Payback: a Dívida e o Lado Sombrio da Riqueza 9786555951325

Payback: A Dívida e o Lado Sombrio da Riqueza MUITOS SE PERGUNTAM: COMO PUDEMOS DEIXAR QUE ISSO ACONTECESSE? Em uma abor

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Payback: a Dívida e o Lado Sombrio da Riqueza
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UM
ANTIGAS BALANÇAS
DOIS
DÍVIDA E PECADO
TRÊS
A DÍVIDA COMO TRAMA
QUATRO
O LADO SOMBRIO
CINCO
PAYBACK
NOTAS
BIBLIOGRAFIA
AGRADECIMENTOS
AUTORIZAÇÕES
LIVROS DA AUTORA

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Para Graeme e Jess, Matthew e a pequena Graeme

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UM ANTIGAS BALANÇAS

DOIS DÍVIDA E PECADO

TRÊS A DÍVIDA COMO TRAMA

QUATRO O LADO SOMBRIO

CINCO PAYBACK NOTAS BIBLIOGRAFIA AGRADECIMENTOS AUTORIZAÇÕES LIVROS DA AUTORA

UM

ANTIGAS BALANÇAS

O escritor canadense Ernest Thompson Seton recebeu uma estranha conta no dia do seu aniversário de vinte e um anos. Era uma lista em que seu pai relacionava todas as despesas referentes à infância e à juventude do jovem Ernest, aí incluída a quantia cobrada pelo médico para trazê-lo ao mundo. Ainda mais curiosamente, é Ernest quem deve pagá-la. Sempre considerei o sr. Seton pai um cretino, mas agora me pego pensando: e se, em tese, ele estivesse certo? Estaremos em dívida para com alguém ou alguma coisa pelo simples fato de existirmos? Em caso afirmativo, o que devemos, e a quem ou a quê? E de que modo deveríamos pagar? A razão deste livro é a curiosidade — minha — e minha expectativa de que escrevê-lo me permita explorar um assunto do qual pouco sei, mas que, por isso mesmo, me intriga. Este assunto é a dívida. Payback não é um livro sobre gerenciamento de dívida, débito de sono ou dívida interna, ou sobre controle do orçamento mensal, ou sobre como a dívida pode até vir a ser uma coisa boa, na medida em que possibilite economizar dinheiro e depois fazê-lo crescer, ou sobre pessoas viciadas em consumo e como descobrir que se é uma delas: as livrarias e a internet estão abarrotadas desse material. Tampouco é sobre formas mais bizarras de dívida: dívidas de jogo e vinganças mafiosas, justiça cármica pela qual más ações resultam numa reencarnação na forma de besouro, ou melodramas em que credores torcendo os bigodes se valem do não pagamento do aluguel para forçar belas mulheres a fazer sexo contra a vontade, muito embora possa tratar delas. Este livro é sobre a dívida como uma construção humana — portanto, uma construção criativa —

e sobre como tal construção reflete e amplia tanto o desejo voraz quanto o medo feroz dos homens. Escritores escrevem sobre aquilo que os perturba, diz Alistair MacLeod. E também sobre o que os intriga, acrescento eu. O tema de Payback é uma das coisas mais perturbadoras e intrigantes que conheço: o nexo peculiar em que dinheiro, narrativa ou história e crença religiosa se cruzam, muitas vezes com uma força explosiva. As coisas que nos intrigam quando adultos começam quando ainda somos crianças, ao menos foi esse o meu caso. Na sociedade do fim da década de 1940, na qual eu cresci, havia três coisas sobre as quais nunca se podia perguntar. Uma delas era o dinheiro, em especial quanto alguém ganhava. A segunda era a religião: dar início a uma conversa sobre esse tema podia levar diretamente à Inquisição espanhola, ou pior. A terceira era o sexo. Eu vivia num meio de biólogos, e o sexo — ao menos o praticado por insetos — era algo que eu podia pesquisar em compêndios espalhados por toda a casa: o ovipositor não me era estranho. Assim, a ardente curiosidade que as crianças experimentam vis-à-vis o proibido se concentrava, para mim, nas outras duas áreas-tabu: a das finanças e a da devoção. De início elas pareciam pertencer a categorias distintas. Havia coisas de Deus, que não podiam ser vistas. E havia as de César, que eram todas excessivamente materiais. Tomavam a forma de bezerros de ouro, de que na época não tínhamos muitos exemplos em Toronto, e também a de dinheiro, o amor por este sendo a raiz de toda a perdição. Por outro lado, contudo, havia o personagem de histórias em quadrinhos Tio Patinhas — que eu lia sem parar —, um bilionário de maus bofes, pão-duro e até mesmo maucaráter cujo nome em inglês, Scrooge McDuck, provém do famoso avarento regenerado de Charles Dickens, Ebenezer Scrooge. O plutocrático Patinhas tinha uma enorme caixaforte cheia de moedas de ouro, na qual ele e os três

sobrinhos adotados mergulhavam como se estivessem numa piscina. O dinheiro, para Tio Patinhas e os três patinhos, longe de ser a raiz de todo o mal, era um agradável divertimento. Qual das duas visões seria a correta? Nós, crianças da época, tínhamos quase sempre algum dinheiro nos bolsos, e embora não pudéssemos falar ou demonstrar excessivo apego a ele, havia no ar como que uma expectativa de que aprendêssemos a administrá-lo desde muito cedo. Quando eu tinha oito anos, tive meu primeiro emprego remunerado. Já estava familiarizada com o dinheiro de um modo mais restrito — recebia cinco cents por semana de mesada, o que dava para comprar muito mais dentes cariados do que hoje em dia. As moedinhas que não gastava em doces e balas eu guardava numa lata que um dia fora de chá Lipton. Tinha uma ilustração indiana em cores vivas, com um elefante, uma moça boazuda de véu, homens com turbantes, templos e domos, palmeiras e um céu azul como jamais houve outro igual. As moedinhas tinham folhas de um lado e cabeças de reis no outro, e eram mais cobiçadas por mim conforme a raridade e a beleza: o rei George VI, monarca então no poder, era moeda corrente e por isso possuía baixo status na minha pequena mas pretensiosa escala de valores, sem falar que ele não usava barba nem bigode; mas havia ainda alguns exemplares do cabeludo George V em circulação e, com alguma sorte, uma ou duas moedas de Edward VII, este sim, de rosto realmente peludo. Eu sabia que essas moedas podiam ser trocadas por coisas como sorvetes de casquinha, mas não as achava melhores do que as outras unidades monetárias utilizadas pelos meus amiguinhos: figurinhas de aviões que vinham nos maços de cigarro, tampas de garrafas de leite, revistas em quadrinhos e bolas de gude de tipos variados. Em cada uma dessas categorias, o princípio era o mesmo: a raridade e a beleza aumentavam o valor. A taxa de câmbio era

definida pelas próprias crianças, apesar de haver margem para uma boa pechincha. Tudo isso mudou quando consegui um emprego. Pagavam 25 cents por hora — uma fortuna! — e meu trabalho consistia em levar um bebê para passear de carrinho debaixo de neve. Assim que trazia o bebê de volta, vivo e não muito enregelado, recebia meus 25 cents. Eu me encontrava naquele momento da vida em que cada moeda valia o mesmo que qualquer outra, não importava a cabeça que aparecesse gravada nela, e isso me ensinou uma importante lição: no mundo financeiro, as considerações estéticas são logo postas de lado, se não tiverem pior sorte. Como eu estava ganhando muito dinheiro, me disseram que eu precisava de uma conta bancária, então troquei a lata de chá Lipton por uma caderneta vermelha no banco. Agora, a diferença entre moedas com cabeças gravadas e bolas de gude, tampas de garrafas de leite, revistas em quadrinhos e figurinhas de aviões se tornava clara, porque não dá para depositar bolas de gude no banco. Mas eu era estimulada a pôr meu dinheiro lá, de modo a mantê-lo seguro. Sempre que juntava uma quantia expressiva — um dólar, por exemplo — eu a levava até o banco, onde a soma era registrada à caneta por um caixa invariavelmente de cara amarrada. O último número anotado na caderneta era chamado de “saldo” — um termo que eu não compreendia, já que ainda precisava recorrer aos dois pratos das balanças de pesar. De vez em quando surgia na minha caderneta uma quantia extra — que eu não havia depositado. Segundo me explicaram, eram os “juros”, que eu tinha “recebido” por manter o meu dinheiro no banco. Eu também não compreendia bem aquilo. Para mim era interessante, sem dúvida, ter um dinheirinho a mais, mas no fundo eu sabia que não o merecia: afinal, não havia levado nenhum bebê do banco para passear na neve. De onde, então, vinham essas quantias misteriosas? Provavelmente do mesmo lugar

imaginário onde a Fadinha do Dente desovava níqueis em troca do dentinho de leite que a gente cuspia fora: uma espécie de reino encantado que não se localizava exatamente em parte alguma, mas em que nós todos devíamos fingir acreditar ou então a tática do um-dente-porum-níquel não funcionaria mais. E, no entanto, os níqueis sob o travesseiro eram bem reais. Tal como os juros bancários, que podiam ser transformados em moedas e daí em balas e sorvetes de casquinha. Mas como era possível uma ficção gerar objetos reais? Eu sabia, pelos contos de fadas, como o de Peter Pan, que se a gente deixa de acreditar em fadas, elas morrem: e se eu parasse de acreditar em bancos, eles também expirariam? A visão adulta era a de que fadas não existem, e bancos, sim. Mas será que isso era verdade? Assim começaram minhas encucações financeiras. Que ainda não terminaram. Durante o último meio século, passei muito tempo andando de transporte coletivo. Costumo ler os anúncios. Na década de 1950, havia grande quantidade de anúncios de cintas e sutiãs, desodorantes e produtos para higiene bucal. Hoje em dia eles sumiram, substituídos pelos de doenças — problemas cardíacos, artrite, diabetes, entre outros; anúncios para ajudar a parar de fumar; anúncios de programas de TV que sempre mostram uma ou duas mulheres do outro mundo, apesar de serem quase sempre propagandas de tintura de cabelo e creme para a pele; e anúncios de instituições a que você pode recorrer caso seja viciado em jogo. E anúncios de serviços capazes de nos livrar das dívidas — destes há uma infinidade. Um deles mostra uma mulher toda sorridente com uma criancinha no colo. A legenda diz: “Agora eu estou controlada... e os credores pararam de me ligar.” “Assim como o inferno, dinheiro não compra felicidade — sua dívida é administrável”, diz outro. “Há Vida após a Dívida!”, um terceiro faz um jogo de palavras. “Pode haver um final feliz

para sempre!”, acena um quarto, valendo-se da mesma crença nos contos de fadas que nos leva a varrer as contas para debaixo do tapete e fingir que elas foram pagas. “Tem alguém atrás de você?”, pergunta um quinto anúncio, mais agourento, lá do fundo de um ônibus. O que tais serviços prometem não é dar um sumiço em suas dívidas incômodas num passe de mágica, e, sim, ajudar você a consolidá-las e ir pagando aos poucos, aprendendo ao mesmo tempo a não cair mais naquela gastança irresponsável que o fez entrar tão profundamente no vermelho. Por que existem tantos anúncios como esses? Será porque há um número sem precedentes de pessoas endividadas? É bem possível. Naquela época, tempos de cintas e desodorantes, os anunciantes evidentemente imaginavam que o que mais podia gerar ansiedade era sair por aí com o corpo livre de amarras, e de quebra empestear tudo à sua volta. Era o corpo que podia fugir de você, portanto era o corpo que precisava ser mantido sob controle; do contrário, esse corpo poderia escapulir e fazer coisas de natureza sexual capazes de deixar você com tamanha vergonha, a ponto de ele jamais poder ser mencionado num transporte público. Agora as coisas estão muito diferentes. Os escândalos sexuais fazem parte da indústria do entretenimento, e não são mais um motivo de censura e culpa; dessa forma, o corpo não é o foco principal de ansiedade a não ser que contraia alguma doença muito badalada. Em seu lugar, o que mais preocupa é o lado devedor do seu livro-caixa. Há uma boa razão para isso. O primeiro cartão de crédito foi lançado em 1950. Em 1955, a relação dívida-renda dos lares canadenses era em média de 55%; em 2003 já estava em 105,2%. A proporção só fez subir desde então. Nos Estados Unidos, ela era de 114% em 2004. Em outras palavras, cada vez mais gente está gastando mais do que ganha. O mesmo fazem muitos governos nacionais.

No nível microeconômico, um amigo me alerta para uma dívida epidêmica entre os adultos maiores de dezoito anos, sobretudo estudantes universitários; as empresas de cartões de crédito se voltam para eles, e os estudantes saem gastando desenfreadamente sem medir as consequências e logo ficam entalados em dívidas que não podem quitar, a taxas de juros elevadíssimas. Como os neurologistas agora vêm demonstrando que o cérebro adolescente é muito diferente do adulto e incapaz de fazer os cálculos matemáticos de longo prazo do tipo compre-jápague-depois, isso deveria ser considerado exploração infantil. No outro extremo da balança, o mundo financeiro se viu recentemente abalado pelo colapso de uma pirâmide de dívidas envolvendo algo denominado “hipotecas subprime” — um esquema de pirâmide que a maioria das pessoas não compreende muito bem, mas que se resume ao fato de que algumas grandes instituições financeiras concederam hipotecas a pessoas que possivelmente não tinham condições de fazer as amortizações mensais e embalaram essas dívidas fajutas com rótulos atraentes e as venderam a instituições e fundos de compensação que acharam que elas valiam alguma coisa. É parecido com a armadilha do cartão de crédito para adolescentes, só que numa magnitude muitíssimo maior. Uma amiga dos Estados Unidos escreve: “Eu era cliente de três bancos e de uma empresa hipotecária. Um dos bancos comprou os outros dois e agora está tentando de toda maneira comprar a empresa hipotecária, que está falida; só que hoje de manhã foi noticiado que este último banco restante se encontra igualmente em sérias dificuldades. Agora estão tentando renegociar com a empresa hipotecária. Primeira pergunta: se sua empresa está para quebrar, por que você iria querer comprar outra cuja insolvência é notícia de primeira página nos jornais? Segunda pergunta: se todo mundo que empresta dinheiro

quebrar, os devedores se verão livres do apuro? Vocês não imaginam a decepção dos americanos, que adoram crédito. Concluo que todos os bairros do Centro-Oeste se parecem com os da minha cidade, casas vazias, com a grama na altura dos joelhos, trepadeiras subindo pelos telhados e ninguém querendo admitir que é o dono dos imóveis. E assim lá vamos nós ladeira abaixo, colhendo o que plantamos.” Pode ser um belo desfecho bíblico, mas o fato é que continuamos coçando a cabeça. Como e por que isso foi acontecer? A resposta que ouço com mais frequência — “ganância” — pode ser bastante correta, mas não avança muito no sentido de desvendar os mistérios mais profundos do processo. Que “dívida” é essa que nos deixa tão atormentados? Ela está à nossa volta, como o ar, mas só pensamos nela quando algo não vai bem com o suprimento. Trata-se certamente de algo que somos levados a sentir como indispensável para podermos flutuar coletivamente. Nos bons tempos, nós flutuamos sobre a dívida como se estivéssemos num balão cheio de hélio; subimos cada vez mais, o balão ficando cada vez maior, até que — puf! — algum estraga-prazeres espetou um alfinete nele e despencamos. Mas qual é a natureza desse alfinete? Outra amiga minha costumava afirmar que os aviões só ficam no ar porque as pessoas acreditam — contra toda a lógica — que eles são capazes de voar: sem essa ilusão coletiva a sustentá-los, acabariam instantaneamente desabando na terra. Será a “dívida” uma coisa parecida? Em outras palavras, talvez a dívida exista porque nós a imaginamos. São as formas que têm tomado esse imaginar — e seu impacto na vida real — que eu gostaria de explorar. Nossos atuais comportamentos em relação à dívida estão profundamente assentados na nossa cultura — entendida, no dizer do primatologista Frans de Waal, como “um modificador extremamente poderoso, que afeta tudo o que fazemos e o que somos, penetrando no âmago da

existência humana”. Mas talvez haja alguns padrões ainda mais básicos sendo modificados. Imaginemos que tudo o que os seres humanos fazem — o bom, o mau e o feio — possa ser posto numa mesa como um smorgasbord de comportamentos com uma plaquinha em que se lê Homo sapiens sapiens. Tais coisas não estão no smorgasbord das Aranhas, razão pela qual nós não perdemos muito tempo comendo moscas-varejeiras, nem no smorgasbord dos Cães, razão pela qual não saímos por aí marcando hidrantes com nossos odores glandulares ou fuçando sacos de lixo. Parte do nosso smorgasbord humano tem comida de verdade, pois, como todas as espécies, somos guiados pelo apetite e pela fome. O restante das travessas na mesa contém medos e desejos menos concretos — coisas do tipo “Eu queria poder voar”, “Eu gostaria de fazer sexo com você”, “A guerra serve para unificar a tribo”, “Tenho medo de cobra” e “O que acontece comigo quando morro?”. Porém, nada há na mesa que não se baseie ou que não esteja referido de alguma forma a nossos padrões humanos rudimentares — o que queremos, o que não queremos, o que admiramos, o que desprezamos, o que amamos, e o que odiamos e tememos. Alguns geneticistas vão mais longe ao falar dos nossos “módulos”, como se fôssemos sistemas eletrônicos com componentes de um circuito funcional que podem ser ligados e desligados. Se tais módulos específicos existem de fato como parte de nossas redes neurais geneticamente determinadas, é ainda um tema para experimentos e muito debate. Mas, em todo caso, estou partindo do princípio de que, quanto mais velho seja um padrão de comportamento reconhecível — quanto mais tempo ele comprovadamente tenha estado conosco —, mais essencial será para nossa humana-idade e mais variantes culturais nele se evidenciarão. Não estou propondo aqui uma “natureza humana” com rótulo de imutável — os epigeneticistas garantem que os

genes podem ser expressos, ou “ativados”, e também reprimidos de várias maneiras, dependendo do ambiente em que se encontrem. Estou simplesmente dizendo que sem configurações generrelacionadas — determinados blocos de construção ou pedras fundamentais, como preferirem — as muitas variáveis dos comportamentos humanos básicos que vemos a nosso redor jamais ocorreriam. Um videogame on-line como o EverQuest, em que você tem que abrir caminho, de peleteiro a dono do castelo, por meio de estratégias de compra e venda, cooperação com parceiros de jogo em missões de grupo e assaltos a outros castelos, seria impensável caso não constituíssemos uma espécie social e cônscia das hierarquias. Que pedra fundamental interior é essa que está na base da refinada estrutura da dívida que nos cerca por todos os lados? Por que somos tão receptivos a ofertas de vantagem no presente em troca de uma recompensa futura mas onerosa? Pura e simplesmente porque somos programados para colher o fruto do galho mais baixo e devorar o máximo possível dele, sem pensar nos dias sem frutos que podem estar nos aguardando mais adiante? Bem, vejamos: setenta e duas horas sem líquidos ou duas semanas sem comida e muito provavelmente estaríamos mortos; portanto, se você não comer imediatamente um pedaço desse fruto que está bem à sua mão, não estará aqui seis meses mais tarde para se congratular pela capacidade de se controlar e de adiar o prazer. A propósito, é praticamente garantido que os cartões de crédito rendam dinheiro ao credor, uma vez que o “pegue-logo” pode ser uma variante de um comportamento estabelecido em períodos de vacas magras, muito antes de alguém sequer cogitar economizar para a aposentadoria. Um pássaro na mão de fato valia, então, mais do que dois no galho, e um pássaro na boca era ainda mais valioso. Mas será este apenas um caso de lucro a curto prazo seguido por sofrimento a longo prazo? A dívida se

origina de nossa própria ganância ou — sendo mais generosos — de nossa necessidade? Defendo que há outra antiga pedra fundamental interior sem a qual as estruturas de débito e crédito não existiriam: nosso senso de justiça. Sob uma ótica mais benevolente, trata-se de uma característica humana admirável. Sem nosso senso de justiça, cujo lado positivo é “toda boa ação merece outra”, não seríamos capazes de reconhecer a justiça de restituir o que pegamos emprestado, e deste modo ninguém jamais seria tolo de emprestar algo a alguém na expectativa de retorno. As aranhas não compartilham suas moscas varejeiras com outras aranhas adultas: somente os animais sociais acedem em partilhar. O lado sombrio do senso de justiça é o senso de injustiça, que resulta em vanglória por sair impune após ser desleal, ou então em culpa; e em ódio e vingança, quando a injustiça é contra você. As crianças começam a dizer “Isso não é justo!” com a idade de quatro anos, mais ou menos, bem antes de mostrar interesse em modalidades sofisticadas de investimento ou de ter a mínima ideia do valor de moedas e cédulas. Elas também ficam muito contentes quando o vilão, numa dessas historinhas da hora de dormir, recebe uma lição inequívoca, e se sentem frustradas quando tal não ocorre. Perdão e piedade, como azeitonas e anchovas, parecem ser adquiridos mais tarde, ou — se a cultura lhes é desfavorável — não. Para as crianças menores, entretanto, colocar um sujeito mau dentro de um barril cravejado de pregos e rolá-lo em direção ao mar resgata o equilíbrio cósmico e afasta de vista a força malévola, e os pequeninos dormem melhor à noite. O interesse pela justiça vai se refinando com a idade. Após os sete, há uma fase legalista em que a justiça — ou, mais comumente, a injustiça — de qualquer regra imposta pelos adultos é incessantemente contestada. Também nessa idade o senso de justiça pode assumir formas bastante

curiosas. Por exemplo, na década de 1980 havia um estranho ritual entre as crianças na faixa dos nove anos que consistia no seguinte: durante os passeios de carro, a gente ficava de olhos grudados na janela traseira até dar com um fusca. Então batia no braço do amiguinho, ou amiguinha, gritando: “Eu te bato, você não me bate!” Ver um fusca primeiro significava ter o direito de bater na outra criança, e incluir outra cláusula — “você, não!” — significava que ele perdia o direito de retribuir o golpe. Se, entretanto, a outra criança conseguisse dizer “Bater de volta!” antes de você soltar seu dito salvador, então um soquinho de retaliação lhe era permitido. Dinheiro não era a questão: ninguém podia comprar o direito de não levar pancada. O que estava em jogo era o princípio da reciprocidade: um soco ensejava outro, e o direito seria efetivamente exercido a menos que uma cláusula de Não fosse invocada com a velocidade de um raio. Aprendíamos que a ontogenia repete a filogenia; o crescimento do indivíduo reflete o desenvolvimento da história das espécies. Aqueles que não conseguem discernir no ritual do Eu Te Bato, Você Não Me Bate a essência da lei de Talião do Código de Hamurábi, que data de quase quatro mil anos atrás — retomado na lei bíblica do olho-por-olhodente-por-dente —, são cegos de verdade. A lei de Talião significa, em linhas gerais, “a lei de retribuição na mesma moeda ou semelhante”. Segundo as regras do Eu Te Bato, Você Não Me Bate, socos anulam socos a não ser que se consiga formular a tempo a proteção mágica. Essa espécie de proteção pode ser encontrada a todo momento no mundo dos contratos e documentos legais, em cláusulas que começam com frases como “Não obstante o precedente”. Todos nós gostaríamos de fazer jus a um soco grátis, a qualquer coisa grátis. Todos suspeitamos de que a probabilidade de obter este direito é quase nula, a menos que possamos interrompê-lo com algum abracadabra. Mas

como sabemos que um soco é capaz de ensejar outro? Trata-se de socialização precoce — do tipo a que se chega brigando pela massinha de modelar na pré-escola e depois dizendo “Fulana me bateu” — ou de um molde conectado diretamente dentro do cérebro humano? Examinemos a questão pela segunda hipótese. Para que uma construção mental como a “dívida” exista — você me deve algo que irá equilibrar as contas uma vez transferido para mim — há algumas precondições. Uma delas, como já mencionei, é a noção de justiça. Ligada a ela se encontra a noção de valores equivalentes: como fazer para que ambos os lados da planilha de pontuação, ou da folha de controle, ou do programa de registro contábil pelo método das partidas dobradas a que todos nós estamos constantemente recorrendo totalizem a mesma coisa? Se Joãozinho tem três maçãs e Mariazinha um lápis, será aceitável trocar uma maçã por um lápis, ou ficará faltando uma maçã ou um lápis a ser pago? Tudo depende dos valores que Joãozinho e Mariazinha atribuam a seus respectivos objetos de troca, o que por sua vez depende do seu grau de fome e/ou de necessidade de comunicação. Numa transação considerada justa, um lado contrabalança o outro e nada é considerado devido. Até mesmo a Natureza inorgânica busca o equilíbrio, também conhecido como estado estático. Quando criança, você deve ter feito aquela experiência elementar em que se coloca água salgada num lado de uma membrana permeável e água potável no outro e se calcula quanto tempo leva para que o cloreto de sódio penetre no H2O, até que ambos os lados estejam igualmente salgados. Ou, já adulto, pode simplesmente ter notado que, ao encostar seus pés frios na perna quentinha do(a) parceiro(a), seus pés ficarão mais aquecidos, enquanto a perna dele(a) ficará mais fria. (Se fizer isso em casa, por favor, não diga que foi ideia minha.)

Muitos animais são capazes de distinguir entre “maior do que” e “menor do que”. Os predadores precisam estar aptos a fazê-lo, pois poderia lhes ser literalmente fatal dar um passo maior que a perna. As águias do litoral do Pacífico podem se ver arrastadas para uma gruta marinha por um salmão demasiadamente pesado, já que, após iniciado o mergulho de ataque, elas não são mais capazes de recolher as garras, a não ser que se achem sobre uma superfície firme. Se você já levou crianças pequenas ao setor dos felinos no zoológico, deve ter percebido que um exemplar de tamanho mediano como o guepardo não prestará muita atenção em você, mas ficará de olho nas crianças com ávido interesse, porque os pequenos são uma comida sob medida para ele, e você, não. A capacidade de avaliar o tamanho de um inimigo ou de uma presa é um traço comum do reino animal, mas, entre os primatas, fazer a distinção correta de quem é o maior e o melhor quando a comida está sendo repartida chega a ser enervante. Em 2003, a revista Nature publicou o relato de experiências desenvolvidas por Frans de Waal, do Centro Nacional de Primatas de Yerkes, da Universidade Emory, e pela antropóloga Sarah F. Brosnan. Para começar, eles ensinaram macacos-pregos-de-cara-branca a trocar pedrinhas por pedaços de pepino. Em seguida, deram a um deles uma uva — considerada mais valiosa pelos macacos — em troca da mesma pedrinha. “Pode-se fazer isso 25 vezes seguidas, e eles se sentem totalmente satisfeitos com os pepinos”, disse De Waal. Mas, quando uma uva foi incluída na troca — dando injustamente a um dos macacos um pagamento melhor por algo de igual valor —, os que receberam pepinos ficaram zangados, começaram a jogar pedrinhas para fora da jaula e, por fim, se recusaram a cooperar. A maioria dos macacos ficou tão zangada quando um deles ganhou uma uva sem motivo que alguns chegaram a parar de comer. Foi uma greve de fome dos macacos: eles poderiam perfeitamente estar carregando

faixas dizendo “Abaixo a Distribuição Injusta de Uvas!”. O comércio foi ensinado, assim como a taxa de câmbio (pedrinhas por pepino), mas a revolta pareceu ser bem espontânea. Keith Chen, pesquisador da Faculdade de Administração de Yale, que também trabalhou com essa mesma espécie de símios, descobriu que podia treiná-los a usar discos metálicos semelhantes a moedas como unidade monetária, dentro da mesma ideia das pedrinhas, só que mais brilhantes. “Meu objetivo subjacente é determinar que aspectos do nosso comportamento econômico são inatos, gravados profundamente no cérebro, e se conservam ao longo do tempo”, afirmou Chen. Mas por que se ater ao comportamento econômico mais óbvio como o comércio? Entre os animais sociais que necessitam cooperar para alcançar objetivos comuns, como — no caso dos macacospregos-de-cara-branca — matar e comer esquilos e — no caso dos chimpanzés — matar e comer os filhotes, precisa haver uma divisão dos resultados do esforço grupal que é reconhecida como justa por quem entra na partilha. Justiça não é a mesma coisa que igualdade; por exemplo, seria justo o prato de um indivíduo de menos de cinquenta quilos e de dez anos de idade conter exatamente a mesma quantidade de comida de outro com mais de cem quilos e quase dois metros de altura? Entre os chimpanzés caçadores, aquele que tem personalidade ou físico mais forte certamente fica com mais, mas todos os que participam da caçada recebem um mínimo, o que é absolutamente o mesmo princípio utilizado por Genghis Khan para repartir os frutos de suas conquistas, chacinas e pilhagens entre seus aliados e suas tropas. Quem se mostra surpreso com os favorecimentos e as negociatas dos partidos políticos vencedores deveria ter em mente o seguinte: se você não dividir, seus parceiros não estarão disponíveis quando precisar deles. No mínimo, você terá

que lhes dar uns pedaços de pepino e evitar dar uvas a seus rivais. Se a justiça faltar completamente, os membros do grupo de chimpanzés se rebelarão; é bem provável que, no mínimo, da próxima vez não entrem num grupo para caçar. Na medida em que são animais sociais que interagem em comunidades complexas nas quais o status é importante, os primatas se mostram amplamente conscientes daquilo que corresponde a cada membro e do que, por outro lado, constitui privilégio intolerável. A esnobe Lady Catherine de Bourgh, ponto culminante da espécie humana no romance Orgulho e preconceito, de Jane Austen, com seu senso de hierarquia estranhamente distorcido, não tem nada de macaco-prego e de chimpanzé. Os chimpanzés não limitam suas atividades comerciais à comida; eles costumam se envolver regularmente em transações mutuamente benéficas ou de altruísmo recíproco. O macaco A ajuda o macaco B a enfrentar o macaco C e espera receber ajuda dele em troca. Se o macaco B não retribui quando o macaco A necessita, este se zanga e dá início a uma gritaria infernal. A impressão é de que há uma espécie de livro-caixa interno envolvido na situação: o macaco A percebe perfeitamente que o macaco B lhe deve algo, e o macaco B idem. Ao que parece, existem dívidas de honra entre os chimpanzés. Trata-se do mesmo mecanismo que opera no filme O poderoso chefão, de Francis Ford Coppola: um homem cuja filha foi desfigurada vai pedir ajuda ao capo da Máfia e a obtém, mas fica entendido que o favor deverá ser pago mais tarde de algum modo degradante. Segundo escreve Robert Wright em seu livro de 1995, O animal moral: Por que somos como somos: A nova ciência da psicologia evolucionista, “Presume-se que o altruísmo recíproco tenha moldado sua textura com base não apenas na emoção, mas na cognição humana. Leda Cosmides mostrou que as pessoas tendem a solucionar bem

quaisquer enigmas lógicos desconcertantes quando estes enigmas se apresentam sob a forma de mudança social — especialmente quando o objetivo do jogo é descobrir se alguém está trapaceando. Isso sugere a Cosmides que há um módulo de ‘identificação de trapaceiros’ entre os órgãos mentais que comandam o altruísmo recíproco. Não há dúvida de que existem outros a ser descobertos”. É certo que todos nós desejamos que nossas transações e nossos negócios sejam justos e transparentes, ao menos na perspectiva do outro. Um “módulo identificador de trapaceiros” implica um módulo paralelo, que detecta a ausência de trapaças. As crianças pequenas costumam cantar “Trapaceiro nunca se dá bem!” na hora do recreio. Isso é verdade — nós julgamos severamente os trapaceiros, o que compromete sua futura prosperidade —, mas também é verdade, infelizmente, que eles só merecem de nós tal julgamento depois que são flagrados. No livro, Wright descreve um software de simulação que, na década de 1970, venceu uma competição proposta pelo cientista político americano Robert Axelrod. A prova pretendia testar quais padrões comportamentais se mostrariam os mais fortes ao sobreviver mais tempo numa série de confrontos com outros programas de computador. Quando um software “enfrentava” pela primeira vez um outro, tinha que decidir entre cooperar, reagir de forma agressiva ou traiçoeira, ou se recusar a jogar. “O contexto da competição”, segundo Wright, “refletia habilmente o contexto social da evolução humana e pré-humana. Havia uma sociedade razoavelmente pequena — algumas dezenas de indivíduos interagindo regularmente. Cada programa podia ‘lembrar’ se os demais haviam cooperado nos encontros anteriores, e consequentemente adaptar seu próprio comportamento”. O vencedor da competição se chamava TIT FOR TAT — nome que tem origem na expressão “Tip for Tap”, na qual ambos os termos remetem ao mesmo significado geral de

bater, empurrar, golpear — ou seja, “Você me bateu e por isso eu vou lhe dar o troco”. O software TIT FOR TAT operava por meio de um conjunto simples de regras: “No primeiro embate com qualquer programa, ele cooperava. A partir daí, fazia tudo o que o outro programa tinha feito no encontro anterior. Uma boa ação merece outra, assim como as más.” Esse programa saiu vencedor porque ao longo de todo o tempo nunca foi repetidamente perseguido — se um oponente o enganasse, ele negava cooperação na vez seguinte — e, diferentemente de trapaceiros e exploradores coerentes, não antipatizava com os demais até se ver excluído do jogo, e tampouco se envolvia em agressão crescente. O programa atuou com base em uma regra reconhecível de olho por olho: Faça com os outros antes que façam com você. (O que não é a mesma coisa que a “regra de ouro” — Faça com os outros o que você gostaria que fizessem com você. Esta é bem mais difícil de seguir.) Na competição de software vencida pelo TIT FOR TAT, cada jogador dispunha de recursos iguais. Agir cordialmente numa primeira abordagem e nas seguintes responder na mesma moeda — retribuindo o bem com bem e o mal com mal — só pode ser uma estratégia vencedora se o terreno de jogo for nivelado. Nenhum dos programas concorrentes tinha permissão para ter um sistema de armamentos superior: caso se tivesse permitido a um competidor alguma vantagem, como o carro de combate, o arco de dupla curvatura de Genghis Khan ou a bomba atômica, o TIT FOR TAT teria fracassado, porque o jogador com vantagem tecnológica poderia destruir e escravizar seus oponentes, ou obrigá-los a negociar em termos desvantajosos. É isso que, na verdade, vem acontecendo ao longo de todo o curso da nossa história: os que venceram as guerras escreveram as leis, e as leis por eles escritas consagraram a desigualdade ao justificar formações sociais hierárquicas em cujo topo eles próprios se instalaram.

Eu me deparei com o padrão tit-for-tat “gentil porém severo” quando criança, mas na forma literária. No livro infantil The Water Babies, de Charles Kingsley, de 1863, Tom — um menino que trabalhava limpando chaminés, pobre, ignorante, explorado e maltratado — se afoga num rio e sai nadando com guelras, como uma salamandra. Depois, numa série de aventuras post-mortem, ele aprende, por tentativa e erro, a se tornar a versão de Kingsley do perfeito macho vitoriano cristão. Suas principais professoras são duas poderosas figuras femininas sobrenaturais — a linda babá, sra. Doasyouwouldbedoneby, que é a Regra de Ouro em ação, e a sra. Bedonebyasyoudid, feia, rigorosa, durona mas justa, a própria paga, ou payback, em forma de governanta. O leitor vitoriano pode tê-las identificado como Misericórdia e Justiça, ou mesmo como uma Mãe Natureza wordsworthiana, provedora — aquela “que nunca traiu o coração que a ama” —, e uma Mãe Natureza darwiniana, rígida, intransigente, com um toque lamarckiano — você se transforma naquilo que faz. (Kingsley era amigo de Darwin; The Water Babies foi publicado apenas quatro anos após o lançamento de A origem das espécies e é uma das primeiras respostas literárias à obra. Pode inclusive ser tido na conta de uma das mais notáveis contribuições à categoria Concepção Inteligente: se o Jardim do Éden e o Dilúvio de Noé tiverem que ser apagados, pode-se ao menos recorrer à sra. Bedonebyasyoudid para compreender tanto a ordem natural quanto a humana.) Em termos atuais, a sra. Doasyouwouldbedoneby poderia ser vista como o primeiro movimento, cooperativo, do TIT FOR TAT, enquanto a sra. Bedonebyasyoudid, com sua vara de marmelo, é o que acontece quando se comete uma ação má. Por exemplo, Tom fez travessuras — colocou pedrinhas na boca das anêmonas para enganá-las — e por isso, em vez de ganhar uma bala da sra. Bedonebyasyoudid, como os demais bebês aquáticos, recebeu uma pedrinha.

No fim do livro, as duas mulheres se revelam uma única e mesma pessoa, o que por acaso lembra muito as alegorias femininas da Graça Cristã, moças-velhas, simpáticasassustadoras, dos livros de George MacDonald e sua personagem Curdie: os vitorianos gostavam de verdade de suas figuras femininas sobrenaturais. Esta dama de duas caras levanta inúmeras questões. Eu costumava me perguntar seriamente por que seus dois avatares eram casados — talvez estivessem excessivamente envolvidas com bebês para serem respeitadas como moças solteiras? — e onde estariam seus maridos, os senhores Doasyouwouldbedoneby e Bedonebyasyoudid. Muito provavelmente em algum pub, fugindo do bando de bebês, dos arrulhos melosos e dos horríveis castigos com vara de marmelo. Estou certa de que suas mulheres, ou mulher, tinham no mínimo um rebento próprio, pois, de outra forma, não teria existido a Mary Poppins dos livros de P. L. Travers — que está obviamente na linha direta de descendência das gêmeas Bedoneby. Mas essas são questões que deverão permanecer para sempre sem respostas. Em vez disso, gostaria de perguntar: por que Misericórdia-e-Justiça, de Kingsley, é uma figura feminina? Ocorre que a provedora de justiça de dupla face de Kingsley possui algumas ancestrais distantes. Quisera eu poder dar um daqueles saltos espetaculares no tempo e no espaço, tipo Star Trek, e voltar muito, muito mesmo, milhares de anos atrás, até o Oriente Médio. O que estou buscando é ao mesmo tempo uma imagem pintada e uma constelação. A constelação é Libra, a balança que hoje, como signo zodiacal, rege o período de 23 de setembro a 22 de outubro. Uma explicação para este nome é que ele tem origem no equinócio de outono, quando dia e noite têm igual duração, sendo a balança um instrumento para determinar equivalências. Uma interpretação mais questionável é que Libra surgia na época da colheita,

quando os agricultores estavam pesando sua produção para fins comerciais. O mais provável, porém, é que sua origem seja outra. Em acádio — uma antiga língua semítica falada, entre outros povos, pelos assírios —, essa constelação era chamada de zibanitu, que quer dizer “as garras do Escorpião”, porque era visível antes da constelação de Escorpião e se imaginava que fosse a parte frontal dele. Mas zibanitu também pode significar uma balança — o formato de um escorpião de cabeça para baixo lembra esse antigo instrumento de pesar. Atualmente a constelação é conhecida como Libra, palavra que significa “balança” em latim. Geralmente retratada — quem diria! — como balança, ela consiste numa barra cruzada suspensa de um braço ou corrente central, com um prato em cada extremidade. Tratase de um signo do zodíaco que não é um animal ou uma pessoa, embora frequentemente apareça carregada por uma jovem, identificada às vezes como Astreia, a filha de Zeus e Têmis. Têmis e Astreia eram, ambas, deusas da justiça, mas Astreia é também conhecida como a constelação de Virgem. Por isso, na configuração VirgemLibra, vemos uma jovem segurando uma balança de braço duplo e identificada com a Justiça. De Têmis e Astreia à sra. Bedonebyasyoudid pode parecer um bom intervalo de tempo, mas há ainda algumas gerações no meio. Voltando de novo no espaço-tempo, achamo-nos no Antigo Egito, e desta vez à caça de instrumentos de pesar. A balança é um dos primeiríssimos mecanismos a aparecer na arte pictórica baseada na mitologia. Existem muitas representações de balanças nas “inscrições tumulares” encontradas em tumbas — amuletos e feitiços gravados no próprio esquife, ou em rolos de papiro, visando ajudar a alma a fazer a travessia para o Mundo dos Mortos egípcio. A primeira escala na jornada da alma era o Salão de Ma’ati, onde o coração do morto deveria ser colocado numa

balança do tipo que se usava no Antigo Egito para pesar ouro e joias. Ma’ati significa Dupla Ma’at — “dupla” não no sentido de gêmea-do-mal, mas no da mera duplicidade. Ma’at era uma deusa, às vezes retratada como duas deusas, ou um par de gêmeas — gêmeas adolescentes, com asas nos ombros e plumas de avestruz a lhes adornar a cabeça. Era uma das divindades que presidiam a pesagem dos corações, juntamente com Anúbis, o qual, com sua cabeça de chacal, se encarregava efetivamente da pesagem, e Tot, cabeça de íbis, deus da Lua e consequentemente, numa sociedade que adotava o calendário lunar, deus do tempo. Tot era também o deus das medidas e dos números, da astronomia e das habilidades de engenharia, e, além disso, um escriba ou funcionário sobrenatural. Nas cenas de pesagem de corações, ele é muitas vezes apresentado com seu bloco de cera e seu estilete a postos, como um escriba participaria na vida real registrando os resultados da pesagem de ouro. Às vezes uma Ma’at em miniatura aparecia sobre um dos pratos da balança, mas o mais comum era que suas plumas — as plumas de Ma’at — fossem usadas como contrapeso do coração. Se seu coração pesasse o mesmo que Ma’at, você podia passar para o estágio seguinte e se juntar a Osíris no papel de deus do Mundo dos Mortos, onde haveria um local reservado para você, com boas perspectivas de renascimento. (A tumba egípcia secreta era conhecida, de forma tranquilizadora, como “aquela que gera”, e o bojo do caixão como “o ovo” — desse modo é possível emergir da morte, como um pássaro.) Entretanto, caso fosse mais pesado do que as plumas, seu coração seria atirado a uma divindade monstruosa, com cabeça de crocodilo, que o comeria. Como na maioria das mitologias e religiões, havia uma escapatória para este momento fatal de julgamento: era possível fortalecer seu coração antes da hora com encantos especiais, obrigando-o a não denunciar você. Pressupunha-se que o coração estaria

disposto a cooperar, pois seria melhor para vocês dois se seu coração guardasse para si seus maus feitos: ser devorado por um crocodilo não interessava a nenhum dos dois. Por outro lado, seu coração trapaceiro sempre poderia entregar você. Pode ter sido essa incerteza que fez do drama da pesagem post-mortem dos corações um tema de especulação tão estimulante entre os antigos egípcios. É interessante que o coração, mesmo tanto tempo atrás, seja considerado o órgão capaz de absorver os efeitos dos bons e dos maus atos, como o infeliz retrato de Dorian Gray. De fato, não é o coração que relembra nossos altos e baixos morais — e, sim, o cérebro. Mas ninguém se convence disso. Quem mandaria ao namorado, ou à namorada, um cartão com um cérebro atravessado por uma flecha? Ou quem, no caso de uma decepção amorosa, diria “Ele partiu meu cérebro”? Talvez isto se dê porque, embora seja o cérebro que esteja na torre de controle, sentimos que é o coração que reage a nossas emoções — como na frase “Acalme-se, meu coração disparado”. (Não o cérebro.) Por que Ma’at era usada como contrapeso ao coração? Ela era uma deusa, mas não uma deusa com função ou área específica, como a escrita, a fertilidade ou a criação animal: Ma’at era mais importante do que isso. Seu nome significa verdade, justiça, equilíbrio, os princípios norteadores da natureza e do universo, a majestosa evolução do tempo — dias, meses, estações, anos. A palavra também fazia referência ao comportamento adequado de cada indivíduo para com os demais, a ordem social correta, as relações entre vivos e mortos, os padrões de comportamento autêntico, justo e ético, o modo como tudo deve transcorrer — todas essas noções arroladas numa só palavra curta. Seu contrário era o caos físico, o egoísmo, a falsidade, o mau comportamento — qualquer espécie de transtorno no estado de coisas divinamente estabelecido. Esta concepção — de que existe no universo um princípio de equilíbrio subjacente segundo o qual devemos agir —

parece ter sido quase universal. Na cultura chinesa, é o Tao ou o Caminho; na cultura indiana, a roda da justiça cármica. Se não neste mundo, no próximo, e se não hoje, no futuro, a lei cósmica de reciprocidade TIT FOR TAT zelará para que você receba o bem ou o mal em troca do bem ou do mal que houver praticado. Até mesmo em sociedades xamanísticas de caçadorescoletores havia um jeito correto, e falhar no seu cumprimento implicava desequilibrar o mundo natural, daí resultando a fome: se você não tratasse com respeito os animais que matasse, ou matasse em excesso e não agradecesse a eles por se darem como alimento, e se não repartisse sua caça de forma justa, como exigiam os costumes, a deusa dos animais podia tirá-los de você. A proteção dos animais e da caça era indubitavelmente uma função feminina. Os antigos gregos veneravam Artemis do Arco Dourado como a Senhora dos Animais; existiam inúmeras deusas celtas associadas aos animais selvagens; entre os inuítes do norte do Canadá, Nulialiut era a temida deusa subaquática que dava ou negava focas, baleias e morsas conforme o comportamento, virtuoso ou não, dos homens. No início do Neolítico, pensava-se que os bebês eram gerados somente pelas mulheres, o que explicava por que a fecundidade dos animais selvagens também podia ser controlada por uma divindade feminina. Essa figura não era uma garotinha recatada: podia ser feroz e impiedosa quando enfezada. No entanto, na época em que começavam a registrar e a elaborar suas mitologias, os antigos egípcios já eram agricultores: dependiam não de animais selvagens, mas dos rebanhos manejados e das colheitas. Desse modo, embora tivessem uma boa quantidade de deuses com cabeças de animais, estes animais, em sua maior parte, não eram feras caçadas, mas bichos domesticados como as vacas. Uma exceção era a deusa com cabeça de leão, Sekhmet — cujo nome significa “a poderosa” —, incumbida de atribuições

aparentemente conflitantes: guerra e destruição, pragas e tempestades violentas de um lado, e, de outro, médicos, cura e proteção contra o mal. Essa lista, tipo faca de dois gumes, faz sentido quando se sabe que Sekhmet era ainda a defensora de Ma’at, de tal forma que seus atos de destruição eram praticados para reparar erros e restaurar o correto equilíbrio das coisas. Ela é o TIT FOR TAT em ação — diferentemente de Ma’at, que não age, mas constitui o padrão em relação ao qual elas serão avaliadas. Sekhmet, assim como Ma’at, era filha de Rá, o deus Sol, que deu vida e criou o mundo ao nomeá-lo. Sekhmet também era conhecida como “o olho faiscante de Rá”, uma deusa capaz de perceber a injustiça e consumi-la em fogo. (Essa ideia se verifica também no Antigo Testamento — o olho de Deus que tudo vê está geralmente voltado para as más ações e não as boas.) Mas Sekhmet parece ter restringido suas atividades a esta vida, enquanto Ma’at está presente por toda parte. Era a sine qua non, aquela sem a qual ninguém mais poderia existir. Assim, durante o julgamento post-mortem, seu coração era pesado em relação a nada mais, nada menos que a soma total da ordem no universo. Em geral, nos levam a pensar que somos os herdeiros filosóficos dos povos de língua grega, dos romanos e dos israelitas, não dos antigos egípcios, mas na verdade a tradição grega de justiça divina é bem mais confusa e estranha para nós do que a egípcia. Os povos de língua grega tinham várias deusas da justiça; a primeira delas Têmis, que significa “ordem” e representa as mesmas ideias de Ma’at. Ela era uma Titã — membro daquele grupo mais velho de mandachuvas sobrenaturais que eram íntimos da própria Terra. Os Titãs foram derrotados por Zeus e os novos deuses do Olimpo, mas Têmis sobreviveu à transição e conseguiu um assento no Olimpo. Era uma profetisa infalível, cujos poderes vinham de sua capacidade de perceber os padrões do universo. Em alguns relatos, ela

tinha uma filha com Zeus chamada Diké, ou “Justiça”— justiça não tanto à maneira egípcia de balança de precisão, mais à de castigo. Diké era muito agressiva e pode ser vista em pinturas e vasos batendo nas pessoas com um malho. Outro tipo de justiça era representado pela deusa Nêmesis. Ela é frequentemente tida como uma deusa de retaliação, mas seu nome significa, grosseiramente falando, “distribuidora de cotas”; ela era uma deusa das partilhas justas, da distribuição equilibrada de boa e má fortuna. Entre seus acessórios estavam a roda da fortuna, uma espada e um chicote feito de ramos — como a vara de marmelo da sra. Bedonebyasyoudid. Uma terceira deusa da justiça era Astreia, mais uma das filhas de Têmis. Sua espécie de justiça era mais à moda Ma’at — uma justiça autêntica, de comportamentos corretos e das coisas transcorrendo como devem; porém, como os homens foram se tornando muito malvados, ela não pôde continuar na Terra e assim se transformou na constelação de Virgem — a jovem já mencionada, que segura aquela balança celeste. Com as religiões, a regra parece ser: tome emprestado o que precisar da religião que precede a sua, incorpore-o à sua própria e descarte ou demonize o resto. A deusa romana da justiça se chamava Iustitia; recebeu a balança de Astreia e a espada de Nêmesis — que pode ter pertencido ao deus mesopotâmico do Sol, Shamesh, que possuía tanto a balança para pesar a justiça quanto a espada para assegurar seu cumprimento. Iustitia também recebeu uma venda para os olhos, para que não pudesse ser influenciada pela classe social dos condenados, e às vezes portava uma tocha, simbolizando a luz da verdade; costumava ainda ostentar o feixe de varas romano — os fasces — para denotar sua autoridade civil. Com apenas duas mãos, ela não tinha como dar conta de todas essas coisas, por isso, quando a vemos representada na frente dos tribunais europeus e americanos, ela terá feito uma escolha entre tais objetos. Geralmente recai na balança e na espada.

Iustitia, desta forma, herdou uma série de acessórios dos deuses e deusas que a precederam, mas não estava em cogitação julgar as almas dos mortos. Ela presidia os tribunais e avaliava, não corações, mas as provas à sua frente. Contudo, na época de Roma, era muito mais uma figura alegórica do que uma deusa carismática, capaz de inspirar respeito. Os antigos egípcios acreditavam realmente que existia uma Ma’at, e sobretudo que existia uma Sekhmet, e que essas divindades eram capazes de intervir, com resultados drásticos, tanto nesta vida quanto na próxima, Iustitia, entretanto, é uma estátua que representa um princípio: a justiça que ela simbolizava era ministrada em cortes humanas, por seres humanos, segundo códigos legais que eles próprios conceberam. Tudo bem em relação à justiça nesta vida, mas e quanto à outra? A outra vida dos gregos e dos romanos não era lá muito agradável nem era descrita de maneira muito coerente; porém, alguma espécie de juízo de alma e recompensa e castigo parece presente em seus mundos dos mortos. Morrer, contudo, estava longe de ser algo divertido: como disse o herói morto Aquiles ao visitante ainda vivo Ulisses, na Odisseia, é melhor passar um dia na Terra como o mais insignificante dos escravos do que ser o rei dos mortos. Algumas pessoas do povo foram castigadas na outra vida, é verdade, mas para o virtuoso não se reservava nada parecido com um paraíso verdadeiramente aprazível: sem jardins, sem harpas, sem virgens. Os monótonos campos de asfodelos tinham quase a sua altura. O que levava os homens a merecer as fortunas e os infortúnios com que eram contemplados na Terra era o trabalho das Parcas, às quais nem mesmo os deuses podiam se opor. Os antigos povos de língua grega eram rigorosos na observância do lado “tat” do tit-for-tat — o mal gera o mal — mas não se mostravam muito entusiasmados com a parte do bem-com-bem-se-paga: o que alguém podia esperar de

melhor como prêmio por uma boa ação era ser transformado em árvore. Para algo mais próximo à pesagem egípcia do coração, e também mais próximo à ideia de Ma’at, precisamos dar um salto no tempo até o cristianismo. As ideias contidas na palavra Ma’at são parecidas com aquelas sugeridas pelo termo grego logos, ou pelo menos por determinados usos dele. Logos não é uma roda, nem uma balança, nem um caminho, mas uma palavra, ou a Palavra. Ela entra no cristianismo via a famosa introdução ao Evangelho de São João — “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus”. Mas o Logos não é uma palavra antiga qualquer — trata-se de uma palavra à la Ma’at, um deus e uma palavra ao mesmo tempo, que compreende os fundamentos autênticos, justos e éticos de tudo que existe. O cristianismo não possui deusas assim entendidas. Tem algumas santas, muitas retratadas com partes decepadas de seus corpos, mas embora possam ajudar você a conseguir marido, a tocar piano ou a achar objetos perdidos, não possuem poderes maiores. A Virgem Maria é a mais forte de todas, mas tudo o que consegue é interceder por você: ela não age como uma leoa, praticando ações devastadoras de retaliação. Contudo, no lugar de meros deuses, o cristianismo possui anjos. Nenhum é explicitamente feminino, embora em geral usem cabelos compridos e não tenham barba. No Juízo Final, Osíris, à maneira de Cristo, está no centro da imagem, mas é Miguel Arcanjo que se encarrega da tarefa de avaliar as almas. Como Ma’at, ele tem asas, e frequentemente é apresentado com uma balança, que herdou dos romanos, juntamente com a espada da Justiça. Tal como nas cenas egípcias de pesagem de corações, há alguém presente para fazer as anotações — o Arcanjo Gabriel é este “anjo notário”, o encarregado de manter sempre atualizados os registros contábeis de Deus — e esses registros é que serão gerados no Juízo Final.

Talvez até antes: se o Céu estiver em sessão neste exato momento, Lázaro, pobre e miserável durante a vida terrena, estará assistindo pelas grades celestiais ao rico sendo frito e cozinhado lá embaixo; assim o livro-caixa de felicidade e sofrimento vai se nivelando. A religião muçulmana também tem uma balança da justiça do Juízo Final, a mizan — suas boas ações são pesadas ao lado das más —, e não um, mas dois livros contábeis, nas mãos de anjos: enquanto Raqeeb segura o das boas ações, no lado direito, Ateed se encarrega das más ações, no lado esquerdo. Com elas e seus documentos em mãos, não haverá espaço para a costumeira desculpa dos políticos: “Não me lembro.” Das deusas egípcias Ma’at e Sekhmet à deusa romana Iustitia, ao Miguel Arcanjo e à sra. Bedonebyasyoudid é uma longa jornada, mas se é verdade que os seres humanos não criam nada que não seja uma variante dos módulos de comportamento humano presentes em seu smorgasbord de Homo sapiens sapiens, então cada uma dessas criaturas sobrenaturais é uma manifestação daquele módulo interior a que nos referimos antes: o que poderíamos denominar “justiça”, “equilíbrio” ou “altruísmo recíproco”. Nós colhemos o que plantamos, ou é nisso que gostaríamos de acreditar; e mais ainda, que existe alguém ou algo incumbido de manter o placar empatado. Com exceção das cristãs e das muçulmanas, as imagens sobrenaturais da justiça de que estive falando são todas femininas. Por quê? Com relação às deusas mais primitivas, como Ma’at e Têmis, pode-se argumentar que elas pertencem ao período da Grande Mãe no Oriente Médio e no Oriente Próximo, ou descendem dele, período este em que a divindade suprema era feminina e também identificada com a Natureza. Mas ao período das Grandes Deusas seguiramse vários milhares de anos de rigorosa misoginia, durante os quais deuses substituíram deusas, e as mulheres foram submetidas e rebaixadas. Apesar disso, as imagens

femininas da Justiça perduraram. O que explica toda essa capacidade de sobrevivência? Se fôssemos primatologistas, poderíamos recorrer ao fato de que, entre os chimpanzés, geralmente as matriarcas mais velhas é que são as mais poderosas e influentes: o macho-alfa só permanece no poder com o apoio delas. Tal tendência é ainda mais acentuada entre os babuínos-gelada do planalto da Etiópia, cujas famílias consistem em grupos de fêmeas estreitamente relacionadas, seus filhotes e o parceiro que elas mesmas escolheram, o qual permanece como o macho exclusivo da família apenas enquanto as fêmeas assim o determinarem. Se fôssemos antropólogos, iríamos apelar para as fêmeas mais velhas dos bandos de caçadores-coletores como os iroqueses, que têm muito a ensinar na repartição de um animal entre as famílias, assim como em sua experiência em termos não só de status social como de necessidade coletiva. Se fôssemos freudianos, falaríamos em desenvolvimento psíquico infantil: o primeiro alimento vem da mãe, assim como as primeiras lições de justiça e de castigo e de justa divisão de pertences. Não importa o motivo, a Justiça continua a usar vestido, ao menos na tradição ocidental, o que talvez explique a atração dos membros da Suprema Corte canadense por suas adoráveis togas vermelhas e suas perucas. Eu ainda gostaria de dar mais um salto no tempo e no espaço, no estilo Star Trek, e voltar até uma peça teatral que celebra o momento em que a administração da justiça passou das poderosas criaturas sobrenaturais femininas para o que era — e assim permaneceu por muito tempo — um sistema de julgamento legal dominado pelos homens. A peça é Eumênides, a terceira da trilogia conhecida como Oréstia; seu autor é Ésquilo; o lugar era Atenas; e a apresentação se deu no ano de 458 a.C., durante o período da história grega que chamamos de “clássico”. O tema da peça vem da primeira fase lendária — a era micênica/minoica — e trata das implicações da Guerra de

Troia. Na primeira das peças da trilogia, o rei Agamenon, ao retornar da guerra, é assassinado pela mulher, Clitemnestra, como vingança pelo fato de Agamenon ter sacrificado a filha de ambos, Ifigênia — o que ele fez para merecer um vento favorável de modo que sua esquadra pudesse chegar a Troia. Na segunda peça, Coéforas, Orestes, filho de Agamenon e Clitemnestra, retorna disfarçado do exílio e, estimulado pela irmã, Electra, mata a própria mãe. Estamos no meio de uma sangrenta disputa familiar de tipo tit-for-tat, cujas regras são definidas muito claramente por Lady Macbeth, de Shakespeare: “Sangue merecerá sangue.” Orestes tem na vingança pelo pai uma dívida de sangue, e assassinar a mãe salda essa dívida. Porém, segundo os costumes arcaicos pré-clássicos, o assassinato de uma mãe era algo profundamente imoral — muito mais do que o assassinato de Agamenon por Clitemnestra, uma vez que ele não tinha parentesco de sangue com ela nem seguramente com a mãe dela. Assim, Orestes incorreu em nova dívida: seu próprio sangue passa a ser cobrado em pagamento pelas Erínias, que os romanos conheciam como as “Fúrias”. Elas são mais antigas do que os deuses olímpicos, filhas da Terra e da Noite; têm um aspecto horroroso, selvagem, são vingativas e sua tarefa é perseguir os assassinos de entes queridos e os que violam laços familiares, como Orestes, levando-os à loucura até serem forçados ao suicídio. Em Eumênides, Orestes é perseguido por elas até o templo de Apolo, que o purifica da culpa de sangue; mas as Erínias não acatam a decisão. Orestes então vai para Atenas, onde a deusa Atena — considerando-se impedida para julgar um caso complexo de sangue paterno contra sangue materno como aquele — reúne um júri de dez atenienses para julgar o caso, reservando-se porém o voto decisivo. O júri fica dividido, e Atena vota favoravelmente aos pais e aos homens, apresentando como prova o argumento de que os homens geram filhos sozinhos,

enquanto as mulheres apenas os incubam. Cita a si mesma como exemplo típico, uma vez que saiu já totalmente formada da testa de Zeus, seu progenitor único. (Atena se esquece de mencionar a parte preliminar do próprio mito, em que ela primeiro penetra na cabeça de Zeus porque ele havia comido a mãe dela, que estava grávida.) As Fúrias se sentem afrontadas pelo veredicto ateniense — três velhas deusas de linhagem feminina tremendamente poderosas haviam sido derrotadas por uma neófita de orientação masculina que nunca fora mãe, e que se gaba de nem mesmo ter nascido de uma. Elas ameaçam amaldiçoar Atenas com várias pragas, mas Atena, graças a um misto de adulações e subornos, consegue convencê-las a ficar como hóspedes da cidade. Elas ainda conservarão o poder e o respeito, diz a deusa, prometendo que irão adorar suas novas acomodações numa gruta escura. As Fúrias recebem um novo nome, Eumênides, ou As Benévolas. Na peça, elas passam de mulheres-feras “absolutamente repulsivas”, fedorentas e desagradáveis, dotadas de presas, asas de morcego e olhos vermelhos de que escorre sangue, a criaturas graciosas e imponentes, “deusas das sombras” — uma mudança rápida que faz lembrar, na mente moderna, aquelas imagens de Antes-eDepois de mulheres que aparecem renovadas em revistas femininas. Assim disfarçadas, e provavelmente com as presas extraídas e as asas de morcego ocultas por algum artifício de vestuário, as Fúrias seguem alegremente, em procissão, para seu templo subterrâneo privativo. As deusas do passado primitivo são levadas para longe das vistas, muito embora — como assinala Atena — a eventualidade de uma retaliação sangue-por-sangue não possa ser totalmente descartada, pois a Justiça sempre precisa ser reforçada pelo Medo. O julgamento pelo júri e a norma legal foram instalados e se mostram mais esclarecidos e mais civilizados, reconhecendo o pagamento pelos crimes em outras moedas que não o sangue, tal como deve ser; e,

assim, a longa cadeia de disputas familiares sangrentas — pelas quais uma morte leva a outra, ad infinitum — é rompida. “Elegerei os melhores entre os meus cidadãos” — diz Atena, falando do tribunal de justiça que está prestes a inaugurar — “para o período à frente. Eles deverão jurar não fazer julgamentos que não sejam justos, e deixar claro onde repousa a verdade desta ação.” É louvável o tributo pago ao honesto e ao justo nas Eumênides. Mas, embora o velho senso de justiça seja uma pedra fundamental interna necessária a qualquer sistema legal, daí não se depreende que todo sistema legal é necessariamente justo. A Atenas clássica ministrava julgamentos justos e permitia plena liberdade apenas aos cidadãos atenienses, e tão somente aos do sexo masculino. Os escravizados e as mulheres estavam excluídos da cidadania, e as leis que os regiam eram severas. A despeito disso, e a despeito dos milênios durante os quais as mulheres se viram excluídas dos tribunais, seja como juízas, seja como advogadas, seja como juradas — e, muitas vezes, até mesmo como testemunhas adultas confiáveis —, a imagem alegórica da Justiça continuou feminina. Ainda hoje é possível vê-la de pé na frente de nossos tribunais, segurando bem alto suas balanças, a sobrevivente de uma longa linhagem de mulheres ancestrais que brandiam balanças. Até agora venho discutindo não só o princípio de justiça, sem o qual nenhum sistema de empréstimos e hipotecas poderia existir, e as figuras femininas da justiça, como Ma’at, Têmis, Astreia, Iustitia e as gêmeas Bedoneby, de Charles Kingsley, mas também a história da balança, esse equipamento de dois lados que serve para fazer justiça ao pesar uma coisa em comparação com outra. Na outra vida do Antigo Egito, o coração era pesado face aos conceitos de justiça e verdade, o que incluía a ordem correta do cosmos e do mundo natural; no sistema cristão, Miguel Arcanjo

compara o peso da alma com o de suas ações; e, voltando à caderneta bancária que eu tinha quando criança, os débitos em vermelho eram avaliados em confronto com os créditos em preto, e o produto daí resultante era chamado de “balance” (saldo). A balança dos antigos egípcios pesava os altos e baixos morais, como a do Arcanjo; o saldo bancário, entretanto, concentrava-se apenas em números, embora fosse considerado ruim entrar demais no vermelho: ruim para você, e ai de você também. No capítulo seguinte, intitulado “Dívida e pecado”, proporei a seguinte questão: será moralmente ruim ser um devedor? Trata-se de algo realmente pecaminoso? E, se for pecaminoso, até que ponto o é, e por quê? E, na medida em que um devedor é a metade de um ser gêmeo — a outra metade sendo o credor —, também perguntarei: Será igualmente pecaminoso ser um credor?

DOIS

DÍVIDA E PECADO

“A

dívida é a nova gordura”, disse alguém recentemente. O que me levou a pensar que, não faz muito tempo, a gordura era o cigarro, e antes, o cigarro era a bebida, e antes, a bebida era a prostituição. E a prostituição, hoje, é a dívida; e assim continuamos em círculos. O que todas essas coisas têm em comum é que, a seu tempo, cada uma delas foi considerada o pior de todos os pecados até entrar numa fase de ser considerada algo na moda, se não totalmente inofensiva. Omiti as drogas alucinógenas, embora elas também se enquadrem aqui. Parece que estamos entrando num período em que a dívida superou a fase inofensiva e fashion mais recente, e está voltando a ser pecado. Há, inclusive, programas de TV sobre dívida, que têm como que uma aura familiar de revival religioso. Há relatos de orgias consumistas durante as quais você não sabe o que se passou e tudo estava meio enevoado, com confissões lacrimosas dos que se acabaram em tremedeiras insones de endividamento desesperador, tendo que recorrer, como resultado, a mentiras, trapaças, roubo e emissão de cheques sem fundos. Há testemunhos de famílias e entes queridos cujas vidas foram destruídas pelo comportamento irresponsável do devedor. Há reprimendas compreensivas mas duras por parte do apresentador da televisão, que funciona como uma espécie de padre ou conselheiro. Há um momento de visão da luz, seguido de arrependimento e juras de nunca mais voltar a fazer isso. Há uma penitência imposta — snip, snip, a tesoura cortando o cartão de crédito —, seguida por um regime rígido de controle de gastos; finalmente, se tudo sair bem, as dívidas são quitadas, os pecados esquecidos, a absolvição é assegurada e raia um novo dia em que você,

um homem mais triste porém solvente, desperta para o amanhã. Houve um tempo em que as pessoas tomavam as maiores precauções para evitar cair em dívida. Tivemos inúmeros houve-um-tempo — como já disse, a dívida entra e sai de moda, e o cavalheiro que hoje é invejado por gastar a rodo será o inadimplente desprezado de amanhã. Mas agora tenho em mente a época da Grande Depressão, que meus pais viveram quando recém-casados. Minha mãe mantinha quatro envelopes, dentro dos quais punha mensalmente o dinheiro do salário do meu pai. Os envelopes eram etiquetados: Aluguel, Mantimentos, Outras Necessidades e Lazer. Lazer era o cinema. Os três primeiros tinham prioridade e se não sobrasse para o quarto envelope, nada de cinema, e em lugar dele meus pais davam um passeio. Minha mãe teve um livro-caixa durante cinquenta anos. Eu notava que nos primeiros anos de casamento — fim dos anos 1930 e começo dos 1940 — eles às vezes ficavam devendo — quinze dólares aqui, quinze dólares ali — ou pegavam pequenos empréstimos no banco — quinze dólares cá, quinze dólares lá. Quantias nem tão pequenas assim, pensando bem, para uma época em que a conta da padaria do mês inteiro alcançava um dólar e vinte cents, e a do leite, seis dólares. As dívidas eram sempre quitadas em semanas, ou no máximo em poucos meses. De vez em quando aparecia um item estranho — “Livro”, dois dólares e oitenta cents; “Guloseimas”, quarenta cents. Fico me perguntando, que extravagâncias seriam essas? Desconfio de que fossem chocolates — mamãe me contou que quando eles compravam chocolates dividiam cada barra em duas metades para que ambos pudessem experimentar todos os sabores. Isso se chamava “viver de acordo com as próprias possibilidades” e, a julgar pelos atuais programas de TV sobre dívida, trata-se de uma arte extinta.

Como o título deste capítulo é “Dívida e pecado”, gostaria de relembrar o momento em que estabeleci a primeira relação entre os dois. Aconteceu numa igreja — mais especificamente na Escola Dominical da Igreja Unida, que eu teimava em frequentar apesar do receio dos meus pais, que ficavam preocupados que eu acabasse precocemente envolvida demais com religião. Mas eu já me achava religiosamente envolvida, uma vez que na minha região do Canadá, na época, havia dois sistemas escolares mantidos por meio de impostos, o católico e o público. Eu estava no público, que era considerado protestante, razão pela qual tínhamos uma hora para orações e leituras da Bíblia durante as aulas, sob os retratos do rei e da rainha da Inglaterra e do Canadá, cobertos de coroas, medalhas e joias, a nos observar benevolentemente dos fundos da sala. Como tínhamos aula de religião no colégio, minhas brincadeiras na escola dominical eram um complemento. Como de hábito, eu era movida pela curiosidade: seria capaz de descobrir mais sobre conhecimento religioso numa escola dominical do que numa escola comum? Não era provável, como se evidenciou — as partes mais interessantes da Bíblia, aquelas que tratavam de sexo, estupros, sacrifícios infantis, mutilações, massacres, cabeças dos filhos dos inimigos reunidas em cestos e retalhação dos corpos das concubinas com os pedaços sendo enviados como um convite à guerra eram meticulosamente evitadas, embora eu passasse um bom tempo colorindo anjos, ovelhinhas, túnicas e cantando hinos que falavam em deixar minha velinha brilhar no meu cantinho escuro. Vocês certamente se surpreenderão ao saber que cheguei a ganhar um prêmio por decorar versículos da Bíblia, mas foi isso mesmo. Entre as coisas que decorávamos estava o Pai-Nosso, que continha a frase “Perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores”. Meu irmão, porém, cantava num coro

infantil anglicano, e os anglicanos tinham uma forma diferente de dizer a mesma frase: “Perdoai nossas transgressões assim como nós perdoamos a quem transgride contra nós.” A palavra “dívida” — crua e direta — combinava perfeitamente com a singeleza da Igreja Unida, que usava suco de uva na Comunhão, enquanto “transgressões” era um termo anglicano, sussurrante e afetado, que ia melhor com o vinho e uma teologia mais rebuscada. Mas será que essas duas palavras queriam realmente dizer a mesma coisa? Não vejo como. “Transgredir” é avançar sobre a propriedade alheia, sobretudo quando não há nenhuma placa avisando “Não Ultrapasse”, e “dívida” é quando se deve dinheiro. Mas alguém deve ter achado que eram termos intercambiáveis. Algo, porém, era bem claro mesmo para minha mente infantil religiosamente embaralhada: nem dívidas nem transgressões eram coisas para alguém desejar ter. Entre a década de 1940 e os dias de hoje, as ferramentas de busca entraram providencialmente em cena, e recentemente fui navegar na internet à procura de uma explicação para a discrepância entre as duas traduções dessas passagens do Pai-Nosso. Se vocês o fizerem, descobrirão que “dívidas” era o termo usado por John Wycliffe em sua tradução de 1381, enquanto “transgressões” aparece na versão de 1526 de Tyndale. “Transgressões” reaparece no Livro de Oração Comum inglês, de 1549, embora a tradução da Bíblia feita pelo rei James, em 1611, volte a empregar o termo “dívidas”. A Vulgata Latina usa o termo correspondente a “dívidas”, mas é interessante notar que no aramaico, a língua semítica falada por Jesus, a palavra para “dívida” e a palavra para “pecado” eram a mesma. Assim, é possível traduzir a passagem como “Perdoai nossas dívidas/pecados”, ou até como “nossas dívidas pecaminosas”, embora nenhum tradutor tenha escolhido fazê-lo, ainda.

Quem continuar pesquisando na internet irá se deparar com posts em estilo de sermão em alguns blogs. O que seus autores geralmente terminam dizendo é que as dívidas e/ou transgressões mencionadas no Pai-Nosso são dívidas e/ou transgressões espirituais. Na verdade, trata-se mesmo de pecados: Deus perdoará os pecados que cometemos na medida em que nós mesmos perdoemos os pecados que se cometerem contra nós. Somos alertados por esses blogueiros para não cairmos no equívoco ingênuo de acreditar que as dívidas em questão são de fato dívidas monetárias. Eis aqui um trecho de um post extraído do blog de Jennie C. Olbrych, pastora da antiga e adorável Igreja Episcopal de Saint James, perto de McClellanville, na Carolina do Sul — sei que é antiga e adorável porque o site traz uma fotografia dela —, que reúne todas as coisas que já foram ditas, uma após a outra: “Aqui estou, retomando o Pai-Nosso”, diz a pastora Olbrych, “(...) e convém lembrá-los de que a dívida financeira é muitas vezes uma metáfora para o pecado — perdoai nossos pecados, transgressões, dívidas, assim como nós perdoamos àqueles que pecam, transgridem ou estão em dívida para conosco (...).” Dever muito dinheiro é bem típico desses dias — 2,5 trilhões de dólares em dívidas de consumidores apenas em junho deste ano (...). A dívida média das famílias está próxima de 12 mil dólares só em cartões de crédito. Se você é proprietário de um imóvel residencial, saberá que assinar uma hipoteca ou uma nota promissória é uma coisa muito séria... insuportável, se pensar bem a respeito... Em outra igreja a que pertenci, um casal veio me pedir conselho pastoral... os dois brigavam feito loucos... e em algum momento da nossa conversa, quando perguntei a quanto montava a dívida deles — beirava os 75 mil dólares em cartões de crédito —, a

renda anual dos dois girava em torno dos 50 mil dólares. Estavam afogados em dívidas e não tinham a menor esperança de conseguir quitá-las... Pensem em como eles se sentiriam aliviados se alguém do Mastercard, a pessoa que os vinha atormentando, ligasse inadvertidamente e dissesse... Estamos cancelando a sua dívida. Ou se alguém ligasse dizendo... o banco vai perdoar a hipoteca da sua casa... ou suas dívidas do crédito estudantil... ou suas dívidas comerciais... vamos perdoá-las... vocês provavelmente estarão pensando... isso é bom demais para ser verdade, não pode ser legítimo... provavelmente é algum erro do banco... e vocês provavelmente vão esperar um pouco e depois verificar o saldo... e aí a declaração chega pelo correio... ou melhor ainda, o próprio documento... pura e simplesmente... que maravilha! Vocês iriam bendizer o American Express ou o Visa, ou o banco, pedir aos céus por eles... porque a dívida é realmente uma forma de escravidão. Agora, alguns de vocês mais pragmáticos sem dúvida diriam — bem, é uma boa ideia, mas não tem como dar certo na prática porque o sistema inteiro ruiria... Se as hipotecas de todo mundo fossem perdoadas, o sistema bancário entraria em colapso... Alguém tem que pagar... E estariam certos ao pensar assim... Ficar livre das dívidas é maravilhoso — mais maravilhoso, porém, é ficar livre das dívidas num sentido espiritual... Aqui, num buquê de significados notavelmente resumido, temos: a dívida financeira como metáfora do pecado; o horror e o peso de se estar em dívida; a alegria que experimentaríamos caso todas as nossas dívidas de ordem financeira fossem subitamente canceladas; a impossibilidade de isso efetivamente acontecer no mundo dos negócios, porque “o sistema inteiro poderia ruir”; e a

ideia de que a dívida é uma forma de escravidão. Se ligarmos o fim ao começo, teremos uma equação ainda mais perfeita: a dívida financeira não é apenas uma metáfora do pecado, ela é um pecado. É uma dívida/pecado, como no aramaico original. Os pregadores modernos deixaram repentinamente de dizer que a prova maior de virtude por parte dos credores seria simplesmente queimar seus registros, mas há bons motivos para crer que Jesus quis falar que deveríamos perdoar as dívidas financeiras assim como pecados de outras naturezas. Ele não apenas usou essa palavra para se referir às duas, como estava bem consciente da lei de Moisés, pela qual a cada sete anos deveria haver um ano sabático, no qual todas as dívidas seriam canceladas. “Ao fim de cada sete anos, farás remissão. E este é o modo da remissão: todo credor remitirá o que tiver emprestado ao seu próximo; não o exigirá do seu próximo ou do seu irmão, pois a remissão do Senhor é apregoada”, assim está em Deuteronômio 15:1 e 2. Por que, então, alguém poderia perguntar, uma pessoa emprestava alguma coisa a outra em tais circunstâncias? Provavelmente porque as hipotecas e os empréstimos se davam no contexto de comunidades pequenas. Você não precisava cancelar as dívidas que lhe eram devidas por estrangeiros — somente as de quem era do grupo, no qual as relações com os vizinhos de porta corriam do berço ao túmulo e eram estreitamente cultivadas, e aquele que num ano fosse credor no seguinte poderia ser devedor. Minha mãe, que cresceu numa comunidade pequena da Nova Escócia, costumava dizer: “Num vilarejo, todo mundo sabe o que você faz.” Uma boa reputação era muito importante nesses lugares e ninguém queria ser conhecido como aquele que não honra o que deve, caso contrário, de uma próxima vez, não teria a xícara de farinha ou o ovo de que estivesse precisando. Desse modo você acabava de uma forma ou de outra recompensado por uma dívida perdoada,

ainda que não fosse em dinheiro. Durante a Grande Depressão, por exemplo, pouca gente na zona rural da Nova Escócia tinha dinheiro em espécie, mas meu avô — o médico local — recebia seus pagamentos em galinhas e lenha. Eles certamente ficaram enjoados de galinha, dizia minha mãe, mas ao menos nunca passaram frio. Em seu livro de 1994, Sistemas de sobrevivência, Jane Jacobs propõe a tese de que os seres humanos só têm duas maneiras de obter bens: tomando e negociando. Tudo o que fazemos em matéria de acumulação tem a ver com uma dessas duas alternativas, segundo ela, e as duas nunca devem se misturar. Devemos ser particularmente cautelosos no sentido de evitar que especialistas em alguma área sejam colocados no controle de outra. Por exemplo, os policiais — que se encarregam da defesa legal contra a primeira alternativa, a de “tomar”, e detêm as armas que lhes conferimos como nossos defensores — não podem ser também comerciantes, pois o resultado seria o suborno, a cobrança de taxas de proteção e outras modalidades de corrupção. Voltando às duas alternativas de Jacobs, sob a rubrica “tomar” estariam caçar, pescar e colher, saquear numa guerra, anexar territórios à força, assaltar, estuprar, escravizar pessoas, encontrar moedas na calçada ou — eu prefiro — clips de papel. Sob a rubrica “negociar” se incluiriam trocar, comprar e vender, casamentos arranjados, acordos para regular o mercado, embora esses últimos talvez ficassem melhor na primeira alternativa, a de “tomar” — a diplomacia das canhoneiras, como se costuma dizer. Quando li pela primeira vez esse livro, peguei a mania de tentar identificar transações que não se enquadrassem nesse esquema binário. Primeiro pensei em presentes: um presente sem dúvida não é algo que se tome nem que se negocie. Mas não: presentes se enquadram na rubrica “negociar”, porque, embora não venham com o preço etiquetado, e vender um presente não só não pega bem

como pode trazer má sorte, aqui sempre há uma regra de troca: a cada presente você fica, no mínimo, com uma dívida de gratidão; e, mais ainda, fica devendo um presente, se não a quem primeiramente o presenteou, a alguém mais. Os presentes de arte funcionam assim. Um talento artístico é algo que se dá ou se confere — não pode ser comprado —, e através das obras que outros artistas lhe dão você recebe mais inspiração que, por sua vez, transmite a outra pessoa através da sua própria obra, se for bem afortunado. Mas e emprestar e pegar emprestado? Ambos dão a impressão de existir numa zona de sombras — não é o caso de “tomar” e “negociar” —, mudando de natureza em função do resultado final. São como as charadas dos contos de fadas: Nem nu nem vestido, nem na estrada nem fora dela, nem a pé nem a cavalo. Um objeto ou um dinheiro emprestado não é tomado nem negociado. Existe numa zona de sombras entre os dois: se os juros exigidos por um empréstimo são exorbitantes, a transação vira roubo ao devedor; se o objeto ou a importância nunca é devolvido, também vira roubo, dessa vez ao credor. Isso seria “tomar”, não “negociar”. Mas se o objeto é emprestado e depois devolvido com juros razoáveis, trata-se evidentemente de um negócio. Tomar um bem em garantia é uma transação que se acha na mesma zona de sombras: em parte roubo (“tomar”), em parte comércio. Há, entretanto, outra espécie de transação financeira ambígua: penhorar algo que deverá ser ressarcido ou recomprado posteriormente. Ou que pode não ser recomprado, caso em que aquele que estiver na posse do bem tem permissão para ficar com ele. Trata-se de prática muito antiga. Por exemplo, em Deuteronômio 24:6 está escrito que “Ninguém tomará em penhor as duas mós, nem mesmo a mó de cima, pois se penhoraria assim a vida”. O Deuteronômio está cheio de leis baseadas na justiça — leis que estabelecem um limite em relação a quão longe lhe é

permitido ir. Não tomar em penhor uma mó queria dizer que você não podia tirar de um homem aquilo de que ele necessitasse para ganhar seu sustento, porque, obviamente, ele não teria como lhe pagar a dívida e pegar a mó de volta. Portanto, tomar as ferramentas básicas de um homem como penhora era algo tão perverso quanto roubar. E se fosse um moinho pequeno, caseiro, você estaria literalmente tirando o pão da boca de uma família. Esse tipo de transação intermediária ainda ocorre bastante entre nós. É popularmente conhecida como “pôr no prego” e praticada em estabelecimentos chamados de “lojas de penhor”. Esses lugares têm um cheiro de enxofre, como corre o risco de ter tudo o que existe na zona de sombras entre categorias claras. Minha tia Joyce Barkhouse, da Nova Escócia, que agora está com noventa e cinco anos, conta a seguinte história envolvendo uma loja de penhores. Quando nasceu meu irmão, em meados de fevereiro de 1937 — portanto no auge da Grande Depressão —, houve uma excursão de trem especial, de Dia dos Namorados, a preços promocionais, da Nova Escócia a Montreal. Custava dez dólares. Minha tia e uma amiga juntaram os dez dólares e foram até Montreal ajudar mamãe com o recém-nascido. Quando chegaram, minha mãe ainda se achava no hospital, porque papai não havia recebido o pagamento do mês e não tinha como saldar a conta e tirá-la de lá — os hospitais, já naquela época, tinham muito em comum com prisões de devedores. Meu pai, finalmente, teve condições de libertála, mas o pagamento da conta hospitalar — noventa e nove dólares, como fui descobrir no caderno de contas de mamãe — custou-lhe o salário inteirinho. Como meus pais não tinham um tostão na época, nenhum dinheiro de reserva, papai pôs no prego sua caneta-tinteiro a fim de poder levar minha tia para almoçar em agradecimento. (Só o fato de ele se sentir no dever de fazer isso mostra que compreendia a necessidade de dar

um presente de gratidão em troca do presente de cuidados e serviços que titia lhe oferecera.) Quando minha tia e sua amiga pegaram o trem de volta para a Nova Escócia, também ganharam dois valiosos presentes de despedida: um cacho de uvas e uma caixinha de chocolates Laura Secord — e isso era tudo o que elas teriam para comer durante a viagem de trem. Como não tinham cabines, precisariam ir sentadas o tempo todo, o que era muito desconfortável; mas um homem estava alugando travesseiros por 25 cents cada. Ai delas!, juntas as duas só tinham 48 cents; então propuseram os 48 cents e mais duas barras de chocolate — piscando sedutoramente os cílios, confessou titia — e a oferta foi aceita. Desta forma, as duas dormiram mais confortavelmente. Quando eu ouvia essa história em criança, me sentia feliz com a bem-sucedida negociação dos travesseiros e guardei a lição da prática de pechinchar: se você não propuser um acordo, não conseguirá nenhum. Mais tarde, tendo me interessado por canetas, pensei: que tipo de caneta seria aquela? Considerando o fato de que meus pais não tinham um tostão furado, como é que papai poderia ter uma caneta-tinteiro cara a ponto de ser aceita em penhor? Ainda mais tarde, fiquei estarrecida com o preço baixo da viagem de trem — dez dólares, hoje, mal dariam para uma garrafa d’água e um saco de batatas fritas — e com o alto valor atribuído ao cacho de uvas. Mas agora eu penso assim: papai! Aquele homem reto! Indo a uma loja de penhores! Coisa mais incongruente! De fato, essa parte da história era contada num tom baixo, mas deliciado, como se o episódio do prego fosse desonroso — como penetrar furtivamente num show de pin-ups — e transgressor — algum limite fora ultrapassado —, mas também uma demonstração de coragem e sacrifício pessoal: olha o que papai se dispunha a enfrentar para poder agir corretamente!

Quando eu era bem novinha, achava que as lojas de penhor tinham algo a ver com xadrez — lá era possível comprar peões para substituir os que estavam sempre sumindo entre as almofadas do sofá. Mas esse não é o caso. O peão do jogo de xadrez vem de peon, ou camponês — os soldados de infantaria que a gente sacrifica em primeiro lugar por terem relativamente pouco valor. O tipo de peão das lojas de penhor vem de uma palavra que significa “promessa” — você deixa algo na loja e o dono lhe dá dinheiro e um recibo com um número, para que você retorne depois para “resgatar”, ou recomprar o bem, apresentando o recibo e pagando a quantia original, mais um extra pelo uso do dinheiro e os custos da transação. Mas se você não retornar com o dinheiro vivo dentro de um prazo estipulado, perde o direito de recomprar o objeto, que passa a pertencer ao homem do prego, o qual poderá vendê-lo e ficar com o lucro. Quanto ao fato de as lojas de penhor terem fama de gananciosas na época em que meu pai recorreu a uma delas com sua caneta-tinteiro, as opiniões se dividem. Como ocorre com tudo que tem dois lados e envolve equilíbrio entre eles — uma balança para pesar a alma vis-à-vis as plumas da verdade, uma querela matar-a-mãe versus matar-o-pai, um anjo que registra as boas ações e outro que anota os maus feitos, seu orçamento mensal ou os efeitos positivos e negativos das lojas de penhor —, é difícil fazer com que ambos os lados fiquem exatamente iguais. As lojas de penhor remontam pelo menos à Grécia e à Roma clássicas e, no Oriente, a uns mil anos a.C., na China. Seu conceito negativo advém da fama de ser o último recurso dos mais carentes e da suspeita de que ladrões se valiam delas para se livrar dos bens roubados: passar a mão em alguma coisa, pô-la no prego e nunca mais aparecer para resgatá-la. Havia ainda outra tramoia: um homem fingindo-se falido ou de passagem pela cidade podia

comprar bens a crédito, penhorá-los e em seguida sumir com o dinheiro. O aspecto positivo é que essas lojas são providenciais benfeitoras dos desvalidos, uma espécie de banqueiro dos pobres: tanto os franciscanos da Idade Média quanto os monges budistas da China Antiga realizavam operações de penhor em benefício dos pobres. Esses homens do prego eram capazes de oferecer pequenas quantias que aqueles sem uma boa garantia não tinham como pegar emprestadas junto a instituições mais pomposas que, na verdade, eram microfinanceiras. São Nicolau é o patrono dos homens do prego — há uma lenda tocante segundo a qual ele consegue dotes para três garotas que, sem eles, não poderiam se casar, e os dotes eram três sacolas de ouro — daí as três bolas douradas que se costuma ver nas fachadas de todas as lojas de penhor do Ocidente. (Na China não são três bolas, e, sim, um morcego da sorte — mas essa é outra história.) Não há absolutamente nada sobre a outra lenda envolvendo São Nicolau — a de que ele desce pela chaminé nas noites de 25 de dezembro com um saco cheio de coisas que pegou da loja de penhor. Contudo, não deixa de ser verdade que a expressão coloquial do século XIX “Velho Nick”— em referência ao Diabo — está diretamente relacionada a São Nicolau. Há outras coincidências entre os dois; a roupa vermelha, a cabeleira e a associação com brasas e fuligem. E, na gíria, o verbo nick significa roubar... Mas estou fazendo toda essa digressão apenas para acrescentar que São Nicolau, além de patrono das criancinhas, essas criaturas pequeninas e frágeis de dedos grudentos e senso limitado dos direitos de propriedade dos outros, é também o santo padroeiro dos ladrões. São Nicolau é sempre encontrado nas imediações de grandes quantidades de dinheiro e, quando perguntado onde as obteve, contará alguma mentira bem implausível envolvendo trabalhadores não humanos a martelar

incessantemente num lugar que ele eufemisticamente chama de sua “oficina”. Uma história provável, digo eu. Quanto às três bolas pintadas de ouro, a história do dote pode ser linda, mas uma explicação mais substancial é que as bolas faziam parte do brasão armorial dos Médici, que eram muito ricos; e que foram depois adotadas pela Casa Lombarda, associação de banqueiros e financistas que queriam que as pessoas pensassem que eram muito ricos; e não demorou — pois essa forma primitiva de propaganda e de magia positiva funcionava mesmo — para que eles fossem muito ricos. Entre as primeiras coisas que as pessoas foram capazes de penhorar estavam outras pessoas. O Código de Hamurábi, da Mesopotâmia, que data de aproximadamente 1752 a.C., é um conjunto de emendas a leis preexistentes, o que significa que a própria lei da dívida é ainda mais antiga. Lendo este código, tomamos conhecimento de que um homem endividado poderia penhorar a mulher e os filhos, suas concubinas e seus filhos, e seus escravos, como escravos da dívida a um comerciante em troca de dinheiro para quitar a dívida; ou poderia ainda vender os membros da própria família. Neste caso, não poderia resgatá-los: eles permaneceriam escravos para sempre. Mas se fossem dados em garantia por algum empréstimo, e este empréstimo fosse honrado dentro de um prazo determinado, os escravos da dívida lhe seriam restituídos. Também poderia — caso estivesse realmente desesperado — vender-se a si mesmo como escravo, caso em que muito provavelmente permaneceria escravo porque ninguém viria resgatá-lo. A escravidão da dívida não é, de forma alguma, coisa do passado distante.Veja-se a Índia dos dias atuais, onde um homem pode se tornar um escravo virtual da dívida pelo resto da vida, e muitos acabam nessa condição por ter de oferecer dotes. Veja-se, também, o tráfico de imigrantes ilegais da Ásia para os Estados Unidos, onde, à pessoa

contrabandeada, se diz que terá que trabalhar para sempre sem salário de modo a pagar os custos de sua experiência de viagem. No século XIX, nos povoados mineiros do norte da Europa, o armazém da empresa fazia o papel do dono de escravos: os mineiros tinham de comprar seus alimentos, e tudo o mais necessário para viver, no próprio armazém, onde as coisas custavam mais do que os trabalhadores jamais conseguiriam ganhar. No célebre romance Germinal, de Émile Zola — cujo título é tirado de um dos novos nomes de meses introduzidos pela Revolução Francesa, germinal correspondendo a abril —, esse sistema é descrito em todos os sórdidos e áridos detalhes. O encarregado do armazém é um homem asqueroso com a ideia velha e carcomida de que sexo é uma mercadoria transacionável; dessa forma, ele negocia a dívida usando as mulheres e as filhas dos mineiros para alcançar seus propósitos luxuriosos. Vocês ficariam felizes ao saber que há uma famosa cena de rebelião em que mulheres e filhas se vingam, e os órgãos genitais do encarregado do armazém, atravessados num espeto, são carregados em triunfo numa procissão pelas ruas — forma cruenta de divertimento, sem dúvida, mas é que não havia televisão na época. Outra forma de escravidão por dívida no século XIX era a praticada por aqueles que alugavam quartos e roupas a prostitutas, ou que dirigiam bordéis nos quais a comida e o vestuário das meninas eram incluídos numa conta que nunca poderia ser paga com trabalho. Certas formas dessa prática ainda persistem, embora o custo de drogas viciantes venha sendo acrescentado à conta. Todos esses recursos para manter as pessoas atadas e trabalhando por meros salários de subsistência constituem receitas de desespero: são uma máquina de pesadelos que nunca se consegue desligar. Na época em que o Código de Hamurábi foi instituído, a escravidão já existia havia muito tempo. De onde ela provinha? Em A criação do patriarcado — em que

“patriarcado” nada tem a ver com a figura de um paizão sentado à cabeceira da mesa trinchando o assado do domingo, e, sim, com o sistema pelo qual era direito do homem tratar sua mulher, ou mulheres, e filhos como se tivesse sua posse total e deles pudesse dispor como bem entendesse, como móveis e utensílios —, Gerda Lerner diz o seguinte: “As fontes históricas sobre a origem da escravidão são escassas, especulativas e de difícil avaliação. É raro, se tanto, que a escravidão se verifique em sociedades caçadoras-coletoras, mas ela ocorre em regiões e períodos amplamente afastados, com o advento do pastoralismo e, subsequentemente, da agricultura, da urbanização e da formação dos estados. Muitos estudiosos concluíram que a escravidão deriva da guerra e da conquista. As causas mais citadas de escravidão são: captura em combate; castigo por algum crime; venda por parte dos próprios membros da família; autovenda por causa de dívida; e cativeiro por dívida (...). A escravidão só podia ter lugar onde determinadas precondições existissem: tinha de haver excedente de alimentos; tinha de haver meios de subjugar prisioneiros resistentes; tinha de haver uma distinção (visual ou conceitual) entre eles e seus escravizadores.” Lerner prossegue sustentando que as primeiras pessoas a serem escravizadas foram mulheres, que podiam ser mais facilmente controladas, e que os homens capturados nas guerras tinham em geral os crânios esmagados ou eram empurrados da beira de um penhasco, até que alguém teve a grande ideia de cegá-los — dando-nos assim o Sansão Guerreiro do poema de mesmo nome, de John Milton: “… sem olhos em Gaza, na mó em meio aos escravos.” Sansão é um herói do Antigo Testamento cuja força dada por Deus estava condicionada a que ele não divulgasse seu segredo, que consistia em que perderia toda a força se tivesse o cabelo cortado. O que acaba de fato ocorrendo, graças a uma traidora — essas mulheres parecem uma peneira, deixam vazar tudo; nunca lhes contem nada a

menos que queiram que os vizinhos saibam. Mas Sansão se redime dos inimigos e torturadores — ele compra a liberdade de sua alma — ao preço da própria vida física. Que fascinante essa coisa de dizer que uma pessoa “se redime” quando é culpada de algum ato infame e o compensa com outra ação, boa ou nobre... É como se houvesse uma loja de penhores da alma, onde as almas pudessem ser mantidas em cativeiro, mas sempre com a possibilidade de serem redimidas; e isso é o que eu gostaria de discutir em seguida. Primeiro, uma curiosa expressão dessa loja de penhores da alma: o Come-Pecados. O costume de comer pecados aparece num romance de 1924 de Mary Webb cujo título, Precious Bane, vem do Canto I do Paraíso perdido de John Milton. Após cair do Céu para o Inferno, Satã envia uma expedição: There stood a Hill not far whose griesly top Belch’d fire and rowling smoak; the rest entire Shon with a glossie scurff, undoubted sign That in his womb was hid metallic Ore, The work of Sulphur. Thither wing’d with speed A numerous Brigad hasten’d. As when Bands Of Pioners with Spade and Pickax arm’d Forerun the Royal Camp, to trench a Field, Or cast a Rampart. Mammon led them on, Mammon, the least erected Spirit that fell From heav’n, for ev’n in heav’n his looks and thoughts Were always downward bent, admiring more The riches of Heav’ns pavement, trod’n Gold, Then aught divine or holy else enjoy’d In vision beatific: by him first Men also, and by his suggestion taught, Ransack’d the Center, and with impious hands Rifl’d the bowels of thir mother Earth For Treasures better hid. Soon had his crew

Op’nd into the Hill a spacious wound And dig’d out ribs of Gold. Let none admire That riches grow in Hell; that soyle may Best Deserve the precious bane[1] Assim ficamos sabendo pelo título que Precious Bane, de Webb, terá como um de seus temas uma obsessão destrutiva pelas riquezas; e assim é. A história se passa na cidade inglesa de Shropshire do século XIX, onde velhos hábitos se enraizaram. O pai de Gideon Sarn morreu de derrame, com as botas calçadas — coisa aziaga, pois se acreditava que ele havia morrido “de raiva, carregando todos os seus pecados”, como Hamlet queria que seu famigerado padrasto Claudius morresse. Você pode pagar sua dívida de pecados por meio de um arrependimento autêntico, mas se não tiver tempo para fazê-lo, está frito. É aí que você precisa de um Come-Pecados. Como explica o narrador: Ainda era costume, naquele tempo, em nossa região do país, dar uma gorjeta a algum pobre após um falecimento, e assim o pão e o vinho lhe seriam entregues por cima do caixão e ele comeria e beberia, dizendo: Agora eu lhe trago alívio e repouso, meu caro, para que você não ande por aí pelos campos e caminhos ermos. E por sua paz eu penhoro minha própria alma. E com um olhar sereno e grave ele iria para o último abrigo. Como costumava dizer meu avô, os ComePecados eram como os Reis Magos que haviam sucumbido em má hora. Ou uns pobres coitados que, devido a alguma má ação, haviam perdido a vida serena dos homens, e com os quais ninguém negociaria, e cujo único alimento as mais das vezes seriam o pão e o vinho que lhes eram passados por sobre o caixão. Na nossa vez, não sobrara nenhum para Sarn. Eles estavam quase mortos e tinham que ser mandados para as

montanhas. Era um longo caminho a percorrer e cobravam um preço muito alto, em vez de fazê-lo de graça como antigamente. Em Precious Bane, é Gideon, o filho do morto, que procede como o Come-Pecados; ele o faz para ficar com a fazenda da família, na qual pretende se matar de tanto trabalhar até ficar rico e senhor de tudo. Mas comer pecados lhe traz má sorte, como se descreve: “Ele ergueu a taça de estanho cheia de trevas...” Epa, pensamos. Não vem coisa boa por aí. Se as motivações de um ComePecados são puras e altruístas, ele tem alguma chance de escapar da maldição. Mas não se seus “olhares e pensamentos/Apenas se voltam para baixo”. Como os de Gideon. A tradição de comer pecados era também conhecida na região de Scottish Borders e no País de Gales. Lewis Hyde, em seu livro The Gift: Imagination and the Erotic Life of Property, descreve um costume galês parecido, mas não idêntico, de um século atrás: O caixão era colocado sobre uma base fora da casa, perto da porta. Um dos parentes do falecido ia então distribuindo pão e queijo aos pobres, cuidando para lhes passar os alimentos por cima do ataúde. Às vezes o pão ou o queijo vinham com dinheiro dentro. Em retribuição às oferendas, os pobres colhiam flores e ervas para enfeitar o caixão. Hyde classifica as oferendas fúnebres numa categoria maior que denomina “oferendas de umbral” — que ajudam a passagem de uma condição de vida a outra. Nos costumes galeses, o morto está sendo ajudado a passar desta vida para a próxima, e se isso não for feito adequadamente ele pode ficar preso à Terra como um fantasma — sendo os fantasmas, notoriamente, almas com pendências infindáveis aqui na Terra. Existem costumes semelhantes por todo o mundo, e os objetos colocados em pirâmides ou locais

fúnebres têm essa mesma função: acompanhar a jornada e auxiliar na transição. Da próxima vez que vocês jogarem uma flor num túmulo aberto, lembrem-se de perguntar por que estão fazendo isso. Mas há algo mais nessa história de comer pecados. O pão e o vinho passados por sobre o esquife são um eco óbvio da comunhão do cristianismo. Esse alimento sacramental é tido como aquilo que deixa a alma num estado de graça; porém, o pão e o vinho do Come-Pecados têm efeito contrário: o que se come e o que se bebe são as trevas, não a luz. Ao Come-Pecados incumbe assimilar todos os pecados que ingerir e, assim, livrar deles as almas dos mortos; dessa maneira, ele tem evidentes ligações com as representações do bode expiatório. Ele também penhorou a própria alma, como garantia de que alguém — isto é, ele próprio — estava preparado para pagar por todos aqueles pecados quando chegasse a hora. Entretanto, embora tenha penhorado sua alma, o ComePecados não a vendeu. Ele a pôs no prego, em troca do pão e do vinho — e do dinheiro, sejamos claros —, mas também num ato arriscado de coragem, porque — como na brincadeira de Passar o Anel — ele próprio pode morrer com as botas calçadas sem que um Come-Pecados apareça e, desse modo, ser enterrado com toda a bagagem de pecados. O homem do prego era o Diabo, claro: ele é que deveria ficar com a alma penhorada, a menos que a alma do Come-Pecados fosse resgatada da mesma forma que alguém resgataria um objeto penhorado da loja. É de se notar aqui que “um penhor” pode significar igualmente “um refém”. Os reféns, naquela época — como hoje — eram pessoas mantidas em cativeiro, para serem trocadas ou por outra pessoa ou por valores em dinheiro. A alma do ComePecados, assim, funcionava como um refém bem como um substituto para a alma do homem cujos pecados ele havia comido. Pouco importa que o Come-Pecados de Precious

Bane siga para seu “último abrigo” com “um olhar sereno e grave”. O primeiro refém dessa espécie de que ouvimos falar na mitologia parece ser Geshtinanna, do mito sumério de Inanna. A deusa da Vida, Inanna, perde a luta pelo poder com Erishkigal, deusa da Morte, e é morta. Mas a deusa da Vida não pode morrer dessa forma — é ruim para o jardim, para não falar em todas as coisas vivas sobre a face da Terra — e por isso outro deus faz duas criaturas robóticas, tipo golem, que não são organicamente vivas e, portanto, não estão sujeitas à morte. Essas criaturas salvam Inanna e a trazem de volta à luz. No entanto, Erishkigal diz que a quantidade de mortos deve permanecer completa ou o equilíbrio cósmico será perturbado, de modo que é preciso achar um substituto para Inanna no Mundo dos Mortos sumério. A vítima é Dumuzi, o rei-pastor de ovelhas, consorte de Inanna entre os mortais. Mas a irmã de Dumuzi, Geshtinanna, se oferece para substituí-lo, e os deuses se impressionam tanto com seu espírito de sacrifício que acabam dividindo o tempo — seis meses para Dumuzi, seis meses para Geshtinanna — no Mundo dos Mortos. Geshtinanna é, provavelmente, o primeiro exemplo de um indivíduo que resgata outro se oferecendo como substituto, o que constitui a essência da ideia do Come-Pecados: algo é devido; quem deve não tem como pagar; surge então alguém que salda a dívida ou toma o lugar da pessoa endividada. Os paralelos com o cristianismo são evidentes. Todo padrão humano tem uma versão positiva e uma negativa. Na versão negativa deste, em vez de se oferecer como substituto de alguém, você oferece outra pessoa para substituí-lo. Um bom exemplo de versão negativa pode ser encontrado no romance distópico 1984, de George Orwell. O infeliz protagonista Winston Smith foi mandado para a temível Sala 101. A Sala 101 abriga tudo o que há de pior no mundo, o que, no caso de Winston, vem a ser ratos. Os ratos estão famintos e prestes a ser soltos sobre seus olhos.

A máscara apertava seu rosto. O arame lhe roçava a pele. E aí — não, não era um alívio, apenas uma esperança, um fragmento mínimo de esperança.Tarde demais, talvez tarde demais. Mas ele repentinamente se dera conta de que no mundo inteiro só havia uma pessoa a quem podia transferir seu castigo — um corpo que pudesse se colocar entre ele e os ratos. E berrava, berrava sem parar: — Façam isso com a Julia! Com a Julia! Não comigo! Com a Julia! Não me interessa o que façam com ela. Rasguem seu rosto, dilacerem-na até os ossos! Eu não! Julia. Eu não! Julia, convém lembrar, vem a ser a namorada querida de Winston. Essa substituição de você por um outro é algo bastante familiar aos estudantes de religiões primitivas, na medida em que está por trás das práticas de sacrifício tanto de animais quanto de seres humanos. Você tem uma dívida para com os deuses e deixa que algo ou alguém a pague por você. Os leitores do Antigo Testamento encontrarão — sobretudo no Levítico e no Deuteronômio — longas listas de animais que se devem matar ritualmente em pagamento por determinado pecado, transgressão ou culpa, ou em retribuição a alguma grande graça especialmente concedida por Deus. Um animal redime outro: pode-se, por exemplo, resgatar um jumento recém-nascido por meio de uma ovelha, a qual deve morrer em seu lugar. Os sacrifícios no Oriente Médio e na Grécia podiam ser humanos, ao menos em ocasiões especiais. O rei Agamenon, líder das forças expedicionárias da Guerra de Troia, sacrifica a filha, e o chefe militar do Antigo Testamento, Jefté, sacrifica a sua: o que ambos obtêm em troca é a vitória. Josué, após conquistar as cidades de Canaã, dizima todos os prisioneiros e seus animais como oferenda a Deus, assim como Ezequiel o faz com os 450 sacerdotes de Baal. Sempre se considerava que o primogênito de todas as espécies, incluindo a humana,

pertencia a Deus — daí Abraão não ter demonstrado surpresa quando Deus lhe ordena que sacrifique o único filho, Isaque. A introdução da substituição de vítimas humanas por animais é bem ilustrada por essa história, já que é um carneiro e não uma criança que tem a garganta cortada. No entanto, o sacrifício humano — basicamente de crianças — era prática generalizada no mundo antigo; e tratava-se de sacrifícios substitutos, que remiam dívidas que se tinha ou que pagavam favores aos deuses. Em vez da própria pessoa, você podia oferecer algum item interessante de sua propriedade — um touro, uma pomba, uma criança, um escravo — sussurrando o tempo todo alguma versão do “Faça isso com a Julia”. Felizmente, na época do Livro dos Números, uma quantia equivalente em dinheiro podia ser oferecida em troca. Pensem nisso na próxima vez em que colocarem uma contribuição na cesta de coleta da igreja. Aquela nota de vinte dólares funciona como um substituto para que vocês não tenham a garganta cortada — um preço bem camarada, por sinal. O que nos leva à religião cristã. Cristo é chamado de O Redentor, termo derivado diretamente da linguagem da dívida, da penhora ou da promessa, e também da área do sacrifício substituto. De fato, toda a teologia do cristianismo repousa na concepção de dívidas espirituais e daquilo que precisa ser feito para repará-las, e de como é possível se livrar do pagamento tendo alguém que o faça em seu lugar. Ela repousa ainda numa longa história pré-cristã de bodes expiatórios — inclusive de sacrifícios humanos — que extinguem seus pecados por você. Eis aqui a versão condensada, e peço desculpas caso não lhe faça inteira justiça ao comprimi-la demais: Deus deu a vida ao Homem, que dessa forma contraiu com Ele uma dívida de absoluta gratidão e obediência. O Homem, porém, não pagou sua dívida como deveria, ao contrário, renegou-a por um ato de desobediência. Assim,

deixou a si mesmo e a seus descendentes em estado de permanente penhor — pois, como sabemos todos que alguma vez lidamos com testamentos, as dívidas de uma pessoa passam para seus herdeiros e avalistas. No que diz respeito à dívida de pecado, o credor às vezes é visto como a Morte, outras vezes como o Diabo: essa entidade colhe (a) sua vida ou (b) sua alma — ou ambas — em pagamento da dívida, que ainda lhe cabe, contraída por algum ancestral velhaco distante. A carga da dívida de pecado que você herdou de Adão — o “Pecado Original”, como é conhecido —, acrescida por seus próprios pecados, esses provavelmente não muito originais, nunca poderá ser paga por você, pois seu valor total é grande demais. Assim, a menos que alguém venha em seu auxílio, sua alma se tornará (a) extinta ou (b) escrava do Diabo no Inferno, que dela disporá das formas mais desagradáveis. Várias dessas formas são descritas por Dante, cujo Inferno é presidido por uma versão verdadeiramente tenebrosa do Mikado, da opereta de Gilbert e Sullivan, engenhosamente empenhado em fazer com que o castigo seja adequado ao crime. Se isso soa excessivamente medieval para vocês, uma versão mais abreviada pode ser apreciada no sermão sobre o Inferno incorporado ao Retrato do artista quando jovem, de James Joyce. Durante seu tempo de vida, todas as almas que não se encontrem em estado de graça ou que não se venderam total e definitivamente ao Diabo são consideradas numa condição intermediária; em risco, mas ainda não completamente perdidas. Supõe-se que Cristo redimiu todas as almas, pelo menos em tese, ao agir como uma espécie de Come-Pecados cósmico — ele tomou para si os pecados de todo mundo na Crucificação, na qual, com generosidade semelhante à de Geshtinanna, ofereceu-se como sacrifício humano substituto para pôr um fim a todos os sacrifícios humanos substitutos — remindo, com isso, a pesada dívida

do Pecado Original. Mas os indivíduos também devem participar desse drama: com efeito, você só se redime se permitir ser redimido. Dessa forma, todas as almas viventes podem ser consideradas habitantes de uma loja de penhores da alma, nem inteiramente escravas, nem inteiramente livres. O tempo está passando. Será você resgatado antes que o relógio bata a meia-noite e chegue a Grande Ceifadeira — ou pior, o Velho Nick com seu traje vermelho, pronto para enfiá-lo em seu saco infernal de coleta? Pendurado pelas pontas dos dedos! Nada se acaba enquanto não tiver acabado! É isso que confere tensão dramática à vida cristã: o nunca se sabe. Nunca se sabe, isto é, a não ser que você seja adepto da heresia antinomista. Se você crê, está tão seguro da própria salvação que até as coisas mais desprezíveis que faça estarão corretas, porque é você que as estará fazendo. Eis aqui um resumo desta atitude, extraído de um artigo de 2005 no Telegraph, de Londres, em que o autor, Sam Leith, sugere que Tony Blair, ex-primeiroministro da Inglaterra, foi conquistado por essa heresia: O antinomismo, grosseiramente falando — e terá que ser grosseiramente falando mesmo, já que não me considero um teólogo —, é a ideia segundo a qual a justificativa da fé libera alguém da necessidade de praticar boas ações. A retidão está acima da lei — que foi, pode-se argumentar, a posição do primeiro-ministro em relação ao Iraque. Ela pode ser encarada, de certa forma, como a quadratura de um círculo teológico complexo: a ideia calvinista de que os Eleitos foram escolhidos para a salvação como parte do esquema divino muito antes que quaisquer deles fossem centelhas nas centelhas dos olhos de seus ancestrais. Se a justificativa pela fé, mais que pelas palavras, é o caminho mais elevado para

o Céu, a lógica extrema da posição é que as obras não fazem a mínima diferença. A graça divina, sobre a qual não temos controle algum, gera a fé. A fé gera a salvação. Logo, se você não é tocado pela graça, não tem muito que fazer a não ser ansiar por uma aposentadoria imensamente longa tendo seus dedos dos pés aquecidos pelo Diabo no hotel do forcado. Se, por outro lado, você se acha entre os Eleitos, melhor para você: Jesus o quer para raio de sol e, por mais que você se comporte mal, nada fará com que ele deixe de vê-lo com bons olhos. Esta é uma posição totalmente estapafúrdia, a maioria de nós haveria de concordar quanto a isso, e historicamente tem sido desestimulada pelas autoridades tanto civis quanto religiosas, por motivos mais do que óbvios. Mas está aí. Como os políticos vêm demonstrando, ao menos nos países ocidentais de língua inglesa, uma tendência crescente a misturar religião e política, pode parecer justo que os eleitores cobrem suas posições teológicas. “Se o senhor acredita que, pessoalmente, esteja irremediavelmente salvo; que nenhum suborno, fraude, mentira, tortura ou outras atividades criminosas em que esteja envolvido seja inteiramente justificado por ser um dos Eleitos e, por isso, não ser capaz de fazer nada de errado; que, para os puros como o senhor, tudo é puro, e que em sua vasta maioria aqueles que diz representar como líder político são vis e imprestáveis e predestinados a torrar no inferno, por que então se importaria com eles?”, poderia ser uma introdução bem apropriada para uma entrevista. Há um romance que explora muito meticulosamente a heresia antinomista: The Private Memoirs and Confessions of a Justified Sinner, de James Hogg, de 1824. Não é coincidência que essa época de políticos com ar superior de moralidade esteja atraindo uma atenção crítica crescente. A situação é a seguinte: religiosamente deformado por uma

mãe fanática, certo de que está predestinado a ser redimido e cheio de inveja e ódio, especificamente do irmão mais atraente e de um pai beberrão e divertido, o narrador comete uma ação criminosa atrás da outra, levado por um estranho misterioso que encontra assim que se convence amplamente de pertencer aos membros irrevogáveis dos Eleitos. Um item considerado imprescindível a qualquer pacto com o Diabo que se preze na literatura moderna é o Livro Infernal, por motivos que abordaremos mais tarde; e no romance de Hogg tal pacto surge no devido tempo. Um dos primeiros encontros com o estranho misterioso se dá numa igreja, onde a criatura enigmática está lendo algo que, à primeira vista, parece ser a Bíblia: Levantei-me e me dirigi até ele, que estava tão entretido no livro que, por mais que eu falasse, sequer levantou os olhos. Também olhei para o livro, que lembrava mesmo uma Bíblia, com colunas, capítulos e versículos; mas estava numa língua na qual eu era totalmente ignorante e todo entrecortado por linhas e versos em vermelho. Uma sensação parecida com um risco de eletricidade percorreu meu corpo, primeiramente obrigando meus olhos a se fixarem no livro e me deixando sem ação. Ele ergueu a cabeça, sorriu, fechou o livro e o levou ao peito. “Você me pareceu ter ficado estranhamente mobilizado, meu caro, ao olhar para o meu livro”, ele falou com toda a brandura.“Em nome de Deus, que livro é esse?”, perguntei. “Uma Bíblia?” “É a minha Bíblia”, ele respondeu. Imediatamente o estranho misterioso começa a falar em laços de sangue, e nós, leitores, logo ficamos sabendo de quem se trata: pois o laço de sangue e o aspecto horrivelmente mau são dois atributos indisfarçáveis do Demônio, do século XV ao XIX — pelo menos o da literatura

—, que o tenta para que você faça um contrato com ele, o qual deverá ser assinado com seu próprio fluido sanguíneo. O livro diabólico de Hogg parece uma versão satânica das Escrituras, embora o mais comum é que o tomo do Diabo seja um livro contábil, em que as almas dos já-comprados são anotadas, prontas para ser colhidas assim que o momento fatal chegar. Céline tem um romance chamado Morte a crédito que é, com efeito, a forma como o Diabo faz suas vendas: você compra agora, curte as vantagens de todas as coisas boas que ele tem para oferecer, e paga mais tarde, eternamente. Patrick Tierney, em seu fascinante O altar supremo: Uma história do sacrifício humano, comenta as distintas — e antigas — tradições que prevalecem entre os xamãs — ou yataris — do lago Titicaca, na América do Sul. Aqui faz todo sentido a noção bem masoquista, e cristã, de vender a própria alma ao Diabo em troca de um tesouro que jamais é alcançado. A estratégia mais pragmática dos yataris da tribo aymara consistia em vender outra pessoa ao Diabo, “corpo e alma” (...) a forma de evitar prejuízo ao fazer o pacto com o Diabo era simplesmente dar a ele uma vítima humana (...) Evidentemente, alguém é fisicamente morto nessa permuta diabólica. Não tão evidente assim, entretanto, é o pacto sinistro subjacente pelo qual a alma dessa pessoa é permanentemente escravizada (...). Em épocas remotas, antes que os europeus chegassem à região, a vítima do sacrifício — em geral alguém jovem e inocente ou uma criança — era, primeiro, mental e emocionalmente preparada, bem tratada e festejada e só então convencida a assumir conscientemente o papel, tornando-se desse modo um espírito guardião voluntário para tudo — um conduto poderoso para as forças espirituais que serviam a toda a comunidade. Desse modo a vítima tinha parentesco com o Come-Pecados, e igualmente com o

bode expiatório; uma figura-tabu, “maldita”, como o ComePecados é chamado em Precious Bane, mas também abençoada. Uma figura que, após morrer em sacrifício, era reverenciada, tratada com medo e temor, e que, por sua vez, passava a ser merecedora de sacrifícios. Entretanto, entre os atuais yataris do lago Titicaca e seus seguidores — afirma Tierney —, pactos individuais com divindades locais são fechados por motivos egoísticos que envolvem riqueza e poder mundanos, e a vítima está longe de ser voluntária. Na verdade, ela é atraída ao local do sacrifício e assassinada, e a alma é escravizada e obrigada a fazer tudo o que seu senhor quiser. Diz-se que aqueles que praticam os sacrifícios vivem com medo das almas que escapam e depois vêm se vingar, como Espártaco ou como as mulheres e filhas em Germinal — o ressentimento em relação a tratamento injusto se constituindo em dívida universal não paga, que clama por um equilíbrio maior da balança. Nos primeiros tempos da história da humanidade, as listas dessas oferendas às forças sobrenaturais, assim como os pactos e as dívidas para com elas, não teriam sido elaboradas de maneira permanente. Porém, com a escrita, vieram os registros, e os livros, e os contratos. A visão do mundo desconhecido tende a refletir o que se acha disponível na Terra: as assembleias de bruxas retratadas pelos habitantes da Nova Inglaterra do século XVII, por exemplo, têm uma semelhança sobrenatural com os encontros da igreja puritana do mesmo período. Assim, o Diabo se apropria de seus instrumentos de escrita ao mesmo tempo em que os seres humanos se apropriam dos deles; na realidade, ele pode até tê-los herdado dos primeiros notários do post-mortem, tal como Tot, o deus egípcio escriba. O meio escolhido pelo Diabo foi se alterando ao longo dos anos. Nem sempre é um livro de verdade que requer assinatura com sangue; às vezes é um rolo, ou uma lista de

presentes, como na peça A trágica história do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe, do fim do século XVI. Seja qual for a forma física, no entanto, trata-se de um contrato, e ao assiná-lo seu nome passa a estar inscrito no livro mau, assim como os nomes das pessoas de bem são relacionados no livro bom. Como o Diabo, entre tantas outras coisas, é um advogado — advogado de acusação, alguém poderia observar —, está bem a par de contratos, como também de registros e livros contábeis. Por que a necessidade de tanta documentação? Vejamos a relação entre as dívidas e os registros escritos. Sem memória, não há dívidas: uma dívida é aquilo que se adquire em função de uma transação realizada no passado, e se nem o devedor nem o credor se lembrarem dela, a dívida estará efetivamente extinta. “Perdoar e esquecer”, costumamos dizer; e, na verdade, podemos não ser capazes de perdoar completamente se não esquecermos. O Inferno, na Divina comédia de Dante, é o lugar onde absolutamente tudo é relembrado por quem está sendo submetido a tormentos, enquanto no Paraíso você se esquece do próprio eu e de quem ainda lhe deve dinheiro e, em vez disso, dedica-se à contemplação do Ser. Esta, ao menos, é a teoria. Sem memória não há dívida, presume-se; mas somos capazes de nos lembrar de histórias — e de rancores e dívidas de honra, e de quem precisa se vingar de quem — a respeito de pessoas e de seus atos com muito mais facilidade do que conseguimos nos lembrar de longas listas de números, a não ser que sejamos uns gênios matemáticos. Nossa capacidade matemática avançada é muito recente e está longe de ser instintiva; a tabuada só é gravada a marteladas em nossa cabeça graças à memorização, e, mesmo depois de tê-la aprendido muitas vezes, nos pegamos contando nos dedos — isso nos tempos anteriores às calculadoras. A boneca Barbie, que se viu em apuros por falar “Matemática é difícil”, estava apenas

dizendo a verdade. Assim, a maioria de nós requer algum tipo de assistência técnica para realizar cálculos, mesmo que seja simplesmente uma folha de papel e um lápis. Mas como é que controlávamos os negócios antes dessa folha de papel? Como, por exemplo, negociávamos? Comercializamos itens físicos há pelo menos uns quarenta mil anos, é o que nos contam os arqueólogos; porém, sem alguma espécie de registro, comerciar a longa distância devia ser uma atividade bastante arriscada. Para se ter certeza de conseguir o valor desejado, o negócio tinha que ser feito face a face — sua pedra transparente pela minha da cor de barro. Os intermediários eram pouco confiáveis: o que era enviado nem sempre era o que se recebia, e de toda maneira não havia método seguro de comprovação. Entretanto, depois que os meios de registro das transações entraram em operação, um intermediário podia fazer negócio por você e depois lhe apresentar todos os procedimentos, e você tinha como verificar os números. Todas as tecnologias humanas são extensões do corpo humano e da mente humana. Desse modo, monóculos e telescópios, imagens de televisão e cinema, e a pintura, são extensões do olho; o rádio e o telefone o são da voz; a bengala e o cajado, da perna, e assim por diante. A escrita e os números escritos são — entre outras coisas — extensões da memória. Essas aides-mémoire surgiram de forma independente em muitas sociedades humanas, e os métodos para transmitir números, e portanto as dívidas, parecem ter sempre surgido antes dos materiais poéticos e religiosos escritos; estas obras guiadas pela emoção e pela narrativa podem existir mais facilmente na forma oral. Entre os incas da América do Sul, feixes de cordéis coloridos amarrados — denominados khipu — eram usados com esse fim. Na antiga Mesopotâmia, pequenos cones, bolas, cilindros — e outras formas geométricas — feitos em argila eram selados dentro de envelopes de argila. Essas formas foram agora identificadas como símbolos que

representavam animais de rebanho — vacas, bezerros, carneiros, ovelhas, bodes, cabritos, burros e cavalos. O envelope podia ser enviado com o pastor, e não podia ser aberto sem se quebrar. Assim, quem já tivesse comprado os animais tinha um documento ou uma guia como certificado. Blocos cuneiformes surgiram mais tarde; em sua vasta maioria constituem registros e inventários contábeis, já que na época os reis-sacerdotes da Mesopotâmia estavam no negócio de suprimento de grãos e haviam criado os primeiros bancos, que eram bancos de alimentos. Com os excedentes de alimentos vieram as guerras em larga escala: sem isso não é possível alimentar exércitos. E com as guerras vieram mais inventários, ainda mais imprescindíveis na hora de repartir o butim. A primeira coisa que os exércitos de Genghis Khan faziam, após a rendição de uma cidade, eram inventários, não apenas de todos os bens, mas de todas as pessoas. Genghis Khan costumava massacrar os ricos e aristocratas, mas salvava as vidas dos escribas: ele precisava de uma burocracia forte para administrar seu império, e gente alfabetizada vinha a calhar. O registro, e portanto a capacidade de controlar débitos e créditos, possibilitou a proliferação de sistemas sofisticados de tributação. Inicialmente, a cobrança de impostos era uma espécie de mercado clandestino de proteção: se os impostos fossem pagos à autoridade religiosa constituída, você podia contar com a proteção dos deuses; se fossem pagos a um rei ou imperador, podia contar com a proteção dos exércitos. Os impostos incidiam mais pesadamente sobre os camponeses — aqueles que efetivamente produziam os alimentos que mantinham a superestrutura funcionando — e assim segue hoje em dia. Em tese, tributar é diferente de alguém simplesmente invadir sua casa e tomar suas coisas. Isso se chama “roubo”, enquanto cobrar impostos implica que você está

recebendo algo em troca. O que constitui exatamente a chave das barganhas na maioria das eleições modernas. Quando surgiram pela primeira vez, os registros escritos deviam parecer alguma espécie de magia obscura para os iletrados: estranhos sinais que não eram capazes de entender podiam ser produzidos contra eles por advogados e senhores de terras, e, desse modo, tais objetos adquiriram uma fama diabólica. É daí que muito provavelmente provém o infernal livro contábil do Diabo. E, de fato, o Diabo dos primeiros tempos modernos apresenta mais do que uma leve semelhança com um coletor de impostos ou um senhor de terras punidor, que acena para todo lado com contratos infernais de alma-por-dinheiro, como o vilão dos melodramas teatrais que vem cobrar o aluguel atrasado e molesta a filha adolescente. Embora a Bíblia diga que “Os maus pegam emprestado e não pagam a dívida”, aos miseráveis da Terra devia parecer que o credor, e não o devedor, é que era o verdadeiro mau. Tudo isso vem responder à pergunta: o que é que Bob Cratchit, funcionário mal pago de Ebenezer Scrooge, tanto rabisca o dia inteiro em seu diminuto e obscuro cantinho no escritório? São as contas — as contas do que era devido a Scrooge, o avarento cruel e desalmado. Tal como o Arcanjo Gabriel estava para Deus, assim é Bob Cratchit para Scrooge: onde há dívida, tem de haver memória, e as memórias que realmente importam para Scrooge são as das dívidas a ele devidas — e a caneta emplumada de Bob é que as transforma em registros. Tradicionalmente era nas áreas pobres, onde as leis fiscais incidiam mais pesadamente, que destruir tais registros representava um sonho longamente acalentado, e enganar o senhorio, o coletor de impostos e o usurário era considerado não só um direito, mas uma virtude. Robin Hood, o bandoleiro fora da lei, é um herói; o Xerife de Nottingham, que recolhe o dinheiro, e o rei John, credor voraz que impõe taxas escorchantes, são vilões. Robert

Burns escreveu um poema curto intitulado “The Deil’s Awa’wi’ the Exciseman”, em que o Diabo passa a perna no encarregado de cobrar o imposto sobre o uísque de fabricação caseira dos aldeões. O Velho Nick ganha um caloroso “muito obrigado por isso”, já que é o caso de o pior credor do mundo passar a perna numa versão em miniatura de si mesmo — e os dois já vão tarde. O que dá mais culpa — ser devedor ou credor? “Nem quem pede emprestado nem quem empresta”, diz o tendencioso Polônio do Hamlet, de Shakespeare a seu filho impaciente, Laertes, “pois emprestar pode fazer você perder o amigo/E pegar emprestado compromete a criação”. Em outras palavras, se você empresta dinheiro a um amigo e ele não paga, acabará brigando com ele, e ele com você. E se você pega dinheiro emprestado, vai gastar o que não é seu e que não foi você que ganhou, em vez de trabalhar com seus próprios rendimentos. Belo conselho, Polônio! Estranho que tão poucas pessoas o sigam. Ou talvez estranho seja o fato de que absolutamente ninguém o siga, já que a todo momento nos tentam convencer de que fazer um empréstimo é na verdade algo louvável, porque é isso que faz girar a engrenagem do “sistema”, e que consumir muito mantém à tona algo grande, abstrato e balofo chamado “a economia”. Mas Polônio tinha razão: quando a balança tomador/concedente fica gravemente desequilibrada por muito tempo, o ressentimento se instala, cada qual se torna desprezível aos olhos do outro, e a dívida surge como uma balança em que os dois lados, devedor e credor, são igualmente culpados. “Deixar o chão como novo” é uma expressão popular que significa expiar os pecados e reparar tudo o que se fez de errado; mas a metáfora — como toda metáfora — se baseia em algo bem real: o chão de bares e botequins era onde se anotavam as contas dos clientes habituais. Um chão é sujo porque é esfregado com dívidas,

de um tipo ou de outro; mas ele é sujo igualmente pelo devedor e pelo credor. Vou concluir com duas epígrafes ambíguas extraídas do imenso repertório de ditos populares ingleses — uma para os devedores e uma para os credores. Para os devedores: “A morte paga todas as dívidas.” Para os credores: “Da vida nada se leva.” Nenhuma das duas é totalmente verdadeira — as dívidas podem perdurar após a morte, e “Da vida nada se leva” depende do que se entenda por nada — mas essa já é outra história. E é a ela, a essa outra história — ou, antes, à dívida como principal motor da própria história, que reportarei no próximo capítulo, que denominei de “A dívida como trama”.

[1] Perto dali se erguia uma alta serra, / Cujo medonho tope vomitava / Rolos de fumo e borbotões de fogo; / Luzente crusta revestia o resto, / Firme sinal de que no bojo tinha / Virgens metais que produziram o enxofre. / Eis dela em direção voa ligeira / Uma brigada forte; guarnecidos / De pás, de picaretas, de machados, / Tais o grosso do exército precedem / Os corpos de pioneiros, tendo a cargo / Campos fortificar, erguer redutos. /Tem por chefe a Mamon: de quantos anjos / Expele o Céu, o menos nobre é este, / Porque seus olhos sempre e a mente sua, / No chão atentos, mais prazer achavam / Dos Céus no pavimento todo de ouro / (Porém aos pés dos querubins pisado), / Do que no mais augusto dos mistérios / Pela visão beatífica provados. / (Por seu ensino e sugestão foi ele / O que primeiro habilitou os homens / A esquadrinharem da mãe Terra o centro. / E a lhe rasgarem ímpios as entranhas, / Por obterem tesouros que a virtude / Quisera que inda ali ocultos fossem.) / Em breve tantas mãos aberto haviam / Com ferida espaçosa a grande serra / E de ouro rudes massas extraído. / Ninguém admire que as riquezas nasçam / No Orco profundo; só podiam no Orco / Brotar venenos que fingissem néctar! Tradução de Antônio José de Lima Leitão, em www.ebooksbrasil.org. (N. da T.)

TRÊS

A DÍVIDA COMO TRAMA

Sem memória, não há dívida. Dito de outro modo: sem história, não há dívida. Uma história é uma sucessão de ações que ocorrem ao longo do tempo — uma desgraça depois da outra, como dizemos meio de brincadeira nas aulas de criação literária — e a dívida surge em decorrência de ações que têm lugar ao longo do tempo. Portanto, toda dívida implica um enredo; como caímos na dívida, o que fizemos, dissemos e pensamos enquanto estávamos endividados e, então — dependendo do final, se feliz ou triste —, como saímos ou, ao contrário, como acabamos tragados mais e mais por ela até sumir de vista. As metáforas ocultas são reveladoras: “cair” na dívida, como numa prisão, num atoleiro, num poço, ou talvez numa cama; “sair” dela, como quem emerge, vindo de dentro de um buraco. Quando somos “tragados” pela dívida, a imagem possivelmente é a de um navio indo a pique, com o mar e as ondas a nos cobrir inexoravelmente enquanto nos debatemos e vamos sendo asfixiados. Tudo isso parece dramático, com muita atividade física: pular, saltar ou passar por cima, debater-se, afogar-se. Metaforicamente, o enredo da dívida difere bastante da dura realidade, na qual o devedor se senta a uma mesa jogando com números numa tela ou revirando contas vencidas na esperança de que desapareçam, ou fica a perambular pela sala imaginando maneiras de se livrar do melaço fiscal. Em nossas cabeças — assim como refletida em nosso linguajar —, a dívida é um não lugar mental ou espiritual, como o Inferno na descrição do Mefistófeles, de Christopher Marlowe, quando Fausto pergunta por que ele não está no Inferno e, sim, ali, na mesma sala em que ele, Fausto, está. “Porque o Inferno é aqui, eu não estou fora dele”, responde

Mefistófeles, que o carrega consigo para onde vai como um clima particular; ele está no Inferno e o Inferno está nele. Trocando “inferno” por “dívida”, podemos perceber que, da forma como nos referimos a ela, a dívida pertence à mesma espécie de não lugar. “Porque a Dívida é aqui, e eu não estou fora dela”, poderia igualmente proclamar o devedor acossado. O que faz com que a ideia geral de dívida — sobretudo as de grande porte e impossíveis de saldar — se mostre admirável, nobre e interessante, e, não, algo meramente repulsivo, conferindo-lhe um ar trágico maior-do-que-a-vida. Será que alguém cai em dívida porque, assim como correr a toda numa motocicleta, isso injeta adrenalina em sua vida que seria totalmente insossa? Quando o oficial de justiça bate à sua porta, as luzes se apagam porque você não pagou a conta da luz e o banco ameaça executar a hipoteca, pelo menos você não pode se queixar de tédio. Dizem os cientistas que os ratos, quando privados de brinquedos e de companhia, preferirão tomar choques elétricos dolorosos a suportar o tédio prolongado. Parece que até mesmo essa autotortura de choque elétrico é capaz de proporcionar algum prazer: a expectativa da dor é por si só excitante, e ainda há toda a emoção que costuma acompanhar os comportamentos de risco. O mais importante, contudo, é que os ratos farão praticamente qualquer coisa para produzir acontecimentos para si mesmos num tempo-espaço que, de outra forma, seria totalmente destituído deles. O mesmo se dá com as pessoas: não só gostamos das nossas tramas como temos necessidade delas e, em certa medida, nós somos as nossas tramas. Uma história-da-minha-vida sem uma história não é vida. A dívida pode vir a ser uma dessas histórias-da-minhavida. O best-seller de análise transacional de Eric Berne, Jogos da vida, de 1964, relaciona cinco “jogos da vida” — padrões comportamentais que podem preencher toda a

expectativa de vida de um indivíduo, muitas vezes destrutivamente, mas com benefícios ou recompensas psicológicas ocultas que fazem o jogo prosseguir. Não é preciso dizer que cada jogo requer mais de um jogador — alguns são cúmplices conscientes, outros ingênuos involuntários. “Alcoólico”, “Agora Eu Te Peguei, Seu Filho da Puta”, “Me Bate” e “Olha o Que Você Me Fez Fazer” são os títulos que Berne dá a quatro deles. O quinto se chama “Devedor”. Diz Berne: “O ‘Devedor’ é mais que um jogo. Nos Estados Unidos ele tende a virar um roteiro, um plano para uma vida inteira, tal como em certas florestas da África e da Nova Guiné, onde os parentes de um rapaz lhe compram uma noiva a um preço altíssimo, deixando-o em dívida para com eles durante os anos vindouros.” Na América do Norte, continua Berne, “a despesa maior não é a noiva, mas a casa, e a dívida imensa é a hipoteca; a função dos parentes é assumida pelo banco. Amortizar a hipoteca dá ao indivíduo como que uma finalidade para a própria vida”. De fato, posso me lembrar de um período da minha infância — teria sido na década de 1940? — em que era considerado fofo pendurar na porta do banheiro um quadrinho com a seguinte frase bordada: Deus Abençoe Nossa Casa Hipotecada. Naquela época, era costume as pessoas darem festas de queima de hipoteca, em que literalmente ateavam fogo, na churrasqueira ou na lareira, nos documentos da hipoteca depois de tê-la quitado. Faço aqui uma pausa para acrescentar que o termo inglês para hipoteca, mortgage, vem do francês “mort” (morto) e “gage” (compromisso, pacto) — ou seja, “compromisso morto”, como nos romances medievais, quando um cavaleiro joga a luva no chão em sinal de desafio a outro cavaleiro para um duelo, a luva ou a prova funcionando, no caso, como o compromisso de que o sujeito de fato comparecerá na hora certa para ter a cabeça golpeada, e a aceitação do desafio consistindo em

compromisso recíproco. O que pode levar vocês a pensar duas vezes em alianças de noivado, uma vez que elas também representam uma prova ou um compromisso: com que você está realmente se comprometendo quando dá uma aliança a seu único e verdadeiro amor? (Ou, nos dias de hoje, o único de uma série de amores verdadeiros. Como disse certa vez uma amiga minha numa festa de casamento: “Ele vai dar um ótimo primeiro marido.”) Mas voltemos às hipotecas. Numa hipoteca, a casa é o bem penhorado que é dado como prova —, mas o compromisso se torna “morto” uma vez honrada a hipoteca. Eu gosto da palavra “honrar” — é o que se costuma dizer quando um preso sai da cadeia após ter cumprido sua pena. Assim, “quitar a hipoteca” é o que acontece quando as pessoas jogam direito o jogo da vida “Devedor”. Mas e se não jogarem direito? Não jogar direito significa, como qualquer criança sabe, trapacear. Mas nem sempre é verdade que quem trapaceia nunca se dá bem, e as crianças também sabem disso: às vezes prosperam, no playground ou em algum outro lugar. Existe, assim, uma forma incorreta e trapaceira de “Devedor”. Berne a chama de “Arrisque e Ganhe”, e o título já diz tudo. Como nos demais jogos de trapaça do seu livro, o jogador incorreto sempre ganha alguma coisa, não importa o que aconteça. Basicamente, o devedor adquire uma porção de coisas a crédito e depois evita pagar. Como ocorre em outros jogos espertinhos de Berne, “Arrisque e Ganhe” precisa de no mínimo dois jogadores, e a pessoa que joga como oponente do devedor é evidentemente o credor. Se o credor se frustra e desiste, sem conseguir receber o que lhe é devido, o devedor obtém alguma coisa em troca de nada. Se o credor insiste nas tentativas de receber, o jogo se torna uma caçada emocionante. Se o credor se aborrece e recorre a medidas extremas — ações na justiça e coisas do tipo, o devedor sente uma raiva justificada porque o credor está sendo mesquinho e

ganancioso. O devedor pode, então, se colocar na posição de vítima e pintar o credor como uma pessoa de má índole que, graças a sua perversidade, não merece ser pago. A compra de bens a crédito, a inadimplência, a emoção da caçada, a ira do credor e a vitimização do devedor são coisas que proporcionam recompensas em choques químicos cerebrais, e cada uma desempenha ainda a função de fornecer um elemento-chave no enredo história-daminha-vida do jogo do “Devedor”. Como diz Vladimir, o vagabundo arruinado da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, a respeito de uma cena desagradável que acabou de presenciar: serve para passar o tempo. Seu amigo Estragão responde que o tempo passaria de qualquer jeito. Sim, diz Vladimir, mas não tão rápido. Seja o que for a dívida, ela pode também — ao que parece — ter um valor de entretenimento, inclusive para o próprio devedor. Como os ratos e seus choques elétricos autoinduzidos, achamos melhor ter algo penoso ocorrendo conosco do que não ter absolutamente nada acontecendo. A dívida pode valer como um entretenimento de outro tipo quando se torna um motivo, não num enredo da vida real, mas da ficção. Esse tipo de trama de dívida se desdobra em mudanças ao longo do tempo, nas condições sociais, nas relações de classe, nos meios financeiros e na moda literária; mas as dívidas em si há muito tempo têm se feito presentes nas histórias. Gostaria de começar com um personagem bastante familiar — tão familiar que passou da ficção, onde é um astro, para outro tipo de estrelato: o da publicidade na televisão e em outdoors. Esse personagem é Ebenezer Scrooge, de Um conto de Natal, de Charles Dickens. Mesmo que não tenham lido o livro, assistido à peça ou aos vários filmes produzidos sobre Scrooge, provavelmente vocês o reconheceriam se o encontrassem na rua. “Dê como Papai Noel, economize como Scrooge”, diz o anúncio, e logo um

vovôzinho simpático e sorridente vem nos propor alguma grande pechincha. Mas o anúncio acaba misturando dois Scrooges: o Scrooge regenerado, que marca o advento da graça e a salvação da própria alma ao se transformar num tremendo esbanjador, e o Scrooge do início do livro — um avarento tão radical que é incapaz de gastar um centavo do seu tesouro em algo necessário a si mesmo — nada, de boa comida a roupas de frio. O estilo de vida de Scrooge, abstêmio, comedor de mingau, pode ter sido saudado como um sinal misericordioso de retorno à época dos primeiros santos eremitas ascéticos, que só comiam pão e só bebiam água, viviam em grutas e diziam Bah! Enganação! a quem deles se aproximasse. Mas este não é o caso do velho malvado Ebenezer Scrooge, cujo primeiro nome rima com “squeezer” ou “geezer” — respectivamente, “espremedor” e “velhote”— , e o sobrenome é um misto de “screw” [parafuso] com “gouge” [arrancar], e cujo comportamento o autor decididamente desaprova: Oh! Mas era um mão-fechada, esse tal de Scrooge!, velho pecador, todo encarquilhado, deformado, ganancioso, imprestável, sovina, interesseiro! Rijo e afiado como uma pedra lascada, da qual nenhum aço jamais conseguiu extrair um fogo generoso; escondido, fechado em si mesmo e solitário feito uma ostra. O frio interior congelou seus antigos traços, esfriou-lhe o nariz, murchou as bochechas, enrijeceu as passadas; avermelhou seus olhos, azulou seus lábios delgados; e se fez ouvir bem alto em sua voz estridente... Nenhum calor era capaz de aquecê-lo, nenhum tempo gelado o fazia tremer. Nenhum vento soprando era mais cortante que ele, nenhuma neve caindo era mais determinada em seu propósito, nenhuma chuva que açoitasse se abria menos às súplicas... Até os cães-guias vieram farejá-lo; mas, quando o viram chegando, trataram de

empurrar seus donos porta adentro; e, depois, abanaram os rabos como se dissessem: “É melhor não ter olho nenhum do que um olho mau desses, senhor das trevas!” Esse Scrooge, que — conscientemente ou não — fez um pacto com o Diabo, nos é apresentado mais de uma vez. Não só retratado com o olho mau, essa característica tradicional das bruxas vendidas-ao-Diabo, como também acusado de adorar um ídolo de ouro; e quando, durante sua noite de visões, ele avança rumo ao futuro, o único comentário sobre seu antigo local de trabalho que é capaz de entreouvir é “... o Coisa-Ruim finalmente veio pegar o que era dele, hein?”. Coisa-Ruim é, claro, o Diabo, e se o próprio Scrooge não está totalmente ciente do pacto que fez, seu autor com toda certeza está. Mas é um pacto esquisito. O Diabo fica com Scrooge, mas Scrooge não ganha outra coisa a não ser dinheiro, e nada faz com ele exceto sentar em cima. Scrooge tem alguns ancestrais literários bem interessantes. Os que pactuam com o Diabo não começaram como avarentos, muito pelo contrário. O Doutor Fausto, de Christopher Marlowe, do fim do século XVI, vende corpo e alma a Mefistófeles por meio de um documento assinado a sangue, com resgate para daí a vinte e quatro anos, mas não se vende barato. Apresenta uma extensíssima lista de desejos, que inclui praticamente tudo o que hoje se pode encontrar nas mais sofisticadas revistas masculinas. Fausto quer viajar; quer ser muito, muito rico; quer conhecimento; quer poder; quer se vingar dos inimigos; e quer fazer sexo com uma cópia perfeita de Helena de Troia. Helena de Troia não é conhecida dessa forma nas revistas masculinas — recebe outros nomes —, mas é a mesma coisa; uma mulher tão maravilhosa que não existe, ou, pior ainda, pode ser um demônio disfarçado. Mas é muito gostosa, como eles costumam dizer.

O Doutor Fausto, de Marlowe, não é mesquinho nem ganancioso ou interesseiro. Não quer dinheiro só para ter dinheiro — ele quer empregá-lo em seus outros desejos. Faz amigos que curtem sua companhia, é um grande esbanjador que distribui sua riqueza por toda parte, gosta de comer e de beber, de se divertir em festas e pregando peças, e usa seu poder para salvar da morte pelo menos um ser humano. Na verdade, ele age como Scrooge, após este ter se regenerado — o Scrooge que compra perus imensos, que ri sem parar, que brinca com seu pobre empregado, Bob Cratchit, que vai à festa de Natal do sobrinho e se diverte com as brincadeiras provincianas, e que salva o filho paralítico de Bob, Tiny Tim, o que nos leva a especular se por acaso Scrooge não teria herdado algum gene adormecido da boa-vida de seu ancestral distante, Doutor Fausto — um gene que só estava esperando ser epigeneticamente ativado. (Scrooge, no entanto, não faz sexo com uma pretensa Helena de Troia. Está envelhecido demais para isso. Havendo rejeitado sua noiva porque ela não tinha dinheiro o bastante e em seguida se dedicado apenas e tão somente aos pecados da contabilidade, essa parte de sua vida se alongou demais. Tudo o que deseja é um momento para devorar com os olhos a bela empregadinha da casa do sobrinho — “Uma menina linda! Muito linda”, diz ele, à la Hugh Hefner; porém, mesmo esse pequeno prazer do olhar se faz de modo bonachão e avuncular: nada de beliscar o bumbum ou as bochechas da garota.) Será que Dickens estava conscientemente descrevendo Scrooge como um Fausto ao contrário? Ele provavelmente conhecia a história de Fausto segundo a pantomima inglesa — Dickens era um fã ardoroso da pantomima, e Fausto ainda era muito popular nos palcos antes de Um conto de Natal ter sido escrito. Existem tantas coincidências que é difícil evitar as comparações: Fausto anseia voar pelos ares e visitar tempos e lugares distantes, Scrooge tem medo, e

ambos o fazem. Ambos têm empregados — Wagner e Bob Cratchit —, o primeiro bem tratado por Fausto, o outro maltratado por Scrooge. Os dois frequentam, invisíveis, festas animadas, nas quais Fausto se comporta pessimamente, e Scrooge, muito bem. Marley é a figura de Mefistófeles de Scrooge, que carrega um Inferno próprio em torno de si, mas que vem para salvar a alma de Scrooge, não para comprá-la; os três fantasmas do Natal, passado, presente e futuro, fazem o papel de espíritos de seu criado, embora se mostrem mais angelicais do que demoníacos; e assim por diante. Tudo o que Fausto faz, Scrooge faz ao contrário. Estou segura de que alguém deve ter pesquisado esse tema mais profundamente e, em caso afirmativo, ficaria feliz de ser informada dos resultados. O próximo Fausto de importância depois do de Marlowe foi, sem dúvida, o de Goethe, que era igualmente pródigo em matéria de desejos; é essa versão que dá origem à ópera de Gounod, que destaca a sedução da infeliz Marguerite via algumas poucas joias reluzentes. O Fausto, de Goethe, se redime no fim, ao contrário do de Marlowe; mas nisso Goethe não estava inventando nada de novo, já que existem histórias anteriores nas quais quem pactua com o Diabo encontra a redenção. No entanto, Scrooge não descende diretamente do ramo do esbanjamento, da boavida e da busca pelo conhecimento da família do pactocom-o-Diabo. O avô ou o bisavô avarento de Scrooge deve ser procurado em um autor americano, Washington Irving. Sabe-se que Dickens declarou ter um fraco por Washington Irving, um escritor da geração anterior muito conhecido na época de Dickens. Irving é especialmente lembrado por seu conto de terror intitulado “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”; mas ele é autor de inúmeras outras histórias, que Dickens conhecia muito bem. Uma delas se chama “O Diabo e Tom Walker”. Nessa versão do pacto faustiano, quem faz o pacto não demonstra nem um pouco daquele gosto pelo luxo e pela ostentação que caracterizava

os primeiros Faustos como seres mundanos e, consequentemente, malditos. Pelo contrário, Tom é a criatura mais avarenta que se possa imaginar. Ele e sua mulher, igualmente mão-fechada, vivem num pântano onde um tesouro pirata foi escondido e, certo dia, Tom se depara com um negro — não, um homem negro, como Irving enfatiza, mas um homem enegrecido, pois sua negritude é de fuligem. Esta criatura é rapidamente identificada por Tom: “Desde que os peles-vermelhas foram exterminados por vocês, brancos selvagens”, diz o homem enegrecido, “eu me divirto à frente de todas as perseguições a quacres e anabatistas; eu sou o grande patrono e portavoz dos traficantes de escravos, e o grande senhor das bruxas de Salem.” “Disso tudo se conclui que, se não me engano”, disse Tom, em voz firme, “você é aquele comumente chamado de Coisa-Ruim.” E de fato os dois acabam se entendendo: o Coisa-Ruim vai mostrar a Tom onde está escondido o ouro dos piratas em troca do pagamento costumeiro de corpo por alma, mas insiste em que Tom deve investir o dinheiro num negócio a ser escolhido pelo Diabo. Ele quer que Tom entre no mercado de escravos, mas isso é terrível demais até para o próprio Tom, e assim resolvem emprestar dinheiro a juros. Tom Walker se estabeleceu como usurário em Boston. Sua porta logo ficou apinhada de clientes. Necessitados e aventureiros; apostadores, corretores da terra prometida; comerciantes perdulários; o varejista com crédito cancelado; em suma, todo mundo que queria levantar algum dinheiro por meios e sacrifícios desesperados corria para Tom Walker. Assim, Tom se tornou o amigo universal dos carentes, e agia como um “amigo em necessidade”; ou seja,

sempre exigia pagamento em dia e seguro. A rigidez de suas condições era proporcional à angústia do cliente. Foi acumulando fianças e hipotecas; apertando os clientes cada vez mais; e deste modo os afastava meticulosamente, seco como uma esponja, de sua porta. Assim ele juntou dinheiro rapidamente; tornou-se um homem rico e poderoso, e enaltecia seu chapéu de três bicos pela mudança. Mandou construir, como esperado, uma casa enorme, por pura ostentação; mas, para economizar, deixou a maior parte inacabada e sem mobília. Chegou a comprar uma carruagem no auge de sua glória vã, mas praticamente matou de fome os cavalos que a puxavam; e as rodas que rangiam e rinchavam no eixo por falta de lubrificação pareciam as almas dos pobres devedores que ele extorquia. Este é o Scrooge padrão: um enorme volume de dinheiro, esperteza para fechar negócios, arrocho sem piedade aos necessitados, ostentação vazia aliada a avareza absoluta: Scrooge, como Tom, mora numa casa imensa em que faltam móveis. Mas, ao contrário do pré-fantasma Scrooge, Tom sabe que sua alma está em perigo; passa a frequentar a igreja e a andar com a Bíblia para lá e para cá na tentativa de se proteger da cobrança do Diabo. Mas fracassa — convoca o Diabo com uma blasfêmia impensada, é apanhado sem a Bíblia e, levado pelo homem enegrecido, nunca mais é visto. Tão logo isso acontece, toda sua riqueza desaparece: suas aplicações e hipotecas “reduzem-se a cinzas”, seu ouro e sua prata viram carvão, os cavalos que lhe puxavam a carruagem mambembe se transformam em esqueletos, e sua casa enorme pega fogo de alto a baixo. Washington Irving aprendeu muito com o folclore: em contos sobre a terra das Fadas, o ouro que elas ganham se transforma em pedaços de carvão mal o sol se ergue — o que nos leva a pensar em quantos desses contos são fruto de experiências

que as pessoas tiveram quando sob a influência de substâncias alucinógenas. A riqueza de espécie equivocada, ficamos sabendo, é semelhante à ilusão da embriaguez, e desaparece seja com (a) a morte, seja com (b) o despertar pela manhã numa ressaca daquelas. A riqueza de Scrooge é desse tipo. O terceiro espírito a visitá-lo — o Fantasma do Natal Ainda por Vir — lhe dá uma mostra do que será sua própria morte caso persista no rumo atual. Por exemplo, há um covil de ladrões onde, numa paródia genial do escritório de contabilidade de Scrooge, seus antigos criados vendem seus bens a um receptador que, como era de se esperar, vai anotando a giz as quantias devidas, obedecendo à melhor prática contábil. Os bens são “alguns selos, um estojo de lápis, um par de luvas com botões e um broche de pouco valor”; e ainda a camisa que Scrooge estava vestindo — removida do próprio cadáver —, seus cobertores e suas roupas de cama. Eis o lote. Alguém deve ter herdado a imensa riqueza de Scrooge, mas isso não ficamos sabendo na história. Em vez disso, somos informados do gato unhando a porta e dos ratos roendo a casa toda, e do corpo inanimado de Scrooge em cima da cama, “saqueado, despojado, desassistido, desamparado, sem ninguém para chorar por ele (...)”. É uma imagem de pobreza extrema, material e espiritual. Mas, como é sabido, Scrooge se salva no fim da história, enquanto o Doutor Fausto, uma criatura mais generosa e digna de consideração, tem o corpo retalhado e a alma carregada para o Inferno. Por que será que os sinais da salvação de Scrooge — a compra do peru e outros mais — assumem a mesma forma dos sinais da maldição de Fausto? Talvez porque, quando Marlowe escrevia, o conjunto das virtudes cristãs ideais que predominaram durante os muitos séculos precedentes — o desprezo à riqueza, o ascetismo, a pobreza voluntária, o dar as costas ao mundo — ainda se achava próximo demais no tempo para ser reconhecido como modelo de santidade. Naquele tempo, a versão

religiosa oficial pregava que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que rico entrar no reino dos Céus, e a imagem do rico penando no Inferno enquanto o pobre se esbaldava no Paraíso ainda era demasiadamente presente nos sermões, ainda que apenas para fazer os ricos regurgitarem em favor da Igreja. Mas entre Marlowe e Dickens se deu o triunfo total da Reforma Protestante na Inglaterra — movimento que começara bem antes, ganhara forma inglesa com a ruptura entre Henrique VIII e o papa, e a subsequente dissolução dos monastérios, e que, na época de Marlowe, era encarnado na figura de Elizabeth I, como chefe da Igreja anglicana. Os protestantes continuaram a acumular prestígio nos dois séculos que se seguiram e, por volta do século XIX, apesar de a aristocracia latifundiária inglesa ainda conservar bastante poder, os comerciantes e industriais já estavam tomando seu lugar como grandes plutocratas. Como a riqueza era vista? Como um sinal da bênção de Deus, como tinha sido no tempo de Jó, ou, por outro lado, como uma doce perdição (precious bane) — um sinal de mundanismo e corrupção, como no tempo dos ascéticos e dos eremitas? Este debate vinha tendo lugar no seio e em meio de diferentes correntes da fé cristã havia bastante tempo. O camelo se espremendo através do buraco da agulha era algo inviável na Terra, argumentavam uns, mas, como no Paraíso tudo era possível, por que não seria possível ter ao mesmo tempo uma conta bancária polpuda e um assento no banquete divino post-mortem? “Pelos frutos, é possível conhecê-los”, diz Jesus, que se referia claramente aos frutos espirituais; contudo, tais frutos, como suspeitavam alguns apologistas, seriam também materiais, e ser rico era visto por eles como sinal da bênção e da graça divinas — posição que não deixa de ter seus adeptos em determinados círculos fundamentalistas da América de hoje em dia.

A outra coisa que ocorreu durante a Reforma protestante foi que a usura — que originalmente significava imposição de juros nos empréstimos — já não era formalmente proibida para os cristãos. Banqueiros cristãos haviam anteriormente driblado a proibição dando outros nomes ao que praticavam — como hoje fazem os banqueiros muçulmanos —, mas agora a caixa se destampava totalmente. Após Henrique VIII, a imposição de juros foi legalizada para os cristãos da Inglaterra, e em seguida para os cristãos de outras partes do mundo; e muitos deles invadiram, com enorme animação, este mercado. Foram feitas tentativas de restringir os valores que poderiam ser cobrados, as quais não surtiram grande efeito, e continuam sem surtir — resultando para nós no surgimento de agiotas e de taxas de juros diárias sobre o uso de cartões de crédito. No século XIX, o capitalismo explodiu no Ocidente, provocando um salve-se-quem-puder financeiro. Pouca gente compreendia exatamente como operava o capitalismo. Parecia um grande mistério — como é que certas pessoas podiam ficar tão ricas sem fazer nada do que se costumava considerar “trabalho” — e os supersticiosos eram capazes de acreditar piamente que alguma outra mão que não a humana havia enfiado um dedo infernal no bolo para ajudar o capitalista próspero, mas seguramente iníquo, a se apoderar da cereja. Sem quaisquer mecanismos reguladores, sucediam-se com frequência ciclos de booms e quebras. Quem tinha condições de tirar proveito dos altos e baixos fazia fortuna — foi nos séculos depois de abolida a proibição da cobrança de juros que a usura mudou: de cobrança de juros simples passou a juros exorbitantes — e Tom Walker e Ebenezer Scrooge, que viviam, ambos, de emprestar dinheiro, estavam entre esses aproveitadores. A recente Igreja cristã fundamentalista — sobretudo no sul dos Estados Unidos — identifica amplamente o pecado com os pecados da carne — leia-se pecados sexuais —,

embora beber demais e usar drogas figurem igualmente entre eles. A Igreja católica também vem confundindo sexo com pecado há bastante tempo. Seja qual for o propósito, o resultado é que a atenção tem se voltado dos pecados do dinheiro para os de natureza sexual. Mas nem Washington Irving nem Charles Dickens se referem a eles. Tanto Tom Walker quanto Ebenezer Scrooge são sexualmente abstêmios: seus pecados têm a ver inteiramente com a adoração a Mamon, aquele do bezerro de ouro. O fantasma do ex-parceiro de negócios de Scrooge, Marley, exibindo os princípios da pesagem meritória de corações dos antigos egípcios, e também do cristianismo medieval, deve pagar depois da morte pelos pecados de Marley durante a vida. Nenhum desses pecados envolveu um flerte com Helena de Troia; todos vieram das práticas comerciais implacáveis que caracterizavam tanto Scrooge como o capitalismo desvairado do século XIX. Marley suporta uma longa corrente feita de “caixas para guardar dinheiro, chaves, cadeados, livros contábeis, escrituras e pesados porta-níqueis trabalhados em aço”. Ele está preso, segundo conta a Scrooge, pela corrente que forjou em vida — mais um exemplo das imagens de servidão e escravatura muito frequentemente associadas à dívida, com a diferença de que, agora, a corrente é usada pelo credor. Esmerandose em triturar, as práticas de usura constituem pecado tanto em termos materiais quanto espirituais, pois requerem uma fria indiferença em relação às carências e sofrimentos de outros e aprisionam o pecador dentro de si mesmo. Scrooge é libertado da própria corrente no fim do livro, quando, em vez de sentar sobre sua montanha de dinheiro, passa a gastá-la. Na verdade, ele a gasta com os outros, revelando dessa forma aquela parte mais bem guardada do corpo de Dickens, um coração aberto; mas o principal é que ele de fato gasta o dinheiro. A coisa mais pura que ele poderia fazer nos primeiros tempos seria distribuir toda a

fortuna, vestir trajes grosseiros e assumir a vasilha de mendigo. Mas Dickens não tem nada contra o fato de Scrooge ser rico: na realidade, existem muito poucos homens ricos interessantes em sua obra, a começar pelo senhor Pickwick. A questão não está em se ter dinheiro; nem mesmo na forma como ele é obtido: o Scrooge pósfantasma, por exemplo, não desiste dos negócios, embora nós não fiquemos sabendo se eles continuaram sendo em parte negócios de empréstimo de dinheiro. Não, o que realmente conta é o que fazemos com a nossa riqueza. O maior pecado de Scrooge foi congelar seu dinheiro; pois o dinheiro, como reconhece qualquer um que estude o assunto, só é útil quando movimentado, já que seu valor deriva inteiramente daquilo em que pode se transformar. Assim, os Scrooges deste mundo, que se recusam a transformar seu dinheiro em alguma outra coisa, estão entravando as ações: o dinheiro circulante é assim chamado porque deve circular. O final feliz de Scrooge está portanto inteiramente em sintonia com os valores mais profundos do capitalismo. Seu modelo de vida é digno de Andrew Carnegie, empresário que ganhou dinheiro espremendo e apertando os outros e que, mais tarde, foi se dedicar à filantropia. Nós gostamos dele em parte porque, a se dar crédito às leis de satisfação dos desejos, que sempre envolvem um almoço grátis ou um cartão para-escapar-dacadeia, Carnegie encarna os dois lados da equação — a ganância acumuladora e o prazer esbanjador — e se sai muito bem. Teria Dickens consciência do significado do primeiro nome de Scrooge? Ebenezer quer dizer “rocha que ajuda”, o que aponta tanto para o lado bom quanto para o lado mau de Scrooge: o Scrooge Mau, frio, duro, inflexível, e o Scrooge Bom, prestativo, que surge. O Scrooge mau faz o que nós, em nossos momentos mais egoístas, preferiríamos fazer — ficar com tudo para nós e desdenhar dos mendigos. O Scrooge bom faz o que nós sinceramente esperaríamos

fazer caso tivéssemos bastante dinheiro: repartir a riqueza e salvar todos os Tiny Tim deste mundo. Mas não temos dinheiro bastante. Ou é o que vivemos dizendo para nós mesmos. E é por isso que mentimos para o sujeito que bate à nossa porta pedindo uma contribuição para alguma instituição de caridade, dizendo “Já dei no escritório”. Queremos tudo dos dois modos. Tal como Scrooge. Scrooge é eminentemente uma figura do século XIX, e é no século XIX que a dívida como trama efetivamente aflora das páginas da ficção. Quando eu era jovem e ingênua, achava que o romance do século XIX era orientado pelo amor; mas hoje, nos meus anos maduros mais complexos, percebo que também é orientado pelo dinheiro, que nele desempenha de fato um papel mais central do que o amor, malgrado as virtudes deste sejam idealisticamente propagadas com maior fervor. O Heathcliff, de O morro dos ventos uivantes, ama Cathy de paixão e odeia o rival, Linton, mas a arma com que consegue demonstrar seu amor e seu ódio é o dinheiro, e o parafuso com que arrocha é a dívida: ele se torna proprietário da mansão dos Ventos Uivantes ao deixar seu verdadeiro dono em dívida para com ele. E assim é, de romance em romance. A maior vingança do século XIX não está em ver o sangue rubro do inimigo escorrendo pelo chão, e, sim, a tinta vermelha prevalecendo nos balanços financeiros. Os psicólogos do século XX se inspiraram bastante não apenas em mitos antigos, mas também em artistas do século XIX. Para Freud, “os poetas” — que ele não via apenas como poetas, mas como criadores de narrativas de todo tipo —, “em seu conhecimento da mente, estão muito à frente de nós, gente comum”. O próprio Freud devia muito aos dramaturgos de língua grega e às sagas bíblicas, mas também a Ibsen; Jung se encharcava nos contos populares alemães, mas também em dramas-da-alma como os balés

Giselle e Lago dos Cisnes. Para preocupações menos etéreas ou subterrâneas — como a dinâmica do poder adleriana, e o que representa para a sociedade o-quealguém-deve-a-alguém — o mais indicado seria consultar uma boa seleção de romances quase realistas do século XIX. Por exemplo, a mais perfeita ilustração da versão tortuosa do jogo da vida “Devedor”, de Eric Berne — chamada “Arrisque e Ganhe” —, pode ser encontrada na obra mais conhecida de Thackeray, seu romance de 1848, A feira das vaidades. Nele somos testemunhas dos negócios escusos da família falida da pobre Amélia Sedley, mas também vemos a caçadora de dotes Becky Sharp, uma aventureira brilhante, mas socialmente inferior, subir de status ao se casar com o jovem aristocrata Rawdon Crawley, elegante, mas totalmente imprestável. Tendo desafiado a família casando com Becky, e sendo por isso alijado dos investimentos familiares, Crawley ganha a vida no baralho e na sinuca. No capítulo intitulado “Como Viver Bem com Nada por Ano”, Thackeray dá informações detalhadas sobre os arranjos financeiros dos Crawley. Basicamente, Becky e Rawdon seduzem os homens de negócios com seus modos refinados e sua posição social e, como resultado, estes lhes vendem tudo a crédito — coisas pelas quais nunca são ressarcidos. Becky, particularmente, é uma jogadora clássica do “Arrisque e Ganhe”. Thackeray comenta: Pergunto-me, como muitas famílias se deixam enganar e arruinar por grandes farsantes ao estilo Crawley? — como tantos fidalgos roubam modestos fornecedores, desviam quantias insignificantes de suas comissões e trapaceiam por uns míseros centavos? Quando lemos que algum nobre fidalgo partiu para o Continente, ou que um outro teve a casa executada — e que outro ainda deve seis ou sete milhões —, o malogro parece

glorioso, e respeitamos a vítima na imensidão de sua ruína. Mas quem tem pena de um pobre barbeiro que não consegue receber seu pagamento por cuidar das cabeças dos criados; ou de um pobre carpinteiro que faliu construindo caramanchões e peças ornamentais para o déjeuner de milady? Ou o pobre-diabo do alfaiate do administrador, que comprometeu tudo o que tinha, e mais ainda, para aprontar as fatiotas que milord lhe deu a honra de confeccionar? Quando a casa desaba, esses desgraçados passam despercebidos: como rezam as antigas lendas, antes de ir para o inferno em pessoa, o homem manda muitas outras almas para lá. Em economia, a teoria do trickle-down (gotejamento) parte do princípio de que é bom que os ricos se tornem cada vez mais ricos porque um pouco dessa riqueza respingará, graças à sua prodigalidade nos gastos, nos patamares econômicos inferiores. Observe-se que a metáfora não é a da cachoeira caudalosa, mas a de uma torneira pingando: mesmo os defensores mais otimistas desta concepção não se referem a um fluxo muito forte, como revela sua linguagem. Mas tudo na imaginação humana e consequentemente na vida dos homens tem um lado positivo e um lado negativo, e se a teoria econômica do gotejamento da riqueza é o positivo, o negativo é o pinga-pinga da dívida. As dívidas que gotejam dos grandes devedores podem não ser tão grandes em si, mas o são para aqueles sobre os quais respingam. Pobre do sr. Raggles, de quem os Crawley alugaram a casa sem jamais pagar por ela: fica total e absolutamente arruinado quando o lar dos Crawley desmorona, e seus membros dão no pé. O romance A feira das vaidades deve seu título à cidade de mesmo nome de O peregrino, de John Bunyan, onde se verifica não só “a vaidade das vaidades, tudo é vaidade” do Livro dos Provérbios, mas sobretudo o reinado dos bens terrenos, tanto materiais quanto espirituais, bem assim um estado de espírito em que absolutamente qualquer coisa

está à venda. A lista de Bunyan do que se acha em oferta na Feira das Vaidades inclui “casas, terras, negócios, lugares, honras, preferências, títulos, países, reinos, desejos, prazeres e delícias de todo tipo, como prostitutas, mulheres vulgares, esposas, maridos, filhos, patrões, criados, vidas, sangue, corpos, almas, prata, ouro, pérolas, pedras preciosas e tudo mais”. Tudo mais, mesmo? Qualquer sociedade humana impõe um limite àquilo que pode ser comprado e vendido, mas na Feira das Vaidades de Bunyan não há limites. Não obstante, todos os que viajam têm que passar por ali, diz Bunyan. É um lugar sinistro, cheio de “armadilhas, trapaças, jogos, brincadeiras, idiotas, macacos, bufões e malandros”, bem como “ladrões, assassinos, adultérios, falsidades e o que tem cor vermelho-sangue”. Na realidade, trata-se de um subúrbio do Inferno, e a jornada pela cidade termina com uma terrível sessão de tortura e esquartejamento. E uma visão chocante — choque causado pelo velho mundo da fé atacando o novo mundo em que o comércio se desenvolve até virar não só rei, mas monarca absoluto. Quem é fiel à velha ordem — na qual havia virtudes e lealdades, como fé, esperança e caridade, que estavam acima do dinheiro — deve ter sentido, com grande desespero, que Mamon estava prestes a triunfar, e a sinistra feira de Bunyan dá uma mostra dessa sensação. O novo mundo do dinheiro, a seus olhos, é a Cidade da Destruição, e o melhor a fazer é tratar de fugir para bem longe dela o mais rápido possível. Por volta da metade do século XIX, entretanto, essa transição tinha ficado no passado distante. O que havia, então, era muita piedade acumulada e forte presença do grundismo[2] — um piano, por exemplo, não tinha pernas, tinha membros, porque “pernas” era uma palavra por demais sugestiva; nenhuma mocinha de boa formação se sentava numa cadeira que um rapaz acabara de desocupar, por medo de que o calor de um corpo sedutor pudesse

persistir na almofada —, mas um devoto renomado que soubesse o que era bom para ele se mantinha longe de quaisquer denúncias escandalosas sobre a perversão dos ricos. O tom narrativo de Thackeray não é o mesmo direto, urgente, indignado e — há quem o considere — ingenuamente seguro de Bunyan, mas a voz arrastada de um mundanismo entediado e autoconfiante que registra como as coisas são nesse plano social terreno. Seu romance, é ele quem nos diz, é um teatro de marionetes, e nesse tipo de espetáculo os personagens são menores do que aqueles que assistem a ele, e existem para nos entreter, não para nosso aperfeiçoamento moral. Assim, A feira das vaidades, de Thackeray, é um romance cômico, ou no mínimo irônico; Rawdon Crawley e Becky Sharp se safam com suas ações fraudulentas e criminosas. Na verdade eles se safam literalmente, uma vez que cada qual foge da responsabilidade de suas contravenções conjuntas e vai parar num país que não é a Inglaterra. A história de Becky Sharp e Rawdon Crawley é a versão cômica do “Arrisque e Ganhe”, de Berne, mas a maior parte dos tratamentos ficcionais da dívida no século XIX é bem mais sinistra. O tema da dívida é tão recorrente que é difícil escolher exemplos. Precisaremos nascer numa prisão de devedores, como a Pequena Dorrit de Dickens? Precisaremos sofrer as consequências de dívidas imprudentemente contraídas como em A cabana do Pai Tomás, quando seres humanos são vendidos para saldar a conta? Precisaremos afundar numa tremenda ruína financeira como em Dombey and Son, também de Dickens? Precisaremos saltar várias décadas no tempo e nos debruçar sobre o triste destino dos dois escritores promissores, mas que acabam na bancarrota e finalmente morrem, no romance barra-pesada de George Gissing, New Grub Street, sobre o ofício de escrever como uma rotina enfadonha?

Ou deveremos nos voltar para a dívida e seus efeitos sobre as mulheres? Podemos começar analisando Madame Bovary, o romance de 1857 de Flaubert, a história de uma esposa provinciana que faz do amor romântico, do sexo extraconjugal e do consumo desenfreado uma fuga ao tédio, mas que se envenena quando sua dupla vida se volta contra ela mesma e o credor ameaça denunciá-la. Esse livro foi acusado de obscenidade, e Flaubert teve que defendê-lo brandindo o cadáver de aspecto hediondo de Emma como exemplo da moralidade inerente ao livro — o pagamento do pecado sexual é em arsênico, que não só mata, como corrói a aparência da pessoa —, mas isso apenas nos desvia do assunto. Emma não é castigada devido ao sexo, mas por seu vício consumista. Caso tivesse aprendido contabilidade e soubesse fazer um orçamento, poderia facilmente ter continuado a praticar seu hobby de adultério para sempre — ou pelo menos até ficar bem caída —, embora neste caso tendo que fazê-lo de modo mais frugal. Ou talvez devêssemos cruzar o Atlântico e seguir a trajetória patética de Lily Bart em A casa dos mortos, de Edith Wharton, que, caso tivesse mais conhecimento sobre gestão de dívidas, não teria precisado igualmente acabar se envenenando. A estouvada Lily não refletiu mais detidamente sobre os princípios do tit-for-tat: se um homem empresta dinheiro sem cobrar juros, vai querer outra forma de pagamento. Lily se nega a vê-lo, e também se recusa a tirar proveito, cinicamente, das cartas comprometedoras de uma falsa amiga; assim sendo, não acha lugar no mundo terreno: Lily Bart é um lírio puro, como seu prenome indica, mas é pura demais para fazer permutas, como seu sobrenome sugere. Em resumo, ela se encontra à venda no mercado matrimonial, mas não tem dinheiro e assim seu preço não é muito alto; a vulgaridade dos eventuais pretendentes não lhe agrada, e, com isso, sua reputação fica injustamente comprometida — e quem vai querer mercadoria avariada?

O que nos leva a uma reflexão a respeito dos dois sentidos da palavra “ruína” no século XIX. Para um homem daquele século, ruína era a ruína financeira — acumular mais dívidas do que pode pagar e aí ver os oficiais de justiça e os agentes hipotecários tomarem-lhe os bens. Isso poderia torná-lo desprezível, com o que os antigos conhecidos passariam a evitá-lo na rua. Para uma mulher do século XIX, porém, ruína significava acima de qualquer coisa a ruína sexual — fazer sexo antes do casamento, querendo ou não, ou se as pessoas simplesmente achassem que você o fizera, o que não necessariamente significaria ruína financeira, no caso de uma garota conseguir virar as coisas a seu favor. Cito o poema irônico de Thomas Hardy “A Donzela Arruinada”: “O ‘Melia, my dear, this does everything crown! Who could have supposed I should meet you in Town? And whence such fair garments, such prosperity?” “O didn’t you know I’d been ruined?” said she. “You left us in tatters, without shoes or socks, Tired of digging potatoes, and spudding up docks; And now you’ve gay bracelets and bright feathers three!” “Yes: that’s how we dress when we’re ruined,” said she. “Your hands were like paws then, your face blue and bleak But now I’m bewitched by your delicate cheek. And your little gloves fit as on any lady!” “We never do work when were ruined,” said she. [...] “I wish I had feathers, a fine sweeping gown, And a delicate face, and could strut about Town!”

“My dear — a raw country girl, such as you be, Cannot quite expect that. You ain’t ruined,” said she.[3] Este poema aponta para o romance que, para os nossos propósitos, é o mais exemplar — um romance que combina dívida com ruína nos dois sentidos, financeiro e sexual. Trata-se de O moinho do rio Floss, de George Eliot, que é mais ou menos assim: Duas crianças, Maggie e Tom Tulliver, vivem às margens do rio Floss, em Dorlecote Mill — um moinho movido a água que transforma trigo em farinha —, onde o pai é o moleiro... Mas aqui devo fazer uma digressão. Maggie Tulliver é filha de moleiro, não de um dono de papelaria ou de um bombeiro hidráulico, e isso faz diferença. Por isso direi algumas palavras sobre moinhos, pois ser filha de moleiro implica um forte conteúdo mítico. Assim como ser moleiro. Assim como, ainda, ser moinho. Moinhos, moleiros, filhas de moleiros. Vou abordá-los nessa ordem. Os moinhos movidos a água são muito antigos. No Ocidente, remetem aos tempos greco-romanos, quando tendiam a ser bem vistos, se nada fosse dito a seu respeito, uma vez que substituíam o trabalho humano — geralmente de trabalhadores escravos, como Sansão com seus olhos furados — e também o dos animais. Eram utilizados pelos anglo-saxões, na Inglaterra, e muito disseminados por toda a Idade Média. Em algum momento começaram a ganhar fama duvidosa. Por um lado, eram um equipamento mecânico, e para um camponês supersticioso isso fazia deles objetos não apenas de cobiça — como eu gostaria de ter um! — mas também de desconfiança: uma coisa que funciona sozinha deve ter parte com o demônio. Também podiam inspirar medo ou alguma espécie de pensamento do tipo e-se-essa-coisa-ficar-fora-de-controle? Ou como-é-queeu-faço-para-desligar-isso? Para exemplos modernos dessa espécie de medo, basta pensarmos nos primeiros filmes de

robôs, ou ainda em nossas próprias aventuras pioneiras com um processador de alimentos. Há uma aura folclórica em torno de moinhos mágicos e seu costume de nunca parar. Um pobre camponês arranja um moinho caseiro que funciona sozinho e mói tudo o que aparece pela frente, e com isso ele fica rico; mas alguém se apodera do moinho e começa moendo alguma substância desejada — nos contos de fadas de Grimm é mingau — e aí não consegue mais desligar, de modo que a casa e depois a rua ficam cobertos de mingau, que péssima ideia. Esta trama é muito semelhante ao motif do Aprendiz de feiticeiro, em que todo mundo deve ter no mínimo reparado, no filme Fantasia, de Walt Disney, com Mickey Mouse fazendo o aprendiz, e o robô incontrolável assumindo a forma de uma vassoura e um balde de água. Moral da história: cuidado com o almoço grátis, porque isso não existe: há sempre uma jogada por trás. Hermes é o deus das armadilhas — e das mentiras, dos ladrões, da comunicação e do comércio, de tudo enfim que se move e que flui, mas é também o deus dos equipamentos mecânicos, como os moinhos. Em Blue Fairy Book, a versão de Andrew Lang do manhoso moinho caseiro que li quando criança, o camponês consegue o moinho indo até o Salão dos Mortos e fechando um negócio graças ao qual fica com o moinho em troca de um presunto. Isso faz sentido de duas maneiras: no folclore, os mortos estão sempre com fome, e os equipamentos mecânicos modernos — por causa de sua natureza misteriosa — devem vir do outro mundo, seja lá como esse mundo deva ser chamado. O hábil camponês ordena que o moinho processe ouro, coisa que ele faz — é tanto ouro que seu irmão rico passa a invejá-lo. O irmão rico faz de tudo até comprar o moinho e depois ordena que ele moa arenques; mas se esquece de perguntar como se desliga a coisa e é inundado por arenques. Por fim, o moinho é adquirido por um lobo do mar, que o põe para moer sal, porque ele

negocia com sal, e deste modo não precisaria ficar navegando por aí sem parar. Mas ele também se esquece de perguntar onde fica o botão de desligar, e assim acaba levando a engenhoca infernal para alto-mar e jogando-a pela borda do barco. O moinho continua lá embaixo, no fundo do oceano, até o presente instante, sempre moendo, e é por isso que o mar é salgado. Então agora vocês já sabem. Em seguida, vocês podem se perguntar: por que o sonhador Dom Quixote ataca moinhos de vento acreditando se tratar de gigantes perversos? Por que não, por exemplo, outra coisa, árvores, torres? Mas vocês já sabem a resposta. Os moinhos de vento funcionam sozinhos e têm uma aura de energia infinita, além da fama de coisa-do-diabo a eles associada só porque são moinhos. (Na maravilhosa ópera Dom Quixote, de Cristóbal Halffter, os moinhos são substituídos por impressoras de jornal. A mesma ideia, com a diferença de que neste caso os moinhos ficam moendo sem parar notícias e boatos, tanto falsos quanto verdadeiros.) E mais: os moinhos prenunciam a Revolução Industrial que se avizinha, coisa que Quixote intui; e a Revolução Industrial, assim como tudo que virá com ela, é má notícia para um perfeito cavaleiro romântico como ele, da mesma forma que a Feira das Vaidades é ruim para um romântico religioso como John Bunyan. William Blake reconhecia as mesmas características infernais nos moinhos. Na época em que escreveu o famoso poema “Jerusalém”, com seus “sombrios moinhos satânicos”, estes moinhos moíam não só farinha mas tecidos, engolindo enormes quantidades de trabalhadores escravizados por salários de fome. Mas os moinhos de Blake vinham com uma fama satânica ready-made — fama que herdaram de toda uma longa linhagem de moinhos. Essa linhagem chegou até o século XIX, estendendo-se à Revolução Industrial — como no clássico de Elizabeth Gaskell, Mary Barton, e no Canadá, já no século XX, no

romance dramático The Master of the Mill, de Frederick Philip Grove. Passemos agora aos moleiros. Quando eu estava na terceira série, ainda se estudava canto na escola. É hora de retomá-lo, hoje que os estudiosos do cérebro humano afirmam que não se trata de algo supérfluo, e, sim, de um apoio necessário ao desenvolvimento neuronal dos jovens: curto e grosso, cantar torna as crianças mais inteligentes. Seja como for, tínhamos aula de canto naquela época e sabíamos umas canções bem curiosas. Uma delas se chamava “O Moleiro do Dee”, e segundo a versão que aprendi, era mais ou menos assim: There was a jolly miller once Lived on the River Dee; He worked and sang from morn to night, No lark so blithe as he; And this the burden of his song Was ever wont to be — I care for nobody, no, not I, And nobody cares for me.[4] Por que, me pergunto eu, ninguém achava que esse modelo de sociopatia era inadequado para nós, pequenos aprendizes de cantores? Existem versões mais, digamos, politicamente corretas, em que o moleiro está aí desde que estejam aí para ele, e em que se vê transformado numa espécie de modelo da independência e solidez financeiras do homem do campo inglês; mas, na versão que eu aprendi, o moleiro não se importa com mais ninguém, e esta deve ser mesmo a versão original. Em seu artigo intitulado “Mills and Millers in Old and New World Folksong”, Jessica Banks nos diz que, no folclore, os moleiros são frequentemente representados como ladrões e trapaceiros que roubam os camponeses no peso e desviam às escondidas boa parte da farinha que produzem para uso próprio. Existe um provérbio do século XVII que diz: “Ponha um moleiro, um tecelão e um

alfaiate num saco e sacuda: o primeiro que sair vai ser ladrão.” Em outras palavras, todas as três profissões são suspeitas de ladroagem. Por quê? Porque, em vez de produzir ou dar origem a alguma coisa — resultando em algo tangível que é, por isso mesmo, perceptível —, eles processam alguma coisa: seus grãos em farinha, seu fio bruto em tecido, seu tecido em roupa; e esse valor agregado é difícil de quantificar. Algumas matérias-primas, além disso, podem ser desviadas. É esse tipo de moleiro espertalhão que se revela no “Conto do Feitor”, de Chaucer. Rico e arrogante, ele consegue embolsar metade da partida de grãos que pertence legitimamente a dois funcionários, ou estudantes, da universidade, que foram levá-la para moer. Mas, como diz um deles, existe uma lei pela qual “se por um lado um homem é prejudicado, por outro deverá ser ressarcido”; e assim eles cobram suas perdas seduzindo matreiramente a filha e a mulher do moleiro, ressaltando assim o fato de que, quando se trata de dívidas — sobretudo as que envolvem o senso de humor da parte errada —, nem sempre é com dinheiro que elas são honradas. O outro fato aqui ressaltado é que é perigoso ser filha de moleiro, porque é provável que ela vire válvula de escape das maldades do pai. A natureza moral ambígua dos moinhos e a sinistra herança folclórica dos moleiros podem atrair problemas, e elas podem facilmente se ver no meio deles. Há um conto de Grimm chamado “A Garota sem Mãos” que é assim: um moleiro em dificuldades financeiras se vê finalmente sem nada a não ser o moinho e a macieira que fica embaixo dele. Um dia o moleiro encontra um velho que promete fazê-lo rico em troca do que se acha sob o moinho. O moleiro, pensando que o velho estava se referindo à macieira, assina um contrato. (Essa história deveria ser leitura obrigatória para todos os jovens estudantes de direito, como um alerta sobre o emprego de linguagem vaga

em documentos jurídicos.) Mas o estranho é o Coisa-Ruim — nós, leitores, já sabíamos, pois quem mais haveria de instigar alguém a assinar contratos desse tipo almoçoquase-grátis? — e o que se acha debaixo do moinho é, na verdade, a filha do moleiro. Quando se encerra o prazo do contrato, de três anos, o Diabo aparece para cobrar o que lhe é devido e quer levar a filha do moleiro — que, em termos jungianos, é uma substituta do lado melhor da alma do moleiro. Mas a menina é muito devota, toma um bom banho e, estando a limpeza bem próxima da devoção, o Diabo não tem poder sobre ela. Ele ordena ao moleiro que jogue fora a água do banho da filha para que ela continue suja, mas a garota chora tanto em cima das próprias mãos que elas ficam muito limpas; então o Diabo manda cortá-las. A garota, porém, lava os cepos dos braços, e assim — triplamente sortudo — o Diabo tem que ir embora, enganado pelo próprio trato. O restante da história mostra o que acontece com a filha do moleiro quando ela some no mundo, compreensivelmente relutando em permanecer com um pai que a vendera ao Diabo e lhe cortara as mãos. Ganha a proteção de um anjo, que a ajuda a comer uma pera da pereira do rei. Isso a leva a se casar com o rei, que manda fazer mãos de prata para ela. Mas o Diabo continua interessado em tê-la, e tenta matá-la apelando ao recurso de trocar as cartas do rei por cartas suas, que a acusam falsamente de ter dado à luz um monstro — a prova costumeira de que uma garota foi má e infiel — e assim condenando-a à morte; então ela sai novamente pelo mundo, protegida por um segundo anjo da guarda. Como “A Garota sem Mãos” é um conto de fadas, tudo acaba bem para ela, com o rei recuperado e um lindo filhinho; além disso, ela se mostra uma moça tão maravilhosa que até suas mãos voltam a crescer. O moinho à beira do rio Floss, de George Eliot, não é um conto de fadas. Maggie e Tom Tulliver moram no Moinho

Dorlecote com o pai, o moleiro Tulliver, que se acha em dificuldades financeiras. Ele não encontra o Diabo nem assina contrato com ele, mas faz o equivalente a isso no século XIX; põe em risco a si mesmo e a família pela teimosia de levar avante causas judiciais perdidas. Seus processos dizem respeito a quem tem direito à água do rio Floss: Tulliver está brigando contra coisas como represas e projetos de irrigação que, ele está convencido, afetarão o curso da água até seu moinho. O advogado da parte contrária é Wakem, e é sobre ele que Tulliver concentra toda sua fúria e todo seu ressentimento. Tulliver é um moleiro honesto, Eliot não se cansa de repetir; ela, Maggie, precisa repetir tanto assim porque essa honestidade contraria o tipo. Seu oponente, Wakem, é que é o moleiro astuto e manhoso do folclore; e na verdade acaba mesmo se tornando moleiro, uma vez que compra efetivamente o moinho de Tulliver. Se este tivesse sido mais desonesto, poderia ter entendido melhor as regras do jogo. Mas simplesmente se aborrece, fica confuso e desorientado com o que chama de “pilantragens”. Acaba perdendo a ação em última instância e é condenado a pagar pesadas custas e prejuízos, endividando a si mesmo e a família. O choque de perder tudo faz com que ele sofra um derrame que o deixa temporariamente inválido. A hipoteca do moinho é cobrada, os bens familiares são calculados e vendidos, e Tom e Maggie — ainda adolescentes — precisam abandonar a escola e ir lutar pela vida na sociedade tacanha e provinciana que os cerca. Este romance costuma ser lido como a história protofeminista de Maggie Tulliver, uma mulher inteligente, impetuosa, idealista, apaixonada, mas frustrada — uma mulher à frente do seu tempo, o que de fato é. Mas e se nós o lêssemos como a história da dívida de Tulliver? Porque essa dívida é o verdadeiro motor do romance: é ela que move a trama, transforma os estados mentais dos personagens e determina seus âmbitos de ação. Sem as

dívidas do pai, Maggie poderia ter encontrado um marido interessante, mas do jeito como as coisas acontecem ela se vê sem um tostão, o que, no século XIX, a deixa muito vulnerável: não ter dinheiro, tanto na época como atualmente, limita seriamente as alternativas, tanto em termos de compras como em relação à busca de afeto. Maggie é uma garota sem mãos, uma vez que nessa era de oportunidades limitadas para as mulheres não existem muitos trabalhos honestos que ela possa realizar para obter seus próprios recursos, além de não ser dotada de habilidades artesanais: até mesmo sua costura está mais para singela do que para refinada. Sozinha, sentindo-se abandonada e excluída das coisas boas da vida, ela se vê enredada num quadrilátero emocional — Philip Wakem, o filho de Lawyer Wakem, a ama; ela ama Stephen, que é pretendente de sua prima Lucy; Stephen ama Maggie; Maggie deve lealdade a Lucy. O desfecho é que Maggie é injustamente acusada de má conduta sexual, como a garota sem mãos. Ela é uma moça devota, e assim renuncia a Stephen pois sente que aceitar se casar com ele violaria seus princípios cristãos: seria um ato egoísta e uma traição à prima Lucy. Mas Maggie não tem anjo da guarda; ela está perdida. Quase todo mundo a evita, inclusive o padre que de início tenta defendê-la — os paroquianos estavam começando a falar — e especialmente seu irmão Tom, tão adorado apesar de ter um coração empedernido e de ser incapaz de perdoar. Toda mãe ficaria feliz em saber que a sra. Tulliver permanece ao lado da filha, mas o apoio desta matrona passa longe da autoridade que teria num bando de chimpanzés. Nesse meio-tempo, entretanto, o sr. Tulliver, infeliz e falido, havia permanecido no Moinho Dorlecote na condição de administrador; o patrão é seu inimigo, Wakem, que havia comprado o moinho e contratado Tulliver num gesto de vingança perversa: “Os homens prósperos de vez em quando cometem suas pequeninas vinganças”, diz Eliot,“a

título de diversão, desde que elas lhes surjam facilmente no caminho e não atrapalhem os negócios; e essas pequenas e frias vinganças têm um enorme efeito na vida, promovendo todos os níveis de agradável imposição, tirando de si os homens sãos e difamando caracteres em conversas não premeditadas.” É o efeito trickle-down da vingança, e Wakem fica feliz em participar do processo. (...) apresentava-se a ele como um prazer fazer a coisa capaz de provocar a mais profunda mortificação no sr. Tulliver — um prazer de tipo complexo, não o feito de puro veneno, mas o temperado pela autoaprovação. Ver um inimigo humilhado dá certo contentamento, mas é pouco se comparado à satisfação altamente sofisticada de vê-lo humilhado pela própria ação benevolente (...). Trata-se de uma espécie de vingança que entra na escala da virtude e Wakem não descartava a intenção de manter essa escala respeitavelmente suprida. Tulliver aceita o emprego para poder permanecer na adorada residência de seus ancestrais e ainda oferecer uma segurança mínima à mulher, mas se ressente do que Wakem está fazendo com ele e se nega a perdoá-lo, pois o perdão é “a forma como o Coisa-Ruim dá apoio às pilantragens”. Ele obriga Tom a escrever na Bíblia da família que nem Tulliver nem Tom jamais haverão de perdoar Wakem, e que deseja que todo o mal recaia sobre ele. Maggie protesta dizendo que “é ruim praguejar e destilar veneno”, e ela está certa; é especialmente aziago usar a Bíblia como papel para escrever essa espécie de contrato — pois se trata de um contrato e Tom tem que assiná-lo. Mas quem é a outra parte do contrato? Deus? Nós duvidamos. Tom, porém, não tem qualquer remorso em assiná-lo, não sendo ele de natureza capaz de perdoar. Tom assegura lugar no negócio e, com trabalho árduo e algum tino comercial, poupa o necessário para pagar as

dívidas do pai. No dia em que as dívidas são quitadas, o sr. Tulliver se encontra com Wakem, a quem insulta mais uma vez; mas Tulliver agora se sente livre para largar o emprego e dá uma surra em Wakem “só para deixar as coisas um pouco mais quites neste mundo”. Em seguida sofre outro derrame e deixa a vida pagando tributo às velhas concepções de equilíbrio e justiça: “Eu tive a minha chance”, diz. “Dei nele. Nada mais justo. Nunca desejei nada a não ser o que era justo.” Certas dívidas não podem ser saldadas por pagamento em dinheiro, e esta é uma delas. Tulliver foi um devedor, mas também se via como credor: Wakem lhe “deve” pelo tratamento desairoso que infligiu a Tulliver, e este é o tipo de dívida que deve ser paga com dor e humilhação. O conflito entre Tulliver e Wakem é do tipo que já vimos antes: o romântico e honesto contra o explorador moderno, mistificador e cínico — a diferença é que hoje o moinho que já foi infernal e astuto, e seu moleiro se acham ao lado do velho e ingênuo, e a astúcia agora reside no estrito exercício do direito. O poder passou daqueles que processam bens materiais para aqueles que processam os contratos que os regem. Hermes — deus do comércio, dos ladrões, das mentiras, contravenções, golpes e estratagemas — fez novas alianças. E assim é até hoje; nós não fazemos mais piadas sobre “moleiros trapaceiros”, mas quantas piadas de “advogados trapaceiros” a gente conhece? As coisas não acabaram bem para os Tulliver, assim como para Dom Quixote. Tulliver morre, e o mesmo acontece — não muito depois — com Tom e Maggie, que se afogam juntos numa inundação, reconciliados na hora final. Como o cristão de John Bunyan em O peregrino — livro muito lido por Tom e Maggie quando crianças —, eles obtêm a recompensa final atravessando as águas da morte. Como diz o ditado, a morte paga todas as dívidas, o que de certo

modo é verdade para a espécie moral da dívida — a espécie de que Maggie se sente devedora em relação a Lucy. Mas, fora a surra, Wakem escapa. Como eu disse, este não é um conto de fadas. Comecei falando da dívida como uma trama do tipo estaé-a-minha-história, linha que Eric Berne adota ao descrever as variações do jogo da vida “Devedor”. Mas a dívida também existe como um jogo real — um antigo jogo de salão inglês. Trata-se, com efeito, de um dos jogos testemunhados pelo invisível Scrooge na festa de Natal do sobrinho. Não é por acaso, da parte de Dickens — pois tudo o que os espíritos revelam a Scrooge deve ter uma aplicação à sua própria vida iníqua —, que este jogo seja “Penas”. O jogo “Penas” tem muitas variantes, mas aqui estão as regras da que é possivelmente sua mais antiga e mais completa forma de que temos conhecimento. Os jogadores se sentam em círculo, e um deles é escolhido para juiz. Cada jogador — o juiz inclusive — contribui com um objeto pessoal. Às costas do juiz, um desses objetos é escolhido e erguido. Então se recita o verso seguinte: Tem algo muito pesado sobre a sua cabeça. O que é que eu faço para salvá-lo? O juiz — sem saber do que se trata — diz o nome de algum truque que o dono do objeto deverá interpretar. As coisas absurdas que se seguem provocam muitas risadas. Os modelos da vida real em que esse jogo se baseia são dois. O primeiro, e mais positivo, é o da loja de penhores, em que “a coisa pesada sobre a cabeça” é uma dívida que precisa ser paga a fim de que o objeto possa ser resgatado. Mas “julgar” — raiz de “resgatar” — significa nomear, não só no sentido de conferir identidade, mas também no relacionado com o verbo “condenar”. E uma pena significa algo perdido devido a um crime ou contravenção. Assim, o segundo e mais sinistro modelo do jogo “Penas” é a condenação à morte de um prisioneiro, a coisa pesada

sobre a cabeça é o cutelo do carrasco e a coisa a ser resgatada é uma vida. Não há nada que nós, seres humanos, possamos imaginar, aí incluída a dívida, que não possa se transformar em um jogo — algo feito para entreter. E, inversamente, não existem jogos, por mais frívolos, que não possam ser jogados de forma muito séria, e por vezes extremamente desagradável. Todos nós, que já jogamos bridge com um grupinho de pessoas impiedosas de cabelos brancos e ases nas mangas, ou que presenciamos alguma cena de mães de chefes de torcida tentando assassinar as rivais de suas filhas, sabemos disso. A meio caminho entre uma brincadeirinha e a Batalha de Waterloo — entre jogos infantis e jogos de guerra — se acham o hóquei, o futebol e congêneres, em que torcedores gritando “Mata!” estão só em parte de brincadeira. Mas quando o jogo fica feio e excessivamente pra valer, vira o que Eric Berne chama de “jogo pesado”. Nos jogos pesados os investimentos são altos, o jogo é sujo e o resultado pode perfeitamente ser uma poça de sangue no chão. É nos jogos pesados de devedor e credor que eu gostaria de me concentrar no próximo capítulo, que abordará a vingança, o crime, as penas, a macroeconomia, inadimplências de bilhões de dólares e revoluções causadas pela dívida. Eu o intitulei, de forma bastante apropriada, “O lado sombrio”.

[2] Miss Grundy, personagem da peça Speed the Plough (1798), de Thomas Morton, personifica a tirania das ideias convencionais e do senso comum. (N. da T.) [3] “Ah ‘Melia, meu bem, não podia haver coisa melhor! / Quem diria que eu ia encontrá-la aqui na cidade? / Ainda por cima toda nos trinques, na prosperidade?!” / “Ah”, disse ela, “então você não sabia que eu estou na pior?” / “Você nos deixou em farrapos, sem sapato, sem meia, / Exaustas

de plantar batatas, a perambular pelo cais; / E agora está aí, coberta de joias e plumas que tais!” / “É”, disse ela, “é o que se usa quando a coisa ‘tá feia.” / “Naquela época suas mãos eram garras e o rosto cor de breu / Mas hoje sua fisionomia me enfeitiça, com tanta luz, / E co’essas luvas pequeninas vira uma dama que seduz!” / Disse ela: “Não trabalha quem está na ruína, feito eu.” [...] “Quisera eu ter plumas, uma roupa engalanada, / E um rostinho mimoso para exibir a todos quantos!” / “Meu bem, uma garota bruta como você, sem encantos, / Não sonha essas coisas”, disse ela. “Não está arruinada.” [4] Era uma vez um alegre moleiro / Que morava à beira do rio Dee; / Trabalhava e cantava de manhã à noite, / Ninguém mais feliz havia ali; / E estava então o som do seu cantar / sempre se fazendo ouvir assim: / Não estou nem aí pra ninguém, eu não, / E nem ninguém está aí pra mim.

QUATRO

O LADO SOMBRIO

Sei o que vocês estão pensando: será que a senhora já não foi sombria o suficiente, com toda essa conversa sobre lojas de penhores da alma, Come-Pecados, pactos com o Diabo, etc. e tal? É capaz de ser mais sombria ainda? Muito mais, porque a coisa é mais sombria pouco antes de ficar ainda mais sombria. Mas não se preocupem; estou guardando algo bem otimista para o finzinho deste livro. Igual a Pandora. A questão que vou tentar desenvolver neste capítulo é: o que acontece quando as pessoas não pagam suas dívidas? Ou não conseguem pagá-las? Ou não irão pagá-las? O que ocorre nesses casos? E uma extensão dessa questão: e se a dívida é, por sua própria natureza, dessas que não podem ser pagas com dinheiro? Comecei a refletir sobre o tema da dívida por uma série de razões, entre elas, porque uma frase — que ainda se costuma ouvir por aí, embora não mais com tanta frequência — me deixava intrigada: “Fulano, ou fulana, pagou sua dívida para com a sociedade.” Também se costumava dizer que “O crime não compensa”, achando de modo otimista que isso queria dizer que o crime, no fim das contas, não premia o criminoso; ao passo que, ao contrário — na perspectiva pessimista pode significar que o Crime costuma sair à francesa e deixar suas contas para você pagar, caloteiro safado. Nas histórias em quadrinhos sinistras e ordinárias da década de 1940 que eu lia quando criança, o crime não compensava. Naquelas narrativas moralistas, mas medonhas, os delinquentes praticavam inúmeras más ações, geralmente à luz de uma lâmpada fraquinha ou de dois faróis de automóvel convergentes, mas sempre eram capturados no fim. “A brincadeira acabou”, alguém dizia,

me deixando ainda mais intrigada — o que seria a brincadeira? Uma dança irlandesa e, neste caso, o que queria dizer aquele acabou? —, ou então eles se espatifavam de encontro a uma parede numa explosão vermelha e amarela de tiros de metralhadora, gritando “Arrgh”. Porém, presos em vez de mortos, eles se viam obrigados a pagar em outro sentido do termo: tinham de fazer algo denominado “pagar por seus crimes”. Esta frase sugere um supermercado do crime em que se pode examinar uma grande variedade de delitos em oferta e escolher os que deseja, levá-los até a caixa, pagar em dinheiro ou fornecer o cartão de crédito — mais pelos crimes maiores, menos pelos menores — e depois, feliz da vida, sair e praticá-los. O equivalente a este supermercado de crimes existiu de fato no passado — a Igreja católica vendia indulgências, que eram pagas após se consumar o malfeito, e não antes; e o mesmo tipo de coisa ainda hoje se encontra disponível sob diversos nomes: Hells Angels, Máfia e tantos outros empreendimentos de crimes de aluguel. Alguém me disse que o pagamento é feito metade na hora da encomenda e metade na entrega. Mas não é isso que geralmente se entende por pagar por seus crimes. De forma semelhante, “pagar sua dívida para com a sociedade” nem sempre significava uma multa. Muitas vezes queria dizer uma pena de execução ou de prisão temporária. Ponderemos a respeito disso à luz de tudo o que dissemos sobre o devedor e o credor como gêmeos univitelinos colocados de ambos os lados de uma balança, cujo equilíbrio se verifica quando todas as dívidas são pagas. Se a pessoa que está sendo executada ou encarcerada é o devedor que presumivelmente deve algo a alguém, e se esse credor é a sociedade, de que maneira esta se beneficia efetivamente da execução ou do encarceramento? Certamente a sociedade não tem nenhum lucro financeiro, uma vez que custa muito caro levar uma pessoa a julgamento e depois trancafiá-la, ou cortar sua

cabeça, ou lhe arrancar as tripas, ou queimá-la numa estaca, ou eletrificá-la até que a fumaça lhe saia pelos ouvidos e assim por diante. Portanto, alguma outra espécie de pagamento deve estar subentendida. Se ainda vivêssemos segundo o rígido modelo do olhopor-olho-dente-por-dente de Moisés, a execução faria algum sentido — isto é, caso o indivíduo a ser executado tivesse matado alguém. Um cadáver resultaria em outro cadáver, e a balança deste modo ficaria equilibrada. Mas passar o tempo numa cadeia não é um equivalente óbvio de nada — e é por isso que os veredictos de tempo de prisão por determinado tipo de crime variam tanto de uma época para outra e de um lugar para outro — e o benefício material para a sociedade não é somente zero, é consideravelmente menor do que zero, porque não é o criminoso encarcerado que está pagando pelo que fez, mas o cidadão que paga impostos. E as duas justificativas mais comumente ouvidas para se manter alguém trancafiado — dissuadir outros criminosos em potencial e contribuir para o aperfeiçoamento moral do preso — não parecem funcionar muito bem em termos monetários. A educação é um elemento dissuasório melhor e mais barato, e o serviço comunitário uma forma melhor e mais barata de promover o aperfeiçoamento moral. Infelizmente, o tipo de pagamento a que na verdade está se referindo o “pagar por seus crimes” se assemelha muito à vingança. Assim, o aspecto da dívida — o próprio crime, e a destruição que pode ter causado em outros — e o aspecto do crédito — a justa satisfação pessoal, a sensação de que o pobre está recebendo o tão merecido reconhecimento — não podem absolutamente se traduzir em quaisquer equivalentes em dinheiro. De modo similar, certas dívidas jamais podem ser monetárias: são dívidas de honra. Em relação a essas, sente-se que outras formas de pagamento devem ser adotadas, e estas formas muito frequentemente têm a ver com a imposição de procedimentos de

implementação brutal e indecente sobre os corpos de outras pessoas. “Lembre-se, Hamlet”, diz o fantasma do pai de Hamlet, mas ele não quer dizer que Hamlet deveria procurar Cláudio e dizer “Então você matou meu pai; isso vai custar mil ducados”. O que ele quer dizer é que as contas só ficarão equilibradas quando Cláudio morrer, não de velhice, mas de vingança pelas mãos de Hamlet. A vingança é um tema fascinante — fascinante para todos que já deram um chute no irmão ou na irmã por baixo da mesa e receberam um chute mais forte ainda, ou que jogaram uma bola de neve e ganharam em troca uma pedrada — e que eu tenho certeza que todo mundo adora ver abordado, e com exemplos. A namorada, passada para trás pelo namorado, que vai às escondidas ao apartamento dele e corta, em formato de coração, suas gravatas de grife e lambuza as cortinas do seu quarto com pasta de anchova; ou o namorado desprezado que manda uma dúzia de coroas de flores fúnebres à ex-amada, junto da conta; ou, pior ainda, o sujeito que liga para a polícia dizendo que há um cadáver na casa da sua ex, mas lá eles se recusam a admitir e fingem que não há cadáver algum, de modo que a polícia precisaria apresentar um mandado de busca; ou — diferentemente das brincadeiras infantis em voga na alta sociedade canadense — os cadáveres mutilados que aparecem na porta de casa das pessoas quando há uma antiga rixa familiar em curso num país onde esses rituais ainda são obrigatórios. Tais coisas não podem ser quantificadas — são avaliadas subjetivamente, como a arte — e, portanto, não há como dizer se um determinado ato de vingança efetivamente nivelou a balança. A vingança, assim, pode rapidamente se transformar numa grande reação em cadeia de vinganças, cada uma pior que a anterior. Mas vou deixar o segmento de vingança para mais tarde. Não só porque ela é um prato que se come melhor frio, mas porque nos conduzirá, numa sombria corrida através do

Túnel dos Horrores, aos recantos mais obscuros e cobertos de ossos da psique humana; e essas experiências merecem ser guardadas para o fim. Primeiro, vamos fazer uma excursão relativamente agradável pelos arredores mais iluminados de Sombrelândia: isto é, as várias consequências que podem advir do não pagamento de dívidas de natureza estritamente financeira. O que acontece se você possui uma dívida em dinheiro e não paga? Isto pode ser substituído por “não pode pagar” ou “não quer pagar”, como dizem os pais franceses a seus filhos: “Tu ne peux pas, ou tu ne veux pas?” Não pode, ou não quer? Seja como for, diferentes sociedades instituíram variados martelos, pinças, chutes e tormentos para fazer o devedor se coçar: porque, sem sua espada, ou pelo menos os recursos para lhe dar um bom puxão de orelhas, a Deusa da Justiça é impotente. No passado havia muitas penalidades severas para quem não pagasse, da escravidão ao confisco de bens. Na Inglaterra, do século XVII até o início do XIX, seu credor podia mandar prendê-lo acusando-o de ocultar riquezas e jogá-lo numa prisão para devedores — abarrotada, fria, úmida e imunda — onde você iria mofar até pagar suas dívidas ou até que alguém o livrasse da cadeia, pagando-as por você. Enquanto estivesse preso, você tinha de cobrir o custo da própria alimentação e moradia — uma crueldade, considerando-se que foi encarcerado justamente por não ter dinheiro. Assim, a menos que alguém viesse em seu socorro, provavelmente você acabaria morrendo de fome e de frio. O afamado escritor do século XVIII Samuel Johnson dizia o seguinte a respeito das prisões para devedores: É inútil prosseguir com uma instituição cuja experiência demonstra ser ineficaz. Encarceramos uma geração de devedores atrás da outra, mas não vemos seu número decrescer. Já aprendemos que a precipitação e a imprudência não serão desestimuladas retirando-se

crédito: vejamos se a fraude e a ganância não podem ser mais facilmente contidas com seu fornecimento (...). Aqueles que fazem as leis supõem, aparentemente, que toda falta de pagamento constitui crime do devedor. Mas a verdade é que o credor sempre tem participação no ato e muitas vezes ele mais do que divide a culpa por confiar indevidamente. Raras vezes acontece de um homem prender outro apenas por dívidas que ele precisou contrair na esperança de vantagem para si mesmo e por negociatas nas quais tirou proveito da própria opinião sobre o risco; e não há motivo para que um deva punir o outro por um contrato em que ambos concorreram. Em outras palavras, tanto quem empresta quanto quem toma emprestado é responsável caso seu trato não dê certo: o segundo por arriscar sua segurança tomando o empréstimo, o primeiro por procurar lucrar — supondo-se que seja um lucro excessivo — com o desespero ou o risco excessivo assumido por quem toma emprestado. O contrato tinha sido firmado no interesse de ambas as partes, e o mau juízo e a cobiça dos dois são, portanto, os responsáveis pelo fracasso da transação. É mais que provável que toda essa complacência do dr. Johnson para com os devedores aprisionados se deva ao fato de que ele próprio andou bem perto de ser também um deles. Às vezes se dava o caso de a família do devedor se mudar para prisão com ele, e a mulher e os filhos saírem para trabalhar de modo a custear o alojamento e os serviços de toda a família. Isto está muito próximo do Código de Hamurábi, de quatro mil anos atrás, pelo qual você podia vender a mulher e os filhos para saldar suas dívidas. Também está muito próximo dos trabalhadores infantis escravizados na Índia de hoje que, segundo estimativa da ONG Human Rights Watch, chegam a quinze milhões, trabalhando duras e longas horas por dia para pagar dívidas contraídas por seus pais — pais que muitas

vezes não têm outro recurso para tentar devolver o dinheiro. Mas na Inglaterra do século XIX, o termo para esse tipo de trabalho infantil e familiar não era “escravidão”. Este era reservado a outra forma de escravidão, pela qual alguém proclamava ser dono absoluto de outra pessoa. E, no entanto, as crianças que trabalham para pagar dívidas eram, e continuam sendo, igualmente privadas de liberdade. O pai de Charles Dickens foi jogado na prisão para devedores de Marshalsea, e o menino Charles, com doze anos, teve que deixar a escola para trabalhar numa fábrica de graxa para sapatos — experiência desesperadora que obscureceu toda a sua vida e que retornava em sonhos para amedrontá-lo. Seres esbanjadores indiferentes, gente falida charmosa, bon-vivants e prisioneiros desesperados perpassam toda sua obra, e o lado avarento da natureza de Scrooge provém do próprio Dickens — que era absolutamente generoso em muitos aspectos, mas também muito seguro com o dinheiro, tal seu pavor de seguir os passos do pai imprevidente. O personagem arruinado mais conhecido de Dickens é o sr. Micawber, de David Copperfield — baseado, segundo se diz, em Dickens Pai, sempre à espera de que “as coisas melhorem”, mas que, quando melhoram de fato, gasta tudo em bebida. A receita de felicidade de Micawber é frequentemente citada. Quando David, ainda rapaz, vai visitá-lo na prisão para devedores, Micawber chora muito e, depois, diz David, “Eu me lembro de que ele me fez jurar solenemente observar bem o seu exemplo; e ter sempre em mente que se um homem ganhar vinte libras por ano e gastar dezenove libras, dezenove xelins e seis pences será feliz, mas se gastar vinte e uma libras, será miserável”. Há quem afirme que esta é uma citação autêntica de Dickens Pai. Entretanto, a continuação do parágrafo dessa fala moralizante do sr. Micawber não costuma ser muito citada:

“Após ele ter me tomado um xelim emprestado, me deu uma ordem de pagamento para a sra. Micawber nesse valor, tirou um lenço do bolso e se animou.” Micawber é um homem que se colocou a si próprio num beco sem saída e simplesmente gosta de ficar ali. A maior parte dos devedores que Dickens retrata tem consciência de sua humilhação e de sua desgraça, mas não é o caso de Micawber. O velho blues “Been Down So Long It Seems Like Up to Me” poderia ter sido composto especialmente para ele, que chega a explorar outros devedores, na condição de personagem absolutamente descarado que é. Ele está longe de ser honesto, responsável e consciencioso, é um grande aproveitador — suas lágrimas são sempre fingidas; mas o leitor de certo modo o admira pela notável capacidade de minimizar o peso de seus problemas, e num certo sentido Dickens faz o mesmo. Pelo menos o sr. Micawber não é malintencionado. Ele não pretende causar prejuízos, embora o faça. As prisões para devedores eram basicamente um fenômeno do Velho Mundo, onde a superpopulação urbana barateava a mão de obra. Mas, na América do Norte dos primeiros tempos, o rápido desenvolvimento gerava tamanha demanda por trabalhadores saudáveis que manter gente na cadeia por não ter pagado suas contas não fazia nenhum sentido. Esses devedores eram então forçados a virar trabalhadores contratados — obrigados a servir a um determinado empregador até que a dívida fosse quitada. O “serviço comunitário” é o que mais se aproxima disso hoje, embora não seja comumente usado como substituto ao não pagamento de dívida. Nas sociedades ocidentais, ainda se aprisionam as pessoas por falta de pagamento, geralmente em casos de não provimento do sustento de filhos; ainda assim, a acusação mais provável é de desacato ao tribunal. A punição é por comportamento inferido — “Você não quer pagar” — e não por falta de fundos — “Você não tem como pagar”.

Fora isso, o que pode ocorrer hoje em dia na América do Norte com quem não paga suas dívidas é tão pouco assustador que não chega a causar maior impacto no devedor pródigo. Soube que os universitários costumam falar de seus empréstimos de crédito estudantil com sorrisos amarelos e não com rios de lágrimas sentidas a lhes escorrer pelo rosto. Todo mundo está endividado, e daí? É assim que as coisas são e, afinal, de que outra maneira eles poderiam fazer seus cursos? Quanto a pagar por isso, é algo a se pensar mais tarde. Um amigo meu — isso foi lá pelos anos 1970 — recebeu uma daquelas correspondências imprudentes que as então recém-criadas empresas de cartões de crédito enviavam. Elas mandavam para você um cartão pelo correio, sem perguntar nada; esse meu amigo recebeu um e rapidamente estourou seu limite. O que se seguiu foi uma animada partida de “Arrisque e Ganhe”. Todo mês ele devia pagar uma pequena quantia — cinco dólares e 32 cents, ou algum valor assim irrisório e irritante. A empresa se aborreceu, mandou a conta para uma empresa de cobrança e meu amigo começou a receber desaforos por telefone. Isso foi antes da invenção do dispositivo que informa quem está ligando para você. “Você me desculpe”, dizia meu amigo ao cobrador. “Eu compreendo que tenha de ligar, mas não me agrada o seu tom de voz. Não há necessidade de grosseria. Se não fossem pessoas como eu, pessoas como você não teriam emprego. Por isso, se tiver de telefonar, telefone, mas por favor seja educado.” “Oh, tudo bem”, disse o cobrador telefônico, percebendo a lógica do argumento. E, tratando-se do Canadá, a partir de então ele realmente se mostrou educado. Atualmente, quem está afogado em dívidas, conta com um recurso que nem sempre se achava disponível no passado: pode declarar falência pessoal e de certa forma se ver livre da trapalhada. Existem agências capazes de ajudá-

lo a fazer isso, por uma ninharia. “Ajeite sua vida por menos do que deve”, seduzem os anúncios do metrô. Há desvantagens, é claro — seu potencial de crédito será afetado e você perderá alguns dos seus brinquedinhos mais chamativos —, mas quem vai querer ser jogado numa masmorra fria e escura onde terá que passar a casca de queijo e pão mofado e onde os outros prisioneiros roubarão seu lenço de seda, suas botas e suas abotoaduras? Não normalmente. Não aqui. Ainda não. Até agora temos falado do que pode ser legitimamente feito contra alguém que não paga dívidas contraídas legalmente. Mas e se a própria dívida foi feita em algum ponto obscuro às margens da lei? E se, por exemplo, o devedor pegou dinheiro emprestado de um agiota mafioso? Aí as pressões podem ser de ordem bastante diferente. Minha principal fonte de informação a respeito desses assuntos é o incomparável Elmore Leonard. Em seu romance Get Shorty, o anti-herói, Chili Palmer, que se emprega na Máfia como uma espécie de rastreador, está atrás de um jogador pé de chinelo viciado em um jogo pesado, mas idiota de “Arrisque e Ganhe”. Chili diz o seguinte a respeito das técnicas desses agiotas: Um cara vem à sua procura, não importa o quanto quer nem por que precisa do dinheiro, você lhe diz na lata antes de entregar a grana: “Tem certeza de que quer esse dinheiro? Não vai poder empenhar sua casa nem assinar nenhum papel. O que você vai me dar é sua palavra de que vai pagar um tanto por semana, e com juros” (...). Se o cara vacila e diz alguma coisa tipo “Bom, eu tenho certeza absoluta de que posso”, eu lhe digo, “Não, estou lhe avisando agora, não pega a porra da grana”. O cara vai implorar, vai jurar pelos filhos que pagará direitinho. Você sabe que ele está desesperado, ou não estaria aceitando esse tipo sujo de empréstimo. Aí você lhe diz “Está bem, mas se deixar de pagar uma

parcela que seja vai se arrepender de ter vindo aqui”. Nunca diga ao cara o que pode acontecer com ele. Deixe-o usar a imaginação; ele vai pensar em coisa bem pior. Mais tarde, Chili acrescenta um comentário: “Você tem que entender que o negócio de um agiota é igual ao de qualquer outra pessoa. Ele não está em busca de uma oportunidade para machucar alguém. Está nisso para ganhar dinheiro.” Mas o corolário é que, se o agiota não ganhar seu dinheiro, vai machucar alguém. Na Sombrelândia de emprestar-e-tomar-dinheiro simplesmente não há limites estabelecidos para a natureza e o tamanho da dívida, portanto não há limites estabelecidos para a natureza e a atrocidade do castigo pelo não pagamento. Como diz Chili, sempre existe coisa pior. Até agora temos concentrado nosso foco na figura do devedor individual. O devedor cidadão, a variedade mais comum dos devedores, o pedestre; o devedor sem exército. Mas o que se passa quando ampliamos a tela? E se quem pega dinheiro emprestado é — digamos — um rei, ou um imperador, ou um duque renascentista, ou um déspota à moda de Genghis Khan ou de Átila, o Huno, ou algum governo moderno, democrático ou não? Aí as coisas ficam ainda piores do que a “coisa pior” de Chili Palmer; pois, como os furacões, as erupções vulcânicas e os tsunamis, as grandes dívidas podem fazer história e alterar a paisagem. Em seu O príncipe — tratado didático sobre como governar com punho de ferro em luva de veludo refinada e perfumada —, Maquiavel se debruça sobre essas questões com uma lógica de dar calafrios, mas difícil de refutar. O que os líderes e pretensos líderes mais desejam e necessitam fazer, afirma ele, é ganhar, expandir e consolidar poder. Para tanto, precisam de seguidores e súditos — em nossa época, quanto às democracias, entenda-se “membros de partidos políticos” e “contribuintes”. Eles podem conseguir seus territórios por

força de herança, de conquista ou de astúcia e traição; porém, de todo modo, precisarão de um exército ou de uma força policial nacional — seja como for, de companheiros em armas — e, para alimentar e equipar seus exércitos, necessitarão de dinheiro. Podem pagar o exército conquistando mais territórios e praticando saques e pilhagens — gastando, assim, a riqueza de outras pessoas — ou usando a própria riqueza, que já deverão possuir, ou ainda tributando seus súditos. Mas se tributam excessivamente os súditos — “excessivamente” entendido, provavelmente, como o ponto além do qual a criança interior do súdito grita “Isso não é justo” por mais de doze horas por dia —, eles inspiram ódio e incitam à rebelião. Por outro lado, se tributam os súditos excessivamente de fato, de forma a resultar em pobreza e inanição generalizadas, eles podem ficar demasiadamente desnutridos, frágeis e debilitados para se rebelar; acrescente-se a isso que perderão o estímulo e a força para realizar qualquer trabalho produtivo. Contudo, ainda por outro lado, se as coisas forem assim tão longe, os súditos podem sentir que nada têm a perder se rebelando. Trata-se de uma sintonia fina. Uma boa forma de se colocar a questão da cobrança de impostos é dizer que os governos tomam emprestado das pessoas — às vezes realmente o fazem, na forma de emissão de bônus — e aí passam a ter para com o povo uma dívida a ser paga em serviços prestados. Até mesmo Maquiavel afirma que o príncipe deveria tentar promover a melhora da totalidade dos seus súditos, se possível. (E “se possível” parece significar “Se eventualmente sobrar algum dinheiro reservado ao custeio de todas as guerras que pretendo travar”.) O que os súditos desejam é dispor dos serviços sem pagar os impostos, e o que os governantes desejam é arrecadar os impostos sem prestar os serviços — esses desejos conflitantes parecem ser uma constante na história da humanidade, desde que há excedentes de

alimentos e hierarquias sociais, e exércitos, e impostos — e é por isso que sempre haverá alguém reclamando. Não obstante, é possível impor um regime pesado de impostos a pretexto de uma guerra vigorosa e moralmente justificável. A guerra prende a atenção; ninguém quer se sentir ou mesmo parecer desleal em momentos assim. Amedronte as pessoas com a ideia de que elas próprias podem ser vítimas de saques e pilhagens por parte de bárbaros desumanos e escravizadores, capazes de assar e comer os filhos delas, estuprar e destripar suas mulheres — não riam, isso já aconteceu —, e elas acabarão concordando com extraordinária docilidade, se não mesmo com entusiasmo. Só para recordar: o imposto de renda começou a ser cobrado na Grã-Bretanha em 1799 para financiar as Guerras Napoleônicas. Nos Estados Unidos, teve início em 1862, para apoiar a Guerra Civil. No Canadá, em 1917, a renda foi inicialmente taxada como medida provisória para bancar a Primeira Guerra Mundial. E os impostos são como mexilhões-zebra: uma vez introduzidos, é muito difícil se livrar deles. As guerras que o imposto de renda deveria financiar vieram e passaram, mas os impostos ficaram. Oh, está bem, isso é melhor do que tributar janelas, barbas, gente solteira — todas elas também já tiveram sua vez. É impressionante como os governos em geral tendem a se esquecer das suas dívidas de serviços em troca dos impostos pagos pelos cidadãos. E depois que o dinheiro é gasto, as pessoas não têm como recuperar as somas que se viram forçadas a emprestar, já que não controlam o exército. Numa democracia, pode-se derrotar um líder impopular votando em outro candidato. Numa tirania, podese arriscar um golpe armado ou um levante popular. Porém, em ambos os sistemas, mesmo sendo vencedoras da eleição, do golpe armado ou do levante popular, o povo ainda sairá perdendo. Na pior das hipóteses, seus filhos continuarão passando fome e/ou sem escolas, os sistemas de saneamento e tratamento de água continuarão

inexistindo, o dinheiro do seu imposto estará em alguma conta bancária na Suíça e o ex-ditador tomando sol na Riviera, protegido por muros altos e na companhia de caríssimos guarda-costas. Ou, numa democracia, seu dinheiro terá desaparecido nos decotes das dondocas do seu ex-líder político por via de um buquê de contratos generosos e superfaturados, e esse ex-líder estará esquentando os assentos acolchoados de meia dúzia de conselhos diretores de executivos agradecidos, bem longe de jornalistas enxeridos. De outro lado, se as coisas se tornarem caóticas demais e os conflitos iminentes, você deve ser capaz de sair desfilando pelas ruas com a cabeça de alguém numa estaca, gritando “Acabou a farra!”. Mas, embora isso possa satisfazer como ato de vingança, dá um prazer apenas temporário e não trará de volta seu rico dinheirinho. Uma farra, por falar nisso — e eu sei que vocês estão se perguntando —, não significa apenas uma dança irlandesa. Pode significar também um jogo, um truque ou um mecanismo engenhoso. Certos sistemas de impostos são farras, neste sentido da palavra; mecanismos engenhosos para arrancar mais dinheiro do que aqueles que o tiram cogitam restituir em forma de serviços prestados. Existem dois tipos de sistemas de tributação; os duros e os muito duros. O do Império Romano, durante sua fase expansionista — o primeiro século antes da era cristã —, era do tipo muito duro, pois recaía sobre a agricultura para apoiar suas constantes campanhas militares. Eis como funcionava o imposto sobre a atividade agrícola. Os governantes estabeleciam a cota de impostos para uma comunidade inteira e os coletores locais leiloavam o direito de pagar esse valor, ou mais, a Roma — quem desse o lance mais alto era o vencedor. O coletor de impostos pagava adiantado ao Estado e tinha o direito de cobrar da população local.

Não é preciso dizer que seu objetivo era recolher mais do que havia efetivamente pagado a Roma e embolsar a diferença. Fortunas se fizeram graças a todo tipo de trapaças e estratagemas — recebendo produtos no lugar de moeda corrente depois de subvalorizá-los, em seguida vendendo-os com bom lucro; especulando no mercado de grãos, com isso gerando escassez, depois revendendo à população a preços escorchantes o que lhe foi tirado a título de imposto e assim por diante. Não é preciso dizer que este sistema era altamente corrupto. Alguns historiadores o relacionaram entre as causas da decadência do Império Romano; explorar os camponeses a tal ponto que eles deixaram de produzir. E como qualquer pirâmide predatória; se não há mais peixes pequenos, a população de peixes grandes entra em colapso. Mas que não se pense que Roma foi a única a fazê-lo. A dinastia Ming, na China, se deixou minar mais ou menos dessa forma; o mesmo se deu com o Império Otomano; e com a monarquia francesa antes de Luís XVI. O nome que se dava em Roma aos coletores de impostos era publicani — que nos remete àquela passagem intrigante do Novo Testamento, “publicanos e pecadores”. Eu pensava que publicanos eram os homens que frequentavam os pubs e que seu publicanismo tinha algo a ver com os beberrões geralmente citados no mesmo contexto. Jesus de Nazaré tinha o hábito de passar tempo com essas três espécies de gente malcomportada — os pecadores e os beberrões — e agora que lhes contei a respeito do imposto sobre a atividade agrícola, pode-se entender por que essa ligação tão próxima, especialmente com os publicani, teria sido encarada pelos compatriotas de Jesus como muito, mas muito fora do padrão moral. O perverso sistema romano de imposto sobre a agricultura explica ainda por que os oponentes de Jesus lhe perguntaram se era pecado pagar imposto a Roma, dando origem assim à sua célebre resposta: “A César o que é de

César, a Deus o que é de Deus.” Esta resposta era um modo inteligente de escapar à armadilha, que consistia em que, respondendo “sim”, você estaria endossando um sistema de impostos escorchante para os camponeses, e dizendo “não”, seria acusado de sedição pelos tiranos romanos — mas desde então isso nos faz coçar a cabeça. O dinheiro será, em geral, coisa de César? Jesus estaria pregando Enganar o coletor de impostos? Além disso, muitos governos se desviaram de seu caminho para dar a impressão de que Deus e eles se achavam de tal forma fundidos que pagar a um era o mesmo que pagar ao Outro. Ou quase. Ou o mais próximo possível. Basta ver o que os governos escrevem em seu dinheiro, ainda hoje: No Canadá, Elizabeth D.G. Regina, forma abreviada de Dei Gratia Regina — Rainha pela Graça de Deus. Na Inglaterra, a inscrição é mais longa, incluindo iniciais que significam “Defensor da Fé”. E nos Estados Unidos o lema “Em Deus Confiamos” — o que, quando eu estava na faculdade, ensejava uma gracinha: “Em Deus confiamos, todos os demais pagam à vista.” Mas há uma outra vantagem em se ter a palavra “Deus” gravada no dinheiro oficial: parece conferir à moeda um imprimatur divino. O ressentimento em relação às pesadas tributações deu origem a um número enorme de rebeliões ao longo dos séculos. Para deixar mais claro: quando uma rebelião é bem-sucedida, é chamada de “revolução”. De outro modo, não passa de rebelião. Essas pesadas taxas frequentemente estavam relacionadas a guerras. A Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França inspirou uma rebelião na França, em 1358, chamada “a revolta dos Jacques” — denominação adotada mais tarde durante a Revolução Francesa — e também inspirou uma rebelião na Inglaterra, em 1381, deflagrada por um imposto comunitário destinado a levantar fundos para a guerra. Entre as queixas havia um movimento promovido pela nobreza para restaurar o sistema feudal, pelo qual os camponeses ficavam presos à

terra e devedores de mão de obra gratuita a seus senhores — na realidade, uma espécie de servidão. Este sistema se viu desgastado pela Peste Negra, a qual, ao dizimar metade da população da Europa, desencadeou uma carência de trabalhadores, elevando consequentemente o padrão do salário mínimo e o poder de barganha dos homens do campo. Moral da história: até a Peste Negra serviu para alguma coisa. A rebelião inglesa de 1381 foi liderada por um granjeiro de nome Wat Tyler, e um de seus participantes foi um padre chamado John Ball, que fez um sermão famoso pelos versos rimados “Quando Eva andava aqui com Adão/Quem era o dono das terras então?” A senha dos rebeldes era “John, o moleiro, mói tudo bem fininho”, a que correspondia a resposta “E o filho celeste do rei é que vai pagar”. Eu não tenho uma interpretação definitiva, mas me inclino a achar que o verso “o moleiro mói tudo bem fininho” faz referência ao antigo ditado grego muito citado, “Os moleiros dos deuses moem devagar, mas moem tudo muito fino”, o que significa que “O castigo pode tardar, mas, quando vier, os maus virarão pó”. A resposta queria dizer, acho eu, que, se os rebeldes tivessem de matar seus inimigos moendo-os bem fininho, seriam perdoados por isso na outra vida — sua dívida de pecados já tendo sido paga pelo sangue do Cristo sacrificado. Eles de fato mataram algumas pessoas antes de ser derrotados e executados de formas terríveis, mas atacaram para valer os coletores de impostos e queimaram seus registros. Sem memória não existe dívida, e um registro escrito é uma forma de memória; e onde e quando houver uma sublevação baseada em imposto-e-dívida, entre os principais alvos hão de estar sempre os registros de imposto e dívida. O princípio que operava nesses casos era Se você não tem como provar, eu não devo nada. A Revolução Americana foi outra que surgiu em função de um imposto considerado injusto — cobrado desta vez em nome de uma guerra que já tivera lugar. A guerra era a dos

Sete Anos, entre Inglaterra e França, e incluiu a captura de Quebec, em 1759. Se Quebec não tivesse caído, não teria havido Revolução Americana alguma, na medida em que os colonos da época não teriam como custear um exército próprio para se defender dos franceses. Entretanto, uma vez a Nova França em mãos dos britânicos, os colonos americanos estavam livres para se rebelar, o que fizeram prontamente. Todo mundo se lembra do que eles diziam naquela ocasião: “Não há taxação sem representação.” É verdade, aquela foi uma guerra de impostos. Para se vingar da Inglaterra e do seu mau gosto por vencer a Guerra dos Sete Anos, a monarquia absoluta da França apoiou os revolucionários americanos, endossando assim um modelo de ação antimonarquista imprudente de sua parte. Como gastaram também muito dinheiro apoiando os americanos, tiveram de aumentar os impostos sobre a população já desgastada. Houve um movimento de protesto, promovido — entre outros — por alguns não aristocratas conhecidos como sans culottes. Eu achava que essa expressão queria dizer que eles eram tão pobres que sequer possuíam calças, mas na verdade queria dizer que o que eles não tinham eram aqueles calções apertados na altura dos joelhos — peça fashion da indumentária da aristocracia da época. Essas distinções estilísticas se tornaram de grande importância durante a Revolução Francesa, que ocorreria em 1789, como se dá em todas as revoluções. Após a queda da Bastilha ocorreram levantes camponeses em massa e queimas de castelos de todos os que tinham culottes, e os registros de impostos e dívidas estavam novamente entre os primeiros itens a ser destruídos. Essa característica não é coisa do passado. Birmânia, em 1930, Vietnã — igualmente em 1930 — e Filipinas, em 1935, conheceram rebeliões anticolonialistas centradas em impostos pesados cobrados por forças imperialistas que usavam os recursos para os objetivos maquiavélicos de

ganhar, expandir e consolidar o próprio poder. Pensamos no levante húngaro de 1956 como uma espécie de explosão espontânea em favor da democracia, mas, na verdade, foi também determinado por uma pesada tributação cuja origem pode ser situada na URSS, na época da corrida armamentista da Guerra Fria. Em todas elas, um dos primeiros objetivos dos rebeldes consistia em destruir os registros de impostos e dívidas. Era uma forma bastante simbólica de começar tudo do zero. Se você é um rei, um príncipe, um tirano ou um governo democrático e pretende travar uma guerra, mas não deseja provocar uma revolta de impostos triturando bem os camponeses, pode obter o dinheiro de outras formas, como o empréstimo. Existem três fontes para esses empréstimosque-não-são-impostos; 1) seus próprios súditos, aos quais você pode vender bônus de guerra; 2) gente que empresta dinheiro em seu próprio país; 3) governos ou instituições financeiras de outros países. Se você toma emprestado dinheiro demais de outros países, mais cedo ou mais tarde verá restringida sua esfera de ação para expandir e consolidar poder porque, se algum desses outros países não gostar do que você está fazendo, pode retirar seu apoio financeiro. Neste caso, você sempre pode ameaçar não pagar seus já expressivos empréstimos e ele ficará com um déficit entalado. É o típico caso de devedor e credor unidos pelas costelas. (Nem preciso cochichar que é o caso de “Estados Unidos e China no momento atual”. Mas vou fazê-lo mesmo assim, acrescentando apenas: como dizia Maquiavel, é uma política terrível para qualquer líder deixar seu país mergulhar fundo em dívidas. Isso resulta em perda de poder e influência — geralmente as únicas coisas que o líder espera ganhar travando uma guerra cara. Saques e pilhagens, tudo bem; mas primeiro convém fazer as contas. Lembre-se: lucro total com saque-e-pilhagem, menos o tempo que isso requer, multiplicado pelo custo-por-minuto-

guerra, é igual a vermelho ou a preto. Se for vermelho, leve em conta o conselho do sr. Micawber e não entre nessa.) No entanto, se quem empresta dinheiro não é outro país, mas, ao contrário, acha-se dentro de seus próprios domínios, e você tomou emprestado dele o que entende ser dinheiro demais, pode apelar para um truque muito sujo, que já foi aplicado muitas vezes. É o jogo “Mate os Credores”. (Por favor, não tentem fazer isso com seus bancos.) Consideremos, por exemplo, o triste destino dos Cavaleiros Templários. Eram uma ordem religiosa de cavaleiros guerreiros que acumularam um grande capital em presentes a eles oferecidos pelos cristãos, bem como diversos tesouros que obtiveram durante as Cruzadas. Eles operaram como os maiores usurários da Europa — emprestando a reis e a outros — ao longo de mais de dois séculos. Para os cristãos, era ilegal cobrar “usura” pelo uso de dinheiro, mas não era ilegal cobrar “aluguel” pelo uso da terra, de modo que os Templários cobravam o que chamavam de “aluguel” por uso de dinheiro, que você pagava ao fazer o empréstimo, e não depois de tê-lo usado. Mas ainda tinha de pagar o valor principal no prazo determinado. Isso podia ser um problema para quem tomara o dinheiro emprestado, como é ainda hoje. Em 1307, Felipe IV da França descobriu que devia uma quantia absurda aos Templários. Com o auxílio do papa e de tortura, ele os acusou — falsamente — de atividades heréticas e sacrílegas, sitiou-os e os queimou vivos. Como por um passe de mágica, suas dívidas desapareceram. (O mesmo aconteceu com a vasta riqueza dos Templários, que jamais foi devidamente calculada desde então.) Felipe baseou seu proceder numa versão popular então existente do “Mate os Credores”, que poderia se chamar “Mate os Credores Judeus”. Era contra a religião cristã, na época, cobrar juros por empréstimos, mas não era contra a religião judaica que os judeus cobrassem juros a não judeus.

E, como na maioria dos países onde eles viviam, os judeus eram proibidos de ser donos de terras — a terra considerada a verdadeira fonte de riqueza —, viram-se eles assim empurrados para a profissão de emprestadores de dinheiro, pelo que eram desprezados e malfalados. Mas o dinheiro que ganhavam emprestando dinheiro era por sua vez frequentemente taxado pelos reis. Assim, uma relação cômoda, mas perigosamente simbiótica se deu: os judeus ganhavam dinheiro emprestando dinheiro, e os reis ganhavam dinheiro taxando o dinheiro que os judeus ganhavam. Os tomadores de empréstimos podiam ser os próprios reis ou os nobres — os quais, ao modo tipicamente maquiavélico, estavam tentando construir o próprio poder e influência a fim de se tornarem reis, ou possivelmente fazedores-de-reis, ou destruidores-de-reis, seja como for, algo mais acima na escala social; e ascender nessa escala custava dinheiro. Que eles muitas vezes tomavam emprestado dos judeus. Essa combinação volátil de dinheiro, reis, nobres e judeus redundou em inúmeras manifestações de “Morte aos Credores Judeus”, promovidas por um espírito de antissemitismo oportunista e sempre a postos. Vou restringir meus exemplos à Inglaterra, embora haja muitas outras histórias semelhantes em toda a Europa. Vejamos: em York, em 1190, nobres que deviam muito dinheiro a usurários judeus se voltaram em massa contra a população judaica. O mesmo estratagema foi empregado com os Templários, isto é, acusações de natureza religiosa. Os judeus se achavam sob a proteção de Ricardo I, mas este havia partido para as Cruzadas. Houve um massacre e pode-se imaginar o que aconteceu em seguida: os registros das dívidas foram queimados. Mas Ricardo dependia dos judeus para financiar — adivinhem o quê? — seus projetos de guerra e, irritado, instituiu um sistema de registros com cópias, e a partir daí passou a tributar os judeus ainda mais do que antes.

No século XIII, as coisas ficaram ainda piores para os judeus na Inglaterra, com massacres a intervalos regulares; além disso, o rei lhes cobrava vários impostos insustentáveis. Compreensivelmente, eles pediram para ir embora da Inglaterra em 1255, mas Henrique III negou o pleito, porque os judeus constituíam uma fonte conveniente de receita; tão conveniente que ele chegou a declará-los propriedade real, como se fossem parques ou praças. Porém, mudanças sucessivas na legislação, que limitavam cada vez mais suas atividades — impedindo-os de emprestar dinheiro, mas sem lhes oferecer alternativas —, foram empobrecendo os judeus que, em 1290, acabaram expulsos da Inglaterra, que assim se tornou o primeiro país a fazer tal coisa. Que ninguém pense que esse comportamento se verificou apenas na relação entre judeus usurários e os Cavaleiros Templários; permitam-me lembrar-lhes que Idi Amin expulsou de Uganda, em 1972, os católicos do leste da Índia — os East Indians eram muito bem representados no setor bancário —, e também como foram tratados os chineses no Vietnã, na década de 1970, inclusive sendo expulsos. Enquanto houver um grupo de gente “de fora” a quem um grupo “de dentro” deve dinheiro, o “Morte aos Credores” seguirá sendo uma forma bem à mão, ainda que moralmente repugnante, de cancelar dívidas. Obs.: não é preciso assassinar as pessoas para isso. Se você as puser para correr rapidamente, elas deixarão seus pertences para trás, e aí você passa a mão em tudo. E depois queima os registros (isso nem precisava dizer). Vocês devem ter notado que até aqui eu não mencionei os nazistas. A questão é que eu não tinha de fazê-lo. Porque eles não estão sozinhos. Estamos entrando agora na zona mais sombria da nossa jornada pelo lado sombrio da dívida. Sim: estamos nos aproximando da Terra da Vingança, o lugar em que uma dívida de honra não pode ser comprada com dinheiro. Neste

ponto eu gostaria de voltar ao sentido primata de justiça com o qual iniciei este livro. Vocês hão de estar lembrados que os macacos, no experimento que descrevi, eram bem felizes trocando pedrinhas por pedaços de pepino até que um deles ganhou, em vez de pepino, algo bem mais precioso: uma uva — diante do que a maioria dos macacos parou de negociar. Há também um experimento em que dois macacos podiam obter um alimento cobiçado puxando juntos uma corda — nenhum deles podia realizar sozinho a tarefa. A comida, entretanto, dava somente para um. Caso se recusasse a dividi-la, o outro macaco futuramente retaliaria, recusando-se a puxar a corda. Preferia castigar o macaco egoísta a ter uma chance de conseguir comida. Vocês conhecem esse sentimento. Todo mundo conhece. Será que o módulo da vingança é algo muito antigo e que se acha profundamente arraigado em nós? Certas culturas estimulam sua expressão mais do que outras, mas ele parece onipresente. Em geral não funciona simplesmente dizer às pessoas que não deveriam ser vingativas porque isso não é legal. O “homem econômico” é uma criatura adorada pelos economistas, que gostam de pensar que somos motivados puramente por fatores econômicos. Se isso fosse verdade, o mundo não seria necessariamente um lugar melhor, mas muito diferente. Dinheiro — como as pedrinhas dos macacos — é apenas e tão somente um meio de troca. Pode ser dado em troca de toda sorte de coisas, inclusive vidas. Às vezes é usado como pagamento por uma morte que você pode ter provocado — de uma vaca, de um cavalo ou de uma pessoa. Às vezes, ainda, é usado para pagar por uma morte que você pode ter desejado causar, e outras vezes para impedir que uma morte aconteça — nestes dois últimos casos nos referimos a ele como “dinheiro sangrento”. Algumas vezes, entretanto, essas equações monetárias simplesmente não serão suficientes: só o sangue o será.

No romance de Charles Dickens sobre a Revolução Francesa, Um conto de duas cidades, a perversa Madame Defarge passa o tempo que antecede o Terror registrando em tricô todos aqueles cujas cabeças devem rolar assim que a tormenta desabe. Como diz seu marido, “Seria mais fácil para o pior dos covardes sobre a face da Terra se apagar da existência do que apagar uma só letra do próprio nome ou de seus crimes do registro tricotado de Madame Defarge”. Seu tricô faz lembrar as Moiras da mitologia grega — as três irmãs que fiavam e por fim cortavam os destinos dos homens —, mas é também uma versão sinistra dos registros das dívidas de que falamos; e quando a guilhotina entra em ação, Madame Defarge comparece a todas as execuções, conta as cabeças e vai desfazendo o trançado dos nomes das vítimas, pois sua “pena” foi paga em sangue. Ao lado de Madame Defarge se acha outra tricoteira, cujo apelido é “A Vingança”. Esta mulher é uma espécie de substituta das divindades que presidem a Revolução, nossas velhas conhecidas; a deusa Nêmesis — ou Retribuição — e as implacáveis Fúrias, com seus olhos vermelhos. Quando a deusa mais equilibrada, Justiça, com sua venda e sua balança, perde o controle, essas deusas mais antigas e mais sanguinárias irrompem violentamente. Vou fazer uma pausa aqui para refletir sobre a palavra “vingança”, que, segundo o dicionário, deriva do latim revindicare. Que, por sua vez, vem de vindicare, que quer dizer justificar, resgatar, libertar ou emancipar, como em libertar um escravo. Assim, vingar-se de alguém é se relibertar, porque, antes de praticar a vingança, você não era livre. O que mantém alguém em situação de escravidão? A obsessão com o próprio ódio por outra pessoa: seu desejo irrefreável de vingança. Você sente que não é capaz de se livrar disso senão pelo ato de vingança. O resultado que precisa ser alcançado é psíquico, e a dívida

que não pode ser paga com dinheiro é psíquica. Trata-se de uma ferida da alma. Quem se vinga e aqueles que quem se vinga deseja matar ou punir são como credores e devedores. Vêm aos pares. São ligados pelas costelas. E daí para a teoria jungiana da Sombra falta muito pouco. Em narrativas que envolvem ódio irracional e obsessivo, especialmente por alguma pessoa ou grupo que não se conhece de fato muito bem, esse ódio — dizem os jungianos — é a marca de uma pessoa que não está de bem com a própria Sombra. A Sombra é o nosso lado escuro, o repositório de tudo de que temos vergonha em nós e que preferiríamos não conhecer, e também daquelas qualidades que proclamamos desprezar, mas que, na realidade, gostaríamos de possuir. Se não conhecemos tais coisas a nosso respeito, é provável que as projetemos sobre alguém ou outro grupo e que desenvolvamos um ódio irracional por essa pessoa ou por esse grupo. Na ficção, a Sombra costuma aparecer como um autêntico duplo, um gêmeo ou um replicante, como no conto de Poe “William Wilson” ou em O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Essas figuras gêmeas são muito presentes na literatura, no cinema e até em séries televisivas — lembro-me de que Data, o androide de Jornada nas estrelas: A próxima geração, ganhou certa vez uma figura maligna de Sombra. Todas essas tramas de “gêmeos do mal”, segundo afirmam os jungianos, têm relação com a Sombra. Isso se fundamenta evidentemente nas histórias de vingança, em que as Sombras andam à solta. Quem sabe por que o personagem A abomina tanto o personagem B? A Sombra sabe, e até que o personagem A também o saiba, e reconheça a Sombra como uma criatura feita à sua própria imagem, não se verá livre dela. Há todo um subgênero do teatro elisabetano e jacobiano conhecido como Tragédia de Vingança e, se analisarmos bem algumas destas peças, podemos ver os princípios da

vingança em ação. De modo geral, as tramas descambam para o exagero — literalmente — na medida em que uma vingança leva a outra e os cadáveres vão se amontoando em escala quase industrial. Não se trata apenas de TIT FOR TAT, é tit-for-tat por tit-for-tat por ra-ta-tá, como nas primeiras histórias de detetives de Dashiell Hammett. Em capítulos anteriores, referi-me às teorias de trickle-down da riqueza e da dívida; a Tragédia de Vingança, contudo, ilustra um efeito de trickle-down próprio: as coisas acabam sobrando para os espectadores relativamente inocentes. Hamlet é, entre outras coisas, uma Tragédia de Vingança, mas como é de costume em Shakespeare, ele pinça algo de algum lugar e o refaz de modo surpreendente: é a lentidão da vingança, não sua rapidez, que resulta na pirâmide de cadáveres do fim da peça. Shakespeare também reescreve a Tragédia de Vingança em O mercador de Veneza — uma peça tão equilibrada e espinhosa que até hoje inspira controvérsias acaloradas. É comum se dizer que todo ator sonha em interpretar Hamlet, mas fazer Shylock — que tanto pode ser o herói como o vilão da peça, ou possivelmente ambos, ou nenhum dos dois — talvez seja um desafio ainda maior, pois as complexidades de Shylock são muitas e se tornaram mais complexas com o passar do tempo. Como interpretar Shylock depois dos nazistas? Mais: como interpretar Shylock, agora que a cobrança de juros pela qual ele é desprezado e ofendido se transformou em prática padrão nos negócios? O mercador de Veneza tem todas as características que podemos reconhecer como integrantes da balança devedor/credor, tanto morais quanto financeiras — da pesagem dos corações pelos antigos egípcios, passando pela deusa Justiça erguendo sua balança à entrada dos tribunais, até a promessa feita ao homem do prego e o duvidoso contrato escrito. A ação da peça se prende ao

empréstimo de uma quantia em dinheiro, a garantia peculiar exigida e a noção de justiça. Shylock é judeu e usurário. Dois pontos contra para um autor elisabetano, é o que se imagina. Mas Shakespeare é um escritor muito pouco previsível; a ambiguidade é um dos seus sobrenomes. Será que ele se dá conta de que Shylock e Antônio são figuras de Sombra um do outro? Eles são os únicos dois personagens que acabam abandonados e sem par no fim da peça: todo mundo se casa. Antônio e Shylock seriam casados um com o outro, num certo sentido? Infelizmente Shakespeare não anda por aí dando entrevistas e portanto nós nunca saberemos. A trama, na medida em que se cinge a uma dívida e aos três personagens principais nela implicados, é até bem singela. Antônio quer emprestar dinheiro ao amigo Bassânio, mas não tem dinheiro vivo; então busca aval para um empréstimo numa terceira parte: o usurário Shylock, seu inimigo de longa data. Em vez de garantia em dinheiro, porém, Shylock exige meio quilo de carne de Antônio, a ser cortado bem próximo ao seu coração e pesado numa balança, caso o empréstimo não seja quitado na data prevista. Os navios cargueiros com que Antônio contava para fazer caixa se extraviam, a data de pagamento chega e Shylock reclama seu pedaço de carne. Mesmo quando lhe é oferecida uma quantia três vezes maior em dinheiro — como preço para o “resgate” de Antônio, de modo que ele não tenha que se ver privado da própria vida —, Shylock continua exigindo o que está escrito no contrato. Aqui não se trata de dinheiro. Apenas de vingança. Pórcia — a mulher que Bassânio conquistara graças ao dinheiro de Shylock e a seu próprio engenho — veste-se de advogado e se encarrega do caso. Primeiro pede misericórdia: o judeu deve ser clemente, argumenta ela. Shylock replica com a maior racionalidade: “E por que deveria?” Pórcia faz um belo discurso a propósito da misericórdia, que no entanto não se mostra convincente,

como aliás acontece com esse tipo de discurso. Então, como boa advogada, apela para as tecnicalidades: Shylock pode receber o que foi acordado, diz ela, mas nada além disso: ele terá que cortar e pesar a carne, mas sem derramar um pingo sequer de sangue, porque isso não está no contrato. Shylock, assim, fica sem seu meio quilo de carne e sem a quantia correspondente à dívida original. E não só isso: como um “alien” que conspirou contra a vida de um veneziano, sua própria vida é reivindicada pela lei. Pórcia e o juiz o livram dessa com a condição de que ele se torne cristão. Mas terá de dar metade de suas riquezas ao Estado — muito frequentemente o beneficiário nesses julgamentos — e a outra metade de seus bens mundanos à filha desobediente e ladra fugitiva, Jéssica, e ao homem cristão com quem ela é casada. Shylock não é uma representação de Fausto: ele não fez pacto com o Diabo. Há uma representação típica do pãoduro que vem da Nova Comédia Romana e atravessa o teatro moralista medieval como o personagem que retrata o pecado da cobiça, e reaparece mais tarde como o Pantaleão da commedia dell’arte veneziana, e daí ao século XVII, na peça de Molière O avarento, porém, embora compartilhe um pouco de suas características exteriores, Shylock não é um deles. As representações anteriores de um avarento são avarentas porque elas são avarentas, mas Shylock é judeu, e isso muda tudo. Do que eu disse sobre a perseguição dos judeus pelas mãos das massas rebeladas fica claro que Shylock tem motivos legítimos para cuidar para que sua casa, seus bens terrenos e sua filha estejam muito bem trancados. Se eu fosse Shylock, teria tido cuidado ao entregar também as chaves de casa. Antônio é geralmente considerado bom sujeito porque empresta dinheiro sem cobrar juros, mas por que atribuirlhe pontos por isso? Como cristão, na falsa “Veneza” daquela época, não lhe era permitido cobrar juros! Ele não tem necessidade de emprestar dinheiro algum, claro.

Portanto, ao fazê-lo, está atrapalhando os negócios de Shylock, mas não como um concorrente. Antônio não é um concorrente: ele não está no negócio de empréstimo de dinheiro, de forma alguma, uma vez que não ganha nada com isso. Conforme eu entendo, ele o faz fora de qualquer antissemitismo. Pelo que é demonstrado ao longo da peça, Antônio vem agindo com más intenções em relação a Shylock faz tempo, tanto em palavras como em atos. Ele projetou sobre Shylock — como sua Sombra — o dolo e a ganância de que ele próprio é possuidor, mas não é capaz de reconhecer. Fez de Shylock seu bode expiatório. É por isso que Shylock o odeia — não só por Antônio estar aviltando a taxa de câmbio. Shakespeare esclarece tudo isso para nós. Em Otelo, por exemplo, a chave para o mau comportamento de Iago está em seu próprio nome. Iago era o nome espanhol de São Jaime, que na Espanha era conhecido como Santiago Matamoros. Iago, portanto, é racista; por isso faz o que faz. E Antônio faz o que faz ao emprestar dinheiro não por camaradagem para com aqueles que pegam o dinheiro emprestado, mas por despeito e para se vingar de Shylock e dos judeus que emprestam dinheiro a juros, de todos os judeus, afinal. Fazer o papel de Antônio é um desafio ainda maior do que interpretar Shylock: como apresentar Antônio como um bom sujeito, mas deixando à mostra os motivos subjacentes das ações vingativas de Shylock tal como Shakespeare as escreveu? Muitas produções minimizam o antissemitismo de Antônio e de seus companheiros, mas a versão de Richard Rose, apresentada em Stratford, Ontário, em 2007, dá a devida importância a esse aspecto da obra. Shylock foi interpretado por um índio norte-americano autêntico, que não descaiu nas lamentações, nas prostrações e nos excessos que no passado fizeram de Shylock um personagem semicômico, embora desprezível; ao contrário, ele apresentou um Shylock digno, discreto, que foi

desfigurado e de certa forma levado à loucura pelo ódio da sociedade a que teve que servir — como tem sucedido a muitos nativos norte-americanos. Achei que essa linha de atuação captou perfeitamente o sentido da peça. No entanto, os críticos, em sua maioria, não gostaram; queriam que Antônio não passasse de um sujeito comum. Os três personagens principais violam as religiões que proclamam seguir. Antônio viola aquilo que seguramente constitui o princípio central do cristianismo: amar o próximo como a si mesmo. A este respeito Jesus inteligentemente contou a história do Bom Samaritano. Seu próximo não é apenas seu correligionário — próximo é uma categoria em que se incluem até aqueles de quem você está teologicamente distante. Shylock é o próximo de Antônio, mas Antônio não o trata como tal. Como diz a velha anedota, “Cristianismo — uma bela religião, pena que nunca experimentada”. Shylock tem razão quando afirma que aprendeu a ser vingativo com os cristãos com quem convivia: e aprendeu mesmo. Já Shylock viola a lei de Moisés — a lei deuteronômica segundo a qual não se pode penhorar o meio de sobrevivência de um homem; isto é, não se pode — como parte de um contrato de empréstimo — pôr em risco a vida de alguém. Esta é uma questão que o próprio Shylock assinala no fim da peça, quando observa que Pórcia o privou da capacidade de ganhar a vida. “Você me tirou a vida”, diz ele. “Quando me tirou os meios graças aos quais eu vivo.” Esse mesmíssimo princípio está hoje incorporado à legislação sobre dívida e falência — ninguém pode confiscar as ferramentas de que uma pessoa necessita para seu negócio. Shylock, portanto, é duas vezes punido: primeiramente, com a perda do seu dinheiro — quer dizer, do capital, que constitui sua caixa de ferramentas — e, em segundo lugar, pela cláusula que o obriga a virar cristão, o que o impossibilita de cobrar juros.

Pórcia parece ser a melhor dos três. Ela de fato faz um belo discurso sobre a misericórdia, que tínhamos que decorar na faculdade e que começa assim: “A natureza da misericórdia não é contida.” Ninguém me explicou que “contida”, ali, queria dizer “limitada”, isto é, forçada, compelida, obrigada, então na minha cabeça ficou a imagem de uma peneira, da qual tive muita dificuldade para me livrar. O contraponto a esta fala de Pórcia é a famosa fala de Shylock (Ato III, cena I): (I am a Jew.) Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions; fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, heal’d by the same means, warm’d and cool’d by the same winter and summer as a Christian is? If you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you poison us, do we not die? And if you wrong us, shall we not revenge? If we are like you in the rest, we will resemble you in that.[5] Quando estudei isso na faculdade, eu achava que Shylock estava dizendo que era uma pessoa tão boa quanto qualquer outra, o que não é exatamente correto. Na verdade, ele diz que é apenas humano. Seu corpo é igual a qualquer corpo humano, e seu desejo de vingança também é igual ao de qualquer outra pessoa. A fala de Pórcia coloca a misericórdia acima da justiça, o que soa muito bonito; mas o que nela é dito, na realidade, é que Shylock tem de se mostrar mais clemente do que os outros têm sido com ele. Como Shylock não se revela capaz disso, Pórcia deixa de fazer o elogio da misericórdia revertendo à justiça do olho-por-olho tit-for-tat, e mais. O certo é que determinada misericórdia emerge do caso: Antônio parece ter seu ímpeto de vingança aplacado pela experiência de ver a morte de perto, e Shylock permanece

vivo; como ele fará para ganhar a vida no futuro, entretanto, é uma questão interessante. Mas ele deve ser absolvido da acusação de cobiça excessiva. Foi-lhe oferecida uma soma três vezes maior do que a dívida em lugar do pedaço de carne, e ele recusou. Com isso, ele viola o código da prática comercial — ter lucro, em quaisquer circunstâncias — bem como o código de Moisés sobre o resgate de objetos penhorados, e opta pela vingança. Como observa James Buchan em uma arguta análise de O mercador de Veneza, em seu fascinante livro Desejo congelado, sobre a natureza do dinheiro: “Precisamente no momento em que deve ser bem-sucedido, Shylock vira presa dessa violência que a invenção do dinheiro veio substituir. Não posso precisar plenamente esse ponto. O meio quilo de carne não é uma garantia segura... pois não tem como ser retirado e transformado em dinheiro. Trata-se, ao contrário, de uma pena insana e primitiva (...) na qual o dinheiro não compensa uma afronta ao corpo, e, sim, o inverso: não dinheiro-de-sangue, mas sangue-dedinheiro.” Há dois antídotos para a interminável reação em cadeia de vingança e contravingança. Um é pela via dos tribunais, a que presumivelmente incumbe avaliar, dimensionar e decidir sobre as questões entre devedor e credor de uma forma justa e imparcial. Se sempre o fazem é, evidentemente, algo que admite uma série de interrogações, porém, em tese, esta é a função deles. O outro antídoto é mais radical. Diz-se de Nelson Mandela que, após muita perseguição e quando finalmente se viu livre da prisão onde fora trancafiado pelo governo do apartheid na África do Sul, falou a si mesmo que deveria perdoar a todos os que lhe haviam feito mal quando cruzasse os portões da cadeia, caso contrário jamais se livraria deles. Por quê? Porque ficaria preso a eles pelos laços da vingança. Seriam sempre, Mandela e eles, figuras gêmeas da Sombra, unidos pelas costelas. Em outras

palavras, o antídoto para a vingança não é a justiça, mas o perdão. Quantas vezes devemos perdoar?, perguntou alguém a Jesus de Nazaré. Setenta vezes sete, ou quantas forem necessárias, foi a resposta. Pórcia, portanto, estava certa em princípio, embora ela própria não tenha conseguido perseverar. A lei religiosa muçulmana permite aos membros da família de um morto participar do julgamento do assassino: se quiserem, eles podem optar pela misericórdia, e se reconhece que esta é uma escolha nobre, que os libertará da ira e do sentimento de vitimização. Existem muitos outros exemplos culturais em que a vida não é tirada em troca de uma vida. Um grupo de indígenas americanos apresentou recentemente, em 2005, uma Proclamação de Perdão aos Estados Unidos — se eles relacionassem todas as coisas a perdoar, tenho a impressão de que a lista seria bem maior —, e não posso deixar de mencionar o extraordinário processo de Verdade e Reconciliação que vem tendo lugar na África do Sul desde o fim do apartheid. Vocês podem estar achando que toda essa conversa mole de perdão não passa de idealismo piegas do tipo batapalmas-quem-acredita-em-duendes; no entanto, se pedido sinceramente e sinceramente aceito — as duas partes são reconhecidamente difíceis —, o perdão parece ter um efeito libertador. Como já observamos, o desejo de vingança é uma corrente pesada e a própria vingança leva a uma reação em cadeia. O perdão quebra essa cadeia. Agora respirem fundo, fechem os olhos e procurem fazer o seguinte exercício de revisionismo histórico; estamos em 11 de setembro de 2001. Depois que dois aviões as atravessam, as Torres Gêmeas desabam em vagas de fumaça e fogo. Mensagens de vingança são disseminadas pela Al-Qaeda. O presidente dos Estados Unidos vai à televisão e diz em cadeia internacional:

Sofremos uma grave perda — um ataque foi desencadeado contra nós, motivado por um desejo obsessivo de nos abalar. Entendemos que se trata de obra de um pequeno grupo de fanáticos. Outras nações bombardeariam as populações civis onde, neste momento, esses fanáticos estão alojados, mas nós reconhecemos que esta seria uma ação sem nenhum sentido prático. Também não vamos acusar as nações que não tomaram partido de estar envolvidas nisso. Sabemos que atos de vingança costumam se voltar contra aqueles que os praticam e não queremos perpetuar uma reação em cadeia de vingança. Assim, vamos perdoar. Imaginem o impacto de semelhante posição, não que houvesse a mínima chance de isso acontecer. Agora imaginem como seria diferente o mundo de hoje caso ela tivesse sido efetivamente tomada. Não teríamos a atual guerra ao Iraque. Não haveria impasse no Afeganistão. E, sobretudo, não teríamos essa dívida americana — enorme, inchada, ruinosa, fora de controle — que vem debilitando toda uma nação. Onde vai dar tudo isso?, sem dúvida é o que todos vocês estão se perguntando. Depende do que querem dizer com “tudo”. No que diz respeito a este livro, vai dar no próximo e último capítulo, que tentará examinar o que acontece quando o equilíbrio entre débito e crédito fica ainda mais descontrolado. Esse último capítulo se chama “Payback”. Fui pesquisar o termo na internet e, além de vários filmes com este nome, descobri um site — ThePayback.com — que se anuncia como “o endereço para todas as suas necessidades de vingança”. Hoje em dia parece que se pode encomendar qualquer coisa pela internet, inclusive “peixe morto”, “almanaques de piadas” e “bilhetes de loteria vencidos”. Mas meu último capítulo não tem nada a ver com mandar uma caixa de rosas murchas para seu ex-amor. Está

mais para os moinhos dos deuses, que moem bem devagar, mas muito, muito fininho.

[5] (Eu sou judeu.) Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as mesmas armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Tradução de Nélson Jahr Garcia, disponível em ebooksbrasil.com. (N. da T.)

CINCO

PAYBACK

O tema geral deste livro é o que venho tratando como a condição gêmea de devedor/credor, considerada em seus aspectos mais amplos; e, como um prelúdio a este último capítulo, gostaria de recapitular alguns dos temas-chave abordados até aqui. O primeiro capítulo, “Antigas balanças”, abordou nosso senso humano de equidade, equilíbrio e justiça, algo que é muito antigo. Suas origens podem perfeitamente ser préhumanas — um senso que os estudos científicos do comportamento de macacos e chimpanzés tenderiam a confirmar. Esses animais possuem opiniões firmes sobre a divisão de bens e a taxa de câmbio justa, negando-se a trocar um pedaço de pepino por uma pedrinha, por exemplo, quando seu igual consegue uma uva por ela e lembrando-se de quem lhes deve favores em troca de favores anteriormente prestados. Defendi que nenhum de nossos inúmeros sistemas de débito e crédito poderia existir sem um módulo humano inato capaz de avaliar o que é justo e o que é injusto e de buscar o equilíbrio; de outra forma, ninguém emprestaria dinheiro e ninguém pagaria o que pegou emprestado. Entre animais solitários, como o porco-espinho, um módulo cerebral como esse não teria a menor serventia; porém, entre animais sociais como nós, dependentes como somos de dar e receber, ele parece bem necessário. Como também é necessário um senso de payback — que ação negativa você praticará no caso de alguém não devolver o que lhe deve. Naqueles primeiros tempos, foram criados muitos sistemas sofisticados de dívidas e reembolsos; por exemplo, o julgamento post-mortem da alma entre os antigos egípcios, em que o coração era pesado perante a deusa da verdade, justiça, equilíbrio, bom comportamento e da ordem

do cosmos e, caso estivesse em déficit, era devorado por um deus-crocodilo. Certas dívidas, entretanto, não são dívidas de dinheiro: são dívidas morais, ou que têm relação com desequilíbrios na ordem correta das coisas. Assim, em toda consideração de dívida, o conceito de equilíbrio é essencial: devedor e credor são dois lados de uma entidade única, um não pode existir sem o outro e as trocas entre ambos — numa economia, numa sociedade ou num ecossistema sadio — tendem ao equilíbrio. O segundo capítulo, “Dívida e pecado”, explorou, como era de se esperar, a ligação entre dívida e pecado. O que é moralmente pior: ser um devedor ou um credor? A condição pecaminosa foi atribuída a ambos. Aquele capítulo também examinou as ligações entre dívida e memória, e entre dívida e contratos escritos — levando naturalmente a um tema sempre presente na cultura ocidental, o pacto com o Diabo, que propus se considerasse o primeiro esquema do tipo compre agora, pague depois —, sendo o exemplo maior o do Doutor Fausto. Uma barganha faustiana é aquela em que você troca sua alma ou algo igualmente vital por uma série de porcarias efêmeras que reluzem, mas que, no fim das contas, nada valem. Também explorei o conceito de redenção, ou resgate — que se aplica tanto à prática das lojas de penhor quanto a escravos remidos e almas remidas. No terceiro capítulo, “A dívida como trama”, analisei com mais vagar a barganha faustiana — especialmente por meio das histórias do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe, e de Ebenezer Scrooge, de Charles Dickens, o último sendo, conforme propus, a imagem reversa do primeiro. A dívida foi identificada como leitmotif da ficção do Ocidente, sobretudo a do século XIX — século em que, tendo o capitalismo saído vencedor e o dinheiro se transformado na medida da maior parte das coisas, a dívida teve papel significativo na vida das pessoas de carne e osso. No século XIX, os moinhos industriais cresceram, multiplicaram-se e conduziram a essa

expansão capitalista, e por isso também discuti os sinistros atributos tradicionalmente relacionados com os moleiros — tidos como trapaceiros e provavelmente como gente que pactua com o Diabo, uma vez que pareciam capazes de fazer dinheiro do nada. Moinhos e moleiros estavam ligados aos moinhos mágicos do folclore, que moíam qualquer coisa que se quisesse, mas eram difíceis de parar. Concluí o capítulo fazendo referência aos moinhos dos deuses — aqueles moinhos que moem devagar, mas muito minuciosamente. A maioria das pessoas acredita num antigo ditado grego segundo o qual o castigo pelo mau comportamento demora, mas, quando vem, é devastador. Essa ideia vigorosa nos levou ao quarto capítulo, “O lado sombrio”, no qual abordei as mais repugnantes formas de equilíbrio contábil de débito e crédito. Aí se incluem as prisões para devedores, o repertório de táticas criminosas dos agiotas, assassinar os credores, rebelar-se contra os governantes quando os impostos que cobram são demasiadamente pesados ou injustos, e — saindo das fronteiras financeiras para penetrar numa área em que o pagamento em dinheiro simplesmente não se aplica — a vingança, o revanchismo empapado de sangue. E aí chegamos ao “Payback”, meu quinto e último capítulo. Vou tentar torná-lo o menos doloroso possível. Não, pensando melhor, não farei isso: porque, se não fosse doloroso, não se trataria de payback, certo? Na minha parte do mundo, temos um ritual de troca de frases mais ou menos assim: Pessoa 1: “Que lindo dia temos hoje.” Pessoa 2: “Vamos pagar por ele mais tarde.” Sendo minha parte do mundo o Canadá, onde temos muitos problemas com o tempo, sempre pagamos por ele mais tarde. Alguém dirá, “Não é por causa do Canadá, é o presbiterianismo”. Seja por que for, esse é um tipo de comentário muito frequente entre nós.

O que essa típica troca de frases revela é uma tendência maior de pensar nas coisas mais agradáveis da vida: elas só podem ser obtidas por empréstimo ou a crédito, e mais cedo ou mais tarde virá o dia em que deverão ser pagas. Este capítulo é sobre isso. Sobre a hora de pagar. Ou a hora do payback, supondo-se que você não tenha pago. Em todo caso, aquela hora em que o que quer que se ache em um dos lados da balança é pesado em relação ao que quer que se ache no outro lado — seja seu coração, sua alma, suas dívidas — e são feitos os cálculos finais. Toda dívida vem com uma data em que o pagamento vence. Do contrário, o credor nunca seria capaz de receber, e dessa forma nunca mais haveria de emprestar qualquer coisa, e todo o sistema de empréstimos e liquidação de débito entraria em súbito colapso. No setor de serviços financeiros, a data de cobrança vem registrada nos documentos de hipoteca, empréstimo ou no contrato do cartão de crédito. Você tem que pagar naquela data ou renovar o empréstimo; ou, se você prorroga suas despesas no cartão de crédito, os juros disparam, e aí as coisas podem rapidamente ficar bastante desagradáveis. Outras espécies de dívida têm também suas datas de cobrança. Com efeito, dívidas de toda natureza estão sempre aliadas aos simbolismos de tempo, cálculos e números. Na Bíblia, no Livro de Daniel, a mão sem corpo que aparece no banquete de Belsazar escreve em aramaico na parede: Mene, mene, tequel e parsim. O profeta Daniel interpreta a inscrição — contou, contou, pesou e dividiu — que significaria que o reino de Belsazar foi contado e acabou — em outras palavras, sua contagem terminou —, foi pesado na balança — o mesmo tipo de balança da alma, do coração ou dos pecados, usada pelos antigos egípcios, pelo que supomos — e, no dia seguinte, chega a hora do payback. Belsazar é assassinado e seu reino dividido. Calendários, relógios, sinos batendo as horas: todos eles marcam o tempo, e o tempo passa, para a vida dos mortais

assim como para as dívidas. Aquele relógio do vovô, que era grande demais para a prateleira e por isso ficou noventa anos no chão, foi comprado no dia em que vovô nasceu e fez tique-taque, tique-taque por noventa anos a fio, sem descanso, tique-taque, tique-taque, contando os segundos de sua vida, como um coração batendo; mas parou de repente e nunca mais andou quando o velho morreu. (Eu aprendi canções inesquecíveis no terceiro ano.) A figura medieval da Morte carrega uma ampulheta e uma foice, e a ampulheta significa que a areia do tempo — do seu tempo — é finita e escoa rapidamente. A carruagem alada do tempo está inexoravelmente chegando cada vez mais perto. No conto de Edgar Allan Poe “A Máscara da Morte Vermelha”, em que o príncipe Próspero e seus milhares de convidados escolhidos a dedo tentam escapar da peste passando de um aposento reluzentemente colorido do palácio para outro, há um enorme relógio de ébano no sétimo e último dos cômodos. (Por que sete? Eu apostaria nas sete idades do homem.) Esse relógio aziago também faz tique-taque, e um bong doze vezes, pois é meia-noite — a hora mística — e então todo mundo no palácio cai duro com os corpos cobertos de manchas vermelhas, porque é possível correr, mas não se esconder. Não do Tempo e de sua irmã siamesa, a Morte. (O relógio de Poe, como o do vovô de noventa anos, e os relógios de pulso e de parede de tantas histórias de crimes misteriosos — os que têm buracos de balas —, param de bater com a última batida do coração.) Portanto, nunca perguntem por quem os sinos dobram, como disse o poeta do século XVII John Donne. Eles dobram por vocês. Ou vão dobrar. E depois deixarão de dobrar, como todos esses relógios da literatura. O tempo é uma condição da vida de nossos corpos físicos: sem ele não podemos viver — ficaríamos paralisados, feito estátuas, porque não seríamos capazes de mudar; porém, no fim do tempo, do nosso tempo, não

precisamos mais do Tempo. Não existem relógios no Céu. Nem no Inferno. Em ambos, tudo é sempre agora. Ao menos, é o que dizem. No Céu, não existem dívidas — todas foram pagas, de um jeito ou de outro —, mas no Inferno só o que há são dívidas, e exige-se boa parte do pagamento, embora ninguém jamais consiga quitá-las todas. É preciso pagar, e pagar, e seguir pagando. Logo, o Inferno é como um cartão de crédito maximizado que vai multiplicando as despesas infinitamente. Eis aqui o Doutor Fausto, de Marlowe, falando da data de cobrança do contrato de empréstimo que fez com Mefistófeles. Está refletindo sobre a inexorabilidade do tempo, embora também esteja ansiando eloquentemente para que ele seja estendido: Escrevi um contrato com meu próprio sangue: a data expirou; está chegando a hora e ele virá me buscar... Ah, Fausto, agora só te resta uma mera hora de vida, e então estarás perdido para sempre! Detenham-se, esferas sempre móveis do céu, essa hora precisa parar e a meia-noite nunca deverá soar. Belos olhos da Natureza, conservem-se abertos para perpetuar o dia; ou façam com que essa hora se transforme em um ano, um mês, uma semana, um dia inteiro, e que Fausto possa se arrepender e ter a alma salva! O lente, lente currite, noctis equi! As estrelas continuam se movendo, o tempo passa, o relógio baterá, o Diabo virá, e Fausto será maldito. O trecho em latim desta fala é um fragmento de ironia triste e angustiada, extraído de um poema de Ovídio em que ele pede aos cavalos da noite — que puxam a carruagem alada do Tempo — para irem devagar. Dessa forma, a noite se alongará, e ele poderá passar mais tempo na cama com sua amada. Mas a invocação não funciona para o coitado do Doutor Fausto: o tempo marcha inexoravelmente, o tempo foge, não só soa o relógio como

também o sino da meia-noite, e o temido pagamento é exigido. Como eu disse anteriormente, temos boas razões para crer que o Doutor Fausto, de Marlowe, e o Ebenezer Scrooge, de Dickens, são imagens especulares um do outro — tudo que Fausto faz, Scrooge faz ao contrário. E o mesmo se dá com o Tempo. O que Fausto mais anseia — que o tempo ganhe elasticidade de modo que a data prevista no contrato nunca chegue, e ele não tenha de pagar a Mefistófeles com seu corpo e sua alma —, esse tempo elástico, é algo que Scrooge de fato consegue. A hora fatal para os dois homens é entre a meia-noite e uma da manhã. Entre aqueles que percorrem as trilhas mais sinuosas da associação mitológica, meia-noite assinala o início do que é conhecido como momento-dobradiça. Hoje essa expressão significa “momento de virada”, mas eu a estou empregando num sentido mais antigo, que data de um período em que se imaginava que o tempo abria e fechava em determinados momentos — O Dia das Bruxas e os solstícios, por exemplo —, quando as portas entre o nosso mundo e os outros mundos se mantinham abertas em seus gonzos; e é nessa hora que Fausto é arrebatado pelos demônios. Trata-se da mesma hora que é tão importante para Ebenezer Scrooge, que recebe seus dois primeiros Espíritos do Natal no que ele pensa ser uma da manhã durante duas noites seguidas — sendo a primeira a véspera do Natal —, e o terceiro à meia-noite da terceira noite; mas quando ele acorda, as três noites tinham se fundido numa só, e o que deveria ser dois dias depois do Natal ainda é apenas a manhã do dia de Natal. O tempo para Scrooge corre mais lentamente, de forma que ele realiza numa noite o que deveria levar três; e no curso dessa única noite ele vive novamente sua vida inteira, tem uma antevisão de sua provável futura morte e só então é devolvido ao presente. Com isso, sua data de pagamento é adiada, e ele se vê

entrando novinho em folha no mundo — um mundo que finalmente pode abraçar como seu. “Sim!, e era dele a trave da cama”, Scrooge pensa. “A cama era dele, o quarto era dele. O melhor de tudo e o que o deixava mais feliz era que era todo dele o Tempo à sua frente, para fazer emendas.” Ele então informa que não sabe em que dia do mês está, e que se sente alegre feito um garoto e, além do mais, é um bebê. Neste ponto há uma confusão de dobres de sino; mas não se trata dos solenes dobres que anunciam uma morte nem estão saudando o transcorrer inexorável do tempo. São, ao contrário, sinos de celebração. Celebram um nascimento — dois nascimentos, na realidade: o de Jesus e o do bebê renascido Scrooge. Esses sinos estão comemorando também o fim das regras comuns do tempo e das regras comuns da dívida. Scrooge ganhara uma moratória. Ganhara mais tempo — na verdade, uma vida extra — que agora usaria para pagar o que tomara emprestado; para, como ele mesmo diz, fazer “emendas”. Façamos aqui uma pausa para refletir sobre as origens da palavra “emendas”. Segundo o dicionário, “emendas” deriva de uma palavra [amends] que originalmente, em inglês, significava um pagamento, em dinheiro ou bens, por algo feito de errado. Então, ao fazer emendas, Scrooge está pagando uma dívida moral. A quem ele deve, e por quê? Na concepção de Dickens, ele está em dívida com seu próximo: passou a vida toda tomando dinheiro dos outros — é daí que vem sua fortuna —, mas nunca dera nada em troca. Por ser um credor de tamanha magnitude no sentido financeiro, ele próprio se tornou um devedor no sentido moral, e é o entendimento disto que está no cerne de sua transformação. Dinheiro não é a única coisa de valor que deve fluir e circular: bons favores e presentes também precisam fluir e circular — exatamente como ocorre entre os chimpanzés — para que um sistema social permaneça equilibrado.

Sabemos como Scrooge emprega seu tempo extra — comprando perus, salvando Tiny Tim, fazendo doações caridosas, participando de brincadeiras de salão e aumentando o salário de Bob Cratchit; em suma, fazendo o bem ao próximo, caracterizado em certos casos pelas somas que está pronto a distribuir. Nós, leitores e espectadores, sempre nos sentimos felizes ao chegar a essa parte da história: dá uma sensação agradável, gostosa, de conforto e emoção, que nos faz derramar lágrimas profusas, eu, pelo menos. Mas aí o cenário de neve cintilante vai se apagando e nós fechamos o livro, saímos do cinema ou desligamos a televisão e não pensamos mais no assunto, pois a história de Scrooge não passa de um conto infantil datado e precisamos retornar à nossa vida real de gente adulta. Mas sigamos com Scrooge ainda por mais um instante e façamos um pequeno exercício mental. Certas pessoas têm o hábito de dizer “O que Jesus faria?” Isso soa como uma tremenda beatice, embora às vezes quem pergunte acabe obtendo respostas curiosas — bombardearia o Irã, arrocharia os pobres, incendiaria uma igreja, faria intrigas de seus oponentes políticos, torturaria um pouquinho, e assim por diante. É muito difícil imaginar Jesus postado à frente de um prisioneiro de guerra algemado, investindo contra ele com um cajado. Podem me achar uma reacionária démodée, mas nos textos oficiais Jesus aparece como vítima dessas práticas, não como aquele que as pratica. A maioria de nós não se parece em nada com Jesus, portanto é difícil imaginar o que ele de fato faria caso se fizesse presente, em pessoa. Porém, embora não sejamos como Jesus, somos na verdade bem parecidos com Scrooge. Assim, o que faria Scrooge se estivesse entre nós hoje em dia, e se deparasse com os problemas que enfrentamos atualmente, para não falar da data de vencimento da dívida que está vindo tão rapidamente em nossa direção? E se ele

ganhasse um tempo extra para fazer emendas, que formas estas assumiriam? Scrooge se sentiria no dever de pagar uma dívida moral para com seus próximos, ou acabaria se dando conta de que existem dívidas de outras espécies que precisa pagar também? Vamos descobrir. Como se sabe, existem dois Scrooges. O velho pecador — chupado, retorcido, ganancioso, imprestável, sovina, interesseiro — com o qual nos deparamos primeiramente na história — vou chamá-lo de “Scrooge Original”, na esteira de como procedem certas indústrias de bebidas e salgadinhos. E há o segundo Scrooge, o que emerge da sua própria experiência de renascimento. Esse eu chamarei de “Scrooge Light”, porque as ilustrações de Arthur Rackham mostram o Scrooge Original arriado ao peso de um saco de dinheiro, enquanto o Scrooge Light aparece ereto com as duas mãos abertas — ele virou um mão-aberta —, feliz e sorridente, mais leve tanto em termos de dinheiro quanto de espírito. A pesquisa recente confirma Dickens e Rackham — aparentemente, gente rica não fica feliz apenas por ter muita riqueza, mas se sente mais feliz quando presenteia um pouco dela. Li sobre esse fenômeno num jornal, logo, deve ser verdade. Se vocês querem se sentir realmente felizes recorrendo a esse método, sugiro que ajudem a salvar os albatrozes da extinção. Isto pode ser feito. Pode ser feito agora, bem entendido. Amanhã pode não ser possível, porque salvar uma espécie da extinção é algo que também tem uma data carimbada, como a dívida e a vida mortal. Seja como for, estes são os dois Scrooges tradicionais: o Scrooge Original e o Scrooge Light. Vamos, porém, abordar um terceiro: o Scrooge que existiria caso estivesse no meio de nós nesse começo de século XXI. Vou chamá-lo de “Scrooge Nouveau”, porque quando se lança um produto de última geração convém lhe dar certo toque francês.

O Scrooge Nouveau tem a mesma idade do Scrooge Original, mas não parece. Aparenta ser bem mais jovem, porque, diferentemente do Original, ele gasta muito; e gasta com ele mesmo. Faz um transplante capilar, umas correções faciais, sua pele é bronzeada graças às inúmeras viagens que faz em seu iate particular, e seus dentes muito alvos e finamente restaurados reluzem artificialmente na escuridão. Eu já ia instalá-lo num campo de golfe próprio, mas isso não daria certo porque um campo de golfe com apenas um jogador não é de fato um campo de golfe, do mesmo modo que um formigueiro em que há apenas uma formiga não é realmente um formigueiro; e Scrooge Nouveau não iria querer jogar com mais ninguém, uma vez que não lhe passa pela cabeça a ideia de perder, mesmo em teoria. Às vezes ele sai para caçar e mata uns bichinhos, mas só a uma distância bem segura. Em matéria de lazer, se parece muito com o príncipe renascentista de Maquiavel, apesar de não envenenar ninguém. Ao menos não diretamente. Scrooge Nouveau só envenena alguém como efeito colateral, deplorável, mas inevitável, de uma boa análise custobenefício: seria muito mais dispendioso não envenenar, e as ações legais subsequentes sempre podem ser declaradas como despesas correntes. Ao contrário do Scrooge Original, Scrooge Nouveau não é uma pessoa intratável, pelo menos à primeira vista. Encontra-se à venda atualmente um livro que ensina você a ficar rico, muito rico, bancando o “e$perto”, mas Scrooge Nouveau já é muito rico e portanto não precisa se fazer de “e$perto”. No início, sim, ele de fato teve que fazer isso — afinal, foi assim que ficou rico, muito rico —, mas agora tem quem o faça por ele. Desse modo, não se mostra grosso e mal-humorado nem é rude com os que buscam caridade, como era o Scrooge Original. Se não quer ver esse tipo de gente, ele simplesmente manda dizer que está numa reunião.

Se a legislação corporativa de hoje existisse em 1843, o Scrooge Original teria tido uma sociedade anônima em vez de uma empresa — muito mais seguro para ele! —, mas as sociedades limitadas só foram surgir em 1854 e só chegaram a sua plena condição de instrumentos legais no fim do século XIX. Assim, o Scrooge Original era sócio de uma empresa — Scrooge & Marley — e, pela ordem em que aparecem os nomes, podemos inferir que ele era o sócio majoritário e fazia jus ao melhor escritório, se fizesse caso dessas coisas. Mas não fazia: o escritório do Scrooge Original era triste, lúgubre e acanhado, como tudo que lhe dizia respeito. Scrooge Nouveau, entretanto, vive no século XXI, possui um escritório luxuoso, mas não tem uma empresa. Tem uma sociedade anônima. Na verdade, muitas. Ele as coleciona — é como uma espécie de hobby. Não se interessa muito pelo que elas produzem, contanto que deem dinheiro. Parte da riqueza do Scrooge Nouveau foi para as mãos de suas quatro ex-esposas, que figuram com destaque nas revistas de celebridades concentradas nos estilos de vida dos ricos-e-famosos. Duas dessas ex-mulheres deram entrevistas picantes contando tudo sobre ele, que aprecia esse tipo de atenção, desde que com moderação, porque gosta de tudo que se refira a ele. Mas não tem culpa de ser um narcisista autocentrado: cresceu cercado por propagandas que garantiam que ele era merecedor e que devia isso a si mesmo. Agora ele está na quinta senhora Scrooge — uma garota deslumbrante, de vinte e dois aninhos, com pernas enormes. Deve isto a si mesmo, pois fez por merecer. Essas expressões comuns no século XXI derivam diretamente, é claro, da linguagem de valores — quem merece, e quanto? — e também da linguagem da dívida. Scrooge deve isso a si mesmo — ele é seu próprio credor e devedor numa mesma pessoa. O que foi que ele tomou emprestado dele? Tempo e esforço, é o que supomos — o

mesmo tempo e o mesmo esforço que lhe possibilitaram aumentar a fortuna que herdou do Scrooge Original por meio do sobrinho de Scrooge, Fred. Assim, ele hoje pode pagar a dívida que tem consigo mesmo proporcionando-se todas essas coisas misteriosas que a propaganda vive exibindo. Ele as deve a si mesmo, mas, por extensão, não deve um mísero centavo a mais ninguém. Este é seu entendimento. Vamos encontrar Scrooge Nouveau em sua vila nababesca, em algum lugar — onde? — digamos, da Toscana, muito embora ele já esteja pensando em vender essa droga porque a vizinhança está sendo ocupada demais por magnatas menos valiosos do que ele, cujas residências de arquitetura ostentosa estão acabando com a vista. A quinta madame Scrooge está em Milão, comprando o que há de última moda em matéria de sapatos de salto alto. Scrooge Nouveau passou a tarde com um de seus CEOs, de nome Bob Cratchit — um puxa-saco muito bem pago e útil, mas ganancioso e sonso, na opinião do próprio Scrooge Nouveau. Cratchit tem uma mulher atrevida, malvestida, e um monte de filhos insolentes, o mais novo dos quais, Timmy, é um baita chorão. Scrooge normalmente ignora as insinuações de Bob para convidar sua horda de criancinhas remelentas a ir tomar banho em sua piscina. Cai a noite. Scrooge acabou de jantar um frugal robalo chileno — um peixe delicioso, mas quase extinto, e ainda assim há quem queira comê-lo, porque já está morto mesmo, então por que desperdiçá-lo? Ele está relaxando com uma taça de (preencham vocês a safra), suave, mas frutado e de aroma penetrante, quando escuta um som agourento e sente um cheiro horrível. O som é seco, como de algo sendo sorvido, chupado, como de alguém chapinhando num pântano; o cheiro é de alguma coisa podre. Seja lá o que for a coisa, vem subindo a escadaria de mármore da vila, bem em sua direção.

O que havia naquela garrafa de (preencham vocês a safra)?, pergunta-se Scrooge. Volta no tempo até sua fase juvenil de experimentar drogas. Mal tem tempo de se defender — “Eu nunca cheirei!” — quando seu ex-sócio, Jake Marley — morto havia muitos anos, de um ataque cardíaco na esteira da academia high-tech da própria empresa —, materializa-se na poltrona à sua frente. Enrolada no chão à sua volta, uma longa corrente de peixes podres, espécimes selvagens caindo aos pedaços, e as caveiras e os cabelos de camponeses do terceiro mundo. — Jake! — exclama Scrooge Nouveau. — Você está pingando em cima do meu valiosíssimo tapete persa! O que faz aqui e por que está usando esse monte de trapos? — Estou usando o monte de trapos que forjei em vida — responde Marley. — Você precisa ver o seu! É três vezes maior e mais fedorento que o meu. E vim avisá-lo, para que você possa escapar do meu destino. Três Espíritos virão visitá-lo. — Marcaram hora? — diz Scrooge Nouveau, jurando que, em caso afirmativo, demitiria seu secretário. — Não posso recebê-los. Vou estar numa reunião. — Espere o primeiro Espírito esta noite, quando o relógio bater uma hora — diz Jake Marley, sumindo em meio a uma nuvem de fedor. Scrooge olha pela janela, vê um monte de peixes decompostos voando pelos ares com uma cadeira de diretor sob cada um, toma uma ducha em seu banheiro de mármore para esfriar a cabeça, engole um comprimido para dormir e desaba em seu leito autêntico e valioso de quatro colunas com dossel do século XVII. Nada disso impede que o primeiro Espírito surja à beira da cama assim que dá uma hora em ponto. É uma mulher — uma donzela bem-apessoada, vestida de verde, com uma guirlanda de flores nos cabelos. Ela se parece com um anúncio de xampu natural e orgânico. Talvez não seja tão ruim assim, pensa Scrooge.

— Importa-se de se juntar a mim? — ele lhe diz, indicando a cama. Deve isso a si mesmo. A quinta senhora Scrooge não precisava saber, e daí que ela saiba? Ele pode se permitir lhe dar esse desprazer. — Eu sou o Espírito do Dia da Terra do Passado — diz o Espírito. — Levante-se e venha dar um passeio comigo. Scrooge já ia protestar dizendo que precisava calçar seus tênis de corrida de mil dólares, feitos sob medida, para aceitar semelhante desafio, quando é puxado para fora da janela e sai voando pelo ar. — Antigamente não tinha Dia da Terra porra nenhuma! — ele rosna para o Espírito, depois de ter tempo de pensar melhor a respeito. — Não havia necessidade — responde o Espírito, enquanto planam sobre as nuvens. — Imagine, um único dia para homenagear a Terra! É como o Dia das Mães — um cartãozinho e umas flores murchas uma vez por ano, e depois é só explorar a pobre velhinha o resto do tempo. Mas nas sociedades antigas, a dívida para com a Terra era relembrada a cada estação do ano. Todas as religiões pagavam tributo à condição sagrada da Terra e reconheciam com gratidão o fato de tudo o que se comia, bebia e respirava ser providenciado por ela. Caso as pessoas desrespeitassem as dádivas do mundo natural e não controlassem o desperdício e a voracidade, o descontentamento divino se revelava por seca, fome e doenças. Além disso, os povos dos primeiros tempos se sentiam no dever de retribuir o que haviam recebido. É daí que vem a ideia de sacrifício: o sacrifício humano, em certas culturas tribais da América do Sul, ainda é tido como “alimento para a terra”. O ethos que aí prevalece é que, se há uma dívida, ela precisa ser paga, e devidamente paga, ou os benefícios oferecidos serão suspensos. Scrooge está com raiva dele mesmo: não devia ter tocado no assunto para acabar ganhando uma lição de moral dessas.

— Onde estamos? — ele pergunta. Os dois parecem ter entrado num redemoinho tremeluzente de luz e escuridão. — Estamos viajando pelo Tempo responde o Espírito. — Para trás. Feche os olhos, se estiver ficando tonto. — Tudo bem — diz Scrooge. — Civilização avançada. Já superamos esse negócio de sacrifício brutal. Hoje em dia agimos racionalmente, com o auxílio da ciência, da análise de custo-benefício e do uso da dívida como instrumento sofisticado de investimento, e... O Espírito dá um sorriso. — A Natureza é especialista em análise de custobenefício — diz ela. — Muito embora ela faça seus cálculos de modo um tanto diferente. Quanto às dívidas, ela sempre se dá bem a longo prazo. A racionalidade que você menciona data somente de uns míseros dois séculos, quando as pessoas passaram a substituir Deus por algo denominado “Mercado”, atribuindo-lhe as mesmas características: onisciência, infalibilidade e capacidade de fazer o que se chama de “correções” que, como os velhos castigos divinos, tinham o efeito de dizimar muita gente. As pessoas esclarecidas começaram a acreditar que a Terra não passava de um amontoado de máquinas, e consequentemente que tudo nela, incluída a vida animal, existia unicamente para sofrer uma reengenharia capaz de atender à vontade e ao esforço do Homem... tal e qual um moinho movido a água. Até o início do século XX, os cientistas nos garantiam, por exemplo, que os animais não tinham emoções e desta forma podiam ser tratados como objetos inanimados. O que era mais ou menos o que se costumava dizer em relação às classes inferiores na Inglaterra e aos escravos em quase toda parte do mundo. “Entretanto, o conceito de uma Terra viva sobreviveu em tempos relativamente modernos, ainda que apenas por discurso. Quando morria uma pessoa, dizia-se que ‘ela pagou sua dívida com a Natureza’. Em outras palavras, o corpo físico era apenas emprestado — nunca tendo sido

efetivamente adquirido — e a morte, o meio pelo qual o empréstimo se pagava. O que é literalmente verdadeiro, contanto que os parentes não cremem o corpo ou o encerrem numa cripta impenetrável. Mas se lhe for permitido se dissolver e retornar aos elementos...” Scrooge fica meio enjoado. Nunca tinha imaginado o próprio corpo como algo emprestado, e certamente não lhe agrada pensar nele como algo a ser pago de maneira tão aflitiva. Seu corpo lhe pertence para toda a eternidade; é algo a ser melhorado, como um bem imóvel. Afinal, foi grande seu investimento nele! Sabe que neste exato momento há bioengenheiros trabalhando no Projeto da Imortalidade e, tão logo obtiverem resultados efetivos, ele irá comprá-lo. Por que seu corpo não poderia continuar trabalhando eternamente para ele? — Podemos falar de outra coisa? — Scrooge pergunta. — Claro — o Espírito responde. — Nossa primeira escala é em Atenas. Estamos no século VI a.C. Scrooge se acha numa sala despojada, mas clara, de frente para o mar e o céu azul. Um ancião reflete envolto num lençol. — Este aí é Sólon — diz o Espírito —, o homem mais sábio de Atenas. Os aristocratas estão no governo há muito tempo e criaram leis em benefício próprio. Isso lhes permitiu acumular uma parcela desproporcional das riquezas do Estado. Durante anos de más colheitas, eles foram afundando em dívidas cada vez maiores os agricultores mais pobres, que acabaram na servidão, como escravos. O resultado foi a estagnação econômica. — Pensei que você fosse um espírito do Dia da Terra — Scrooge diz. — Por que vem me dar lições de Economia? — Como dizia Charles Darwin, “A Economia que a Natureza revela em suas fontes é admirável” — diz o Espírito. — Toda a riqueza provém da Natureza. Sem ela, não haveria Economia. A riqueza primária é o alimento, não

o dinheiro. Logo, tudo o que diz respeito ao manejo da terra também me diz respeito. Para Scrooge, esta é uma forma original de pensar. Em sua cabeça, a comida vinha do restaurante, ou então de alguma delicatéssen mais refinada. — Sólon era considerado o maior dos legisladores atenienses — diz o Espírito. — Agora mesmo está pensando em resolver os problemas da nação anulando a enorme estrutura da dívida que enriqueceu alguns, mas empobreceu a maioria. E foi isso o que ele fez, afinal; basicamente, zerou toda a dívida. — Você está querendo dizer que ele inadimpliu? — diz Scrooge, quase estremecendo ao imaginar o que aconteceria com sua carteira de investimentos em tais circunstâncias. — Exatamente — responde o Espírito. — A alternativa seria uma revolução sangrenta e cara, pois os camponeses atenienses já haviam sido oprimidos demais. Quando a dívida fica excessivamente concentrada em mãos de poucos, as contas devem ser equilibradas de forma pacífica, ou o caos e a destruição sobrevirão. Neste caso, os ricos e poderosos que ganharam tanto por tanto tempo se viram forçados a reembolsar, tendo sacrificadas suas exigências, e o resultado foi prosperidade renovada para toda a comunidade. Esta é uma forma de promover o equilíbrio das contas públicas. Agora vou lhe mostrar outra. O Tempo tremeluz mais uma vez, e eles se veem olhando para uma cidade portuária medieval abaixo deles. — Caffa — diz o Espírito —, uma colônia na costa do mar Negro, fundada pelos genoveses para explorar o comércio terrestre do Extremo Oriente. Estamos em 1347. Muita gente de lá já está pagando suas dívidas com a Natureza. Scrooge e o Espírito sobrevoam lentamente a cidade, que está em polvorosa: conseguira sobreviver com muita dificuldade a um cerco dos mongóis, mas não se livrara da contaminação pela Peste Negra transmitida pelos sitiantes.

Agora as pessoas estão morrendo feito moscas nas ruas estreitas, apinhadas e imundas; enquanto isso, no porto, multidões em pânico tentam abrir caminho até os barcos, na esperança de escapar. — Por que você me trouxe até aqui? — pergunta Scrooge. — Quando vamos embora? — O fedor que se ergue de Caffa é dez vezes pior do que o do fantasma de Jake Marley. — A Peste Negra está para invadir a Europa — diz o Espírito do Dia da Terra do Passado. — Nenhum país será poupado. A praga virá por mar — aqueles galeões genoveses se incumbirão de espalhá-la e grassará como fogo descontrolado sobre todo o continente, onde as cidades estão abarrotadas de gente e sem condições sanitárias, e as populações, enormes e desnutridas, exauriram os recursos disponíveis. Além disso, os sistemas imunológicos dos que ainda vivem foram debilitados na infância, durante a Grande Fome de 1315-1316, quando chuvas torrenciais arrasaram as colheitas e centenas de milhares de pessoas morreram. Pragas pandêmicas adoram superpopulação, desastres ecológicos e vítimas enfraquecidas pela desnutrição. Em dois anos, quando a primeira onda da Grande Mortandade houver passado, metade das pessoas que hoje estão vivas estarão mortas. As cidades ficarão desertas. Muitos animais e pássaros também morrerão. Fazendas estarão arruinadas e florestas crescerão sobre elas. A paisagem da Europa inteira se transformará. Isto está virando um daqueles documentários do tipo em que Scrooge sempre desliga a TV — gente pobre, fome, doenças, desastres, essas coisas — por não ver razão para ficar ruminando sobre detalhes tão negativos. O que ele gostaria mesmo, de verdade, era poder voltar para sua caminha, ou uma delas. Em vez disso, ei-los ali, avançando em ritmo acelerado pela Peste Negra, algo verdadeiramente

medonho. Tem gente tossindo sangue, outros ficando pretos e, em outros, ainda brotam furúnculos enormes. — Quando uma situação ruim vai ficando pior — diz o Espírito, uma garota sentenciosa, como costumam ser esses Espíritos —, as pessoas reagem de formas pouco previsíveis. Durante a Peste Negra, muitas agiram de modo a se proteger... cheirando buquês de flores, sentando junto ao fogo, abandonando familiares doentes ou simplesmente fugindo, assim disseminando mais o vírus. Se fossem ricas, se trancariam em seus castelos, na esperança de manter a praga do lado de fora. Outras, concluindo que fazer planejamento financeiro de longo prazo era perda de tempo, trataram de viver o momento, divertindo-se a mais não poder. Essa diversão podia assumir várias formas, de festas e sexo consentido a saques, estupros e pilhagens. — Dá para ver algumas dessas aí? — pergunta Scrooge, que gosta de ir direto ao que interessa; mas o espírito prossegue. — Outros tentaram auxiliar de várias maneiras, dando comida, propiciando a assistência médica possível aos moribundos, muito provavelmente com risco pessoal. Alguns vilarejos que já estavam infectados, reconhecendo que a praga podia ser contraída por contato pessoal, se isolavam, na tentativa de com isso deter a propagação da doença. Outros grupos jogavam a culpa pela praga em si mesmos e nos demais... por maldade ou má intenção, ou envenenando os poços... dando origem a bandos de flagelados que se açoitavam e oravam e, por vagar de cidade em cidade, também contribuíam para espalhar o vírus. Houve inúmeros ataques a grupos suspeitos de ser agentes da praga, por exemplo, leprosos, ciganos, mendigos e judeus; estes últimos foram vítimas de aproximadamente 350 massacres. Outros observavam e davam seu testemunho: muito do que sabemos sobre aquela época se deve a contemporâneos que registraram o que se passava. Finalmente, havia quem procurasse dar sequência às suas

vidas e a seus negócios da melhor maneira que podiam. Scrooge, você ouviu alguma coisa do que eu estava falando? — Claro — responde Scrooge, que na verdade tinha a atenção voltada para uma cena que se desenrolava mais abaixo, na qual um bando de coveiros bêbados do século XIV, as gangues de motoqueiros da época, invade uma vila luxuosa não muito diferente da dele. — Resumindo as reações — diz o Espírito — temos: Proteja-se; Desista e Divirta-se; Ajude os Outros; Jogue a Culpa; Sirva de Testemunha; Vá Tratar da Sua Vida. São apenas seis reações possíveis numa crise, não numa guerra. No caso de guerra, podem-se acrescentar mais duas: Lute; e Renda-se, embora estas possam ser consideradas subcategorias obscuras de Ajude os Outros, e Desista e Divirta-se. Você já deve ter notado que alguns dos seus contemporâneos estão adotando uma ou mais dessas linhas de ação. Será que estão pressentindo uma crise global iminente? “Alarmistas”, Scrooge diz para si mesmo. Mas ainda que algo assim viesse a ocorrer de fato, ele sabe como reagiria. Trataria de fugir — em seu jatinho particular — e depois festejar, em alguma ilha remota e isolada do Caribe à qual nenhum camponês tem como chegar. “Vou virar as costas ao Destino”, diz ele consigo mesmo; mas uma voz sussurra baixinho; “Isso se você ainda tiver costas.” Ele estremece. As coisas não podem ser tão ruins assim, ele pensa. — Não eram tão ruins — diz o Espírito, lendo o seu pensamento. — A Morte paga todas as dívidas e cancela boa parte delas, por isso um grande volume de capital circulante foi afinal liberado. Para quem sobreviveu, os salários aumentaram, por causa da escassez de mão de obra, e o sistema feudal ineficiente e degradante chegou ao fim. A condição das mulheres melhorou: os empregos se abriram para elas, como ocorreu durante as duas Grandes Guerras mundiais. Teve início um período de inovações

técnicas, para o bem ou para o mal. E basta se pensar nas obras-primas que a Grande Mortandade inspirou no terreno das Artes: o Decameron, de Boccaccio, o romance A peste, de Albert Camus, a obra-prima do cinema, do sueco Ingmar Bergman, O sétimo selo... Não há praga que não venha para o bem. — Eu preferia ficar sem essas obras-primas e sem a peste — diz Scrooge. — Talvez uma praga pandêmica seja parte da análise de custo-benefício da Natureza — replica o Espírito. — Uma forma de começar do zero e de equilibrar as contas. Quando a Humanidade se torna excessivamente irritante... numerosa demais, suja demais, destrutiva demais para a Terra... o resultado é uma praga. Animais de fazenda amontoados são igualmente suscetíveis às doenças. Pense num gato regurgitando uma bola de pelos e o quadro estará pronto à sua frente. Essa metáfora da bola de pelos do gato não é lisonjeira para humanidade, da qual pela primeira vez na vida Scrooge se sente parte. Agora, porém, o Espírito acaba de arrastá-lo de novo para o meio das nuvens, deixando para trás as cidades contaminadas pela peste do século XIV. O Espírito do Dia da Terra do Passado guia Scrooge numa rápida jornada pelo tempo e espaço. Primeiro visitam a América do Norte, em 1793, onde testemunham um episódio do processo de extermínio do pombo-passageiro — enormes bandos de pássaros são mortos a tiros, em número muito maior do que o que dá para recolher e comer. “O Senhor não quer ver destruída nenhuma de suas criaturas e deseja o bem dos pombos, como de todas as demais”, diz um velho alto, de aparência rústica que assiste a tudo. “Matar mais do que se pode comer: a isso eu chamo pecado e destruição.” — É o Leatherstocking — explica o Espírito — de Os pioneiros, romance de 1832 de James Fenimore Cooper.

— Mas o cara é só um personagem de livro! — diz Scrooge. — E você também — corrige o Espírito. Lá vem ele de novo, pensa Scrooge. — Eu queria lhe mostrar que mesmo na abundante América do Norte... abundante naquela época... as pessoas já estavam pensando nos usos certo e errado do que hoje se chama “capital natural”. Em seguida, testemunham a chegada à Europa da batata — barata e nutritiva —, vinda do Novo Mundo. Ela se espalha rapidamente, impulsionando uma explosão populacional que mais do que repovoa as nações e as cidades, a despeito das novas ondas de praga e outras doenças de alta mortalidade — como tuberculose, difteria, varíola, febre tifoide, cólera, sífilis e outras. Scrooge conclui que o Espírito do Dia da Terra do Passado não bate bem da cabeça. Ele é obrigado a ficar assistindo à chegada da praga da batata, em 1840, que assola a Irlanda e aponta — segundo o Espírito — para os riscos da monocultura, coisa que a Natureza sempre desaprovou. É loucura, diz o Espírito, ficar dependente de umas poucas culturas — trigo, arroz, milho e soja, por exemplo, como no século XXI — porque uma praga pode levar rapidamente a população à fome. Deixando para trás os irlandeses agonizantes, Scrooge e o Espírito sobrevoam Londres, onde, como num instantâneo fotográfico, Scrooge divisa o surgimento das fábricas com suas chaminés fumarentas, a superpopulação que se seguiu e a miséria causada pelo movimento cíclico de ascensão e queda do capitalismo nascente. Crianças disformes e esverdeadas pululam em favelas esfumaçadas pela névoa; famílias se apertam em quartos fétidos e sem ar. O esgoto corre a céu aberto. — Como as pessoas podem viver assim? — diz Scrooge. É repulsivo. — Que alternativa tinham? — diz o Espírito. — Não havia sistema de assistência social.

— Bom, a filantropia particular poderia ter funcionado... — diz Scrooge, que é especialista em eximir gente como ele de culpa pelas desigualdades sociais — para não falar das cobranças de impostos. — “Não haveria mais Piedade/Se não fizéssemos mais Pobres;/ E Misericórdia não haveria/Se todos fossem felizes como nós” — murmura o Espírito. — Como é? — pergunta Scrooge. — Só uns versinhos — responde o Espírito. — De William Blake. Agora minhas viagens com você estão quase no fim. Só quero mostrar mais uma cena. O ano é 1972. O lugar é Toronto, Canadá. O Tempo tremeluz, e Scrooge se vê numa sala de estilo moderno. Nada de crianças enfermiças, de vítimas de pragas, nada de batatas apodrecendo, o que já é um alívio. Apenas uma mulher de sessenta e três anos lendo um jornal. Ela recorta um artigo, que dobra e põe num envelope. Ela sela o envelope, escreve a data, depois desce as escadas até o porão e o coloca dentro de um baú de viagem. — O que dizia esse recorte que ela tirou do jornal? — pergunta Scrooge. Mas o relógio bate uma hora, de novo, e o Espírito do Dia da Terra do Passado estremece e vai se dissolvendo até reaparecer em seguida, só que, agora, é um homem. Scrooge detesta essas mudanças de sexo: elas lhe dão calafrios. — E aí, Scrooge, meu querido — diz o sujeito, no estilo típico da Costa Oeste. — Eu sou o Espírito do Dia da Terra do Presente. Pode me chamar de E do DTP. — Ele está com um capacete de bicicleta e uma camiseta em que se lê Abrace Minha Árvore. Numa das mãos carrega uma sacola de material plástico reciclável feito de garrafas pet, e na outra um copo de café onde está escrito Produto Orgânico Livre de Pesticidas — Cultivado à Sombra — Comércio Justo. Ele faz lembrar um pouco David Suzuki, Al Gore e ainda o

príncipe Charles, com aquele ar de fazendeiro natureba. — Então — prossegue ele —, que tipo de desastre-emandamento você gostaria de conhecer primeiro? Scrooge quer responder “Nenhum”, mas se dá conta de que no momento esta não é uma opção. — Você escolhe — ele diz, asperamente. Esse cara parece bem tranquilão, mas tem alguma coisa estranha nele — como um hippie que passou por um dispositivo de teletransporte e saiu com algumas partes avariadas. — Tudo bem — diz o Espírito, e no momento seguinte Scrooge se encontra no oceano. Uma rede imensa está sendo arrastada pelo fundo do mar, destruindo tudo no caminho. À sua frente vicejam florestas subaquáticas e centenas de milhares de seres vivos, animais e vegetais; atrás dela resta um deserto. A rede é puxada para a superfície e a maior parte das formas de vida mortas e moribundas que ela traz é descartada. Somente umas poucas espécies comercializáveis são retidas. — É como ir passando um cortador de grama pelo jardim da sua casa e destruir tudo, deixando apenas uns seixos, e jogando todo o resto esgoto abaixo — diz o Espírito. — Associe isso à pesca predatória... mole, mole de se praticar, com os megabarcos de hoje, equipados com sonar para rápida identificação de grandes cardumes... e o resultado é o fim dos peixes. Quando ainda se usavam barcos menores, a pesca era uma atividade mais ou menos sustentável. Mas nos últimos quarenta anos, práticas tecnológicas hipereficientes puseram fim a um terço dos oceanos produtivos. As pessoas acham que isso tem recuperação, e talvez tenha. Mas só daqui a centenas de anos. Atualmente há embarcações cada vez maiores atrás de peixes cada vez menores e em quantidades cada vez mais escassas. O mais estúpido de tudo isso é que as frotas pesqueiras que vêm provocando os maiores prejuízos são subsidiadas pelos governos, e desta forma as pessoas podem não estar

arcando diretamente com o custo do peixe que estão comendo, mas estão pagando por meio dos impostos. — Impostos! — brada Scrooge, para quem imposto sempre foi uma dor de cabeça. —Você está querendo dizer que eu estou custeando toda essa maldita devastação? — E esta não é a única maldita devastação pela qual você está pagando — diz o Espírito. — Ou preciso falar da política agrícola de determinados governos, que subsidiam biocombustíveis que custam mais energia para ser produzidos do que a energia que deles resulta? E o custo real é muito maior quando se leva em conta o custo para a Terra — a degradação do solo, e a destruição dos biomas por pesticidas e herbicidas. E ainda há o efeito sobre o preço mundial dos alimentos quando se queimam cereais em vez de comê-los... tirando a biomassa de circulação e substituindo-a por fumaça. Com a pesca predatória, porém, a solução pode estar à vista; quando os preços dos combustíveis aumentarem muito, esses megabarcos custarão caro demais, sobretudo quando não sobrar muito mais peixe para “recolher”, como eles mesmo dizem, uma vez que a captura caiu 80% em trinta anos. Scrooge não se sente muito bem. Pode ouvir o robalo chileno do jantar censurando-o de dentro do seu estômago. Em seguida, visitam a Floresta Amazônica, que vem sendo arrasada a grande velocidade para dar lugar a alguns poucos anos de produção de soja e criação de gado; e depois o Congo, onde o desflorestamento prossegue em ritmo acelerado; e ainda as florestas boreais do norte, onde as árvores estão virando palitos de dentes. — Uma árvore adulta produz dois terços do oxigênio de que uma pessoa necessita para respirar — observa o Espírito. — Se derrubarmos milhões de árvores e fizermos milhões de novos seres humanos a cada ano, o que vai ser da qualidade do ar? Nem quero mencionar as enchentes e a erosão do solo, e as secas subsequentes, que são o efeito previsível do corte de árvores em locais errados.

Eles cruzam a Antártida, onde enormes blocos de gelo estão partindo e derretendo, e o Ártico, onde a tundra em processo de descongelamento está liberando imensas nuvens de gás metano. Monitoram os níveis crescentes do mar, observando as pessoas que morrem afogadas ou que tentam fugir, e presenciam ciclones superpotentes abatendo-se sobre regiões litorâneas populosas abaixo da linha do oceano. — Você não pode parar com isso tudo? — grita Scrooge. — Nesta área, é difícil fazer cumprir as leis internacionais — explica o Espírito — porque ninguém concorda em relação ao que é justo. É como o que se passa com os macacos: se um ganha uma uva, os outros todos querem uvas. “Vocês arruinaram a própria ecologia para ter lucro”, alegam os países mais pobres, “agora não venham nos dizer para não fazer o mesmo.” A morte da Terra é o resultado da pobreza, de um lado, e da ganância, por outro. Tenha em mente, também, que muitos países onde está ocorrendo a maior destruição possuem dívidas pesadas com os países ricos. A morte da Terra, portanto, também é determinada pela dívida. “O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial — criados na década de 1940 para supostamente ajudar os países pretensamente em desenvolvimento — convenceram os líderes desses países, gente frequentemente inescrupulosa, a contrair pesados empréstimos. Esses líderes se sentiram, assim, livres para esbanjar dinheiro e arrocharam a gente do campo para pagar dívidas sempre crescentes. Em desespero, os agricultores sobrecarregaram a terra, o que reduziu a produção de suas colheitas e os fez ainda mais pobres e mais sujeitos à fome do que eram antes. Parece muito o sistema de cobrança de impostos agrícolas do Império Romano: um método de cima-parabaixo de extrair riqueza dos pobres. A consequência é o que vemos hoje: a renda acumulada dos 25 milhões de

indivíduos mais ricos do planeta tem valor bruto igual ao valor bruto combinado dos dois bilhões mais pobres.” Scrooge já ia dizendo que os ricos merecem ser ricos graças a seus genes e sua fibra moral superiores, quando nota que o Espírito franze as sobrancelhas para ele, e se contém. —Você não afirmaria — diz o Espírito — que há um forte estímulo para que as pessoas façam o que tantas vezes fizeram quando o desequilíbrio entre débito e crédito... e entre pobreza e riqueza... se torna excessivo, e os pobres se veem arruinados e morrendo ao peso de dívidas esmagadoras, e o senso humano de equidade e justiça é demasiadamente aviltado? Elas depõem seus líderes; ou matam os credores, se conseguem pôr as mãos neles; ou simplesmente não pagam seus empréstimos. — Mas isso não ferraria com todo o sistema? — diz Scrooge. — Você não está entendendo — retruca o Espírito. — O sistema já está ferrado. Baixando da estratosfera, eles se veem num jantar de gala em Toronto. Nada de camponeses mortos de fome; a mesa é farta em comida e bebida. Gente bem-vestida conversando animadamente. O assunto é a escassez mundial de alimentos da primavera de 2008 e os tumultos daí resultantes. — Isso é coisa dos especuladores — diz um convidado. — Eles estão estocando alimentos. Vocês sabem quantos bilhões as grandes corporações já ganharam com isso? — Não, a quantidade de alimentos é de fato insuficiente — diz um segundo convidado. — É sempre possível plantar mais — diz outro. — Certo — diz o segundo. — Até não ser mais. Não se pode tirar, tirar, sem repor. — A Revolução Verde fez aumentar a produção, apesar dos fertilizantes, pesticidas e sementes geneticamente modificadas... — afirma outro.

— Aumentou no começo — diz o segundo. — Depois se esgotou, deixando a terra arrasada. Atualmente, os únicos agricultores que vão bem nas partes da Índia chamadas de Revolução Verde são os de orgânicos. — E o que vai ser quando todos os chineses e indianos tiverem carro? — diz um quarto convidado. — Vamos morrer sufocados! — Os preços crescentes da gasolina vão dar um basta a isso — diz um quinto. — Eles não terão como se dar ao luxo de dirigi-los. — É gente demais — diz o segundo. — Só 20% da Terra são de terreno seco. Desses 20%, somente 3% são aráveis. A maioria das pessoas no planeta vive em 2% da terra. Nós estamos esgotando o hábitat e destruindo o que nos resta. — Já ouvimos essas previsões malthusianas antes — diz o terceiro. — O que não quer dizer que não sejam verdade — diz um quarto. — Bom, seja como for — afirma um quinto —, não há nada que eu possa fazer para impedir que aconteça o que já está ocorrendo. A coisa é grande demais para nós! Temos, isto sim, é que nos divertir enquanto podemos. — E todos fizeram um brinde a isso. — Não sejam burros! — Scrooge grunhiu para eles que, porém, não tinham como escutá-lo. As alegres gargalhadas foram se esvanecendo e no momento seguinte ele já estava de volta ao porão de 1972, aquele da mulher idosa e o baú de viagem. Mas agora estamos no tempo presente, e outra idosa está abrindo o baú. Ela encontra o envelope ali deixado três ou quatro décadas atrás e o abre. — Queria saber por que mamãe guardou isso — ela fala consigo mesma. Scrooge lê por cima do ombro da mulher. O recorte é do Los Angeles Times. “Equipe do MIT Prevê para 2042 Colapso da Economia Mundial se Crescimento Continuar” é a manchete. A matéria é sobre um estudo de treze meses

encomendado pelo Clube de Roma e desenvolvido por uma equipe de cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. “A economia mundial entrará em colapso dentro de setenta anos — causando toda sorte de doenças, pobreza e inanição — a menos que o crescimento econômico seja imediatamente detido”, começa a notícia. “A ideia de que o crescimento das populações e dos bens materiais não pode prosseguir eternamente, porque há uma capacidade finita de solo e de recursos naturais sobre a Terra, nada tem de nova. É no mínimo tão antiga quanto Platão.” E conclui: Essas barreiras físicas ao crescimento provavelmente serão atingidas no tempo de existência de nossos filhos. O estudo se concentra em cinco variáveis principais: a capacidade total de recursos não renováveis do mundo (metais, rochas, energia), além do nível da população, o volume de poluição, a taxa de produção industrial per capita e a quantidade de produção de alimentos per capita. — Eles sabiam! — brada Scrooge. — Eles já sabiam disso em 1972! Por que não fizeram alguma coisa quando ainda havia tempo? — Em sua ira, ele agarra o Espírito do Dia da Terra do Presente pela camiseta e começa a sacudi-lo. Mas o relógio está batendo doze horas e, por entre as suas mãos, o Espírito vai se dissolvendo. Vai se transformando em algo seco e escamoso. Uma barata gigante. — Eu sou o Espírito do Dia da Terra do Futuro — diz numa voz rascante. Scrooge dá um passo atrás. Ele odeia insetos. — Você não pode ter a forma de um ser humano? — pergunta. — Depende do futuro que você gostaria de ver — diz o baratão. — Em um futuro não muito distante, a humanidade estará extinta e eu não posso assumir a imagem de uma bioforma que não existe mais.

— E por que não de algo mais perto no tempo, então? — Scrooge tenta convencer o Espírito. — Está bem — concorda ele, estremecendo, dissolvendose e ressurgindo em nova forma: um homem de trinta e cinco anos, de olhos rútilos, terno preto e brinquinho de ouro, carregando uma pasta. — Pronto — diz ele. — Agora eu sou um negociante de futuros. Qual dos seus próprios futuros você gostaria de ir visitar? — Tenho mais de um? — pergunta Scrooge. — Em matéria de futuros, tudo são probabilidades — responde o Espírito. — Os futuros são infinitos em número, como nos contaram vários autores de ficção científica. Por exemplo, num futuro, graças à terapia genética avançada, você vive até os cento e cinquenta anos; num outro, você acaba atropelado por um ônibus na semana seguinte. — Esse aí eu dispenso — diz Scrooge rapidamente. — Não é tão ruim assim — diz o Espírito. — Nesse futuro você optou por um enterro natural e assim pode reencarnar como árvore. Mas eu entendo o seu problema. Então, primeiro as boas ou as más notícias? — As boas — diz Scrooge, que é um otimista em relação a si mesmo, a despeito de ser um misantropo quando se trata das outras pessoas. O Espírito do Dia da Terra do Futuro balança a pasta, e Scrooge se vê numa cidade de porte médio alegre e agitada. Todo mundo está vestindo roupas de fibra natural e andando de bicicleta ou guiando veículos movidos a ar comprimido, usando a energia de máquinas de geração de ondas ou de instalações solares localizadas nos topos e nas laterais dos prédios; todos abandonaram junk food e estão comendo muitas frutas e legumes, cultivados em fazendas orgânicas das redondezas ou em seus antigos canteiros, cujas camadas de terra foram restauradas por um extenso programa de adubação e decomposição — processo que, não por acaso, reduziu significativamente os níveis de dióxido de carbono no ar. Ninguém é obeso; todos os

arranha-céus apagam as luzes nas épocas de migração de pássaros, e assim não estão mais matando milhões de aves a cada ano; as técnicas nocivas de pesca predatória foram abandonadas; as viagens aéreas são feitas por aeronaves movidas a hélio, as viagens marítmas, por embarcações controladas pela luz solar; as sacolas plásticas foram totalmente banidas. Todos os líderes religiosos entenderam que seu papel inclui ajudar a preservar a dádiva terrena do Todo-Poderoso e apoiaram o controle da natalidade; não existem mais aquelas máquinas barulhentas movidas a gasolina que varrem as folhas e cortam a grama, mas poluem o ar; e o aquecimento global foi tratado numa reunião de cúpula durante a qual os líderes mundiais puseram de lado a paranoia, a inveja, a rivalidade, a sede de poder, a ganância e o empurra-empurra sobre quem deveria começar primeiro a reduzir as emissões de carbono para arregaçar as mangas e enfrentar a questão para valer. Lá está Scrooge em pessoa, bem à vontade numa camiseta, preenchendo cheques polpudos para várias organizações conservacionistas: Floresta Amazônica, gestão ambiental, parques marinhos, hábitats de pássaros. — Nesse futuro — diz o Espírito — os albatrozes foram salvos; em grande parte, devo acrescentar, graças a seus esforços. Tenho que dizer também que boa parte dessas mudanças milagrosas foi propiciada pela criação de um Bônus da Vitória, por meio do qual as pessoas emprestaram dinheiro aos governos para custear ações ambientais; e por iniciativas microeconômicas, como as que já vinham sendo praticadas pelo Banco Grameen, do Paquistão, emprestando pequenas quantias a juros justos às pessoas muito pobres, de forma a auxiliá-las a dar início a pequenos empreendimentos locais; e ainda mediante cancelamentos maciços e voluntários de dívidas, como as dos antigos israelitas, por parte das nações ricas, que decretaram um

ano de perdão a cada cinquenta anos no qual todas as dívidas foram anuladas. — E qual a probabilidade de haver esse futuro? — Scrooge quis saber. — Não muita — admitiu o Espírito. — Ao menos por ora. Mas muita gente do seu tempo está fazendo das tripas coração para fazê-lo acontecer. Infelizmente, há muito mais gente que se opõe ativamente a qualquer tentativa de ajudar a pôr um fim à imundície global... uma imundície que, em termos reais, está custando trilhões de dólares por ano... porque vem ganhando muito dinheiro com a situação do jeito que está. Mas agora vamos às más notícias. — E ele balançou novamente a pasta. A princípio, Scrooge mal consegue se reconhecer no futuro. Está abatido e desesperado, empurrando um carrinho de mão carregado de dinheiro. Ele observa seu eu futuro tentando trocar aquela montanha de dinheiro por uma lata de ração de cachorro, sem conseguir fechar negócio. — Ei, Espírito, o que está acontecendo? — Scrooge pergunta. A coisa é realmente de assustar. — Você está presenciando uma cena de hiperinflação — diz o Espírito. — Ocorreu inúmeras vezes na história do dinheiro. Quando as pessoas perdem a crença no valor de uma moeda, é preciso mais e mais dinheiro para comprar algo; e aqueles que têm produtos de uso e valor reais, como comida ou combustível, não querem vendê-los, porque temem que o dinheiro valerá ainda menos no dia seguinte. Na realidade, o dinheiro simplesmente derrete, como a ilusão que sempre foi. Afinal, trata-se de um símbolo construído pelos homens: só existe se nós concordamos que ele existe. E se não se consegue trocá-lo pelas coisas reais que ele deveria significar, não tem valor algum. — Mas se eu não puder comprar comida, vou morrer de fome! — Scrooge se lamenta.

— Provavelmente será esse o resultado — diz o Espírito. — Ser rico no sentido convencional do termo não ajudará em nada se não houver nada para comprar. O rei Midas desejou que tudo o que tocasse virasse ouro e conseguiu o que queria; mas acabou morrendo de fome, pois até a comida que tocava virava ouro também. Num mundo em que tudo se transforma em dinheiro, não sobra o que comer. Agora vamos ter uma visão mais ampla. O que Scrooge vê enquanto sobrevoam a cidade é muito semelhante ao que presenciou na Europa durante a Peste Negra: caos, mortes em massa, falência da ordem cívica. Todas as cinco mulheres de Scrooge estão vendendo o corpo na rua em troca de sardinhas em lata, nem sempre com sucesso. Elas não parecem nada bem, na figura magraque-nem-modelo a que foram reduzidas sem precisar fazer esforço. O Espírito aponta para três pessoas brigando por um gato morto, que elas pretendem comer: o eu futuro de Scrooge é uma delas. Mas ele não consegue ficar com o gato: está muito fraco. Os outros dois lhe dão uma surra, deixam-no estirado na calçada e fogem com a comida. — Isso é terrível! — Scrooge choraminga. — Espírito, eu não quero ver mais nada! — Os moinhos dos deuses moem devagar, mas muito, muito fininho — diz o Espírito. — A humanidade fez um trato faustiano ao inventar as primeiras tecnologias, incluindo-se o arco e flecha. Foi quando os seres humanos, em vez de limitar sua taxa de natalidade de modo a manter a população em consonância com os recursos naturais, resolveram se multiplicar de forma descontrolada. Aí, para dar conta desse crescimento, o suprimento de alimentos foi ampliado mediante a manipulação desses recursos, criandose tecnologias cada vez mais novas e complexas. Hoje dispomos das mais intrincadas parafernálias que o mundo já viu. Nosso sistema tecnológico é o moinho capaz de moer tudo o que se possa imaginar, mas ninguém sabe como desligá-lo. O produto final de uma exploração tecnológica

totalmente eficaz da Natureza será um deserto sem vida: todo o capital natural será exaurido, consumido pelos moinhos da produção, e a dívida resultante para com a Natureza será infinita. Bem antes disso, contudo, a humanidade conhecerá a hora de pagar. Scrooge se horroriza, mas ao mesmo tempo faz alguns cálculos rápidos. Se o bom futuro prevalecer, investir em energias alternativas e usinas de dessalinização lhe traria um excelente retorno. Caso sobrevenha o mau futuro, ele deveria tentar conseguir o monopólio do mercado de rações para cachorro e construir um bunker subterrâneo, com oxigênio canalizado, para ter o controle do mundo, ou do que restar dele. — Os rumos que os homens tomarem anteciparão determinados fins, aos quais, a continuar assim, eles deverão conduzir — diz Scrooge, citando seu ancestral famoso. — Porém, havendo desvio dos rumos, os fins se alterarão. Diga-me que pode ser assim com o que você está me mostrando! — Eu negocio com futuros — diz o Espírito do Dia da Terra do Futuro. — Minha melhor resposta é Talvez. Scrooge agarra o braço do Espírito, que se encolhe, cai e vira uma coluna de cama. A coluna da sua própria cama! “Que sonho horrível”, ele pensa. “Mas foi só um sonho. Vou viver no Passado, no Presente e no Futuro — os Espíritos dos três Dias da Terra lutarão dentro de mim! Tenho tempo para fazer emendas!” No mundo não ficcional, no qual vocês e eu experimentamos o que se denomina “existir” e Scrooge, não, estivemos discutindo as diferentes maneiras de considerar a dívida. Como todos os nossos arranjos financeiros, e como todas as nossas regras de conduta moral — na verdade, como a própria linguagem —, as ideias a respeito da dívida fazem parte da refinada construção imaginária que é a sociedade humana. O que é verdadeiro para cada parte dessa construção mental o é também para

a dívida, em todas as suas inúmeras variáveis: por ser uma construção mental, a forma como pensamos nela muda a forma como opera. Talvez seja hora de pensarmos nisso de um modo distinto. Talvez precisemos contar coisas, somar coisas, medir coisas de um modo distinto. Na realidade, talvez precisemos contar, pesar e medir coisas completamente distintas. Talvez precisemos calcular os custos reais de como temos vivido, e dos recursos naturais que temos tomado à biosfera. É provável que isso aconteça? Como o Espírito do Dia da Terra do Futuro, minha melhor resposta é Talvez. Scrooge levanta da cama e vai até a janela. Lá está o mundo. Muito lindo, com as árvores, o céu e tudo o mais. Sempre pareceu sólido, mas agora dá uma impressão de fragilidade, como um reflexo na água: um vento soprando seria capaz de eriçá-lo e fazê-lo desaparecer. Eu, na verdade, não sou dono de nada, pensa Scrooge. Nem do meu corpo. Tudo o que tenho é emprestado. Não sou rico coisa nenhuma. Estou, isto sim, em dívida. Uma dívida pesada. Como vou pagar o que devo? Por onde começo?

NOTAS

(Como requer o contexto de conferência, este livro foi escrito tendo em mente um ouvinte.) UM: ANTIGAS BALANÇAS

Este capítulo é dedicado ao Museu Real de Ontário, em Toronto, onde meu interesse por tumbas egípcias foi despertado quando eu tinha nove anos; ao meu pai, dr. C. E. Atwood, graças a quem eu li The Water Babies; e a todas as crianças de quem eu cuidei e tomei conta nos acampamentos de verão e em casa — mestras severas ao estilo tit-for-tat. Sobre os Seton, pai e filho, ver REDEKOP, Magdalene. Ernest Thompson Seton. Toronto: Fitzhenry & Whiteside, 1979. Fadinhas do dente e bancos: é verdade, sim, que, se deixarmos de acreditar em bancos, eles acabarão. As estatísticas sobre dívida são de CBC Marketplace: “Debt Nation.” A amiga que me escreveu a carta a respeito das hipotecas foi Valerie Martin, a quem agradeço por ter permitido que eu a usasse. A Igreja Unida é a Igreja Unida do Canadá, formada por uma união entre as metodistas e algumas presbiterianas. Tomei conhecimento do comentário de Frans de Waal sobre a natureza da cultura por meio da revista Harper’s de junho de 2008, num artigo de Frank Bures de título “A Mind Dismembered: In Search of the Magical Penis Thieves”. Agradeço a meu irmão, o neurofisiologista Harold L. Atwood, por me mandar vários artigos sobre

epigenética. Há muitas variantes do jogo “Eu te bato, você não me bate!” Numa delas, a cor do Fusca pode ser especificada. Deixo para os experts o debate sobre as diferentes regras. Sobre o comércio entre os primatas, ver DE WAAL, Frans e BROSNAN, S. F. “Monkeys Reject Unequal Pay”. Nature (2003): 425. FISHER, Daniel. “Selling the Blue Sky”. Forbes.com. 2008. Forbes. 20/2/2008. _______. “Primate Forbes. 22/2/2008.

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revertem ao estado primitivo quando descansam sob as árvores de absurdo comendo absurdos sem fazer esforço. A história de Lázaro e o Rico está em Lucas 16:19-31. Sobre os babuínos-gelada, ver MORELL, Virginia. “Kings of the Hill”. NationalGeographic.com. 2002. National Geographic Society. 20/2/2008. As citações de Eumênides são de GRENE, David e LATTIMORE, Richmond (Eds.). The Complete Greek Tragedies, vol. 1. Chicago: Chicago University Press, 1960. Sobre os deuses e as deusas da Antiguidade, ver, entre outros, “Thoth, the Great God of Science and Writing”, Mystae.com. 24/2/2008. www.mystae.com/restricted/streams/Scripts/thoth.htm HOOKER, Richard. “Ma’at; Goddess of Truth; Truth and Order”. World Civilizations. 1996. Universidade Estadual de Washington. 24/2/2008. ROE, Anthony. “Maintaining the Balance: Concepts of Cosmic Law, Order, and Justice”. White Dragon. 1998. 22/2/2008. https://www.whitedragon.org.uk/articles/cosmic.htm SWATT, Barbara. “Themis, God of Justice”. Marian Gould Gallagher Law Library. 2007. Faculdade de Direito da Universidade de Washington. 19/2/2008. DOIS: DÍVIDA E PECADO

Este capítulo é dedicado a Aileen Christianson, da Escócia, a Valerie Martin, dos EUA, e a Alice Munro, do Canadá — todas experts em pecado e dívida. E também à minha mãe, Margaret K. Atwood, e a minha tia, Joyce Barkhouse, pelos insights sobre viver segundo os próprios recursos que elas forneceram.

Quem falou que “A dívida é a nova gordura” foi Judith Timson, conversando comigo. A Igreja anglicana do Canadá é muito parecida com a Igreja anglicana da Inglaterra, e um pouco com a Igreja episcopal nos EUA. Joyce Barkhouse acha que papai ganhou de sua mãe, como presente de formatura, a caneta que pôs no prego. O que levanta outra questão: como minha avó conseguiu, já que também não tinha um tostão? Deve ter economizado durante muito tempo. A palavra “redenção” é também muito repetida na cerimônia judaica do Sêder para descrever o que Deus fez em relação aos israelitas quando os libertou da escravidão no Egito. Agradeço a Rosalie e Irving Abella por esse ensinamento e por uma experiência de Sêder que nunca será esquecida. O resgate de um macaco por uma ovelha pode ser encontrado em Êxodo 34:20. A história da filha de Jefté está em Reis I. A tradição de o primeiro filho pertencer a Deus se acha em Êxodo 22:29. O empréstimo iníquo e o não pagamento estão em Salmos 37:21. Ezequiel e os sacerdotes de Baal estão em Reis I. O sermão da dívida está disponível em OLBRYCH, Jennie C. “Outrageous Forgiveness”, no blog St. James Episcopal Church. 2004. Blogspot. 12/3/2008. Outras obras citadas neste capítulo: HOGG, James. The Private Memoirs and Confessions of a Justified Sinner. Ed. Adrian Hunter, Peterborough, Ontário: Broadview Press, 2001. HYDE, Lewis. The Gift: How the Creative Spirit Transforms the World. 1983. Edimburgo: Canongate, 2007, p. 41.

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Este capítulo é dedicado às minhas professoras de inglês, Bessie B. Billings e Florence Smedley, na Escola Leaside, em Toronto, onde li pela primeira vez O moinho à beira do rio Floss; ao dr. Jay Macpherson, do Victoria College, que transformou o romance vitoriano em algo esplendoroso e fascinante; e ao dr. Jerome H. Buckley, do departamento de Inglês de Harvard, que deu

algumas aulas bem dramáticas sobre Dickens. E também à Biblioteca Deer Park, em Toronto, da qual, no fim da década de 1940, eu pegava por empréstimo todos os livros infantis de Andrew Lang que conseguia carregar. Os livros abordados ou citados neste capítulo são: BERNE, Eric. Games People Play: The Psychology of Human Relationships. Nova York: Ballantine, 1964, p. 81. BLAKE, William. “Jerusalem”. Selected Poetry and Prose. Ed. Northrop Frye. Nova York: Random House, 1953. BUNYAN, John. The Pilgrim’s Progress. Sharrock. Nova York: Penguin, 1987, p. 79. DICKENS, Charles. A Weathervane, 2007.

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Li Os contos de Grimm muito menina, mas me lembro bem. Foi Valerie Martin que chamou minha atenção para o jogo das Penas. Uma nota sobre “resgatar”: “resgatar” é também renomear-se — ou redefinir-se —, o que pode levar a reverter a condenação. O moleiro do Dee veio de memória, mas eu também cotejei com textos disponíveis. QUATRO: O LADO SOMBRIO

Este capítulo é dedicado a Edgar Allan Poe, cujo conto “O Barril de Amontillado” me aterrorizou quando criança e me fez pensar na questão sempre presente: quanto basta de vingança? Também a Alberto Manguel, que certa vez me disse: “Os canadenses não têm nenhuma história de vingança”, e dessa forma me motivou a escrever uma: “Hairball”, é como se chama. E a Elmore Leonard, que me introduziu de forma encantadora nos mistérios do mundo da clandestinidade. E a Larry Gaynor, que sabe das sombras que se emboscam nos corações dos homens, e também dos corações que andam emboscados nas sombras das mulheres. Outra vingança da vida real é o camarão congelado nas varas da cortina. Tão fácil de sentir o cheiro, tão difícil de encontrar. As obras citadas incluem: BUCHAN, James. Frozen Desire: The Meaning of Money. Nova York: Welcome Rain, 2001. DICKENS, Charles. A Tale of Two Cities. Ed. Andrew Sanders. Oxford: Oxford University Press, 1988.

_______. David Copperfield. Ed. Nina Burgis. Oxford: Oxford University Press, 1999. JOHNSON, Samuel. Essays from the Rambler, Adventurer, and Idler. Ed. W. J. Bate. New Haven: Yale University Press, 1968. LEONARD, Elmore. Get Shorty. Nova York: HarperCollins, 1990, p. 8. MAQUIAVEL, N. The Prince. Trad. Peter Constantine. Nova York: Random House, 2007. SHAKESPEARE, W. “The Merchant of Venice”. Complete Works. Ed. Richard Proudfoot, Ann Thompson e David Scott Kastan. Londres: Arden Shakespeare, 2001. CINCO: PAYBACK

Há tantas pessoas e tantas organizações às quais este capítulo deveria ser dedicado que foi difícil escolher. Assim, vou destacar aqueles e aquelas que me ensinaram algo sobre a vida tradicional no Ártico — Aaju Peter, Bernadette Dean e John Houston — e também Matthew Swan, da Adventure Canada, que possibilitou esses contatos. E Graeme Gibson, cujo trabalho sobre predadores, suas presas e seus ambientes, coincidiu com o meu. O banquete de Belsazar pode ser encontrado em Daniel 5. Os versos de John Donne sobre os sinos estão na “Meditação XVII” das Devoções. (Landmark, 2007, ed. bilíngue) Postulo que a fortuna de Scrooge Nouveau teria sido herdada do feliz sobrinho de Scrooge, Fred, filho de sua irmã falecida, Fan — portanto, o parente mais próximo de Scrooge. Scrooge Light deixou boa parte de seu dinheiro para a caridade, mas Fred assumiu o negócio e

adotou o sobrenome Scrooge para preservá-lo na empresa da família. O CEO de Scrooge Nouveau, Bob Cratchit, é descendente do Bob original, via Tiny Tim. Sem ter um porte atlético, Tiny se voltou para os livros e se tornou um protonerd; Scrooge Light custeou sua educação. O novo Bob, entretanto, herdou pouquíssimas virtudes do original. Sobre “alimentar o coração”, ver a obra de TIERNEY, Patrick, The Highest Altar, referenciada nas Notas do cap. 2. Existe muita informação sobre Sólon e suas reformas da dívida; ver, por exemplo, SAUL, John Ralston. Voltaire’s Bastards. Há muita literatura sobre a Peste Negra. Ver, por exemplo, DUNCAN, Christopher e SCOTT, Susan. Return of the Black Death: The World’s Greatest Serial Killer. Chichester: Wiley, 2004. E também KELLY, John. The Great Mortality: An Intimate History of the Black Death, the Most Devastating Plague of All Time. Toronto: Harper Collins, 2005. A citação de Blake é do poema “The Human Abstract”. A senhora de sessenta e três anos que colocou o artigo de jornal no baú de viagem era minha mãe. Ela o recortou do Toronto Star, que o reproduzira do Los Angeles Times. A pessoa que o encontrou e o leu mais tarde — em 2008 — era eu. Sobre a inscrição no copo de café do Espírito do Dia da Terra do Presente, ver STUTCHBURY, Bridget. The Silence of the Songbirds. Existe uma grande quantidade de material sobre a destruição dos oceanos. Ver por exemplo, JONES,

Deborah. “In a Few Decades. There Will Be No Fish”. globeandmail.com. 2005. Globe and Mail. 21/5/2008. Sobre boas decisões em matéria de peixes, ver www.seafoodwatch.org. Sobre como ajudar, ver www.Oceana.org. As estatísticas a respeito da produção de oxigênio das árvores foram extraídas de www.torontoparksandtrees.org. Sobre os efeitos benéficos do solo orgânico sobre o dióxido de carbono, ver BECK, Malcolm. The Secret Life of Compost. Metairie, Louisiana: Acres, 1997. Ver ainda www.FarmForward.com. Sobre pássaros mortos por prédios iluminados e o que se pode fazer a respeito, ver, por exemplo, FLAP, em www.flap.org. Há muitas outras organizações trabalhando nisso, e na interação pássaros/fazendas de vento. Se você tem algum tipo de envolvimento ou responsabilidade social nessas questões, por que não apagar as luzes, economizar um pouco de carbono e parar de matar aves migratórias ao mesmo tempo? Será que é tão difícil assim? Para ajudar a salvar os albatrozes da extinção, acesse o site da BirdLife International em www.birdlife.org, escolha a entidade-parceira em seu país e dê sua contribuição. Para ajudar a salvar as aves canoras migratórias, ver, além da BirdLife International, a American Bird Conservancy, em www.abcbirds.org. O Banco Grameen microfinanciamento.

é



um

exemplo

de

Sobre períodos de hiperinflação, ver, por exemplo, a obra de BUCHAN, James, Frozen Desire, referenciada

nas Notas do cap. 4. Sobre o implacável poder destrutivo de determinados tipos de tecnologia, ver Jünger, Friedrich George. The Failure of Technology: Perfection Without Purpose. Hinsdale, Illinois: Henry Regnery, 1949. O mau futuro de Scrooge pode se mostrar ainda pior. Para conhecer um profeta do “efeito gota d’água”, ver LOVELOCK, James. The Revenge of Gaia. Londres: Allen Lane, 2006. Sobre exemplos de ações bem mais antigas e inclusivas em relação aos animais, ler com atenção a história de Noé; ver a vida de Buda; o hinduísmo e o vegetarianismo; e ainda a encantadora fábula muçulmana O processo dos animais contra a humanidade, bem como as passagens do Corão que se referem ao abuso de animais. Agradeço ao dr. Tazim Kassan, da Universidade de Siracusa, por chamar minha atenção para esses dois últimos exemplos. Alguns dos biocombustíveis ingeridos pela autora e que a mantêm firme no teclado do computador vieram de barras de chocolate produzidas organicamente, em regime de comércio justo, cacau cultivado à sombra, da única espécie que não agride os pássaros. A energia elétrica de carbono neutro foi fornecida por Bullfrog Power em www.bullfrogpower.com. Cabe mencionar que um percentual ridiculamente baixo, de apenas 1,5% de todas as doações de caridade, vai para a Natureza não humana, excluindo-se os animais de estimação. Esta estatística pode ser mudada por você. Uma quantia equivalente ao lucro bruto da autora com o adiantamento canadense por este livro foi doada à

BirdLife International, por intermédio de sua parceira, a Nature Canada.

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AGRADECIMENTOS

Este projeto foi uma obra de amor. Eu o fiz pela Anansi, e em especial por seu proprietário, Scott Griffin: a bravura, em face de desafios desestimulantes como o de editar literatura no Canadá, não deveria ficar sem recompensa, embora geralmente seja isso que aconteça. Há muitas outras pessoas a quem devo agradecer. Primeiro, a minhas agentes, Phoebe Larmore, para a América do Norte, e Betsy Robbins, do Reino Unido. Da editora House of Anansi, Sarah MacLachlan e Lynn Henry. Da Bloomsbury, Alexandra Pringle. Heather Sangster, incansável revisora. Da CBC, Philip Coulter e Bernie Lucht. Da Faculdade Massey, o diretor John Fraser, e os dois assistentes de pesquisa que ele, com grande habilidade, providenciou a tempo e a hora, Claire Battershill e Dylan Smith. Obrigada aos meus primeiros leitores, que me foram muito úteis. Jess Atwood Gibson e Valerie Martin, e também aos doutores Ramsay e Eleanor Cook, que muito justamente escreveram “Isso é bobagem” à margem de algumas passagens. Espero ter conseguido manter esses trechos fora, embora outras bobagens que eles não perceberam devam ter escapado. Obrigada também aos meus “murosde-lamentação”, David Young e Judith Timson, a quem não poupei os ouvidos. Obrigada, ainda, à equipe de apoio de O. W. Toad (Sarah Webster, Shannon Shields, Laura Stenberg, Penny Kavanaugh e Anne Joldersma) que, quando as coisas estavam desabando, conseguiu evitar que desabassem por completo. E, finalmente, obrigada a Graeme Gibson, que entende de equilíbrio e sabe lidar com os desequilíbrios, inclusive os meus quando escrevo. A todos, fico devendo.

AUTORIZAÇÕES

Autorização concedida para reprodução de extratos do seguinte: (link) “Hipotecas”. Valerie Martin. Correspondência pessoal com a autora. Usado com autorização. (link) The Moral Animal, Robert Wright (Vintage, 1995). Copyright © 1994 Robert Wright. Usado com autorização. (link) Comentário da pastora Jennie C. Olbrych sobre “Perdão Abusivo”, St. James Santee Episcopal Church Blog, postado em 23/9/2004. Reproduzido com autorização. (link) The Creation of Patriarchy, Gerda Lerner. Copyright © 1986 Gerda Lerner. Com autorização da Oxford University Press, Inc. (link) “Blair Believes He Can Do No Wrong: Ask the Antinomians”, Sam Leith. Copyright © 2006, The Daily Telegraph. Reproduzido com autorização. (link) Trecho da p. 8 de Get Shorty, Elmore Leonard. Copyright © 1990 Elmore Leonard. Reproduzido com autorização da HarperCollins Publishers e The Wylie Agency, Inc. (link) “By 2042, MIT Team Says: Collapse of World Economy Foreseen if Growth Goes On”, Paul E. Steiger. Copyright © 1972, Los Angeles Times. Reproduzido com autorização.

LIVROS DA AUTORA

A noiva ladra A odisseia de Penélope A porta A tenda A vida antes do homem Buscas curiosas Dançarinas e outras histórias Dicas da imensidão Lesão corporal Madame Oráculo MaddAddão Negociando com os mortos O ano do dilúvio O assassino cego O conto da aia O ovo do Barba-Azul Olho de gato Oryx e Crake Os testamentos Payback – a dívida e o lado sombrio da riqueza Políticas do poder Transtorno moral Vulgo Grace Lá em cima na árvore (Infantil)

Título original PAYBACK Debt and the shadow side of wealth Copyright © O. W. Toad 2008 O direito de Margaret Atwood de ser identificada como autora desta obra foi assegurado por ela em conformidade com o Copyright, Designs & Patents Act 1998. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou meio eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou sistema de armazenagem e recuperação de informação, sem a permissão escrita do editor. “PROIBIDA A VENDA EM PORTUGAL” Direitos para a língua portuguesa reservados com exclusividade para o Brasil à EDITORA ROCCO LTDA. Rua Evaristo da Veiga, 65 – 11º andar Passeio Corporate – Torre 1 20031-040 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 3525-2000 – Fax: (21) 3525-2001 [email protected] www.rocco.com.br preparação de originais RYTA VINAGRE coordenação digital MARIANA MELLO E SOUZA revisão de arquivo ePub PRISCYLLA PIUCCO Edição digital: junho, 2022. Este livro foi originalmente publicado como parte do The Massey Lecture Series, copatrocinado por Canadian Broadcasting Corporation, Massey College na Universidade de Toronto e House of Anansi Press. A série foi criada em homenagem de V. Exª Vincent Massey, ex-governador geral do Canadá, e foi inaugurada em 1961 para permitir que autoridades destacadas comuniquem os resultados do

estudo original ou pesquisa em assuntos de interesse contemporâneo.

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ A899p Atwood, Margaret, 1939Payback [recurso eletrônico] : a dívida e o lado sombrio da riqueza / Margaret Atwood ; tradução André Costa. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Rocco Digital, 2022. recurso digital Tradução de: Payback: debt and the shadow side of wealth. ISBN 978-65-5595-132-5 (recurso eletrônico) 1. Dívidas - Aspectos sociais. 2. Dívidas na literatura. 3. Livros eletrônicos. I. Costa, André. II. Título.

 

22-77816 CDD: 306.6   CDU: 304:338.1

O texto deste livro obedece às normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

A AUTORA

MARGARET ATWOOD, escritora canadense, é romancista, poeta, contista, ensaísta e crítica literária. Foi agraciada com importantes prêmios literários, entre eles o Príncipe das Astúrias – pelo conjunto de sua obra – e o Man Booker Prize. Um de seus livros de maior sucesso é O conto da aia, que já vendeu milhões de exemplares no mundo todo e inspirou a série de TV homônima. Também da autora, a Rocco publicou, entre outros, Vulgo Grace, a trilogia MaddAddão, A noiva ladra, Olho de gato e O assassino cego, vencedor do Booker Prize 2000.

Índice   1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16.

Capa Folha de rosto Dedicatória Sumário UM 1. Antigas balanças DOIS 1. Dívida e pecado TRÊS 1. A dívida como trama QUATRO 1. O lado sombrio CINCO 1. Payback Notas Bibliografia Agradecimentos Autorizações Livros da autora Créditos A Autora

Landmarks   1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.

Capa Folha de rosto Dedicatória Sumário Início Notas Bibliografia

8. Agradecimentos 9. Créditos