Pensar em não ver - escritos sobre as artes do visível (1979-2004) 9788532806109

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Pensar em não ver - escritos sobre as artes do visível (1979-2004)
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Pensar em não ver Escritos sobre as artes do visível (1979-2004)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Reitora Roselane Neckel Vice-Reitora Lúcia Helena Martins Pacheco EDITORA DA UFSC Diretor Executivo Sérgio Luiz Rodrigues Medeiros Conselho Editorial Carlos Eduardo Schmidt Capela Clélia Maria Lima de Mello e Campigotto Ione Ribeiro Valle Luís Carlos Cancellier de Olivo Sérgio Fernandes Torres de Freitas

Editora da UFSC Campus Universitário - Trindade Caixa Postal 476 88010-970 - Florianópolis-SC Fones: (48) 3721-9408, 3721-9605 e 3721-9686 Fax: (48) 3721-9680 [email protected] www.editora.ufsc.br

Jacques Derrida

Pensar em não ver Escritos sobre as artes do visível (1979-2004)

organização Ginette Michaud Joana M a s ó Javier Bassas tradução Marcelo Jacques de Moraes revisão técnica João Camillo Penna

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editora ufsc

© 2012 Marguerite Derrida Direção editorial: Paulo Roberto da Silva Capa: Maria Lúcia laczinski Editoração: Fernanda do Canto Revisão: Júlio César Ramos

Ficha Catalográfica (Catalogação na fonte elaborada pela DECTI da Biblioteca Central da UFSC) D438p

Derrida, Jacques Pensar em não ver : escritos sobre as artes do visível (1979-2004) / Jacques Derrida ; organização Ginette Michaud, Joana Masó, Javier Bassas ; tradução Marcelo Jacques de Moraes ; revisão técnica João Camillo Penna. - Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012. 480 p. : il. Inclui bibliografia. Inclui: As artes espaciais : uma entrevista com Jacques Derrida (tradução do inglês, por João Camillo Penna) 1. Derrida, Jacques, 1930-2004. 2. Arte - Filosofia. 3. Filosofia francesa. I. Michaud, Ginette. II. Masó, Joana. III. Bassas, Javier. IV. Título. CDU:1DERRIDA

ISBN 978-85-328-0610-9

Todos os direitos reservados. N e n h u m a p a r t e desta obra p o d e r á ser r e p r o d u z i d a , arquivada ou t r a n s m i t i da p o r qualquer meio ou forma sem prévia permissã o p o r escrito da Editora da U F S C . Impresso n o Brasil

:: Sumário Nota do tradutor

7

Apresentação dos editores

9

:I Os rastros do visível As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida Pensar em não ver Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo

15 17 63 91

::II

Pintura, desenho Ilustrar, diz ele O desígnio do filósofo. Entrevista com Jérôme Coignard Com o desígnio, o desenho Pregnâncias. Sobre quatro aguadas de Colette Deblé Salvar os fenômenos. Para Salvatore Puglia O desenho por quatro caminhos Êxtase, crise. Entrevista com Roger Lesgards e Valerio Adami Da cor à letra Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito, sequaz e suplício

145 147 155 161 191 207 227 233 249 279

::: III Espectralidades da imagem: fotografia, vídeo, cinema e teatro

297

Aletbeia [Revelações, e outros textos. Leituras das fotografias de Frédéric Brenner] Videor A dança dos fantasmas. Entrevista com Mark Lewis e Andrew Payne O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry Jousse

299

O Sacrifício Marx é alguém O sobrevivente, o sursis, o sobressalto

397 413 431

Bibliografia Filmografia Sobre os artistas Sobre os editores

441 455 461 477

315 349 359 371

:: Nota do tradutor Como bem sabe o leitor de Jacques Derrida, o seu texto se constitui numa exploração constante da tensão entre a materialidade da língua e seus efeitos de sentido. Procuramos, por meio das "notas do tradutor", esclarecer algumas decisões de tradução e fazer com que o leitor desta coletânea pudesse manter-se atento a essa tensão, a despeito das escolhas mais ou menos bem-sucedidas que possam ter sido feitas. Devo agradecer aqui a colaboração prestimosa de João Camillo Penna, com a tradução do primeiro texto, feita do inglês, e, sobretudo, com a revisão técnica do conjunto, para o qual também contribuiu com a redação de algumas das "notas do tradutor".

Marcelo Jacques de Moraes

Apresentação dos editores Durante três décadas, as artes foram um dos lugares privilegiados da desconstrução derridiana. De A verdade em pintura (com Valerio Adami e Gérard Titus-Carmel, 1978) à exposição Memórias de cego (com curadoria de Jacques Derrida junto ao Gabinete de Desenhos do Louvre em 1990); de "Leitura" de Direito de olhares (com Marie-Françoise Plissart, 1985) a Demorar, Atenas (com Jean-François Bonhomme, 1996); de "Linhagens" em Mille e tre, cinco (com Micaèla Henich, 1996) a Atlan grande formato (com Jean-Michel Atlan, 2001), O conhecimento dos textos (com Simon Hantai e Jean-Luc Nancy, 2001) e Artaud le Morna (2002),1 Derrida elabora e problematiza a noção filosófica de visibilidade em um diálogo estreito com a produção artística, majoritariamente contemporânea. O visível é para Derrida o lugar da oposição fundamental entre o sensível e o inteligível, a noite e o dia, a luz e a sombra. Ele tem por base todos os valores do aparecer ontológico e fenomenológico - o fenômeno (phanesthai), a teoria (theorein), a evidência, a clareza ou a verdade, o "des-velamento" que instituem uma forte hierarquia filosófica dos sentidos. Consequentemente, o visível será desde então denunciado por Derrida a cada vez que esse privilégio do óptico for posto como a questão que domina toda a história da metafísica ocidental. As obras em questão são respectivamente: La vérité en peinture (com Valerio Adami e Gérard Titus-Carmel, Paris: Flammarion, col. "Champs", 1978); Mémoires d'aveugle. Uautoportrait et autres ruines (Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1990) (Memórias de cego: o auto-retrato e outras ruínas. Tradução de Fernanda Bernardo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010); Droit de regards (de MarieFrançoise Plissart, seguido de uma leitura de Jacques Derrida, Paris: Minuit, 1985); Demeure, Athènes (com Jean-François Bonhomme, Paris: Galilée,1996); "Lignées" em Mille e tre, cinq (com Micaèla Henich, Bordeaux: William Blake &C Co. Edit., 1996); Atlan grand format (com Jean-Michel Atlan, Paris: Gallimard, 2001), La connaissance des textes - Lecture d'un manuscrit illisible - Correspondance avec Simon Hantai et ]ean-Luc Nancy (com Simon Hantai e Jean-Luc Nancy, Paris: Galilée, 2001); Artaud le Morna (Paris: Galilée, 2002). (Nota do Tradutor)

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No gesto da desconstrução, as artes ditas visuais serão um lugar importante não apenas para desenvolver um questionamento próprio à história da filosofia mas também para dar a pensar um visível articulado pelo movimento do rastro e da différance,2 figuras derridianas da escrita. É esse deslocamento do visível para o escrito que está no cerne do questionamento derridiano no conjunto destes textos, que reunimos sob este título: não artes visuais mas artes do visível. Essas artes do visível estão, na desconstrução, profundamente investidas pelo próprio movimento da escrita, já que, como diz Derrida, "[...] mesmo que não haja nenhum discurso, o efeito do espaçamento já implica uma textualização. Por esta razão, a expansão do conceito de texto é estrategicamente decisiva aqui. Portanto, as obras de arte mais esmagadoramente silenciosas não podem evitar ser tomadas dentro de uma rede de diferenças e referências que lhes dá uma estrutura textual". 3 Assim, às margens dos grandes livros e catálogos que Derrida dedica às obras dos artistas, a atenção concedida às artes não cessou de crescer. Paralelamente a esse trabalho mais teórico, encontram-se igualmente inúmeras colaborações do filósofo com artistas, assim como encontros, mesas-redondas 2

A tradução do termo "différance" - neologismo formado a partir da substantivação de "différant", particípio presente do verbo "différer", "diferir", tem sido alvo de muitas discussões. Optei por deixar no original. Paulo Ottoni discute as diferentes traduções para o termo propostas ao longo das edições brasileiras da obra de Derrida no artigo "O tradutor de Jacques Derrida: double bind e dupla tradução" (Em: Tradução, desconstrução e pós-modernidade. São Paulo: UNESP, 2000, p. 45-58), do qual se pode encontrar uma versão resumida em . O ensaio homônimo "Différance" foi proferido como Conferência na Sociedade Francesa de Filosofia, em 27 de janeiro de 1968, publicado simultaneamente no Bulletin de Ia Société Française de Philosophie (jul./set. 1968), e em Théorie d'ensemble (col. "Tel Quel". Paris: Ed. du Seuil, 1968), e subseqüentemente incorporado a Marges de Ia philosophie (Paris: Ed. de Minuit, 1972). Há uma tradução brasileira esgotada, sob o título de "Diferença" em: Margens da filosofia (Tradução de Joaquim Gomes Costa e Antônio M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991, p. 33-63). (N. T.)

3

Jacques Derrida. As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida. Cf. no presente volume, p. 30.

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e conversas com arquitetos, historiadores da arte, especialistas em estética e críticos de cinema. A reflexão derridiana sobre o desenho, a pintura, a fotografia, o cinema, a videoinstalação e o teatro toma forma, especialmente a partir dos anos 1980, em diversas revistas francesas e estrangeiras (Annali, Beaux-Arts, Cabiers du cinema, Contretemps, Domus, Diagonal, Public, Rampike, Rue Descartes), assim como em obras coletivas (Deconstruction and the Visual Arts e Passages de Vimage), textos hoje freqüentemente esgotados ou de difícil acesso e que a presente obra recolhe em grande parte. Desejamos, ao reunir nesta coletânea os principais textos do filósofo sobre a questão das artes, tornar sensíveis ao leitor algumas das proposições e dos axiomas mais inventivos de Derrida em um domínio, o da arte e da estética, que jamais foi por ele confinado na antiga delimitação das belas-artes, mas sempre apreendido, de pleno direito, como o lugar movente de um pensamento. Os textos da presente coletânea se escalonam ao longo de 25 anos, de 1979 a 2004, e estão organizados em três grandes partes. A primeira parte apresenta textos que dão testemunho do primado filosófico do visível na arte, que Derrida desloca para questões de língua. A segunda parte agrupa, por ordem cronológica, os textos e colaborações com diversos artistas (François Loubrieu, Colette Deblé, Salvatore Puglia, Valerio Adami e Jean-Michel Atlan), nos quais Derrida desenvolve sua reflexão em torno da singularidade do desenho e da pintura. Enfim, a terceira parte reúne os textos que o filósofo dedicou à fotografia (Kishin Shinoyama e Frédéric Brenner), ao vídeo (Gary Hill), ao cinema e ao teatro (Daniel Mesguich). O último texto, publicado em ha Quinzaine Littéraire dois meses antes de sua morte, ilumina a relação complexa de Derrida com sua própria imagem. O conjunto desses textos permite retraçar os grandes motivos derridianos que se desenham de maneira insistente no domínio das artes ao longo de todo o volume. Em sua crítica da inteligibilidade da arte, Derrida inscreve as artes e o visível no cerne da escrita - longe de uma suposta universalidade

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"para além da barreira das línguas"4 - e leva, assim, às últimas conseqüências a idiomaticidade da arte: ele interroga o estatuto da citação na pintura de Colette Deblé ou do tropo do anacoluto na de Jean-Michel Atlan; ele se pergunta também em que língua se desenha - desenha-se sempre em uma língua e desenhar é sempre independente da língua? - a propósito dos desenhos de Valerio Adami. Ele precisa igualmente que escrever sobre a arte não significa escrever sobre um conteúdo - sobre um objeto - , mas sobre um tom: "não é o conteúdo, é o tom",5 afirma ele na conversa já referida com Peter Brunette e David Wills. Trata-se, portanto, para ele de pensar a questão do tom, a saber, da voz e da escrita, indissociavelmente ligada aos problemas da arte, e também aos do arquivo fílmico e fotográfico, assim como as diferentes maneiras de citar a tradição na pintura ou a relação com a beleza e com o desejo do outro. 6 Uma escolha evidentemente se impôs quanto aos próprios textos, evidentemente de fatura bastante diversa (estudos monográficos, conversas, conferências), que o leitor encontrará aqui. Sem pretendermos ser exaustivos, quisemos dispor à leitura um leque de textos tão ricos e representativos quanto possível, o que testemunham os dois textos inéditos aqui apresentados e que se encontram no Acervo Jacques Derrida no Instituto Memórias da Edição Contemporânea (IMEC): a conferência "Sob o desígnio do desenho", pronunciada no prolongamento da exposição Memórias de cego, e uma intervenção feita em 2002 na Fundação Maeght sobre a noção de subjétil e de "debaixo" 7 na obra de Artaud. Por outro lado, não foram retomados nesse conjunto os textos sobre as artes já publicados pela Editora Galilée, em razão de sua acessibilidade, tampouco as inúmeras intervenções de Jacques Derrida sobre a arquitetura, que poderiam por si só constituir um livro inteiro. Uma bibliografia Jacques Derrida. "Pensar em não ver". (Cf. no presente volume, p. 63, primeiro parágrafo do artigo). Jacques Derrida. "As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida". Cf. no presente volume, p. 42. Ibid., p. 43. No original, "dessous". Trata-se do texto "Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito, sequaz e suplício". (N. T.)

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e uma filmografia no fim do volume permitem dimensionar os trabalhos de Jacques Derrida no tocante às artes. Agradecemos vivamente a Marguerite Derrida pela confiança e apoio dado a este projeto. Agradecemos também aos editores dos textos e aos artistas por sua generosa acolhida: Valerio Adami e Editora Le Cherche Midi, Frédéric Brenner, Michel Champier, Colette Deblé e UAtelier des Brisants, a Editora Galilée, Marc Guillaume e a Editora Descartes & Cie, Gary Hill, Georges Meguerditchian, Jean-Paul Michel e a Editora William Blake & Co., Colette Olive e a Editora Verdier, François Pallud e Imaginativ, Jacques Polieri, Salvatore Puglia. Somos gratos a Marcelo Jacques de Moraes, que assumiu a tarefa e a responsabilidade da tradução para o português de todos esses escritos de Jacques sobre as artes conservando o seu tom singular. E a João Camillo Penna, por ter aceitado fazer a tradução em português de "The Spatial Arts: An Interview witb Jacques Derrida", a partir da versão em inglês que se impôs desde os anos 1990 como a única acessível. Enfim, queremos ainda agradecer muito calorosamente a Marie-Joélle Saint-Louis Savoie por sua preciosa ajuda em diversas etapas da preparação do manuscrito, e muito particularmente no estabelecimento da bibliografia e da filmografia, assim como Cosmin Popovici-Toma por sua ajuda na verificação de certas referências bibliográficas.

Ginette Michaud, Joana Masó e Javier Bassas

:I Os rastros do visível

As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida

Peter Brunette e David Wills

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Texto traduzido do inglês por João Camillo Penna. (N. T.) Esta entrevista é inédita em francês. "The Spatial Arts: An Interview with Jacques Derrida", tradução inglesa de LaurieVolpe.f oi publicada na obra coletiva, Deconstruction and the Visual Arts: Art, Media, Architecture. Peter Brunette; David Wills (Ed.). Cambridge, Nova York, Oakleigh: Cambridge University Press, col. "Cambridge Studies in New Art History and Criticism", 1994, p. 9-32. A entrevista ocorreu em 28 de abril de 1990, em Laguna Beach, Califórnia. A versão original da transcrição não pôde ser encontrada nos arquivos de Jacques Derrida no Institut Mémoires de LÉdition Contemporaine (IMEC). Consultado sobre o assunto, David Wills não encontrou tampouco os cassetes da gravação que serviram à transcrição e em seguida à tradução da entrevista em inglês. Por outro lado, uma tradução espanhola da entrevista foi feita a partir da versão inglesa, por Javier Ariza, Graciela de Ia Huerga, Luís Garcia-Ochoa, Christine Harris, Juan Iribas, Andrés Munoz e Miguel Olmeda, e foi publicada na revista Acción Paralela: ensayo, teoria y crítica de arte contemporâneo (San Lorenzo dei Escoriai), 1995-1996, volumes 1 e 2, p. 4-19. Tradução retomada, em uma versão ligeiramente modificada por Joana Masó, em: Jacques Derrida, Artes de Io visible (1979-2004), Ginette Michaud, Joana Masó e Javier Bassas (Ed.). Madri: Ellago Editiones, Col. "Ensayo", lançamento previsto para 2013. Uma tradução italiana da entrevista foi igualmente publicada sob o título de "Le arti spaziali. Un'intervista com Jacques Derrida". Em: Jacques Derrida, Adesso l'architectura. Francisco Vitale (Ed.). Milan: Libri Scheiwiller, col. "L'arte e le arti", 2008, p. 31-76 (tradução italiana de textos em francês sob a direção de Francesco Vitale, tradução italiana de textos em inglês sob a direção de Hosea Scelza). Em razão da importância dessa entrevista, sua difusão internacional, e na ausência do texto original, escolhemos apresentá-la nesta coletânea. Salvo indicações em contrário, as notas da entrevista são as da tradução inglesa. (N. E.) [Os termos em francês, entre colchetes, inseridos pela tradutora para o inglês, foram mantidos no corpo do texto, quando aportavam uma nuance de sentido em português; do contrário foram transferidos para notas de rodapé. Além disso, colchetes em inglês, referentes à tradução para o inglês, foram inseridos, sempre que eles traziam algum aporte à tradução. (N. T.)] David Wills (1953-) traduziu várias obras de Jacques DERRIDA: Donnerla mort {The Gift of Death e Literature in Secret. Chicago: The University of Chicago Press, 2008); Droit de regards de Marie-Françoise Plissart (Right of Inspection. Nova York: Monacelli Press, 1998); La contre-allée com Catherine Malabou (Counterpath, Stanford: Stanford University Press, 2004) e Uanimal que doncje suis {The Animal that therefore I am. Nova York: Fordham Press, 2008). Especialista em Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade em Albany, SUNY, onde lecionou, ele é autor de Prosthesis (Stanford: Stanford University Press, 1995; Paris: Galilée, 1997), Matchbook (Stanford: Stanford University Press, 2005) e de Dorsality: Thinking Back Through Technology and Politics (Minneapolis: Minnesota University Press, 2008). Peter Brunette (1943-2010) é historiador e crítico de cinema, autor de diversas obras, notadamente sobre Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni e Michael Haneke (seu último livro saiu em fevereiro de 2010). (Nota dos Editores)

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DAVID WILLS: Começaremos com uma pergunta indiscreta, uma pergunta sobre a competência. O senhor mencionou mais de uma vez o que chama a sua "incompetência" em várias áreas do seu trabalho. Por exemplo, na sua entrevista com Christopher Norris sobre arquitetura 1 o senhor se declara "tecnicamente incompetente" no campo; na nossa discussão sobre cinema o senhor disse a mesma coisa, mas nada disso o impediu de escrever sobre várias áreas fora da sua formação. É como o senhor quisesse definir os limites de sua contribuição para cada domínio, sem saber exatamente onde colocar esses limites. JACQUES DERRIDA: Tentarei tornar minhas respostas o mais diretas possível. Em primeiro lugar, quando digo que sou incompetente, digo-o com franqueza, sinceramente, porque é verdade, porque não conheço muito de arquitetura, e no que toca ao cinema, meu conhecimento é o mais mediano e geral. Gosto muito de cinema; vi muitos filmes, mas em comparação com aqueles que conhecem a história do cinema e a teoria do cinema, sou, e digo isso sem falsa modéstia, incompetente. O mesmo vale para a pintura, e mais ainda para a música. Com respeito a outros domínios poderia dizer a mesma coisa com a mesma sinceridade. Sinto-me bastante incompetente também nos campos literário e filosófico, embora a natureza da minha 1

Jacques Derrida. "Discussion with Christopher Norris". Deconstruction: Omnibus Volume, ed. A. Papadakis, C. Cooke e A. Benjamin. Nova York: Rizzoli, 1989, p. 72.

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incompetência seja diferente. Minha formação é a filosofia, então não posso dizer seriamente que seja incompetente nesse domínio. No entanto, sinto-me despreparado quando confrontado com a obra de um filósofo, mesmo quando se trata da obra dos filósofos que estudei longamente. Mas esta é uma outra ordem de incompetência. Ora, em termos da minha competência em filosofia, pude conceber um certo programa, uma certa matriz de investigação, que me permite começar colocando a questão da competência em termos gerais - quer dizer, investigar como a competência se formou, o processo de legitimação, de institucionalização, e assim por diante, em todos os domínios, e então avançar em diferentes domínios, não apenas admitindo muito sinceramente a minha incompetência, mas também me perguntando sobre a questão da competência, ou seja, sobre o que define os limites do meu domínio, os limites do corpus, a legitimidade das questões, e assim por diante. Cada vez que me confronto com um domínio que me é estranho, um dos meus interesses ou investimentos concerne precisamente à legitimidade do discurso, com que direito se fala, como o objeto é constituído - questões que são, na verdade, filosóficas tanto na origem quanto no estilo. Mesmo que, dentro do campo da filosofia, eu tenha trabalhado para elaborar questões desconstrutivistas relativas a ela, que a desconstrução da filosofia traz consigo, um certo número de questões que podem ser feitas em campos diferentes. Sobretudo, estava tentando, a cada vez, descobrir o que, em um determinado campo, o libera da autoridade filosófica. Ou seja, aprendi com a filosofia que ela é um campo hegemônico, estruturalmente hegemônico, que considera todas as regiões discursivas como dependentes dela. E por meio de uma desconstrução desse gesto hegemônico podemos começar a ver, em cada campo, seja o que chamamos de psicologia, lógica, política, sejam as artes, a possibilidade de emancipação da hegemonia e da autoridade do discurso filosófico. Então, cada vez que eu abordo uma obra literária, uma obra pictórica ou arquitetural, o que me interessa é a mesma força desconstrutiva com relação à hegemonia filosófica. E como se fosse isso que levasse a minha análise adiante. Como resultado, pode-se sempre encontrar o mesmo gesto de minha parte, mesmo

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que cada vez eu tente respeitar a singularidade da obra. O gesto consiste em encontrar, ou, em todo o caso, em procurar, tudo o que na obra representa a sua força de resistência à autoridade filosófica, e ao discurso filosófico sobre ela. A mesma operação pode ser encontrada ou reconhecida em diferentes discursos que desenvolvi em relação a obras particulares; no entanto, sempre tentei fazê-lo respeitando a assinatura individual de um Artaud, por exemplo, ou de um Eisenman.2 Obviamente, porque estamos começando uma entrevista sobre as "artes visuais", a questão geral das artes espaciais recebe proeminência, pois é no interior de uma certa experiência do espaçamento, do espaço, que a resistência à filosofia pode ser produzida. Em outras palavras, a resistência ao logocentrismo tem uma chance maior de aparecer nesses tipos de arte. (É claro, precisaríamos também nos perguntar sobre o que é a arte.) Chega de competência: é uma incompetência que dá ou tenta se dar uma certa prerrogativa de falar de dentro do espaço de sua própria incompetência. Ora, também é necessário dizer - talvez como uma espécie de precaução geral sobre tudo o que se seguirá - que nunca tomei pessoalmente a iniciativa de falar sobre qualquer coisa nesses domínios. Cada vez que o faço, é porque fui convidado a fazê-lo; por causa da minha incompetência, eu nunca teria tomado a iniciativa de escrever sobre arquitetura ou desenho, salvo se a ocasião ou o convite tivesse se originado alhures. Isso vale para tudo o que fiz; creio que não teria escrito nada se não tivesse sido de alguma maneira provocado a fazê-lo. É claro, o senhor pode perguntar: o que é uma provocação? Quem é o outro? Portanto, é uma mistura, uma intercessão, de acaso e de necessidade. Peter Eisenman (1932-), arquiteto e teórico da arquitetura norte-americano, um dos principais representantes da arquitetura desconstrutivista. Derrida colaborou com Eisenman na elaboração de um jardim no Parque de Ia Villette, em Paris, em 1988, tomando como ponto de partida o texto que se transformará em Khôra (Jacques Derrida. Khôra. Paris: Galilée, col. "Incises", 1993). Ver Peter Eisenman e Jacques Derrida. Chora L Works. Jeffrey Kipnis e Thomas Leeser (Ed.). Nova York: The Monacelli Press, 1997. Sobre a colaboração dos dois, ver a entrevista Jacques Derrida. "Le pbilosophe et les architectes" em: Diagonal. 73, 1988. (N. T.)

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PETER BRUNETTE: Com relação a isso, como o senhor se sente agora que a sua obra começou a se deslocar para o campo do direito, do cinema, da arquitetura? O senhor tem algum arrependimento sobre o modo como o seu pensamento a desconstrução, o que quer que seja ela - foi mudado, moldado, de maneiras diferentes? JACQUES DERRIDA: É muito difícil determinar; há o feedback, mas cada vez ele retorna de uma forma diferente. Não posso encontrar a regra geral para isso; de uma certa maneira isso me surpreende. Fico, por exemplo, um pouco surpreso com a extensão com que esquemas desconstrutivistas podem ser postos em jogo ou investidos em problemáticas que são estranhas a mim, quer falemos de arquitetura, de cinema, ou de teoria do direito. Mas a minha surpresa é apenas meia surpresa, porque ao mesmo tempo o programa como eu o percebi ou concebi tornou isso necessário. Se alguém tivesse me perguntado vinte anos atrás se eu pensava que a desconstrução deveria interessar pessoas em domínios que me são estranhos, como a arquitetura e o direito, por uma questão de princípio, minha resposta teria sido: sim, é absolutamente indispensável, mas ao mesmo tempo eu nunca teria acreditado que isso aconteceria. Assim, quando confrontado com isso eu experimento uma mistura de surpresa e não surpresa. Obviamente, sou obrigado, até certo ponto, não a transformar, mas a ajustar ou deformar o meu discurso, em todo o caso, a responder, a compreender, o que está acontecendo. Isso não é sempre fácil. Por exemplo, no caso da teoria do direito, leio alguns textos, as pessoas me dizem coisas, mas ao mesmo tempo não conheço o que ela é por dentro; vejo algo do que está acontecendo nos "estudos críticos do direito", posso seguir o perfil conceituai do que está acontecendo naquele campo. E quando leio a sua obra sobre o cinema,3 compreendo-a, mas ao mesmo tempo apenas passivamente; não posso, por minha própria conta, reproduzila ou escrever sobre ela.

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Cf. Peter Brunette e David Wills. Screen/Play: Derrida and Film Theory. Princeton: Princeton University Press, 1989. (N. E.)

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Sempre me sinto à margem [on tbe edge] com relação a essas coisas, e isso me frustra - realmente não me é possível apropriar-me desse trabalho - , mas ao mesmo tempo o que me gratifica é que esse tipo de trabalho vem sendo feito por pessoas que são elas próprias competentes e podem falar de dentro do campo específico, com os seus próprios pressupostos, e suas próprias relações para com a natureza do campo, para com a situação político-institucional. Assim, o que cada um faz é determinado em grande parte pelos pressupostos específicos do seu campo intelectual e também por toda a sorte de coisas que pertencem à cena americana, ao seu perfil institucional, e assim por diante. Tudo isso me é estranho, e me faz permanecer à margem com relação a essas coisas, mas ao mesmo tempo é muito tranquilizador e gratificante, porque um trabalho real está sendo feito. Sou parte desse trabalho, mas ele está sendo feito em outros lugares. DAVID WILLS: Expandindo isso ainda mais, deixe-me lhe perguntar sobre um de seus textos que mais admiro, A carta postal,4 e sua relação com a tecnologia; menos a relação entre a tecnologia e o pensamento de Heidegger, e mais sobre o que o senhor diz em "Envios" e em outros lugares, por exemplo, sobre alta tecnologia. Por exemplo, cada vez que ouço falar de vírus de computador e leio sobre como mais e mais programas são escritos para nos defender contra tais ataques, pareceme que temos um exemplo do logocentrismo, em toda a sua obstinação, sendo confrontado com o que podemos chamar de inevitabilidade da adestinação. 5 Essa é uma questão muito básica que é central em seu trabalho. Mas enquanto especialistas agora vêem, por exemplo, o lado fundamentalmente "arquitetural" da sua obra, penso que permanece toda essa área das relações Jacques Derrida. La carte postale, de Socrate à Freud et au-delà. Paris: Aubier-Flammarion, col. "La philosophie en effet", 1980. (Cartãopostal: de Sócrates a Freud e além. Tradução de Simone Perelson e Ana Valéria Lessa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.) "Adestinação" é um termo cunhado por David Wills para traduzir o motivo recorrente de A carta postal sobre a carta/letra (lettre, em francês). Para Derrida, ela nunca chega ao seu destino ou destinatário, ela sempre falta ao seu destino ou à sua destinação. (N. T.)

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entre pensamento e comunicação, no sentido mais básico, em que as suas idéias mal começaram a ser retomadas. O senhor poderia comentar sobre isso? JACQUES DERRIDA: Sim, o senhor tem razão, e paradoxalmente a questão é mais intimamente ligada à minha obra. Digo-me com freqüência, e devo tê-lo escrito em algum lugar - tenho certeza de que escrevi isso em algum lugar6 - que tudo o que fiz, para resumi-lo muito redutoramente, é dominado pelo pensamento de um vírus, que poderia ser chamado uma parasitologia, uma virologia, já que o vírus é muitas coisas. Escrevi sobre isso em um texto recente sobre drogas. 7 O vírus é em parte um parasita que destrói, que introduz a desordem na comunicação. Até mesmo do ponto de vista biológico, isso é o que acontece com um vírus; ele descarrila um mecanismo do tipo comunicacional, a sua codificação e decodificação. Cf. Jacques Derrida. "Circonfession". Em: Jacques Derrida, com Geoffrey Bennington. Paris: Seuil, col. "Les Contemporains", 1989, p. 89 (reed., 2008, p. 84-85) (Circonfissão. Tradução de Anamaria Skinner. Em: Geoffrey Bennington; Jacques Derrida. Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 11-218). Essa questão do parasita e do vírus, nem morto nem vivo, está presente na obra de Jacques Derrida desde "La pharmacie de Platon" {La Dissémination. Paris: Seuil, col. "Tel Quel", 1972, p. 147 et seq. (A farmácia de Platão. Tradução de Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1997, 2. ed.) e Glas (Paris, Galilée, col. "La philosophie en effet", 1974); ela é igualmente ligada à lógica da espectralidade (cf., entre outros, Spectres de Marx. L'État de Ia dette, le travail du deuil et Ia nouvelle Internationale (Paris: Galilée, col. "La philosophie en effet", 1993) [tradução brasileira, Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994], Marx & sons (PUF e Galilée, 2002) et Échographies - de Ia télévision. Entretiens filmes com Bernard Stiegler (Paris: Galilée e INA, col. "Débats", 1996) e à questão da autoimunidade que atravessa todos os últimos textos de Derrida. Cf. também J. Derrida, "Uw ver à soie". Em Voiles, com Hélène Cixous. Paris: Galilée, col. "Incises", 1998, p. 85. [Tradução portuguesa "Um bicho-da-seda de si, pontos de vista passajados no outro véu". Tradução de Fernanda Bernardo. In: Véus... à vela. Coimbra: Quarteto Editora, 1998]. (N. E.) Jacques Derrida. "Rhétorique de Ia drogue". Points de suspension. Entretiens, seleção e apresentação de Elisabeth Weber, Paris: Galilée, col. "La philosophie en effet", 1992, p. 241-267.

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Por outro lado, é algo que não é nem vivo nem não vivo; o vírus não é um micróbio. E se seguirmos essas duas linhas, a do parasita que interrompe a destinação do ponto de vista comunicativo - interrompendo a escrita, a inscrição, a codificação e a decodificação da inscrição - e que, por outro lado, não é nem vivo nem morto, temos a matriz de tudo o que fiz desde que comecei a escrever. No texto referido há pouco, aludo à possível interseção entre a Aids e o vírus de computador como duas forças capazes de interromper a destinação. Ali onde eles estão concernidos, não se pode mais seguir os trilhos, nem os dos sujeitos, nem os do desejo, nem o sexual, e assim por diante. Se seguirmos a intercessão entre a Aids e o vírus de computador como o conhecemos agora, temos meios de compreender, não apenas do ponto de vista teórico, mas também do ponto de vista sócio-histórico, o que eqüivale à interrupção de absolutamente tudo no planeta, inclusive das agências policiais, do comércio, do exército, questões de estratégia. Todas essas coisas encontram os limites de seu controle, assim como a força extraordinária desses limites. É como se tudo o que venho sugerindo nos últimos 25 anos fosse prescrito pela idéia de destinerrância [destinerrance],9 o suplemento, o pbarmakon, todos os indecidíveis - é a mesma coisa. Isso também é traduzido, não apenas tecnologicamente, mas também tecnologicopoeticamente. PETER BRUNETTE: Falemos sobre a idéia do "aí" 9 do objeto visual, na pintura, escultura, e arquitetura, o que poderia

Palavra-valise cunhada por Derrida, formada por "destino" e "errância", utilizada pela primeira vez em Jacques Derrida. La carte postale, op. cit. (N. T.) Em inglês, "the thereness", neologismo cunhado a partir do advérbio de lugar, "there", que traduz "fó", em francês, "aí" ou "ali", em português. O original francês deveria ser "le là", que traduz o "Da" na expressão alemã, "Dasein", "existência" em alemão, tomado aqui a partir da elaboração heideggeriana sobre o "Dasein", o "ser-aí", "Pêtre-là". A noção é crucial em Ser e tempo, e nomeia o ser irredutivelmente deslocado espacialmente, não presente a si mesmo ou dado como ser, mas aberto, aí. Ao longo da entrevista o mesmo motivo retornará, discutindo-se o "aí" da obra de arte. Nessas ocasiões optou-se por grafar "aí" ou "ali" em itálico. (N. T.)

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ser chamado de um sentimento de presença. Em "+ R" o senhor se refere a um quadro como "tirando a respiração, um estranho a todo o discurso, condenado ao mutismo presumível da "coisa em si", [ele] restitui, em um silêncio autoritário, uma ordem de presença".10 Há algum tipo de presença fenomenológica que as palavras não têm, com a qual se tem que lidar no objeto visual? O cinema é talvez uma área intermediária porque é uma espécie de presente como um objeto visual, embora tenha que ser lido como as palavras... JACQUES DERRIDA: Essas são questões profundas e difíceis. Obviamente, a obra de arte espacial se apresenta como silenciosa, mas o seu mutismo, que produz um efeito de presença completa, pode como sempre ser interpretado de uma maneira contraditória. Mas, primeiro, deixe-me distinguir entre o mutismo e, digamos, o taciturno. O taciturno é o silêncio de alguma coisa que pode falar, enquanto chamamos de mutismo o silêncio de uma coisa que não pode falar. Ora, o fato de uma obra de arte espacial não falar pode ser interpretado de duas maneiras. De um lado, há a idéia do seu mutismo absoluto, a idéia de que ela é completamente estranha ou heterogênea às palavras, e pode-se ver nisso um limite em cuja base se monta uma resistência contra a autoridade do discurso, contra a hegemonia discursiva. Existe, ao lado desse tipo de obra de arte muda, um lugar, um lugar real, de cuja perspectiva, e no qual, as palavras encontram o seu limite. E assim, indo a tal lugar, podemos, de fato, observar ao mesmo tempo uma fraqueza e um desejo de autoridade ou hegemonia da parte do discurso, notadamente no que concerne à classificação das artes - por exemplo, em termos da hierarquia que torna as artes visuais subordinadas às artes discursivas ou musicais. Mas por outro lado, e este é o outro lado da mesma experiência, podemos sempre nos referir à experiência que nós, enquanto seres falantes - não digo "sujeitos" - , temos dessas obras silenciosas, pois podemos sempre recebê-las, lê-las, ou interpretá-las como discurso potencial. Quer dizer, essas 10

Jacques Derrida. "+ R (par dessus le marche)". Em: La Vérité en peinture. Paris: Flammarion, col. "Champs", 1978, p. 178.

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obras silenciosas já são de fato faladeiras, cheias de discursos virtuais, e desse ponto de vista, a obra silenciosa torna-se um discurso ainda mais autoritário - ela se torna o lugar mesmo de uma palavra que é tanto mais poderosa porque é silenciosa, e que carrega em si, como um aforismo, uma virtualidade discursiva que é infinitamente autoritária, em um certo sentido, teologicamente autoritária. Assim, pode ser dito que o maior poder logocêntrico reside no silêncio da obra, e a liberação dessa autoridade reside do lado do discurso, um discurso que vai relativizar as coisas, emancipando-se, recusando-se a ajoelhar-se diante da autoridade representada pela escultura ou pela arquitetura. É essa mesma autoridade que tentará de alguma maneira capitalizar, em primeiro lugar, o poder infinito do discurso virtual - há sempre mais a dizer, e somos nós que o fazemos falar mais e mais - e, em segundo lugar, o efeito de uma presença intocável, monumental, inacessível - no caso da arquitetura, essa presença é quase indestrutível, ou de qualquer maneira, imita a indestrutibilidade, provocando o efeito irresistível de uma presença falante. Assim, há duas interpretações - estamos sempre entre as duas, quer se trate de escultura, de arquitetura ou de pintura. Ora, o cinema é um caso muito particular: primeiro, porque esse efeito de presença é complicado pelo fato do movimento, da mobilidade, da sequencialidade, da temporalidade; segundo, porque a relação ao discurso é bastante complicada, sem falar da diferença entre o cinema mudo e o cinema sonoro, pois mesmo no filme mudo a relação para com a palavra é bastante complicada. Obviamente, se há uma especificidade da mídia cinematográfica, ela é estranha à palavra. O que quer dizer que mesmo o cinema mais falante supõe uma reinscrição da palavra dentro de um elemento especificamente cinematográfico não governado pela palavra. Se há algo específico ao cinema e ao vídeo - sem falar das diferenças entre vídeo e televisão - é a forma com a qual o discurso é posto em jogo, inscrito ou situado, sem em princípio governar a obra. Assim, desse ponto de vista, podemos encontrar no cinema os meios de repensar ou refundar todas as relações entre a palavra e a arte silenciosa, na medida em que elas acabaram sendo estabilizadas antes da aparição do cinema. Antes do advento do cinema havia

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a pintura, a arquitetura, a escultura, e dentro delas podiase encontrar estruturas que institucionalizaram as relações entre discurso e não discurso na arte. Se o advento do cinema permitiu algo complemente novo, foi a possibilidade de jogar com as hierarquias. Ora, aqui não estou falando do cinema em geral, pois eu diria que há práticas cinematográficas que reconstituem a autoridade do discurso, enquanto outras tentam fazer coisas que se assemelham mais de perto à fotografia ou à pintura - outras, ainda, que jogam diferentemente com as relações entre discurso, discursividade e não discursividade. Eu hesitaria em falar de qualquer arte, mas em particular do cinema, desse ponto de vista. Acho que há provavelmente mais diferença entre obras diferentes, entre diferentes estilos de obra cinematográfica, com respeito ao ponto que acabou de ser levantado sobre discurso e não discurso, do que há entre o cinema e a fotografia. Nesse caso é provável que estejamos lidando com muitas artes bem diferentes no interior do mesmo meio tecnológico - se definimos o cinema com base no aparelho técnico - e assim talvez não haja unidade na arte cinematográfica. Não sei o que os senhores pensam, mas um método cinematográfico dado pode ser mais próximo de um tipo de literatura do que outro método cinematográfico. E assim precisamos perguntar se o fato de identificar ou não uma arte presumindo que se possa falar de cinema como se soubéssemos o que seja a arte - procede do meio técnico, ou seja, se, no caso do cinema, ele procede de um aparelho como a câmera, que pode fazer coisas que não podem ser feitas pela escrita ou pela pintura. Isso é suficiente para identificar a arte, ou, na verdade, a especificidade de um filme dado depende afinal menos do meio técnico e mais da sua afinidade com uma obra literária dada, e não com outro filme? Não sei. Estas são, para mim, questões que não têm respostas. Mas ao mesmo tempo, sinto fortemente que não se deve reduzir a importância do aparelho fílmico. PETER BRUNETTE: O que o senhor responderia a alguém que fosse recalcitrante em relação à aplicação da desconstrução às artes visuais, alguém que dissesse que a desconstrução é boa para as palavras, para a escrita, porque o que o que está aí

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nunca é o que é significado, enquanto que na pintura tudo está sempre aí, e portanto a desconstrução não seria aplicável? JACQUES DERRIDA: Para mim isso é uma leitura equivocada. Eu tomaria quase a posição oposta. Eu diria que a desconstrução mais eficaz é aquela que não é limitada a textos discursivos e certamente não a textos filosóficos, embora pessoalmente - falo de mim mesmo como um agente entre outros do trabalho desconstrutivo - , e por razões relacionadas a minha própria história, eu me sinta mais à vontade com textos filosóficos e literários. E é possível que uma certa formalização teórica geral da possibilidade desconstrutiva tenha mais afinidade com o discurso. Mas a desconstrução mais eficaz, e eu disse isso com freqüência, é aquela que trata do não discursivo, ou de instituições discursivas que não têm a forma do discurso escrito. Desconstruir uma instituição obviamente envolve discurso, mas concerne também a algo muito diferente do que chamamos textos, livros, o discurso assinado por alguém, os ensinamentos de alguém. E fora de uma instituição, a instituição acadêmica, por exemplo, a desconstrução está operando, quer se goste ou saiba ou não, em campos que não têm nada a ver com o que é especificamente filosófico ou discursivo, seja na política, no exército, na economia, ou em todas as práticas ditas artísticas, e que são, pelo menos aparentemente, não discursivos ou estranhos ao discurso. Ora, como não há nada, e em particular nenhuma arte, que não seja textualizada no sentido que eu dou à palavra "texto" - que vai além do puramente discursivo - , há texto assim que a desconstrução é engajada nos campos ditos artísticos, visuais ou espaciais. Há texto porque sempre há um pouco de discurso em algum lugar nas artes visuais, e também porque mesmo que não haja nenhum discurso, o efeito do espaçamento já implica uma textualização. Por essa razão, a expansão do conceito de texto é estrategicamente decisiva aqui. Portanto, as obras de arte mais esmagadoramente silenciosas não podem evitar ser tomadas dentro de uma rede de diferenças e referências que lhes dá uma estrutura textual. Assim que há uma estrutura textual - embora eu não chegue a dizer que a desconstrução esteja contida nessa estrutura textual; por outro

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lado, ela não está tampouco fora dela - ela não está alhures. De todo modo, sendo bastante categórico, eu diria que a idéia de que a desconstrução deveria se confinar à análise do texto discursivo - sei que essa idéia é bastante difundida - é, na verdade, ou bem um grande equívoco ou uma estratégia política desenhada para limitar a desconstrução a assuntos de linguagem. A desconstrução começa com a desconstrução do logocentrismo, e assim, querer confiná-la ao fenômeno lingüístico é a mais suspeita das operações. PETER BRUNETTE: O efeito de presença que sempre me impressionou, e isso talvez seja totalmente idiossincrático, é a presença do corpo do artista - por exemplo, no empastamento em Van Gogh. Quando vejo um Van Gogh eu imediatamente sinto o seu corpo de alguma maneira de um modo que não acontece com a escrita. Em qualquer "traço", qualquer pincelada, há uma certa presença do artista. Não? JACQUES DERRIDA: Entendo o que o senhor quer dizer e compartilho completamente o seu sentimento. Na verdade, para mim o corpo não está ausente quando leio Platão ou Descartes. Isto dito, ele está ali de uma maneira diferente, ao passo que, quando vemos um quadro de Van Gogh, a maneira como a obra é, eu diria, assombrada pelo corpo de Van Gogh, é irrefutável, e penso que essa referência àquilo que o senhor chama de corpo torna-nos parte da obra, e da experiência da obra. Mas obviamente eu não traduziria isso como o senhor acabou de fazer. Eu diria que há uma provocação inegável que podemos identificar no que é pintado e assinado por Van Gogh, e que é tanto mais violenta e inegável em virtude de não estar presente. O que quer dizer que o próprio corpo de Van Gogh que assombra os seus quadros é tanto mais violentamente implicado e envolvido no ato de pintar na medida em que não estava presente durante o ato, pois o próprio corpo é irrompido, ou, digamos, fendido de não presença, pela impossibilidade de identificar-se consigo mesmo, ou simplesmente, de ser Van Gogh. Portanto, o que eu chamaria de corpo - sou favorável a falar do corpo deste ponto de vista - é uma presença. O corpo

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é, como dizer?, uma experiência no sentido mais viajante11 do termo: é uma experiência de enquadramentos, de deiscência, de deslocamentos. Portanto, vejo um Van Gogh deslocado, que é deslocado no processo de fazer uma performance de algo. Relaciono-me com Van Gogh em termos de sua assinatura - não quero dizer assinatura no sentido de anexar o seu nome, mas no sentido de que ele assina enquanto pinta - , e minha relação com a, ou experiência da, assinatura de Van Gogh é tanto mais violenta, tanto para ele quanto para mim, porque ela também envolve o meu próprio corpo - suponho que quando o senhor fala do corpo esteja falando também do seu - e de modo tanto mais inelutável, inegável, e apaixonado. Eu sou entregue [given over] ao corpo de Van Gogh como ele se entregava à experiência. Ainda mais porque esses corpos não estão presentes. A presença quereria dizer morte. Se a presença fosse possível, no sentido pleno de um ser que está aí onde ele está, que se reúne [se rassemble]12 aí onde ele está, se isso fosse possível, 11

Entre colchetes, "voyageur", em francês. (N. T.)

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"Se rassemble", em francês, "that gathers", em inglês, do verbo "rassembler", que pode ser traduzido por "reunir", "juntar", "ajuntar", "agrupar", ligado a toda uma gama de termos em francês, como "rassemblement", ("reunião", "ajuntamento"), "assemblée" ("assembléia"), "être ensemble" ("estar juntos"). "Rassemblement" está associado à reconstituição etimológica feita por Heidegger do termo "das Ding" em alemão. Veja-se, por exemplo, o trecho emblemático de "Bâtir babiter penser" ("Construir habitar pensar"; "Bauen Wobnen Denken"): "Seguindo a velha palavra de nossa língua, reunião se diz thing." ("Suivant un vieux mot de notre langue, rassemblement se dit thing"). E a nota de rodapé do tradutor francês, André Préau: "Este termo germânico [thing], como se sabe, designou primeiramente a assembléia pública ou judiciária, depois por extensão o caso judicial, a causa, o contrato, a condição ou a situação regulada pelo contrato ou pela decisão de justiça, e finalmente, a coisa. Em alemão, thing tornouse Ding". (Martin Heidegger. Essais et conférences. Tradução de André Préau. Paris: Gallimard, 1954, p. 181. Tradução francesa de Vortràge und Aufsàtze. Stuttgart: Verlag Günther Neske, [1954] 1997, 8. ed. Vejase na mesma coletânea de ensaios a conferência "A coisa", "La chose".) A tradutora brasileira de Heidegger, Mareia Sá Cavalcante Schuback, traduziu o termo por "reunião integradora". (Martin Heidegger. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Mareia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, 2. ed., p. 133). Optei por "reunir", ou "reunir-se", e "reunião". (N. T.)

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não haveria nem Van Gogh nem o corpo de Van Gogh, nem a experiência que podemos ter da obra de Van Gogh. Todas essas experiências, obras, ou assinaturas, só são possíveis na medida em que a presença não foi bem-sucedida em estar aí e em se reunir [assembling] aí. Ou, se o senhor quiser, o aí, o ser-aí [1'être-là], existe apenas com base nessa obra de rastros [traces]13 que se desloca. Dado que a obra é definida pela sua assinatura, a minha experiência da assinatura de Van Gogh é possível apenas na medida em que eu próprio contra-assino [countersign], ou seja, se, por minha vez, meu corpo for envolvido nisso. Isso não acontece instantaneamente; é uma coisa que pode durar, que pode recomeçar; há o enigma do resto,14 nomeadamente, que a obra resta, mas onde? O que quer dizer "restar" nesse caso? A obra está em um museu; ela me espera. Qual é a relação entre o original e o não original? Não há questão que seja mais tópica ou mais séria, a despeito das aparências. Mas não posso tratála aqui. De todo modo, a questão é diferente para cada "arte". E essa especificidade estrutural da relação original-reprodução poderia - pelo menos esta é a hipótese que estou adiantando fornecer o princípio de uma nova classificação das artes. Essas questões, como os senhores bem sabem, interrompem a categoria de presença como ela é normalmente entendida. Imaginamos que o corpo de Van Gogh está presente, e que a obra está presente, mas essas são apenas tentativas provisórias e imprecisas de estabilizar as coisas; elas representam uma angústia, uma inabilidade de fazer as coisas coligirem. Mas se o senhor me fizesse a mesma pergunta com relação ao cinema, como a formularia? No caso de Van Gogh, podemos dizer que há uma obra que é aparentemente imóvel, que está dependurada no museu, esperando por mim, que o corpo de Van Gogh estava ali etc. Mas no caso do cinema, a obra é essencialmente cinética, cinematográfica, e portanto móvel; o Optamos por traduzir "trace" por "rastro", sentido próprio do termo (e não por "traço", como às vezes é traduzido para o português). Ver a respeito nota 3 de "Rastro e arquivo". (N. T.) "Remainder", em inglês, "o que sobra", o "resto"; e "ío remam", "permanecer". (N. T.)

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signatário é mediado por um número considerável de pessoas, máquinas, e atores (que também assinam a obra), e é difícil saber com que corpo estamos lidando quando vemos um filme. Quanto a Van Gogh, podemos dizer que ele era um indivíduo com um pincel, mas no caso do filme, qual é o equivalente, onde está o corpo nesse caso? PETER BRUNETTE: Qual seria o equivalente em uma pintura dos tipos de efeito de assinatura que o senhor explora, digamos, em termos da poesia de Francis Ponge em Signéponge?15 JACQUES DERRIDA: Obviamente, o que parece à primeira vista distinguir a problemática da assinatura para as obras discursivas ou literárias é que nessas obras o que geralmente chamamos assinatura é um ato discursivo, um nome no sentido geral da palavra "assinatura", um nome que pertence ao discurso, embora eu tenha demonstrado que na verdade o nome não pertence mais à linguagem. Ele funciona no sistema lingüístico como um de seus elementos, mas como um corpo estranho. No entanto, é alguma coisa que é pronunciada, que pode ser transcrita em escrita fonética, e que portanto parece ter relações privilegiadas com elementos do discurso. Por outro lado, em uma obra pictórica, por exemplo, ou uma obra escultural ou musical, a assinatura não pode estar ao mesmo tempo dentro e fora da obra. Ponge pode jogar com o seu nome dentro e fora do poema, mas em uma escultura a assinatura é estranha à obra, como o é na pintura. Na música é mais complicado, porque também se pode jogar com a assinatura, pode-se inscrevê-la; por exemplo, Bach o fez. Pode-se transcrever o equivalente do nome na obra, como quando Bach escreveu o seu nome com letras representando notas.16 Portanto, pode-se assinar uma obra musical de dentro, 15

Jacques Derrida. Signéponge/Signsponge. Tradução Richard Rand. Nova York: Columbia University Press, 1984. [J. Derrida. Signéponge, Paris: Seuil, col. "Fictions & Cie", 1988. (N. E.)]

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Trata-se do chamado "motivo de Bach". Na nomenclatura alemã que traduz o nome das notas em letras (A=lá; B=si; dó=C etc), o si bemol é grafado como B, enquanto que o si natural é grafado

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exatamente como Ponge pode assinar o seu nome no interior de um poema. No caso da pintura, não é possível. Há casos em que pintores inscreveram os seus nomes nas suas obras, mas não em um lugar onde normalmente se assina, jogando assim com o que está fora. Mas tem-se ainda a impressão de que o corpo é estranho, de que ele é um elemento de discursividade ou textualidade dentro da obra. E aparentemente heterogêneo; não podemos transpor a problemática da assinatura literária para o campo das artes visuais. No entanto, para mim, o efeito da assinatura não pode ser reduzido ao efeito do patronímico. Podemos dizer que há uma assinatura cada vez que uma obra particular não é limitada ao seu conteúdo semântico. Voltemos à obra literária e à assinatura como ato de comprometimento [commission]. E preciso fazer mais do que escrever o seu nome para assinar. Em um formulário de imigração escrevemos o nome e depois assinamos. Portanto, a assinatura é algo diferente do que simplesmente escrever o seu próprio nome. E um ato, um performativo por meio do qual alguém se compromete a alguma coisa, por meio do qual se confirma de um modo performativo que se fez algo - que foi feito, que fui eu que o fez. Uma tal performatividade é absolutamente heterogênea; é um resto exterior a tudo o que na obra significa alguma coisa. Há uma obra ali - eu o afirmo, eu contra-assino. Há um ser-aí [être-là] da obra que é mais ou menos o conjunto de elementos semanticamente analisáveis. Um acontecimento teve lugar. Assim, haverá assinatura cada vez que um acontecimento ocorrer, cada vez que houver produção de uma obra cuja ocorrência não seja limitada ao que é semanticamente analisável. Isto é a sua significância: uma obra que é mais do que ela significa, que está ali, que resta ali. Portanto, desse ponto de vista, a obra então tem um nome. Ela recebe o seu nome. Da mesma maneira que a assinatura do autor não está limitada ao nome do autor, assim também a identidade da como H. Assim, teríamos B (si bemol)-A (lá)-C (dó)-H (si natural). O motivo aparece com insistência em obras de Bach, mas celebremente no contrapunctus XIX, a "Quádrupla fuga sobre o nome BACH", de A arte da fuga. (N. T.)

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obra não está necessariamente identificada com o título que ela recebe no catálogo. É um nome dado, e essa nomeação ocorre apenas uma vez, e assim há uma assinatura para cada obra de arte espacial ou visual, que afinal não é nada além da sua própria existência, o seu aí, a sua existência não presente, da obra como resto. Isso significa que se pode repeti-la, resenhá-la, caminhar em volta dela: ela está ali. Ela está ali, e mesmo se ela não significar nada, mesmo se ela não for exaurida pela análise de seu significado, pela sua temática e semântica, ela está ali em acréscimo ao que significa. E este excesso, obviamente, provoca o discurso ad infinitum; é nisso que consiste o discurso crítico. Uma obra é sempre inexaurível desse ponto de vista. Portanto, a assinatura não deve ser confundida nem com o nome do autor, com o patronímico do autor, nem com o tipo de obra, pois não é nada além do acontecimento da obra em si, na medida em que ela atesta de uma certa maneira - aqui eu retorno ao que estava dizendo sobre o corpo do autor - o fato de que alguém fez isso, e é isso que resta. O autor está morto - não sabemos nem mesmo quem ele ou ela é - mas isso resta. No entanto, e aqui está envolvido todo o problema político-institucional, ela não pode ser contra-assinada, ou seja, atestada como uma assinatura, salvo se houver um espaço institucional no qual ela pode ser recebida, legitimada, e assim por diante. É preciso haver uma "comunidade" social que diga que essa coisa foi feita - não sabemos nem mesmo por quem, não sabemos o que significa - no entanto, vamos pô-la em um museu ou em algum arquivo; vamos considerá-la como uma obra de arte. Sem a contra-assinatura política e social ela não seria uma obra de arte; não haveria assinatura. Na minha opinião, a assinatura não existe antes da contra-assinatura, que se fia na sociedade, nas convenções, nas instituições, nos processos de legitimação. Assim, não há obra assinada antes da contra-assinatura. Isso vale até mesmo para as obras-primas mais extraordinárias, Michelangelo, por exemplo. Se não há contra-assinatura, a assinatura não existe. Isso quer dizer que a contra-assinatura precede a assinatura. A assinatura não existe antes da contra-assinatura.

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Pensar em não ver DAVID WILLS: Existe alguma obra não assinada, então? JACQUES DERRIDA: Não.

DAVID WILLS: A idéia de uma obra representa um tipo de contra-assinatura? JACQUES DERRIDA: Exatamente. Há obras não assinadas no sentido ordinário, quer dizer, obras produzidas por autores anônimos. A sociedade reconhece que o patronímico do autor é às vezes desconhecido; ela não sabe que sujeito social produziu a obra. Isso é verdade. Mas essa obra existe apenas na medida em que ela é assinada, na medida em que se diz que há obra. Há uma assinatura - não sabemos qual, não sabemos o nome da pessoa que a produziu - mas a obra em si é a atestação de uma assinatura. Mas ela é uma atestação de uma assinatura apenas com base na contra-assinatura, isto é, as pessoas vêm e dizem: aí temos algo interessante, aí há um templo, um quadro, um filme. PETER BRUNETTE: É. Os historiadores da arte medieval e renascentista passam muito tempo tentando estabelecer o seu corpus em termos de autoria, que deve ser contra-assinado pela instituição da história da arte antes que se possa estabelecer o que é, o que a "obra" de Michelangelo é. JACQUES DERRIDA: Mas a tarefa de atribuir uma obra pode começar apenas depois que os receptores ou destinatários identificaram a obra como uma obra que merece ser atribuída, e assim é considerada já assinada. Não sabemos por quem, mas já é assinada porque nós a contra-assinamos. De outro modo, se não a reconhecemos, se dizemos que não é interessante, e a jogamos fora - isso pode acontecer, isso deve ter acontecido nesse momento está tudo acabado, não há assinatura. Assim, tudo começa com a contra-assinatura, com o receptor, com o que chamamos de receptor. A origem da obra de arte em última análise reside no destinatário, que não existe ainda, mas que está onde a assinatura começa. Em outras palavras, quando alguém assina uma obra, temos a impressão de que a

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assinatura é a iniciativa dela ou dele. É aí que começa; ela ou ele produzem essa coisa e então assinam. Mas essa assinatura já é produzida pelo futuro perfeito da contra-assinatura, que terá de vir assinar aquela assinatura. Quando assino pela primeira vez, quer dizer que estou escrevendo algo que, eu sei, deverá ser assinado apenas se os destinatários vierem contraassiná-lo. Assim, a temporalidade da assinatura é sempre esse futuro perfeito que naturalmente politiza a obra, que a entrega a uma outra pessoa, isto é, à sociedade, a uma instituição, à possibilidade da assinatura. E acho que é necessário aqui dizer "política" e "instituição" e não apenas "outrem," porque se há apenas um, se há hipoteticamente apenas um contra-assinante, não há assinatura. E com isso passamos do privado ao público. Uma obra é apenas pública; não há obra privada. Supondo que eu assine algo, uma carta, por exemplo; ela será recebida e rubricada por um possível destinatário, mas não será uma obra exceto se uma terceira pessoa, a "sociedade" como um todo, a tiver contra-assinado em um sentido virtual. Não funciona com apenas dois. Não sei se o senhor concordará comigo nisso, mas para mim não há obra de arte particular, e o que acabamos de analisar em termos de assinatura deve ocorrer em um público, e portanto em um espaço político. Mas talvez seja verdade que esse conceito de "publicidade" 17 não pertence mais a uma oposição rigorosa entre público e privado. DAVID WILLS: O que o senhor escreve sobre fotografias, pintura, ou arquitetura freqüentemente se fia na palavra, ou, digamos, em uma palavra. Por exemplo, no início de "Direito de olhares" 18 há uma voz que afirma que "apenas palavras me Entre colchetes, "publicité", em francês. (N. T,) 18

Jacques Derrida. "Right of Inspection", Tradução de David Wills. Art & Text, 32 (1989), p. 19-97; edição em livro: Right of Inspection. Nova York: Monacelli Press, 1998. [Droit de regards suivi de "Une lecture" por Jacques Derrida. Paris: Minuit, 1985; reed. Bruxelas, Les Impressions nouvelles, col. "Traverses", 2010, p. I-XLVIII. (N. E.)] Para as citações a que se refere David Wills em sua pergunta, cf. J. Derrida "Lecture". Em M.-F. Plissart, Droit de regards, op. cit., p. III: "Eu não lhe esconderia: apenas as palavras me interessam [...]"; "[...] deixá-la ouvir que essa obra-prima fotográfica não faz mais do que desenvolver um léxico [...]"

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interessam", e em seguida, uma outra voz que objeta que o senhor - concedo, não sabemos quem é "o senhor" - "o senhor apenas desenvolve um léxico". Podemos facilmente estabelecer esse léxico: há os jogos com "parte(ida)" naquele texto, por exemplo; há o "agora" [maintenant] na peça de Bernard Tschumi;19 há "subjétil" para Artaud. 20 Portanto, qual é o lugar do não verbal no seu discurso? Tenho a impressão, em vistas do que o senhor disse, de que isso tem muito a ver com a idéia (ibid., p. XX). O jogo de palavras "parte(ida)", "(de)parted" em inglês, faz referência ao início deste parágrafo: "Você [vous] não se contenta em nomear, você dá títulos a todo assunto. E você repete desde há pouco 'Ei-la que partiu' [La voilà partie], 'ela deixa o cômodo' [elle quitte Ia pièce], você joga com todos os sentidos dessas palavras (partes do corpo, em particular sexuais, partidas de damas, partes de um todo, parte em um litígio, as que foram partidas tornando-se também todas essas partes, em uma peça que é também as de teatro, o quarto ou a camera, o quarto [Ia pièce] ou o pião de uma partida de damas); você faz de 'parte/partida' [partie] uma peça essencial da peça e da 'peça' uma parte da partida ['une pièce essentielle de Ia pièce et de Ia 'pièce' une partie de Ia partie'], sem contar as outras palavras de que o senhor explora todas as potencialidades [...]" (ibid., p. XX). Derrida joga aqui com duas homofonias em francês. A primeira de ''partie", ao mesmo tempo "parte" e "partida" (de damas ou de futebol); ou ainda a forma participial feminina do verbo "partir", como em: "elle est partie", "tia. partiu", "ela foi embora". A segunda, de "pièce", ao mesmo tempo "peça" (de teatro, ou de um tabuleiro de damas), ou "cômodo" de um apartamento ou casa. O texto consiste em um polilóquio em que diversas vozes indicadas por um travessão dialogam entre si. As vozes se dirigem umas às outras utilizando o pronome de tratamento formal em francês, "vous", que traduzimos em geral em português do Brasil por "o senhor/a senhora". Neste contexto, optei por traduzir "vous" por "você" para manter a ambigüidade de gênero, parte do trabalho de desconstrução de Derrida da diferença sexual no texto. (N. T.) Jacques Derrida. "Point de folie - Maintenant Varchitecture" Tradução de Kate Linker. Architectural Association Files, 12 (1986), p. 4-19. [em Psyché. Inventions de Vautre [1986]. Paris: Galilée, col. "La philosophie en effet", 1987, p. 477-493. (N. E.)] Jacques Derrida. "Forcener le subjectile". Em: Paule Thévenin e Jacques Derrida. Antonin Artaud: Dessins et portraits. Paris: Gallimard, Munich, Schirmer/Mosel, 1986, p. 55-105. [Enlouquecer o Subjétil. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. Pinturas, desenhos e recortes textuais de Lea Bergstein. São Paulo: Ateliê Editorial Ltda., Editora da UNESP e Imprensa Oficial do Estado, 1998. (N. T.)]

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de mutismo, mas, no mesmo sentido, o senhor fala no seu texto sobre Laporte 21 de um efeito musical como "um resto que não pode ser assimilado por qualquer discurso." Como isso tudo se encaixa? JACQUES DERRIDA: É necessário responder em dois níveis. É verdade que apenas palavras me interessam. É verdade, por razões que têm a ver em parte com a minha própria história e arqueologia, que o meu investimento na linguagem é mais forte, mais antigo, e produz em mim mais gozo, do que o meu investimento nas artes plásticas, visuais ou espaciais. Os senhores sabem que eu amo as palavras. Tenho o maior desejo de me expressar em palavras. Para mim isso envolve o desejo e o corpo; no meu caso, a relação do corpo com as palavras é tão importante quanto com a pintura. Essa é a minha história, a história de meus investimentos e pulsões. Sou freqüentemente repreendido: "O senhor só gosta de palavras, é só o seu léxico que lhe interessa." O que faço com as palavras é fazê-las explodir para que o não verbal apareça no verbal. Quer dizer que faço as palavras funcionarem de uma tal maneira que em certo momento elas não pertencem mais ao discurso, ao que regula o discurso - daí os homônimos, as palavras fragmentadas, os nomes próprios que não pertencem essencialmente à linguagem. Ao tratar as palavras como nomes próprios, interrompe-se a ordem usual do discurso, a autoridade da discursividade. E se eu amo as palavras é também por causa da habilidade que elas têm de escaparem à sua forma própria, seja que me interessem como coisas visíveis, letras representando a visibilidade espacial da palavra, seja como alguma coisa musical ou audível. Ou seja, interesso-me também pelas palavras, paradoxalmente, na medida em que elas são não discursivas, porque é assim que elas podem ser usadas para explodir o discurso. É o que acontece nos textos a que o senhor alude. Nem sempre, mas na maioria dos meus textos há um ponto no qual as palavras funcionam de uma maneira não discursiva. De repente elas interrompem a ordem e as regras, mas não graças a mim. Presto 21

Jacques Derrida. "Ce qui reste à force de musique", em Psyché, op. cit., p. 101.

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atenção ao poder que têm as palavras, bem como, às vezes, às possibilidades sintáticas de romper o uso normal do discurso, o léxico e a sintaxe. Portanto, naturalmente, tudo isso trabalha através do corpo de uma linguagem. E óbvio que, com uma palavra como "subjéctil", só posso produzir, ou melhor, reconhecer os efeitos de desestabilização no interior da língua francesa, ou pelo menos dou prioridade ao francês. Por um lado, gosto realmente do francês e tenho um grande investimento nele, enquanto que, por outro lado, eu o maltrato, de uma certa maneira, para fazêlo sair de si mesmo. Assim, eu me explico com o corpo das palavras - aqui penso que se pode verdadeiramente falar do "corpo de uma palavra", com as reservas mencionadas acima, de que é um corpo que não está presente a si mesmo - , e é o corpo de uma palavra que me interessa na medida em que ele não pertence ao discurso. Portanto sou apaixonado pelas palavras, e como alguém apaixonado pelas palavras, trato-as como corpos que contêm a sua própria perversidade - uma palavra de que não gosto muito porque é demasiado convencional - , digamos, a desordem regulada das palavras. Assim que isso ocorre, a linguagem se abre para as artes não verbais. Por essa razão é especialmente na lida com a pintura e a fotografia, por exemplo, que corro riscos com tais aventuras verbais como "subjéctil", ou com um número de outras palavras, em "Direito de olhares". É quando as palavras começam a enlouquecer desse modo, e não se comportam mais com propriedade com relação ao discurso, que elas têm mais relação com as outras artes, e, inversamente, isso revela como as artes aparentemente não discursivas, como a fotografia e a pintura, correspondem à cena lingüística. Mas tais palavras estão relacionadas com a matéria do seu signatário - isso é evidente no caso de Artaud, e mesmo no caso da fotógrafa Plissart. Há palavras que funcionam neles, quer eles saibam quer não; eles estão no processo de serem construídos por palavras. DAVID WILLS: Levando a questão um pouco adiante, discutamos sobre música, que é uma arte predominantemente não verbal. Observo que o senhor até agora não escreveu

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nada sobre música, mas tenho a impressão de que a palavra "vem" [viens] discutida em De um tom apocalíptico adotado recentemente em filosofia,11 tem uma ressonância inteiramente musical. Não posso pensar em nenhum outro modo de descrevêlo e me pergunto assim se não há uma força de música23 naquela palavra. JACQUES DERRIDA: De uma certa maneira - e aqui a minha resposta será um pouco ingênua - pode-se dizer a mesma coisa sobre isso. A resposta mais ingênua é que a música é o objeto do meu desejo mais forte, e ao mesmo tempo ela permanece completamente proibida. Não tenho qualquer competência, não tenho nenhuma cultura musical apresentável. Assim, meu desejo permanece completamente paralisado. E tenho mesmo mais medo de dizer tolices nessa área do que em qualquer outra. Isto dito, a tensão no que leio e no que escrevo, e no tratamento das palavras sobre as quais acabo de falar, tem provavelmente algo a ver com a sonoridade não discursiva, embora eu não saiba dizer se a podemos chamar de musical. Tem algo a ver com o tom, o timbre, a voz, algo a ver com a voz - porque ao contrário da tolice que circula a esse respeito, nada me interessa mais do que a voz, mais precisamente a voz não discursiva, mas voz apesar de tudo. Assim, já que o senhor mencionou a palavra "vem" [viens], parece-me que eu tentava dizer que o que contava não era a palavra "vem," a semântica, o conceito de "vir," mas o pensamento de "vir" ou que o próprio acontecimento dependia da proferição [profération], do chamado performativo de "vem", e que isso não foi exaurido em seu significado. Endereçandome ao outro, digo a "vinda" ao outro. Digo "vem," mas quero dizer um acontecimento que não deve ser confundido com a palavra "vem" como ela é dita na linguagem. E alguma coisa que pode ser substituída por um signo, por um "ah," por um grito, que significa "vem." Não é em si uma presença plena; é um diferencial, isto é, é dado pelo tom e as gradações ou 22

Jacques Derrida. D'un ton apocalyptique adopté naguère en pbilosophie. Paris: Galilée, col. "La philosophie en effet", 1983.

23

Entre colchetes, "une force de musique", em francês. (N. T.)

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pelos vazios de tonalidade. Portanto, esses vazios, esse tom diferencial, está evidentemente ali, e é isso que me interessa. Voltando à ingenuidade de minha resposta, quando escrevo, a coisa mais difícil, o que me causa mais angústia, sobretudo no início, é achar o tom certo. Ultimamente, meu problema mais sério não é decidir o que quero dizer. Cada vez que começo um texto, a angústia, o sentimento de fracasso, vem do fato de que sou incapaz de estabelecer uma voz. Pergunto-me com quem estou falando, como vou jogar com o tom, o tom sendo precisamente o que informa e estabelece a relação. Não é o conteúdo, é o tom, e desde que o tom nunca está presente a si mesmo, ele é sempre escrito diferencialmente; a questão é sempre essa diferencialidade do tom. No interior de cada nota há um diferencial, mas quando se escreve um texto desenhado para ficar, seja um texto discursivo, seja um texto cinematográfico, ou o que quer que seja, a questão é o tom, as mudanças de tom. Portanto, imagino que quando escrevo, resolvo meus problemas de tom procurando uma economia - não consigo achar outra palavra - , uma economia que consiste em sempre pluralizar o tom, em escrever em muitos tons, de modo a não me permitir ser confinado a um único interlocutor ou a um único momento. Acho que, afinal de contas, o que me mais me interessa nos textos que leio e nos textos que escrevo é precisamente isso. Tudo isso merece ser mais analisado, mas é isso, como ele se desloca, move-se de uma frase para outra, de um tom para o outro. Tais análises são raramente realizadas - não li muitos trabalhos sobre o assunto - mas permanece uma questão importante. E seria uma análise de tipo pragmático, que não consiste em determinar o que alguma coisa significa, qual é a tese, o tema, ou o teorema, pois isso não é tão interessante nem tão essencial; o que é mais importante é o tom, e saber a quem ele é endereçado para produzir tal efeito. Obviamente, ele pode mudar de uma sentença para outra ou de uma página para outra. E já que os senhores estão fazendo perguntas sobre os meus textos, eu diria que o que eles têm, em última análise, de mais análogo para com as obras espaciais, arquiteturais e teatrais é a acústica e as vozes. Escrevi muitos textos com várias vozes, e neles o espaçamento é visível. Há várias pessoas falando, e

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isso necessariamente implica uma dispersão de vozes, de tons que se espaçam, que automaticamente se espaçam. Mas mesmo quando isso não é marcado no texto por novos parágrafos, por deslocamentos gramaticais ou gramaticalmente determinados de uma pessoa para outra, tais efeitos são evidentes em muitos dos meus textos: de repente, a pessoa muda, a voz muda, e tudo se espacializa. As reações das pessoas, seus investimentos libidinais, positivos ou negativos, a sua rejeição ou ódio, podem provavelmente ser mais bem explicados em termos de tom e voz do que em termos do conteúdo do que eu de fato digo. Elas podem tolerar o fato de que eu tome essa ou aquela posição, mas o que realmente as chateia é essa espacialização, o fato de que não se sabe mais com quem se está lidando, quem assina, como tudo se reúne [se rassemble]; é isso que os perturba, que os amedronta. E esse efeito de espacialização - nos meus textos ou nos de outros - às vezes amedronta ainda mais do que as próprias obras espaciais, porque até mesmo obras espaciais que deveriam produzir esse efeito ainda dão essa impressão de uma espécie de reunião [rassemblement], Podemos dizer que a obra está aí, é uma coisa terrível, é insuportável, é ameaçadora, mas na verdade se passa no interior de um uma moldura [frame], ou é feito de pedra, ou está dentro de um filme que começa e termina; há um simulacro de reunião e assim a possibilidade de controle, a possibilidade de proteção para o espectador e o receptor. Mas há tipos de textos que não terminam nem começam, não dispersam as suas vozes, que dizem coisas diferentes, e que como resultado atrapalham essa reunião [gatbering]. Pode-se ouvir mas não se consegue objetivar a coisa. Portanto, com o meu trabalho, há aqueles que gostam e aqueles que não. Mas acho que é sempre uma questão de espaço, do não controle do espaço, e não apenas da voz ou de alguma coisa nas vozes. DAVID WILLS: A idéia de tom pode ser relacionada a alguma coisa mais pertinente para as artes visuais, como a questão da beleza? JACQUES DERRIDA: A questão da beleza é muito difícil. Não sei. Naturalmente poderíamos evocar os discursos

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canônicos sobre a beleza, falar de Kant, e assim por diante, mas isso não seria interessante aqui. Pessoalmente, não posso tratar a beleza como efeito separado, embora eu seja sensível a ela, quer seja uma questão de beleza dentro da arte ou fora da arte. Em nenhum dos casos, posso separá-la da experiência do corpo de que falamos antes, e assim da experiência do desejo; naturalmente, a arte é libidinizada. Pelas razões que acabo de mencionar, sou provavelmente mais sensível ao que trabalha através da voz, à beleza das tonalidades. É por essa razão afinal que devo dizer - ainda no registro ingênuo - que sou raramente arrebatado pela beleza de obras pictóricas ou arquiteturais; quer dizer, elas não me excitam. Eu raramente perco o fôlego por causa de uma pintura. Por outro lado, isso às vezes ocorre de fato com a música ou quando escuto a palavra falada ou textos lidos - ao ouvir a voz, quero dizer - e acontece freqüentemente com o cinema, mas apenas na medida em que vem do que no desejo trabalha a voz [ce qui dans le désir travaille Ia voix]. Pode acontecer com um filme mudo, mas apenas porque o filme mudo nunca é silencioso. Assim, eu diria que para mim a experiência da beleza, se ela existe, é inseparável das relações com o outro e do desejo por ele, na medida em que ela trabalha através da voz, através de alguma coisa como um diferencial tonai - sendo mais específico, através da voz como algo que intensifica tanto mais o desejo porque o separa do corpo. Há um efeito de interrupção, de suspensão. Pode-se fazer amor com uma voz mas sem fazer amor. A voz separa. E assim trata-se do que quer que seja na voz que provoca o desejo; é uma vibração diferencial que ao mesmo tempo interrompe, atrapalha, previne o acesso, mantém uma distância. Para mim, isto é a beleza. Falamos de beleza diante de alguma coisa que é, ao mesmo tempo, desejável e inacessível, alguma coisa que me fala, que me chama, mas ao mesmo tempo me diz que é inacessível. Então posso dizer que ela é bela, que ela existe além, que ela tem um efeito de transcendência, é inacessível. Assim, não posso consumi-la ela não é consumível; é uma obra de arte. Esta é a definição de uma obra de arte, que ela não é consumível. A beleza é alguma coisa que acorda/desperta o meu desejo ao dizer "você não me consumirá". E um alegre trabalho de luto, embora não seja

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nem trabalho nem luto. Por outro lado, se posso consumi-la, digo que não é bela. É por isso que eu teria mais dificuldade em dizer que um quadro ou uma peça de arquitetura é belo. Poderia dizer que é, mas não seria capturado por ela, não ficaria comovido pelo mesmo sentimento de beleza. Entretanto, posso ficar comovido, no caso de um discurso finito, quando há seres que falam, ou mesmo, no caso de textos, um poema, por exemplo, quando há efeitos de uma voz, que chama e se dá ao se recusar. Tudo o que se pode dizer é que a coisa é bela, e que você não é responsável por isso. Só pode acontecer com você - como é o caso com a assinatura que discutimos antes - e ao mesmo tempo você não tem nada a fazer com isso. Nesse momento você está morto; a obra não precisa de você.24 Há uma voz que diz que isso só pode se passar com você [ne peut se passer qiCavec toi], mas não precisa de você [se passe de toi]. Isto é a beleza; é triste, o luto. Poder-se-ia, em um outro contexto, ter uma discussão mais escolar sobre a beleza, mas estou tentando dizer algo diferente aqui. PETER BRUNETTE: Nos "Cinqüenta e dois aforismos" 25 o senhor fala bastante sobre a relação da arquitetura com o pensamento, com a filosofia [thougbt], a analogia entre discurso e todas as artes espaciais. O que o senhor acha da relação da linha, da forma, e da cor com o pensamento? Quando o senhor diz "artes espaciais", em vez de artes visuais, muda alguma coisa? A predominância logocêntrica do eu e do olho26 na visão é negada quando o senhor põe essas obras no reino do espacial? JACQUES DERRIDA: Há um elemento de acaso no meu uso da palavra "visual" - não sei como ajustar o meu discurso 24

Entre colchetes, "se passe de toi", em francês. Derrida joga nessa frase e nas seguintes com sentidos idiomáticos do verbo "passer", em francês. "Se passer de", "não precisar de"; "se passer avec", "passar-se com". (N. T.)

25

Jacques Derrida. "Fifty-two Aphorisms for a Foreword". Em: Deconstruction: Omnibus Volume, op. cit., p. 69. ["Cinquante-deux aphorismes pour un avant-propos". Em: Psyché, op. cit., p. 509 et seq. (N. E.)]

26

Jogo de palavra em inglês, entre duas palavras homófonas, "1", "eu"; e "eye", "olho". (N. T.)

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às suas expectativas - mas se de fato eu digo "espacial" mais facilmente do que "visual", eu daria a seguinte razão: é porque não estou certo de que o espaço seja essencialmente entregue [livre à] ao olhar. Obviamente, quando digo "artes espaciais", isso me permite, de um modo econômico e estratégico, ligar essas artes a um conjunto geral de idéias sobre o espaçamento, na pintura, na fala, e assim por diante; e também porque o espaço não é necessariamente aquilo que é visto, como é para um escultor ou um arquiteto, por exemplo. O espaço não é apenas o visível, e sobretudo - isso nos leva de volta ao texto que mencionei antes de começarmos, sobre a cegueira27 - o invisível, para mim, não é apenas o contrário da visão. Isso é difícil de explicar, mas naquele texto tentei demonstrar que o pintor ou o desenhista é cego, que ele ou ela escreve, desenha, ou pinta, como uma pessoa cega - trata-se de uma experiência da cegueira. Assim, as artes visuais são também artes do cego. Por essa razão eu falaria de artes espaciais. Isso me permite, mais convenientemente, ligá-las à noção de texto, de espaçamento, e assim por diante. Vamos agora à segunda parte de sua pergunta. Obviamente, a palavra "pensamento" não funciona para mim nesse contexto, exceto na medida em que posso, para efeitos de uso, contar com uma distinção feita alhures entre pensamento e filosofia. O pensamento não é exaurido pela filosofia. A filosofia não é apenas um modo do pensamento, e é na medida em que o pensamento excede a filosofia que ele me interessa. Disso se presume que haja artes práticas do espaço que excedem a filosofia, que resistem ao logocentrismo filosófico, e que não são simplesmente naturais, ou, como alguém as chamaria, atividades animais - não são apenas da ordem das necessidades imediatas. Neste ponto é necessário dizer que há pensamento, alguma coisa que produz sentido, sem pertencer à ordem do sentido, que excede o discurso filosófico e questiona a filosofia, que potencialmente contém um questionamento da filosofia, 27

Jacques Derrida. Mémoires d'aveugle. Uautoportrait et autres ruines. Paris: Réunion des musées nationaux, col. "Parti pris", 1990. [Há uma tradução portuguesa de Fernanda Bernardo Memórias de cego: o autoretrato e outras ruínas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.]

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que vai além da filosofia. Isso não quer dizer que um pintor ou um diretor de cinema tenha os meios para questionar a filosofia, mas que o que ela ou ele cria torna-se portador de algo que não pode ser controlado pela filosofia. Assim, há pensamento ali. Portanto, cada vez que há um avanço, um acontecimento arquitetural ou pictórico, seja uma obra particular ou uma nova escola de estilo arquitetural, seja um novo tipo de acontecimento artístico, o pensamento está envolvido, e não apenas no sentido que acabei de descrever. Isso envolve o pensamento no sentido da memória da história e da tradição da obra, ou da arte em geral. Mas isso não quer dizer que os artistas conheçam a história, ou que os diretores de cinema devam conhecer a história do cinema, mas o fato de eles inaugurarem alguma coisa, de eles produzirem um tipo de obra que não era possível, digamos, vinte anos antes, pressupõe que em suas obras a memória da história do cinema está não obstante registrada, e portanto que ela foi interpretada: é pensamento. O que chamo pensamento é apenas isso; alguma coisa foi interpretada. Assim, quando falo de pensamento em funcionamento na arquitetura, como poderia ser dito com respeito à pintura ou às belas artes, estou fazendo uma distinção entre pensamento e filosofia. Estou me referindo a algo em excesso do filosófico, algo não apenas da ordem de um terremoto, ou de um instinto animal, assim como à autointerpretação, 28 à interpretação da própria memória. O que chamo de pensamento é um gesto polêmico com respeito às interpretações correntes, segundo as quais a produção de uma obra arquitetural ou cinematográfica é, se não natural, pelo menos ingênua em termos de discursos críticos ou teóricos, que são sempre essencialmente filosóficos, como se o pensamento não tivesse nada a ver com a obra, como se esta não pensasse, enquanto alhures o teórico, o intérprete ou o filósofo pensam. Portanto a idéia é indicar de uma maneira polêmica que o pensamento está ocorrendo na experiência da obra, ou seja, que o pensamento está incorporado nela há uma provocação para pensar da parte da obra, e essa provocação para pensar é irredutível. Obviamente, isso está carregado de pensamento porque assume um monte de coisas, 28

Entre colchetes, "auto-interprétation"

em francês. (N. T.)

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como a distinção heideggeriana entre filosofia e pensamento. São palavras de Heidegger que estou usando quando digo que a filosofia é apenas um modo de pensamento - é quase uma citação direta de Heidegger de que me apropriei - mas ao mesmo tempo eu a uso de uma maneira que é anti-heideggeriana.29 A fim de verdadeiramente interpretar o que digo sobre o pensamento arquitetural, é necessário, primeiro, entender a referência a Heidegger, e segundo, entender que o texto inteiro sobre a arquitetura é anti-heideggeriano. É um argumento contra a noção heideggeriana de habitação, da obra de arte como habitação. 30 Minha objeção a Heidegger, na verdade, freqüentemente começa com as artes espaciais. Isso é porque penso que a hierarquização das artes que ele pratica no seu discurso sobre a arte e a pintura, ou sobre a poesia, repete um gesto filosófico clássico; é contra isso exatamente que me bato. Assim não é apenas um argumento contra Heidegger que era seguida aplico ao domínio da arte; é na verdade com base nas artes espaciais, ou começando com a questão do espaço, que questiono Heidegger, em particular no domínio do arquitetural e do que ele diz da habitação. DAVID WILLS: Podemos voltar ao seu texto sobre a fotografia, "Direito de olhares" com Marie-Françoise Plissart? Estou me referindo ao que o senhor me disse antes concernindo ao problema da tradução, ao fato de que o texto não foi aceito por um editor americano. 29

A distinção entre a filosofia (Philosopbié) identificada pura e simplesmente à metafísica e o pensamento (Denken) atravessa a obra de Heidegger desde Ser e tempo. Para uma explicitação tardia (1964, 1966), bastante didática, da distinção, ver Martin Heidegger. "O fim da filosofia e a tarefa do pensamento". Tradução de Ernildo Stein. Em Martin Heidegger. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. Col. "Os Pensadores". (Tradução de "Das Ende der Pbilosophie und die Aufgabe des Denkens". Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1968; tradução francesa: "La fin de Ia pbilosophie et Ia tache de Ia pensée". Tradução de Jean Beaufret e François Fédier. Em Questions III et IV. Paris: Gallimard, col. "Tel", 1966/1976). (N. T.)

30

Martin Heidegger. "Construir, habitar, pensar. Em: Ensaios e conferências, op. cit. Tradução brasileira de "Bauen Wohnen Denken". Em Vortrãge und Aufsãtze, op. cit. (N. T.)

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JACQUES DERRIDA: A questão daquela tradução é complicada. Primeiro, é um livro muito difícil de traduzir, notadamente em termos da problemática que discutimos antes, o modo como ele joga com palavras francesas, mas mais do que isso, porque tento demonstrar que as próprias fotografias procedem de uma espécie de jogo implícito com o francês que é intraduzível, é como se essa obra fotográfica pudesse ser produzida apenas na língua francesa - como se não apenas o meu texto mas as fotografias fossem intraduzíveis. Lembreime do que aconteceu no caso da tradução japonesa do texto. Por causa das diferenças entre a linearidade da esquerda para a direita da escrita ocidental e a progressão vertical da direta para a esquerda do japonês, e pelo fato de uma linearidade semelhante ocorrer tanto no interior de uma fotografia quanto de uma fotografia a outra, não foi possível reproduzir as fotografias na ordem "correta" no texto japonês. Na verdade, o editor inverteu a ordem original das fotografias, mas isso apenas confundiu os leitores japoneses, porque ainda assim os olhares não conseguiram casar uma fotografia com a outra. O que chamei de intraduzibilidade do texto tornou-se assim um fato no japonês. Portanto, antes de mais nada, o texto é muito difícil de traduzir por razões que são dadas no próprio texto. Isto dito, no entanto, se ele foi publicado em inglês apenas na Austrália, imagino que foi também por outras razões - não sei quais, só tenho hipóteses formadas depois de falar com várias pessoas. Parece que, apesar de tudo, no campo da publicação acadêmica americana, publicar a "obscenidade" das fotografias tornou-se uma questão. Quer dizer que meus editores americanos, editoras universitárias respeitáveis, ou bem não queriam publicá-lo ou não queriam associar o meu nome com fotografias de cenas de amor lésbico, e assim por diante, e assim disseram que não lhes interessava. Por exemplo, fui informado por uma delas, por intermédio de um editor que se gabava de saber alguma coisa sobre fotografia, que as fotografias não eram interessantes. Não sei o que vale essa avaliação, se era sincera ou não. Não sou capaz de julgar, não sei o que os senhores pensam disso. Talvez ele estivesse certo, mas a obra consistia em muito mais do que simplesmente de fotografias. Nesse caso, havia uma

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relutância que não posso explicar. Só posso conjecturar que a resistência a esse tipo de imagem no campo da publicação acadêmica é maior do que eu pensava. Sou muito ingênuo, porque na minha avaliação confusa do que está acontecendo nos Estados Unidos não achava possível que esse tipo de puritanismo fosse tão predominante. Desse ponto de vista esse país permanece bastante enigmático para mim. Uma liberdade quase não cerceada coexiste proximamente com os mais ridículos moralismos de proibição; a proximidade dos dois é muito difícil de compreender. PETER BRUNETTE: Eu gostaria de perguntar agora alguma coisa sobre a assim chamada negatividade da desconstrução. No final de "Cinqüenta e dois aforismos" o senhor faz uma chamada sobre não destruir as coisas, sobre encontrar algo afirmativo: "O sem-fundo de uma arquitetura 'desconstrutiva' e afirmativa pode causar vertigem, mas não é o vazio [le vide], não se trata do resto escancarado e caótico, o hiato da desconstrução", 31 O senhor aponta para esse lugar afirmativo na sua obra, mas nunca o nomeia. Esse lugar pode ser nomeado? JACQUES DERRIDA: Não é um lugar; não é um lugar que realmente existe. E um "vem" [viens]; é o que eu chamo uma afirmação que não é positiva. Ele não existe, não está presente. Posso sempre distinguir a afirmação da posição de uma positividade. Assim, é uma afirmação que é muito arriscada, incerta, improvável; ela escapa inteiramente ao espaço da certeza. Antes de voltar a isso, já que o senhor citou essa passagem, posso dizer que insisto nesse ponto no texto sobre a arquitetura por duas razões: primeiro, porque na verdade as pessoas podem dizer que a arquitetura desconstrutivista é absurda porque a arquitetura constrói. Então é necessário explicar o que o termo significa no texto, que "arquitetura desconstrutivista" se refere precisamente ao que acontece em termos de "reunião" 31

Cf. Jacques Derrida, "Cinquante-deux aphorismes pour un avantpropos". Em: Psyché, op. cit., p. 518. (N. E.)

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[gathering],32 o estar juntos [être ensemble], a assembléia, o agora [maintenant],33 a manutenção. A desconstrução não consiste simplesmente em dissociar, desarticular ou destruir, mas em afirmar um certo "estar juntos", um certo agora [maintenant]; a construção só é possível na medida em que as próprias fundações forem desconstruídas. Afirmação, decisão, invenção, o surgimento [coming about] do constructum não é possível salvo se a filosofia da arquitetura, a história da arquitetura, as próprias fundações forem questionadas. Se as fundações estiverem seguras, não há construção; tampouco há qualquer invenção. A invenção supõe uma indecidibilidade; ela supõe que em um dado momento não haja nada. Fundamos com base em uma não fundação. Assim, a desconstrução é a condição da construção, da verdadeira invenção, da verdadeira afirmação que mantém alguma coisa junta, que constrói. Desse ponto de vista, só a desconstrução, só um certo apelo ou uma chamada pela [appel de] desconstrução, pode realmente inventar arquitetura. Assim, a passagem que o senhor citou tinha o propósito de responder àqueles que ficam amedrontados com a idéia de uma arquitetura desconstrutivista, àqueles que a acham ridícula, mas em segundo lugar, ela também tinha o propósito de responder a discursos no interior do campo arquitetural que são um pouco negativistas, discursos como os de Eisenman, por exemplo. Uma carta que escrevi a ele sobre esse assunto foi publicada recentemente.34 Na discussão teórica sobre a sua obra ele freqüentemente apresenta um discurso de negatividade que é muito fácil - ele fala da arquitetura da ausência, da arquitetura do nada [rien], e sou cético quanto a discursos sobre ausência e negatividade. Isso se aplica também a alguns outros arquitetos, 32

Em inglês no original. (N. T.)

33

Derrida associa ao jogo de palavras translinguístico com "to gatber", em português, "reunir", "juntar" (ver nota 12); e "rassembler", em português, "reunir", "juntar"; "assemblée", "assembléia", com o de "maintenant", "agora", mas que etimologicamente vem de "main tenant", literalmente "segurando a mão", "à mão", "com a mão mantida junto". (N. T.)

34

Jacques Derrida. "A Letter to Peter Eisenman", Assemblage, n. 12 (Ago. 1990), p. 7-13.

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como Libeskind.35 Entendo o que motiva as suas observações, mas elas não são suficientemente cuidadosas. Ao falar de suas próprias obras eles tendem com excessiva facilidade a falar de vazio, negatividade, ausência, com harmônicos teológicos também, e algumas vezes harmônicos teológico-judaicos. Nenhuma arquitetura pode ser chamada de judaica, é claro, mas eles recorrem a uma espécie de discurso judaico, uma teologia negativa sobre o assunto da arquitetura. Assim, minha alusão deve ser entendida nesse sentido. Ora, o que é esse chamado? Não sei. Se soubesse, nada jamais aconteceria. O fato é que, para aquilo que convenientemente chamamos desconstrução se pôr em movimento, 36 esse chamado é necessário. Ele diz "vem", mas vir aonde, eu não sei. Isso não quer simplesmente dizer que eu seja ignorante; o chamado é heterogêneo ao conhecimento. Para que esse chamado exista, a ordem do conhecimento precisa ser fendida. Se podemos identificar, objetificar, reconhecer o lugar, a partir desse momento não há chamado. Para que haja chamado, e para que a beleza de que falamos antes exista, as ordens de determinação e de conhecimento precisam ser excedidas. E em relação ao não conhecimento que o chamado é feito. Portanto, eu não tenho uma resposta. Não posso dizer-lhe: "é isto". Eu de fato não sei, mas esse "não sei" não resulta só de uma ignorância, de ceticismo, niilismo ou obscurantismo. Esse não conhecimento é a condição necessária para alguma coisa acontecer, para que a responsabilidade seja assumida, para que uma decisão seja tomada, para que um acontecimento ocorra. 35

Daniel Libeskind (1946- ), arquiteto de origem polonesa, naturalizado americano, que vive em Berlim desde 1985, autor de obras como o Museu judaico de Berlim. (N. T.) Cf. "Response to Daniel Libeskind", seguido de "Discussion" com Daniel Libeskind, Jeffrey Kipnis e Catherine Ingraham. Research in Pbenomenology (Atlantic Highlands, NJ, Humanities Press International), v. XXII, n. 1, 1992, p. 88-94, 95102; retomado em Daniel Libeskind: radix-matrix. Architecture And Writings, traduzido do alemão por Peter Green, Andréa P. A. Belloli (Ed.), Jacques Derrida, Kurt W. Forster, Daniel Libeskind, Alois Martin Müller, Bernhard Schneider e Mark C. Taylor. Munich e Nova York: Prestei, 1997, p. 110-112-115. (N. E.)

36

Entre colchetes, "se mettre en mouvement",

em francês. (N. T.)

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É necessário que não sejamos capazes de responder à questão, e cada acontecimento - quer ele consista em um acontecimento na vida de alguém ou um acontecimento como uma obra de arte - cada acontecimento tem lugar onde não havia lugar, onde não sabíamos que estava o lugar, tem lugar onde não havia lugar. Ele fornece o canal e, assim fazendo, prescreve que o canal não seja conhecido de antemão, que não seja programável. Depois podemos imaginar ou determinar programas, podemos fazer a análise. Se uma forma de arte surge em tal ou qual momento, é porque as condições históricas, ideológicas e técnicas a tornam possível, e assim a posteriori podemos determinar o lugar da espera, por assim dizer, "a expectativa," a estrutura da espera, a estrutura de acolhimento [structure cPaccueil}. Se pudéssemos fazer isso de uma maneira exaustiva, significaria que nada aconteceu. Acredito que seja sempre necessário levar a análise às condições históricas, políticas, econômicas e ideológicas, levar a análise o mais longe possível, incluindo a história da forma de arte específica. Mas se a análise de todas essas condições for exaustiva, ao ponto de que a obra esteja ali apenas para preencher ura buraco, não há obra. Se há obra, é porque, mesmo quando todas as condições que poderiam ser objeto de análise forem satisfeitas, alguma coisa ainda acontece, alguma coisa que chamamos de assinatura, a obra, se quiserem. Se todas as condições necessárias para produzir, digamos, Em busca do tempo perdido, forem satisfeitas, e pudermos analisar essas condições no caso geral e específico, e se essa análise de fato não precisar da obra, então é porque nada aconteceu. Se há obra, isso significa que a análise de todas as condições serviram apenas para, como eu poderia dizer?, deixar o lugar [laisser Ia place], um lugar absolutamente indeterminado, para alguma coisa que é, ao mesmo tempo, inútil, suplementar, e finalmente irredutível a essas condições. PETER BRUNETTE: Deixe-me perguntar-lhe sobre o futuro do que poderíamos chamar uma prática crítica desconstrutivista alternativa. Parece que se as pessoas escrevem de um modo mais convencionalmente desconstrutivista, dizem que isso já foi feito. Mas se se é mais autobiográfico, se se

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coloca o eu em primeiro plano [self-foregrounding], ou se se fia mais no acaso ou em trocadilhos, elas se tornam hostis. "É narcisista demais", dizem, ou: "tudo bem quando Derrida faz, ou quando Barthes costumava fazer, porque eles eram Derrida e Barthes, mas quando outros fazem, é autoindulgente". Dadas as enormes coerções institucionais sobre o discurso, o senhor acha que há algum futuro para esse tipo de prática? JACQUES DERRIDA: Se for "esse tipo de prática" então não há nenhuma chance. A chance é que ela seja transformada, que seja desfigurada. É óbvio que se fosse uma prática identificável ou regulada, a mesma coisa sendo reconhecida a cada vez, então ela não teria nenhuma chance. Seria um aborto, morto antes do começo. Se ela tem uma chance, é na medida em que se move, que se transforma, que ela não seja imediatamente reconhecível, que ela seja reconhecível sem ser reconhecida. Devemos poder reconhecê-la, mas é também necessário que, no processo desse reconhecimento, alguma coisa aconteça em contrabando [en contrebande]. As pessoas devem poder reconhecê-la e ao mesmo tempo reconhecer que estão lidando com alguma coisa que não podem identificar. Alguma coisa que não conhecem. Portanto a coisa pega ou não; não há uma regra geral. Colocando isso em termos bem formalistas, eu posicionaria o paradoxo da seguinte maneira: as chances de X - chamemo-lo de desconstrução, mas poderia ser qualquer coisa - proliferar e durar são inversamente proporcionais ao fato de ser reconhecido como X, ou seja, são diretamente proporcionais à possibilidade de X produzir efeitos que não podem ser continuamente reproduzidos na desconstrução. Assim, a desconstrução precisa ser transformada, mudar alhures. PETER BRUNETTE: O senhor tem algum comentário sobre a tentativa de Gregory Ulmer, no seu livro recente Teleteoria: gramatologia na era do video,37 de desenvolver

37

Gregory L. Ulmer. Teletheory: Gratnmatology in the Age of Video. Nova York: Routledge, 1989.

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uma prática crítica alternativa, o que ele chama de "mistória" [mystory]}3S JACQUES DERRIDA: Com respeito a Greg Ulmer, o trabalho dele me parece bastante interessante, bastante necessário; ele abre um outro espaço que podemos avaliar de uma maneira diferente. Podemos avaliá-lo com respeito à desconstrução - sou pessoalmente incapaz de fazê-lo - ou com relação ao que faço, e as pessoas podem estar de acordo com isso ou não. Mas é preciso haver discussão sobre esses objetos - televisão, telepedagogia, e assim por diante - e tais questões produzirão um novo discurso que muitas pessoas, eu inclusive, não entenderão. Para início de conversa, não estou seguro se entendo Greg Ulmer muito bem, ou não estou seguro de que trabalhei o suficiente sobre ele para saber o que ele quer dizer. Compreendo-o de longe, compreendo-o em silhueta, mas o trabalho dele já está além de mim. Isso quer dizer que o objeto chamado "desconstrução" moveu-se para alhures e que sob esse nome alguma coisa está acontecendo que não tem relação com a palavra. E então ela se desloca e se deforma. Esta é a condição do futuro. Se deve haver um futuro, será com a condição de não ser "isto", de que a desconstrução esteja alhures. É claro que a produção de novas capacidades tecnológicas - em comunicações, por exemplo - tais quais eu nunca poderia possivelmente ter imaginado, deslocará as coisas completamente. A situação política está mudando radicalmente; o mesmo vale para os computadores, para a biologia, e tudo aquilo que produzirá necessariamente discursos que não são inteiramente traduzíveis em termos dos códigos ou da linguagem da desconstrução de vinte anos atrás, ou de dez anos atrás, ou do tempo presente. Isso é o futuro, por definição. Se há um futuro, não podemos falar nada sobre ele. Em termos do que posso predizer a partir do que está à mão, nos próximos anos, a guerra em torno da desconstrução continuará provavelmente a viger na academia americana. Em minha opinião, as reservas de guerra estão longe de serem 38

"Mystory", palavra-valise, em inglês que junta "mystery", "mistério" e "síory", ou "history" "estória" ou "história". (N. T.)

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esgotadas. Não sei quanto tempo ela ainda durará, mas o argumento político continuará a alimentar o debate. Não são apenas os casos do passado, os de Heidegger ou de De Man, que estão subindo as apostas. Durante um certo tempo a temperatura vai permanecer bastante alta, e por razões políticas, mas isso não se relaciona apenas a coisas que são difíceis de interpretar, como no caso de De Man, mas a todo o quadro no qual os detratores da desconstrução operam. Haverá um bocado de incerteza que aumentará a tensão, especialmente por causa do que está agora acontecendo na esfera geopolítica, notadamente o que chamamos de processo de democratização dos países do Leste; tudo isso tornará as máquinas interpretativas inquietas. E, como sempre, a polarização aumentará a tensão - aqueles que dizem que a desconstrução é reacionária e aqueles que dizem que ela é revolucionária, conservadora ou não conservadora. DAVID WILLS: O senhor acha que isso funciona da mesma maneira na França? JACQUES DERRIDA: Não, na França é mais complicado. Há sempre semelhanças, mas na França existem meios diferentes. Nos Estados Unidos, a desconstrução é restrita ao meio acadêmico, embora esse meio não seja um campo homogêneo. Como sabemos, essas coisas estão começando a transbordar do campo acadêmico. Alguém me disse que um colóquio que envolvia desconstrução ocorreu recentemente no exército ou na marinha. Outro dia, Hillis Miller me disse que recebeu uma ligação de Phyllis Franklin da MLA, 39 que tinha recebido de um senador um pedido de informação sobre a desconstrução. Portanto é claro que eles querem saber o que está acontecendo. Em geral, no entanto, a cultura intelectual americana é restrita ao campo acadêmico. As coisas são diferentes na França. O meio universitário não é o mesmo que o meio cultural ou o meio literário. PETER BRUNETTE: Eu estava pensando no meio universitário, porque quando os professores da universidade Modern Language Association. (N. T.)

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francesa vêm aqui e lhes dizemos que estamos interessados no trabalho do senhor, eles têm a tendência de dizer que, sim, a desconstrução foi algo importante que aconteceu quinze ou vinte anos atrás, mas alegam que não compreendem porque ainda nos interessa. JACQUES DERRIDA: Isso é ao mesmo tempo verdadeiro e falso. E verdade que a desconstrução surgiu, em uma certa forma, em um certo momento, na França, e que houve um atraso na transmissão. Houve um processo de assimilação e, assim, aparentemente, de digestão e evacuação que ocorreu na França entre 1966-1967 e 1972-1973, e desse ponto de vista diz-se que está acabada. Ao mesmo tempo, isso eqüivale freqüentemente a uma denegação ou ressentimento em termos de algo que, na minha opinião, ainda não aconteceu na França. Posso dizer que, em muitos aspectos, ainda não aconteceu na França. Portanto, a afirmação é verdadeira e falsa, e merece uma análise detalhada. Também é necessário levar em conta a posição subjetiva dos intelectuais franceses que vêm para cá, que têm seus interesses, que têm uma certa formação, que querem ver as coisas de uma certa maneira. Em geral, tornaos nervosos, por razões óbvias, que a desconstrução interesse às pessoas aqui. Isso me concerne bastante, porque estou exatamente no meio disso, e freqüentemente chega a mim dessa maneira. PETER BRUNETTE: Tenho uma pergunta relacionada que é um pouco mais difícil, talvez porque seja mais fundamental, mas é uma questão que é mais importante para mim, na minha própria vida intelectual. O problema é que eu acho que sou incapaz de ouvir uma palestra sobre quase qualquer assunto, não importa o quão competente, desde que fui "arruinado" pela desconstrução. JACQUES DERRIDA: Eu também. PETER BRUNETTE: Todo pensamento, pelo menos atualmente, parece depender de fazer distinções, do ordenamento de hierarquias. Tão logo alguém que dá uma

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palestra divide, digamos, o tópico dele ou dela em três partes, eu vejo imediatamente como o número um poderia na verdade ser considerado parte do número três, ou que o número dois e o número um na verdade se sobrepõem. Então, dado o fato de que a desconstrução parece ameaçar a produção do conhecimento de um modo tão fundamental, eu me pergunto se o senhor não estava sendo um pouco ingênuo quando, no final da entrevista de Limited Inc.,40 com Gerald Graff, o senhor disse que o que mais o incomodava era que as pessoas parecem deliberadamente ler mal a sua obra e parecem ser tão irresponsáveis quando a discutem. Mas uma vez que as suas idéias são tão ameaçadoras à produção do conhecimento, tal como este é atualmente constituído, a resposta deles não seria de certo modo compreensível? E se for verdade que a desconstrução bloqueia a produção do conhecimento, para onde podemos ir em seguida? Esta é talvez uma pergunta muito ingênua, mas sinto que preciso fazê-la: e depois? A segunda parte da pergunta é: qual é, para o senhor, a perspectiva, falando institucionalmente, para o futuro da desconstrução na América do Norte? Ela continuará a existir, e se é assim, ela começará a tomar formas diferentes para além do que poderia ser chamado a indecidibilidade da "escola de Yale", a localização de aporias nos textos? Penso, por exemplo, em Glas, o texto performativo que tenta "ir além" do logocentrismo. O senhor acha que há algum futuro para isso na academia norte-americana? JACQUES DERRIDA: Há muitas questões aqui. Voltando ao que discutíamos antes de começar a entrevista, ocorre que ontem e no dia anterior eu estava em um colóquio sobre o holocausto, e falei durante duas horas e meia sobre o texto de Benjamin, que lidava com as distinções 1, 2, 3, e assim por diante. Passei o meu tempo demonstrando como esse

40

Jacques Derrida. Limited Inc. Tradução de Samuel Weber e Jeffrey Mehlman. Evanston, 111.: Norhtwestern University Press, 1988. [Limited Inc., apresentação e traduções de Elisabeth Weber. Paris: Galilée, col. "La philosophie en effet", 1990. (N. E.)]

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texto de Benjamin, "Crítica da violência",41 que produz uma série de distinções como aquela entre "violência fundante" e "violência conservadora", elas próprias sempre desconstruindo as suas próprias oposições conceituais. Portanto, passei o meu tempo delineando as distinções de Benjamin, e em seguida as questionando. Para mim, uma leitura é suportável apenas quando ela faz esse trabalho. Isto dito, não acredito que a desconstrução seja essencialmente ou somente aquilo que, como o senhor diz, destrói a produção de conhecimento. Não. Ou melhor, ela destrói e não destrói. Por um lado, ela pode de fato perturbar ou bloquear um certo tipo de trabalho; por outro lado, ela indiretamente produz conhecimento - indiretamente ela provoca conhecimento. Aqueles que se consideram desconstrutivistas e aqueles que se opõem à desconstrução trabalham todos a seu modo, e pensam que isso acelera a produção do conhecimento. Por exemplo, o Novo Historicismo, que se apresenta como produtor de conhecimento, surge em um campo que é não obstante marcado pela desconstrução. Ao mesmo tempo, sendo sensível ao fato de que a desconstrução pode paralisar a acumulação tranqüila e positiva de conhecimento, por outro lado, ela também é produtiva. Em seguida, o senhor pergunta: e depois? Francamente, não sei. Não estou aqui para fazer o elogio da desconstrução; 41

Walter Benjamin. "Zur Kritik der Gewalt", publicado inicialmente em Archiv für Sozialwissenshaft und Sozialpolitik em 1921, retomado em Gesammelte Schriften, 11.1 Bd IV, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1977; tradução francesa de Maurice de Gandillac, "Pour une critique de Ia violence". Em: Walter Benjamin. Mytbe et Violence. Paris: Denoèl, 1971, retomado em UHomme, le langage, Ia culture. Paris: Denoèl Gonthier, col. "Bibliothèque Médiations", 1974. [Tradução brasileira, "Para uma crítica da violência". Em: Escritos sobre mito e linguagem. Tradução de Ernani Chaves e Susana Kampff Lages. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2011. (N. T)] Jacques Derrida faz alusão aqui ao texto intitulado "Prénom de Benjamin" que ele proferiu em conferência de abertura em 26 de abril de 1990, no colóquio "Nazism and the 'Final Solutiori': Probing the Limits of Representation", organizado por Saul Friedlander na Universidade da Califórnia em Los Angeles. Cf. Jacques Derrida, Force de loi. Le "Fondement mystique de l'autorité". Paris: Galilée, col. "La philosophie en effet", 1994, p. 65-146 (reed. 2005). (N. E.) [Tradução brasileira, "Prenome de Benjamin". Em Força de lei. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (N. T.)]

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no entanto, creio que o fato de a desconstrução não ser limitada ao que o senhor chama o efeito da "escola de Yale" já foi confirmado. Ao dizer isso, não estou falando de meu próprio trabalho. O que está acontecendo na arquitetura, nas faculdades de direito, e assim por diante, demonstra que a desconstrução não ficou limitada a esse contexto. Mesmo supondo que num dado momento - embora nunca tenha sido verdade - ela se organizou no assim chamado grupo da escola de Yale, isso acabou. E sempre foi assim, mesmo em Yale. Então, ela não pode permanecer assim. Mas é necessário distinguir entre o destino da palavra "desconstrução", ou da teoria desconstrutivista, ou de uma assim chamada escola - que nunca existiu - e outras coisas que, sem o nome ou sem a referência à teoria, podem se desenvolver como desconstrução. Para mim, a desconstrução não se limita ao discurso sobre o tema da desconstrução; para mim, há desconstrução em operação [il y a de Ia déconstruction à Vceuvre\. Ela está em operação em Platão, ela está em operação no estado maior americano e soviético, ela está em operação na crise econômica. Assim, a desconstrução não precisa da desconstrução, ela não precisa de uma teoria nem de uma palavra. Ora, se restringirmos a coisa, se a limitarmos ao efeito discursivo e institucional que se desenvolveu através do mundo, mas sobretudo nos Estados Unidos, e na academia, e nos perguntarmos "e depois?", aí eu não sei. Estamos acostumados a mudanças em modas, escolas, teorias e hegemonias. Não vamos usar a palavra indefinidamente. Um dia vamos olhar para trás e pensar que, nos anos 1960, 1970 e 1980, havia um negócio [un truc] chamado desconstrução que era representado por... não tenho nenhuma ilusão sobre isso, nem tampouco sobre a nossa própria longevidade. Sabemos que, falando em geral, vivemos de sessenta a setenta anos e depois morremos. Nesse sentido, "desconstrução", como palavra ou tema, desaparecerá. O que acontecerá antes do seu desaparecimento, ou o que acontecerá depois, eu não sei. Não sei mesmo. Acho que ela já teve uma vida bastante longa, precisamente porque nunca foi uma teoria capaz de ser contida dentro de uma disciplina, seja ela filosófica, seja ela literária, e assim por diante. Ela segue um ritmo temporal diferente e assim leva mais tempo para deslocar-se para a arquitetura e outros campos.

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E ela é deformada; é um fenômeno bem monstruoso, cada vez diferente e assim inidentificável. Obviamente, se algumas pessoas quiserem identificá-la ao tipo de teoria literária que se desenvolveu em Yale, o que é um gesto redutor, então é mais fácil achar os seus limites. Mas ela é mais como um vírus; é uma forma de vírus, do qual perderemos o rastro [trace]. É inevitável que em um dado momento o rastro identificável pelo nome de "desconstrução" seja perdido; isso é óbvio. A palavra vai se gastar. Além da palavra "desconstrução" ou de outras palavras associadas a ela, esse processo será um pouco diferente; isso poderá levar mais tempo. Vão continuar a existir pequenos organismos, com suas vidas independentes, cujas trajetórias poderemos seguir, mas isso é verdade a respeito de qualquer coisa que acontece em uma cultura. Como se segue o rastro da filosofia através da história? Não sei.

Laguna Beacb, Califórnia 28 de abril de 1990

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Esta conferência foi pronunciada por Jacques Derrida em Orta, na Itália, em 1o de julho de 2002. Ela foi gravada e editada por Simone Regazzoni (o texto definitivo foi revisto por Jacques Derrida), e publicada com o título (escolhido por Jacques Derrida) "Penser à ne pas voir", em Annali. Fondazione Europea dei Disegno (Fondation Adami). Milão, Bruno Mondadori Editori), sob a organização de Amalia Valtolina, 2005/1, p. 49-74. (N. E.)

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Uma questão de língua, antes de algumas palavras de agradecimento. Eu me perguntava esta manhã em que língua se desenha; isto é, já que estamos aqui para falar do desenho, se fosse concebível ou paradoxal imaginar que um desenho, longe de ser, como se acredita em geral, tão imediatamente universal quanto a música, como se pensa que o desenho e a música são imediatamente universais e inteligíveis para além da barreira das línguas, eu me pergunto, vou ainda me perguntar, e voltarei a isso ao longo do caminho, se o desenho, se o traço do desenho é totalmente independente de uma língua; se, por exemplo, Valerio Adami 1 desenha em italiano ou em outra língua. Como sabemos muito bem, na obra de Adami há muitas palavras em inglês, em francês, em alemão. Mas será que a questão de saber se ele desenha em italiano tem um sentido? Deixo em suspenso a questão do que liga o traço do desenho à língua. Qual é a autoridade, em última instância, será a do traço ou a da língua? Mas depois da riquíssima e seriíssima apresentação de Maurizio Ferraris, 2 isso será um divertimento, um impromptu. Antes de me entregar a ele, eu gostaria de dizer algumas palavras de gratidão àqueles que estão nos recebendo aqui, a Valerio Adami, cuja iniciativa eu gostaria de saudar, não apenas por hoje, mas pelo futuro da instituição de desenho que

1

Cf. apresentação de Valerio Adami em "Sobre os artistas", ao final deste volume. (N. T.)

2

Cf. Maurizio Ferraris. "Uocchio ragiona a modo suo". Fondazione Europea dei Disegno. Op. cit., p. 23-48. (N. E.)

Annali.

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ele está fundando 3 e da qual isto é uma espécie de prefiguração, de desígnio preliminar. Portanto, todos os nossos votos para a instituição que ele está inaugurando e pela qual estamos e permaneceremos de todo o coração com ele. No final de sua apresentação, Maurizio Ferraris falava em raios X, que são da ordem da visibilidade, de um certo tipo de visibilidade: do invisível que se dá a ver sob certa superfície, sob uma outra superfície invisível, e vou colocar a questão, principalmente ao olhar para Valeria,4 da ecografia. Vou me entregar aqui unicamente a ecos, vou fazer eco a tudo o que disse Maurizio Ferraris na manhã de hoje, e perguntar-me que estatuto poderíamos dar à ecografia. Antes de me engajar no gravíssimo tema do "pensar-ver", colocarei mais uma questão. Em geral, quando se diz "ver", pensa-se naturalmente, em primeiro lugar, nos olhos, nos olhos que são feitos, pensa-se, para ver. Mas os senhores sabem que os olhos não são feitos apenas para ver, são feitos também para chorar. Podemos nos perguntar por que se chora, por que tal emoção de tristeza, ou de riso, aliás, ou de abalo traumático, provoca lágrimas. Isso é bastante enigmático. Por que esse sintoma que consiste em derramar água através dos olhos? E a título de epígrafe, para dar certo alcance à questão "por que os olhos, em vista do que os olhos?", "eles são feitos para ver ou acima de tudo para chorar?" (Há, como vocês sabem, uma grande iconografia das choradeiras. Em geral, são as mulheres que choram e que fazem a experiência - voltaremos à questão sobre o que é a experiência - dos próprios olhos, quando choram de tristeza ou de alegria, aliás.), citarei um texto que me aconteceu citar num ensaio que escrevi sobre os cegos, um texto de Marvell que diz: But only human eyes can weep. How tvisely Nature did decree, With the same eyes to weep and see! That baving viewed the object vain, Trata-se da Fondazione Europea dei Disegno. (N. E.) Jacques Derrida alude aqui a Valeria Cantoni, responsável pela organização do seminário Ekphrasis que ocorre anualmente na Fundação Adami, e que estava então grávida. [Nota de Simone Regazzoni. (N. E.)]

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We migbt be ready to complain [•••]

Open tben, mine eyes, your double sluice, And practice so your noblest use; For others too can see, or sleep, But only human eyes can weep. Thus let your streams o^rflow your springs, Till eyes and tears be the same tbings: And each the othefs difference bears; These weeping eyes, those seeing tears.5 Para ele, é claro que tanto os animais quanto os homens, aquilo que chamamos de animais, têm olhos para ver. Mas segundo Marvell, de cuja tranqüila certeza não compartilho aqui, apenas olhos humanos são feitos para chorar. Ele diz não apenas que os olhos choram, mas também que as lágrimas vêem. Primeira epígrafe. Quanto à segunda epígrafe, eu gostaria de orientá-la na direção de alguém que assombra este lugar, isto é, de Nietzsche. Nietzsche foi freqüentemente nomeado esta manhã, mas se pude acompanhar o italiano, o que não fiz sem dificuldade, não se falou do fato de que Nietzsche morou nesta região, nesta ilha. Seu espectro assombra este lugar. Ora, um espectro é algo Quão sabiamente a natureza decretou/ Com os mesmos olhos chorar e ver!/ Que tendo visto o objeto vão,/ Estejamos prontos para nos queixar [...] Abram-se então, olhos meus, seu duplo dique,/ E pratiquem assim seu uso mais nobre;/ Pois outros também podem ver, ou dormir,/ Mas só olhos humanos podem chorar. [...] Pois deixem seus riachos transbordar suas fontes,/ Até que olhos e lágrimas sejam as mesmas coisas:/ E cada um carregue a diferença do outro;/ Estes olhos que choram, aquelas lágrimas que vêem. [Tradução livre de João Camillo Penna, feita para esta edição. (N. T.)] Cf. Jacques Derrida. Mémoires d'aveugle. Uautoportrait et autres ruines. Paris: Réunion des Musées Nationaux, col. "Parti pris", 1990, p. 129-130. (Memórias de cego: o auto-retrato e outras ruínas. Tradução de Fernanda Bernardo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.) [Jacques Derrida indica como referência em Mémoires d'aveugle: Andrew Marvell. Eyes and Tears (Complete Poems, Grande-Bretagne, 1972). (N. E.)]

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que se vê sem ver e que não se vê ao ver, a figura espectral é uma forma que hesita de maneira inteiramente indecidível entre o visível e o invisível. O espectro é aquilo que se pensa ver, "pensar" desta vez no sentido de "acreditar", pensamos ver. Há aí um "pensar-ver", um "ver-pensado". Mas nunca se viu pensar. Em todo caso, o espectro, como na alucinação, é alguém que atravessa a experiência da assombração, do luto etc, alguém que pensamos ver. Então, Nietzsche, aqui, pensamos vê-lo. Evocarei, pois, um texto de Nietzsche precisamente a respeito da visão e da cegueira. Trata-se de Ecce Homo: Minha doença dos olhos que de vez em quando me leva perigosamente à beira da cegueira [dem Blindwerden zeitweilig sich gefãhrlich annãhernd] é só um efeito, e não uma causa: quando minha potência vital [Lebenskraft] aumenta, a potência de minha visão [Sehkraft] também aumenta [...]. Sou um duplo [ein Doppelgãnger], tenho também a "segunda" visão além da primeira. E talvez até mesmo a terceira...6 Bem, o contrato aqui entre Valerio Adami, Maurizio Ferraris e mim é que responderei a Maurizio Ferraris improvisando. Foi por isso que falei de impromptu. Falarei sem preparação. Mas o que é uma improvisação? Quer se trate de fala7 ou de música - o desenho é ainda outra coisa - , o que é não pré-ver? A improvisação consiste em avançar sem ver o avanço, sem ver previamente, sem pré-ver. Eis, por exemplo, uma questão que permanecerá em suspenso, pairando acima de tudo que direi agora: será que se pode pintar sem pré-ver, sem desígnio, sem design} Será que se pode desenhar sem desígnio? Ou seja, sem ver vir? Já estamos próximos do que nos disse Maurizio Ferraris esta manhã a respeito da percepção, do conceito, da pré-visão, da pré-vidência, da pró-vidência, e também da Providência divina. Evoquemos aqui uma evidência:

Friedrich Nietzsche. Ecce Homo. Tradução francesa de Alexandre Vialatte (ligeiramente modificada). Paris: Gallimard, 1942, p. 18-19, 22. Citado por Jacques Derrida em Mémoires d'aveugle. Op. cit., p. 125. (N. E.) No original, "parole". Ao longo do texto, para traduzir o termo, usarei "fala", "palavra" ou "palavra falada", de acordo com o contexto. (N. T.)

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nem todos os seres vivos têm o que chamamos de olhos; há seres vivos, e é o caso da maior parte deles, que são sensíveis à luz, que precisam da luz ou do sol e que reagem biologicamente, geneticamente, à luz, que precisam dos efeitos da luz sem, contudo, ver, sem ter olhos que façam face a alguma coisa, ao que está precisamente em face deles, ao que chamamos normalmente de objetos. Há animais que não têm objeto nesse sentido, mas nós, os homens, os mamíferos e um certo número de outros animais, temos olhos. Não apenas somos sensíveis à luz como também vemos, e devo dizer que uma das funções - não direi uma das finalidades para não parecer demasiado telegráfico desde o início - , mas em todo caso uma das funções vitais do olho, do olhar equipado de olhos, é precisamente a de ver vir, isto é, de nos proteger, de nos proteger contra o que vem. Para nos proteger, antecipamos. "Antecipar" quer dizer tomar previamente {antecapere), apoderar-se previamente. A antecipação já é algo que, na maioria das vezes, com a ajuda das mãos, vai ao encontro do obstáculo para prevenir o perigo. Junto ao léxico da antecipação, temos o da a-preensão, o léxico manual, se podemos dizer assim. Tudo o que digo se desloca entre a mão e o olho, como o desenho. O desenho é o olho e a mão. Antes mesmo de, de alguma maneira, servir-se dos nossos olhos, a antecipação se serve das nossas mãos, para manter a distância o perigo, o obstáculo, a ameaça. Vários desenhos de cegos, quero dizer aqueles desenhos que representam cegos - em meu texto sobre os cegos, tentei demonstrar isso - , descrevem o movimento do cego avançando as mãos aos tateios para prever sem ver o que está diante dele e que ele deve levar em conta com as mãos, sem os olhos. Mas com os olhos videntes que são os nossos, também antecipamos; e no léxico da antecipação temos todo o espectro semântico da percepção ou do conceito, a percepção é também uma pegada manual, uma maneira de apreender, o Begriff, o conceito. Begreifen é apreender, tomar para dominar, e, portanto, o conceito tem isso em comum com a percepção. Vou aqui ao encontro do que foi dito por Maurizio Ferraris hoje de manhã. O conceito tem em comum com o percepto, com a percepção, ao menos o fato de engajar a mão que pega, a apreensão. O cego avança com apreensão, isto é, com uma espécie de inquietude que consiste em tomar

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previamente a coisa de que ele precisa ou de que ele precisa proteger-se. Logo, a visão é também apreensão. Não digo que a visão seja apenas isso. Mas a visão, os olhos videntes e não os olhos que choram, está lá para prevenir, por antecipação, por pré-conceitualização, por percepção: para ver vir o que vem. Porém, primeira dificuldade, primeira aporia, se os senhores quiserem: se isso que vem, em nossa direção, se isso deve constituir um acontecimento, não devemos vê-lo vir. Um acontecimento é o que vem; a vinda do outro como acontecimento só é um acontecimento digno desse nome, isto é, um acontecimento diruptivo, inaugural, singular, na medida em que precisamente não o vemos vir. Um acontecimento que antecipamos, que vemos vir, que pré-vemos, não é um acontecimento: em todo caso, é um acontecimento cuja acontecimentalidade é neutralizada, precisamente, amortecida, detida pela antecipação. A experiência, e voltarei à equivocidade desse conceito de experiência de que tanto se falou esta manhã, a experiência do acontecimento é uma experiência passiva, rumo à qual, e eu diria contra a qual, acontece8 o que não se vê vir, e que é de saída totalmente imprevisível, não pode ser predito; é próprio do conceito de acontecimento que ele venha sobre nós de maneira absolutamente surpreendente, inesperadamente. Se os olhos são o que são para nós, tal como se dispõem em nossos rostos, digo nossos rostos, os rostos humanos (pois nem todos os olhos estão e vêem à frente, há animais cujos olhos lhes permitem ver de lado e atrás, mas nossos olhos vêem à frente e têm o que chamamos de horizonte), o acontecimento sempre corre o risco de ser em certa medida neutralizado: vemos vir as coisas desde o fundo do horizonte. Assim que há ou na medida em que há um horizonte sobre cujo fundo vemos vir alguma coisa, nada vem, nada vem que mereça o nome de acontecimento; o que vem na horizontal, isto é, o que nos faz face e vem em nossa direção avançando ali onde o vemos vir, isso não acontece. Isso não acontece no sentido forte e estrito do advento do que vem, seja alguma coisa ou alguém, o que ou quem, o que ou quem em "isto No original, "arriver", que pode ser traduzido por "chegar" ou por "acontecer". Derrida jogará com os dois sentidos neste e em outros textos deste volume. (N. T.)

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vem". Não devemos vê-lo vir, e, portanto, o acontecimento não tem horizonte; só há acontecimento ali onde não há horizonte. O acontecimento, se houver um e for puro e digno desse nome, não vem diante de nós, ele vem verticalmente: pode vir de cima, do lado, por trás, por baixo, ali onde os olhos não têm alcance, justamente, onde eles não têm alcance antecipatório ou preensivo ou apreensivo. O fato de que um acontecimento digno desse nome venha do outro, de trás ou de cima, pode abrir os espaços da teologia (o Altíssimo, a Revelação que nos vem do alto), mas também do inconsciente (isso vem de trás, de baixo ou simplesmente do outro). O outro é alguém que me surpreende por trás, por baixo ou pelo lado, mas assim que o vejo vir, a surpresa é amortecida. A menos que, no que vem à minha frente, olhando-me, haja todos os recursos do muito alto, do muito baixo, do debaixo etc. A questão de que tratamos até aqui, "ver e pensar, pensarver, ver-pensar", é, portanto, primeiramente, a questão do acontecimento, da experiência do acontecimento, e do que é o desenho, a relação entre o desenho e o acontecimento. Que relação pode ter o desenho com o que acontece? Ou com quem chega? O que no desenho pode dar conta dessa irrupção imprevisível do que (de quem) acontece/chega? O desenhista é alguém, e temos aqui uma grande testemunha disso,9 alguém que vê vir, que pré-desenha, que trabalha o traço, que calcula etc, mas o momento em que isso traça, o movimento em que o desenho inventa, em que ele se inventa, é um momento em que o desenhista é de algum modo cego, em que ele não vê, ele não vê vir, ele é surpreendido pelo próprio traço que ele trilha, pela trilha do traço, ele está cego. É um grande vidente, ou mesmo um visionário que, enquanto desenha, se seu desenho constitui acontecimento, está cego. Eu gostaria de permanecer muito próximo do desenho e ao mesmo tempo daquilo que Maurizio Ferraris nos disse esta manhã. Como já falei bastante do animal, eu gostaria de me voltar para este estranho animal que Maurizio Ferraris nos mostrou pela manhã: o animal de um olho; não podemos decidir se é isto 9

Jacques Derrida refere-se aqui a Valerio Adami. [Nota de Simone Regazzoni] (N. E.)

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ou aquilo, tal animal ou tal outro, este ou aquele, cada um de uma vez, nunca os dois ao mesmo tempo. O que notei no desenho instável e indecidível dessa figura animal foi que ela estava, nos dois casos, de perfil. Era um perfil, dois perfis. O animal não olhava para nós. Questão: o que se passa quando um animal, e falo aqui tanto dos animais quanto dos homens, destes animais que são também os homens, o que se passa não apenas quando um animal é visto por mim, mas quando vejo um animal me olhar, eventualmente cruzar meu olhar, me olhar, como se diz, nos olhos?10 Há uma outra alternativa, uma outra alternância, uma outra vez cada um, se os senhores quiserem: é que quando olho alguém nos olhos - apelo aqui para a experiência de cada um - , preciso escolher entre olhar os olhos vistos do outro e olhar os olhos videntes do outro. Não posso olhar os olhos do outro ao mesmo tempo como vistos e videntes, como visíveis, como visíveis e olhadores. Se os vejo como visíveis, torno-me de algum modo cego à sua vidência. Não posso ao mesmo tempo ver olhos visíveis e videntes. Naturalmente - tento mais uma vez estar próximo do que Maurizio Ferraris nos dizia esta manhã - , é por meio de uma interpretação não natural que construímos essa nossa troca de órgãos, sabemos muito bem que os olhos que olhamos e que são visíveis são também olhos videntes. Sabemos muito bem disso, mas não os vemos simultaneamente como videntes e visíveis. É a mesma perturbação diante do espelho. Na experiência do espelho, essa indecisão aflora. Quando nos olhamos em um espelho, devemos escolher entre olhar a cor de nossos olhos e olhar o fluxo, o influxo do olhar que se olha com todos os paradoxos do autorretrato a que retornarei, talvez, mais adiante e que tentei tratar em outros textos. Em todo caso, há aí uma alternativa tão perturbadora quanto aquela de que falava Maurizio Ferraris pela manhã. Pergunto-me no que isso se transforma num desenho, com os mesmos efeitos que o que Cf. Jacques Derrida. "Uanimal que donc je suis (à suivre)". Em: Marie-Louise Mallet (Org.). LAnimal autobiographique. Autour de Jacques Derrida. Paris: Galilée, col. "La philosophie en effet", 1999, p. 251-301. [Retomado em Jacques Derrida. Uanimal que donc je suis. Marie-Louise Mallet (Ed.). Paris: Galilée, col. "La philosophie en effet", 2006, p. 15-77. (O animal que logo sou (A seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: UNESP, 2002.)] (N. E.)

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vimos de manhã, um desenho em que o animal nos olhasse de frente e não obliquamente ou de perfil. O que se vê, e estou com o desenho sob os olhos, é o caso de dizê-lo, o que se vê, então, são também olhos videntes. Há animais de olhos visíveis, mas não há animais de olhos videntes. E uma questão de alternância viva, ou de alternativa instantânea. Temos duas alternativas, a de Maurizio Ferraris pela manhã e a minha agora. Não é a mesma. Mas nos dois casos, essas duas alternativas são alternativas do que poderíamos chamar de um ponto de vista, com todo o equívoco dessa expressão; ponto de vista, ou seja, segundo o ponto de vista, posso ver ou não ver tal animal, posso ou não ver tal pessoa, seus olhos visíveis e videntes. O ponto de vista é a perspectiva, isto é, a visão do olhar que, ao pôr em perspectiva, seleciona. Falar de perspectivismo é dizer que sempre vemos as coisas, que sempre interpretamos as coisas de certo ponto de vista, segundo um interesse, recortando um esquema de visão organizado, hierarquizado, um esquema sempre seletivo que, consequentemente, deve tanto ao enceguecimento11 quanto à visão. A perspectiva deve ficar cega a tudo o que está excluído da perspectiva; para ver em perspectiva, é preciso negligenciar, é preciso ficar cego a todo o resto; o que acontece o tempo todo. Um ser finito só pode ver em perspectiva e, portanto, de maneira seletiva, excludente, enquadrada, no interior de uma moldura, de uma borda que exclui. Consequentemente, devese cercar o visível posto em perspectiva com toda uma zona de enceguecimento. A perspectiva é cega tanto quanto vidente. Desse "ponto de vista" também, uma certa cegueira é a condição da organização do campo do visível. Há mil maneiras, voltarei a isto, de pensar um enceguecimento intrínseco ao próprio ver da vista. Há o que dizíamos há pouco do Narciso, do espelho ou do olhar cruzado, e depois da perspectiva; há também o que chamamos de blind spot, o ponto cego, esse foco de não vidência em torno do qual (neurologicamente, fisiologicamente)

No original, "aveugletnent". Derrida usa também eventualmente "cécité", que traduzo neste como em outros textos do volume por "cegueira". Optei por traduzir "aveuglement" por "enceguecimento" para distinguir o estado de privação do sentido da visão do processo dinâmico e subjetivo de perda da visão a que se refere o filósofo. (N. T.)

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se organiza o campo de visão. Isso vale para todos os animais que têm olhos, um sistema cerebral capaz não apenas de organizar o campo da visibilidade, mas também de produzir uma visão monocular ali onde se têm ao menos dois olhos. O blind spot, dissertou-se muito a respeito, o ponto cego, é indispensável a qualquer visão, a qualquer visibilidade. A partir disso, quanto ao que diz respeito ao ver, podemos passar ao outro termo de nosso programa, isto é, ao pensar. Estou muito mais embaraçado com este último, e por isso comecei pela questão das línguas. Pois a palavra pensar é uma das mais obscuras, das mais enigmáticas. O que se entende por pensar? O pensamento não se reduz nem à razão, nem ao saber, nem à consciência; há pensamento inconsciente, há um pensamento irracional, há um pensamento sem conhecimento: Kant distingue muito rigorosamente entre a ordem do pensável e a ordem do cognoscível. Posso pensar, denken, muitas coisas que não posso conhecer. Kant identificava essa ordem do pensável com a ordem das idéias da razão pura, mas não somos obrigados a acompanhá-lo nesse terreno. Em todo caso, o que é certo é que "pensar", essa zona, esse ponto cego de nosso vocabulário, "pensar" a priori não se reduz nem ao saber, nem ao conhecimento, nem à consciência, nem à razão. E de uma língua a outra, o que traduzimos por pensar tem um alcance semântico diferente. Em italiano e em francês, naturalmente, como em latim, etimologicamente, o pensamento remete à pesagem, tanto ao exame quanto à agulha de uma balança que dá a medida de uma pesagem. Cogitatio é uma outra coisa. Quando Heidegger se pergunta O que chamamos de pensar? (Was heifit Denken?), "O que quer dizer pensar?",12 sabemos previamente que para ele o pensamento não se reduz à ciência, nem à razão, nem à filosofia. Volto rapidamente ao fato de que, em todos os seus discursos sobre a razão, Der Satz

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O volume compreende dois cursos ministrados por Heidegger entre 1951 e 1952. Derrida utiliza a seguinte edição: Qu'appelle-t-on penser? Tradução francesa de Aloys Becker e Gérard Granel. Paris: Presses Universitaires de France, 1983, 3. ed. (N. T.)

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vom Grundue outros, Heidegger remete "Vernunft" [razão] a "vernehmen", ao tomar, à tomada da percepção, à operação de domínio: o animal racional é justamente um animal dotado de razão, Vernunft, no sentido da tomada, da captura, da dominação. Se acompanharmos o caminho que ele traça em torno da temível questão Was heifit Denken? (não somos obrigados a acompanhá-lo, mas é preciso lê-lo), traduzida em francês por Qu'appelle-t-on penser? [O que chamamos de pensar?], Heidegger desloca e inflexiona a sintaxe da expressão para fazê-la dizer "O que o pensamento chama?", "Was heifit Denken?", "O que o pensamento convida?". Trata-se, portanto, de convidar, de prometer. O pensamento é também pensável em um movimento pelo qual ele chama a vir, ele chama, ele nos chama, mesmo que não saibamos de onde vem o chamado, o que significa o chamado; ele chama. Daí (não quero aqui engajar-me nesse caminho) toda uma meditação sobre a nomeação, a denominação, o chamado, sobre o fato de dar um nome, de chamar, de saudar, de convidar um hóspede. Questão de hospitalidade: o pensamento chama, ele é hospitaleiro em relação a quem vem, justamente. Encontramos e reencontramos essa experiência do acontecimento, do que (de quem) vem etc. Como pensar a experiência do que (de quem) vem, do acontecimento, de um acontecimento que cai em cima, que cai em cima de nós sem prevenir e sem que o vejamos vir? Em outro texto, Heidegger, à sua maneira, dá direito a outras associações: entre denken [pensar] e danken, a gratidão, o agradecimento em relação ao outro, àquilo (àquele) que vem; ele diz também que, para os gregos, noein, que em geral se traduz por pensamento, noesis, tem uma relação com a visão, com o ver. Não com o ver dos olhos, o ver com a ajuda dos olhos, mas com um ver mais originário na livre abertura do espaçamento em que o ver do pensamento, no instante,

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O Princípio de razão. Curso ministrado por Heidegger em 1955/1956 na Universidade de Freiburg. Sobre o princípio da razão suficiente em Leibniz Há uma tradução em português, em edição bilíngüe: A essência do fundamento. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2007. (N. T.)

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das Augenblick,14 no piscar de olho em que ele vê, não está necessariamente interpretando a partir do sistema da visão dos olhos, da neurologia. Em outra parte, ele diz - já que devemos também falar de música aqui - que não ouvimos porque temos ouvidos, mas que temos ouvidos porque ouvimos. Ele diria sem dúvida de maneira análoga: "Não vemos porque temos olhos, mas temos olhos porque vemos".15 Quanto a esse ponto, e sempre para cruzar os passos de Maurizio Ferraris, eu gostaria de voltar de um pensamento que excede a razão, a consciência e, portanto, o eu, a pessoa e t c, a um pensamento que é ou não é logos. Eu gostaria, pois, de retomar um pouco o que Maurizio Ferraris evocou esta manhã para nós em relação ao "logocentrismo", sempre na direção daquilo que nos transporta aqui, isto é, o traço, o desenho, o espaçamento, a visibilidade. Aquilo que, em dado momento, achei que devia chamar, para desconstruí-lo, de "logocentrismo" (peço desculpas por essas precisões àqueles para os quais essas coisas talvez sejam familiares) era algo ao mesmo tempo muito próximo e muito diferente do fonocentrismo. O fonocentrismo seria, para mim, uma estrutura universal que não depende desta ou daquela cultura - grega ou européia - , uma estrutura universal que afirma ou legitima a hegemonia da voz, do sonoro, portanto, sobre o visível, relativamente a qualquer outra significação não sonora. Encontra-se o privilégio da voz em toda parte, não apenas na Bíblia ou na cultura grega, mas também na cultura chinesa, japonesa etc. Esse privilégio, ao menos da maneira como é acreditado, estaria ligado ao fato de que a voz é mais próxima da vida daquele que fala; ela é mais presente, mais presente para quem fala e para quem escuta; há aí um duplo privilégio da proximidade ou da presença imediata, mas também da interior idade, da proximidade da vida. Em nome desses valores (presença, proximidade, vida etc), prefere14

O termo "Augenblick" significa "momento", "instante", sendo composto por "Auge", "olho", e "Blick", "olhada", "vislumbre". (N. T.)

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"Cest nous qui entendons, et non 1'oreille." ["Somos nós quem ouvimos, e não o ouvido."] (Cf. Martin Heidegger. Le Príncipe de raison. Tradução francesa de André Préau. Prefácio de Jean Beaufret, Paris: Gallimard, col. "NRF", 1962, p. 124, grifo de Martin Heidegger). (N. E.)

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se a voz, a palavra viva à escrita. Essa estrutura fonocêntrica seria virtualmente universal. O fonocentrismo, então, é uma especificação eu diria greco-romana que privilegia não apenas a voz mas o logos em geral: no sentido de razão, no sentido de discurso, no sentido de proporção, no sentido de cálculo.16 O logos é tudo isso, é conta que se presta, logon didonai, é a razão, o discurso, a fala, o cálculo, a proporção, a conta, como ratio em latim, a conta, o cálculo, e depois, ou talvez antes, e é nisso que Heidegger insiste em geral com maior freqüência, o legein é aquilo que, precisamente, reúne, versammelt, mantém junto. Heidegger insiste massivamente no privilégio da Versammlung, do legein ou do logos. Ora, a autoridade ou a hegemonia do logos na cultura grega é uma autoridade que caminha junto com a autoridade de pbonê. É a forma específica que isso assume no Ocidente de filiação grega, digamos, ou evangélica, uma vez que, no Evangelho de João, no início havia o Logos.17 Esse privilégio se liga na cultura grega a uma escrita alfabética, isto é, a uma escrita fonética, a um sistema de escrita que tem uma história e foi inventado pelos fenícios. Um sistema como esse se impôs em razão de sua economia técnica. Ele permitia escrever ordenando sua escrita à simples transcrição do significante oral. Uma escrita fonética confirmava consequentemente o privilégio da palavra falada, ela estava e continua mais do que qualquer outra a serviço da fala, o que não é o caso, estruturalmente, das escrituras hieroglíficas ou ideogramáticas, ainda que, como se sabe (mas não quero ir muito longe nos detalhes dessa análise), não haja escrita puramente ideogramática ou hieroglífica. Mesmo nas escritas chinesa, japonesa, ou outras, há elementos fonéticos; mas fundamentalmente, o elemento dominante de uma escrita ideogramática ou hieroglífica é o desenho, precisamente no espaço, e não a transcrição de

Cf. Jacques Derrida. De Ia gramtnatologie. Paris: Minuit, col. "Critique", 1967, p. 11-41. (Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva; Editora da Universidade de São Paulo, 1973 (reed. 1999)). (N. E.) Referência ao primeiro verso do Evangelho de João, traduzido em geral por: "No início era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o Deus era verbo". (N. T.)

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um fonema. Daí a legitimação - de que temos muitos sinais ao longo da cultura do Ocidente, a começar pelo Fedro de Platão - de uma escrita que é o significante de um significante, que representa um representante, que representa os sons que representam o "pensamento" interior. No texto de que falava Maurizio Ferraris esta manhã, em Aristóteles, a escrita fonética é um significante de significante: ela significa ou expressa um significante oral que expressa estados da alma (pathemata), paixões da alma. A escrita não passa de um significante de significante, ela é naturalmente deposta, secundária, auxiliar, tem o estatuto de um escravo em relação a um senhor; ela tem também um valor de morte. Ao passo que a fala é viva, a escrita está do lado da morte, do lado do espaço, da visibilidade, uma maneira de tornar visível o que não é visível. Quanto à fala, ela é cega, desse ponto de vista, estamos cegos quando falamos. A primeira experiência que fazemos da cegueira é a fala; você não vê o que eu digo. A experiência da fala implica estruturalmente a cegueira, a não vidência. Um certo número de valores forma aqui um sistema indissociável: do lado da palavra viva, temos a pbonê, o logos, a presença, o presente vivo, o que finalmente vai culminar na fenomenologia husserliana sob a expressão "lebendige Gegenwarf',18 o presente vivo, a experiência no sentido corrente do termo; para o senso comum, a experiência se vive sempre no presente, no presente vivo, não deixamos o presente, jamais deixamos o presente; tudo o que nos acontece nos acontece por definição no presente. A memória, a antecipação, o futuro são modificações de um presente vivo que, quanto a ele, é originário. Esse pensamento do presente vivo distribuiu-se de maneira muito complexa na história da metafísica, da ontologia, da fenomenologia, cujas raízes comuns veremos daqui a pouco. Quando Maurizio Ferraris falava de ontologia para nomear de algum modo o campo da

"Présent vivant". Cf. Jacques Derrida. La Voix et le phénomène. Paris: PUF, col. "Quadrige", 1967, p. 95 (A voz e o fenômeno. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994). Cf. também Jacques Derrida. "Introduction". Em: Edmund Husserl. UOrigine de Ia géométrie. Tradução francesa e notas de Jacques Derrida. Paris: PUF, col. "Épiméthée", 1962, p. 81-83. (N. E.)

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experiência, ele se referia, naturalmente, ao que na ontologia diz o logos do on, o logos do ente presente, do ser determinado como estando presente. É aí que Heidegger começou a afinar, a aguçar sua própria desconstrução, a pôr em questão no movimento da temporalização o privilégio absoluto concedido ao agora e ao presente vivo. Diante dessa situação histórica, historiai, desse extraordinário mas incontestável privilégio do presente vivo, da palavra falada, da proximidade da vida etc, eu havia tentado, de minha parte, nos textos aos quais Maurizio Ferraris fazia alusão esta manhã, colocar esse privilégio em questão e propor um conceito de rastro 19 ou de texto que não fosse delimitável como escrita alfabética, como escrita sobre a página, como escrita em um livro. O rastro é a própria experiência, em toda parte onde nada nela se resume ao presente vivo e onde cada presente vivo é estruturado como presente por meio da remissão ao outro ou à outra coisa, como rastro de alguma coisa outra, como remissão-a. Desse ponto de vista, não há limite, tudo é rastro. São propostas que alguns consideraram um pouco provocantes. Eu disse que tudo é rastro, que o mundo era rastro, que este gesto é rastro, que a voz é uma escrita, que a voz é um sistema de rastros, que não há fora-do-texto, e que não há nada que bordeje de algum modo, do exterior, essa experiência do rastro. Assim como "pensamento", essa palavra enigmática "pensamento", a palavra "experiência" é de uma rica e temível equivocidade. Grosso modo, há ao menos dois sentidos para "experiência", para aquilo que precisamente nos coloca em presença do presente. A experiência é o que nos relaciona à apresentação do presente: algo se apresenta, temos a experiência disso. Portanto, desse ponto de vista, a acepção da palavra "experiência" é totalmente dominada por uma metafísica do presente ou da presença, no sentido que acabo de evocar, ou seja, por um logocentrismo, ou até mesmo por um fonocentrismo. Mas há outro conceito de experiência, Erfahrung. E que nos dois casos, na Erfahrung ou na experiência 19

No original, "trace", que vem sendo traduzido por "rastro" na obra de Derrida em português, por oposição a "trait", traduzido em geral por "traço", como farei logo adiante. (N. T.)

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em francês, a experiência é justamente não a relação presente com o que está presente, mas a viagem ou a travessia, o que quer dizer experimentar rumo a, através da ou desde a vinda do outro na sua heterogeneidade mais imprevisível; trata-se da viagem não programável, da viagem cuja cartografia não é desenhável, de uma viagem sem design, de uma viagem sem desígnio, sem meta e sem horizonte. A experiência, a meu ver, seria exatamente isso. Se a experiência fosse apenas a relaçãocom, ou o encontro do que é previsível e antecipável sobre o fundo de um horizonte presente, não haveria experiência nesse segundo sentido; haveria experiência no primeiro sentido, mas esta última não é uma experiência do acontecimento, uma experiência histórica, se os senhores quiserem. A viagem da qual sabemos de onde ela parte e para onde nos leva não é uma viagem, está previamente encerrada. Já chegamos, e nada mais acontece. Não há experiência, no sentido mais perigoso (e a palavra perigo não está longe da palavra "Erfahrung") do termo viagem. Uma viagem que não fosse ameaçadora, uma viagem que não fosse uma viagem em vista do impossível, em vista do que não está em vista, seria ainda uma viagem? Ou apenas turismo? Essa experiência não se deixa facilmente assimilar previamente em uma ontologia ou em um logos qualquer: a experiência do pensamento é uma experiência sem carta ou mapa geográfico, uma experiência exposta ao acontecimento no sentido que precisei há pouco, isto é, à vinda do outro, do radicalmente outro, do outro não apropriável. Quando se está em relação com outro, quer se trate de um quem ou de um quê, quando se está em relação com outro cuja própria prova consiste em fazer a experiência do fato de que o outro não é apropriável, há aí experiência: não posso assimilar o outro a mim, não posso fazer do outro parte de mim mesmo, não posso capturar, tomar, apreender, não há antecipação. O outro é o inantecipável. Estamos lidando com outro conceito de experiência, diferente daquele que permanece dominado pelo ente enquanto ente (ente quer dizer presente). Há uma visão, já que temos que falar de visão, uma visão que se relaciona com o presente, com o que está diante de nós: o presente é o que está ao mesmo tempo próximo e diante de

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nós como um objeto. Diz-se com freqüência que a visão nos reporta ao objeto que está colocado ali diante de nós, mas há também uma experiência sem objeto, uma experiência que de algum modo é transbordada por alguém ou por alguma coisa, quem ou quê, que não se torna objeto - nem, aliás, sujeito; uma vez que o sujeito é também um ente presente (o que chamamos de sujeito é uma substância presente que permanece como o suporte de seus predicados ou de seus acidentes; a esse respeito, não há diferença essencial entre sujeito e objeto). A experiência em um outro sentido é uma experiência que excede ampla e infinitamente as categorias de subjetividade e de objetividade. Trata-se de saber se a visão é uma experiência do primeiro tipo, isto é, que lida, como se acredita com freqüência, com o que está diante de nós, ou se a visão lida, precisamente, com a invisibilidade, ou com uma visibilidade que não se põe na objetividade ou na subjetividade. É em meio a essa situação que eu me debatia no momento em que acreditei, e isso durou muito tempo, até estes últimos anos, que o que dominava o logos ocidental, a filosofia, os discursos ocidentais, a cultura ocidental, especialmente sua forma filosófica, era precisamente a visão, a referência ao menos metafórica ao visual. Ainda acredito muito nisso em certa medida, poderíamos dar mil exemplos: a filosofia é estruturada por uma metafórica sem metáfora da visão, em razão justamente desse valor de presença. O eidos, a determinação do ser, em Platão, como eidos, os senhores sabem disso, quer dizer precisamente o contorno de uma forma visível. Não é da visibilidade sensível que se trata, mas de uma visibilidade de um nós inteligível, de uma visibilidade inteligível. O platonismo é uma aventura sem fim no Ocidente. Quando Platão fala do eidos [idéia] como aquilo que é "verdadeiramente ente", realmente ente, ontos on, é porque considera que o eidos é mais ente, que ele tem mais ser do que sua cópia sensível. É também, para Platão, o ponto de partida de todo um discurso pejorativo e denegridor em relação à mimêsis, à imitação, aos poetas, aos desenhistas, àqueles que se contentam em fazer zoografias. E também em relação à escrita. A zoografia é justamente um desenho ou um retrato que pinta o vivo, mas essa pintura do vivo está morta. O eidos, enquanto ontos on, é uma visibilidade

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não visível - no sentido sensível - , mas uma visibilidade que precisa de uma luz. Essa luz lhe vem do que Platão chama de bem, agathon, que ele compara ao Sol. O Sol torna visível mas também faz crescer, faz ser. Essa luz que torna possível o ser, isto é, o eidos enquanto ente verdadeiro, esse Sol não é ele próprio visível. Trata-se de um traço formal que eu gostaria de ressaltar: o que torna visíveis as coisas visíveis não é visível, dizendo de outro modo, a visibilidade, a possibilidade essencial do visível não é visível. Axioma que não pode absolutamente ser deslocado: o que torna visível não é visível; encontra-se essa estrutura também em Aristóteles quando se diz que a própria transparência, o "diáfano" que torna as coisas visíveis, não é visível.20 A fim de transpor isso para o lado do desenho, ficaríamos tentados a dizer que o que o desenho mostra como visibilidade é uma mostração do invisível. Os desenhistas, os pintores não dão a ver "alguma coisa", sobretudo os grandes; eles dão a ver a visibilidade, o que é uma coisa completamente diferente, absolutamente irredutível ao visível, que permanece invisível. Quando se fica sem ar diante de um desenho ou de uma pintura, é porque não se vê nada; o que se vê essencialmente não é o que se vê, mas, imediatamente, a visibilidade. E, portanto, o invisível. Esse paradoxo não deixa de ter relação com o que eu dizia há pouco sobre os olhos videntes. Ver olhos videntes é tão perigoso quanto ver o Sol. É ver o invisível. Em geral, é o que se evita. Sabe-se que o que conta é ser olhado, mas isso dá medo, até mesmo ser olhado por si mesmo. Queremos ver o que é visível, mas não queremos ver o que nos olha. E que é visível como vidente invisível. Tornou-se um lugar comum: diz-se que, na pintura ou no desenho, uma dissimetria irredutível faz com que, diante de um

Cf. Aristóteles. De l'âme, 418 b. Tradução francesa de J. Tricot (Paris: Vrin, col. "Bibliothèque des textes philosophiques - Poche", 1995, p. 107106): "ainda que visível, [o diáfano] não é visível por si mas com o auxílio de uma cor estrangeira; é graças a ele, apenas, que a cor de todo objeto é percebida". Citado por Jacques Derrida em sua "Introduction". Em: Edmund Husserl. UOrigine de Ia géométrie. Op. cit., p. 152. (N. E.)

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quadro, não olhemos, sejamos olhados, mesmo que o quadro não seja um retrato ou um rosto, mesmo que seja a montanha Sainte-Victoire: somos olhados pela montanha Sainte-Victoire; e isso nos olha e nos concerne. 21 Eu acreditava, pois, até estes últimos anos, que esse privilégio da óptica na filosofia era invariável e fundamental, fundador. Tomei o exemplo do eidos, poderia ter tomado outros. O que chamamos de intuição, intueri, significa ver, o intuicionismo é uma teoria do ver imediato. O valor de fenômeno (phainesthai) é o que brilha, o que se vê, trata-se ainda de um privilégio do visível. O valor de evidência, o valor de clareza, até mesmo o valor de verdade, a aletheia ou o desvelamento, é a não dissimulação, o que se mostra e que estava escondido, é o desocultado, o desmascarado: e esse valor de visibilidade continuava a dominar a história do pensamento. A grande questão que se colocava, que tentei colocar em um certo número de textos, era a da metaforicidade. Será que o eidos é uma metáfora? Ou será que é mais grave do que isso? A história da retórica que nos permite falar de metáfora, de metonímia, de tropos, de modos de expressão, é uma história que se encontra ela própria totalmente marcada por essa metafórica. E, consequentemente, dizer que se trata de uma metáfora é, de certa maneira, não dizer absolutamente nada, uma vez que a teoria da metáfora é ela própria dominada por essa "metaforicidade", entre aspas, profunda. E mesmo a palavra "teoria", theorein, é "olhar". A teoria da contemplação, o privilégio do teorético é um privilégio da visão; portanto, esse privilégio da óptica foi dominante, e se eu estava sendo ingênuo ao pensar que era tão simples, ainda acredito que ele dominou de fato toda a história da metafísica. Não inventei22 nada a esse respeito. Heidegger diz algo de análogo, Blanchot diz algo de análogo. Consequentemente, eu me sentia confortado por essa sólida tradição. No entanto, recentemente, há alguns anos, ao 21

Derrida diz aqui "et ça nous regarde à tous les sens du terme", explicitando o duplo sentido do verbo "regarder", que significa tanto "olhar" quanto "concernir". (N. T.)

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Na versão publicada em Annali, pode-se ler: "Nada tenho a inventar a esse respeito". Talvez seja um erro na audição da gravação. (N. E.)

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escrever um livro sobre o tocar23 a propósito da obra de JeanLuc Nancy e ao reler todos esses textos, percebi que não era assim tão simples.24 O privilégio do visível era constantemente sustentado, fundado, ele próprio transbordado pelo privilégio do tocar. Em todos os textos, de Platão a Husserl, os valores, digamos, oculares ou ópticos, os valores que chamo em outro texto de heliocêntricos, isto é, valores transidos de luz, estavam a serviço do que chamo de um haptocentrismo, isto é, uma figuralidade que privilegia o tocar, o contato - ou o tato (espécie de tocar sem tocar). A cada vez, o ápice da experiência da verdade se dizia na figura do contato e não na figura da visão. Trata-se aí de uma espécie de invariante, em Platão, em Kant, em Husserl, em Maine de Biran, em Bergson. Evoco todos esses textos em meu livro sobre o tocar. O teórico, a instância do olhar, diferentemente do tocar, deixa a coisa ser o que ela é: deixa-a intacta. O teórico foi privilegiado em particular como o médium da verdade, pois a diferença entre olhar e tocar é que se olha a distância e que, consequentemente, se deixa a coisa ser o que ela é: não a comemos. Hegel ressalta isso, a preeminência do teórico é que não se come a coisa; o animal a come, ele quer assimilá-la, ele a destrói e toma-a em si, ele a assimila, ao passo que o teórico, o homem da verdade, o filósofo olha e, consequentemente, respeita: respeitar é relacionar-se com algo ou com alguém a distância, sem tocá-lo. Isso resulta regularmente, no domínio da estética, em classificações entre as artes; a escultura, evidentemente, fica bem embaixo; em um patamar superior estão a arquitetura e a pintura, que, precisamente como o saber, a consciência e a ciência, deixam a coisa ser o que ela é e não se apropriam dela, não a comem, não a deformam, respeitam-na. E depois, acima, há a música que é mais interior,

No original, "le toucher", que remete ao mesmo tempo ao substantivo "tato" e à substantivação do verbo "tocar". Derrida joga, naturalmente, com os dois sentidos, e usa mais adiante o substantivo "tact", que traduzo por "tato". (N. T.) Cf. Jacques Derrida. Le Toucher, ]ean-Luc Nancy, acompanhado de trabalhos de leituras de Simon Hantai'. Paris: Galilée, col. "Incises", 2000. (N. E.)

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mais respeitosa também na medida em que é próxima da alma. Tudo de que falo aqui não resulta apenas em uma arquitetônica filosófica mas também em uma classificação das artes, em uma hierarquia de que temos sinais em toda parte, em particular na estética de Hegel. Ora, um haptocentrismo profundo, freqüentemente inapercebido ou inconfesso, domina, a despeito de tudo, esses discursos heliocêntricos, e até mesmo freqüentemente no caso de um intuicionista absoluto como Bergson: quando quer descrever a intuição, que significa olhar, quando faz o elogio da intuição pura da duração criadora, ele diz que ela coincide com o objeto do "ver" intuitivo, e, no limite, na ordem das metáforas, ele declara que, na intuição pura, o olho toca e tem-se aquela espécie de transplante dos sentidos em que o olho, através da luz, fica em contato com o que vê, ele toca no que vê. Eu distinguiria a experiência do tocar do haptocentrismo. O haptocentrismo não é simplesmente uma homenagem prestada ao tocar, tomado como fundamental: é uma maneira de interpretar o tocar como contato absoluto sem distância, sem tato. Reencontramos aqui a ambigüidade do conceito de experiência. Ousarei dizer que, assim como a experiência da visão não necessariamente prevê, a experiência do tocar não toca necessariamente no sentido do continuísmo, do intuicionismo continuísta para o qual não há distância entre o tocante e o tocado. Pois há uma distância entre o tocante e o tocado que é a condição do tocar e que é o que se pode chamar de tato: tocar sem tocar: toca-se sem tocar. Na fenomenologia, junto à qual seria preciso que nos detivéssemos durante certo tempo, assiste-se a todo um debate entre Husserl e seus sucessores. O próprio Husserl não debateu com seus sucessores, mas estes debateram com ele, para saber se a experiência do tocante-tocado, que faço quando toco meus próprios dedos, por exemplo, era mais primordial que a experiência do vidente-visto. Em Merleau-Ponty, por exemplo, encontramos extensas análises, que não posso reconstituir aqui,25 ao longo das quais ele hesita entre o vidente-visto e o tocantetocado na experiência do corpo próprio, isto é, de minha relação 25

Cf. Jacques Derrida. Le Toucher, Jean-Luc Nancy. Op. cit., p. 93, nota 1, p. 165 et seq., p. 211-243. (N. E.)

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comigo mesmo: o que é mais fundamental na experiência do corpo próprio ou da apropriação do próprio corpo? Será que é a experiência do tocante-tocado ou a do vidente-visto, a do se ver-ver ou a do se ver-visto? Em cada um dos casos, sem que possamos e sem que tenhamos o direito de estabelecer hierarquias entre o visível e o tangível, há uma distância, um intervalo, um espaçamento, que torna possível o tocante-tocado e o vidente-visto. Ao mesmo tempo, isso embaralha toda idéia de hierarquia entre o ver e o tocar. É evidente que, muito tempo antes, quando generalizei os conceitos de rastro, de escrita, de arquiescrita, de texto, podiase ter a impressão de que, atento ao rastro, ao traço diferencial, eu escolhia de algum modo o espaço contra o tempo: a palavra falada é o tempo, a fala se desenvolve em uma temporalidade não visível; assim, quando eu contestava o privilégio temporal da fala, era possível ter a impressão de que eu optava pelo privilégio do espaçamento e, portanto, do traço diferencial, enquanto visível, espacial, em oposição ao traço musical, vocal ou temporal. Entretanto, de fato, o que estava em jogo naquele deslocamento não era a substituição de uma hierarquia por outra, mas o questionamento radical, e com conseqüências ilimitadas, de todos os pares de oposição, de toda lógica binaria que opusesse precisamente o sensível e o inteligível, a passividade e a atividade - uma vez que regularmente, de Platão a Kant, colocou-se o sensível do lado da passividade e o inteligível do lado da atividade. Quando Kant define seu conceito de experiência, que, de fato, ele considera homogêneo ao da ciência, ele opõe a percepção à experiência. A experiência engaja o conceito, mas a partir de uma receptividade sensível: Kant nos explica que um ser finito, o homem, por exemplo, é finito na medida em que não cria seus próprios objetos, isto é, na medida em que ele os recebe (é a intuição no sentido kantiano); ele não os cria. E o que ele chama de intuitus derivatus, isto é, a intuição derivada de alguém que, por ser finito, recebe esses objetos passivamente; ao passo que Deus, do lado numenal, é intuitus originarius, o que significa que Deus produz os objetos que vê: como ser infinito, ele cria o mundo. O intuitus derivatus, que é a intuição finita do homem, consiste em ser exposto em sua passividade ao que está aí e forma o

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conteúdo sensível da experiência. Essa oposição entre atividade e passividade estrutura toda a história da filosofia, e aquilo de que estamos falando é justamente uma experiência que é, como diz um certo número de pensadores de quem me sinto muito próximo hoje, Lévinas ou Blanchot, mais passiva do que a própria passividade: por exemplo, em minha relação com o Outro, aquilo que Lévinas chama de Rosto, através do que, justamente, o outro fala comigo, me olha, é infinitamente mais outro do que eu, e diante dele sinto-me responsável. Sou refém do outro numa situação que é mais passiva que a passividade, pois o conceito de passividade não basta para dizer essa extrema passividade, essa paciência, essa paixão que me entrega ao que recebo e me torna responsável por ele. Assim que essa oposição entre sensível e inteligível, entre passividade e atividade se encontra, não desqualificada (nada é desqualificado em tudo isso), mas em todo caso limitada em sua pertinência, seria preciso falar de outra maneira, escrever de outra maneira. Quando digo traço ou espaçamento, não estou designando apenas algo visível ou espaço, mas outra experiência da diferença. Voltemos ao desenho, que é o nosso tema. Falo do desenho mais do que da cor, uma vez que no desenho, na experiência do desenho (ali onde ele se distingue até mesmo em meio à cor mais aparentemente homogênea), está em jogo a experiência do traço, do rastro diferencial. É a experiência do que vem colocar um limite entre espaços, tempos, figuras, cores, tons, mas um limite que é ao mesmo tempo condição da visibilidade e invisível. Naturalmente, há traços espessos, como se diz, traços que têm uma espessura de visibilidade, um enorme traço negro, mas o que faz traço nesse enorme traço negro não é sua espessura negra, mas a diferencialidade, o limite que, enquanto limite, enquanto traço, não é visível. A operação de desenho não lida nem com o inteligível nem com o sensível, e é por isso que ela é, de certa maneira, cega. Esse enceguecimento não é uma enfermidade. É preciso ver no sentido corrente do termo para desdobrar essas potências de cegueira. Mas a experiência do traço em si mesma é uma experiência de cego: ab-ocular (etimologia de aveugle, [cego em francês]), sem olhos. Colocouse a questão dos músicos surdos ou cegos: é preciso também

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pensar nos desenhistas ou nos pintores cegos. Há muitos, houve até mesmo exposições de suas obras. Isso talvez signifique que, na pureza do gesto de desenhar, a visibilidade diferencial, a visibilidade do que é diferencial, do que marca a marca, do que deixa um rastro, não é simplesmente a coisa ou a questão do olho. Não é simplesmente a diferença entre o dia e a noite. Há aí, portanto, uma experiência do segredo, isto é, do que se mantém em retiro relativamente à visibilidade, relativamente às luzes, relativamente ao próprio espaço público. No fundo, se nos ativermos à equação entre espaço público, espaço tout court e o aparecer à luz (o phainesthai, a fenomenalidade do fenômeno, a fenomenologia), então o que acabo de dizer do traço traçado-traçante, do rastro do traço, não pertence inteiramente ao espaço público, ao espaço das luzes nem tampouco, portanto, de certa maneira, ao espaço da razão. O que não quer dizer que isso pertença a alguma obscuridade, ou que gere obscurantismo, ou que pertença à noite. Mas também não vem ao dia. Em todo desenho digno desse nome, naquilo que faz o traçamento de um desenho, um movimento resta absolutamente secreto, isto é, separado {se cernere, secretum), irredutível à visibilidade diurna. As conseqüências políticas disso são graves. Em toda parte onde há traçamento de différance, e isso vale também para o traço de escrita, para o traço musical, em toda parte onde há traço enquanto subtraído ou em retiro relativamente à visibilidade, alguma coisa resiste à publicidade política, ao phainesthai do espaço público. "Alguma coisa", que não é nem uma coisa nem uma causa, se apresenta no espaço público mas ao mesmo tempo subtrai-se a ele, resiste a ele. Tratase aí de um singular princípio de resistência ao político tal como ele é determinado desde Platão, desde o conceito grego de democracia até as Luzes. "Alguma coisa" aí resiste por si mesma sem que tenhamos que organizar uma resistência com partidos políticos. Isso resiste à politização mas, como toda resistência a uma politização, é também naturalmente uma força de repolitização, um deslocamento do político. (Eu gostaria, para terminar, em nota ou entre parênteses, de fazer ao menos alusão a alguns textos que atestam não apenas

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que pode haver grandes artistas cegos, grandes escritores cegos, Homero, Milton, ou quase cegos, Borges, Nietzsche e Joyce em algum momento da vida, Hélène Cixous, 26 à sua maneira um pouco mais complicada, mas também livros sobre as sociedades, sobre a socialidade dos cegos. Permito-me apenas remeter a todos os textos que cito longamente em Memórias de cego: O cego de Chénier, Os cegos de Baudelaire, Die Blinde de Rilke, o Relato sobre os cegos de Sábato em Alejandra etc).

26

Cf. Hélène Cixous. "Savoir". Em: Voiles, com Jacques Derrida. Paris: Galilée, col. "Incises", 1998, p. 11-19. (N. E.)

Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo

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"Trace et archive, image et art. Dialogue". Este "diálogo" ocorreu no Colégio Icônico, no Instituto Nacional do Audiovisual (INA), em Paris, em 25 de junho de 2002. (N. E.)

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JEAN-MICHEL RODES: Estamos extremamente honrados por acolher aqui esta noite Jacques Derrida. Eu gostaria de lembrar que este encontro, como todos os encontros desta quinzena, assinala os dez anos do depósito legal para rádio e televisão. Ontem se fez uma festa, e outras manifestações ocorrerão. Eu não sei se Jacques Derrida se recorda, mas em 1993 ele assinou um texto, em companhia de inúmeros outros intelectuais (Pierre Bourdieu, Régis Debray, Pierre Nora e outros), que permitiu que esse depósito legal viesse a existir e que tivéssemos agora um verdadeiro rastro do rádio e da televisão em termos de arquivos. Estamos, portanto, duplamente honrados por recebê-lo aqui esta noite. Para lembrar um pouco as regras do jogo, vamos começar assistindo a um filme documentário, em seguida faremos uma pausa para beber alguma coisa e voltaremos para uma sessão de perguntas e respostas. FRANÇOIS SOULAGES: Não se apresenta Jacques Derrida. Jacques Derrida, agradeço-lhe infinitamente, em nome do Instituto Nacional do Audiovisual (INA), em nome do Colégio Icônico e em nome de todas as pessoas que estão aqui. Obrigado por ter aceitado vir trabalhar conosco esta noite. Como dizia Jean-Michel, haverá hoje quatro ritmos diferentes: inicialmente, num primeiro momento, vamos ver juntos um filme de um pouco mais de uma hora, que se chama D'ailleurs, Derrida 1 e que foi feito por Safaa Fathy. Agradeço 1

Cf. Wailleurs, Derrida, filme escrito e realizado por Safaa Fathy (La Sept ARTE, Gloria Films, França, 1999, 67 min 57 sec). [Como se discutirá

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também a ela por nos ter dado o direito de ver esse filme, que é um belíssimo filme, como os senhores verão. Depois haverá um rápido coquetel. A partir de 20 h, no máximo, estabeleceremos um diálogo filosófico, como combinamos com Jacques Derrida. E a partir de 22h30min ou 23h, haverá uma discussão inteiramente livre, com uma festa, na qual beberemos um pouco de champanhe. Como lembrava Jean-Michel, esta noite faremos duas coisas: primeiramente, encerraremos as atividades do Colégio Icônico deste ano 2001-2002, e quero agradecer a todas as pessoas que participaram este ano dessas atividades, dedicadas, como nos outros anos, à imagem. A segunda coisa é que estamos festejando à nossa maneira os dez anos da Inateca, os dez anos da lei de 20 de junho de 1992, que estende o depósito legal ao rádio e à televisão numa perspectiva patrimonial e de pesquisa. Patrimônio, pesquisa, voltaremos, talvez, a essas palavras. O senhor aceitou vir trabalhar conosco não para fazer uma conferência - o que seria, talvez, mais fácil, se ouso dizê-lo, pois com uma conferência sabemos o que se passa, nós a redigimos e a lemos - mas para pensar problemas que vamos submeter ao senhor. Problemas relativos ao filme, à imagem, à fotografia, ao arquivo, à arte. Problemas que trabalhamos aqui de um jeito ou de outro há alguns anos. Poderíamos dar como

mais adiante neste "Diálogo", o título do filme pode ser traduzido de pelo menos duas maneiras: Aliás Derrida e Dalhures Derrida. Optei, então, por deixar o título no original. Ao longo do texto traduzirei o termo "d'ailleurs" de acordo com o contexto preciso da discussão. (N. T.)] Cf. também sobre esse filme Jacques Derrida e Safaa Fathy. Tourner les tnots. Au bord d^un film. Paris: Galilée e ARTE Éditions, col. "Incises", 2000. Nascida em 1958 em El Minya, no Egito, Safaa Fathy é cineasta e autora de três coletâneas de poemas, entre as quais... et une nuits (Le Caire, 1996), Les Petites Poupées en bois (Le Caire, 1998), e de duas peças de teatro: Terreur e Ordalie (Éditions Lansman, 2002). Realizadora do documentário D'ailleurs, Derrida, ela fez também Nom à Ia mer (29 min), filme em que Jacques Derrida lê seus poemas, e De tout coeur (54 min), no qual, em três tempos, ele analisa o motivo do coração (em especial na ocasião de um diálogo com Jean-Luc Nancy). Safaa Fathy foi também responsável pelas gravações em vídeo de uma seleção de leituras públicas, conferências, painéis e discussões, cerimônias de Jacques Derrida no período 2000-2004. (N. E.)

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título à sessão desta noite "Do rastro ao rastreado, e retorno", 2 e como subtítulo "O trabalho do tempo". Pois gostaríamos de nos interrogar hoje a respeito do trabalho feito sobre o tempo, do trabalho feito pelo tempo, do trabalho feito com o tempo. Seja a arte, o arquivo, a fotografia, a imagem e o filme, creio que sempre somos remetidos às mesmas coisas: o que são essas realidades, se não diálogos específicos com o tempo, com seus ritmos? E talvez pudéssemos inverter a questão e dizer: o que é a filosofia, se não um diálogo sobre o tempo, sobre os rastros, sobres os traçados? De fato, o senhor sabe, é preciso tempo para pensar. Durante a sessão anterior, um realizador de filmes digitais nos explicava que, num filme como Gladiator, que é um filme de sucesso para crianças, adolescentes, adultos e t c , o tempo dos planos nunca passa de cinco segundos, isto é, o espectador nunca tem tempo de começar a pensar, há sempre outra imagem que chega, outro tipo de imagem que chega. Creio que o que seria bom seria justamente nos darmos o tempo de fazer as coisas. Assim, gostaríamos aqui de lhe oferecer tempo, não porque poderíamos lhe dar tempo - quem possui o tempo? O senhor tanto quanto nós, nós tão pouco quanto o senhor - , mas porque gostaríamos de lhe oferecer este espaço para que ele seja, em um tempo particular, seis horas, um espaço de tempo oferecido, na medida em que seguiríamos nosso acordo, o que poderíamos chamar de maneira pomposa de nosso "contrato", tentaríamos dar-lhe problemas e não fazer-lhe perguntas, para que o senhor trabalhe esses problemas diante de nós. E creio que talvez possamos esperar que essa maneira específica de apresentar os problemas seja indispensável para nós, a fim de lhe oferecer, de nos oferecer esse tempo de reflexão. Portanto, o dispositivo da interrogação é a condição necessária da possibilidade do tempo da reflexão. Que as coisas se façam sem No original, "De Ia trace au trace, et retour". Optei, desde o primeiro artigo, por traduzir "trace" por "rastro", sentido próprio do termo. Mas neste e em outros textos, Derrida jogará constantemente com os substantivos "trace" e "tracement", "traçado" e "traçamento", com o verbo "tracer", "rastrear" ou "traçar", e ainda com o substantivo "trait", "traço", da mesma família etimológica. Aqui, portanto, optei, em função da discussão que será feita ao longo do texto, por privilegiar a dimensão de particípio de "trace". (N. T.)

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urgência, sem zapping, sem corte, com respeito (insisto muito na ética da pesquisa), com ritmo, e sabendo também que, ao final, estaremos apenas no início. Talvez o senhor queira dizer algumas palavras sobre o filme que vamos passar. JACQUES DERRIDA: Em primeiro lugar, algumas palavras para agradecer-lhes por me acolherem aqui, por me darem todo esse tempo, por me darem a chance de servir-lhes material mais ou menos pensante, e de compartilhar com os senhores uma reflexão de risco. É uma chance temível que estão me oferecendo aqui, uma vez que ao mesmo tempo serei exposto à imagem, em condições em que meu invencível e irredutível narcisismo corre o risco de sofrer, serei exposto à imagem e à necessidade de falar dessas imagens diante de e com pessoas que, como os senhores, são especialistas nessa problemática. Eu, à minha maneira, tive que me interessar pela imagem, mas nunca fiz isso como os senhores fazem, os senhores são todos aqui especialistas da imagem em geral e da imagem fílmica, cinematográfica, do arquivo. Portanto, de fato, ao me expor, tenho mais a aprender aqui com os senhores. Bem, é este o agradecimento de alguém que está um pouco preocupado com o que vai-lhe acontecer, é este o agradecimento que quero fazer aos senhores. Ocorre que, quando os senhores falavam de tempo dado, pensei, após ter refletido, sempre narcisicamente (no meu caso, todos sabem disso, o narcisismo sempre foi o motor do pensamento), que eu havia escrito um livrinho que se chama Mal de arquivo,3 no qual o sofrimento da pulsão de arquivos era analisado, o poder, a dimensão política do arquivo, e digo isso em referência ao aniversário que os senhores estão festejando hoje, aos dez anos do depósito legal para o patrimônio, a questão de arquivos é uma questão política... Portanto, o narcisismo incorrigível que me lembrava que eu havia sido o autor de um livrinho que se chama Mal de arquivo me lembrava também que eu havia escrito

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Cf. Jacques Derrida. Mal d'archive. Paris: Galilée, col. "Incises", 1995. (Mal de Arquivo. Uma impressão freudiana. Tradução de Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.) (N. E.)

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um livro que se chama Dar o tempo,4 no qual, entre outras coisas, eu sugeria que a única coisa - que não é uma coisa - que se pode dar é o tempo. É isso, os senhores estão me dando o inapreciável, ou seja, tempo, um longo tempo para a imagem e para a reflexão. Os senhores me pedem para dizer uma palavra sobre o filme. Creio que o filme, cuja autora quero saudar, aqui à minha direita, Safaa Fathy, como se diz em inglês, speaks for itself. Porém, desde o título, apesar de todos os problemas de temporalidade que ele coloca, que ele coloca pela própria fatura, enquanto obra, voltaremos a isso, os problemas de tempo, do tempo do filme, e do tempo calculado pela autora do filme, para além desses problemas de tempos que são também colocados por mim de passagem no filme, ocorre que, desde o título, ele desloca o tempo para o espaço uma vez que ele se chama D^illeurs. E o intraduzível "cPailleurs" do título marca que se trata de espaço, de um passeio temporal num espaço que desloca. O propósito de Safaa Fathy era o de me mostrar num espaço ou a partir de um lugar que não são aqueles nos quais se espera me encontrar. Os senhores verão que, no filme, nenhum lugar é nomeado, é identificável. Pode-se acreditar que se está na Argélia enquanto se está na Espanha ou na América. Portanto, a questão do tempo é constantemente reinscrita em uma topologia muito perversa, enfim, ao menos surpreendente, que joga com a surpresa do espaço. No fundo, é a questão do espaçamento, do devir espaço do tempo, do devir tempo do espaço, que esse filme põe em obra. Eu também cumprimento a instituição dos senhores e aqueles que a animam, e me regozijo que se possa festejar hoje ou ontem um acontecimento que confiou legalmente, estatutariamente, a esta instituição o depósito legal das obras patrimoniais e de pesquisa. Isso coloca a questão, em que você tocou de passagem, do patrimônio, isto é, da família, do pai, da filiação. E os senhores verão que a questão da filiação não está totalmente ausente do filme. Paro para não me prolongar demais. Em todo caso, eu queria acima de tudo agradecer a todos e a todas aqui.

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Cf. Jacques Derrida. Donner le temps, 1. La fausse monnaie. Paris: Galilée, col. "La philosophie en effet", 1996. (N. E.)

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FRANÇOIS SOULAGES: Vou lembrar aqui o que acordamos com Jacques Derrida, o contrato que fizemos. Ele me disse: não uma conferência, mas tentar fazer um diálogo. E eu acrescentei: um diálogo filosófico. Portanto, de modo algum uma entrevista (uma entrevista é uma coisa muito boa, mas há outros lugares), nem uma conversa, muito menos, se ouso dizer, uma polêmica, pois a polêmica, a meu ver, pode parecer algo um pouco histérico, fútil e vaidoso, mas antes um diálogo, isto é, uma escuta, um silêncio, como há pouco fizemos silêncio diante de uma imagem. Portanto, com tempo. Não é o tempo da urgência, mas o tempo do ritmo. Acho que é um luxo que podemos nos oferecer. O tempo do ritmo, o tempo do acontecimento, o tempo do há, há pensamento. Portanto, o tempo do diálogo em torno da problemática "Do rastro ao rastreado, e retorno", ou "O trabalho do tempo". Vamos, portanto, fazer isso em cinco atos. O primeiro girará em torno do filme, depois de meia hora passaremos para a imagem, e em seguida para a fotografia. O quarto ato será sobre o arquivo, é claro, e o quinto sobre a arte. O todo será seguido de uma conversa informal, em torno das 22h30min. Vamos, pois, tentar estabelecer um diálogo, não para fazer perguntas, mas para levantar problemas. Fazer perguntas é querer respostas, ao passo que levantar problemas é colocarse na reflexão que, para ir rapidamente, eu chamaria de filosófica. O saber técnico resultará numa fusão, enquanto a reflexão filosófica resultará, creio eu, numa solidão. A fusão nos permitirá dizer: nós sabemos, mas não é disso que eu gostaria, que nós gostaríamos esta noite. Enquanto a filosofia nos levará a dizer: eu me interrogo. O "nós sabemos" resultaria em algo que conhecemos bem, que existe, que é, por exemplo, a emoção televisual ou o saber televisual, e aí estaríamos mais para a meditação. Vamos, portanto, trabalhar sobre estes cinco planos: filme, imagem, fotografia, arquivos, arte. Colocarei no início um problema inaugural e agradecerei a Jacques Derrida, não por responder, mas por tomar a palavra a partir dali. Em seguida, outras pessoas tomarão a palavra, e tentaremos fazer com que o todo gire em torno da imagem. Primeira pista: o filme. Primeiramente, creio que fomos todos marcados pelo lado notável do filme, pela relação entre

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as imagens e as falas. Quisemos ter esse tempo de ruptura para não reagir de imediato ao filme. Poderíamos nos lembrar de que a escrita, na obra de um escritor, seja ele um ser da literatura, da filosofia ou da psicanálise etc. - sendo o etc, aliás, aqui pouco claro, sendo algo de indefinido e não de infinito, uma vez que nem todo ser que escreve está forçosamente na escrita do escritor... Por exemplo, o teórico não está forçosamente na escrita, o querer demonstrar não está forçosamente na escrita, ele está antes, às vezes, na exposição, no querer demonstrar. Ainda que pudéssemos também inverter as coisas e, voltando à questão da escrita e do rastro, dizer que um teórico, por exemplo, de um sistema formal em axiomática é também um homem de escrita. Enfim, digamos que a escrita na obra de um escritor é primeiramente uma escrita sobre a escrita, mesmo que, é claro, ela possa ser uma escrita sobre outra coisa. É o que chamarei de uma escrita à segunda potência. Da mesma maneira que a fábrica e a montagem de imagens o são, para o criador de imagens, seja das imagens fixas ou das imagens em movimento, portanto, para o realizador de imagens... Pode-se muito bem entender esta palavra, "realizador", como designando aquele que realiza alguma coisa; o quê? Poderíamos colocar a questão: será que é uma imagem? Uma imagem de imagem? Ou talvez uma passagem? O realizador é talvez aquele que permite que a imagem passe do real à realidade, do inconsciente à consciência, do desejo de imagem à sua encarnação. Em suma, aquele que trabalha, que fabrica, que monta imagens também trabalha sobre a imagem. Portanto, aí também, poderíamos falar em imagem à segunda potência. Isto é, estamos diante de dois trajetos, duas trajetórias, dois dispositivos aparentemente paralelos: a escrita seria escrita de escrita, e a imagem seria imagem de imagem. Mas as coisas são mais complicadas. Elas estão triplamente atadas, pois toda imagem chama palavras, e toda combinação de imagens mais ainda. E mesmo que estejamos sem voz, diante de imagens há um chamado. Além disso, toda palavra é prenhe de imagens e toda combinação de palavras mais ainda. Enfim, o sujeito que olha a imagem ou o escrito é sujeito de imagens e de palavras, de palavras-imagens e de imagens-palavras. Diante dessa aparente impossibilidade de discussão, de relação entre a imagem e a palavra, creio que duas

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questões se impõem. Primeiro problema, problema geral, muito geral: que problemas coloca o escrito sobre a imagem, a partir justamente do que vimos há pouco? O que resta da imagem após o escrito? Será que o escrito mata a imagem? Questão particular, mais existencial do que pessoal, que se dirige não ao senhor enquanto pessoa privada, íntima, mas antes ao senhor enquanto pessoa filmada, em um filme: o que acontece quando somos filmados, quando nos vemos num filme, quando nos revemos? Haveria uma reativação das coisas quando o filme foi feito sobre nós ou a propósito de nós? Eu diria que é um filme privado, isto é, que priva o público de sua recepção, ou um filme público, comercial, ao menos no espaço público, e o espaço público é algo em relação a que poderíamos insistir. Por que dispor uma história privada num espaço público? O que se torna público nessa passagem pelo filme? Em suma, quer se trate de um filme privado ou de um filme público, de um filme visto em público como esta noite, é aí que está o problema, a meu ver: o senhor não pode responder a esse filme aqui, neste momento, de uma só vez, o senhor não pode responder a ele com um filme, ao passo que, na escrita, o senhor pode responder com uma escrita, à palavra com a palavra, por vezes a imagens podemos responder com imagens. Mas aí, o senhor vai responder com uma palavra ou com um silêncio, com sua própria presença viva, corpo e espírito. Em suma, pode-se responder a um filme, eis o fundo do meu problema, pode-se responder a um filme com outra coisa que não um filme, um filme de filme, um filme à segunda potência, uma cultura, uma história? JACQUES DERRIDA: Em primeiro lugar, gostaria de agradecer-lhe por tudo o que disse, isto é, muito. O contrato que o senhor recordou visava, é minha vez de recordar, à minha proteção, mas as coisas caminharam no sentido da improvisação, ao menos para mim, de um total improviso. Como responder a um filme? Quando o senhor diz que agora devo responder ao filme - não responder pelo filme, isso cabe ao autor, eu não tenho que responder pelo filme - , que devo, pois, responder ao filme, ao menos à visão, à experiência que acabo de ter dele, alguns dos senhores, provavelmente a maioria, viram o filme

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pela primeira vez, enquanto eu já o vi várias vezes. Como responder por essa experiência singular da visão pela enésima vez de um filme? O senhor supôs que eu deveria responder quer pelo silêncio, tentação à qual tenho dificuldade em não resistir, quer pela fala, sendo entendido, o senhor disse, que esta fala não seria filmada. Olhem! Nós estamos sendo filmados e arquivados. Portanto, sei, como foi o caso quando Safaa Fathy me filmava, que já estou sob uma câmera, com os problemas de tempo e de espaço que isso coloca, pronto para uma vez mais protestar contra a câmera, como faço no filme, como os peixes.5 A dificuldade não é menor. O fato de ter de responder com palavras diante de uma câmera, isso repete a situação de filmagem cujo resultado acabamos de ver. Então, vamos à

questão da escrita e da imagem. Ocorre, e é o que faz com que eu tenha acabado não apenas aceitando mas admirando o trabalho de Safaa Fathy, após ter-lhe oposto, ela sabe disso, uma resistência se não interminável ao menos durável, o que aceitei e acabei admirando foi a arte com que ela submeteu, sem violência, a fala à imagem, isto é, com que ela fez de maneira que tudo o que eu pudesse dizer - daqui a pouco será preciso distinguir, os senhores me lembrarão caso eu me esqueça, entre a fala improvisada no filme, e na maioria das vezes a fala era totalmente improvisada, e a fala lida, porque havia textos lidos no filme, lidos por Safaa Fathy ou até mesmo por mim; eu gostaria de voltar a essa questão daqui a pouco, ela é muito difícil. Em todo caso, Safaa Fathy conseguiu fazer com que, sem ser ferida, violentada ou submissa, a fala, contudo, estivesse ou permanecesse sob a lei da imagem. As falas estavam ali como imagens, feitas para serem, de algum modo, levadas pela necessidade do ritmo, do encadeamento, da conseqüência icônica, e é por isso que é um filme e não é uma aula. Há um fragmento de aula que é filmado, não há somente textos lidos por ela ou por mim, há um fragmento de aula que é filmado. Mas tudo isso, palavras improvisadas, calculadas ou lidas, tudo isso é totalmente icônico. Icônico quer dizer estruturado segundo a necessidade e a lei da imagem, visual ou musical. A música árabe-andaluz, que dava a tonalidade geral do filme, Alusão a uma passagem dofilmeque será comentada mais adiante. (N. T.)

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era também a lei que regia a fala discursiva, a fala em suma que é minha fala habitual, que é a fala de um professor de filosofia, de alguém que faz conferências, que em geral fala em situações institucionais bastante particulares, essa palavra tinha sido deportada. E a deportação da fala submetida à lei icônica não somente era de algum modo posta em prática pelo filme, como também era o próprio tema do filme. A deportação, todas as deportações, todos os deslocamentos, o exílio, "o alhures", o "dalhures", o alhures do "dalhures", a digressão, o a mais, o dalhures, o vindo dalhures, a outra parte, a outra parte de mim mesmo, tudo isso era ao mesmo tempo a temática e o ato, a prática do filme. E devo dizer que, Safaa Fathy está aqui e pode dar testemunho disso, entrei nessa experiência a contragosto, com muita preocupação, resistência e crispação. Não foi durante a experiência da filmagem, mas após o encontro da montagem, do trabalho feito, do qual não participei de nenhuma maneira, foi diante do trabalho feito que compreendi o que não compreendi durante a filmagem, o que estou tentando explicar, isto é, esta autoridade do icônico sobre o verbal, ou sobre o escrito. Então, naturalmente, se digo que foi a posteriori que gostei do trabalho dela, que o admirei, é porque a fala, ao mesmo tempo em que estava assim assujeitada à imagem, ao icônico, não se achava ali, contudo, violentada. E com isso quero dizer que, por causa do tempo, do andamento, por causa da arte da interrupção, da arte da metonímia, isto é, do alinhavar, suponho que todo mundo viu isso, há uma temática muito organizada que é alinhavada do começo ao fim, o que poderíamos chamar de "circuncisão", "sobrevivência", "espectralidade", "marranismo", "o sublime", toda essa trança de temas é alinhavada no filme, com muita discrição mas com muita segurança, e se não houve violência em relação à palavra, foi porque a reserva de palavra era dada a ouvir ou a pressentir. Quero dizer com isso (os senhores me dirão se o que eu digo vai ao encontro do sentimento ou da experiência de cada um) que era possível sentir que a fala era retida no próprio momento em que era desarmada, exposta à improvisação absoluta, ela era retida, reservada, havia coisas a dizer que permaneciam ali em potência, mas em todo caso não reprimidas, não oprimidas ou não interditas. Vou tomar um ou dois exemplos, pois de

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qualquer modo eu gostaria de dizer coisas que sou, talvez, o único a poder dizer aqui, e que podiam cursivamente, furtivamente, passar muito rápido ou despercebidas. Por exemplo, em dado momento, um plano mostrava a casa da minha infância, já que Safaa Fathy foi filmar sozinha na Argélia (digo-o também à margem para que os senhores o saibam), porque eu não podia ir, em lugares que indiquei a ela, lugares de minha infância: meu liceu, o cemitério, a casa em que vivi até os 19 anos sem sair de lá, sem vir à França; bem, há um plano em dado momento que mostra bastante furtivamente um mosaico, que é o pavimento da entrada da casa em que eu morava. Eu não sei se isso foi notado, mas esse mosaico apresenta uma desigualdade. São flores geometricamente ajustadas e o pedreiro deve ter-se enganado, ele pôs um ladrilho de través, coisa que me deteve durante toda a minha vida. A cada vez que eu entrava no vestíbulo eu via aquele ladrilho que não era como deveria ser. No livro que publicamos junto com o filme, explico-me sobre tudo o que aquele ladrilho mantinha em reserva de memória, de fala interrompida, de metonímia. E ali, na imagem, havia uma reserva de palavra infinita de que só posso dar uma vaga idéia em Rodar as palavras.6 A expressão "tourner les mots" responde à sua questão. Trata-se de contornar as palavras, isto é, de evitar as palavras, de, ao se filmarem as palavras, evitar a autoridade do discursivo, ascendência que é uma catástrofe para um filme. Ela filmou as palavras. Ora, ao mostrar aquele ladrilho disjunto ou mal juntado, ela filmou um discurso que, em minha cabeça, é interminável. Para a música, a mesma coisa: em certo momento, vê-se o piano da minha mãe, na mesma casa, e ali também é a reserva de um discurso interminável sobre tudo o que diz respeito à circuncisão etc. E em dado momento, já que estou no registro do interminável, há no pequeno discurso que improviso ao final sobre o indecidível, sobre a aporia do indecidível que é

Jacques Derrida e Safaa Fathy. Tourner les mots. Au bord d'un film. Op. cit. A expressão "tourner les mots" é bastante rica de sentidos, como Derrida explicitará a seguir. Significa imediatamente "rodar" no sentido do cinema, isto, é "filmar", mas também "contornar", no sentido em que se contorna um obstáculo, ou ainda "tornear", "modelar"... (N. T.)

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a condição da decisão, que deve ser atravessada, não atravessada como um momento, mas como um momento interminável, há ali um discurso sobre o tempo, sobre essa estranha experiência do tempo que faz com que ali onde um momento se detém, onde devo passar do indecidível à decisão, a despeito de tudo o indecidível permanece, portanto, o tempo do indecidível continua indefinidamente mesmo quando ele foi interrompido. E essa fala sobre o tempo, uma vez que, ainda há pouco, o senhor falou bastante e muito bem sobre o tempo, ela é uma reserva do filme. No tempo do filme, uma hora, lh08min, há intrusões de discurso sobre o tempo que são intermináveis e que são respeitadas como intermináveis. Por exemplo, com a cena dos peixes, digo que quando estou com peixes, a questão que se coloca para mim é a seguinte: estamos vivendo no mesmo instante, eu e os peixes, mas eles têm uma experiência do tempo incomensurável com a minha, e eu me pergunto todo o tempo como eles suportam o tempo que os fazemos viver dentro daquele vidro, que se assemelha à lente de uma câmera. Comparo a minha temporalidade com a deles, ali onde elas são intraduzíveis uma na outra e incomensuráveis uma com a outra. Logo, esse discurso sobre o tempo, se eu tivesse o tempo agora (estamos na mesma situação: estamos sendo filmados e não devo falar por muito tempo), vou dizer-lhes que há nessa observação em relação aos peixes e ao tempo, ao tempo deles e ao meu, observação interrompida em dado momento por razões de fatura do filme, há em reserva não apenas muitas outras coisas na minha cabeça, de maneira muito precisa, a leitura potencial de uma observação de Heidegger em Sein und Zeit, que, em dado momento, se pergunta se os animais têm o tempo, se há uma temporalização do animal. Ele parece pensar que não, não há Dasein animal, e no entanto ele se coloca a questão. Se eu tivesse tido tempo, eu teria, diante da câmera, desdobrado, desenvolvido, à minha maneira de filósofo profissional e inesgotável, um longo discurso sobre a temporalização do ser vivo, do ser vivo animal, do ser vivo humano etc.7 Mas isso não 7

Cf., entre outros textos de Jacques Derrida sobre essa questão, De l'esprit. Heidegger et Ia question. Paris: Galilée, col. "La philosophie en effet", 1987, p. 76 et seq.; Aportes. Mourir - s'attendre "aux limites de Ia vérité". Paris:

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vou fazer, não quero fazer, mas, em todo caso, para mim, ao ver o filme, fico com a impressão de que essa interrupção não me violentava, que ficava bem como estava, que havia os peixes, a imagem dos peixes, e que era bom assim, e que a fala não era violentada pela imagem, que a fala era filmada. Então, evidentemente, com as mesmas palavras, com a mesma fala, era possível fazer outros filmes, outras imagens. Nesse caso, há a escolha, a assinatura da autora do filme, que não é a minha, e que tem, por uma compreensão múltipla, que é ao mesmo tempo a inteligência de que eu sou ou do que escrevo, mas também a inteligência do filme a ser feito, daquilo que ela queria fazer, pois esse filme é simultaneamente um retrato de mim e um autorretrato da autora do filme, que escolheu seus temas, que os escolheu no momento em que me interrogava, mas que, em seguida, no material considerável - uma vez que isto representa apenas 10%, enfim, uma pequena porcentagem do material original - , escolheu seus temas. Foi o que eu disse a ela no início: "A senhora vai selecionar, a senhora vai escrever seu texto, a senhora vai assiná-lo, e é de certa maneira um autorretrato de Safaa Fathy, indissociavelmente". E aí houve, eu não diria um contrato, em geral não acredito nos contratos, mas houve, na dissimetria de que também falo (em dado momento falo da dissimetria relativamente à circuncisão, estamos submetidos dissimetricamente a uma lei), na dissimetria mútua, de certa maneira, um acordo, de que ela manteve a iniciativa e o segredo, e que resultou nesse filme. Houve um acordo/acorde,8 ao mesmo tempo no sentido da aliança e no da música. Eu não sei se respondi à primeira questão, mas para poupar tempo, poupar-lhes tempo, poupar-nos tempo, passo muito rapidamente à segunda, sobre o privado e o público.

Galilée, col. "Incises", 1996, p. 72 et seq.; "Chapitre IV", em Vanimal que doncje suis. Marie-Louise Mallet (Org.), Paris: Galilée, col. "La philosophie en effet", 2006, p. 193-219; assim como a discussão cerrada no seminário La bete et le souverain, v. I (2001-2002) e v. II (2002-2003). Michel Lisse, Marie-Louise Mallet e Ginette Michaud (Org.). Paris: Galilée, col. "La philosophie en effet", 2008 e 2010. (N. E.) No original, "accord", palavra que tem os dois sentidos. (N. T.)

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Primeiro ponto: parece-me que o que Safaa Fathy quis fazer, mas ela lhes dirá melhor do que eu e me corrigirá, se eu me enganar, foi deslocar (é aí que a palavra "dalhures" encontra um de seus alcances) a imagem pública que, na medida em que sou público, é em geral difundida a meu respeito: filósofo, professor, parisiense etc. Ela mostrou, então, que eu vinha dalhures, e toda a história não francesa, não acadêmica, foi, evidentemente, o lugar da emphasis, da insistência. Embora haja uma cena de ensino, a insistência é sobretudo relativa a coisas bastante estranhas à minha imagem pública. Ao mesmo tempo, porém, a fronteira entre o privado e o público não era respeitada. É como se se quisesse, por meio de um filme (é um dos alcances possíveis, uma das interpretações possíveis em meio a muitas outras), dar um corpo a esta questão que é para todos nós uma questão fundamental, que sempre foi uma questão fundamental, hoje mais do que nunca: de onde vem a distinção entre público e privado, qual é a sua história, qual é a sua legitimidade, como se atravessa essa fronteira? Sabe-se que essa fronteira se desloca hoje mais do que nunca, e evidentemente, em um filme como esse, a fronteira entre o público e o privado é constantemente indecidível. Se eu tivesse tempo, se tivéssemos os meios, poderíamos mostrar que tal tema (digo-o, aliás, desde o início, na imagem que foi selecionada como inicial) do meu discurso filosófico, digamos, ou intitulado como filosófico, tem uma origem privada, singular, secreta, que não se pode pensar o que chamamos de desconstrução sem pensar a circuncisão de um menino judeu da Argélia etc. Consequentemente, a memória privada do público é aqui constantemente reativada. Creio que essa distinção entre o privado e o público é uma distinção que tem uma história, uma história relativamente recente. O filme não apenas coloca a questão filosófica, quer dizer, poderíamos imaginar que esse filme é mostrado a estudantes de filosofia como introdução à questão: "O que quer dizer privado, o que quer dizer público?". O que nesse filme era privado ou público? Qual é o critério? Isso poderia funcionar assim. Naturalmente, em tudo o que é dito, em tudo o que eu digo improvisadamente em relação ao "nós", em relação ao destinatário, em relação ao perdão, à hospitalidade, ali onde a cada vez tento colocar a questão de

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jkxemplo, uma hospitalidade incondicional, H não pode ser política, que não pode ser j l r leis políticas, por regras políticas, entre •condicional e a hospitalidade condicional, S> acolhimento, os passaportes, a legislação, ativa à distinção entre o privado e o público. (Jpluta, incondicional, não é pública, ela não S i é secreta. Isso não quer dizer que ela seja jlsecreta. É a mesma coisa para o perdão, I s t i â , nem a prescrição, nem a desculpa. O jjidicional não pode ser uma coisa pública, ftr secreto. É o que é dito naquela aula l i m , a questão público/privado é uma das H o filme, e evidentemente ela não é apenas • b , ela é o próprio ato do filme, a coisa do A-'iWÈS§ããS ->'-