Por conseguinte, em vez de tirar o ditado do programa de estudos, eles decidiram enfatizá-lo e aprimorá-lo, de modo que agora o ditado é uma parte muito importante e completamente estabelecida de seu procedimento educacional. Tal decisão baseia-se na convicção de que uma criança pode adquirir habilidades antes de desenvolver o poder de pensar de forma profunda ou sustentada. Ela deve, então, praticar bastante, escrevendo os pensamentos de outras pessoas enquanto ainda é muito nova para escrever os próprios pensamentos. Os professores admitem que o ditado tem seus perigos, mas como esses perigos são pequenos em comparação a seu valor, eles não deixam de usá-lo (assim como os exercícios de vocabulário), confiantes de que, embora haja pequenos riscos, eles estão seguindo a direção de um senso comum mais amplo. Os professores de francês geralmente se debruçam sobre quatro ou

cinco valores específicos do ditado: o exercício dá ao aluno muita prática no manejo da frase; direciona sua atenção para construções gramaticais; ajuda-o a aprender ortografia, a pontuar e a escrever em maiúsculas; amplia seu vocabulário e lhe dá prática no uso de palavras já conhecidas por ele; e preenche sua mente com bons padrões de linguagem. A estes deve

578

ESTILO ser adicionado um valor que o professor atencioso considerará o maior de

todos: ditado evita que o aluno separe a linguagem falada da linguagem

escrita. Uma das objeções invariavelmente colocadas pelos jovens alunos à composição original é que a escrita parece um processo artificial

muito diferente de tudo o que ele já tentou antes. Com essa objeção, ele simplesmente quer dizer que a linguagem está naturalmente vinculada à fala, não à escrita, e que ele não sente uma relação estreita entre o que diz e o que escreve. Então, se, antes de começar a escrever um texto próprio (e mais tarde, quando já tiver alguma prática), ele exercitar escrever o que ouve, é muito menos provável que a relação entre a fala e a escrita seja enfraquecida. Enquanto ele ouve atentamente a leitura de seus professores, captando as palavras em seus grupos naturais de pensamento e anotando-as em seu caderno de exercícios, ele não está somente aprendendo muito sobre a mecânica da composição, mas está evitando o erro de considerar a escrita como algo muito distante da realidade. Ao passar ditados, o professor deve ser muito cuidadoso. Depois das primeiras aulas, onde o trabalho deve ser necessariamente simples, ele não dá frases isoladas, mas um parágrafo inteiro, que seja interessante. Além disso, ele sempre explica o parágrafo antes de pedir ao aluno que o escreva. Esta precaução é considerada tão importante que o professor é proibido de exigir que o aluno escreva qualquer coisa que seja vaga ou sem sentido. Novamente, ele lê um parágrafo capaz de manter a atenção dos alunos, ou seja, com idéias e as palavras ao alcance deles. E, por fim, o professor evita que o exercício se torne monótono. O texto nunca é longo (geralmente é um parágrafo curto e objetivo), as correções são feitas imediatamente, para aproveitar o interesse da turma, e os alunos não precisam reescrever nada, a menos que tenham sido extremamente

descuidados. Os dez ou quinze minutos de ditado são tão agradáveis que o tempo passa rápido e o menino nem sonha que está fazendo algo que, sob a supervisão de um professor despreparado, pode se tornar um pesadelo inútil.28

28 Rollo Walter Brown, How the French Boy Learns to Write: A Study in the Teaching of the Mother Tongue. Copyright 1915 da Harvard University Press. Reproduzido com permissão.

579

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

RESUMO A atenção que o verdadeiro ofício da escrita recebe nas escolas francesas está relacionada não só à educação adequada, mas à prática específica em um contexto estimulante. A redação é considerada uma parte muito

importante (aliás, a parte mais importante) da língua materna como disciplina. O estudo de vocabulário e a prática de ditado são realizados desde as séries iniciais, a fim de que o menino possa expressar-se sem dificuldade quando tiver idade para dizer algo próprio em textos estruturados. O material utilizado também tem grande importância, já que ajudará a desenvolver, nesta ordem, os poderes da atenção e da observação, a imaginação e os hábitos de reflexão. Além disso, esse material é quase sempre discutido em sala de aula, para despertar o interesse do aluno, que deve cuidar também da organização e da boa forma geral ao escrever a respeito do que foi trabalhado. Na análise dos textos, a

discussão oral ocupa bastante lugar. O professor apresenta sugestões, fazendo críticas claramente construtivas, isto é, enfatiza a diferença entre um bom trabalho e um trabalho ruim, levando os alunos a refletir sobre as possibilidades do assunto, em vez da magnitude de suas próprias deficiências. E, por fim, o treinamento que os alunos recebem no estudo da língua materna é reforçado, em grande parte, pelo trabalho em outras disciplinas.

EXERCÍCIOS DE IMITAÇÃO CÓPIA DE TRECHOS O primeiro exercício de imitação que recomendamos consiste em copiar passagens, palavra por palavra, de autores admirados. Pode parecer

um exercício um tanto mecânico, mas a prática pode nos ensinar muito sobre as sutilezas do estilo. No início deste capítulo, observamos uma

série de recursos que procuramos quando fazemos um estudo detalhado do estilo. Pois você verá esses recursos na prática ao transcrever

cuidadosamente os textos. Para tirar o máximo proveito deste exercício, você deve observar

algumas regras simples.

580

ESTILO 1. Você não deve passar mais de quinze ou vinte minutos copiando

de cada vez. Se você estender este exercício por muito mais que vinte minutos, acabará se distraindo e estará apenas copiando palavras. 2. Você deve escrever à mão, com lápis ou caneta. O processo de di-

gitação é tão rápido e mecânico que você pode copiar passagens inteiras

sem prestar atenção às características do estilo do autor. Copiando à mão, você transcreve a passagem em um ritmo tal que tem tempo para observar a escolha e a disposição das palavras, os padrões das frases e a extensão e variedade das orações. 3. Você não deve dedicar muito tempo a nenhum autor especí co. Se você se concentrar no estilo de um único autor, poderá cair naquela

"imitação automática" que os retóricos criticavam. O objetivo deste exercício não é adquirir o estilo de outra pessoa, mas estabelecer as

bases para desenvolver seu próprio estilo, "sentindo" diversos estilos.

4. Você deve ler o trecho inteiro antes de começar a copiá-lo, para captar o pensamento e o formato da passagem como um todo. Quando

estiver copiando, é aconselhável ler cada frase antes de transcrevê-la. Depois de terminar de copiar a passagem, você deve ler a transcrição para ter uma idéia do texto como um todo. 5. Você deve copiar de forma lenta e precisa. Se for para correr, melhor não fazer nada. Uma maneira de garantir a precisão e o ritmo adequado é caprichar na caligrafia, que deve ser a mais legível possível. Você obterá o máximo benefício deste exercício de cópia se praticá-lo por um longo período: transcrever uma única passagem diferente

todos os dias durante um mês será mais benéfico do que transcrever várias páginas diferentes todos os dias durante uma semana. Você deve ter tempo para absorver as muitas lições a serem aprendidas aqui, e não terá tempo se fizer este exercício por um curto período. EXEMPLOS DE TRECHOS PARA IMITAÇÃO

1. A Bíblia

Voltei-me e vi que debaixo do sol a corrida não é para os velozes,

nem a guerra para os fortes, nem o pão para os inteligentes, nem as

fi

581

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO riquezas para os entendidos, nem o favor para os sábios; o tempo e o

acaso em tudo se misturam. O homem não sabe que fim será o seu: como os peixes são apanhados no anzol, e as aves caem no laço, assim

os homens são surpreendidos pela adversidade, quando ela der sobre eles de improviso. Um outro fato observei sob o sol, que foi para mim

uma grande lição: Havia uma pequena cidade, e nela se achavam pou-

cos homens; foi contra ela um grande rei, bloqueou-a e levantou ao redor altas torres. Ora encontrava-se nela um homem pobre e sábio que

livrou a cidade pela sua sabedoria. E ninguém depois disto se lembrou mais daquele homem pobre. Então disse comigo: a sabedoria vale mais do que a fortaleza, mas é desprezada a sabedoria do pobre, e não são ouvidas as suas palavras. As palavras dos sábios, proferidas com calma, são mais ouvidas que o clamor do chefe entre os insensatos. Vale mais a sabedoria, do que as armas da guerra. Uma só falta pode destruir muito

bem. Livro do Eclesiastes (9, 11-18)

Ora, estando ali, aconteceu completarem-se os dias em que devia dar à luz, e deu à luz o seu filho primogênito, e o enfaixou, e o reclinou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem.

Naquela mesma região, havia uns pastores que velavam e faziam de noite a guarda ao seu rebanho. Apareceu-lhes um anjo do Senhor, e a glória do Senhor os envolveu com a sua luz, e tiveram grande temor. Porém o anjo disse-lhes: "Não temais, porque eis que vos anuncio uma boa nova, que será de grande alegria para todo o povo: Nasceu-vos hoje

na cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo, o Senhor. Eis o que vos

servirá de sinal: Encontrareis um Menino envolto em panos, e deitado

numa manjedoura". E subitamente apareceu com o anjo uma multidão da milícia celeste, louvando a Deus, e dizendo: "Glória a Deus no mais

alto dos céus, e paz na terra aos homens, objeto da boa vontade de

Deus".

Evangelho de Lucas (2, 6-14)

582

ESTILO 2. Sir Thomas Browne

Se a proximidade de nossa última necessidade trouxesse mais conformidade em relação a ela, haveria felicidade nos fios de cabelo grisalhos e não haveria nenhuma calamidade nos meios sentidos. Porém, o longo hábito de viver indispõe-nos a morrer; quando a avareza faz de nós o passatempo da morte, quando até mesmo Davi torna-se politicamente cruel e Salomão dificilmente pode ser considerado o mais sábio

dos homens. Mas muitos ficam velhos cedo demais, e antes de envelhecerem de fato. A adversidade prolonga nossos dias, a miséria cria noites

de Alcmena e o tempo não tem asas. Mas o ser mais tedioso é aquele que nem deseja, contentando-se em ser nada, ou, antes, em nunca ter

existido, como no descontentamento de Jó, que amaldiçoou não os dias de sua vida, mas seu nascimento; satisfeito de ter existido até então, a ponto de ter um título para o futuro ser, embora vivendo aqui em estado de ocultamento e como se fosse um aborto.

Hydriotaphia, Urn-Burial, 1658.

3. John Dryden É uma vaidade comum a todos os escritores, supervalorizar suas

próprias produções; e é melhor, para mim, reconhecer essa falha em mim mesmo do que o mundo fazer isso por mim. Por que outro motivo

passei minha vida em um estudo tão improdutivo? Por que envelheci procurando uma recompensa tão estéril como a fama? As mesmas partes que me fizeram poeta podem ter me elevado a honras de adultos, geralmente concedidas a homens com tão pouca erudição quanto eu (e menos honestidade). Não existe governo, nem existirá, em que os oportunistas e as bestas quadradas não estejam em primeiro lugar. As pessoas mudam, mas os mesmos malabarismos no Estado, a mesma hipocrisia na religião, o mesmo interesse próprio e má administração, permanecerão para sempre. Sangue e dinheiro serão esbanjados em todas as épocas, apenas para a promoção de novos rostos, com velhas consciências. Os grandes homens sofrem de icterícia nos olhos: não enxergam aqueles que eles criaram nas mesmas cores que outros homens.

583

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Todos os que eles forjaram parecem dourados a seus olhos, quando o dourado está apenas em sua própria visão distorcida. Essas considerações me deram uma espécie de desprezo por aqueles que se ergueram por caminhos indignos. Não tenho vergonha de ser pequeno, quando os vejo tão infamemente grandes; também não sei por que o nome de

poeta deveria ser desonroso para mim, se o sou verdadeiramente, como espero ser; pois nunca farei nada que o desonre.

Dedicatória a Examen Poeticum, 1693.

4. Daniel Defoe

Devo confessar que antes disso acontecer eu mesmo andava muito deprimido. O prodigioso número de pessoas que ficaram doentes uma ou duas semanas antes, mais as que morreram, foi tal, com lamentações

tão grandes em todo lugar, que um homem pareceria agindo contra sua razão se tivesse qualquer esperança de escapar. Dificilmente encontrava

uma casa, a não ser a minha em toda vizinhança, que não estivesse

contaminada e, se continuasse assim, não levaria muito tempo para que não houvesse mais vizinhos para serem contaminados. De fato, é

difícil acreditar na horrenda destruição ocorrida nas últimas três semanas; pois, se devo acreditar na pessoa cujos cálculos me pareceram bem fundamentados, não houve menos de trinta mil mortos e cerca de cem mil ficando doentes nas três semanas a que me refiro. A quantidade de doentes era surpreendente, realmente assombrosa, e aqueles cuja coragem os mantivera todo o tempo anterior, agora sucumbiam na peste. Em meio a sua aflição, quando a cidade de Londres estava em condições verdadeiramente calamitosas, foi justamente então que aprouve a Deus — através da intervenção imediata de sua mão — desarmar o inimigo, retirando o veneno da sua ferroada. Foi maravilhoso e até os médicos se surpreenderam. Onde quer que fizessem uma visita encontravam seus pacientes passando melhor; tiveram um suadouro benigno ou os tumores arrebentaram, com a pústula desaparecendo e mudando a cor ao redor da inflamação, ou a febre tinha passado, ou amenizaram-se as violentas dores de cabeça ou havia algum bom sintoma no caso. Assim, em poucos dias todo mundo estava se restabelecendo. Famílias

584

ESTILO inteiras que, contaminadas e abatidas, esperavam a morte a qualquer hora e já tinham padres rezando com elas, foram revividas e curadas, não morrendo ninguém entre elas.

Um diário do ano da peste, 172229

5. Lady Mary Wortley Montagu

Esta pequena digressão interrompeu minha narrativa de que passamos pelos campos de Carlowitz, onde a última grande vitória foi obtida pelo Príncipe Eugênio sobre os turcos. As marcas daquele dia glorioso e sangrento ainda são recentes, o campo sendo coberto de crânios e carcaças de homens, cavalos e camelos insepultos. Não podia olhar sem horror para tal número de corpos humanos mutilados, refletindo sobre

a injustiça da guerra, que torna o assassinato não apenas necessário, mas meritório. Nada me parece uma prova mais clara da irracionalidade humana (quaisquer que sejam nossos pretextos) do que a raiva com que disputam um pequeno pedaço de terra, quando tão vastos territórios férteis jazem desabitados. É verdade, o costume agora tornou tal prática inevitável, mas pode haver maior demonstração de falta de razão do que um costume estabelecido tão claramente contrário ao interesse do homem em geral? Estou bastante inclinada a acreditar, Sr. Hobbes, que o estado de natureza é um estado de guerra; mas daí concluo que a natureza humana não é racional, se a palavra razão significa

bom senso, como suponho que signifique. Tenho muitos argumentos admiráveis para esta reflexão, mas não desejo incomodá-lo, de modo que retorno, em estilo simples, ao relato de minhas viagens.

Carta a Alexander Pope, em 12 de fevereiro de 1717, Old Style, de Belgrado.

29 Tradução de Eduardo San Martin, Editora Artes e Ofícios, 2014 - NT.

585

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 6. Edward Gibbon A renovação, ou talvez a melhoria, de minha vida inglesa foi estra-

gada pela alteração de meus próprios sentimentos. Na idade de vinte e

um, eu estava, em minha própria posição de jovem, libertado do jugo da educação e feliz com o relativo estado de liberdade e riqueza. Minha

obediência filial era natural e fácil; e na alegre perspectiva de futuro, minha ambição não se estendia além do prazer de meus livros, minhas horas de lazer e meu patrimônio, imperturbável pelos cuidados de uma família e pelos deveres de uma profissão. Na milícia, porém, eu estava armado de poder; em minhas viagens, estava isento de controle; e à medida que me aproximava de meu trigésimo ano, comecei a sentir o desejo de possuir meu próprio imóvel. A autoridade mais gentil às vezes franzirá a testa sem motivo, a submissão mais alegre às vezes murmurará sem razão; e tal é a lei de nossa natureza imperfeita, que devemos comandar ou obedecer; nossa liberdade pessoal é sustentada pela subserviência de nossos próprios dependentes. Enquanto tantos dos meus conhecidos estavam casados ou no parlamento, alguns avançando com passos rápidos nas diversas estradas da honra e da fortuna, eu estava sozinho, parado e insignificante; depois da reunião mensal de 1770, eu havia me afastado até da milícia, renunciando a um encargo vazio e

estéril. Não sou dado à inveja, e a visão do mérito bem-sucedido sempre despertou meus mais calorosos aplausos. As misérias de uma vida vazia nunca foram conhecidas por um homem cujas horas são insuficientes para os prazeres inesgotáveis do estudo. Mas lamentei que, na idade apropriada, não tivesse abraçado as buscas lucrativas do direito ou do comércio, as chances de cargos públicos ou aventuras na Índia, ou mesmo o sono pesado da Igreja; e meu arrependimento tornou-se mais vivo à medida que a perda de tempo se tornava mais irrecuperável. Memoirs of My Life and Writings, 1796.

7. Fanny Burney

Pôs a pistola em cima da mesa e enfiou a mão no bolso, de onde, em

poucos instantes, tirou outra: esvaziou, então, uma pequena bolsa de

586

ESTILO couro ali. Depois, pegando as duas pistolas, uma em cada mão, ajoelhou-se com pressa e gritou: "Ó Deus! Perdoe-me!".

Em um instante, tomada por força e coragem que desconhecia em mim, saltei para dentro da sala, consegui agarrar seu braço, e então,

vencida por meus próprios medos, caí a seu lado, sem fôlego e sem sentido. Minha recuperação, entretanto, foi, creio eu, quase instantâ-

nea; e então, a visão daquele homem infeliz, olhando-me com um semblante indizível de espanto e preocupação, logo me devolveu a memória. Levantei-me, mesmo com dificuldade; ele fez o mesmo; as pistolas,

logo vi, estavam ambas no chão.

Não querendo deixá-las, e na verdade, muito fraca para me mover, apoiei uma mão sobre a mesa, e fiquei perfeitamente imóvel, enquanto

ele, com o olhar atônito voltado para mim, parecia in nitamente surpreso, perplexo demais para qualquer fala ou ação.

Evelina, 1778.

8. Mary Wollstonecraft Acusem-me de arrogância; ainda assim, declaro acreditar firmemente

que todos os escritores que têm tratado do tema da educação e das ma-

neiras femininas, desde Rousseau até o Dr. Gregory, têm contribuído para tornar as mulheres mais artificiais e de caráter mais fraco do que elas

realmente são; e, conseqüentemente, membros mais inúteis da sociedade.

Eu poderia ter expressado essa convicção em um tom mais baixo, mas temo que pareceria um lamento afetado, e não a expressão fiel de meus sentimentos, do claro resultado que extraí da experiência e da reflexão.

Quando chegar a essa parte do tema, chamarei a atenção às passagens que particularmente desaprovo nas obras dos autores citados, mas antes é preciso observar que minha objeção se estende à intenção geral desses

livros, que, em minha opinião, tendem a degradar metade da espécie humana e a tornar as mulheres agradáveis às custas de toda sólida virtude.

Reivindicação dos direitos da mulher, 1792.30 30 Tradução de Ivania Pocinho Morta, São Paulo: Boitempo, 2016 — NT.

fi

587

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 9. Washington Irving

Todavia, o espírito dominante que assombra esta encantada região e parece comandar todos os poderes da atmosfera é a aparição de uma -

gura sem cabeça montada num cavalo. Dizem alguns que é o fantasma

de um soldado da cavalaria de Hesse cuja cabeça foi arrancada por uma bala de canhão, numa batalha sem nome da Guerra da Independência,

e que é visto pelos camponeses, de quando em quando, correndo a toda a brida por entre as sombras da noite, como se o levassem as asas do vento. As suas aparições não se limitam ao vale, estendendo-se por vezes aos caminhos adjacentes e especialmente às imediações de uma igreja não muito distante. Na verdade, alguns dos mais versados historiadores destas terras, que zelosamente têm coligido e examinado as oscilantes versões atinentes a este espectro, afirmam que o corpo do soldado foi enterrado no cemitério da igreja, que o seu espírito cavalga de noite para o cenário da batalha em busca da cabeça decepada e que a tremenda rapidez com que às vezes atravessa o vale, qual rajada de vento

a meio da noite, resulta de ter perdido muito tempo nessa busca e de se ver constrangido a apressar-se para voltar à igreja antes do alvorecer.

"A lenda do cavaleiro sem cabeça", em A lenda do cavaleiro sem cabeça e outros contos, 1819-1820.'

10. William Hazlitt

Qualquer um pode declamar uma passagem com cadência teatral

ou exibir pompa ao expor seus pensamentos, mas é muito mais difícil falar ou escrever com simplicidade e propriedade. É fácil assumir um estilo ostentoso, empregar uma palavra que signi ca muito mais do que desejamos expressar, mas não é nada simples encontrar a pala-

vra precisa que se encaixa exatamente no que pensamos. Dentre oito ou dez palavras igualmente comuns e igualmente inteligíveis (e com acepções ou matizes quase idênticos), escolher aquela cujas vantagens, quase imperceptíveis, resultem decisivas para a expressão é um assunto

31 Tradução de Júlio Henriques, Lisboa: Edições tinta-da-china, 2008 — NT.

fi

fi

588

ESTILO de suma delicadeza e discernimento. A falha que encontro no estilo do Dr. Johnson é que ele não discrimina, não seleciona, nem oferece variedade, utilizando somente "palavras elevadas e opacas", retiradas dentre as mais destacadas do repertório: palavras com o maior número

de sílabas ou frases latinizantes que têm apenas terminações reconhecíveis. Se o estilo re nado consistisse nesse tipo de pretensão arbitrária, seria justo julgar a elegância de um autor pela extensão de suas palavras

e pela frequência com que substitui os termos de sua língua materna por circunlocuções estrangeiras (sem associações precisas). Como é fácil adquirir dignidade sem naturalidade, ser fastuoso, mas vazio! O

pedantismo e a afetação podem ser procedimentos mecânicos eficazes para evitar o que é baixo, mas isso porque ninguém pode usar uma palavra vulgar quando nem sequer empregou antes uma palavra comum. Requer-se um fino tato para encontrar aquelas que são perfeitamente comuns e que, no entanto, nunca se transformam em expressões impróprias por alguma associação desagradável. Igualmente, é necessário muito tato para não empregar palavras que devem seu significado e sua pertinência a aplicações técnicas ou profissionais. Um estilo verdadeiramente natural nunca será vulgar nem estranho pela simples razão de que possui força e aplicação universais: a vulgaridade e a estranheza resultam do vínculo que certas palavras têm com noções burdas e desagradáveis, por um lado, ou com idéias limitadas, por outro. "Sobre o estilo familiar", 1821.

II. Jane Austen

E Mr. Bingley em pouco tempo travou relações com as principais pessoas da sala. Era animado e franco, dançava todas as vezes e mos-

trou-se aborrecido por ter o baile terminado tão cedo. Chegou mesmo

a falar em dar outro em Nether eld. Qualidades tão amáveis falam por si mesmas. Que contraste entre ele e seu amigo! Mr. Darcy dançou apenas uma vez com Mrs. Hurst e outra com Miss Bingley. Recusou-se

a ser apresentado a qualquer outra moça e passou o resto da noite andando pelo salão, conversando ocasionalmente com uma ou outra pessoa do seu próprio grupo. Seu caráter estava xado. Era o homem mais

fi

fi

fi

589

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

orgulhoso, mais desagradável do mundo. E todos pediram a Deus que ele nunca mais voltasse. Entre as pessoas que estavam contra ele, a mais violenta era Mrs. Bennet, a cuja antipatia pela sua conduta se somava o despeito de ver uma das suas filhas desprezada por ele. Orgulho e preconceito, 1813.

12. Charles Lamb

Sou, por natureza, extremamente suscetível às afrontas da rua; às zombarias e provocações da população, o triunfo vulgar que exibem sobre uma viagem casual ou as meias coloridas de um cavalheiro. No entanto, posso suportar a jocosidade de um jovem varredor com algo

mais do que indulgência. No penúltimo inverno, andando ao longo

da Cheapside com minha precipitação costumeira quando caminho para o Oeste, um escorregão traiçoeiro levou-me ao chão num instante. Levantei-me com dor e vergonha, tentando disfarçá-las, como se nada

tivesse acontecido, quando deparei-me com o sorriso maroto de um desses jovens sagazes. Lá estava ele, mostrando-me com o dedo escuro para a turba e para uma pobre mulher (suponho que sua mãe) em particular, até que as lágrimas pelo requinte da diversão (assim pensava ele) esgotaram-se nos cantos de seus pobres olhos vermelhos, de muitos

choros anteriores e in amados de fuligem, mas brilhando entre todos com visível alegria, arrancados da desolação, como Hogarth o retratara em "A Marcha para Finchley", sorrindo para o cozinheiro. Ali estava ele, como na pintura, irremovível, como se a pilhéria fosse durar para sempre, com tanta euforia e tão pouca maldade em sua alegria, pois o sorriso de uma vitória genuína não contém absolutamente nenhuma malícia, que eu poderia ter cado contente (se a honra de um cavalheiro pudesse suportar) em ser seu alvo de zombaria até meia-noite.

"The Praise of Chimney-Sweepers", 1822.

fi

fl

590

ESTILO 13. George Eliot (Mary Ann Cross)

Ela foi, nessa noite, objeto de muitos comentários, porque o jantar,

muito importante, compunha-se de elementos masculinos mais variados do que todos os que se deram na Grange, desde que ali viviam as

sobrinhas do senhor Brooke. As conversas formavam-se em duos e trios, mais ou menos harmoniosos. Havia um industrial, novo administrador

de Middlemarch; seu cunhado, banqueiro filantropo, que ocupava na cidade uma situação preponderante, era metodista para uns, hipócrita para outros; en m, várias pro ssões. A senhora Cadwallader achava que Brooke começava a banquetear a gente de Middlemarch e que ela preferia os rendeiros aos paroquianos sujeitos ao dízimo, que bebiam à sua saúde, sem pretensões, e não tinham vergonha da mobília do seu avô. Naquela região, onde, antes da Reforma ter desenvolvido a consciência política, existia uma distinção mais clara entre as categorias e uma distinção mais obscura de partido, os convites misturados do senhor Brooke pareciam proceder do relaxamento geral. Middlemarch, 1871-72.32

14. Abraham Lincoln

Há oitenta e sete anos, nossos pais criaram neste continente uma nova nação, concebida em liberdade e consagrada ao princípio de que todos os homens nascem iguais. Encontramo-nos atualmente empenhados em uma grande guerra civil, pondo à prova se essa nação, ou qualquer nação assim conce-

bida e consagrada, poderá perdurar. Estamos em um grande campo de

batalha dessa guerra. Estamos reunidos para dedicar uma parte desse campo ao derradeiro descanso daqueles que, aqui, deram suas vidas para que essa nação pudesse sobreviver. É perfeitamente conveniente e justo que o façamos. Todavia, em um sentido mais amplo, não podemos dedicar, não podemos consagrar, não podemos santificar este solo. Os valentes ho32 Tradução de Mário Domingues, Editora Relógio d'Água, 2011 — NT.

fi

fi

591

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO mens, vivos e mortos, que aqui combateram, já o consagraram, muito além do que poderíamos acrescentar ou diminuir com nosso fraco po-

der. O mundo pouco notará nem se lembrará por muito tempo do que

dissermos aqui, mas nunca poderá esquecer o que eles aqui fizeram. Cumpre-nos, antes, a nós, os vivos, antes, dedicarmo-nos hoje à obra inacabada que aqueles que aqui combateram iniciaram tão nobremente. Antes, cumpre-nos a nós, os presentes, dedicarmo-nos à grande tarefa que temos pela frente: que, diante dos combatentes mortos, devotemo-nos ainda mais à causa pela qual eles deram o exemplo máximo de devoção. Cumpre-nos a nós fazer com que esses homens não tenham morrido em vão, que esta nação, com a ajuda de Deus, assista ao renascimento da liberdade e que o governo do povo, pelo povo, para o povo, não desapareça da face da terra. Discurso de Gettysburg, 1863.

15. Mark Twain Uma vez por dia, um barco a vapor barato e berrante chegava de St. Louis para cima e outro de Keokuk para baixo. Antes desses eventos, o dia era glorioso de expectativa; depois deles, o dia era morto e vazio. Não apenas os meninos, mas toda a vila, sentiam isso. Depois de todos esses

anos, posso imaginar aquele tempo antigo para mim agora, exatamente como era naquela época: a cidade branca se banhando sob o sol da manhã de verão; as ruas vazias, ou quase isso; um ou dois balconistas sentados em frente às lojas da Water-Street, com as cadeiras de tala inclinadas para

trás contra a parede, queixo nos peitos, chapéus pendurados no rosto,

adormecidos — com aparas de telhas su cientes para mostrar o que os destruiu; uma porca e uma ninhada de porcos vagando pela calçada, fazendo bons negócios em cascas de melancia e sementes; duas ou três pequenas pilhas de carga solitárias se espalhando pelo "dique"; uma pilha de "derrapagens" na encosta do cais de pedra e o bêbado perfumado da cidade adormecido à sombra delas; duas ou três balsas de madeira na cabeceira do cais, mas ninguém para ouvir o bater pací co das ondas contra elas; o grande Mississippi, o majestoso, o magní co Mississippi, rolando sua maré de milha ao longo, brilhando ao sol; a densa floresta do

fi

fi

fi

592

ESTILO outro lado; o "ponto" acima da cidade, e o "ponto" abaixo, delimitando

o vislumbre do rio e transformando-o em uma espécie de mar, além de ser muito calmo, brilhante e solitário. Logo, um filme de fumaça escura

aparece acima de um desses "pontos" remotos; instantaneamente, um negro carregador, famoso por seus olhos rápidos e voz prodigiosa, levanta

o grito: "B-a-r-c-o-c-h-e-g-a-n-d-o!" e a cena muda! O bêbado da cidade

se agita, os balconistas acordam, segue-se um furioso barulho de carri-

nhos, todas as casas e lojas derramam uma contribuição humana, e em

um piscar de olhos a cidade morta está viva e em movimento. Carrinhos, carroças, homens, meninos, todos correm de vários lugares para um centro comum, o cais. Reunidas ali, as pessoas fixam os olhos no barco que

se aproxima como uma maravilha que estão vendo pela primeira vez.

Vida no Mississippi, 1883.33

16. Henry James A casa da ficção tem, em resumo, não uma mas um milhão de janelas

— um número de possíveis janelas que não pode ser computado; cada

uma delas foi aberta, ou ainda pode ser aberta, em sua vasta fachada, pela necessidade da visão individual e pela pressão da vontade individual. Essas aberturas, de formatos e tamanhos diferentes, pairam todas tão acima do cenário humano que até se poderia esperar delas similaridade maior de descrição. São, na melhor das hipóteses, simples janelas, meros buracos numa parede fechada, desconexos, empoleirados uns sobre os outros; não são portas que se abrem para a vida. Mas têm a marca própria de, em cada

uma delas, estar uma figura com um par de olhos, ou no mínimo com um

binóculo, que serve, novamente, para a observação, como instrumento único, garantindo à pessoa que faz uso dele uma impressão distinta de todas as outras. Ela e suas vizinhas estão assistindo ao mesmo espetáculo, mas uma vê mais onde a outra vê menos, vê preto onde a outra vê branco, vê grande onde a outra vê pequeno, vê grosso onde a outra vê fino. E assim

por diante; felizmente não há como saber para o que, a um determinado par de olhos, a janela talvez não se abra; digo "felizmente" em virtude pre33 Tradução de Camila Rodrigues Natal Gaia — NT.

593

cisamente dessa impossibilidade de prever seu alcance. O campo extenso,

a cena humana, é a "escolha do tema"; o buraco aberto, seja ele amplo, murado ou uma mera fenda enevoada, é a "forma literária"; mas nada são,

juntos ou isolados, sem a atenta presença do observador — em outras palavras, sem a consciência do artista. Digam-me o que é o artista, e eu lhes

direi do que ele tem estado consciente. Assim, ao mesmo tempo expressarei sua liberdade ilimitada e sua referência "moral".

Prefácio de Retrato de uma senhora, 1915,34

17. Ernest Hemingway Às vezes, na escuridão, ouvíamos o rumor de tropas em marcha logo

abaixo da janela, com os canhões puxados por tratores. Havia muito tráfego à noite e muitas mulas nas estradas com caixas de munição em ambos os flancos de suas selas, e caminhões cinzentos, cheios de homens, alguns com a carga coberta de lona, desfilando lentamente. Havia ainda grandes canhões, que passavam de dia, puxados por tratores, os longos canos camuflados de arbustos e galhos cobertos de folhas, além de videiras sobre os tratores. Olhando para o norte, víamos, além da planície, uma oresta de castanheiros; depois, a montanha, daquele lado do rio. Também houve

muita luta pela posse daqueles morros, mas sem resultado; e no outono, com a chuva, caíram todas as folhas dos castanheiros. Os galhos estavam

despidos e os troncos enegrecidos pela chuva. Os vinhedos tornaram-se também varas finas e desnudas, e por toda a região pairava a tristeza da chuva e da morte, algo típico do outono. Havia névoa sobre o rio e nuvens

na montanha distante. Os caminhões chapinhavam e espirravam lama, e

os soldados passavam sujos de barro e molhados, em seus capotes; os ries estavam encharcados, e, por debaixo dos capotes, as duas patronas de couro cinzento na frente do cinturão, bastante pesadas, com os cartuchos

de 6.5 mm, alongados e finos, estufavam tanto suas silhuetas, que faziam

os homens em marcha parecerem grávidos de seis meses.

Adeus às armas, de Ernest Hemingway.?s 34 Tradução de Gilda Suart, Companhia de Bolso, 2007. 35 Reproduzido com permissão de Charles Scribners Sons, uma marca de Macmillan Publishing

594 fl

fl

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

ESTILO 18. Jean Shepherd

Quando chegamos com o presunto em casa, minha mãe tirou imediatamente o papel branco e o barbante no meio da mesa da cozinha esmaltada de branco. O presunto exalava perfumes celestiais, orgulhoso, arrogante, régio. Tinha a pele escura, fumê e coriácea, que minha mãe arrancou cuidadosamente com sua faca de pão afiada. Então o velho, o único que conseguia levantar o presunto sem acabar com a coluna, colocou-o na grande panela oval azul-escura, usada só para presuntos. Minha mãe cobriu o presunto com água, levou-o ao fogo alto e aumentou o gás até ferver. A panela ficou lá no fogão, borbulhando por umas duas horas, enchendo a casa com um aroma delicioso, tão poderoso que tinha conotações eróticas. O velho andava de um lado para o outro, levantando ocasionalmente a tampa e cutucando o presunto com um garfo, não sem inalar profundamente, tomado pelo frenesi alimentar.

"The Grandstand Passion Play of Delbert and the Bumpus Hounds", em Wanda Hickeys Night of Golden Memories, de Jean Shepherd?6

19. N. Scott Momaday

Embora minha avó tenha passado sua longa vida à sombra da Rainy

Mountain, a imensa paisagem do interior continental era como uma lembrança em suas veias. Ela poderia falar dos Crows, que nunca tinha visto, e de regiões em que jamais havia estado. Decidido a ver na realidade o que ela vira com perfeição no olho da mente, viajei mais de dois mil quilômetros a fim de começar minha peregrinação. Yellowstone, parecia-me, era o topo do mundo, uma região de lagos profundos e madeira escura, desfiladeiros e cachoeiras. Apesar de toda

a beleza, porém, pode-se ter a sensação de confinamento ali. Em todas as direções, vê-se o horizonte próximo, o muro alto das florestas e as

profundas clivagens de sombra. Há uma liberdade perfeita nas montaCompany, de A Farewell to Arms, de Ernest Hemingway. Copyright 1929 de Charles Scribners

Sons; copyright da renovação © 1957 de Ernest Hemingway. [Tradução de Monteiro Lobato, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013 - NT].

36 Condicio 19 dam. Douti d, ruptyng groupsido com permisto da Doubleday,

595

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO nhas, mas ela pertence à águia e ao alce, ao texugo e ao urso. Os Kiowas

calculavam sua estatura pela distância que podiam ver, e estavam cur-

vados e cegos no deserto.

N. Scott Momaday, The Way to Rainy Mountain.

Publicado pela primeira vez no The Repórter, 26 de janeiro de 196737

20. E. B. White

Eu tinha marcado a data de incubação de Apathy no meu calendário de mesa. Na noite anterior à chegada dos gansinhos, em minhas rondas antes de ir para a cama, dei uma olhada nela. Ela grasnou, como

sempre, e esticou o pescoço. Quando apontei minha lanterna para ela,

duas minúsculas cabeças verdes estavam visíveis, abrindo caminho por

entre suas penas. Os gansinhos tinham chegado, algumas horas antes

do programado. Meu coração deu um salto. Lá fora, no curral, dois gansos faziam vigília. Eles sabiam muito bem o que estava acontecendo:

os gansos têm um enorme interesse pelos assuntos familiares e ficam

profundamente impressionados com o milagre do ovo-que-vira-ganso. Fechei a porta e fui para a cama.

E. B. White, "Geese", em Essays of E. B. White.38

21. James Baldwin

Os negros querem ser tratados como homens: uma afirmação perfeita-

mente direta, contendo apenas sete palavras. Pessoas que dominaram Kant, Hegel, Shakespeare, Marx, Freud e a Bíblia consideram essa afirmação completamente impenetrável. A idéia parece ameaçar profundas premissas, quase inconscientes. Uma espécie de pânico paralisa-lhes as feições, como se estivessem, sem retrocesso possível, à beira de um pre37 Reproduzido de The Way to Rainy Mountain, © 1969, The University of New México Press.

38 Nova York: Harper & Row, 1971. Reproduzido com permissão de Harper & Row.

596

ESTILO

cipício. Uma vez, tentei descrever a um intelectual americano muito conhecido as condições em que vivem os negros do Sul. Meu relato perturbou-o, provocando indignação, e com uma perfeita candidez, ele me perguntou: "Por que todos os negros do Sul não se mudam para o Norte?". Tentei explicar o que acontece, infalivelmente, sempre que um número considerável de negros se desloca para o Norte. Eles não escapam da Jim Crow: simplesmente encontram outra variedade, não menos assassina. Eles não se mudam para Chicago, eles se mudam para o South Side; eles não se mudam para Nova York, eles se mudam para o Harlem. A pressão dentro do gueto faz com que seus muros se expandam, e essa expansão é sempre violenta. Os brancos seguram a fronteira como podem, e de todas as maneiras possíveis, desde a intimi-

dação verbal até a violência física. Mas, inevitavelmente, a fronteira que

separou o gueto do resto do mundo cai dentro do território do gueto. Os brancos retrocedem ressentidos ante a horda negra; os proprietários obtêm um bom lucro aumentando o aluguel, diminuindo os quartos e prescindindo praticamente de qualquer reparação; e o que antes era um bairro transforma-se em um "terreno". Foi exatamente isso o que aconteceu quando os porto-riquenhos chegaram aos milhares, e, enquanto escrevo, o ressentimento que isso causou ainda dá lugar a brigas em toda parte do bairro. James Baldwin, "Fifth Avenue Uptown: A Letter from Harlem", em Nobody Knows My Name?°

22. Susan Sontag É por isso que tantos objetos apreciados pelo gosto Camp são antiqua-

dos, ultrapassados, démodé. Não é a predileção por aquilo que é antigo enquanto tal. É simplesmente por que o processo de envelhecimento ou

deterioração consente o distanciamento necessário — ou desperta uma

simpatia necessária. Quando o tema é importante e contemporâneo, o fracasso de uma obra de arte pode nos deixar indignados. O tempo pode 39 Copyright © 1960,1961 de James Baldwin. Reproduzido com permissão da The Dial Press, Inc. e Michael Joseph Ltd.

597

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO mudar isso. O tempo libera a obra de arte da relevância moral, entre-

gando-a à sensibilidade Camp... Outro efeito: o tempo reduz a esfera da banalidade. A banalidade, no sentido estrito, é sempre uma categoria do contemporâneo). O que era banal, com a passagem do tempo pode se tornar fantástico. Muitas pessoas que ouvem deliciadas o estilo de Rudy

Vallee revivido pelo grupo pop inglês The Temperance Seven, teriam enlouquecido por Rudy Vallee na época do seu apogeu.

Portanto, as coisas são campy não quando envelhecem — mas quando passamos a nos envolver menos com elas e podemos apreciar,

em vez de nos sentirmos frustrados por isso, o fracasso da tentativa. Mas

a ação do tempo é imprevisível. Talvez a interpretação pelo "método" (James Dean, Rod Steiger, Warren Beatty) possa parecer Camp algum dia, assim como Ruby Keeler, agora — ou como Sarah Bernhardt, nos

filmes que ela fez no final de sua carreira. E talvez não.4

"Notas sobre "Camp", de Contra a interpretação, de Susan Sontag.*

23. Tom Wolfe

A primeira vez que dei uma boa olhada em carros customizados foi em um evento chamado "Teen Fair", realizado em Burbank, subúrbio de Los Angeles, depois de Hollywood, um lugar fantástico para conhecer obras de arte (com o tempo, devo dizer, chegamos fatalmente à conclusão de que esses carros customizados são obras de arte, pelo menos com base nos padrões de uma sociedade civilizada. Mas já falarei disso). De qualquer forma, por volta do meio-dia, chegamos a um lugar que parece um parque de diversões ao ar livre, e há três crianças sérias, como o comitê do refeitório no colégio, recebendo os ingressos, mas o interior é uma loucura. Lá dentro, duas coisas chamam a atenção. A primeira é uma enorme plataforma a uns dois metros do chão, com uma banda de bully-gully (com todos os instrumentos eletrificados, o baixo, as guitarras,

os saxofones), e atrás da banda, na plataforma, cerca de duzentas crian-

40 Tradução de Ana Maria Capovilla, Porto Alegre: L&PM, 1987 - NT.

41 Copyright © 1964, 1966 de Susan Sontag. Reproduzido com permissão da Farrar, Straus & Giroux, Inc.

598

ESTILO ças dançando hully-gully, bird e shampoo. Como eu disse, é meio-dia.

As danças das crianças são bem irregulares. Meninos e meninas não se tocam, nem mesmo com as mãos; ficam ali, ricocheteando. Então, percebemos que todas as meninas estão vestidas exatamente iguais: penteados bufantes (todas elas) e calças apertadíssimas (não existe superlativo capaz

de dizer o quão apertadas eram aquelas calças). É como se um velho al-

faiate lascivo, com alguma xação glútea, as tivesse desenhado, estria por

estria. Mais ou menos no momento em que conseguimos nos concentrar nisso, notamos, no meio do parque, uma piscina enorme e perfeitamente redonda; enorme mesmo. E há uma lancha na piscina, circulando e for-

mando grandes ondas, com mais daquelas garotinhas bufantes amontoa-

das na parte de trás. Na água, suspensas como plâncton, vemos crianças com roupas de mergulho; outras nadam debaixo d'água, respirando com

um tubo respiratório. E por todo lado há cabines, montadas por empresas de calçados, empresas de guitarra e sabe-se lá quem mais, com crianças dançando em todas elas (dançando bird, hully-gully e shampoo)

e a música da banda de hully-gully tocando em todo o parque por meio de alto-falantes.

The Kandy-Kolored Tangerine-Flake Streamline Baby, de Tom Wolfe.42

24. James Dickey (O homem descrito nestes parágrafos acaba de ser atingido por uma flecha no peito).

Já com a arma em minha posse, enrolei a corda na mão direita. Movia

a espingarda para a esquerda e para a direita, cobrindo o bosque e o mundo inteiro. Não havia ninguém na clareira, além de Bobby, o homem ferido e eu. Bobby continuava deitado no chão, embora já levantasse a ca-

beça. Eu percebia seus movimentos, mas algo me confundia a realidade de sua presença, a do homem ferido e até da minha e da vegetação em di-

reção ao rio. O homem ferido ainda estava de pé. Não se concentrava na minha visão: sua presença era inacreditável para mim. Havia uma espécie

42 Copyright © 1963 de Tom Wolfe. Reproduzido com permissão da Farrar, Straus & Giroux, Inc.

fi

599

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO de película sobre o que vislumbrava, cinza e vaga, e o homem ferido per-

dia rapidamente toda a energia possível. Assombrava-me sua maneira de

mover-se.. Tocava a flecha como se estivesse fazendo um experimento, e convenci-me de que ela estava tão firme dentro de seu corpo quanto seus ossos. Saía na frente e atrás. Quando a agarrava com as mãos, estas pare-

ciam muito fracas em comparação com a firmeza da flecha. Enquanto eu as observava, as mãos afrouxaram ainda mais. Ele havia caído de joelhos

e logo tombou de lado, levantando as pernas. Rolou de um lado para o outro, como se já lhe faltasse o ar, fazendo um som estranho e rouco o

tempo todo. Seus lábios ficaram vermelhos, mas com as convulsões — nas quais havia algo de cômico e indescritível — ele parecia recuperar as

energias. Apoiou-se em um joelho e ficou de pé novamente, enquanto eu

continuava alerta, com a espingarda preparada. Deu alguns passos em direção ao bosque e então pareceu mudar de idéia e veio tropeçando em

minha direção, descrevendo um círculo secreto. Estendeu a mão para mim, como um profeta, enquanto eu apontava para a ponta da flecha e sentia os dentes congelados. Estava disposto a puxar a pequena corda que

acionava a arma.

Mas não houve necessidade disso. Em um derradeiro movimento, o homem estirou-se aos meus pés, com o rosto contra a ponta do meu tênis branco e, após um tremor, imobilizou-se. Ficou com a boca aberta, cheia

de sangue. Em seus lábios, formou-se uma grande bolha, que ali ficou.

Deliverance, de James Dickey.43

25. Barbara Tuchman

Na agitação em St. Paul's, o problema de Wycliffe não foi posto à prova. Os prelados ingleses, divididos entre o interesse do clero e o sentimento nacional, poderiam ter-se contentado em deixar as coisas como estavam. O papado, porém, não. Em maio, Gregório xI lançou cinco bulas dirigidas ao episcopado inglês, ao rei e à Universidade de

Oxford, condenando os erros de Wycliffe e exigindo sua prisão. Toda a

discussão de suas doutrinas heréticas devia ser suspensa e todos os que 43 Copyright © 1970 por James Dickey. Reproduzido com permissão da Houghton Miffin

Company.

600

ESTILO as apoiavam, afastados dos cargos. Uma questão muito delicada juntou-se as outras fontes de discórdia. O novo Parlamento era fortemente

antipapal; o rei, engrolando a língua sobre falcões e caças, em lugar de cuidar das necessidades prementes de sua alma, agonizava. Enquanto a Inglaterra esperava, preocupada, a mudança de reinado, os bispos deixaram pendente o processo contra Wycliffe. 44 Barbara Tuchman, Um espelho distante: O terrível século XIV.45

26. Frances Fitzgerald

Depois de 1900, uma nova distinção aparece nos livros didáticos de história americana: há "nós, os americanos", e há "os imigrantes". A descoberta sobre "os imigrantes" foi, na verdade, um tanto tardia, já que a grande onda de imigração européia para os Estados Unidos já estava em andamento há algum tempo. Europeus, particularmente irlandeses e alemães, cruzaram o Atlântico em grande número desde

a década de 1840, mas entre 1881 e 1890 mais de cinco milhões de

imigrantes vieram para os Estados Unidos, e em 1910 o total havia subido para mais de dezesseis milhões. Os recém-chegados não apenas aumentaram significativamente a população americana, mas alteraram sua composição étnica. Depois de 1900, os imigrantes dos países do Sul e do Leste da Europa superaram em muito os dos países do Norte e do Oeste. As escolas foram as principais afetadas, pois eram os únicos

órgãos públicos que ofereciam serviços especiais para os imigrantes.

Tendo sido encarregadas da "americanização" dos recém-chegados, elas naturalmente tiveram que assumir a tarefa de definir o que era e o que

não era "um americano".

Frances Fitzgerald, America Revised: History Schoolbooks in the Twentieth Century.16

44 Tradução de Waltensir Dutra, Rio de Janeiro: José Oympio Editora, 1978 — NT.

45 Nova York: Alfred A. Knopf, 1978. Reproduzido com permissão do editor.

46 Copyright © 1979 de Frances Fitzgerald. Reproduzido com permissão de Little, Brown and

Company.

601

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 27. Alice Walker A mãe da Corrine era uma mãe e dona de casa dedicada que não gostava de sua irmã mais aventureira. Mas nunca impediu Corrine de

visitá-la. E quando Corrine completou a idade suficiente, ela a enviou para o Seminário Spelman onde a Tia Theodosia tinha se formado. Esse era um lugar muito interessante. Foi criado por duas missionárias brancas da Nova Inglaterra que usavam vestidos idênticos. Começou

no porão de uma igreja mas logo mudou para umas instalações do Exército. Finalmente essas duas senhoras conseguiram grandes somas de dinheiro de alguns dos mais ricos homens dos Estados Unidos, e assim o lugar cresceu. Edifícios, árvores. As moças aprendiam tudo: ler, escrever, aritmética, costura, limpeza, culinária. Mas mais do que qualquer outra coisa elas aprendiam a servir a Deus e à comunidade negra. O seu slogan oficial era TODA NOSSA ESCOLA PARA CRISTO. Mas

eu sempre pensei que o slogan não oficial deveria ser NOSSA COMUNIDADE COBRE O MUNDO, porque tão logo uma jovem saía do Seminário Spelman ela começava a pôr a mão na massa em qualquer trabalho que pudesse fazer para seu povo, em qualquer lugar no mundo. Era realmente incrível. Essas jovens muito polidas e distintas, algumas delas nunca tendo posto o pé fora de sua própria cidadezinha, exceto para ir ao Seminário, não vacilavam em fazer sua mala e ir para Índia, África,

Oriente. Ou para Filadélfia ou Nova York.

Alice Walker, A cor púrpura.47

28. Richard Rodriquez

Minha mãe ficou triste ao saber de pais mexicanos-americanos que queriam que seus filhos começassem a trabalhar depois de concluírem o Ensino Médio. No ensino, ela via a chave para o progresso no tra-

balho. E ela se lembrou de seu passado. Quando menina, nova ainda na América, ela recebera um diploma de professores do ensino médio ocupados ou descuidados demais para perceber que ela mal falava in-

47 Copyright © 1982 de Alice Walker. Reproduzido com permissão de Harcourt Brace Jovanovich, Inc. [Tradução de Betúlia Machado, Maria José Silveira, Peg Bodelson, Rio de Janeiro: José

Olympio, 2016 — NT].

602

ESTILO glês. Por conta própria, ela decidiu aprender a digitar. Essa habilidade

rendeu-lhe empregos administrativos, ajudando-a a cultivar certo oti-

mismo sobre a possibilidade de avanço. (Todas as manhãs, quando suas irmãs vestiam uniformes para trabalhar, ela escolhia um vestido de co-

res vivas). Minha mãe tornou-se excelente em ortografia — de palavras que pronunciava mal. ("E eu nunca fiz faculdade", dizia ela, sorrindo,

quando seus filhos perguntavam sobre uma palavra que eles não queriam pesquisar no dicionário).

Richard Rodriquez, "The Achievement of Desire: Personal Reflections on Learning '"Basics'", College English 40 (novembro de 1978).18

29. Joan Didion

Chegou a hora da festa de aniversário da bebê: um bolo branco, sorvete de marshmallow sabor morango, uma garrafa de champanhe guardada de outra festa. À noite, depois que ela já foi dormir, me ajoeTho ao lado do berço e encosto seu rosto, pressionado entre as ripas do berço, contra o meu. Ela é uma criança aberta e confiante, despreparada e desacostumada às emboscadas da vida familiar, e talvez seja bom que eu lhe ofereça um pouco dessa vida aqui. Gostaria de dar mais a ela. Gostaria de prometer que ela crescerá com a referência dos seus primos, dos rios e das xícaras de chá da bisavó, gostaria de prometer a ela um piquenique à beira do rio com frango frito e cabelos despenteados, gostaria de dar a ela um lar de presente de seu aniversário, mas vivemos de uma forma diferente agora e o que posso prometer não é nada disso. Dou a ela um xilofone e um vestido de verão da Madeira, e prometo lhe contar uma história divertida. 49

Joan Didion, "Sobre ir para casa", em Rastejando até Belém.°

48 Copyright 1978 do National Council of Teachers of English. Reproduzido com permissão do editor. 49 Tradução de Maria Ceclia Brandi: Editora Todavia, 2021. 50 Copyright © 1967 de Joan Didion. Reproduzido com permissão de Farrar, Straus, Giroux, 1967.

603

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 30. Shirley Brice Heath

O ambiente dos bebês, tanto do sexo masculino quanto do sexo feminino, durante o primeiro ano de vida é muito humano. Eles dormem com parentes, são abraçados, carregados e acariciados por familiares e por to-

dos os residentes da comunidade. Para todos os membros da comunidade de Trackton, não só para os irmãos mais velhos, os bebês são brinquedos. Quando choram, são alimentados, cuidados, segurados e acariciados por qualquer pessoa que esteja por perto. Visto que a alimentação com mamadeira é a norma, qualquer um pode assumir as responsabilidades da alimentação. Os bebês são impedidos de explorar além das interações humanas que os cercam. Eles têm pouca oportunidade de balbuciar

sozinhos ou em situações de tranquilidade, onde seus balbucios seriam ouvidos acima da conversa geral que parece continuar ao seu redor na maior parte do tempo. Eles dormem e comem à vontade; são alimentados quando parecem com fome, se houver comida disponível, e vão dormir quando ou onde sentem sono. Geralmente, eles são levados para brincar quando as crianças chegam da escola ou um visitante aparece, e costumam ficar acordados até tarde da noite na sala de estar, com a televisão ou o toca-discos ligado, ou pessoas conversando em voz alta. Sua inclusão

como parte da família é contínua. Se caírem no sono no meio de uma animada sessão de contação de histórias ou de uma discussão familiar, eles continuarão no colo até que a pessoa que os está segurando precise

fazer alguma coisa. Então, outra pessoa assume. A criança quase nunca está sozinha e raramente está na companhia de apenas uma pessoa.

Shirley Brice Heath, Ways with Words?" 31. Garrison Keillor

A escola começou no dia seguinte ao Dia do Trabalho, terça-feira, a terça-feira em que meu avô foi, em 1918, meu pai, e em 1948, eu. Foi no mesmo dia, na mesma escola de tijolos, a antiga New Albion Academy, agora chamada de escola Nelson. A mesma pintura enevoada de George Washington olhou para todos nós de cima do qua51 Cambridge e New York: Cambridge University Press, 1983.

604

ESTILO dro-negro, ao lado de seu amigo mais próximo, Abraham Lincoln.

Lincoln era gentil e paciente, e olhávamos para ele em busca de simpatia. Washington parecia estar com dor de cabeça. Sua boca tinha uma expressão afetada de desaprovação. Talvez as pessoas zombassem dele por causa de seu longo cabelo crespo, que lembrava o da nossa professora, a Sra. Meiers, e isso o aborrecera. Ela disse que ele

tinha dentes ruins — uma boa lição para lembrarmos: escovar os dentes depois de cada refeição, para cima e para baixo, trinta vezes. Os grandes homens vigiavam a sala inteira, até mesmo o canto de trás, perto das janelas. Debrucei-me sobre a minha carteira, tentando equilibrar vogais grossas na linha, como frutas, as caudas das consoantes penduradas abaixo, com mapas coloridos dos impérios inglês e francês. Memorizava tabelas aritméticas e capitais estaduais, além das

principais exportações de muitas terras, e quando não sabia alguma

coisa, erguia os olhos para ver o olhar mal-humorado de George Washington e a compaixão e amizade de Lincoln, um velho casal na parede. A escola, sua antiga casa, cheirava a cera forte e desinfetante, o aroma de patriotismo. Garrison Keillor, Lake Wobegon Days, 1985.33

32. Toni Morrison

Todos os quarenta e seis homens acordaram com um tiro de rifle. Todos os quarenta e seis. Três homens brancos percorreram o fosso destrancando as portas uma a uma. Ninguém saiu para fora. Quando o último cadeado foi destrancado, os três voltaram e levantaram as grades,

uma por uma. E um por um os homens negros emergiram — prontamente e sem o cutucão da coronha do rifle se estavam ali há mais de

um dia; prontamente com a coronha se, como Paul D., tinham acabado

de chegar. Quando os quarenta e seis estavam formando uma la no fosso, outro tiro de ri e indicou que deviam subir para o chão acima,

onde se estendiam trezentos metros da melhor corrente forjada à mão na Georgia. Cada homem se curvava e esperava. O primeiro pegava a 52 Copyright © 1985 de Garrison Keillor. Reproduzido com permissão da Viking Penguin Inc.

fi

fl

605

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO ponta e passava pela argola no ferro de sua perna. Endireitava-se então,

afastava-se um pouco e entregava a ponta da corrente para o prisioneiro

seguinte, que fazia a mesma coisa. À medida que a corrente avançava,

cada homem se punha no lugar do outro, a la de homens virada para o outro lado, de frente para as caixas das quais tinham saído. Ninguém falava com o outro. Pelo menos não com palavras. Os olhos tinham de dizer o que havia a dizer: "Me ajude esta manhã; estou mal"; "Eu agüento"; "Homem novo"; "Firme agora, rme".

Toni Morrison, Amada?

33. Eudora Welty

A Srta. Duling não foi a única professora que me influenciou, mas, de forma fictícia, ela contribuiu para meu trabalho mais do que percebi até agora. Em meu número talvez exagerado de personagens professorais, ela sempre gura. Eu amava esses personagens na escrita, mas não amava a Srta. Duling em vida. Tinha medo de seu nariz ossudo e arqueado, das sobrancelhas levantadas em semicírculos acima dos olhos

brilhantes e velados, da pronúncia do "R" de quem vem de Kentucky e dos longos passos que ela dava em sapatos de salto alto. Temia sua

autoridade e não conectava isso (como deveria) com nossa própria necessidade ou desejo de aprender, talvez porque eu já tivesse esse desejo e não precisasse de motivação. Eudora Welty, One Writer's Beginnings.+ IMITANDO PADRÕES DE FRASES

Depois de passar um tempo simplesmente copiando passagens, você pode tentar outro tipo de imitação: usar frases individuais como padrões para criar suas próprias frases. Este é um exercício mais difícil

53 Nova York: Alfred A. Knopf, 1988. Reproduzido com permissão do editor. [Tradução de José Rubens Siqueira: Companhia das Letras, 2007 - NT]. 54 Copyright © 1984 de Eudora Welty. Reproduzido com permissão da Harvard University Press.

fi

fi

fi

606

do que a cópia textual, mas paga altos dividendos para aqueles que se

dedicam diligentemente a ele. Quão próximo devemos estar do modelo? O mais próximo possível é a resposta mais sensata. Mas este exercício será mais frutífero se você observar pelo menos o mesmo tipo, número e ordem de frases e orações.

Se a frase modelo tiver uma oração adverbial, você deve escrever uma

oração adverbial. Se a frase modelo for introduzida por uma oração reduzida de particípio, você deve iniciar com uma oração reduzida de

particípio. Se a frase modelo tiver três orações nominais organizadas em estrutura paralela, você deve escrever uma frase contendo três orações nominais em uma estrutura semelhante. O objetivo deste exercício não é alcançar uma correspondência palavra por palavra com o modelo, mas obter uma consciência da variedade de estruturas de frases possíveis no idioma. A razão pela qual muitos alunos nunca se aventuram fora de sua estrutura de frase pueril e monótona é que eles nunca tentaram padrões de frase so sticados. Escrever tais padrões de acordo com modelos aumenta nossos recursos sintáticos. E com mais recursos à disposição, adquirimos mais conança para escrever. É claro que ninguém diz: "Acabei de escrever uma frase composta intercalada com orações reduzidas de gerúndio. Desta vez, acho que

vou começar minha frase com uma oração adverbial e usar uma série de orações nominais como o objeto do verbo principal". Tal aborda-

gem autoconsciente da escrita, sem dúvida, resultaria em uma prosa

monstruosa. Não. Nossa prosa deve vir tão naturalmente quanto (para usar as palavras de Keats) "as folhas nas árvores". O tipo de prosa que escrevemos não pode ser arbitrário, sendo regido pelo assunto, pela ocasião,

pelo propósito, pelo público e por nossa personalidade. Se for verdade

que conteúdo e forma estão intimamente relacionados, então deve haver uma maneira melhor de dizer algo específico para um determinado

público e propósito. Mas, na prática, o que conseguimos na maioria das vezes é uma entre várias maneiras melhores de dizer algo. Coleridge

disse certa vez que o teste infalível de um estilo perfeito é "a intraduzibilidade em palavras da mesma língua, sem prejuízo do significado". Esse tipo de "prosa inevitável", porém, é raro. O que conseguimos na maioria das vezes é, na melhor das hipóteses, uma prosa adequada.

607 fi

fi

ESTILO

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Grande parte dos textos que você deverá escrever no futuro será de

improviso. Na escola, você fará provas de redação, tendo pouco tempo para reflexão e quase nenhum tempo para revisão. Algum dia, no trabalho, você precisará escrever memorandos, diretrizes e cartas. Como cidadão, terá que escrever bilhetes para enviar à escola com seus filhos, escrever uma carta apressada para seus pais, escrever uma carta para o editor do jornal local. Quanto mais prática você tiver na escrita, melhor será esse texto espontâneo. Mas você também pode ser convocado a escrever algo que envolva muita reflexão, pesquisa, organização e revisão. Talvez você precise redigir um relatório para ser lido ao conselho de governadores ou preparar um discurso a ser proferido na Câmara de Comércio. É esse tipo de escrita deliberada que exigirá todos os recursos criativos e estilísticos disponíveis. A escrita será necessariamente lenta, mas não precisa ser trabalhosa. Alguém disse certa vez que "o processo difícil de escrita facilita a leitura". E Quintiliano disse: "Escreva rápido e você nunca escreverá bem; escreva bem e em breve você escreverá rápido".

Portanto, com esses cuidados e objetivos em mente, tente imitar os

padrões de frase de escritores experientes. Talvez você jamais precise escrever uma frase como as que imitou mecanicamente neste exercício, mas também não ficará pior por ter seguido os passos indicados.

Para compreender como imitar padrões de frases, aqui vão alguns exemplos do método. Como modelo, você pode selecionar frases de seus autores favoritos ou usar as frases de amostra reproduzidas neste

capítulo.

IMITAçÕES DE AMOSTRA 1. FRASE MODELO: A forca ficava em um pequeno pátio, separado do terreno principal da prisão e coberta de ervas daninhas altas e espinho-

sas. — George Orwell, Dias na Birmânia. (Escreva uma frase de acordo com o padrão da frase modelo).

IMITAÇÃO: O cachorro estremecia ao fundo, molhado de tanto farejar a grama do amanhecer e coberta de plantas úmidas.

608

ESTILO 2. FRASE MODELO: Ele passou rapidamente pelo beco estreito do Temple Bar, murmurando para si mesmo que eles fossem para o Inferno, porque nada o impediria de ter uma boa noite. — James Joyce, "Contrapartes". IMITAÇÃO: Eles ficaram do lado de fora, na calçada úmida do ter-

raço, fingindo que não tinham nos ouvido quando os chamamos da

biblioteca. 3. FRASE MODELO: Para recuperar o palco por mérito próprio, não

como mera emulação da prosa, a poesia deve encontrar seu próprio caminho poético para o domínio que o palco exige: o domínio da ação. — Archibald MacLeish, "The Poet as Playwright". IMITAÇÃO: Para descobrir nossa própria natureza, não as personalidades impostas por outros, devemos avaliar honestamente os valores que prezamos: em suma, nossa "filosofia de vida".

4. FRASE MODELO: Se for para adorar um valentão, é melhor que ele

seja um policial do que um gângster. — George Orwell, "Raffles and

Miss Blandish". IMITAÇÃO: Como ele continuou a ser beligerante, estava claro que

bajular seria mais eficaz do que repreender. 5. FRASE MODELO: Fui para a mata porque queria viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos essenciais da vida e ver se não poderia aprender o que ela tinha a ensinar, em vez de, vindo a morrer, descobrir

que não tinha vivido. — Henry David Thoreau, Walden. IMITAÇÃO: Cumprimentei-o educadamente, embora planejasse desafiá-lo, para avaliar sua erudição, para testar se ele era capaz de discri-

minar o que era conveniente em cada situação, e, depois de investigá-lo

minuciosamente, anunciar que não tínhamos lugar para ele em nossa

organização.

6. FRASE MODELO: No caminho do intelecto, o estado mais elevado a que a natureza pode aspirar é ter ao menos uma porção dessa razão

iluminadora e verdadeira filosofia. — John Henry Newman, A idéia de

uma universidade.

609

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO IMITAÇÃO: Conquistar seu afeto e estima foi a tarefa mais difícil que

eu já me propusera. 7. FRASE MODELO: Como a maioria desses velhos funcionários da

alfândega tinha boa índole e como minha posição em relação a eles, paternal e protetora, favorecia sentimentos de amizade, logo passei a gostar de todos. — Nathaniel Hawthorne, A letra escarlate. IMITAÇÃO: Quando ele me ofereceu o presente e quando seus colegas, percebendo seu constrangimento, contiveram discretamente o aplauso, aceitei com gratidão seu gesto de amizade.

8. FRASE MODELO: A verdadeira arte que lidou diretamente com a vida foi a dos primeiros homens, que contavam suas histórias em volta

da fogueira do acampamento. — Robert Louis Stevenson, "A Humble Remonstrance".

IMITAÇÃO: O homem que insiste na perfeição dos outros é o que mais tolera a imperfeição em si mesmo.

9. FRASE MODELO: O agrupamento indígena mais importante do continente, ao norte do México, desde o início da conquista euro-

péia até a Revolução Americana e depois dela, foi a Confederação dos Iroqueses. — John Collier, Indians of the Americas. IMITAÇÃO: A principal aliança da Europa, passível de expansão, du-

rante o século XVIII e novamente após o colapso da concordância de três nações, foi o pacto entre os Quatro Grandes.

10. FRASE MODELO: Isso nos leva a esse exército crescente de "publi-

citários" e publicitárias que às vezes não (mas normalmente sim) dedi-

cam o melhor de seus anos e sua vitalidade para promover causas nas quais não têm fé e construir personalidades cheias de pompa. — Stuart

Chase, "The Luxury of Integrity". IMITAÇÃO: Ele apresentou um conjuntou surpreendente de estatísti-

cas e depoimentos que confirmaram (ou supostamente confirmaram) a

capacidade geral de subverter causas das quais ele suspeitava e minimizar as falhas que ele considerava "politicamente inocentes".

610

ESTILO Outro exercício que pode ser trabalhado concentrando-se em uma única frase é variar o padrão da frase modelo ou inventar uma maneira alternativa de expressá-la. No início desta seção sobre imitação, men-

cionamos as cento e cinqüenta variações de uma única frase em latim elaboradas por Erasmo. Além de ressaltar que o estilo é o resultado das escolhas que o escritor faz entre os recursos lexicais e sintáticos dispo-

níveis, tal exercício ajuda a descobrir as opções existentes. A variação

do padrão da frase geralmente requer nada mais do que uma reordenação das palavras na frase original. Conceber uma expressão alternativa, no entanto, envolve a escolha de outras palavras e estruturas sintáticas

diferentes. Vamos pegar as três primeiras frases modelo com as quais trabalhamos anteriormente e mostrar como elas podem ser alteradas. FRASE MODELO: A forca ficava em um pequeno pátio, separado do

terreno principal da prisão e coberta de ervas daninhas altas e espinhosas. — George Orwell, Dias na Birmânia. VARIAÇÃO DO PADRÃO: Em um pequeno pátio, separado do terreno

principal da prisão e coberta de ervas daninhas altas e espinhosas, ficava a forca. EXPRESSÕES ALTERNATIVAS: Localizada em um pequeno pátio, coberto de ervas daninhas altas e espinhosas, a forca cava separada do terreno principal da prisão./ A forca estava situada fora do terreno prin-

cipal da prisão, em um pequeno pátio coberto de ervas daninhas altas e espinhosas.

A gramática transformacional pode ajudar a sugerir maneiras alternativas de formular uma frase. Reduzir a frase modelo a suas frases centrais" pode revelar como a "estrutura profunda" foi transformada na "estrutura superficial" que o autor realmente escreveu. Estas são algumas das "frases centrais" da frase de Orwell: A forca ficava em um pátio.

• pátio era pequeno. O pátio era separado do terreno principal da prisão. Ou: A forca ficava separada do terreno principal da prisão. O pátio estava coberto de ervas daninhas. Ou: A forca estava coberta de ervas daninhas.

fi

611

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

As ervas daninhas eram altas. As ervas daninhas eram espinhosas.

Há certa ambigüidade na estrutura da frase de Orwell, porque as duas frases adjetivas "separado (a) do" e "coberto (a) de" pode modificar

forca ou pátio. Ao reduzir a frase original aos seus núcleos, no entanto,

vemos como Orwell utilizou diferentes combinações gramaticais, dentro de outras combinações possíveis.

FRASE MODELO: Ele passou rapidamente pelo beco estreito do Temple Bar, murmurando para si mesmo que eles fossem para o inferno, porque nada o impediria de ter uma boa noite. — James Joyce,

"Contrapartes" VARIAÇÃO DO PADRÃO: Murmurando para si mesmo que eles fossem para o inferno, porque nada o impediria de ter uma boa noite, ele pas-

sou rapidamente pelo beco estreito do Temple Bar.

EXPRESSÕES ALTERNATIVAS: Ao passar rapidamente pelo beco estreito do Temple Bar, ele murmurou para si mesmo que eles fossem para o inferno, pois nada o impediria de ter uma boa noite./ "Vocês po-

dem ir para o inferno", murmurou ele para si mesmo enquanto passava

rapidamente pelo beco estreito do Temple Bar. "Nada me impedirá de

ter uma boa noite". FRASE MODELO: Para recuperar o palco por mérito próprio, não como mera emulação da prosa, a poesia deve encontrar seu próprio caminho poético para o domínio que o palco exige: o domínio da ação. — Archibald MacLeish, "The Poet as Playwright". VARIAÇÃO DO PADRÃO: A poesia deve encontrar seu próprio caminho poético para o domínio que o palco exige — o domínio da ação — se quiser recuperar o palco por mérito próprio, não como mera emu-

lação da prosa. EXPRESSÕES ALTERNATIVAS: A poesia só poderá recuperar o palco por mérito próprio, não como mera emulação da prosa, se dominar o

tipo de ação que o palco exige./ Se a poesia quiser recuperar o palco por mérito próprio, deverá dominar o tipo de ação que o palco exige; caso contrário, continuará sendo mera emulação da prosa.

612

ESTILO Todos esses exercícios de imitação (copiar passagens, escrever frases

originais de acordo com o padrão, variar o padrão de uma frase mo-

delo e criar expressões alternativas para o mesmo pensamento) podem ensinar uma série de lições valiosas: (1) todo idioma oferece uma série de recursos lexicais e sintáticos; (2) existem várias maneira de dispor as

palavras escolhidas; (3) nem toda variação é igualmente clara, elegante

ou apropriada; (4) as variações do padrão de uma frase produzem diferentes efeitos e expressões alternativas modificam o significado. O objetivo final de todos os exercícios de imitação, entretanto, é separá-lo de

seus modelos, fornecendo-lhe a competência e os recursos para seguir

de modo independente.

LEITURAS HUGH BLAIR: ANÁLISE CRÍTICA DO ESTILO DO SR. ADDISON

NO N° 411 DE "THE SPECTATOR"' Em 1759, o Dr. Hugh Blair começou a ensinar retórica na Universidade de Edimburgo e, em 1762, foi nomeado primeiro professor de retórica e

letras de Edimburgo. Em 1783, após abandonar o posto, Blair publicou as quarenta e sete palestras sobre retórica e literatura que apresentou ao

longo de vinte e quatro anos para auditórios lotados. Esse texto Lectures

on Rhetoric and Belles Lettres tornou-se um livro bastante utilizado nas escolas inglesas e americanas no final do século XvIII e início do século xix.

No meio das palestras, Blair apresentou análises estilísticas detalhadas

de quatro ensaios de Addison (411-14) publicados em The Spectator e uma

análise da A Proposal for Correcting, Improving, and Ascertaining the

English Tongue, de Jonathan Swift. Essas análises representam um dos poucos exemplos em inglês de uma análise estilística de um ensaio inteiro.

Blair comenta questões de gramática, uso e estilo nos ensaios de Addison.

Com a reimpressão da primeira análise de Blair, os estudantes aprenderão uma técnica para analisar, de modo incisivo e concreto, frases em prosa, o que os ajudará a ganhar consciência sobre seu próprio estilo. Algumas ressalvas de Blair em relação ao estilo de Addison, como suas opiniões sobre os pronomes relativos o qual e que, são apresentadas do ponto de vista de uso 55 Palestra xx de Lectures on Retoric and Belles Lettres, obra publicada pela primeira vez em 1783.

613

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO no século XVIII. E embora alguns comentários pareçam um tanto mordazes ao público moderno, a maioria dos estudantes achará as críticas de Blair bastante judiciosas. Em quase todos os casos em que Blair reescreveu frases

de Addison, os estudantes perceberão uma visível melhora em termos de organização e clareza.

Ocasionalmente, o estilo de pontuação de Blair foi mudado silenciosa-

mente.

Insisti no assunto da linguagem e do estilo, porque, além da suma importância do tema em si, ele se presta à verificação, com regras mais precisas do que várias outras partes da composição. Uma análise crítica do estilo de algum bom autor tenderá a ilustrar ainda mais o assunto, pois sugerirá observações que não tive ocasião de fazer e mostrará, da maneira mais prática, o uso das que fiz. O Sr. Addison é o autor que escolhi para este propósito. The Spectator, em que seus artigos são o principal adorno, é um livro excelente e bas-

tante popular. O bom senso e a boa escrita, a conveniente moralidade e a veia cômica admirável aí presentes fazem dele um desses livros de referência, que prestam grande honra à nação inglesa. Anteriormente,

considerei o caráter geral do estilo do Sr. Addison como natural e não afetado, fácil e culto, cheio dos floreios característicos de uma imaginação fecunda. Ao mesmo tempo, embora seja um dos melhores escritores da língua, ele não é o mais correto, circunstância que torna sua composição ainda mais adequada para ser o assunto de nossa presente crítica. A maneira livre e fluente desse amável escritor às vezes o levou a erros que a circunspecção mais estudada e o cuidado de escritores muito inferiores os ensinaram a evitar. Observando suas qualidades, portanto, o que terei freqüentemente oportunidade de fazer à medida que prossigo, devo também apontar suas negligências e defeitos. Sem uma discussão livre e imparcial, tanto dos defeitos quanto das qualidades de sua composição, é evidente que esta crítica não teria utilidade; e da liberdade que uso para criticar o estilo do Sr. Addison, ninguém deve supor que pretendo depreciar seus escritos, depois de ter repetidamente declarado a alta estima que tenho sobre eles. As qualidades deste autor são tantas e o caráter geral de seu estilo é tão elegante e adorável que as pequenas

imperfeições que terei ocasião de apontar são como aquelas manchas ao sol, que podem ser descobertas com a ajuda de arte, mas que não

614

ESTILO conseguem obscurecer seu brilho. É, de fato, minha opinião que o que Quintiliano aplica a Cícero, "Ille se profecisse sciat, cui Cicero valde placebit", pode, com justiça, ser aplicado ao Sr. Addison: a satisfação com sua maneira de escrever é o critério para saber se o indivíduo adquiriu bom gosto no estilo inglês. O artigo que analisaremos agora é o n° 411, o primeiro de seus célebres ensaios sobre os prazeres da imaginação, no sexto volume de The Spectator. Começa assim: (1) Nossa visão é o mais perfeito e mais agradável de todos os nossos sentidos.

Esta é uma excelente frase introdutória. É clara, precisa e simples. O autor apresenta, em poucas palavras claras, a proposição que ilustrará ao

longo do restante do parágrafo. Devemos sempre começar assim. Uma

primeira frase raramente deve ser longa e jamais deve ser complicada. Ele poderia ter dito: "Nossa visão é o mais perfeito e o mais agradável", mas ele julgou melhor omitir a repetição do artigo definido o, pois sua repetição é apropriada, principalmente, quando pretendemos destacar os objetos de que falamos, como distintos ou contrastados uns com os outros; e quando queremos que a atenção dos leitores repouse nessa dis-

tinção. Por exemplo, se o Sr. Addison pretendesse dizer que nossa visão

é ao mesmo tempo o mais agradável e o mais útil de todos os nossos sentidos, o artigo poderia ter sido repetido com propriedade, já que existe uma distinção clara aqui. Mas como entre perfeito e agradável há menos contraste, não houve ocasião para tal repetição, que não teria outro efeito senão acrescentar uma palavra desnecessariamente à frase. Ele prossegue: (2) Ela preenche a mente com a maior variedade de idéias, dialoga com seus

objetos à grande distância e continua por mais tempo em ação, sem car cansada ou saciada com seus próprios prazeres.

Esta frase merece atenção, por ser notavelmente harmoniosa e bem

construída, possuindo, de fato, quase todas as propriedades de uma frase perfeita. É totalmente clara. Não tem nenhuma palavra supér ua ou desnecessária, pois os termos cansada ou saciada no nal da frase não são usados como sinônimos. Eles transmitem idéias distintas e referem-se a diferentes elementos do período, dizendo que esse sentido continua por mais tempo em ação, sem car cansado, isto é, sem se cansar

fl

fi

fi

fi

615

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO com sua ação, e também sem ficar saciado com seus próprios prazeres.

Essa qualidade de uma boa frase que denominei de unidade está aqui perfeitamente preservada. É da nossa visão que ele fala. Este é o objeto

presente na frase toda e apresentado a nós, em cada elemento dela, pelos verbos preenche, dialoga, continua, em relação a cada um dos quais

é claramente o nominativo. Essas palavras capitais são colocadas nos

lugares mais adequados; e essa uniformidade é mantida na construção da frase, que se adequa à unidade do objeto.

Observe, também, a música da época; consistindo de três elementos, cada um dos quais, de acordo com uma regra que mencionei anteriormente, cresce e eleva-se acima do outro em som, até que a frase seja

conduzida, finalmente, a um dos encerramentos mais melodiosos que

admite nossa linguagem: sem ficar cansada ou saciada com seus próprios prazeres. Prazeres é uma palavra digna, sumamente apropriada para um fim que se pretende musical. A harmonia é ainda mais feliz quando essa

disposição dos elementos do período, que tão bem se adapta ao som, não é menos justa e adequada no que diz respeito ao sentido. Segue a ordem da natureza. Primeiro, menciona-se a variedade de objetos, que a visão fornece à mente; a seguir, temos a ação da visão sobre esses obje-

tos; e, por fim, temos o tempo e a continuidade de sua ação. Nenhuma ordem poderia ser mais natural e feliz.

Essa frase tem ainda outra beleza: é figurativa, mas sem exagero. Há uma metáfora aqui: o sentido da visão é, em certo grau, personificado. Somos informados de seu diálogo com os objetos; e que ela não se

sente cansada ou saciada com seus prazeres; todas essas expressões são alusões claras às ações e sentimentos dos homens. É aquela espécie sutil

de personificação que, sem qualquer aparência de ousadia e sem elevar

a fantasia muito acima de seu estado ordinário, confere um aspecto pictórico ao discurso, levando-nos a compreender melhor o que os escritores quiseram dizer, ao revestir idéias abstratas, em algum grau, de

cores sensíveis. O Sr. Addison esbanja essa beleza de estilo, superando

a maioria dos escritores; e a frase que estamos considerando expressa

muito bem sua maneira de escrever. Não há nenhuma falha nela, a menos que um crítico mais rígido objete que o epíteto maior, que ele

aplica a variedade (a maior variedade de idéias) é um epíteto mais comumente aplicado a extensões do que a quantidades. É evidente que,

616

ESTILO aqui, o emprego dessa palavra foi para evitar a repetição de grande, que aparece imediatamente depois. (3) O sentido do tato pode nos dar uma noção da extensão, forma e todas as outras idéias que entram no olho, exceto as cores; mas, ao mesmo tempo, ele é muito restrito e limitado, em suas operações, ao número, volume e distância de seus objetos particulares.

Esta frase não é tão feliz quanto a anterior. Na verdade, não é nem clara nem elegante. Extensão e forma não podem ser chamadas de idéias; elas são propriedades da matéria. Nem é correto, mesmo de acordo com a filosofia do Sr. Locke (com a qual nosso autor parece ter se intrigado aqui), dizer que algum sentido pode nos dar uma noção de idéias; nossos sentidos nos dão as próprias idéias. O significado teria sido muito mais claro se o autor se expressasse assim: "O sentido do tato pode, de fato,

nos dar a idéia de extensão, figura e todas as outras propriedades da matéria percebidas pelos olhos, exceto as cores".

A última parte da frase é ainda mais embaraçosa, pois o que quer dizer que o tato é limitado, em suas operações, ao número, volume e distância de seus objetos particulares? Todo sentido é limitado, tanto quanto o sentido do tato, ao número, volume e distância de seus próprios objetos. A este respeito, a visão e o tato estão no mesmo nível, pois nenhum

deles estende-se além de seus próprios objetos. A maneira de falar é tão imprecisa aqui que poderíamos suspeitar que duas palavras do manuscrito original do Sr. Addison foram omitidas na impressão, uma vez que sua inserção tornaria o sentido muito mais inteligível e claro. Essas duas palavras são em relação: é muito restrito e limitado, em suas operações, em relação do número, volume e distância de seus objetos particulares. O significado, então, seria que o tato é mais limitado do que a visão a esse respeito, por estar limitado a um círculo mais estreito, a um número menor de objetos. O epíteto particulares, aplicado a objetos, na conclusão da frase, é redundante e não transmite qualquer significado. O Sr. Addison parece tê-lo usado no lugar de peculiares, como de fato faz com frequência em outras passagens de seus escritos. Mas as palavras particulares e peculia-

res, embora sejam muitas vezes confundidas, têm significados diferen-

tes. Particular opõe-se a geral; peculiar opõe-se ao que existe em comum

617

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO com os outros. Particular expressa o que é chamado de espécie no estilo lógico; peculiar, o que é chamado de differentia. A expressão seus objetos peculiares significaria, aqui, os objetos do sentido do tato, à diferença

dos objetos de qualquer outro sentido, sendo mais adequada do que seus objetos particulares, embora, na verdade, nenhuma das duas fosse necessária. Bastava dizer seus objetos.

(4) Nossa visão parece projetada para suprir todos esses defeitos e pode ser

considerada um tipo de tato mais delicado e difuso, que se espalha por uma infinidade de corpos, compreende as figuras maiores e traz ao nosso alcance

algumas das partes mais remotas do universo.

Aqui, novamente, o estilo do autor retorna com toda a sua beleza. A frase é distinta, elegante, organizada e altamente musical. Na última parte, temos três elementos, dispostos da mesma maneira que aqueles da segunda frase, a qual elogiei tanto. A construção é tão semelhante que, se uma seguisse a outra, o texto ficaria monótono, mas a interposição de uma frase entre elas impede que isso ocorra. (s) É esse sentido que fornece à imaginação suas idéias; de modo que, por prazeres da imaginação ou fantasia (que usarei promiscuamente), quero dizer aqueles que surgem de objetos visíveis, seja quando os temos realmente à nossa frente ou quando evocamos suas idéias na mente por meio de pinturas, está-

tuas, descrições ou qualquer ocasião semelhante.

Em lugar de é esse sentido que fornece, o autor poderia ter dito simplesmente esse sentido fornece, mas o modo de expressão que ele usou é aqui mais adequado. Esse tipo de afirmação, é [...] que, pode ser usada quando queremos chamar a atenção dos leitores para uma proposição

importante, como se apontássemos para o objeto de que falamos. O parêntese no meio da frase, que usarei promiscuamente, não é claro. Ele deveria ter dito termos que usarei promiscuamente, já que o verbo usar relaciona-se não aos prazeres da imaginação, mas aos termos fantasia e imaginação, empregados como sinônimos. Qualquer ocasião semelhante. Chamar de ocasião uma pintura ou estátua não é uma expressão feliz, nem é muito apropriado falar em evocar idéias por ocasião. A expressão comum qualquer um desses meios teria soado mais natural.

618

ESTILO (6) De fato, não podemos ter uma única imagem na fantasia que não tenha entrado primeiro pela visão, mas temos o poder de reter e transformar essas imagens recebidas nas variedades de imagem e visão mais agradáveis à imagi-

nação, pois, por meio dessa faculdade, um homem em uma masmorra é capaz

de entreter-se com cenas e paisagens mais belas do que qualquer uma que possa ser encontrada em todo o universo da natureza.

Pode ser útil observar que há uma imprecisão na sintaxe de um ele-

mento desta frase. É muito apropriado dizer transformar essas imagens

recebidas nas variedades de imagem e visão, mas não podemos reter nas variedades. E, no entanto, de acordo com a distribuição das palavras, essa construção é inevitável. Pois reter e transformar são infinitivos que

se referem igualmente ao substantivo subseqüente, essas imagens; e esse

substantivo está necessariamente conectado com a preposição seguinte,

em. Este exemplo mostra a importância de observar cuidadosamente

as regras de gramática e sintaxe, se um escritor magní co como o Sr.

Addison pode, inadvertidamente, incorrer em tal erro. A construção poderia facilmente ter sido retificada separando reter e transformar desta forma: "Temos o poder de reter essas imagens recebidas e de transformá-las nas variedades de imagem e visão". A última parte da frase é clara e elegante. (7) Existem poucas palavras na língua inglesa que são empregadas em um sen-

tido mais livre e incircunscrito do que as da fantasia e da imaginação.

Existem poucas palavras [...] que são empregadas. Teria sido melhor se nosso autor tivesse dito de forma mais simples: poucas palavras na língua inglesa são empregadas. O Sr. Addison, cujo estilo é livre e completo, em vez de nervoso, utiliza, em todas as ocasiões, esse tipo extenso de fraseologia. Mas esse tipo de fraseologia só é apropriado quando alguma afirmação de consequência é apresentada, para dar ênfase, como na primeira frase do parágrafo anterior. Em outras ocasiões, essas pequenas palavras, é e existem, devem ser evitadas, pois são redundantes e enfraquecedoras. As da fantasia e da imaginação. O artigo deveria ter sido omitido aqui. Como ele não se refere aos poderes da fantasia e da imaginação, mas apenas às palavras, o artigo certamente não cabe, assim como as outras duas palavras, as da. Melhor se a frase fosse assim:

fi

619

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO "Poucas palavras na língua inglesa são empregadas em um sentido mais livre e incircunscrito do que fantasia e imaginação". (8) Portanto, pareceu-me necessário fixar e determinar a noção dessas duas palavras, visto que pretendo fazer uso delas no fio de minhas especulações seguintes, para que o leitor possa conceber corretamente qual é o assunto que

proponho.

Embora fixar e determinar possam parecer palavras sinônimas, há uma diferença sutil entre elas. O autor acaba de dizer que as palavras de que fala são livres e incircunscritas. Fixar relaciona-se com a primeira, determinar, com a última. Fiamos o que é livre, ou seja, mantemos a palavra em seu devido lugar para que não oscile em nossa imaginação e passe de uma idéia a outra; e determinamos o que é incircunscrito, ou seja, verificamos seus termos, desenhando um círculo ao redor para ver seus limites, pois não podemos conceber claramente o significado de uma palavra, ou mesmo de qualquer outra coisa, até que vejamos seus limites e conheçamos sua abrangência. Essas duas palavras, portanto, têm graça e beleza da forma como são aplicadas aqui, apesar de que um

escritor mais frugal do que o Sr. Addison teria preferido o verbo certi car-se, que transmite, sem qualquer metáfora, a importância de ambas.

A noção dessas palavras é uma expressão um tanto áspera, pelo me-

nos não tão comumente usada quanto o significado dessas palavras. Visto que pretendo fazer uso delas no fio de minhas especulações seguintes.

Trata-se de uma frase claramente problemática. Uma espécie de metáfora é indevidamente misturada com palavras no sentido literal. Ele poderia muito bem ter dito: visto que pretendo fazer uso delas em minhas

especulações seguintes. Era uma linguagem simples; mas se ele escolheu fazer alusão a fio, essa alusão deveria ter sido justificada; pois não há

sentido em fazer uso delas no fio das especulações; e, de fato, ao expressar qualquer coisa tão simples e familiar como esta, a linguagem clara

deve sempre ser preferida à metafórica. Conceber corretamente qual é o assunto que proponho é um final desagradável para uma frase; melhor seria: conceber corretamente o assunto que proponho. (9) Portanto, devo desejar que ele se lembre de que, por prazeres da imaginação, apenas quero dizer os prazeres que surgem originalmente da visão, e que eu divido esses prazeres em dois tipos.

fi

620

ESTILO Como a última frase começou com portanto, pareceu-me necessário fixar, é descuido começar esta frase de uma maneira tão semelhante, portanto, devo desejar que ele se lembre, especialmente se consideramos

que a pequena variação de uso, por conseguinte ou por esse motivo, em

vez de portanto, teria resolvido o problema. Quando ele diz, apenas quero dizer os prazeres, observamos que o advérbio apenas não está em seu devido lugar. Não se pretende aqui qualificar quero dizer, mas os prazeres e, portanto, o advérbio deveria ter sido colocado o mais próximo possível com a palavra que ele limita ou qualifica. O texto torna-se mais claro e limpo quando as palavras são organizadas assim: "Por

prazeres da imaginação, quero dizer apenas os que surgem originalmente da visão". (10) Meu desígnio sendo, antes de tudo, discursar sobre aqueles prazeres pri-

mários da imaginação, que procedem inteiramente de tais objetos que estão diante de nossos olhos; e, em seguida, falar daqueles prazeres secundários da imaginação, que fluem das idéias de objetos visíveis, quando os objetos não estão realmente diante dos olhos, mas são evocados à memória ou formam visões agradáveis de coisas ausentes ou fictícias.

É uma grande regra, ao estabelecer a divisão de um assunto, buscar o máximo de clareza e concisão possíveis. Assim, as divisões serão apreendidas de forma distinta e mais facilmente lembradas. Esta frase não

é perfeitamente feliz a esse respeito. Está um tanto truncada por uma fraseologia tediosa. Meu desígnio sendo, antes de tudo, discursar [...] em seguida, falar [...] de tais objetos que estão diante de nossos olhos [...] coisas

ausentes ou ctícias. Várias palavras poderiam ter sido poupadas aqui; e

o texto poderia ser mais elegante e compacto. (11) Os prazeres da imaginação, tomados em toda a sua extensão, não são tão

grosseiros quanto os dos sentidos, nem tão re nados quanto os da compreen-

são. Esta frase é distinta e elegante. (12) Os últimos são, de fato, mais preferíveis, porque se baseiam em algum novo conhecimento ou aperfeiçoamento na mente do homem; ainda assim,

fi

fi

621

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO devemos confessar que os da imaginação são tão importantes e tão atraentes

quanto os outros.

No início desta frase, a expressão mais preferíveis é uma imprecisão

tão evidente que não dá para imaginar como o Sr. Addison a deixou passar, visto que preferíveis, por si só, expressa o grau comparativo, e o

mesmo vale para "mais elegível" ou "mais excelente".

Devo observar, mais adiante, que a proposição contida no último elemento desta frase não é clara: devemos confessar que os da imaginação

são tão importantes e tão atraentes quanto os outros. Na frase anterior,

ele comparou três coisas: os prazeres da imaginação, os dos sentidos e

os da compreensão. No início desta frase, ele chamou os prazeres da

compreensão de últimos; e ele termina a frase observando que os da imaginação são tão grandes e emocionantes quanto os outros. Ora, além

de que os outros não faz um contraste adequado com os últimos, não sabemos se por outros ele se referia aos prazeres da compreensão ou aos prazeres dos sentidos, pois a construção aqui admite os dois, embora ele

certamente se refira apenas aos prazeres da compreensão. A proposição

reduzida a uma linguagem clara fica assim: "No entanto, devemos con-

fessar que os prazeres da imaginação, quando comparados com os da compreensão, não são menos importantes e atraentes" (13) Uma bela perspectiva deleita a alma tanto quanto uma demonstração;

e uma descrição em Homero encanta mais leitores do que um capítulo em

Aristóteles.

Esta é uma boa ilustração do que ele vinha afirmando, apresentada de maneira jovial e elegante, pela qual nosso autor é conhecido. (14) Além disso, os prazeres da imaginação têm essa vantagem sobre os da compreensão: são mais óbvios e mais acessíveis.

Esta frase também é irrepreensível. (15) Basta abrir o olho, e a cena entra.

Esta frase é viva e pitoresca. Pela alegria e vivacidade que dá ao

texto, mostra a vantagem de misturar uma frase curta como esta em uma sequência de outras mais longas, que nunca deixa de ter um efeito

622

ESTILO feliz. Devo observar, no entanto, uma pequena imprecisão: não se pode

dizer que uma cena entra; um ator entra, mas uma cena aparece ou apresenta-se. (16) As cores pintam-se na fantasia, com muito pouca atenção do pensamento ou aplicação da mente por parte do observador.

Uma bela ilustração, com aquele floreio agradável e adequado aos prazeres da imaginação que o autor está abordando. (17) Ficamos impressionados, não sabemos como, com a simetria de qualquer

coisa que vemos, e imediatamente concordamos com a beleza de um objeto, sem inquirir sobre suas causas e ocasiões particulares.

Aqui, temos uma queda em relação à elegância das frases anteriores. Concordamos com a verdade de uma proposição, mas não podemos dizer que concordamos com a beleza de um objeto. Reconhecemos teria expressado o sentido com mais propriedade. O encerramento da frase também é pesado e deselegante: suas causas e ocasiões particulares; tanto particulares quanto ocasiões são palavras bastante supérfluas; e o

pronome suas é, em certa medida, ambíguo, quer se refira à beleza ou ao objeto. Uma boa alteração no estilo seria: "Reconhecemos imediatamente a beleza de um objeto, sem inquirir sobre a causa dessa beleza". (18) Um homem de imaginação polida consegue ter muitos prazeres que o

homem comum não é capaz de receber.

Polido é um termo mais comumente aplicado a maneiras ou comportamento do que à mente ou imaginação. Não há nada mais a ser observado nesta frase, a menos o uso de que como pronome relativo, em vez de o qual (e suas variações), que o Sr. Addison utiliza muito. O

qual define muito melhor do que que, pois é sempre empregada como pronome relativo, ao passo que que é uma palavra com muitos sentidos:

às vezes, é pronome indefinido, muitas vezes, conjunção. Em alguns

casos, somos de fato obrigados a usar que como pronome relativo, a m de evitar a repetição deselegante de o qual na mesma frase. Mas quando

não existe esse tipo de necessidade, o qual é sempre o termo preferível. Prazeres os quais o homem comum não é capaz de receber é muito melhor do que prazeres que o homem comum etc.

fi

623

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO (19) Ele pode conversar com uma gravura e encontrar um companheiro agradável em uma estátua. Ele encontra um frescor secreto em uma descrição; e

muitas vezes sente maior satisfação com a perspectiva de campos e prados do que outra pessoa com a posse. Isso lhe dá, de fato, uma espécie de propriedade em tudo o que ele vê; e faz com que as partes mais brutas e não cultivadas da natureza administrem seus prazeres, de modo que ele olha para o mundo, por assim dizer, sob outra luz e descobre nele uma infinidade de encantos que se

ocultam da generalidade da humanidade.

Tudo isso é muito bonito. A ilustração é alegre e o estilo flui com naturalidade e harmonia. Não vemos trabalho, rigidez ou afetação, mas um autor escrevendo a partir do fluxo inato de uma imaginação jovial. Esse caráter predominante no estilo do Sr. Addison compensa todas as pequenas negligências que observamos. Duas delas ocorrem neste parágrafo. A primeira, na frase que começa com isso lhe dá, de fato, uma espécie de propriedade. Para isso, não há antecedente adequado em todo o parágrafo. Para entender o significado, devemos olhar para trás, até a terceira frase anterior, a primeira do parágrafo, que começa com um homem de imaginação polida. Essa expressão, imaginação polida, é o único antecedente ao qual isso pode se referir; e mesmo assim, temos um antecedente impróprio, pois se trata de um caso de genitivo, como a qualificação apenas de um homem. O outro caso de negligência é no final do parágrafo: de modo que ele olha para o mundo, por assim dizer, sob outra luz. Por outra luz, o Sr. Addison quer dizer uma luz diferente daquela pela qual outros homens vêem o mundo. Mas, embora essa expressão transmita claramente esse significado na escrita, ela o transmite de forma muito indistinta para os outros e é um exemplo desse tipo de imprecisão, em que, no calor da composição, todo escritor de imaginação fértil é capaz de incorrer e que só pode ser remediada por uma análise fria e subsequente. Por assim dizer, na maioria das ocasiões, não passa de um paliativo ingrato; e aqui não havia a menor ocasião para isso, pois ele não ia dizer nada que exigisse um abrandamento deste tipo. Para dizer a verdade, esta última frase, de modo que ele olha para o mundo, e o que se segue, não fazem falta nenhuma. Não é mais do que uma recapitulação desnecessária do que foi dito antes, um débil ajuste à

imagem viva dos prazeres da imaginação que ele havia apresentado.

624

ESTILO O parágrafo teria mais força se terminasse com as palavras imediatamente anteriores: faz com que as partes mais brutas e não cultivadas da natureza administrem seus prazeres. (20) Existem, de fato, poucos que sabem ser ociosos e inocentes, ou têm prazer em quaisquer prazeres, sem serem criminosos; cada diversão que eles têm é às

custas de alguma virtude, e seu primeiro desvio é para o vício ou a loucura.

Nada pode ser mais elegante ou mais re nado do que esta frase. Ela

é pura, clara e musical. Qualquer modi cação aqui prejudicaria a frase. Poucas frases podem ser consideradas mais acabadas ou mais felizes. (21) Um homem deve esforçar-se, portanto, para tornar a esfera de seus prazeres inocentes tão ampla quanto possível, para que ele possa refugiar-se ali

com total segurança, encontrando a satisfação que nenhum homem sensato se envergonharia de receber.

Esta também é uma boa frase, que não requer nenhum comentário. (22) Dessa natureza são os da imaginação, que não requerem a concentração dos empregos mais sérios, nem, ao mesmo tempo, permitem que a mente

afunde naquela indolência e remissão que soem acompanhar nossos prazeres mais sensuais, mas, como um exercício suave para as faculdades, desperta-as

da preguiça e da ociosidade, sem colocá-las em qualquer trabalho ou dificul-

dade.

O início desta frase não está correto e fornece um exemplo de um período muito vagamente conectado com o anterior. Dessa natureza, diz ele, são os da imaginação. Podemos perguntar: de que natureza? Pois não tinha sido o escopo da frase anterior descrever a natureza de qual-

quer conjunto de prazeres. Ele disse antes que era dever de todo homem tornar a esfera de seus prazeres inocentes a mais ampla possível, a fim de

que, dentro dessa esfera, ele pudesse encontrar um refúgio seguro e uma satisfação louvável. A transição é feita livremente começando a próxima

frase com dessa natureza são os da imaginação. Teria sido melhor se, tendo em vista o objeto governante da frase anterior, ele tivesse dito:

"Esta vantagem ganhamos", ou: "Esta satisfação desfrutamos por meio dos prazeres da imaginação". O resto da frase é totalmente correto.

fi

fi

625

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO (23) Podemos acrescentar aqui que os prazeres da fantasia são mais condu-

centes à saúde do que os da compreensão, que são trabalhados por meio do

pensamento e acompanhados de um violento trabalho do cérebro.

Nessa frase, nada ocorre que mereça destaque, exceto que trabalha-

dos por meio do pensamento é uma frase que beira a linguagem vulgar e

coloquial, sendo pouco apropriada em uma composição polida. (24) Cenas deliciosas, seja na natureza, na pintura ou na poesia, têm uma influência agradável no corpo, assim como na mente, e não só servem para clarear e iluminar a imaginação, mas são capazes de dispersar a dor e a melancolia e colocar o espírito animal em harmonioso movimento. Por essa razão, Sir Francis Bacon, em Essay upon Health, não considerou impróprio prescrever

ao leitor um poema ou uma perspectiva, em que o dissuade de análises complicadas e sutis e o aconselha a buscar estudos que lhe preencham a mente com objetos esplêndidos e ilustres, como histórias, fábulas e contemplações

da natureza.

Na última dessas duas frases, um elemento do período está totalmente fora de seu lugar, o que dá a toda a frase um tom áspero e desconexo e serve para ilustrar as regras que anteriormente abordei a respeito

da disposição. O elemento mal colocado para o qual aponto é este: em que o dissuade de análises complicadas e sutis; essas palavras, sem dúvida, deveriam ter sido colocadas não onde estão, mas assim: Sir Francis Bacon, em Essay upon Health, em que dissuade o leitor de análises complicadas e sutis, não considerou impróprio prescrever-lhe etc. Esta disposição

coloca tudo na ordem apropriada. (25) Neste artigo, a título de introdução, expliquei a noção daqueles prazeres da imaginação, que são o assunto de meu presente empreendimento, e procurei, com várias considerações, recomendar aos meus leitores a busca desses

prazeres. Devo, em meu próximo artigo, examinar as várias fontes de onde esses prazeres são derivados.

Essas duas frases finais fornecem exemplos da colocação adequada

das circunstâncias em um período. Comentei anteriormente sobre a

dificuldade de organizá-las sem prejudicar o sujeito principal da frase. Nas frases que temos diante de nós, várias dessas circunstâncias inci-

626

ESTILO

dentais necessariamente aparecem: a título de introdução, com várias considerações, neste artigo, em meu próximo artigo, todas administradas com grande propriedade por nosso autor. Ver-se-á, na prática, que não havia outras partes da frase em que elas pudessem ter igual vantagem. Se ele tivesse dito, por exemplo, "expliquei a noção (melhor o signiftcado) daqueles prazeres da imaginação, que são o assunto de meu pre-

sente empreendimento, a título de introdução, neste artigo, e procurei recomendar a busca desses prazeres aos meus leitores, com várias considerações", a frase, assim truncada pelas circunstâncias no lugar errado, não teria sido nem tão nítida nem tão clara, como é na presente construção. JOHN F. KENNEDY: DISCURSO DE POSSE (20 DE JANEIRO DE 196I)

1. Observamos hoje não a vitória de um partido, mas a celebração da li-

berdade, símbolo de um m, mas também de um começo, signi cando

renovação assim como mudança. Pois z diante de vocês e de Deus

Todo-Poderoso o mesmo juramento solene que nossos antepassados formularam há cento e setenta e cinco anos. 2. O mundo é muito diferente agora, pois o homem tem em suas mãos mortais o poder de abolir todas as formas de pobreza humana e todas as formas de vida humana. E, no entanto, os mesmos ideais revolucionários pelos quais lutaram nossos antepassados ainda são questionados em todo o mundo: a crença de que os direitos do homem não vêm da generosidade do Estado, mas da mão de Deus. 3. Hoje, não ousamos esquecer que somos os herdeiros dessa primeira revolução. Que não se restrinja a este momento nem a este lugar e que

chegue tanto a amigos quanto a inimigos, a notícia de que a tocha foi passada a uma nova geração de norte-americanos, nascidos neste século, endurecidos pela guerra, disciplinados por uma dura e amarga paz, orgulhosos de nossa herança ancestral, e relutantes em testemunhar ou permitir a lenta destruição dos direitos humanos com os quais esta nação sempre esteve comprometida e com os quais nos comprome-

temos hoje, em nosso país e no mundo todo.

fi

fi

fi

627

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 4. Que cada nação, deseje-nos bem ou mal, saiba que pagaremos qualquer preço, suportaremos qualquer fardo, enfrentaremos qualquer difi-

culdade, apoiaremos qualquer companheiro, confrontaremos qualquer adversário para assegurar a perpetuação e o sucesso da liberdade.

5. Isso nós prometemos, e muito mais.

6. Aos antigos aliados cujas origens culturais e espirituais compartilhamos, juramos a lealdade de amigos éis. Unidos, há pouco que não possamos fazer diante de inúmeras iniciativas de cooperação. Divididos, há pouco que possamos fazer, pois não ousamos enfrentar um desa o se desunidos e em con ito.

7. Aos novos Estados que acolhemos nas leiras da liberdade, damos nossa palavra de que uma forma de controle colonial não há de ser derrotada somente para ser substituída por uma tirania ainda mais ferrenha. Não devemos esperar que sempre apoiem nossos pontos de vista,

mas devemos ter a esperança de que sustentem com firmeza sua própria liberdade e se lembrem de que, no passado, aqueles que buscaram o po-

der tolamente montando no dorso do tigre acabaram sendo devorados.

8. Aqueles que vivem em choupanas e aldeias na metade do mundo,

lutando para romper as amarras da miséria em massa, prometemos nossos melhores esforços para ajudá-los a se ajudarem, pelo tempo que

for necessário, não porque os comunistas talvez o façam, nem porque

buscamos seus votos, mas porque é o certo. Se uma sociedade livre não puder ajudar os muitos que são pobres, também não poderá salvar os poucos que são ricos.

9. As nossas repúblicas irmãs ao sul de nossa fronteira, fazemos uma promessa especial: transformar nossas boas palavras em boas ações, uma nova aliança para o progresso, a fim de ajudar homens e governos livres a abandonar os grilhões da pobreza. Mas essa revolução pacífica da esperança não pode se tornar presa de potências hostis. Nossos vizi-

nhos devem saber que nos uniremos a eles contra a agressão e a subver-

são em qualquer parte das Américas. E que todas as outras potências saibam que este hemisfério pretende permanecer senhor de sua própria

casa.

10. À assembléia mundial de Estados soberanos, a Organização das Nações Unidas, nossa esperança derradeira em uma era na qual os ins-

trumentos de guerra superaram em muito os instrumentos da paz, re-

fi

fi

fi

fl

628

ESTILO novamos nosso compromisso de apoio: para evitar que se torne apenas um fórum para invectivas, para fortalecer a proteção ao novo e ao fraco

e para ampliar a área de alcance de sua lei.

11. Por m, àquelas nações que desejam se tornar nossos adversários,

fazemos não uma promessa, mas um pedido: que ambos os lados recomecem a busca pela paz, antes que as forças sombrias da destruição,

desencadeadas pela ciência, engulam a humanidade toda em um autoextermínio planejado ou acidental.

12. Não ousamos provocá-las com fraquezas. Pois somente quando nossas armas forem inquestionavelmente suficientes, poderemos estar totalmente seguros de que nunca serão utilizadas.

13. Mas também não podem os dois grandes e poderosos grupos de nações achar confortável nossa situação atual, ambos os lados sobrecar-

regados pelo custo das armas modernas, justificadamente alarmados com a contínua propagação do átomo letal, correndo para alterar o instável equilíbrio do terror que impede, na medida do possível, a mão

da guerra final da humanidade.

14. Portanto, comecemos de novo, lembrando de ambos os lados que

civilidade não é sinal de fraqueza e que a sinceridade está sempre sujeita

a prova. Que jamais negociemos por medo, mas que nunca temamos negociar. IS. Que os dois lados explorem os problemas que nos unem, em vez de

aprofundar aqueles que nos separam. 16. Que ambos os lados, pela primeira vez, formulem propostas sérias

e precisas para a inspeção e o controle de armas, e submetam o poder absoluto de destruir outras nações ao controle absoluto de todas as

nações. 17. Que ambos os lados procurem invocar as maravilhas da ciência, em vez de seus terrores. Juntos, exploraremos as estrelas, conquistaremos

desertos, erradicaremos doenças, chegaremos às profundezas do oceano e incentivaremos as artes e o comércio.

18. Que ambos os lados se unam para ouvir em todos os cantos da Terra a ordem de Isaías: "desapertar os nós do jugo, [em] deixar ir livres aqueles que estão oprimidos" 6

56 Is 58,6 - NT.

fi

629

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 19. E se uma cabeça de ponte cooperativa puder fazer recuar a selva da

suspeita, que ambos os lados se unam para criar um novo empreendimento, não um novo equilíbrio de poder, mas um novo mundo de direito, onde os fortes são justos, os fracos, seguros, e a paz, preservada. 20. Nada disso será concluído nos primeiros cem dias, tampouco nos primeiros mil dias, nem durante este mandato, nem mesmo, talvez, durante nossa vida neste planeta. Mas devemos começar. 21. Meus compatriotas, o sucesso ou o fracasso de nossa linha de ação reside em suas mãos, mais do que nas minhas. Desde a fundação deste

país, cada geração de americanos foi convocada a prestar testemunho

de lealdade à nação. Os túmulos de jovens americanos que responderam ao chamado para servir espalham-se pelo mundo.

22. Agora, as trombetas nos convocam novamente, não como um cha-

mado para pegar em armas, embora precisemos delas; não como um

chamado para guerrear, embora estejamos em guerra; mas um chamado para carregar o fardo de uma longa luta crepuscular, ano após ano, "regozijando-nos na esperança, pacientes nas tribulações", uma luta contra os inimigos comuns do homem: a tirania, a pobreza, a doença e a própria guerra.

23. Conseguiremos forjar contra esses inimigos uma grande aliança

global, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, que possa assegurar uma vida

mais proveitosa para toda a humanidade? Querem fazer parte deste esforço histórico? 24. Na longa história do mundo, a poucas gerações foi concedido o papel de defender a liberdade nas horas de maior perigo. Não recuo diante dessa responsabilidade; recebo-a de bom grado. Creio que nenhum de nós trocaria de lugar com qualquer outro povo ou qualquer outra geração. A energia, a fé e a devoção que trouxemos para este empreendimento iluminarão nosso país e a todos aqueles que a ele servem, e o brilho desse fogo pode realmente iluminar o mundo.

25. E assim, meus compatriotas, não perguntem o que seu país pode fazer por vocês, mas o que vocês podem fazer por seu país. 26. Concidadãos do mundo, não perguntem o que a América fará por vocês, mas o que juntos podemos fazer pela liberdade do homem.

630

ESTILO 27. Por fim, sejam vocês cidadãos americanos ou do mundo, exijam de nós os mesmos padrões elevados de força e sacrificio que exigimos de vocês. Com uma consciência tranquila como única recompensa e a história como juiz nal de nossos atos, seguiremos em frente para liderar a terra que amamos, pedindo a bênção e a ajuda de Deus, mas sabendo que aqui na Terra Sua obra, na verdade, é tarefa nossa.

OS EDITORES DA THE NEW YORKER: DISCURSO DE POSSE DE JOHN F. KENNEDYS?

À medida que a retórica se tornou um elemento cada vez mais dispensável das artes liberais, as pessoas abandonaram a idéia, mantida com

tanta firmeza pelos antigos gregos e romanos, de que a eloquência é indispensável à política. Talvez as realizações do Presidente Kennedy

em ambas as esferas revivam o gosto pela boa oratória, um gosto que foi alternadamente frustrado pela desarticulação e embotado pelo es-

tilo bombástico. Houve alguns oradores notáveis em nossos dias (mais recentemente Arial Stevenson), mas eles foram as exceções, e foi preciso o sucesso de Kennedy como político para sugerir que o poder de "encantar almas por meio de palavras" (Sócrates) poderá em breve voltar a ser valorizado. Seja qual for o impacto do discurso de posse sobre os homens contemporâneos da Nova Fronteira, parece-nos difícil acreditar que um cidadão ateniense ou romano pudesse ouvi-lo impassível, ou que Cícero, por mais zeloso que fosse com a própria reputação, encontrasse motivo para opor-se a ele. Agora, sabemos que o primeiro discurso do presidente foi muito elogiado, mas antes que a responsabilidade pelo julgamento final fosse entregue ao tempo, seria uma pena não pedir a opinião de alguns ver-

dadeiros profissionais. Tanto Aristóteles quanto Cícero, um teórico e outro orador teorizador, acreditavam que a retórica poderia ser uma arte na medida em que o orador fosse, primeiro, um lógico e, segundo, um psicólogo, com reconhecimento e compreensão das palavras. Cícero sentia ainda que o orador ideal era o homem culto (ele ficaria satisfeito

com a formação do Sr. Kennedy e a forte ênfase nos assuntos de Estado:

57 "Notes and Comment", de The New Yorker, 36 (4 de fevereiro de 1961), 23-24; Copyright © 1961, 1989, The New Yorker Magazine, Inc. Reproduzido com permissão do editor.

fi

631

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

o filósofo-orador-estadista). Dos três tipos de oratória definidos pelos antigos, política, forense e epidíctica (em que a participação do público limitava-se a um julgamento de estilo), o político era muito estimado, porque tratava das questões mais elevadas: o destino dos povos, não de indivíduos. ("Agora, as trombetas nos convocam novamente [...] contra os inimigos comuns do homem"). O discurso ideal era aquele em que três tipos de persuasão eram usados pelo orador: a persuasão lógica, para apresentar os fatos do caso e construir um argumento com base neles; a persuasão emocional, para atingir o público psicologicamente; e a persuasão "ética", para apelar ao público com base na a própria inte-

gridade e sinceridade. O discurso de posse, sendo uma variação sobre o tema dos direitos e obrigações do homem, não é essencialmente lógico, embora não contenha nada de ilógico; é um apelo à alma do homem, não à sua mente. Durante a campanha presidencial, o Sr. Kennedy testou e patenteou um exercício na psicologia americana que acabou sendo todo o apelo emocional de que precisava para o discurso de posse: "E

assim, meus compatriotas, não perguntem o que seu país pode fazer por vocês, mas o que vocês podem fazer por seu país". Sua persuasão ética, ou indicação dessa probidade pessoal, consistia em uma extensão desse apelo: "[...] exijam de nós os mesmos padrões elevados de força e sacrifício que exigimos de vocês" Aristóteles reconhecia apenas um (bom) estilo, enquanto Cícero pensava que havia três estilos: o simples, o médio e o grandioso. Aristóteles, que considerava suficiente que um estilo fosse claro e apropriado, evitando elevação indevida (estilo bombástico) e humildade excessiva, di-

ria que o Sr. Kennedy alcançou o áureo meio-termo. A formalidade do discurso de posse ("À assembléia mundial de Estados soberanos, a Organização das Nações Unidas") é adequada ao assunto; a linguagem ( Meus compatriotas, o sucesso ou o fracasso de nossa linha de ação

reside em suas mãos, mais do que nas minhas") é clara e direta. O orador ideal de Cícero era capaz de falar nos três estilos, de acordo com as demandas do assunto, e a esse respeito o Sr. Kennedy tirou nota máxima, falando abertamente sobre o prático (*Nada disso será concluído nos primeiros cem dias"), falando de maneira formal, mas diretamente no propósito da defesa nacional ("Pois somente quando nossas armas forem inquestionavelmente suficientes, poderemos estar totalmente seguros de que nunca serão utilizadas"), e falando grandiosamente sobre

632

ESTILO as realizações potenciais do movimento em direção à Nova Fronteira ("A energia, a fé e a devoção que trouxemos para este empreendimento

iluminarão nosso país e a todos aqueles que a ele servem, e o brilho desse fogo pode realmente iluminar o mundo").

O discurso, no entanto, é quase todo no estilo grandioso, caracterizado por Cícero como a fonte de nitiva da persuasão emocional, por meio de guras de linguagem e certo grau de ritmo periódico, não iâmbico ("O mundo é muito diferente agora, pois o homem tem em suas

mãos mortais o poder de abolir todas as formas de pobreza humana e todas as formas de vida humana"). A oração é tão rica em guras

de linguagem (as muitas metáforas incluem uma tocha, uma cabeça de ponte, uma selva, trombetas, um tigre) que podemos imaginar os estudantes do futuro estudando-a em busca de exemplos de ANTÍTESE ("Se uma sociedade livre não puder ajudar os muitos que são pobres, também não poderá salvar os poucos que são ricos"), PERSONIFICAÇÃO ("[...] a mão da guerra nal da humanidade") e ANÁFORA ("Não como um chamado para pegar em armas, embora precisemos delas; não como um chamado para guerrear [to battle], embora estejamos em guerra [embattled!"). "Battle" e "embattled": um excelente exemplo de

PARONOMÁSIA. E assim deixamos o discurso para os estudantes de retórica, tendo

invocado para o Sr. Kennedy as bênçãos de Aristóteles e Cícero, e para nós a esperança de que ele tenha restabelecido a tradição da eloquência

política. ANÁLISE ESTILÍSTICA DO DISCURSO DE POSSE DE JOHN F. KENNEDY58

"Se, no uso efetivo da linguagem, o estilo é o homem, o estilo também é a nação; homens, países e civilizações inteiras foram testados e julga-

dos por seu tom literário". — John F. Kennedy. CONTEXTO GERAL DO DISCURSO

Se quisermos relacionar o estilo do discurso de posse com seu con-

teúdo, devemos levar em consideração o assunto, a ocasião, o público

58 Todas as contagens desta seção referem-se ao original em inglês — NT.

fi

fi

fi

fi

633

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO e o ethos do orador. Uma posse é um evento solene e cerimonial, com a presença de certas tradições e rituais. Um discurso proferido em tal

ocasião é geralmente do tipo cerimonial, embora possa haver elementos deliberativos nele. O que as pessoas passaram a esperar não é tanto um discurso que estabeleça um programa específico, mas um discurso que define uma atmosfera. Ao atingir a tônica da próxima administração, o orador tentará curar as feridas que podem ter sido in igidas durante

a campanha, lembrar ao público uma herança comum e um propósito comum, expor, de uma forma geral, as políticas e objetivos do novo governo e assegurar à comunidade internacional a continuidade e determinação da nação.

Uma vez que um discurso cerimonial como este trata de generalidades, não de particularidades, é fácil cair no chavão e na hipocrisia.

Ao buscar agradar a todos com um discurso "seguro", o orador corre o

risco de não agradar a ninguém. Na luta por aquele meio-termo feliz entre o geral e o específico, entre o banal e o bizarro e entre o ofensivo

e o efusivo, o orador deverá recorrer a toda a sua engenhosidade para

chegar a um conteúdo e uma forma que impressionará o público sem entediá-lo. Tendo caracterizado o tipo de discurso que geralmente é proferido em uma posse, podemos considerar agora a situação especial enfrentada pelo Presidente Kennedy naquela manhã de janeiro de 1961. John Fitzgerald Kennedy foi o homem mais jovem e o primeiro católico a ser eleito para o mais alto cargo na América, e ele foi eleito por uma estreita margem de votos. Sua idade, sua a liação religiosa e sua vitória estreita nas urnas suscitaram algumas dúvidas sobre ele na mente de seu

próprio povo e de outros países. Tendo criado uma imagem, durante a campanha, de enorme vitalidade e considerável astúcia política, este líder da Nova Fronteira teve de cumprir sua promessa de impulsionar o país. Obviamente, aquela era uma ocasião em que um poderoso apelo ético teria de ser feito para despertar a confiança e a iniciativa do povo. E quanto ao público deste discurso? Havia a audiência imediata, ou seja, os altos dignitários na plataforma e os milhares de pessoas reunidos

na praça em frente ao edifício do Capitólio; depois, havia os milhões de pessoas que iriam ver e ouvir o orador pela televisão; e, finalmente, havia os milhões de pessoas em terras estrangeiras que leriam relatos do discurso no jornal no dia seguinte. Em conjunto, era um público vasto

fl

fi

634

ESTILO e heterogêneo, apresentando problemas especiais para o orador. Como

já observamos, quanto maior e mais heterogênea é a audiência, mais

difícil é ajustar o discurso. Em seu conteúdo e estilo, o presidente deve atingir algum denominador comum, mas sem ignorar a dignidade que a ocasião exige. Tendo visto o contexto geral do discurso, vejamos agora como o presidente adequou os meios aos fins. Nesta análise, é claro, investigaremos somente a maneira como o presidente ajustou seu estilo ao assunto, à ocasião, ao público e à sua própria personalidade. O DISCURSO COMO UM TODO

Uma das primeiras coisas que impressiona o leitor é a relativa brevidade do discurso, 1.343 palavras, que, no ritmo normal de um discurso público, levaria entre nove e dez minutos para ser proferido. Quando o presidente escreveu o discurso, ele não tinha como saber que o público presente estaria no frio cortante que se seguiu a uma forte tempestade de neve na área de Washington no dia anterior à posse. Portanto, a brevidade do discurso não se deve à preocupação com a audiência congelada pelo vento. Ao preparar o discurso, ele pode ter levado em consideração que suas palavras seriam proferidas no final de algum discurso preliminar longo. O mais provável, porém, é que o discurso tenha sido breve

porque essa é a natureza tradicional dos discursos inaugurais. Como observamos, os discursos inaugurais geralmente tratam de generalizações. Princípios, políticas e promessas são enunciados sem elaboração. PARÁGRAFOS

A relativa brevidade do discurso é refletida na estrutura de parágrafos e de frases. Uma olhada no texto impresso do discurso revela uma sucessão de parágrafos curtos. Dos vinte e sete parágrafos do discurso, dez têm apenas uma frase; sete parágrafos têm duas frases; e outros sete têm três frases. Os parágrafos mais longos (9 e 24) contêm apenas quatro frases. Em termos de média, existem 49,3 palavras por parágrafo e 1,92 frase por parágrafo. O presidente tenta abranger muitos assuntos em um discurso breve. Para isso, ele enuncia seus princípios, promessas e políticas em uma

635

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO litania de parágrafos curtos. O efeito desses parágrafos não elaborados

teria sido mínimo se o presidente não tivesse tornado muitos desses parágrafos memoráveis pelo brilhantismo de seu estilo. FRASES: COMPRIMENTO

Passando para a próxima unidade de discurso, a frase, notamos alguns fatos interessantes sobre o comprimento e os tipos de frase. Os dois extremos em relação ao comprimento das frases são representados pela frase de oitenta palavras (segunda frase do parágrafo 3) e pela frase de quatro palavras (terceira frase do parágrafo 20). O comprimento médio das frases do presidente é de 25,8 palavras. Mas o que é mais revelador sobre o estilo de Kennedy é a variação acima e abaixo dessa média. Quatorze das cinqüenta e duas frases (27%) do discurso têm dez palavras (ou mais) acima da média; mas vinte e três frases (44%) têm cinco palavras (ou mais) abaixo da média. Embora o texto tenha uma série de frases excepcionalmente longas, 66 palavras (parágrafo 10), 64 palavras (parágrafo 22), 54 palavras (parágrafos 8 e 13), uma proporção excepcionalmente alta das frases é composta de vinte palavras ou menos. Mesmo para os padrões jornalísticos modernos, uma frase de vinte palavras é curta. Essa alta proporção de frases

curtas combina com a brevidade geral do discurso e os parágrafos curtos. Embora o presidente exiba uma variedade admirável no comprimento das frases, o uso freqüente de frases curtas sugere que ele tinha em mente a audiência ao compor o discurso. Outra consideração que pode ter influenciado o presidente no uso de frases curtas é que frases curtas ajudam a criar o tom sentencioso apropriado de um discurso cerimonial. FRAseS: CLASSES GRAMATICAIS

Tendo notado uma alta proporção de frases relativamente curtas, podemos esperar que a maioria das frases seja do tipo simples ou composto, mas uma investigação cuidadosa das classes gramaticais revelará que não é o que acontece. Vinte frases (38,4%) do total são simples; apenas seis frases (11,6%) são compostas. Mas vinte e seis frases (exatamente 50%) são complexas. Juntas, as frases simples e compostas constituem

636

ESTILO 50% do total, mas a classe gramatical predominante é a frase complexa.

O que isso revela é que o presidente administra o comprimento de suas

frases principalmente por meio de sofisticados poderes de subordinação. Um estudo da sequência de frases, entretanto, mostrará quão bem

ele mistura as classes gramaticais para evitar a monotonia da estrutura. Apenas em cerca de meia dúzia de lugares no discurso ele encadeia duas ou mais frases da mesma classe gramatical. FRASES: TIPOS RETÓRICOS

Quando estudamos os padrões retóricos do discurso, notamos outra

característica interessante no estilo do Presidente Kennedy. A estrutura retórica predominante é a antítese. Essa estrutura recorrente talvez te-

nha sido ditada pelo fato de que o discurso lida principalmente com comparações de opostos ( m/começo, velho/novo, rico/pobre, amigo/ inimigo). Ele apresenta o tema do discurso e a tônica antitética já na

primeira frase: "Observamos hoje não a vitória de um partido, mas a celebração da liberdade, símbolo de um fim, mas também de um começo, significando renovação assim como mudança". Exemplos adicionais de

antítese não são difíceis de encontrar: [..] tanto a amigos quanto a inimigos (parágrafo 3). Unidos [...]. Divididos (parágrafo 6). Aos antigos aliados [...]. Aos novos Estados (parágrafos 6, 7).

Se uma sociedade livre não puder ajudar os muitos que são pobres, também não poderá salvar os poucos que são ricos (parágrafo 8).

[...] os problemas que nos unem [...] aqueles que nos separam (parágrafo Is).

E a frase mais famosa do discurso é apresentada na forma de antítese: ...] não perguntem o que seu país pode fazer por vocês, mas o que vocês podem fazer por seu país.

fi

637

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

Muitas dessas antíteses de pensamento são apresentadas em estruturas gramaticais paralelas. O paralelismo recorrente é apropriado aqui, porque, embora o presidente esteja apontando os opostos por meio de antíteses, ele quer sugerir que esses opostos podem ser conciliados, mas

eles só podem ser conciliados se forem coordenados, e uma maneira de enfatizar o valor coordenado dos opostos é justapô-los em estrutura gramatical paralela.

O outro uso que o presidente faz do paralelismo é para fins de espe-

cificação ou enumeração, como nestes três exemplos: [...] nascidos neste século, endurecidos pela guerra, disciplinados por uma

dura e amarga paz, orgulhosos de nossa herança ancestral (parágrafo 3).

[..] pagaremos qualquer preço, suportaremos qualquer fardo, enfrentaremos qualquer dificuldade, apoiaremos qualquer companheiro, confrontaremos qualquer adversário (parágrafo 4).

Juntos, exploraremos as estrelas, conquistaremos desertos, erradicaremos doenças, chegaremos às profundezas do oceano e incentivaremos as artes e o comércio (parágrafo 17).

Como veremos quando estudarmos as figuras de linguagem, existem esquemas adicionais em muitos desses padrões paralelos e antitéticos.

Antes de concluir esta seção sobre padrões retóricos, destacaremos algumas outras características do estilo. Se os estudantes precisassem de

evidência para justificar o uso de conjunção coordenativa no início da frase, eles poderiam citar este discurso. O presidente começa quatorze de suas frases (mais de 25%) com uma conjunção coordenativa. É claro que há precedente para esse uso na prosa moderna e na prosa antiga, mas é in-

teressante notar como esse meio de articulação de frases é retoricamente

e caz no discurso do presidente. Vejamos apenas um exemplo: Não ousamos provocá-las com fraquezas. Pois somente quando nossas ar-

mas forem inquestionavelmente su cientes, poderemos estar totalmente seguros de que nunca serão utilizadas (parágrafo 12).

Compare o efeito disso com o seguinte:

fi

fi

638

ESTILO Não ousamos provocá-las com fraquezas, pois somente quando nossas armas forem inquestionavelmente suficientes, poderemos estar totalmente seguros de que nunca serão utilizadas.

O conteúdo e o esquema retórico de ambas as frases são exatamente

os mesmos e, talvez, se alguém estivesse lendo a segunda frase em voz

alta, poderia produzir o mesmo efeito da primeira frase. Mas, na página

impressa, a ênfase é alcançada destacando-se a segunda oração em uma frase por si só e sinalizando a relação silogística das duas orações com

o Pois inicial em letra maiúscula. Se analisarmos os outros usos das conjunções coordenativas iniciais, normalmente descobriremos algum

propósito retórico. FRASES: TIPOS FUNCIONAIS

A esmagadora maioria das frases são declarativas. Essa proporção é

apropriada em um discurso que visa informar e tranquilizar o mundo sobre os objetivos da nova gestão. Ocasionalmente, porém, o presidente usa alguns outros tipos funcionais de frase. No parágrafo 23, ele usa duas perguntas retóricas ("Conseguiremos forjar contra esses inimigos uma grande aliança global, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, que possa assegurar uma vida mais proveitosa para toda a humanidade? Querem fazer parte deste esforço histórico?"). Essas perguntas ocorrem no momento do discurso em que o presidente está para iniciar a peroração. Até este ponto, ele declarou o que fará, o que o povo americano fará. Agora, ele sugere o que a comunidade internacional pode fazer para apoiar seu programa de paz e prosperidade. Mas ele pode apenas sugerir (não pode ditar ou prever) o que outros países farão. As perguntas retóricas são formuladas de tal forma, no entanto, que a resposta natural para elas é um sim convicto.

O presidente agrupa dois outros tipos de frases funcionais: impe-

rativos e exortativos. Nos parágrafos 25, 26, 27 (os parágrafos nais

do discurso), vemos três ocorrências do imperativo, com o verbo to ask (traduzido aqui como perguntar e exigir), convocando os cidadãos à ação. Até este ponto, o público é mero ouvinte desse discurso cerimonial. Agora, o público deve envolver-se ativamente. O imperativo aponta para a linha geral de ação a tomar.

fi

639

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO A série de quatorze frases exortativas ("Portanto, comecemos [...)"),

nos parágrafos 14 a 20, também estabelece um programa de ação, mas as diretivas são suavizadas por serem expressas em forma exortativa. (As línguas latina e grega usam o subjuntivo do verbo para criar esse efeito).

O presidente está procurando induzir a ação, não ordená-la. Em outras palavras, ele quer persuadir em vez de coagir.

DIcçÃo A dicção do discurso, de forma discreta, mas inequívoca, exerce influência sobre seu efeito. A simplicidade da dicção talvez não seja

imediatamente perceptível, mas quando a estudamos, notamos que quase não há nenhuma palavra que um aluno do Ensino Médio relativamente inteligente teria de procurar em um dicionário. Um estudo

mais detalhado da dicção revela uma alta proporção de palavras mo-

nossilábicas: cerca de 951 palavras (71%) do discurso são monossilábicas. Nos parágrafos 19 e 20, a proporção de palavras monossilábicas

chega a 80%. Mesmo na peroração, onde se poderia esperar que o orador fizesse uso da cadência sonora alcançada com a dicção polissilábica, encontra-se uma alta proporção de palavras monossilábicas. Esse monossilabismo ajuda a explicar não só a impressão de simpli-

cidade, mas também a força do discurso, que as pessoas passaram a associar ao vigor dessa jovem figura pública. Ao preparar o discurso, o presidente deve ter procurado conscientemente palavras anglo-saxás simples. Tendo observado a alta proporção de palavras monossilábicas, podemos esperar encontrar também uma alta proporção de palavras concretas, mas este não é o caso. A análise dos substantivos do discurso revela muitas palavras abstratas, palavras como liberdade, pobreza, tirania, lealdade, devoção, responsabilidade, agressão, subversão. E a maior

parte dessa dicção abstrata é latina e polissilábica. Além das figuras de linguagem (que investigaremos mais tarde), existem, por incrível que pareça, poucas palavras concretas: choupanas, aldeias, estrelas, desertos, túmulos. Qualquer tom de concretude que o discurso tenha é criado pelas figuras de linguagem. Talvez a alta proporção de palavras abstratas

seja a consequência natural do caráter breve e não elaborado do texto.

Como o presidente decidiu apresentar somente a política geral de sua

640

ESTILO administração, era quase inevitável que a maioria dos substantivos fosse

abstrata. O que temos neste breve discurso é, na verdade, uma série de frases tópicas não desenvolvidas.

Outra coisa que explica a qualidade formal deste discurso cerimo-

nial é o uso ocasional de uma dicção ligeiramente arcaica [no original em inglês]. O presidente usa palavras como forebears (duas vezes), host, anew, asunder, foe, adversary, writ. Além de lembrar o tom do Discurso de Gettysburg, de Lincoln ("Fourscore and seven years ago", "our fathers", "final resting-place", "hallow"), essa dicção pitoresca tem conotações bíblicas, adequando-se ao tema "antigo-novo". O presidente reforçou o efeito desse tipo de dicção com duas citações do Antigo Testamento e o ditado folclórico sobre montar o dorso do tigre. A repetição de certos termos-chave honoríficos, como promessa, cidadãos, paz, também ajuda a reforçar o tom reverencial do discurso.

FIGURAS DE LINGUAGEM: ESQUEMAS

Em primeiro lugar, vejamos alguns esquemas, os padrões de palavras que representam desvios da maneira comum de falar. Uma vez que já comentamos sobre o paralelismo e a antítese, vamos nos concentrar

aqui em alguns outros esquemas. Existem vários esquemas de repetição: O mais notável deles é a anáfora: repetição das mesmas palavras no início de orações sucessivas. A anáfora é evidente em duas passagens principais do discurso: a seção (parágrafos 6-11) na qual o presidente faz uma série de promessas ("Aos antigos..."); e a seção (parágrafos 15-18) na qual o presidente sugere uma linha de ação ("Que os dois lados..."). Observamos previamente que essas duas seções fazem uso de paralelismo. A adição de anáfora a essas passagens desempenha duas funções: combinada com o paralelismo, marca e enfatiza a coordenação da série, e ajuda a estabelecer

o ritmo do texto. O discurso não tem exemplo do esquema oposto, epistrofe (repetição da mesma palavra no final de orações sucessivas), mas tem dois exemplos de repetição de palavras semelhantes em posição medial: "suportaremos qualquer fardo, enfrentaremos qualquer dificuldade, apoiaremos qualquer companheiro, confrontaremos qualquer adversário" (parágrafo 4); "forem inquestionavelmente suficientes, poderemos estar totalmente seguros" (parágrafo 12).

641

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO A frase mais lembrada do discurso, "não perguntem o que seu país

pode fazer por vocês, mas o que vocês podem fazer por seu país", contém uma figura de repetição conhecida como antimetábole (repetição de palavras na ordem reversa). Outra declaração memorável, "Que jamais negociemos por medo, mas que nunca temamos negociar", parece ser outro exemplo de antimetábole, mas é classi cada com mais precisão

como poliptoto (repetição de palavras derivadas da mesma raiz). Aqui,

temos diferentes formas da palavra medo, servindo como substantivo na primeira oração e como verbo na segunda oração. Há outro exemplo

de poliptoto no parágrafo 22 ("Não como um chamado para guerrear, embora estejamos em guerra"), embora, como os editores da The New Yorker observaram, haja uma sugestão aqui também ao tropo chamado paronomásia (jogo de palavras).

O Presidente Kennedy fez uso moderado do esquema de repetição

conhecido como aliteração. Existem apenas dois casos de aliteração

perceptível no discurso [no original em inglês): "the area in which its writ may run", traduzido aqui como "a área de alcance de sua lei" (parágrafo 10); "to lead the land we love", traduzido aqui como "para liderar

a terra que amamos" (parágrafo 27). Talvez, em consonância com sua personalidade, o presidente tenha evitado o uso freqüente de aliterações para contornar o efeito efeminado normalmente produzido por essa figura, já que ele estava se esforçando por um tom de força e vigor, vide a aspereza da sucessão dos sons de se d em "antes que as forças sombrias da destruição, desencadeadas pela ciência, engulam a humanidade toda

em um autoextermínio planejado ou acidental" (parágrafo II). Vejamos brevemente mais alguns esquemas. Na maior parte de suas séries paralelas, o presidente mostra preferência pelo ritmo acelerado

que pode ser alcançado com assíndeto (omissão de conjunções): "nasci-

dos neste século, endurecidos pela guerra, disciplinados por uma dura

e amarga paz, orgulhosos de nossa herança ancestral" (parágrafo 3). Ele faz pouco uso do esquema chamado anástrofe (ordem incomum de palavras). Em todo o discurso, há apenas uma estrutura que se inverte:

"Unidos, há pouco que não possamos fazer diante de inúmeras iniciativas de cooperação. Divididos, há pouco que possamos fazer" (parágrafo 6). E fácil perceber a ênfase dos particípios na posição inicial, embora esses particípios não modifiquem, como normalmente ocorre nesse caso, o assunto da oração principal. Mesmo assim, podemos considerar

fi

642

ESTILO essa estrutura mais como elipse do que anástrofe. O mais próximo que

o presidente chega da figura conhecida como clímax é nos parágrafos 25, 26, 27, porém, mesmo aqui, temos que nos esforçar um pouco para encontrar qualquer elemento de crescente importância na série.

FIGURAS DE LINGUAGEM: TROPOS

Embora o presidente faça um uso bastante habilidoso dos esquemas, ele é menos feliz no uso dos tropos. Há uma série de metáforas no discurso, e essas metáforas representam, como observamos antes, a princi-

pal maneira pela qual o presidente introduz concretude no texto, mas muitas dessas metáforas ("a tocha", "amarras da miséria em massa",

"grilhões da pobreza", "cantos da Terra", "as trombetas", "o brilho desse fogo") são um tanto banais. Ele atinge um pouco mais de frescor em algumas de suas metáforas mais sutis, como "tirania ferrenha", "forças sombrias da destruição, desencadeadas", "luta crepuscular", "forjar". Talvez sua metáfora de maior sucesso seja a do parágrafo 19: "E se uma cabeça de ponte cooperativa puder fazer recuar a selva da suspeita". Por si mesmas, cabeça de ponte e selva são metáforas bastante usadas [em inglês), mas adquirem certa vida ao serem combinadas em uma metáfora complexa. Os diversos usos de "mãos" (parte do todo) e "braços" (gênero da espécie) podem ser vistos como exemplos de sinédoque, mas esses tropos também são bastante banais. O uso de "mão" no parágrafo 13, "o instável equilíbrio do terror que impede, na medida do possível, a mão da

guerra final da humanidade", deve ser classificado como um exemplo de personificação em vez de sinédoque. Talvez a única expressão no discurso

que pode ser lida como outro exemplo de personificação seja encontrada no último parágrafo: "a história como juiz final de nossos atos".

ESTILO DE DECLAMAÇÃO

Sem dúvida, boa parte do efeito desse discurso foi produzido pelo

"estilo" de declamação. Aqueles que assistiram à cerimônia de inauguração pela televisão deverão se lembrar da voz clara do presidente, do sotaque bostoniano típico, do dedo apontado, das pausas, das inflexões, das ênfases. Todos esses recursos de voz e gesto ajudaram a apresen-

643

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO tar o discurso; combinados com o estilo cuidadosamente elaborado,

serviram para comunicar a mensagem do presidente ao eleitorado e ao mundo. E talvez seja bom para o estudante, depois de ter lido esta

análise detalhada do estilo, ouvir o discurso novamente, em um dos muitos registros memoriais publicados logo após o assassinato do pre-

sidente. Ele perceberá que o discurso foi concebido para apresentação oral. Além disso, pode ser interessante observar o quanto de seu estilo altamente refinado cumpre seu papel uma vez que o estudante conhece os artifícios estilísticos utilizados. OBSERVAÇÕES FINAIS

Os vários artifícios estilísticos observados podem ser considerados por algumas pessoas como uma ornamentação. Esses artifícios "enfeitam" o discurso, mas se forem considerados nada mais do que adornos, deixarão de cumprir as funções que os retóricos lhes atribuíam. Esses artifícios formais devem ser um dos portadores de significado. Se a dicção, a composição das palavras e as figuras de linguagem não estiverem esclarecendo, animando e enfatizando o pensamento, se não estiverem exercendo um apelo ético, emocional ou lógico, então, de fato, o estilo

do texto nada mais será do que bronze que soa, címbalo que tine,'°

cheio de som e fúria, vazio de significado. 5°

Não é tão importante que o estilo do discurso seja reconhecido como o "estilo Kennedy", mas que seja apropriado para o assunto, a ocasião, o propósito e o público. Assim como o Discurso de Gettysburg, de Lincoln, não muito cativante para o público que o ouviu no Cemitério Nacional,

em 19 de novembro de 1863, o discurso de posse de Kennedy também não pareceu conquistar o público que o ouviu no Capitólio coberto de

neve, em 20 de janeiro de 1961, a julgar pelos aplausos contidos. Só quando temos a chance de ler e reler os discursos de Lincoln e Kennedy

é que percebemos sua grandeza! Só com uma análise minuciosa (como a que fizemos) é que podemos reconhecer todo o cuidado e deliberação

do Presidente Kennedy com a expressão" de seu discurso. Tanta elo-

59 1Cor 13, 1 - NT. 60 Macbeth, de William Shakepeare — NT.

644

ESTILO quência não surge por acaso, mas de diversas escolhas calculadas entre

uma série de possibilidades. Agora, devemos estar em uma posição melhor para julgar se as es-

colhas do presidente foram ajuizadas. E deveríamos estar em uma posição melhor para prever se as gerações futuras julgarão este discurso de posse como uma das declarações mais nobres a sair da boca de um

estadista americano. UM PARÁGRAFO DE VIRGINIA WOOLE A SER ANALISADO QUANTO AO ESTILO!

Esta seleção é o parágrafo final de um discurso que Virginia Woolf proferiu

na Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres em 21 de janeiro de 1931. O discurso foi posteriormente impresso com o título "Profissões para mulheres" em

uma coletânea de ensaios, A morte da mariposa (1942). Neste discurso, Vir-

ginia Woolf fala sobre um tema que ela abordou em um discurso anterior, em 1928, discurso posteriormente publicado com o título Um teto todo seu (1929).

Na última metade do parágrafo reproduzido aqui, Woolf pega a metáfora de "um teto todo seu" e a leva até o final do parágrafo. Sem dúvida, Woolf estava

na vanguarda do movimento feminista nos países de língua inglesa. Barbara

Hill Rigney, em seu artigo "Uma coroa de flores: A influência de Virginia Woolf na teoria crítica feminista" (1984), disse: "Ela [Woolf] foi a primeira escritora mulher que também é facilmente identificável como crítica feminista,

e seus métodos, bem como a ideologia que os inspirava, suas questoes e autocon-

tradições, ainda constituem os métodos, as questões e as contradições centrais

das teóricas feministas de hoje". Este parágrafo será analisado pelo estilo. Não devemos deixar de considerar que o estilo deste artigo talvez tenha sido motiva-

do, em parte, pelo fato de que este é o parágrafo nal de um discurso proferido

para uma audiência de mulheres cultas.62

(1) São perguntas que gostaria, tendo tempo, de lhes fazer. (2) Na ver-

dade, se insisti nessas minhas experiências profissionais, foi porque creio 61 De Virginia Woolf, "Pro ssões para mulheres", em Pro ssões para mulheres e outros artigos feministas. Copyright 1942 de Harcourt Brace Jovanovich, Inc.; renovado em 1970 por Marjorie T. Parsons, Executrix. Reproduzido com permissão de Harcourt Brace Jovanovich, Inc.

62 A seleção aqui foi reproduzida de Women and Writing. Ed. Michele Barrett, Nova York e Londres: Harcourt Brace Jovanovich, 1980, pp. 62-63.

fi

fi

fi

645

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

que também sejam as de vocês, embora de outras maneiras. (3) Mesmo quando o caminho está nominalmente aberto — quando não há nada que impede uma mulher de ser médica, advogada, funcionária pública -, há muitos, imagino eu, fantasmas e obstáculos pelo caminho. (4) Discuti-los e defini-los, penso eu, é muito valioso e importante, pois só assim é possível dividir o trabalho, resolver as dificuldades. (5) Mas, além disso, também é necessário discutir as metas e os fins pelos quais lutamos, pelos quais combatemos esses obstáculos tremendos. (6) Não podemos achar que essas metas estão dadas; precisam ser questionadas e examinadas constantemente. (7) Toda a questão, como eu vejo — aqui neste salão, cercada de mulheres que praticam pela primeira vez na história não sei quantas profissões diferentes —, é de importância e interesse extraordinário. (8) Vocês ganharam quartos próprios na casa que até agora era só dos homens. (9) Podem, embora com muito trabalho e esforço, pagar o aluguel. (10) Estão ganhando suas quinhentas

libras por ano. (11) Mas essa liberdade é só o começo; o quarto é de vocês, mas ainda está vazio. (12) Precisa ser mobiliado, precisa ser decorado, precisa ser dividido. (13) Como vocês vão mobiliar, como vocês

vão decorar? (14) Com quem vão dividi-lo, e em que termos? (15) São

perguntas, penso eu, da maior importância e interesse. (16) Pela primeira vez na história, vocês podem fazer essas perguntas; pela primeira vez, podem decidir quais serão as respostas. (17) Bem que eu gostaria de ficar e discutir essas perguntas e respostas — mas não hoje. (18) Meu tempo acabou, e paro por aqui.63 ANÁLISE ESTILÍSTICA DO PARÁGRAFO DE VIRGINIA WOOLF

Você acabou de ler uma análise de um discurso completo, "Discurso de posse", do Presidente John F. Kennedy. Aqui, analisaremos um pequeno segmento de um discurso completo, o parágrafo final do discurso de Virginia Woolf a um grupo de mulheres na Grã-Bretanha. No início deste capítulo, há uma série de exemplos de trechos para imitação, segmentos de discursos mais longos de uma variedade de autores ingleses e americanos. Você foi orientado a copiar alguns desses parágrafos textualmente, só para observar e talvez apropriar-se de

63 Tradução de Denise Bottmann, 1&PM — NT.

646

ESTILO algumas características estilísticas da prosa de escritores pro ssionais. Podemos aprender muito simplesmente copiando passagens que outros

escreveram, mas podemos aprender muito mais sobre estilo se, depois

de copiar um texto, escrevêssemos o que observamos sobre o estilo do autor durante a cópia. Na análise a seguir, registraremos nossas observações sobre o estilo de Virginia Woolf, mas devemos ter cuidado com as generalizações que fazemos a partir de nossa observação deste pequeno segmento de seus escritos publicados. Podemos dizer que as características que observamos são características deste parágrafo, não do estilo de Woolf como um todo. Alguns elementos podem ser característicos de seu estilo geral, mas teríamos de analisar uma amostra muito maior de sua prosa para afirmar que aquilo que observamos no parágrafo caracteriza seu estilo como um todo. De qualquer modo, mesmo não podendo fazer generalizações sobre o estilo de Woolf como um todo a partir do estudo de um único parágrafo, talvez haja uma escolha incomum de dicção ou uma disposição específica de palavras que podemos adotar em nosso próprio estilo. Assim, será sempre proveitoso escrever nossas observações sobre o estilo de alguém, mesmo depois de copiar um trecho curto. Na preparação para a leitura desta análise, sugerimos que você copie o parágrafo de Virginia Woolf para que possa observá-lo mais de perto (à diferença de fazer uma mera leitura), além de comparar suas observações com as observações registradas em nossa análise.

Ao nal da análise, há um resumo estatístico de algumas características deste parágrafo de Virginia Woolf. Não conseguimos imaginar algumas dessas estatísticas simplesmente lendo o trecho ou mesmo co-

piando-o. Por exemplo, ao ler ou copiar a passagem, você pode ter observado que há grande variedade no comprimento das frases de Woolf, mas até fazer uma contagem aproximada, você não seria capaz de che-

gar a estatísticas como o número médio de palavras por frase neste parágrafo ou a contagem real de palavras para cada uma das dezoito frases do texto. Mas se você sentiu que o texto apresenta uma variação exemplar no comprimento das frases, talvez se veja compelido a contar o número de palavras de cada frase para confirmar o que sentiu. E se estiver ciente de que um dos pontos fracos de seu estilo é a falta de variedade no comprimento das frases, talvez faça um esforço consciente para alcançar essa variedade. Sua compilação de informações estatísti-

fi

fi

647

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO cas sobre outros recursos estilísticos de Woolf pode, da mesma forma,

ajudá-lo a incorporar alguns desses recursos em seu próprio estilo. De qualquer maneira, não é preciso adotar todos os recursos estilísticos dela. Alguns recursos podem não se adequar aos seus objetivos ou à sua personalidade. Uma observação que podemos fazer sobre o estilo de Virginia Woolf neste parágrafo é que ela parece ter uma queda por dupletos: pares de palavras, frases ou orações. Por exemplo, eis os pares de palavras encontrados neste parágrafo (com o número da frase entre parênteses após o par): "valioso e importante" (4); "as metas e os fins" (s); "questionadas e examinadas" (6); "importância e interesse" (7); "trabalho e esforço" (9); "importância e interesse" (15); " car e discutir" e "perguntas e respostas" (17). Se você olhar atentamente para esses pares, verá que, na maioria dos casos, as duas palavras são mais sinônimos do que diferentes em signi cado. Por exemplo, na frase 17, " car e discutir" e "perguntas e respostas" são dupletos nos quais as duas palavras em ambos os pares têm signi cados diferentes; mas em todos os outros dupletos, as palavras nos pares são sinônimas ou muito próximas: "valioso e importante", "as metas e os ns", "trabalho e esforço". O que esses pares sinônimos indicam é que Woolf parece usar dupletos mais para ns rítmicos do que para ns discriminatórios. Além disso, das sete frases compostas (Cp) e complexas compostas (CC) neste parágrafo, quatro delas (6, 13, 16 e 18) são bipartidas, ou seja, são compostas de duas orações independentes. As outras três frases compostas (4, II, 12) são tripartidas, ou seja, são compostas de três orações independentes. Intimamente associada a essa tendência de estruturar palavras e orações em dupletos está a predileção de Woolf pelo

paralelismo (orações equilibradas) e pela anáfora (o esquema em que os

inícios de orações sucessivas começam com as mesmas palavras). Há três exemplos dessas características estilísticas no parágrafo: "Precisa ser mobiliado, precisa ser decorado, precisa ser dividido" (12); "Como vocês vão mobiliar, como vocês vão decorar?" (13); "Pela primeira vez na história, vocês podem fazer essas perguntas; pela primeira vez, podem decidir quais serão as respostas" (16). Aqui, novamente, o paralelismo e a anáfora parecem ser usados pelo ritmo que estabelecem. Outra característica estilística visível neste parágrafo é a construção

dividida. A primeira frase do parágrafo tem uma dessas construções

fi

fi

fi

fi

fi

fi

fi

648

ESTILO divididas: "[...] que gostaria, tendo tempo, de lhes fazer". Aqui, seria natural manter a sintaxe nesta ordem: "que gostaria de lhes fazer, tendo tempo". Em vez disso, Woolf inicia a estrutura, interrompe a sintaxe normal com a oração intermediária "tendo tempo" e, a seguir, completa a estrutura inicial. O objetivo dessa divisão é dar a devida ênfase à frase

"de lhes fazer". Na ordem natural (veja acima), a oração "tendo tempo" recebe a ênfase principal.

Após esta primeira frase, existem sete outras ocorrências de constru-

ção dividida: 2, 3, 4, 5, 7, 9, I5. O mais curto interruptor é o "penso eu" em 4 e Is; os interruptores mais longos são encontrados em 7 e 9. Às vezes, especialmente quando os interruptores são longos, o leitor terá di culdade em processar a sintaxe suspensa; portanto, você deve ser alertado sobre o uso excessivo de construções divididas ou sobre o uso de estruturas que envolvam interruptores incomumente longos. Outra característica estilística amada por Woolf é a estrutura elíptica. Aqui estão três exemplos de estrutura elíptica neste parágrafo (com as palavras subentendidas entre colchetes): [..] pois só assim é possível dividir o trabalho, lé possível] resolver as diculdades. (4)

"Com quem vão dividi-lo, e em que termos [vão dividi-lo)?". (14) "Bem que eu gostaria de car e discutir essas perguntas e respostas — mas não [ carei e discutirei essas perguntas e respostas] hoje. (17)

A elipse é uma estrutura altamente so sticada e você pode querer adicio-

ná-la ao seu repertório estilístico. Mas você deve estar ciente de que se trata de uma estrutura sintática complicada: se não souber usá-la direito, os leitores podem não ser capazes de fornecer as palavras que faltam.

Algumas características estilísticas menos visíveis neste parágrafo são as três frases que começam com uma conjunção coordenada (2, 5, 11) (quantos de vocês foram instruídos pelo professor a nunca começar

uma frase com uma conjunção coordenada:); o advérbio ligeiramente arcaico hitherto [no original em inglês], "até agora", em 8 e o "tendo

tempo" em 1, uma forma alternativa de redigir a oração subordinada "se tivesse tempo"; as expressões expletivas, que alguns professores de-

fi

fi

fi

fi

fi

649

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO sencorajam os alunos a utilizar: "foi" (2), "não há" e "há" (3), "é ne-

cessário" (s); o número de palavras monossilábicas e de metáforas no

parágrafo (veja os dados estatísticos no final desta análise). Talvez a característica estilística menos perceptível seja a maneira

sutil como Virginia Woolf muda do pronome de primeira pessoa eu, que predomina na primeira metade do parágrafo, para o pronome de segunda pessoa vocês/seus na segunda metade. Começando na frase 8, o foco está em vocês, o público, e só nas duas últimas frases do parágrafo Woolf volta ao pronome eu novamente. Foi uma jogada inteligente colocar ênfase no público na segunda metade do parágrafo, e a autora alcança essa ênfase simplesmente mudando os pronomes. Outro recurso inteligente foi a frase final curta, a frase mais curta (oito palavras) do

parágrafo. Era apropriado terminar com essa frase curta, porque com seu tempo no púlpito esgotando-se, ela deveria parar abruptamente de

falar. Que características estilísticas adicionais você notou? ESTATÍSTICAS SOBRE O PARÁGRAFO DE VIRGINIA WOOLE

Um parágrafo de 337 palavras e 18 frases. Frase média: 18,72 palavras.

Frase mais longa: 3 (37 palavras). Frase mais curta: 18 (8 palavras). Número de frases com 5 palavras (ou mais) abaixo da média: 9 (50%). Número de frases com dez palavras (ou mais) acima da média: 4 (22%). Número de verbos predicados em todas as orações: 44. Verbo to be, "ser": 19 (43%)

Verbos ativos: 17 (38,6%) Verbos transitivos: 13 (29,5%)

Verbos intransitivos: 4 (9,1%) Verbos passivos: 8 (18,4%)

Frase 1 2 3 4 5 6 78 9 10 11 12 13 14 I5 16 17 18 Classe gramatical Cx Cx Cx CC Cx Cp Cx S S S Cp Cp Cp Cp

S Cx CCS Cp Modelo N° de palavras 14 27 37 25 29 14 35 15 14 9 17 15 14 12 11 28 13 8

64 De acordo com o original em inglês — NT.

650

ESTILO No de monossílabos 13 20 22 18 20 8 24 13 10 7 14 13 10 10 7 22 88

247 (73%) das 337 palavras são monossilábicas (não há nenhuma frase em que a maioria das palavras não seja monossilábica) Construções divididas: 1, 2, 3, 4, 5, 7, 9, 15

Paralelismo e anáfora: 12, 13 € I6 (a 1з é uma emenda de vírgula?) Elipse: 4, 14 e 17 Palavras repetidas: (4) muito valioso e importante; (7) importância e interesse extraordinário; (Is) maior importância e interesse; (1) perguntas; (6)

questionadas e examinadas; (13) [faz duas perguntas]; (14) [faz duas perguntas); (Is) perguntas; (16) essas perguntas; as respostas; (17) perguntas

e respostas.

Metáforas: (3) fantasmas e obstáculos pelo caminho; (s) pelos quais combatemos esses obstáculos tremendos [metáfora mista?]; (8) quartos próprios na casa; (9) pagar o aluguel; (11) quarto; (12) mobilado, decorado, compartilhado; (13) mobiliar, decorar; (14) dividi-lo.

ANÁLISE DO ESTILO COMO PERSUASÃO

NA "CARTA DA CADEIA DE BIRMINGHAM", DE RICHARD P. FULKERSONGS

No capitulo anterior, vimos a disposição da "Carta da cadeia de Birmingham",

de Martin Luther King. Aqui, Richard R. Fulkerson analisa o estilo dessa car-

ta. No início do artigo do qual este trecho foi extraido, Fulkerson analisou a estrutura e os argumentos da carta. Nesta seção, ele sinaliza algumas características estilisticas e mostra como o estilo contribui para a intenção persuasiva

de King. O texto da carta começa na p. 413.66

A imagem ética positiva não resulta apenas da conceituação do pú-

blico escolhido e das estratégias refutativas discutidas acima, mas também do estilo dos ensaios. Embora este não seja o lugar para uma análise descritiva completa da versatilidade estilistica de King em "Carta 65 Todas as contagens desta seção referem-se ao original em inglês — NT. 66 De "The Public Letter as a Rhetorical Form: Structure, Logic, and Style in King's Letter from Birmingham Jail", de Richard P. Fulkerson. Quarterly Journal of Speech 65 (abril de 7979): 121-

136. Este trecho está nas pp. 130-133. Reproduzido com a permissão da Speech Communication Association e do autor.

651

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO da cadeia de Birmingham", gostaria de destacar algumas características mais marcantes e especular sobre as maneiras como elas reforçam a persuasão. O estilo do ensaio é flexível e sofisticado, mas legível. É provável

que o público fique favoravelmente impressionado, sem sobrecarga. As manipulações estilísticas criam uma imagem de competência e sinceridade, atuando nas emoções do leitor. Como todas as escolhas retóricas, as decisões estilísticas têm vários efeitos. Mas, para esclarecer a relação entre escolha estilística e persuasão, podemos afirmar que uma escolha estilística eficaz funcionará em

uma ou mais das três maneiras a seguir: adaptação do estilo a fim de transmitir significado de forma mais eficaz para o público, conforme ficcionado pelo retórico, como a decisão de usar um sinônimo mais simples no lugar de um equivalente mais elaborado. Essa é a dimensão adaptativa do estilo. A escolha também pode atuar nas emoções do leitor de uma forma menos óbvia, como na decisão de usar aliteração de palavras. Essa é a dimensão afetiva do estilo, como espero esclarecer

a seguir. Por m, a escolha estilística pode ser e caz principalmente porque ajuda a realçar a imagem dos retóricos e, portanto, sua credibilidade. Essa é a dimensão ética do estilo. Essas três variedades de im-

pacto estilístico correspondem intimamente aos três modos clássicos de persuasão; a escolha adaptativa é uma técnica racional (logos), a escolha afetiva atua sobre as emoções (pathos) e a escolha ética é uma técnica para intensificar o ethos. Para ilustrar essas três dimensões persuasivas do estilo de King, podemos começar com uma característica óbvia e relativamente simples do ensaio. O leitor dificilmente deixará de notar a freqüência com que King se refere a outros homens famosos que ele espera que reconheçamos. Essas alusões são diretamente eficazes em seus apelos adaptativo e afetivo para públicos limitados e mais amplos e indiretamente eficazes na imagem que ajudam a criar. King coloca-se descaradamente em uma grande tradição de protesto que começa com Sócrates, mencionado três vezes, e estende-se pela história, principalmente cristã, dos primeiros profetas ao próprio Cristo, Paulo, Tomás de Aquino, Agostinho, Martinho Lutero e Bunyan. Além de tais alusões históricas, King também reforça seu argumento citando ou parafraseando Reinhold Niebuhr, Martin Buber e Paul Tillich, porta-vozes modernos de fé cristã e judaica e, portanto, referências presu-

fi

fi

652

ESTILO mivelmente adaptativas para os oito sacerdotes em um momento ou outro, bem como para praticamente todo o público de King. Ele até consegue citar um juiz não identificado da Suprema Corte dos Estados Unidos e T. S. Eliot. Esse homem, suspeito de ser forasteiro, agitador e

até mesmo criminoso, revela-se culto, sábio e famoso. Essa é, pelo menos, a impressão que tais alusões causam no discurso. Elas têm impacto

ético multiplicativo, uma vez que o público presumirá que elas são uma amostra cuidadosamente selecionada de um conjunto muito maior de informações. O estilo de King no ensaio também é marcado pelo uso extensivo de metáforas extraídas da tecnologia contemporânea. Dois padrões arquetípicos são dominantes: o de profundidade versus altura e o de escuridão versus claridade. O sistema atual e a segregação são repetidamente

caracterizados como baixos e sombrios, enquanto a esperança para o futuro envolve subir e vir para a luz. Os negros vivem em uma "sombra escura" e devem "sair das profundezas sombrias". Eles são "lançados no abismo da injustiça, onde experimentam a desolação do desespero corrosivo". A política deve ser elevada das "areias movediças" para a "rocha sólida" e "estamos abaixo do padrão de nosso meio"; os negros estão em

"masmorras sombrias"; no parágrafo final, enfático e otimista (citado abaixo), a América agora sofre sob as "nuvens sombrias do preconceito racial" na "neblina profunda da incompreensão", mas "num amanhã não muito distante as reluzentes estrelas do amor e da fraternidade brilharão".

Como Osborn argumentou: "Por causa de suas fortes associações

positivas e negativas com motivos de sobrevivência e de desenvolvimento, tais metáforas expressam julgamentos de valor intensos e, portanto, pode-se esperar que provoquem respostas de valor significativas". Tal "argumento com base em arquétipos" também satisfaz o desejo de simplificação do público, com sua orientação de dois valores. Outras metáforas vêm da tecnologia moderna. As nações da África

avançam "à velocidade de um jato" enquanto nós vamos em "passo de cágado"; e a igreja permanece "como uma luz traseira em relação a outras agências comunitárias, em vez de um farol levando os homens a

níveis mais elevados de justiça". A igreja agora é apenas um "termômetro" registrando a opinião popular em vez do que era, "um termostato que transformava os costumes da sociedade".

653

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO As metáforas especificamente médicas unem as imagens tecnológicas à metáfora arquetípica da doença e da saúde. A segregação é uma

doença e depois um furúnculo que deve ser exposta ao Sol curador. O argumento liberal para esperar "tem sido uma talidomida tranqüilizante, aliviando o estresse emocional por um momento, apenas para dar à luz uma criança malformada, filha da frustração". Alguns brancos

perceberam a necessidade de "antídotos" para a segregação, mas outros

"permaneceram em silêncio com a proteção anestésica dos vitrais de suas igrejas". Ao todo, conto setenta e duas metáforas, incluindo formas

explícitas e suprimidas. Quase nenhuma é apresentada por meio de clichês (fórmulas verbais comuns) e elas compartilham várias funções

estilísticas. No nível adaptativo, elas são memoráveis por sua engenhosidade e ajudam a tornar vividamente concreto um argumento filosófico abstrato. No nível afetivo, as metáforas arquetípicas relacionam-se a impulsos fundamentais em todos nós e, assim, fortalecem a mensagem indiretamente. Por fim, como todas as escolhas retóricas, a decisão

estilística de usar metáforas também influencia na imagem de King. As referências arquetípicas criam a imagem de um homem sincero, de sentimentos profundos, que é fundamentalmente igual ao leitor e que tem confiança em seu próprio julgamento moral e na inevitabilidade de

um futuro melhor. As imagens tecnológicas ajudam a construir uma identificação entre King e seus leitores; tanto o orador quanto o público habitam o mesmo mundo de aviões a jato, termômetros e drogas maravilhosas, um mundo de mudanças rápidas em que apenas um elemento, a condição dos negros, não acompanhou o progresso. Essa mesma identidade de retórico e leitor é reforçada também por uma série de escolhas estilísticas que, tomadas em conjunto, constituem o tom conciliador que caracteriza o ensaio e serve para unir uma variedade de outros tons. Da saudação em diante, King não pretende criticar ou menosprezar, mas apenas explicar com paciência e tristeza àqueles que (ainda) não vêem a luz da verdade. Ao longo do ensaio, King pode se mostrar justo, triste, desapontado, irônico, sentido de ter que fazer algumas críticas inevitáveis, mas nunca zangado ou desesperado. Ele quase chegou "à lamentável conclusão de que o grande obstáculo que o negro enfrenta em seu caminho para a liberdade não

é o membro do Conselho dos Cidadãos Brancos ou da Ku Klux Klan, mas o branco moderado": quase, mas não chegou. E ele elogia sua au-

654

ESTILO

diência clerical por ouvir atentamente seus pontos de vista. Seu ensaio, portanto, atende à demanda de Carl Rogers, de que se deve primeiro ouvir uma posição e ser capaz de repeti-la com compreensão e esclarecimento para que a verdadeira comunicação possa ocorrer. Ao longo do ensaio, King mostra seu respeito pelo leitor. Ele sabe que seu público clerical é composto de homens sinceros e devotos, homens que compartilham seus valores religiosos básicos e a quem ele pode chamar de "Meus prezados colegas sacerdotes" e "Meus irmãos cristãos". King até elogia alguns pelo nome, por seus próprios esforços (limitados) para promover a integração. Qualquer crítica a esses homens vem com pesar. Repetem-se ao longo do ensaio frases como "devo dizer" e "sinto-me forçado a mencionar". Tal postura estilística o engrandece, assim como seus destinatários, fortalecendo a imagem positiva que ele deseja: este

escritor não é um criador de problemas beligerante, mas um ser humano sincero e compreensivo, obrigado a expressar sua opinião pela

preocupação com posições equivocadas. A identificação com o público e o tom conciliador são criados posteriormente por um dos elementos estilísticos mais sutis da "Carta": o uso de pronomes pessoais. Visto que a "Carta" é uma apologia profundamente pessoal, não surpreende que o pronome eu ocorra com regularidade: 139 vezes para ser exato, 100 vezes como sujeito de uma oração principal. Da mesma forma, King geralmente se dirige diretamente ao seu público: ao reformular seus argumentos ("os senhores afirmam"), ao pedir compreensão ("espero que os senhores consigam perceber"), em discurso direto ("cada um dos senhores já assumiu posições") e em apelo pessoal ("peço-lhes que me perdoem". "Espero que esta carta os encontre fortes em sua fé"). Existem quarenta usos de os senhores para se

referir aos sacerdotes, sem mencionar outros usos genéricos da palavra,

que também carregam conotações pessoais. O efeito final é o de infor-

malidade, bem como de comprometimento pessoal por conta do eu.

Mais sutil ainda é a manipulação de King de pronomes ambíguos na primeira pessoa do plural. Freqüentemente, nós e nosso referem-se claramente a alguns ou todos os manifestantes de Birmingham: Vários meses atrás, a afiliada aqui [...] pediu que nos preparássemos [...]. Consentimos prontamente". Em outros lugares, o uso de nós é mais geral, como em: "Não podemos mais conviver com a idéia estreita e

provinciana do 'agitador vindo de fora"'. No entanto, freqüentemente

655

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO um nós ou nosso parece referir-se aos manifestantes, mas também pode incluir o público, reforçando os freqüentes discursos diretos ao reunir

King e seus opositores em uma única perspectiva. Considere esta frase: "Tentei equilibrar-me entre essas duas forças, dizendo que não devemos

imitar nem o 'não fazer nada' dos complacentes nem o ódio e o desespero dos nacionalistas negros". Nós aqui, a princípio, parece referir-se

a "nós, os manifestantes moderados", mas pode igualmente significar

"nós que reconhecemos o problema e queremos vê-lo resolvido". Nós, todos nós, os senhores sacerdotes, bem como meus seguidores, podemos

tomar esse caminho do meio. A união é sutil, mas é imposta ao leitor

(pelo menos subconscientemente) pela escolha de pronomes de King.

Há um movimento semelhante de "eu-vocês"para nós no parágrafo final do ensaio, em conjunto com imagens arquetípicas desenvolvidas: Espero que esta carta os encontre fortes em sua fé. Também espero que as cir-

cunstâncias logo tornem possível que eu me encontre com cada um dos senhores, não como líder integracionista ou dos direitos civis, mas como colega de

sacerdócio e irmão cristão. Esperemos que as nuvens sombrias do preconceito racial logo se afastem e a neblina profunda da incompreensão se disperse de

nossas comunidades mergulhadas no medo, e que num amanhã não muito distante as reluzentes estrelas do amor e da fraternidade venham a brilhar sobre nossa grande nação com toda a sua cintilante beleza [grifo meu].

Nas duas primeiras frases, a separação atual entre eu e você é declarada e reforçada pela conjugação dos verbos, mas após o conciliador "colega de sacerdócio", na segunda frase, os dois grupos se fundem em uma visão de unidade futura em "nossas comunidades" e "nossa grande nação" sob a cintilante beleza das estrelas altas e brilhantes. O estilo de King na "Carta", como Larson observou, é caracterizado pela variedade. Isso se mostra nas alusões e metáforas já discutidas e na gama de tons unidos pela postura conciliatória dominante, mas em nenhum lugar é mais óbvio do que nas estruturas sintáticas do ensaio. O texto original publicado da "Carta" de King consistia em 48 parágrafos, 325 frases e 7.110 palavras, com uma frase média de 22 pala-

vras e um parágrafo médio de quase 7 frases de 149 palavras. A frase média, não tão longa quanto a da prosa intelectual americana padrão, é consequentemente apropriada para o grande público de King. Mas

656

ESTILO tais estatísticas mascaram a variedade sintática de King. Das 325 frases,

muitas são curtas: 62 têm 10 palavras ou menos. Algumas são aforísticas, como: "Estamos presos a uma rede inescapável de mutualidade,

atados às vestes comuns do destino. O que afeta alguém diretamente afeta a todos de forma indireta". Assim, partes do ensaio são muito fáceis de ler e citar. Por outro lado, 18 frases têm mais de so palavras

e 2 têm mais de 100 palavras. Não conheço nenhuma outra prosa pú-

blica moderna que inclua frases de tal extensão. Embora alguns leitores possam tropeçar nessas frases, minha impressão é que, de modo geral,

o estilo é claro, vívido e relativamente fácil de ler, mas sem nenhum indício de condescendência. As variações extremas no comprimento da frase, bem como a variedade semelhante na construção da oração e nos níveis de formalidade, parecem funcionar principalmente no nível ético. Ou seja, elas apresentam aos leitores um retórico mestre na manipulação da linguagem. A única característica sintática comum dentro da variação é o paralelismo elaborado. Nele, como nas metáforas, é fácil ouvir as cadências do evangelista, outra dimensão da autodramatização de King através do estilo. Às vezes, o paralelismo de King é rígido e aforístico, como em: "A compreensão superficial das pessoas de boa vontade é mais frustrante do que a incompreensão absoluta daquelas de má vontade", ou: "O que afeta alguém diretamente afeta a todos de forma indireta". Mais

freqüentemente, porém, é difuso e rítmico: "Digo isso como um ministro do evangelho que ama a Igreja, que se nutriu no seu peito, que tem sido sustentado por suas bênçãos espirituais e que permanecerá fiel a ela

enquanto a corda da vida continuar se esticando". Ou: Quase cheguei à lamentável conclusão de que o grande obstáculo que o ne-

gro enfrenta em seu caminho para a liberdade não é o membro do Conselho

dos Cidadãos Brancos ou da Ku Klux Klan, mas o branco moderado, mais devotado à "ordem" do que à justiça; que prefere uma paz negativa, que é a ausência de tensão, a uma paz positiva, que consiste na presença da justiça;

que constantemente afirma: "Concordo com você em relação ao seu objetivo, mas não posso concordar com seus métodos de ação direta"; que acredita paternalisticamente ser capaz de estabelecer a agenda para a liberdade de outro

homem; que vive segundo um conceito mítico de tempo e que constantemente

aconselha o negro a esperar por um "momento mais conveniente".

657

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Normalmente, esse paralelismo continua em várias frases: Elas abandonaram suas congregações seguras e caminharam junto conosco

pelas ruas de Albany, Geórgia. Atravessaram as rodovias do Sul em tortuosas viagens pela liberdade. Sim, elas foram para a cadeia conosco. Algumas foram desligadas de suas igrejas, perderam o apoio de seus bispos e colegas pastores. Mas agiram na fé de que o certo derrotado é mais forte do que o mal triunfante.

Ao todo, conto 15 ocorrências de paralelismo contínuo, envolvendo mais de 6 frases, e um (discutido abaixo), uma única frase de mais de

300 palavras. Os efeitos de tal paralelismo devem ser totalmente conjecturais, mas

é difícil imaginar que possam estar no domínio adotivo. Ou seja, parece não haver razão para pensar que a sintaxe paralela seja mais clara

ou fácil de acompanhar do que outras estruturas sintáticas. Por outro lado, os ritmos e o equilíbrio criados pelo paralelismo, especialmente

quando uma série de construções paralelas é usada para construir um

clímax, provavelmente têm um impacto afetivo, também no discurso oral, mas em menor grau. O principal efeito é ético, retratando o retó-

rico como um homem que consegue equilibrar vários pontos de vista e que tem total controle de suas idéias.

O feito estilístico mais impressionante da "Carta" é sua frase mais

longa. A forma serve para enfatizar um conteúdo único, já que este é o

único lugar do ensaio em que o mal da segregação, ao invés da necessidade de protesto, é delineado. Por ser um exemplo perfeito das características sintáticas e metafóricas do ensaio, cito-o na íntegra. Ocorre

na refutação do argumento de que agora não é o momento adequado para protestar. Ele abre, como muitas das frases, com uma conjunção: Mas quando você viu turbas perversas lincharem à vontade suas mães e seus pais e estrangularem seus irmãos e irmãs por puro capricho; quando viu po-

liciais tomados pelo ódio ofenderem, baterem e até matarem seus irmãos e irmãs negros; [...] (Para a continuação desta longa frase periódica, consulte o parágrafo 14 da "Carta" de King, reproduzida na p. 413 deste texto) [..]) então você vai compreender por que achamos difícil esperar.

Esta frase periódica impressionante de 331 palavras destaca-se pelo contraste com a frase anterior, de 19 palavras, e as frases seguintes, de

658

ESTILO 33, II, 13 e 6 palavras. Suas nove principais orações subordinadas são

dirigidas diretamente ao público com "quando você" e compreendem um catálogo elaborado, frequentemente com metáfora, das injustiças sofridas diariamente pelo negro na América. A frase chega ao clímax depois

que vários detalhes são apresentados, apenas para terminar com a única

oração principal de um discurso direto magnificamente compreendido: "[..] então você vai compreender por que achamos difícil esperar". Aqui,

os pronomes não criam união: você claramente não é nós. É apropriado

que essa única acusação ao racismo americano, o único ponto do ensaio

em que o pathos é usado como modo persuasivo principal, seja a frase mais longa, mas também é apropriado que não seja dominante, pois o assunto do ensaio não é a injustiça racial, que, exceto aqui, é um fato.

659

CAPÍTULO V

Os progymnasmata

Um dos çãométodos retóricadeclássica ensino foram mais os infuentes progymnasmata. que surgiram Esse termo da signitradi ficava uma sequência gradativa de atribuições retóricas que os alunos

eram solicitados a realizar à medida que se tornavam mais maduros e experientes. Embora essas sequências de atribuições supostamente façam parte da formação retórica desde o século Iv a.C., os dois conjun-

tos mais famosos de progymnasmata foram o de Hermógenes de Tarso, do século I d.C., e o de Aftônio de Antioquia, de cerca de 400 d.C. Essas sequências, em traduções latinas, formaram a base da maioria dos

treinamentos retóricos, da Era Patrística ao Renascimento.

Os progymnasmata da retórica clássica continham quatorze atribuições classificadas de acordo com o grau de complexidade, as crescentes

demandas cognitivas e a crescente gama de conhecimento cultural que

exigem. A lista de Aftônio inclui os seguintes itens: 1. Fábula ou recontagem de um conto popular. 2. Narrativa, de ficção ou não-ficção.

3. Creia ou relato: história baseada no aumento de uma declaração ou ato

famoso. 4. Provérbio: desenvolvimento do assunto, argumentando a favor ou contra

alguma máxima ou adágio. 5. Refutação do ponto persuasivo de uma narrativa.

661

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 6. Confirmação do ponto persuasivo de uma narrativa.

7. Lugar-comum: desenvolvimento das características morais de alguma

virtude ou defeito, freqüentemente conforme exemplificado em algum

conselho comum. 8. Encômio ou louvor: exaltação das virtudes de alguma pessoa ou coisa.

9. Invectiva: censura de alguma pessoa ou coisa má.

10. Comparação de duas pessoas ou coisas, com base em suas qualidades e defeitos. 11. Personificação: caracterização de alguma pessoa fictícia pelo uso de lin-

guagem apropriada. 12. Descrição: criação de representações visuais de um assunto.

13. Argumentação: justificativa de uma tese sobre alguma questão geral,

como "a vida na cidade é melhor do que a vida no campo?".

14. Legislação: argumentação a favor ou contra o benefício de uma lei.

Os progymnasmata nesta lista baseiam-se no programa plurianual de educação gramatical e retórica que formava o currículo clássico. As primeiras atribuições eram conduzidas pelo grammaticus, o professor de linguagem básica para crianças pequenas, e só as atribuições posteriores eram supervisionadas pelo professor de retórica mais avançado. Presumia-se que os alunos precisavam de alguns anos para desenvolver habilidades lingüísticas e retóricas. Como os cursos contemporâneos de redação devem ser compac-

tados em um tempo muito mais curto, a sequência de tarefas aqui apresentadas baseia-se em elementos selecionados da sequência clás-

sica original.

UMA SEQUÊNCIA DE ATRIBUIÇÕES I. Narrativa. De acordo com Aftônio, as narrativas são ficcionais, históricas ou políticas. Todas as narrativas contêm alguma representação dos seguintes elementos: a pessoa ou pessoas que agiram, a ação realizada, a hora, o lugar, a maneira e a causa. Uma boa narrativa exibe as virtudes da clareza, concisão, persuasão e pureza da linguagem. Eis algumas atribuições narrativas para escolher: a. O início de uma amizade ou relacionamento importante.

662

OS PROGYMNASMATA b. Os eventos que levaram ao interesse por uma determinada carreira.

c. A história de uma importante jornada. d. Um evento observado que mudou você. e. Uma ocorrência irônica durante tempos de guerra. f. Uma experiência estranha de um de seus pais.

g. As úlcimas horas de um indivíduo famoso que teve um m prematuro. h. Um momento dramático na história política recente.

2. Refutação ou confirmação. A refutação é a contestação de alguma

afirmação, mas Aftônio diz que o escritor deve ter cuidado de não con-

testar nada que seja factual, nem se voltar para algo manifestamente

impossível. A estrutura usual de uma refutação é primeiro apresentar a afirmação falsa, depois demonstrar por que ela é falsa: por ser pouco clara, improvável, impossível, ilógica, inadequada ou impraticável. Uma confirmação comprova o ponto persuasivo de uma narrativa.

O escritor deve primeiro apresentar claramente a opinião e, em seguida, enfatizar o bom caráter daqueles que a sustentam. A opinião, então, é apoiada por ser considerada clara, provável, possível, lógica, adequada e prática. Eis algumas opiniões para refutar ou confirmar: a. Tirar uma folga da escola antes da faculdade é uma boa idéia. b. As mulheres são mais morais do que os homens.

c. A Guerra do Golfo baseou-se em uma política externa imoral.

d. A mensalidade nesta faculdade é muito alta. e. Habilidades de escrita são necessárias para conseguir um bom emprego.

f. Não se deve permitir que os jovens tenham carteira de motorista até que concluam o Ensino Médio. g. O cigarro deveria ser ilegal.

h. A maconha deve ser prescrita para uso medicinal.

3. Lugar-comum. Expansão das características morais de alguma virtude ou defeito, freqüentemente conforme exemplificado em algum conselho comum. O escritor deve buscar, por meio de seu conhecimento e leitura, exemplos que ampliem e ilustrem as opiniões gerais, respaldando-as ou exibindo seus preceitos. Esta é uma tarefa típica do mundo grego e romano, pois pressupõe um acervo considerável de conhecimento cultu-

ral. Eis alguns lugares-comuns que podem ser desenvolvidos:

fi

663

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO a. Um grama de ação equivale a uma tonelada de teoria.

b. Sempre admiramos aquilo que não entendemos.

c. Um julgamento frio vale mil conselhos apressados. d. A ambição é a última enfermidade dos espíritos nobres.

e. A nação que esquece seus defensores também será esquecida.

f. O poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente.

g. Pau que nasce torto morre torto. h. A caneta é mais poderosa do que a espada.

4. Elogio ou crítica. Exaltação das virtudes ou deficiências de alguma pessoa ou coisa. O encômio, ou louvor, descreve e celebra as excelências inerentes a alguém ou algo, enquanto a invectiva, ou crítica, expóe seus

males inerentes. Aftônio diz que tanto o elogio quanto a censura podem abranger uma ampla variedade de assuntos, como pessoas, coisas, tempos, lugares e até mesmo plantas, mas a maioria dos louvores ou críticas concentra-se nas pessoas e em seus atos. Depois de uma introdução, o encômio ou invectiva fornece um pano de fundo histórico conforme necessário e, em seguida, detalha o elogio ou a crítica em relação às ações do sujeito, já que elas revelam sua alma, corpo e fortuna. Eis uma variedade de assuntos específicos que podem ser facilmente usados para elogio ou crítica: a. As posições públicas de Malcolm x ou Booker T. Washington sobre questões raciais.

b. A liderança de Benedict Arnold ou Erwin Rommel.

c. A in uência social de Phyllis Schla y ou Madonna.

d. A ética de Hillary Rodham Clinton. e. A carreira judicial de Robert Bork.

f. As teorias jurídicas de Catherine MacKinnon. g. As execuções de Sacco e Vanzetti ou dos Rosenberg.

h. Ações recentes do conselho de administração de sua faculdade.

i. O desempenho parental de sua mãe ou seu pai.

j. O desempenho político de seu senador ou deputado.

s. Comparação. Contraste de duas pessoas ou coisas, explorando suas qualidades e defeitos relacionados entre si. Ao colocar dois assun-

fl

fl

664

OS PROGYMNASMATA tos iguais ou desiguais lado a lado, podemos saber muito sobre eles.

Aftônio diz que a comparação é geralmente um encômio duplo ou um

encômio unido com uma invectiva, mas ambos os elementos recebem força extra porque são conjugados. É importante não colocar um todo

próximo a um todo, mas dividir a comparação de modo que elementos semelhantes de cada parte do assunto sejam colocados lado a lado: infância com infância, aparência física com aparência física e assim por

diante. O resultado da comparação será um melhor entendimento de ambos os assuntos, e, normalmente, o leitor também passará a admirar

ou desprezar um mais do que do outro. Eis alguns possíveis assuntos

para comparação: a. Bill Clinton e Newt Gingrich. b. David Letterman e Jay Leno. c. Juíza Sandra, Day o'Connor e juíza Ruth Bader Ginsberg.

d. Ani di Franco e Barbra Streisand. e. MTV e VHI.

f. Automóveis japoneses e automóveis nacionais. g. Escrever e falar.

h. Direito e negócios como carreira.

6. Descrição. Esta tarefa foi projetada para trazer o assunto à vista, criando representações nítidas. As descrições podem ser organizadas espacialmente (de cima para baixo, da cabeça aos pés, lado a lado) ou cronologicamente (do começo ao fim, do primeiro ao último, do pas-

sado ao futuro) e por meio de descrições de contexto e estrutura interna. Aftônio recomenda um estilo relaxado e natural para a descrição que representa fielmente o que está sendo descrito. Eis alguns possíveis assuntos para descrição: a. Um prisioneiro prestes a ser executado por injeção letal.

b. Um grupo de estudantes furiosos em um bar de Fort Lauderdale.

c. Uma moradora de rua empurrando um carrinho de compras. d. Um acidente automobilístico. e. O maestro de uma orquestra jovem.

f. Pais deixando o filho pela primeira vez na faculdade.

665

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO g. Uma pessoa que se encaixa perfeitamente em um estereótipo.

h. Uma pessoa com uma doença grave.

7. Argumentação. Na retórica clássica, a atribuição do argumento não se referia a um assunto específico, mas à vida em geral. Devemos criar e justificar uma tese sobre alguma questão universal, seja política

ou teórica. Como as atribuições anteriores orientadas por tese, esta se

baseia em questões de legalidade, justiça, conveniência e praticabili-

dade, mas ao contrário de atribuições anteriores, a argumentação deve levar em consideração as alegações do outro lado e especificamente responder às antíteses da oposição com soluções que as levem a sério. Eis

alguns assuntos clássicos e modernos para argumentação: a. A vida na cidade é melhor do que a vida no campo? b. As pessoas devem se casar ou viver juntas?

c. Um aluno deve dedurar outro que ele vê colando? d. Os salários dos cEos são muito altos nas empresas americanas?

e. A clonagem humana é antinatural? f. Os cartões de crédito são uma bênção ou uma maldição? g. Todos os americanos deveriam saber duas línguas?

h. Os OVNIs estão abduzindo seres humanos?

8. Legislação. Esta é a tarefa final dos progymnasmata, utilizando as

habilidades retóricas aprendidas em todo o trabalho anterior. Aqui, o

aluno deve argumentar a favor ou contra a aprovação de uma lei. Os assuntos são mais específicos e pragmáticos do que os assuntos da ar-

gumentação. Visto que a aprovação de uma lei sempre envolve questões reais e práticas ou ação social e política, a oposição em uma atribuição

de legislação não deve apenas ser levada em consideração, mas deve ser refutada e derrotada. A lei em questão pode ser defendida ou acusada, e Aftônio mais uma vez aconselha o uso de fato, ação, constitucionalidade, justiça, conveniência e viabilidade. a. O vale-refeição deve ser descontinuado?

b. Deve ser aprovada uma lei de capacete para motociclistas?

c. A Emenda de Direitos Iguais ainda é necessária? d. Os cigarros devem ser considerados como drogas?

666

OS PROGYMNASMATA e. Deveria haver alistamento feminino no exército?

f. Deve haver limites de mandato para senadores e deputados? g. O orçamento federal deve ser equilibrado?

h. A maconha deve ser legalizada?

667

CAPÍTULO VI

Pesquisa sobre retórica

A hi século vacia do pisa quano do sulo xix. Durante a maior parte desse tempo, a retórica foi a disciplina dominante nas escolas, com alguns dos personagens mais famosos da história envolvidos em seu ensino ou prática. Em razão dessa longa e respeitável tradição, seria presunção julgar possível apresentar uma pesquisa histórica satisfatória, que dirá razoável, em algumas dezenas de páginas. O artigo que R. C. Jebb escreveu para a nona edição da Enciclopédia Britânica foi dedicado quase inteiramente a Aristóteles. Devido ao caráter monumen-

tal da tarefa, a maioria dos historiadores da retórica restringiu-se sensatamente a retóricos individuais ou períodos limitados. A bibliografia anexada a esta pesquisa direciona a atenção do estudante para algumas

das melhores dessas histórias limitadas, mas, até o momento, ninguém tentou escrever uma história da retórica na escala de History of Criticism

and Literary Taste in Europe, de George Saintsbury, ou mesmo de A History of Modern Criticism (1750-1950), de René Wellek. Apesar da impossibilidade de apresentar um levantamento adequado

da retórica em algumas páginas, queremos que o estudante conheça pelo menos algumas figuras-chave e alguns desenvolvimentos significativos da retórica. Ocasionalmente, autores e textos retóricos serão mencionados, não por seu valor ou influência, mas por sua importância histórica (um trabalho pioneiro, por exemplo) ou representatividade.

669

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

RETÓRICA CLÁSSICA A "arte" ou "ciência" de qualquer disciplina é quase sempre formulada indutivamente a partir de um estudo da antiga prática dessa disciplina. Sem dúvida, isso vale também para as artes verbais: gramática, lógica, poética e retórica. No caso dessas artes da linguagem, a codificação de princípios só ocorreu vários séculos depois que a prática se tornou uma característica visível de uma cultura nacional. Há ampla evidência na literatura grega existente de que a retórica, concebida como oratória persuasiva, figurava com destaque na sociedade helênica muitas centenas de anos antes da compilação do primeiro manual de preceitos retóricos. Basta notar a importância de discursos e debates nas epopéias homé-

ricas, nas peças dos dramaturgos gregos, nas histórias de Heródoto e

Tucídides, e nos tratados filosóficos de Hesíodo, para convencer-se de que o discurso persuasivo exerceu influência sobre os gregos antigos quase desde o início de sua civilização. Embora a prática de uma arte anteceda sua codificação, chega um

momento em que as pessoas sentem o desejo de derivar um conjunto de "regras" do estudo da prática aceita. A arte da retórica foi formulada

pela primeira vez na Sicília, durante o segundo quarto do século v a.C. Córax de Siracusa é comumente considerado o primeiro formulador

da arte da retórica. Certas mudanças políticas e sociais que ocorreram na época o levaram a estabelecer algum sistema retórico. Quando Trasíbulo, o tirano de Siracusa, foi deposto e estabeleceu-se uma forma de democracia, os cidadãos recém-emancipados lotaram os tribunais com litígios para recuperar propriedades que haviam sido confiscadas durante o reinado do déspota. A "arte"que Córax formulou foi concebida para ajudar os cidadãos comuns a pleitear suas reivindicações no tribunal. Como não havia nenhuma evidência documental para provar suas alegações, eles tinham que confiar no raciocínio inferencial e no tópico geral da probabilidade (eikos) para defender seus direitos de propriedade. Talvez a principal contribuição de Córax à arte da retórica tenha sido a fórmula proposta para as partes de um discurso judicial: proêmio, narração, argumentação (confirmação e refutação) e peroração, estrutura central de toda teoria retórica posterior. Existem referências em Platão, Aristóteles, Cícero e Quintiliano ao

papel que Córax e seu pupilo Tísias desempenharam na formulação

670

PESQUISA SOBRE RETÓRICA da teoria retórica, mas nenhum de seus compêndios sobreviveu. Tudo o que sabemos sobre Tísias, pelas referências esparsas a ele, é que sua teoria estava voltada exclusivamente para a retórica forense, que ele es-

creveu alguns discursos judiciais para outros proferirem e que ele pode

ter sido um dos professores de pelo menos dois oradores áticos, Lísias

e Isócrates.

Se os estudantes modernos já ouviram o nome de Górgias, provavelmente foi em conexão com o diálogo platônico que leva seu nome. Na história da retórica, porém, Górgias de Leontini destaca-se, em pri-

meiro lugar, por ter despertado o interesse pela teoria e pela prática oratória entre os atenienses. Como embaixador da Sicília em Atenas em 427 a.C., ele deslumbrou os atenienses com o brilhantismo de seu

discurso. Posteriormente, por vários anos, foi o professor e praticante de

oratória de maior sucesso em Atenas. Embora tenha sido um dos primeiros retóricos a reconhecer o poder de persuasão dos apelos emocionais, ele se distinguiu principalmente pela atenção que dava ao cultivo de um estilo ornamentado. Górgias dava grande ênfase ao valor das figuras de linguagem, especialmente a antítese e o paralelismo. Todos os retóricos posteriores que se concentraram no cultivo de um estilo de discurso altamente literário poderiam, por uma questão de conveniência, ser colocados na escola gorgiânica, mas é injusto culpar Górgias pelos excessos daqueles retóricos que estavam mais preocupados com floreios estilísticos do que com conteúdo. Se mais discursos de Górgias tivessem sobrevivido, poderíamos julgar com mais propriedade quanto do estilo afetado e artificial conhecido na Inglaterra do Renascimento como "eufuísmo" deve-se à sua influência. Górgias pode apresentar-se como o primeiro sofista bem-sucedido de Atenas, mas Isócrates compete com Aristóteles pelo título de o mais influente dos retóricos gregos. A julgar pela duração de seu reinado como renomado professor de retórica (ele viveu até os 98 anos) e pelo número de oradores habilidosos que vieram de sua escola, provavelmente seria seguro dizer que Isócrates foi o mais influente retórico grego entre seus contemporâneos. Aristóteles, com sua abordagem mais filosófica da retórica, ganha o título de influência duradoura. Devemos fazer uma observação sobre o termo sofista, uma vez que se aplica a homens como Górgias e Isócrates e figura nas visões de Platão e Aristóteles em relação à arte da retórica. Entre os atenienses do século

671

v a.C., o termo sofista não carregava conotações odiosas. Era um termo

bastante neutro aplicado a professores que lecionavam sobre o "novo aprendizado" em literatura, ciências, filosofia e, principalmente, orató-

ria. Os sofistas abriram pequenas escolas particulares, cobrando de seus

alunos uma taxa equivalente, em muitos casos, a aulas particulares. Essas escolas acabaram se tornando tão lucrativas que atraíram vários

charlatões para a profissão docente. Homens como esses mancharam a reputação dos sofistas, transformando "sofisma" em sinônimo de racio-

cínio enganoso. Mas homens como Isócrates eram altamente éticos, com ideais nobres e padrões de integridade intelectual incontestáveis. Já mencionamos que ele pode ter estudado com Tísias, e há indícios em algumas das primeiras histórias da retórica que ele também estudou com Górgias e Sócrates. Isócrates começou sua carreira pro ssional como logógrafo,

o termo grego para um redator contratado de discursos forenses (um começo que mais tarde ele quis esquecer). Por volta de 392 a.C., ele fun-

dou uma escola de oratória e, embora cobrasse taxas excepcionalmente

altas, logo teve mais alunos do que qualquer outro so sta, acumulando,

em vida, uma fortuna considerável com seus ensinamentos.

Embora cerca de vinte e um discursos e nove cartas de Isócrates tenham sobrevivido, a Arte da retórica, que ele teria compilado, se perdeu;

portanto, somos forçados a extrair sua teoria retórica de obras autobiográ cas como Antidose ou de suas obras educacionais como Contra os

so stas. Uma de suas principais contribuições para a retórica foi o desenvolvimento de uma prosa artística. Ele pegou o estilo um tanto articial de Górgias, temperou-o, re nou-o e tornou-o um veículo elegante

para o discurso escrito e falado. Enquanto as unidades estruturais que mais interessavam a Górgias eram a antítese e o paralelismo, Isócrates,

com seu grande interesse pelo ritmo da prosa, centrou sua atenção na sonoridade da frase periódica (Cícero certamente deve isso a ele). Seu

conceito de formação adequada para o orador ideal também teve uma

influência marcante em Cícero e Quintiliano. Ele pregava que o homem deve estar presente no processo persuasivo em sua totalidade, e

assim cabia ao aspirante a orador ser bem treinado nas artes liberais, estando firmemente fundamentado em bons hábitos morais. Em todos os seus discursos, Isócrates enfatizou os ideais gregos de liberdade e autonomia e, talvez tanto quanto qualquer outro humanista antigo,

fi

fi

fi

fi

672 fi

fi

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

PESQUISA SOBRE RETÓRICA preconizava a virtude grega suprema, sofrósina (que podemos traduzir como "autocontrole", por falta de um equivalente mais adequado). Apesar dos elevados ideais que Isócrates estabeleceu para seus alunos

e da eloquência exemplar de seus discursos, ele não conseguiu mitigar as suspeitas de Platão em relação à retórica. Devemos examinar breve-

mente o que Platão (por meio de seu porta-voz Sócrates) tinha a dizer sobre retórica, porque todas as coisas depreciativas que os homens dis-

seram sobre essa arte ao longo dos tempos têm suas raízes nas críticas

de Platão. Existem comentários sobre retórica espalhados por vários diálogos

de Platão, mas os dois diálogos nos quais ele concentrou seus ataques foram o Górgias e o Fedro. Ironicamente, no próprio ato de depreciar a retórica, Platão mostra-se um retórico magistral; e igualmente irônico é o fato de que algumas das acusações que ele fez contra os sofistas (dizendo, por exemplo, que eles corrompiam jovens e aceitavam honorários por seus ensinamentos) foram acusações feitas posteriormente contra o próprio Sócrates, como vemos na Apologia. Os estudantes que lêem A República costumam ficar chocados ao descobrir que Platão excluía os poetas de sua comunidade ideal. Basicamente, as objeções de Platão aos poetas são as mesmas que ele fazia aos professores de retórica. Por um lado, a retórica não podia ser considerada uma arte ver-

dadeira, porque não se apoiava em princípios universais. Além disso, os retóricos, como os poetas, estavam mais interessados em opiniões, em

aparências, até mesmo em mentiras, do que na verdade transcendental

que o filósofo buscava. Eles faziam o "pior raciocínio parecer o melhor";

eram meros encantadores da alma, interessados mais em deslumbrar o público do que em instruí-lo. Em suma, a retórica era uma forma de lisonja, como os cosméticos. Perto do nal do Fedro, Platão admite a possibilidade de uma verdadeira arte da retórica, mas só se o orador zesse um esforço para apren-

der a respeito do assunto sobre o qual iria falar; se buscasse de nições

essenciais de termos-chave no discurso; se aprendesse a fazer as divisões adequadas do tema; e se moldasse o discurso à natureza da audiência. Há muitos se aqui, e é evidente que Platão não acredita muito que os retóricos, na ânsia de agradar as multidões ignorantes, praticarão tal retórica. Certamente, um dos propósitos de Aristóteles ao compor a Retórica

era neutralizar a opinião negativa de seus antigos professores em rela-

fi

fi

fi

673

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO ção à arte da persuasão. Mesmo quando ainda era aluno da Academia

de Platão, ele inaugurou uma escola de retórica em competição com Isócrates. Não sabemos exatamente quando Aristóteles começou a escrever a Retórica, mas sabemos que seu tratado não foi publicado até o segundo período de residência em Atenas, por volta de 333 a.C., e que ele completou a Poética antes de escrever o livro Ii da Retórica. A composição tardia do livro II, que trata principalmente de estilo e disposição, sugere que o livro pode ter sido uma reconsideração, devido

ao interesse pelo estilo por parte de outras escolas de retórica. Mas devemos lembrar que Aristóteles dedicou vários capítulos da Poética à discussão da linguagem e do estilo, e acredita-se que Teodectea, uma de suas obras retóricas perdidas, tenha abordado em detalhe o assunto do livro Ir da Retórica. De qualquer maneira, é verdade que Aristóteles não se interessava tanto pelo estilo quanto pela argumentação, e esse interesse pela argumentação indica como ele tentou neutralizar a opinião negativa que muitos de seus contemporâneos tinham da retórica. Ao dedicar os dois primeiros livros da Retórica à descoberta de argumentos, Aristóteles procurou responder àqueles que acusavam os retó-

ricos de se preocuparem mais com as palavras do que com o conteúdo.

E ao extrair os princípios da prática da oratória, ele esperava mostrar que a retórica não era, como afirmou Platão, mera técnica, mas uma verdadeira arte, uma disciplina sistemática que podia ser ensinada para guiar os homens na adaptação dos meios a um fim. Com seu tratado filosófico, Aristóteles se tornou a fonte de todas as teorias retóricas posteriores. Como disse Lane Cooper: "[...] a retórica, não apenas de Cícero e Quintiliano, mas da Idade Média, do Renascimento e da atualidade, é, em seus melhores elementos, essencialmente aristotélica".

Talvez a chave para compreender a abordagem de Aristóteles à retórica seja o reconhecimento de que a probabilidade é a base da arte per-

suasiva. Os oradores costumavam basear seus argumentos em opiniões, no que as pessoas acreditavam ser verdade, e não no que era demonstrável e universalmente verdadeiro. Mas, enquanto Platão considerava essa

con ança um defeito da arte, Aristóteles a via como uma necessidade. A verdade detectável e veri cável caía no campo da ciência ou da ló-

gica, mas, ao lidar com assuntos humanos contingentes, as pessoas logo descobriram que as verdades universais nem sempre são verificáveis. Foi nessa área que a dialética e a retórica tiveram um papel a desempenhar.

fi

fi

674

PESQUISA SOBRE RETÓRICA "A retórica é a contraparte da dialética", disse Aristóteles na primeira

frase da Retórica. Curiosamente, a palavra grega que Aristóteles usou para as provas retóricas foi pisteis, cuja raiz é a palavra pistis, "crença".

A crença, observou Aristóteles, geralmente é o mais alto grau de certeza que podemos atingir ao lidar com os assuntos cotidianos dos seres

humanos. Esse reconhecimento da probabilidade como a essência da arte persuasiva está por trás da maioria das contribuições de Aristóteles à teoria retórica: os três modos de prova, o apelo à razão (logos), o apelo à

emoção (pathos) e o apelo ético (ethos); o entimema como o equivalente

retórico do silogismo, o exemplo como o equivalente retórico da indu-

ção lógica; os tópicos como um sistema de descoberta de argumentos

disponíveis; sua ênfase na audiência como o princípio de informação central do discurso persuasivo. Outra de suas contribuições foi o fim da ênfase no sucesso-a-qualquer-preço, que trouxera má reputação à retórica. Ao focar "nos meios de persuasão disponíveis", ele enfatizou o virtuosismo do esforço em detrimento do sucesso dos resultados. Essa ênfase também tornava a retórica uma atividade moralmente indiferente. Outra de suas contribuições singulares foi a análise, no livro II, das emoções ou paixões mais comuns. Um dos três modos de apelo que Aristóteles explora é o emocional, e ele procurava mostrar a seus alunos como evocar a resposta emocional apropriada. Esse método foi o início, primitivo, mas perspicaz, da psicologia. E tentadora a idéia de seguir todas as ramificações da teoria retórica de Aristóteles, mas esta breve pesquisa não permitirá uma excursão tão intrigante. Na verdade, este livro deve tanto à teoria de Aristóteles que pode ser considerado uma mera reformulação, com algumas modificações e ampliações, da Retórica. Tão brilhante é o tratado de Aristóteles (certamente, um dos maiores livros do mundo ocidental) que nos resta

lamentar a perda da mencionada obra Teodectea e de sua história da retórica, Gryllus, título dado em homenagem ao filho de Xenofonte.

Por muitos anos, a anônima Retorica ad Alexandrum foi considerada outro trabalho retórico de Aristóteles, mas os estudiosos de hoje estão

convencidos de que Aristóteles não é o autor dessa obra extensa, atri-

buindo-a a Anaxímenes de Lâmpsaco, contemporâneo mais velho do filósofo grego. Em todo caso, o texto nunca foi uma obra influente na história da retórica.

675

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Outro tratado retórico grego que merece menção aqui é um texto que passou a ostentar o título Sobre o estilo. A data e autoria desse tra-

balho são incertas. Por muito tempo, ele foi atribuído a Demétrio de Faleros, que governou Atenas de 317 a 307 a.C. e foi convidado por Ptolomeu Sóter para ajudar a conseguir livros para a grande biblioteca de Alexandria. Com base em evidências internas e externas, no entanto, W. Rhys Roberts, responsável por uma tradução para o inglês do livro para a Cambridge University Press, conclui que Demétrio de Faleros não escreveu o texto, escrito em algum momento do século 1 a.C. ou do século I d.C. O trabalho, que trata exclusivamente da divisão elocutio (estilo) da retórica, destaca-se por ser um dos primeiros a analisar os "tipos" de estilo. Enquanto a maior parte da retórica posterior abordava somente três tipos de estilo (o estilo elevado ou alto; o estilo elegante ou médio; e o estilo simples ou baixo), o autor desse texto apresenta um

quarto tipo: o estilo vigoroso. Ao longo da discussão, o foco está na escolha e disposição das palavras.

Até o final do século xv, pensava-se que a obra Rhetorica Ad Herennium teria sido escrita por Cícero. Ainda não se sabe se Cornifício é o autor desse texto, como alguns estudiosos modernos afirmam, mas o Ad Herennium, escrito provavelmente entre 86 e 82 a.C., distingue-se por ser a primeira obra latina existente sobre retórica e a abordagem mais antiga da prosa em latim. Além disso, como observa Harry Caplan, que traduziu o tratado para a Loeb Classical Library, o Ad Herennium apresenta "a mais antiga divisão existente dos tipos de estilo em três e o mais antigo estudo formal existente de figuras". Devemos dizer também que o tratado apresenta a abordagem mais completa de declamação e memória que temos em qualquer uma das retóricas clássicas sobreviventes. Embora praticamente desconhecido no mundo antigo, o Ad Herennium gozou de grande popularidade na Idade Média e no Renascimento. O professor T. W. Baldwin revela que se tratava do texto elementar básico no currículo da escola secundária inglesa quando a retórica teve seu grande renascimento durante a Era Tudor. Embora Cícero não tenha sido o autor de Ad Herennium, ele tem títulos suficientes em seu nome para garantir um lugar na história da retórica. Entre suas obras retóricas menores, escritas entre 84 e 45 a.C., estão De Inventione, De Optimo Genere Oratorum, Topica e De

676

PESQUISA SOBRE RETÓRICA Partitione Oratoria. Suas principais obras retóricas são De Oratore,

Brutus e Orator.

Não há espaço aqui para uma exposição dessas obras, mas algumas palavras gerais podem ser ditas sobre a contribuição de Cícero para

a retórica. Cícero era um orador habilidoso e também um estimado professor de retórica; alguns historiadores literários sustentam que suas

instruções eram eficazes mais pelo exemplo de suas orações e epístolas

(rhetorica utens) do que por seus tratados teóricos (retorica docens). Suas obras tiveram grande importância na mediação da controvérsia entre os

"asiáticos" (os expoentes do estilo pomposo e artificial) e os "áticos" (os expoentes do estilo simples e limpo). A principal contribuição de Cícero, no entanto, é a ampliação do escopo da retórica. Ao contrário de Aristóteles, que sustentava que a retórica não tinha um tema específico, Cícero achava que o orador perfeito precisava estar familiarizado com muitos assuntos. Para inventar argumentos, o orador perfeito deve ter uma ampla gama de conhecimentos. Conseqüentemente, no sistema ciceroniano, o estudo da retórica tornou-se um curso de artes liberais. Essa ampliação do escopo da retórica ajuda a explicar o apelo de Cícero aos humanistas ingleses e europeus em geral quando o estudo da retórica foi retomado durante o Renascimento.

Um retórico posterior, cujo nome é invariavelmente associado a Cícero, é Marco Fábio Quintiliano. Nascido na Espanha por volta de 35 d.C., Quintiliano acabou indo para Roma, onde, após concluir seus estudos, tornou-se um defensor bem-sucedido nos tribunais. Com o tempo, ele ficou tão conhecido que Vespasiano estabeleceu uma cadeira de retórica para ele em Roma. O prestígio dessa dotação imperial fez

dele a autoridade suprema em retórica, mesmo após sua morte, por volta de 96 d.C. Em 88 d.C., aproximadamente, ele se retirou do cargo de professor para escrever sua grande obra sobre a formação do orador, Instituição oratória. Aparentemente, havia somente alguns fragmentos disponíveis dessa obra na Idade Média, mas depois que um texto completo foi descoberto no mosteiro de St. Gall em 1416, o trabalho ganhou popularidade e estabeleceu-se firmemente na rede educacional

européia. Entre cerca de 1475 e 1600, mais de cem edições da obra foram publicadas.

Os doze livros da Instituição oratória estão divididos da seguinte forma: O livro I trata da educação preliminar necessária para um es-

677

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO tudo de retórica. O livro iI define a natureza, os objetivos e o escopo

da retórica. Os livros in-vII tratam da própria oratória, com ênfase na descoberta (inventio) e na disposição (dispositio) do conteúdo. Os livros VIII-X tratam do estilo (elocutio). O livro xI trata da memória (memoria)

e da declamação (pronuntiatio). O livro xII trata dos requisitos para um orador perfeito.

Como o assunto do livro 1 sugere, Quintiliano, como Cícero, consi-

derava o homem de amplo conhecimento como o candidato mais apto para um curso de retórica. Além disso, Quintiliano enfatizou algo a que os retóricos anteriores haviam aludido, mas sem entrar em detalhes. Tendo aceitado a definição de Catão, o Velho, do orador perfeito

como "um bom homem hábil na fala" (vir bonus dicendi peritus), o orador, ademais de fortalecer-se intelectualmente para seu ofício, deve fortalecer também seu caráter moral. Foi essa insistência no fortaleci-

mento intelectual e moral do aspirante a orador que fez de Cícero e

Quintiliano as duas influências clássicas mais poderosas na educação retórica da Inglaterra e dos Estados Unidos. O viés moral foi especialmente importante, porque do século xvII até a maior parte do século

XIX, os sistemas escolares inglês e americano foram dominados em grande parte por clérigos.

Embora a influência dos retóricos romanos tenha se tornado dominante no século 1 a.C., algumas obras gregas exerceram influência significativa no desenvolvimento da retórica. Dionísio de Halicarnasso, contemporâneo grego de Horácio, ensinou retórica em Roma de 30 a 8 a.C. Ele escreveu uma história e crítica monumental dos grandes oradores áticos e algumas pequenas obras retóricas voltadas, na maior parte, para um estudo do estilo de luminares gregos como Platão, Tucídides, Heródoto e Xenofonte. Mas a obra dele que mais influenciou (ou atormentou) os alunos foi um trabalho que leva o título de Sobre o arranjo das palavras, em que ele se concentra em um único aspecto do estilo retórico, a ordem das palavras. Embora reconhecesse que a expressão eloqüente envolve a devida consideração pela disposição e escolha de palavras, ele decidiu limitar-se ao estudo da disposição porque sentia que outros retóricos já haviam lidado adequadamente com a escolha. A contribuição particular de Dionísio foi conscientizar os alunos da beleza inerente das palavras e da possibilidade de produzir efeitos agradáveis, mesmo com palavras comuns, se elas fossem habilmente organizadas.

678

PESQUISA SOBRE RETÓRICA Hermógenes e Aftônio não exerceram tanta influência sobre seus contemporâneos quanto exerceram sobre os alunos europeus dos séculos xv e xvI. Ambos publicaram textos retóricos intitulados

Progymnasmata. Os progymnasmata foram os primeiros exercícios de escrita, os "temas", que os alunos tentavam abordar depois de aprender os preceitos retóricos elementares. Além de fornecer regras técni-

cas para a construção dessas formas menores de composição, os textos

forneciam ilustrações de cerca de uma dúzia de formas comuns. Esses

textos claramente faziam parte da tradição da "retórica de formulário", o tipo de retórica ensinada por modelos. Os Progymnasmata de Hermógenes e Aftônio tiveram um número surpreendente de edições, em versões gregas e latinas.

A menção de mais um texto grego encerrará esta análise das retóricas clássicas mais importantes, o famoso trabalho Do sublime, de

Longino. Hoje, Do sublime é, para a maioria dos alunos, um dos principais documentos da crítica literária, mas não devemos esquecer que essa obra foi escrita por um retórico (antes, por volta de 260 d.C., ele havia escrito Arte da retórica, agora perdida), contribuindo tanto para a retórica quanto para a crítica literária. "O objetivo do autor", diz W. Rhys Roberts, responsável por uma das traduções modernas para o inglês desse tratado, "é apresentar os fundamentos de um estilo nobre e impressionante". Três das cinco fontes do sublime que Longino discute dizem respeito ao estilo: o uso apropriado de figuras de linguagem (caps. 16-29); nobreza de dicção (caps. 30-38); e dignidade e elevação da ordem das palavras (caps. 39-40). Ao considerar o entusiasmo um recurso respeitável, Longino encoraja a exploração do apelo emocional

no processo persuasivo e, ao insistir que a sublimidade é "o eco de uma grande alma", apoia a tendência moralista da educação retórica posterior.

RETÓRICA DURANTE A IDADE MÉDIA Sob a égide de Adriano e dos Antoninos (117-80 d.C.), os professores de retórica alcançaram prestígio e imunidade que jamais teriam novamente. Esses sofistas do século i mancharam sua reputação porque acabaram abusando do poder que tinham, adulterando sua disciplina. O objetivo dos sofistas era surpreender o público, em vez de persu-

679

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

adi-lo. Para atingir esse objetivo, eles encorajavam os artifícios mais chamativos de estilo e declamação. As escolas de retórica desse período tinham dois currículos: o "sofístico", que designava o estudo acadêmico da retórica como uma arte; e o "político", que se preocupava com as aplicações práticas da arte. Mas, como a escola "sofística" gozava de maior prestígio, garantindo remunerações mais elevadas, a retórica desencaminhou-se. Sob a influência da sofística do século II, a retórica na Idade Média deixou de ser seguida como uma arte prática e tornou-se um exercício escolástico guiado pelos compêndios de retóricos medievais como Cassiodoro, Capella e Isidoro. Gramática, lógica e retórica constituíam o trivium, o curso de graduação de quatro anos que conduz ao grau de bacharel em artes. Música, aritmética, geometria e astronomia compunham o quadrivium, o curso de graduação de três anos que conduz ao grau de mestre em artes. A lógica escolástica ocupava uma posição decididamente superior no trivium. O domínio da retórica passou a ser o estudo da arte de escrever cartas (ars dictaminis) e de preparar e proferir sermões (artes praedicandi). É verdade que os alunos aprendiam duas formas de declamação escolástica, suasoriae, discursos sobre algum assunto histórico ou lendário, e controversiae, discursos sobre alguma questão jurídica clássica, mas essas declamações eram conduzidas de modo tão epidíctico ou cerimonial que o resultado de tal formação geralmente era um entertainer superficial e inteligente, em vez de um orador engenhoso no comando de todos os meios de persuasão disponíveis. Assim, a arte da retórica parou, se é que realmente não retrocedeu, apesar da posição de destaque que ocupava no currículo. Como Richard McKeon disse em seu ensaio "Retórica na Idade

Média" (Speculum, 1942): "Sim, se a retórica for definida em termos de um único assunto, como estilo, literatura ou discurso, ela não tem histórico na Idade Média". Embora Santo Agostinho (353-430 d.C.) não seja cronologicamente da Idade Média, podemos considerá-lo uma figura representativa no desenvolvimento da retórica durante o período medieval. Quem já leu Confissões sabe que, durante o período de sua "juventude inflamada", Agostinho foi aluno e, mais tarde, professor da retórica "pagã" derivada, em grande parte, do segundo sofista de Roma. Após sua conversão, Agostinho fez uma contribuição significativa à retórica no livro

680

PESQUISA SOBRE RETÓRICA IV de De Doctrina Christiana (426-27 d.C.). Agostinho interessava-se

pela retórica como meio de persuadir os cristãos a levar uma vida santa. Com esse único interesse, pode-se dizer que ele estreitou o campo da retórica, mas, ao rejeitar a preocupação dos sofistas com o estilo e os

outros elementos de exibição e retornar à retórica mais abrangente de Cícero, pode-se dizer que ele ampliou o domínio da retórica mais uma vez. Agostinho concentrou-se nos textos bíblicos e especialmente nas epístolas daquele artista retórico magistral, São Paulo. As análises agostinianas desses textos, no entanto, voltavam-se não tanto para a "mensagem",", mas para a habilidade retórica. De forma um tanto surpreendente, ele rejeitou a noção quintiliana de que o retórico deve ser

um homem moralmente bom. Agostinho concordava que a reputação

de uma vida virtuosa produzia um efeito persuasivo no público, mas, segundo ele, mesmo um pregador perverso pode induzir o público a

seguir Cristo se for hábil o suficiente na manipulação dos recursos de persuasão. A retórica de Agostinho lançou as bases para a retórica do sermão, o ramo de estudo conhecido hoje como homilética (ciência que receberia muita atenção durante a Renascença e a Reforma e ainda muitos anos depois). Nenhum dos retóricos clássicos, é claro, havia discutido a arte da pregação, mas as bases para tal arte residiam na variedade epidíctica da retórica. Kenneth Burke, no trabalho A Retoric of Motives (uma discussão

sobre Agostinho), assinalou que Agostinho havia reparado na função instrutiva da retórica. Diz Burke: "Uma vez que consideramos a

instrução como um objetivo da retórica, introduzimos um princípio

capaz de ampliar seu escopo além da persuasão, incluindo trabalhos sobre a teoria e a prática da exposição, descrição e comunicação em geral". Seguindo esse exemplo, alguns estudantes modernos de re-

tórica, como Donald C. Bryant, viram a possibilidade de adaptar a retórica clássica de modo a abranger pelo menos duas das quatro formas de discurso: argumentação e exposição. Na verdade, parece não haver razão para não desenvolvermos uma retórica da descrição e também uma retórica da narração. Como exemplo disso, Wayne C.

Booth, em seu livro The Rhetoric of Fiction (University of Chicago Press, 1961, 1983), fornece um excelente estudo da técnica retórica da ficção não-didática.

681

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

ALGUNS RETÓRICOS EUROPEUS Em relação à história da retórica no continente europeu após a Idade

Média, mencionaremos apenas alguns retóricos, limitando nossa atenção aos quatro ou cinco que tiveram uma in uência marcante no desenvolvimento da retórica na Inglaterra. O retórico mais in uente foi Erasmo. Embora esse ilustre estudioso tenha passado apenas cinco anos na Inglaterra (1509-14), ele estabeleceu o padrão para o currículo da escola secundária inglesa e para a formação retórica nas escolas. Por acaso, ele estava na Inglaterra bem na

época em que Dean Colet fundava a escola St. Paul e, a pedido de Colet, preparou vários livros didáticos. Entre eles estavam De Ratione Studii e De Duplici Copia Verborum ac Rerum. Originalmente publicados em 1512, ambos os textos tiveram um número surpreendente de edições

nos anos subseqüentes. (O De Copia, por exemplo, teve pelo menos cento e cinqüenta edições, apenas algumas, deve-se salientar, publicadas em editoras na Inglaterra). O De Ratione Studii é mais um tratado de pedagogia do que de retórica, mas é do interesse dos estudantes de retórica por suas observações incidentais sobre as artes da linguagem. Não é por meio do estudo incessante das regras que os alunos aprendem a escrever e a falar bem, afirma Erasmo, mas pelo discernimento na leitura e muita prática. Erasmo é um dos primeiros enunciadores do mais sensato de todos os preceitos sobre a escrita: "Escreva, escreva e escreva novamente". Ele também recomenda o exercício de manter um caderno de anotações; de transformar poesia em prosa e vice-versa; de apresentar o mesmo assunto em dois ou mais estilos; de provar uma proposição valendo-se de várias linhas diferentes de argumentação; e de traduzir do latim para o grego. O De Copia, que se tornou um livro de retórica bastante utilizado nas escolas Tudor, foi concebido para ajudar os alunos do Ensino Fundamental a adquirir elegância e variedade de expressão na composição latina. O texto baseia-se na tradicional distinção res-verba (literalmente, a coisa e as palavras; por extensão, conteúdo e forma). O primeiro

livro de De Copia mostrava ao aluno como usar os esquemas e tropos (elocutio) para ns de variação; o segundo livro o instruía no uso de tópicos (inventio) para o mesmo fim.

fl

fi

fl

682

PESQUISA SOBRE RETÓRICA A questão da copia tornou-se uma das principais preocupações da educação Tudor. A palavra latina copia significava literalmente "plenitude, abundância"; em um sentido mais específico, a expressão copia dicendi ou copia orationis significava "plenitude de expressão". Alcançamos

essa plenitude de expressão acumulando uma série de coisas a dizer sobre um assunto e sendo capazes de dizer a mesma coisa de várias maneiras. Portanto, a copia estava relacionada tanto à criatividade quanto à desenvoltura estilística. A título de ilustração, Erasmo, no capítulo 33

do livro I, apresenta cento e cinqüenta variações da frase "Tuae literae

me magnopere delectarunt" e duzentas variações de "Semper dum vi-

vam tui meminero". A única outra obra retórica de Erasmo que mencionaremos é seu texto sobre a escrita de cartas, Modus Conscribendi Epistolas, publicado

em 1522. Como vimos, escrever cartas era um dos exercícios retóricos

favoritos da Idade Média. Durante o Renascimento, caiu para uma posição inferior no currículo, mas ainda tinha importância. Para Erasmo,

as cartas tornaram-se a primeira forma completa de composição que o aluno escrevia depois de dominar as regras fundamentais da retórica.

Naquela época, em que não havia meios de comunicação e transporte

rápidos como os de hoje, os negócios diplomáticos e comerciais eram promovidos principalmente por meio de cartas. Conseqüentemente, o homem com habilidade em escrever cartas era tão procurado quanto o

homem com habilidade em oratória. E a quantidade de manuais para

escrever cartas, tanto em latim quanto em vernáculo, atesta a demanda

por esse aprendizado nos séculos xvI e xVII. Atualmente, também não

podemos negligenciar o estudo formal desse modo de discurso escrito. As cartas (cartas amistosas, cartas comerciais, cartas promocionais, cartas ao editor) constituem a principal forma de discurso escrito que muitos de nós produziremos ao terminar a escola. Há tanta retórica envolvida em alguns tipos de cartas (a "carta implorativa", por exemplo)

quanto na oratória de campanha mais elaborada. Junto com Erasmo, Juan Luis Vives (1492-1940) encontra-se na vanguarda dos estudiosos europeus que passaram apenas alguns anos na Inglaterra, mas exerceram uma influência no liceu inglês que perdurou por bem mais de um século. Nascido na Espanha (e, por isso, às vezes chamado de "segundo Quintiliano"), formado em Paris e Flandres, ele foi convidado pelo Cardeal Wolsey, em 1523, para a cátedra de retórica

683

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO em Oxford. O Rei Henrique vIi confiou a educação de sua filha Maria à tutela conjunta de Vives e Thomas Linacre. Vives tornou-se persona

non grata ao declarar-se contra o divórcio de Henrique vIII e sua com-

patriota, Catarina de Aragão, deixando a Inglaterra, em 1528, para nunca mais voltar.

Vives exerceu grande influência na retórica inglesa, não tanto em seus livros didáticos, mas em seu tratado sobre educação, pelo qual ajudou a estabelecer o padrão do currículo retórico. Ao contrário de Erasmo, ele não publicou nenhuma obra retórica durante sua estada na Inglaterra, e nenhum dos textos retóricos que escreveu mais tarde foi muito utilizado nas escolas. Vives publicou o De Disciplinis, seu

principal trabalho sobre educação, em Antuérpia, no ano de 1531, três anos após deixar a Inglaterra. Três obras sobre retórica seguiram-se logo depois: Rhetoricae, sive De Ratione Dicendi, Libri Tres (Lovaina, 1533); De Consultatione (Lovaina, 1533), um pequeno tratado sobre retórica que escreveu enquanto lecionava em Oxford; e De Conscribendis Epistolas (Basel, 1536), sua contribuição para a retórica da escrita de cartas. O De Ratione Dicendi e o De Consultatione serviram de base para

Timbers or Discoveries, de Ben Jonson, e é bastante provável que

Shakespeare também tenha tido contato com essas obras na escola.

Mas uma análise dos estatutos das várias escolas secundárias do período mostra que, onde os livros didáticos de Erasmo são freqüentemente recomendados no currículo, os livros didáticos de Vives raramente são

mencionados. Em seu monumental estudo das escolas Tudor, William

Shakespeare's Small Latine & Lesse Greeke, o professor T. W. Baldwin explica a importância de Erasmo alegando que ele foi o verdadeiro paladino da Renascença, enquanto homens como Vives e Colet pertenciam à Reforma Católica, em vez de à Renascença. Vives e Colet, afirmou ele, estavam mais interessados na reforma moral do que no polimento

literário. Três outros retóricos europeus que tiveram uma influência notável na retórica inglesa merecem uma breve menção aqui. O primeiro deles é Petrus Mosellanus ou, para usar seu sobrenome, Pierre Schade (1493-1524), professor alemão de grego na Universidade de Leipzig. Mosellanus publicou um texto retórico intitulado Tabulae de Schematibus et Tropis Petri Mosellani. Já em 1530, os meninos de Eton

684

PESQUISA SOBRE RETÓRICA usavam o texto de Mosellanus no final do Ensino Médio, e, durante a

primeira metade do século xVI, Mosellanus tornou-se o autor padrão sobre elocutio nas escolas secundárias inglesas.

Philippus Melanchthon ou Philip Schwartzerd (1497-1560), professor de literatura clássica em Wittenberg e colaborador próximo de Martinho Lutero, publicou três textos retóricos: De Rhetorica Libri Tres (Wittenberg, 1519); Institutiones Rhetoricae (Hagenow, 1521); e Elementorum Rhetorices Libri Duo (Wittenberg, 1531). Enquanto Mosellanus havia se concentrado no estilo, Melanchthon deu pouquíssima atenção aos esquemas e tropos, encaminhando os leitores, em busca de informações mais completas, a retóricos como Cícero, Quintiliano, Erasmo e Mosellanus; ele dedicou a maior parte de seu trabalho à inventio e à dispositio. Melanchthon tendia a relegar a invenção e a disposição ao campo da lógica, lançando as bases para a revolução que Ramée e Talaeus efetuariam mais tarde na retórica, no século xvI.

Epitome Troporum ac Schematum (Zurique, 1540), de Joannes Susenbrotus, é um amálgama de Mosellanus e Melanchthon. A obra, uma coletânea de 132 esquemas e tropos, teve uma impressão na Inglaterra em 1562 e, posteriormente, durante o resto do século XVI, substituiu Mosellanus como texto padrão da escola secundária para o ensino das figuras e serviu como modelo para o estudo vernacular posterior desses artifícios estilísticos.

RETÓRICA VERNACULAR INGLESA DO SÉCULO XVI Todas as obras retóricas mencionadas até agora nesta pesquisa foram escritas em grego ou latim, e a maioria das composições de alunos ingleses até a segunda década do século xvI era em latim. Com o Renascimento, que começou na Itália, espalhou-se pela França e acabou fazendo sentir sua influência na Inglaterra por meio do apostolado de humanistas como Roger Ascham, Sir John Cheke e Sir Thomas Elyot, houve uma renovação do interesse pela literatura pagá produzida pelos autores clássicos. Quando Aldo, em 1503, publicou as obras dos principais retóricos gregos, a retórica clássica teve uma importante participação. Como vimos, a causa da retórica foi auxiliada ainda pela direção que homens como Erasmo e Vives deram ao currículo das escolas

685

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO inglesas. Não demorou muito para que a retórica se tornasse a principal

disciplina das escolas secundárias e universidades Tudor. Embora a retórica ensinada nas escolas fosse basicamente aristotélica, a Retórica de Aristóteles nunca foi um livro acadêmico importante. Foram os retóricos latinos, especialmente Cícero, Quintiliano e o autor anônimo de Ad Herennium, que dominaram o ensino inicial de retórica nas escolas inglesas. À medida que o orgulho do povo inglês pelo status

e pelas conquistas da nação crescia, o orgulho de sua língua materna crescia junto, e era natural que os professores começassem a pensar em

escrever livros didáticos e em fazer com que seus alunos rezassem e

escrevessem no vernáculo. E comum classificar a retórica vernacular produzida durante a Renascença inglesa em três grupos principais: (1) os tradicionalistas:

grupo daqueles que ensinavam a retórica completa, com atenção às cinco partes: invenção, disposição, estilo, memória e declamação; (2)

os ramistas: grupo daqueles que atribuíam a invenção e a disposição

ao domínio da lógica e apenas o estilo e a declamação à retórica; (3) os figuristas: grupo daqueles cujo principal (senão único) interesse era o estudo dos esquemas e tropos. Na verdade, esses três grupos diferem mais em suas abordagens pedagógicas do que em sua concepção fundamental da arte da retórica. Os ramistas, por exemplo, acreditavam tão fortemente na importância da invenção e da disposição quanto os tradicionalistas, mas acreditavam que esses assuntos eram estudados de maneira mais apropriada no domínio da lógica. Os ramistas talvez não considerassem os esquemas e tropos tanto quanto os guristas, mas

muitas guras que estes estudaram sob o aspecto do estilo, aqueles es-

tudaram em conexão com os tópicos da invenção. Mesmo com a breve

exposição dos livros didáticos em vernáculo que se segue, o leitor deve ser capaz de determinar a qual desses três grupos os livros pertencem. Leonard Cox, professor de interpretação, ficou conhecido por ter

escrito o primeiro compêndio de retórica em inglês, Arte or Crafte of Rhetoryke (1530). Talvez seja apropriado que esta primeira retórica inglesa

seja da escola tradicionalista. F. 1. Carpenter, em uma edição moderna do texto de Cox, demonstra, de forma bastante convincente, que o texto baseou-se no primeiro livro de Melanchthon, Institutiones Rhetoricae, inclusive com tradução parcial desta obra. Como Melanchthon, Cox estava interessado principalmente na inventio.

fi

fi

686

PESQUISA SOBRE RETÓRICA Em Isso, Richard Sherry, diretor da Magdalen College School, pu-

blicou por meio da J. Day, A Treatise of Schemes and Tropes, também co-

nhecido como "o segundo livro sobre retórica em inglês". Certamente, trata-se do primeiro compêndio em inglês sobre os esquemas e tropos. Cinco anos depois, Sherry publicou uma edição bilíngüe (latim-inglês) do texto anterior, com o título A Treatise on Figures of Grammar and Rhetorike, onde aborda cerca de 120 figuras. Voltado para o mercado de escolas secundárias, o trabalho não teve saída, pois Mosellanus e Susenbrotus, na época, estavam arraigados demais no currículo para serem desalojados. Resultado: A Treatise of Schemes and Tropes teve apenas uma edição.

Embora os compiladores da retórica vernacular considerassem desanimadora a competição com os textos em latim, eles continuaram a produzi-los e, embora seus textos não tenham substituído inicialmente os textos clássicos nas escolas, a retórica inglesa acabou substituindo os textos mais antigos, se não em prestígio, ao menos em vendas. A primeira retórica vernacular a ganhar ampla aceitação foi The Art of Rhetorique (1553), de Thomas Wilson. G. H. Mair, que publicou uma bela edição moderna desse tratado, diz que Wilson foi um dos responsáveis de Cambridge "por moldar o curso do Renascimento na Inglaterra em termos pedagógicos, exercendo grande influência no desenvolvimento da prosa inglesa". O texto de Wilson é uma retórica "ciceroniana", no sentido de que trata das cinco partes, mas como observou Russell H. Wagner, talvez a principal autoridade moderna sobre Rhetorique, Wilson baseou algumas de suas doutrinas retóricas em

Erasmo, Cox e Sherry. The Arte of Rhetorique tem a organização e a forma esquemática que caracterizavam os melhores textos clássicos e medievais. O Livro I aborda questões como os cinco elementos da retórica ("invenção, disposição, elocução, memória, declamação"); as sete partes de uma oração ("apresentação, narração, proposição, divisão, confirmação, confutação, conclusão"); os três tipos de oratória ("demonstrativa, deliberativa, judicial"); e, em conexão com esses três tipos de oratória, a questão da invenção. O livro ii trata da disposição e das figuras de amplificação. O

livro iI está voltado basicamente para a elocução (estilo), mas também

oferece um resumo sobre memória e declamação. O principal atrativo de Rhetorique está no fato de que Wilson reuniu uma grande quanti-

687

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

dade de doutrina clássica, costurando-a com suas próprias observações, exposições e ilustrações, em um inglês fácil. Para os ingleses nativos,

havia algo de atraente nas críticas de Wilson ao que ele chamou de "termos pedantes estranhos". Muitas retóricas vernáculas apareceram na Inglaterra a partir desse ponto, mas as mais populares não eram necessariamente as mais fundamentadas ou as mais ousadas. Mencionaremos alguns textos representativos de vários tipos para mostrar o vigor e a variedade da tradição retórica nas escolas inglesas (e mais tarde nas escolas americanas) até o final do século xvIII. A retórica da escrita de cartas, originada na Idade Média e continuando com os tratados populares de Erasmo e Vives, recebeu outro impulso no nal do século xvI, com a publicação da English Secretorie, de

Angel Day (1586). Day discute cerca de trinta tipos diferentes de cartas

em quatro seções principais: demonstrativa, deliberativa, judicial e fa-

miliar. Na segunda edição, de 1592, Day acrescentou uma seção sobre as figuras de linguagem, fornecendo glosas à margem do texto com a

identificação dos vários tropos e figuras presentes nas cartas ilustrativas. O livro The Arte of English Poesie (1589), de George Puttenham, é lembrado pelos estudantes de literatura inglesa como um dos tratados

elisabetanos voltados para a defesa ou apologia da poesia, mas o trabalho também contribuiu para a teoria retórica. O terceiro livro dessa obra, com uma elaborada abordagem de figuras, segue a tradição de Susenbrotus, Mosellanus, Erasmo e Sherry. Puttenham fez duas grandes contribuições para a retórica inglesa: inventou nomes vernáculos para as figuras gregas e latinas e, buscando uma base mais racional para a classificação das figuras, decidiu classificá-las de acordo com a natureza de seu apelo. Assim, temos as figuras auriculares, que dependem de alterações de "som, acento, tempo", voltadas, portanto, para o ouvido; as figuras sensíveis, que dependem de alterações de sentido, voltadas,

portanto, para a mente; as figuras sentenciosas, voltadas tanto para a mente quanto para os ouvidos. Ao todo, Puttenham apresenta cento e sete guras. George Saintsbury não estava totalmente certo quando

disse que The Arte of English Poesie continha "a abordagem mais elaborada das figuras retóricas existente até então na literatura inglesa", pois Henry Peacham, em The Garden of Eloquence (1577), distinguiu 184 figuras.

fi

fi

688

PESQUISA SOBRE RETÓRICA Foundation of Rhetorike (1563), de Richard Rainolde, foi uma adap-

tação inglesa dos exercícios progymnasmata, de Hermógenes e Aftônio,

muito popular nas primeiras escolas Tudor. De fato, Rainolde considera os mesmos quatorze tipos de composições elementares que Aftônio apresentou, mas com exemplos que ele próprio fornece. A esperança de Rainolde de substituir Aftônio estava fadada à decepção, já que apenas uma edição de seu texto foi publicada e hoje existem somente cinco có-

pias da edição original. Ou seja, o trabalho foi praticamente esquecido. Mais ou menos nessa época, o estudioso francês Pierre de la Ramée revolucionou os estudos retóricos. Insatisfeito com a repetição e a im-

precisão que prevaleciam no ensino das matérias do trivium, Ramée dividiu as partes tradicionais da retórica entre a lógica e a retórica. Inventio e dispositio, isto é, a descoberta e a disposição do conteúdo, ele atribuiu ao domínio da lógica. A retórica tinha elocutio (estilo) e pronuntiatio (declamação). A quinta função da retórica, memoria, memorização do discurso, Ramée simplesmente ignorou. O estilo limita-se ao estudo dos esquemas e tropos, cabendo à gramática o estudo da etimo-

logia e da sintaxe. Ramée defendeu uma estrita departamentalização do conhecimento, pois sentia que grande parte do erro e confusão que surgiram nas artes resultava do fato que os estudiosos não sabiam definir ao certo qual era o assunto de cada uma. Embora o ensino das duas artes continuasse separado em teoria, na prática, a lógica e a retórica se combinariam, sendo utilizadas em conjunto. Como Karl Wallace observou, o efeito dessa dicotomia ramística foi que, a partir de então, processos como descoberta, disposição e julgamento passaram a ser atribuídos exclusivamente ao intelecto, enquanto a beleza ornamental que o estilo conferia ao conteúdo caiu na seara da imaginação. Veremos mais tarde o que Francis Bacon fará com essa divisão de trabalho entre a razão e a imaginação.

Embora o próprio Ramée nunca tenha publicado um texto retórico, ele inspirou uma série de retóricas baseadas em sua filosofia. Seu discípulo e propagador mais fervoroso foi Audomarus Talaeus (Omer Talon). Talaeus publicou em Paris, no ano de 1544, Institutiones Oratoriae (ou, como é mais conhecido, Retorica), fazendo par com o texto lógico de Ramée, Dialecticae Libri Duo. Como John Brinsley nos diz em Ludus literarius; or The Grammar Schoole (1612), uma das principais e mais valiosas fontes de informação sobre as escolas inglesas do

689

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO final do século xvI e início do século xvII, Rhetorica, de Talaeus, logo

se tornou o texto retórico "mais usado nas melhores escolas". A princi-

pal razão para a popularidade do texto de Talaeus entre os professores parece ter sido sua brevidade e simplicidade.

Em sua extensa abordagem da revolução ramística (ver Logic and Rhetoric in England, 1500-1700, pp. 146-281), Wilbur Samuel Howell

observou que foi Gabriel Harvey quem apresentou a retórica ramística a seus compatriotas, quando se tornou professor de retórica no Christ's College, Cambridge, na primavera de 1574, exatamente na época em que Roland Macllmaine publicava em Londres o texto em latim de Dialecticae Libri Duo, de Ramée. Posteriormente, Talaeus e Ramée serviram de modelo para os textos retóricos e lógicos de Dudley Fenner (The Artes of Logike and Rethorike, 1584), Abraham Fraunce (The Lawiers Logike e The Arcadian Rhetorike, ambos de 1588), Charles Butler (Rameae Retoricae Libri Duo, 1597) e Thomas Farnaby (Index Rhetoricus, 1625; a décima quinta edição foi lançada apenas em 1767). O surgimento e o sucesso desses textos respaldam a alegação do professor Baldwin de que, no final do século xvI, a escola franco-calvinista de Ramée e Talaeus havia obtido um triunfo completo sobre a escola germano-luterana de Melanchthon e Sturm.

RETÓRICA INGLESA DO SÉCULO XVII No decorrer do século xvII, a crítica inglesa realiza uma passagem gradual dos amplos ideais humanistas da Renascença italiana para as atitudes mais racionalistas e rigorosas dos críticos franceses. Os críticos da Renascença haviam se inspirado ecleticamente na teoria clássica,

medieval e contemporânea. Nenhuma autoridade ou sistema era tido como definitivo ou total. Foram os críticos franceses da segunda metade do século que induziram os ingleses a escrever e julgar por um único cânone de regras estabelecido. Como a maior parte da crítica francesa do século xvII estava voltada para o épico e o drama (em grande parte como resultado da importação do neo-aristotelianismo de críticos ita-

lianos do século xvI como caliger, Castelvetro e Robortello), a poética começou a atrair mais atenção do que a retórica. Além disso, a linha de demarcação entre poética e retórica começou a se confundir. Conseqüentemente, às vezes é difícil apontar para um compêndio do

690

PESQUISA SOBRE RETÓRICA século xvII e afirmar "este é um livro de retórica" ou "este é um tratado de poética". É tão provável que se encontre teoria retórica na coleção de

ensaios críticos do século xvII de Spingarn quanto em um livro-texto cujo título indica explicitamente que se trata de um livro de retórica. Outro resultado da mudança de ênfase é que, no século xvII, foram produzidos menos livros de retórica do que no período anterior, e nenhum dos livros produzidos teve a influência ou a popularidade de alguns textos da Renascença. Além da crescente preocupação com as regras, os autores do século xVII passam a buscar um estilo simples e utilitário. O incipiente interesse pela ciência (interesse criado, em grande parte, por Francis Bacon

e fomentado, após o fim do regime anticientífico dos puritanos, por

membros da Royal Society) encorajou o desenvolvimento de um estilo "científico". Junto com esse crescimento do espírito científico, havia a

reação contra o "ciceronianismo", o movimento que fomentou o desenvolvimento de um estilo ornamentado e altamente afetado, tendo Cícero como o principal, senão o único, modelo de imitação. Morris Croll e George Williams (veja a bibliografia) traçaram para nós o con-

tradesenvolvimento do chamado "estilo Sêneca", caracterizado pela relativa brevidade das frases, vagueza de estrutura, concisão de fraseado e

irregularidades de ritmo. Foi esse movimento que preparou o caminho para o desenvolvimento do estilo coloquial de tantas composições do século xvIII. Como era de se esperar, o crescente interesse pelo "estilo

simples" resultou em uma diminuição da preocupação com os esquemas e tropos. Mas, como veremos na discussão da proposta da Royal Society para o desenvolvimento de um estilo expositivo adequado, o desenvolvimento de um impressionante "estilo médio", proposto por John Dryden, impediu o desenvolvimento de um estilo de prosa que seria tão estéril e denotativo quanto símbolos matemáticos. Nossa discussão sobre a retórica do século xvII pode muito bem começar com Francis Bacon (1561-1626). Embora Bacon não tenha escrito nenhum trabalho sistemático sobre retórica, há comentários e discursos espalhados por seus escritos que lançam luz não apenas sobre sua própria prática literária, mas também sobre a direção que a teoria retórica tomaria no século xvII. Os loci principais da teoria retórica de Bacon são O progresso do conhecimento e a tradução latina ampliada dessa obra, De Augmentis Scientiarum. Material complementar pode

691

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO ser encontrado em Colours of Good and Evil e Apophthegms, New and Old. O melhor guia para a teoria retórica de Bacon é Francis Bacon on

Communication and Rhetoric, de Karl R. Wallace (University of North Carolina Press, 1943). Nossa discussão deve se limitar a dois ou três

pontos. Diz Bacon em O progresso do conhecimento: "A função e ofício da Retórica é acomodar a Razão à Imaginação para mover melhor a vontade". Em uma obra posterior, Bacon diz: "A Retórica é subserviente à imaginação, como a Lógica é ao entendimento; e o dever e o ofício da Retórica, em essência, não é outro senão acomodar os ditames da razão à imaginação, a fim de despertar o apetite e a vontade". Ao ver a imaginação e a razão como faculdades definitivamente distintas, Bacon esta-

belece as bases para a grande discussão subseqüente sobre os domínios e cultivos separado dessas faculdades; e é claro que ele está promovendo

a dicotomia ramística entre lógica e retórica.

A visão de que a imaginação e a razão são distintas e, ainda assim, devem trabalhar juntas constituiu a base para as observações de Bacon sobre o estilo. Por considerar a imaginação subserviente à razão, ele defende a precedência de res sobre verba, discordando da escola de retórica da Renascença, principalmente dos ciceronianos, que se preocupava mais com as palavras do que com o conteúdo. Como resultado dessa preocupação com o estilo, começou-se a prestar mais atenção às palavras que ao conteúdo, e à escolha da expressão, e à composição redonda e clara da frase, e à doce cadência das orações, e à variação e ilustração das obras com tropos e figuras, do que ao peso

do assunto, ao valor do tema, à solidez do argumento, à vida da invenção ou à

profundidade de julgamento (de O progresso do conhecimento).

Embora preferindo res a verba, Bacon não negligencia inteiramente a questão do estilo. As três características estilísticas nas quais ele se

concentra são a conformidade do estilo com o assunto, o uso de palavras simples e o cultivo da "agradabilidade". A insistência de Bacon na relação integral entre estilo e conteúdo é uma expressão de sua revolta

contra os ciceronianos, que tendiam a empregar o estilo copioso em

todas as formas de discurso. Intimamente conectado com esta idéia de estilo adequado ao assunto está a admoestação de Bacon de que o estilo

692

PESQUISA SOBRE RETÓRICA

deve ser adaptado ao público, a ponto de que "ao falar da mesma coisa para várias pessoas diferentes, devemos usar palavras diferentes para cada uma delas". Um dos retóricos do século xvII obviamente influenciado pelas doutrinas baconianas foi o advogado católico romano Thomas Blount (1618-79). Em 1654, Blount publicou The Academie of Eloquence. Como o professor Hoyt Hudson demonstrou, as primeiras 48 páginas deste livro de 232 páginas foram copiadas, sem os devidos créditos, de Directions for Speech and Style, um pequeno livro escrito no início do

século por outro advogado, John Hoskins, mas nunca publicado sob seu nome até a década de 1930. Blount foi um dos primeiros retóricos ingleses a extrair material ilustrativo de escritores ingleses contemporâ-

neos, como Sir Philip Sidney, Ben Jonson e Edmund Spenser. Para Blount, as quatro virtudes do estilo são brevidade, perspicácia,

"vida" ou sagacidade e "respeito" ou civilidade. Observe a importância que Blount deu à brevidade (o que outros retóricos chamam de concisão). Essa ênfase e a discussão de Blount sobre a sententia e outras figuras conectadas com o "estilo curto" indicam que a forma à moda de Sêneca começava a ganhar alguma atenção. Sem dúvida, Blount refere-se ao "estilo incisivo" quando diz na seção do livro que trata

dos lugares-comuns: "A eloquência é uma forma de falar que prevalece

sobre aqueles a quem pretendemos que prevaleça, isto é, tomamos a forma curta ou lacônica, destilamos nossas noções em quintessência ou

formamos um cone com todos os nossos pensamentos, atacando com a

ponta". Blount apresenta somente vinte e cinco figuras (na maior parte,

as mesmas apresentadas por Talaeus em Retorica) e dedica cerca de trinta páginas do livro à ampliação dessas figuras. O texto de Blount concentra-se no estilo, mas o estilo sob o controle rígido da razão. Nos trinta anos após a publicação original de sua obra, cinco edições apareceram. George Williamson, que nos forneceu um dos estudos mais valiosos da retórica do século xvII no livro The Senecan Amble, atesta que "nenhuma outra retórica daquela época parece ter sido tão popular". Uma série de retóricas fez uso das Escrituras. A mais popular delas foi The Mysteries of Rhetorique Unvail'd (1657), de John Smith, que define as figuras retóricas com referência especial às Escrituras; em 1709, foram lançadas nove edições da obra. Com a ascensão dos puritanos no

693

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO século xvII, a retórica passou a servir cada vez mais como ferramenta

do escritor de sermões e do expositor das Escrituras. O subtítulo de Centuria Sacra (1654), de Thomas Hall, clérigo puritano e professor na King Norton, revela como a retórica estava sendo utilizada durante o período da Comunidade: Cerca de cem regras para a exposição e compreensão das Escrituras Sagradas,

com uma sinopse ou compêndio dos tropos e figuras mais importantes conti-

dos nas Escrituras.

John Prideaux, reitor do Exeter College da Oxford University, professor régio de teologia em Oxford e bispo de Rochester, publicou uma retórica em 165o intitulada Sacred Eloquence: or, The Art of Rhetoric as It is Laid Down in the Scriptures. Os nomes de John Smith, John Prideaux e Thomas Hall quase caíram no esquecimento, e embora o livro de John Smith tenha feito muito sucesso, nem a popularidade nem a influência dessa retórica serviram para difundi-la ou mantê-la em circulação por muito tempo. Uma seção de Answer to Davenant's Preface to Gondibert (1650), de Thomas Hobbes, a seção que trata do estilo "natural", tem alguma pertinência para a retórica e para o estilo fácil e coloquial que Dryden pre-

conizou no final do século. A expressão verdadeira e natural, de acordo

com Hobbes, baseia-se em duas coisas: saber bem e saber muito. Hobbes

passa a examinar os efeitos psicológicos dessas duas qualidades: Um sinal do primeiro é a perspicuidade, a propriedade e a decência, que deleitam todos os tipos de homem, seja instruindo os ignorantes ou acalmando os eruditos. Um sinal do último é a novidade de expressão, que agrada pela excitação da mente, pois a novidade causa admiração, e a admiração, curiosidade,

que é um ótimo motivador do conhecimento.

Saber muito era incumbência da inventio, aquela parte da retórica preo-

cupada em encontrar o que dizer. A invenção do conteúdo, entretanto, acabou tendo efeito no estilo, devido ao grande interesse pela amplificação. A copia resultou naquela variedade de expressões que agradava pela novidade e engenhosidade. Saber bem era originalmente uma preocupação mais lógica do que retórica, mas aqui também a qualidade do conhecimento pode ter algum efeito no estilo. Muitos retóricos, tanto

694

PESQUISA SOBRE RETÓRICA antes como depois de Hobbes, diziam que uma idéia não pode ser expressa com clareza se não for apreendida com clareza.

O estilo natural também deve evitar palavras altissonantes, mas vazias, e frases que expressam "mais do que é perfeitamente concebido ou a concepção perfeita em menos palavras do que o necessário". Uma vez que o objetivo de Hobbes é refrear a exuberância de um tipo de prosa que estava na moda, não surpreende que ele dedique pouca atenção às figuras e tropos. De acordo com Hobbes, embora as figuras de linguagem adicionem certa graça e charme à escrita, elas devem ser usadas com moderação e discrição. Embora Hobbes possa parecer inclinado a minar a tradição clás-

sica, na verdade, ele estava profundamente imerso nos clássicos. Ele escreveu várias de suas obras em latim, traduziu Tucídides e Homero

e publicou um útil resumo de Retórica, de Aristóteles. Em seus esforços para refrear a fantasia desenfreada, pode-se dizer que ele segue o grande princípio clássico da moderação. Com sua estética racionalista, ele lança as bases para a prosa "temperamental" do período neoclássico

e para a abordagem psicológica que guraria na retórica e na crítica do século xvIII.

Outro incentivo ao desenvolvimento da prosa contida veio das ativi-

dades da Royal Society. Em dezembro de 1664, dois anos após sua fundação, a Royal Society nomeou um comitê para o aprimoramento da língua inglesa. Entre os nomeados para o comitê estavam John Dryden,

John Evelyn, Thomas Sprat e Edmund Waller. Sua esperança era que a autoridade da Royal Society ajudasse a refinar, ampliar e corrigir a língua inglesa. Embora esse projeto nunca tenha avançado muito além do estágio de planejamento, a Royal Society teve alguma influência no tipo de prosa escrita no período neoclássico. O incentivo que Bacon deu à formação de uma prosa "científica" foi apoiado pela Royal Society, ganhando um novo impulso. Uma seção de History of the Royal Society (1667), de Thomas Sprat, contém o manifesto dessa reforma. A "superfluidade de fala", disse Sprat, havia tido um efeito tão devastador nas artes e nas pro ssões que ele não pôde deixar de concluir

que "a eloquência deveria ser banida de todas as sociedades civis, como

um elemento fatal para a paz e as boas-maneiras". O único remédio para essa doença da "fala refinada" é "rejeitar todas as ampliações, digressões e variações de estilo; voltar à pureza e à brevidade primitivas,

fi

fi

695

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO quando os homens expressavam tantas coisas em um número praticamente igual de palavras". Em "An Account of the Life and Writings

of Mr. Abraham Cowley" (1668), Sprat apresenta Cowley como um exemplo desse "estilo adequado". Em sua escolha de palavras, Cowley "não se antecipava nem ficava para trás em relação ao uso da época",

"abandonando a conversação, mas nunca a língua, da cidade e do tri-

bunal". Cowley, continua Sprat, dominou "o segredo mais difícil de uma boa escrita: saber quando parar". Apesar da "beleza" da expressão

de Cowley, ele não perdeu de vista o decoro: Mas tudo parece surgir da natureza do assunto, sendo perfeitamente adequado àquilo que ele

aborda" É lamentável que Cowley não tenha vivido o suficiente para escrever seu projeto "Discurso sobre o estilo". Sem dúvida, ele teria dito muitas coisas sensatas sobre o estilo simples, pois ele próprio era um admirável

prosador, que o próprio John Dryden tomava como modelo. Esse poeta "metafísico" desconfiava da metafísica, porque sentia que os professores

tinham reduzido a filosofia a meras palavras. Espalhados por seus poemas, temos vários exemplos do tipo de comentário que ele teria feito em seu tratado sobre estilo. Muitas das idéias sobre o estilo simples apresentadas por Sprat foram abordadas por John Wilkins (1614-72), um dos pilares da Royal Society e mais tarde bispo de Chester, em Ecclesiastes (1646) e An Essay Towards a Real Character and a Philosophical Language (1668). Na primeira obra, ele sustenta que o estilo deve ser "simples e natural, não sendo obscurecido pela afetação da aspereza escolástica ou de floreios retóricos". Obviamente influenciado pelas doutrinas de estilo em Epistolas, de Sêneca, Wilkins recomenda um estilo que segue um meio-termo feliz. O estilo, diz ele, "deve ser completo, sem tautologias vazias e desnecessárias"; nossas expressões "devem ser tão próximas que não serão obscuras e tão simples que não parecerão vãs e tediosas"

O extremo a que a defesa da Royal Society de um estilo simples e

utilitário poderia ser levada é descoberto no ensaio de Wilkins, onde ele propõe "um caráter real universal, que não expresse palavras, mas objetos e idéias", ou seja, uma série de símbolos com um significado unívoco, universal e constante. Assim, os símbolos literários se aproximariam da precisão e estabilidade dos símbolos matemáticos. Felizmente para a literatura, esse projeto nunca se concretizou. Em vez de palavras

696

PESQUISA SOBRE RETÓRICA com associações ricas e significados em vários níveis, nosso vocabulário literário teria ideogramas universais "úteis".

Talvez tenha sido John Dryden quem impediu que a língua inglesa tomasse esse rumo, tanto por sua prática quanto pelos pronunciamentos retóricos em seus escritos. A doutrina central de suas visões sobre

estilo é o decoro. O decoro proposto por Dryden é triplo: a lingua-

gem e o estilo devem se adequar "à ocasião, ao assunto e às pessoas". Estreitamente aliado a essa preocupação com o decoro, está o desencorajamento de um viés "estrangeiro" em nossa língua. Dryden condenou Ben Jonson por "tentar romanizar nossa língua". A imagem de pai da prosa inglesa moderna de Dryden deve-se a essa postura. Sua defesa das palavras nativas e seu incentivo ao uso da sintaxe vernácula, em vez do latim, fazem parte de seu programa para refinar a linguagem e conseguir mais naturalidade, facilidade e espontaneidade na escrita. E ao reconhecer as "belezas" e os "espíritos" da escrita, Dryden prepara o caminho para a reentrada triunfante do "entusiasmo" longiniano na crítica retórica do século xvIII. Os documentos que consideramos nas últimas páginas, a rigor, não são textos retóricos, refletindo as correntes intelectuais que contribuíram para o desenvolvimento e o eventual declínio da tradição retórica no século xvIII. Em sua preocupação com o estilo, esses textos indicam o quanto o programa ramístico havia se popularizado: o domínio da retórica parecia cada vez mais restrito ao estilo. Mas esses documentos também indicam como foram estabelecidas as bases para o desenvolvimento do tipo de prosa fácil, natural e coloquial que prevalece hoje. O

tipo de estilo de prosa mais admirado hoje não é a prosa eufuística da

Renascença, nem a prosa ciceroniana do século XIx, mas a prosa simples e elegante encontrada em revistas como The New Yorker e Harper's e

exemplificada em escritores como E. B. White, James Thurber e George Orwell. E esse tipo de escrita teve sua origem no período da Restauração,

com escritores como Dryden, Bunyan e Temple, e seu desenvolvimento no período da Rainha Ana, com escritores como Defoe, Swift e Addison.

RETÓRICA INGLESA DO SÉCULO XVIII Ao passarmos para o século xvIII, deparamo-nos com o último século inteiro em que a retórica, em sua compleição clássica, ocupou lugar de

697

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO destaque nos programas acadêmicos das escolas. Durante pelo menos a primeira metade do século xvIII, a influência dos críticos franceses,

especialmente Boileau, Rapin e Le Bossu, foi ainda mais dominante do que na última metade do século anterior. O aspecto lamentável dessa adulação aos preceitos clássicos foi sua aceitação acrítica como lei absoluta e inviolável. O questionamento dos cânones aristotélicos e horacianos veio com o aparecimento de edições e traduções de Longino. Com o surgimento gradual da obra Do sublime, de Longino, o julgamento passou a ser uma questão mais de gosto do que de regra. O novo temperamento apareceu em obras como Dissertation Concerning the Perfect of the English Tongue and the State of Poetry (1724), de Leonard Welsted, De Sacra

Poesi Hebraeorum (1753), de Robert Lowth, e Conjectures on Original

Composition (1759), de Edward Young. Com um tipo mais livre e sub-

jetivo de crítica, conquistando cada vez mais adeptos, preparava-se o terreno para o aparecimento dos escritores "românticos".

Essas mudanças na perspectiva da crítica refletiram-se nos livros

de retórica da época. Os retóricos do século xvIII ainda obedeciam aos preceitos clássicos, mas, ao mesmo tempo, incitavam os alunos a

se lançar sozinhos, descobrir um estilo que lhes fosse natural, submetendo-se à força dinâmica do entusiasmo. Eles não achavam mais necessário classificar, definir e ilustrar uma infinidade de figuras e tropos. A declamação, aquele aspecto da retórica que por tanto tempo foi negligenciado nas escolas, começou a receber atenção novamente, em grande parte como resultado dos programas oratórios de mentores como Sheridan e Walker. A oratória do púlpito continuou a ser cultivada assiduamente, inspirada pela elegância de famosos pregadores ingleses, como Tillotson, Barrow, Atterbury, e dos ainda mais famosos pregadores franceses Bossuet, Bourdaloue e Massillon. No final do século, as coletâneas de sermões vendiam como os romances populares de hoje.

Pode-se dizer, para o crédito dos professores do século xvIII, que, em sua maioria, eles consideravam a retórica uma arte prática, como Aristóteles a concebera, em vez de uma arte mais especulativa. Como no século xvII, a linha entre poética e retórica era difícil de determi-

nar. Tanto críticos quanto retóricos recorriam às belas-letras nativas.

"Na verdade", diz George Saintsbury, "a retórica, agora apelidada de

698

PESQUISA SOBRE RETÓRICA

eloqüência, torna-se a arte da literatura ou, em outras palavras, crítica". Essa fusão de poética e retórica ajuda a explicar por que o século xVIII foi a última grande era de um sério interesse acadêmico pela retórica clássica. Pelo menos cinqüenta textos retóricos produzidos durante o século xVIII são importantes o suficiente para merecerem menção, mas devemos contentar-nos em ver apenas seis ou sete. Embora vários livros informativos tenham sido publicados nos últimos anos sobre a retórica

inglesa dos séculos xvI e XVII (veja a bibliografia), apenas algumas pesquisas foram publicadas sobre a retórica inglesa do século xvIII. Uma

pesquisa bastante completa, mas abrangendo apenas a última metade do século, é English Rhetorical Theory, 1750-1800, tese de doutorado não

publicada que Harold F. Harding escreveu na Cornell University em 1937. Em 1971, Wilbur Samuel Howell publicou Eighteenth-Century British Logic and Rhetoric, abordagem definitiva da retórica, pelo menos

na Grã-Bretanha. A retórica muito popular de John Stirling, A System of Rhetoric (1733), com apenas trinta páginas, contém na primeira parte uma lista de noventa e sete figuras e tropos. Os termos gregos ou latinos para as figuras e tropos são traduzidos para o inglês, com definições simples e belas ilustrações. A segunda parte, intitulada Ars Retorica, nada mais é do que uma tradução latina da primeira parte (aparentemente uma concessão aos professores que se recusavam a usar a retórica vernacular em sala de aula). Com sua lista de 97 figuras e tropos, A System of Rhetoric distingue-se por fornecer um catálogo mais abrangente do que qualquer outro livro de retórica do século xVIII (um século em que os retóricos passaram a definir e ilustrar cada vez menos figuras). Entre a retórica do século XVIII, apenas The Art of Rhetoric (1739), de John Holme, com 83 figuras e tropos, aproxima-se do livro de John Stirling.

Lectures Concerning Oratory foi publicado em 1758 por John Lawson (1712-59), mestre do Trinity College, em Dublin, e o primeiro biblio-

tecário da Universidade. O livro de Lawson baseia-se em Retórica, de

Aristóteles, com exemplos principalmente de Cícero e Quintiliano. As primeiras seis palestras apresentam uma breve história da retórica clássica

e moderna. A palestra 7 apresenta "alguns pensamentos sobre a imitação". As palestras restantes tratam da eloquência em relação à razão (caps.

699

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO 8-9), à paixão (caps. 10-11) e aos sentidos (caps. 12-18). É nas sete pales-

tras voltadas para a eloquência e os sentidos que Lawson aborda o estilo

"compreendendo o ornamento, a composição, as figuras". Lawson é um estudioso sensível, às vezes original, que absorveu boa

parte do aprendizado do passado sem fechar a mente para as excelências do presente e as promessas do futuro. Seguindo Aristóteles, ele desviou-

-se da direção longiniana que a crítica e a retórica tomavam no século

XVIII. O encorajamento de Lawson ao cultivo de uma prosa simples e sem jargões é notavelmente semelhante aos pronunciamentos de estilo

de Jonathan Swift em A Letter to a Young Clergyman (1720).

John Ward trabalhou como professor de retórica no Gresham College, em Londres, de 1720 até falecer, em 1758. No ano após sua morte, apareceu uma coleção de dois volumes de palestras sobre retórica, A System of Oratory, que Harold Harding, em sua pesquisa sobre a retórica do século xvIII, considerou "a síntese mais elaborada e detalhada da teoria retórica grega e romana publicada em inglês". Embora sua maior dívida seja para com Quintiliano, Ward reconhece, no início do primeiro volume, que ele adotou "os melhores preceitos de Aristóteles, Cícero, Quintiliano, Longino e outros autores célebres,

com exemplos apropriados extraídos das melhores partes da mais pura

antigüidade". As 54 palestras estão divididas em 863 páginas, um volume que indica a profundidade do trabalho, mas que ajuda a explicar por que ele nunca se tornou um texto escolar muito utilizado. O trabalho de Ward, no entanto, é a única retórica inglesa publicada no século XVIII que chegou perto de corresponder à abrangência de Lectures on Rhetoric, de Hugh Blair, obra que discutiremos a seguir.

A principal preocupação de Ward é com o estilo. A metade das palestras é dedicada à elocutio. As outras partes da retórica recebem trata-

mento adequado, mas não tão completo. A disposição conta com oito

palestras; seis palestras tratam da invenção; quatro palestras são dedicadas à declamação; a memória é o assunto de apenas uma palestra. As

últimas oito palestras tratam da imitação, da natureza das paixões, do caráter do orador e de uma breve história da oratória. Essa coleção de palestras mostra como a retórica de maneira séria e exaustiva ainda era ensinada em meados do século xVIII.

Passaremos agora à consideração de dois homens que foram os

principais responsáveis, no século xvIII, por despertar o interesse pela

700

PESQUISA SOBRE RETÓRICA pronuntiatio, declamação. O mais bem-sucedido desses professores de oratória (o Dale Carnegie do século xvIII) foi Thomas Sheridan, pai do

dramaturgo Richard Brinsley Sheridan. O trabalho de Sheridan é divi-

dido em três categorias: (1) leitura e fala; (2) pronúncia; e (3) educação. A mais popular e provavelmente a mais representativa de suas obras impressas foi Lectures on Elocution (1762). Esse livro, uma compilação de sete palestras, trata exclusivamente dos problemas da declamação: articulação, pronúncia, sotaque, ênfase, tom, pausa, altura, controle de voz e gesto. Lectures on Reading (1775) dá instruções para a leitura de prosa e poesia. O arcebispo Whately, em seu texto retórico publicado no século xIx, elogiou e recomendou o sistema de Sheridan, de marcar passagens para serem lidas em voz alta. O sucesso de Sheridan como ator deu grande peso a seus pronunciamentos sobre questões de declamação. Ele é a principal figura do movimento oratório do final do século xVIII, que resultou na mudança do significado do termo elocução de estilo para declamação e na moda posterior do "concurso de elocução" nas escolas.

John Walker (1732-1807), outro promotor da arte da declamação no século XVIII, foi, como Sheridan, um ator irlandês. Em 1769,

ele abandonou os palcos e, depois de lecionar por algum tempo na

Kensington Gravel-Pits School, iniciou uma carreira de professor, na qual continuou com notável sucesso, pelos 35 anos seguintes. A primeira aparição de Walker na imprensa veio em 1777, com a publicação de The Exercises for Improvement in Elocution, que nada mais é do que uma coleção de leituras de autores selecionados para aqueles que buscavam desenvolver a arte de ler ou falar em público. Talvez a melhor

e mais popular das obras de Walker tenha sido Elements of Elocution (1781). Essa obra de dois volumes aborda questões como pontuação retórica, inflexões de voz, gestos, acento, ênfase e pronúncia. A semelhança desse trabalho com Lectures on Elocution, de Sheridan, é visível. Não surpreende o fato de que foram atores profissionais que impulsionaram o estudo da declamação, pois todos os oradores fascinantes da história (homens como Demóstenes, Churchill, William Jennings Bryan, Bispo Sheen, Billy Graham) foram, em certo sentido, grandes atores. Walker tinha habilidade dramática para ser considerado professor de declamação, mas faltavam-lhe os fundamentos dos clássicos que Sheridan tinha e, portanto, ele não tinha reservas a que a recorrer quando precisava citar material colaborativo ou ilustrativo.

701

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO A história da retórica britânica na segunda metade do século XVIII

é dominada por três retóricos escoceses. Com o grande renascimento

cultural que ocorreu na Escócia após sua união com a Inglaterra,

Edimburgo logo passou a ser conhecido como "a Atenas do Norte". Durante esse período, em campos como filosofia, estética, psicologia, história e economia, há mais nomes escoceses eminentes do que nomes ingleses. E na retórica desse período, homens como Kames, Campbell e Blair não tinham grandes rivais. Henry Home, Lord Kames (1696-1782), jurista e psicólogo escocês, publicou em 1762 os três volumes de Elements of Criticism, obra que teve várias reimpressões e que exerceu grande influência na subseqüente teoria poética e retórica. O escopo de Elements of Criticism

é muito mais amplo do que a maioria dos textos considerados nesta pesquisa. A maior contribuição do livro de Kames, aliás, é à estética. A esse respeito, ele combina com três outras obras escocesas: Original of Our Ideas of Beauty and Virtue (1725), de Francis Hutcheson, Of the Standard of Taste (1757), de David Hume, e Essay on Taste (1758), de Alexander Gerard. Apenas uma pequena parte do livro de Kames trata da retórica no sentido tradicional da palavra. Seu propósito, ele nos diz,

é "examinar o ramo sensível da natureza humana, rastrear os objetos que são naturalmente agradáveis, bem como aqueles que são naturalmente desagradáveis, para assim descobrir, se pudermos, quais são os princípios genuínos das belas-artes". Kames esperava que, ao investigar a psicologia humana, fosse encontrar um padrão imutável de gosto pelo qual avaliar todas as obras de arte.

Apesar de sua inegável in uência na literatura, a obra Elements, de

Kames, nunca foi muito utilizado nas escolas. O livro era volumoso, complexo e escrito em estilo bastante pesado. A influência de Kames foi indireta, sendo exercido por intermédio dos retóricos escoceses mais

populares que ele ajudou a formar. Como Helen Randall, que escreveu um estudo completo da teoria crítica de Kames, diz: "Se alguém pode considerar a influência direta de Blair como uma influência secundária de Kames, talvez possa dizer que os compêndios sobre este assunto, há cerca de cem anos, devem seu contorno e muitas de suas regras a Elements of Criticism".

O segundo retórico escocês notável foi George Campbell (1709-96). Não menos crítico do que George Saintsbury, chamou The Philosophy

fl

702

PESQUISA SOBRE RETÓRICA of Rhetoric (1776), de Campbell, de "o tratado mais importante sobre a

Nova Retórica que o século xvi produziu". Campbell era ao mesmo tempo mais legível do que Lord Kames e mais profundo do que o outro membro desse triunvirato escocês, o Dr. Hugh Blair. Qual foi a contribuição peculiar de Campbell à arte da retórica? Por

um lado, ele apresentou a idéia de que a retórica poderia ter um fim diferente do que a persuasão. Nos primeiros dois parágrafos de seu tratado, ele define eloquência (o termo que prefere a retórica) como a "arte

ou talento pelo qual o discurso é adaptado ao seu fim", e ele diz que um discurso pode ter quatro fins: "Iluminar a razão, satisfazer a imaginação, mover as paixões ou influenciar a vontade", lembrando a função tripartida da retórica, de Cícero: ensinar (docere), persuadir (movere), deleitar (delectare). Invertendo a noção defendida por Aristóteles e seus seguidores, de que a retórica era um mero desdobramento da dialética, Campbell propôs que a lógica fosse considerada meramente como uma ferramenta da retórica. Campbell talvez seja mais conhecido pelos es-

tudantes de língua inglesa como aquele que propôs como critério de bom uso a norma de que as locuções sejam idôneas, nacionais e atuais. A investigação de Campbell sobre a "filosofia" da retórica foi tão ou-

sada e original que seu livro exerceu grande fascínio sobre os estudantes de retórica por muitos anos após sua publicação original. Mais de vinte edições de The Philosophy of Rhetoric foram lançadas durante os séculos XVIII e XIX, e a obra foi bastante usada em faculdades americanas até cerca de 1870. Seu livro poderia ter sido ainda mais popular não fosse

a formidável competição com uma das retóricas mais editadas de todos os tempos, Lectures on Rhetoric and Belles-Lettres, de Hugh Blair.

Em 1783, quando Blair publicou seu livro, ele dava palestras para

alunos da Universidade de Edimburgo havia vinte e quatro anos. Foi em 1759, a pedido de Lord Kames, que ele concordou em proferir, sem remuneração, uma série de palestras sobre retórica. Essa série foi rece-

bida com tanto entusiasmo que um grupo de amigos propôs a George III que ele estabelecesse uma cadeira de retórica na universidade e que

Blair fosse empossado como o primeiro titular do cargo. A reputação do célebre pregador de St. Giles em Edimburgo já era tão alta que o monarca inglês não hesitou em nomear Blair em 1762 como o primeiro professor régio de retórica. Blair foi finalmente levado a publicar suas palestras, porque, durante anos, cópias manuscritas delas circularam li-

703

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO vremente entre estudantes entusiastas e foram corajosamente colocadas à venda nas livrarias.

Provavelmente nunca teremos uma contagem precisa do número de

edições e reimpressões de Lectures, de Blair, mas em 1835 já havia pelo menos cinqüenta edições. Mais tarde, esse texto foi traduzido para idio-

mas como francês, italiano e russo. Continuou a ser usado nas escolas inglesas e americanas até quase o final do século xix. William Charvat,

historiador do pensamento crítico americano, disse que em certa época

a obra Lectures, de Blair, era um texto "que metade do mundo culto de língua inglesa estudava".

Por que o texto de Blair foi uma retórica tão popular? Um dos mo-

tivos foi a surpreendente abrangência das quarenta e sete palestras nesse

livro de dois volumes. Além das treze conferências dedicadas às belas-letras, havia discussões sobre gosto, beleza e sublimidade (três dos

termos-chave da crítica do século XVIII); uma pesquisa de lologia e uma revisão da gramática clássica e inglesa; uma exposição detalhada

dos princípios de estilo, com atenção especial às principais figuras de linguagem, e uma análise detalhada de vários textos em prosa; uma história da oratória; instruções para a composição de vários tipos de discurso; discursos sobre poesia; e uma compilação das melhores doutrinas retóricas clássicas e contemporâneas. O acentuado tom religioso de Lectures também desempenhou um papel importante na recomendação do texto de Blair aos professores. A idéia de Blair, de que um homem eloqüente deve ser um homem virtuoso, tornou-se os fios com que suas palestras foram tecidas. O modo e estilo de apresentação tam-

bém contribuíram para a popularidade das palestras. Além de serem organizadas de forma clara e sistemática, elas foram apresentadas em

um nível elementar. Não presumindo nos alunos algum conhecimento

prévio de retórica, Blair esforçou-se bastante para definir seus termos, elaborar o que poderia nos parecer lugar-comum e fornecer o pano de fundo que considerasse necessário para a compreensão do tópico em discussão. Como resultado, o livro Lectures, de Blair, pode ser usado em vários níveis do currículo escolar. A história da retórica inglesa poderia muito bem terminar no final do século xVIII, mas é costume levá-la um passo adiante para incluir

Elements of Rhetoric, de Richard Whately (1828). Whately fazia parte

daquele grupo brilhante de reformadores de Oxford que gravitou em

fi

704

PESQUISA SOBRE RETÓRICA torno do Oriel College na década de 1820. Com o tempo, ele foi no-

meado arcebispo de Dublin. Em 1826, com a ajuda de John Henry Newman, publicou Elements of Logic, que surgiu de um artigo que ele

havia escrito anteriormente para a Encyclopaedia Metropolitana. A retórica de Whately tem um forte tom aristotélico. Concordando

com Aristóteles que a retórica é "um ramo da lógica", Whately considera a retórica como a arte da "composição argumentativa". Seu livro está organizado em quatro partes: (1) apelo à razão ou compreensão (o equivalente às provas lógicas de Aristóteles); (2) apelo à vontade (apelos éticos e patéticos de Aristóteles); (3) estilo; (4) declamação. Entre as características notáveis de Rhetoric, de Whately, estavam a elaboração de conceitos aristotélicos, como sinal, exemplo e probabilidade, as análises brilhantes de falácias argumentativas e o desenvolvimento da função de suposição e ônus da prova na condução de um argumento. Ao longo dos primeiros três quartos do século xix, Campbell, Blair e Whately foram os três retóricos modernos mais estudados nas escolas inglesas e americanas, onde quer que a retórica continuasse a ser ensinada. Embora Blair tenha provado ser o mais popular desse trio, os professores modernos de retórica falam com grande respeito de Campbell

e Whately. Nenhum deles foi um pensador particularmente original, mas ambos basearam sua retórica em princípios sólidos de lógica e psicologia. Se seus textos tivessem surgido um pouco antes, a permanência da retórica nas escolas poderia ter se estendido por mais vários anos.

RETÓRICA DOS SÉCULOS XIX E XX Depois de Whately, a tradição retórica na Inglaterra e na Europa entrou em um período de estagnação. A educação retórica inglesa voltava-se cada vez mais para os aspectos históricos, como parte do currículo clássico, especialmente em Oxford. Grande parte da educação retórica

prática ocorreu em ambientes extracurriculares (clubes de debates e os chamados speaker's corners, recantos de oradores) da Inglaterra, de

modo que a teoria retórica não avançou muito ali depois de 1830. Na Alemanha, as poderosas tradições neoclássicas e homiléticas de estudo retórico que animaram o século xvII deram seu último suspiro e mor-

reram sob o ataque da loso a idealista e as primeiras agitações da

ciência rigorosamente empírica. As poucas obras alemãs sobre retórica

fi

fi

705

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO após 1800 são pequenas e retrógradas, mesmo as de Heinrich Schott e Franz Theremin, cujo livro Eloquence a Virtue (1814) foi a última obra retórica alemã notável até a década de 1870. A retórica francesa foi mais

vital durante os séculos xvI e xvII, mas depois de La Rhetorique, ou

L'Art de Parler (1688), de Bernard Lamy, e La Rhetorique, ou Les Régles de L'eloquence (1730), de Gilbert Balthazar, voltou-se quase exclusivamente para as belles-lettres.

Foi no Novo Mundo, nos recém-formados Estados Unidos da América, que as idéias retóricas mais importantes do século xix foram concebidas e desenvolvidas. Essas idéias representaram uma ruptura com alguns elementos da retórica tradicional, mesmo empregando e desenvolvendo outros, porque a teoria retórica americana do século xIx baseou-se essencialmente na retórica da escrita. A tradição retórica

oral continuou como prática educacional e cultural básica, mas foi no

campo da retórica da composição que ocorreu a maioria dos avanços teóricos. A retórica da escrita tem muitas raízes na retórica clássica, mas, com

exceção da ars dictaminis, a arte retórica medieval de escrever cartas,

a composição escrita antes do século xvIII era apenas um dos primeiros passos na criação de discursos orais. O progresso da alfabetização durante o século xvIII, o aumento do interesse pelas belas-letras/litera-

tura e a cultura democrática americana atuaram em conjunto na cons-

trução de um sistema educacional nos Estados Unidos após a Guerra

Revolucionária, o que permitiu a quase todas as crianças o acesso à leitura e à escrita. As escolas secundárias e as escolas comuns em todas as cidades ensinavam às crianças os fundamentos do uso da língua, e muitas iam para as academias de nível médio. Era inevitável que tal cultura começasse rapidamente a construir faculdades e, de sete faculdades em 1776, a jovem nação já havia construído em 1850 mais de quatrocentas faculdades. Essas novas instituições foram o viveiro em que a retórica da composição cresceria. A retórica da composição diferencia-se da retórica essencialmente argumentativa de Whately por sua ênfase nos objetivos multimodais do discurso e da retórica epistemológica teórica de Campbell por sua ênfase na pedagogia e nos usos práticos. No lado positivo, foi um avanço corajoso para mapear um território retórico desconhecido e estabelecer termos que pudessem ser usados para compreender como o discurso es-

706

PESQUISA SOBRE RETÓRICA crito funcionava e como poderia ser criado. No lado negativo, a prática

tornou-se uma embrutecedora busca de erros definida por demandas

obsessivas de correção formal na escrita. Em ambos os casos, esse tipo de retórica baseia-se em um conjunto original de idéias desenvolvidas entre 1800 e 1830. Podemos traçar três bases específicas para a multimodalidade retórica entre 1750 e 1820: as novas teorias de objetivos acadêmicos, de Smith e Campbell; as teorias beletrísticas baseadas no gênero, de Blair e companhia; e, em um nível prático, as pedagogias de tema/disciplina, de John Walker e seus seguidores acadêmicos. Os primeiros cursos de retórica da composição norte-americanos foram ministrados usando

uma combinação das teorias retóricas beletrísticas de Lectures on Rhetoric and Belles-Lettres (1783), de Blair, e dos novos métodos de ensino orientados para a escrita introduzidos por Walker em The Teacher's Assistant in English Composition. Campbell havia discutido objetivos e

Lectures, de Blair, concentrava-se em gêneros literários. Walker foi o primeiro a dar ênfase prática à multimodalidade na retórica, sua grande contribuição no século xIx. The Teacher's Assistant foi publicado pela primeira vez em Londres, no ano de 1801. Walker, professor de oratória, ator, lexicógrafo inglês

e amigo de Samuel Johnson, escreveu o livro quando tinha 69 anos,

alegando que havia "uma escassez de livros sobre o assunto". Walker desenvolveu um conjunto de princípios, em parte originais e em parte baseados na retórica clássica, que se tornariam as forças orientadoras da pedagogia da composição. Em The Teacher's Assistant, ele dividiu as composições em dois tipos gerais, que chamou de "temas" (esse parece ser o primeiro uso desse termo em composição vernacular, em vez de tradução) e "assuntos regulares". Os "temas" eram argumentativos, "a prova de alguma verdade", estabelecidos em torno de uma afirmação ou máxima, como "a coragem sempre vence", utilizando uma versão modificada da dispositio clássica. O que não fosse argumentativo caía na categoria de "assunto regular", que normalmente era expresso em uma única palavra: educação, governo, paz, guerra e assim por diante. Walker propôs uma estrutura para os assuntos regulares que lhes dava o mesmo tipo de rigidez que os temas, com uma forma diferente. Os assuntos regulares tinham cinco divisões: definição, causa, antigüidade

ou novidade, universalidade e localidade e efeitos. Ao contrário de

707

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO quase todas as teorias retóricas anteriores, essa estrutura não presumia

um objetivo retórico central de persuasão.

A vertente multimodal de Walker foi continuada e desenvolvida por

Samuel P. Newman, professor do Bowdoin College, no Maine, e autor do primeiro texto americano a delinear a retórica da composição

acadêmica em um sentido prático. O compêndio A Practical System of Rhetoric, publicado em 1827, foi a retórica mais usada na América entre

1820 e 1860, contando pelo menos sessenta "edições" ou impressões entre sua primeira publicação e 1856. Newman devia muito a Blair e algo a Campbell, mas A Practical System diferia de ambos os livros em

sua propensão a agrupar conceitos, um fascínio por categorias que se tornaria uma das marcas da retórica rigidamente formalizada do final

do século xIx. O que vemos na retórica de Newman é uma ponte, dos conceitos campbellianos de objetivos acadêmicos e conceitos blairianos sobre gêneros escritos e beletrísticos para o protótipo da fórmula modal

dos discursos narrativos, descritivos, expositivos e argumentativos.

Newman, portanto, também pode apresentar-se como o responsável pela "invenção" da fórmula dos "modos de discurso" popularizada

em 1866 por Alexander Bain. Ele foi o primeiro teórico da retórica a dar muita importância às estruturas internas da retórica expositiva,

propondo maneiras de subdividir a exposição. Newman abordou essa questão em sua discussão sobre amplificação, "o poder de ampliar as posições e opiniões apresentadas". A heurística que ele fornece para isso

é simples, recomendando os seguintes métodos: definições, perspectivas, exemplos e ilustrações. Esses "princípios gerais de amplificação", ao que tudo indicava, eram "métodos de exposição" primitivos, mas Newman decidiu não explorá-los. Para Newman, a retórica era a arte de escrever, não de falar. Exceto

por uma página sobre "oração", ele estava implícita e explicitamente interessado na escrita. Seu primeiro capítulo intitula-se "O pensamento

como fundamento de uma boa escrita", com abordagem totalmente baseada em exemplos literários influenciados por Blair. Quase toda a obra

de Newman está voltada para questões de excelência literária e quali-

dade estilística; suas principais divisões são: "O bom gosto", "O bom uso da linguagem" e "O estilo". Newman separa nitidamente suas taxonomias estilísticas abstratas de sua breve discussão pedagógica sobre

"orientações gerais para formar um bom estilo". A primeira seção, ba-

708

PESQUISA SOBRE RETÓRICA sicamente blairiana, é longa e cuidadosamente delineada, abrangendo correção, perspicuidade, vivacidade, eufonia e naturalidade, bem como os diferentes estilos: idiomático e fácil, laborioso, áspero, conciso, di-

fuso, árido, luxuriante, vigoroso, veemente, débil, lânguido, elevado, disfarçado, pedante ou pomposo, gracioso, elegante. Seguindo essa seção derivada, no entanto, e outra sobre os gêneros da escrita, temos a pedagogia de estilo de Newman, que remonta diretamente a Blair, com "orientações gerais para formar um bom estilo": "I. Familiarize-se com os melhores modos de estilo [...)" e "2. Componha com freqüência e atenção". Essas orientações são surpreendentes em sua simplicidade e bom senso, condensando as sugestões mais complexas de Blair em duas grandes pré-condições para um estilo eficaz. Embora Newman se baseasse em Blair, preocupava-lhe o fato de que a retórica blairiana na América estava se tornando simplificada demais.

Muitas edições de Blair lançadas depois de 1830 eram compostas de perguntas e respostas redutoras. Newman dizia que a retórica deveria ser mais so sticada, defendendo uma pedagogia nas faculdades ameri-

canas mais orientada para o intelecto: "Acima de tudo, não deixem que essa palhaçada de perguntas e respostas xas seja praticada no ensino do

que pertence à loso a da retórica". Segundo Newman, os estudantes

de retórica deveriam, ao menos, dominar as necessidades de "correção", que, como ele dizia, "deve ser aprendida com as regras e princípios da sintaxe". O próprio ensino retórico de Newman foi inspirado nos neoclássicos e nos retóricos do século xvIII; ele parece não ter sido muito influenciado por Whately. Suas breves aulas de retórica eram dedicadas tanto à escrita quanto à conversação e, embora lecionasse em Bowdoin, ele também dava aulas particulares. Nathaniel Hawthorne contou mais tarde sobre as conferências que teve com Newman em Bowdoin sobre seus textos quinzenais. Enquanto estava na faculdade, Hawthorne morou por um ano com a família de Newman. Newman e Walker tiveram vários seguidores, entre eles os famosos autores de livros didáticos Richard Green Parker e George P.

Quackenbos. Como muitos dos primeiros autores de livros didáticos

americanos, Parker era um polímato com textos populares em campos como geografia e história, mas suas principais obras estavam no âm-

bito da retórica ou, como essa arte seria cada vez mais conhecida após 1840, da composição. Seu compêndio Progressive Exercises in English

fi

fi

fi

fi

709

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Composition, publicado em 1832, tinha um formato simples baseado em exercícios para o Ensino Médio que vendeu muito bem no crescente

mercado de educação da época. Animado com o sucesso, Parker deci-

diu investigar o assunto para o nível universitário, percebendo logo que não havia nenhum livro equivalente ao Progressive Exercises que se aplicasse ao estudo superior da escrita na pedagogia popular baseada em

exercícios. Em 1844, ele lançou a versão universitária do método, Aids to English Composition, com o subtítulo "Exemplos de exercícios escolares e universitários". Em Parker, podemos localizar um dos primórdios

da transformação da retórica em mera preocupação com a correção e o decoro formal, pois Aids era um locus classicus do livro didático des-

tinado ao uso de professores extremamente desinformados, "aqueles",

como Parker diz abertamente no prefácio, "que não têm tempo nem desejo de buscar nos amplos campos da literatura fontes mais profun-

das de informação". Aids era um texto universitário diferente de todos os anteriores, apresentando uma série de pequenas lições indutivas baseadas nas li-

ções de textos elementares. O livro começa com conteúdo gramatical

e lógico simples (eventos, objetos, nomes, palavras, frases, orações), desenvolvendo questões de estilo, revisão e vários gêneros literários. Cada

capítulo curto inclui uma "lição", explicada em termos abstratos, um exemplo da lição como ilustração e exercícios para a prática da lição

com o material fornecido. De fato, não se tratava de uma pedagogia

nova, mesmo na escrita, mas nunca antes uma pedagogia tão simples

havia sido apresentada no nível universitário. Muitas faculdades recém-fundadas nos emergentes Estados Unidos estavam tendo problemas para encontrar professores com experiência, e, nesse contexto, o livro de Parker teve muito sucesso. Outros autores aprenderam rapidamente a lição, lançando livros semelhantes, como Elements of Rhetoric and

Literary Criticism (1844), de James R. Boyd, e Advanced Course of Rhetoric and English Composition (1854), de George Quackenbos, também com uma abordagem de lição-exemplo-exercícios. O boom universitário do período criou uma espécie de vácuo pedagógico, que logo foi preenchido pelos textos novos e mais simples de autores especialistas em livros didáticos, como Parker e Quackenbos. Parker foi um dos primeiros autores a listar uma ampla variedade de tópicos possíveis para tarefas de redação, uma abordagem pedagógica

710

PESQUISA SOBRE RETÓRICA

que diminuiu a importância do cânone da invenção, substituindo-o por uma escolha simples entre tópicos específicos. Em 1844, Aids to English Composition incluía pelo menos seiscentos assuntos em potencial, incluindo "Comparação de Hume com Sallust na delineação do personagem", "A influência da falta de beleza pessoal na felicidade", "A corça que acasala com o leão deve morrer por amor" e "Divertimentos públicos, esplêndidas cerimônias religiosas, preparações para a guerra e exibição de uma polícia rígida como meios de poder despótico". As expectativas de Parker em relação ao conhecimento pré-existente de seus alunos eram altas, mas as expectativas em relação à sua capacidade de implementar invenções retóricas eram muito baixas. Como Richard Parker, George Quackenbos foi autor de livros sobre os mais diversos assuntos. Sua obra para o nível elementar, First Lessons in English Composition (1851), foi popular o suficiente para conduzir ao Advanced Course in Rhetoric and English Composition (1854), que também usava a abordagem de lição-exemplo-exercícios do livro de nível inferior. Durante a década de 1850 e 1860, os professores que davam importância à escrita chegaram à conclusão de que a retórica teórica mais antiga de Blair tinha pouco efeito sobre as habilidades nessa área. Com o Advanced Course of Composition and Rhetoric, Quackenbos foi um dos os primeiros autores de nível universitário a misturar a nova

gramática de "construção de frases" com aulas de retórica. Como

Parker zera dez anos antes, Quackenbos abordava em detalhes a questão da pontuação e do uso correto das palavras (como seria de esperar de autores cujos primeiros textos foram de nível acadêmico).

Em outras questões retóricas, Quackenbos imitou Blair em alguns

elementos e Samuel Newman em outros, listando "tipos de escrita" familiares, como descrição, narração, argumentação, exposição e espe-

culação. Vemos nas obras de Quackenbos um fenômeno comum nos li-

vros didáticos: as discussões abrangentes e bem ilustradas de Blair resumiam-se a características mais gerais e estéreis. Pelo menos Quackenbos mencionava Blair; depois de 185o, a retórica blairiana mais complexa começou a desaparecer. Advanced Course, de Quackenbos, foi o último grande livro de retórica a abranger todas as diferentes caracterizações blairianas de estilo. Ao contrário de Parker, ele enfatizou a invenção e, especificamente, a necessidade de usar heurísticas para lidar com assuntos abstratos: "É [a invenção] que fornece o conteúdo da composição,

fi

711

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO do qual, em grande medida, seu valor depende. Nisso, aliás, reside a

maior dificuldade dos jovens ao escrever". Quackenbos dedicou dois

capítulos completos à explicação do método de seu sistema baseado em tópicos. Seu sistema de invenção baseava-se em certa quantidade de experiência pessoal/observação por parte dos alunos e muita leitura. Como Parker, Quackenbos fornece centenas de tarefas específicas, mas pelo menos dá a seus leitores algumas técnicas inventivas para utilizar.

Usar o sistema Quackenbos permitirá aos alunos escrever (não necessariamente bem, mas escrever) sobre qualquer assunto abstrato. O teórico retórico que mais fortemente desafiou as visões retóricas

exclusivamente persuasivas de Richard Whately, estabelecendo uma re-

tórica multimodal mais sofisticada em meados do século xix, foi Henry Noble Day. Apesar do fracasso de seu sistema complicado em conquistar adeptos, Day talvez seja o pensador retórico mais sensato e original de meados do século xIx. Polímato, se ele tivesse dedicado todo o seu tempo apenas à retórica, poderia ter sido a voz dominante do período de 1850-1890. Se isso tivesse acontecido, se Day, e não Alexander Bain, fosse o "pai da composição", a história da retórica e da pedagogia da escrita no século xx teria sido muito diferente. Em contato com as obras de Day, ninguém escapará da sensação de que sua retórica representa um caminho teórico não percorrido. Day nasceu em New Haven e foi educado em Yale, onde estudou para o ministério e aprendeu gramática e retórica com Chauncey Goodrich, dedicando-se à homilética e à eloquência de púlpito, bem

como à retórica. O livro de Whately foi lançado quando ele estava

na faculdade. A partir daí, Day foi um crítico convicto das idéias de Whately, evocando a liberalidade dos retóricos escoceses do século XVIII. A influência de George Campbell e Franz Theremin em suas obras é evidente. Em 1850, Day publicou Elements of the Art of Rhetoric,

um apelo poderoso para um retorno às reformas campbellianas e um sinal de alarme revolucionário. Elements difere de outras retóricas em três

pontos, conforme detalhado por Day no prefácio: (1) O livro enfatiza a invenção, não o estilo. A concentração no estilo, disse Day (falando

provavelmente dos textos de Boyd, Newman e Parker, que exemplificavam a pedagogia do início do século xix, de frase-prática), transformou

a composição em "trabalhos enfadonhos repulsivos e inúteis". (2) O livro tenta sistematizar a retórica em todas as suas formas, não apenas

712

PESQUISA SOBRE RETÓRICA a argumentação. (3) O livro propõe-se a tratar a retórica como uma arte, fornecendo instruções práticas, não apenas teorias vazias. Day

teve sucesso em suas duas primeiras intenções, mas como fracassou na terceira, seu trabalho nunca teve muita influência. Ainda assim, precisamos examinar suas contribuições. Day foi o mais avançado teórico da retórica multimodal do século xIx, defendendo sua teoria retórica desta forma: "Abrangendo todo o campo de discursos puros dirigidos a outras mentes, ela [a retórica] é

redimida das amarras e embaraços daquela visão que a confina à mera composição argumentativa ou à arte de produzir crenças. Esta visão da retórica, na qual o Dr. Whately é seguido pelo autor do artigo na Enciclopédia Britânica, exclui todo discurso explicativo". Assim, Day confrontava Whately diretamente, contradizendo o mais respeitado te-

órico "moderno" da teoria retórica e insistindo em fins multimodais para a retórica.

A retórica multimodal de Henry Day foi organizada em torno do que ele chamou de "objetos de discurso", que "são apenas quatro, a sa-

ber: EXPLICAÇÃO, CONVICÇÃO, PROVOCAÇÃO e PERSUASÃO". Trata-se de

uma forma modificada da psicologia acadêmica campbelliana: "Uma nova concepção é produzida pelo processo de explicação; um novo julgamento, pelo processo de convicção; uma mudança nas sensibilidades,

pelo processo de provocação; e uma mudança na vontade, pelo processo de persuasão".

A defesa da invenção por parte de Day contra a aparente rejeição

de Whately segue a mesma linha: "A mente, com um pensamento a expressar e animada pela percepção de um objetivo ao expressá-lo,

quando munida dos princípios orientadores de tal expressão, age de forma inteligente, fácil e gratificante". Day estava ciente da importância da invenção, já que, como professor, ele via que as redações que os alunos escreviam em resposta a tópicos retóricos antigos como "paz", "alegria" e "maravilhas aromáticas" eram exemplos de escrita deficiente.

"Sempre que um tema familiar e, ao mesmo tempo, amplo e abrangente é selecionado, [...] vemos somente opiniões gerais e comuns, sem

nada de invenção, em um trabalho frio e inanimado da memória, evo-

cando pensamentos mortos. Não há inspiração, nem satisfação. Sem uma nova visão, algo original, o trabalho de invenção será sempre pe-

noso", disse Day, percebendo que a maioria dos alunos não conseguia

713

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO escrever sobre "a ascensão do papado" ou "os efeitos corruptores da

escravidão" sem a ajuda de algum sistema. Assim, ele forneceu um, baseado em métodos clássicos. O método de Day era sofisticado, mas muito sistematizado. A verdadeira aversão de Day era dirigida contra o crescente domínio do estilo na retórica. "A conseqüência tem sido, como era de se esperar quando o estilo é o principal objeto de consideração, trabalhos de composição excessivamente repulsivos e inúteis". A retórica, disse Day,

consistia em invenção e estilo, sendo que a primeira era obviamente muito mais importante do que o último. A retórica de Day fornece uma ponte entre as formas anteriores e posteriores do curso de composição americano: contém uma grande dose de conteúdo estilístico, mas, em seu amor por listas, regras e leis, pressagia a retórica estrutural esquemática que surgiu no período pós-guerra. Além da primeira lista dos "métodos de exposição", que se tornaria tão importante na retórica da composição moderna do século xx, os textos de Day apresentam abstrações estáticas prototípicas, que ele chamou de "leis do discurso". Day, profundamente influenciado pela tendência científica germânica de investigação intelectual de meados do século, postulou quatro leis que regem toda a escrita explicativa: "a lei da unidade, a lei da seleção, a lei do método e a lei da completude". Os alunos deveriam observar todas as "leis" nas redações que fizessem. Sem entrar nos detalhes de cada lei, podemos observar como Day as apresenta. Elas não são descrições estilísticas, como pureza, adequação e precisão; são basicamente pres-

critivas, não descritivas; apodícticas, não indutivas. O que temos nas leis de Day é uma sensibilidade genuinamente nova, uma abordagem para ensinar retórica que marca um afastamento radical da retórica estilística-beletrística descritiva: Day é o primeiro retórico importante a tentar conferir um aspecto "racional" e "científico" ao campo com a introdução de definições estritas e regras (ou leis) abrangentes. O verdadeiro problema de Day foi que ele não conseguiu tornar sua retórica prática o suficiente. Seus livros foram escritos de maneira tediosa e Elements não vendeu bem. Day, então, escreveu vários outros livros de retórica para promover suas teorias: Retorical Praxis, em 1860, uma "reconstrução" de Elements, publicado como The Art of Discourse em 1867, e Grammatical Synthesis: The Art of Inglish Composition, em 1867. Este livro, concebido para reunir gramática, retórica e lógica em

714

PESQUISA SOBRE RETÓRICA um único estudo, já que todos "se baseavam no pensamento", nunca

gozou de muita popularidade; como a maioria dos trabalhos de Day, a obra era original demais (e volumosa demais), como se isso fosse um

problema. Sua abordagem, que enfatizava a invenção e os objetivos do discurso, bem como a exposição, não prosperou por muito tempo. As teorias de Day iam contra outra corrente retórica do século xIx, uma versão mais simpli cadora, rígida, mecânica e estilística, que acabaria por varrer todas as outras abordagens anteriores: a retórica mais redu-

tiva e pedagógica de Alexander Bain, que por um tempo submergiu a retórica em um sistema dos quatro modos. Parker, Quackenbos e Day representam o fim da linha para a invenção na retórica da composição americana, devido às profundas mudanças que ocorreram na cultura a partir de 1825. Vários historiadores

comentaram sobre o rebaixamento da invenção a um papel secundário na teoria retórica do final do século xIx (Crowley, 1985; Young, 1980); o que não foi enfatizado, no entanto, é que o recuo da invenção, na ver-

dade, constituía um distanciamento consciente dos sistemas de invenção complexos ou mecânicos, que foram uma parte necessária da tentativa de usar as antigas atribuições retóricas abstratas em um mundo onde já não se lia muito (especialmente os clássicos). Após a Guerra Civil Americana, houve um grande florescimento da teoria retórica, seguido por uma grande consolidação, durante a qual muitas idéias teóricas concorrentes foram reduzidas até aquelas que mais obviamente funcionavam em um nível prático. Os quatro textos mais importantes do período foram English Composition and Rhetoric (1866), de Alexander Bain, Principles of Rhetoric (1878), de A. S. Hill, Practical Elements of Rhetoric (1886), de John Genung, e English Composition (1891), de Barrett Wendell. Estes não eram "apenas" livros didáticos: todos evitavam o conteúdo básico de prática, concentrando-se em lições dedutivas com base nas observações de seus autores. Havia poucas considerações gramaticais e mecânicas, enquanto a retórica aparece como uma aplicação essencialmente consciente de princípios abs-

tratos aprendidos com atenção. Esses quatro retóricos têm importância

crucial para o desenvolvimento da composição na América por várias razões. Em primeiro lugar, pela popularidade absoluta de seus livros.

Bain foi impresso de 1866 a 1910, Hill, de 1878 a 1923, Genung, de 1886 a 1914, Wendell, de 1891 a 1918. Esses quatro autores criaram as

fi

715

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO formas mais populares de retórica da composição do pós-guerra, teoria retórica que moldaria o ensino americano de escrita no século xx.

Esses quatro autores também foram os primeiros retóricos a lidar de forma satisfatória com os problemas teóricos representados pela mudança do discurso oral para o discurso escrito. Diversos retóricos desde

Blair haviam tentado, mas a maioria de suas teorias atolara em análises beletrísticas, retórica oral mal adaptada ou sistemas taxonômicos complicados. Bain começou a adaptação, mas seus livros eram difíceis de ensinar. Em Hill, Genung e Wendell, que usou muitas das idéias inAluentes de Bain com mais sucesso do que ele próprio, temos as primeiras tentativas de uma retórica escrita moderna, a primeira retórica do século a realmente ir além das teorias orais da retórica anterior. Grande parte dessa teoria da composição teve que ser inventada a partir da observação pessoal, suposição e invenção/derivação seletiva, dando origem aos elementos da retórica da composição do pós-guerra: os modos de discurso, os padrões de exposição, abstrações estáticas, como unidade, coerência e ênfase, ou clareza, força e energia, o parágrafo orgânico, a

teoria dos tipos de frase, a teoria do estilo e outros elementos clássicos da retórica de compêndios. Independentemente do que pensemos sobre essa teoria, ela foi o cerne do ensino retórico por mais de sessenta anos.

O mais importante teórico retórico do nal do século xix é indiscutivelmente o lógico escocês Alexander Bain, cujas teorias da retórica multimodal e do parágrafo foram para lá de influentes. Ao contrário de alguns

autores de livros americanos, Bain era um homem profundamente erudito, familiarizado com grande parte do pensamento psicológico e social de sua época. Em meados do século xIx, os estudiosos mais sérios espera-

vam que um estudo cuidadoso acabasse por revelar as regras e princípios

subjacentes a todos os fenômenos. A erudição assumia a dianteira. Livros eruditos, como Elements (1850), de Day, e Science of Rhetoric (1866), de D. J. Hill, foram tentativas de estabelecer tais regras, e poucos autores estavam melhor equipados para isso do que Bain. Como ele observou no prefácio de sua influente obra English Composition and Retoric (1866), tal livro deve conter afirmações teóricas, não prática ou exercícios. Bain

se via na grande tradição da retórica moderna:

Tentei reunir todos os princípios e regras de composição capazes de fornecer

alguma ajuda ou direção na arte. [...] A realização desse propósito culminou

fi

716

PESQUISA SOBRE RETÓRICA em um trabalho mais intimamente ligado às obras Philosophy of Rhetoric, de Campbell, Lectures, de Blair, ou Rhetoric, de Whately, do que à maioria dos

trabalhos recentes sobre composição inglesa.

A contribuição mais importante de Bain à retórica foi a codificação da multimodalidade retórica na idéia dos modos de discurso. Eis "os vários tipos de composição" da primeira edição americana de English Composition and Rhetoric: "Aqueles que têm por objetivo aumentar a compreensão podem ser divididos em três grupos: descrição, narração e exposição. Os meios de influenciar a vontade formam um único grupo: persuasão. O emprego da linguagem para despertar sentimentos agradáveis é uma das principais características da poesia". Sem a referência à poesia (que Bain mais tarde admitiu ser irrelevante), esta é a formulação modal poderosa que fez parte da retórica da composição nas faculdades americanas: narração, descrição, exposição e persuasão (chamada posteriormente de argumentação). Ao contrário das versões anteriores de Newman e Day, que não eram totalmente aceitas, a formulação de Bain ganhou ampla adesão em duas décadas, sobretudo porque ele usou os

modos como um princípio organizador. Os termos modais ocupam longas seções de sua discussão, o que evidencia logo sua importância. Conseqüentemente, os modos tornaram-se amplamente aceitos, não só como uma classificação do discurso, mas como uma estratégia de conceituação para o ensino da retórica multimodal. Outra contribuição importante de Bain foi na criação de uma re-

tórica paragráfica. Apesar de seu uso pragmático crescente desde a invenção dos tipos móveis, não havia uma teoria paragráfica clássica

ou moderna antes de Bain. Nenhum dos retóricos neociceronianos ou ramistas do século xvII mencionou o parágrafo; Adam Smith, George Campbell e Hugh Blair deram pouca atenção ao assunto. Em 1866, en-

tretanto, Bain formulou regras para a produção de parágrafos corretos em English Composition and Rhetoric. "Um parágrafo é um conjunto de frases com unidade de propósito", declarou ele. Os parágrafos eram governados por seis regras. Esse "modelo orgânico" do parágrafo, no qual cada parte contribui para o todo, tornou-se bastante poderoso em vinte anos, especialmente na América. Cada livro didático usava alguma ver-

são desse modelo, que se tornou a pedra angular da teoria tradicional dos parágrafos. Por meio dos esforços de seus seguidores A. S. Hill e

717

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

John Genung, a formulação sistemática de Bain passou a ser nossa estrutura de parágrafo tradicional: uma frase tópica, anunciando a idéia principal do parágrafo, seguida por frases secundárias que desenvolvem ou ilustram essa idéia principal. A ilustração da idéia na frase tópica é marcada por unidade, coerência e desenvolvimento. Unidade significa que o conteúdo do parágrafo não se afasta da idéia principal; coerência significa que cada frase do parágrafo está relacionada às frases ao seu redor e à frase tópica; e desenvolvimento significa que os elementos da idéia principal são tratados de forma suficientemente extensa e estruturada para atender às expectativas do leitor. A importância de Bain reside mais em sua influência do que em suas próprias obras, pois ele próprio não era um escritor brilhante: seus livros eram frios e herméticos, dificultando o trabalho dos professores de retórica. Sua influência em outras áreas da retórica não foi tão forte. Bain tinha pouco a dizer sobre invenção e propôs uma teoria de estilo quase sem impacto nenhum, fundindo alguns termos de Blair e Whately com termos próprios puramente subjetivos, como "sentimento" e "melodia". English Composition and Rhetoric, de fato, desenvolveu a "suscetibili-

dade a listas", fornecendo um terreno fértil para as listas de qualidades estilísticas de outros, mas poucos retóricos propõem mais de uma idéia original capaz de realmente alterar os contornos da disciplina, e Bain propôs duas idéias assim: os modos de discurso e o parágrafo orgânico.

De modo geral, a retórica entre 1870 e 1890 ficou nas mãos daquela curiosa geração transicional de não-Ph.D.s que chegaram à universidade na década de 1870 e 1880 e passaram a ser associados ao Departamento de Inglês de Harvard daquela época. Eram jornalistas, gramáticos, ministros e autores de livros didáticos, gênios e excêntricos,

diletantes e artistas. Poucos eram acadêmicos com formação germânica. Figuras como John S. Hart, Erastus Haven, Edwin M. Hopkins, A. S. Hill, Barrett Wendell, Le Baron Briggs, G. P. Baker, Charles Bardeen, Henry Frink e Hiram Corson estiveram profundamente envolvidos na tentativa de criar uma nova retórica da comunicação escrita durante o período de 1880-1910. A ascensão do Harvard College como juiz do que era importante na retórica acadêmica data dessa época, e é para Adams Sherman Hill, quinto professor de retórica de Boylston, que devemos voltar nossa atenção para entender o rebaixamento da invenção e o estreitamento da teoria do estilo retórico na América. O

718

PESQUISA SOBRE RETÓRICA

livro didático de Hill, Principles of Rhetoric, publicado em 1878, foi um dos livros didáticos mais influentes do século xIx, tendo todo o prestígio de Harvard por trás. Principles contribuiu bastante para a criação de uma retórica da composição popular, sendo editado até 1923. Foi o primeiro texto importante em que a invenção estava quase completamente ausente (substituída por questões de convenção e uso) e em que a discussão estilística estava marcada por uma constante atenção à correção. Hill foi um dos primeiros retóricos a lidar de forma satisfatória com os problemas práticos apresentados pela mudança do discurso oral para o discurso escrito. Bain havia tentado, mas, apesar de seus avanços teóricos, não conseguiu encontrar uma maneira de atrair seu público mais natural: os professores universitários americanos, que Hill conhecia intimamente. Hill adaptou muitas idéias de Bain, e seu trabalho constitui a primeira retórica moderna escrita amplamente usada, a primeira retórica do século a realmente ir além das teorias orais da retórica anterior. Grande parte dessa teoria da composição teve que ser inventada a partir da observação pessoal, suposição e invenção/derivação seletiva, mas Hill tinha autoconfiança e prestígio institucional suficientes para fazê-la funcionar. Nascido em 1833, Adams Hill foi profundamente influenciado pela

retórica argumentativa de Whately e pelos debates sobre correção de linguagem entre 1860 e 1875. Ele era a antítese de Day, minimizando importância da invenção e afirmando que a boa escrita deve-se à clareza, força e elegância, termos que, segundo Hill e seus seguidores, não refletiam o estilo em si, mas as qualidades gerais de um bom texto. No lugar das antigas abordagens retóricas de estilo, Hill apresenta uma seção sobre "Escolha e uso de palavras" (os capítulos sobre "palavras" e "estrutura de frases" que viriam a ser vistos com mais freqüência em

livros didáticos), o primeiro sinal importante do rebaixamento do estilo, no sentido original do termo, que deixa a posição de cânone para o nível inferior de ênfase em palavras e frases. The Principles of Rhetoric,

porém, não era um texto simples. Evitando o conteúdo básico de prática, o livro concentrava-se em lições dedutivas com base nas observações de seu autor. Havia poucas considerações gramaticais e mecânicas, enquanto a retórica aparece como uma aplicação essencialmente consciente de princípios abstratos aprendidos com atenção.

A própria concepção de estilo de Hill tornou-se cada vez mais for-

malizada à medida que ele envelhecia. Seus últimos livros para alunos

719

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO mais jovens são orientados muito mais para a correção formal do que para a retórica. Hill também adotou gradualmente as idéias de outros escritores, tornando-se cada vez menos original. A princípio, ele rejeitou

os populares "quatro modos de discurso" em Principles of Rhetoric, de

1878, que omitia a "exposição" de seu escopo, mas quando o livro re-

apareceu em 1895 em uma "nova edição, revisada e ampliada", o texto

reapresentou a antiga ladainha dos quatro modos. Em 1904, ano em que ele se aposentou, suas idéias retóricas haviam se difundido em outros livros didáticos, mas suas concepções de correção e formalidade fo-

ram suas contribuições mais duradouras para a retórica da composição.

Hill talvez seja mais conhecido como o inventor do requisito de redação no primeiro ano da faculdade, um mandato institucional profundamente relacionado à transformação da retórica em exercícios de

correção formal. O Harvard College instituiu seus primeiros exames de admissão escritos no ano de 1874 e, para horror dos professores, dos

pais e da cultura intelectual como um todo, 157 dos 316 alunos que fizeram o exame foram reprovados. O exame de Harvard e os contínuos problemas que os alunos tinham com ele (e com a série de testes de redação semelhantes logo estabelecidos por muitas faculdades que tomavam Harvard como modelo para tudo) criaram a primeira crise de alfabetização universitária americana. Como disse Hill em 1879, encarregado do exame de Harvard desde a sua contratação em 1876: Aqueles, como nós, que foram condenados a ler os textos produzidos em uma

sala de prova, seja no ensino médio ou na faculdade, descobriram que até mesmo bons acadêmicos deixaram a desejar em termos de grafia, pontuação e expressões, muitas vezes ambíguas, deselegantes e até incorretas. Todo mundo

que esteve envolvido com as turmas de graduação de nossas melhores faculda-

des já conheceu homens incapazes de redigir uma carta descrevendo a própria

formatura sem cometer erros que desonrariam até um menino de doze anos.

Os examinadores de Harvard começaram a preconizar uma melhor formação no nível secundário e uma educação literária mais e caz no nível universitário. O próprio Hill defendeu incansavelmente a criação de um curso de inglês para calouros em Harvard: "Se o estudo [da escrita] fosse realizado no início da vida universitária, as escolas sentiriam

que seu trabalho nessa direção determinaria a situação do aluno na

fi

720

PESQUISA SOBRE RETÓRICA

faculdade [...)". Porém, só em 1885 esse curso básico para calouros foi oferecido. Sua necessidade, entretanto, era aparente, e em 1896, havia oito professores e instrutores ensinando. John Genung, que tinha doutorado, era sem dúvida o pensador retórico mais sério do fin de siècle. Practical Elements of Rhetoric (1886), de Genung, é uma obra-prima acadêmica, belamente escrita, baseada no profundo conhecimento da tradição retórica, assim como na consciência do que a nova era da composição exigia. Genung, ministro versado

na tradição oratória americana, obteve o doutorado em filologia em Leipzig, no ano de 1881, e voltou para os Estados Unidos, onde foi contratado pelo Amherst College como instrutor de línguas em 1882, professor associado de retórica, oratória e literatura inglesa em 1884, professor de retórica e literatura inglesa em 1889 e professor de litera-

tura e interpretação bíblica em 1906. (Observe a progressão dos títulos). A importância de seus livros reside na característica formal central

da teoria retórica oral: seus trabalhos são atomísticos em perspectiva,

dividindo e subdividindo o assunto em muitas classes, níveis, figuras, habilidades, regras e comportamentos distintos. Genung entendeu que a retórica escrita deveria basear-se em um número limitado de conceitos inesquecíveis. Graças à sua genialidade na apresentação desses con-

ceitos, a nova teoria do parágrafo orgânico, concebida originalmente

por Bain, popularizou-se. Genung propôs três "características fundamentais" em relação ao parágrafo, obviamente extraídas das regras de

Bain, mas com uma forma heurística mais simples: um parágrafo deve distinguir-se por unidade, continuidade e proporção. Esses três termos estruturam e iluminam todo o capítulo sobre parágrafos de Practical Elements. Da mesma forma, a frase, na opinião de Genung, tinha duas características gerais: unidade e ênfase. Grandes seções do texto estão voltadas para essas características, e a criação dessas abstrações inesque-

cíveis fez muito sucesso. Em Practical Elements, Genung aproveita os dois títulos principais,

"invenção" e "estilo", que Day havia proposto 36 anos antes, mas se-

guindo Hill, inverte a ordem de Day. O estudo estilístico deve preceder a invenção, afirmou Genung, "pois essa é a ordem lógica que todas as artes, assim como a arte do discurso, devem observar. O primeiro cuidado de toda arte deve ser com os detalhes técnicos, aquelas minú-

cias que passam despercebidas no todo perfeito, mas cuja presença ou

721

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

ausência diferencia um bom texto de um texto ruim". Genung dedica as primeiras duzentas páginas a complexas discussões de estilo (ele é o último autor popular a fazê-lo). Depois de Genung, vemos a retirada gradual da pedagogia estilística para direções simples dentro da taxonomia de parágrafos, frases e palavras. Em grande medida, essa retirada deve-se ao enfraquecimento da teoria do dualismo retórico, que sustentava as doutrinas mais antigas, especialmente as doutrinas das diferentes classes de estilo e das figuras. O que a ascensão do monismo

estilístico significou na prática foi uma crescente desconfiança e depre-

ciação de todo tipo de "regra" como método para melhorar o estilo. Em 1888, Genung viu-se forçado a defender a abordagem teórica do estilo em Handbook of Rhetorical Analysis: "O livro didático costuma ser considerado um fracasso, não porque a teoria é ruim, mas porque a teoria sozinha, sem a aplicação prática, é inadequada". Genung estava ciente de que vivia no final de uma era em que a retórica podia existir como uma disciplina teórica. Se a valorização do estilo não pôde salvar as abordagens estilísticas mais antigas e sofisticadas que Genung preferia, sua abordagem da invenção foi ainda mais debilitante para esse cânone. Para ele, a invenção devia ser incluída na rubrica da taxonomia modal bainiana de narração, descrição, exposição e argumentação. Tanto quanto o próprio

Bain (cujas vendas Genung ajudou a impulsionar no final da década de 1880 e da década de 1890), Genung popularizou os modos em toda a América, dedicando um longo capítulo a cada um deles. Juntos, Bain e Genung influenciaram muito o mundo teórico e prático da educação retórica nessas décadas, e a popularidade de seus livros soou como a sentença de morte da taxonomia beletrística que a retórica havia de-

senvolvido desde Adam Smith e Hugh Blair. Genung também foi um proponente do impulso romântico em direção à observação e seleção, em vez da tradicional acumulação tópica de conteúdo de outros, que assumia forte controle da pedagogia da invenção. A princípio, a observação entrou na lista de "Hábitos mentais que promovem a invenção". De acordo com Genung, a observação é "o estímulo e a ajuda mais poderosa para a produção original. [...] Em certo sentido, todas as atividades de autoria resumem-se a isso". Ele sugeriu restringir os grandes temas dos exercícios retóricos mais antigos a opções mais específicas. Os "assuntos"gerais, disse ele, eram

722

PESQUISA SOBRE RETÓRICA muito abrangentes, muito genéricos. Eles não contêm nenhum indício da ne-

cessidade de um tipo de abordagem, nenhuma indicação de adequação a um lugar, público ou forma de discurso; nenhuma sugestão de limites ou direção. Evidentemente, eles não servem para guiar o escritor em busca de idéias.

Genung propôs que tais assuntos fossem restritos a temas, "concentrados, por meio de limitações diretivas, em um único assunto".

"Montanhas" torna-se "uma viagem para as montanhas"; "doença" torna-se "a praga de antraz em nossa aldeia". Embora Genung não tenha incluído nenhum exercício ou tarefa escrita em Practical Elements,

ele apresenta sugestões para "temas que mexem com os sentimentos" em Outlines (1893): "Amizades na escola", "um lugar para devaneio",

"olhando para o futuro" Genung tinha um prestígio considerável em seu meio profissional e, com a publicação de Outlines of Rhetoric (1893), as abordagens realmente básicas da escrita no nível universitário tornaram-se respeitáveis.

Outlines of Rhetoric foi um dos primeiros livros didáticos de composi-

ção projetado para alunos despreparados, ajudando a introduzir a idéia

popular da retórica da composição relacionada a remediação e correção. Genung chegou a admitir, com certa tristeza, que o livro tratava de

elementos "que não é tanto uma honra conhecer quanto uma desonra não conhecer". Muitos escritores menos cultos seguiram o exemplo de

Genung em Outlines. Barrett Wendell, professor de literatura e instrutor de inglês em

Harvard, publicou, em 1891, English Composition, um compêndio baseado em oito palestras que ele havia dado no Lowell Institute, em 1890. English Composition popularizou-se imediatamente, pois reduzia brilhantemente todos os princípios complexos da tradição retórica caótica pós-Guerra Civil a alguns termos fáceis de lembrar e com aplica-

ção universal. O próprio Wendell expõe melhor sua idéia ao explicar os problemas que encontrou nos textos retóricos de seu tempo: "Esses

livros consistem em orientações sobre como alguém que deseja escre-

ver deve começar a compor. Muitas dessas sugestões são extremamente sensatas, muitas, bastante sugestivas, mas elas são numerosas demais.

Levei alguns anos para concluir que tudo o que chegou ao meu conhecimento até agora poderia ser dividido em três grupos muito simples" (os três princípios de Wendell). "Em resumo, posso expressar esses três

723

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

princípios de composição da seguinte maneira: (1) Cada composição deve se agrupar em torno de uma idéia central; (2) As partes principais de cada composição devem ser dispostas de maneira que chamem a atenção; (3) Por m, a relação de cada parte de uma composição com seus arredores deve ser inequívoca. O primeiro desses princípios pode ser convenientemente chamado de princípio da unidade; o segundo, princípio do bloco; o terceiro, princípio da coerência". Aqui, no estilo convincente e seguro de Wendell, temos o protótipo das abstrações da

retórica da composição moderna.

Wendell não lida com mecânica ou pontuação em English Composition, livro muito bem escrito e extremamente influente. Em vez disso, ele aplica seus princípios de unidade, bloco e coerência aos três "níveis" de discurso em que os livros didáticos cada vez mais segmentavam a escrita após 1880: a frase, o parágrafo e o tema geral. Wendell popularizou a abordagem dos "níveis" para lidar com diferentes partes da tarefa retórica. English Composition é dividido em capítulos, com um capítulo inicial sobre "Os elementos e características do estilo", seguido por capítulos sobre "Palavras", "Frases", "Parágrafos" e "A composição

como um todo". A estrutura de Wendell tornou-se imediatamente popular em textos secundários a partir do final da década de 1890. Na época de Wendell, a decadente tradição da retórica estilística, que fizera Hill e Genung abrirem seus livros com seções sobre estilo ou "dicção",

estava muito enfraquecida. Wendell procedeu logo a uma discussão

sobre unidade, bloco e coerência em todos os níveis de discurso da composição escrita. Em retrospecto, não é difícil ver o que Wendell realizou; suas idéias não eram novas, e a espantosa popularidade de seu texto (o único texto

sobre composição da década de 1890 ainda hoje disponível em duas edições diferentes) deve ter surpreendido até a ele mesmo. Wendell alcançou esse sucesso conceitual baseando-se na tripla divisão de Genung das seis regras de parágrafo de Bain (unidade, continuidade e propor-

ção), com uma ligeira modificação de dois termos ("continuidade" tornou-se "coerência" e "proporção" tornou-se "bloco") e propondo a aplicação desses critérios a todos os níveis de escrita. No meio educacional, que busca conceitos cada vez mais simples fáceis de ensinar, essa

simplificação não poderia ter ocorrido em um momento mais propício. English Composition estabeleceu o uso de abstrações estáticas como

fi

724

PESQUISA SOBRE RETÓRICA

princípio central de todos os textos que seguiam seu exemplo, e noventa por cento dos entravam nessa categoria. "Estilo", para Wendell, significava seus três termos principais e um

pouco mais. As teorias de estilo mais antigas foram abolidas. Exceto em casos isolados, as figuras de linguagem eram um assunto tão morto em 1890 quanto as "classes" de estilos de Blair em 1860. As figuras, na retórica de Wendell, foram simplificadas, reduzidas, mescladas em outras discussões. Como disse Wendell: Nos livros antiquados de retórica, [a doutrina das figuras] ocupava muito mais

espaço do que qualquer outro assunto, sendo classificada e subclassificada em detalhes, com palavras difíceis, em sua maioria derivadas do grego, a ponto de poder afetar a razão de qualquer um que tentasse entender os pavorosos textos. Mas o objetivo de toda essa arenga era justamente o objetivo diante de nós esta

noite; ou seja, descobrir como escrever com vigor.

Wendell dedica algumas páginas às figuras mais comuns (metáfora, símile, sinédoque), propondo uma abordagem reduzida que se tornou o padrão para os autores posteriores. Wendell ficou conhecido nacionalmente como o professor que deu origem ao "texto diário" em Harvard. Em 1892, Barrett Wendell lia textos diários e quinzenais de cento e setenta alunos (mais de vinte e quatro mil textos por ano). Esses textos diários aumentaram imensamente o trabalho dos professores de composição em Harvard, mas mesmo os textos semanais mais padronizados representavam aos professores uma sobrecarga assustadora. Até os alunos de Barrett Wendell

sentiam o drama, escrevendo: "Como deve ser lamentável para um homem ter que ler cerca de duzentos sermões estranhos todos os dias, semana após semana, e, o pior de tudo, como os seres das sombras do

Reino de Hades, não ter permissão para morrer". Perto do fim de sua carreira, o próprio Barrett Wendell, ironicamente, ficou horrorizado com o que suas idéias retóricas haviam produzido. Em 1909, relata Oscar Campbell, "ele costumava dizer que havia exercido uma influência mais funesta sobre a educação universitária na América do que qualquer outro homem em sua profissão". As razões para o desespero de Wendell, diz Campbell, eram que suas "esperanças e, pior, seus planos concretos para o progresso educacional haviam sido destruídos. As

725

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

invenções de sua mente original foram estupidamente pervertidas pelos homens de mente mecânica que formavam a base de sua profissão". E quase certo que Wendell está se referindo aqui à sua contribuição mais popular para a composição, suas idéias sobre unidade, bloco e coerência, mas suas próprias dúvidas sobre sua influência eram muito precisas em termos das tendências gerais na retórica da composição após 1910. Hill, Genung e Wendell eram associados às universidades mais an-

tigas do Oriente, mas a maior figura na reforma retórica entre 1885 e 1925 foi Fred Newton Scott, da Universidade de Michigan. Scott, quase sem ajuda, dispôs-se a criar em Michigan o tipo de organização acadêmica séria e auto-replicante para a retórica que estava sendo montada para a literatura e a lologia em outros lugares. Por um quarto de século, ele conseguiu conter a enchente que inundava a retórica escrita em toda parte. Com o próprio doutorado no Departamento de Inglês e Retórica de Michigan, no ano de 1889, Scott passou a construir uma estrutura departamental capaz de produzir erudição e eruditos sérios em retórica. Ele próprio publicou volumosos livros e artigos. Bastante ativo em organizações pro ssionais, primeiro na MLA e depois no in-

cipiente NCTE, em seu próprio campus, Scott usou sua crescente influência (ele era professor titular em 1901) para contrariar a tendência nacional, estabelecendo um status departamental para retórica separado do inglês. O Departamento de Retórica, iniciado em 1903, não durou muito após a aposentadoria de Scott devido a uma doença em 1927, mas durante 32 anos, de 1898 a 1930, Scott produziu 149 mestres e 23 doutores em retórica em Michigan, além de ter criado um currículo de retórica no nível de doutorado e o primeiro doutorado americano de retórica, Gertrude Buck (1898). Seus alunos incluíram jornalistas, ensaístas, escritores de ficção e até poetas famosos, bem como estudiosos de composição e retórica cuja influência seria sentida durante toda a primeira metade do século. Scott rejeitou as ênfases mecânicas na retórica e exigiu a continuidade da revolução epistemológica iniciada por Campbell, com observações psicológicas modernas. Correspondente de William James e

amigo de John Dewey, Scott lutou muito por uma retórica escrita que fosse além da busca de erros. "Essas questões são secundárias, [..] constituindo meios para um fim. Tratá-las como um fim em si é virar de cabeça para baixo a educação neste assunto", escreveu ele. Mas Scott sabia

fi

fi

726

PESQUISA SOBRE RETÓRICA o que estava por trás da ênfase crescente em questões formais na escrita:

excesso de trabalho para os professores. Em 1895, Scott contou que

havia lido e relido nesse ano mais de três mil ensaios, a maioria escrita por uma turma de duzentos e dezesseis alunos. [...] No trabalho de composição, é indispensável que o instrutor considere cada aluno individualmente. [...] Mas

devemos lembrar que não há mais espaço nas grandes universidades para as

turmas pequenas e aconchegantes de outrora. Hoje, somos esmagados pelas gerações famintas.

Scott viu a retórica dividida entre as pressões dos exames de admissão

em Harvard, com suas rígidas exigências de correção, e a tendência resultante de considerar o curso obrigatório para calouros como tudo o

que a faculdade precisava em termos de retórica. Ambas as influências foram prejudiciais.

Scott foi um importante crítico das tendências mecânicas da retórica

de seu tempo, argumentando contra os exames de admissão (e as rígidas pedagogias que eles induziam) e as escalas mecânicas de classificação

da qualidade da composição. Ele foi um dos fundadores do National Council of Teachers of English (NCTE) em 1911, o principal responsável

pela crítica às provas universitárias, padrões exclusivamente de correção, purismo gramatical e normativismo. Com sagacidade costumeira, Scott

identificou a tendência mecanicista da retórica da composição, observando, em 1912, que "sempre que uma peça da máquina científica for autorizada a tomar o lugar do ensino, o que é, em essência, uma tentativa de revelar ao aluno o princípio unificador de sua vida, o resultado

será a artificialização do curso de instrução". Scott traçou uma forte

distinção entre um sistema que testa ou classifica uma composição para fins administrativos e aquele que a avalia como um estágio no progresso do aluno. Na década de 1890, houve um movimento em direção ao uso de laboratórios instrucionais em muitas ciências, e alguns chamaram de

retórica o trabalho próprio para um laboratório. Mas se a composição for realmente um trabalho de laboratório, perguntou Scott em 1895, "por que não deveria ser colocada no mesmo nível dos outros trabalhos de laboratório no que diz respeito à equipe e ao equipamento?"

Scott também foi um prolífico autor de textos retóricos, geralmente com seu co-autor, Joseph V. Denney, da Ohio State University. O texto

727

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO mais influente de Scott e Denney foi Paragraph-Writing (1891), que

aborda o assunto dos parágrafos utilizando uma versão evoluída do modelo original de Alexander Bain, de 1866. Em Paragraph-Writing, Scott e Denney fizeram várias contribuições importantes para a teoria retórica: primeiro, eles simplificaram os complexos e confusos sistemas expositivos de Bain e Genung e, segundo, apresentaram um sistema de classificação coerente e fácil de ensinar em relação aos parágrafos (sistema que teria

um efeito importante na pedagogia da explicação). Paragraph-Writing foi o texto mais famoso de Scott e Denney, a primeira codificação verdadei-

ramente popular dos "meios de desenvolver parágrafos", que se tornaria

uma idéia importante na retórica da composição do período 1900-1950.

Adaptados dos tópicos clássicos, esses "meios" incluem contraste, explica-

ção, definição, ilustração, detalhe e provas. Termos semelhantes também reapareceriam como os "métodos de exposição" que vieram suplantar a

taxonomia modal bainiana do discurso. A teoria do parágrafo de Scott e Denney, cuidadosamente elaborada e com visível coerência interna, con-

siderava o parágrafo como um ensaio em miniatura. Tal teoria sobreviveu praticamente inalterada até os dias atuais (se não na teoria, ao menos na pedagogia). Mais de noventa por cento dos livros didáticos publicados entre 1900 e 1930 usaram os meios de desenvolver parágrafos original-

mente introduzidos em Paragraph-Writing. Scott e Denney também foram os primeiros a tornar as atribuições re-

tóricas menos restritivas. Paragraph-Writing permitia atribuições de um

tipo mais recente e pessoal, incluindo trinta e uma páginas de assuntos com uma variedade de títulos, todos muito específicos, variando de "o Livro de Jó como tragédia" a "o que eu pensava enquanto me afogava", passando por "alguns amigos estranhos que eu tenho". A edição revisada de 1909 inclui muitas imagens e fotografias como parte de sua seção de atribuições, incluindo algumas notavelmente modernas, como "compare as duas representações de onda, em A grande onda de Kanagawa, de Hokusai, e A tempestade (Figuras 2 e 3), de Aivazovski". Por trinta e cinco anos, Scott foi uma forte voz no ensino da composição influenciada pela retórica nas faculdades americanas, mas quando a saúde precária o forçou a aposentar-se em 1927, seu Departamento de Retórica foi dissolvido em dois anos, de modo que os professores e alunos voltaram para o poderoso e seguro Departamento de Língua e Literatura Inglesa. Essa foi a única tentativa séria de criar um doutorado em retórica fora dos

728

PESQUISA SOBRE RETÓRICA departamentos de oratória. A retórica da composição foi posteriormente encontrada (e por muito tempo desprezada) nos departamentos de inglês. A retórica oral, que definhou na forma de elocução e debate durante

o período de 1860-1910, começou a renascer em 1914, com a criação

da National Association of Academic Professors of Public Speaking (agora SCA), em rompimento com o NCTE. Mas a condição da educação

retórica escrita após 1910 não é uma época feliz para relatar, entrando em um longo período de inércia. Pode-se dizer que o advento do pe-

ríodo moderno da retórica da composição foi assinalado pela criação

do primeiro compêndio de correção mecânica, em 1907: Handbook of Composition: A Compendium of Rules, de Edwin C. Woolley. O Handbook de Woolley foi o primeiro livro didático a abordar objetivamente todos os aspectos da correção mecânica, sem apologias, nem pretensão de instrução retórica. Composto por trezentos e cinqüenta regras numeradas, a obra abrange muitas áreas nunca antes admitidas em textos sobre redação na faculdade: ortografia, pontuação até o nível mais básico, estrutura de frases e abreviações. Woolley foi pioneiro nesse sentido, pois partiu do princípio de que seus leitores não sabiam

nada de convenções gramaticais ou formais. A gramática não é um sistema abstrato neste livro; o propósito de Woolley, disse ele, "não é científico, mas prático. O objetivo é esclarecer as regras em relação às quais muitas pessoas cometem erros. Não foi incluído nenhum material por questões de integridade formal". Esse era o credo de Woolley, e os professores reagiram a esse novo tipo de texto com aprovação quase unânime. Em uma crítica representativa de 1909, H. E. Coblentz falou para a maioria dos professores universitários da época: "Este pequeno livro merece aplausos. [...] Todo professor de inglês concordará que este

é o compêndio mais prático do gênero".

Com o Handbook, Woolley deu início à era do manual, apresentando um novo tipo de texto que rapidamente viria a ser a base da maioria dos cursos de redação universitária. Desde a época do primeiro

Handbook de Woolley, a pedagogia da composição foi transformada,

do âmbito retórico para o formal. As necessidades moldaram os textos e agora os textos moldavam os cursos de redação, sobretudo no caso dos manuais, que sempre foram os textos favoritos de professores de redação não-instruídos, exercendo grande in uência embora muitas vezes oculta. Os vinte anos seguintes ao Handbook de Woolley podem

fl

729

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO ser chamados de o primeiro grande boom do manual. Entre 1907 e 1927, pelo menos quinze manuais diferentes foram publicados. Uma

pesquisa realizada em 1927 mostrou que das 27 principais faculdades do Meio Oeste, 85% usavam manuais em seus cursos de redação e, mais importante, 41% não usavam nenhum texto, exceto manuais. No final da década de 1930, os editores já haviam constatado que o manual

se tornara um artefato absolutamente central da composição (o principal texto na maioria das classes). Assim, algumas pessoas referem-se a essa década como o nadir da retórica nos cursos de redação, a Idade das

Trevas do ensino de redação nas faculdades americanas.

Após a morte de Scott, alguns colegas mais jovens, como Sterling A.

Leonard e Porter Perrin, mantiveram viva a esperança da tradição retórica na escrita durante esses anos sombrios. O jovem Sterling Leonard,

cujo trabalho "Old Purist Junk" continua sendo um clássico da difamação espirituosa, foi outro opositor nessa época anti-retórica de concentração em correções prescritivas. Assim começa o ensaio: "O purista

é certamente uma das mais estranhas criaturas de Deus", incluindo a

queixa, ainda atual, de que em nossa preocupação com uma centena de meras convenções insignificantes de palavras e expressões idiomáticas, ignoramos tópicos muito mais frutíferos.

[...] A meu ver, a liderança cega dos puristas é responsável por uma parte considerável das reais di culdades e lamentáveis fracassos de nosso ensino de

inglês (falo por mim).

Leonard foi uma das guras mais importantes no estabelecimento da realidade empírica do que viria a ser chamado de "doutrina do uso" (a idéia de que se uma palavra ou expressão é bastante usada por pes-

soas instruídas, ela não pode ser declarada "incorreta" pelos puristas),

em seu Current English Usage, de 1932, publicado postumamente.' Em 1917, ele já havia se pronunciado fortemente a favor das idéias li-

berais e reformistas que aprendera como aluno de Scott em Michigan, mas com o Current English Usage, a idéia ganhou aceitação geral. Esse

1 Leonard morreu afogado em um passeio de barco em Wisconsin com I. A. Richards, em 1931; sua morte tragicamente precoce privou os estudos ingleses de um líder nato que poderia ter realizado as reformas necessárias muito antes.

fi

fi

730

PESQUISA SOBRE RETÓRICA uso real na escrita contemporânea, em vez de algum ideal de pureza

lingüística, deve ser o padrão de aceitabilidade. Porter Perrin foi professor de inglês na Universidade de Washington e autor de An Index to English (1939), livro erudito com estrutura ori-

ginal, que definia muitos termos retóricos. Em uma época na qual o mercado de livros didáticos em inglês estava completamente dissociado da crescente ciência da linguagem, pouquíssimos textos tentaram aplicar as observações da lingüística e apenas um teve alguma in uência, An Index to English, que, como todos os trabalhos de Perrin, era

rigoroso em erudição e não se contentava em apresentar as devoções contemporâneas. Perrin é mais conhecido como um crítico incansável da tradição redutora de correção formal na retórica universitária. Em 1930, muitas seções da faculdade e todos os cursos de recuperação eram ensinados quase completamente com o uso de manuais e apostilas, com uma direção mecânica e baseada em regras. O clássico de Perrin, "The Remedial Racket", de 1933, sustentava que os manuais e apostilas são a resposta errada para as questões de "recuperação". Perrin, no entanto, era uma voz clamando no deserto, de modo que manuais, livros de frases e livios de exercícios continuaram a dominar o ensino da escrita. Perrin foi um dos poucos a criticar o uso dos livros de exercícios: "Esses exercícios violam o único princípio que os atuais professores de composição conseguiram resgatar dos dois mil e quinhentos anos de disciplina retórica, o de que aprendemos a falar e escrever falando e escrevendo". Perrin entendia a fraqueza que fazia com que os professores recorressem aos livros de exercícios, mas não tolerava essa atitude. Lutando nas trincheiras retóricas por mais de vinte anos, Perrin falou em 1951 dos anos 1900-1935 como "uma era visivelmente estreita de instrução", que mostrava "uma rendição geral dos objetivos mais amplos que engradeceram o estudo (da retórica) frente à concentração em minúcias de uso (na verdade, um triunfo da gramática sobre a retórica)". Em 1936, o estudo da retórica em nossas escolas havia afundado a tal ponto que I. A. Richards, em The Philosophy of Rhetoric, chegou a dizer que a arte retórica era "a parte mais sombria e menos lucrativa do lixo que os infelizes estudam na disciplina de inglês para calouros", e W. M. Parrish, analisando a situação em 1947, afirmou em um artigo dirigido a professores de oratória: "Os professores de inglês [...) quase

fl

731

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

abandonaram o nome retórica, e a tradição clássica está agora totalmente em nossas mãos". Foi o Departamento de Oratória da Universidade Cornell que promoveu a ressuscitação da retórica clássica em nosso tempo. No segundo semestre de 1920-21, Alexander Drummond e Everett Hunt organizaram um seminário em Cornell no qual os alunos começaram a ler e

discutiram Retórica de Aristóteles, De Oratore, de Cícero, e Instituição oratória de Quintiliano. Os efeitos desse programa de orientação clássica começaram a ser sentidos quando graduados do Departamento de Oratória de Cornell assumiram cargos em universidades de várias partes do país. O lugar para encontrar artigos sobre retórica clássica durante as décadas de 1930 e 1940 não eram os periódicos dirigidos a professores de inglês, mas o Quarterly Journal of Speech e Speech Monographs. Os professores de inglês começaram a notar quando surgiram estudos sobre a formação retórica de alguns dos grandes escritores ingleses, estudos como William Shakespeare's Small Latine and Lesse Greeke, de T. W. Baldwin, John Milton at St. Paul's School, de Donald L. Clark, e Francis Bacon on Communication and Rhetoric, de Karl Wallace. O renovado interesse pela retórica clássica foi impulsionado pela voga de

Como ler livros, de Mortimer Adler, e pela popularidade pós-guerra da nova crítica, pois tanto Adler quanto os novos críticos aplicavam técnicas retóricas ao processo de leitura. Nos últimos anos, foram publicados vários livros e artigos com análises retóricas de obras-primas literárias.

Nos últimos trinta anos, debate-se muito sobre a idéia de uma "nova

retórica". Diz-se que essa "nova retórica" lucrou com o conteúdo que

aproveitou dos refinamentos modernos na psicologia, semântica, pesquisa motivacional e outras ciências comportamentais. Dois nomes comumente mencionados em conexão com a "nova retórica" são I. A.

Richards e Keneth Burke. As raízes do interesse de Richards pela retórica podem ser encontradas no livro sobre semântica que ele escreveu com C. K. Ogden (1923), O significado de significado. Em 1936, ele publicou The Philosophy of Rhetoric. Um de seus objetivos nesse trabalho foi apontar as limitações da retórica da persuasão conforme ensinada pelos antigos. Limitar-se ao aspecto persuasivo da linguagem, dizia ele,

era isolar-se dos outros usos da linguagem. Como o Bispo Whately havia anunciado em Elements of Rhetoric (1828) que limitaria seu estudo à "composição argumentativa, geral e exclusivamente", Richards

732

PESQUISA SOBRE RETÓRICA o escolheu como o alvo principal de suas críticas à antiga retórica. The

Philosophy of Rhetoric, de George Campbell, com sua preocupação em relação aos aspectos psicológicos do público e a ampliação da função da retórica, que passa a incluir iluminar a razão, satisfazer a imaginação,

mover as paixões e influenciar a vontade, representava para Richards

um modelo mais desejável para uma retórica do século xx. Podemos resumir a abordagem de Richards à retórica dizendo que ele está inte-

ressado principalmente em como a linguagem, em qualquer tipo de dis-

curso, atua na compreensão (ou não-compreensão) de uma audiência. Parte desse interesse pode ser visto nos quatro termos que ele usa em seu

estudo das expressões humanas: sentido, sentimento, tom e intenção.

Kenneth Burke tinha mais reverência pelos retóricos clássicos do

que I. A. Richards, mas, como Richards, ele via a possibilidade de estender o escopo da retórica. Em um artigo no Journal of General Education, em 1951, um ano após a publicação de A Rhetoric of Motives,

Burke disse: Se eu tivesse que resumir em uma palavra a diferença entre a 'velha' retórica e

uma 'nova' (uma retórica revigorada pelas últimas observações da 'nova ciên-

cia'), eu diria isto: O termo-chave para a velha retórica era persuasão' e sua ênfase estava na intenção deliberada. O termo-chave para a nova retórica seria identificação"', que inclui um fator parcialmente 'inconsciente' no apelo.

"Apelo" é a essência da comunicação, na visão de Burke. Quando as pessoas usam símbolos para induzir a cooperação de outros seres humanos, elas devem se identificar com o público, tornando-se consubstanciais em relação a eles. A retórica, para Burke, passa a ser um estudo dos vários modos de alcançar essa identificação. Qualquer tipo de estrutura é um modo de identificação. A maneira como estruturamos ou organizamos nosso discurso, por exemplo, pode ser uma das maneiras pelas quais ajustamos nosso discurso para atender às necessidades de nosso público. O estilo também pode ser um modo de identificação, uma vez que pode ser uma tentativa consciente ou inconsciente de nossa parte

de adequar nossa linguagem ao nível do público. O "quinteto dramático" de Burke, ato, agente, agência (meios), cena (pano de fundo), propósito, constitui seu aparato crítico para analisar a motivação dos atos

humanos.

733

Outro indivíduo que contribuiu bastante para a "nova retórica"

foi o filósofo belga Chaim Perelman.? Embora Perelman tenha publicado livros e artigos na Europa continental por mais de trinta anos, ele só ganhou atenção na América há pouco tempo, principalmente nas páginas da revista Philosophy and Rhetoric, fundada na Pennsylvania State University, em 1968, sob a direção de Henry W. Johnstone Jr. e Carroll C. Arnold. Agora, os estudantes de retórica podem conhecer a

principal obra retórica de Perelman, Tratado da argumentação: A nova retórica, uma tradução de La Nouvelle Rhétorique: Traité de l'Argumentation, que Perelman e sua colega Lucie Olbrechts-Tyteca publicaram na França em 1958. Como o filósofo inglês Stephen Toulmin, Perelman estava insatisfeito com a aplicabilidade da lógica formal aos problemas de tomada de decisões nas questões humanas. Segundo Perelman, o desenvolvimento de uma teoria da argumentação adequada às deliberações e decisões práticas da vida pública foi prejudicado pela rígida fidelidade do mundo ocidental ao conceito de razão e raciocínio de Descartes. "Foi esse filósofo", diz Perelman na introdução, "que fez do óbvio a marca da razão, considerando racionais somente aquelas proposições que, partindo de idéias claras e distintas, estendiam, por meio de provas apodícticas, a obviedade dos axiomas aos teoremas derivados". Mas a maioria das coisas sobre as quais as pessoas discutem existe no reino do contin-

gente, do provável, do plausível, e nesse reino a demonstração "cientíca" absoluta, baseada em premissas evidentes, nem sempre é possível

ou e caz. Perelman viu que o tipo de prova "dialética"' que Aristóteles apresentou em Tópicos e utilizou em Retórica fornecia o modo de lógica

não-formal capaz de "induzir ou aumentar a adesão da mente às teses

apresentadas para seu assentimento". Perelman, que também era formado em direito, encontrou um modelo eficaz para esse modo não-formal de raciocínio na jurisprudência. Em seu livro The Idea of Justice and the Problem of Argument (1963), ele

diz: "Uma investigação completa da prova na lei, com suas variações e evolução, pode, mais do que qualquer outro estudo, informar-nos sobre as relações existentes entre o pensamento e ação". Ele aponta, por 2 Para um bom resumo da "nova retórica" de Perelman, ver Ray D. Dearin, "The Philosophical Basis of Chaim Perelman's Theory of Rhetoric", em Quarterly Journal of Speech, Lv (outubro de

1969), pp. 213-24.

734 fi

fi

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO

PESQUISA SOBRE RETÓRICA exemplo, para o uso, em julgamentos, de precedentes, "cuja racionali-

dade está ligada à observância da regra de justiça, que exige tratamento igual para situações semelhantes". Perelman prossegue, dizendo: "Ora, a aplicação da regra de justiça pressupõe a existência de precedentes para nos ensinar como situações semelhantes àquela que agora enfren-

tamos foram tratadas no passado". Em outras palavras, os precedentes

produzem algo menos que uma prova conclusiva, mas constituem uma base razoável para a tomada de decisões cruciais. O mesmo ocorre com uma série de outras condições psicológicas, sociais e culturais. É com essas condições operacionais que lida a maior parte da obra Tratado da argumentação. Chaim Perelman afirma que só a existência de uma argumentação que não seja compulsória nem arbitrária

pode dar sentido à liberdade humana, um Estado no qual uma escolha razoá-

vel pode ser exercida. [...] A teoria da argumentação ajudará a desenvolver o

que uma lógica baseada no juízo de valor tentou fornecer em vão, a saber, a justificativa da possibilidade de uma comunidade humana na esfera da ação quando essa justificativa não pode ser baseada em uma realidade de verdade objetiva.

Existem outros desenvolvimentos a explorar na "nova retórica". Podemos olhar para o incrível trabalho sobre o estilo e a elegância (a aplicação da lingüística à literatura) realizado recentemente por homens como Roger Fowler, Geoffrey Leech e M. A. K. Halliday na Inglaterra e Roman Jakobson, Seymour Chatman, Richard Ohmann, Louis Milic e Francis Christensen nos Estados Unidos. A gramática transformacio-

nal de Noam Chomsky e a psicolingüística de B. F. Skinner também têm influência na "nova retórica". O crescente número de trabalhos na teoria das comunicações certamente conferiu uma base mais científica ao comportamento retórico. E não podemos ignorar as dimensões retóricas dos pronunciamentos de Marshall McLuhan sobre como a mídia eletrônica está alterando nossa maneira de perceber, estruturar e comunicar nossas experiências. Podemos explorar ainda todas aquelas manifestações de retórica não-verbal ou "retórica corporal'", como Franklyn Haiman a chama: marchas, manifestações, sit-ins na arena política; música, filme e espetáculos de luz na esfera cultural. Estamos

735

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO começando a falar agora da retórica de gênero e da retórica da raça como novos e distintos estilos de discurso persuasivo. E ainda não se

deu atenção suficiente à retórica da propaganda, tão penetrante na vida de todo mundo. Mas a simples menção desses "movimentos" deveria nos convencer de que a retórica, mesmo diferente daquela que estudamos neste livro, ainda está muito viva.

Desde a fundação da Sociedade Internacional para a História da Retórica em Zurique, em 1977, os estudantes de retórica da América

do Norte vêm descobrindo o trabalho realizado na Europa, onde começou o tipo de retórica discutida neste texto; e os estudantes de re-

tórica da Europa têm descoberto o trabalho realizado na América do

Norte, para onde a retórica ocidental emigrou em algum momento do século xvIII. Estudiosos de ambos os lados supunham que o estudo da retórica estava adormecido, para não dizer moribundo, do outro lado

do Atlântico. Mas assim como houve um vigoroso renascimento do interesse pela retórica nos Estados Unidos durante o século xx, primeiro

no Departamento de Oratória e Drama da Universidade Cornell na década de 1920 e, em seguida, nos departamentos de inglês em meados

da década de 1960, estudiosos em vários países da Europa começaram a reexplorar a retórica desde a década de 1950. No início, europeus e norte-americanos interessados em retórica concentraram-se em estudiosos que não eram essencialmente retóricos, mas filósofos, lingüistas, psicólogos, antologistas e críticos literários,

apropriando-se de suas percepções sobre as comunicações humanas que lançavam uma nova luz na retórica. E assim, na literatura sobre retó-

rica publicada em ambos os lados do Atlântico, encontramos nomes de

pessoas como Lev Vygotsky, A. R. Luria, Hans-Georg Gadamer, Paul Ricoeur, Roman Jakobson, Paul De Man, Jacques Derrida, Mikhail Bahktin. No capítulo final de sua recente história abrangente da retórica, In Defense of Rhetoric (1988), Brian Vickers discute e avalia as idéias e a influência sobre a retórica de alguns desses autores e de outros autores contemporâneos. Graças a algumas traduções recentes para o inglês, nós, deste lado do Atlântico, conhecemos as obras de alguns autores europeus que poderiam ser considerados retóricos. Três desses retóricos europeus que figuraram de forma proeminente nas discussões em nossos periódicos profissionais e livros acadêmicos foram o humanista italiano Ernesto

736

PESQUISA SOBRE RETÓRICA Grassi, o filósofo francês Michel Foucault e o crítico marxista alemão

Jürgen Habermas. Quando o próximo capítulo da história da retórica for escrito, livros como este terão de ser abordados: A arqueologia do saber, de Michel Foucault (The Archaelogy of Knowledge, trad. A. M. Sheridan Smith, Nova York: Pantheon, 1972); Rhetoric as Philosophy: The Humanist Tradition, de Ernesto Grassi, trad. John Michael Krois e Azizeh Azodi (University Park: Pennsylvania State University Press, 1980); Communication and the Evolution of Society, de Jürgen Habermas, trad. Thomas McCarthy (Boston: Beacon Press, 1979). Os alunos podem obter uma boa visão geral do trabalho desses três retóricos europeus, bem como de cinco outros retóricos contemporâneos (1. A. Richards, Richard Weaver, Stephen Toulmin, Chaim Perelman e Kenneth Burke) em Contemporary Perspectives on Rhetoric, de Sonja K.

Foss, Karen A. Foss e Robert Trapp (Prospect Heights, IL: Waveland Press, 1985). O que provavelmente tem sido muito perceptível para muitos leitores desta pesquisa é a ausência de nomes de mulheres. Na verdade,

essa ausência tem sido uma característica geral de todas as histórias da retórica. Por exemplo, tanto na versão francesa (1958) quanto na versão

inglesa (1969) de Tratado da argumentação: A nova retórica, o nome L.

Olbrechts-Tyteca aparece ao lado de Chaim Perelman na co-autoria desse importante texto retórico do século xx. Se o primeiro nome de Olbrechts-Tyteca tivesse sido escrito na página de título do livro, teríamos descoberto que Lucie Olbrechts-Tyteca era uma mulher. Mas sempre que as obras retóricas de Perelman são discutidas em jornais e livros, não há menção à Madame Olbrechts-Tyteca. Ela era colega de Perelman, e, por dez anos, colaborou com ele no estudo das maneiras

como escritores de várias disciplinas usavam os argumentos em seus discursos. Ainda assim, no que diz respeito às histórias da retórica, ela

é apenas um nome em uma entrada bibliográfica. Uma das razões para a ausência de nomes femininos nas histórias da retórica é que durante a maior parte dos dois mil e quinhentos anos de

história da retórica no mundo ocidental, houve pouquíssimas mulheres

que poderiam ser chamadas de retóricas, seja como teóricas ou como

praticantes. E a razão para a falta de retóricas mulheres é que, durante a maior parte desse período, as mulheres não tinham acesso à educação

737

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO formal e ao espaço público. A retórica é uma das mais patriarcais de todas as disciplinas acadêmicas.

De qualquer maneira, devido ao movimento feminista, podemos estar prestes a ter nomes de mulheres no âmbito da retórica. Cheryl Glenn

escreveu um novo livro importante intitulado Retoric Retold (1998).

Nos períodos e nas culturas que investigou, desde a época dos gregos atenienses até o Renascimento europeu, ela também não encontrou muitas mulheres conhecidas como praticantes ou teóricas da retórica, mas descobriu muitas mulheres brilhantes, letradas e vigorosas, como Margaret More Roper (filha de Thomas More) e Héloïse (a abadessa francesa cujo nome está sempre ligado ao lógico medieval Abelardo), mulheres que conseguiram estudar, embora não tenham tido acesso à escola formal. Glenn, no entanto, teve dificuldade em justificar a inclusão desses nomes na lista de retóricos, no sentido tradicional do termo. O mais perto que ela chega de encontrar uma mulher que poderia ser considerada uma teórica e pedagoga da retórica é Aspásia de Mileto, conhecida como professora de Sócrates, entre outros. O mais próximo que ela chega de descobrir uma mulher que poderia ser considerada uma oradora na arena pública é Hortênsia, uma aristocrata que, em 42 a.C., protestou veementemente, mas inutilmente, no Fórum contra um imposto extraordinário que o senado romano havia cobrado de cerca de mil e quatrocentas viúvas de cidadãos romanos ricos. Quando Cheryl Glenn investigar as mulheres dos séculos xIx e xx, como ela pretende fazer, ela descobrirá muitas mulheres que podem ser legitimamente classificadas como importantes retóricas. Na edição de maio de 1989 do The Quarterly Journal of Speech, Karlyn Kohrs

Campbell publicou "The Sound of Womens Voices", uma resenha abrangente de onze livros sobre retórica feminina durante os séculos XIX e xx. Alguns desses livros apresentam fontes primárias de discursos escritos por mulheres dos séculos xIx e xx, e outros apresentam estudos

históricos ou críticos de mulheres atuando como retóricas. No que se refere à segunda metade do século xx, os futuros acadêmicos encontrarão uma infinidade de retóricas femininas. Qualquer pessoa que te-

nha lido, de forma regular, artigos, livros acadêmicos e livros didáticos sobre retórica nos últimos vinte e cinco anos terá mais facilidade para apresentar uma lista de duas dúzias de mulheres, na oratória ou na lite-

738

PESQUISA SOBRE RETÓRICA ratura, que fizeram uma contribuição significativa à retórica em nosso

tempo do que uma lista de duas dúzias de homens. Esta pesquisa de retórica, por ser abreviada, provavelmente encheu

a cabeça dos leitores de nomes, títulos e datas. Não é tão importante que os leitores consigam recordar e situar todos esses detalhes, mas que

estejam cientes, de uma maneira geral, da longa e honrosa tradição da retórica clássica. Ao longo dessa longa história, a retórica teve seus

altos e baixos, tanto na esfera política quanto na arena acadêmica, mas,

mesmo inativa por um longo período, ela sempre ensaia um retorno. O que antes era tão vital jamais será, mesmo com o passar do tempo e a criação de um novo mundo, inteiramente irrelevante e ineficaz.

Enquanto os seres humanos tiverem permissão para pronunciar ou escrever palavras, eles continuarão agindo retoricamente.

739

Bibliografia

listados cronologicamente; os textos secundários estão listados em ordem alfabética. A listagem de textos primários foi limitada às edições

modernas. BIBLIOGRAFIAS

CCCC Bibliography. Carbondale: Southern Illinois UP, 1987-presente.

James W. Cleary e Frederick W. Haberman, eds. Rhetoric and Public Address: A Bibliography, 1947-1961. Madison: University of Wisconsin Press, 1964. Richard Enos et al., eds. Heuristic Procedures and the Composing Process: A Selec-

ted Bibliography. Rhetoric Society Quarterly. Edição especial. Keith Erickson, ed. Aristotl's Rhetoric: Five Centuries of Philological Research. Me-

tuchen, NJ: Scarecrow Press, 1975.

Winifred Bryan Horner, ed. Historical Rhetoric: An Annotated Bibliography of Selected Sources in English. Boston: G. K. Hall, 1980. The Present State of Scholarship in Historical and Contemporary Rhetoric.

Columbia: University of Missouri Press, 1983.

Forrest Houlette. Nineteenth-Century Rhetoric: An Enumerative Bibliography.

Nova York: Garland, 1989.

741

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Erika Lindemann, ed. Longman Bibliography of Composition and Rhetoric, 1984-

1985. White Plains, NY: Longman, 1987. James J. Murphy, ed. Renaissance Rhetoric: A Short-Title Catalogue of Works on

Retorical Theory from the Beginning of Printing to A.D. 1700. Nova York:

Garland, 1981. Medieval Rhetoric: A Select Bibliography, 2* ed. Toronto: University of Toronto Press, 1989.

TEXTOS PRIMÁRIOS

Thomas W. Benson e Michael H. Prosser, eds. Readings in Classical Rhetoric. Davis, CA: Hermogoras Press, 1988.

Patricia Bizzell e Bruce Herzberg. The Rhetorical Tradition: Readings from Classical Times to the Present. Boston: Bedford Books, 1990.

D. A. Russell e Michael Winterbottom, eds. Ancient Literary Criticism: The Principal Texts in New Translations. Oxford: Clarendon Press, 1972.

Isocrates. Vols. I e II trad. George Norlin, Vol. III trad. Larue Van Hook. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1928-29, 1945.

(Todas as edições da Loeb Classical Library têm o texto grego ou latim na página esquerda e a tradução inglesa na página oposta.)

Platão. Fedro. Trad. José Cavalcante de Souza, Editora 34 [Plato, Phaedrus. Trad. W. C. Helmbold e W. G. Rabinowitz. Library of the Liberal Arts. Indianapolis, IN: Bobbs-Merrill, 1956.]

Górgias. Trad. Daniel R. N. Lopes, Editora Perspectiva [Gorgias. Trad.

W. C. Helmbold. Library of Liberal Arts. Indianapolis, IN: Bobbs-Merrill,

1952.]

Demóstenes. A oração da coroa. Trad. Adelino Capistrano, Ediouro [On the Crown. Ed. James J. Murphy, com nova tradução de John J. Keaney. Davis, CA: Hermagoras Press, 1983.]

Aristóteles. Retórica. Trad. Edson Bini, Edipro; Poética. Trad. Edson Bini, Edi-

pro [Art of Rhetoric. Trad. J. H. Freese. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1959. The Rhetoric and the Poetics of Aristotle.

Rhetoric trad. W. Rhys Roberts, Poetics trad. Ingram Bywater. Introduction by Edward P. J. Corbett. Modern Library College Editions. Nova York: Ran-

742

BIBLIOGRAFIA dom House, 1984. The Rhetoric of Aristotle. Trad. Lane Cooper. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1960. The Rhetoric of Aristotle. Trad. E. M. Cope,

revisado e editado por John E. Sandys. 3 vols. Cambridge: Cambridge University Press, 1877; On Rhetoric. Trad. George A. Kennedy. Nova York: Ox-

ford UP, 1991.]

Hermógenes. On Types of Style. Trad. C. W. Wooten, Durham, NC: Duke University Press, 1987.

Dionísio. On Literary Composition. Trad. W. Rhys Roberts. London: Cambridge University Press, 1910.

Ad Herennium. Trad. Harry Caplan. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1954.

Cícero. De Inventione; De Optime Genere Oratorum; Tópica. Os três textos trad.

H. M. Hubbell. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1949. De Oratore. Livros 1 e II trad. E. W. Sutton e H. Rackham, livro In trad. H. Rackham. 2 vols. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1942.

Brutus; Orator. Ambos os textos trad. G. L. Hendrickson. Loeb Classi-

cal Library. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1939.

Demétrio. On Style. Trad. W. Rhys Roberts. Cambridge: Cambridge University Press, 1902.

Longino. Do sublime. Trad. Marta Isabel de Oliveira Várzeas, Imprensa da Uni-

versidade de Coimbra e Annablume Editora. [On the Sublime. O texto em grego editado e traduzido por W. Rhys Roberts. 2ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1907. On the Sublime. Trad. G. M. A. Grube. Library of

Liberal Arts. Indianapolis, IN: Bobbs-Merrill, 1957. Longinus on Sublimity.

Trad. D. A. Russell. Oxford: Clarendon Press, 1964.] Quintiliano. Instituição oratória. Trad. Bruno Fregni Bassetto, Editora Unicamp

[Institutio Oratoria. Trad. H. E. Butler. 4 vols. Loeb Classical Library. Cam-

bridge, MA: Harvard University Press, 1920-22. Quintilian on the Teaching of Speaking and Writing: Translations from Books One, Two, and Ten of the Institutio Oratória. Landmarks in Rhetoric and Public Address. Carbondale:

Southern Illinois UP, 1988.] J. M. Miller, M. H. Prosser e T. W. Benson, eds. Readings in Medieval Rhetoric. Bloomington: University of Indiana Press, 1973.

743

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Santo Agostinho. A doutrina crista. Trad. Nair de Assis Oliveira, Paulus Editora

[On Christian Doctrine (De Doctrina Christiana). Trad. D. W. Robertson Jr. Library of Liberal Arts. Indianapolis, IN: Bobbs-Merrill, 1958.]

Erasmo de Roterdã. On Copia of Words and Ideas (De duplici copia verborum ac

rerum). Ed. e trad. Donald B. King e H. David Rix. Milwaukee, WI: Mar-

quette University Press, 1963. Leonard Cox. The Art or crafte of Rhethoryke (1530). Ed. F. I. Carpenter. Chicago

Press, 1899. Richard Sherry. A Treatise of Schemes and Tropes (1550). Com sua tradução de The Education of Children, de Erasmo de Roterdã, fac-símile com introdução

e indice de Herbert W. Hildebrant. Gainesville: University of Florida Press,

1961. Thomas Wilson. Arte of Rhetorique (1553). Ed. George H. Mair. Oxford: Oxford University Press, 1909. Richard Rainolde. The Foundacion of Rhetorike (1563). Fac-símile com introdu-

ção de Francis R. Johnson. Nova York: Fac-símiles e reimpresses de estu-

diosos, 1945. Henry Peacham. The Garden of Eloquence (1577, 1593). Fac-símile com introdu

ção de William G. Crane. Gainesville: University of Florida Press, 1954. Abraham Fraunce. The Arcadian Rhetorike (1588). Ed. Ethel Seaton. Oxford: Oxford University Press, 1950.

George Puttenham. The Arte of English Poesie (1589). Ed. Gladys Dodge Willock

e Alice Walker. Cambridge: Cambridge University Press, 1938. John Hoskins. Directions for Speech and Style (1600). Ed. Hoyt H. Hudson. Prin-

ceton, NJ: Princeton UP, 1935. John T. Harwood, ed. The Rhetorics of Thomas Hobbes and Bernard Lamy. Land-

marks in Rhetoric and Public Address. Carbondale: Southern Illinois UP,

1986. François de La-Mothe Fénelon. Fénélons Dialogues on Eloquence. Trad. Wilbur

Samuel Howell. Princeton, NJ: Princeton UP, 1951. Giambattista Vico. The New Science of Giambattista Vico. Tradução revisada da 3ª ed. (1744) de T. G. Bergin e M. H. Fisch. Ithaca, NY: Cornell University

Press, 1968.

744

BIBLIOGRAFIA John Lawson. Lectures Concerning Oratory Delivered in Trinity College. Dublin

(1758). Ed. E. Neal Claussen e Karl R. Wallace. Landmarks in Rhetoric and Public Address. Carbondale: Southern Illinois UP, 1972. George Campbell. The Philosophy of Rhetoric (1776). Ed. com introdução revisada e ampliada por Lloyd F. Bitzer. Landmarks in Rhetoric and Public Address. Carbondale: Southern Illinois UP, 1988. Joseph Priestley. A Course of Lectures on Oratory and Criticism (1777). Ed. Vincent M. Bevilacqua e Richard Murphy. Landmarks in Rhetoric and Public

Address. Carbondale: Southern Illinois UP, 1965. Hugh Blair. Lectures on Rhetoric and Belles-Lettres (1783). Ed. Harold Harding.

2 vols. Landmarks in Rhetoric and Public Address. Carbondale: Southern Illinois UP, 1966. Hugh Blair. Lectures on Rhetoric and Belles-Lettres. Ed. S. Michael Halloran e Linda Ferreira-Buckley. Columbia: Southern Illinois UP, 1997. Adam Smith. Lectures on Rhetoric and Belles-Lettres Delivered in the University

of Glasgow by Adam Smith, Reported by a Student in 1762-63. Ed. John M. Lothian. Landmarks in Rhetoric and Public Address. Carbondale: Southern

Illinois UP, 1971. Richard Whately. Elements of Rhetoric (1828). Ed. Douglas Ehninger. Landmarks

in Rhetoric and Public Address. Carbondale: Southern Illinois UP, 1963. James L. Golden e Edward P. J. Corbett, ed. The Rhetoric of Blair, Campbell, and

Whately. Carbondale: Southern Illinois UP, 1990.

I. A. Richards. The Philosophy of Rhetoric. Nova York: Oxford University Press,

1936. Kenneth Burke. A Rhetoric of Motives. Berkeley: University of Califórnia Press,

1962. Chaim Perelman e L. Olbrechts-Tyteca. Tratado da argumentação: A nova retórica. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão, Editora Martins Fontes, Vide Editorial [The New Rhetoric: A Treatise on Argumentation. Trad.

John Wilkinson e Purcell Weaver. Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1969.]

Chaim Perelman. The Realm of Rhetoric. Trad. William Kluback. Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1982.

745

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Richard E. Young, Alton Becker e Kenneth L. Pike. Rhetoric: Discovery and Change. Nova York: Harcourt, Brace, and World, 1970. John C. Brereton. The Origins of Composition Studies in the American College,

1975-1923: A Documentary History. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1995.

HISTÓRIA DA RETÓRICA

Don Paul Abbott. Rhetoric in the New World: Rhetorical Theory and Practice in Colonial Spanish America. Columbia: University of South Carolina Press,

1996. Graham Anderson. The Second Sophistic: A Cultural Phenomenon in the Roman Empire. Londres, Nova York: Routledge, 1993.

T. W. Baldwin. William Shakespeare's Small Latine & Lesse Greeke. 2 vols. Urbana: University of Illinois Press, 1944.

James A. Berlin. Writing Instruction in Nineteenth-Century American Colleges.

Carbondale: Southern Illinois UP, 1984. Rhetoric and Reality: Writing Instruction in American Colleges 1900-1985.

Carbondale: Southern Illinois UP, 1987. Stanley F. Bonner. Education in Ancient Rome: From the Elder Cato to the Younger Pliny. Berkeley: University of Califórnia Press, 1977.

Paul D. Brandes. A History of Aristotle's Rhetoric, with a Bibliography of Early

Printings. Metuchen, NJ: Scarecrow Press, 1989.

John Brinsley. Ludus Literarius: Or, The Grammar Schoole (1612). Ed. E. T. Campagnac. Liverpool: Liverpool UP, 1917.

Donald C. Bryant. Ancient Greek and Roman Rhetoricians: A Biographical Dictio-

nary. Columbia: University of Missouri Press, 1968.

Martin Camargo, ed. Medieval Rhetorics of Prose Composition: Five English Ar-

tes Dictandi and Their Tradition. Binghamton, NY: Binghamton University,

1995. Donald L. Clark. Rhetoric and Poetic in the Renaissance: A Study of Rhetorical Ter-

ms in English Renaissance Literary Criticism. Nova York: Columbia University

Press, 1922.

746

BIBLIOGRAFIA John Milton at St. Pauis School: A Study of Ancient Rhetoric in English Renaissance Education. Nova York: Columbia University Press, 1948.

Retoric in Greco-Roman Education. Nova York: Columbia University Press, 1957.

M. L. Clark. Rhetoric at Rome: A Historical Survey. Londres: Cohen and West,

1953. Thomas Cole. The Origins of Rhetoric in Ancient Greece. Baltimore: Johns Ho-

pkins University Press, 1991.

Thomas M. Conley. Rhetoric in the European Tradition. Nova York: Longman,

1990. Robert J. Connors. Composition-Rhetoric: Backgrounds, Theory, and Pedagogy. University of Pittsburgh Press, 1997. William G. Crane. Wit and Rhetoric in the Renaissance: The Formal Basis of Elizabethan Prose Style. Nova York: Columbia University Press, 1937.

E. R. Curtius. European Literature and the Latin Middle Ages. Trad. W. R. Trask.

Princeton, NJ: Princeton UP, 1953. Richard Leo Enos. The Literate Mode of Ciceros Legal Rhetoric. Carbondale: Southern Illinois UP, 1987.

Greek Rhetoric Before Aristotle. Prospect Heights, IL: Waveland Press,

1993. William M. A. Grimaldi. Aristotle. Rhetoric II: A Commentary. Nova York: Fordham University Press, 1988.

Ann Gunion, Ed. A Biographical Dictionary of Greek and Roman Retoricians: A Preliminary Survey. Project Rhetor. Davis: University of California Press,

1985. Madeleine M. Henry. Persons of History: Aspasia of Miletus and Her Biographical

Tradition. Nova York: Oxford University Press, 1995. Charles Hoole. A New Discovery of the Old Art of Teaching School (7660). Ed. E.

T. Campagnac. Liverpool: Liverpool UP, 1913. Wilbur Samuel Howell. The Rhetoric of Alcuin and Charlemagne. Princeton, NJ:

Princeton UP, 1941. _Logic and Rhetoric in England, 1500-1700. Princeton, NJ: Princeton UP,

1956.

747

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Eighteenth Century British Logic and Rhetoric. Princeton, NJ: Princeton

UP, 1971. Werner Jaeger. Paideia: The Ideals of Greek Culture. 3 vols. Nova York: Oxford University Press, 1943.

Nan Johnson. Nineteenth-Century Rhetoric in North America. Carbondale: Southern Illinois UP, 1991.

George Kennedy. The Art of Persuasion in Greece. Princeton, NJ: Princeton UP,

1963. Quintilian. Twayne World Authors Series. Nova York: Twayne Publishers, 1969.

The Art of Persuasion in the Roman World, 300 B.C.-300 A.D. Princeton,

NJ: Princeton UP, 1972. Classical Rhetoric and Its Christian and Secular Tradition From Ancient

to Modern Times. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1980. Greek Rhetoric Under Christian Emperors. Princeton, NJ: Princeton UP,

1983. New Testament Interpretation Through Rhetorical Criticism. Chapel Hill:

University of North Carolina Press, 1984

George A. Kennedy. A New History of Classical Rhetoric. Princeton: Princeton

UP, 1994. Paul Oskar Kristeller. Renaissance Thought: The Classical Scholastic and Humanist

Strains. Nova York: Harper Torchbooks, 1961. Irmá Joan Marie Lechner. Renaissance Concepts of the Commonplaces. Nova York:

Pageant Press, 1962.

H. I. Marrou. A History of Education in Antiquity. Trad. George Lamb. Nova York: Sheed and Ward, 1956. W. F. Mitchell. English Pulpit Oratory. Londres: Society for the Promotion of

Christian Knowledge, 1932. M. Mooney. Vico in the Tradition of Rhetoric. Princeton, NJ: Princeton UP, 1985. James J. Murphy. Rhetoric in the Middle Ages: A History of Rhetorical Theory From St. Augustine to the Renaissance. Berkeley: University of Califórnia Press, 1974.

ed. A Synoptic History of Classical Rhetoric. Davis, CA: Hermagoras Press, 1983.

748

BIBLIOGRAFIA J. W. O'Malley. Praise and Blame in Renaissance Rome: Rhetoric, Doctrine, and Reform in the Sacred Orators of the Papal Court, C. 1450-1521. Chapel Hill:

University of North Carolina Press, 1979.

Walter J. Ong. Ramus, Method, and the Decay of Dialogue. Cambridge, MA:

Harvard University Press, 1958.

The Ramus and Talon Inventory. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1958.

Stanley E. Porter, ed. Handbook of Classical Rhetoric in the Hellenistic Period.

Nova York: E. J. Brill, 1997.

John Poulakos. Sophistical Rhetoric in Classical Greece. Columbia: University of South Carolina Press, 1995.

W. Rhys Roberts. Greek Rhetoric and Literary Criticism. Nova York: Longmans, Green, and Company, 1928. David R. Russell. Writing in the Academic Disciplines, 1870-1990: A Curricular History. Carbondale: Southern Illinois UP, 1991.

William P. Sandford. English Theories of Public Address, 1530-1828. Columbus:

Ohio State UP, 1931. Edward Schiappa. Protagoras and Logos: A Study in Greek Philosophy and Rhetoric. Columbia: University of South Carolina Press, 1991. Izora Scott. Controversies Over the Imitation of Cicero as a Model for Style. Nova

York: Columbia UP, 1910. Jerrold E. Seigel. Rhetoric and Philosophy in Renaissance Humanism: The Union of

Eloquence and Wisdom, Petrarch to Valia. Princeton, NJ: Princeton UP, 1968.

Robert W. Smith. Art of Rhetoric in Alexandria: Its Theory and Practice in the Ancient World. The Hague: Martinus Nijhoff, 1974. Nancy S. Streuver. The Language of History in the Renaissance. Rhetoric and His-

torical Consciousness in Florentine Humanism. Princeton, NJ: Princeton UP,

1970. Lester Thonssen e A. Craig Baird. Speech Criticism: The Development of Standards

of Rhetorical Appraisal. Nova York: Ronald Press Co., 1948. Brian Vickers. In Defence of Rhetoric. Oxford: Clarendon Press, 1988. Classical Rhetoric in English Poetry. Davis, CA: Hermagoras Press, 1988.

Karl R. Wallace. Francis Bacon on Communication and Rhetoric. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1943.

749

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO History of Speech Education in America. Nova York: Appleton, Century, Crofts, 1954.

Kathleen E. Welch. The Contemporary Reception of Classical Rhetoric: Appropriations of Ancient Discourse. Hillsdale, NJ: L. Erlbaum, 1990.

W. H. Woodward. Studies in Education During the Age of the Renaissance, 1400-

1600. Cambridge: Cambridge UP, 1987.

TBORIAS DA RETÓRICA

Walter H. Beale. A Pragmatic Theory of Rhetoric. Carbondale: Southern Illinois

UP, 1989. Edwin Black. Rhetorical Criticism: A Study in Method. Nova York: Macmillan,

1965. Wayne C. Booth. The Rhetoric of Fiction. Supplementary Bibliography, 1961-1982

por James Phelan. 2ª ed. Chicago: University of Chicago Press, 1983.

Modern Dogma and the Rhetoric of Assent. Notre Dame, IN: University

of Notre Dame Press, 1974. A Rhetoric of Irony. Chicago: University of Chicago Press, 1974.

E. M. Cope. An Introduction to Aristotle's Rhetoric. Londres: Macmillan and Company, 1867; rpt. Dubuque, IA: William C. Brown, 1965. Frank D'Ângelo. A Conceptual Theory of Rhetoric. Englewood Cliffs, NJ: Win-

throp, 1975. George Dillon, Rhetoric as Social Imagination: Explorations in the Interpersonal

Function of Language. Bloomington: Indiana UP, 1986.

Jacques Ellul. Propaganda: The Formation of Men's Attitudes. Trad. Konrad Kellen

e Jean Lemer. Nova York: Knopf, 1966. Daniel J. Fogarty. Roots for a New Rhetoric. Nova York: Columbia UP, 1959. Ernesto Grassi. Rhetoric as Philosophy: The Humanist Tradition. University Park: Pennsylvania State UP, 1980.

William M. A. Grimaldi, S.J. Aristotle, Rhetoric I: A Commentary. Nova York: For dam UP, 1980. _Studies in the Philosophy of Aristotles Rhetoric. Wiesbaden, Germany: Franz Steiner Verlag, 1972.

750

BIBLIOGRAFIA Elbert W. Harrington. Rhetoric and the Scienti c Method of Inquiry: A Study of Invention. Boulder: University of Colorado Press, 1948.

Laura Virginia Holland. Counterpoint: Kenneth Burile and Aristotle's Theories of Rhetoric. Nova York: Philosophical Library, 1959. Susan Jarratt. Rereading the Sophists: Classical Rhetoric Re gured. Carbondale:

Southern Illinois UP, 1991.

Irma Miriam Joseph. The Trivium. 3ª ed. South Bend, IN: McClave Printing, 1948 [E Realizações, 2015].

James L. Kinneavy. A Theory of Discourse. Nova York: W. W. Norton, 1980. (Har-

dcover Edition: Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1971). Greek Rhetorical Origins of Christian Faith: An Inquiry. Nova York: Ox-

ford University Press, 1987. C. H. Knoblauch e L. I. Brannon. Rhetorical Traditions and the Teaching of Wri-

ting. Upper Montclair, NJ: Boynton/Cook, 1984. A. D. Leeman. Orationis Ratio: The Stylistic Theories and Practices of the Roman

Orators, Historians, and Philosophers. 2 vols. Amsterdam: Adolf M. Hakkert,

1985. Karen Burke LeFevre. Invention as a Social Act. Carbondale: Southern Illinois

UP, 1987. Erika Lindemann. A Rhetoricfor Writing Teachers. 3ª ed. Nova York: Oxford Uni-

versity Press, 1987.

Marshall McLuhan. Understanding Media: The Extensions of Man, Nova York: McGraw-Hill, 1964. Yvonne Day Merrill. The Social Construction of Western Womens Rhetoric Before 1750. Lewiston, NY: E. Mellen Press, 1996.

Susan Miller. Rescuing the Subject: A Critical Introduction to Rhetoric and the Writer. Carbondale: Southern Illinois UP, 1989. Maurice Natanson e Henry Johnstone. Philosophy, Rhetoric, and Argumentation. University Park: Penn State UP, 1965.

Jasper Neel. Plato, Derrida, and Writing. Carbondale: Southern Illinois UP, 1988. Aristotle's Voice: Rhetoric, Theory, and Writing in America. Carbondale:

Southern Illinois UP, 1994. Marie Hochmuth Nichols. Rhetoric and Criticism. Baton Rouge: Louisiana State

UP, 1963.

fi

fi

751

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Walter J. Ong, S.J. Rhetoric, Romance, and Technology: Studies in the Interaction

of Expression and Culture. Ithaca, NY: Cornell UP, 1971. _Interfaces of the Word. Ithaca, NY: Cornell UP, 1977.

The Presence of the Word: Some Prolegomena for Cultural and Religious History. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1981.

Orality and Literacy: The Technologizing of the Word. Londres e Nova

York: Methuen, 1982. Krista Ratcliffe. Anglo-American Feminist Challenges to the Rhetorical Traditions:

Virginia Woolf, Mary Daly, Adrienne Rich. Carbondale: Southern Illinois UP,

1996. D. Gordon Rohman e Albert O. Wlecke. Prewriting: The Construction and Application of Models for Concept Formation in Writing. Cooperative Research Pro-

ject #2174, Cooperative Research Project of the Office of Education, U.S. Department of Health, Education, and Welfare, 1964. Thomas O. Sloane. On the Contrary: The Protocol of Traditional Rhetoric. Wash-

ington, DC: Catholic University of America Press, 1997. Victor J. Vitanza. Negation, Subjectivity, and the History of Rhetoric. Albany: State

University of New York Press, 1997.

Lev S. Vygotsky. Thought and Language. Trad. Eugenia Hantmann e Gertrude

Vakor. Cambridge, MA: MIT Press, 1962. Karl R. Wallace. Understanding Discourse: The Speech Act and Rhetorical Action.

Baton Rouge: Louisiana State UP, 1970. Richard M. Weaver. The Ethics of Rhetoric. Davis, CA: Hermagoras Press, 1985.

Linda Woodson. A Handbook of Modern Rhetorical Terms. Urbana, IL: NCTE,

1979ª Richard E. Young e R. H. Koen. The Tagmemic Discovery Procedure: An Evaluation of Its Uses in the Teaching of Rhetoric. ERIC ED 024 951.

COLETÂNEAS DE ARTIGOS SOBRE RETÓRICA

Dudley Bailey, ed. Essays on Rhetoric. Nova York: Oxford UP, 1965. A. Baird, ed. Essays from Selected British Eloquence by Chauncey Allen Goodrich.

Carbondale: Southern Illinois UP, 1963.

752

BIBLIOGRAFIA James S. Baumlin e Tita French Baumlin, eds. Ethos: New Essays in Rhetorical and

Critical Theory. Dallas: Southern Methodist UP, 1994.

John Bender e David E. Wellbery. The Ends of Rhetoric: History, Theory, Practice.

Stanford, CA: Stanford UP, 1990. Lloyd E Bitzer e Edwin Black, eds. The Prospect of Rhetoric. Nova York: Prentice-

-Hall, 1971. Haig A. Bosmajian e Haminda Bosmajian, eds. The Rhetoric of the Civil Rights Movement. Nova York: Random House, 1969. Donald C. Bryant, ed. The Rhetorical Idiom: Essays in Rhetoric, Oratory, Langua-

ge, and Drama Presented to Herbert August Wichelns. Ithaca, NY: Cornell UP,

1958. ed. Papers in Rhetoric and Poetic. Iowa City: University of Iowa Press,

1965. Don M. Burks, ed. Rhetoric, Philosophy, and Literature: An Exploration in Honor

of Frederick W. Haberman. West Lafayette, IN: Purdue UP, 1978.

Richard A. Cherwitz, ed. Rhetoric and Philosopoby. Hillsdale, NJ: L. Erlbaum,

1990. Francis Christensen. Notes Toward a New Rhetoric: Six Essays for Teachers. Nova York: Harper, 1967. Gregory Clark e S. Michael Halloran, eds. Oratorical Culture in Nineteenth-Century America: Transformations in the Theory and Practice of Rhetoric. Carbondale: Southern Illinois UP, 1993.

Robert J. Connors, Lisa Ede e Andrea Lunsford, eds. Essays on Classical Rhetoric

and Modern Discourse. Carbondale: Southern Illinois UP, 1984.

Robert J. Connors, ed. The Selected Essays of Edward P. J. Corbett. Dallas: Sou-

thern Methodist UP, 1989. Edward P. J. Corbett, James L. Golden e Goodwin F. Berquist, eds. Essays on the

Rhetoric of the Western World. Dubuque, IA: Kendall/Hunt, 1990. William Covino e David Jolliffe, eds. Rhetoric: Concepts, Definitions, Boundaries.

Boston: Allyn and Bacon, 1995. Theresa Enos, ed. Encyclopedia of Rhetoric and Composition: Communication from

Ancient Times to the Information Age. Nova York: Garland, 1996.

Keith V. Erickson, ed. The Classical Heritage of Rhetoric. Metuchen, NJ: Scare-

crow Press, 1974.

753

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Aviva Freedman e lan Pringle. Reinventing the Rhetorical Tradition. Urbana IL:

NCTE, 1982. James A. Golden e Joseph J. Pilotta. Practical Reasoning in Human Ajfairs: Studies

in Honor of Chaim Perelman. Dordrecht, Holland: D. Reidel, 1980.

Richard Graves, ed. Rhetoric and Composition: A Sourcebookfor Teachers and Wri-

ters. Upper Montclair, NJ: Boynton/Cook, 1983.

A History and Criticism of American Public Address. Vols. I e II. Ed. William Norwood Brigance. Nova York: Russell and Russell, 1943; Vol. III. Ed. Marie K. Hochmuth. Nova York: McGraw-Hill, 1955. Winifred Bryan Horner, ed. The Present State of Scholarship in Historical and Con-

temporary Rhetoric, Rev. Ed. Columbia: University of Missouri Press, 1990.

Raymond F. Howes, ed. Historical Studies of Rhetoric and Rhetoricians. Ithaca, NH: Cornell UP, 1961. Lawrence W. Hugenberg, ed. Rhetorical Studies Honoring James L. Golden. Dubuque, IA: Kendall/Hunt, 1986.

Richard L. Johannesen, Rennard Strickland e Ralph T. Eubank, eds. Language Is Sermonic: Richard M. Weaver on the Nature of Rhetoric. Baton Rouge: Lou-

isiana State UP, 1970. Carole Levin e Patrícia A. Sullivan, eds. Political Rhetoric, Power, and Renaissance

Women. Albany: SUNY Press, 1995.

Erika Lindemann e Gary Tate, eds. An Introduction to Composition Studies. Nova York: Oxford University Press, 1991.

Andrea A. Lunsford, ed. Reclaiming Rhetorica: Women in the Rhetorical Tradition. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1995.

Peter Mack, ed. Renaissance Rhetoric. Nova York: St. Martins Press, 1994.

Ray E. McKerrow, ed. Explorations in Rhetoric: Studies in Honor of Douglas Ehninger. Glenview, IL: Scott Foresman, 1982. Jean Dietz Moss, ed. Rhetoric and Praxis: The Contribution of Classical Rhetoric to

Practical Reasoning. Washington, DC: Catholic University of America Press,

1986. James J. Murphy, ed. The Rhetorical Tradition and Modern Writing. Modern Language Association, 1982.

754

BIBLIOGRAFIA Louise Wetherbee Phelps e Janet Emig, eds. Feminine Principles and Women's Experience in American Composition and Rhetoric. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1995.

Takis Poulakos, ed. Rethinking the History of Rhetoric: Multidisciplinary Essays on

the Rhetorical Tradition. Nova York: St. Martins Press, 1994. John Frederick Reynolds, ed. Rhetorical Memory and Delivery: Classical Concepts

for Contemporary Composition and Communication. Hillsdale, NJ: Erlbaum,

1993• Joseph Schwartz e John Rycenga, eds. The Province of Rhetoric. Nova York: Ro-

nald Press, 196s.

Herbert W. Simons, ed. Rhetorica in the Human Sciences. Londres, Newbury Park: Sage, 1989. Martin Steinmann, Jr., ed. New Rhetorics. Nova York: Scribners, 1967.

Studies in Speech and Drama in Honor of Alexander M. Drummond. Ithaca, NY:

Cornell UP, 1944. Studies in Rhetoric and Public Speaking in Honor of James Albert Winans. Nova

York: Century Co., 1925. William E. Tanner e J. Dean Bishop, eds. Rhetoric and Change. Mesquite, TX:

Ide House, 1982. Lester Thonssen, ed. Selected Readings in Rhetoric and Public Speaking. Nova York: H. W. Wilson, 1943. Victor J. Viranza, ed. Writing Histories of Rhetoric. Carbondale: Southern Illinois

UP, 1994. Richard Weaver. The Ethics of Rhetoric. Davis, CA: Hermagoras Press, 1985.

Eugene E. White, ed. Rhetoric in Transition: Studies in the Nature and Uses of Rhetoric. University Park: Pennsylvania State University Press, 1980.

Theodore Windt and Beth Ingold, eds. Essays in Presidential Rhetoric. Dubuque,

IA: Kendall/Hunt, 1983. W. Ross Winterowd, ed. Contemporary Rhetoric: A Conceptual Background with

Readings. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1975.

_Composition| Rhetoric: A Synthesis. Carbondale: Southern Illinois UP,

1986.

755

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO ESTILO

Robert Adolph. The Rise of Modern Prose Style. Cambridge, MA: MIT Press,

1968. Chris Anderson. Style as Argument: Contemporary American Nonfiction. Carbon-

dale: Southern Illinois UP, 1987. J. L. Austin. How to Do Things with Words. Cambridge, MA: Harvard UP, 1962. Howard Babb, ed. Essays in Stylistic Analysis. Nova York: Harcourt Brace Jova-

novich, 1972. Richard W. Bailey and Dolores M. Burton. English Stylistics: A Bibliography. Cambridge, MA: MIT Press, 1968. James R. Bennett. Prose Style: A Historical Approach Through Studies. San Fran-

cisco: Chandler, 1971. Bibliography of Stylistics and Related Criticism, 1967-1983. Nova York:

Modern Language Association, 1986. N. F. Blake. An Introduction to the Language of Literature. Houndmills, Basings-

toke, Hampshire: Macmillan, 1990.

Richard Bridgman. The Colloquial Style in America. Nova York: Oxford UP,

1966. Huntington Brown. Prose Styles: Five Primary Types. Minneapolis: University of

Minnesota Press, 1966. Rollo Brown. How the French Boy Learns to Write. Urbana, IL: NCTE, 1963. Frederick Candelaris, ed. Perspectives on Style. Boston: Allyn and Bacon, 1968.

Seymour Chatman, ed. Literary Style: A Symposium. Nova York: Oxford UP,

1971. Edward P. J. Corbett and Robert J. Connors. Style and Statement. Nova York:

Oxford UP, 1999.

David Crystal and Derek Davey, eds. Investigating English Style. Bloomington:

Indiana UP, 1969. J. V. Cunningham, ed. The Problem of Style. Nova York: Fawcett, 1966. Bonamy Dobrée. Modern Prose Style, 2ª ed. Nova York: Oxford UP, 1964. Donald C. Freeman, ed. Linguistics and Literary Style. Nova York: Holt, Ri-

nehart, and Winston, 1970.

756

BIBLIOGRAFIA Walker Gibson. Tough, Sweet, and Stuffy: An Essay on Modern American Prose.

Bloomington: Indiana UP, 1966.

Robert Graves e Alan Hodges. The Reader Over Your Shoulder: A Handbook-for

Writers. Nova York: Macmillan, 1961. Donald Hall, ed. The Modern Stylistics: Writers on the Art of Writing. Nova York:

Free Press, 1968.

Helen Heightsman Gordon. From Copying to Creating, 2ª ed. Nova York: Holt, Rinehart, and Winston, 1985. Irma Miriam Joseph. Shakespeare's Use of the Arts of Language. Nova York: Co-

lumbia UP, 1947. Carl H. Klaus, ed. Style in English Prose. Nova York: Macmillan, 1968.

Richard A. Lanham. Style: An Anti-Textbook. New Haven, CT: Yale UP, 1968. A Handlist of Rhetorical Terms. Berkeley: University of Califórnia Press,

1968. Analyzing Prose. Nova York: Scribner's, 1983. Revising Prose. Nova York: Longman, 1994.

Edwin H. Lewis. The History of the English Paragraph. Chicago: University of Chicago Press, 1894. Glen A. Love e Michael Payne. Contemporary Essays on Style: Rhetoric, Linguistics,

and Criticism. Glenview, IL: Scott, Foresman, 1968.

Jerome McGann. The Poetics of Sensibility: A Revolution in Literary Style. Nova York: Clarendon Press, 1996. Donald McQuade, ed. The Territory of Language: Linguistics, Stylistics, and the

Teaching of Composition. Carbondale: Southern Illinois UP, 1985. Josephine Miles. Style and Proportion: The Language of Prose and Poetry. Boston:

Little, Brown, 1967.

Louis Milic. A Quantitative Approach to the Style Jonathan Swift. The Hague:

Houton, 1967. Style and Stylistics: An Analytical Bibliography. Nova York: Free Press,

1967 J. Middleton Murry. The Problems of Style. Londres: Oxford UP, 1960. Frank O'Hare. Sentence Combining: Improving Student Writing Without Formal

Grammar Instruction. Urbana, IL: NCTE, 1963.

757

RETÓRICA CLÁSSICA PARA O ESTUDANTE MODERNO Arthur Quinn. Figures of Speech. Salt Lake City: Gibbs M. Smith, 1982.

Jacob Reed, ed. The Computer and Literary Style. Kent, OH: Kent State UP, 1967.

R. A. Sayce. Style in French Prose: A Method of Analysis. Oxford, Oxford UP,

1958. Thomas A. Sebeok, ed. Style in Language. Cambridge, MA: MIT Press, 1960.

L.A. Sonnino. A Handbook to Sixteenth-Century Rhetoric. Londres: Routledge,

1968. John Spencer, Nils Erik Enkvist e Michael J. Gregory, eds. Linguistics and Style.

Londres: Oxford UP, 1964. Style, Rhetoric, and Rhythm: Essays by Morris Croll. Ed. J. Max Patrick e Robert

O. Evans with John Wallace and R. J. Schoeck. Princeton, NJ: Princeton UP, 1966. Warren Taylor. Tudor Figures of Rhetoric. Whitewater, WI: Language Press, 1972.

Winston Weathers e Otis Winchester. Copy and Compose: A Guide to Prose Style.

Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1969.

Joan Webber. Contrary Music: The Prose Style John Donne. Madison: University

of Wisconsin Press, 1963. The Eloquent "I": Style and Self in Seventeenth-Century Prose. Madison:

University of Wisconsin Press, 1967. Jean Jacques Weber, ed. The Stylistics Reader: From Roman Jakobson to the Present.

Nova York: St. Martin s Press, 1996.

Paul C. Wermuth, ed. Modern Essays on Writing and Style, 2ª ed. Nova York:

Holt, Rinehart, and Winston, 1969. Thomas Whissen. A Way with Words: A Guide for Writers. Nova York: Oxford

UP, 1982. Joseph Williams. Style: Ten Lessons in Clarity and Grace. Glenview, IL: Scott,

Foresman, 1988. George Williamson. The Senecan Amble: A Story in Prose from Bacon to Collier.

Chicago: University of Chicago Press, 1951. W. K. Wimsatt, Jr. The Prose Style of Samuel Johnson. New Haven, CT: Yale UP,

1963.

758

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Recritic, dara estudanie moderno /Edward Corber, Robert J. Connors, tradução de Bruno Alexander Campinas, SP: Kirion, 2022. Título original: Classical Rhetoric for the Modern Student, 4ª ed., 1999

ISBN 978-65-87404-55-4

1. Educação 2. Retórica I. Connors, Robert J. II. Retórica

CDD 370 / 808-0469

Índices para cacálogo sistemático:

1. Educação - 370 2. Retórica - 808-0469

Este livro foi composto em Adobe Garamond Pro e impresso pela Ferrari Daiko, São Paulo-SP, Brasil,

nos papéis Chambril Avena 70 gr/m? e Cartão Triplex 350 gr/m?.

Se a "retórica" é uma atividade tão difundida na sociedade contemporânea, convém estarmos cientes das estratégias e princípios básicos dessa arte milenar. No mínimo, o conhecimento dessa

arte nos preparará para responder criticamente aos esforços retóricos dos outros, tanto orais quanto escritos. Originalmente, a retórica era uma arte sintética: uma arte para "construir", "compor", alguma coisa. Mas a retórica também

pode ser usada como arte analítica: uma arte para "decompor" o que foi composto, ajudando-nos, assim, na compreensão da leitura.

Á retórica também pode nos ajudar a nos tornarmos escritores mais eficazes. Um dos principais valores da retórica, concebida como um sistema para reunir, selecionar, organizar e expressar conteúdo, é que ela representa uma abordagem positiva em relação às questões da escrita. Muitos alunos viram-se inibidos na escrita pela abordagem negativa da composição ("não faça isso, tome cuidado com aquilo"). A retórica clássica também tinha prescrições negativas, mas, no geral, oferecia conselhos positivos para ajudar os escritores na composição de um tipo específico de discurso, dirigido a um público definido, com um propósito particular. Evidentemente, a retórica não pode nos dizer o que fazer em qualquer situação. Nenhuma arte pode dar esse tipo de conselho. Mas a retórica pode estabelecer os princípios gerais que os escritores adaptarão para uma situação particular. Pelo menos, pode fornecer-lhes um conjunto de procedimentos e critérios que os orientarão na tomada de decisões estratégicas no processo de composição. O caminho para a eloqüência é um caminho árduo e solitário, e a jornada não é para os fracos. Mas se, como nos é dito, a habilidade de usar palavras para comunicar pensamentos e senti-

mentos é nossa realização mais distintamente humana, poucas satisfações na vida igualam-se ao orgulho que sentimos quando dominamos as palavras.

A retórica é a arte ou disciplina que trata do uso do discurso, falado ou escrito, para informar, persuadir ou motivar um público, seja esse

público uma pessoa ou um grupo de pessoas.

A retórica tradicional aborda aqueles casos de um monólogo formal, premeditado e prolongado, em que se busca exercer um efeito sobre o público. Mas, tendo em conta que persuadir é, num sentido mais geral, "fazer acreditar", a de nição passa a abranger não só os modos de discurso argumentativos, mas também os expositivos, que buscam ganhar aceitação para informações ou explicações.

De qualquer maneira, quer estejamos buscando iluminar a razão, satisfazer a imaginação, mover as paixões ou influenciar a vontade, devemos adotar as

estratégias que mais nos ajudem a alcançar nosso objetivo. Nesta edição definitiva de sua Retórica clássica para

o estudante moderno, Edward Corbett, com a ajuda

do pesquisador Robert Connors, torna a antiga arte da retórica novamente viva a acessível, e a

adapta, além do mais, para o uso também na composição escrita. Ao guiar o leitor moderno pela formação característica das escolas do Ocidente por mais de

dois mil anos, instruindo-o nas três partes vitais da retórica — a "descoberta de argumentos", a "disposição do conteúdo" e o "estilo" —, o autor capacita qualquer um que deseje ser capaz de expor suas

idéias com clareza, convencer um público hesitante

ou, com o melhor dos recursos disponíveis e da melhor forma possível, ganhar para si a confiança

da audiência.

fi

9 786587 404554