Predadores: Repensando o Brasil nos seus fundamentos morais 9788556621986

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Predadores: Repensando o Brasil nos seus fundamentos morais
 9788556621986

Table of contents :
Sumário
Agradecimentos
Prefácio
Introdução
Uma denominação obscura
Uma denominação profana
“Nem um homem nesta terra trata do bem comum”
A necessária autoridade moral
Descobrindo o problema moral no Brasil.
Comércio e moral
Antropófagos
Vivendo a antropofagia
“Sou um jaguar. Está gostoso”
Educando
“Sem castigo, não se fará muita coisa”
Idioma e verdade
Pai Tupã
O temor a Deus
A alma humana
A Língua Geral
Trabalho e renúncia
Escravidão e liberdade
Predadores e opiniões
A liberdade de predar
Os pecados de todos igualam todos
Servir a Deus e ao próximo
Secularizando a política e a moral
Ouro e moralidade
A razão irracional
Dos gabinetes para o mundo
Triunfo da razão, triunfo da predação
Uma identidade moralmente desestruturada
Jesuítas rebeldes
A língua geral e seus erros
Escravidão material e escravidão espiritual
Delírios pombalinos e silêncios brasileiros
Os índios e a “sociedade civil”
Agindo contra a eficiência
Destruindo a Companhia de Jesus
Tragédias em Lisboa
Interrompendo o crescimento do Brasil
Expulsando os jesuítas
Gabriel Malagrida e o relativismo moral
A grande pilhagem
A grande pilhagem em desenvolvimento
Saqueando
O triunfo dos predadores
Conclusões: Os predadores e a identidade brasileira
Fontes
Bibliografia

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© Jaguatirica, 2019 © Instituto Realitas, 2019 Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou armazenada, por quaisquer meios, sem a autorização prévia e por escrito da editora e do autor. editora Paula Cajaty revisão Fernando Miranda imagem de capa Os filhos de Pindorama, gravura de Theodor de Bry, 1562 projeto gráfico e diagramação 54 d esign isbn 978-85-5662-198-6 Jaguatirica av. Rio Branco, 185, sala 1012, Centro 20040-007 Rio de Janeiro rj tel. [21] 4141 5145 [21] 3500 1390 [email protected] editorajaguatirica.com.br

Este livro é uma publicação do Instituto Realitas, uma instituição que atua na produção e difusão do conhecimento, e que tem por objetivos o fortalecimento de tendências intelectuais inovadoras e a abertura de novos horizontes para o pensamento brasileiro. Pensar a história do Brasil é uma imprescindível necessidade do nosso tempo. Encontrar as origens dos nossos problemas e particularidades, numa abordagem realista e consistente, é exigência de uma sociedade que precisa dialogar com seu passado e adquirir consciência de sua identidade. A garantia da liberdade do pensamento, sem entraves teóricos que deformam e impedem a apreensão da realidade, é uma demanda intelectual cada vez mais crescente no país. O Instituto Realitas busca cultivar os espaços que possam consolidar essa liberdade e contribuir, assim, para um novo momento intelectual no Brasil. Sumário Agradecimentos Prefácio Introdução Uma denominação obscura Uma denominação profana “Nem um homem nesta terra trata do bem comum” A necessária autoridade moral Descobrindo o problema moral no Brasil.

Comércio e moral Antropófagos Vivendo a antropofagia “Sou um jaguar. Está gostoso” Educando “Sem castigo, não se fará muita coisa” Idioma e verdade Pai Tupã O temor a Deus A alma humana A Língua Geral Trabalho e renúncia Escravidão e liberdade Predadores e opiniões A liberdade de predar Os pecados de todos igualam todos Servir a Deus e ao próximo Secularizando a política e a moral Ouro e moralidade A razão irracional Dos gabinetes para o mundo Triunfo da razão, triunfo da predação Uma identidade moralmente desestruturada Jesuítas rebeldes A língua geral e seus erros Escravidão material e escravidão espiritual Delírios pombalinos e silêncios brasileiros Os índios e a “sociedade civil”

Agindo contra a eficiência Destruindo a Companhia de Jesus Tragédias em Lisboa Interrompendo o crescimento do Brasil Expulsando os jesuítas Gabriel Malagrida e o relativismo moral A grande pilhagem A grande pilhagem em desenvolvimento Saqueando O triunfo dos predadores Conclusões: Os predadores e a identidade brasileira Fontes Bibliografia Notas de fim Para Alan e Celso, inspiradores e coautores, sem os quais este livro não teria sido escrito. Agradecimentos Este livro surgiu de pesquisas realizadas durante alguns anos. Muitas pessoas contribuíram para que os elementos centrais deste estudo fossem consolidados. Inicialmente devo agradecer ao Dr. Ciro Flamarion Cardoso e ao Dr. Jose Andres Gallego. Ambos me convidaram a participar do Projeto “Impacto na América da Expulsão dos Jesuítas” financiado pela Fundação Hernando de Larramendi, em 1998. Coube-me, então, refletir sobre o significado da expulsão da Companhia de Jesus do Brasil. Pude reunir material de pesquisa antigo e novo num trabalho que abriu, pela primeira vez, para mim, a importância do problema. Atitudes decisivas tiveram, para o estabelecimento das teses aqui expostas, o Padre Theodor Peters, S.J. e o Padre Carlos Alberto Contieri, S.J., que me convidaram para palestrar no Congresso do Bicentenário da Restauração da Companhia de Jesus, em São Paulo, em 2014. Pude então retomar e repensar temas anteriores numa nova perspectiva. Nesse Congresso conheci o Pe. Ilário Govoni S.J., que me apresentou ao inquietante livro do Padre Gabriel Malagrida S.J.: Vida e Império do Anticristo . Estudando Malagrida, pude estabelecer relações entre os

acontecimentos daquela época e meus estudos, tanto de filosofia moral quanto dos processos de emancipação do século XVIII . Refletindo sobre as associações entre as transformações do período iluminista e o processo de emergência da nacionalidade brasileira. Neste sentido devo agradecer ao Dr. José Eduardo Franco, que me convidou a expor algumas das conclusões sobre meus estudos sobre Malagrida em Portugal. Ali, pude, por fim, estabelecer alguns elementos gerais de minhas crenças sobre os acontecimentos daquele tempo e o significado deles na história do Brasil. Mas, sem dúvida alguma, e acima de tudo, são merecedores de meu agradecimento Alan e Celso Ryfer, que acreditaram desde o primeiro momento na importância do meu trabalho e me convidaram a escrever este livro. A eles devo, sem dúvida, a culminância desse processo de reflexão. Prefácio Acabei de ler, com muito proveito e entusiasmo , o manuscrito para o livro do historiador e filósofo brasileiro Edgard Leite. Não tenho dúvidas em declarar que este era o livro que faltava para nos ajudar a compreender melhor o Brasil. O autor guia-nos de forma clarividente, através destas páginas lapidares, até às raízes de um problema crônico que tem afetado a primeiramente chamada Terra de Santa Cruz e que nos últimos anos se tem agudizado de forma exponencial com o fenômeno da alta corrupção generalizada entre as elites políticas. Este é, pois, um livro fundamental para quem quiser entender aquilo que podemos chamar a anatomia da crise brasileira de hoje nas suas causas históricas primeiras. Os tempos de crise ou de euforia coletiva são propícios para revisitar e repensar a identidade e o “caráter” de um povo. Assim se tem observado ao longo da história, na sequência de mudanças de regimes, de revoluções ou de ameaças estrangeiras à integridade de uma dada nação. Ora, o Brasil vive um momento crucial da sua história, em que se assiste a uma mudança, quase impensável há poucos anos atrás, da “cor” ideológica de quem assume a liderança ao mais alto nível. Está a decorrer uma viragem com saudades de um passado complexo: para uns, sentido de forma tão dolorosa como trágica e, para outros, considerado exemplar e merecedor de ser reeditado. A transformação que se avizinha e as clivagens das percepções sociais e dos intelectuais sobre o futuro que se espera exigem reflexão ponderada e aprofundada. O ofício dos intelectuais, que tem, infelizmente, sido desvalorizado em tempo de redes sociais e de aceleração das comunicações globais, é importante para dar consistência aos juízos das causas e dos efeitos daquilo que podemos chamar o grande problema do Brasil: um país imenso, detentor de inúmeras potencialidades para se tornar uma potêncialíder do mundo, mas que tem revelado dificuldades em gerir com eficácia e em favor do bem comum do país no seu conjunto os seus extraordinários recursos. O Brasil estabeleceu, nas últimas três décadas, uma democracia com um perfil, do ponto de vista do ideário fundador de “Ordem e Progresso”, auspicioso. Muitos chegaram a augurar para este país imenso um lugar

cimeiro entre as grandes potências do mundo, uma posição liderante no clube emergente do chamado BRIC (Brasil, Índia e China). E esse lugar ainda lhe pode ser devido, se for merecido e justamente conquistado. Todavia, como escreveu um pensador português, Manuel Antunes, num livro intitulado Repensar Portugal, escrito logo na sequência da Revolução Portuguesa dos Cravos, a 25 de abril de 1974, não basta proclamar a democracia, é preciso merecê-la. E depois da revolução política e econômica, é preciso fazer a revolução moral, que passa pela transformação da cultura e das mentalidades. Vale a pena recordar essas palavras, que podem servir para inspirar o caminho a trilhar no Brasil de hoje: “Procedeu-se a uma revolução política. Procedeu-se a uma revolução económica e social. Procedeu-se, até certo ponto, a uma revolução cultural. E a revolução moral? Sem ela, as outras revoluções correm o risco de não passarem de perversões. Sem ela, uma corrupção sucede fatalmente a outra corrupção ou, talvez pior, a antiga perpetua-se. Sem ela, a ‘exploração do homem pelo homem’ muda apenas de campo. Impõe-se, consequentemente, uma revolução moral. Uma revolução moral que está, quase toda ela, por fazer. Que espécie de revolução moral? Uma revolução moral que articule o sentido do passado com o sentido do futuro; uma revolução moral que renove o vínculo patriótico e nacional; uma revolução moral que chegue aos campos, esses deixados por conta de todas as revoluções deste País; uma revolução moral que, assumindo os domínios político e económico, os transcenda a um nível superior de comunidade e comunhão; uma revolução moral que, pelo facto de o ser e para o ser, promova o sentido da criatividade, do pensamento e da vida; uma revolução moral que não ignore as questões últimas que a existência a si própria se põe; uma revolução moral que saiba unir cultura popular e alta cultura; uma revolução moral que inspire a mobilização das energias nacionais, que ligue, orgânica e dialeticamente, as diversas realidades do País, e que, fazendo-o, funde um novo consenso histórico; uma revolução moral, sobretudo, que ensine a conjugar justiça e solidariedade, liberdade e honestidade. Porquê uma tal revolução? Porque só a totalidade é concreta e só a totalidade é compreensível. Porque, muito mais que a instituição de novas estruturas, importa a qualidade dos homens que habitam essas mesmas estruturas. Porque a credibilidade externa e a coerência interna da ‘nova sociedade’ não serão mais do que palavras vãs se essa ‘nova sociedade’ não for animada pela vontade, séria, de instaurar uma vida nova com novos costumes, com novo modo de pensar, de tratar os problemas, de decidir, com novo estilo de comportamento: menos arbitrário, mais justo, mais solidário.” Nos últimos anos, têm estado a vir a lume algumas importantes “biografias” do Brasil, que estão a configurar uma nova literatura da identidade brasileira. É o fruto sazonado deste tempo de crise. Estas obras atendem precisamente ao afã de procurar compreender este país, que muitos apelidaram, com sinceridade, de “maravilhoso”, e que alguns pensadores utópicos acreditaram ser (como p. Ex. António Vieira e Agostinho da Silva) o país-laboratório do futuro, do Quinto Império, da mistura e da síntese de todas as raças em nome de um ideal de humanidade multicor, una e diversa. Só esse sonho já vale um país e indica essa prometeica capacidade que está no ADN brasileiro de poder resistir, subsistir e superar todas as crises.

O presente livro de Edgard Leite é um contributo importante para esta nova literatura da identidade brasileira, repensando o Brasil a partir dos seus fundamentos e derivas para realizar o diagnóstico necessário das causas da corrupção sistêmica que tem impedido o seu país de se consolidar econômica e politicamente como um Estado moderno, forte e merecedor da confiança dos seus concidadãos e das nações estrangeiras. Esta é uma obra que estabelece a etiologia da histórica “doença” do Brasil. Estabelecida a etiologia, será mais fácil gizar os remédios. Além de exemplarmente bem escrito e bem fundamentado, este estudo de Edgard Leite ensina muito sobre a história das perce pções e dos protagonistas da construção e da desconstrução de um projeto de país que se veio a chamar Brasil, dos primórdios do Brasil Colônia até ao século XVIII . Neste exercício de fazer “ciência das causas”, Edgard Leite traça os perfis dos protagonistas e dos “antiprotagonistas” da edificação de uma nação, da formação de um povo que poderia augurar tornar-se grande e ser líder entre as nações. Aqui, nestas páginas, encontramos os protagonistas e os que defenderam a formação do Brasil num quadro de valores de exigência, de coerência moral, de qualidade, de procura da excelência, da integração e do respeito pela diversidade. Ao mesmo tempo, é-nos dado a observar paralelamente neste livro o trabalho incessante dos que olharam este país pleno de riquezas como território de cobiça, de saque, de enriquecimento fácil e sem critério, desligado de qualquer preocupação com o bem comum. Nem sempre os campos em tensão são claros, divisíveis e distinguíveis e, por vezes, interpenetram-se. Daí a complexidade da análise. De qualquer modo, a vitória foi e tem sido dos predadores. E o remédio? Este estudo faz o diagnóstico e abre a janela para a saída da grande encruzilhada em que se encontra o Brasil. O Brasil precisa de uma revolução ética, de um quadro de valores claro, de um compromisso moral, a começar, naturalmente e necessariamente, pelas elites políticas. Carece do compromisso com os valores da autêntica política, em que o ideal primeiro é o serviço do povo e a sua qualificação através do melhoramento das condições materiais, culturais e espirituais. Este livro consagra Edgard Leite como um pensador de referência da identidade brasileira que merece ser lido e pensado de forma consequente, para que o Brasil mereça, pois tem excelentes condições para isso, o lugar cimeiro que pode augurar na grande história do mundo. — José Eduardo Franco Professor Catedrático da Universidade Aberta, CIDH Cátedra FCT – Infante Dom Henrique de Estudos Insulares e da Globalização; Diretor-Adjunto da CLEFUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Européias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Introdução

É evidente que o Brasil possui um problema moral. Não que outras nações não tenham dificuldades nessa área. Há sempre um risco ou uma imprecisão quando se devem tomar atitudes de cunho moral. Os desejos são hostis ao bom comportamento. Mas o caso do Brasil é muito especial, nesse aspecto. Em geral, as sociedades funcionam bem quando as pessoas acreditam em um horizonte moral. Ou, no caso das sociedades contemporâneas, caracterizadas pelo pluralismo moral, quando acreditam em horizontes morais, no plural, e esses são limitados pelos objetivos mais gerais da Pátria ou da Nação. As atitudes boas ou más são tomadas tendo em vista esses limites, que definem a correção no relacionamento com o outro, e estabelecem os parâmetros do bom funcionamento do social. São elementos de aplicação geral. Quando se transgride algo, sabe-se que está sendo ultrapassado um limite. Trata-se de uma escolha consciente e que tem custos pessoais e sociais. Há dúvidas se, no Brasil, a existência de limites morais é assumida como real pela sociedade, ou pelos seus diversos grupos. Diferente de outras nações, no Brasil parece que muitas transgressões não são conscientes, ou não suscitam atitudes de arrependimento. Quando vemos políticos ou criminosos sendo processados, é espantoso perceber que as atitudes, em muitos deles, diante do teor das transgressões, beira a total neutralidade. Como se a parte que os processa estivesse vivendo em um outro mundo, de valores morais irreais ou desconhecidos. Atuam tais transgressores como se realmente não soubessem definir a diferença entre o bem e o mal. Ou como se essa diferença não existisse. Há, nos seus movimentos, apenas a expectativa de alcançar o objetivo que pretendem ao cometer a transgressão. Esse objetivo é alcançado sem qualquer atitude que implique em reconhecimento de limites morais às ações. As leis, caso existam, são consideradas adereços sem maiores significados. Isso porque a não aceitação de princípios morais, ou seja, de valores maiores que os desejos individuais, também conduz ao desprezo pela Lei. Mesmo porque a aceitação da Lei implica numa submissão a algo maior. A própria Lei acaba também por ser leniente, porque está inserida em uma rede de cumplicidades que aceita esse subjetivismo moral como regra. Agem, muitos brasileiros, como predadores. De onde vem nossas particularidades nesse assunto? Que momentos foram decisivos para configurar essa visão ambígua do bem e do mal? Parece-nos que o problema é estrutural, e está ligado à aspectos centrais da formação da sociedade brasileira. Sustentamos, neste estudo, que uma série

de acontecimentos, que se desenrolam desde o século XVI , propiciou a formação de uma sociedade de costumes morais lenientes. A observação desse fato não é nova, e remonta aos primeiros intérpretes da sociedade brasileira, como Pero de Magalhães Gandavo e Frei Vicente de Salvador, nos séculos XVI e XVII . Ambos foram unânimes em apontar a falta de compromisso que os brasileiros expressavam, com a terra e com a coletividade. Ou seu profundo egoísmo. O egoísmo dos primeiros povoadores do país, ou a necessidade de realizar apenas o que era de seu interesse, acabou por formatar um padrão de comportamento. Padrão esse que encontrava amparo na população local, pois os índios também não sabiam o que era pecado . Ou a sua dimensão de bem e mal era outra, adequada a uma sociedade pré-urbana, fundamentada por uma religião centrada no diálogo com espíritos e outras forças invisíveis e aleatórias. O reconhecimento e valorização dos costumes indígenas, como se fez aqui no Brasil, não era em si um problema. Europeus fizeram isso o tempo inteiro ao longo dos Descobrimentos, em outros povos e civilizações. O problema, aqui, foi que a partir desse reconhecimento foram encontrados fundamentos para adoção de um relativismo moral cotidiano e insistente. Tal comportamento negou que a própria moral daquele que reconhecia o outro, a dos europeus, fosse absoluta. Também ela era relativa. Isso era muito inquietante. Inquietante porque gerou uma forte inconsistência nas decisões que foram tomadas pela sociedade, tanto diante de outros como do bem comum. Os referenciais maiores se perdiam e se confundiam. A recusa em aceitar autoridades que pudessem estabelecer limites morais é outro aspecto central desse desenvolvimento de identidade. Desde o período colonial entendeu-se que era mais agradável, interessante ou necessário, fazer repousar a legitimação dos atos exclusivamente a partir de interesses particulares. Tudo aquilo que vinha de fora e que estabelecia alguma dimensão que circunscrevesse a potência do indivíduo, de sua família ou de seus amigos, deveria ser recusada, e por isso a recusa da Lei. Ao contrário de algumas sociedades latino-americanas, onde a existência de valores morais foi imposta de forma mais ou menos bem-sucedida, aqui a recusa em aceitar qualquer padrão de conduta acabou por impor-se, ao final. Tal recusa imprimiu uma marca profunda na nossa sociedade. No entanto, parece-nos que o perfil predatório da ocupação portuguesa da América não se tornou dominante senão em meados do século XVIII . Por muito tempo antes disso, havia um esforço intenso para que esses aspectos fragmentadores fossem controlados. Assim, tão logo ficou claro aos

portugueses o quão descontrolada era a situação do Brasil, e quando se avaliou o quanto isso prejudicaria o bom andamento dos negócios da terra, Portugal associou-se à Companhia de Jesus. A associação entre a Coroa portuguesa e os jesuítas, no Brasil, duraria 210 anos. Ao longo desse período, a Companhia de Jesus atuou intensamente para estabilizar a sociedade e impor, nela, um ordenamento moral. Tal ordenamento tinha, como objetivo, tornar os habitantes receptivos a uma cultura de obediência e equilíbrio, onde a contenção dos desejos, a renúncia ao prazer imediato, era entendida como antessala da prosperidade. O conflito entre essa prosperidade, que implicava em experiências de longa duração, e a gratificação instantânea dos desejos, marcou os primeiros séculos da nossa história. Este estudo é uma tentativa de dimensionar como, no conflito instalado na sociedade brasileira desde a chegada dos primeiros jesuítas, em 1549, até a definitiva expulsão da Companhia, em 1759, os elementos do espírito predador amadureceram e se desenvolveram. Os jesuítas fizeram insistentes tentativas em separar brancos e índios, cristianizar uns e outros, promover a organização de famílias. Objetivavam criar uma sociedade onde a hierarquização pudesse ser mantida por conta de submissão a valores morais de fundo religioso e assim permitir a preservação da cultura europeia e uma virtuosa ação dessa sobre os nativos. Estabelecendo, para todos, um horizonte de realização do bem comum. Tal projeto visava acima de tudo ao lançamento de bases seguras para a prosperidade do Brasil. As reformas pombalinas, no entanto, cujos objetivos eram outros, acabaram estabelecendo uma pauta estranha e paradoxal de conexão entre a razão europeia e a irracionalidade da cultura brasileira. A expulsão da Companhia de Jesus foi um momento decisivo no processo de consolidação daquilo que viria a ser o Brasil. Principalmente porque eliminou a principal força que atuava no sentido da formação moral da sociedade. Pretendemos discutir como esse processo se desenrolou, entre 1549 e 1759. Analisaremos de que maneira, em confronto permanente com a Companhia, deu-se o fortalecimento das posições predatórias. E como, após a expulsão, tudo pareceu se consolidar na direção do estabelecimento de uma sociedade individualista e imediatista, desinteressada até mesmo da própria manutenção da estabilidade de seu cotidiano. O problema moral brasileiro repousa em conflitos permanentes. De um lado, os que acreditam que a sociedade deve ser pautada por um comportamento compromissado com o bem comum e a harmonia social. De outro, aqueles que sustentam que as causas particulares ou excludentes são superiores a qualquer regra que possa existir no âmbito do coletivo – os predadores.

O conflito fundador desse problema, no Brasil, foi entre a Companhia de Jesus e aqueles que se opunham a qualquer disciplina moral. Nesse caso, o conflito terminou com a derrota dos moralistas. Esse conflito se desenrolou, ao longo dos séculos, com a contínua vitória dos predadores. Mas a luta entre ambas as tendências ainda segue. Mesmo porque, nas mãos dos predadores, o país sempre corre o risco de desaparecer. Uma denominação obscura A utilização do nome Brasil, para designar um lugar, é antiga. Tradições celtas medievais assim denominavam uma ilha mítica, supostamente situada ao largo da costa da Irlanda. Acreditava-se que estava permanentemente envolta em neblina e raramente era visível. A primeira referência documentada a esse lugar misterioso está no mapa de Angelino Dalorto, de 1325. Segundo Pereira Ferraz ¹ , mapas antigos, como o Atlas dos Medicis (1339), diziam que eram duas as ilhas com esse nome. Uma localizada, de fato, na costa da Irlanda, e outra na altura do Cabo de São Vicente, em Portugal. Os irmãos Pzigani, em 1347, colocaram mais uma com a mesma denominação, na altura da Bretanha. O nome foi grafado de diferentes maneiras: Brazil , como no atlas catalão de 1375, Brazie , Bracie ou Bracir , no mapa dos Pzigani. A etimologia da palavra é obscura. Alguns sustentam que vem do celta e do gaélico, com sentido de “grandeza”, ou “beleza”, e outros do latim brasas , “brasa”. Outros, ainda, que apenas evoca o nome de um antigo clã irlandês. O naturalista prussiano Alexander Von Humboldt (1769 – 1859) achava que essa ilha fazia parte dos Açores. E, de fato, há, na Ilha Terceira, um monte Brasil, evocando antigas ansiedades de navegantes, no sentido de descobrir, afinal, esse lugar lendário. Que o lugar era mítico, não havia dúvidas para os navegadores que se aventuravam pelo Oceano. Muitos, como Jay Junior, em 1480, e John Cabot, em 1497, buscaram localizá-la, de forma infrutífera, no Atlântico Norte. Juan de La Cosa, em 1500, considerou tê-la encontrado nas Antilhas, perto da costa das pérolas (Venezuela). E na Hispaniola (Haiti), existia, em 1499, um Porto del Brasile . Mas é no atlas de Schöner (1515) que o termo passa a denominar não uma ilha, mas um continente inteiro, chamado Brasilie Regio . Ele estava localizado ao sul do Atlântico, aparentemente confundido com a Terra do Fogo, ou com a Antártida. 1 FERRAZ , A.L. Pereira: Terra da Ibirapitanga . Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1939. p. 18.

Uma denominação profana O que é certo, no entanto, é que o navegante português Pedro Álvares Cabral, que atingiu o litoral atlântico da América do Sul em 1500, não chamou a região de Brasil , mas sim de Santa Cruz . O nome foi dado não apenas por óbvias razões religiosas, em gratidão a Deus, mas também por conta da empresa que financiou a viagem de descoberta, a Ordem de Cristo, cujo símbolo era uma Cruz. A Ordem de Cristo era uma ordem religiosa e militar, herdeira das propriedades e privilégios dos Templários. As jornadas de expansão e descoberta, como aquela, eram projetos seus, institucionais. Ilha da Cruz, portanto, é o nome com o qual esse litoral atlântico da América do Sul aparece em documentos da primeira década do século XVI . Terra da Santa Cruz, em outros. Em mapas produzidos entre 1520 e 1525, aparece a região, eventualmente, denominada também como Terra dos Papagaios, Terra Papagalli . Por conta da relevância que o comércio de aves silvestres tinha nos primeiros momentos. A questão, entretanto, é que naquele litoral, bem como por grande parte da costa atlântica sul-americana, crescia uma árvore, que passou a ser chamada Pau-brasil ( Caesalpinia echinata Lam ou Paubrasilia echinata ). Chamadas pelos indígenas, eventualmente, de Ibirapitanga . Dela se extraia uma tintura de cor vermelha, cuja tonalidade caiu no gosto dos europeus e que passou a servir, entre outras coisas, para tingimento de tecidos de luxo. Tal tintura teve imenso sucesso comercial, na época. Até aquele momento, na Europa, consumia-se o verzino ou berzi (como era chamado nos mercados italianos). Tratava-se de uma tintura, também avermelhada, de diferentes procedências vegetais, utilizada desde tempos antigos. Vinha do Oriente. Nos mercados franceses, espanhóis e portugueses, era chamada de brezil , bresillum , ou brasil . O produto sul-americano, tendo dominado aos poucos todo mercado, tomou, assim, aquele nome já conhecido. Era mais barato, abundante e de uma tonalidade original. A partir da segunda década do século XVI , portanto, começa a aparecer, nos mapas, a designação da região como Terra Brasilis , Terra do Brasil. Por isso, escreveu certa vez o historiador Capistrano de Abreu (1853-1927), ser a palavra Brasil “um nome à procura de aplicação” ² . Por ser anterior ao próprio processo de ocupação portuguesa do litoral da América do Sul. Dois diferentes fenômenos associaram-se ao termo, portanto.

O primeiro era a crença em uma ilha mítica, uma terra lendária, mencionada em tradições celtas, que se acreditava existir em algum lugar diante da Irlanda ou da Europa. Navegantes do século XVI buscavam ou julgavam encontrar esse lugar misterioso em suas jornadas pelo Atlântico. O outro era a utilização de uma tintura, extraída de uma árvore, que, com diferentes tonalidades avermelhadas, era comercializada, na Europa, desde a antiguidade. No litoral sul-americano encontrou-se uma árvore da qual se extraia uma tintura igualmente vermelha e que, portanto, foi conhecida como Pau-brasil. Esses dois elementos totalmente diversos juntaram-se, de maneira muito misteriosa, para o nome final da região. A denominação começou a aparecer nos mapas, fundindo preocupações comerciais com outras denominações geográficas com as quais se mesclou. E, por fim, o nome acabou sendo adotado pelas instituições oficiais de uma forma espontânea. E, antes de ser oficializada, já era amplamente utilizado por cronistas, administradores, povoadores. A sua continuidade como denominação geográfica, territorial, nacional, expressa um mesmo enigma, nebuloso, presente na história da sociedade que ele acabou por identificar. Portanto, no litoral ocidental da América do Sul, os indígenas que derrubavam as árvores para embarcá-las nos navios eram, a princípio, chamados brasis . Porque se dedicavam ao trabalho de entregar essa árvore, e de tal forma o fizeram que conduziram à sua quase extinção em todas as florestas do litoral. Os agenciadores dessa produção, aqueles que comercializavam esse produto, extraído sem controle do que hoje se chama mata atlântica, eram os brasileiros . 2 ABREU , Capistrano: Capítulos de História Colonial . Rio, 1928 p.42 “Nem um homem nesta terra trata do bem comum” Essa transmutação de nome foi entendida, no início do povoamento, como possuindo uma dimensão religiosa e moral. A primeira denominação, “Santa Cruz”, era entranhada de religiosidade e traduzia a ideia de que aquela região estava inserida em um projeto maior: da Ordem de Cristo, de Portugal católico, da cristandade. E que a terra era abençoada, por ostentar tal nome, que representava, entre outras coisas, a redenção do ser humano. A segunda denominação, “Brasil”, era mais concreta, estava relacionada a razões eminentemente profanas, do mundo, e homenageava um produto específico, uma mercadoria. A extração desse produto caracterizava, de

forma exemplar, o caráter do relacionamento entre os primeiros visitantes e a terra: destruição, contínua e sistemática, em prol de um comércio massivo. Sustentado pela vaidade humana. Pero de Magalhães Gandavo (c. 1540-1580), um rico empresário português que viveu na Bahia, escreveu sobre o assunto, em 1576, defendendo o sagrado nome dado por Pedro Álvares Cabral: Por onde não parece razão que lhe neguemos este nome, nem que nos esqueçamos dele, tão indevidamente, por outro que lhe deu o vulgo mal considerado, depois que o pau da tinta começou de vir a estes Reinos; ao qual chamaram brasil por vermelho, e ter semelhança de brasa, e daqui ficou a terra com este nome de Brasil. Mas para que nesta parte magoemos ao demônio, que tanto trabalhou e trabalha por extinguir a memória da Santa Cruz e desterra-la dos corações dos homens … tornemos a lhe restituir seu nome e chamemo-la de Província de Santa Cruz ³ . Defendia Gandavo, portanto, que o nome “Brasil” não tinha qualquer qualidade, pois vinha do “vulgo mal considerado”, ou seja, dos brasileiros , cujas ações eram exclusivamente fundadas em motivações materiais. E, pela própria forma descontrolada como se dava o comércio, também isentas da observância de regras aceitáveis de conduta moral, na perspectiva dada pela tradição religiosa católica. Em tais ações, em sua opinião, agia o demônio, pai da mentira e dos pecados. Em 1627, Frei Vicente de Salvador (1564-1636), intelectual nascido na Bahia, também lamentou que o nome original da terra, que era o do “divino lenho da cruz”, “Santa Cruz”, tivesse sido substituído pelo “de Brasil, por causa de um pau assim chamado, de cor abrasada e vermelha, com que tingem panos”. Não tinha dúvidas, igualmente, de que isso fora “obra do demônio” “que trabalhou para que se esquecesse o primeiro nome”. A substituição de uma denominação derivada de uma madeira sagrada para uma outra derivada de uma madeira profana era, para ele, na medida em que sacrilégio, uma das razões do despovoamento do Brasil, da sua indigência social e de seu atraso econômico: E porventura por isto, ainda que ao nome de Brasil ajuntaram o de Estado … ficou ele tão pouco estável que, com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoados alguns lugares e, sendo a terra tão grande e fértil… nem por isso vai em aumento, antes em diminuição ⁴ . Sendo ou não obra do demônio, era claro, para ambos os cronistas, que o nome evocava principalmente a presença das inclinações não religiosas dos primeiros povoadores. Eram eles fundadores, assim, de uma identidade que o tempo tornava repleta de sentimentos de afastamento do bem, do correto, do sagrado. E quem eram esses brasileiros ?

Em 1954, Viana Moog (1906-1988) publicou Bandeirantes e Pioneiros , um estudo muito detalhado sobre as diferenças entre a colonização nas treze colônias inglesas e no Brasil. Ali, afirmou que Há desde logo uma fundamental diferença de motivos no povoamento dos dois países: um sentido inicialmente espiritual, orgânico e construtivo na formação norte-americana, e um sentido predatório, extrativista e quase só secundariamente religioso na formação brasileira ⁵ . O caráter predatório dos primeiros povoadores possuía diversas dimensões. Entre elas, um desprezo acentuado pelas coisas que não servissem para o comércio, bem como a ausência de preocupações maiores com o local em que viviam. Porque o pau-brasil ia para fora, assim como os papagaios e outros produtos da terra. E escreveu Frei Vicente de Salvador: e deste modo se hão os povoadores, os quais, por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, se as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhes houveram de ensinar a dizer como aos papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é: papagaio real para Portugal ... E isto não tem só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída ⁶ . E por pouco, como já observamos, a terra não se chamou “Terra dos Papagaios”. O Brasil era experiência transitória. Vivia-se e enriquecia-se aqui, para logo depois, quando se esgotavam as fontes de riqueza, voltava-se para Portugal. Existia ali um individualismo exagerado, que passava pela prioritária satisfação pessoal de necessidades, desconsiderando regras e normas coletivas e limitadoras. Na época, tais regras e normas eram entendidas como de origem divina, racionais ou naturais. Tratava-se de uma existência pouco ou nada virtuosa, mas que, principalmente, não respeitava princípios morais firmes e consistentes, ou não se prendia à “lei natural”, isto é, normas determinadas por Deus e cuja lógica era compreensível pela razão humana. No século XVI viveu-se um interesse muito grande pela “lei natural”, na perspectiva de São Tomás de Aquino. Este afirmou que existia uma grande diferença entre os animais, que agiam movidos por instinto, pela paixão, e os homens, que possuíam a capacidade de conhecer seu fim e estabelecer relações entre meios e fim. Para Aquino, embora existisse um instinto natural, ou natureza animal, no homem, que o obrigava a acasalar e ter filhos, existia igualmente uma natureza racional, que o obrigava, através das leis, a manter acordos, pactuar entendimentos, atuar em prol do bem comum.

“Nos assuntos humanos, uma coisa é tida como justa quando é correta em função da razão. Mas a primeira lei da razão é a lei natural” ⁷ , explicou São Tomás. Assim, naqueles primeiros momentos, acima de tudo, na visão desses críticos fundadores, não se observava o universal respeito ao bem comum. Diríamos hoje que professavam os primeiros povoadores uma forma selvagem de subjetivismo moral. As coisas eram boas porque eram boas para eles. Não havia razão, nem lei natural. Frei Vicente de Salvador, para ilustrar a natureza do problema, contou a história de um bispo de Tucumán (atual Argentina) que passou pelo Brasil, indo para o Reino. Era na época da União Ibérica. Precisando de mantimentos, “mandou comprar um frango, quatro ovos e um peixe, para comer, e nada lhe traziam, porque não se achava nem na praça nem no açougue” ⁸ . A solução para isso foi pedir “as ditas coisas, e outras muitas, a casas particulares” e estas então as enviaram. Concluiu o bispo que “nesta terra andam as coisas trocadas, porque ela não é republica, sendo-o em cada casa”. Assim, concluiu Frei Vicente, o problema central do Brasil era realmente o desprezo pelo espaço público e uma excessiva particularização dos interesses, voltados para priorizar o espaço privado, ou de colocar os sentimentos individuais como única referência, acima de qualquer outro sentimento, do outro ou coletivos. Ou acima da palavra de Deus. Muitos anos depois, em 1936, um historiador brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), analisou, de forma comparativa, a colonização da América portuguesa e da América espanhola, em seu livro Raízes do Brasil . Denominou a ação de expansão espanhola de “ladrilhadora”, isto é, construtora, e a portuguesa de “semeadora”. Ele caracterizou a colonização hispânica como ordenadora, definida por leis e regulamentos, que disciplinavam uma política clara de povoamento e de estabilidade política e institucional, principalmente das áreas públicas. Estabelecendo o bem comum como princípio. Por outro lado, viu, na forma como o Brasil foi sendo ocupado, a existência de uma permanente leniência com relação ao processo de fixação de populações. Não havia regras nem políticas uniformes, e as cidades portuguesas na América, ao contrário das espanholas, não tinham um traçado previamente estabelecido, e apresentavam um perfil caótico, repleto de improvisações intuitivas. Sergio Buarque propôs que a natureza desse processo, no caso do povoamento português, era o saque, a extração de recursos, sem maiores perspectivas moralizadoras. Não era voltada no sentido do bem comum e da vivência de experiências virtuosas, diríamos nós.

Assim, concordando com os primeiros observadores coloniais, entendeu que o individualismo predatório seria uma marca contínua e trágica do povoamento. A medida da responsabilidade das ações institucionais portuguesas nesse assunto é matéria polêmica e a ser debatida. A posição de Buarque de Holanda parece hoje um pouco exagerada. É sempre mais fácil responsabilizar os outros. Como veremos adiante, não faltaram esforços de sucessivos monarcas lusitanos em colocar ordem em tal realidade, de forma direta ou indireta. Na verdade, como os próprios cronistas coloniais apontavam, eram os brasileiros, os que aqui estavam, e não os portugueses que em Portugal viviam, os que mais resistências opunham à qualquer autoridade que pudesse limitar a liberdade irresponsável que experimentavam. Recusavam qualquer poder que estabelecesse a superioridade do público sobre o privado. Buscavam desprezar as dimensões coletivas e hipertrofiavam o particular, na busca da realização de seus interesses. Segundo Sergio Buarque, a “cordialidade” era uma atitude típica desses agentes sociais. Longe de um ato de altruísmo, era uma maneira de evitar conflitos, através de atos conciliatórios. Tudo isso no sentido de preservar projetos específicos, de cunho pessoal e familiar, diante da possibilidade de conflitos, jurídicos e políticos, nos quais causas privadas se submeteriam necessariamente a causas maiores, e cujo desfecho poderia implicar em perdas. Ou em ganhos para o todo. Tinham assim razão Pero Gandavo e Frei Vicente do Salvador, quando viam nesse nome, Brasil , o elemento identificador de uma sociedade desprovida de fundamentos sólidos que a caracterizariam enquanto sociedade. Tal nome designava uma identidade social construída em torno do usufruto do imediato, apenas. Identidade denominada por uma madeira que “não serve de mais que tingir panos ou coisas semelhantes” ⁹ . Assim, ao denominar-se a partir de um evento que nada construía, no país, para todos, mas apenas se realizava na vaidade pessoal e em experiências efêmeras de moda, assumia-se a terra como desprovida daquele espírito moral que dá origem a uma sociedade ordenada. Cujas relações e condutas, controladas, devem conspirar em prol do todo. Quando Frei Vicente de Salvador se pergunta se “a culpa” da situação do Brasil, de seu tempo, era dos “reis de Portugal” ou dos “povoadores”, não sabe responder com exatidão. Mas sustenta que eram sim os povoadores, os que “usam da terra não como senhores, mas como usufrutuários, só para desfrutarem e a deixarem destruída”. “Donde nasce também que nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular” ¹⁰ . 3 GANDAVO

, Pero de Magalhães: História da Província de Santa Cruz . Lisboa, Academis Real de Ciências, 1858. p.3. 4 SALVADOR , Frei Vicente de: História do Brasil, 1500-1627 . São Paulo, Weizflog, 1918. p. 16 5 MOOG , Vianna Bandeirantes e Pioneiros, Paralelo entre duas culturas. Porto Alegre, Editora Globo, 1957 p. 131 6 VICENTE DO SALVADOR , Frei: História do Brasil, 1500-1627 . São Paulo, EDUSP , 1982. pp.57-58. 7 AQUINO , São Tomás de: Suma de Teologia . vol. II , Madrid, B.A.C., 1989 questão 95. p.742 8 SALVADOR , Frei Vicente de: Idem , p.16 9 GANDAVO , Pero de Magalhães: Tratado da terra do Brasil, no qual se contém a informação das cousas que há nesta parte . São Paulo, EDUSP

, 1980. p.80 10 SALVADOR , Frei Vicente, Idem , p. 16 A necessária autoridade moral Quando Frei Vicente afirmou que nenhum “homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum”, sustentou, portanto, que não havia princípios morais dominantes que pudessem estabelecer o bem comum como limite para os desejos ou inclinações individuais. Entre outras razões, porque parecia inexistir uma autoridade moral reconhecida por todos ou pela maioria. Isso levava, na sua opinião, a uma descaracterização da condição humana, a uma impossibilidade de reconhecimento do próximo como um igual, a uma desagregação dos elos de solidariedade. Acima de tudo conduzia à impossibilidade da vivência da “regra de ouro”, isto é: tratar os outros como a pessoa aceitaria tratar a si mesmo, na mesma situação. Não havia empatia ou solidariedade. Tratava-se da ausência desse essencial tema ético, bíblico e universal. Essa realidade tinha dimensões maiores, e que podiam ser explicadas a partir de fenômenos sociais europeus. Ela era derivada, em parte, dos problemas que a Europa ocidental e central vivia, no decorrer do Renascimento e dos Descobrimentos (séculos XIV – XVI ). Tratava-se de um período, na Europa, de grandes transformações sociais e existenciais. Experimentava-se, então, em graus variáveis de grandeza em diferentes povos e regiões, um intenso desenvolvimento do comércio e uma ampliação incontrolável do sistema monetário, numa dimensão nunca antes vista. O problema não era, em si, o comércio ou o dinheiro. O ponto é que havia uma crescente tendência em viver, através das mercadorias ou dos desejos, os aspectos mais imediatos e materiais da vida, afastando a consciência de objetivos mais propriamente espirituais ou virtuosos. Tendia-se a tornar o egoísmo e a hostilidade ao próximo, o seu desconhecimento, em experiências comuns e entendidas como morais, afastando-se da consideração do bem comum como horizonte. As reformas religiosas, tanto a protestante quanto a católica, buscavam estabelecer formatos de experiência espiritual nos diversos campos da existência humana diante dessas novas realidades. Recolocando os valores divinos (e humanos) e as virtudes como elementos centrais a presidir os atos em sociedade, trabalhando pelo reconhecimento do humano no outro, ou trabalhando contra o hedonismo, isto é, o culto do prazer enquanto estilo de vida, então florescente.

As ações da Igreja católica nesse assunto, portanto, não visavam apenas fazer frente a um novo paradigma religioso, representado pelos protestantes, em seus diversos matizes, especialmente pelo calvinismo – que buscavam uma harmonia maior entre as coisas do mundo e as coisas do Espírito. A Igreja também considerava a realidade que dava origem à Reforma protestante. Uma realidade de desarticulação moral. Atuou, assim, de forma decisiva para lidar com os novos problemas oriundos de uma sociedade mais urbana, individualizada, centrada no dinheiro, na satisfação de prazeres físicos ou sensoriais, e que vivia sob novos desafios culturais derivados da descoberta de outros povos e civilizações. O problema do subjetivismo moral era acompanhado por um outro, igualmente complexo, que era o de uma nascente experiência dos relativismos cultural e moral. Como impedir que o ser humano, se deslocando por uma vida sem virtudes, não fosse tentado a, primeiro, entender que o bom era aquilo que lhe fazia bem, apenas? Ou, segundo, fosse tentado a achar que bom era aquilo que era bom para as outras culturas, mesmo que isso fosse contrário àquilo que definia o bem, pela sua razão ou pela sua religião? Tal problema não era desconhecido pelos governantes portugueses. Era vivido por eles, como dirigentes ou como seres humanos. A incapacidade do clero secular da época, o clero das paróquias, ou das autoridades civis, em lidar com o assunto era evidente, porque eram frágeis os elementos conceituais ou institucionais para lidar com aquela realidade, naquela conjuntura. A Igreja católica, no entanto, a partir da administração do Papa Paulo III (1534-1549) e durante o Concílio de Trento (iniciado em 1545), forneceu alguns elementos para lidar com os desafios do mundo ao espírito. Uma das instituições católicas mais atuantes e importantes nesse sentido foi a Companhia de Jesus, aprovada pelo Papa Paulo III , através da Bula Regimini Militantis Ecclesiae de 27 de setembro de 1540. Este ato papal foi a culminância de uma longa e intensa pregação religiosa comandada pelo espanhol Santo Inácio de Loyola (1491-1556). Santo Inácio era um místico, mas teve a particular sensibilidade de dialogar com os temas do mundo. Acreditava na capacidade humana de discernimento, e no uso da razão. O Padre Serafim Leite anotou, sobre o assunto: “Até então a vida religiosa considerava-se como afastamento do mundo. Santo Inácio integra sua ordem no mundo e faz dela uma campanha para a conquista do mundo” ¹¹ . Entre outras, sua proposta era ordenar as coletividades, e os homens que nelas vivem, suas normas e objetivos, dentro dos valores morais superiores. Por intermédio da Igreja, da Palavra de Deus e através da razão, com a qual se encontra o entendimento da lei natural, que é obra de Deus.

Os efeitos dessa ação sobre o comportamento moral deveriam ser bemsucedidos, no decorrer da harmonização entre as novas demandas individualistas e a introjeção da ética cristã e da ordem natural das coisas. Por isso acreditavam os jesuítas nos reis, para lhes dar autoridade e privilégios, e na educação, para convidar as almas à conversão através da cultura e do conhecimento. “Vossa Alteza seja certo” – escreveu Santo Inácio ao Rei de Portugal – “que em tudo quanto nós pudermos no mui devido serviço de Vossa Alteza, para a maior glória divina, nós não poderemos faltar todos os dias que o Nosso Senhor nos der” ¹² Todos sabiam, em Portugal, que o Brasil era caótico, desde o princípio. Tentativas de manter gestores morais na região vinham dos primeiros contatos. Sabe-se que dois frades franciscanos tinham sido massacrados, no litoral da América, em 1503. O clero regular, que lá se instalara, era fraco e precário, desprovido de autoridade moral. Numa carta de 1549, assim, Santo Inácio falou da concessão, pelo Rei, de uma “licença por três anos para ir à tal Índia do Brasil” ¹³ . O nome profano, aqui, estava integrado à noção de que o mundo português no ultramar era distante, e todo ele “Índia”. E que, de uma parte dele, vinha o pau-brasil. Se Santo Inácio adivinhou as dificuldades de sua missão, não é certo. E, de fato, nessa mesma carta, desaconselhou que um dos melhores quadros da Companhia em Portugal, o Padre Simão Rodriguez, fosse para lá enviado, como pensava-se inicialmente. Os interesses maiores estavam certamente na Ásia. Essa minimização da “Índia do Brasil” ainda existia cinco anos depois. Em 1554, estando já os jesuítas no Brasil e sendo o Padre Manuel da Nóbrega, provincial, Santo Inácio fez um balanço das ações da Companhia no Mundo. Numa pormenorizada carta ao Conde de Mélito, o Superior da Companhia mencionou a existência de ações jesuíticas em vários lugares do mundo, inclusive na Etiópia e no Manicongo, mas não fez nenhuma menção ao Brasil ¹⁴ . Para Portugal, no entanto, o Brasil tinha sua importância, e desde os primeiros anos era claro que a presença de religiosos deveria ser estimulada para, entre outras coisas, poder inspirar a ordem moral necessária ao bom funcionamento das atividades cívicas e institucionais. Foi assim concedida, à Companhia de Jesus, a oportunidade de atuar no litoral da América Portuguesa em 1549 – apenas nove anos depois da aprovação papal da Companhia. Neste ano, junto com o primeiro Governador-geral do Brasil, Tomé de Souza, desembarcaram na cidade de Salvador seis jesuítas. Seu objetivo explícito era o de realizar trabalho missionário, de conversão, junto aos povoadores e aos índios, ao longo do litoral e no interior. 11

LEITE , Serafim: História da Companhia de Jesus no Brasil, vol .1. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1938-1950 , p.15 12 “Carta de Inácio de Loyola ao Rei de Portugal, de 1546” in LOYOLA , S. Inácio de: Cartas , vol.1. Madrid, 1874. p.275. 13 “Carta de Inácio de Loyola a um Padre da Companhia em Lisboa, de Roma, 17 de janeiro de 1549” in LOYOLA , S. Inácio de: Cartas , vol.2. op.cit. p.153 14 “Carta do P. Inácio de Loyola ao Senhor Conde de Mélito, de Roma, 21 de julho de 1554” in LOYOLA , S. Inácio de: Cartas , vol.4. op.cit, pp.226-242. Descobrindo o problema moral no Brasil. O Padre Manuel da Nóbrega (1517-1570), o líder dos religiosos que aportaram em 1549 , na Bahia, era um sábio e douto jesuíta. Assim que chegou escreveu ao seu Mestre em Lisboa: “tem-se cá que o vício da carne não é pecado” ¹⁵ . Essa novidade testificava, para Nóbrega, o extremo grau de desagregação moral ao qual estava a terra. Tratava-se de uma espécie de base, em torno da qual toda a amoralidade, ou imoralidade, gravitava. Apontava a junção de dois elementos, já percebidos: o subjetivismo moral e o pluralismo cultural. “Não é pecado”, porque era bom para quem o fazia, subjetivismo, e também era bom porque era bom para os índios, socialmente aprovado entre eles, relativismo. Certamente tal dinâmica dissolvia toda percepção cristã e racional do assunto. Mesmo porque, longe de permitir a adoção da moral gentia, tal atitude era movida por um hedonismo interessado, não pela aceitação das regras nativas, mas, sim, pela sua manipulação e subversão. Destruindo igualmente os costumes locais, que não eram desprovidos de regras. Tais atitudes eram fonte de erosão de todas as relações estáveis e apontava o indivíduo e sua satisfação individual como único centro das relações sociais. O que inviabilizava a estabilidade das comunidades indígenas e da comunidade em geral. O problema moral, neste caso do amor e do sexo, repousava nos desejos dos brasileiros, mas também nos costumes locais, nos desejos dos indígenas. São

José de Anchieta (1534 – 1597) que era um grande observador da realidade do Brasil de sua época, escreveu sobre o assunto: As mulheres andam nuas e não sabem se negar a ninguém, mas até elas mesmas cometem e importunam os homens, jogando-se com eles nas redes porque têm por honra dormir com os cristãos ¹⁶ . Quando os franceses ocuparam o Maranhão, em 1612, defrontaram-se com o mesmo problema. Nas Leis Fundamentais , decretadas pelo Senhor de Rassily, afirmava-se que: ordenamos que não se cometa adultério, por amor ou violência, com as mulheres dos índios, sob pena de morte, pois seria isso não só a ruína da alma do criminoso, mas também a da colônia; igualmente ordenamos, sob idêntica pena, que não se violentem as mulheres solteiras ¹⁷ Assim, proibindo os adultérios “por amor ou violência”, tentavam os franceses tornar as relações na terra estabilizadas por um realismo moral. Onde o certo e o errado fossem reconhecidos de forma objetiva. Isso preservaria tanto o ambiente indígena quanto o dos povoadores de uma decadência no campo dos costumes. Essa cultura sexual permissiva, cujo universo foi tema de reflexão de várias gerações de intelectuais brasileiros, de Gilberto Freire a Laura de Mello e Souza e Ronaldo Vainfas, não era vista como positiva pelos críticos do individualismo e da amoralidade colonial. E, principalmente, por aqueles que deveriam zelar pelo sucesso do empreendimento brasileiro. Nesse caso a solução passava pela criação de uma cultura matrimonial, entre os índios, capaz de estruturar famílias razoavelmente equilibradas. Preservando-as do hedonismo europeu e estruturando uma base social familiar nativa que pudesse servir de referência para os homens desenraizados que vinham para o Brasil. Embora os jesuítas tenham trabalhado no início, para, eventualmente, casar europeus e indígenas, os movimentos mais consistentes foram, ao longo do tempo, no sentido de, primeiro, consolidar o matrimônio entre a população nativa. Tal processo permitiria a construção de bases de superação do subjetivismo e do pluralismo nos povoadores. Porque impediria o acesso às mulheres indígenas, e às suas inclinações afetivas, e descaracterizaria o suposto bem contido na sociedade alheia. Pois sendo os índios cristãos, o que era tido antes por bem não mais o seria. O bem seria ser cristão. A tradição jurídica católica sempre viu, no casamento monogâmico, o elemento fundador, a origem dos Estados, o modelo para todas as formas possíveis de ordenação na sociedade. O Concílio de Trento, no âmbito da Reforma católica, reafirmou a importância do matrimônio. Houve um longo trabalho, pelos primeiros jesuítas, no sentido de entender como funcionavam as uniões sexuais entre os nativos. Anchieta, sempre muito observador, anotou:

Tem grande reverência a todas as mulheres que vêm pela linha dos machos, não casando com elas de nenhuma maneira (…). As sobrinhas, filhas de irmãs, tem por verdadeiras mulheres e comumente casam com elas ¹⁸ . O próprio Anchieta encaminhou a Inácio de Loyola uma proposta direta: parece-nos sumamente necessário que se mitigue nestas partes todo o direito positivo, de maneira que possam contrair-se matrimônios em todos os graus, exceto de irmãos com irmãs ¹⁹ . Em função dessa e de semelhantes sugestões, o Papa Pio IV (1499-1565) e depois Pio V (1504-1572) concederam várias autorizações nesse campo, principalmente aquelas que diziam respeito a uniões entre tios e sobrinhas. Tal movimento permitia consolidar a monogamia a partir dos elementos locais. E estabilizar as famílias. Funcionou? Nóbrega tinha esperanças de ver os Indios submetidos e obedientes, “se escrevendo em seus entendimentos e vontades muito bem a fé de Cristo. Como se fez no Peru e Antilhas” ²⁰ . Como acontecerá muitas vezes com reformadores brasileiros, Nóbrega entendia que modelos mais bem-sucedidos (e talvez com as Antilhas ele evocasse o México), deveriam ser exemplos a ser seguidos no Brasil. Se lá estava funcionando, porque não funcionaria aqui? Nóbrega aproximou-se assim da atitude de espírito que, desde o primeiro momento, colocou o Brasil, como problema, no meio uma névoa misteriosa de projetos, dúvidas e impossibilidades. 15 NÓBREGA , P. Manuel da: “Carta ao Padre Mestre Simão (1549) in Cartas do Brasil I: 1549-1560 . São Paulo, EDUSP , 1988. p.83 16 ANCHIETA , José de: “Carta de Jos é de Anchieta, de Piratininga, julho de 1554” in Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões . São Paulo, EDUSP , 1988. p.78 17 D’

ABBEVILLE , Claude: História da missão dos Padres capuchinhos na ilha do Maranhão . [1614] São Paulo, EDUSP , 1975 p. 128 18 ANCHIETA , José de: “Informação do Brasil e de suas capitanias do Padre José de Anchieta, 1584” in Cartas , informações, fragmentos históricos e sermões. São Paulo, EDUSP , 1988. p. 337 19 ANCHIETA , José de: “Carta do Irmão José de Anchieta ao Padre Inácio de Loyola, de Piratininga, 8 de julho de 1556”. in LEITE , Serafim (ed.) Monumenta Brasilae . Roma, Archivum Romanum Societatis Iesu, 1956-1960. p.114 20 NÓBREGA , Manuel da:”Carta do P. Manuel da Nóbrega à Tomé de Souza, 1559” in Cartas do Brasil: 1549-1560 . São Paulo, EDUSP , 1988. p.193 Comércio e moral O primeiro Governador-geral do Brasil, Tomé de Souza (1503-1579), em seu Regimento , de 1549, demonstrou sensibilidade às preocupações jesuíticas, no sentido de ordenar a sociedade e torná-la funcional. Está ali proposta, por exemplo, a organização de feiras regulares, espaço social onde cristãos e indígenas pudessem comerciar. Nesse sentido, o Regimento proibia que “cristãos vão as aldeias dos gentios a tratar com eles”, isto é, comerciar com eles. “Porque a principal cousa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente

delas se converta a nossa santa fé católica”. Assim, “vos encomendo muito cuidados para que não consintam que lhes seja feito operação ou agravo algum” ²¹ . A necessidade de estabelecer relações mediadas, e equânimes, entre índios e povoadores se justificava, pela necessidade de controlar esses movimentos de aproximação comercial. Tais movimentos eram fundados em trocas. Assim explicou Gandavo: Esses índios não possuem fazenda [bens], nem procuram adquiri-la como os outros homens, somente cobiçam muitas coisas que são deste Reino: camisas, pelotas, ferramentas e outras coisas que eles têm em muita estima e desejam muito alcançar dos portugueses ²² . Francisco de Moura, em 1624, entendia como fundamental, para o domínio, esse escambo regular. Ao preparar uma expedição para o Brasil, solicitou cem cruzados, com os quais pudesse adquirir “pano de linho, facas carniceiras, pentes, tesouras, espelhos, sobretudo resgate [isto é elementos de troca] para contentar o gentio e o obrigar a que o ajude na ocasião e o sirva” ²³ . Tal comércio era certamente muito vantajoso para os brasileiros e outros comerciantes que atuavam na região, pois havia uma tremenda disparidade entre o dinheiro investido e o dinheiro ganho. Os indígenas desconheciam o valor real dos seus produtos no mercado externo e não podiam, portanto, exigir um escambo correto. Embora o comércio pressuponha lucros, estes iam muito além do razoável numa troca. O fundamental, no caso, como pensavam os preocupados com a situação, é que o comércio passasse a funcionar de outra forma, mediado por códigos de comum reconhecimento. Códigos inspirados pela religião católica e seus valores morais objetivos, através dos quais se chegaria a um equilíbrio comercial, e virtuoso, a ambos os lados interessante. Uma melhor apreciação do valor das coisas diante de outras. O que estava por trás, e que gerava conflito, de fato, era a desigualdade na apreciação dos valores. Como escreveu Binot Gonnevile, em 1503, sobre o comércio com os índios, e os sentimentos que esse gerava: assim eram os cristãos temidos por eles, e em consequência de pequenas liberalidades, que lhes faziam de facas, machados, espelhos, miçangas e outros avelorios tão apreciados por eles, que para os adquirir, de boa mente se despedaçariam, trazendo abundância de carne e peixe, frutas e víveres, e tudo quanto viam ser agradável aos cristãos, como peles, plumas e raízes de tinturaria ²⁴ . Esse caráter desigual do comércio era claramente predador por parte dos brasileiros e tinha que ser, portanto, na visão de Tomé de Souza, devidamente corrigido. As feiras, provavelmente, ensinariam gradualmente aos indígenas o valor real do que tinham e do que receberiam e, aos europeus, serviria para reprimir, moralmente, seu instinto predatório.

Nenhuma sociedade poderia funcionar bem se não se treinasse o entendimento do processo pelo qual os preços são construídos. Sair de uma situação de domínio da economia natural para o de uma economia monetária era um objetivo civilizador. Nóbrega apontou como era prejudicial a manutenção das políticas de escambo, do ponto de vista da moralidade: os gentios desejam muito o comércio dos cristãos pela mercancia que fazem entre si do ferro e disto nascem da parte destes tantas coisas ilícitas e exorbitantes que nunca os poderei escrever… ²⁵ . Tal ímpeto predador despertava tentações nos religiosos, que nem sempre conseguiam colocar-se à margem das possibilidades abertas por relações aparentemente tão desiguais. O irmão Pero Correia chegou a sugerir que o Rei proibisse, “sob pena de morte” que algum cristão desse a um índio “sequer um anzol”. “Se lhes tiram isto que digo, logo que começarem a sentir a falta eles virão dar obediência” ²⁶ . O Padre Manuel Rodriguez, mais tarde, no Maranhão, foi mais prudente: “há suma facilidade em reduzi-los [trazê-los convertidos para uma aldeia], com o presente de uma agulha, de uma faca ou chocalho está em um instante ganha uma alma, desde que se consiga instrui-la e batizá-la” ²⁷ . Predar almas não era, efetivamente, como predar Pau-Brasil. Era uma troca muito mais difícil, porque passava por subjetividades invisíveis e misteriosas. Implicava em processos tão sensíveis que, ao final, só podiam resultar em ganho se deixassem de ser atos de predação. E nisso os religiosos eram diferentes de todos os outros. Um comércio selvagem e predatório, em todo caso, era inimigo dos planos de ocupação, ou, pelo menos, do seu sucesso futuro, pois envenenava as demandas, despertava uma cobiça infinita. Impedia a construção de uma economia voltada para o desenvolvimento do conjunto social. Era preciso haver regras e normas. Não apenas pela lei, pois esta, só, não funcionava, mas pela introjeção de valores morais que estabelecessem um horizonte de justiça e confiança. A questão se os brasileiros se envolveriam em tal processo era duvidosa. O comércio como era feito era muito bom. Mas mais duvidosa era a possibilidade de envolvimento, em tais atos morais, dos índios. Pois embora parecesse evidente a desigualdade das relações, não se observava com atenção o fato de que também os índios consideravam aquela relação extremamente vantajosa e desigual em seu favor.

O que era uma tonelada de pau-brasil, ou uma centena de papagaios, abundantes e subutilizados, diante de anzóis e facas, essenciais e nunca antes vistos instrumentos de transformação, que os índios não tinham a menor ideia de como produzir? A substituição de machados de pedra polida por instrumentos de ferro valia, certamente, a destruição de florestas inteiras. Assim, podemos dizer que ambos, cada um à sua maneira, viam com desconfiança o estabelecimento de uma hipotética “medida justa” nas transações comerciais. Pois acreditavam que tal medida justa já estava estabelecida. A dinâmica dessa medida era a desigualdade. A destruição do meio ambiente local ao invés de sua manutenção. Não importava muito o quão inconsistente isso fosse à luz da razão. Pois havia uma razão que determinava que a satisfação dos desejos era maior que qualquer tentativa de ordenamento moral. Tanto da parte dos brasileiros quanto da dos brasis . 21 “Primeiro regimento que levou Tomé de Souza, governador do Brasil” in Revista do Instituto Hist órico e Geográfico Brasileiro , 61. 1898. pp.48-49 22 GANDAVO , Pero de Magalhães, op.cit. p.58. 23 “Solicitação de Don Francisco de Moura para sua jornada ao Brasil, 3 de setembro de 1624. In AHU , documentos avulsos, caixa do Pará no. 2-A, 832. 24 GONNEVILLE , Binot Paulmier: „Relação autêntica (1503-1505)” in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , XLIX : 1886. pp. 343-344. 25 NÓBREGA , P. Manuel da: “Carta ao Padre Simão Rodrigues (1550) in Cartas do Brasil I: 1549-1560 . São Paulo, EDUSP

, 1988. 26 CORREIA , Pero: “Carta do irmão Pero Correia a um Padre em Portugal, de São Vicente, 10 de março de 1553” in LEITE , Serafim (ed.): História da Companhia de Jesus no Brasil , vol. 9. op.cit. pp. 380 e 382. 27 RODRIGUEZ , Manoel: El descubrimiento del Marañon . Madrid, Alianza Editorial, 1990. p. 574. Antropófagos A antropofagia ritual era um dos mais inquietantes aspectos da sociedade dos brasis . Tratava-se de uma experiência terrível. Os humanos a serem sacrificados eram prisioneiros, de tribos rivais, capturados em guerras. Eram mantidos cativos por um certo tempo. Depois, em meio a cerimônias complexas, pintados e enfeitados com penas, eram executados com um golpe de tacape na cabeça. A seguir eram esquartejados, colocados para assar numa grelha, o moquém , e, depois, comidos por toda a comunidade. O ato sempre impressionou os povoadores. Inicialmente porque tal prática, a de sacrifícios humanos, era condenada pela Bíblia , e por toda tradição religiosa europeia. A rejeição de tal ato fazia parte da identidade cultural da religião judaica e cristã. O canibalismo, embora não desconhecido dos textos bíblicos e das memórias e realidades da Europa, estava sempre associado a experiências extremas ou catastróficas. A sua transformação em evento ritual, regular, era de uma profunda estranheza e perturbava as consciências. A possibilidade de vir a ser esquartejado e comido era uma ideia que, em princípio, deveria apavorar os europeus crentes, não apenas pelo horror em si do ato, mas pelo destino que teria o cadáver após a morte: seu desaparecimento e não sepultamento em solo sagrado. Fato cujas implicações para a salvação da alma eram as piores possíveis. No entanto, os europeus eram, paradoxalmente, atraídos para tão violenta e cruel experiência com um fascínio profundo. Não há escritor, que no Brasil tenha andado, que não tenha anotado, e precisado aos detalhes, os intrincados rituais realizados pelas tribos do litoral.

O assunto foi debatido longamente por pensadores da época. Duas principais posições foram delineadas: A primeira, no campo do realismo moral. O dominicano Francisco de Vitória (1492-1546), fundador da Escola de Salamanca, importante tradição filosófica católica, teve informações sobre o canibalismo que existia no continente americano, praticado por diferentes grupos étnicos. Entendeu que “existem pecados que vão contra a natureza, como comer carne humana”, e que era claro que “não era licito comer carne humana, nem sacrificar homens” ²⁸ . Considerando a questão uma violação da lei natural, não tinha dúvidas de que tal ato não poderia ser permitido. E, é claro, a proibição desse costume seria caminho racional para introduzir aqueles que o praticavam na experiência da plenitude humana e, portanto, para a aceitação da Lei de Deus. Tal posição, era, de fato, a única posição possível para os gestores civis e religiosos. A segunda posição era a relativista. Michel de Montaigne (1533-1592) também soube do assunto. E entendeu o tema numa perspectiva filosófica, e em um quadro de relativismo ético: Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-los a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado ²⁹ . O relativismo moral exposto por Montaigne a respeito da antropofagia brasileira será de grande importância na história intelectual e política da Europa. Ele é particularmente significativo pela recusa que Montaigne faz de uma objetividade moral, do realismo moral, à maneira de Vitória, ou seja, no caso, da ideia de que matar um homem, um igual, é errado em si ou um ato de maldade. Ou da sua negação da Regra de Ouro, ou seja, de que uma pessoa não deve aceitar para outra algo que não aceitaria para si própria. A sua afirmação relativista de que um valor cultural exógeno, ao legitimar a morte e ingestão de um ser humano, torna este ato moral, e mais moral do que o ato da Inquisição de executar um dissidente religioso, apresenta um argumento com significativas e perturbadoras inconsistências. Inconsistência entre diferentes crenças que os indivíduos podem ter sobre as coisas (posso comer carne humana, é isso um ato moral?), inconsistência entre meios e fins (eu posso me recusar a obedecer poderes legítimos em função da crueldade de sua ação, mas posso ser cruel?), inconsistência nos julgamentos morais (eu não acho correto comer carne de um ser humano sacrificado, mas acho moral que os índios façam isso?) e inconsistência na minha avaliação sobre ações similares (matar um ser humano para seu corpo ser depois dilacerado e comido é moral ou imoral?).

Para Montaigne, que vivia recluso, essas dúvidas eram meramente especulativas. No entanto, tais questões não eram abstratas para os europeus e índios em contato. E tais inconsistências eram por eles vividas no mundo real como uma grande fonte de confusão e perplexidade. Montaigne, na verdade, exteriorizava, à distância, questões que eram vividas de forma concreta pelos agentes povoadores. Muitos séculos depois, em 1928, o escritor brasileiro Oswaldo de Andrade (1890-1954) afirmou, sobre a natureza da identidade brasileira, que “só a antropofagia nos une” ³⁰ . Declaradamente estava ecoando a potência da memória dessa experiência coletiva original. De certo que foi um momento de desastre ético, de grandes proporções. E como se percebe por Oswald de Andrade, deixou marcas na sociedade, que perduraram. De fato, no universo de relacionamentos que se estruturaram em torno da antropofagia, no litoral da América portuguesa, no século XVI , a objetividade moral era dissolvida cotidianamente. 28 VITÓRIA , Francisco de: Relaciones sobre los indios y el derecho de guerra . Madrid, Espada, 1975. pp. 25 e 79 29 MONTAIGNE , Michel de: “Dos canibais” in Ensaios , São Paulo, Abril, 1984. p.103 30 “Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade” in TELES , Gilberto Mendonça: Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro . Petrópolis, Vozes, 1977 p.293 Vivendo a antropofagia O Padre Antonio Blasques, em 1558, ficou exasperado com a frequência com que os sacrifícios rituais aconteciam, em várias áreas do litoral brasileiro e com a inação dos europeus em reprimi-los. Ante os pedidos para a proibição, “respondem que os deixem matar e comer” ³¹ . Hans Staden (1525-1576), um alemão que viveu no litoral da América portuguesa na mesma época, contou que um francês expatriado lhe explicou que “deviam os franceses adaptar-se aos selvagens” e, portanto, “tinham de admitir o modo pelo qual tratam os prisioneiros” ³² . As grandes questões de fundo moral expostas por Francisco de Vitória não eram estranhas aos gestores religiosos daquela situação crítica. Ou seja, tinham estes a clareza de que o canibalismo era uma violação da lei natural. Mas a aproximação ao problema exigia certa compreensão no sentido de

como abordá-lo corretamente. De onde isso vinha? Qual a natureza da antropofagia? A antropofagia era, entre outras coisas, um ritual iniciatório. Como anotou o Padre Antonio Vieira (1608-1697), “é costume universal de toda estas gentilidades não poderem tomar, nem ter nome, senão depois de quebrarem a cabeça a algum seu inimigo” ³³ . O Padre Fernão Cardim (1549 – 1625) explicou que “de todas as honras e gostos da vida, nenhum é tamanho para este gentio como matar e tomar nomes nas cabeças de seus contrários” ³⁴ . Ou seja, a antropofagia ritual era um ato de realização de identidade. O executante adquiria uma denominação pessoal nova, ao participar da cerimônia. Ao “quebrar a cabeça” da vítima. Reafirmava elos e contiguidades com o seu povo e o mundo invisível, mas sempre presente, dos espíritos. Sustentamos, certa vez ³⁵ , que o objetivo central da Antropofagia ritual era o estabelecimento de contatos com determinadas entidades espirituais, muitas vezes espíritos animais. Era uma experiência de caráter xamanístico, vivenciado por amplos segmentos da sociedade tribal. Pretendia o triunfo sobre a morte, mediante a incorporação de determinadas entidades, presentes em outros seres vivos, através da ingestão do corpo a elas associado. Tal complexidade de sentidos, no entanto, não parece que era o elemento motor da aproximação dos europeus ao assunto. Entender o significado religioso dos rituais, para os indígenas, é, ainda hoje, difícil matéria de estudo e debate entre os antropólogos. Assim, não parece que os europeus se convertiam à religião indígena. Não é claro, também, se sequer a entendiam. Ou se a consideravam religião. Mas sabiam que era, sim, elemento central da identidade nativa. E, no entanto, a confusão moral instalou-se entre os colonos. Nóbrega escreveu sobre o assunto a Tomé de Souza: “Louvam e aprovam ao gentio o comerem-se uns a outros, e já se achou cristão a mastigar carne humana, para darem com isso bom exemplo ao gentio” ³⁶ . Jean de Léry comentou sobre os europeus que residentes há vários anos no país, tanto se adaptaram aos costumes bestiais dos selvagens que, vivendo como ateus, excediam os nativos em desumanidade, vangloriando-se mesmo de haver morto e comido prisioneiros ³⁷ . Existia, assim, um processo de absorção dos europeus no universo do canibalismo ritual. E tal fenômeno implicava numa transformação de elementos identitários. Isto é, portugueses se tornavam mais ou menos gentios. Isso exigia, dos governantes civis e dos religiosos, uma ação positiva, tanto do ponto de vista prático quanto espiritual, pois a antropofagia tinha seu núcleo numa experiência social, que se apresentava como espiritual.

Como outras realidades, trabalhava contra a estabilidade do empreendimento de ocupação. Pois comer carne humana era, na perspectiva da ordem que se pretendia instalar, um equívoco fundamental na percepção de como funcionava o mundo numa perspectiva racional, à luz da lei natural. E, portanto, como deveria funcionar a sociedade. 31 “Carta de Antonio Blasques, da Baia do Salvador, ao nosso Padre Geral, ano de 1558” in NAVARRO , Azpiculeta et alii. Cartas Avulsas, 1550-1568. p.207. 32 STADEN , Hans: p. 111 33 VIEIRA , Padre Antonio: “Carta ao Padre Provincial do Brasil, 1654” in Cartas , p. 126. 34 CARDIM , Fernão de: Tratado da terra e gente do Brasil São Paulo, EDUSP , 1980 . p.95 35 LEITE , Edgard: Homens Vindos do Céu . Contatos Religiosos no Litoral da América portuguesa. Rio de Janeiro, Papéis e Cópias, 1998. 36 “Carta de Manuel da Nóbrega a Tomé de Souza, 1559” in NÓBREGA , Manuel Cartas do Brasil, 1549-1560 . p.206 37 LERY , Jean de op. cit., p. 201.

“Sou um jaguar. Está gostoso” O trabalho contra a antropofagia foi complexo e árduo. Tanto entre os nativos quanto entre os brasileiros, pelo grau da sua generalização. Os envolvimentos gerados tornavam difícil seu combate. Em 1555, em São Vicente, Anchieta presenciou uma execução realizada com a maior festa diante de toda a gente portuguesa. Estes portugueses bem longe de o impedirem, quase todos assistiram ao espetáculo e o aprovaram e o louvaram, o que excitou muito os nossos catecúmenos a partirem também para a guerra a fim de tomar outros contrários ³⁸ . Os missionários da época e missionários futuros entenderam que a intervenção naquela prática era central para o estabelecimento de alguma ordem, de algum sentido moral na sociedade. Não apenas porque se tornassem mais ou menos gentios os europeus, como afirmamos, mas porque ali, naqueles rituais, emergia uma inversão no entendimento do que era certo ou errado, do que era bem ou mal. Todos os problemas do Brasil encontravam ali um núcleo de perversidade, que abria caminho para inconsistências comportamentais que se reproduziam em outras inconsistências. Mas demorou um certo tempo até uma tomada de atitude do governador-geral. Em 1559, segundo Nóbrega, o governador fez grandes ameaças aos índios, e mandou apregoar por suas aldeias, sob pena de morte, que ninguém comesse carne humana, de maneira que os índios ficaram atemorizados ³⁹ . Mas não apenas pela força, mas também pelo convencimento, se atuou. Anchieta narra que “um irmão” repreendeu os indígenas asperamente com uma prática [prédica] o mais longa que pode, ensinandolhes que os homens não foram criados para se comerem uns aos outros, tendo Deus criado muitos animais na terra e no mar para o nosso alimento ⁴⁰ . Como conta Anchieta, os jesuítas invadiam as tribos no ápice das cerimônias: Os irmãos com toda a energia tiraram as cordas de prender o contrário aos que a traziam e esconderam-nas em casa; e a espada de pau, própria para tal fim… fizeram que não chegasse às mãos do principal a quem se destinava. O principal sentiu ele tudo isto e pediu a grandes brados uma foice para matar o preso, e dirigiu aos irmãos grandes afrontas, que eram maus e mentirosos e que se fossem embora ⁴¹ . Tudo era feito para que o executado não fosse comido, como conta Vicente Rodrigues, que entrou numa aldeia, com o Padre Paiva, no momento em que o corpo ia ser devorado: “e assim com aquele ímpeto lho tomamos por uma parte e eles por outra; de maneira que era grande multidão sobre nós, assim homens como mulheres”.

Conseguiram, afinal, o corpo, e enterraram-no próximo à sua ermida. Ao amanhecer, levaram o cadáver, que “fedia muito” e o enterraram definitivamente próximo à cidade ⁴² . Considerando, no entanto, que o assunto tinha uma dimensão identitária e espiritual, era necessária uma contraposição no mesmo nível. Qualquer solução para o assunto passava pela conversão. O poder da temperança, que doma os instintos, e de outras virtudes que vinham com a revelação da existência de um Deus bom e redentor era, sem dúvida, o mais forte elemento no qual se podia confiar para o fim daquele ritual espantoso. O batismo, sacramento básico, adquiriu, aos poucos, o papel de elemento concreto e espiritual, com influência na ruptura do costume. “Os índios”, escreveu Antonio Blasquez, “diziam que lhes sabia mal a carne dos que batizávamos, e por isso proibiam que lhes déssemos o batismo” ⁴³ . O batismo era, então, uma arma na luta contra o canibalismo, porque representava a instauração de uma nova ordem, na qual a alma humana adquiria unicidade e, redimida de seus pecados, podia ascender a um Deus uno e superior a toda a natureza. Desfazia a proliferação errática de espíritos no mundo, na qual acreditavam os nativos, e colocava o ser humano num patamar de singularidade e sacralidade. Esse movimento era de imensa importância, e, de fato, ao pretender esse momento sublime da conversão, alcançavam, os jesuítas, o cerne de um problema maior. Entre outras coisas tornavam os nativos sintonizados com as aspirações morais de uma sociedade centrada no valor da salvação da alma humana. A quem enfrentavam precisamente, os religiosos? O que estava no fundamento de todo envolvimento de índios e portugueses com o canibalismo? Alguns, como o jesuíta José de Acosta (1539-1600), analisando casos semelhantes na civilização pré-colombiana, entenderam que Satanás era o mentor de muitas práticas sangrentas entre indígenas americanas ⁴⁴ . Os jesuítas concordavam. “Quem é nosso inimigo?”, pergunta Anchieta, originalmente escrevendo em Tupi, para entendimento dos índios: “o diabo” ⁴⁵ , ele responde. E, em outra oportunidade, também em Tupi: “Jesus nosso verdadeiro Pai/Senhor de nossa existência/ aniquilou nosso inimigo/ o anjo mau, corruptor/ assassino de nossa alma” ⁴⁶ . De novo, como em muitas vezes, Satanás aparecerá como responsável pelas impossibilidades morais do Brasil. Assim, na água do batismo era dissolvido o Mal. O Padre Brás Lourenço contou que um prisioneiro, estando para ser executado, manifestou o desejo de tornar-se cristão. Os religiosos o escutaram e assim o fizeram. Batizandoo. “Sentindo-o, todavia, os gentios, com grande fúria começaram a dar grandes vozes… não vês que estragam a carne?” ⁴⁷

Essa dicotomia entre o “estrago da carne”, ou, do ponto de vista cristão, a redenção da alma, prenunciava o fim do canibalismo como ritual religioso. Era a conversão da alma que inviabilizava o comer carne humana. Mas a antropofagia desempenhou um outro papel naquela sociedade, uma identidade de inconsistência moral, que Oswaldo de Andrade, séculos depois, de forma metafórica, mostrou continuar existindo, mesmo em seu tempo. Havia um elemento na antropofagia que era visceral, representação sintética da experiência que se vivia então no litoral da América portuguesa, e que estava muito imbricado na própria identidade da terra em construção. E que sobreviverá pelo tempo, como lenda fantástica ou como metáfora de atitude. Certa vez, após um ritual de execução, Hans Staden sentou-se ao lado do chefe indígena Cunhambebe. [este] comia de uma perna [humana]. Segurou-a diante de minha boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi: ‘um animal irracional não come outro parceiro, e um homem deve devorar outro homem?’. Mordeu-a então e disse: ‘ jauára ichê ’ ‘Sou um jaguar. Está gostoso” ⁴⁸ . “Sou um Jaguar”, quer dizer “sou um predador”. E essa fala de Cunhambebe representa a construção de uma identidade estranha e maior entre índios e europeus. De fato, todos ali eram predadores. E, para muitos, a antropofagia era uma oportunidade única, arquetípica, de exteriorizar alguns dos terríveis aspectos dessa identidade. E construir elos, no âmbito da violência, com o próximo. “Só a antropofagia nos une”? Se for assim, trata-se de uma união cimentada por sórdidas crueldades e crimes brutais. E pela desqualificação de humanidade, em nós e no outro. Tal aspecto da questão, brutal e profundamente inconsistente, insinuou-se como uma sombra de presença contínua, na construção da nascente identidade brasileira. 38 “Carta do Irmão José de Anchieta ao Padre Inácio de Loyola, Roma, de São Vicente, final de março de 1555” in LEITE , Serafim (ed.) Monumenta Brasilae , vol, 2. p.206 39 “Carta de Maniel da Nóbrega aos Padres e Irmãos de Portugal, 1559, in NOBREGA , Manuel da Cartas do Brasil, 1549-1560 p. 180 40 Idem , p.200

41 “Carta do Irmão José de Anchieta ao Padre Inácio de Loyola, Roma, de São Vicente, final de março de 1555” in LEITE , Serafim (ed.) Monumenta Brasilae , vol, 2. p.207 42 “Carta de Vicente Rodrigues, da Baia de Todos so Santos, em 17 de março de 1552 in NAVARRO , Azpiculeta, Cartas Avulsas, 1550-1568 . pp. 136-138 43 “Carta do I. Antônio Blasquez (?): Summa de algumas cousas que iam em a nau em que se perdeu o bispo, 1557”; in NAVARRO , Azpilcuelta Cartas Avulsas, 1550 – 1568 p.202 44 ACOSTA , José da “História Natural e Moral das Índia, 1590” in Obras , p.166 45 ANCHIETA , José de: Diálogo da Fé . Obras completas, vol.8. São Paulo, Loyola, 1988. p. 122 46 Poema “Cantiga por querendo o alto Deus (em Tupi)” in ANCHIETA , José de: Poesias . São Paulo, EDUSP , 1989. p. 573 47 LEITE , Serafim (ed.): Monumenta Brasilae . Roma, Archivum Romanum Societatis Iesu, 1956-1960. vol. I “Carta do P. Brás Lourenço aos Padres e Irmãos de Coimbra, da Bahia, 30 de julho de 1553” p.518 48 STADEN

, Hans: p.132 Educando Qual o agente social capaz de ordenar moralmente a sociedade? Como realizar essa ordenação? Sobre a Igreja, o Padre Manuel Nóbrega não poupou palavras ao falar dos padres que aqui haviam, no século XVI : “Cá há clérigos, mas é a escória…” ⁴⁹ . “Os Padres desta terra têm mais ofício de demônios que de clérigos” ⁵⁰ . “O Bispo trouxe consigo uns clérigos que acabaram, com seu mau exemplo de mal usarem os sacramentos da Igreja, de dar com tudo em perdição” ⁵¹ . O Bispo, neste caso, era o primeiro Bispo do Brasil, Pedro Fernandes Sardinha (1496-1546). Ele morreu de forma trágica, quando o navio que o levava de volta a Portugal naufragou. O Bispo conseguiu salvar-se, alcançando a nado um litoral inóspito, no atual Sergipe. Lá, no entanto, foi aprisionado por índios e devorado num ritual antropofágico. Sobre o assunto, Nóbrega foi impiedoso: “Deus castigou-o, dando-lhe em pena a morte que ele não amava... quis castigar-lhe justamente o descuido e pouco zelo que tinha da salvação do gentio” ⁵² . A ausência de uma estrutura moralizadora eficaz, ou a baixa qualidade do clero secular, não atingido pelas políticas moralizadoras do Concílio de Trento, fazia repousar sobre a Companhia de Jesus, e em alguns elementos da administração civil, a responsabilidade pelo funcionamento do Brasil. “A salvação do gentio” era essencial para eliminar focos de descontrole social e espiritual. E a consolidação da cristandade dos cristãos a complementava. Isso lançava os fundamentos de uma sociedade bemsucedida. “Bem-sucedida” era uma sociedade na qual existisse uma hierarquia clara, entre europeus e índios, e onde os nativos constituíssem a base social a partir da qual as atividades econômicas pudessem ser desenvolvidas de forma ordenada. E na qual uma elite dominante, com valores sólidos, buscasse a boa gestão econômica. Como no Peru se fazia. E onde todos, simultaneamente, se vissem atuando em prol do bem comum – e da salvação das almas. Tal ordenação dependeria, acima de tudo, de um sucesso na área da formação educacional, elemento organizador de conhecimento e de sistemas de pensamento. A Companhia de Jesus, após a sua criação, passou a ocupar um espaço que não era ocupado de forma competente por nenhuma outra instituição no sistema educacional de seu tempo. E é provável que Santo Inácio de Loyola tenha sido um dos primeiros que, no limiar da modernidade, entendeu a profundidade do tema. Por sua própria experiência, como estudante, pode avaliar as limitações de um sistema educacional que apresentava disfuncionalidades, principalmente

nos mecanismos de acesso institucional, nas perspectivas pedagógicas e nos objetivos maiores formativos. Observemos que Inácio comentou muito, em suas Reminiscências , sobre as dificuldades financeiras que envolviam o ensino do século XVI , e a necessidade permanente que se tinha de recorrer a relações pessoais para subsídios, nem sempre suficientes. Propugnou por soluções, que se tornaram eficazes, para uma sustentabilidade financeira dos programas educacionais. Além do mais, a emergência de novas perspectivas de entendimento do mundo, exigiam mecanismos mais ordenados, racionais e objetivos de organização do processo de aprendizagem. Em 1548 foi fundada a primeira escola jesuítica, diríamos hoje secundária, em Messina, na Sicília. Santo Inácio aprovou o seu desenvolvimento, e fez questão que essa escola deveria ser “para todos, pobres e ricos” ⁵³ . Deveria, além do mais, ter um sistema ordenado de turmas e um currículo bem organizado do ponto de vista da separação entre disciplinas e com um escopo claro no sentido de ajudar as pessoas no seu caminho de Redenção, ou no sentido da construção de uma sociedade moral voltada na direção do Bem. Thomas Hughes sustentou que o sistema de Inácio de Loyola prescreve uma educação que é pública… pública como oposta ao sistema privado, pública, porque buscando a suficiência do exercício aberto e destemido tanto da moralidade prática quanto da religião ⁵⁴ . É interessante que Santo Inácio tivesse aqui a percepção da importância do papel do sistema educacional não apenas no sentido de formar teólogos, ou profissionais, mas também no de formar seres humanos, aptos a atuar na sociedade de forma independente, autônoma, mas atentando a princípios de moralidade afeitos ao que entendia serem adequados aos planos de Deus. Nesse sentido, no limiar de uma sociedade de massas, Santo Inácio lançava os fundamentos de um sistema de educação capaz de sustentar uma comunidade de indivíduos com iniciativa, mas que não se perdia no pluralismo fragmentador do seu tempo. Indivíduos dotados de objetividade moral. Quando da morte de Santo Inácio, em 1556, já existiam cerca de 35 escolas da Companhia de Jesus e esse número se ampliaria nos anos seguintes, com crescente aprimoramento da excelência pedagógica. No Brasil, Anchieta nos fala da existência, já em 1584, de três importantes colégios, o da Bahia, o do Rio de Janeiro e o de Pernambuco (Olinda) ⁵⁵ . No século XVIII , no limiar de sua expulsão, a Companhia alcançara um total de 25 residências, 36 missões e 17 colégios e seminários.

Pode-se, assim, afirmar que a história da Companhia de Jesus no Brasil foi também a história de sua crescente preponderância sobre o sistema educacional da terra. Mas a crença no papel da educação como formadora e transformadora das consciências encontrava, como depois aprenderão os iluministas, que sustentarão semelhantes crenças, em outra direção, limites evidentes. Os limites colocados pela natureza humana, quando entregue à sua realidade interior, o mais das vezes caótica. 49 “Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Meste Simão, 1549” in NÓBREGA , Manoel da: Cartas do Brasil: 1549-1560 . São Paulo, EDUSP , 1988. p.77. 50 “Carta do P. Manuel da Nóbrega aos Padres e Irmãos, 1551”, in idem , ibidem , p.116. 51 “Carta do P. Manuel da Nóbrega à Tomé de Souza, 1559” in idem , ibidem p.193. 52 Idem , ibidem . 53 apud HUGHES , Thomas S.J. Loyola and the Educational System of the Jesuits . Bibliolife, 2009. 54 Idem , ibidem , 262 55 “Informação do Brasil e duas capitanias, de José de Anchieta, 1584” in op.cit., p.334. “Sem castigo, não se fará muita coisa” Converter os índios e portugueses era um trabalho de fôlego. Passava pela educação. Uma boa atitude pedagógica era a da valorização dessas pessoas: enquanto seres humanos dotados de razão. Capazes de entender certas coisas a eles estranhas, a partir das suas experiências humanas. Se nos abraçamos com alguns costumes deste gentio – esclareceu Nóbrega – , os quais não são contra a nossa Fé católica, nem são ritos dedicados a ídolos – ressalva – , como é cantar cantigas de Nosso Senhor em sua língua, pelo seu tom, e tanger seus instrumentos de música, que eles usam em suas festas … é isto para os atrair a deixarem os outros costumes essenciais e, permitindo-lhes e aprovando-lhes estes, trabalhar por lhes tirar os outros e assim pregar-lhes a seu modo em certo tom, andando, passeando e batendo

nos peitos, como eles fazem, quando querem persuadir alguma coisa, e dizêla com muita eficácia, e assim tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa temos, a seu modo, porque a semelhança é causa de amor ⁵⁶ . Nóbrega defendia que cortar os cabelos de acordo com os costumes dos índios e exprimir-se oralmente de acordo com suas tradições tornava a experiência humana nativa respeitada e valorizada. Esse vínculo, que era um vínculo de amor entre almas, ia além das hierarquias sociais. Acreditavam que esse era um bom fundamento para o funcionamento das escolas. Algo muito parecido escreveu Bartolomeu de Las Casas (1474-1566), o bispo espanhol, defensor da liberdade dos índios: os infiéis não podem ser compelidos a receber a Fé, que é o fim da pregação, e pela mesma razão nem a ouvi-la... tal compulsão engendraria ódio nos ouvintes da mesma Fé, antes que inclinação para recebê-la ⁵⁷ . O que se pretendia, portanto, era estimular o amor , e não o ódio , entre jesuítas e índios, entre jesuítas e portugueses, entre índios e portugueses. Era impossível experiência religiosa sem sentimento e intimidade religiosas. O simples uso da força podia obrigar ao ritual, mas não necessariamente à sua interiorização, e nisto concordavam Nóbrega e Las Casas. E isto valia para a sociedade como um todo. Por isso o destino cruel do Bispo Sardinha era exemplar em todas as dimensões. A sua insensibilidade, e a do clero secular, para os problemas de ordenação social, alimentavam os ódios e as vinganças. A força da predação tinha que ser superada pela força da justiça e do amor. Quando índios e europeus pudessem dialogar, em paz, estaria alcançada a atitude que funda uma sociedade movida por sentimentos maiores. Motivos superiores às motivações pessoais. Uma sociedade virtuosa, justa. Nesse sentido, punham os jesuítas grande importância na construção de um sistema educacional eficiente, sob o controle dos religiosos. Anchieta considerava tais ações educacionais de extremo valor e necessárias à salvação das almas: “o principal cuidado que temos deles está em declararmos os rudimentos da Fé, sem descuidar o ensino das letras” ⁵⁸ . O objetivo do sistema educacional deveria ser que, através do conhecimento, houvesse uma integração de todos num projeto comum, e a formação de um espírito moral de observância geral. E é claro, o fortalecimento da moral individual. E isso independente do reconhecimento de hierarquias sociais e dos lugares próprios que cada um ocupava. Existia, nessa direção, um obstáculo estrutural. A atitude que os índios tinham diante do aprendizado, diante do processo de formação dos indivíduos, era muito diferente daquela que tinham os europeus. Como explicou D’Abbeville, “os pais [indígenas] jamais lhes [dizem, às crianças,] palavras ofensivas; dão-lhes, ao contrário, ampla liberdade para fazerem o que lhes apetece e nunca as repreendem” ⁵⁹ .

Tal realidade contaminava o universo cultural dos povoadores. As famílias indígenas, portuguesas e mistas eram tocadas por esse movimento de satisfazer vontades e ceder concessões e isso prejudicava a sociedade. Pois uma atitude displicente diante dos erros dos filhos, e uma dificuldade de lhes apontar erros, ou a ausência de força e energia, na perspectiva política de então, significava um relaxamento da autoridade no âmbito da família. Considerando que essas relações familiares eram exemplares, tal fato tinha implicações amplas na sociedade, principalmente nas atitudes que podiam ser aceitas no âmbito da moral. Se no núcleo tudo era permitido, assim se esperava que fosse pela sociedade e pelo Estado. Tal realidade se traduzia, por exemplo, numa hipertrofia da vontade individual e na replicação da fragilidade familiar, na fragilidade diante do próximo, e, no caso, numa dificuldade de adaptar-se a procedimentos regulares de estudo. O estudo bem feito, normalmente, implica em alguma renúncia à livre expansão da vontade individual e à aceitação de objetivos coletivos, pedagógicos ou avaliadores. Falando especificamente sobre o sistema educacional, em 1554, o Padre Luis da Grã foi incisivo: Sem castigo, não se fará muita coisa; os indígenas do Brasil nunca batem em seus filhos por nenhum motivo, e nenhuma coisa sentem mais que dar ou falar alto (que é quando muito o seu castigar), ... uma palmatoriada a um dos mamelucos basta para um se ir... entre eles nenhuma razão há, senão a que quer a vontade ⁶⁰ . O fracasso das palmatórias, portanto, apesar das ameaças de Luis da Grã, era evidente. Pois a dor da punição física não era suficiente para forçar os estudantes a sentar e estudar. As particularidades culturais resistiam às tentativas de ordená-las. Pensando nessa situação, o terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá (1500-1572), ordenou, em 1569, a construção, em cada vila, de um pelourinho, com precípuas funções pedagógicas. Eles serviriam para o meirinho meter os moços no tronco quando fogem da Escola, e para outros casos leves, com autoridade de quem os ensina e reside na vila. Disto são muito contentes, e recebem melhor o castigo que nós ⁶¹ . Numa carta escrita seis meses depois das decisões de Mem de Sá, Rui Pereira assegurou que a decisão obteve bons resultados: os índios “têm tanto medo a estes troncos que, depois de Deus, são eles causa de andarem no caminho e costumes que lhes pomos” ⁶² . Pode ser. Mas dois anos depois, em 1562, José de Anchieta afirmava a imensa dificuldade dos empreendimentos educacionais no Brasil: com os brasis nossos antigos discípulos, que com tanto afã e trabalho andávamos criando, não temos conta alguma, e digo não temos, porque eles se tornaram indispostos para todo bem, indispargindo-se por diversas partes, onde não podem ser ensinados ⁶³ .

O êxodo escolar era, assim, constante, e sobrevivia a todas as tentativas no sentido de sua estabilização. Houve reforço significativo nessas tentativas de educar a base da sociedade brasileira. É fato que os franciscanos também ensinavam as primeiras letras desde, pelo menos, 1596, e os beneditinos e carmelitas tinham colégios estabelecidos já em princípios do século XVII . Mas foram os jesuítas o principal vetor nesse trabalho difícil de formar os brasis e os brasileiros . Pois exigia a ruptura com uma cultura de leniência e de vontades que era hostil, de muitas maneiras, ao sucesso de um empreendimento educacional . E os jesuítas eram, de fato, os mais preparados para essa função. E aqueles que compreendiam o papel do sistema educacional com mais profundidade. A questão que se colocava, no entanto, era: qual o real interesse, da sociedade, tanto de índios quanto de povoadores, em aceitar o custo do aprendizado, isto é, a renúncia prudente ao império das vontades? Tal pergunta será sempre difícil de ser respondida. 56 “Carta do Padre Manuel da Nóbrega ao Padre Mestre Simão, 1552” in NÓBREGA , Manuel da: Cartas do Brasil, 1549-1560 . op.cit. p.142. 57 LAS CASAS , Bartolomé de et SEPÚLVEDA , Gines de: Aqui se contiene una disputa, o controversia entre el Obispo Don Frai Bartolomé de Las Casas y el Doctor Gines de Sepúlveda . 1552. p.75. 58 “Carta trimestral do Irmão José de Anchieta, maio-agosto de 1556” in LEITE , Serafim (ed.): Monumenta Brasilae , vol.2. Roma, Archivum Romanum Societatis Iesu , 1956-1960. p.308. 59 D’ ABBEVILLE , Claude: História da missão dos Padres capuchinhos na ilha do Maranhão. [1614] São Paulo, EDUSP

, 1975.p.224. 60 “Carta do P. Luís da Grã ao P. Ignácio de Loyola, em Roma, da Bahia, 27 de dezembo de 1554” in LEITE , Serafim (ed.): Monumenta Brasilae , vol.2. op.cit., p.136. 61 Carta de Mem de Sá, governador do Brasil a D. Sebastião, Rei de Portugal, do Rio de Janeiro, 31 de março de 1560” in LEITE , Serafim (ed.): Monumenta Brasilae vol.3. op.cit., p.172. 62 “Carta de Rui Pereira aos Padres e Irmãos da Companhia da Província de Portugal, da Bahia, 15 de setembro de 1560” in NAVARRO , Azpicuelta et alii: Cartas avulsas: 1550-1568. op.cit., p.286. 63 “Carta do Irmão José de Anchieta ao Padre Diego Laines, de Piratininga, março de 1562” in LEITE , Serafim(ed.): Monumenta Brasilae , vol.3. op.cit., p.454. Idioma e verdade Os pensadores, naquela época, davam grande importância à relação entre pensamento e linguagem. Entendiam que eram elementos relacionados entre si e com a realidade, ou a verdade. Tal conjunto possuía uma mesma coerência lógica. Era relevante, portanto, o problema da língua, num momento em que tantas inconsistências se somavam ao processo de domínio da terra. Um controle da natureza dinâmica da linguagem era fundamental para administrar um foco importante de desordem e desagregação. O que se dizia, e como, podia traduzir a razão e aproximar os homens da lei natural e da justiça, ou afastá-los, de forma contínua, das virtudes necessárias. A linguagem, assim se entendia, era o meio pelo qual se alcançava a verdade, a distinção entre bem e mal, a justiça, e portanto, estava na base da organização da sociedade. Se o falar introduz no meio social a mentira, condena o todo ao desastre. No princípio da colonização da América portuguesa os jesuítas desenvolveram o estudo daquilo que chamaram inicialmente apenas de “língua brasílica”, ou seja, a língua dos habitantes locais, os brasis .

Era a mesma língua, com modificações, falada pelos índios guaranis, chamados carijós, que viviam na região dos rios Paraguai e Uruguai. No caso da América portuguesa, uma pioneira Arte da Gramatica ⁶⁴ foi elaborada por São José de Anchieta logo ao princípio da ação catequética. Muito embora se intitulasse simplesmente uma sistematização gramatical da língua nativa, tal trabalho no campo da linguagem, era, na verdade, muito mais do que isto. Como diria, mais tarde, o Padre Antonio Vieira, sobre o falar outros idiomas durante o processo da catequese: “não bastam só palavras, são necessárias palavras e luz” ⁶⁵ . “Luz” é o espírito humano, que busca a perfeição. Traduz e ordena as palavras em gramáticas, buscando precisar o sentido dos vocábulos e a ordem da organização dos elementos da linguagem. Na direção de propiciar a articulação da verdade – que deve estar contida no falar. Ao contrário das trocas linguísticas espontâneas e desorientadas que marcavam as relações entre nativos e estrangeiros, o trabalho missionário procurava entender o vocabulário e compreender ou estabelecer as regras gramaticais. Assim explicou Antonio Vieira: É necessário tomar o bárbaro à parte, e estar e instar com ele muito só por só, e muitas horas, e muitos dias: é necessário trabalhar com os dedos, escrevendo, apontando e interpretando por acenos o que se não pode alcançar das palavras: é necessário trabalhar com a língua, dobrando-a, e torcendo-a e dando-lhe mil voltas para que chegue a pronunciar os acentos tão duros e tão estranhos ⁶⁶ . A “luz” era não apenas entender a palavra e sua pronúncia, mas também ordenar o desordenado, aproximar o idioma da perfeição, pois parecia claro a muitos intérpretes que os idiomas indígenas apresentavam um perfil caótico, desordenado. Ou de tal complexidade que deveriam ser reduzidos para se tornarem viáveis em termos das relações políticas ou tradutoras. Uma mesma voz – anotou D. Pedro Ponce y Carrasco – significa quatro, seis e ainda mais objetos diversos, distinguindo-os só a diversa configuração do lábio, o movimento do semblante, a arqueadura das sobrancelhas, o jogo dos olhos, o tom e outras mil fastidiosas inflexões ⁶⁷ . Em tal processo se descobriram os problemas que impediam os idiomas nativos de expressar, com clareza, os pretendidos elementos da verdade. O Padre José de Acosta já tinha anotado isso nos Andes: “de coisas espirituais e pontos filosóficos têm grande penúria de palavras” ⁶⁸ . Ou como explicou um jesuíta anônimo, no Maranhão:

[as línguas locais] são muito escassas e faltas de palavras para explicar o que se refere ao ensino cristão, ao pecado, a Deus, à alma e suas espirituais operações e outras coisas semelhantes. Todas essas nações nem ainda vocábulo tem para dizer que creem no que se lhes diz ⁶⁹ . Muitos, como José de Acosta, achavam que a solução era, quando possível, introduzir nomes europeus “e fazer-lhes próprios, enriquecendo a língua com o uso” ⁷⁰ . Anchieta era da mesma opinião. Por exemplo, introduziu um difícil conceito cristão, “ pecado ”, no meio de um discurso em língua brasílica , sem tentar encontrar uma palavra suficiente na língua dos brasis. Assim, no seu texto “Na aldeia de Guaraparim”, escreveu: Ojepé tiruã pecado ndaromanõi !; “Nem mesmo com um só pecado eu morri!” ⁷¹ . A observação surpreendente de Nóbrega: “tem-se cá que o vício da carne não é pecado” provavelmente possuísse uma explicação bem mais complexa (ou pueril): na verdade não existia um conceito na terra que pudesse ser traduzido com a palavra “pecado”. Tal realidade, portanto, dava razão às crenças dos primeiros povoadores: “cá não é pecado”. Aqui não há como nomear o pecado. Anchieta se viu forçado, portanto, a introduzir o conceito na língua brasílica diretamente do português. E, assim, reafirmá-lo entre os europeus. A mesma coisa com conceitos ainda mais complexos. Em especial aqueles que diziam respeito à percepção de Deus. Pois esse era um tema central de todo esforço moralizador na colônia. Por tal percepção de Deus habilitavam-se todos ao recebimento dessas virtudes: a Fé, a Esperança e o Amor, ou a Caridade, fundamentos da ação moral. 64 “Carta de João de Mello para o Padre Gonzalo Vaz, em Lisboa, da Bahia do Salvador, 13 de setembro de 1560” in NAVARRO , Azpicuelta et alii: Cartas avulsas: 1550-1568 . op.cit., p.279. 65 “Sermão do Espírito Santo, proferido em São Luís do Maranhão, do Padre Antônio Vieira” in VIEIRA , Antônio: Sermões , Tomo V. Lisboa, Lello, 1985. p.399. 66 “Sermão da Epifania, 1662, do Padre Antônio Vieira” in VIEIRA , Antônio: Sermões , Tomo II

. op.cit., p.24. 67 “Breves notícias de las missiones de los Mainas, de D. Pedro Ponce y Carrasco” editado por M. Jimenez de La Espada in Boletim de Sociedad Geográfica de Madrid Tomo XXVII – 1889. p.48. 68 “ De procuranda indorum salute, 1577 ” in ACOSTA , José de: Obras . op.cit. p.518. 69 “Notícias autênticas del famoso rio Marañon y missión apostólica de la Compañia de Jesus en la provincia de Quito (anônimo, 1738)” in Boletim de la Sociedade Geográfica de Madrid , Tomo XXVII , 1889 p.47. 70 “ De procuranda indorum salute, 1577 ” in ACOSTA , José de: Obras . op.cit. p.518. 71 “Na aldeia de Guaraparim” in ANCHIETA , José de: Poesias . São Paulo, EDUSP , 1989. p.639. Pai Tupã O problema de Deus era grave e possuía grande profundidade. Como introduzir, no âmbito da linguagem, aqueles vocábulos e conceitos que diziam respeito a Deus? Em parte, isso podia ser solucionado através da introdução de palavras estrangeiras. Em certa oportunidade, escreveu Anchieta, sobre a crença na Trindade: Tuba, Taira, Espírito Santo : “Pai, Filho, Espírito Santo” ⁷² . Semelhante operação fará o capuchinho D’Abbeville: Arobiar Tupã Touve, arobiar Tupã Raerie, arobiar Tupã Espírito Santo ; “creio em Deus-Pai, creio em Deus-Filho, creio em Deus-Espírito Santo” ⁷³ .

Para Pai, ou Filho, existiam palavras possíveis. Mas o conceito de Espírito Santo não encontrava nenhum paralelo na língua local. Defendia-se Anchieta dizendo: porque dos nomes da Santíssima Trindade estes dois somente [Deus-Pai e Deus-Filho] pude tomar, mas o Espírito Santo, para o qual nunca achamos vocábulo próprio ou circunlóquio bastante, ainda que não o saibam nomear, sabiam-lo no entanto crer ⁷⁴ . O seu otimismo era assegurado pelo fato de que acreditava na capacidade humana de ser receptiva à graça de Deus. Uma outra tendência desses gramáticos era tentar traduzir conceitos para a língua local: “damos-lhes a entender o melhor que podemos, e algumas coisas lhes declaramos por rodeios”, afirmou Nóbrega ⁷⁵ . Ou, como explicou o capuchinho Évreux, “procuramos fazer-lhes entender estas matérias tão altas e profundas por comparações familiares” ⁷⁶ , isto é, analogias. No caso da ideia de Deus, entendiam, não havia outro caminho se não este. Isto tudo exigia, portanto, a elaboração de gramáticas complexas e um profundo conhecimento da língua nativa e de seus signos estruturantes que permitissem que entendessem a existência de Deus a partir de suas próprias experiências. Neste trabalho os jesuítas foram técnicos imprescindíveis. De fato, catecismos na língua brasílic a tornar-se-ão com o tempo tão elaborados, no sentido de tornar compreensíveis nomes e concepções religiosas, que Antonio Vieira, mais tarde, se referirá a eles, de forma pensativa, como preparados “mais para fazer de cristãos teólogos que de gentios cristãos” ⁷⁷ . Um exemplo dessa manipulação inspirada de palavras na construção de conceitos aglutinantes da linguagem, pensamento e verdade, pode ser encontrado na grande discussão conceitual e linguística sobre Deus e como ele poderia ser nomeado na língua brasílica. Os religiosos, nesse tema, recorriam a instrumentos teóricos conhecidos, mesmo que complexos. Ao que parece, principalmente, inspiravam-se na tradição mística cristã e em São Tomás de Aquino. Para Aquino, o conhecimento e a experiência de Deus eram necessariamente indiretos. “Como não podemos ver sua essência”, afirmava, “chegamos a conhecer seu ser não por seu ser mesmo, senão por seus efeitos” ⁷⁸ . Assim, “o homem conhece naturalmente a Deus como naturalmente lhe deseja” ⁷⁹ , porque “o homem deseja naturalmente conhecer a causa de qualquer efeito conhecido” ⁸⁰ , e essa causa é Deus. Mas “não é necessário que Deus seja em si mesmo naturalmente conhecido, senão em sua semelhança. E, por conseqüência, é necessário que o homem vá ao conhecimento de Deus raciocinando pelas semelhanças que encontra em seus efeitos” ⁸¹ .

Essa será a perspectiva norteadora, adotada pelos jesuítas, para a elaboração conceitual dos elementos de linguagem capazes de introduzir, no vocabulário, a percepção do divino. As populações indígenas eram, em sua maioria, agricultores rudimentares, com uma economia submetida às variações climáticas. Viviam na mata atlântica, região de alta pluviosidade. Assim, era comum, ao que tudo indica, que dessem muita importância aos misteriosos fatores que determinavam chuvas ou secas. Desde as primeiras observações sobressaiu o nome de Tupã . “ Tupam Mairá é o senhor dos trovões, coriscos, relâmpagos” escreveu Jácome Monteiro ⁸² . “Estes pobres não reconheciam outro Deus mais que os chuveiros, trovões, relâmpagos” ⁸³ , segundo Luiz Figueira. “Dizem” – esclarece Cardim – “que Tupã é o que faz os trovões e os relâmpagos, e que este é o que lhes deu as enxadas e mantimentos” ⁸⁴ . Tupã era assim entendido, pelos nativos do litoral, como um xamã mítico, que em épocas arcaicas vivera entre os homens e ao qual os indígenas do litoral atribuíam a fundação da sua cultura: “lhes deu as enxadas e os mantimentos”, isto é, os instrumentos de beneficiamento da terra e as espécies vegetais para plantio. Mas também era associado ao clima, às transformações climáticas, estando relacionado às mudanças súbitas de tempo, comuns nas terras baixas da América do Sul. A etimologia da palavra é difícil de ser recuperada. Na região andina havia um xamã mítico chamado Tuapaca. E, é claro, existia toda uma lenda na América Sul relativa ao mítico conquistador Topa Inca, que expandiu as fronteiras do império Inca do Equador Central ao Chile Central em períodos pré-colombianos. Os índios Pacajés, do Peru, acreditavam ter sido conquistados por ele, e que Inca Topa Iupanqui ensinou-lhes a oferecer sacrifícios, particularmente ao trovão: “a quem ele tinha em grande veneração, depois do sol, e lhe chamava Apo Illapa , que quer dizer: Senhor dos trovões” ⁸⁵ . Isso são apenas especulações, todas fundadas em elementos memoriais, apenas. Os religiosos preferiam interpretações mais complexas, no sentido de construir o conceito de forma eficaz, do ponto de vista teológico. O Padre Ruiz de Montoya (1585-1652) fez trabalho missionário junto aos guaranis, na região do Paraguai, que falavam língua parecida aos índios do litoral da América portuguesa. Para ele, “a primeira palavra tu é admiratio [admiração, espanto, surpresa], a segunda, pá, é interrogação” ⁸⁶ ou “pergunta” ⁸⁷ . O Padre Simão de Vasconcellos (1597-?) traduziu a expressão como “excelência espantosa” ⁸⁸ , ou “excelência superior” ⁸⁹ . Mas o sentido dado por Montoya era bem mais profundo. Em Tupã ele julgava encontrar um vocábulo indicativo da existência de um inquérito essencial, do homem sobre o movimento do universo e de suas causas.

Ives D’Evreux (1577-1632) foi pelo mesmo caminho: “sempre chamaram a Deus- Tupã , nome que dão ao trovão, à maneira do que se pratica entre os homens, isto é, terem as obras primas o nome do autor” ⁹⁰ . Por isso, “quando se verificam trovoadas, afirmam que Deus as envia, donde a denominação do trovão Tupã-remiminhã , ‘Deus fez isso’” ⁹¹ . Tal compreensão do nome Tupã supunha a existência de uma ansiedade existencial na consciência indígena. O objetivo da utilização do nome era gerar uma transformação semântica, indispensável para que essa ansiedade permitisse a compreensão de Deus. O sentido da palavra incorporava essa ânsia. Os religiosos do século XVI , e principalmente os jesuítas, assumiram integralmente tal perspectiva: “nós não temos”, assegura Nóbrega, “outro vocábulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus, que chamar-lhe Pai Tupane ” ⁹² . E nada havia de extraordinário nisso. Pois, como escreveu São Tomás de Aquino, como se percebe Deus através de seus efeitos, pode ser dito “que Deus é denominado por seus efeitos” ⁹³ . “É evidente, por tudo isso, a necessidade de dar a Deus muitos nomes” ⁹⁴ . “É necessário que sejam diversos os nomes com que expressamos suas perfeições, assim como são várias as perfeições que encontramos nas coisas” ⁹⁵ . Em Tupã encontrou-se, assim, uma analogia , na qual o poder que gerava a tempestade, e seus efeitos, era utilizado para entender o maior dos poderes, Deus, que gerou o mundo e tudo que nele há. Do ponto de vista semântico, das palavras, o vocábulo era, inicialmente, uma metáfora , que traduzia para o idioma indígena, pela semelhança do poder tonitruante, a concepção judaica/cristã de Deus, como aparece, eventualmente, nos textos bíblicos. Evocava o temor a Deus. Era, em seguida, uma sinédoque , na qual o trovão, entendido como uma parte, evocava um todo maior, Deus, no caso ainda desconhecido, ou misterioso. E, finalmente, uma metonímia, onde o trovão assumiria o caráter de um efeito de uma causa superior. O procedimento teórico fazia sentido. Mas faria sentido para os índios? 72 ANCHIETA , José de: Doutrina cristã: catecismo brasílico, doutrina autógrafa e confessionári o, Tomo I. op.cit., p.131. 73 D’ ABBEVILLE , Claude d’: História da missão dos Padres capuchinhos na ilha do Maranhão. [1614] São Paulo,

EDUSP , op.cit., p.88. 74 “Carta do Irmão José de Anchieta ao Padre Diego Laines, Roma, de São Vicente, 10 de abril de 1563” in LEITE , Serafim (ed.): Monumenta Brasilae , vol.3. op.cit., pp.559-560. 75 “Informação das terras do Brasil, 1549” in NÓBREGA , Manuel da: Cartas do Brasil, 1549-1560 . op.cit., p.101. 76 ÉVREUX , Ives D’: Viagem ao norte do Brasil feitas nos anos de 1613 e 1614. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1929. p.215. 77 “Exortaçao primeira em véspera do Espírito Santo do Padre Antônio Vieira” in Sermões , Tomo V. op.cit., p.383. 78 AQUINO , Santo. Tomás de: Summa contra gentiles , 1. op.cit., p.119. 79 Idem , ibidem . 80 AQUINO , Santo Tomás de: Summa contra gentiles , 2. op.cit., p.150. 81 AQUINO , Santo Tomás de: Summa contra gentiles , 1. op.cit., p.119. 82 “Relação da província do Brasil, do Padre Jácome Monteiro, 1610” in LEITE , Serafim (ed.): História da Companhia de Jesus no Brasil , vol. 8. op.cit., p. 408. 83 “Relação da Missão do Maranhão, 26 de março de 1608 (?)” in

LEITE , Serafim (ed.): Luiz Figueira, a sua vida heróica e a sua obra literária. op.cit., p. 128. 84 CARDIM , Fernão: Tratado da terra e gente do Brasil São Paulo, EDUSP , 1980 , p.88. 85 “Relación de la provincia de los Pacajés, Perú” in ESPADA , Marcos Jimenes de La (ed.): Relaciones geograficas de Indias , vol.1. Biblioteca de Autores Españoles, Madrid, 1965. , p.338. 86 MONTOYA , Antônio Ruiz de: Conquista espiritual hecha por los religiosos de la Compañía de Jesús en las provincias del Paraguai, Paraná, Uruguai y TaPadre Madrid , Imprensa del Reino, 1639., p.13. 87 MONTOYA , Antônio Ruiz de: Grammatica y diccionarios de la lengua tupi o guarani. Viena-Paris, 1876. 402v./396v. 88 VASCONCELLOS , Simão de: Crônica da Companhia de Jesus . Petrópolis, Vozes, 1977, p.120. 89 Idem , ibidem , p. 80. 90 ÉVREUX , Ives de: op.cit., p.248. 91 D’ ABBEVILLE

, Claude: op.cit., p.251. 92 “Informação das terras do Brasil do Padre Manuel da Nóbrega (1549)” in NÓBREGA , Manuel da: Cartas do Brasil: 1549-1560 . op.cit., p.99. 93 AQUINO , Santo Tomás de: Summa contra gentiles , vol.1. op.cit., p.188 94 Idem , ibidem , p.182. 95 AQUINO , Santo. Tomás de: Summa contra gentiles , vol.1. op.cit., p.182. O temor a Deus Os jesuítas anotavam as reações indígenas à construção da ideia de Deus por meio de tal operação semântica. Certa vez, um “feiticeiro de grande fama”, encontrado por Anchieta, disselhe que conhecia Deus [isto é, Tupã ]. Mordido por um cão, Deus, “irado contra o cão, trouxe consigo aquele vento impetuoso, que soprou há pouco para que derrubasse as matas e vingasse o dano que me causara o cão” ⁹⁶ . Outro, encontrado por Nóbrega, disse-lhe “que ele era Deus e tinha nascido Deus e apresentou-me um a quem havia dado a saúde, e aquele Deus dos céus era seu amigo e lhe aparecia frequentes vezes nas nuvens, nos trovões e raios” ⁹⁷ . Nesses casos, a ideia do poder transcendente de Deus estava presente, e todos os elementos previstos, a analogia, a metáfora, a metonímia e a sinédoque, também. Mas parecia que o conceito adquiria uma vida própria, não necessariamente ligada aos elementos centrais da Fé, da Esperança ou do Amor. De fato, a legitimidade do sistema moral que se pretendia construir dependia muito da aceitação dessa fonte divina, e da sua natureza transcendente. Parecia claro, no entanto, que pelo menos o temor a Deus estava, de alguma forma, percebido. Assim, escreveu Nóbrega em seu Diálogo , através do personagem Nogueira: “Têm que há Deus e dizem que é o trovão, porque é coisa que eles acham mais temerosa, e nisto têm mais razão, que os que adoram as rãs ou os galos” ⁹⁸ .

A aposta nessa revelação tornou-se certa, ao longo do tempo. Assim, escreveu Vieira: Ensinando, pois os novos discípulos da Fé, e novos discípulos das línguas, a cada um na sua própria, que o verdadeiro Deus, criador do Céu e da Terra é um só, que faziam? Chegavam à nação dos Tupinambaranas e diziam ao tupinambarana: Tupã oiepeim ; chegavam à nação dos Jurunnas e diziam ao jurunna : Tupã memê ; chegavam à nação dos Nhuanas e diziam ao nhuana: Tupã jemejém : chegavam à nação dos Tapaiós , e diziam ao tapaió : Tupã catamocém ; chegavam à nação dos Mamaianás e dos Neangaíbas , e diziam ao neangaíba : Tupã amopererimperim . À vista, e na admiração desta novidade pasmavam todos… Pasmavam os gentios de ver as suas línguas na boca dos nossos missionários; e eles também pasmavam de ver os grandes progressos que tinham feito em tão pouco tempo, e davam graças a Deus por tê-los escolhido dentre seus condiscípulos... ⁹⁹ . A disseminação dessa palavra, portanto, representou, em uma dimensão maior, um sucesso significativo. Muitos séculos depois, em 1819, quando os exploradores Spix e Martius percorriam os sertões brasileiros, foram alertados, por indígenas, para antigas inscrições em rochas. Acima da entrada do [rio] Japurá…os índios chamaram a minha atenção para um rochedo saliente, onde se achavam algumas esculturas pouco visíveis. Eles aproximaram-se delas respeitosos e seguindo com o dedo as figuras levemente gravadas e já quase irreconhecíveis pela erosão, exclamaram Tupã ! Tupã ! ¹⁰⁰ . Esse momento, registrado pelos viajantes, demonstra que entre os índios afastados, mesmo sem serem cristãos, existia a ideia de que Tupã denotava o sagrado, o desconhecido, uma analogia ou metáfora de uma força transcendente e invisível. E, principalmente, que podia ser percebida universalmente, para além das fronteiras da etnia. Mesmo que a percepção das virtudes de Deus não fosse alcançada, acreditava-se que o temor interno da alma diante do desconhecido estava instalado. Nisto havia sucesso. Ali, entre os nativos, o problema de Deus encontrava-se estabelecido a partir de um patamar que não era o seu, original na cultura nativa. O grande problema era saber se isso era suficiente para a construção de uma sociedade fundamentada na ação moral. No México, por exemplo, desde muito cedo a Virgem de Guadalupe representou um importante fundamento da experiência do divino e de suas virtudes. Mas, no Brasil, Tupã seria suficiente? Foi considerando essa dúvida que Vieira argumentou, de forma um pouco pessimista, se tudo isso não era “mais para fazer de cristãos teólogos que de gentios cristãos”. Mas isso foi o máximo que se conseguiu obter e foi muito. A relativa fragilidade dessa Fé, com todas as consequências morais decorrentes, principalmente pela influência que exercia sobre outros

agentes sociais, foi uma característica permanente do desenvolvimento da sociedade brasileira pelos séculos subsequentes. Dentro dela sobreviveu a tênue presença de uma espiritualidade indígena. Mesmo que o sagrado, ou a universalidade de uma força superior tenha sido instalada, em torno dela seguiram gravitando conceitos dispersos, étnicos, fortes ou fracos. A espiritualidade nativa continuou povoada de presenças intraduzíveis pela teoria tão cuidadosamente trabalhada. Os efeitos disso sobre a ordem moral continuavam, portanto, imprecisos. 96 “Carta de José de Anchieta ao Padre Geral, de São Vicente, último de maio de 1560” in ANCHIETA , José de: Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões. op.cit., p. 115. 97 “Carta de Manuel da Nóbrega ao Dr. Navarro, seu mestre em Coimbra (1549) in NÓBREGA , Manuel da: Cartas do Brasil: 1549-1560 . op.cit., p.95. 98 “Diálogo sobre a conversão do gentio, do Padre Manuel da Nóbrega” in NÓBREGA , Manuel da: Cartas do Brasil: 1549-1560 . op.cit., p.239. 99 “Exortação primeira em véspera do Espírito Santo” in VIEIRA , P. Antônio: Sermões , Tomo V. op.cit., pp.392-393. 100 SPIX , J. Von et MARTIUS , C. Von: Viagem pelo Brasil, 1817-1820 . Vol.3. São Paulo, EDUSP , 1981. p.240. A alma humana

O mesmo se passava com o conceito de alma. Tão relevante para situar o homem diante do mundo e de Deus. Diante da boa moral. Ou diante do próximo, uma outra alma. O pensamento religioso cristão acredita numa única alma. “Todas as ações da alma que há em nós procedem de uma só alma”, explicou São Tomás de Aquino ¹⁰¹ . E a alma “está toda em todo corpo e toda em cada uma de suas partes” ¹⁰² . Santo Agostinho também era preciso: tratava-se de uma alma “superior a todos os demais animais terrenos, nadáveis e voláteis que carecem de mente”, “dotada de razão e inteligência” ¹⁰³ Mas foi desde o início mais ou menos evidente que não era assim que os nativos entendiam o assunto. A discussão sobre o tema ainda se estende aos antropólogos contemporâneos, e na época era extremamente obscura. Ang , segundo Montoya, era a “alma, espírito, consciência”, donde cheãnga , “minha alma” ¹⁰⁴ . O autor do Vocabulário da língua brasílica afirma: “Alma: anga , Alma de quem já morreu: anguera ” ¹⁰⁵ . Mas essas traduções eram formas de se aproximar ao assunto, não de resolvê-lo. Os indígenas entendiam que muitos espíritos gravitavam no mundo. Se deslocando tanto dentro quanto fora do corpo. As cerimônias religiosas eram sempre momentos privilegiados para que esses espíritos se movessem pelas criaturas que habitam a realidade e pelas pessoas e, assim, uma realidade espiritual invisível estava sempre presente. Afirmou o Irmão Pero Correia que “a opinião dessa gentilidade é que … as almas depois da morte se tornam animais” ¹⁰⁶ . Pois era para os animais que transmigravam, muitas vezes, alguns dos espíritos anímicos que habitavam o homem. Isso era inquietante, pois se as almas eram entendidas como fragmentadas e se elas se espalhavam entre homens e animais, o que havia de especial no mundo que o homem construía cotidianamente, seguindo a vontade de Deus? Onde estariam os fundamentos da moral objetiva? De que forma poderiam entender o pecado? Para onde se dirigia o amor de Deus? Esse universo complexo de entidades, no entanto, tinha uma lógica que ficou clara desde os primeiros momentos: entendiam os índios que alguns desses espíritos lhes faziam bem e outros lhes faziam mal. “Dizem”, escreveu o Padre Jácome Monteiro, “que morrendo se tornam diabos, de que tem extraordinário medo.” ¹⁰⁷ . E, acrescentou Anchieta, “tem medo dele [do demônio] porque às vezes os matam nos matos a pancadas, ou nos rios” ¹⁰⁸ . As transmutações futuras do espírito podiam ser perigosas aos homens. Podia-se concluir que “tem notícia do diabo [e o] nomeiam com vocábulo próprio em sua língua… donde infiro que também tem alguma luz de há céu e inferno”, afirmou o Padre João Daniel ¹⁰⁹ .

A ideia de que existia uma percepção do bem e do mal, contida na experiência xamanística, podia representar um entendimento da retribuição e da punição. A perspectiva de que certos movimentos naturais da razão humana faziam sentido em todas as sociedades justificava essa abordagem. Todo o trabalho religioso será, portanto, primeiro, em fazer entender que tudo aquilo que viam como espíritos, alheios à sua própria consciência, não eram constituintes de sua alma. Segundo, em fazer ver que aqueles espíritos que os atormentavam eram seres que remetiam ao mal. À dimensão da punição, do inferno. Terceiro, a partir daí, tentar estabelecer a necessidade da conduta correta, a fim de que o mal se mantivesse afastado. Nobrega contou a história de um menino índio que estava recitando o “Pai Nosso”. “chegando aquele passo de et ne induca nos in temtationem [e não nos deixei cair em tentacão]” foi tomado pelo demônio por três dias. “E ele mesmo, assombrado das visões que via, bramava e não queria estar senão com os olhos tapados, dizendo que via demônios… e tornei a batizá-lo e sarou, pela misericórdia de Nosso Senhor” ¹¹⁰ . Esse movimento sutil fazia, em princípio, refluir, para a consciência, toda alma dilacerada e repartida em muitas. E assim, nesse estímulo ao reconhecimento da solidão da alma diante de Deus, acreditava-se que o desejo de ficar longe do mal aproximaria permanentemente os índios de sua essência, cuja inclinação era para as coisas divinas e boas. Talvez, como em Tupã , não se tenha conseguido a perfeita identificação da unicidade da alma. E de sua singularidade absoluta diante das outras formas de vida. E mesmo o futuro de seu deslocamento rumo à redenção. Mas certamente deu-se nome ao bem e ao mal e relacionou-se esse bem e mal com o Deus e os espíritos. Se foi suficiente, é difícil dizer. Mas acreditava-se que ali estava um dos fundamentos essenciais para a construção de qualquer ordem moral bemsucedida. Uma centelha de discernimento no universo da barbárie predadora. 101 AQUINO , Santo Tomás de: Summa contra gentiles , vol.1. op.cit., p.562. 102 Idem , ibidem . p.604 103 AGOSTINHO , Santo: A Cidade de Deus . op. ct. Livro

XII p. 839. 104 MONTOYA , Antônio Ruiz de: Grammatica y diccionarios de la lengua tupi o guarani . col. 35v. 105 DRUMMOND , Carlos (ed.): Vocabulário na língua brasílica. Manuscrito portuguê s-tupi do sé culo XVII . op.cit., p.137. 106 CORREIA , Pero: “Carta do irmão Pero Correia ao Padre Simão Rodrigues, em Lisboa, de São Vicente, 10 de março de 1553. in LEITE , Serafim (ed.) Monumenta Brasilae vol. 1 p.439. 107 Relação da provincia do Brasil do Padre Jacome Monteiro, 1610. in Leite Serafim História da Companhaa de Jesus no Brasil , vol. 8 p. 407 108 ANCHIETA , Informação do Brasil e sias capitanias de José de Anchieta 91584) in Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões , op.cit. p.339 109 DANIEL , João, op.cit. Tomo I. p.239 110 “Cartas aos Padres e irmãos de Portugal, 1559” in Nobrega, Cartas do Brasil, 1549-1560 p. 188 A Língua Geral

A “língua brasílica” era a sistematização escrita de um idioma que, até então, se desenvolvera e se transformara, por séculos, no espaço da oralidade. Mas a sua gramática continha inovações estranhas ao idioma, como observamos. O papel central que determinados conceitos exerciam em seu funcionamento como vetor, proposto, de ordenamento social, era evidente. Não era a “língua brasílica” a única língua falada nas áreas de ocupação portuguesa. Como explicou Vieira, “na antiga Babel houve setenta e duas línguas; na Babel do rio das Amazonas já se conhecem mais de cento e cinquenta, tão diversas entre si como a nossa e a grega” ¹¹¹ . O Padre Fernão Guerreiro comentou, em 1605, sobre esse exagerado número de idiomas: “pelo sertão a dentro se tem já descoberto mais de setenta línguas diferentes” ¹¹² . Simão Vasconcellos confirmou: [as línguas] são de “tão várias espécies, até chegar à multidão” ¹¹³ . João Daniel ponderou, impressionado: “só as [línguas] da América passam de 1000” ¹¹⁴ . Nesse sentido era previsível que a estabilização das populações indígenas, no plano português, gerenciado pelos jesuítas, seria muito favorecido não apenas pela cristianização, mas também por uma necessária uniformização linguística. Ainda mais quando consideramos que essa uniformização estaria a serviço do ordenamento moral. Assim, a tendência, nos primeiros séculos de existência do Brasil, foi a gradual transformação da língua brasílica em língua geral . A língua geral expressava um projeto ao mesmo tempo integrador e separador. Tratava-se de um idioma que podia ser falado e entendido por todos os indígenas e pelos europeus. Uma língua franca, que servia não apenas para a relação entre índios, pois guardava similitudes entre diferentes falares nativos, mas também entre índios e portugueses, pois continha não apenas palavras comuns ao português e ao idioma brasílico, mas inflexões culturais mistas. Na prática era, em parte, um projeto de pidgin , uma associação linguística de diferentes idiomas, e, em parte, um dialeto, principalmente da língua dos tupinambás . Emergia das preocupações jesuíticas, mas também de demandas indígenas de adaptação. O esforço em produzir tal realidade linguística foi comum nas áreas coloniais da América. Tal processo também teve lugar, por exemplo, nos Andes, igualmente sob inspiração jesuítica. José de Acosta propôs, naquela região, a adoção da “língua geral do Inca”, o quíchua , pois “já que não se obriga aos bárbaros a aprender uma língua estranha, ao menos não se lhes permite que ignorem a que se chama ‘língua geral’ ” ¹¹⁵ . Isto é, considerando as dificuldades de aprendizado dos idiomas europeus, elegia-se um idioma local como aquele que poderia tornar-se universalmente conhecido, ou geral .

O autor anônimo das Notícias Autênticas justificou a introdução da “língua do Inca, que é a geral do Peru”, na região andina. Utilizou para isso argumentos paralelos aos usados pelos jesuítas portugueses, ao defenderem a adoção da “língua brasílica”. Sustentou que a “língua do Inca” era “a mais copiosa e expressiva de quantas se usam nesta América meridional” ¹¹⁶ . Ou seja, a “língua do Inca” era como a “língua brasílica” jesuítica. Capaz de comportar muitas palavras e muitos conceitos de sentido relevante tanto para a administração política quanto para a espiritualidade cristã. Esse mesmo autor comparou tal processo com o que ocorria nas áreas portuguesas, isto é, o que entendeu como a generalização da língua dos Omáguas , “que não é outra senão a dos Tupinambá que vieram do Brasil [e] que os portugueses do Pará e Brasil chamam de ‘língua geral’ ” ¹¹⁷ . Muitos, como o Padre Arriaga, no Peru, consideravam a língua dos Omágua ou dos Tupinambá , o guarani, “tão geral ou mais que a de Cuzco [o quíchua], porque corre, segundo dizem, mil léguas ou mais até o Brasil e até Santa Cruz de la Sierra” ¹¹⁸ . Como explica Arriaga, portanto, a língua brasílica tornava-se geral também porque guardava parentesco com um sem-número de idiomas falados no interior do continente. E o seu falar seguia as rotas de comércio e guerra que se espalhavam pelo interior. Anchieta apenas realçou que existiam “diferenças de pronunciação” ¹¹⁹ , mas Cardim assinalou que esse grupo linguístico aparentado “compreende algumas dez nações de índios; estes vivem na costa do mar, e em uma grande corda do sertão” ¹²⁰ . Mas o mesmo Cardim acrescentou um aspecto importante: muitos índios Tapuias, isto é, não-falantes da língua brasílica ou idiomas aparentados, que “foram trazidos pelos Padres do sertão”, aprenderam a “língua dos do mar que os Padres sabem”, foram batizados “e viveram muitos deles casados nas aldeias dos Padres” ¹²¹ . Assim, mesmo para aqueles que não falavam línguas aparentadas à língua dos Tupinambá , a língua geral apresentava melhores condições de aprendizado do que o português. Isso permitiu sua consolidação, portanto, como língua franca. O procedimento de juntar índios de outros grupos linguísticos com falantes da língua geral era amplamente utilizado durante os trabalhos missionários. Os Regulamentos do Padre Antônio Vieira, no século XVII , recomendavam que “caso que totalmente não haja intérprete, nem outro modo por onde fazer o dito catecismo, será meio muito mais acomodado o misturar os tais índios com os da ‘língua geral’ ” ¹²² .

Existia, portanto, no universo de relações estabelecidas entre religiosos e índios, uma sintonia identitária, às vezes linguística, as vezes nãolinguística, mas sempre nativa, indígena, mesmo que administrada pela religião cristã. Isto levava a que, como João Daniel comentou, ao “descerem os índios”, isto é, ao serem trazidos do interior para aldeias jesuíticas, “logo com o mais a aprendem [a língua geral]” ¹²³ . Na Amazônia, especialmente, a língua geral foi conhecida como nheengatu (“fala boa”), o que expressava bem a boa receptividade que tinha, como elo aglutinador, instância pacificadora, elemento gerador de harmonia. Antônio Vieira lamentava que na Bahia de seu tempo (meados do século XVII ) já fosse “tão pouco geral a língua chamada geral do Brasil” ¹²⁴ . Em grande medida porque percebia o seu papel de relevância social. Mas isso não queria dizer que o idioma não continuasse a exercer seu papel integrador nas fronteiras da expansão portuguesa. O projeto da língua geral era um projeto civilizatório de longa duração. Uma futura sociedade brasílica poderia ser estruturada, aos moldes do que ocorria nos Andes, ou no México, a partir de uma sociedade de produtores indígenas. Estes seriam culturalmente associados e unidos por um idioma comum e valores culturais e morais cristãos, mas dirigidos por uma elite de europeus, lusófonos, sensatamente voltados para o equilíbrio entre o bem-estar pessoal e o da comunidade como um todo. Não imunes, obviamente, a processos de miscigenação legais e morais. Mas, quando o fazendo, atuando dentro de uma moral cristã. De certo que a escravidão dos africanos introduziu, com o tempo, novas variáveis, mas o exemplo da América hispânica, tida como modelo, mostrava como era possível contar com a estabilização das sociedades indígenas em prol da ordem. Assim, afirmou Pero Ruiz: Em proveito temporal dos portugueses é a mudança dos costumes desta gente bárbara porque tem neles fiéis e esforçados companheiros, na guerra, cuja flecha muitas vezes experimentaram os estrangeiros... também tem neles um grande freio contra os negros de Guiné, de cuja multidão é para temer” ¹²⁵ O equilíbrio social necessário à ordem exigia que diferentes interesses fossem satisfeitos, para o âmbito do bem-estar geral. Entre esses os dos indígenas, pois o objetivo era tê-los como sócios no empreendimento social. A língua geral , acima de tudo, portanto, gerava cumplicidades. Rompia o universo fragmentado das diferentes etnias indígenas, unificava causas e propunha um horizonte de unidade. Era uma causa jesuítica, centrada na busca da ordem moral, na consolidação da verdade a ser contida na fala. Mas era também uma movimentação indígena, que criava e aprofundava sua identidade diante dos europeus. Através dela se estabeleciam os fundamentos de sua participação e de sua necessidade.

Revelavam-se não como predadores, mas como argumentadores. E estabeleciam um fundo básico diante do qual argumentações poderiam ser trocadas. 111 “ Sermão da Epifania, 1662, do Padre Antônio Vieira ” in VIEIRA , Antônio: Sermões , Tomo II . op.cit., p.24. 112 GUERREIRO , Fernão: Relação anual das coisas que fizeram os Padres da Companhia de Jesus nas partes da Índia Oriental e no Brasil . Lisboa, Jorge Rodrigues, 1605. p.111. 113 VASCONCELLOS , Simão de: Crônica da Companhia de Jesus . op. cit., p.96. 114 DANIEL , João: Tesouro descoberto no rio Amazonas , Tomo I,in Anais da Biblioteca Nacional. 95, op.cit., p.259. 115 “ De procuranda indorum salute, 1577 ” in ACOSTA , José de: Obras . op.cit. pp 415 e 516. 116 “Noticias auténticas del famoso rio Marañón y misión apostólica de la Compañía de Jesus en la provincia de Quito (anônimo, 1738)” in op.cit., p.49. 117 Idem , ibidem , p.50. 118 “Carta do Padre José de Arriaga ao Padre Cláudio Aquaviva, de Lima, 6 de abril de 1594” in EGAÑA , Antonio et FERNANDEZ

, Henrique (ed.): Monumenta Peruana , vol.5. op.cit., p.387. 119 ANCHIETA , José de: Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil . op.cit. p.1. 120 CARDIM , Fernão: op.cit., p.101. 121 Idem , ibidem , p.106. 122 “Regulamento das aldeias indígenas do Maranhão e Grão-Pará do Padre Antônio Vieira; posterior a 1658” in BEOZZO , José Oscar: Leis e regimentos das missões: política indigenista no Brasil . São Paulo, Loyola, 1983. pp.199-200. 123 DANIEL , João:”Tesouro descoberto no rio Amazonas”, Tomo I, in op.cit., p.269 124 “Exortação primeira em véspera do Espírito Santo, do Padre Antônio Vieira: in VIEIRA , Padre Antônio: Sermões , Tomo V. op.cit, p.383. 125 RUIZ , Pero: “Vida do Padre José de Anchieta da Companhia de Jesus, quinto provincial que foi da mesma Companhia no Estado do Brasil” in Anais da Biblioteca Nacional. XXIX , 1907. p.245. Trabalho e renúncia

Existia uma grande diferença, no entanto, entre as populações indígenas da América portuguesa e aquelas que faziam parte das altas culturas da América hispânica. E isso teve um efeito sobre os desdobramentos futuros de qualquer projeto no Brasil. Os índios que viviam no litoral do Brasil, bem como aqueles que viviam no interior, no Paraguai, nas regiões centrais da América do Sul e na Amazônia, que estavam de uma forma ou outra sob influência dos colonizadores portugueses, não viviam em sociedades urbanas. Suas estruturas políticas e sociais eram pouco complexas. Uma estrutura estatal, como a que existia no Império Inca, era inexistente. Isso significava que não havia qualquer instituição preexistente que pudesse ser aproveitada para a montagem de uma ordem social estável complexa e moralmente ordenada. Também não existia, entre os nativos, qualquer experiência de subordinação social a uma estrutura estatal, que pudesse servir de referência para sua associação ao empreendimento administrativo lusitano. Isso era muito diferente do que ocorria no Peru, ou no México. Nesses lugares existia uma instituição estatal prévia, cuja estrutura foi aproveitada pela Espanha. Havia conhecimento do que era a vida num Estado complexo e o que significava estar nele: pagar impostos, prestar serviço militar, submeter-se a um sistema judicial. E, principalmente, existiam cidades, algumas delas, como Tenochtitlan, atual Cidade do México, que já antes da Conquista estava inserida entre as maiores do mundo. É superficial, portanto, como fez Sérgio Buarque de Holanda, dizer que os portugueses eram os responsáveis pela não existência de uma vida urbana avançada no Brasil. Na verdade, os espanhóis conquistaram cidades, e as reformaram ou reconstruíram, e foram forçados a aceitar demandas urbanas dos povos dominados. Aqui não havia, previamente à chegada dos portugueses, nem cidades nem demandas por elas. Assim, pode-se entender a fragilidade do tecido social urbano nos primeiros séculos da presença portuguesa do Brasil. Tudo era, em parte, uma extensão do que ocorria em Portugal, e, em outra parte, uma expressão da mentalidade pré-urbana ou da incapacitação local para uma vida urbana. Todo o individualismo predador era, igualmente, hostil a uma existência citadina ordenada, pois fugia da aceitação de regras universais. Um dos papéis da Companhia de Jesus era exatamente o de viabilizar, primeiro, a receptividade à existência urbana, e, segundo, as cidades elas mesmas. Não por outra razão os jesuítas foram grandes construtores de prédios públicos e igrejas, e estabeleceram o padrão para obras em todos os lugares onde atuaram. Até o século XVIII .

Mas o processo de educação dos nativos para a vida urbana sempre foi um dos seus objetivos, na medida em que a capacidade de viver em cidades era considerada como um dos sinais mais característicos da plenitude da condição humana. Além do mais a urbanização dos índios seria um complemento essencial para o advento de uma sociedade moral. Por isso uma das mais importantes atividades jesuíticas era o aldeamento dos índios, ou a sua redução , isto é, redirecionamento . Desde o primeiro momento, a ação jesuítica pretendia fixar populações nativas. E para isso eram realizadas as chamadas descidas , assim chamadas porque os religiosos desciam os índios do sertão ao litoral. Pois, como explicou o Padre João Daniel, “a primeira e principal [medida a ser tomada para aldeá-los, e impedir sua fuga] é o apartar para bem longe de suas terras os índios, e não os aldear perto” ¹²⁶ . Tais deslocamentos tinham como objetivo básico fixar os nativos em comunidades sedentárias e produtoras de gêneros agrícolas. Ensaios de existência urbana, de onde, se fosse o caso, poderiam inclusive ir trabalhar em fazendas ou empreendimentos dos brasileiros . Algumas dessas descidas envolviam transferência considerável de populações. Em 1584, por exemplo, promoveu-se uma descida , para as aldeias do Espírito Santo, de um grupo de quatro ou cinco mil índios originalmente estabelecidos no interior ¹²⁷ . Os jesuítas das reduções espanholas dos rios Paraná e Uruguai também promoviam deslocamentos análogos. E tal como os do Brasil, movidos por questões de segurança diante do assalto dos paulistas e outros predadores, traficantes de escravos ¹²⁸ . Segundo o Padre Fernão Guerreiro, os índios “não vêm mais que confiados na palavra e amor dos Padres” ¹²⁹ . O Padre João Daniel explicou a lógica que possibilitava esse deslocamento contínuo de pessoas: E para que melhor se faça o devido conceito destes descimentos do Amazonas se há de saber que, aqueles missionários, acomodando-se à brutalidade e rusticidade dos índios... não lhes expõem logo os motivos, porque se devam converter... mas só lhes propõem motivos temporais e mui simples, como, por exemplo, que nas aldeias, debaixo da proteção dos missionários, estão livres, e seguros de seus inimigos e contrários; que hão de ter machados e mais instrumentos de ferro para fazer com facilidade as suas roças... que hão de ter muito de comer, e águas ardentes para se regalarem e outros motivos semelhantes... e ordinariamente lhes não tocam em outros superiores à sua estupidez” ¹³⁰ . O movimento tinha a ver, portanto, com necessidades temporais nativas, como a segurança, diante dos predadores europeus e indígenas, e uma imediata ascensão civilizatória, através da inserção do grupo numa rede maior de produção, compra e venda de mercadorias. Dessa vez, no entanto, de uma forma ordenada e moral.

João Daniel via o processo como um esforço total de elevação da qualidade moral dos índios, onde os elementos da cultura eram ao mesmo tempo teorizados e vividos: Com estes santos enganos, os movem a largar as suas terras e os vão entretendo nas aldeias, repartindo-lhes... anzóis, facas, machados e outras coisas, enquanto não as têm de sua lavra e outras coisas, e entretendo vão dispondo com a doutrina ¹³¹ . A prática desses “santos enganos” vinha das origens da ação religiosa. Luis da Grã, em 1554, por exemplo, afirmou que “o modo de convertê-los é alegar comodidades temporais sem notícia alguma das coisas da fé” ¹³² . Daniel denomina tais táticas de “santos enganos”, não por serem, exatamente, enganos, mas sim movimentos que possuíam, na realidade, uma dimensão pedagógica, de processo de formação. Tudo ali era ensino da vida urbana, de uma vida inserida em universo de ordem moral. Mas João Daniel acrescenta que tudo isso tinha um custo. “Posta esta notícia”, ponderou João Daniel, “se vê quantos cabedais [recursos] sejam necessários para fazer qualquer descimento” ¹³³ . A Companhia tinha que ser sustentada por subsídios estatais. A bula papal Licet Debitum , de 1549, isentou os religiosos do pagamento de dízimos. Decisão esta confirmada por disposições posteriores, de 1576 e 1577. O dízimo era um dos principais meios de financiamento do Estado, já que, conforme a Bula de 4 de janeiro de 1551, era o Rei que o recolhia. Isentando-se os jesuítas, configurava-se uma forma de subsídio indireto. Outras atitudes do Estado se sucederam com o tempo. O Alvará Régio de 4 de maio de 1573, por exemplo, isentou do pagamento de direitos alfandegários de entrada e saída todos os produtos que os Padres da Companhia recebessem do exterior ou enviassem para fora da colônia. Existia também uma política de fornecimento gratuito de gêneros à Companhia e, a partir de 1560-1570, uma percentagem dos impostos pagos em açúcar, a redízima de todos dízimos e direitos devidos ao Rei em todo o Brasil, era repassada aos três colégios da Bahia, Rio de Janeiro e Olinda. “Para sustentação, mantença e despesas do dito colégio e religiosos dele, lhe dotei e apliquei uma redízima de todos os dízimos e direitos, que tenho e me pertencem”, alertando o Rei, que, quando a redízima não fosse suficiente, se proveria a diferença em dinheiro ¹³⁴ . Além do mais, o Estado destinava subvenções específicas aos jesuítas que embarcavam de Portugal para o Brasil. Em torno de 1581 a subvenção pessoal era de 20.000 rs., em 1690, 35.000 rs. Isso comprova, portanto, o sólido interesse do Estado no sucesso do projeto jesuítico. Considerando, ainda mais, as imensas e contínuas fragilidades da sociedade brasileira.

A estrutura produtiva dos aldeamentos era para ser baseada em formas de trabalho agrícola coletivas. Mas como demonstrava a experiência, existiam dificuldades evidentes tanto no processo de aprendizagem, quanto na incorporação do espírito necessário ao de trabalho. Estas últimas também exigiam constância e renúncia, valores novos a serem introduzidos na cultura indígena. A necessidade de manter o fornecimento de bens estava ligada diretamente à possibilidade de sucesso do aldeamento. “Notando os índios que se acabavam os presentes, deixavam de acudir às instruções dos missionários”, observou o Padre Pastor, citado por Angel Santos ¹³⁵ . Era necessário também ensiná-los a trabalhar de forma sistemática e intensa. O que implicava em muita renúncia a horas livres. Em aprender o valor da dedicação contínua, dos ganhos que se recebem quando se vive com moderação e fortaleza. A preguiça era, de fato, um pecado. Tão grave quanto a luxúria. A montagem dessa sociedade ordenada tinha, portanto, um custo inicial elevado. Mas se acreditava que, em algum momento, ele seria de alguma forma amortizado. Essa era uma questão importante para o sucesso do Brasil. E grande parte da responsabilidade do sucesso dependia da contínua inspiração dos Padres em lidar com esse processo e os seus custos, materiais e humanos. E, é claro, defender tal projeto dos predadores que o combatiam. 126 DANIEL , João: op.cit., tomo II , p.258. 127 LEITE , Serafim: História da Companhia de Jesus no Brasil , vol.1. op.cit., p.232. Ver também, sobre outras descidas, p.209 e p.395. 128 MONTOYA , A.R.: Conquista espiritual hecha por los religiosos de la Compañía de Jesús en las provincias del Paraguai, Paraná, Uruguai y TaPadre op.cit., pp.48-53. TECHO

, Nicolas: Historia de la provincia del Paraguai de la Compañía de Jesús , Madrid, 1897 vol. IV . pp.149 e 176; e vol.V, p.60. 129 GUERREIRO , Fernão: Relação anual das coisas que fizeram os Padres da Companhia de Jesus nas partes da Índia Oriental e no Brasil (1605) . Lisboa, Pedro Caasbeck, 1607 (Nova edição, Coimbra, 1931). op.cit., p.112. 130 DANIEL , João: op.cit., tomo II , p.255. 131 DANIEL , João: op.cit., tomo II , p.255. 132 GRÃ , luis da: “Carta do Padre Luís da Grã ao Padre Inácio de Loyola, Roma, da Bahia, 27 de dezembro de 1554” in LEITE , Serafim (ed.): Monumenta Brasilae , vol.2. op.cit., p.137. 133 DANIEL , João: op.cit., tomo II , p.255.

134 “Alvará da Fundação Régia do Colégio da Bahia, Lisboa, 4 de novembro de 1564” in LEITE , Serafim (org.): Monumenta Brasilae , vol. 4. 135 SANTOS , Angel: Los jesuitas en América . op.cit., p.265 Escravidão e liberdade O tema da escravidão indígena foi central nas preocupações do Estado português e dos jesuítas. A discussão em torno do assunto atravessou séculos. A Companhia de Jesus, como de resto a Igreja como um todo, sustentou logo de início a humanidade dos índios, que alguns negavam pelos bastidores. Assim, afirmou Nóbrega que a “proximidade” fazia os nativos humanos: “Se eles não são homens, não serão próximos, porque só os homens, e todos maus e bons, são próximos: todo homem é uma mesma natureza, e todo pode conhecer a Deus e salvar sua alma” ¹³⁶ . A condição de bárbaros, ou de escravos, não entrava, aqui, em pauta. O humano era o ponto inicial de consideração do assunto. No entanto, ao sustentar a tese da humanidade, estabelecia-se um horizonte de igualdade espiritual. Que, por sua vez, instaurava a necessidade de pensar, no âmbito da busca da justiça e da elevação dos valores morais, todas as relações sociais, inclusive as de trabalho. Pensar a situação dos índios, diante da presença portuguesa, exigia todo um complexo arrazoado jurídico e moral. Era na escravidão que mais um foco de inconsistência moral se articulava. A tendência ao descontrole civil dos brasileiros tornava banal o movimento de capturar e escravizar índios e índias. Tornando violentas as relações internas na sociedade, comprometendo sua harmonia. O observador Nóbrega considerou que a questão era sim moral, pois não via aquela escravidão, a que estava sendo vivenciada, desregrada, gratuita, desprovida de fundamentação legal, agregada a outra coisa senão à corrupção e ao subjetivismo moral: Os homens que aqui vivem não acham outro modo senão viver do trabalho dos escravos, que pescam e vão buscar-lhes o alimento, tanto os domina a preguiça e são dados a coisas sensuais e vícios diversos ¹³⁷ . A relação entre a fluidez dos pecados e escravidão dos índios estava aqui claramente sustentada. Mas não havia, então, uma clareza sobre se toda escravidão era de fato uma porta para o pecado, ou para o subjetivismo

moral. Pois o próprio Padre Nóbrega considerava que a escravidão poderia ser legítima. Acompanhando, de forma forçada, os juristas do seu tempo. O problema era discutir aquela escravidão específica, a dos brasis pelos brasileiros . E as grandes pressões que haviam na sua legitimação. Diego Laynez (1512-1565) tornou-se superior da Companhia de Jesus em 1558. Estava no Concílio de Trento, em 1562, desempenhando um importante papel nas discussões teológicas da ocasião. De lá escreveu uma carta a Nóbrega, onde tratava do assunto, no que dizia respeito aos jesuítas, reforçando uma não condenação a priori da escravidão: O ter escravos – escreveu – para tratar a fazenda de gado ou pescar ou para o demais com que se há de manter semelhantes casas, não o tenho por inconveniente, contanto que sejam justamente possuídos, o que digo porque entendo que alguns são feitos escravos injustamente ¹³⁸ . Laynez acreditava, portanto, que a questão era a da justiça da escravidão, acima de tudo. Uma base mínima para se tratar o problema de sua legalidade. Coisa com que Nóbrega também concordava. Principalmente porque entendiam a Justiça como uma virtude a ser alcançada no perfeito funcionamento da sociedade. Se havia escravidão, que esta ao menos fosse justa. Mas isso era possível? O que acontecia, de fato, é que no litoral da América portuguesa não havia, nas primeiras décadas de comércio, qualquer limite legal para o cativeiro de índios. Qualquer coisa era possível no assunto. Entendeu Nóbrega que a “sujeição do gentio não é para se salvarem e conhecerem a Cristo, senão para serem roubados de suas roças de seus filhos e filhas e mulheres” ¹³⁹ . O objetivo da escravidão, na perspectiva dos povoadores, era desprovido de qualquer boa intenção e voltado apenas para a pura e simples destruição do outro. Um pilar central na ordenação das difíceis relações entre Indios e povoadores, que os jesuítas levavam em conta, era a Bula Veritas Ipsa , do Papa Paulo III , de 1537: Determinamos e declaramos que os ditos índios e todas as mais gentes que daqui em diante vierem à notícia dos cristãos, ainda que estejam fora da fé de Cristo não estão privados nem devem sê-lo de sua liberdade, nem do domínio dos seus bens e não devem ser reduzidos à servidão, declarando que os ditos índios e as demais gentes hão de ser atraídos e convidados à dita Fé de Cristo com a pregação da palavra divina e com o exemplo de boa vida ¹⁴⁰ . Essas disposições eram sem dúvida fundadoras. Muito claras no estabelecimento da essencial liberdade indígena. Mas não tinham a ver com as escravidões ditas legais e justas, principalmente aquelas advindas da, assim chamada, “guerra justa”. Cuja legalidade era reconhecida por todos os entendidos da época.

A “guerra justa” tinha sido longamente discutida por juristas da Igreja. Ela exigia, segundo o franciscano Alvaro Pais (1265-1352), que existisse uma injustiça do adversário, a ser sanada. Tinha que ser conduzida com boas intenções (e não por motivações egoístas) e ser declarada por uma autoridade legítima, isto é, um Rei ou a Igreja. Os prisioneiros desse tipo de guerra seriam considerados justa e legalmente escravos. Considerando a situação do litoral brasileiro e o choque desorganizado e predatório então vivenciado, era desse entendimento de “guerra justa” que muitos entendiam estar derivado o direito de escravizar os índios. Porque tudo que ocorria no Brasil não estava ordenado por nenhuma situação normal própria da paz. Só havia ali enfrentamento descontrolado de desejos. Guerras contínuas, cotidianas. Gerais e íntimas. Tudo podia ser “justo” em função de desejos particulares, de princípios morais subjetivos. A partir da chegada do Governador Geral, em 1549, terá início uma sequência quase interminável de intervenções legais no assunto. Uma das primeiras resoluções sobre o tema, no Brasil, data de 1566. Foi emitida pela Junta da Bahia. Vinha, portanto, de brasileiros interessados. Nela pretendia-se estabelecer critérios favoráveis ao processo de escravidão indígena. Neste documento afirmava-se aos fazendeiros que seus índios, escravizados, não encontrariam guarida, liberdade, nos aldeamentos jesuíticos e que era possível a escravidão através de uma série de expedientes, entre eles a venda de índios aos colonos pelos seus familiares. Tentava-se, assim, dar algum aspecto de legalidade a realidades existentes. A Companhia, agindo junto ao rei D. Sebastião, conseguiu dele uma posição sobre o assunto, a Lei de 20 de março de 1570. A decisão da Junta da Bahia, bem como outras opiniões semelhantes, era desconsiderada. Nesta lei, o monarca decretou livres todos os índios do Brasil, exceto aqueles capturados em “guerra justa”, uma das últimas das quais tivera lugar, aliás, em 1562, como punição à execução do Bispo Sardinha. O próprio monarca, no entanto, nas Resoluções de 6 de janeiro de 1574, achou por bem recuar. Nessas Resoluções admitiu três formas possíveis para o cativeiro indígena: A primeira era “guerra justa” desde que “com a solenidade devida”, conclamada pelo Governador. A segunda era o chamado “resgate” de índios, isto é, o aprisionamento, por europeus, de índios capturados por tribos rivais e que escapariam, através do cativeiro, dos rituais antropofágicos. E a terceira a venda voluntária, desde que o índio fosse maior de 21 anos. Treze anos depois, em 1587, Felipe II (1527 – 1598, conhecido como Felipe I em Portugal), com o objetivo de dirimir diversos abusos denunciados, principalmente durante as ações de “resgate”, obrigou que tais ações fossem acompanhadas por jesuítas.

Tendo em vista as arbitrariedades constantes, em torno das ações punitivas aos índios, muitas vezes forjadas, o Rei, em 1595, reservou para si o direito de decretar as “guerras justas”. Visando, por fim, o estabelecimento de alguma ordem no processo de recrutamento de nativos no interior para as plantações do litoral, em 1596 foi a Companhia de Jesus reconhecida como a única responsável pelas ditas descidas dos índios. Nesse período os jesuítas aumentaram, portanto, de maneira substancial, o seu poder protetor sobre as populações indígenas. Limitando ao máximo possível as possibilidades legais de cativeiro. Ainda atuando junto ao Rei, os jesuítas obtiveram dele a Lei de 30 de julho de 1609, que aboliu mais uma vez a escravidão indígena no Brasil, colocando os nativos, imediatamente, sob a proteção da Companhia de Jesus. Dois anos depois, no entanto, o Rei recuou, e emitiu a Lei de 1611, que reafirmou o princípio da “guerra justa”. Essa mesma lei, de forma um tanto obscura, procurou reafirmar a autonomia indígena, através da garantia de liberdade de escolha dos índios, caso não quisessem descer para o litoral. Uma nova reação jesuítica veio em 1640. Em abril deste ano foi dado ao conhecimento o Breve do Papa Urbano VIII (1568-1644), de 22 de abril de 1639, que proibiu, novamente, o cativeiro dos indígenas. Daqui por diante – afirmava o Breve – não ousem ou presumam cativar os sobreditos índios, vendê-los, trocá-los, dá-los, apartá-los de suas mulheres e filhos, privá-los de seus bens e fazenda, levá-los e mandá-los para outros lugares, privá-los de qualquer modo da liberdade, retê-los na servidão e dar a quem isto fizer conselho, ajuda, favor e obra com qualquer pretexto e cor ou pregar ou ensinar,… declarando que quaisquer contraditores e rebeldes e que no sobredito vos não obedecerem, incorrerão na sobredita excomunhão ¹⁴¹ . A ameaça de excomunhão não parece que tenha tido algum efeito significativo. Pelo menos no Brasil dos predadores, onde a recepção da ideia de pecado era limitada, isso não era capaz de demover atitudes, como veremos adiante. Com o avanço do povoamento no Maranhão e Pará, na Amazônia, regiões de grande população indígena, abriu-se uma nova fronteira de conflitos. A Ordem Régia de 1653, considerando a situação de caos e violência reinante, mais uma vez libertou os indígenas. A Lei de 1 de abril de 1680, que consta ter sido inspirada pelo Padre Antônio Vieira, voltou a libertar os índios: “mando que, daqui em diante, se não possa cativar índio algum do dito estado em nenhum caso, nem ainda nos exceptuados nas ditas leis, que hei por derrogadas” ¹⁴² . A importância dessa lei foi grande, principalmente porque nela, pela primeira vez, foi negado que a “guerra justa” gerasse direitos de escravidão.

Estabeleceu-se, igualmente, o monopólio da Companhia de Jesus nas missões do interior. Além do mais, com objetivos contemporizadores, a lei aceitou a demanda dos colonos, que era a da facilidade de acesso à mão-de-obra, abrindo caminhos para alternativas à utilização do trabalho indígena, através do estímulo à entrada de escravos africanos. Outros dispositivos que consolidaram o poder dos jesuítas sobre os índios foram o Regimento das Missões , de 1686, e o Alvará de 1688. Estes restabeleceram vários mecanismos legais de escravidão, mas a critério das Juntas de Missões , instituições responsáveis pelo trabalho missionário, nas quais os Jesuítas tinham preponderância. E, principalmente, o Regimento estabeleceu que: “os Padres da Companhia terão o governo não só espiritual”, que antes tinham, mas o político “e temporal, das aldeias de sua administração” ¹⁴³ . Tal decisão ampliou ou consolidou a autoridade da Companhia. O papel de mediadores entre segmentos da sociedade, exercido pelos jesuítas, foi assim continuamente assegurado pelo Estado. Embora com um esforço tremendo. Pois é evidente a existência de um contínuo confronto de ideias. Considerando todas as limitações existentes, a insistência nesse assunto era de interesse do Estado português e de todos que queriam o Brasil ordenado e próspero. Com a entrada em cena da escravidão africana, outros espaços de desagregação social foram sendo acrescentados. O que forçou os jesuítas a expressar sua opinião sobre o tema. O Jesuíta Jorge Benci (1650-1708) escreveu, em 1705, uma importante obra sobre o assunto, o Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos . Nela afirmou que “o gênero humano é livre por natureza, e senhor não apenas de si, senão também de todas as criaturas”. O fato de parte da humanidade ter caído na servidão e cativeiro, ficando uns senhores e outros escravos, foi sem dúvida um dos efeitos do pecado original de nossos primeiros pais Adão e Eva, donde se originaram todos os nossos males... Senhores, eu não pretendo que deis liberdade aos vossos servos... o que pretendo de vós, é que os trateis como a próximos e como a miseráveis; que lhes deis o sustento para o corpo e para a alma; que lhes deis somente aquele castigo que pede a razão, e que lhes deis o trabalho tal, que possam com ele e os não oprima. ¹⁴⁴ Tal posição expressava o projeto básico de uma sociedade moralizada jesuítica, no qual existia lugar para os diferentes segmentos sociais, respeitando os direitos decorrentes de sua humanidade espiritual.

No caso dos escravos, cuja existência parecia no momento impossível de ser eliminada, isso significava o exercício de um poder controlado, balizado por princípios éticos, que estava delimitado pela observância do humano e da vontade de Deus. Pela razão e pela recusa à brutalidade na relação. No caso dos índios pelo reconhecimento e preservação de sua identidade. No caso de todos, pela aceitação da tese essencial de que “o gênero humano é livre por natureza”. Para o problema identificado por Frei Vicente de Salvador, ou seja, “nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”, os jesuítas propunham o estabelecimento de uma sociedade socialmente virtuosa. Fundamentada na prudência, na justiça, na procura do bem e no domínio dos instintos. No reconhecimento dos naturais direitos de liberdade. Esse controle de instintos predadores, no entanto, que em outros lugares da América encontrava algum sucesso, no Brasil parecia estar diante de uma oposição incontrolável. A insistência contínua em leis sobre a “liberdade dos índios” mostra o quanto existia, na sociedade, um profundo sentimento destruidor de qualquer virtude. As pressões sociais eram contínuas, diárias, e nenhuma delas levava em consideração qualquer determinação papal ou decisão real. Ou qualquer direito natural de liberdade. Nesse caso, fica claro que o Rei, ao contrário do que muitos brasileiros defendiam, não era o principal responsável pela barbárie. A barbárie estava contida na incontrolável identidade do Brasil. 136 “Diálogo do P. Manuel da Nóbrega sobre a conversão do gentio” in NÓBREGA , Manuel da: Cartas do Brasil, 1549-1560 . op.cit., p.233. 137 “Carta do Padre Manuel da Nóbrega ao Padre Mestre Simão Rodrigues, 1550” in NÓBREGA , Manuel da: Cartas do Brasil, 1549-1560 . op.cit., p.110. 138 “Carta do P. Diego Laines ao P. Manuel da Nóbrega, Brasil, de Trento, 16 de dezembro de 1562” in LEITE , Serafim (ed.): Monumenta Brasilae , vol.3. op. cit., p.514. 139 “Carta do Padre Manuel da Nóbrega à Tomé de Souza, 1559” in NÓBREGA

, Manuel da: Cartas do Brasil, 1549-1560 . op.cit., p.19. 140 “Bula Veritas Ipsa, do Papa Paulo III , de Roma, 9 de junho de 1537” in VARNHAGEN , Francisco Adolfo de: História Geral do Brasil , vol.1, Tomo 1. São Paulo, EDUSP , 1981. p.58. 141 “Breve do Papa Urbano VII “Comissum Nobis” de 22 de abril de 1639, sobre a liberdade dos índios da América” in LEITE , Serafim: História da Companhia de Jesus no Brasil , vol. VI , op.cit. p.569 142 “Lei de 1 de abril de 1680” MORAIS , Mello: Corografia Histórica, Cronográfica, Genealógica, Nobiliária e Política do Império do Brasil . Tipografia Brasileira, 1860. p.494. 143 “Regimento das missões do Estado do Maranhão e Pará-1686” in LEITE , Serafim: História da Companhia de Jesus no Brasil. Op.cit., p.363. 144 BENCI , Jorge S.J.: Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos (1705) . São Paulo, Grijalbo, p.47 Predadores e opiniões A sociedade brasileira tornou-se, com o passar do tempo, insuportavelmente violenta. O espírito inicial dos brasileiros , tosco e desarticulado do ponto de

vista institucional, evoluiu aos poucos para uma complexidade inquietante, envolvente e obsessiva. A ideia de se extrair tudo do meio, sem se preocupar com a existência posterior deste, continuou viva, mas adequando-se a novos objetos, processos e demandas. Mais amplos e profundos. O subjetivismo e a inconsistência moral, tornaram-se quase institucionais e, aos poucos, tradição e norma. Sem que isso representasse plataforma ou proposição política clara, a dinâmica dos primeiros contatos passou a ser reconhecida como estrutura de uma identidade, de um povo que misturava portugueses, índios e, aos poucos, uma população crescente de africanos escravos, que foram sendo inseridos nesse universo de violências. Que esse espírito era consistente e importante pode ser deduzido do fato de que o único elemento constante, do ponto de vista político, dessas populações, era o combate sistemático e contínuo à Companhia de Jesus. A ideia, exposta por Frei Vicente de Salvador, de que a sociedade deveria ser, acima de tudo, subordinada ao bem comum, isto é, ao bem de todos, ricos e pobres, brasileiros e brasis , ideia que os jesuítas, e Portugal, insistiam em implantar, voltava-se contra a herança individualista e predadora dos brasileiros . Longe de promover uma elevação moral, a ação dos religiosos gerava principalmente desconforto e repúdio. De uma maneira única na América, por exemplo, o tráfico de escravos indígenas tornou-se um dos pilares mais relevantes da economia de muitas regiões, como São Paulo. Tropas de traficantes de escravos agiam desde o século XVI , assolando o interior até o Paraguai, e no século XVIII ainda percorriam regiões inóspitas até as missões jesuíticas na Amazônia. Alegavam realizar resgates , trocas, mas nunca cumpriam os critérios estabelecidos para a legitimidade da operação, quer simplesmente aprisionando índios ditos pacíficos , quer comprando indígenas no interior. Os Padres Justo Vangurk e Simón Mazeta, por exemplo, após um ataque de traficantes às reduções jesuíticas do Paraguai, seguiram as rotas do tráfico até o Rio de Janeiro e depois Salvador, conseguindo trazer doze índios capturados de volta para suas missões ¹⁴⁵ . Essa jornada pelo continente ilustra bem o espírito jesuítico diante do problema. Mas também demonstra o alcance das redes de traficantes de escravos indígenas na América portuguesa. A resistência às atitudes no sentido de moralizar o sistema era ampla, portanto, tanto no campo pessoal, cotidiano, quanto na área da política. Um fazendeiro, em 1683, denunciou que os jesuítas induziam os índios “descidos”, e que eram depois repartidos entre os plantadores, a não pedir “menos de três patacas e meia em dinheiro, e não em pano como era uso da

terra e de toda a costa do Brasil”, e com isso, assim argumentava, na verdade e intencionalmente, retardavam a negociação da repartição dos índios de suas aldeias ¹⁴⁶ . Esse documento revela a existência de uma política jesuítica de ampliação da consistência da sociedade civil. O controle dos índios aldeados, e do preço do seu trabalho, poderia promover a circulação de dinheiro em diversos níveis da sociedade e introduzir o importante tema do trabalho assalariado na sociedade. Se o objetivo era superar o escambo, e a violência nele contida, não havia outro caminho senão estimular a instalação de uma economia monetária no Brasil, onde o dinheiro pudesse servir como padrão universal para as trocas. Isso tenderia a desfazer a excessiva subjetividade (e violência) da economia natural, instaurando padrões mais racionais para o estabelecimento do valor das coisas. Isso viabilizaria, por exemplo, a harmonia das feiras, tal como projetado por Tomé de Souza um século antes. O fazendeiro em questão, no entanto, considerava que isso, precisamente por transferir para o social, ou para o mercado, tanto o valor das coisas quanto o da mão de obra, principalmente, inviabilizava o desenvolvimento regular das atividades produtivas. Na prática porque transferia, para uma outra instância, o controle sobre o custo da produção, obrigando-o a uma adequação ao determinado pelo coletivo, ou, mais precisamente, pelo bem comum, ou por regulações de aplicação geral. Nada mais desagradável a um predador. Quase nenhuma das conquistas jurídicas jesuíticas no campo da escravidão indígena passou sem algum tipo de reação social ampla. O Breve de 22 de abril de 1639, anteriormente mencionado, que proibiu o cativeiro dos indígenas, gerou reações populares, no Rio, em Santos e em São Paulo. No Rio, o governador Salvador de Sá e Benevides, aliado dos jesuítas, mas também político, conseguiu compor partidos opostos: o Breve ficou sem efeito e os colonos retiraram suas acusações contra a Companhia. Em Santos, no entanto, tão logo a bula foi anunciada, correram alguns à Igreja dos Jesuítas, “com grandes vozes, dizendo: mata, mata, Padres da Companhia; fora, fora, Padres da Companhia” ¹⁴⁷ . Em São Paulo, igualmente, não houve solução amigável e os habitantes locais decidiram enfrentar a possível pena de excomunhão. No dia 2 de julho os jesuítas foram forçados a descer para Santos e em agosto todos foram deportados. A Companhia só retornaria para São Paulo em 1653, depois de longa negociação e algumas determinações reais e da Santa Sé. Em 1647, Salvador Correa de Sá e Benevides defendeu que o retorno deveria ser o mais breve possível, já que, se isso não ocorresse, “verá em grande prejuízo de Sua Majestade, porque os índios mais seguem sua doutrina e mandatos [dos jesuítas] que de nenhuma outra pessoa” ¹⁴⁸ .

Alguém pode se perguntar: como uma população que recusava o império do bem comum poderia se mobilizar coletivamente, isto é, em busca de objetivos comuns? Basicamente porque esse movimento era em defesa do direito individual de predar. O tema, como plataforma, vai estar presente em todos os movimentos de reação aos jesuítas. Esses se constituem nos grandes movimentos de opinião nos séculos iniciais de povoamento. Primeiras agitações de uma incipiente sociedade civil, que se recusava ao domínio da autoridade e da moral. Ela marchava no sentido da defesa da liberdade, tema da política europeia do século XVII , e fundamento existencial das colônias inglesas da América. Mas, num escandaloso contrário destas, no Brasil, tal defesa da liberdade era entranhada de uma moral subjetivista e relativista. A defesa da predação, da superioridade de uns sobre os demais, era a plataforma capaz de unir descontentes políticos. A liberdade aqui era a liberdade absoluta dos mais fortes, tirânica e descompromissada com o próximo. O que é muito estranho para uma sociedade que deveria projetar o seu desenvolvimento enquanto sociedade, isto é, um sistema harmonioso que envolvia diferentes, voltados para um destino comum, a todos benéfico. Tal ideia, de fundo moral, era, portanto, fortemente combatida. 145 TECHO , Nícolas: História da la província del Paraguay de la Compañía de Jesús , vol. IV . Madrid, 1897. pp.101 e 103. 146 AHU , Caixa do Rio de Janeiro (documentos inventariados), no. 8, documento 1555 “Carta de 26 de novembro de 1683”. 147 “Relação do que sucedeu nesta vila de Santos sobre a publicação das bulas de Sua Santidade acerca da liberdade dos índios...” in LEITE , Serafim: História da Companhia de Jesus no Brasil , vol. VI

, op.cit. p.34. 148 AHU , Rio de Janeiro (inv.) Caixa 4, doc. 602: “Carta de Salvador Correa de Sá e Benevides, 24 de julho de 1647”. A liberdade de predar As desordens políticas dos séculos XVII e XVIII tinham como tema a liberdade. Mas que liberdade? Todas as leis emancipatórias do final do século XVII causaram tumultos políticos sérios. A Ordem Régia de 1653 gerou um motim no Maranhão. Este motim forçou o rei, em 1655, a autorizar novamente o cativeiro. Em 1662, como fruto de uma reação dos colonos aos diversos impedimentos que punham à escravidão indígena, foram os jesuítas expulsos do Maranhão, em maio, e do Pará, em julho. O seu retorno, em 1663, deu-se por decisão real, com o restabelecimento de poder espiritual inaciano sobre os nativos. Mas tal decisão não pacificou a sociedade. A Lei de 1 de abril de 1680, já apontada, gerou nova reação violenta, e em 1681 os jesuítas foram expulsos de Belém. Nessa situação difícil, o governo português criou uma Companhia de Comércio , um monopólio real. Esta era, entre outras coisas, preparada para apoiar a importação de escravos da África. Tornou-se público o projeto de introduzir 10.000 africanos, para tentar suprir a carência de braços na lavoura. Mas uma disposição dessas não tranquilizou os fazendeiros. Mesmo porque a Companhia de Comércio envolvia novos protagonistas e políticas, que causaram desconforto. Em 1684, em São Luís, Manoel Beckman (1630-1685), juntamente com outros colonos indignados, invadiu o colégio jesuítico, ordenou a prisão dos jesuítas, declarou encerradas as suas ações no Maranhão e determinou sua expulsão da cidade. A chamada “Revolta de Beckman” foi um importante momento da construção da identidade brasileira, e expressou todos os paradoxos advindos do desenvolvimento do espírito predatório. O seu manifesto, de 18 de março de 1684, foi emitido quando da revolta do Maranhão. Nele está presente um discurso político consistente, desenvolvido a partir de elementos identitários próprios, e fundamentado no antijesuitismo: Porque de tudo Vossas Paternidades [os jesuítas] são a causa, com as muitas vexações que o povo padece, causado do temporal, pois nunca Vossas Paternidades com o espiritual quiseram ser contentes, sem terem um e

outro poder, antes procuraram governar tudo, e terem aos moradores sujeitos, como de administração, fazendo-se poderosos e temidos com o seu suor, perseguindo-os com demandas injustas, procurando sempre que o povo os temesse por suas riquezas e, poderosos, de que os amasse por simples e caritativos, sem guardarem nesta parte termo algum… Afirmava Beckman, aqui, que a causa das dificuldades pelas quais passavam as pessoas no Maranhão era a ação política da Companhia de Jesus. Segundo os revoltosos, ao invés de restringirem-se à esfera espiritual, os jesuítas queriam atuar também na esfera temporal, na moral e no sistema legal. Nesse discurso, os jesuítas eram opressores, governando pelo poder e pelo medo, perseguindo, aterrorizando por suas riquezas, ao invés de serem amados por simplicidade e caridade. Esta tese de Beckman denunciava a existência da Companhia de Jesus como um pilar de autoridade que insistia em impor-se a uma sociedade que a recusava. Assumia Beckman a existência dessa recusa e procurava lhe dar legitimidade política. Existia uma consciência que se desenvolvia à margem das tentativas jesuítas. Tal consciência recusava autoridades no campo moral que impusessem regras gerais. Continuava Beckman: E assim lhes pedem todos pelas Chagas de Jesus Cristo: se vão, e acabem já de partir; e que nem por si, nem por outrem, intentem vir mais a este Estado, para não nos perturbarem nossa quietação, nem causarem escrúpulos, pois nos termos presentes já nos consideramos livres, e com Vossas Paternidades, cativos e desamparados ¹⁴⁹ . “Acabem já de partir… para não nos perturbarem nossa quietação, nem causarem escrúpulos”, isto é, para não incomodarem nosso dia-a-dia, nem criarem, em nós, inquietações espirituais ou constrangimentos. Essa aguda defesa do espírito dos primeiros brasileiros evoca a origens dos primeiros contatos, antes que qualquer autoridade pudesse ser imposta ou que qualquer ordem fosse delineada. “Pois nos termos presentes já nos consideramos livres, e com Vossas Paternidades, cativos e desamparados”. Aqui, de uma forma ousada, Beckman levanta o tema da liberdade, como um tema central. Mas, repetimos, que liberdade? Os revoltosos se referem aqui a uma liberdade que emerge do fim de qualquer autoridade moral e religiosa, tanto externa quanto interna, na consciência. É a liberdade de entender o bem como aquilo que é bem para mim. Uma defesa do hedonismo pessoal, e também político e econômico, uma defesa incisiva do subjetivismo moral. Preconizavam os rebelados algo parecido ao que já começava a circular na Europa naquela época: a independência com relação aos poderes estatais

coercitivos e autocráticos, prejudiciais, de alguma forma, aos negócios e à vida centrada no mundo. Uma ânsia pela secularização da moral. Mas não o faziam da mesma forma, nem com os mesmos objetivos. Na Europa já se falava da necessária prevalência da Lei natural sobre o poder político dos religiosos, ou se defendia o império da razão. Mas John Locke, na mesma época de Beckman, 1689, escreveu uma frase lapidar: “Parece-me que a comunidade é uma sociedade de homens constituída apenas para a preservação e melhoria dos bens civis de seus membros” ¹⁵⁰ . Ou seja, o pensador que estava refletindo sobre uma nova ordem política, centrada na defesa dos direitos de propriedade privada, na liberdade, defendia a superioridade do bem comum: Talvez surja uma objeção que, se a colheita das bolotas ou de outros frutos da terra etc., estabelece um direito a eles, então qualquer um pode tomar tudo para si, se esta for a sua vontade. A isto eu respondo que não é bem assim. A mesma lei da natureza que nos concede dessa maneira a propriedade, também lhe impõe limites. ‘Deus nos deu tudo em abundância’ (1Tm 6,17), e a inspiração confirma a voz da razão. Mas até que ponto ele nos fez a doação? Para usufruirmos dela. Tudo o que um homem pode utilizar de maneira a retirar uma vantagem qualquer para sua existência sem desperdício, eis o que seu trabalho pode fixar como sua propriedade. Tudo o que excede a este limite é mais que a sua parte e pertence aos outros. Deus não criou nada para que os homens desperdiçassem ou destruíssem ¹⁵¹ . Assim, a liberdade de ter algo de forma exclusivamente privada deveria ser necessariamente limitada. Assim como a liberdade humana está limitada na propriedade do próprio corpo, mas não se estende à propriedade de outro corpo. O limite era o limite do coletivo, o espaço do outro. O desperdício, ou destruição, isto é, apropriação predatória das riquezas dos outros, era subversão das leis naturais. Assim não pensava Beckman. Em sua visão, tudo aquilo que pudesse limitar o direito da liberdade, ainda que este fosse, por exemplo, um ato de desperdício, ou destruição, a escravidão dos índios, deveria ser considerado como instância opressora. No momento da construção dos fundamentos da ordem democrática contemporânea, os movimentos de opinião do Brasil inclinavam-se, portanto, para sustentar uma visão política anárquica, em teoria talvez ateísta, pelo desconhecimento de uma fonte moral transcendente, mas, na prática, absolutamente predatória. No caso de Manoel Beckman, tornou-se claro, assim, que o movimento contra a presença dos inacianos no mundo colonial tinha adquirido, ao longo do tempo, um desenvolvimento impressionante e assustador.

Semelhantes tumultos não possuíam mais apenas uma dimensão prática, isto é, não eram apenas voltados para a facilitação da escravidão indígena. Tinham se tornado o espaço para a formulação de um discurso político, ainda que rudimentar. Beckman demonstrou que a tendência das reivindicações políticas que cercavam a luta contra os jesuítas tinha evoluído, ao longo do século XVII , para formulações de caráter ideológico centradas na defesa de uma liberdade selvagem de empreendimento. Essa liberdade, que Beckman entendia como negada pela Companhia de Jesus, dizia respeito a um livre desdobramento das atividades empresariais sem qualquer tipo de controle estatal ou coletivo. Evidentemente que não aceitava sequer as “leis do mercado”. Passava, neste caso, pelo direito da escravidão indígena, mas também por uma emancipação das atividades políticas e econômicas de qualquer controle que pudesse ser estabelecido, não apenas por Deus, mas pela razão ou pela natureza, ou pela sociedade. A religião, em Beckman, se torna uma experiência privada, com pouca relação com a existência social. “O exemplo com que Vossas Paternidades obram no espírito e bem das almas, não tem que dizer” ¹⁵² . Não há nenhum problema com a experiência religiosa. Apenas a invasão moralizadora do religioso no secular, naquele secular sem razão, melhor dizendo, é que deveria ser questionada. Nunca pareceu aos revoltosos, em todo esse movimento de rebelião, que pudessem ser os donos da terra e ao mesmo tempo obedecer a regras e disposições que considerassem os indígenas como parte de um “bem comum” a ser preservado. Tal inconsistência era fatal, porque não havia como construir uma sociedade que não tivesse como fim a própria sociedade, com todos os seus componentes, divergentes e complementares. Como bem Locke estava apontando. A revolta foi sufocada pelas forças portuguesas em 1685. Os líderes do movimento, Manuel Beckman e Jorge de Carvalho, foram levados para Portugal e devidamente condenados à morte por enforcamento. Os jesuítas retornaram ao Maranhão. O Rei, então D. Pedro II de Portugal (1648-1706), manteve assim a política de impor o ordenamento moral, por muitos ainda visto como necessário para o sucesso do Brasil. Observemos, por fim, que Manuel Beckman era português, nascido em 1630, e chegou ao Maranhão em 1662, com 32 anos de idade. Ou seja, entendeu rapidamente os sentimentos que moviam as pessoas na direção do desperdício e da destruição. Ou, também pode ser, já tivesse informações de que aqui “não havia pecado”, do ponto de vista real ou figurado. E tenha se surpreendido de que alguém achava que sim, havia, e que estava disposto a estabelecer um controle efetivo sobre ele, na existência social. Em prol do bem comum.

149 “Protesto e Notificação dos Padres para saírem do Estado de Maranhão, 18 de março de 1684” in MORAIS , Mello: Corografia Histórica, Cronográfica, Genealógica, Nobiliária e Política do Império do Brasil . Rio de Janeiro, Tipografia Brasileira, 1860. pp. 193-195. 150 LOCKE , John: “Carta acerca da Tolerância” in LOCKE , John: Os Pensadores. São Paulo, Abril, 1978. p.5 151 LOCKE , John: Segundo tratado sobre o Governo Civil e outros escritos . Petrópolis, Vozes, 1994. p. 100 152 “Protesto e Notificação dos Padres para saírem do Estado de Maranhão, 18 de março de 1684” idem . Os pecados de todos igualam todos Os movimentos em defesa da inconsistência moral eram substanciais, como vimos, e eventualmente tornavam-se motins ou levantes. O alvo desses eventos eram os jesuítas. Principalmente porque eles se colocavam no papel de reformadores moralistas. E também eram considerados como aqueles que denunciavam os erros dos outros, individuais e coletivos. Esse entendimento do papel dos religiosos forneceu sempre a principal arma a ser utilizada pelos defensores da inconsistência e do relativismo. De fato, gerações de resistentes às medidas de autoridade do Rei no Brasil, ou dos jesuítas, que eram seu instrumento, quando não estavam tentando expulsar os religiosos, buscavam desqualificá-los num dos principais papéis que exerciam, o de líderes morais. Um dos primeiros a trilhar esse caminho foi o fazendeiro Gabriel Soares de Souza (1540-1591). Num dos pioneiros manifestos conhecidos contra a Companhia de Jesus, escrito por um habitante do Brasil, Gabriel Soares de Souza estabeleceu um padrão de confronto no campo das ideias.

Por volta de 1590 Gabriel Soares de Souza escreveu um texto dirigido às autoridades coloniais: os Capítulos contra os Padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil . Neste documento, Gabriel denunciou que os moralistas, os religiosos, eram, na verdade, imorais ou amorais. Em seu texto ele aceita que, inicialmente, os religiosos foram muito bem recebidos, quando aqui chegaram: os primeiros anos da residência dos Padres da Companhia no Brasil estiveram tão benquistos e recebidos dos moradores deste Estado que os serviam e adoravam como deuses na terra, por suas grandes virtudes e exemplar vida e costumes, e por se acomodarem com o que a terra permite ¹⁵³ . “Por se acomodarem com o que a terra permite” era um dos pontos fundadores de sua argumentação. O que “a terra permite” é aquilo que ela é, aquilo que é seu costume, aquilo que nela é possível ter. Gabriel Soares de Souza sugeriu, portanto, que, no princípio, estavam os jesuítas adequados a realidade. A realidade em defesa da qual Beckman se erguerá, mais tarde. Uma realidade de brutalidades. Em função disso, defendeu Gabriel Soares de Souza, os jesuítas passaram a acumular muitos privilégios, direitos, subvenções e isenções tributárias. Tal sustentação oficial, no entanto, os tornou poderosos e ricos, soberbos: E ordenaram logo demarcar as terras por si sós, como lhes pareceu, com a qual demarcação entraram por muitas herdades alheias e lançaram fora delas aos que possuíam, sem serem ouvidos em juízo de sua justiça… lançaram fora alguns moradores, tão pobres que ficaram sem nenhum remédio para que se sustentem ¹⁵⁴ . Afirmou Gabriel Soares de Souza, portanto, que a Companhia, entendendo como a terra funcionava, foi aceitando seus procedimentos. Tornou-se instituição predadora, e entrou de forma violenta num dos principais focos de desordem no Brasil, justamente o que dizia respeito aos direitos de propriedade da terra. Esse aspecto da questão demonstrava, em sua opinião, que, longe de se constituir em um elemento moralizador, a Companhia utilizava dos privilégios decorrentes de sua função para, com desigualdade, entrar no campo das disputas predatórias. Desigualdade porque dispunha de prerrogativas que nenhum outro morador poderia usufruir. Os padres da Companhia atuavam protegidos por leis excepcionais, em nome de atividades que, na visão de Souza, não apresentavam resultados que as justificassem. Por exemplo, Gabriel Soares de Souza atacou o envolvimento que os jesuítas tinham com a formação educacional dos brasileiros. Para ele um investimento inútil. Ora, grande parte dos privilégios jesuíticos estavam ligados ao seu envolvimento na construção de escolas. Segundo Gabriel, não havia necessidade de tantas escolas assim:

bastava o colégio da Baía para todo o Estado do Brasil, em o qual até hoje não acabaram o curso de artes mais que seis ou sete pessoas… e teologia não ouviram mais que quatro pessoas de fora e uma só acabou… se em Portugal antes não havia mais que a universidade de Coimbra, porque não bastará ao Brasil a da Baía para todo o Estado? ¹⁵⁵ Adequar-se às limitações da terra, no que diz respeito aos estudos, para Gabriel era uma questão óbvia. O mesmo problema que os jesuítas reconheciam, de funcionamento da estrutura escolar, para Gabriel era sinal de uma impossibilidade ou desinteresse próprio da terra. Os números, em sua opinião, o comprovavam. Mesmo porque ele não via os índios de forma otimista nesse assunto. Na opinião dele os religiosos falavam “disparates, os quais se não fundam senão em louvores dos índios e queixarem-se dos agravos que se lhe fazem e de como são bons cristãos”. Mas, segundo ele, a verdade é que não existe entre os índios “fora da Companhia dos Padres quem viva como cristão nem se preze de o ser” e uma vez que não estejam os Padres presentes, “tornam logo a suas gentilidades [forma de ser de índios]” ¹⁵⁶ . E se arriscou a algumas observações sobre a própria natureza do contato entre as culturas e sobre o sucesso da educação na terra: mas assim com facilidade se faziam cristãos, – mas que logo em seguida – se tornavam suas gentilidades… e governando eles mais de cinquenta aldeias destes índios cristãos, não tem hoje mais de 3 aldeias… este gentio, porque não é capaz para conhecer que coisa é Deus, nem crer nele, e tem que não há mais que morrer e viver ¹⁵⁷ . Afirmava, portanto, que as duas culturas eram impermeáveis. Por mais que se tentasse, os índios tinham a sua própria visão do mundo e das coisas, e isso deveria ser considerado. E respeitado, de alguma forma. Se se pretendia agir de forma realista na situação. Sequer “conhecer que coisa é Deus, nem crer nele” era um aspecto da cultura indígena. “Não há mais que morrer e viver” para eles. E, assim, avaliava Gabriel Soares de Souza de forma negativa os próprios elementos constitutivos da “língua geral”, na sua tentativa de introduzir o conceito de Deus. Ou dos esforços catequéticos no assunto. Essa crítica em regra ao próprio projeto jesuítico, ou do Rei, para o Brasil, continha, além do mais, um ataque central à própria moral dos Padres e da Companhia: em cada aldeia destas está um Padre de missa e um irmão… onde residem com grande perigo de sua honra… e labutam e andam entre mulheres nuas assim como nasceram... do que são muito murmurados dos portugueses… que não há quem duvide que esses tais vivessem com tamanha ocasião para pecar, senão cometendo mil desonestidades… ¹⁵⁸ .

Assim, a ausência do “pecado da carne”, entre os índios, acabava por igualar os religiosos aos outros habitantes do Brasil. Por mais que os Padres tentassem se ver diferentes, e autoridades, nesse assunto, não havia diferença, alguma, entre jesuítas e os demais brasileiros. Para Gabriel Soares de Souza era evidente que os religiosos cediam permanentemente aos seus desejos. Eram humanos. Logo, na prática, todas as suas atitudes moralistas eram hipócritas. Mesmo o egoísmo central da terra, segundo a crítica fundadora de São Vicente de Salvador, tornou-se, segundo ele, característico dos jesuítas: “têm propriedades... cinco, dez ou doze currais de vacas, donde todas as vezes que querem fazer 500 ou mil cruzados, em dinheiro, o fazem no açougue”. Além disso, têm muita renda das suas terras, têm uma granja com muitos escravos da Guiné, donde lhe vêm todos os mantimentos em abastança, têm, das portas para dentro, hortaliça e frutas necessária; têm nos seus currais muita criação de porcos, carneiros e galinhas e nas outras granjas tem pescadores de jangadas ¹⁵⁹ . “Da porta para dentro”, era o que definia a negativa dos brasileiros em serem repúblicos na opinião de Frei Vicente de Salvador, como entendera o Bispo de Tucumán: “nesta terra andam as coisas trocadas, porque ela não é república, sendo-o em cada casa”. Eram, assim, os jesuítas, iguais. No entendimento de Gabriel Soares de Souza. Se nada os distinguia, porque seriam tratados como especiais e porque continuariam defendendo posições, com cujos princípios não viviam de acordo? Gabriel Soares de Souza, na verdade, ia mais além, nesse assunto. Abria caminho para sustentar, à maneira de Montaigne, que não havia legitimidade para nenhuma autoridade política impor regras morais, pela sua própria e natural imoralidade ou amoralidade. Sendo assim os seres humanos, tão caóticos, era difícil encontrar algum referencial universal de valor, neste campo, que pudesse reunir os homens. Também sustentava que, em essência, todos os valores morais eram igualmente relativos e que tomar seus próprios desejos como referência não deveria ser de todo condenado. Porque todos faziam assim. Defendia, portanto, a tese de que “só a antropofagia nos une”. Todos eram, aqui no Brasil, predadores. Mas, paradoxalmente, era importante que se garantisse a igualdade nessa predação. E isso só seria possível pelo desaparecimento da tentativa de impor regras de aceitação geral. No caso, defendia a expulsão da Companhia de Jesus. 153

SOUZA , Gabriel Soares de: “Capítulos” in Anais da Biblioteca Nacional , 62. 1940. p.348. 154 Idem , ibidem . p.352 155 Idem , ibidem , p.367 156 Idem , ibidem , 370 157 Idem , ibidem , p. 371 158 Idem , ibidem , p.372. 159 Idem , ibidem p.363. Servir a Deus e ao próximo O texto de Gabriel Soares de Souza suscitou uma resposta densa e séria da Companhia de Jesus. Assinada pelos principais líderes e intelectuais jesuítas que então viviam no Brasil. Primeiro, concordaram que a Companhia havia mudado em quase cinquenta anos de atuação. Mas não no teor de sua prática: “Os Padres sempre procederam com os moradores como agora, mas eles não procedem como quando eram poucos e não faziam coisas com que cerrassem a porta aos sacramentos” ¹⁶⁰ . Ou seja, com o aumento da população agravava-se o problema moral, e havia um maior ímpeto na ação pastoral. Faziam os religiosos uma pressão crescente no sentido da conversão ou do arrependimento, a fim de que os mistérios de redenção da alma pudessem ser celebrados ou experimentados. Os sacramentos pressupõem a Fé e a fortalecem. O que explicava, em grande parte, o grau do conflito entre os religiosos e os leigos. Onde estava a Fé da sociedade? Nesse sentido, a Companhia insistia que um bom caminho era a educação, ou a formação religiosa. Respondendo à tese de Gabriel Soares de Souza que não se precisavam de muitas escolas, responderam os inacianos que sim, precisavam. As escolas formavam agentes difusores dos valores da religião, e citaram um exemplo dessa necessidade: E se alguma capitania há que tenha necessidade destes ministros é Pernambuco, onde há sessenta engenhos cheios de escravaria, e outra muita gente de que se servem os portugueses, muito gentio que trazem do sertão e muitos pretos de Angola, os quais não têm outro remédio pera sua alma senão aos Padres da Companhia, como é notório… os Padres… puseram escolas sem ter a isso obrigação, onde, desde as primeiras letras, criam homens que muito sirvam a Deus e ao próximo ¹⁶¹ . “Muito sirvam a Deus e ao próximo” é uma declaração do objetivo do sistema formativo religioso, que implica tanto em Fé quanto em atitudes de

cunho ético e moral, uma elevação da sociedade como um todo. “Este é o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). Tratava-se aqui tanto dos fazendeiros, quanto dos índios e também dos escravos “de Angola”, estes últimos também contidos no projeto moral da Companhia. O projeto era para a sociedade como um todo. Inclusive para os próprios religiosos. Diante das acusações de que os Padres viviam nas aldeias, diante das índias nuas e há “quem duvide que esses tais vivessem com tamanha ocasião para pecar, senão cometendo mil desonestidades”, a resposta dos religiosos era muito clara: os que se ocupam na conversão do gentio têm superiores que olham por eles e são frequentemente visitados, têm muitas ajudas espirituais de regras, lição espiritual, oração e muita frequência de sacramentos, e sobretudo a proteção divina quem tem muito cuidado de suas religiões e por honra e credito delas têm mão em muitos fracos que nela estão ¹⁶² . Isto é, é certo que jesuítas, portugueses, índios e africanos, e todos os outros seres humanos, podiam pecar. E tentações no mundo fazem parte da experiência da alma humana. Mas a Companhia, explicavam, agia internamente da mesma forma como agia em sociedade. Partindo do princípio de que valores morais eram objetivos, e que na direção das virtudes, e de Deus, caminhavam os homens, sob a direção da Igreja. E confiavam que Deus tinha sua mão posta “em muitos fracos”. Sim, existiam fracos. De fato, examinando documentos inéditos da Companhia de Jesus, encontramos uma carta, do Padre Pero Rodrigues, mais ou menos da mesma época, no qual relata que, eventualmente, as aldeias eram “a distração e perdição dos noviços e de outros de pouco tempo de colégio que a olhos vistos se iam se perdendo” e rogou aos seus superiores, “com lágrimas”, que “os tirassem delas e senão que corriam perigo” ¹⁶³ Assim, na perspectiva jesuítica, não havia hipocrisia, de forma alguma, mas sim humanidade, ternura e perdão. E a Companhia, especialmente, assim se explicava, trabalhava no campo das virtudes exatamente no sentido de sufocar os pecados. Tanto dentro quanto fora da instituição. Nisso estava no mesmo campo de outras ordens religiosas, de todas as ordens terceiras e todos os indivíduos que, no Brasil de sua época, acreditavam em Deus, no Rei, na Igreja, e que trabalhavam para submeter seus próprios pecados a uma experiência existencial virtuosa. Por isso, diziam em resposta a Gabriel Soares de Souza, viam com confiança e otimismo o trabalho junto aos índios. Não apenas porque no México ou no Peru ele demonstrava já ser bem-sucedido, dizemos nós, mas também porque existiam certos princípios maiores que norteavam a atividade missionária.

E não parece ora muito seguro dizer que este gentio não é capaz de conhecer a Deus nem crer nele, porque se isso é assim, ou eles não são homens, que bestialidade dizê-lo, ou Cristo nosso redentor não morreu por eles, que é grande impiedade ¹⁶⁴ . Em resposta a Gabriel Soares de Souza, os jesuítas entendiam, portanto, que, em essência, a denúncia do fazendeiro expressava um pensamento quase ateu, uma lógica descrente, uma ausência de Fé. Nenhuma sociedade poderia funcionar se tais concepções fossem dominantes. Isso significaria o predomínio do hedonismo materialista que caracterizava, na Europa, muitas tendências de opinião, já naquela época. E tornaria o Brasil uma coletividade engolfada pela transformação dos pecados em norma. A gravidade desse enfrentamento não era maior, na verdade, porque o antijesuitismo não se transformara ainda em força política capaz de levar os indivíduos ao crime de lesa-majestade. Estava restrito a trocas de leituras em círculos pequenos de autoridades do Reino. Mas esse evento sinalizava que forças maiores se movimentavam na sociedade do Estado do Brasil. A força oriunda do “que a terra permite” aos poucos elaborava sua própria reação intelectual. Ao contrário das treze colônias inglesas na América, onde a aceitação do limite moral do bem comum era, desde o início da colonização, princípio universalmente aceito, no Brasil isso tinha que ser imposto. Os diversos agentes sociais, inclusive índios e africanos, pareciam hesitar em aceitá-lo plenamente. Gabriel Soares de Souza era um homem interessante. Enriqueceu rapidamente no Brasil e tinha sonhos de encontrar minas de pedras preciosas no interior. Morreu quando estava em uma expedição pelo sertão da Bahia, em um lugar ermo, sem encontrar mina alguma. No seu testamento pediu para ser enterrado na capela-mór da Igreja nova do Mosteiro dos Beneditinos, em Salvador. Muitas missas deveriam ser rezadas pela salvação de sua alma do purgatório. Segundo seu desejo, em sua lápide apenas estaria escrito: “Aqui jaz um pecador”. Considerando coisas assim tinham, os jesuítas, esperanças em tudo aquilo. 160 Idem , ibidem . p. 150 161 Idem , ibidem , p.367 162 Idem , ibidem .p. 373 163 ARSI

códice Bras. 3(I), fólio 194 “Carta de Pero Rodrigues, da Bahia, 20 de setembro de 1600” 164 Idem , ibidem , p. 372 Secularizando a política e a moral A instabilidade moral encontrada em Gabriel Soares de Souza e Manuel Beckman era natural de uma era de incertezas. Ressalvando as particularidades do Brasil, um fenômeno análogo também se verificava na Europa. Absorvendo questões não resolvidas que vinham da era da Reforma, o século XVII foi de perseguições e guerras religiosas. Nele as crenças foram vividas até seu limite. As religiões, e não os seres humanos que as integravam e dirigiam, foram responsabilizadas por muitas coisas terríveis que aconteceram. As tragédias dos conflitos religiosos impressionaram profundamente a Europa. As guerras entre católicos e protestantes e os conflitos entre os próprios protestantes, disseminaram muita discussão sobre a capacidade das religiões em dirigir as sociedades. Esses debates tiveram implicações políticas e morais. Do ponto de vista da política, isso justificou a defesa de uma secularização expressiva ou absoluta do poder governamental. Isto é, não se queria aceitar mais que o objetivo dos Estados fosse a redenção das almas. Passou-se a trabalhar para afastar a religião da política. Os próprios protestantes, por exemplo, tão cuidadosos com suas crenças religiosas, inclinaram-se a buscar justificativas seculares para o exercício da ação política. Os refugiados protestantes na América do Norte passaram a relacionar-se de forma cautelosa, criando laços solidários entre si, pelo menos desde as “Ordenações Fundamentais de Connecticut”, em 1639. O que apontava nessa direção. Voltaram-se muitos, na Europa, para o fortalecimento dos estudos sobre a lei natural , mas descartando ou não valorizando o estudo das leis divinas . Buscava-se um entendimento das leis da natureza a partir do qual pudessem ser extraídas certezas mais universais sobre a ordem que deveria presidir a política. Tais certezas deveriam exprimir, de forma inequívoca e indiscutível, regras essenciais e determinantes. Mas não deveria ter nada a ver com esta ou aquela confissão religiosa. Vimos que muitos, como os próprios jesuítas, levavam esse tema, da lei natural, em extrema consideração. Mas buscava-se agora, em certo grau, secularizar os efeitos dessa dimensão jurídica natural sobre as ordenações políticas.

A própria ideia da coerção religiosa passou a se tornar inaceitável. Mesmo porque a lei natural, na sua observância, supostamente podia unir todos os crentes na defesa daquilo que era, precisamente, o natural , descartando-se interpretações outras que poderiam dividir e gerar confrontos. Quanto mais a situação se desenvolveu, ao longo da primeira metade do século XVIII , na Europa continental católica também começou a tomar corpo um pensamento anticlerical. Culpava-se a Igreja pelos impedimentos no campo da moral, entendidos como ilegítimos ou limitadores. Passou igualmente a crescer a ideia de que a instituição deveria ser afastada do sistema educacional. Como apontou Jacques Maritain, a percepção da lei natural, no racionalismo iluminista, tornou-se isenta “de seriedade filosófica, e, por isso mesmo”, terminaria “em pleno arbítrio” ¹⁶⁵ . Do ponto de vista moral, surgiu, na Europa da época, um movimento paralelo ao da secularização. Tratava-se da tendência em buscar separar a moral de uma razão externa ao humano, isto é, desvincular a moral de Deus. Ou tentar encontrar, no humano ou na razão, as bases suficientes para a boa conduta. Da mesma maneira, voltavam-se muitos para a defesa de perspectivas pluralistas no campo do comportamento. Tal abordagem já existia, mas sempre tinha sido minoritária, na sociedade e no meio intelectual. Nicolau Maquiavel (1469-1527) já havia defendido, há muito, a tese da necessidade de existência, e convivência em sociedade, de muitos sistemas de valores. Maquiavel era claramente contrário à ideia de que a paz e a harmonia eram fundamentais ao bom ordenamento do Estado. Ele entendia que era precisamente da discórdia interna e do confronto de diferentes interesses que emergia a liberdade. Também em Maquiavel era evidente a tendência de afastar Deus das explicações sobre os eventos históricos e, igualmente, da política moral. São Tomás de Aquino entendia, como já observamos, que o bem do universo e o bem do indivíduo estavam relacionados, através de leis dadas por Deus. Muitos pensadores do século XVII , no entanto, como Hugo Grotius (1583– 1645), buscavam tornar Deus mais ou menos irrelevante no âmbito da moralidade. Para Grotius, as leis da natureza, ou da moralidade, tinham como objetivo essencial a preservação da pessoa, sua integridade. No futuro se diria que o objetivo da natureza era a preservação de direitos, mas não a salvação das almas. Parecia evidente, a muitos, portanto, que tal processo tinha maiores implicações e, no seu desenvolvimento, apontava para um enfrentamento político-moral em larga escala.

A Igreja já percebia, há muito tempo, que todo esse movimento apresentava riscos não apenas à sua autoridade sobre a disciplina moral da sociedade, mas também à natureza de um projeto de sociedade virtuosa. Implicava na submissão do espírito ao mundo, e o mundo era caótico e pecador. A Companhia de Jesus, especialmente, como entidade que desempenhava um papel central no âmbito da Reforma católica e no movimento de impedir a difusão dos protestantes pela Europa e pelo mundo, também entendeu o assunto com a gravidade devida. Parte do esforço jesuítico passou a ser de atuar no sistema universitário, no sistema educacional e na política, no sentido de estabelecer parâmetros que pudessem se contrapor a esse discurso, que ia tomando conta dos meios acadêmicos e outros setores sociais de influência. Confessores de reis e controlando diversas universidades, os jesuítas se viram na posição de alvo preferencial dos críticos. Síntese de um conjunto de práticas que, segundo os envolvidos com a secularização, deveriam ser superadas. Que sociedade pretendia-se construir, uma vez afastando-se a Igreja de seu papel central? Ainda era obscuro, naquela época, mas considerando o grande papel que na política e na moral se dava ao indivíduo, e o menor que se dava ao mundo da transcendência, parecia ser uma sociedade na qual o homem poderia ser como Deus, senhor de suas decisões e das regras de seu comportamento. Além do mais, do ponto de vista da economia, com o desenvolvimento global do comércio e com o amadurecimento do sistema financeiro, tendeu-se a acreditar que menos religião na esfera estatal significaria maiores possibilidades de negócios. Fosse pelas transformações morais, menos controle, que isso trazia, fosse pela maior correção técnica e racionalidade, ou pela submissão da espiritualidade aos números. Todo esse feixe de ideias, proposições, práticas e preconceitos serão, com o tempo, entendidos como a base do Iluminismo. Um conjunto de concepções, as quais, centradas na defesa da razão, pretendiam instalar uma nova forma de viver entre os homens. Mas muitos, como veremos, terão a percepção de que se viviam tempos obscuros, e que mais cedo ou mais tarde decisões terríveis iriam ser tomadas. E que as dúvidas, sobre o que, de fato, deveria ser o Brasil, teriam que ser dissipadas. 165 MARITAIN , Jacques: A Filosofia Moral . Rio de Janeiro, Agir, 1964. p.84 Ouro e moralidade

Entre 1580 e 1640, Portugal foi domínio da Espanha. Emergiu dessa união tendo que travar uma guerra contra a Holanda, pelo controle do nordeste brasileiro, e assistiu, impotente, o colapso de seu domínio na Índia. Na década de 1690 foram descobertas as minas de ouro no Brasil, com evidentes efeitos benéficos sobre a economia do Brasil e de Portugal. No entanto, isso não resolveu o problema da dependência de Portugal dos manufaturados e gêneros alimentícios estrangeiros, notadamente os ingleses. Pelo contrário, o ouro reafirmou concepções políticas e econômicas tradicionais, adequadas a um certo entendimento de como se deveria administrar o comércio ou a indústria. Existiam diversos setores da burocracia e da nobreza que se beneficiavam diretamente daquele modelo. As áreas de ultramar, e especialmente o Brasil, eram, para esses grupos, o sustentáculo de sua opulência consumidora. O ouro e, depois, os diamantes, alimentaram o modelo econômico e político existente. Esse conformismo era acalentado pelos poderes religiosos com cuidado, já que nele estavam integrados. De fato, a Igreja usufruía das benesses de um Estado perdulário e exercia sobre todos os espaços da existência social uma ascendência notável, no sentido de sacralizar a ordem existente. Mas os jesuítas no Brasil viram esse momento com prudência. Em 1711 foi publicado, em Lisboa, o Cultura e opulência do Brasil por suas Drogas e Minas ¹⁶⁶ , escrito pelo jesuíta Padre João Antonio Andreoni (1649-1716), sob o pseudônimo Antonil. Nesse livro, Antonil fez uma importante avaliação da economia brasileira na época, e tratou de vários assuntos. Entre outros, descreveu os processos de plantio e beneficiamento de diversos produtos, especificou custos de produção de diferentes gêneros exportáveis, comparou preços em diversos locais do Brasil, detalhou o itinerário dos principais caminhos para a região das minas de ouro, teorizou sobre as relações entre as regiões do Brasil e traçou juízos sobre a inserção da América portuguesa no Império colonial português e os seus problemas presentes. Mas Antonil também refletiu sobre os problemas causados pela descoberta do ouro na sociedade brasileira. O seu momento inicial foi tratado por ele como um marco cheio de significado, do ponto de vista moral: o primeiro descobridor, dizem que foi um mulato que tinha estado nas minas de Paranaguá e Curitiba. Este, indo ao sertão com uns paulistas a buscar índios, e chegando ao cerro Tripuí desceu abaixo com uma gamela para tirar água do ribeiro que hoje chamam do Ouro Preto. E, metendo a gamela na ribanceira para tomar água, e roçando-a pela margem do rio, viu depois que nela havia granitos da cor do aço… até que se resolveram a mandar alguns dos granitos ao governador do Rio de Janeiro, Artur de Sá; e, fazendo-se exame deles, se achou que era ouro finíssimo ¹⁶⁷ .

Nesse acaso, Antonil viu mais que um acidente, como veremos mais tarde. Ele relacionou o descobrimento do ouro ao processo de cativeiro de índios, o que concedeu a essa descoberta um perfil perturbador, do ponto de vista dos esforços jesuíticos pela pacificação moral da sociedade. De fato, ele não tinha dúvidas de que a sociedade gerada por essa descoberta apresentava características que aprofundavam, longe de resolver, o problema moral brasileiro. Sobre as pessoas que passaram a viver na região mineradora, ele traçou um retrato sombrio: sobre essa gente, quanto ao temporal, não houve até o presente, coação ou governo algum bem ordenado, e apenas se guardam algumas leis, que pertencem às datas e repartições dos ribeiros. No mais não há ministros nem justiças que tratem ou possam tratar do castigo dos crimes, que não são poucos, principalmente dos homicídios e furtos” ¹⁶⁸ . Assim, a sociedade da região aurífera transformou-se numa terra sem qualquer ordem, na qual, aliás, não havia jesuítas. A impunidade chegou ao extremo do insuportável, na perspectiva do religioso, com efeitos devastadores sobre todo o Estado do Brasil. Inicialmente, como interessado em economia, Antonil correlacionou a riqueza com a pobreza que se generalizou no país: os preços, tão altos e tão correntes nas minas, foram a causa de subirem tanto os preços de todas as coisas, como se experimenta nos portos e nas cidades e vilas do Brasil, e de ficarem desfornecidos muitos engenhos de açúcar das peças necessárias e de padecerem os moradores grande carestia de mantimentos, por se levarem quase todos aonde vendidos hão de dar maior lucro ¹⁶⁹ . Dessa maneira, o poder da predação mineradora esvaziou de recursos o resto da terra, gerando carência tanto de gêneros quanto de mão-de-obra, em função da necessidade primária do ganho, que destruiu o comércio geral. Sobre esse assunto, acrescentou Antonil: ...o irem, também, às minas, os melhores gêneros de tudo o que se pode desejar, foi causa que crescessem de tal sorte os preços de tudo o que se vende, que os senhores de engenho e os lavradores se achem grandemente empenhados e que por falta de negros não possam tratar do açúcar nem do tabaco, como faziam folgadamente nos tempos passados, que eram as verdadeiras minas do Brasil e Portugal. E o pior é que a maior parte do ouro que se tira das minas passa em pó e em moedas para os reinos estranhos e a menor é a que fica em Portugal e nas cidades do Brasil salvo o que se gasta em cordões, arrecadas e outros brincos, dos quais se veem hoje carregadas as mulatas de mau viver e as negras, muito mais que as senhoras ¹⁷⁰ . O ouro, evidentemente, utilizado no âmbito do pecado, ou de forma displicente, só poderia ser, para Antonil, um novo foco de desarranjo nas relações que deveriam ser virtuosas. Principalmente pela sua extraordinária capacidade de gerar eventos de satisfação pessoal e de destruir virtudes, como a Justiça, a Força, a Prudência e a Moderação.

No caso, atuava diretamente no desmantelamento ou corrupção das relações familiares, porque mulatas e negras, “mais que as senhoras”, tornavam-se o alvo principal de gratificação pessoal. A realidade do pecado da carne, tão própria da terra, evoluíra para patamares superiores de prática. E, assim, o ouro funcionava no Brasil: não há cousa tão boa que não possa ser ocasião de muitos males, por culpa de quem não usa bem dela… que maravilha, pois, que sendo o ouro tão formoso e precioso metal, tão útil para o comercio humano e tão digno de se empregar nos vasos e ornamentos dos templos para o culto divino, seja pela insaciável cobiça dos homens, continuo instrumento e causa de muitos danos? ¹⁷¹ Tal observação desalentada lhe parecia corresponder a uma forma de destino triste da sociedade brasileira, sempre incapaz de andar pelo caminho da correção e de tornar-se algo maior, superior, virtuoso. Havia, no seu entender, algum mistério nesse enriquecimento que gerava miséria, e que tornava a impedir a terra, tão rica em elementos materiais, em tornar-se rica também em elementos espirituais. Nem há pessoa prudente que não confesse haver Deus permitido que se descubra nas minas tanto ouro para castigar com ele ao Brasil, assim como está castigando no mesmo tempo tão abundante de guerras, aos europeus com o ferro ¹⁷² . Benção e maldição foi assim a descoberta do ouro no Brasil. Indústrias que antes existiam desapareceram, práticas econômicas bem-sucedidas entraram em crise, a escravidão necessitou de um novo implemento, e toda a sociedade, que passou a viver uma era de prosperidade nunca antes vista, viu suas tendências predatórias alavancadas também como nunca antes. Antonil entendia que a a desagregação que existia na Europa, toda violência religiosa e existencial que dava origem a tantos eventos violentos e terríveis, políticos e morais, era punida, por Deus, pelo ferro das espadas e pelos conflitos intermináveis. No Brasil, provavelmente os imensos pecados da terra, que não cediam, que não eram controlados por nenhuma forca, nenhuma excomunhão, eram misteriosamente punidos por Deus ao dar aos brasileiros essa terra tão rica e próspera, mas cuja gestão irresponsável causava mais danos que benesses. Os jesuítas preocupavam-se, assim, com os grandes problemas decorrentes da maneira como a coisa econômica era conduzida no Brasil. Sem ética, sem moral, sem preocupações maiores com valores espirituais. Se não ocorresse uma inversão segura, no campo do espírito, nada poderia ser realizado de forma satisfatória. As implicações maiores desse ouro, em Portugal e no mundo, não escapava aos religiosos. Se ia a terras estranhas, levava junto consigo as marcas de sua origem e da realidade que o gerava.

O que dinamizava esse ouro do Brasil, lá fora? Que implicações aquelas distantes indústrias e realidades fortalecidas pelo ato de um caçador de escravos, tinham? O castigo ao Brasil seria também parte do castigo de Deus ao mundo? O impressionante livro de Antonil foi devidamente confiscado pela Inquisição e quase todos os exemplares, queimados. Mas ficou claro que, em sua obra, havia uma crítica profunda ao caráter predatório da sociedade brasileira. Caráter que sobrevivia ao tempo e que era capaz de neutralizar, de forma brutal, todos as riquezas aqui disponíveis e que poderiam servir, na sua opinião, fossem os brasileiros crentes, para a redenção do homem e da sociedade. 166 ANTONIL , André João: Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. São Paulo, EDUSP , 1982 167 Idem , p. 164. 168 Idem , p. 168 169 idem , p. 171 170 Idem , ibidem , p.194. 171 Idem , p.194 172 Idem , 195 A razão irracional As preocupações jesuíticas, no entanto, estavam inseridas em um processo sobre o qual não tinham controle. Esse universo europeu, alimentado pelo ouro do Brasil, parecia replicar todos os erros que aqui se cometiam e carregava os sinais dos pecados e das reações dos predadores. Claro que quem segurava uma moeda de ouro portuguesa na mão podia não ter a exata dimensão do que estava por trás de tudo aquilo, pensariam os jesuítas. Mas muitos segmentos da sociedade europeia que pretendiam gerar mais riqueza e dinamizar economias, numa era de intensa competitividade, estavam gravitando em torno dos pilares das novas ideias iluministas que, magneticamente, seduziam e faziam colapsar as consciências. Assim também se passou em Portugal.

O país já amargava, no século XVII , frequentes deficit em transações comerciais externas. Isto é, como anteriormente anotamos, Portugal sempre teve uma grande dependência de produtos importados. Em 1703 Portugal e Inglaterra celebraram os tratados ditos “de Methuen” – assim denominados em honra de seu negociador britânico, John Methuen. Tais tratados consolidaram essa dependência, em pleno período do ouro. Esses tratados compreendiam um acordo de aliança ofensiva e defensiva e um acordo econômico. O primeiro situava Portugal ao lado britânico, nos conflitos europeus. No caso, na Guerra da Sucessão Espanhola (1701-1714). O segundo objetivava consolidar mais um mercado cativo para a indústria inglesa. De fato, este último estabelecia, entre outras cláusulas, o virtual monopólio dos tecidos ingleses em Portugal, isentando-os de impostos. Ao mesmo tempo assegurava a exclusividade da importação dos vinhos portugueses pela Inglaterra. Em 1705 semelhantes vantagens foram estendidas por Portugal à Holanda. Tal movimento português era antigo. Em diversos tratados, por exemplo os de 1642, 1654 e 1661, ainda nos reinados de D. João IV (1640-1656) e D. Afonso VI (1656-1683), Portugal já tinha aberto caminhos para o favorecimento de comerciantes ingleses, não só no comércio com a metrópole, mas também nas possessões de ultramar. O problema é que o ouro não podia ser eterno. E, naturalmente, a extração mineradora iria começar, mais cedo ou mais tarde, a dar sinais de esgotamento. Tal esgotamento teria que ocorrer, primeiro, em função dos naturais limites da extração. Segundo, por conta da crescente complexidade da sociedade mineradora, ela também necessitando de recursos cada vez maiores para sua manutenção. E, terceiro, em decorrência dos desmedidos objetivos de enriquecimento de diversos segmentos da sociedade, do Brasil e de Portugal, da nobreza e da burocracia, ampliados exponencialmente desde o final do século XVII . O reinado de D. João V (1706-1750), embora considerado como bemsucedido, já que recolheu muito ouro e gastou muito, deixou no ar algumas questões sobre Portugal e seu destino. Mesmo porque a produção mineradora começou a apresentar estabilidade no último decênio de seu governo. Mas as necessidades de consumo dos interessados no assunto, ao contrário, continuaram em crescimento exponencial. Perguntavam-se aqueles que queriam mais: poderia Portugal diminuir seus crescentes deficit nas transações comerciais externas? Poderia tornar-se um centro produtor de manufaturados para os mercados interno e externo? Poderíamos ter mais ouro para nós?

É nesse contexto que se entende a emergência de uma nova política em Portugal, cujo significado, para o Brasil, terá um trágico significado histórico. D. José I ascendeu ao trono em 1750. Ele trouxe, junto consigo, para o poder, diversos segmentos da nobreza e da burocracia, imbuídos de novas ideias. Estavam interessados em reformar não apenas o Estado, mas a própria sociedade portuguesa. Introduzindo as inovações intelectuais próprias da época. O processo de reformas por ele iniciado irá convulsionar Portugal e suas possessões até a sua morte, em 1777. O conjunto dessas ações reformistas foi elaborado no gabinete de seu ministro de estado da guerra e negócios estrangeiros, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699 – 1782), o qual o Rei fez, sucessivamente, Conde de Oeiras, em 1759, e Marquês do Pombal, em 1769. Em linhas gerais, as ações deflagradas por D. José I objetivavam, atendendo ao espírito do assim chamado século das luzes , reproduzir os modelos econômicos e políticos desenvolvidos na Inglaterra, França e outros lugares da Europa. Pretendia-se solucionar, através deles, as dúvidas daqueles que ambicionavam mais ouro e riquezas. Sebastião de Carvalho e Melo foi diplomata em várias cortes da Europa e tornou-se admirador e protetor de diversos pensadores iluministas. Essa proximidade favoreceu o seu entusiasmo pela razão , por uma nova política e uma nova moral, fundada na observância da lei natura l, supostamente secularizada, isto é, sem considerar o papel divino para efeitos práticos. No poder, semelhantes princípios ilustrados irão, de forma nem sempre harmoniosa, conviver com a arbitrariedade e o terror. Por quê? Tal associação não foi incomum no fenômeno político usualmente denominado despotismo esclarecido , primeiro porque em seu centro estava instalada a defesa de uma autoridade real absoluta, mesmo que, supostamente, iluminada pela razão . Razão natural. E em segundo lugar porque as incongruências do pensamento do século XVIII realçavam o desprezo com relação a dimensões religiosas nas decisões morais. Era característico desse culto à razão uma forte tendência ao pluralismo moral, com todas suas incongruências já vistas. Do ponto de vista político, D. José I e Pombal pretenderam, portanto, introduzir a racionalidade própria da era dos déspotas esclarecidos, ou de uma política ilustrada , na sociedade portuguesa. Defendiam que este era o único caminho para o controle racional dos eventos políticos e, por extensão, econômicos. Acreditavam muito nisso.

Pombal pretendia, é claro, que as ações do poder fossem norteadas não pelas inspirações ou razões divinas ou paixões e vaidades dos monarcas, mas pela razão humana, capaz de tudo ordenar e entender, inclusive a organização dos Estados e das sociedades. Razão que deveria ser interpretada de forma ideal pelo soberano. Contra o poder da razão, qualquer força seria desprovida de legitimidade. Porque se entendia que não havia nada além dela que pudesse realmente alterar a realidade. Como explicaria, em 1741, se se combinam as poucas liberdades de que gozamos com as muitas que nos pertencem, e os exorbitantes direitos que se nos extorquem com os que justamente devíamos pagar segundo as convenções, se alcança logo demonstrativamente que, suposto que entre nós se entende comumente que a desigualdade dos tratados que temos com a Inglaterra, e especialmente no da introdução dos panos, estipulado a 27 de dezembro de 1703, foi aquele que fez o estrago que vimos na marinha e no comércio de Portugal, contudo não é esta somente a causa de tanta ruína, porque a nossa marinha e o nosso comércio ainda podiam florescer dentro dos limites dos tratados, se nada mais houvesse. O que mais vivamente nos ofende são os abusos e as infrações que clandestinamente se foram introduzindo apesar das convenções. Essas infrações e esses abusos é que puseram a foice à raiz de todos os nossos interesses, inibindo a nossa navegação por modo absoluto. De sorte que não padecemos na realidade a observância dos tratados, como se entendia. Contrariamente, padecemos porque eles se nos não observam ¹⁷³ . Isto é, na opinião de Pombal, o problema de Portugal, se o havia, não estava nos acordos comerciais realizados, todos eles necessários a seu tempo, mas nas atitudes portuguesas. Não estava também nas punições divinas ou coisas parecidas, mas na dificuldade de fazer valer o concreto, o matemático. A solução passaria pelo fortalecimento das decisões políticas, capazes de instaurar uma atitude positiva de desenvolvimento econômico em Portugal. Mas, principalmente, era preciso ter em mente, acima de tudo, que esse era um projeto de forte agressividade material. Desprezava-se sentimentos como a Justiça e a Temperança. Valores espirituais que não pareciam ter, na lógica da razão, qualquer utilidade prática. Principalmente quando se voltavam contra a mesma razão. Na infantilidade do pensamento ilustrado em Portugal, a razão deveria se impor a tudo, mesmo que os atos parecessem irracionais. 173 “Carta de Ofício a Marco Antônio de Azevedo Coutinho em 2 de janeiro de 1741” in CARVALHO

E MELO , Sebastião José de: Escritos econômicos de Londres (1741-1742) . Lisboa, Biblioteca Nacional, 1986. Dos gabinetes para o mundo Foi assim que o Marquês de Pombal passou a observar a Companhia de Jesus. Mas, antes dela, a Igreja. A igreja católica exerceu, em Portugal, um papel central no processo de organização do Estado. As raízes desse papel estavam nas próprias origens de Portugal, isto é, na “reconquista”, na luta travada, durante os séculos XII - XIII , contra os muçulmanos que ocupavam a península ibérica. Mais tarde, a partir do século XV , o papado concedeu ao Rei de Portugal, grão-mestre da Ordem de Cristo, uma série de direitos. Esses direitos estabeleceram os princípios do padroado real, ou seja, do poder do Estado sobre a estrutura da Igreja. Através de diversas disposições papais, foi autorizado ao Rei o pleno exercício de sua autoridade em questões da Igreja, desde o ato de nomeação de Bispos até o gerenciamento das rendas eclesiásticas. Foi construída, assim, uma associação entre os poderes temporal e espiritual. Em princípios do século XVI , com a instauração da Santa Inquisição em Portugal, o alcance do poder real foi ainda mais ampliado. Essa relação tornou substancial a influência política da Igreja, já que sua autoridade passou a estar diretamente ligada ao poder do próprio monarca. Embora limitada pela dependência institucional às decisões do Rei. Tal realidade foi traduzida numa crescente ampliação do poder político eclesiástico, ou, mais propriamente, na consolidação de uma aristocracia eclesiástica. Kenneth Maxwell afirmou que, em 1750, para uma população de 3.000.000 de pessoas, Portugal possuía cerca de 200.000 clérigos ¹⁷⁴ . As reformas de Pombal voltavam-se contra essa aristocracia religiosa, entendida como dispendiosa, dentro da lógica secularizadora do tempo. E, aos poucos, foi essa aristocracia entendida como moralmente deformada, dentro dos princípios da razão, que cunhava uma nova visão do mundo. Como segmentos irracionais e supersticiosos, que desprezavam a ciência. Nunca foi intenção de Pombal eliminar o catolicismo. Ou secularizar o Estado. Mas seu interesse, como vai se tornando claro, aos poucos, era submeter a Igreja a um controle rígido, ampliar o poder real sobre ela. Se possível diminuir ou desqualificar seu grande poder formador de opinião. Criar elementos para o lento estabelecimento de um novo projeto de sociedade.

Trata-se de uma política que se chama, eventualmente, de regalismo. Fortalecimento do poder do Rei. A fim de obter a submissão dos religiosos aos posicionamentos práticos do Estado. Do ponto de vista filosófico, o pensamento iluminista pretendia redefinir a percepção do divino, romper com o império da teologia sobre as ciências. No entanto, não podia ser esse, de imediato, o caso de um país católico como Portugal, onde toda a identidade do poder estava fundada na associação com a Igreja. A ação de isolamento político da aristocracia eclesiástica passava mais por uma progressiva secularização do ensino ou por uma nova formação, de cunho iluminista, dos quadros burocráticos e intelectuais. Aqui, sim, Pombal passa a observar a Companhia de Jesus. O poder da Companhia de Jesus, como já observamos, era grande em Portugal, no sistema educacional e universitário. A importância do seu Colégio de Artes e Humanidades permitiu-lhe estabelecer ascendência sobre a tradicional Universidade de Coimbra. A partir de 1559 a Universidade de Évora tornou-se um centro jesuítico de formação, exclusivamente sob controle da Ordem. Além desse papel preponderante, os jesuítas eram confessores do Rei e de autoridades, e desempenhavam papeis significativos em diversas instâncias do Estado. Mas os elementos de oposição a esse papel e essa influência estavam muito fortes no século XVIII , por conta do pensamento ilustrado. Em Portugal, a construção de uma alternativa para o trabalho moral intenso dos jesuítas foi realizada pelos Oratorianos . A Congregação do Oratório de S. Felipe de Neri era uma sociedade de Padres seculares, introduzida no país no século XVII . A partir de 1729 começou a atuar na transformação dos métodos educacionais. Introduziram o ensino das ciências naturais, através de experimentações científicas, e da língua portuguesa. O trabalho inaugurado pelos Oratorianos teve prosseguimento na obra de diversos teóricos educacionais, como Jacob Sarmento, Luis Vernei e Ribeiro Sanches, que, inspirados pela razão iluminista, defenderam as alterações necessárias no currículo jesuítico. Luís Antônio Vernei foi particularmente influente, através de seu O verdadeiro Método de Estudar , no qual, entre outras coisas, bateu-se pelo ensino de gramática em língua pátria, e não mais em latim, e criticou o pensamento aristotélico, a escolástica e o ensino de teologia tal como era então realizado. Criticou particularmente o peso do tomismo, da escolástica, na formação do pensamento religioso português. O pensamento de São Tomás de Aquino, como vimos, era muito importante na substância do projeto jesuítico, do ponto de vista teórico.

Tal crítica, como já pudemos observar, atingia diretamente o espírito das ações jesuíticas. Concluo – escreveu Vernei – que estas grandes vantagens e utilidades que se tiram da escolástica, eu as não vejo em parte alguma… a doutrina de S. Tomás... e a sua grande piedade deram lustre às suas obras... mas, considerando-o como um doutor escolástico, não creem que são obrigados a seguir sua doutrina, nem o seu método. Nem algum pontífice disse até aqui que não se podia compor melhor suma que a dita; nem o poderia dizer, porque me parece que isto não é matéria de fé. Onde, deixa a Igreja a cada um a liberdade de fazer o que lhe parecer ¹⁷⁵ . Tal pensamento colocou o debate sobre o tomismo, abrindo novas perspectivas para a interpretação dos eventos do mundo no campo da religião e da organização das sociedades. E, talvez, no campo da moral. Não necessariamente, por exemplo, a língua geral deveria ser a única resposta possível às ansiedades da catequese. Nem os procedimentos adotados para construí-la poderiam ser os únicos a ser considerados. Segundo Vernei, era “necessário abater o poder e a influência dos jesuítas, os quais, pelo controle da educação e pelo poder junto aos príncipes, constituem um dos males mais difíceis de resolver”; para combater esse mal seria necessário “muitos anos, muita leitura e uma educação bastante boa para erradicá-lo” ¹⁷⁶ . A Companhia, portanto, começou a ser atacada no seu campo, o educacional. As alternativas desafiavam o papel central que reivindicavam os inacianos na defesa dos valores espirituais, e que a tradição católica considerava estruturantes. Tais valores eram norteadores de uma forma de ser no mundo, no qual a aceitação da verdade desempenhava um papel central, e os valores morais eram absolutos. Era importante, para os jesuítas, reconhecer no divino a suprema norma da moralidade. E não fragmentar, no mundo, as fontes dessa norma. E, acima de tudo, os inacianos estabeleciam a Deus como senhor do mundo, dos homens e da História. Mas tudo isso estava sob ataque, naqueles dias. Essas discussões abstratas, conduzidas por professores universitários e outros intelectuais, que influenciavam os políticos, nos pequenos gabinetes dos reis, eram tidas como capazes de solucionar problemas fiscais, de balança de pagamento e existenciais. Mas iriam ter impacto nem sempre edificante sobre a vida cotidiana das pessoas. Principalmente no Brasil. 174 MAXWELL

, Kenneth: Pombal, Paradox of the Enlightenment . Cambridge, Cambridge, 1995. Idem , ibidem p.17 175 VERNEI , Luís Antonio: Verdadeiro Método de Estudar . Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1952. Pp. 236 e 260. 176 Idem , ibidem , p.355. Triunfo da razão, triunfo da predação No princípio do século XVIII , novas forças se moviam, também no Brasil, contra os jesuítas. Um dos principais adversários da Companhia, naquele momento, foi, no Pará, Paulo da Silva Nunes. Ao contrário de outros líderes brasileiros anteriores, Paulo da Silva Nunes alcançou autoridade e respeito na Corte. Em 1722, em reunião na câmara de Belém, Paulo da Silva Nunes “apresentou uma extensa representação a favor dos cativeiros e contra os missionários” ¹⁷⁷ . Foi imediatamente preso, por ordem do Governador. Conseguiu fugir para Portugal e lá apresentou-se como “Procurador” do povo do Pará. Tornou-se protegido por personalidades da administração ultramarina, que viviam em Portugal, principalmente o ex-governador do Pará, Bernardo Pereira Benedo. Paulo da Silva Nunes circulou nos gabinetes e nos meios políticos portugueses atacando a Companhia de Jesus. Fez isso com insistência, e relativa liberdade. Estava claro que mesmo antes de D. José I e Pombal assumirem o governo, já existiam burocratas e políticos decididos a enfraquecer a Companhia. Nunes criticou com desenvoltura o eterno ponto central do projeto moral jesuítico: o controle religioso sobre a mão-de-obra. Segundo ele, o que estava acontecendo no Brasil era muito sério. Mais tarde, elaboraria uma petição sobre o assunto. Como sustentou, os jesuítas estavam de tal forma envolvidos com seu próprio projeto, que se afastavam das regras que eles próprios haviam negociado e que tinham sido impostas pelo Rei. Ora, o Rei havia disposto, sobre a mão-de-obra, que os mesmos índios se dividissem em três partes: uma para o serviço da aldeia ou missão, outra para os moradores extraírem dos sertões as drogas [produtos de origem vegetal] de cacau, salsa, cravo, em cujos direitos consiste uma grande parte das rendas reais... e a outra parte para subsistir na mesma aldeia… ¹⁷⁸ Assim, estava estabelecido que o objetivo do papel da Companhia de Jesus era estabilizar as populações, mas em função das atividades produtivas. E, mais ainda, tais atividades produtivas eram fundamentais para o fisco real. No entanto,

os ditos missionários e seus prelados usam da dita administração temporal tão despoticamente, que se aproveitam dos índios das missões, não só da primeira parte, mas também da segunda e da terceira para as suas negociações particulares... ¹⁷⁹ . Falando na língua do século XVIII , isto é, números e dinheiro, Nunes argumentou que o problema fiscal deveria sim ser tomado em consideração, e que Portugal deveria olhar com atenção a quem apoiava, nesse processo todo: isso se verifica que sendo os moradores da capitania do Pará pouco mais de oitocentos, não chegam a tirar estes a cada ano dos sertões cinco mil arrobas das ditas drogas, e os missionários sendo somente quarenta e tantos, colhem mais de trinta mil arrobas... ¹⁸⁰ . Ora, considerando que os jesuítas não pagavam impostos, e os colonos sim, tal processo se desenvolvia em prejuízo das rendas reais. como nele lhes não pagam os missionários os ditos direitos das drogas de cravo, salsa e cacau, que colhem dos sertões, nem das muitas mil arrobas, que embarcam para este reino… nem também pagam dízimos a Vossa Majestade, como pagam os moradores, das grandes lavouras e fábricas, que os ditos Padres têm nas fazendas de seus conventos, colégios e missões… esta é a causa e a razão porque as rendas reais naquele Estado estão diminutas há cento e quatorze anos… ¹⁸¹ Não lhe parecia inteligente que esse aspecto quantitativo fosse menosprezado, considerando a boa gestão financeira do Estado. E, ainda mais, sustentava Nunes que o problema financeiro não era recente, mas estava relacionado à própria insistência na manutenção do projeto jesuítico. No Pará, “há cento e catorze anos”. Ou seja, desde que os jesuítas ali estavam. Nem lhe parecia razoável que aspectos qualitativos, por exemplo a insistência em uma política centrada em valores morais, devessem pautar políticas numa era de predominância de interesses seculares e de tantas transformações na esfera política. Sua argumentação, portanto, era consistente do ponto de vista das contas do Estado e procurava demonstrar, com os números, o quão desinteressante era, para o Reino, a sustentação daquele projeto moral. Paulo da Silva Nunes também atacou, de forma incisiva, o projeto da língua geral. Segundo ele, os jesuítas esqueciam-se do aumento espiritual dos índios das missões, de sorte que devendo ensinarlhes a língua portuguesa a alguns a ler para perceberem com mais clareza a doutrina evangélica, e se fazerem mais tratáveis e melhores vassalos de Vossa Majestade, os conservam só com a língua, a que chamam geral, naquele Estado, que difere pouco da bruta linguagem, como que saem dos sertões. No que os imitam também os moradores, que não podem obrigá-los a aprender a língua portuguesa, sem especial ordem de Vossa Majestade, porque sem ela lhes fujam para as missões, donde os missionários os

conservam sem querer restituí-los a seus amos, cuja desordem não podem remedar os governadores, nem os mais ministros de Vossa Majestade, pela ampla jurisdição que tem os missionários, não só os índios das missões, mas também nos moradores ¹⁸² . Afirmava Nunes, portanto, que a “língua, a que chamam geral” tinha efeitos daninhos não apenas sobre a cristianização, mas também sobre a qualidade da existência das comunidades. Esse idioma contaminava os moradores da região e os afastava do português, e da cultura portuguesa. E nisso andava com os educadores oratorianos, que defendiam, como vimos, o ensino em língua portuguesa. A sua solução geral, para o problema, era simples: “que os ditos prelados e missionários não usem mais da administração temporal dos índios das missões, e só fiquem com a jurisdição espiritual” ¹⁸³ . Dessa maneira, naquele momento, a causa dos predadores começava a se harmonizar com a causa dos Iluministas. Era necessário secularizar o poder, transferir a religião para o foro privado. Permitir que o espaço do Estado deixasse de ser moralmente organizado nos moldes religiosos. Aqui, esse processo representaria o triunfo da predação. Mas era, inteligentemente, apresentado como o triunfo da razão. Em seus detalhes, sua solução representava uma total transformação das políticas adotadas desde 1549: enquanto Vossa Majestade não transferir toda jurisdição temporal que tem os ditos missionários e seus prelados aos governadores e capitães-gerais, de quem fiasse o aumento e conservação do dito estado, nunca nele haverá sossego, nem aumentos… O modelo deveria ser o de ruptura com a ideia de uma sociedade hierárquica, bilíngue, cimentada pela religião. As finanças certamente melhorariam, afirmava Nunes. Os habitantes se tranquilizariam, espiritual e temporalmente. Porque a “realidade da terra” se imporia, finalmente. deve Vossa Majestade, por serviço de Deus e seu, mandar que os ditos missionários… ensinem aos índios das missões a língua portuguesa, como também aos moradores, os que têm livres ou escravos, pelos bens temporais que resultarão dos índios, e as repúblicas daquele estado... que os governadores e os capitães-gerais ponham nas aldeias das missões cabos portugueses, brancos casados e bem procedidos, para que estejam nas mesmas aldeias, com seus filhos e mulheres e assistam aos índios nas suas doenças ¹⁸⁴ . Assim, avançava Paulo da Silva Nunes, o poder total deveria ser entregue aos “brancos”, ou àqueles que conduziam os negócios na terra, os que por mais de século desejavam retornar a uma prosperidade prévia. Isto é, a uma “liberdade” fundadora, a liberdade de Manuel Beckman, ou ao subjetivismo moral dos primeiros povoadores.

O “só a antropofagia nos une”, dessa vez era lema oculto, desaparecido numa plataforma da modernidade. Associado ao que de novo havia da Europa. Posto nestes termos, apelando aos rigores dos números e da razão, as chances de uma vitória dos predadores tornavam-se cada vez maiores. 177 AZEVEDO , João Lúcio de: Os Jesuítas e o Grão-Pará: Suas Missões e Colonização . Coimbra, Editora da Universidade, 1930. p.200 178 “Representação dos Moradores do Maranhão, por Paulo da Silva Nunes, Lisboa, 12 de abril de 1729” in MORAIS , Mello: Corografia Histórica, Cronográfica, Genealógica, Nobiliária e Política do Império do Brasil . Op.cit., p. 297 179 Idem , ibidem , p.298 180 Idem , ibidem . 181 Idem , ibidem 182 Idem , p.299 183 Idem , ibidem . 184 Idem , ibidem . 299. Uma identidade moralmente desestruturada Foi o Padre jesuíta Jacinto de Carvalho quem escreveu uma longa resposta a Paulo da Silva Nunes. Sua defesa das missões foi clássica e seus termos eram já conhecidos e previsíveis. Mas mudara alguma coisa nos desafios que existiam no Brasil? Ainda não eram o individualismo egoísta, o subjetivismo e o relativismo, os principais inimigos da organização da sociedade? por mais que os oficiais da câmara digam, me parece não poder haver melhor forma para a dita administração e conservação dos índios que esta, porque ainda assim tendo os índios os Padres que procuram e zelam pela sua liberdade, se não pode evitar que muitos moradores os tenham como cativos, contra a atenção real de Vossa Alteza, e pondo-lhes capitães que lhes administrem como se aponta pelos oficiais da câmara, será fazê-los escravos do dito capitão e seus parentes, e total destruição das aldeias e desastrada prostituição das índias a cuja lasciva tem sua propensão estes moradores, e além do que nunca as novidades trazem bons efeitos, e ordinariamente as determinações dos antigos se achem serem as mais convenientes ¹⁸⁵ .

O problema era antigo, afirma Carvalho. Problema estrutural. São predadores. Predadores econômicos, sociais, sexuais. Que política pode existir que não uma política moral, controlada pelos agentes moralistas? Carvalho também atenta, no entanto, para o problema das isenções tributárias e do trabalho indígena, que era um dos cernes da crítica de Nunes. Ora, relembra Carvalho que para virem dos sertões e matos é necessário terem os missionários canoas em que os conduzir, é necessário pagar o trabalho dos remeiros que os vão buscar, é necessário ter farinhas para o seu sustento; é necessário ter machado e foices para fazerem suas roças, e porque assim os homens como mulheres não têm mais vestido que o do estado da inocência, para que apareçam ao menos na Igreja, com alguma tal ou qual decência , é necessário ter pano para dar aos homens, como que façam os seus calções, e as mulheres com que façam suas saias... e de onde há de vir tudo isto aos missionários se não tiverem indústria de ocuparem os seus vinte e cinco índios [repartidos] em serviço donde possa resultar alguma ganância, para se permutar por estas coisas referidas? ¹⁸⁶ Ou seja, os investimentos realizados na produção, ou as isenções tributárias, eram importantes para manter o projeto vivo. Sem isso, nada poderia ser feito, e o Brasil e o Pará afundariam nos seus próprios pecados. E, mais uma vez, ele toma a defesa da língua geral : “Ensinar os índios, sem os índios entenderem o que se lhes ensina, que coisa é senão estarem ensinando papagaios a falar?”. E de fato, existia um problema antigo: “a razão de já hoje não porem nenhum cuidado os missionários em ensinar a língua portuguesa aos índios é por alcançarem por experiência ser este seu trabalho inútil”. E acrescenta, traçando considerações sobre o próprio estado do Pará: os moradores nascidos no Pará sabem primeiro falar a língua dos índios, do que a portuguesa, porque como não bebem, nem se criam com outro leite mais, que com o dos índios, com o leite bebem também a língua, nem falam outra, senão depois de andar alguns anos na escola e tratarem com os portugueses, que vão de Portugal, e com esta comunicação os portugueses nascidos no Pará aprendem a falar português e os que vão do reino aprendem a falar a língua dos índios ¹⁸⁷ . Dessa maneira, afirma, não são os jesuítas os responsáveis pela utilização da língua geral no Pará. No Pará é que se fala a língua geral . Existe uma realidade étnica que deve ser considerada. E falar duas línguas não é problema nem dificuldade. O projeto exige a utilização dessas duas línguas. Haveria mais alguma coisa a ser dita? Observadores religiosos diriam que não. No entanto, se observassem com atenção, poderiam ter reparado que o discurso antijesuítico mudou. Mas o dos jesuítas não. Nunes falava em sintonia com o século XVIII . Os jesuítas com o da Reforma católica. Nenhum problema nisso. Desde que ainda existisse, na Corte, um

número suficiente de pessoas que acreditassem no discurso da Companhia de Jesus. O que se tornava cada vez mais duvidoso. Em 1729 faltavam 50 anos para a Revolução Francesa. As tensões secularizadoras, laicizantes, na Europa, eram tremendas. Paulo da Silva Nunes continuou suas ações contra a Companhia por anos. Em 1734 publicou um Memorial onde criticava a Companhia como um todo. Tal Memorial seria mais tarde largamente utilizado contra os jesuítas. Em 1738 escreveu mais uma vez contra os jesuítas, nos últimos anos de reinado de D. João V ¹⁸⁸ . Segundo ele os Padres exerciam uma autoridade ilimitada e despótica. Mandavam soldados às fazendas dos moradores, arrebatar-lhes os índios, que haviam comprado com seu dinheiro; instigavam os crioulos, nascidos forros, a deixarem as casas dos brancos, onde haviam recebido criação; maltratavam de palavras e sujeitavam à violência os moradores que, ainda com ordem, iam às missões buscar gente de serviço. Aos neófitos, davam arma de fogo, com que faziam morte aos portugueses. Em certas aldeias, o missionário tinha cadeia, com grades de ferro, onde até os brancos muitas vezes eram lançados em tronco e grilhões ¹⁸⁹ . Para ele a Companhia e suas atitudes representavam uma autoridade tirânica. Eram agentes destruidores de toda a liberdade e paz que deve presidir as atividades comerciais. E, por fim, sem hesitar em utilizar argumentos do seu próprio povo, dos predadores, profundamente entranhados em sua identidade, sustentou que os índios “não eram verdadeiros homens, mas brutos silvestres incapazes de se lhes participar a fé católica”. Atacando, assim, o espírito de quase dois séculos de legislação. E, de forma sincera, também questionou: “se os etíopes podem ser cativados, porque não podem sê-lo os índios do Maranhão?” ¹⁹⁰ . Para essa pergunta os próprios jesuítas, como vimos, não tinham uma resposta segura. A realidade da escravidão e os elementos de desagregação moral que esta introduzia eram maiores que qualquer esforço de ordená-la. A firmeza e a tranquilidade de Paulo da Silva Nunes representavam a emergência de uma alteração na correlação de forças. Causada por agentes externos? Em parte. Mas, principalmente, determinada pelo amadurecimento de uma sociedade incontrolável e violenta que vinha construindo, aos poucos, ao longo dos séculos, uma identidade enigmática, de difícil definição. Oculta, como a ilha Brasil dos Celtas, no meio de uma neblina espessa. Mas bem consistente em seus fundamentos. Fundamentos moralmente desestruturados. 185 “Papel que o Padre jacinto de Carvalho, Visitador Geral das Missões do Maranhão apresentou a El-Rei para se juntar aos dois requerimentos do

Procurador Paulo da Silva Nunes, datado do Colégio de Santo Antão, 16 de dezembro de 1729” in MORAIS , Mello: Corografia Histórica, Cronográfica, Genealógica, Nobiliária e Política do Império do Brasil. Op.cit., p.310. 186 Idem , ibidem , p.318. 187 Idem , ibidem , p.323. 188 AZEVEDO , João Lúcio de: Os Jesuítas e o Grão-Pará: Suas Missões e Colonização. op.cit. 189 Idem , ibidem . p.203. 190 Idem , ibidem . Jesuítas rebeldes Seis meses antes da morte de D. João V, Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Madri, 13 de janeiro de 1750. D. José I herdou a responsabilidade de executá-lo. Tal tratado foi de imensa importância, pois punha fim a séculos de litígios existentes entre as duas coroas na América do Sul. Consolidava o controle de Portugal sobre a bacia do rio Amazonas e o pleno domínio espanhol nas duas margens do Rio da Prata. A antiga colônia portuguesa de Sacramento, na margem oriental do Prata, passava ao domínio espanhol, e, em troca, parte do território das sete reduções [aldeias] jesuíticas espanholas, situadas na margem esquerda do rio Uruguai, eram entregues a Portugal. Era um momento sem precedentes, pois os limites da América portuguesa saíam finalmente da névoa na qual estavam mergulhadas há séculos. O Brasil começava a adquirir uma identidade geográfica clara. E isso tinha um significado maior, pois a universalidade espiritual dos jesuítas encontrava, finalmente, a racionalidade das fronteiras do mundo contemporâneo. Nos meios jesuíticos espanhóis, a maneira como o Rei de Espanha tratou suas reduções foi considerada desrespeitosa e aviltante. Apesar da aprovação dos superiores da Companhia. As missões eram bem-sucedidas do ponto de vista econômico, dispondo de plantações e rebanhos que produziam para si e para exportação. Uma multidão de índios tinham construído mais que aldeias, mas núcleos quase urbanos, com construções civis impressionantes.

Atacados pelos brasileiros, que lá iam buscar escravos, as reduções do Paraguai possuíam o mesmo espírito hierárquico e integrador das missões no Brasil, e objetivavam construir uma sociedade funcional e bem-sucedida. A atitude dos Padres jesuítas atuantes na região das missões, diante do tratado, foi espantosa e desestruturou as bases do prestígio que a Companhia ainda tinha na Espanha e em Portugal. Para o recém-inaugurado governo de D. José I tal posicionamento foi inaceitável, e demonstrou que algo muito sério estava acontecendo na América do Sul. Inconformados pelo súbito desaparecimento de mais de século de trabalho missionário, que redundou em patrimônio espiritual e material imenso, alguns jesuítas da província do Paraguai, desconhecendo a autoridade real, recusaram-se a abandonar a região. Entre 1752 e 1753 diversas gestões foram feitas no sentido de que os jesuítas levassem os índios, em torno de dezenas de milhares, para oeste, e aceitassem a indenização oferecida. As comissões enviadas para demarcar as novas fronteiras sofreram diversos impedimentos e todos os esforços de negociação foram inúteis. As ações militares conjuntas portuguesas e espanholas tiveram início em 1754 e culminaram em 1756, com a derrota dos índios guaranis na batalha de Caiboaté. Essa experiência foi entendida, pelo governo português, como um sinal assustador de insubordinação ao poder real. Como resistência a um novo patamar de entendimento das identidades e lealdades nacionais. Como rebeldia à modernização, em curso, da Europa. É verdade que se tratavam de estrangeiros, jesuítas espanhóis enfrentando o rei de Portugal. Mas não eram os jesuítas comprometidos com causas maiores que as causas dos reis? E não teriam causas ocultas? Num livro muito conhecido e lido na segunda metade do século XVIII , o Dedução Cronológica e Analítica , atribuído ao Marquês de Pombal, ou escrito sob sua orientação ¹⁹¹ , explica-se sobre os jesuítas que sendo, pois de verdade notória... primeiro, que não há jesuítas portugueses e espanhóis, porque uns e outros são na realidade os mesmos jesuítas, que não conhecem outro soberano que não seja o seu Geral, outra Nação, que não seja a sua Sociedade, porque pela profissão, que a ela os une, ficam logo desnaturados da pátria, dos pais e dos parentes. Segundo, que não reconhecem outra obediência, que não seja a que lhes impõem as ordens, que recebem do seu dito Geral e dos prelados a eles subordinados. Terceiro, que nenhum dos ditos regulares, e menos alguns deles, podem separar-se do comum da sua sociedade, para fazerem alguma ação pessoal ou local, que não seja dirigida pelo espírito, e pelas ordens do referido comum concentrado no dito Geral ¹⁹² .

O problema dos jesuítas era, portanto, global. Tratava-se aqui da consolidação de um “mito político conspiracionista”, que se desenvolveu, de forma consistente, “nas sociedades ocidentais até a modernidade”, como anotou José Eduardo Franco ¹⁹³ . O que aconteceu com os jesuítas espanhóis podia acontecer com os jesuítas portugueses, porque a Companhia, nessa visão, só olhava a si mesmo, seus objetivos próprios, seu poder próprio. As críticas morais que Gabriel Soares de Souza fizera dois séculos antes, oriundas do universo da barbárie, finalmente tinham sua recepção no mundo da razão. O “mito político”, oriundo de diversas fontes, abrigava, finalmente, as suas fontes brasileiras. Nessa perspectiva, os jesuítas podiam se ver como quisessem, principalmente como críticos permanentes da subjetividade moral e do relativismo alheio. Mas eles sim, segundo Pombal, é que consideravam bom aquilo que para eles apenas era bom, e o consideravam bom independentemente de ser ou não bom para os outros. Numa escala maior que a do pequeno cotidiano das cidades brasileiras, da qual foi expressão Gabriel Soares de Souza, Pombal transformou a crítica aos jesuítas numa gigantesca ação de desqualificação moral, que ao mesmo tempo aprofundava o relativismo iluminista. Defendiam os jesuítas a superioridade do “bem comum” sobre as razões privadas? Mas, diz o novo governo português, eram exatamente os jesuítas que se furtavam ao “bem comum”, ao seu Rei e senhor: achando-se a Corte de Lisboa apartada, pelas simulações dos mesmos Padres, de toda a informação daqueles vastos projetos de conquista, que eles por tantos anos paliaram com o sagrado véu do zelo da propagação do Evangelho e da dilatação da fé católica, lhes não foi difícil obterem dela diferentes privilégios e conseguirem muitas mais tolerâncias, com que nos estados do Grão-Pará e Maranhão, acumulando abusos a abusos, vieram a fazer-se absolutos senhores do governo espiritual e temporal dos índios... ¹⁹⁴ E mais: Conseguindo os Regulares que S.M. [Sua Majestade] lhes desse não só o governo espiritual das aldeias, mas também o temporal e político, se persuadiram logo que estas aldeias todas eram suas; que S.M., os seus governadores, nem os povos, tinham nada com elas ¹⁹⁵ . Assim, nessa perspectiva, em nome da “dilatação da fé católica”, da redenção das almas, do bem de todos, a Companhia usurpara para si, apenas para si, todos os privilégios concedidos por gerações de reis de Portugal, inclusive o poder temporal. Sinalizava-se assim uma decisiva inversão narrativa, oriunda do governo português: os jesuítas também eram predadores. Na verdade, os principais predadores.

191 Apud FRANCO , José Eduardo: O Mito dos Jesuítas: em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos XVI a XX ). Lisboa, Gradiva, 2007 p.485 192 CARVALHO E MELO , Sebastião José de (Marquês do Pombal) (atribuido a): Dedução Cronológica e Analítica ... vol.I. Lisboa, Oficina de Miguel Menescal da Costa, MDCCLXVII . p.191. 193 FRANCO , José Eduardo: op.cit., 510. 194 “Relação abreviada da república que os religiosos jesuítas das províncias de Portugal e Espanha estabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monarquias” in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro . Tomo IV , no. 15. 1842. p.276. 195 “Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Pará, 21 de novembro de 1751” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.):op. cit. Vol. 1. p.70 A língua geral e seus erros

Na região sul do Brasil , o responsável pela demarcação das fronteiras estabelecidas pelo tratado de Madri foi o capitão-geral do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrada, Conde de Bobadela (1685-1763). Na Amazônia, Pombal nomeou seu próprio irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1769), para o cargo capitão-geral do Estado do Grão-Pará e Maranhão. A ele coube realizar os procedimentos de demarcação necessários. O Estado do Grão-Pará e Maranhão era particularmente importante, naquele momento. Por ser área rica e de grande população indígena. A ocupação portuguesa na área começou em 1612, como reação à fundação da cidade francesa de São Luiz, tomada em 1615. Logo a seguir, em 1616, os portugueses fundaram, adiante, próximo à foz do Amazonas, a cidade de Santa Maria de Belém. Em 1621 o Estado do Maranhão foi criado, estabelecendo as bases da ocupação portuguesa no Amazonas. Os primeiros jesuítas da região chegaram no decorrer dessa ocupação. Já os havia na expedição de 1615. Mas a primeira missão oficial foi a de 1622, chefiada pelo Padre Luiz Figueira. Por volta de 1636, ele alcançou os rios Tocantins, Gurupá e Xingu. No Maranhão, as missões pioneiras para o interior, pelo rio Pindaré, tiveram lugar em 1653, no caso, junto aos índios guajajaras . Em 1656 entraram os jesuítas pelo rio Parnaíba. Em 1741 foram estabelecidas as chamadas “aldeias altas”, limites máximos da expansão na área. No Pará, os jesuítas, tendo a frente o próprio Padre Antônio Vieira, participaram, em 1655, da pacificação da ilha de Joanes, atual Marajó, onde em 1693 seria fundada a aldeia de Tipucu. As fazendas de Marajó em 1734 chegavam a seis. O baixo Amazonas foi percorrido pela Companhia a partir de 1657 e o rio Negro alcançado pelos Padres Francisco Veloso e Manuel Pires naquele mesmo ano. O Padre Antônio Vieira desceu o rio Tapajós em 1659 e os primeiros estabelecimentos definitivos na região dos rios Gurupá e Xingu foram fundados em 1660. Em 1669 foi alcançado o rio Madeira. Para o norte, na direção de Macapá, onde existiam pretensões territoriais francesas, as missões datam de 1680. O alto Amazonas, a região do rio Solimões, nos limites do poder português, foi afinal destinado aos jesuítas em 1693, mas a fundação da aldeia de Javari, marco mais longínquo da colonização portuguesa, data de 1752. Do ponto de vista administrativo jesuítico essas missões foram, originalmente, submetidas à província do Brasil. Em 1673 foi estabelecido que o seu superior receberia o título de Vice-provincial, remetendo-se ao provincial do Brasil.

No entanto, em 1677, o Geral João Paulo Oliva submeteu-as à província de Portugal. A discussão arrastou-se por décadas. Só em 1683 as missões do Maranhão seriam definitivamente submetidas ao Brasil e apenas em 1727 seriam elas oficialmente elevadas a Vice-província ¹⁹⁶ . Tal separação acompanhava, portanto, a divisão dos dois estados portugueses na América. Mostrava, no entanto, que, para os jesuítas, a ocupação da Amazônia e a do Brasil estavam interligadas, num mesmo projeto. Delineavam, assim, os jesuítas portugueses, a singular integração entre essas duas áreas. Mesmo porque a Amazônia tinha sido conquista sua. Entre 1754 e 1755, Francisco Xavier de Mendonça Furtado embrenhou-se pelos distantes confins do Amazonas. Sem dúvida que a região era área jesuítica. Alcançar os seus limites extremos, navegando pelo rio Amazonas, significava precisar do apoio dos religiosos. Os problemas com os inacianos foram muitos, portanto, ao longo de toda a viagem. Alcançando os limites portugueses, nos confins do Amazonas, esperou pela comissão demarcadora espanhola, que só chegou anos depois, em 1759. Mas, mesmo assim, processou demarcações por conta própria, com o necessário auxílio dos jesuítas, fez muitos mapeamentos e ordenou a construção de fortalezas. Muitas coisas impressionaram o irmão de Pombal nessa viagem. A primeira foi o problema da língua geral , sobre a qual teve uma altercação com missionários na região, logo no início de sua viagem: As religiões, por seguirem a sua destinação, se dão à grande pena de fazer aprender aos religiosos, depois de saírem das aulas, a tal língua da moda geral, e perguntando eu a alguns para que era este trabalho, me responderam que eram a isso obrigados como missionários, porque assim o mandava um Breve de Alexandre VII , ao que lhes respondi que o Breve era para os missionários que iam pregar o evangelho às regiões aonde era preciso estabelecer-se e falar a língua do país para poderem fazer fruto com a sua missão, mas não no sistema presente, em que aos mestres e aos discípulos lhes era preciso, para se entenderem, largar cada um a língua materna para se comunicarem em uma gíria inventada para confusão e total separação dos homens e em notório prejuízo da sociedade humana ¹⁹⁷ . Francisco Furtado, portanto, estabelece, desde já, o caráter pernicioso, ou irracional, da língua geral . Primeiro, porque todos os missionários falavam português, donde não havia sentido em falarem uma segunda língua. Segundo, porque isso afastava os povos, ao contrário de uni-los, pois criava uma identidade própria, indígena, no meio de uma sociedade que deveria ter apenas um objetivo, o de ser “sociedade humana”.

Ele sustentava, portanto, que aqui se comprovava que eram sim os jesuítas inimigos do “bem comum”, dando prosseguimento à inversão do discurso acusatório. Vendo-se estes moradores na consternação de não se poderem comunicar com os índios, se viram na precisão de aprender também a gíria que lhes inventaram para se poderem servir deles, e isto que então foi necessidade passou a hábito, e ao excesso de serem hoje mui poucas pessoas que nesta cidade falam português, principalmente mulheres, que até não é possível, conforme me tem ditos os mesmos Padres, que se confessem senão na “língua geral”, como eles lhe chamam ¹⁹⁸ . E ia adiante, retomando o tema do conteúdo da língua geral , dessa vez caminhando pela discussão dos conteúdos semânticos, que tanto esforço, como vimos, custou aos gramáticos da Companhia de Jesus. Retomou o tema de Tupã : Para V. Exa. Poder compreender bem este absurdo, que na verdade se faz incrível, é preciso saber que a palavra Tupana na tal gíria é Deus; as duas açu e mirim é o mesmo que grande e pequeno, e são os ditos índios educados para explicarem Deus, dizendo Tupana Açu =Deus grande; e os santos, suas imagens e verônicas, Tupana Mirim =Deus pequeno; e isto que eles dizem que é um modo de explicar, por não haver na tal língua a palavra Santo, sempre dado por elemento de religião a uma gente silvestre, lhes forma uma idéia de muitos deuses, o que é totalmente defendido e oposto à verdadeira fé que nos ensina a Igreja Católica. Além de que, este erro se poderia emendar ainda seguindo a errada máxima de se ensinar a tal gíria barbarizando a palavra santo, assim como tem barbarizado infinitas palavras portuguesas que se acham inseridas nela, e de que poderia fazer um catálogo se fosse necessário. As complexas discussões semânticas jesuíticas se esvaziavam, portanto. Na sua opinião, não havia como os índios entenderem o que vinha a ser Tupã. Para ele, isso não passava de uma falsificação pagã. Eram realmente cristãos, os jesuítas? Além do mais, a proposta da língua geral como pidgin , uma língua de contato, lhe parecia totalmente absurda. No momento de reafirmação dos interesses lusitanos a desagregação da língua portuguesa era uma ideia impensável. Nessa estranha viagem pelo rio Amazonas, cercado de jesuítas e índios, Francisco Furtado reuniu muito material para tratar do problema e do futuro da Companhia de Jesus. Não tinha dúvidas de que tudo aquilo estava errado e deveria ter uma solução que comportasse o engrandecimento de Portugal, e da “sociedade humana” 196 LEITE , Serafim: História da Companhia de Jesus no Brasil . Op.cit., vol.

IV pp.213+. 197 “Carta do Pará, 21 de novembro de 1751” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (ed.): A Amazônia na era pombalina; correspondência inédita do governador e capitão-general do estado do Grão-Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759) . 3 tomos. Rio de Janeiro, IHGB , 1963, vol.1. p.66 198 Idem , ibidem , p.67 Escravidão material e escravidão espiritual Pombal agiu no sentido de neutralizar a Companhia de Jesus através de três movimentos. Primeiro, rompendo o controle dos jesuítas sobre os índios. Segundo, interrompendo seus meios de financiamento. Terceiro, desarticulando a sua estrutura educacional. O primeiro dizia respeito à liberdade indígena. E por ele, todos os outros foram alcançados Como já observamos, os jesuítas sempre batalharam por leis que garantissem a liberdade dos índios. No entanto, os religiosos não entendiam a liberdade dos índios como um evento isolado, sem qualquer outro elemento que lhe garantisse, na prática, a existência. O ato deveria estar sempre conjugado com a manutenção da tutela dos nativos. Seja pela Companhia ou de outras ordens. Além disso, não negavam, em princípio, a existência de formas justas de escravidão. Entendia-se que qualquer emancipação indígena sem a mediação e proteção da Companhia seria fatal para a sociedade, enquanto sociedade guiada por regras morais objetivas. Tal ato permitiria a ação imediata das tropas de traficantes de escravos que assolariam e destruiriam a sociedade nativa, e propiciaria a autorização para a desagregação dos elos familiares, pela mistura entre aqueles que queriam pecar e aqueles para os quais não havia uma palavra para pecado. O Alvará de 1688 reconheceu a Junta das Missões como o órgão responsável pelo assunto, por exemplo pela concessão de eventuais permissões para a escravidão dos nativos. As Juntas – no plural, pois, no caso do Estado do Grão-Pará e Maranhão, existia uma no Pará e outra no Maranhão – , tinham assim, segundo o Padre José Caeiro anotou, a responsabilidade de “desenvolver a religião, pugnar pela liberdade dos índios, decretar acerca da guerra e em geral, velar por

tudo que interessasse aos índios e à liberdade deles”. A sua estrutura era, pelo menos formalmente, a de uma comissão democrática: “tinham voto nela o Prelado Governador, os Superiores das ordens religiosas e o Pretor Urbano, e o que a maioria decidisse se fazia” ¹⁹⁹ . Existiam desavenças entre as ordens religiosas, principalmente por estarem, todas as outras, muito sujeitas à autoridade da Companhia de Jesus. Como sugeriu Francisco Furtado: “como cada religião destas aspira a ter o comércio universal deste Estado, não tratam de outra coisa mais do que ver o modo por que hão de arruinar umas às outras, valendo-se todas dos meios que as podem conduzir àquele fim” ²⁰⁰ . No entanto, as Juntas serviam, entre outras coisas, de fóruns onde se negociava, entre as diversas instituições religiosas e entre essas e os brasileiros, a repartição de nativos, livres ou escravos. Como anotou um observador da época, muito embora a Companhia de Jesus fosse de longe a mais rica das ordens, outras ordens regulares também acumularam muitas riquezas em função das missões. “Os Padres da Companhia... me asseguram que passam de ter nos seus currais [na ilha de Marajó] de vinte e cinco mil até trinta mil cabeças...os religiosos do Carmo que terão de oito até dez mil” ²⁰¹ Quando falar em “libertação dos índios”, portanto, a Coroa portuguesa, sob Pombal, estará falando em eliminar poderes existentes sobre a escravização e liberdade de nativos, reunidos nas mãos religiosas. Nas Instruções Régias de 31 de maio de 1751 , estabeleceu-se a necessidade de desqualificar o poder das Juntas das Missões . Remetia-se, então, a decisões do Conselho Ultramarino de 1747, confirmadas em 1748, nas quais eram declaradas “nulas as licenças que à mesma Junta de Missões tinha dado para os cativeiros que, em virtude dela, se fizeram, ordenando que os índios se pusessem em liberdade e que se recolhesse a tropa de resgate que, contra a forma da dita lei, andava fora havia anos.” ²⁰² . Isto é, segundo o governo português sempre se entendeu que as Juntas não deveriam ter o poder que ostentavam. Desqualificando-se o poder das Juntas , assim, a Coroa pode, a partir de 1751, ir gradualmente recuperando o seu poder nesse assunto. As mesmas Instruções Régias , ao mesmo tempo em que nomeavam o irmão de Pombal, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Governador e CapitãoGeneral do Estado do Grão-Pará e Maranhão, estabeleciam a necessidade da liberdade indígena: Para conter estes desordenados procedimentos e evitar tão considerável dano, sou servido declarar que nenhum destes índios possa ser escravo, por nenhum princípio ou pretexto, para o que hei por revogar todas as leis, resoluções e provisões que até agora subsistiam e quero que só valha esta minha resolução, que fui servido tomar... para que todos os moradores do

Estado cuidem em fabricar as suas terras como se usa no Brasil, ou pelo serviço dos mesmos índios, pagando a estes os seus jornais e tratando-os com humanidade, sem ser, como até agora se praticou, com injusto, violento e bárbaro rigor... para melhor estabelecimento dos salários que devem vencer estes índios e dos efeitos de sua liberdade, ouvireis as Câmaras respectivas e a Junta das Missões , para que, com os arbítrios de uns e outros, façais uma taxa dos salários que se hão de pagar aos mesmos índios. Alguém poderia pensar que se estava em qualquer outro lugar, menos no Brasil. Porque as Instruções davam a entender que não existiam defensores da liberdade indígena, senão o Rei, e que não existia toda a legislação real que nos últimos séculos havia tratado do assunto. Inclusive sobre o problema dos salários, regulado de diferentes formas, mas burlado de forma contínua. Na verdade, o que se pretendia era inverter a narrativa jesuítica e tornar a tutela sobre os índios sinônimo de escravidão indígena e, portanto, tendo como responsáveis principais as Juntas de Missões . Essa era uma argumentação levantada há muito por Paulo da Silva Nunes, ou seja, de que “sob a capa de religião” e em nome da liberdade dos índios, os jesuítas detinham os índios em suas fazendas e se utilizavam de sua mãode-obra, como se escravos fossem. O Rei ordenava, assim, que para que os moradores daquele Estado observem inteira e religiosamente esta minha resolução, os persuadireis a que se sirvam de escravos negros, e que, servindo-se de índios, os tratem com caridade... para a introdução dos escravos negros... é preciso que informeis, declarando o número de negros que podem ser necessários, quantos se pode mandar cada ano; que possibilidade têm os moradores para os satisfazerem... sobre os meios porque com menos vexação e descômodo se pode fazer a introdução de escravos negros, e a forma do pagamento destes escravos. A solução africana, sempre presente, mas nunca suficiente, continuava sendo a proposta para pacificar as relações entre índios e brasileiros. Mas não considerava, o Rei, que os índios eram gratuitos, ou quase gratuitos, e isso representava um diferencial importante, na hora de escolher o perfil da mão-de-obra. O apelo moral, feito pelo Rei, era para tratar os índios “com caridade” e os africanos da forma necessária. Esse era um desafio importante e contraditório, que carecia de uma solução no âmbito da objetividade moral, que não cabia ao Rei formular, na verdade. Mas apresentava uma sólida inconsistência: preconizava diferentes tratamentos. O Rei instruía, ameaçadoramente, ao Governador, que se encontrardes nos Regulares e pessoas Eclesiásticas alguma dificuldade sobre a mal entendida escravidão que eles praticaram com os índios, como também no estabelecimento destes a jornais [salário], para a cultura das suas terras...os persuadireis da minha parte a que sejam os primeiros nesta

execução das minhas reais ordens, porque os seus estabelecimentos, de todas ou da maior parte das fazendas que possuem, é contra a forma da disposição da lei do reino, e poderei dispôr das mesmas terras em execução da dita lei, quando entenda que a frouxidão e tolerância que tem havido nesta matéria até serve de embaraço ao principal objetivo para que se mandaram a esse Estado as pessoas Eclesiásticas ²⁰³ . Em suma, a tutela sobre os índios violava a sua liberdade. Tratava-se de uma “mal entendida escravidão”. E a ameaça era clara: o confisco das terras, caso ela continuasse. O que se considerava como libertação dos índios era, portanto, não apenas o fim de toda propriedade de escravos indígenas, mas também de qualquer tutela sobre os nativos. Vindo de Lisboa, essas instruções, emitidas logo nos primeiros momentos do reinado de D. José I, demonstravam uma mudança radical na abordagem do problema por parte do governo central. O tema iluminista da liberdade, aqui, significa o fim das tutelas religiosas, do domínio da religião sobre as consciências. A escravidão era algo mais, nessa perspectiva, do que apenas uma relação material, era um estado de espírito. Pelo menos no caso dos índios. É claro: a causa da “sociedade humana” não englobava, aqui, os africanos. Os brasileiros, mais ou menos atentos, observavam os sutis desdobramentos dessa discussão. E pensavam sobre as pautas ocultas que poderiam ser inseridas nesse debate. Mas alguns percebiam que estava contido nessas Instruções o rascunho de um novo projeto para o Brasil. Neste, uma proposta de liberdade podia significar outra coisa totalmente diferente: a liberdade de escravizar. 199 CAEIRO , José: De Exilio Provinciarum Transmarinarum – Jesuítas do Brasil e da India na perseguição do Marquês de Pombal . Rio, ABL , 1936. p.345. 200 “Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Pará, 21 de novembro de 1751” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.): op. cit. Vol. 1. p.77 201 “Carta de Diogo de Mendonça Corte Real, 23 de dezembro de 1751” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.): op. cit. Vol. 1. p.132.

202 “Instruções Régias de 31 de maio de 1751, in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.): op. cit. Vol. 1. p.27. 203 Idem , ibidem , pp.27-30 Delírios pombalinos e silêncios brasileiros Pombal explicará melhor sua visão sobre a “mal entendida escravidão”, que caracterizava a relação entre a Companhia de Jesus e os índios: catequizando os índios a seu modo, e imprimindo na inocência de todos, como um dos mais invioláveis princípios da religião cristã, a que os agregavam, a ilimitada e cega obediência a todos os preceitos dos seus respectivos missionários, sendo tão duros e intoleráveis... conseguiram conservar por tantos anos aqueles infelizes racionais na mais extraordinária ignorância, e no mais duro insofrível cativeiro que se viu até agora. Pois que ignorando os miseráveis índios que havia na terra poder, que fosse superior ao poder dos Padres, criam que estes eram soberanos despóticos de seus corpos e almas; ignorando que tinham Rei a quem obedecer, criam que no mundo não havia vassalagem, mas que tudo nele era escravidão; e ignorando enfim que havia leis, que não fossem as da vontade dos seus santos Padres (assim os denominam), tinham por certo e infalível que tudo o que eles lhes mandavam era indispensável para logo obedecerem sem a menor hesitação ²⁰⁴ . Segundo Pombal, conservando os índios em “ignorância”, os religiosos escravizavam os nativos de uma forma inusitada. Tinham sobre eles total e absoluto poder, camuflado de liberdade. Ora, a liberdade dos índios teria que ser total. Para que os nativos pudessem conhecer o mundo, e, por si sós, descobrirem pela razão o que os tornariam dignos de sua liberdade. Entendia-se que o projeto pombalino era cheio de boas intenções iluministas. Mas essa plataforma não era, em princípio, interessante a muitos brasileiros, que podiam concordar, sim, que os religiosos escravizavam os índios. Mas não que a escravidão deveria ser proibida. Mesmo porque as duas posturas, a da liberdade tutelada, dos jesuítas, e a da liberdade de escravização, dos brasileiros, se contradiziam, na prática. Mas não eram contraditórias no discurso pombalino. Isso gerava desconfiança entre os brasileiros. Além do mais, muito embora as Juntas das Missões tutelassem a população nativa, eventualmente autorizavam o cativeiro, beneficiando alguns brasileiros ou ordens religiosas. A posição pombalina, portanto, gerou imediata confusão em ambos os tradicionais adversários no Brasil. Numa curiosa carta de 1753, Francisco Xavier de Mendonça Furtado acusou os jesuítas de conspirarem junto a alguns brasileiros:

O primeiro foi o de ajudarem a sedição que aqui intentou fazer o Ouvidor Manuel Luís com os povos, entrando alguns Padres por casa destes moradores a sugerir-lhes, que o não consentir que se lhes fizessem resgates era uma tirania; que os povos se não podiam conservar sem aqueles injustos cativeiros; que era uma violência [para com] os escravos que se lhe julgavam livres; e com estes e outros discursos, iam radicando em alguns homens idéias trabalhosas, de cujas práticas eu fui logo informado… ²⁰⁵ A informação é confusa. Mas aparentemente Francisco Furtado dá a entender que os religiosos tentaram conciliar diferentes posições no sentido de manter o status quo tradicional. Possível? Difícil saber no momento. No entanto, é evidente que os jesuítas, sim, continuaram a opor-se ao fim da tutela que era exercida sobre os índios. Mesmo que para isso fosse necessário continuar sustentando alguma tese sobre a escravidão legítima ou outras formas de escravidão. Mesmo porque a posição do Rei era não apenas proibir a escravidão indígena, mas impor uma mais cara escravidão africana. Nesses mesmos dias, o Capitão-Geral teve um encontro com o Padre Gabriel Malagrida (1689-1761), que estava no Maranhão, partindo para Lisboa, a convite da rainha. Malagrida era um jesuíta místico e missionário. Um dos maiores líderes religiosos da ordem, naquele momento. Nasceu na Itália, mas passou grande parte de sua vida no Brasil. Viveu entre índios remotos, no Maranhão e no Piauí. Foi também pregador itinerante, andando pelas cidades do Nordeste, e clamando pela conversão. Era popular, além de professor de teologia e filosofia. É dito que reunia multidões consideráveis para suas prédicas. Deixou marcas no Brasil de seu tempo. Era um líder religioso respeitado pela população e, além do mais, tinha amigos influentes na corte. Desempenhou, como veremos, um papel central dos eventos daquela época. O Capitão-Geral o encontrou no Maranhão, e traçou dele um perfil antipático, embora o diálogo entre ambos, sobrevivendo apenas por um dos lados, pareça um exercício de mal entendimento mútuo: Vendo estes Padres que o indireto, estranho, repreensível meio que queriam seguir para ficar com a quantidade de escravos que injustíssimamente possuem não podia já ir adiante... seguiram o outro meio... este foi o de se virarem para o Padre Malagrida, e terem suas conferências teológicas com ele, e assentarem que entre estes índios havia alguns cativos que se deviam sustentar por serem feitos em tropas de resgates e ter S. Maj. cobrado deles os direitos, que era forçoso restituir. Com estas teologias me veio falar o dito Padre, em sentido bem diverso do que o tinha feito, assim a S.Maj. como a mim... [isto é, aparentemente, defendendo a liberdade dos índios] e se eu não tivera já conhecimento das diligências que estes Padres faziam por conservar seus escravos, com a mesma injustiça com que foram cativados,

me admiraria bastantemente esta mudança de sistema que via naquele Padre. Como o vi pregar e querer estabelecer aquela quantidade de desatinos, lhe respondia que, como S. Paternidade ia para Lisboa, naquela Corte poderia representar aquelas razões, que ainda que eram totalmente opostas às que S. Paternidade tinha exposto a S. Maj., o que o mesmo Senhor determinasse seria o mais justo, e que isso se seguiria ²⁰⁶ . Considerando a inversão moral e discursiva feita por Francisco Furtado, é impossível dizer qual o teor dessa conversa. A não ser que, sim, provavelmente foi marcada por absolutos desentendimentos, e tinha razão Malagrida em ir a Lisboa, para usar de sua influência numa crise cuja dinâmica era cercada de estranhezas, e cuja profundidade poucos podiam perceber. Malagrida, com certeza, percebia, como veremos, sentidos que ninguém percebia. Apesar desses aparentes estremecimentos, não houve qualquer oposição, entre os brasileiros, ao Alvará Lei de 6 e 7 de junho de 1755, só publicado no Grão-Pará em 1757, o qual, evocando toda a legislação de libertação indígena, emancipou os índios do Estado do Grão-Pará e Maranhão, ao mesmo tempo que eliminava a tutela sobre eles estabelecida pela Companhia de Jesus. Em maio de 1758 essa libertação foi estendida a todos os índios do “continente do Brasil”. Tão logo o Alvará Lei foi publicado no Pará, deu-se início ao desalojamento dos jesuítas responsáveis pelas missões. Todas elas começaram a ser transformadas em vilas. Processo que também aconteceu no Estado do Brasil. Segundo o Padre Caeiro, o capitão-geral Francisco Mendonça fundou, na Amazônia, cerca de sessenta e duas cidades, vilas e aldeias, em sua maioria sobre antigas missões jesuíticas ²⁰⁷ . Segundo o mesmo Caeiro, essas aldeias a ser secularizadas eram, na Bahia, em número de nove, sete no Ceará, duas no Rio Grande do Norte, cinco no Rio de Janeiro e sete em São Paulo. O atlas do Padres Ludovico Carrez falanos de 55 aldeias jesuíticas na Amazônia, mas talvez seja um número exagerado, em função das permanentes mudanças e reorganizações de indígenas. Caeiro cita pelo menos 25. Em 3 de Maio de 1757, Francisco Xavier de Mendoça Furtado tornou público o Diretório dos Índios , documento que pretendia ordenar, a partir daquele momento, as relações entre índios e brasileiros.

O documento era muito humanista, e estabelecia que o prelado das dioceses ficaria responsável pela parte espiritual das vilas (art. 4). O mesmo clero secular sempre combatido pelos jesuítas. Obrigava o ensino da língua portuguesa, proibindo a língua indígena (art. 6). Proibia o serem chamados “negros” aos índios (art. 10). Obrigava os índios a terem sobrenomes “das famílias de Portugal” (art. 11). Determinou que deixassem de viver em habitações familiares coletivas (art.12). Proibiu a nudez (art. 15). Obrigou ao pagamento dos impostos (art. 33). Estabeleceu regras para o comércio (arts. 36 e seguintes) ²⁰⁸ . Talvez fosse óbvio para alguns que, acompanhando toda a legislação passada, evocada no Alvará Lei , aquela emancipação proibia sim a escravidão. Não havia novidade. O silêncio dos brasileiros diante dessa lei, no entanto, é ensurdecedor. Não houve levantes nem tentativas de reação em defesa do cativeiro. Principalmente porque, ao contrário das outras leis, elaboradas por obra dos jesuítas, quem elaborou esta libertação não conhecia bem o Brasil e a relação que os brasileiros tinham com a lei. Muito cerimoniosa. 204 “Relação abreviada da república que os religiosos jesuítas das províncias de Portugal e Espanha estabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monarquias” in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro . Tomo IV , no. 15. 1842. p.267 205 “Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Pará, 8 de novembro de 1753” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.): op. cit. Vol. 1. p.422 206 “Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Pará, 8 de novembro de 1753” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.): op. cit. Vol. 1. p.422 207 CAEIRO , op.cit., p.477. 208 in ALMEIDA

, Rita Heloísa de. O Diretório dos índios: um projeto de “civilização” no Brasil do Século XVIII . Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997. Os índios e a “sociedade civil” O Marquês do Pombal certamente não conhecia bem o Brasil, quando projetou o futuro do Brasil. Também tinha uma visão muito irreal do que são os seres humanos, o que é estranho. Consideremos que era um político e homem de poder, e, portanto, conhecedor dos seres humanos. No entanto, parece que acreditava que suas ideias eram capazes de mudar os humanos apenas por serem suas ideias. Perspectiva que pode causar menos dano quando se vive só. Mas não quando se governa um Império Colonial. Defendendo suas propostas, ao seu irmão, afirmou que uma das dificuldades que se opunham às liberdades agora concedidas por S. Maj. era a de que os índios desertariam logo que fossem livres. Este temor é certo que se faz improvável nos termos que hoje se presentam. Porque, ao mesmo tempo em que os referidos índios se põem na sua liberdade, se lhes dão fazendas para se sustentarem e se lhes segura o comércio dos frutos dela para enriquecerem. E se os mesmos irracionais vêm de muito longe buscar quem lhe dê de comer, como se vê nos pombos, que deixando os pombais onde são maltratados vão sempre buscar os outros cujos donos os conservam limpos e bem providos, não é crível que os racionais obrem mais brutamente para fugirem de quem lhes fizeram grandes bens, pois que isto seria supor-se que pode obrar mais retamente o instinto dos brutos do que o entendimento dos homens, que é inseparável da alma racional. A visão que Pombal tinha dos índios era de que neles habitava uma “alma racional”, capaz de reconhecimento. Faltava-lhe, certamente, a percepção de que consciência dos homens é complexa e paradoxal. Os seres humanos podem não ser guiados automaticamente pela comida, “como nos pombos”. Além do mais, o que é comida, para os homens, é muito diferente do que é comida, para os bichos. A fragilidade desse discurso era evidente. A sua crença de que as condições materiais determinariam a natureza da existência desconsiderava todo o mundo da espiritualidade. É claro que ele acreditava que “não falte em se acautelar tudo quanto prudentemente se pode previnir, conformando-vos com as leis de alguns Estados da Europa, que proíbem saírem deles os seus habitantes sem preceder licença do governo”. Era claro, assim, que eram necessárias medidas de coerção. No entanto, Pombal defendia que um trabalho de apelo à razão seria eficaz, ou muito

mais eficaz que o apelo à força. Ou mais decisivo que o recurso a Deus e a obediência à moral objetiva: consta que os índios são muito propensos à preguiça e a viver na inação, fazendo-os a sua mesma barbaridade carecer daquela nobre e virtuosa ambição que faz aplicar os homens ao trabalho pelos dois motivos: de não viverem uns a cargo dos outros, e de crescerem pelas suas ações e cabedais em graduações e em lugares. E para obviar este mal, fareis por que os pregadores, conformando-se com a doutrina dos apóstolos, que devem imitar, clamem dos púlpitos muito freqüentemente contra a ociosidade, como vício moral e político, afeando-a e ridicularizando-a, de sorte que todo o ocioso conheça a torpeza do vício em que se acha precipitado, para se emendar. O mesmo procurareis persuadir por voz e pelos ministros e oficiais desse Estado: louvando, estimando e ajudando os aplicados; ridicularizando e desprezando os vadios como homens os mais abjetos e indignos da sociedade civil, de sorte que, o desprezo em que se virem os faça envergonhar à vista dos outros que virem estimados. ²⁰⁹ . Pombal desprezava as variáveis culturais e subjetivas, e entendia que a razão iluminista tinha validade universal. Como desprezava a Companhia de Jesus, não percebeu que o problema da sua argumentação era o mesmo com o qual se defrontaram os jesuítas: era muito difícil traduzir Deus para a língua dos índios. Embora não o fosse traduzir a percepção do sagrado. Mas como traduzir “sociedade civil”? Além do mais, que quadros de magistério seriam capazes, e como, de ensinar esses conceitos da ciência política do século XVIII ? As mesmas expectativas se colocavam diante dos problemas do “pecado da carne” que “cá não é pecado”. Francisco Furtado acreditava, sem qualquer consideração por séculos de experiência jesuítica, que a solução era a disseminação do casamento: Também me não deixa menos vaidoso o ter V.Sa. já antes proposto o projeto da união dos europeus com os índios, julgando, como na verdade é ser este um dos meios para se civilizarem estas infelizes gentes e povoar-se muita parte deste larguíssimo [país], e certamente não compreendido em nosso país, e seguro a V.Sa. que qualquer parte dele em que aí se fala com indiferença, pode ser não só um reino, mas um larguíssimo império, e cheio de todo de preciosíssimas drogas [produtos de origem vegetal] que se perdem na maior parte, ficando o resto que se aproveita não sendo de utilidade alguma ao público... nos casamentos tenho trabalhado, quanto cabe no possível, e tenho até agora adiantado bem pouco ²¹⁰ . É interessante que, nessa passagem, Francisco Furtado relacione o tema da união matrimonial entre índios e europeus, aos problemas de ineficiência do Brasil. Combatia-se, aqui, portanto, o projeto de hierarquia e separação étnica jesuítica, sustentando a necessidade da integração. Considerando, ou não, que essa miscigenação já era corrente, acreditava que ela poderia ser moralizada, através de casamentos. A ideia jesuítica de que a separação permitiria uma racionalidade maior na gestão, através da preservação do perfil cristão da liderança (pois miscigenação significaria, provavelmente, degradação de valores morais), não lhe parecia sustentável pela razão.

O Brasil é “cheio todo de preciosíssimas drogas que se perdem na maior parte”, e que a indiferença com o que o Brasil é tratado não é justificado. Bastaria que fosse povoado, europeizado. O seu pessimismo parecia dissolvido, um ano depois: a união de portugueses e índios vai-se estabelecendo e já se tem feito bastantes casamentos, e só para a Vila de Borba, a nova do Rio da Madeira, tenho mandado 23 casais destes, e espero ainda que vão mais uns poucos, e este é o verdadeiro caminho, como V.Sa. justamente pondera de se povoar este larguíssimo país, senão fazendo nós os interesses comuns com os índios, e reputando tudo a mesma gente ²¹¹ . Acreditavam as lideranças pombalinas que a razão seria a melhor solução para o país e que essa lei natural, desprovida de maior especulação filosófica, com sua força interior, colocaria a sociedade em ordem, tanto a do Brasil quanto a de Portugal. Na medida em que a lei da natureza poderia fluir e iluminar as consciências, sem os entraves das superstições, fanatismos e crendices dos religiosos. Acreditavam nisso? Talvez. Embora no mesmo ano de 1757, o governo tenha autorizado várias “guerras justas”, contra os índios Acoroás, Gugués e Timbiras , no Pará. Tranquilizando os intranquilos. 209 “Carta de Sebastião José de Carvalho Melo a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, 4 de agosto de 1755” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.): op. cit. Vol. 2, p.794. 210 “Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao Desembargador Gonçalo José da Silveira Preto do arraial de Marivá, 12 de julho de 1755” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.): op. cit. Vol. 2. P. 759. 211 “Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Gonçalo José da Silveira Preto, Arraial de Mauriá, 12 de outubro de 1756” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.): op. cit. Vol. 3, p. 948. Agindo contra a eficiência No campo comercial Pombal atuou para desarticular as atividades econômicas jesuíticas, embora não necessariamente satisfazendo os brasileiros. A avaliação foi feita no sentido de eliminar os bem conduzidos negócios inacianos. Como explicamos anteriormente, havia uma permanente busca de excelência nas práticas gerenciais da Companhia de Jesus. Em parte, isso era fruto do grande valor dado ao discernimento, ao conhecimento e ao

estudo. E, em outra parte, isso era derivado da grande preocupação em construir relações virtuosas, mesmo, e principalmente, no mundo da economia. Toda administração de bens da Companhia apresentava uma mesma preocupação com a racionalidade produtiva, com o máximo aproveitamento dos elementos disponíveis e, no caso da produção, também com a precisa inserção dos produtos no mercado existente. Admiradores da razão humanista, os jesuítas preservaram dela o culto da técnica e da utilização racional dos elementos envolvidos em todo e qualquer processo, com o objetivo de potencializar os seus resultados. No caso da economia, para ampliar ao máximo a produção. Voltados para o sucesso empresarial de longo prazo, única alternativa que poderia render os necessários ganhos financeiros permanentes para sustentar as atividades da Ordem, a Companhia celebrizou as suas fazendas e os seus empreendimentos econômicos. Para aqueles que conviviam com os mais ou menos rústicos brasileiros, ansiosos por ganhos rápidos e absolutos, tomados por uma racionalidade mercantil predadora, a obra da Companhia aparecia como fruto de uma inspiração empresarial única. Os bens jesuíticos eram uma significativa permanência econômica em séculos de ascensões e falências privadas, próprias do ambiente tumultuado do Brasil e das práticas gerenciais dos brasileiros. Podemos tomar, como exemplo, um dos maiores e mais bem-sucedidos empreendimentos jesuíticos da América portuguesa, a Fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. O processo de sua aquisição foi típico. No ano de 1589, em troca da obrigação de encomendar sua alma, a Marquesa Ferreira, viúva de um dos primeiros povoadores do Rio de Janeiro, doou, em testamento, um amplo território à Companhia. Este compreendia extenso litoral, serras, baixadas e rios, e que até bem poucos anos antes ainda pertencia a indígenas. A partir dessa base, os jesuítas, nas décadas seguintes, através de uma política de compras de sesmarias vizinhas, ampliaram-na a dimensões extraordinárias. A Fazenda de Santa Cruz funcionou em padrões de excelência administrativa, de maneira ininterrupta durante quase dois séculos. As suas grandes plantações eram uma das principais fontes de gêneros alimentícios da cidade do Rio de Janeiro. O arroz era ali beneficiado em engenhocas de tração animal ou hidráulica em grandes quantidades. A farinha produzida na fazenda, a partir da mandioca, superava em muito os padrões artesanais comuns então no Brasil. A fazenda, além de abastecer o mercado da cidade, ainda produzia excedentes, que eram exportados.

Possuía ainda extensas criações de todo tipo de gado, elemento central do abastecimento do Rio e de outras regiões. Em 1742, a fazenda possuia 7658 cabeças de gado, em 1757, 9.344, abrindo eventualmente o açougue para “venda de carnes verdes” ²¹² A fazenda dispunha também de ferraria, carpintaria, olaria, curtume e um estaleiro, no qual foram construídas diversas embarcações, usando como matéria prima as árvores das florestas localizadas em sua propriedade. Possuía ainda um complexo sistema de irrigação e diversos canais e redes de drenagem, as primeiras grandes obras hidráulicas do Brasil, ainda hoje existentes. Entre elas a Vala de Itá e o Canal de Santa Luzia , com o comprimento aproximado de 13 quilômetros, o Canal de São Francisco , com cerca de 10 quilômetros, a Vala da Goiaba , com 5 quilômetros, o Canal do Cabuçu e diversos outros pequenos canais ²¹³ . A sua escrituração, além do mais, era muito detalhada e nos permite, hoje, um completo inventário da forma como o trabalho era ali desenvolvido. Nela consta, por exemplo, a discriminação da rotina de trabalho diária das diversas turmas de escravos e seus revezamentos. Para se ter uma ideia de seu poder e influência, na cidade do Rio de Janeiro, basta dizer que o mosteiro dos beneditinos, em 1663, foi construído em grande parte graças aos seus donativos. Esse sucesso era devido igualmente a uma estabilidade de política administrativa não encontrada em outras fazendas brasileiras. Entre 1690 e 1759 a fazenda teve apenas dois administradores. Mas essa pujança econômica gerava, entre os brasileiros, como já pudemos observar, uma inquietude contínua. As tentativas de moralização da sociedade, feitas pelos inacianos, tinham como objetivo torná-la funcional. A organização dos empreendimentos expressava a objetividade dos valores, a preocupação absoluta com o bom funcionamento do todo. Considerando o caráter individualista dos agentes econômicos brasileiros, suas fragilidades morais, a pouca capacidade de renúncia em prol de objetivos maiores, não havia como comparar as eficiências, na média. Grande parte dos problemas entre brasileiros e jesuítas vinha de sentimentos de derrota e ressentimentos acumulados, presentes em uma economia fraca, rudimentar, com baixo capital cultural agregado, que ao invés de ver nos jesuítas um exemplo, via-os apenas como competidores. Nesse ponto o governo português, sob o Marquês de Pombal, introduziu uma nova mudança em uma política bicentenária. O sucesso empresarial jesuítico deixará de ser prioridade e de ser tratado como exemplo. Se vem da escolástica, da Igreja, de Deus, do Espírito, deixou de ser um sucesso. Se essa política era interessante ao Brasil, ou a Portugal, era questão que só o tempo poderia dizer. Mas a desarticulação desses negócios não deixava de ser um atentado contra os únicos empreendimentos realmente eficientes no Brasil.

212 LEITE , Serafim: História da Companhia de Jesus no Brasil , vol. VI , op.cit., p.57. 213 Idem , ibidem , pp.61-62 Destruindo a Companhia de Jesus Nessa linha, continuando a delinear um novo projeto para o Brasil , o Capitão-geral Francisco Furtado foi claro: [os jesuítas] se viram senhores absolutos desta gente e das suas povoações; como se foram fazendo senhores das maiores e melhores fazendas deste Estado, vieram a absorver naturalmente todo o comércio, assim dos sertões como o particular desta cidade, e vieram a cair os direitos reais e dízimos, e como consequência, a cair o Estado, sem remissão” ²¹⁴ . E, igualmente, “assim como não pagam direitos dos efeitos da terra também não pagam, com o pretexto das missões, nem o consulado e mercearia, em Lisboa, nem neste Estado a alfândega, e como não pagam direitos em parte alguma, se demonstra por um verdadeiro cálculo que na balança do comércio vem a ganhar os Padres de 80 por 100 contra os seculares [as pessoas comuns], e dele compreenderá V. Exa., o progresso que podem fazer os pobres comerciantes quando têm contra si o Corpo Poderoso [os jesuítas], com 80 por 100 de ganho certo no comércio contra eles”. A questão dos privilégios fiscais, portanto, aparece aqui como o elemento motor da ação econômica pombalina. Furtado atribui a isso o descompasso entre as atividades econômicas dos comerciantes locais e a dos jesuítas. E como nada se recebia dos jesuítas, por conta das isenções tributárias, a oneração sobre “os seculares” prejudicavam seus negócios. Considerando as deficiências orçamentarias de Portugal, era importante interromper esses privilégios para poder aumentar significativamente a arrecadação. E esse problema se estendia a todas as ordens religiosas, na verdade. Não porque buscavam a excelência gerencial, mas, em sua opinião, apenas por serem isentas de impostos. cada religião destas são senhoras das carnes, das pescarias, tanto de peixe como de tartarugas, porque todas são feitas pelas suas canoas e pelos seus índios, sem que haja uma só canoa que sirva ao público neste útil trabalho... todos os víveres são das Religiões, à exceção de alguma pequena parte que algum morador, ainda que raro, manda fabricar ²¹⁵ . Considerando a riqueza da Amazônia e a necessidade de controlar o escoamento dessa produção, bem como a introdução de escravos africanos, o Rei resolveu criar uma Companhia de Comércio privilegiada , uma

empresa de capital aberto, que exercesse o monopólio nas transações comercias externas da região. Em junho de 1755 foi criada, assim, a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, destinada “ao bem comum deste Reino e daquelas duas capitanias”. Foi-lhe concedido o referido comércio exclusivo, para que nenhuma pessoa possa mandar ou levar às sobreditas duas Capitanias e seus portos, nem deles extrair mercadorias, gêneros ou frutos… para que só ela possa exclusivamente introduzir os referidos escravos negros nas sobreditas duas Capitanias e vendê-los nelas pelos preços em que se ajustar ²¹⁶ . O Marquês de Pombal advertiu seu irmão da reação dos jesuítas, já que, em função da criação da Companhia de comércio, um jesuíta, Padre Manuel Ballester, pronunciou, em Portugal, violento sermão na Igreja de Santa Maria Maior, declarando que aqueles que aderissem à Companhia de Comércio “não seriam da Companhia de Cristo, antes seriam réprobos e condenados ao fogo eterno; de sorte que causou aquele temerário religioso aos ouvintes capazes de censura um notório escândalo” ²¹⁷ . Tal ato jesuítico foi acompanhado da manifestação dos comerciantes reunidos em torno da Mesa do Bem Comum , ligado a interesses do comércio na região amazônica e à Companhia de Jesus. O Rei recusou o protesto dos comerciantes e reprimiu o movimento, dissolvendo, posteriormente, a mesma Mesa . Neste mesmo documento, Pombal autorizou a repressão imediata daqueles que, porventura, ousassem se erguer contra a Companhia de Comércio na colônia: antes de se precipitarem em maiores absurdos sejam prontamente presos, postos em segredo, e nele perguntados, primeiro: se sabem que é crime de lesa-majestade dizer mal das leis de El-Rei, malquistando-as no conceito do povo ignorante? Porém, no caso não esperado de que a indômita soberba em que aí se acham há tantos anos esses Regulares... suceda ainda fazer-se qualquer tumulto que ameace maiores conseqüências, fareis prontamente prender os que forem cabeça da sedição, procedendo-se contra eles na conformidade das outras ordens que também recebereis para esse caso ²¹⁸ . Impossibilitados de reagir, com os negócios prejudicados desde o início das ações pombalinas, os jesuítas seriam atingidos pelos decretos do Cardeal Saldanha, nomeado, em abril de 1758, por Breve Papal , visitador e reformador geral da Companhia de Jesus. Um interventor. Seus poderes eram totais: o qual, sendo prévia e pleníssimamente instruído de todos e cada um dos sobreditos fatos, depois de os haver cuidadosamente considerado, nos referisse e declarasse o que a respeito deles achasse conveniente, para que nós com madura ponderação determinássemos o que oportuna e saudavelmente se houvesse de estabelecer ²¹⁹ .

Os decretos do Cardeal, de interesse do Marquês de Pombal, de maio e julho de 1758, tinham como objetivo desmontar a autoridade dos negócios jesuíticos. O primeiro seria o Mandamento de 15 de maio de 1758 , para “suspender o escandaloso comércio” dos jesuítas: A todos os que o presente virem, ou dela tiverem notícia, saúde e paz em Jesus Cristo. Desde a fundação da Igreja Católica foi proibido a todas as pessoas dedicadas ao sacerdócio macularem o seu santo ministério com a ingerência nos negócios seculares…. e assim foi por isso declarado no primeiro concílio da Igreja, enquanto ordenou que fossem privados de suas respectivas dignidades e exercícios os bispos, os presbíteros e os diáconos, que se implicassem nos negócios profanos. Continuava o Cardeal: por isso clamaram os sagrados cânones desde a primitiva igreja contra o abuso daqueles eclesiásticos, que sem pejo da lição evangélica, e sem temor de Deus, solicitavam estes indecorosos interesses mercantis, cuja reprovada torpeza consiste, na disposição das mesmas leis sagradas, em comprarem em um tempo por menos para venderem por mais em outro tempo. Definindo o que era comércio, o Cardeal estabelecia o que, precisamente, deveria ser proibido. Esse impedimento deveria ser rigidamente proibido a todos: Proibição que sendo comum a todos os eclesiásticos, adstringe muito mais apertadamente aos religiosos que são missionários, e que como tais missionários devam ter por único patrimônio a pobreza apostólica, e por único objeto o fervoroso zelo de alumiarem com a luz dos evangelhos aqueles que descansam na sombra da morte, habitando nas trevas da ignorância do verdadeiro Deus. É interessante, portanto, que, a mando de Pombal, que pretendia, supostamente, dinamizar a economia brasileira e portuguesa, fosse emitido um manifesto de cunho moral contra a implementação de atividades comerciais. Remete-se então o Cardeal a três bulas papais, a primeira delas a de Urbano VIII , de 22 de janeiro de 1633 que “proibe apertadamente assim a todos os religiosos, como aos mais eclesiásticos, principalmente de ordens sacras, a ingerência nos negócios seculares e nas negociações mercantis...”. A segunda a bula de Clemente IX , de 17 de junho de 1669, a qual proibia

pessoas eclesiásticas, assim clérigos seculares, como regulares, de qualquer estado, grau, condição e qualidade; e de qualquer ordem, congregação e instituto, assim de mendicantes e não-mendicantes, como da Sociedade de Jesus ...de nenhum modo façam comércios e negociações seculares e mercantis debaixo de qualquer pretexto, título, cor, inteligência, causa, ocasião e modo, nem ainda por uma vez somente, ou seja por si, ou pelos seus constituídos ou por outras pessoas, que para isso lhes deem auxílio. … ainda que seja a da Companhia de Jesus . Tal bula teria sido reafirmada por outra, de 25 de novembro de 1741. Além de proibir o comércio dos inacianos, o Mandamento ainda continha disposições no sentido de arregimentar provas quer para a condenação dos inacianos, quer para que se pudesse dimensionar a envergadura do comércio existente: mandamos outrossim, em virtude de santa obediência, e debaixo da mesma comissão … que no termo peremptório e preciso dos primeiros três dias... façam e venham declarar perante os nossos competentes sub-delegados; as negociações de câmbio de dinheiro; de transfretamentos de mercadorias... exibindo ao mesmo tempo... todos os cadernos e papéis, pertencentes às mesmas negociações, que se acharem na jurisdição ²²⁰ . Privados do comércio, os inacianos tiveram, a seguir, pelo edital de 7 de julho de 1758, suspensas as suas faculdades de confessar e pregar. “Havemos por suspensos do exercício de pregar em todo nosso patriarcado, aos Padres da Companhia de Jesus” ²²¹ . O desenrolar dos acontecimentos, favorável às proposições pombalinas, privou, sucessivamente, os jesuítas de suas missões e do controle dos índios e de seus mecanismos de capacitação financeira. Restavam-lhes apenas a preponderância sobre a educação nos centros brasileiros, que será suspensa pelo Alvará Régio em que se extinguem todas as Escolas reguladas pelo método dos Jesuítas e se estabelece novo regime , bem como as novas regras do ensino de humanidades. Emitido em junho de 1759. A reforma dos ditos “estudos menores” previa um novo quadro de professores, um imposto para subsidiar o sistema e a adoção de novos livros, proibindo-se os anteriores, utilizados pelos jesuítas. Também restavam, de forma evidente, as propriedades, urbanas e rurais. Eu não sei certamente a quantidade de gado que estas religiões tem naquela ilha (de Joannes) (Marajó) – escreveu Francisco Furtado em 1751 – , mas é certo e constante que é infinita, e que só este dízimo poderá aumentar muito as rendas atuais da Fazenda Real, a qual por estas e outras semelhantes usurpações que se lhe tem feito neste Estado, se reduziu aos miseráveis termos que eu tenho tido a honra de manifestar a V.Exa., a chegar até ao último ponto de se extinguirem os fundos reais e cair, em consequência, sem remédio, a substância do Estado ²²² .

Desde o princípio, portanto, era evidente que o gradual afastamento dos jesuítas, ou a sua virtual eliminação, colocaria nas mãos do Estado vasta riqueza patrimonial. Assim, ia se tornando o projeto pombalino para o Brasil um projeto predador. 214 “Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, do Pará, 21 de novembro de 1751” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.):op. cit. Vol.1. p.72. 215 Idem . Ibidem , pp.74-75. 216 “Instituição da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, 6 de junho de 1755” in CARREIRA , Antônio: A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. Vol. II : Documentos . São Paulo, Editora Nacional, 1988. pp.16-18 217 “Carta de Sebastião José de Carvalho e Melo de 4 de agosto de 1755” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.): op. cit. Vol. 2, p.785. 218 “Carta de Sebastião José de Carvalho e Melo de 4 de agosto de 1755” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.): op. cit. Vol. 2, p.788. 219 “Breve de 1 de abril de 1758 do Benedito XIV ... constitui o eminentíssimo e reverendíssimo Cardeal Saldanha, visitador e reformador geral da Companhia de Jesus nestes Reinos de Portugal e Algarves e todos os seus domínios” in SORIANO , Simão José da Luz: História do Reinado de El-Rei D. José e da Administração do Marquês do Pombal Tomo II . Lisboa, Universal, 1867.

220 “Mandamento do eminentíssimo e reverendíssimo Cardeal Visitador e Reformador geral, expedido em 15 de maio do mesmo ano de 1758 para suspender o escandaloso comércio, que o governo dos regulares da Companhia, denominada de Jesus, estavam publicamente fazendo nos referidos reinos e seus domínios” in SORIANO , Simão José da Luz: op.cit. pp.377-378. 221 “Edital que o eminentíssimo e reverendíssimo Cardeal patriarca de Lisboa publicou em 7 de julho de 1758, para suspender os religiosos jesuítas dos exercícios de confessar e pregar no seu patriarcado, como praticaram todos os outros prelados destes reinos” in SORIANO , Simão José da Luz: op.cit. p. 388. 222 “Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Pará, 23 de dezembro de 1751” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.): op. cit. Vol.1. p.132. Tragédias em Lisboa No dia de todos os Santos, 1 de novembro de 1755, um terremoto de grande magnitude atingiu a cidade de Lisboa. Ainda os prédios estavam desmoronando quando a cidade foi varrida por um tsunami, que causou estragos não só ali, mas em toda costa portuguesa, especialmente no Algarve. A cidade foi quase que totalmente destruída. Não se sabe exatamente o número de mortos, mas foi muito grande. Houve vítimas ao longo de todo litoral português e no Marrocos. O tsunami atingiu a costa da Inglaterra e devastou ilhas do Atlântico Norte e do Caribe. O maremoto deve ter atingido a costa do Maranhão. Esse acontecimento impressionou a todos. E propiciou material para muitas reflexões sobre os limites e potencialidades da razão humana, o lugar do homem no universo, a natureza de Deus. Não foram poucos os que viram naquilo alguma articulação misteriosa com as políticas que vinham emanando, aos poucos, do gabinete do Marquês de Pombal, com a assinatura do Rei. Muito cauteloso e preocupado, o primeiro ato do Rei D. José I foi pedir a Deus por Portugal. Apelou, especialmente, à intermediação de São Francisco de Borja, que era um santo jesuíta.

Pombal, no entanto, recusou-se a reconhecer no cataclisma qualquer advertência divina. Caracterizou o evento como natural e eliminou rapidamente um golpe que pretendia afastá-lo do poder. Convencido pelo seu ministro, o Rei reafirmou a confiança em sua política e concedeu-lhe plenos poderes para reconstruir a cidade ²²³ . O Padre Gabriel Malagrida já estava em Lisboa, e presenciou a tragédia. Além de missionário inspirado e iluminado no Brasil, junto aos índios e pessoas humildes, Malagrida também era uma personalidade admirada e respeitada na Corte. Exercia uma liderança espiritual expressiva entre algumas famílias de nobres. No período entre 1749 e 1751 circulou junto à família real. Acompanhou o Rei D. João V em seu leito de morte e ministrou a sua extrema-unção. Quando voltou ao Brasil, entre 1751 e 1754, foi nomeado, graças à intervenção da Rainha, membro do Conselho Ultramarino. O terremoto o impressionou profundamente. Logo em seguida aos acontecimentos, publicou o Juízo da verdadeira causa do Terremoto que padeceu a corte de Lisboa no primeiro de novembro de 1755 . Expressão de suas meditações e visões, o livro causou impacto em Portugal. Sem hesitações, Malagrida estabeleceu uma relação direta entre a ação misteriosa de Deus e aqueles acontecimentos: Sabe, pois, ó Lisboa … que os únicos destruidores de tantas casas e palácios, os assoladores de tantos templos e conventos, homicidas de tantos seus habitadores, os incêndios devoradores de tantos tesouros, os que as trazem ainda tão inquieta, e fora da sua natural firmeza, não são cometas, não são estrelas, não são vapores ou exalações, não são fenômenos, não são contingências ou causas naturais, mas são unicamente os nossos intoleráveis pecados. ... não faltaram também à infeliz Jerusalém os arrancos de terremotos estrondosíssimos, confederados com outros males, não menos formidáveis, porém tudo foi efeito, unicamente, de seus grandes pecados. Naquele momento terrível viu Malagrida uma punição divina para os pecados dos portugueses. E ele não tinha dúvidas sobre quais pecados se referia. Tudo mudou com a ascensão de D. José I e o espírito do tempo contaminou as consciências em Portugal. Malagrida atacou, portanto, esse Iluminismo para o qual Deus desaparecia da razão.

nem digam os que politicamente afirmam, que procedem de causas naturais... porque é certo se me não fosse censurado dizer o que sinto destes políticos, chamar-lhes ateus, porque esta verdade conheceram ainda os mesmos gentios... nas quais ensinam que não têm outra causa os terremotos mais que a indignação divina, e por esta razão lhe chama Vim Divinam . Não sei como se possa atrever um sujeito católico a atribuir unicamente a causas e contingências naturais a presente calamidade deste tão trágico terremoto? Não sabem estes católicos que este mundo não é uma casa sem dono? Não sabem que há previdência em Deus? Assim, para Malagrida, respondendo a Pombal e seus associados, mais do que afirmar que Deus era o autor da tragédia, era importante reconhecer que os homens, a natureza e Deus eram elementos integrantes de uma mesma realidade. E que “causas naturais” não eram acontecimentos isolados, descolados de uma totalidade maior, mas sim dependentes de outras causas, cujo mistério repousava em Deus. Malagrida sustentou também uma argumentação política, defendendo que este era o momento de se valorizar a posição da Igreja. Deviam todos se voltar “ao sentir da Igreja, que é, sem dúvida, a que se deve ouvir e seguir, como mestra indubitável... e pode unicamente acertar na inteligência dos seus fins”. Por fim, afirmou que tudo aquilo fora profetizado por “uma serva” de Deus, e que seria difícil, no atual estado de coisas, Portugal furtar-se a novas catástrofes: Nem faltaram também nesta ocasião as profecias, com que a benignidade de Deus nos avisou antecipadamente deste castigo, para que o acatássemos, à semelhança dos ninivistas, com o arrependimento. Cinco vezes sei eu por notícia certa, a revelou a uma sua serva, que obrigada do mesmo Senhor, o comunicou ao seu Padre espiritual, para que, calando o seu nome, o participasse... Ora, nesta relação não consta claramente que o mesmo Senhor lhe revelou estava notavelmente indignado contra os pecados de todo o Reino e principalmente, ó Lisboa, contra os teus? E que fez o Reino? E que fizeste tu, para atalhar o castigo tão claramente ameaçado? ... Deus revelou que estava gravemente irado pelos pecados de todo Reino e muito mais de Lisboa, e consequentemente, que havia de fulminar um grande castigo... Mas como hão de humilhar-se e buscar a Deus com a penitência, se dão ouvido a estas perniciosas doutrinas, de que todos os extermínios que experimentamos são efeitos de causas naturais e não castigos de Deus pelas nossas culpas! ²²⁴ Assim, a tragédia continuaria, porque a insistência nas “perniciosas doutrinas” conduzia Portugal para a catástrofe. Ao contrário de outros analistas, muito restritos em suas avaliações, geralmente circunstanciais e localizadas, Malagrida entendia que o problema maior estava no pensamento iluminista e nas deformações que ele introduzira no pensar e no agir. Rompendo-se a crença em Deus, afastando-se os homens das virtudes, tudo de ruim deveria ser esperado a partir de então.

Pombal ficou enfurecido com o texto. O Ministro do Reino agiu violentamente e conseguiu, através do Núncio, a prisão de Malagrida. O panfleto, considerado sedicioso, foi queimado em praça pública. Exilado em Setúbal, Malagrida continuou vaticinando catástrofes e pregando contra a ordem instalada por Pombal. Apesar dessas e semelhantes reações e ameaças, o governo continuou sua escalada antijesuítica. Quando, em 1757, foram publicadas as decisões que retiravam dos jesuítas o poder temporal sobre os índios, a situação na Corte agravou-se. Em 20 de setembro do mesmo ano, o Rei recusou-se a conversar sobre esse e outros assuntos com seu confessor, o jesuíta José Moreira, e ordenou a expulsão de todos os inacianos do Palácio. Como seria explicado mais tarde, tomou El-Rei nosso senhor a necessária resolução de mandar sair do paço os confessores, para também desarmar os ditos religiosos da força que lhes davam os confessionários de suas majestades e da real família, para atropelarem os ministros e os cidadãos com medo ²²⁵ . Afastando os confessores jesuítas dissolvia-se a influência que poderiam exercer sobre as decisões reais. Perdiam o controle dos acontecimentos. Mas mais um acontecimento desempenhou um papel decisivo no processo. Em 3 setembro de 1758, quando o Rei voltava da casa de sua amante, a esposa do Marquês de Távora, sua carruagem foi atingida por tiros. Gravemente ferido, o monarca foi internado e a rainha assumiu a regência. Teve início uma investigação e, durante o mês de dezembro, vários membros da alta nobreza foram presos. Entre eles duques, marqueses e condes, muitos parentes da amante do Rei, integrantes da família Távora. O número total de prisioneiros, no entanto, chegou a mais de mil. Violentamente interrogados, os principais líderes confessaram a premeditação do regicídio. Em 12 de janeiro de 1759, com o rei já em processo de recuperação, o Duque de Aveiro e diversos membros da família Távora foram condenados a execuções infames. O Duque de Aveiro, considerado mandante, foi esquartejado vivo, seus membros esmagados, expostos numa roda. Seu corpo foi queimado e suas cinzas lançadas ao mar. Outros foram condenados a morrer na roda, seus corpos quebrados com malhos, estrangulados e decapitados. O assim chamado “processo dos Távora” assinalou o divórcio entre parte significativa da alta nobreza e o Rei. A partir de então, tendo suas principais lideranças mortas ou desmoralizadas, a oposição dos grupos tradicionais às reformas pombalinas viu-se drasticamente reduzida. A ditadura pombalina estava consolidada.

No aspecto que nos interessa, é necessário anotar que no quarto dia de interrogatório, já depois de confessado o crime, e estando os investigadores procurando encontrar outros mandantes do atentado, o duque de Aveiro confessou que a ideia do regicídio lhe viera dos jesuítas ²²⁶ . Segundo o que foi apurado, os jesuítas de comum acordo nas conferências, que com o mesmo réu [o duque de Aveiro] se tiveram em Santo Antão, em São Roque e na sua própria casa, que o único meio, que havia para se efetuar a mudança do governo do Reino, que fazia o comum, ambicioso e detestável objeto dos mesmos confederados, era o de se maquinar a morte de El-Rei nosso senhor. Continuando todos a tratar em comum sobre este sacrílego e infame projeto, prometendo os mesmos religiosos indenidade ao dito réu na execução daquele infame parricídio, com a reflexão de que tudo se havia de compor, logo que acabasse a preciosíssima e gloriosíssima vida de Sua Majestade, opinando os mesmos religiosos que não pecaria nem levemente, quem fosse parricida do mesmo senhor... ²²⁷ . As confissões também deram conta que na conspiração estiveram presentes o Padre Malagrida e os jesuítas Padres João de Matos e João Alexandre. Estes estimularam o regicídio, pois teriam declarado que já estavam absolvidos, desde já, os executores do atentado. A informação de que a ideia do regicídio partiu dos jesuítas e foi legitimada por eles foi recebida com gravidade nos meios pombalinos e explicaria, entre outras coisas, as visões que Malagrida continuaria a ter em Setúbal, sobre próximas catástrofes em Portugal. No dia seguinte à execução dos Távoras, 14 de janeiro de 1759, foram presos oito jesuítas, entre eles Gabriel Malagrida. Levado ao próprio Pombal, foi inquirido pelo ministro sobre se “estava sabedor do que se tramara contra os dias de nosso augusto soberano?”. Malagrida confirmou que sim, estava. E esclareceu: “Com efeito, uma voz interior me tinha dito que o Rei correria perigo em época desconhecida para mim. Entendi ser meu dever prevenir Sua Majestade” ²²⁸ . Neste momento, o fim da Companhia de Jesus já estava esboçado. Mas a tragédia dos jesuítas era também a do Brasil. 223 AZEVEDO , João Lúcio: O Marquês de Pombal e sua época . Lisboa, 1969. p.176 224 “Juízo da verdadeira causa do Terremoto que padeceu a corte de Lisboa no primeiro de novembro de 1755” in Muri, Padre Paulo: História de Gabriel Malagrida da Companhia de Jesus. Lisboa, Mattos Moreira, 1875. pp. IX -

XII . 225 “Instrução dirigida a Francisco de Almada de Mendonça, 10 de novembro de 1758” in SORIANO , Simão José da Luz: História do Reinado de El-Rei D. José e da Administração do Marquês do Pombal Tomo II . Lisboa, Universal, 1867. p. 369. 226 AZEVEDO , João Lúcio: O Marquês de Pombal e sua época . Lisboa, 1969. p.218. 227 “Sentença condenatória do Duque de Aveiro, Marqueses de Távora e outros mais indivíduos, proferida em 12 de janeiro de 1759” in SORIANO , Simão José da Luz: op.cit., p.227. 228 in Muri, Padre Paulo: História de Gabriel Malagrida da Companhia de Jesus . Lisboa, Mattos Moreira, 1875. pp. IX XII . Interrompendo o crescimento do Brasil No dia 3 de setembro de 1759, o Rei de Portugal, D. José I, declarou, solenemente, que considerando “o horroroso insulto perpetrado na noite de 3 de setembro do ano próximo precedente, com abominação nunca imaginada entre os portugueses”, havia por bem entender os jesuítas “na referida forma corrompidos; deploravelmente alienados do seu Santo Instituto e manifestamente indispostos com tantos, tão admiráveis, tão inveterados e tão incorrigíveis vícios”. Assim os tinha “por notórios rebeldes, traidores, adversários e agressores, que tem sido e são atualmente contra a minha real pessoa e estados, contra a paz pública dos meus reinos, e domínios e contra o bem comum dos meus fiéis vassalos; ordenando que como tais sejam tidos, havidos e reputados”.

E, portanto, hei desde logo em efeito desta presente lei por desnaturalizá-los, proscritos e exterminados. Mandando que efetivamente sejam expulsos de todos os meus reinos, domínios, para neles mais não poderem entrar, e estabelecendo debaixo de pena de morte natural, e irremissível e de confiscação de todos os bens para meu fisco e câmara real, que nenhuma pessoa de qualquer estado e condição que seja, dê nos mesmos reinos e domínios entrada aos sobreditos regulares... ²²⁹ . Em 25 de novembro de 1759, todos os bens da Companhia foram confiscados. O que culminava as medidas legais na direção do encerramento do problema. No decreto de expulsão, no entanto, o Rei aborda como isso tudo se inseria no problema brasileiro, propriamente dito: procurei aplicar todos quantos meios, a prudência e a moderação podiam sugerir, para que o governo dos regulares da Companhia denominada de Jesus, das províncias deste Reino, e seus domínios, se apartasse do temerário e façanhoso projeto, com que haviam intentado, e clandestinamente prosseguido: a usurpação de todo o Estado do Brasil, com tão violento progresso que, não sendo pronta e eficazmente atalhado, se faria dentro do espaço de dez anos [o Brasil] inacessível e insuperável a todas as forças da Europa unida. A ideia de que o projeto jesuítico era um projeto de “usurpação” do Brasil é bem interessante. Primeiro, porque reconhecia que os inacianos trabalhavam para dar consistência à sociedade brasileira, isto é, para torná-la funcional e integrada. Ou autônoma, organizada em torno de objetivos maiores e em prol do seu bem comum. E o Rei encarava esse trabalho de forma muito otimista, pois previa dez anos para a emergência do país autônomo. E o visualizava como “inacessível e insuperável a todas as forças da Europa unida”. Como podemos observar ao longo desse estudo, na verdade as dificuldades do projeto jesuítico eram muito grandes e as resistências ao seu desenvolvimento contínuas e crescentes. Logo, é provável que esse otimismo fosse um pouco exagerado. Mas, de fato, o sucesso da integração moral representaria, no Brasil, a construção de uma sociedade muito superior ao que os mesmos inacianos tinham obtido de forma efêmera no Paraguai e mais interessante do que aquilo alcançado no México. Principalmente porque os elementos de integração entre diferentes grupos, no Brasil, mesmo considerando a sua hierarquia e compartimentação, eram mais presentes e atuantes do que no Paraguai e no México. Era um país colonizado por portugueses, e não por espanhóis. E esse era um ponto nevrálgico na questão da moralidade social.

Como anotou Gilberto Freire, os brasileiros se interessavam sobremaneira pela cultura dos que estavam na base da sociedade. Então, mesmo mantendo os grupos separados, como no México, certamente teríamos, com o tempo, a presença constante de uma tradição de conciliação e interesse social. Um outro aspecto de ação pombalina, não diretamente ligado ao Brasil, mas que acabou tendo seus efeitos na sociedade brasileira, foi a posterior Lei de 25 de Maio de 1773. Por ela, foram eliminadas as diferenças entre cristãosnovos e cristãos-velhos. É claro, hoje, que, dentro da sociedade brasileira até aquele momento, a comunidade de cristãos-novos se constituía num tipo de comunidade moral. Onde os agentes individuais possuíam algum sentimento de pertencer a uma coletividade que limitava, de diferentes formas e em distintos graus, a expansão de determinadas ações particulares. O aprendizado moral, portanto, dentro do universo dos cristãos-novos, embora não necessariamente convergisse com a submissão moral mais ampla, própria da ação jesuítica, era experiência que podia representar liderança, na ausência dos inacianos. O fim dessa comunidade também eliminou um outro vetor relevante que poderia, com o tempo, representar um eixo de consistência. Um segundo ponto de interesse, na afirmação do Rei, sobre a “usurpação”, dizia respeito à ideia, subentendida, de que reis anteriores permitiram, de forma negligente, o desenvolvimento do projeto jesuíta, sem atentar para suas consequências. Enchendo a Companhia de vantagens e privilégios. Essa avaliação aproxima a relação de Portugal e Brasil àquela do Reino Unido com as treze colônias inglesas. É noção aceita que a Coroa britânica foi algo negligente com a colonização na América. Só atentou para o fato de que as treze colónias tinham se tornado uma sociedade moralmente integrada, autônoma, quando quis exercer sua autoridade. O que conduziu à independência dos Estados Unidos da América. Sem o saber, já que faltavam 17 anos para a declaração de independência dos EUA , o Rei ponderava sobre os riscos que poderiam advir de uma sociedade construída para ser sociedade civil, onde valores e princípios universalmente aceitos servissem como referência para ações sociais. Como era o projeto jesuítico. Certamente o Rei não podia saber o futuro de sociedades que ainda não tinham emergido. Mas sendo o Brasil algo parecido com (o que chamamos hoje) um México, ou com um Estados Unidos da América, ambas sociedades com grande grau de desenvolvimento civil, nada poderia impedir sua fortaleza.

Assim entendeu o Rei. E agiu prontamente para evitar tal acontecimento. Em grande parte, porque, realmente, como comprovaria o Reino Unido dentro de alguns anos, tais riscos de fato existiam. 229 “Lei da Expulsão da Companhia de Jesus de Portugal e seus domínios 3 de setembro de 1759” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de: O Marques de Pombal e o Brasil. São Paulo, C.E.N., 1960. p.59. Expulsando os jesuítas Em meados de 1759, segundo Caeiro, correu pelo Brasil o boato de que o Rei D. José I e o Marquês de Pombal teriam sido assassinados, e que o infante D. Pedro assumira o poder. As comunicações eram muito precárias naqueles tempos e qualquer boato se espalhava com rapidez, rapidez da época, é claro. Tais acontecimentos, a serem verídicos, concluiu-se, reverteriam a situação política portuguesa, colocando-a a favor dos jesuítas. Muitos administradores coloniais, comprometidos com as reformas antijesuíticas, foram então tomados de cautela ²³⁰ . Desde a expulsão dos jesuítas de suas missões e da tentativa de assassinato do Rei, muitas autoridades no Brasil, bem como muitos brasileiros, vinham tomando atitudes de hostilidade contra a Companhia de Jesus. Tal reviravolta política ameaçaria figuras importantes da administração local. Esse murmúrio, no entanto, revelou-se infundado. Em 30 de outubro de 1759 chegaram, finalmente, primeiro ao Rio de Janeiro, as naus que traziam a Lei da Expulsão da Companhia de Jesus de Portugal e seus domínios e outras ordens. Em 3 de novembro, passado o feriado de Finados, é claro, o Governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire, Conde Bobadela, totalmente inteirado da situação, determinou, conforme instruído, o cerco ao Colégio do Rio de Janeiro, no Morro do Castelo. Foi ordenada a prisão, nele, dos jesuítas ali presentes, bem como a sua incomunicabilidade. “Para o seu sustento” fez por bem conceder-lhes uma pensão individual de três moedas de prata. No mesmo dia, foram trazidos presos, ao Colégio, seis jesuítas que cuidavam da fazenda do Engenho Velho, nos arredores da cidade. Nos dias seguintes começaram a chegar jesuítas aprisionados em fazendas e em outros Colégios das capitanias próximas, segundo as ordens do Governador. Foram quatro jesuítas de São Cristóvão, um de Campos Novos, seis da fazenda de Santa Cruz, dois da fazenda de Macacu, dois da de São Barnabé.

No dia 11 de novembro aportou no Rio de Janeiro uma nau da Companhia de Jesus. Trazia ela 16 jesuítas do Colégio da Bahia. Perplexos com o que estava acontecendo na cidade e surpreendidos com a prescrição da Ordem, foram todos imediatamente presos, levados ao Colégio, e a nau foi confiscada ²³¹ . As ordens dadas pelo Rei a Bobadela o investiam de poderes discricionários para promover a expulsão dos jesuítas: Vos concedo o Alto e Supremo Poder, Jurisdição e Alçada que necessária for para fazer prender e sentenciar nessa Relação verbalmente de plano, sem figura de juízo , e somente guardados os termos do Direito Natural e Divino da verbal audiência dos réus ... e fazerdes executar as sentenças contra eles proferidas no mesmo dia em que se proferiram; não obstante quaisquer opiniões que tenham não serem os ditos casos de devassa, e que não concorra o número de testemunhas que a lei determina e o espaço de tempo por ela determinado ... e sem embaraço de quaisquer leis, regimentos, disposições de Direito comum e Pátrio, Ordens, Estilos ou Costumes contrários, que tudo Hei por derrogado para este efeito somente ²³² . Totalmente excepcionais, portanto, os atos de expulsão eram sumários, sem instauração de processos e sem levar em consideração qualquer lei, todas suspensas “para este efeito somente”. No final de 1759 e em princípios de 1760, na lentidão própria dos meios de comunicação e transporte da época, diversos contingentes de jesuítas das capitanias do Sul continuaram a chegar ao Rio de Janeiro. Ao chegar eram imediatamente encaminhados para detenção no Colégio. Em 26 de novembro de 1759 onze jesuítas foram embarcados de Santos com destino ao Rio de Janeiro, chegando à cidade no dia 7 de dezembro. Neste dia também chegaram, aprisionados, três jesuítas da fazenda de Campos Novos, de Cabo Frio. O Colégio do Espírito Santo, que estava sob a jurisdição do bispado do Rio, só foi cercado, e ali encarcerados seus 16 jesuítas, em 4 de dezembro de 1759. Embarcados para o Rio em 22 de janeiro de 1760, desembarcaram no dia 26. Em 15 de dezembro de 1759 chegaram dois jesuítas, da fazenda de Macaé. Em 1 de janeiro de 1760, mais dois, das fazendas de Campos dos Goitacazes. Em 24 de janeiro mais 17, de Campo Santo. Os jesuítas do Colégio de São Paulo, em número de 23, chegaram ao Rio em 2 de fevereiro. O último contigente a chegar foi o de cinco jesuítas de Paranaguá, a 12 de março ²³³ . Os jesuítas que se achavam em Colônia do Sacramento, no Rio da Prata, e na ilha de Santa Catarina foram deportados posteriormente. No Rio, o Bispo Antônio do Desterro, beneditino, foi nomeado reformador dos jesuítas em 4 de janeiro de 1760. Preparou então várias prédicas antijesuíticas, que contaram com solidariedade nos meios eclesiásticos.

Muito embora o Bispo de São Paulo, Antônio Galvão, franciscano, tenha evitado tomar posição no caso, algumas ordens, como a dos carmelitas, por exemplo, cortaram totalmente, e de forma hostil, relações com a Companhia. Zeloso de seu poder, o Bispo Antônio do Desterro não tolerou oposições ou restrições de qualquer natureza aos seus atos. Como prova de sua autoridade, e para demonstrar a total submissão dos jesuítas, no dia 15 de março, com os religiosos já embarcados no navio que os levaria para o exílio, ordenou que quatro deles fossem desembarcados. Esses quatro tinham manifestado publicamente objeções quanto a autoridade do Bispo em reformar a Ordem. À vista da população foram espancados no cais, e novamente embarcados. Nesse mesmo dia, lotado, com cerca de 120 jesuítas, a nau zarpou do Rio de Janeiro em direção à Lisboa. Em Pernambuco, o Governador Luiz Diogo Lôbo da Silva vinha cumprindo à risca todas as disposições pombalinas. Já em maio de 1759, ordenara a vigilância armada do Colégio do Recife e o fechamento de todas as escolas jesuíticas. Em junho administrou o processo de secularização das aldeias cearenses de Caocaia, Paupina, Paragamba, Paiacu e Ibiapaba, sendo que esta última, missão histórica, que vinha de princípios do século XVII , contava com “cinco mil fogos”. Ou cinco mil lares. Ordenou que os jesuítas que as cuidavam fossem levados detidos para o abrigo cearense. Em 4 de novembro, cumprindo as decisões de Lisboa, determinou a prisão e incomunicabilidade dos jesuítas, no caso com a pensão de um tostão individual para alimentação. No dia 13 de dezembro foi fechado o Colégio da Paraíba e os jesuítas embarcados para Recife. Em 24 de dezembro foi decretada a expulsão dos jesuítas que estavam no abrigo do Ceará para a capital pernambucana. Os mesmos, embarcados a 9 de fevereiro, chegaram a Recife em 1 de março de 1760. Também no dia 9 de fevereiro, os 21 jesuítas de Olinda, há meses prisioneiros, foram levados para Recife, onde se juntaram aos demais. Os franciscanos, apiedados, esmolaram pelos jesuítas, mas não houve qualquer manifestação de oposição ao ato em nenhum lugar. No dia 5 de maio de 1760, afinal, os cerca de 53 jesuítas cativos partiram de Recife para Lisboa. Embarcaram na mesma nau da Companhia expropriada por Gomes Freire no Rio de Janeiro ²³⁴ . Na Bahia, os decretos de prisão e expulsão chegaram no dia de Natal, 25 de dezembro de 1759. Naquela mesma noite, quatro arcas de ouro que estavam em poder dos jesuítas foram levadas para o convento dos franciscanos. Os rumores, que se espalharam por Salvador, diziam ser estas parte do célebre tesouro dos jesuítas, que assim era poupado da expropriação.

Segundo Caeiro, tratava-se apenas do “erário público, que por ordem real se achava depositado e confiado à guarda dos jesuítas”, sendo passado aos franciscanos “por parecer do juiz forâneo” ²³⁵ . Este detalhe é interessante, pois por ele podemos ter a dimensão do poder que os jesuítas exerciam na sociedade colonial. No caso, essa autoridade lhes permitia zelar pela própria fazenda real. Apesar de todo estremecimento entre Estado e Companhia nos últimos anos, portanto, pelo menos na Bahia a guarda do Erário esteve nas mãos dos jesuítas até o último momento. Somente quando as determinações reais não deixaram mais dúvidas sobre a ruptura entre a Coroa e os religiosos, os cofres de ouro foram retirados do Colégio. O Vice-Rei, Marques do Lavradio, no dia seguinte, ordenou a invasão do Colégio, da casa professa, do seminário urbano, bem como a prisão e a incomunicabilidade dos Padres, apregoando suas decisões “em praça pública sob toque de tambores e cornetas”. Estabeleceu a pensão de três tostões diários por Padre para seu sustento. No mesmo dia foi entregue ao desembargador Berquó a quantia que a Ordem dispunha em caixa, cerca de 1200 escudos romanos. Alguns dias depois foi decidida a expulsão dos noviços da Ordem. Chamados nominalmente à portaria do Colégio, “foram, entre lágrimas e gemidos, despojados à força dos hábitos da Companhia e, vestidos só com as roupas interiores, postos fora da Casa”. Eram 21, sendo 17 escolásticos e quatro coadjutores. Foi também comunicado que aqueles que ainda não tinham feito os quatro votos tinham o direito de abandonar a Companhia ²³⁶ de maneira a cumprir o estabelecido na Lei de Expulsão : E havendo respeito a ser muito verossímil que nela [a Companhia de Jesus] possa haver alguns particulares indivíduos daqueles que ainda não haviam sido admitidos à Profissão Solene… permito que todos aqueles dos ditos particulares que houverem nascido nestes Reinos e seus domínios, ainda não solenemente professos... lhes relaxe os votos simples que nela houverem feito ²³⁷ No dia 9 de janeiro os restantes foram transferidos para a casa do noviciado, onde, com a expulsão já decretada, ficaram aguardando os jesuítas de outras localidades que chegavam prisioneiros. Durante o mês chegaram a Salvador jesuítas do Seminário de Belém (Cachoeira), de Porto Seguro, e aqueles que estavam no Engenho da Pitanga e no Engenho de Cotegipe. Foi dado aos prisioneiros nova oportunidade para decidir pelo pedido de demissão da Companhia. Diante do navio no qual seriam embarcados, cerca de 44 jesuítas abandonaram imediatamente a Ordem. Os restantes “foram atirados para os porões ... dentro tudo era escuridão e o aperto e o calor eram quase insuportáveis” ²³⁸ .

No dia 21 de abril de 1760, com cerca de 122 jesuítas a bordo, a nau partiu de Salvador rumo a Lisboa. No Grão-Pará e Maranhão as notícias das prisões no Brasil e do desterro dos jesuítas portugueses foram sabidas apenas em princípios de maio de 1760. A situação na região era muito tensa. Principalmente porque os interesses em torno dos índios ali tinha envolvido outras ordens religiosas, que também exerciam algum tipo de tutela dos nativos. Naquele ano já tinham sido expulsos 18 frades de São José, cinco de Santo Antônio e três do Carmo. Ainda era viva a memória da expulsão dos 40 capuchinhos, em 1757. O Bispo do Pará, Miguel Bulhões, reformador da Ordem, desentendeu-se com o Bispo do Maranhão, Frei Antônio de São José, agostiniano, que tinha uma posição de defesa dos jesuítas. Frei Antônio viu-se forçado a afastar-se de São Luiz. Disposto a demonstrar sua autoridade sobre os jesuítas, Bulhões chegou mesmo a nomear, para escândalo dos jesuítas, um vicesuperior para a vice-província do Maranhão. As ordens régias só chegaram, no entanto, em duas naus, a 7 de junho de 1760. As duas atracaram primeiro em São Luís, donde uma zarpou em direção a Belém. No mesmo dia o Colégio de São Luís foi cercado. A ordem para prisão dos jesuítas chegou na capital do Estado, Belém, em 16 de junho de 1760. O Colégio e o Seminário foram invadidos e, no dia seguinte, ordenou-se a leitura em praça pública do decreto da expulsão. A 18 de junho começaram a ser presos os jesuítas que atuavam nas fazendas do Colégio. Em 12 de julho embarcaram os jesuítas maranhenses presos para Belém, onde chegaram a 26. Por ordem do reformador da Companhia, o Bispo, os que ainda não tinham feito os quatro votos estavam dispensados da Ordem. No dia 12 de setembro, com cerca de 110 pessoas a bordo, a nau partiu para Lisboa. Como o Bispo Bulhões viajou junto dos deportados, foi autorizado aos mesmos banhos de sol diários durante a travessia, a fim de se evitarem epidemias. Os jesuítas que atuavam nos distantes sertões de Goiás e Piauí só chegaram a Belém e a Salvador depois da expulsão geral e foram deportados posteriormente ²³⁹ . A nau que partiu do Rio foi a primeira a chegar em Lisboa, no dia 8 de junho. Ali aguardou as outras naus. A da Bahia atracou no Tejo em 13 de junho e a do Recife no dia 26. No dia 28, cerca de 265 jesuítas estrangeiros foram embarcados no navio que os levaria para o exílio na Itália, os demais permaneceram presos em Lisboa.

Os exilados estrangeiros chegaram em Gênova a 21 de julho, e a 15 de agosto de 1760 a Roma, onde foram abrigados no palácio do Duque de Soia. Os jesuítas do Grão-Pará e Maranhão chegaram a Lisboa a 1 de dezembro de 1760 ²⁴⁰ . O número de jesuítas no Brasil estava em torno de 600. Algo em torno de 443 foram expulsos nos atos principais. Assim, em poucos meses, de forma súbita e violenta, terminavam 210 anos de predomínio jesuítico no Brasil. 230 Caeiro, José: op.cit., p. 539. 231 FAZENDA , Vieira: Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro . Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1921. p.117 232 “Carta de 4 de novembro de 1759 ao Conde de Bobadela” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de: O Marques de Pombal e o Brasil. Op.cit., p.48. 233 Caeiro, José: op.cit. 234 Caeiro, José: op.cit. 235 Caeiro, José: op.cit., p. 76. 236 Caeiro, José: op.cit., p. 81 237 “Lei da Expulsão da Companhia de Jesus de Portugal e seus domínios 3 de setembro de 1759” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de: O Marques de Pombal e o Brasi l. op.cit. p.62. 238 Idem , ibidem , p.125. 239 “Memória da Província do Piauí” in Revista do Instituto Historico e Geográfico Brasileiro tomo XX ., p.32. 240 Caeiro, José: op.cit. Gabriel Malagrida e o relativismo moral

Enquanto essas coisas aconteciam , Gabriel Malagrida estava preso em Lisboa. Decidido a executá-lo, Pombal esbarrou, no entanto, na oposição da Santa Sé. O Papa Clemente XIII recusou-se a conceder a necessária autorização. Sem encontrar outra saída, em 15 de junho de 1760 o Rei determinou a expulsão do Núncio de Portugal e em 2 de julho, em contrapartida, todos os diplomatas portugueses foram expulsos de Roma ²⁴¹ . Rompido com a Santa Sé, Pombal viu-se livre para agir, colocando toda a Igreja sob o poder pessoal do Rei. Nomeou seu outro irmão Paulo António de Carvalho e Mendonça (1702-1770) como Cardeal Inquisidor Geral e passou a controlar pessoalmente todo o processo. Prisioneiro, e aguardando as decisões finais da Inquisição, Malagrida recolheu-se a uma existência contemplativa e mística. Tinha nascido na Europa, viveu muitos anos nas florestas do Brasil, entre os índios, e, naquele momento, detido na fortaleza de Junqueira, elaborou uma teoria geral sobre os acontecimentos que envolvia não Portugal e Brasil, mas sim o mundo. Um empregado, certo dia, na prisão, “viu-o de pé em meio à cela, o rosto voltado para a janela, perguntando: “Quem me chama? Quem fala comigo?” ²⁴² Passou a ouvir vozes, que alegou serem da “Virgem santíssima e seu Filho”. Assim movido, escreveu pelo menos dois livros. Um deles foi o Vida e Império do Anticristo . Como testamento político, o Vida e Império do Anticristo é uma análise de seu tempo e dos acontecimentos que vivia. Sob a forma de narrativa apocalíptica. Era também profecia. Sua visão projetava-se no futuro, para muito além das circunstâncias de meados do século XVIII . De fato, ele pretende retratar o mundo no final do processo em que vive: “não sabem os infelizes para onde correm” ²⁴³ Em linhas gerais, Malagrida trata, em seu livro, do último Anticristo, daquele que precederá o final dos tempos. Tal final é estabelecido como tendo início no século XX . Entre 1920 e 1999 nascerão, segundo sua visão, os familiares, a mãe, e o próprio Anticristo. Malagrida afirmou seu nascimento na Itália, em 1999, filho de uma monja e de um Padre “sacerdote, e sacerdote religioso” ou “o próprio diabo” ²⁴⁴ . Considerando em sua época o grau de aproximação entre membros da Igreja e os novos ideais iluministas, projetou o desenvolvimento, no futuro, de uma desagregação doutrinária que enxergava no seu presente. Tratava-se, portanto, de um entendimento sobre a natureza do movimento geral de submissão da Igreja aos temas seculares. E seus trágicos desdobramentos.

Mas Malagrida explicou que o Anticristo, e sua mãe, logo se mudarão da Europa para o Cairo, onde “os próprios demônios os servirão e fornecerão alimentos”, onde será criado ²⁴⁵ . Mesmo vivendo em área muçulmana, a religiosidade do Anticristo apresenta uma sutil ambiguidade: “Não recusará os ritos religiosos dos turcos, dos árabes e também dos judeus, mas tudo como engano e fingimento e encobrir melhor seus projetos e alcançar seus objetivos, não porém por convencimento”. Isto é, Malagrida sustentou que, na verdade, o que caracterizaria o Anticristo é o não ter religião. “Nunca experimentará algo bom e divino” ²⁴⁶ . O Anticristo, portanto, é a representação de uma condição sem Deus, sem subjetividade religiosa. De um mundo ateu, de mentiras sobre a lógica de entendimento do mundo. Segundo Malagrida, o Anticristo, tendo nascido em 1999, começará aos 18 anos sua jornada de conquistas, pela Arábia. Aos 25 anos terá domínio sobre bárbaros e árabes. Fundará uma cidade que reunirá pessoas de todas a origens “povos de toda parte”… “não deixará nenhum povo viver em paz e tranquilo… misturará sempre direitos e costumes… permitirá que cada um continue em sua fé e lei, afirmando que todas as leis estavam certas e eram úteis para a salvação” ²⁴⁷ . Malagrida entendeu a sociedade do Anticristo, portanto, como uma sociedade pluralista. Onde todas as posições religiosas estavam certas. O pluralismo religioso, a seu ver, é o meio pelo qual ele irá estabelecer seu domínio, sua “guerra sacrílega contra a religião” ²⁴⁸ , pois através dele perseguirá os sacerdotes, os submeterá ao direito secular, os acusará de crimes. O Anticristo seria, acima de tudo, assim, um defensor do relativismo moral. Estando preso, Malagrida considerava, portanto, que ele próprio era a primeira vítima de uma sequência ininterrupta de violências, das quais a perseguição à Companhia de Jesus representava um modelo. A liberdade religiosa, a crença na legitimidade de todas as crenças, prefigurava o fim futuro da religião. O processo em que vivia iria, no futuro, propiciar o surgimento de uma sociedade absolutamente nova. Esta seria habitada por “uma multidão quase infinita de filhos, muito malcriada e educada por tão péssimos costumes e exemplos que não reconheça mais nem Roma nem Itália” ²⁴⁹ . “Os cristãos que sobrarem, em lugar de resistir com força e sofrer a morte … fugirão espantados de medo…” ²⁵⁰ . Ou seja, a pluralidade de costumes, legalizada, destruirá aos poucos o reconhecimento da identidade religiosa, e os cristãos simplesmente cederão, como estavam, naquele momento, século XVIII , cedendo. O colapso da autoridade tornará as pessoas fracas, corrompidas. E, por fim, segundo ele, o Anticristo alcançará seu objetivo final:

transformará templos em estábulos de cavalos e outros arrasará ao solo ²⁵¹ . substituirá [os altares cristãos], com novos altares e retratos daquelas antigas divindades falsas dos pagãos: aqui Saturno, ali Mercúrio, mais adiante Marte… no Vaticano será colocada uma Venus desnuda e a mais impudica, cercada por muitos lascivos concupiscentes e um coro de provocadores de toda lascívia ²⁵² . O Anticristo irá solapar as bases de observância da lei natural . Tudo culminaria com a dissolução da moral objetiva e a emergência da “concupiscência e da lascívia”, uma moral subjetivista e relativa. Malagrida via tudo que estava acontecendo, isto é, a expulsão dos jesuítas, o avanço vertiginoso de uma nova política de Estado, distante de Deus e fundada no temporal, a instalação de uma moral desprovida de valores, de um universo de múltiplos sentidos e nenhum, como um sinal dos tempos. Naquele instante e nos séculos que se seguiriam, lhe parecia que o Mal vinha através do pluralismo moral, da relativização da Verdade e da sedução pelo pecado, subversor, e não reafirmador, como acreditavam os Iluministas, da lei natural . O texto, essa crítica mística ao Iluminismo, não tem um encerramento. Os manuscritos foram tomados de Malagrida, na primeira semana de 1760. Em 17 de janeiro de 1761 foi levado para o cárcere da Inquisição, sob a acusação de heresia. Em 21 de setembro de 1761 foi garroteado e seu corpo queimado, no Largo do Rocio, em Lisboa. O desfecho trágico de Malagrida foi conhecido no Brasil. Embora ninguém se movesse em defesa dos jesuítas, a figura de Malagrida, como pregador popular, e missionário entre os índios, principalmente no Norte e no Nordeste do país, deixou um legado obscuro e misterioso. Muitos anos depois, de fato, em 1908, no Brasil, o médium Zélio Fernandino de Morais (1891-1975) fundou, numa tenda espírita, o movimento religioso da Umbanda . A aparição espiritual mais elevada que ele incorporou era o Caboclo da Sete Encruzilhadas . Assim denominado porque não havia caminhos fechados para ele. E tudo entendia e percebia. Para surpresa de muitos, este revelou-lhe, da forma como os espíritos revelam as coisas, ter sido, em outra encarnação, uma eminente personalidade espiritual. Tratava-se ele, precisamente, do Padre Gabriel Malagrida, que, como contou o Caboclo das Sete Encruzilhadas , após a sua morte terrível renasceu novamente como um índio, numa floresta do Brasil. Assim, no interior da consciência da sociedade brasileira, o jesuíta executado pelo Marquês do Pombal continuava de alguma forma vivo, na alma desencarnada de um caboclo. E reconhecido como um espírito iluminado.

A presença do Caboclo das Sete Encruzilhadas, na cultura popular brasileira, é expressão de uma obra espiritual oculta. É testemunho enigmático da permanência impressiva de um projeto que uniu uma ordem religiosa a um projeto de povo. Evoca os traços de uma herança de santidade apreendida de forma vaga, e sobrevivente a infinitas manipulações do passado. E um reconhecimento, por critérios próprios, da justiça contida na solidez de um projeto espiritual e moral. 241 A insistência do Papa na defesa dos jesuítas alongou esse rompimento até 1770, quando o novo papa Clemente XIV deu sinais de sua disposição de suprimir a Ordem. Só então as relações entre os dois Estados foram restabelecidas. 242 KRATZ , Wilhelm S.J. “O Processo Malagrida, segundo os Autos originais da Inquisição na Torre do Tombo em Lisboa” in MALAGRIDA , Gabriel: Vida e Império do Anticristo. (tradução organização e comentários do Padre Ilário Govoni S.J.) Recife, FASA , 2013. p. 232 243 MALAGRIDA , Gabriel: Vida e Império do Anticristo. (tradução organização e comentários do Padre Ilário Govoni S.J.) Recife, FASA , 2013, p.27 244 Idem , ibidem , p.34 245 Idem , p. 54 246 Idem , ibidem p. 79 247 Idem , ibidem , 174 248 Idem , ibidem , p. 176

249 Idem , ibidem , p 198 250 Idem , ibidem , p. 202 251 Idem , ibidem , p. 208 252 Idem , ibidem p. 211 A grande pilhagem Provavelmente Gabriel Malagrida não estivesse errado em entender todos aqueles eventos como fruto do desenvolvimento do Iluminismo na Europa. Mas, como vimos, existiam coisas naquilo que diziam respeito apenas ao Brasil, e que tinham relação com determinados elementos que vinham da origem da sociedade brasileira. Com particularidades que nunca foram suprimidas ou controladas totalmente, e que engendraram uma identidade local, própria. Muito diferente de outras identidades conhecidas no continente americano. O Estado português pode ter sido, em algum momento, o algoz do projeto jesuítico. Mas a oposição a tal projeto precedeu, em séculos, no Brasil, à ação pombalina. Diversas vezes os jesuítas foram expulsos de regiões específicas, e apenas retornaram porque Portugal acreditava no seu papel ordenador. Assim, é compreensível que nos momentos seguintes à expulsão tenha se instalado, na América portuguesa, um sentimento de alívio e satisfação. Nunca antes vivido, e generalizado em vários setores da sociedade. As razões desse sentimento eram muitas. Para alguns, essa satisfação estava ligada ao sucesso das medidas que vieram de Lisboa e às quais cabia obedecer. Tinha a ver com obediência. A história da realização dos valores iluministas e toda essa narrativa pombalina talvez dissesse algo a alguns. Para outros, no entanto, tal satisfação era mais profunda, mais interior, e tinha a ver com a vitória “das coisas da terra” sobre todas as centenárias tentativas de reformar a sociedade, ou impor sobre ela limites e objetivos coletivos. Para esses, era como se fosse retirada uma pressão, que, de forma contínua e insistente, desde sempre, criara impedimentos à maneira individualista e predatória de ser. Que criava obstáculos à realização do ser brasileiro . Era um momento de libertação vitoriosa. De triunfo histórico. Por isso um dos grandes temas, nos momentos seguintes à expulsão, não foi o de pensar na prosperidade do Brasil, nem o de saudar a possibilidade da razão humana transformar o ser em algo melhor do que ele é, ou de celebrar a vitória dos valores laicos sobre o poder da religião. O grande tema foi, e isso de forma bem brasileira : o que fazer com os bens jesuíticos confiscados? Mais especificamente, qual era a melhor forma de

fazer dinheiro com eles. Em torno do assunto agentes públicos e privados se mobilizaram, dando início a um período de pilhagem generalizado, informal ou institucionalizado. A Carta Régia de 18 de junho de 1760 decidiu arrendar algumas das propriedades jesuíticas entre aqueles doravante chamados de contemplados . Os contemplados se transformarão num grupo de privilegiados pelo Estado. A eles caberá a responsabilidade de conduzir os negócios que os jesuítas deixaram para trás. Quem eram os contemplados ? Em 1760, preocupado com o estado de abandono das fazendas e os frequentes roubos nelas ocorridos, o Rei determinou os critérios que deveriam presidir a escolha dos compradores ou arrendatários: se rateiem e repartam em Junta à que assistireis com o Bispo, Intendente Geral, Ouvidor, Juiz de Fora, e Procurador da Câmara, graduando em primeiro lugar aos oficiais militares e mais pessoas que foram ou têm sido deste reino casadas e domiciliarem neste Estado. Em segundo lugar aos mesmos oficiais militares naturais desta terra também casados, e em terceiro lugar aquelas pessoas distintas à também se acharem casadas e estabelecidas nesse mesmo Estado e que não tiverem já bens de raiz competentes, excluindo absolutamente aquelas que tendo terras próprias, as deixaram por negligência sem cultura. Uma comissão, portanto, escolheria os principais beneficiários da repartição dos bens. Primeiro oficiais portugueses residentes, depois brasileiros residentes e depois todos os outros. Proprietários de terra já existentes desde que não tivessem demonstrado ineficácia para tal função. Ou seja, todos eles brasileiros , isto é, pessoas que viviam no local e tinham compromisso com a terra. A expulsão dos inacianos abriu caminhos dos brasileiros ao poder em sua terra. A mesma repartição se praticará em todas as outras fazendas e terras vagas pela expulsão dos ditos regulares em todo o território da vossa jurisdição, expedindo para este efeito aos respectivos governadores as ordens necessárias com a cópia desta carta para que em juntas feitas por eles com assistência dos ministros de Vara Branca das Capitanias, dos vereadores mais velhos, e procuradores dos conselhos, fazerem as mesmas repartições na sobredita ²⁵³ . Isto é, as responsabilidades pela distribuição deveriam envolver todos os setores de responsabilidade política do Estado, a fim de que possam se beneficiar dos bens. Uma outra Carta Régia , de 25 de fevereiro de 1761, mandou incorporar, ao Real Erário, todos os bens confiscados, determinando-se a venda em hasta pública (leilão) de algumas propriedades.

Em carta ao Conde Bobadela, foi determinado, por Lisboa, que todos os bens móveis dos Colégios, bem como os escravos (com exceção das bibliotecas), deveriam ser vendidos. As fazendas e os engenhos deveriam ser arrendados por três ou seis anos, devendo-se enviar todo montante arrecadado para Lisboa: “Todo dinheiro que se fizer nos bens vendidos com a declaração a que colégio pertencem serão remetidos na nau de guerra, dirigidos os conhecimentos a Antônio dos Santos Pinto, Tesoureiro Geral dos Bens Confiscados” ²⁵⁴ . Francisco Xavier de Mendonça Furtado, o irmão de Pombal, já então de volta a Lisboa, enviou mais instruções ao Conde de Bobadela, determinando que “achando compradores, vender tudo o que forem casas e fundos de terra”, e que grandes propriedades deveriam ser “divididas em partes para serem melhor cultivadas e mais facilmente vendidas” ²⁵⁵ . Francisco Furtado abordou também um outro problema, ligado a eventos que se seguiram à expulsão: o dos roubos e saques. O Padre Caeiro, num pequeno exemplo de uma prática generalizada, contou que o desembargador fluminense Custódio Araújo Salazar roubou, sem a menor cerimônia, bens pessoais de jesuítas em Santos ²⁵⁶ . Para o irmão do Marquês, era recomendável tolerância para aqueles que tivessem se apropriado irregularmente de bens jesuíticos, desde que estes fossem devolvidos ²⁵⁷ . O primeiro a se dedicar à pilhagem dos empreendimentos jesuíticos foi o Estado português. Como observamos, o valor dos arrendamentos e das vendas diversas deveria ser encaminhado para Lisboa. O segundo grupo que participou do processo foi os contemplados . Cabia a essas pessoas assumir, mediante pagamento ao Estado, seja em espécie ou em títulos da dívida, os bens jesuíticos, e administrá-los, a fim de permitir a continuidade dos negócios. Imediatamente, é claro, o grande beneficiado foi o Erário Real, a quem cabia receber os valores auferidos nas venda e arrendamentos. Isso significou uma significativa transferência de riquezas do Brasil para Portugal. Aos contemplados , num seguinte momento, caberia dinamizar, com os novos horizontes abertos, tanto patrimonial quanto no campo da mão-deobra, a economia local. Mas estariam os contemplados realmente interessados na “economia local”? Se acompanhamos os desdobramentos da sociedade brasileira desde os primeiros momentos, poderíamos, de forma prudente, citar novamente a fundadora impressão de Frei Vidente de Salvador: “uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída”. Mas, ainda seria assim em 1760?

253 IHGB , Lata 278 – livro 1. “Carta Régia de D. José I a Manuel Bernardo de Melo e Castro, Governador e Capitão General do Grão-Pará e Maranhão, sobre critério a ser adotado para o rateio das fazendas que pertenceram aos jesuítas. Palácio da Ajuda, 18 de junho de 1760”. 254 IHGB , Arq.1.3.8 “Carta de Pedro Gonçalves Pereira ao Conde de Bobadela, sobre inventário dos bens dos jesuítas, 22 de agosto de 1760”. 255 IHGB , Arq.1.3.8. “Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao Conde de Bobadela sobre ... arrendamento dos bens de raiz sequestrados aos jesuítas. 14 de agosto de 1760”. 256 CAEIRO , José: op.cit., p.255. 257 IHGB , Arq.1.3.8. “Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao Conde de Bobadela a respeito de haverem algumas pessoas ocultado parte dos bens dos jesuítas para não serem sequestrados. 14 de agosto de 1760” A grande pilhagem em desenvolvimento Os bens jesuíticos, por terem sido tão bem administrados, por tanto tempo, tinham um valor muito elevado. “Eu não sei certamente a quantidade de gado que estas religiões tem naquela ilha (de Joannes [Marajó])”, escreveu Francisco Furtado em 1751, “mas é certo e constante que é infinita, e que só este dízimo poderá aumentar muito as rendas atuais da Fazenda Real ²⁵⁸ ”. Quando se fizeram os inventários, os números foram considerados satisfatórios. Havia muito gado. Basta olharmos os levantamentos feitos das fazendas jesuíticas da ilha de Marajó, nas regiões dos rios Arari e Marajó Açu ²⁵⁹ :

O número de 134.455 cabeças de gado era elevado. Mas em 1785 o Governador e Capitão-General do Pará escreveu ao Reino informando sobre a situação das fazendas de gado da ilha de Marajó. Nesta carta ele informou que “as fazendas que os jesuítas possuíam no Marajó foram repartidas entre 22 pessoas”. Segundo o Governador, pelo menos uma das fazendas tinha sido irregularmente vendida e algumas se tinham fundido. Com a morte de diversos contemplados , familiares tinham herdado as fazendas, mas o grau de interesse em mantê-las era relativo. Das 22 fazendas sobreviventes, oito estavam claramente deterioradas, a de Boa Vista, Santa Bárbara, Santa Helena, São Luiz, N. S. Do Monte de Camutivos, São Miguel, Bom Jardim e São Braz. O inventário do número de animais existentes na região também demonstrava a crise. É muito evidente a diminuição das cabeças de gado e cavalar disponíveis ²⁶⁰ . Pode-se afirmar, portanto, uma significativa decadência, em 34 anos de administração dos brasileiros sobre os bens jesuíticos. As fazendas repartidas tiveram uma queda expressiva, das 134.455 cabeças de gado (como contado em 1759) para 28.986 (como declarado em 1785). E não eram mais fazendas florescentes, do ponto de vista econômico. Isto é, não houve qualquer investimento ou interesse em continuidade. Os bens foram simplesmente dilapidados. O relatório também dá conta de problemas de gestão: compra de terras sem registro, transferências incertas de um para outro “contemplado”, um caso em que um “contemplado” “arrendou para o coronel Manoel Joaquim Pereira que não queria retornar as terras e ficou com o gado” (cabe-se perguntar se apenas para levar para outro lugar ou vendê-lo todo), e problemas diversos não escritos, mas que justificam a decadência das fazendas. Assim, pode-se dizer que os brasileiros tinham uma forte inclinação à disfuncionalidade administrativa. Não apenas em 1627, mas também em 1785. 258 “Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Pará, 23 de dezembro de 1751” in MENDONÇA , Marcos Carneiro de (org.): op. cit. Vol.1. p.132. 259 “Avaliações das fazendas de gado sequestradas na Ilha de Marajó aos religiosos da Companhia de Jesus” (1759) in Anais do Congresso Comemorativo do Bicentenário da transferência da Sede do Governo do Brasil , volume III . 260

IHGB , Lata 278 Livro 7 “Carta de Martinho de Souza e Albuquerque, governador e capitão general do Pará a Martinho de Mello e Castro. 16 de dezembro de 1785”. Saqueando Observemos também o caso de duas importantes fazendas jesuíticas no Rio de Janeiro: a fazenda de Santa Cruz e a fazenda do Engenho Novo. Sobre a fazenda de Santa Cruz, já tratamos anteriormente, chamando a atenção para sua relevância na economia não apenas do Rio de Janeiro, mas do Brasil. A fazenda do Engenho Novo era uma das maiores produtoras de açúcar, entre as fazendas jesuítas voltadas para isso. A segunda maior do Rio de Janeiro. Entre 1745-1760 era a sétima, em volume de produção, em todo pais. A ordem de dividir as propriedades, para vendê-las separadamente, tinha sido dada a Gomes Freire de Andrada em 16 de outubro de 1761. Monsenhor Pizarro (1753-1830), no entanto, esclarece que: Até o tempo do Vice-Rei Marquês do Lavradio tudo se conservou no Fisco sem alheação: mas determinando a Carta-Régia de 28 de agosto de 1770 à Junta da Fazenda, fizesse expedir as Ordens necessárias para serem arrematados todos os Bens existentes nesta Capitania, que foram dos sobreditos regulares [jesuítas], suspendeu o Vice-Rei a execução da referida Carta, representando, em 9 de fevereiro de 1771, os motivos do seu procedimento, principalmente à respeito das Fazendas de Santa Cruz e do Engenho Novo, por entender que a conservação de tais propriedades era útil à Real Fazenda, tanto por se extrair da primeira delas todo gado necessário ao provimento das naus de guerra, como por se fornecer parte dos escravos para o serviço da fábrica da Casa das Armas e Trem da Artilharia, além de outros fundamentos ²⁶¹ . O Marquês do Lavradio (1729-1778), que foi um dos mais eminentes administradores da época, achou por bem conservar essas propriedades, sem vendê-las, porque temia que, em mãos de contemplados, elas entrassem em decadência e se perdessem. Embora a Fazenda de Santa Cruz tenha sido preservada, eventos posteriores acabaram conduzindo à venda da fazenda de Engenho Novo. Continua então o Monsenhor Pizarro: Na sobredita Fazenda de Engenho Novo existia uma fábrica de açúcar, que os mesmos Padres haviam estabelecido poucos anos antes de seu extermínio, e os arrematantes da propriedade [em 1780] Manuel de Araújo Gomes e seu sócio Manoel Joaquim da Silva e Castro, reformaram; mas o filho do primeiro, Manoel Teodoro, como possuidor atual da Fazenda, persuadido de maior conveniência pelo arrendamento das terras em porções limitadas, demoliu o edifício ²⁶² .

As preocupações do Marquês do Lavradio eram, portanto, corretas, pois dificilmente os contemplados trabalhavam para manter o empreendimento e preferiam liquidá-lo logo, para obter recursos imediatos. Assim foram os riscos corridos pela Fazenda de Santa Cruz. Um grupo de pessoas resolveu adquiri-la, da forma como era também possível. Isto é, através de títulos da dívida da Real fazenda: ...sim se permitiria aceitar em pagamento do produto das arrematações na Tesouraria Geral, os créditos das dívidas passivas da Real Fazenda da mesma Capitania, e suas anexas, contraídas nos anos pretéritos. Depois de qualificadas as mesmas dívidas, pela Junta, os comerciantes da Praça, credores à Fazenda Real, encontrando as Letras, solicitaram com assaz eficácia a venda da Fazenda de Santa Cruz para se utilizarem também do domínio direto dela em que podiam negociar, dividindo-a. Sendo então ouvido na Corte, por Ordem do Soberano, certo Ministro de sã consciência [este] respondeu dizendo: Quando a Fazenda de Santa Cruz não fora propriedade da Coroa, se devera fazer toda a diligência para ser por ela possuída e sendo atualmente (como é), por nenhum pretexto se deve alhear… ²⁶³ Fica clara a intenção dos compradores em adquirir a Fazenda com o único objetivo de dividi-la, isto é, liquidá-la. Assim, abatendo os títulos da dívida, adquiririam a propriedade e lucrariam no seu retalhamento. Mas não pensavam, como é claro na intervenção de um “ministro de sã consciência”, em utilizá-la para continuar lucrando ou ampliar a produção que lhe era própria. Apenas um ministro impediu que a Fazenda de Santa Cruz desaparecesse, e, portanto, gerasse prejuízos à sociedade. De fato, até ali, nenhum daqueles que estava processando o negócio preocupou-se com o bem comum. Apenas com os lucros que adviriam da pilhagem da fazenda. Não havia nenhum compromisso dos candidatos a contemplados em utilizar o resgate dos títulos no desenvolvimento de qualquer atividade produtiva. E devemos considerar que já havia, na Fazenda, toda a infraestrutura necessária para isto. A salvação da Fazenda de Santa Cruz foi um caso isolado entre inúmeras transações de semelhante teor envolvendo a administração portuguesa e os contemplados . A norma será utilizar as propriedades jesuíticas para aliviar dificuldades orçamentárias, nas quais o fácil descarte dos bens jesuíticos era compensado quer pelo dinheiro a ser disponível em caixa quer, neste e em outros casos, pelo resgate de títulos – ou tráfico de vantagens políticas. A lucratividade dos bens jesuíticos vinha apenas de seus arrendamentos ou vendas, realizados sempre de forma emergencial e com cada vez menor planejamento. Em 1776, às vésperas da morte de D. José I, com as finanças do Reino em dificuldades, a soma dos rendimentos do Estado foi de 3.749.351$786 e a das despesas 3.111.789$132; o produto dos bens confiscados, no entanto, alcançou 1.591.069$023 ²⁶⁴ .

Se neste caso os bens expropriados salvaram o Erário, eram insuficientes para evitar, em 1777, um deficit da ordem de 1.492.427$195 ²⁶⁵ . Ou seja, num futuro muito imediato as vendas não eram mais fonte segura para segurar o orçamento e, num futuro maior, a gestão dos bens pelos contemplados também não tinha condições de segurar um patamar de produção de riqueza sustentado pelos empreendimentos da Companhia de Jesus. Portanto, não parece que as ações pombalinas tenham sido bem-sucedidas, do ponto de vista das finanças e da economia. Toda a ideologia iluminista de Pombal não atentou para a difícil relação que existia entre os jesuítas e a população do Brasil, nem para a natureza da identidade brasileira. A tentativa de transformar o ambiente empresarial através das Companhias de Comércio também fracassou. Principalmente porque os brasileiros sempre resistiram intensamente a qualquer controle ou instituição que pudesse se sobrepor aos seus anseios empresariais particulares. Se foi assim com a Companhia de Jesus, o que diria de uma Companhia apenas de comércio? A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão e a Companhia Geral de Recife e Paraíba, esta fundada em 1759, tiveram fins melancólicos. A do Grão-Pará e Maranhão foi liquidada em 1777 e a de Recife e Paraíba em 1780, ambas no reinado de D. Maria I (1734-1816). 261 ARAÚJO , José de Souza Azevedo Pizarro e: Memórias históricas do Rio de Janeiro vol.5 , Rio de Janeiro, 1820-1822. pp.102-103. 262 ARAÚJO , José de Souza Azevedo Pizarro e: op.cit. p. 119. 263 Idem , ibidem , p.105 264 AZEVEDO , João Lúcio: O Marquês de Pombal e sua época . Op.cit., p.421. 265 CARNAXIDE , Visconde de: O Brasil na administração Pombalina . Op.cit., p.53. O triunfo dos predadores

Aldear índios era tentativa de criar cultura urbana. Quando os instrumentos de metal começaram a ser utilizados pelos indígenas, no século XVI , toda a capacidade criativa, de desenvolvimento tecnológico, foi interrompida. Foi atravessado, sem que os índios pedissem, um fosso cultural profundo: aquele que separava a pedra e o aço. Tornaram-se reféns de uma tecnologia cuja razão não conheciam. Estavam, portanto, atados ao destino que os europeus lhes davam. Viver em aldeias era um desdobramento disso. Porque era um dos preços a pagar pela absoluta dependência tecnológica. Os jesuítas, portanto, não pretendiam apenas protegê-los nas aldeias, mas também educá-los para viver em aldeias. Formá-los numa cultura rural, que pudesse algum dia transformar-se em fundamento de uma existência urbana. Cuja moral deveria ser objetiva. As aldeias secularizadas apresentaram diversos problemas. Mas o principal era a sua permanente tendência à desagregação. Já antes da expulsão isso acontecia, mas os jesuítas acreditavam no modelo e refundavam as aldeias, traziam novamente os índios. E assim tinham agido por 210 anos. Esse agente agregador desapareceu após a expulsão. A instabilidade decorrente criou uma série de problemas. Um deles foi o de que nas aldeias, agora transformadas em vilas, deveriam ser instaladas paróquias. A autoridade espiritual deveria ser entregue, portanto, ao clero secular. Aquele mesmo clero que os jesuítas sempre criticaram pela sua fragilidade moral, e aos quais os valores da reforma católica nunca chegaram de forma plena. O Bispo Bulhões, que chegou a Portugal com os deportados, preocupado com o fato de precisar instalar lideranças religiosas em várias aldeias na Amazônia, só conseguiu um secular. “Todos os outros”, afirma Caeiro, “que tinham sido coagidos a darem os seus nomes ao modo de soldados (...) haviam fugido na véspera do dia, em que as naus deveriam lançar ferro” de Lisboa ²⁶⁶ . Isto é, ninguém queria vir para o Brasil. Ao mesmo tempo, Bulhões começou a receber cartas de cônegos, designados para as aldeias, dando conta de que “já era passado muito tempo além do pactuado para se lhes mandarem Padres, que os substituíssem, que, se quanto antes lhos não enviassem, eles deixariam os seus rebanhos e tornariam para a cidade” ²⁶⁷ . Segundo Caeiro, por exemplo, a aldeia de Tapuitapera foi esvaziada 10 dias após a saída dos jesuítas ²⁶⁸ . E outras tantas também. Mas não era incomum, por outro lado, que não apenas os índios, mas também os sacerdotes quisessem abandonar as comunidades. Esse fracasso crescente das aldeias se tornará, com o tempo, evidente. A ausência ou precariedade de uma autoridade espiritual comprometida facilitou a deserção dos nativos e a sua dispersão.

Na Provisão de 2 de setembro de 1784, a Rainha D. Maria I (1734-1816) assim se expressou sobre a situação: faço saber aos que esta minha provisão virem que tendo consideração a estarem as aldeias dos índios do estado do Maranhão muito diminutas, e serem poucas, e haverem nelas muito pouco índios, e não bastarem para o serviço dos moradores... e por esta causa se pode temer não somente a falta do comércio que consiste na indústria dos mesmos índios, mas que continuando-se a omissão de baixarem a novas aldeias, se venha a perder de todo a sua comunicação... Ou seja, as aldeias estavam em processo de desaparecimento. E isso poderia trazer prejuízos para o comércio. Logo, a Rainha solicitava então aos prelados... um religioso capaz de virtude e inteligência de ir ao sertão baixar os índios... quanto ao espiritual ficarão sujeitos ao mesmo religioso que os conduzir assim... e quanto ao temporal, ficarão igualmente livres.... será recíproca a obrigação no serviço dos ditos índios, tanto para eles, como para os ditos moradores, de maneira que uma semana servirão e trabalharão no que for necessário aos seus administradores, e outra semana trabalharão e servirão no que for necessário nas suas aldeias ²⁶⁹ . Essa tentativa era frágil, diante das responsabilidades e trabalhos que exigiam essas descidas. Não eram medidas pontuais que iriam resolver o problema, é claro. A partir do Diretório Pombalino , os índios estavam “livres”. Isto é, a política de reconhecimento da identidade étnica tinha sido superada, e os nativos não eram mais reconhecidos como povo separado. A insistência no retorno de alguma forma de missão esbarrava na nova perspectiva de que os índios não deveriam ser mais preservados enquanto índios, enquanto brasis , mas igualados aos demais brasileiros . Por que aceitariam os nativos ser aldeados se não pudessem ser protegidos por serem índios? Aqui residia o relativo sucesso dos jesuítas nesse assunto. Os jesuítas reconheciam a desigualdade. Eles continuavam a ser índios e eram protegidos por isso. A sua absorção no Brasil dava-se no quadro de um projeto civilizacional de cristianização. A perspectiva pombalina, de uma igualdade ideal, portanto, consolidava a desigualdade real. Tal desigualdade, por exemplo, era evidente do ponto de vista tecnológico. Sem mediação moral, eles seriam na prática absorvidos, e desapareceriam, pois não havia condição alguma de diálogo entre desiguais. Em 1729, como já observamos, o Padre Jacinto de Carvalho advertiu que “pondo-lhes capitães [autoridades seculares] que lhes administrem ... será fazê-los escravos do dito capitão e seus parentes, e total destruição das aldeias e desastrada prostituição das índias a cuja lasciva tem sua propensão estes moradores”. De fato esse aspecto tinha total relação com o eixo do problema moral no Brasil: a ideia ainda generalizada (parte indígena, parte europeia. como observamos) de que não havia pecado. Essa noção era considerada como

corruptora de todos os aspectos da vida social, porque não se tratava apenas da luxúria , mas da ideia de que nenhum erro podia ser considerado erro. Os índios, nessa perspectiva, eram, na observação geral, participantes do problema. Para eles, realmente, as regras de comportamento eram próprias, e o seu isolamento impedia que relações imorais se tornassem dominantes ou normais. Considerando, no entanto, essa questão essencial, pode-se presumir que a união entre brasileiros e brasis desenvolveu-se normalmente a partir da expulsão, sem qualquer entrave ou observação de cunho moral, dando continuidade, agora livre, a um processo que nunca tinha terminado. O Bispo Caetano Brandão, em 1783, declarou com lástima que, em sua época, “ninguém mais impedia a entrada de brancos nas povoações indígenas e o rapto de mulheres” ²⁷⁰ . A memória da total liberdade desses sequestros, o do “tomar a laço”, estará na origem de inumeráveis famílias brasileiras, a partir de então. E, por fim, é claro, a ideia de que os índios seriam livres alcançou sua forma definitiva em uma lei: o Diretório . Mas já nos referimos ao fato de que exatamente um dos problemas dos brasileiros era a dificuldade em aceitar leis. Assim, o viajante Thomas Ewbank, que esteve no Brasil em 1846, em conversa com um deputado do Ceará, soube dele que a seca em seu estado causara uma fome de enormes proporções. Os índios, mesmo as mães índias, trouxeram seus filhos e trataram de vendêlos para poder comprar comida. Antes era muito difícil conseguir um indiozinho por menos de setenta mil réis, mas agora os seus pais, não tendo nada que comer, oferecem-nos de bom gosto por dez.... Tal escravização, um eco da antiga prática dos pais em venderem seus filhos, que vinha dos primeiros momentos dos contatos entre europeus e índios, passou a coexistir com práticas ainda mais amplas de tráfico interno: “os índios aparecem para ser vendidos tanto quanto os negros”, anota Ewbank, “no Rio muitos deles têm sido negociados” ²⁷¹ . Em 1839 a diretoria do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, preocupada em definir parâmetros identitários nacionais mais precisos, fez, a um de seus integrantes, o Cônego Januário da Cunha Barbosa, a seguinte questão: Quais foram as causas da espantosa extinção das famílias indígenas que habitavam as províncias litorais do Brasil: se entre essas causas se deve numerar a expulsão dos Jesuítas, que pareciam melhor saber o sistema de civilizar os indígenas ²⁷² . A pergunta é absolutamente pertinente e a hipótese colocada também. Mas, acrescentaríamos, a causa dessa “espantosa extinção” está não apenas na expulsão dos jesuítas, mas na destruição de um projeto de sociedade que eles defendiam.

Nesse projeto de sociedade, aplicado de forma análoga em outras sociedades íbero-americanas, os espaços étnicos seriam preservados – um espaço dos brasileiros , outro espaço dos brasis – mas todos teriam como referencial de conduta valores morais aceitos como objetivos e fundamentais. Tais valores seriam a base para a construção de uma sociedade fundada num respeito estruturante ao bem comum. O desaparecimento desse projeto destruiu os elementos que permitiam a continuidade dos elementos identitários indígenas no Brasil. Propiciou a sua escravização e assimilação. E sua absorção na base comum da sociedade. Considerando os dois séculos de conflitos no campo da moral, podemos considerar que, longe de ser uma vitória do Iluminismo ou do Marquês de Pombal, o projeto vitorioso foi o dos predadores . Estes tiveram, desde o princípio, o controle dos elementos de identidade, estabeleceram a sua pauta e a impuseram gradualmente a Portugal. A cegueira de D. José I colocou o reinado não a serviço de seus objetivos nobres, mas como instrumento dos planos insistentes dos brasileiros . Não se pode negar que as ações dos brasileiros não contivessem, em si, uma grande sabedoria. Capaz de fazer valer, ao final, o seu projeto de sociedade. Uma sociedade cujos elementos identitários se desenvolveram no sentido do seu funcionamento, paradoxalmente, disfuncional, fundado sobre o subjetivismo e relativismo morais. Mas também é verdade que brasileiros e brasis foram, cada um de seu lado, sócios nesse empreendimento da não existência do pecado, ou do desconhecimento do que era certo e errado, o que era bem ou o que era mal. No final das contas, a palavra pecado deixou de ser incorporada à visão de mundo indígena, pois o idioma, que a sustentava, desapareceu. Pois, como observamos no princípio, eram os brasis também predadores. Frágeis, mas predadores. E, no final, só a antropofagia uniu a todos. O triunfo dos predadores assinalou a emergência de uma sociedade de poderosas inconsistências morais. Um país que carrega em seu nome os códigos quase ocultos e herméticos de uma origem que explica seu destino complexo e, eventualmente, trágico. Sim, o tempo assinalou a vitória silenciosa do nome Brasil . Mas a verdade é que nunca deixaram de existir os que defendiam que a solução estaria na aceitação de regras coletivas, de valores maiores de ordem moral, na aceitação da renúncia do subjetivismo moral em prol do bem comum. Mas quem os lideraria, após 1759? Ainda se procura esta resposta. Desde então, os predadores têm vencido quase sempre. 266 Idem , Ibidem , p.502. 267 Idem , ibidem , p.513.

268 CAEIRO , José: op.cit., p.557. 269 “Provisão de 2 de setembro de 1784” in MORAIS , Mello: Corografia Histórica, Cronográfica, Genealógica, Nobiliária e Política do Império do Brasil. Op.cit., p.344. 270 LEITE , Serafim: História da Companhia de Jesus no Brasil , vol.7. p.322. 271 EWBANK , Thomas: Vida no Brasil. São Paulo, EDUSP , 1976. P. 242. 272 apud DOMINGOS , Simone Tiago: Política e Memória: a polemica sobre os jesuítas. Dissertacão de Mestrado. Campinas, UNICAMP , 2009 Conclusões: Os predadores e a identidade brasileira Oliveira Viana, certa vez, afirmou que o “problema da organização da autoridade” “é para as nacionalidades americanas o problema supremo” ²⁷³ . Com isso queria dizer que, quando nos chega o Iluminismo, este não se instala numa sociedade, como a europeia, na qual o problema da autoridade já estava mais ou menos resolvido. Isto é, onde a autoridade, a autoridade moral, já havia, ao longo dos séculos, atuado no sentido de consolidar, na própria estrutura da sociedade, limites de ordem moral. Onde o bem comum era, do ponto de vista espiritual, um horizonte definidor das atitudes humanas.

Aqui, ao contrário, o Iluminismo, o tema da liberdade, da emancipação das tutelas religiosas, nos chega quando não tínhamos ainda essas tutelas, quando a autoridade não estava ainda consolidada. Ou mais, quando esta estava sendo violentamente combatida. Assim é compreensível que os aspectos imorais ou amorais da sociedade tenham sido reafirmados e aprofundados pelos valores do Iluminismo. Estes, a bem dizer, não são valores que buscam declaradamente uma liberdade irrestrita, mas sim responsável. Embora, é claro, os paradoxos da democracia façam sempre as sociedades flutuarem entre a liberdade incontrolável e o despotismo, como bem percebeu Montesquieu. Mas, aqui, a liberdade raramente era considerada como liberdade para contribuir, e sim usualmente, era entendida como a liberdade de predar. Exatamente: na prática, motor de desordem e desagregação. Na verdade, a expulsão da Companhia sinaliza o surgimento de um aspecto marcante da identidade brasileira. Na qual os diferentes agentes sociais são livres para atuar da forma como desejam, sem respeito a maiores impedimentos morais, e, portanto, em rota de colisão contínua com o coletivo. Evitando, livremente , contribuir para o sucesso geral. As negociatas que se seguiram à expulsão da Companhia atestam a dedicação que alguns brasileiros passarão a ter, no sentido de aproveitar todas as oportunidades para ganhos imediatos e elevados, em desconsideração com o necessário compromisso com a sociedade. E resistindo a qualquer limite moral que alguém, ou alguma instituição, pudesse tentar impor. Os contemplados , a nova classe de brasileiros agregados ao Estado, realizando negócios altamente predatórios, aparentavam ter um total descaso com a sociedade na qual viviam. A história do quase retalhamento da Fazenda de Santa Cruz ilustra bem isso. Os contemplados eram pioneiros, e deram origem a uma forma toda especial de fazer negócios no Brasil. Era um grupo social claramente corrupto e corruptor, no seu desprezo pelas virtudes morais. Sinal do fenômeno político e social que Raymundo Faoro chamará de estamento burocrático e patrimonial, cujo domínio sobre o Brasil, com todas suas metamorfoses, parece perpétuo. Talvez por estar enraizado na própria identidade moral brasileira. Os contemplados utilizavam o Estado para a realização de suas transações privadas e egoístas. No caso da fazenda de Santa Cruz, apenas uma voz isolada que se ergueu, no entanto, foi capaz de interromper a tragédia. Em que pese a vitória dos defensores da predação, e a inauguração de uma nova forma de pilhar, via Estado, não parece que tenham desaparecido, da

sociedade, os moralistas e outros defensores da limitação do individual ou do particular diante de regras de aceitação coletiva. O fato de apenas uma voz ter interrompido a negociata da Fazenda de Santa Cruz mostra a fragilidade moral dos contemplados . Mas também uma sabedoria: não vale a pena o confronto, é necessário ser cordial. Aceita-se a decisão. Havia muitas fazendas jesuíticas a serem arrematadas, muitos índios a serem escravizados, muitas riquezas a serem saqueadas no país. Tais vozes isoladas puderam, em algum momento, fazer diferença. Assim, movimentos de opinião moralizadores, como a Independência, em 1822, o Regresso , em 1840, ou a Campanha Abolicionista, em 1888, representaram tentativas de instalar, na sociedade, situação de submissão dos interesses particulares à supremacia do bem geral. Mas, no caso da Campanha Abolicionista, mais evidente na busca de uma harmonia social ampla de características moralistas, deve-se considerar que entre 1759 e 1888 passaram-se 129 anos. Durante todo esse período o problema “da liberdade por natureza do gênero humano”, como o definiu Jorge Benci S.J., tão importante para a construção de elos associativos entre diferentes setores sociais e de limitação de ímpetos predadores, permaneceu no limbo, diante de hábitos imorais triunfantes. Consolidado o caminho, portanto, a sociedade brasileira enveredou, a partir de 1759, pela rota de sua disfuncionalidade coletiva. Entregue à subjetividade ou ao relativismo moral, afundou em seu mundo para “dentro dos muros”. O espaço público se tornou tão desimportante nas ambições dos habitantes do Brasil que, quando a América Latina entrou em revoluções, os brasileiros, de uma forma mais ou menos geral, foram incapazes de se mover na direção das grandes comoções sociais. Comoções que exigiriam comportamentos delimitados pelo todo. Renúncias a interesses particulares, ao subjetivismo dos desejos ou à relatividade das avaliações. A dificuldade da existência de movimentos de opinião no país deriva dessa cautela diante das grandes convulsões coletivas, cuja paixão descontrolada compromete a privacidade de todos. Especialmente, segundo Oliveira Viana, a da base histórica populacional do país, os matutos , habitantes do centrosul e da mata atlântica, descendentes diretos da associação entre os primeiros brasileiros e os brasis . A Independência, o Regresso ou a Abolição não se caracterizaram por serem grandes comoções, mas, sim, por serem decisões tomadas no desespero gerado pelo fim eminente, caso não fossem tomadas decisões morais. E sempre contaram com o silêncio circunspecto ou apoio cerimonial daqueles que sabiam que, das causas morais, sempre seria possível auferir ganhos imorais ou amorais.

O legado dos vitoriosos de 1759, os contemplados , herdeiros dos brasileiros , comerciantes de pau-brasil, tornou-se forte, consistente, estruturante. A eles se deve a existência do país, e alguns traços fundamentais de seu caráter. É claro que, como Malagrida renasceu no Brasil na forma de um índio do Amazonas, o espírito de moralização permanece ainda latente, renascendo sempre, esperando circunstância para emergir do limbo da identidade brasileira. E eventualmente salvá-la do colapso. É bom, moralmente falando, que acreditemos nisso. 273 VIANA , Oliveira: Populações Meridionais do Brasil . Brasilia, Senado Federal, 2005. Fontes Fontes Manuscritas: Na pesquisa para este estudo foram consultados muitos arquivos, no Rio de Janeiro, Lisboa e Roma. Incluindo as referências citadas em notas de rodapé, foram consultados documentos no Arquivo Nacional (Rio de Janeiro), em diversos fundos documentais. No Instituto Histórico Geográfico e Brasileiro (Rio de Janeiro), principalmente os documentos do Conselho Ultramarino, cópias mandadas fazer em Portugal por D. Pedro II , mas também de outros fundos documentais. Na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro) alguns documentos avulsos na seção de manuscritos. No Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), foram consultadas fontes tanto da documentação avulsa quanto inventariada. No Archivum Romanum Societatis Iesu (Roma) foram consultados códices inéditos. Fontes Impressas: O volume de fontes impressas consultadas é grande. Cabe-nos aqui fazer um levantamento geral de alguns títulos mais relevantes para a pesquisa: A COSTA , José de: Obras do Padre José de Acosta . Madrid, Biblioteca de Autores Españoles, 1954. (“De procuranda indorum salute” (1577); “História natural e moral das índias” (1590)) A CUÑA , Cristóbal de: Nuevo Descubrimiento del Gran Rio de las Amazonas. [1641] Madrid, 1891. A LMEIDA , Cândido Mendes de: Memórias para a História do Extincto Estado do Maranhão, 2 tomos, Rio, 1860-1874. A LMEIDA , M. Lopes de: Colecção dos crimes e decretos pelos quais vinte e um jesuítas foram mandados sair do estado do Grão-Pará ... Lopes de Almeida, Coimbra, 1947.

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