Os Devaneios do Caminhante Solitário 8574923788, 9788574923789

A verdade geral e abstrata é o mais precioso de todos os bens. Sem ela, o homem é cego; ela é o olho da razão. Por meio

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Os Devaneios do Caminhante Solitário
 8574923788,  9788574923789

Table of contents :
INTRODUÇÃO......Page 6
PRIMEIRA CAMINHADA......Page 20
SEGUNDA CAMINHADA......Page 27
TERCEIRA CAMINHADA......Page 36
QUARTA CAMINHADA......Page 49
QUINTA CAMINHADA......Page 64
SEXTA CAMINHADA......Page 73
SÉTIMA CAMINHADA......Page 83
OITAVA CAMINHADA......Page 97
NONA CAMINHADA......Page 107
DÉCIMA CAMINHADA......Page 119
BIBLIOGRAFIA SELECIONADA......Page 121

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©Copyright, 2018. Os devaneios do caminhante solitário Em conformidade com a Nova Ortografia. Todos os direitos reservados. Editora Nova Alexandria Ltda. Av. D. Pedro I, 840 01552-000 — São Paulo — SP Fone/fax: (11) 2215-6252 E-mail: [email protected] www.novaalexandria.com.br Coordenação Editorial: Juliana Messias Preparação de originais: Marina Silva Ruivo Revisão: Lucas de Sena Lima Capa: Mauricio Mallet Editoração eletrônica: Mauricio Mallet DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) ANGÉLICA ILACQUA CRB-8/7057 Rousseau, Jean Jacques, 1712-1778 Os devaneios do caminhante solitário / Jean Jacques Rousseau; tradução, introdução e notas de Fúlvia Maria Luiza Moretto. São Paulo : Editora Nova Alexandria, 2018. ISBN: 978-85-7492-378-9 Título original: Les rêveries du promeneur solitaire 1. Literatura francesa filosófica 2. Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778 I. Título II. Moretto, Fúlvia Maria 13-0658 CDD 194.4 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura francesa filosófica

Sumário

INTRODUÇÃO PRIMEIRA CAMINHADA SEGUNDA CAMINHADA TERCEIRA CAMINHADA QUARTA CAMINHADA QUINTA CAMINHADA SEXTA CAMINHADA SÉTIMA CAMINHADA OITAVA CAMINHADA NONA CAMINHADA DÉCIMA CAMINHADA BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

INTRODUÇÃO

EM 1760, COM A PUBLICAÇÃO da Nouvelle Héloïse, finalizada em 1758, Jean-Jacques Rousseau inicia a série de suas grandes obras. Recebida com encantamento, por vir ao encontro de um mundo já preparado para recebê-la, a obra, lançada primeiramente em Londres e no ano seguinte (1761) em Paris, faz enorme sucesso e consagra definitivamente o escritor, já conhecido por intermédio de seus dois Discours, de seus trabalhos menores e de sua produção musical. Porém, em 1762, quando da sua publicação, o Emile e o Contrat social levantam a polêmica que envolverá Rousseau até o fim de sua vida. A 9 de junho, o Parlamento de Paris condena o Emile e o autor tem que fugir da cidade no mesmo dia. A 11 de junho, a obra é queimada em Paris e a 19 do mesmo mês o Emile e o Contrat são queimados em Genebra. A 1º de julho o governo de Berna considera Rousseau persona non grata. Em novembro, a Sorbonne condena oficialmente o Emile. A polêmica é longa e acirrada. Esta última obra, ao pregar uma religião natural, não revelada, mas imposta por um “sentimento interior”, pela “consciência”, ao pregar a existência de Deus, atingido pelo coração, sem necessidade de ritos, alarma crentes e ateus, católicos e protestantes. O Contrat social, ao pregar um governo republicano e a vontade geral do povo soberano, irrita a monarquia francesa e a aristocrática Genebra. As Lettres écrites de la montagne, em que Rousseau procura se explicar, são queimadas em Paris em 1765, enquanto em Môtiers, na Suíça, a casa do autor é apedrejada. Convidado por Hume, Rousseau chega à Inglaterra onde acaba desentendendo-se com o filósofo inglês, como já se desentendera com a intelectualidade francesa. Em novembro de 1766 inicia a redação das Confessions. Ao voltar à França se esconde, usa nome falso. Sua mania de perseguição aumenta, sentese vítima de um complô cuja existência a crítica ainda não cessou de estudar. Em dezembro de 1770, termina as Confessions e no ano seguinte as lê ao príncipe real da Suécia e à alta sociedade reunida nos salões parisienses. Seu conteúdo constrange os ouvintes e sua leitura é finalmente proibida. De 1772 a 1776, redige os Dialogues de Rousseau juge de Jean-Jacques, sem abandonar seus estudos de botânica e suas

composições musicais. Esta obra revela um esforço para se explicar perante seus contemporâneos. Sente porém que somente no futuro será compreendido. Mas como fazer chegar ao futuro uma obra que também sofrerá os efeitos do complô que vê por toda a parte? Não tem confiança em ninguém, nem nos editores. Assim, em fevereiro de 1776, resolve entregar a obra a Deus. Entra na catedral de Notre-Dame, em Paris, para depositar sobre o altar-mor o manuscrito de seus Dialogues. Por casualidade, encontra fechadas as grades que o cercam. Interpreta o fato como uma recusa divina. Está só. Entrega a Condillac o manuscrito e distribui pelas ruas, aos transeuntes, seu escrito A tout Français aimant encor la justice et la vérité, escrito que não interessa ninguém. Cala-se então e no outono inicia a redação dos Devaneios do caminhante solitário cuja primeira frase “Eis-me, portanto, sozinho na terra...” é o cerne, o sentido de toda a obra. O segundo “Devaneio” foi escrito durante o inverno de 1776-1777, o terceiro, quarto, quinto, sexto e sétimo, durante a primavera e o verão de 1777, o oitavo, em fevereiro de 1778, o nono, em março de 1778 e o décimo, inacabado, a 12 de abril de 1778. A 20 de maio, se instala em Ermenonville, ao norte de Paris, em casa de seu amigo, o marquês de Girardin. Passa o tempo herborizando nas redondezas, isto é, colhendo, estudando e catalogando plantas. A 28 de junho completa 66 anos. A 2 de julho, levanta-se cedo, como sempre, e após o passeio matinal sente-se mal. Morre às 11 horas da manhã. Enterrado dois dias depois, no próprio Parque do castelo de Ermenonville, em 1794 seus despojos foram transferidos para o Panthéon de Paris. Os manuscritos encontrados em seu quarto foram enviados pelo marquês de Girardin ao fiel amigo Du Peyrou, na Suíça, o qual já possuía vários escritos de Rousseau que o próprio autor lhe enviara. Os devaneios do caminhante solitário foram publicados por Du Peyrou em 1782, nas obras completas do autor. O manuscrito, que pertence hoje à Biblioteca de Neuchâtel, é formado de um caderno de 140 páginas in 8º, cuidadosamente escrito, contendo os sete primeiros “Devaneios” e de 57 páginas in 8º, soltas, 21 das quais contendo os rascunhos dos três últimos, que não foram passados a limpo pelo autor. Acompanham o conjunto 27 cartas de jogo em que Rousseau escrevia ideias, frases soltas, que mais tarde desenvolveu em seu livro. Sentimos, ao ler os Devaneios que, ao lado de um vocabulário por vezes ainda clássico, ao lado de palavras que começam a cair em desuso, Rousseau usa grande

número de neologismos que tornam sua prosa moderna: mélancolique (já em seu sentido romântico), insociable, herborisation, être (ser, pessoa), existence, stimulant, aimant, remprunter, étendage, analogue, inculpable, déclinante, circonscrit, tarissante, romantique (usado aqui por Rousseau pela primeira vez). São ainda neologismos: se donner des airs (dar-se ares de), Altérer (termo concreto do vocabulário da Física e da Química), bavardage; défeuillé, expansif (somente usado então em seu sentido concreto), resserrer (em lugar de serrer le cœur). De outro lado, Rousseau retoma velhas palavras caídas em desuso e as renova: alanguissement, alléché (atraído, seduzido), arguties (aceito pelo Dicionário da Academia somente em 1798), carpière (velha palavra suíça do século XIV), dépression (com o sentido de humilhação). A linguagem filosófica do século XVIII não possui ainda o rigor, a precisão que vai adquirir mais tarde. Mas, como o estilo de Rousseau é eminentemente imagético, o autor usa, para exprimir suas ideias, imagens, especialmente metáforas, extraídas do vocabulário da natureza, de aparelhos científicos, da própria ciência, abrindo assim o caminho à linguagem concreta e finalmente usa metáforas extraídas do vocabulário místico e da música, renovando-lhe o sentido e modernizando-o. Quanto à sintaxe, se o autor obedece ainda à forma clássica, com o verbo concordando com o último elemento do sujeito composto, usando antes do verbo o pronome complemento de infinito etc., estes fatos pouco significam ao lado da modernidade de sua prosa. É uma frase nova, moderna, a ponto de ser ridicularizada pelos contemporâneos. Pequenos períodos de uma linha são seguidos por longos períodos com poucas vírgulas, nos quais o ponto e vírgula separa as orações. Às vezes, encontramos períodos de apenas uma oração circunstancial. Mas, o mais das vezes, em seu estilo oratório, inflamado, o período de Rousseau parece ondular de um lado para outro, o verbo está subentendido, esperamos em vão um ponto, o longo período continua seu caminho como um barco vogando no mar. Antíteses, pleonasmos, anacolutos, mudanças de construção são constantes em todo o livro. Neste período instável e movediço, respeitamos o estilo do autor. Apenas substituímos, cá e lá, mas muito raramente, uma vírgula por um ponto e vírgula, para facilitar ao leitor de língua portuguesa a leitura de uma escritura que parece transbordar, que parece não descansar em nenhum ponto final. Mas nunca colocamos

um ponto final inexistente no texto rousseauniano. Pois, como modificar uma prosa que irá encantar mais tarde os escritores do século XIX, a começar pelos românticos? Como “corrigir” um autor que está construindo uma nova linguagem, um novo discurso, exatamente nos dois últimos anos de sua vida? Além disso, como o século XVIII ainda não possui um vocabulário pitoresco para descrever novas realidades, o que só se dará com Bernandin de Saint-Pierre e especialmente com Chateaubriand, Rousseau lança mão do ritmo para nos sugerir o pitoresco da descrição. Longos períodos que parecem acompanhar a respiração, gosto pela acumulação de palavras, de exemplos, preferência pelo ritmo ternário para os verbos, binário para os substantivos, a grande quantidade de frases interrogativas e exclamativas, repentinamente substituídas (quarto “Devaneio”) por um estilo racional, casuístico mesmo, levaram a crítica a falar dos estilos dos Devaneios do caminhante solitário. Estilos que, baseados em grande parte no ritmo, nos dão este pitoresco que mais de um século de classicismo e de literatura psicológica haviam retirado à literatura francesa. Se falta, assim, a Rousseau, um vocabulário pitoresco, sobra-lhe movimento, ritmo que vêm sugerir um mundo exterior que nascia então e que era preciso descrever. Jean-Louis Lecercle resume com muita felicidade este estilo: “Mas ele (Rousseau) sabe também, através do ritmo, sugerir os silêncios de uma consciência que se entorpece e se esvazia. Longuíssimas frases se desenvolvem de forma contínua; o tom sobe ou desce de maneira imperceptível, as pausas são raras e o mais das vezes pouco marcadas. A sintaxe fortemente articulada descreve com nitidez o que acontece e contudo o ritmo é a própria imagem da passividade do sonhador, da paz que encontra na margem do lago, nesta continuidade líquida”.1 Tivemos o cuidado de, juntamente com a frase rousseauniana, conservar palavras caras ao autor e que voltam continuamente em seu texto: circunscrever, enlaçar, disposição, humor, só, único, abrigo, refúgio, explicado em parte pelo dado referencial de que já falamos: o da catedral de Notre-Dame. Pois desse dado nasce o donc-portanto, terceira palavra do primeiro capítulo. Tivemos o cuidado de não enfraquecer este donc-portanto que resume, finalmente, todos os seus Devaneios. Pois esta obra é o marco da guinada final da obra rousseauniana. Ela marca o momento em que seu discurso se volta para si mesmo, em que o autor não mais escreve para os outros. Jean Starobinski escreve a esse respeito: “Para quem Rousseau escreve seus

Devaneios? Para si mesmo, somente para si. De que trata nesta última obra? De seu destino. O autor, que tomou a si mesmo como destinatário, toma também a si mesmo como tema de seu discurso. A palavra não tem mais nenhuma finalidade externa, ela declina qualquer referência a um possível auditório. Rousseau está convencido de que o mundo é doravante surdo à sua voz e se resigna. Em desespero de causa, a palavra percorrerá um circuito interno; ela se refletirá e se absorverá no autor; a consciência pessoal, desdobrada numa consciência discursiva e uma consciência receptora, se alimentará de sua própria substância”.2 Ao contrário das outras obras de Rousseau, os Devaneios não trazem em seu título seu tema, seu assunto, sua essência mesmo, como no caso do Contrat social. Qual a unidade de tais Devaneios que faz deles um livro e não capítulos isolados? O primeiro “Devaneio” descreve o estado em que se encontra o autor, o qual declara ser este livro a continuação das Confessions, porém de um ponto de vista diferente: quer apenas estudar-se a si mesmo e gozar o sentimento de sua própria existência. O segundo descreve seu acidente em Ménil-Montant, a sensação que sente ao voltar a si e o boato que correu sobre sua morte. O terceiro, menos um devaneio do que uma tomada de consciência, relata sua transformação (física e moral) a partir dos quarenta anos. O quarto é uma profunda meditação sobre a mentira. O quinto é a lembrança da felicidade que viveu, por dois meses, na ilha de Saint-Pierre, na Suíça. O sexto é um exame de consciência cuja conclusão é a de que Rousseau não é feito para viver entre os homens. O sétimo é feito de observações e de relatos sobre suas atividades botânicas. O oitavo é a volta à ideia do complô e à forma de evitá-lo para atingir a felicidade. O nono revela seu amor não somente pelas crianças, que preencheu toda a sua vida, mas também por todos os seres humanos, que considera, agora, indignos de seu interesse. O décimo, inacabado, é a lembrança da felicidade que viveu ao lado da senhora de Warens. Nesses dez Devaneios, aparentemente sem ligação entre si, transparece claramente a unidade que os liga: o eu à procura de si mesmo e especialmente da felicidade, a necessidade sempre presente, mas frustrada, de comunicação universal, a necessidade de amar e ser amado, tudo resumido na felicidade de saber agora bastar-se a si mesmo. O eu frui cada vez mais de sua própria substância. Sentimos, contudo, que

este eu não está completamente só, pois, além da presença de Deus, sentimos, ao longo dos Devaneios, um caminhar constante para dentro de si mesmo que o leva até ao seio materno. De fato, no décimo “Devaneio”, o autor volta à senhora de Warens, a quem, segundo o costume saboiano, chama Mamãe. Ora, apesar das bem claras e conhecidas relações entre ambos, apesar da dúbia personalidade da senhora de Warens, é finalmente ela que lhe dá o carinho de que precisava, que substitui mesmo a família e os amigos, que Rousseau teve de abandonar quando deixou Genebra aos 16 anos de idade. O círculo dos Devaneios é fechado, sim, mas é mais amplo do que pode parecer à primeira vista. O velho de 65 anos volta ao seu amor adolescente, à mulher que o encaminhou, que tornou possível seu desabrochar sentimental e intelectual. Do primeiro ao oitavo “Devaneio” o eu é o único protagonista e se fecha para fugir a seus perseguidores. No nono “Devaneio” o círculo começa a se ampliar, a desabrochar diante da lembrança dos próprios filhos e no décimo, diante da lembrança de seu primeiro amor. Tendo todas essas afeições desaparecido, o eu permanece menos com a lembrança de seus perseguidores do que com a lembrança de suas ternuras. O autor diz escrever somente para si mesmo, mas seu caminho nos revela que, velho e só, é para suas mais profundas afeições, paternas e filiais, que se encaminha. Ao leitor não importa mais a real existência dos cinco filhos abandonados ou a evolução do primeiro amor. O que interessa é que o caminhante solitário, dobrando-se sobre si mesmo, encontrou, diante da morte, os carinhos fundamentais para qualquer ser humano. À primeira frase do livro: “Eis-me, portanto, sozinho na terra” responde a última frase do décimo “Devaneio”: “Pensei que uma provisão de talentos era o recurso mais seguro contra a miséria e resolvi usar meus lazeres para me pôr em estado de, se fosse possível, devolver um dia, à melhor das mulheres, a assistência que dela recebera”. Em Vérité et poésie, Marcel Raymond enfoca o problema da definição da rêverie e abre o caminho para os sentidos que devemos conferir-lhe: “Se o sentido do verbo rêver se explica, segundo W. von Wartburg, pela suposição de um latim reexvagare (significando propriamente “vagabundear para fora”, não em espírito mas materialmente) o fio que une as diversas acepções da palavra rêverie é a ideia da vagabundagem interior, de abandono, do descanso do pensamento. Uma acepção

derivada, importante no século do classicismo, será a da descida, do mergulhar em si mesmo. A rêverie se confunde com a meditação”.3 De fato, a ideia de vagar é fundamental na etimologia da palavra rêverie. Nos séculos XVII e XVIII ela tomará o sentido de “pensar, meditar profundamente” (Dicionário da Academia) e o próprio Descartes chamará rêveries a suas meditações. Ora, Cândido de Figueiredo define devanear (do latim devanus) como meditar; pensar vagamente em; – Imaginar, dizer coisas sem nexo – Absorver-se em vagas meditações. Aurélio Buarque de Hollanda define devanear (De + lat. vanus, vão + ear) como pensar em coisas vãs; – Imaginar, fantasiar, sonhar; – Pensar, meditar vagamente; – Cuidar, pensar. Vemos que os termos em francês e em português praticamente se recobrem. O sentido primitivo de rêver, um vagar, um vagabundear predominantemente físico, se aplica perfeitamente à atividade rousseauniana. O autor de RêveriesDevaneios somente devaneia ao caminhar, ao passear, a ponto de introduzir no título de sua obra o caminhante-promeneur. Porém este devaneio não é sempre igual a si mesmo. Se podemos falar em estilos de Rousseau, podemos falar também em diferentes tipos de devaneios. Encontramos a divagação, o sonho, mas encontramos também a profunda meditação, a profunda reflexão, dispersa um pouco cá e lá, mas bem precisa ao longo do terceiro e quarto “Devaneios”. Aliás, o próprio autor tem consciência do fato. Escreve no sétimo “Devaneio”: “Algumas vezes meus devaneios acabam pela meditação, mas mais frequentemente minhas meditações acabam pelo devaneio, e durante tais divagações, minha alma vagueia e plana no universo sobre as asas da imaginação, em êxtases que ultrapassam qualquer gozo”. Se até o século XVIII ainda há alternância no emprego da palavra rêverie, é com Rousseau que ela atinge toda a sua ressonância moderna, romântica. É assim com Rousseau que desabrocham palavras como rêverie e que desabrocha este eu profundo que fará dele o primeiro romântico. Todos os “Devaneios” colocam o eu diante de uma determinada situação, descrevem seus sentimentos, suas lutas, suas dúvidas. Qual deles é mais significativo dentro da obra e mesmo para nós, mais de dois séculos mais tarde? Talvez o quinto “Devaneio”, em que o eu, ator e observador, ao mesmo tempo, observa seu próprio esvaziamento e, em seguida, seu tranquilo renascer. Discurso romântico,

extremamente preciso, é o “Devaneio” que melhor exemplifica a presença do Romantismo no século XVIII, como é também o que mais se aproxima da nossa realidade atual. Na verdade,4 no momento em que a ecologia denuncia a destruição dos recursos naturais do planeta, a solidão do asfalto e do concreto da cidade “desvairada”, consequência da revolução industrial que se desenvolveu a partir do século XIX; no momento em que, perdido nas grandes cidades dos séculos XX e XXI, o homem, aprendiz de feiticeiro, é violentamente atirado para dentro de si mesmo, talvez seja válido voltar mais uma vez a Jean-Jacques Rousseau, que não conheceu a já citada revolução industrial, mas que conheceu uma Paris sem calçadas, com precária iluminação e cujo perímetro não ia além das praças da Concorde e da Nation. Talvez seja válido voltar ao homem que herborizava em Ménilmontant (então fora da cidade e hoje talvez o mais denso dos bairros parisienses) e que viveu os últimos dois meses de sua vida no Grande Parque de Ermenonville, um dos primeiros exemplos do jardim à inglesa, de jardim “moderno”, o jardim anti-Versalhes. Talvez seja válido voltar ao homem cuja cidade natal, Genebra, possuía, no século XVIII, apenas 25 mil habitantes e cujas portas eram fechadas ao anoitecer. O século XVIII, assim como o nosso recente século XX, nasceu com fé na ciência e no progresso. Em seus últimos decênios, entretanto, desiludido (mas não assustado como o século XX) voltou-se, como este, para seu habitat, para a natureza. A etimologia da palavra natureza nos leva a natura, a nascere, a uma volta ao seio materno. A etimologia da palavra ecologia nos leva igualmente ao estudo do habitat. Nos dois casos temos a procura da origem, da segurança, do asilo ancestral. A frase liminar dos Devaneios do caminhante solitário: “Eis-me, portanto, sozinho na terra” tem talvez no quinto “Devaneio” uma de suas mais perfeitas realizações. Nessa lembrança escrita como prosa poética (na opinião de alguns) ou como poema em prosa (na opinião de outros), o eu busca sua unidade, um dos principais objetivos do movimento romântico. Eu, natureza (não eu) e cultura são os três elementos que evoluem dentro desta rêverie seconde na obra do primeiro pré-romântico ou do primeiro romântico tout court. Referindo-se aos Devaneios, Jean Starobinski escreve: “Nessa obra, o eu é sempre protagonista.”5 Na realidade, o eu se defronta com o on e com o não eu, em sua

teimosa procura da felicidade. Mas é preciso examinar como evolui essa relação, tanto mais que o on, marca da supressão referencial, pode designar vários pronomes. A análise dos 17 parágrafos que compõem o quinto “Devaneio” revela um movimento circular no tempo e no espaço. Os três primeiros verbos, no passado e em seu aspecto pontual, revelam a focalização interna, pois o sujeito da enunciação está profundamente inserido num tempo e num espaço precisos que aos poucos vai revelando ao leitor. Em seguida, o eu descreve, no presente, a ilha de Saint-Pierre (primeiro parágrafo), o lago de Bienne e suas margens (segundo parágrafo), a vida na ilha (terceiro parágrafo). Do quarto ao décimo parágrafos, o eu narra sua vida na ilha, narração feita no passado, em seu aspecto duradouro. Do 11º ao 17º parágrafo, o eu, complementando seu ciclo temporal, volta ao presente, meditando, interrogando-se sobre o tipo de felicidade que encontrou na ilha e, completando seu ciclo espacial, procura voltar ao lugar em que foi feliz. Logo, temos três momentos: descrição – narração – meditação. Em primeiro lugar, encontramos no eu um movimento de defesa, a urgente necessidade de se isolar, de levantar mesmo uma barreira que o defenda dos outros: no primeiro parágrafo, temos o verbo circunscrever-se, no sétimo, o adjetivo circunscritas, no 17º o mesmo adjetivo circunscrita. No segundo parágrafo, temos o sintagma de formato quase redondo e o verbo encerra; no quarto parágrafo, os substantivos refúgio, prisão e o particípio confinado, todos empregados em sentido positivo; no sétimo parágrafo, encontramos ainda onde me enlaçava a num mesmo e o verbo rodeavam; no oitavo, o verbo limitavam; no nono, o adjetivo escondido. No 17º, encontramos: separada do resto do mundo, rodeado de verdura, de flores, ao que me rodeava e o substantivo refúgio. Essa defesa se faz contra os outros, contra um dos sentidos do pronome on. No primeiro parágrafo, on se refere a pessoas desconhecidas e indiferentes. O eu (seis vezes sujeito) e a ilha (três vezes sujeito) estão em perfeita harmonia. No segundo parágrafo, o eu nunca é sujeito. O sujeito é o não eu com o qual o eu se identifica. No terceiro parágrafo, o eu também está ausente, mas os habitantes da ilha, os amigos do eu pertencem ao ideal rousseauniano de uma sociedade perfeita: on significa, portanto, os amigos. Porém, no quarto parágrafo, o equilíbrio é rompido. Neste primeiro mergulho no passado, o eu procura um abrigo, uma defesa contra o on,

contra os outros, os que querem agredi-lo. Eu é sujeito sete vezes; on, cinco vezes, o que revela uma luta mais ou menos equilibrada. Equilíbrio, aliás, precário, pois pela primeira vez a atividade do eu está ameaçada: transforma-se em complemento, em me (oito vezes). No quinto e sexto parágrafos, o eu retoma seu equilíbrio, narrando sua vida e definindo a felicidade na ilha (felicidade absoluta e não relativa como a felicidade aceita por Voltaire). O sétimo e oitavo parágrafos marcam a perfeita harmonia do eu e do não eu: herborização, navegação sobre o lago, contemplação do lago e das montanhas. A fusão entre o eu e o não eu, que se realizará no nono parágrafo, é preparada aos poucos pela rejeição do on (em seu sentido negativo) e pela aceitação do não eu. A descida do eu para dentro de si mesmo e para dentro do não eu é acompanhada, simbolicamente, pela descida do eu até à beira do lago; no sétimo parágrafo, o eu se encontra empoleirado sobre grandes árvores, no cume de um outeiro; no oitavo, se encontra nos terraços e nos outeiros, e no nono parágrafo, centro de todo o “Devaneio”, o eu desce ao nível do lago para se identificar com a água. A insistência conferida pelo aspecto durativo dos verbos, unida ao ritmo cadenciado da frase, parece prolongar o tempo e a feliz fusão do eu semi-inconsciente com seu habitat. Aqui o eu praticamente desaparece. Somente três vezes ele é sujeito. Ao contrário, por sete vezes o me toma seu lugar. Temos, além disso, mim (uma vez), a, referindo-se a minha alma (uma vez) e o possessivo meus, empregado seis vezes como complemento. O eu se dissolve como individualidade, enquanto o não eu, por dez vezes sujeito, se afirma como personalidade. O terceiro elemento (ou, os outros) está ausente enquanto, aos poucos, desaparece também a dicotomia homem-natureza. No terceiro e quinto parágrafos, em que sentimos a presença dos moradores da ilha, amigos do eu, este, aparentemente ausente, está na verdade discretamente presente como complemento. Mas agora, no décimo parágrafo, após a fecunda fusão realizada no parágrafo anterior, pela primeira vez, o eu e o ou se transformam em nós: íamos ainda todos juntos, ríamos, conversávamos, cantávamos. O nono parágrafo transformou as relações entre os três elementos mas principalmente transformou o eu, cuja expansão parece atingir agora tudo o que o rodeia. A crítica rousseauniana já explorou o processo psicanalítico do contato do eu

com a água, símbolo de purificação e de renascimento. Porém, não há profundidade nessa água. Ela é uma superfície, um espelho. No sétimo parágrafo, o eu, deitado no fundo do barco, olha o céu. No nono parágrafo, ao contrário, o eu, sentado sobre a margem do lago, portanto sobre a ilha, olha e ouve a água. Pensa na “instabilidade das coisas deste mundo do qual a superfície das águas me oferecia a imagem”. O espelho, evidentemente, devolve uma imagem invertida, provocando a pergunta: a águaespelho, ao inverter a instabilidade do mundo, poderá trazer ao eu a paz que procura? É preciso observar ainda que o simbolismo do espelho está acompanhado pelo simbolismo do barco (expressão de salvação) e pelo da navegação (meio de atingir a paz). Há, porém, um fato fundamental a ser observado: o eu não atinge a felicidade sobre o lago, mas sobre a ilha, considerada como um “centro espiritual primordial”.6 A ilha de Saint-Pierre é, portanto, para o eu, o centro, o refúgio intemporal (tema tão frequente também em nossos dias), um novo ponto de partida onde o eu encontra sua plenitude, onde a felicidade consiste em “sentir com prazer minha existência sem ter o trabalho de pensar”. Há, contudo, um outro ponto em que a modernidade dos Devaneios é evidente. Do parágrafo 11º ao 17º do quinto “Devaneio”, o eu medita sobre sua vida na ilha. No longo parágrafo 17, escrito metade no passado e metade no futuro do pretérito, exprime ele o desejo de reviver a felicidade que durante dois meses viveu nessa ilha. Mas agora esta felicidade virá somente mediante a lembrança e o sonho. No entanto, as últimas quatro linhas do citado parágrafo (e de todo o “Devaneio”) revelam a impossibilidade de lembrar e portanto de sonhar e de reviver: “Infelizmente, à medida que a imaginação se entorpece, isso acontece com maior dificuldade e não dura tanto tempo. Ai de mim, é quando se começa a abandonar seus despojos que se é mais perturbado por eles!”. O eu, agora, não é mais encurralado pelos outros, pelo on (nesta frase on significa eu, nós, todos), mas por sua própria contingência. Essas quatro últimas linhas não formam um novo parágrafo, mas inseridas no parágrafo final, insistem na continuidade: vida, lembrança, sonho, contingência humana, apresentados como inseparáveis. Prisioneiro dessa contingência, o eu que narrou o passado, que meditou sobre ele, não consegue agora atingir o futuro. E nos lembramos então de que os Devaneios permaneceram (simbolicamente) inacabados. Durante o século XVIII, a ciência, a filosofia, a literatura, o ocultismo procuraram

estudar, cada um a seu modo, as relações entre o homem e o universo. Swedenborg, Saint-Martin, Young, Wright, Kant, J.A. Lembert e outros procuraram compreender a organização do cosmos. Porém, somente a partir de 1797, Schelling (divulgado na França por Madame de Staël e Victor Cousin) elaborou a filosofia romântica da natureza: a fusão do eu e do não eu que se realiza no Absoluto. Eu transcendental, somente dirigido pela intuição. Eu que coloca o eu finito e a natureza, ambos em devir e à procura da perfeição. Filosofia da Identidade que faz do eu e do não eu duas entidades da mesma essência já que ambas emanam desse mesmo Absoluto. O quinto “Devaneio” é, assim, um momento decisivo na recusa do racionalismo, na procura e na valorização da parte irracional da personalidade (em seu sentido positivo, moderno). Voltando as costas à impostação racional da fatigante poesia descritiva que nascera no século XVIII, Rousseau transforma o homem que contempla a natureza. Este homem não a descreve mais, mas está profundamente ligado a ela. Criando o homem moderno, Rousseau é, portanto, o ponto de partida do movimento romântico. E este, ao reunir racionalidade e irracionalidade, ao recompor a unidade fundamental do homem, ultrapassa as definições apressadas e fáceis de alguns manuais de literatura. Realizando tal unidade, o movimento romântico se torna um dos pontos de chegada (e de nova partida) do movimento renascentista, do humanismo que se estilhaça agora neste fim de século. FULVIA MARIA LUIZA MORETTO 1

Lecercle, J.-L. – Jean-Jacques Rousseau, modernité d’un classique. Paris: Larousse, 1973, p. 233. Starobinski, J. – J.-J. Rousseau. La transparence et l’obstacle. Paris: Gallimard, 1971, p. 415. 3 Raymond, M. –Vérité et poésie, Neuchâtel, A la Baconnière, 1964, p. 89. 4 A análise do quinto “Devaneio”, que iniciamos agora, foi publicada com o título de “Mais uma (simples) leitura do Cinquième promenade” no número especial do “Suplemento Cultural” de O Estado de S. Paulo de 6 ago. 1978, sobre “Voltaire e Rousseau: dois homens no século das Luzes”. 5 Ibid. p. 420. 6 A obra de Mircea Eliade explica por que todo microcosmo é um “Centro”, isto é, um lugar sagrado. 2

PRIMEIRA CAMINHADA Outono de 1776

EIS-ME, PORTANTO, SOZINHO NA TERRA, tendo apenas a mim mesmo como irmão, próximo, amigo, companhia. O mais sociável e o mais afetuoso dos humanos dela foi proscrito por um acordo unânime. Procuraram nos refinamentos de seu ódio que tormento poderia ser mais cruel para a minha alma sensível e quebraram violentamente todos os elos que me ligavam a eles. Teria amado os homens a despeito deles próprios. Cessando de sê-lo, não puderam senão furtar-se ao meu afeto. Ei-los, portanto, estranhos, desconhecidos, inexistentes enfim para mim, visto que o quiseram. Mas eu, afastado deles e de tudo, que sou eu mesmo? Eis o que me falta procurar. Infelizmente, essa procura deve ser precedida por um exame da minha situação. É uma ideia por que devo necessariamente passar para chegar deles a mim. Após quinze anos e até mais em que me encontro nesta estranha posição, ela me parece ainda um sonho. Imagino sempre que uma indigestão me atormenta, que tenho um pesadelo e que vou acordar entre os meus amigos, aliviado de minha dor. Sim, sem dúvida, sem o perceber, devo ter dado um salto da vigília ao sono, ou melhor, da vida para a morte. Retirado, não sei como, da ordem das coisas, senti-me precipitado num caos incompreensível, em que não percebo absolutamente nada, e, mais penso na minha atual situação, menos posso compreender onde estou. Oh! Como teria podido prever o destino que me esperava? Como posso concebê-lo ainda hoje, quando a ele estou entregue? Podia, com meu bom senso, supor que um dia eu, o mesmo homem que era, o mesmo que ainda sou, seria tido, seria considerado, sem a menor dúvida, como um monstro, um envenenador, um assassino, que me tornaria o horror da raça humana, o joguete da gentalha, que toda a saudação que me fariam os passantes seria a de escarrar sobre mim, que toda uma geração, de comum acordo, se divertiria enterrando-me ainda vivo? Quando se deu essa estranha transformação, tomado de surpresa, senti-me, a princípio, transtornado. Minhas agitações, minha indignação mergulharam-me num delírio que não precisou de menos de dez anos para se acalmar e, nesse intervalo, tendo caído de erro em erro, de engano

em engano, de tolice em tolice, com minhas imprudências, forneci, aos que dirigem meu destino, outros tantos instrumentos que habilmente usaram para fixá-lo irremediavelmente. Debati-me por muito tempo tão violenta quanto inutilmente. Sem habilidade, sem perícia, sem dissimulação, sem prudência, franco, aberto, impaciente, arrebatado, debatendo-me não fiz outra coisa senão deixar-me enlaçar ainda mais e dar-lhes continuamente novos poderes, que tiveram o cuidado de não negligenciar. Sentindo enfim inúteis todos os meus esforços e atormentando-me inutilmente, tomei a única decisão que me restava, a de me submeter à minha sorte, sem mais resistir contra o destino. Encontrei nessa resignação a compensação a todos os meus males, pela tranquilidade que ela me traz e que não podia aliar-se ao trabalho contínuo de uma resistência tão penosa quanto infrutífera. Uma outra coisa contribuiu para essa tranquilidade. Em todos os refinamentos de seu ódio, meus perseguidores omitiram um que sua animosidade lhes fez esquecer; era o de graduar perfeitamente sua execução, de forma a poder manter e renovar continuamente minha dor, atingindo-me sempre com um novo golpe. Se tivessem tido a habilidade de me deixar algum vislumbre de esperança, dominar-me-iam ainda por esse meio. Com algum falso engodo, poderiam fazer ainda de mim seu joguete e ferirme em seguida, em minha espera iludida, com um tormento sempre novo. Porém, esgotaram antecipadamente todos os seus recursos; nada me deixando, tudo retiraram a si mesmos. A difamação, a humilhação, o escárnio, o opróbrio com que me cobriram não podem mais aumentar nem abrandar; estamos igualmente impossibilitados, eles de os agravar, eu de esquivar-me. De tal forma se apressaram em levar ao máximo a dimensão de minha infelicidade, que todo o poder humano auxiliado por todas as astúcias do inferno a ela nada mais poderiam acrescentar. A própria dor física, em lugar de aumentar meus tormentos, me serviria de distração. Arrancando-me gritos, talvez me economizasse gemidos e as dores de meu corpo interromperiam as de meu coração. Que posso ainda temer deles, visto que tudo está feito? Não podendo mais agravar meu estado, não mais poderiam me atemorizar. A inquietude e o medo são males de que me libertaram definitivamente: é sempre um alívio. Os males reais têm pouco poder sobre mim; resigno-me facilmente com os que sofro, mas não com os que temo.

Minha imaginação assustada os associa, os examina, os dilata e os aumenta. Sua espera me atormenta cem vezes mais do que sua presença e a ameaça me é mais terrível do que o golpe. No momento em que chegam, como o acontecimento lhes retira tudo o que possuíam de imaginário, os reduz a seu justo valor. Acho-os então muito menores do que os havia imaginado e, mesmo em meio a seu sofrimento, não deixo de me sentir aliviado. Nesse estado, livre de todo novo medo e isento da inquietude da esperança, só o hábito poderá tornar-me a cada dia mais suportável minha situação que nada pode agravar e, à medida que o sentimento enfraquece pela duração, não possuem mais os meios de reanimá-lo. Eis o bem que me fizeram meus perseguidores, esgotando sem precaução todas as armas de sua animosidade. Retiraram a si mesmos qualquer poder sobre mim e posso, de agora em diante, ignorálos. Ainda não tem dois meses, uma grande calma voltou ao meu coração. Havia muito nada mais temia mas esperava ainda e essa esperança, ora embalada ora frustrada, era um ponto através do qual mil paixões diversas não cessavam de me agitar. Um acontecimento tão triste quanto imprevisto acaba enfim de apagar de meu coração este fraco raio de esperança e me fez ver meu destino fixado para sempre, definitivamente, na terra. A partir de então, resignei-me sem reservas e encontrei novamente a paz. Logo que comecei a entrever a trama em toda a sua extensão, perdi para sempre a ideia de, ainda em vida, trazer de volta o público para a minha pessoa e, como mesmo essa volta não poderia mais ser recíproca, ela me seria agora bem inútil. Em vão os homens voltariam a mim, não mais me encontrariam. Com o desdém que me inspiraram, suas relações me seriam insípidas e mesmo um motivo de desgosto, e sou cem vezes mais feliz em minha solidão do que poderia ser vivendo com eles. Arrancaram de meu coração todas as doçuras da sociedade. Nele não poderiam mais germinar; ainda uma vez, na minha idade; é demasiadamente tarde. Que me façam agora bem ou mal, tudo me é indiferente, vindo de sua parte, e o que quer que façam, meus contemporâneos nunca serão nada para mim. Porém, contava ainda com o futuro e esperava que uma geração melhor, examinando com maior cuidado seus julgamentos sobre a minha pessoa e seu procedimento para comigo, viesse esclarecer facilmente a fraude dos que a dirigem e me visse finalmente como sou. Foi essa esperança que me fez escrever meus Diálogos

e que me sugeriu mil loucas tentativas para os fazer chegar à posteridade. Essa esperança, embora longínqua, mantinha minha alma na mesma agitação de quando procurava ainda no mundo um coração justo, e minhas esperanças, que em vão dirigia ao longe, me transformavam igualmente no joguete dos homens de hoje. Disse em meus Diálogos em que baseava essa espera. Enganava-me. Felizmente, senti-o com suficiente antecipação para encontrar ainda, antes de minha hora extrema, um intervalo de plena quietude e de repouso absoluto. Este intervalo começou na época de que falo e tenho motivos para crer que não mais será interrompido. Poucos dias se passam e novas reflexões me confirmam como estava errado em contar com a volta do público, mesmo numa outra época; visto que ele é conduzido, no que me diz respeito, por guias que se renovam continuamente nas corporações que me têm aversão. Os indivíduos morrem, mas os corpos coletivos não morrem. Neles, as mesmas paixões se perpetuam e seu ódio ardente, imortal, como o Demônio que o inspira, tem sempre a mesma atividade. Quando todos os meus inimigos particulares estiverem mortos, os médicos, os Oratorianos viverão ainda e, quando não tiver como perseguidores senão essas duas corporações, devo ter certeza de que não deixarão uma maior paz à minha memória após a minha morte do que a que deixam à minha pessoa durante minha vida. Talvez, com o passar do tempo, os médicos, que ofendi realmente, poderiam se acalmar. Mas os Oratorianos, que eu amava, que estimava, em quem depositava toda a confiança e que nunca ofendi, os Oratorianos, eclesiásticos e semimonges serão para sempre implacáveis, sua própria iniquidade faz o meu crime que seu amor próprio nunca me perdoará, e o público, cuja animosidade terão o cuidado de manter e de reanimar constantemente, não se acalmará mais do que eles. Tudo está acabado para mim sobre a terra. Não me podem mais fazer bem nem mal. Nada mais me resta esperar nem temer neste mundo e eis-me tranquilo no fundo do abismo, pobre mortal infeliz, mas impassível como o próprio Deus. De agora em diante, tudo o que é exterior a mim me é estranho. Neste mundo, não tenho mais próximo, nem semelhantes, nem irmãos. Estou na Terra como num planeta estranho, onde teria caído daquele em que habitava. Se ao meu redor reconheço alguma coisa, são apenas objetos aflitivos e dilacerantes para o meu coração e não posso olhar o que me toca e me envolve sem encontrar sempre algum motivo de desdém, que me indigna, ou de dor, que me aflige. Afastemos, portanto, de meu

espírito, todos os objetos penosos com os quais me ocuparia tão dolorosa quanto inutilmente. Sozinho pelo resto de minha vida, visto que somente em mim encontro a consolação, a esperança e a paz, não devo nem quero mais ocupar-me senão comigo mesmo. É nesse estado que retomo a continuação do exame severo e sincero que outrora chamei minhas Confissões. Consagro meus últimos dias a estudar-me a mim mesmo e a preparar de antemão as contas que não tardarei a dar de mim mesmo. Entreguemo-nos inteiramente à doçura de conversar com minha alma, já que é a única coisa que os homens não me podem tirar. Se, à força de refletir sobre minhas disposições interiores, consigo pô-las em melhor ordem e corrigir o mal que nelas pode ter ficado, minhas meditações não serão inteiramente inúteis e embora não sirva mais para nada na terra, não terei perdido completamente meus últimos dias. Os lazeres de minhas caminhadas diárias foram frequentemente preenchidos por contemplações encantadoras das quais tenho o desgosto de ter perdido a lembrança. Fixarei pela escrita as que ainda poderei ter; cada releitura me devolverá sua alegria. Esquecerei minhas infelicidades, meus perseguidores, meus opróbrios, pensando na recompensa que merecera meu coração. Estas folhas não serão de fato senão um informe formal de meus devaneios. Nelas, tratar-se-á muito de mim, porque um solitário que reflete se ocupa necessariamente muito consigo mesmo. De resto, todas as ideias estranhas que me passam pela cabeça, ao caminhar, nelas encontrarão igualmente seu lugar. Contarei meus pensamentos exatamente como surgiram e com tão pouca ligação quanto as ideias da véspera têm, geralmente, com as do dia seguinte. Porém, deles resultará sempre um novo conhecimento de meu natural e de meu humor por meio dos sentimentos e dos pensamentos de que diariamente se alimenta meu espírito no estranho estado em que me encontro. Portanto, estas folhas podem ser consideradas como um apêndice das minhas Confissões, porém não lhes dou mais o mesmo título, porque não sinto mais nada a dizer que o possa merecer. Meu coração purificou-se no cadinho da adversidade e, sondando-o com cuidado, mal encontro algum resto de tendências repreensíveis. Que me faltaria ainda confessar, quando todas as afeições terrenas foram arrancadas? Não posso mais louvar-me nem censurar-me: nada sou agora entre os homens e isso é tudo o que posso ser, pois com eles não tenho mais relações reais, de verdadeira convivência. Não podendo mais fazer nenhum bem que não se torne um

mal, não podendo mais agir sem prejudicar os outros ou a mim mesmo, abster-me tornou-se meu único dever e o cumpro na medida de minhas possibilidades. Mas nesta ociosidade do corpo, minha alma está ainda ativa, produz ainda sentimentos, pensamentos, e sua vida interior e moral parece ainda ter crescido pela morte de qualquer interesse terreno e material. Meu corpo, para mim, não é mais do que um estorvo, um obstáculo, e dele me liberto antecipadamente tanto quanto posso. Uma situação tão singular merece seguramente ser examinada e descrita, e é a esse exame que consagro meus últimos lazeres. Para fazê-lo com sucesso, seria necessário proceder com ordem e método: porém sou incapaz desse trabalho e mesmo ele me afastaria de minha finalidade que é a de perceber as contínuas modificações de minha alma. Farei em mim, num certo sentido, as operações feitas no ar pelos físicos, para conhecer seu estado diário. Aplicarei o barômetro à minha alma e essas operações, bem conduzidas e longamente repetidas, poder-me-iam fornecer resultados tão seguros quanto os seus. Mas não levo até a este ponto minha empresa. Contentar-meei em manter o registro das operações sem procurar reduzi-las a um sistema. Minha empresa é a mesma de Montagne1, mas com uma finalidade totalmente contrária à sua: pois ele não escrevia seus ensaios senão para os outros e eu não escrevo meus devaneios senão para mim. Se, na minha velhice, próximo à partida, me mantiver, como o espero, na mesma disposição em que me encontro, sua leitura me lembrará a doçura que experimento ao escrevê-los e, fazendo renascer assim, para mim, o tempo passado, duplicará, por assim dizer, minha existência. Apesar dos homens, saberei saborear ainda o encanto da sociedade e viverei decrépito, comigo mesmo, numa outra época, como viveria com um amigo menos velho. Escrevia minhas primeiras Confissões e meus Diálogos numa constante preocupação quanto aos meios de os furtar às mãos ávidas de meus perseguidores, para transmiti-los, caso fosse possível, a outras gerações. Quanto a este escrito, a mesma inquietação não me atormenta mais, sei que ela seria inútil, e como o desejo de ser mais bem conhecido pelos homens se apagou no meu coração, deixa ele apenas uma indiferença profunda pelo destino de meus verdadeiros escritos e dos monumentos de minha inocência, que talvez já tenham sido todos aniquilados para sempre. Que espiem o que faço, que se preocupem com estas folhas, que as roubem, que as suprimam, que as falsifiquem, tudo isso agora me é indiferente. Não as

escondo nem as mostro. Se mas roubarem, estando eu ainda vivo, não me roubarão nem o prazer de as ter escrito, nem a lembrança de seu conteúdo, nem as meditações solitárias de que são o fruto e cuja fonte somente pode se apagar com minha alma. Se, desde minhas primeiras desgraças, tivesse sabido não resistir contra meu destino e tomar a resolução que tomo hoje, todos os esforços dos homens, todas as suas assustadoras intrigas não teriam tido efeito sobre mim e não teriam perturbado meu repouso com todas as suas tramas, assim como não o podem perturbar de agora em diante com todos os seus sucessos; que gozem à vontade de meu opróbrio, não me impedirão de gozar de minha inocência e de acabar meus dias em paz, a despeito deles. 1

(N.T.) – Rousseau usa a ortografia da época de acordo com a pronúncia então vigente.

SEGUNDA CAMINHADA Inverno de 1776-1777

Tendo, portanto, formado o projeto de descrever o estado habitual de minha alma na mais estranha situação em que possa jamais encontrar-se um mortal, não vi nenhuma maneira mais simples e mais segura de executar essa empresa do que a de manter um registro fiel de minhas caminhadas solitárias e dos devaneios que as preenchem, quando deixo minha cabeça inteiramente livre e minhas ideias seguirem sua inclinação, sem resistência e sem embaraços. Estas horas de solidão e de meditação são as únicas do dia em que sou plenamente eu mesmo e em que me pertenço sem distração, sem obstáculos e em que posso verdadeiramente dizer que sou o que desejou a natureza. Em breve, senti que demorara demais em executar esse projeto. Minha imaginação já menos viva não se inflama mais como outrora ao contemplar o objeto que a anima, inebrio-me menos com o delírio do devaneio; há mais reminiscência do que criação no que ela produz agora, um tépido langor abate todas as minhas faculdades, o espírito vital se apaga em mim gradativamente; só com dificuldade minha alma se arremessa agora para fora de seu envoltório decrépito e sem esperança de alcançar o estado a que aspiro, porque sinto ter direito a ele, somente existiria por intermédio das lembranças. Assim, para me contemplar a mim mesmo, antes de meu declínio, é preciso remontar pelo menos alguns anos, ao tempo em que, tendo perdido toda a esperança sobre a terra e não encontrando nela mais alimento para meu coração, acostumava-me pouco a pouco a nutri-lo de sua própria substância e a procurar todo o seu alimento dentro de mim. Esse recurso, do qual me lembrei demasiadamente tarde, se tornou tão fecundo que em breve bastou para me compensar de tudo. O hábito de entrar em mim mesmo me fez perder enfim o sentimento e quase a lembrança de meus males; aprendi assim, por minha própria experiência, que a fonte da verdadeira felicidade está em nós e que não depende dos homens tornar verdadeiramente infeliz aquele que sabe querer ser feliz. Havia quatro ou cinco anos saboreava habitualmente essas delícias interiores que as

almas amantes e doces encontram na contemplação. Esses transportes, esses êxtases que experimentava algumas vezes, caminhando assim sozinho, eram prazeres que devia aos meus perseguidores: sem eles, nunca teria encontrado nem conhecido os tesouros que trazia em mim mesmo. Em meio a tantas riquezas, como manter um registro fiel? Querendo lembrar tantos doces devaneios, em lugar de descrevê-los, recomeçava-os. É um estado introduzido por sua lembrança e que em breve cessaríamos de conhecer cessando completamente de senti-lo. Experimentei perfeitamente esse fato nas caminhadas que sucederam ao projeto de escrever a continuação de minhas Confissões, especialmente naquela de que vou falar e na qual um acidente imprevisto veio romper o fio de minhas ideias e dar-lhes, por algum tempo, um outro curso. Quinta-feira, 24 de outubro de 1776, após o almoço, segui os bulevares até a rua do Chernin-Vert, através da qual alcancei as alturas de Ménilmontant1 e, de lá, tomando os atalhos através das videiras e dos prados, atravessei até Charonne a alegre paisagem que separa essas duas vilas; em seguida, fiz um desvio para voltar pelos mesmos prados, tomando um outro caminho. Divertia-me em percorrê-los com este prazer e este interesse que sempre suscitaram em mim os lugares agradáveis e detendo-me algumas vezes para observar plantas entre a verdura. Percebi duas que via raramente ao redor de Paris e que achei muito abundantes naquele cantão2. Uma era a Picris hieracioides da família das compostas e a outra, o Bupleurum falcatum, da das umbelíferas. Essa descoberta me alegrou e me distraiu por muito tempo e acabou pela de uma planta ainda mais rara, sobretudo numa região elevada, isto é, o cerastium aquaticum que, apesar do acidente que me aconteceu no mesmo dia, encontrei num livro que trazia comigo e que colocara em meu herbário.3 Enfim, após ter examinado detalhadamente várias outras plantas que via ainda em flor e cuja vista e catalogação, que me eram familiares, contudo, sempre me davam prazer, abandonei pouco a pouco essas pequenas observações para me entregar à impressão não menos agradável, mas mais tocante, que me dava o conjunto de tudo aquilo. Havia alguns dias, acabara-se a vindima; os visitantes da cidade já se haviam retirado; os camponeses também deixavam os campos até os trabalhos do inverno. O campo ainda verde e vicejante, porém desfolhado em parte e já quase deserto, oferecia por toda parte a imagem da solidão e da aproximação do inverno. De seu aspecto

resultava uma impressão ao mesmo tempo doce e triste, por demais análoga à minha idade e ao meu destino, para que não a aplicasse a mim. Via-me no declínio de uma vida inocente e infortunada, com a alma ainda cheia de sentimentos fortes e o espírito ainda ornado de algumas flores, mas já murchas de tristeza e dessecadas pelos desgostos. Sozinho e abandonado, sentia vir o frio dos primeiros gelos e minha imaginação enfraquecida não mais povoava minha solidão com seres formados segundo o desejo do meu coração. Dizia a mim mesmo, suspirando, que fiz na Terra? Era feito para viver e morro sem ter vivido. Pelo menos, não foi por minha culpa e levarei ao autor de meu ser, senão a oferenda das boas obras que não me deixaram fazer, pelo menos um tributo de boas intenções frustradas, de sentimentos sãos, mas tornados sem efeito, e de uma paciência à prova do desprezo dos homens. Enterneciame com essas reflexões, recapitulava os movimentos de minha alma desde a juventude, durante a idade adulta, desde que me separaram da sociedade dos homens e durante o longo retiro no qual devo acabar meus dias. Pensava com satisfação em todas as afeições de meu coração, nessas amizades tão ternas mas tão cegas, nas ideias menos tristes mas consoladoras, de que meu espírito se alimentara havia alguns anos, e me preparava para lembrá-las o suficiente para as descrever com um prazer quase igual ao que tivera entregando-me a elas. Minha tarde foi consumida nessas calmas meditações e voltava muito contente de meu dia, quando fui tirado de meu profundo devaneio pelo acontecimento que me falta contar. Encontrava-me, por volta das seis horas, na descida de Ménilmontant quase defronte ao “Galant Jardinier”,4 quando, tendo-se as pessoas que caminhavam na minha frente, de repente, bruscamente afastado, vi lançar-se sobre mim um grande cão dinamarquês que, atirando-se a toda velocidade diante de uma carruagem, não teve nem mesmo o tempo de reter sua corrida ou se desviar quando me percebeu. Julguei que o único meio que tinha de evitar ser atirado ao chão era o de dar um grande salto, tão exato, que o cão passasse por baixo de mim, enquanto eu estivesse no ar. Essa ideia, mais pronta do que o relâmpago e que não tive tempo nem de apreciar nem de executar, foi a última antes de meu acidente. Não senti nem o golpe nem a queda, nem nada do que se seguiu até o momento em que voltei a mim. Era quase noite quando recuperei os sentidos. Encontrava-me entre os braços de três ou quatro jovens que me contaram o que acabava de me acontecer. Como o cão

dinamarquês não pudera reter seu impulso, precipitara-se contra minhas pernas e, chocando-se contra mim com sua massa e sua velocidade, me fizera cair com a cabeça para a frente: o maxilar superior, com todo o peso do meu corpo, batera numa laje muito áspera e a queda fora muito violenta, pois encontrando-me numa descida, minha cabeça batera abaixo de meus pés. A carruagem à qual pertencia o cão vinha logo atrás e teria passado sobre meu corpo se o cocheiro não tivesse imediatamente retido os cavalos. Eis o que fiquei sabendo pela narração dos que me haviam levantado e que me amparavam ainda quando voltei a mim. O estado em que me encontrei nesse momento é por demais singular para não descrevê-lo aqui. Anoitecia. Percebi o céu, algumas estrelas e um pouco de verdura. Esta primeira sensação foi um momento delicioso. Era somente por intermédio dela que começava a sentir minha existência. Nascia nesse instante para a vida e parecia-me preencher, com minha leve existência, todos os objetos que percebia. Vivendo inteiramente o momento presente, de nada me lembrava; não tinha nenhuma noção distinta de minha própria pessoa, nem a menor ideia do que acabava de me acontecer; não sabia quem era nem onde estava; não sentia dor, nem medo, nem inquietude. Via correr meu sangue como teria visto correr um regato, sem mesmo pensar que esse sangue me pertencia de algum modo. Sentia, em todo o meu ser, uma calma maravilhosa à qual, cada vez que a relembro, nada encontro de comparável em toda a atividade dos prazeres conhecidos. Perguntaram-me onde morava; foi-me impossível dizê-lo. Perguntei onde estava; disseram-me na Haute Borne; era como se me tivessem dito no monte Atlas. Foi preciso perguntar sucessivamente o país, a cidade e o bairro em que me encontrava. E mesmo isso não bastou para saber quem era; foi-me necessário fazer todo o trajeto até o bulevar para lembrar minha morada e meu nome. Um senhor, que eu não conhecia e que teve a caridade de me acompanhar por algum tempo, ao saber que morava tão longe, me aconselhou a tomar um fiacre no Temple5 para conduzir-me à casa. Eu caminhava muito bem, com muita agilidade, sem sentir nem dor nem ferimento, embora escarrasse continuamente muito sangue. Mas tinha um tremor glacial que fazia bater, de maneira incômoda, meus dentes despedaçados. Ao chegar ao Temple pensei, visto que caminhava sem dificuldade, que era preferível continuar assim meu

caminho, a pé, a me expor a morrer de frio num fiacre. Fiz assim a meia légua que separa o Temple da rua Plâtriére, caminhando sem dificuldade, evitando os obstáculos, as carruagens, escolhendo e seguindo meu caminho exatamente como o teria podido fazer em plena saúde. Chego, abro a fechadura secreta que mandaram colocar na porta da rua, subo a escada no escuro e entro enfim em casa sem outro acidente além de minha queda e suas consequências de que, mesmo então, ainda não me apercebia. Os gritos de minha mulher, ao me ver, me fizeram compreender que estava mais ferido do que pensava. Passei a noite ainda sem conhecer nem sentir meu mal. Eis o que senti e encontrei no dia seguinte. Tinha o lábio superior fendido interiormente até o nariz, do lado externo a pele aguentara melhor e impedia sua separação total, quatro dentes enterrados no maxilar superior, toda a parte do rosto que o cobre extremamente inchada e machucada, o polegar direito esmagado e muito inchado, o polegar esquerdo gravemente ferido, o braço esquerdo luxado, o joelho esquerdo também muito inchado e totalmente impedido de dobrar-se por causa de uma contusão forte e dolorosa. Mas com todas essas consequências, nada de quebrado, nem mesmo um dente, felicidade que parecia um prodígio numa queda como aquela. Eis, com toda a fidelidade, a história de meu acidente. Em poucos dias essa história se espalhou em Paris, de tal forma transformada e desfigurada, que era impossível reconhecer nela alguma coisa. Deveria ter contado antecipadamente com essa metamorfose; mas a ela se acrescentaram tantas circunstâncias extravagantes; tantas expressões obscuras e tantas reticências a acompanharam, falavam-me dela com um ar tão risivelmente discreto que todos esses mistérios me inquietaram. Sempre odiei as trevas, elas me inspiram naturalmente um horror que aquelas com que me envolvem há tantos anos não devem ter diminuído. Entre todas as singularidades dessa época, considerarei apenas uma, mas suficiente para permitir julgar as outras. O senhor Lenoir, Tenente-Geral da polícia,6 com o qual nunca tivera relação alguma, enviou seu secretário para informar-se sobre meu estado e oferecer-me insistentemente seus serviços, que não me pareceram, naquelas circunstâncias, de uma grande utilidade para minha melhora. Seu secretário não deixou de instar-me vigorosamente em prevalecer-me desse oferecimento, até o ponto de me dizer que, caso não confiasse nele, poderia escrever diretamente ao senhor Lenoir. Tão grande

solicitude e o ar confidencial que a ele acrescentou me fizeram compreender que havia em tudo aquilo algum mistério que em vão procurava penetrar. Tanto não era necessário para me assustar, especialmente no estado de agitação em que meu acidente e a febre, que a ele se acrescentaram, haviam posto minha cabeça. Entregavame a mil conjeturas inquietantes e tristes e, sobre tudo o que acontecia ao meu redor, fazia comentários que marcavam mais o delírio da febre do que o sangue frio de um homem que não tem mais interesse em nada. Um outro acontecimento veio definitivamente perturbar minha tranquilidade. A senhora d’Ormoy me procurara havia muitos anos sem que eu pudesse adivinhar por quê. Pequenos presentes pretensiosos, frequentes visitas sem objetivo e sem prazer me assinalavam suficientemente em tudo isso uma finalidade secreta, mas não me mostravam. Ela me falara de um romance7 que queria escrever para apresentá-lo à rainha. Eu lhe dissera o que pensava das mulheres escritoras. Ela me fizera compreender que esse projeto tinha como finalidade o restabelecimento de sua fortuna, razão pela qual precisava de proteção; a isso nada tinha a responder. Disse-me mais tarde que, não tendo podido ter acesso à rainha, estava determinada a dar seu livro ao público. Não era mais o caso de lhe dar conselhos que não me pedia e que não teria seguido. Falara-me em mostrar-me antes o manuscrito. Roguei-lhe que não o fizesse e ela não o fez. Um belo dia, durante minha convalescença, recebi de sua parte esse livro completamente impresso e mesmo encadernado e vi, no prefácio, tão grandes louvores meus, tão detestavelmente artificiais e escritos com tanta afetação que me impressionaram desagradavelmente. A rude bajulação que dele emanava nunca se aliou à benevolência, meu coração não poderia se enganar nesse ponto. Alguns dias mais tarde, a senhora d’Ormoy veio ver-me com sua filha. Disse-me que seu livro fazia o maior sucesso por causa de uma nota; eu quase não percebera essa nota ao percorrer rapidamente o romance. Reli-a após a partida da senhora d’Ormoy, examinei-lhe o giro, pensei encontrar nela o motivo de suas visitas, de suas bajulações, dos grandes louvores de seu prefácio e julguei que tudo aquilo tinha a única finalidade de dispor o público a atribuir-me a nota e consequentemente a censura que podia atrair para seu autor nas circunstâncias em que era publicada. Eu não tinha nenhum meio de destruir esse boato e a impressão que podia causar e

tudo o que dependia de mim era não o alimentar, suportando a continuação das vãs e ostensivas visitas da senhora d’Ormoy e de sua filha. Eis o bilhete que, para isso, escrevi à mãe: “Como Rousseau não recebe em sua casa nenhum autor, agradece a senhora d’Ormoy por suas gentilezas e lhe roga não mais honrá-lo com suas visitas.” Respondeu-me com uma carta conveniente quanto à forma, mas construída como todas as que se escrevem em semelhantes casos. Eu apunhalara barbaramente seu coração sensível e devia pensar, pelo tom de sua carta, que, tendo por mim sentimentos tão vivos e tão verdadeiros, não suportaria essa ruptura sem morrer. É assim que a retidão e a franqueza em todas as coisas são crimes horríveis na sociedade e eu apareceria a meus contemporâneos como mau e feroz mesmo quando não tivesse a seus olhos outro crime senão o de não ser falso e pérfido como eles. Já saíra várias vezes e mesmo passeava com bastante frequência nas Tuileries, quando vi, pela surpresa de várias pessoas que me encontravam, que havia ainda a meu respeito alguma outra novidade que eu ignorava. Soube enfim que o boato público era de que eu morrera das consequências de minha queda e esse boato se espalhou tão rápida e obstinadamente que, mais de quinze dias após ter chegado aos meus ouvidos, o próprio rei e a rainha falaram do fato como de uma coisa certa. O Courrier d’Avignon, segundo a qual tiveram o cuidado de me escrever, ao anunciar essa feliz notícia, não deixou de antecipar, nessa ocasião, o tributo de ultrajes e de indignidades que se preparam à minha memória após a minha morte, sob a forma de oração fúnebre. Essa notícia foi acompanhada de uma circunstância ainda mais singular que somente soube por acaso e da qual não pude saber nenhum detalhe. É que fora aberta, ao mesmo tempo, uma subscrição para a impressão dos manuscritos que fossem encontrados em minha casa. Compreendi assim que estava pronta uma coleção de escritos fabricados especialmente para me serem atribuídos logo após a minha morte: pois pensar que se imprimissem fielmente algum daqueles que se poderiam realmente encontrar era uma tolice que não podia entrar no espírito de um homem sensato e que quinze anos de experiência me confirmavam perfeitamente. Essas observações feitas sem interrupção e seguidas por muitas outras não menos surpreendentes assustaram mais uma vez minha imaginação, que julgava amortecida,

e essas negras trevas que eram reforçadas continuamente ao meu redor reanimaram todo o horror que me inspiram naturalmente. Cansei de tecer mil comentários sobre tudo isso e de procurar compreender mistérios que se tornaram inexplicáveis para mim. O único resultado constante de tantos enigmas foi a confirmação de todas as minhas conclusões precedentes, isto é, que, como o destino de minha pessoa e o de minha reputação foram fixados de comum acordo por toda a presente geração, nenhum esforço de minha parte podia subtrair-me a ela, visto que me é completamente impossível transmitir algum legado a outras épocas sem o fazer passar, nesta, por mãos interessadas em suprimi-lo. Mas desta vez fui mais longe. O conjunto de tantas circunstâncias fortuitas, a elevação de todos os meus mais cruéis inimigos favorecida e facilitada, por assim dizer, pela sorte, por todos os que governam o Estado, por todos os que dirigem a opinião pública, por todas as pessoas que ocupam funções elevadas, por todos os homens acreditados, cuidadosamente escolhidos entre os que têm contra mim alguma animosidade secreta, para concorrer ao complô comum, este acordo universal é por demais extraordinário para ser puramente fortuito. Um único homem que tivesse recusado sua cumplicidade, um único acontecimento que lhe tivesse sido desfavorável, uma única circunstância imprevista que lhe tivesse servido de obstáculo bastariam para fazê-lo malograr. Mas todas as vontades, todas as fatalidades, o destino e todas as transformações consolidaram a obra dos homens, e uma cooperação tão surpreendente, que toca as raias do prodígio, não pode me deixar dúvidas de que seu completo sucesso não esteja escrito nos decretos eternos. Inúmeras observações particulares, seja no passado, seja no presente, confirmaram de tal maneira essa opinião que não posso deixar de olhar, agora, como um desses segredos do céu, impenetráveis à razão humana, a mesma obra que até agora considerava apenas como um fruto da maldade dos homens. Longe de ser cruel e aflitiva, esta ideia me consola, me tranquiliza e me ajuda a resignar-me. Não vou tão longe quanto Santo Agostinho que se teria consolado com a danação se tal tivesse sido a vontade de Deus. Minha resignação vem de uma fonte menos desinteressada, é verdade, mas não menos pura e mais digna, na minha opinião, do Ser perfeito que adoro. Deus é justo; quer que eu sofra; e ele sabe que sou inocente. Eis o motivo de minha confiança, meu coração e minha mente proclamam

que ela não me enganará. Deixemos, portanto, agir os homens e o destino; aprendamos a sofrer sem murmurar; tudo deve, por fim, voltar à sua ordem e, cedo ou tarde, minha vez chegará. 1

Ménilmontant, apenas uma vila no século XVIII, é hoje um dos mais densos bairros parisienses. Cantão: trecho de estrada ou região cuja conservação é confiada a um cantoneiro. 3 Coleção de plantas conservadas e catalogadas entre folhas de papel ou cartolina. 4 Taberna na estrada de Haute Borne perto de Belleville e do atual cemitério Père Lachaise. 5 Hoje Square Du Temple. Do nome do mosteiro fortificado dos antigos Templários da Idade Média. No século XVIII, o príncipe de Conti nele organizava festas e concertos. Foi no Temple que, durante a Revolução Francesa, Luís XVI e Maria Antonieta foram mantidos prisioneiros. O edifício foi destruído no século XIX. 6 Lieutenant géneral: no Antigo Regime, magistrado que dirigia a polícia nas principais cidades da França. 7 Les Malheurs de la jeune Emilie, (Os infortúnios da jovem Emilie), 1777. 2

TERCEIRA CAMINHADA Primavera e verão de 1777 Envelheço aprendendo sempre1 Sólon repetia frequentemente este verso em sua velhice. Ele possui um sentido que eu poderia aplicar também à minha; mas é bem melancólica a ciência que, ao longo de vinte anos,2 a experiência me fez conquistar: a ignorância lhe é ainda preferível. A adversidade, sem dúvida, é um grande mestre, mas faz pagar caro suas lições e muitas vezes o proveito que delas extraímos não vale o preço que custaram. Aliás, antes de ter obtido todo esse cabedal com lições tão tardias, passa a oportunidade de usá-las. A juventude é o momento de estudar a sabedoria; a velhice é o momento de praticá-la. A experiência instrui sempre, confesso-o; mas somente é útil para o espaço de tempo que se tem diante de si. É no momento em que é preciso morrer que se deve aprender como se deveria ter vivido? Oh! De que me servem luzes tão tardias e tão dolorosamente adquiridas sobre meu destino e sobre as paixões alheias da qual é obra? Aprendi a melhor conhecer os homens apenas para melhor sentir a infelicidade em que me mergulharam, sem que esse conhecimento, revelando-me todas as suas armadilhas, me tenha podido evitar alguma. Por que não permaneci sempre nessa fraca mas doce confiança que me tornou durante tantos anos a presa e o joguete de meus barulhentos amigos sem que, envolvido por todas as suas tramas, dela tivesse a menor suspeita! Enganado, era sua vítima, é verdade, mas julgava-me amado por eles e meu coração desfrutava da amizade que me haviam inspirado, atribuindo-lhes a mesma em relação a mim. Essas doces ilusões estão destruídas. A triste verdade, que o tempo e a razão me revelaram, fazendo-me sentir minha infelicidade, fez-me ver que ela não tinha remédio e que somente me restava resignar-me ao fato. Assim todas as experiências de minha idade, no meu estado, não têm para mim nenhuma utilidade presente e nenhum proveito para o porvir. Entramos na liça ao nascer, dela saímos ao morrer. De que vale aprender a conduzir melhor seu carro quando se está no fim do percurso? Só resta pensar então

em como abandoná-lo. O estudo de um velho, se ainda lhe resta a fazer, é unicamente o de aprender a morrer e é precisamente o que menos se faz na minha idade, pensa-se em tudo, menos nisso. Todos os velhos dão mais apreço à vida do que as crianças e a deixam com maior má vontade do que os jovens. É que, como todos os seus trabalhos tiveram essa mesma vida por objetivo, veem, no final, que perderam seus esforços. Todos os seus cuidados, todos os seus bens, todos os frutos de suas laboriosas vigílias, tudo deixam quando se vão. Não pensaram em adquirir alguma coisa, durante a vida, que pudessem levar com a morte. Disse tudo isso a mim mesmo quando era tempo de me dizer, e se não soube tirar melhor partido de minhas reflexões, não foi por não as ter feito a tempo e por não as ter bem amadurecido. Lançado, desde a infância, no torvelinho da sociedade, aprendi cedo, por experiência, que não era feito para viver nela onde nunca conseguiria chegar ao estado de que meu coração precisava. Cessando, portanto, de procurar entre os homens a felicidade que sentia não poder encontrar, minha ardente imaginação já saltava por cima da recém-iniciada época de minha vida, como sobre um terreno desconhecido, para descansar numa situação tranquila em que me pudesse fixar. Tal sentimento, alimentado desde a minha infância pela educação, e reforçado, durante toda a minha vida, por esse longo encadeamento de infelicidades e de infortúnios que a preencheu, me fez procurar conhecer, em diferentes épocas, a natureza e o destino de meu ser, com maior interesse e cuidado do que jamais encontrei em nenhum outro homem. Vi muitos que filosofavam bem mais doutamente do que eu, mas sua filosofia lhes era, por assim dizer, estranha. Querendo ser mais sábios do que outros, estudavam o universo para saber como era organizado, como teriam estudado, por pura curiosidade, alguma máquina que tivessem encontrado. Estudavam a natureza humana para dela poderem falar sabiamente, mas não para se conhecerem; trabalhavam para instruir os outros, mas não para se elucidarem por dentro. Vários queriam apenas escrever um livro, não importava qual, contanto que fosse acolhido. Quando o seu estava escrito e publicado, seu conteúdo não mais os interessava de forma alguma, exceto para o fazerem adotar aos outros e para defendêlo caso fosse atacado, mas, de resto, sem nada retirar dele para seu próprio uso, sem mesmo se incomodar se tal conteúdo era falso ou verdadeiro, contanto que não fosse refutado. Quanto a mim, quando desejei aprender, foi para saber e não para ensinar;

sempre acreditei que antes de instruir os outros era preciso começar por saber o suficiente para si mesmo e de todos os estudos que procurei fazer em minha vida entre os homens não há quase nenhum que não teria feito igualmente sozinho numa ilha deserta, onde teria sido confinado pelo resto de meus dias. O que se deve fazer depende muito do que se deve crer e, em tudo o que não depende das primeiras necessidades na natureza, nossas opiniões são a regra de nossas ações. Dentro desse princípio, que sempre foi o meu, procurei muitas vezes e longamente, para dirigir a organização de minha vida, conhecer seu verdadeiro fim e em breve me consolei de minhas parcas aptidões para me conduzir com habilidade, neste mundo, sentindo que nele não se deveria procurar essa finalidade. Tendo nascido numa família em que reinavam os bons costumes e a piedade; tendo sido criado, em seguida, com suavidade, em casa de um ministro profundamente sábio e religioso,3 recebera, desde minha mais tenra infância, princípios, máximas, outros diriam preconceitos, que nunca me abandonaram completamente. Ainda criança e entregue a mim mesmo, aliciado por demonstrações de afeto, levado pela vaidade, enganado pela esperança, forçado pela necessidade, fiz-me católico, mas me mantive sempre cristão e, em breve, conquistado pelo hábito, meu coração afeiçoou-se sinceramente à minha nova religião. As instruções, os exemplos da senhora de Warens4 me fortaleceram nessa afeição. A solidão campestre, onde passei a flor de minha juventude, o estudo dos bons livros, ao qual me entreguei completamente, reforçaram junto a ela minhas disposições naturais pelos sentimentos afetuosos e me tornaram devoto quase à maneira de Fénelon.5 A meditação no retiro, o estudo da natureza, a contemplação do universo forçam um solitário a lançar-se continuamente para o autor das coisas e a procurar com uma doce inquietude a finalidade de tudo o que vê e a causa de tudo o que sente. Quando meu destino me lançou na torrente da sociedade, nada mais encontrei que pudesse deleitar, por um momento, meu coração. A nostalgia de meus doces lazeres me seguiu por toda a parte e lançou a indiferença e o desgosto sobre tudo o que pudesse se encontrar ao meu alcance que fosse próprio a conduzir ao sucesso e às honras. Incerto em meus inquietos desejos, esperei pouco, obtive menos e senti, nos próprios vislumbres de prosperidade, que, mesmo quando tivesse obtido tudo o que julgava procurar, não teria encontrado esta felicidade de que meu coração estava ávido, sem saber distinguir seu objeto. Assim, tudo contribuía

para separar minhas afeições deste mundo, mesmo antes das infelicidades que nele deviam tornar-me completamente estranho. Cheguei aos quarenta anos flutuando entre a indigência e a riqueza, entre a sabedoria e o erro, cheio de vícios, adquiridos pelo hábito, sem nenhuma má inclinação no coração, vivendo ao acaso, sem princípios bem formados por minha razão e desatento diante de meus deveres, sem os desprezar, mas frequentemente, sem os bem conhecer. Desde minha juventude, fixara essa idade de quarenta anos como o termo de meus esforços para vencer na vida e o de minhas pretensões de qualquer espécie. Plenamente resolvido, ao chegar a essa idade e em qualquer situação que me encontrasse, a não mais lutar para sair dela, e passar o resto de minha vida vivendo o dia a dia, sem mais me preocupar com o futuro. Chegado o momento, executei esse projeto sem dificuldade e embora então meu destino parecesse querer chegar a uma situação mais estável, renunciei a ele não somente sem pesar mas com um verdadeiro prazer. Libertando-me de todas essas armadilhas, de todas essas vãs esperanças, entreguei-me completamente à negligência e ao repouso de espírito que sempre foram meus maiores prazeres e minha mais durável inclinação. Deixei a alta sociedade e suas pompas, renunciei a qualquer adorno, renunciei à espada, ao relógio, às meias brancas, aos ornamentos dourados, aos cabelos frisados; uma peruca muito simples, um bom trajo de pano grosso e, melhor do que tudo isso, arranquei de meu coração as paixões e a cobiça que dão valor a tudo o que abandonava. Renunciei à função que ocupava então, para a qual não estava absolutamente qualificado e me pus a copiar música a tanto a página, ocupação para a qual sempre tivera um gosto real. Não limitei minha reforma a coisas exteriores. Senti que ela mesma exigia uma outra mais penosa, sem dúvida, mas mais necessária nas opiniões e, resolvido a não prolongar a espera, resolvi submeter meu íntimo a um exame severo que o determinasse para o resto de minha vida assim como desejaria encontrá-lo no momento de minha morte. Uma grande transformação que acabava de se realizar em mim, em outro mundo moral que se abria aos meus olhos, os insensatos julgamentos dos homens, dos quais começava a sentir o absurdo, sem ainda perceber até que ponto seria vítima, a necessidade sempre crescente de um outro bem além da gloríola literária, cuja euforia, mal tendo-me atingido, já me causara aversão, o desejo, enfim, de traçar para o resto

de minha carreira um caminho menos incerto do que aquele no qual acabava de passar a mais bela metade, tudo me obrigava a esta grande revisão de que sentia, havia muito, a necessidade. Iniciei-a, portanto, e nada negligenciei do que dependia de mim para bem executar essa empresa. É dessa época que posso datar minha inteira renúncia ao mundo e esse gosto vivo pela solidão que não mais me abandonou a partir de então. A obra que empreendia somente podia ser executada num retiro absoluto; exigia longas e calmas meditações, que o tumulto da sociedade não suporta. Isso me forçou, por algum tempo, a uma outra maneira de viver, na qual, depois, me senti tão bem, que, tendo-a interrompido desde então, somente por necessidade e por poucos instantes, retomei-a com muito gosto e a ela me limitei sem dificuldade logo que o pude fazer e, quando em seguida, os homens me reduziram a viver só, senti que, isolando-me para me tornar infeliz, tinham feito mais para a minha felicidade do que o soubera fazer eu mesmo. Entreguei-me ao trabalho que empreendera com um zelo proporcional tanto à importância da coisa quanto à necessidade que dele sentia. Vivia então com filósofos modernos que pouco se assemelhavam aos antigos. Em lugar de abolir minhas dúvidas e eliminar minhas irresoluções, tinham abalado todas as certezas que julgava ter sobre os pontos que mais importava conhecer: pois, ardentes missionários do Ateísmo e dogmáticos imperiosíssimos, não suportavam, sem cólera, o fato de que alguém ousasse pensar diferentemente deles em qualquer ponto. Muitas vezes, defendera-me, com pouca energia, por ódio pela discussão e por ter pouco talento para a manter; mas nunca adotei sua desoladora doutrina e essa resistência a homens tão intolerantes que, aliás, escondiam segundas intenções, não foi uma das menores causas que avivaram sua animosidade. Não me haviam persuadido mas me haviam inquietado. Seus argumentos me haviam abalado sem nunca terem me convencido; para isso, não encontrava uma boa resposta, mas sentia que ela devia existir. Acusava-me menos de erro do que de inaptidão e meu coração lhes respondia melhor do que minha razão. Pensei enfim: deixar-me-ei eternamente agitar pelos sofismas dos mais bem falantes, se nem tenho certeza de que as opiniões que pregam e que têm tanto ardor em fazer adotar aos outros são exatamente as suas? Suas paixões, que governam suas doutrinas, seus interesses em fazer crer isto ou aquilo tornam impossível compreender

o que eles mesmos creem. Pode-se procurar boa fé em chefes de partido? Sua filosofia é feita para os outros; precisaria de uma para mim. Procurê-mo-la com todas as minhas forças, enquanto ainda é tempo, a fim de ter uma regra fixa de conduta para o resto de meus dias. Eis-me na maturidade, em toda a força do entendimento. Já toco o declínio. Se esperar ainda, não mais terei, em minha reflexão tardia, o uso de todas as minhas forças; minhas faculdades intelectuais já terão perdido algo de sua atividade, farei menos bem o que posso fazer hoje da melhor maneira possível: aproveitemos este momento favorável; ele é a época de minha reforma exterior e material, que seja também a de minha reforma intelectual e moral. Fixemos, de uma vez por todas, minhas opiniões, meus princípios e sejamos, para o resto de minha vida, o que deverei ter achado conveniente, após ter pensado profundamente no assunto. Executei esse projeto lentamente e em várias etapas, mas com todo o esforço e toda a atenção de que era capaz. Sentia intensamente que o repouso do resto de meus dias e minha sorte completa dependiam desse fato. A princípio, encontrei-me num tal labirinto de obstáculos, de dificuldades, de objeções, de tortuosidades, de trevas, que, tentado vinte vezes a tudo abandonar, renunciando a vãs procuras, estive a ponto de ater-me, em minhas reflexões, às regras da prudência comum, sem mais procurá-las em princípios que tinha tanto trabalho em elucidar. Mas essa mesma prudência me era de tal forma estranha, sentia-me tão pouco apto a adquiri-la, que tomá-la como guia não era mais do que querer, através dos mares, das tempestades, procurar sem leme, sem bússola, um farol quase inacessível e que não me indicava nenhum porto. Persisti: pela primeira vez em minha vida tive coragem e devo a seu êxito o fato de ter podido suportar o horrível destino que, desde então, começava a envolver-me sem que sentisse a menor suspeita. Após as mais ardentes e mais sinceras buscas que já tenham talvez sido feitas por algum mortal, decidi-me, por toda a minha vida, sobre todos os sentimentos que me importava ter, e se pude me enganar em minhas conclusões, estou certo, pelo menos, de que não posso ser censurado por meu erro, pois fiz todos os esforços para evitá-lo. Não duvido, é verdade, de que os preconceitos da infância e os votos secretos de meu coração não tenham feito pender a balança para o lado que me era mais consolador. Dificilmente deixamos de crer no que desejamos com tanto ardor e quem pode duvidar que o interesse em admitir ou em rejeitar os julgamentos da outra vida não determine a fé da maioria dos homens em sua

esperança ou seu medo. Tudo isso podia enganar meu julgamento, concordo, mas não alterar minha boa fé: pois temia enganar-me sobretudo. Se tudo consistia no uso desta vida, importava-me sabê-lo, para extrair, pelo menos, o melhor partido que dependesse de mim, enquanto fosse ainda tempo e não ser completamente enganado. Mas o que deveria temer mais, no mundo, na disposição em que me sentia, era expor a sorte eterna de minha alma em troca do gozo dos bens deste mundo, que nunca me pareceram ter um grande preço. Confesso ainda que nem sempre resolvi como quisera todas essas dificuldades que me haviam embaraçado e que nossos filósofos me tinham tão frequentemente repetido. Mas, resolvido a decidir-me, enfim, sobre matérias nas quais a inteligência humana tem tão pouco poder e encontrando por toda a parte mistérios impenetráveis e objeções insolúveis, adotei, em cada questão, o sentimento que me pareceu mais bem estabelecido diretamente, mais digno de crédito em si mesmo, sem me deter nas objeções que não podia resolver, mas que se contrapunham a outras objeções não menos fortes do sistema oposto. Nessas matérias, o tom dogmático somente convém a charlatães; mas importa ter um sentimento próprio e escolhê-lo com toda a maturidade do julgamento que nele podemos colocar. Se, apesar disso, caímos no erro, não poderíamos, em sã justiça, ser culpados, visto que não carregamos sua responsabilidade. Eis o princípio inabalável que serve de base à minha tranquilidade. O resultado de minhas penosas buscas foi mais ou menos aquele que relatei mais tarde na Profissão de fé do Vigário Saboiano,6 obra indignamente desonrada e profanada na presente geração, mas que ainda pode fazer uma revolução entre os homens se, algum dia, renascer entre eles o bom senso e a boa-fé. A partir de então, tendo permanecido tranquilo dentro dos princípios que adotara após uma meditação tão longa e tão refletida, fiz deles a regra imutável de minha conduta e de minha fé, sem mais me preocupar nem com as objeções que não pudera resolver nem com as que não pudera prever e que se apresentavam, havia pouco, de tempos em tempos, ao meu espírito. Elas me inquietaram algumas vezes mas nunca me abalaram. Sempre disse a mim mesmo: tudo isso são apenas argúcias e sutilezas metafísicas que não têm nenhum peso ao lado dos princípios fundamentais adotados pela minha razão, confirmados por meu coração e que trazem todos o selo do assentimento interior no silêncio das paixões. Em matérias tão superiores ao

entendimento humano, uma objeção que não posso resolver derrubará todo um corpo de doutrina tão sólido, tão bem encadeado e formado por tanta medição e cuidado, tão bem apropriado à minha razão, a meu coração, a todo o meu ser e reforçado pelo assentimento interior, que sinto faltar a todos os outros? Não, vãs argumentações nunca destruirão a conformidade que percebo entre minha natureza imortal e a constituição deste mundo e a ordem física que nele vejo reinar. Encontro na ordem moral correspondente, e cujo sistema é o resultado de minhas buscas, o apoio de que preciso para suportar as infelicidades de minha vida. Em qualquer outro sistema, viveria sem recursos e morreria sem esperança. Seria a mais infeliz das criaturas. Atenhamo-nos, pois, ao único que pode me tornar feliz a despeito do destino e dos homens. Essa reflexão e a conclusão que dela extraí não parecem ter sido ditadas pelo próprio céu para me preparar ao destino que me esperava e me tornar apto para o suportar? Que me teria tornado, que me tornaria ainda, nas angústias horríveis que me esperavam e na incrível situação a que estou reduzido para o resto de minha vida se, tendo permanecido sem um refúgio onde pudesse escapar a meus implacáveis perseguidores, sem compensação aos opróbrios que eles me fazem sofrer neste mundo e sem esperança de obter um dia a justiça que me era devida, tivesse sido completamente entregue à mais horrível sorte que algum mortal já tenha experimentado na Terra? Enquanto, tranquilo na minha inocência, só imaginava estima e benevolência para mim entre os homens; enquanto meu coração, aberto e comunicativo, confiava em amigos e irmãos, os traidores me enlaçavam em silêncio com laços forjados no fundo dos infernos. Surpreendido pelas mais imprevisíveis de todas as infelicidades e as mais terríveis para uma alma altiva, arrastado na lama sem nunca saber por quem nem por que, mergulhado num abismo de ignomínia, envolvido por horríveis trevas, através das quais não percebia senão sinistros objetos, fui vencido diante da primeira investida e nunca me teria refeito da prostração em que me atirou esta espécie imprevista de infelicidade se não tivesse antecipadamente poupado forças para me reerguer de minhas quedas. Foi somente após anos de agitações que, levantando enfim meu espírito e começando a voltar novamente a mim, senti o valor dos recursos que preparara para a adversidade. Tendo tomado uma posição diante de todas as coisas que importava

julgar, vi, comparando meus princípios à minha situação, que eu dava, aos insensatos julgamentos dos homens e aos pequenos acontecimentos desta curta vida, uma importância muito maior da que de fato tinham. Como esta vida não é senão uma provação, pouco importava que essas provações fossem de tal ou tal qualidade, contanto que delas resultasse o efeito ao qual estavam destinadas, e que, por conseguinte, quanto maiores, mais fortes, mais numerosas fossem as provações, mais seria vantajoso saber suportá-las. Todas as mais fortes dores perdem sua força para quem quer que veja sua grande e segura compensação; e a certeza dessa compensação era o principal fruto que eu retirara de minhas meditações precedentes. É verdade que, em meio aos ultrajes sem número e às indignidades sem medida pelas quais me sentia abatido por todos os lados, intervalos de inquietudes e de dúvidas vinham de tempos em tempos abalar minha esperança e perturbar minha tranquilidade. As poderosas objeções que não pudera resolver se apresentavam então ao meu espírito com maior força para acabar de me abater, precisamente nos momentos em que, sobrecarregado pelo peso de meu destino, estava prestes a me desencorajar. Frequentemente, novos argumentos que ouvia voltavam a meu espírito, apoiando os que já me haviam atormentado. Ah! Dizia-me então, quase sufocado por apertos no coração, quem me defenderá do desespero, se no horror de meu destino não vejo mais do que quimeras nas consolações que me fornecia a razão? Se, destruindo assim sua própria obra, ela destrói todo o esteio de esperança e de confiança que me reservara na adversidade? Que esteio podem significar ilusões que somente a mim embalam no mundo? Toda a presente geração apenas vê erros e preconceitos nos sentimentos de que só eu me nutro; ela encontra a verdade, a evidência, no sistema contrário ao meu; ela parece mesmo não poder crer que eu a adote de boa-fé e eu mesmo, entregando-me a ela com toda a minha vontade, nela encontro dificuldades insuperáveis que me é impossível resolver e que não me impedem de nela persistir. Serei portanto, entre os mortais, o único sábio, o único esclarecido? Para crer que as coisas sejam assim bastará que me convenham? Poderei ter uma confiança lúcida em aparências que nada têm de sólido aos olhos do resto dos homens e que me pareceriam até ilusórias a mim mesmo se meu coração não sustentasse minha razão? Não teria sido preferível combater meus perseguidores com armas iguais, adotando seus princípios, a permanecer com as quimeras das minhas, exposto a seus ataques,

sem agir para os repelir? Julgo-me sábio e sou apenas enganado, vítima e mártir de um erro vão. Quantas vezes, nesses momentos de dúvida e de incerteza, estive prestes a abandonar-me ao desespero. Se, por acaso, tivesse permanecido nesse estado um mês inteiro, estaríamos acabados, minha vida e eu. Mas essas crises, ainda que bastante frequentes, outrora, sempre foram curtas e agora, que ainda delas não me libertei completamente, são tão raras e tão rápidas que nem mesmo têm a força de perturbar meu repouso. São leves inquietudes que não afetam a minha alma, assim como uma pluma que cai no rio não pode alterar o curso d’água. Senti que repor em discussão os mesmos pontos sobre os quais me fixara precedentemente significava supor em mim novas luzes, julgamento mais desenvolvido ou maior zelo pela verdade do que tivera quando de minhas buscas; senti que nenhum desses casos sendo nem podendo ser o meu, não podia preferir, por nenhuma razão sólida, opiniões que, no abatimento do desespero, somente me tentavam para aumentar minha infelicidade, a sentimentos adotados na força da idade, em toda a maturidade do espírito, após o mais refletido dos exames e em épocas em que a calma de minha vida não me deixava outro interesse dominante além daquele de conhecer a verdade. Hoje, que meu coração comprimido pela angústia, minha alma deprimida pelos desgostos, minha imaginação assustada, minha cabeça perturbada por tantos horríveis mistérios que me rodeiam, hoje, que todas as minhas faculdades, enfraquecidas pela velhice e pelas angústias, perderam toda a sua energia, irei abandonar, sem motivo, todos os recursos que preparara, e conferir maior confiança à minha razão declinante, para me tornar injustamente infeliz, do que à minha razão plena e vigorosa para me compensar dos males de que sofro sem os ter merecido? Não, não sou nem mais sábio nem mais instruído, nem tenho maior boa-fé do que quando tomei minha posição diante dessas grandes questões, não ignorava então as dificuldades pelas quais me deixo perturbar hoje; elas não me detiveram e caso se apresentarem algumas novas, nas quais ainda ninguém pensara, serão os sofismas de uma sutil metafísica, que não poderiam fazer oscilar as verdades eternas admitidas em todas as épocas, por todos os sábios, reconhecidas por todas as nações e gravadas no coração humano em caracteres indeléveis. Sabia, ao meditar sobre essas matérias, que o entendimento humano, circunscrito pelos sentidos, não as podia abarcar em toda a sua extensão. Ative-me,

portanto, ao que estava ao meu alcance, sem me embrenhar no que o ultrapassava. Essa resolução era razoável, aceitei-a outrora e ative-me a ela com o assentimento de meu coração e de minha razão. Baseando-me em que renunciaria a ela hoje, quando tantos poderosos motivos devem a ela me manter ligado? Que perigo vejo em seguila? Que proveito encontraria abandonando-a? Seguindo a doutrina de meus perseguidores, seguiria também sua moral? Essa moral sem fundamento e sem utilidade que expõem pomposamente em livros ou em alguma ação brilhante no teatro, sem que nada jamais penetre no coração nem na razão; ou então esta outra moral secreta e cruel, doutrina interior de todos os seus iniciados, à qual a outra serve somente de máscara, a única que seguem em sua conduta e que praticaram com tanta habilidade em relação a mim. Essa moral, puramente ofensiva, não serve como defesa mas somente para a agressão. De que me serviria, no estado a que me reduziram? Somente minha inocência me sustenta nas infelicidades e quanto mais infeliz me tornaria ainda, se, retirando-me este único mas poderoso recurso, a ele substituísse a maldade? Poderia atingi-los na arte de prejudicar e ainda que o conseguisse, de que mal me aliviaria aquele que lhes poderia fazer? Perderia minha própria estima e nada ganharia em seu lugar. É assim que, raciocinando comigo mesmo, consegui não mais me deixar abalar em meus princípios por argumentos capciosos, por objeções insolúveis e por dificuldades que ultrapassavam o meu alcance e talvez o do espírito humano. O meu, permanecendo na mais sólida situação que lhe pudera dar, acostumou-se tão bem a nela descansar ao abrigo de minha consciência, que nenhuma doutrina estranha, antiga ou nova, pode mais comovê-lo nem perturbar por um instante meu repouso. Tendo caído na apatia e no entorpecimento do espírito, esqueci até mesmo os raciocínios sobre os quais baseava minha crença e meus princípios, mas nunca esquecerei as conclusões que deles tirei com a aprovação de minha consciência e de minha razão e a isso me atenho doravante. Que venham chicanar todos os filósofos: perderão seu tempo e seu trabalho. Atenho-me, pelo resto de minha vida, em tudo, à decisão que tomei quando me encontrava em estado de escolher corretamente. Tranquilo nessas disposições, nelas encontro, com a satisfação de mim mesmo, a esperança e as consolações de que preciso em minha situação. Não é possível que uma solidão tão completa, tão permanente, tão triste em si mesma, a animosidade sempre

sensível e sempre ativa de toda a geração presente, as indignidades com que me aflige continuamente não me lancem por vezes no abatimento; estando a esperança abalada, as dúvidas desalentadoras voltam ainda, de tempos em tempos, para perturbar minha alma e enchê-la de tristeza. É então que, incapaz das operações do espírito necessárias para me tranquilizar a mim mesmo, preciso lembrar antigas resoluções; os cuidados, a atenção, a sinceridade de coração que tive ao tomá-las, voltam então à minha lembrança e me devolvem toda a minha confiança. Recuso, assim, todas as novas ideias como erros funestos que apenas têm uma falsa aparência e só servem para perturbar meu repouso. Assim, retido na estreita esfera de meus antigos conhecimentos, não tenho, como Sólon, a felicidade de poder me instruir a cada dia ao envelhecer e devo mesmo defender-me do perigoso orgulho de querer aprender o que estou, de agora em diante, impossibilitado de saber corretamente. Mas, se me restam poucas aquisições a esperar das luzes úteis, restam-me outras bem importantes a fazer no campo das virtudes necessárias ao meu estado. É nesse ponto que seria tempo de enriquecer e de ornar minha alma com um cabedal que ela pudesse levar consigo quando, liberta deste corpo que a perturba e a cega, e vendo a verdade sem véus, ela perceberá a miséria de todos esses conhecimentos de que nossos falsos sábios são tão orgulhosos. Ela padecerá pelos momentos perdidos nesta vida ao tentar adquiri-las. Mas a paciência, a doçura, a resignação, a integridade, a justiça imparcial são um bem que levamos conosco e com o qual podemos enriquecer continuamente, sem temer que a própria morte nos retire seu valor. É a este único e útil estudo que consagro o resto de minha velhice. Serei feliz se, com meus progressos sobre mim mesmo, aprender a sair da vida, não melhor, pois isso não é possível, mas mais virtuoso do que quando entrei. 1

Citado por Plutarco (46-120 d.C) em Vida de Sólon. Desde 1757, quando deixou a Ermitage, propriedade da senhora d’Epinay, tendo-se indisposto com a família que o albergava, com Voltaire e com os Enciclopedistas. 3 Refere-se ao pastor Lambercier. Rousseau viveu em sua casa de 1722 a 1724. 4 Louise-Eléonore de la Tour Du Pil, Baronesa de Warens (1700-1762). Trabalhava para o Rei da Sardenha, de quem recebia uma pensão de 1.500 francos. Encarregava-se também da conversão de calvinistas que desejavam abraçar o catolicismo. Rousseau viveu alguns anos em sua casa, onde continuou suas leituras e seus estudos. 5 François de Salignac de La Mothe-Fénelon (1651-1715). Prelado francês, foi superior da 2

Congregação das Novas Conversas, provindas do protestantismo. Foi bispo de Cambrai e autor de Télemaque (1699). Foi partidário do Quietismo, doutrina que pregava o abandono completo da alma a Deus. Mesmo a prece e as boas ações eram consideradas secundárias. Neste ponto, é célebre sua polêmica com Bossuet. Condenado pelo Papa, Fénelon perdeu sua diocese. 6 Trecho do livro IV do Emile, em que Rousseau expõe suas ideias religiosas.

QUARTA CAMINHADA Primavera e verão de 1777

Dos poucos livros que leio ainda algumas vezes, Plutarco é aquele que mais me atrai e que me é mais útil. Foi a primeira leitura de minha infância,1 será a última de minha velhice; é quase o único autor que nunca li sem extrair algum proveito. Anteontem, lia em suas obras morais o tratado O proveito que se pode tirar dos inimigos. No mesmo dia, pondo em ordem algumas brochuras que me foram enviadas por seus autores, encontrei um dos jornais do padre Rosier, em cujo título pusera estas palavras: vitam vero inpendenti, Rosier.2 Por demais acostumado aos giros desses senhores para enganar-me com esse, compreendi que ele pensara, com esse ar de polidez, dizer-me uma cruel antífrase: mas baseado em quê? Por que esse sarcasmo? Que motivo poderia ter-lhe eu dado? Para pôr em prática as lições do bom Plutarco, resolvi usar a caminhada do dia seguinte para me examinar sobre a mentira e vim com a opinião já bem confirmada de que o conhecer-te a ti mesmo do Templo de Delfos não era uma máxima tão fácil de seguir quanto o julgara nas minhas Confissões. No dia seguinte, tendo-me posto a caminho para executar essa resolução, a primeira ideia que tive, ao iniciar meu recolhimento, foi a de uma mentira horrível, dita na primeira juventude, cuja lembrança me perturbou por toda a vida e vem, até na minha velhice, contristar ainda meu coração já dilacerado de tantas outras maneiras. Essa mentira, que em si mesma foi um grande crime, deve ter sido um crime ainda maior em seus efeitos, que sempre ignorei, mas que o remorso me fez supor tão cruéis quanto possível. Contudo, consultando apenas minha disposição ao dizê-la, essa mentira não foi mais do que um fruto da falsa vergonha, e, longe de ter tido a intenção de prejudicar aquela que foi vítima, posso jurar perante o céu que no próprio instante em que essa vergonha invencível me arrancava, teria dado com alegria todo o meu sangue para fazer cair suas consequências apenas sobre mim. É um delírio que não posso explicar senão dizendo, como creio senti-lo, que nesse momento meu natural tímido subjugou todos os votos de meu coração.

A lembrança desse ato infeliz e os indeléveis pesares que me deixou inspiraram-me pela mentira um horror que deve ter defendido meu coração deste vício pelo resto de minha vida. Quando escolhi minha divisa, sentia-me feito para merecê-la e não duvidava de que dela não fosse digno, quando, diante das palavras do padre Rosier, comecei a examinar-me mais seriamente. Então, investigando-me com maior cuidado, fiquei muito surpreso com o número de coisas inventadas, que me lembrava ter dito como verdadeiras, enquanto, intimamente orgulhoso de meu amor pela verdade, sacrificava-lhe minha segurança, meus interesses, minha pessoa, com uma imparcialidade de que não conheço nenhum outro exemplo entre os humanos. O que mais me surpreendeu foi o fato de que, lembrando-me dessas coisas enganadoras, não sentia nenhum verdadeiro arrependimento. Eu, cujo horror pela falsidade nada tem no meu coração que se lhe assemelhe, eu que enfrentaria suplícios se, para evitá-los, fosse preciso mentir, por qual estranha inconsequência mentia assim com o coração alegre, sem necessidade, sem nenhum proveito e por qual inconcebível contradição não sentia o menor pesar, eu, que o remorso de uma mentira não cessou de afligir durante cinquenta anos? Meus erros nunca se empederniram; o instinto moral sempre me conduziu corretamente, minha consciência conservou sua primeira integridade, e, mesmo que se tivesse alterado, dobrando-se diante de meus interesses, como, conservando toda a sua integridade nas ocasiões em que o homem, forçado por suas paixões, pode pelo menos desculpar-se invocando sua fraqueza, a perde unicamente nas coisas indiferentes em que o vício não tem desculpa? Vi que da solução desse problema dependia a precisão do julgamento que deveria neste ponto aplicar a mim mesmo, e, após tê-lo bem examinado, eis de que maneira consegui aplicá-lo a mim mesmo. Lembro-me de ter lido num livro de filosofia que mentir é esconder uma verdade que deve ser manifestada. Conclui-se perfeitamente dessa definição que calar uma verdade que não se é obrigado a dizer não é mentir; mas aquele que, não contente, em semelhante caso, em não dizer a verdade, diz o contrário, mente então ou não mente? Segundo a definição, não se poderia dizer que mente; pois se dá uma moeda falsa a um homem ao qual nada deve, sem dúvida, engana esse homem, mas não o rouba. Apresentam-se aqui duas questões para serem examinadas, ambas muito

importantes. A primeira, quando e como se deve a outrem a verdade, já que não se a deve sempre. A segunda, se há casos em que se pode enganar inocentemente. Esta segunda questão está perfeitamente resolvida, sei-o muito bem; de maneira negativa, nos livros, onde a mais austera moral nada custa ao autor, de forma positiva, na sociedade, onde a moral dos livros é considerada palavra frívola impossível de praticar. Deixemos, portanto, essas autoridades que se contradizem e procuremos, por meio de meus próprios princípios, resolver, para mim, essas questões. A verdade geral e abstrata é o mais precioso de todos os bens. Sem ela, o homem é cego; ela é a luz da razão. É por ela que o homem aprende a se conduzir, a ser o que deve ser, a fazer o que deve fazer, a tender para seu verdadeiro fim. A verdade particular e individual não é sempre um bem, algumas vezes ela é um mal, muito frequentemente uma coisa indiferente. As coisas que um homem deve saber e cujo conhecimento é necessário à sua felicidade talvez não sejam em grande número, mas seja qual for este número, elas são um bem que lhe pertence, que tem o direito de reclamar onde quer que o encontre e do qual não se o pode frustrar sem cometer o mais iníquo de todos os roubos, já que ela é desses bens comuns a todos, cuja comunicação não priva aquele que o dá. Quanto às verdades que não possuem nenhuma espécie de utilidade na instrução nem na prática, como seriam um bem devido, visto que não são nem mesmo um bem; e visto que a propriedade não é baseada senão na utilidade, onde não houver utilidade possível não pode haver propriedade. Pode-se reclamar um terreno, embora estéril, porque se pode, pelo menos, habitar sobre o solo: mas que um fato sem interesse, indiferente em todos os sentidos e sem consequências para ninguém, seja verdadeiro ou falso isso não interessa a ninguém. Na ordem moral, nada é inútil, assim como não o é na ordem física. O que não serve para nada não pode ser devido, para que uma coisa seja devida, é preciso que seja ou possa ser útil. Assim, a verdade devida é a que interessa à justiça, e aplicar a palavra verdade às coisas vãs cuja existência é indiferente a todos e cujo conhecimento é inútil a tudo significa profanar essa verdade sagrada. A verdade despojada de qualquer espécie de utilidade, mesmo possível, não pode, portanto, ser uma coisa devida e, por conseguinte, aquele que a cala ou a mascara não mente. Mas se existem estas verdades tão perfeitamente estéreis a ponto de serem

completamente inúteis a tudo, é um outro ponto a discutir e ao qual voltarei dentro em pouco. Por enquanto, passemos à segunda questão. Não dizer o que é verdadeiro e dizer o que é falso são duas coisas muito diferentes, mas de que pode, contudo, resultar o mesmo efeito; pois esse resultado é certamente o mesmo todas as vezes que esse efeito é inexistente. Onde quer que a verdade for indiferente, o erro contrário também é indiferente; de onde se conclui que, em semelhante caso, aquele que engana, dizendo o contrário da verdade, não é mais injusto do que aquele que engana não a declarando; pois, no caso das verdades inúteis, somente a ignorância é pior do que o erro. Acreditar que a areia do fundo do mar é branca ou vermelha não me importa mais do que ignorar sua cor. Como se poderia ser injusto se não se prejudica ninguém, já que a injustiça consiste somente no mal feito a outrem? Mas essas questões assim sumariamente resolvidas não me poderiam fornecer ainda alguma explicação segura para a prática, sem muitos esclarecimentos prévios, necessários para aplicá-la com exatidão a todos os casos que podem surgir. Pois, se a obrigação de dizer a verdade não está baseada senão em sua utilidade, como poderia constituir-me juiz dessa utilidade? Com muita frequência, a vantagem de um é o prejuízo do outro, o interesse particular está quase sempre em oposição ao interesse público. Como conduzir-se em tal caso? Será preciso sacrificar a utilidade do ausente à da pessoa a quem se fala? Será preciso calar ou dizer a verdade que, proveitosa para um, prejudica o outro? Será preciso pesar tudo o que se deve dizer na única balança do bem público ou na da justiça distributiva, e terei eu a certeza de conhecer suficientemente todas as relações do fato para dispensar as luzes de que disponho somente no que diz respeito às regras da equidade? Além disso, ao examinar o que se deve aos outros, terei examinado suficientemente o que se deve a si mesmo, o que se deve somente à verdade? Se não faço nenhum mal a outrem, enganando-o, conclui-se que não o faço a mim mesmo e basta nunca ser injusto para ser sempre inocente? Quantas discussões embaraçosas seriam fáceis de evitar se disséssemos a nós mesmos, sejamos sempre sinceros, mesmo correndo todos os riscos. A própria justiça está na verdade das coisas; a mentira é sempre iniquidade, o erro é sempre impostura, quando apresentamos o que não é como a regra do que devemos fazer ou crer: e, seja

qual for o efeito que resulte da verdade, nunca somos culpados ao dizê-la porque nela nada pusemos de nosso. Mas isso significa eliminar a questão sem resolvê-la. Não se tratava de julgar se seria bom dizermos sempre a verdade mas se éramos sempre igualmente obrigados a fazê-lo, e, quanto à definição que examinava, supondo que não o fosse, tratava-se de distinguir os casos em que a verdade é rigorosamente devida, daqueles em que se a pode calar sem injustiça e mascará-la sem mentira: pois, descobri que tais casos existem realmente. Trata-se, portanto, de procurar uma regra segura para conhecê-los e bem determiná-los. Mas de onde extrair essa regra e a prova de sua infalibilidade? Em todas as questões de moral difíceis como esta, sempre consegui resolvê-las antes pelo ditame de minha consciência que pelas luzes de minha razão. O instinto moral nunca me enganou: conservou até agora no meu coração suficiente pureza para nele poder abandonar-me e se algumas vezes, na minha conduta, se cala diante de minhas paixões, retoma perfeitamente seu domínio sobre ela, em minhas lembranças. É neste ponto que julgo a mim mesmo talvez com a mesma severidade com a qual serei julgado pelo soberano juiz após esta vida. Julgar as palavras dos homens pelos efeitos que produzem significa frequentemente avaliá-las mal. Além de não serem sempre evidentes e fáceis de conhecer, esses efeitos variam ao infinito como as circunstâncias nas quais tais palavras são ditas. Mas é unicamente a intenção daquele que as pronuncia, que as aprecia e determina seu grau de maldade ou de bondade. Dizer o que é falso é apenas mentir com a intenção de enganar e a própria intenção de enganar, longe de estar sempre ligada à de prejudicar, tem algumas vezes uma finalidade absolutamente contrária. Mas, para tornar uma mentira inofensiva, não basta que a intenção de prejudicar não esteja expressa, é necessária, além disso, a certeza de que o erro no qual são lançados aqueles a quem se fala não possa prejudicar, de uma maneira ou de outra, nem a eles nem a ninguém. É raro e difícil poder ter essa certeza; logo, é difícil e raro que uma mentira seja perfeitamente inocente. Mentir em vantagem própria é impostura, mentir em vantagem alheia é fraude, mentir para prejudicar é calúnia; é a pior espécie de mentira. Mentir sem proveito nem prejuízo para si nem para outrem não é mentira, é ficção.

As ficções que têm um objeto moral se chamam apólogos ou fábulas, e como seu objeto não é ou não deve ser senão o de envolver verdades úteis sob formas claras e agradáveis, em tal caso pouco nos preocupamos em esconder a mentira de fato, que é apenas a roupagem da verdade, e aquele que diz uma fábula apenas para dizer uma fábula não mente de forma alguma. Há outras ficções puramente inúteis tais como o são a maioria dos contos e dos romances que, sem encerrarem nenhuma verdadeira instrução, têm como única finalidade o divertimento. Despojadas de qualquer utilidade moral, não podem ser apreciadas senão pela intenção daquele que as inventa e quando as diz com convicção como verdades reais não se pode negar que não sejam verdadeiras mentiras. Contudo, quem alguma vez teve grandes escrúpulos diante de tais mentiras e quem alguma vez as reprovou seriamente aos que as dizem? Se há, por exemplo, alguma intenção moral no Templo de Gnide,3 tal intenção está bem oculta e prejudicada pelos detalhes voluptuosos e pelas imagens lascivas. Que fez o autor para cobri-los com verniz de decência? Fingiu que sua obra era a tradução de um manuscrito grego e historiou a descoberta desse manuscrito da forma mais apropriada para persuadir seus leitores da verdade de sua narração. Se isso não é uma mentira bem positiva, que me digam então o que é mentira. Todavia, quem é que se lembrou de considerar essa mentira como um crime do autor e de tratá-lo, por isso, de impostor? Dir-se-á em vão que isso é apenas uma brincadeira, que o autor, mesmo afirmando-o, não queria persuadir ninguém, que realmente não persuadiu ninguém e que o público não duvidou nem um instante ter sido ele mesmo o autor da suposta obra grega da qual se apresentava como tradutor. Responderei que uma tal brincadeira sem nenhuma finalidade teria sido apenas uma infantilidade bem tola, que um mentiroso não mente menos quando afirma, ainda que não persuada, que é preciso separar do público instruído, multidões de leitores simples e crédulos a quem a história do manuscrito, narrada por um autor circunspecto, com ar de boa-fé, enganou realmente e que beberam sem medo, numa taça de formato antigo, o veneno de que teriam pelo menos desconfiado se lhes tivesse sido apresentado num vaso moderno. Pelo fato de tais distinções se encontrarem ou não nos livros, elas não deixam de se realizar no coração de cada homem sincero consigo mesmo, que não quer se permitir nada que sua consciência possa lhe reprovar. Pois, dizer uma coisa falsa em vantagem

própria não é mentir menos do que dizê-la em prejuízo de outrem, embora a mentira seja menos criminosa. Dar vantagem a quem não deve tê-la é perturbar a ordem e a justiça, atribuir falsamente a si mesmo ou a outrem um ato do qual possa resultar louvor ou censura, inculpação ou desculpação é fazer uma coisa injusta; ora, tudo o que, sendo contrário à verdade, fere a justiça, de uma forma ou de outra, é mentira. Eis o limite exato: mas tudo o que, sendo contrário à verdade, não interessa de nenhuma maneira à justiça, é apenas ficção, e confesso que quem quer que reprove a si mesmo uma pura ficção, como se fosse uma mentira, tem a consciência mais delicada do que eu. As chamadas mentiras oficiosas4 são verdadeiras mentiras porque enganar para vantagem de outrem ou de si mesmo não é menos injusto do que enganar em seu detrimento. Quem quer que louve ou censure contrariamente à verdade, mente desde que se trate de uma pessoa real. Se se tratar de um ser imaginário, dele pode dizer tudo o que quiser sem mentir, a menos que não julgue a moralidade dos fatos que inventa e que não julgue de maneira falsa: pois, neste caso, se não mente quanto ao fato, mente quanto à verdade moral, cem vezes mais respeitável do que a dos fatos. Vi esse tipo de pessoas que em sociedade chamamos sinceras. Toda sua sinceridade se esgota em conversas inúteis, para citar fielmente os lugares, as datas, as pessoas, em não se permitir nenhuma ficção, em não alterar nenhuma circunstância, em nada exagerar. Em tudo o que não toca seu interesse, são, em suas narrações, da mais inviolável fidelidade. Mas, se for preciso tratar de algum assunto que lhes diga respeito, de narrar algum fato que as toque de perto, todos os artifícios são empregados para apresentar as coisas sob a aparência que lhes for mais vantajosa e, se a mentira lhes for útil, e elas mesmas se abstêm de dizê-la, favorecem-na com habilidade e agem de maneira que venha à baila, sem que lho possam imputar. Assim o quer a prudência: adeus à sinceridade. O homem a quem chamo sincero faz exatamente o contrário. Em coisas perfeitamente indiferentes, a sinceridade, que nesse caso o outro respeita tanto, quase não o toca e terá poucos escrúpulos em divertir uma reunião com fatos enganosos de que não resulta nenhum julgamento injusto nem pró nem contra quem quer que seja, vivo ou morto. Mas qualquer palavra que traga, para alguém, proveito ou prejuízo, estima ou desprezo, louvor ou censura, contra a justiça e a verdade, é uma mentira que

nunca se aproximará de seu coração nem de sua boca nem de sua pena. Ele é solidamente sincero mesmo contra seu interesse ainda que pouco lhe interesse sê-lo nas conversas sem importância. Ele é sincero porque não procura enganar ninguém, porque é tão fiel à verdade que o acusa quanto àquela que o honra e porque nunca engana em vantagem própria nem para prejudicar seu inimigo. A diferença, portanto, que há entre meu homem sincero e o outro é que o homem da sociedade é rigorosamente fiel a toda verdade que não lhe custa nada, mas não vai além, enquanto o meu nunca a serve tão fielmente como quando é preciso imolar-se por ela. Mas, dirão, como pôr de acordo esta brandura com este ardente amor pela verdade pelo qual o glorifico? Logo, este amor será falso, visto que sofre tanta aliagem? Não, é puro e verdadeiro: porém ele é somente uma emanação do amor da justiça e jamais quer ser falso, embora seja frequentemente exagerado. Justiça e verdade são, em seu espírito, duas palavras sinônimas que ele toma indiferentemente uma pela outra. A santa verdade que seu coração adora não consiste em fatos indiferentes e em nomes inúteis, mas em conferir fielmente a cada um o que lhe é devido, em coisas que são verdadeiramente suas, em boas ou más imputações, em retribuições de honras ou de censuras, de louvor e de desaprovação. Não é falso para com os outros porque sua equidade o impede de fazê-lo e porque não quer prejudicar ninguém, injustamente, nem para si mesmo, porque sua consciência o impede de fazê-lo e porque não poderia apropriar-se do que não lhe pertence. É especialmente de sua estima que é cioso; é o bem de que menos pode se privar e sentiria uma perda real em adquirir a dos outros a expensas desse bem. Portanto, mentirá algumas vezes em coisas indiferentes, sem escrúpulo e sem julgar estar mentindo, nunca para desvantagem ou proveito de outrem nem de si mesmo. Em tudo o que diz respeito às verdades históricas, em tudo o que tem relação com o governo dos homens, com a justiça, a sociabilidade, com as luzes úteis, ele defenderá do erro, com tudo o que depender dele, tanto a si mesmo quanto aos outros. Excetuando este caso, toda mentira, em sua opinião, não é uma mentira. Se o Templo de Gnide é uma obra útil, a história do manuscrito grego é apenas uma ficção bem inocente; será uma mentira grandemente punível se a obra for perigosa. Tais foram as regras de minha consciência sobre a mentira e sobre a verdade. Meu coração seguia maquinalmente esses princípios antes que minha razão os tivesse adotado e apenas o instinto moral os aplicou. A criminosa mentira de que foi vítima a

pobre Marion deixou-me indeléveis remorsos que me defenderam por todo o resto de minha vida não somente contra qualquer mentira desta espécie, mas contra todas aquelas que, de alguma maneira, pudessem atingir o interesse e a reputação alheia. Generalizando assim a exclusão, dispensei-me de pesar com exatidão a vantagem e o prejuízo e de marcar os limites precisos entre a mentira prejudicial e a mentira oficiosa; considerando uma e outra como culpáveis, eu mas proibi ambas. Neste ponto, como em todo o resto, meu temperamento muito influiu sobre meus princípios, ou melhor, sobre meus hábitos; pois quase não agi segundo as regras, ou no máximo, segui como regra, em todas as coisas, os impulsos de meu natural. Nunca uma mentira premeditada se aproximou de meu pensamento, nunca menti em meu interesse; mas frequentemente menti por vergonha, para salvar-me de uma dificuldade em coisas indiferentes ou que, no máximo, só a mim interessavam, quando, tendo de manter uma conversa, a lentidão de minhas ideias e a aridez de meu diálogo me forçavam a recorrer às ficções para ter alguma coisa a dizer. Quando é preciso obrigatoriamente falar e quando verdades divertidas não se apresentam com bastante presteza a meu espírito, conto fábulas para não permanecer mudo; mas na invenção dessas fábulas, tenho o cuidado, tanto quanto possível, para que não sejam mentiras, isto é, para que não firam nem a justiça nem a verdade devida e para que sejam apenas ficções indiferentes para todo o mundo e para mim. Meu desejo seria o de substituir, pelo menos, à verdade dos fatos, uma verdade moral; isto é, o de bem representar as afeições naturais do coração humano e de sempre extrair delas alguma instrução útil, numa palavra, de fazer dela contos morais, apólogos, mas seria necessária uma maior presença de espírito do que a que possuo e uma maior facilidade de palavra para saber aproveitar, para a instrução, a tagarelice da conversa. Seu ritmo, mais rápido do que o de minhas ideias, forçando-me quase sempre a falar antes de pensar, me sugeriu frequentemente bobagens e inépcias que minha razão desaprovara e que meu coração condenava à medida que escapavam de minha boca, mas que, precedendo meu próprio julgamento, não podiam mais ser reformadas por sua crítica. É ainda por este primeiro e irresistível impulso do temperamento que, em momentos imprevistos e rápidos, a vergonha e a timidez me arrancam muitas vezes mentiras nas quais minha vontade não toma parte, mas que a precedem de alguma maneira, pela necessidade de responder imediatamente. A impressão profunda da

lembrança da pobre Marion pode bem reter sempre aquelas que poderiam ser prejudiciais a outrem, mas não aquelas que podem servir para escapar de uma dificuldade quando se trata somente de mim, o que não fere menos minha consciência e meus princípios do que as que podem influir sobre a sorte de outrem. Tomo o céu por testemunha de que se eu pudesse, no momento seguinte, retirar a mentira que me desculpa e dizer a verdade que me acusa, sem humilhar-me novamente ao me retratar, eu o faria com o maior bom grado; mas a vergonha de me surpreender a mim mesmo em erro me retém ainda, e me arrependo com toda a sinceridade de minha falta, sem, contudo, ousar repará-la. Um exemplo explicará melhor o que quero dizer e mostrará que não minto nem por interesse nem por amor próprio, ainda menos por inveja ou por malignidade: mas unicamente por acanhamento e falsa vergonha, sabendo mesmo muito bem, algumas vezes, que esta mentira é conhecida como tal e absolutamente não pode me ser útil. Há algum tempo, o senhor Foulquier me exortou, contra meu hábito, a ir, com minha mulher, fazer um piquenique, com ele e seu amigo Benoit, em casa da senhora Vacassin, dona de uma casa de pasto, que, com suas duas filhas, também almoçou conosco. Durante o almoço, a mais velha, que é casada e que estava grávida, lembrouse de me perguntar bruscamente e olhando-me fixamente, se eu tivera filhos. Respondi, enrubescendo até às orelhas, que nunca tivera essa felicidade. Ela sorriu maliciosamente olhando os presentes: tudo aquilo não era muito obscuro, mesmo para mim. É claro que, em primeiro lugar, essa resposta não é a que teria desejado dar, ainda que tivesse tido a intenção de enganar; pois, na disposição em que via aquela que me fazia a pergunta, tinha toda a certeza de que minha resposta negativa em nada mudaria sua opinião nesse ponto. Esperavam essa resposta negativa, provocavam-na mesmo para terem o prazer de me ter feito mentir. Eu não era tão bronco para não o sentir. Dois minutos após, a resposta que deveria ter dado me veio espontaneamente. Eis uma pergunta pouco discreta da parte de uma jovem senhora a um homem que envelheceu solteiro. Falando dessa forma, sem mentir, sem ter de enrubescer por nenhuma confissão, eu poria os gozadores do meu lado, e lhe dava uma liçãozinha que naturalmente deveria tê-la tornado um pouco menos impertinente ao me questionar. Não fiz nada disso, não disse o que deveria ter dito, disse o que não devia e que não

podia servir-me para nada. Portanto, é certo que nem meu julgamento nem minha vontade ditaram minha resposta e que ela foi o efeito maquinal de meu embaraço. Outrora, não possuía este embaraço e confessava meus erros com mais franqueza do que vergonha, porque não duvidava de que não vissem o que os resgatava e que eu sentia dentro de mim; mas o olhar de malignidade me aflige e me desconcerta; tornando-me mais infeliz, tornei-me mais tímido e nunca menti senão por timidez. Nunca senti melhor minha aversão natural pela mentira do que ao escrever minhas confissões, pois é lá que as tentações teriam sido frequentes e fortes, se tivesse tido a mínima inclinação para isso. Mas, longe de nada ter calado, dissimulado, quanto às minhas culpas, por uma característica de espírito que tenho dificuldade em explicar a mim mesmo e que vem talvez da aversão por qualquer imitação, sentia-me antes levado a mentir no sentido contrário, acusando-me com demasiada severidade, que a desculpar-me com demasiada indulgência, e minha consciência me assegura que um dia serei julgado menos severamente do que me julguei eu mesmo. Sim, digo-o e sinto-o com uma altiva elevação da alma, levei, nesse escrito, a sinceridade, a veracidade, a franqueza, tão longe, mais longe mesmo, pelo menos o creio, do que qualquer outro homem; sentindo que o bem ultrapassava o mal, tinha interesse em dizer tudo e tudo disse. Nunca disse menos, disse mais, algumas vezes, não quanto aos fatos, mas quanto às circunstâncias, e essa espécie de mentira foi antes o efeito do delírio da imaginação que um ato de vontade. Erro mesmo em chamá-lo mentira, pois nenhum desses acréscimos o foi. Escrevia minhas Confissões já velho e entediado com os vãos prazeres da vida que, mesmo superficialmente conhecera todos e dos quais meu coração bem sentira o vazio. Escrevi-os de memória; essa memória me falhava muitas vezes ou somente me fornecia lembranças imperfeitas e eu preenchia suas lacunas com detalhes que imaginava, como complemento dessas lembranças, mas que nunca lhe eram contrárias. Gostava de me alongar sobre os momentos felizes de minha vida e os embelezava algumas vezes com os ornamentos que ternas nostalgias vinham me fornecer. Dizia coisas que esquecera, como me parecia que deviam ter sido, como talvez realmente tivessem sido, nunca o contrário do que lembrava terem sido. Algumas vezes, conferia à verdade encantos estranhos mas nunca a substituí pela mentira para paliar meus vícios ou para me atribuir virtudes.

Porque, se algumas vezes, sem pensar, num movimento involuntário, escondi o lado desagradável, dando de mim apenas uma faceta, essas reticências foram bem compensadas por outras reticências mais extravagantes que frequentemente me fizeram calar o bem mais cuidadosamente do que o mal. Esta é uma singularidade de meu natural que é perfeitamente perdoável aos homens por nela não acreditarem, mas que, por incrível que pareça, não deixa de ser menos real; frequentemente mostrei o mal em toda a sua turpitude, raramente mostrei o bem em tudo o que apresentou de amável, e muitas vezes calei-o completamente porque me honrava demasiado e porque, escrevendo minhas confissões, daria a impressão de ter feito meu elogio. Descrevi minha juventude sem me vangloriar das felizes qualidades de que meu coração era dotado e mesmo suprimindo os fatos que a punham por demais em evidência. Lembro-me agora de dois de minha primeira infância, que me vieram ambos à lembrança ao escrever, mas que recusei tanto um quanto o outro, pela única razão que acabo de indicar. Ia quase todos os domingos passar o dia em Pâquis,5 em casa do senhor Fazy, que desposara uma de minhas tias e que lá possuía uma fábrica de chitas.6 Um dia, me encontrava no estendedouro, na sala da calandra e olhava os rolos da fundição: seu brilho atraí a meu olhar, fui tentado a pousar neles meus dedos e coloquei-os com prazer sobre o cadilho do cilindro, quando o jovem Fazy, tendo-se colocado na roda, deu-lhe um oitavo de volta com tal habilidade que apanhou somente a ponta de meus dedos mais longos; mas foi o suficiente para esmagá-los na extremidade e para que suas unhas fossem arrancadas. Lancei um grito pungente, Fazy afasta imediatamente a roda, mas as unhas ficaram no cilindro e o sangue corria de meus dedos. Fazy, consternado, grita, sai da roda, me abraça e me suplica que acalme meus gritos, acrescentando que estava perdido. No auge de minha dor, a sua me tocou, calei-me, fomos à carpiêre,7 onde ele me ajudou a lavar os dedos e a estancar o sangue com um pouco de musgo. Suplicou-me chorando que não o acusasse; prometi-lho e o mantive tão bem que mais de vinte anos mais tarde ninguém sabia em consequência de que aventura eu tinha dois de meus dedos cicatrizados; pois assim o permaneceram para sempre. Fui obrigado a guardar o leito por mais de três semanas e a não poder usar minha mão por mais de dois meses, dizendo sempre que uma grande pedra, ao cair, me esmagara os dedos.

Magnanima menzogna! or quando è il vero Si bello che si possa a ter proporre? 8 Contudo, esse acidente me sensibilizou muito, dadas as circunstâncias em que aconteceu, pois era o tempo dos exercícios, quando se realizavam as manobras da burguesia e formáramos uma fila, com três outras crianças de minha idade, com as quais devia, uniformizado, realizar exercícios com a companhia de meu bairro. Enquanto estava de cama, tive a dor de ouvir o tambor da companhia passando sob minha janela com meus três companheiros. Minha outra história é muito semelhante, mas pertence a uma época posterior. Brincava com o malho em Plain-Palais9 com um de meus companheiros chamado Pleince. Brigamos, lutamos e durante o combate ele me desferiu sobre a cabeça desguarnecida uma malhada tão bem aplicada que, se tivesse sido um pouco mais forte, ter-me-ia feito saltar os miolos. Caio imediatamente. Nunca vi em minha vida uma agitação igual >à desse pobre rapaz, vendo meu sangue correr entre meus cabelos. Pensou ter-me matado. Precipita-se sobre mim, abraça-me, aperta-me com força caindo em lágrimas e lançando gritos lancinantes. Abraçava-o também com toda força, chorando como ele numa emoção confusa que não deixava de ter alguma doçura. Enfim, sentiu-se no dever de estancar meu sangue que continuava a correr, e, vendo que nossos dois lenços não eram suficientes, arrastou-me à casa de sua mãe, que possuía um jardinzinho perto do local. Essa boa senhora quase desmaiou ao me ver naquele estado. Mas soube conservar forças para me tratar e após ter banhado bem minha ferida, aplicou-lhe flores de lis maceradas na aguardente, excelente vulnerário e muito usado em nosso país. Suas lágrimas e as de seu filho penetraram no meu coração ao ponto de considerá-la por muito tempo como minha mãe e seu filho como meu irmão até que, tendo-nos ambos perdido de vista, esqueci-os pouco a pouco. Conservei o mesmo segredo sobre este acidente como sobre o outro e aconteceram-me cem outros da mesma natureza, em minha vida, de que nem mesmo fui tentado a falar em minhas Confissões, de tal forma procurava pouco a arte de valorizar o bem que sentia em meu caráter. Não, quando falei contra a verdade que me era conhecida, foi sempre em relação a coisas indiferentes mais pelo embaraço de falar ou pelo prazer de escrever do que por algum motivo de meu interesse, de

vantagem ou de prejuízo para outrem. E, quem quer que leia imparcialmente minhas Confissões, se isso chegar a acontecer, sentirá que as confissões que faço são mais humilhantes, mais penosas do que as de um mal maior, mas menos vergonhoso de dizer, e que não disse porque não o fiz. Conclui-se de todas essas reflexões que a profissão de sinceridade que fiz tem maior fundamento em sentimentos de retidão e de equidade do que na realidade das coisas, e que, na prática, segui mais as direções morais da minha consciência do que as noções abstratas do verdadeiro e do falso. Frequentemente, contei muitas fábulas mas muito raramente menti. Seguindo esses princípios, dei aos outros muitas oportunidades de me atacarem, mas não prejudiquei quem quer que fosse e não atribuí a mim mesmo maior vantagem do que me era devida. É unicamente por essa razão, parece-me, que a verdade é uma virtude. Em qualquer outro sentido, ela não é para nós senão um ser metafísico, de que não resulta nem bem nem mal. Contudo, não sinto meu coração suficientemente contente com essas distinções para me julgar completamente irrepreensível. Pesando com tanto cuidado o que devia aos outros, terei suficientemente examinado o que devia a mim mesmo? Se é preciso ser justo para com os outros, é preciso ser sincero para consigo mesmo, é uma homenagem que o homem de bem deve prestar à sua própria dignidade. Quando a esterilidade de minha conversa me obrigava a supri-la com inocentes ficções, agia mal porque, para divertir os outros não se deve aviltar a si mesmo; e, quando, levado pelo prazer de escrever, acrescentava a coisas reais ornamentos inventados, agia ainda pior, porque ornar a verdade com fábulas significa, realmente, desfigurá-la. Mas o que me torna mais indesculpável é a divisa que escolhera. Essa divisa me obrigava, mais do que a qualquer outro homem, a uma profissão mais rigorosa da verdade, e não bastava sacrificar-lhe, em qualquer ocasião, meu interesse e meus gostos, teria sido necessário sacrificar-lhe também minha fraqueza e meu natural tímido. Teria sido preciso ter a coragem e a força de ser sempre verdadeiro, em qualquer ocasião, e nunca permitir que saíssem ficções nem fábulas de uma boca e de uma pena que se haviam particularmente consagrado à verdade. Eis o que deveria ter pensado ao tomar essa elevada divisa e repetido a mim mesmo, continuamente, enquanto ousei usá-la. Nunca a falsidade ditou minhas mentiras, todas vieram da fraqueza, mas esse fato me desculpa muito mal. Com uma alma fraca podemos, no

máximo, nos defender contra o vício, mas ousar professar grandes virtudes significa ser arrogante e temerário. Eis reflexões que provavelmente nunca me teriam vindo ao espírito se o padre Rosier não mas tivesse sugerido. É muito tarde, sem dúvida, para pô-las em prática; mas não é tarde demais, pelo menos, para corrigir meu erro e repor minha vontade em regra; pois é tudo o que, de agora em diante, depende de mim. Neste ponto, portanto, e em todas as coisas semelhantes, a máxima de Sólon é aplicável a todas as épocas e nunca é tarde demais para aprender, mesmo com seus inimigos, a ser sensato, sincero, modesto e a menos presumir de si mesmo. 1

Rousseau começou a ler Plutarco aos oito anos de idade. “Àquele que dedica sua vida à verdade”: Rousseau escrevera em 1758 em sua correspondência: “ Vitam impendere vero (dedicar minha vida à verdade): eis a divisa que escolhi e da qual me sinto signo”. Tal divisa lhe foi inspirada por Juvenal (Sátiras IV, 9.). 3 Obra de Montesquieu, publicada em 1725. 4 O Dicionário de Trévoüx define como “mentira oficiosa” aquela que é dita apenas para obsequiar alguém, sem a intenção de prejudicar quem quer que seja. 5 Bairro de Genebra. 6 Chita da Índia. Começou a ser fabricada na Europa em 1632. 7 Na Suíça francesa e na Saboia, reservatório de água. 8 “Magnânima mentira! Quando a verdade / É tão bela que se possa preferir a ti?” Citação da Gerusalemme liberata de Torquato Tasso, 11, 22. 9 Bairro de Genebra. 2

QUINTA CAMINHADA Primavera e verão de 1777

De todas as habitações em que morei (e tive algumas encantadoras), nenhuma me tornou tão verdadeiramente feliz e me deixou tão terna nostalgia quanto a Ilha de Saint-Pierre no centro do lago de Bienne.1 Esta ilhazinha, que em Neuchâtel chamam Ilha de La Motte, >é bem pouco conhecida, mesmo na Suíça. Nenhum viajante, que eu saiba, a menciona. Contudo, ela é muito agradável e singularmente situada para a felicidade de um homem que gosta de se circunscrever; pois, embora seja eu, talvez, a única pessoa no mundo a quem seu destino tenha feito disso uma lei, não posso crer ser o único a ter um gosto tão natural, embora não o tenha encontrado até agora em nenhum outro. As margens do lago de Bienne são mais selvagens e românticas2 do que as do lago de Genebra, porque nelas os rochedos e os bosques cercam a água mais de perto; mas elas não são menos agradáveis. Se há menor cultivo de campos e de videiras, menor número de cidades e de casas, há também mais verdura natural, maior número de prados, de refúgios sombreados de arvoredos, contrastes mais frequentes e acidentes do terreno mais próximos uns dos outros. Como não há, nessas felizes margens, grandes e cômodas estradas para as carruagens, a região é pouco frequentada pelos viajantes; mas ela é interessante para contemplativos solitários que gostam de se inebriar à vontade com os encantos da natureza e de recolher-se num silêncio apenas perturbado pelo grito das águias, pelo gorjeio entrecortado de alguns pássaros e o rumor das torrentes que caem da montanha. Esse belo e pequeno lago, de formato quase redondo, encerra em seu centro duas pequenas ilhas, uma habitada e cultivada, de mais ou menos meia légua de circunferência, outra menor, deserta e maninha e que será destruída um dia pelos transportes de terra retirada constantemente para reparar os estragos que as vagas e as tempestades provocam na grande. É assim que a substância do fraco é sempre usada em proveito do poderoso. Na ilha há somente uma casa, mas grande, agradável e cômoda, que pertence ao hospital de Berna, assim como à ilha, e onde mora um recebedor3 com sua família e

seus criados. Nela, mantém um imenso quintal de criação, um viveiro de pássaros e reservatórios para peixes. Apesar de sua pequenez, a ilha é de tal forma variada em seus terrenos e seus aspectos, que oferece todas as espécies de solos e permite todos os tipos de cultivos. Nela, encontramos campos, videiras, bosques, vergéis, ricas pastagens sombreadas por bosquezinhos e rodeadas por toda espécie de arbustos cujo frescor é mantido pela margem das águas; um alto terraço, plantado de duas fileiras de árvores costeia a ilha no sentido longitudinal, e em seu centro foi construído um bonito pavilhão onde os moradores das margens vizinhas se reúnem e vêm dançar aos domingos, durante a vindima. Foi nessa ilha que me refugiei após a lapidação de Motiers. A estada me foi tão agradável, levava uma vida tão adequada ao meu humor que, resolvido a nela acabar meus dias, tinha uma única inquietação, a de que não me deixassem executar esse projeto, o qual não se harmonizava com o de me levarem para a Inglaterra, cujos primeiros indícios começava a sentir. Nos pressentimentos que me inquietavam, teria desejado que me tivessem feito, desse refúgio, uma prisão perpétua, que nela me tivessem confinado por toda a vida, e que, retirando-me todo o poder e toda a esperança de a deixar, me tivessem proibido toda espécie de comunicação com a terra firme, de maneira que, ignorando tudo o que acontecesse no mundo, tivesse esquecido sua existência como teriam esquecido também a minha. Deixaram-me passar apenas dois meses nessa ilha,4 mas nela teria passado dois anos, dois séculos e toda a eternidade, sem me entediar um só momento, embora não tivesse, como minha companheira, outra convivência senão a do recebedor, de sua mulher e de seus criados que, na verdade, nada mais eram além de excelentes pessoas, mas era precisamente aquilo de que necessitava. Considero esses dois meses como o tempo mais feliz de minha vida e de tal forma feliz que ter-me-ia bastado durante toda a minha existência, sem fazer nascer, por um único instante, em minha alma, o desejo de um outro estado. Qual era então esta felicidade e em que consistia seu deleite? Deixo que a imaginem todos os homens desta época, pela descrição de minha vida na ilha. O precioso far niente foi o primeiro e o principal desses deleites que quis apreciar em toda a sua doçura, e tudo o que fiz durante minha estada não foi, na verdade, senão a ocupação deliciosa e necessária de um homem que se consagrou à ociosidade.

A esperança de que me deixassem ficar nesse lugar isolado, onde me enlaçava a mim mesmo,5 do qual me era impossível sair sem ajuda e sem ser bem notado, e onde não podia nem me comunicar nem me corresponder a não ser com o auxílio das pessoas que me rodeavam, esta esperança, repito, me dava a de lá acabar meus dias mais tranquilamente do que os tinha passado, e a ideia de que teria tempo de me organizar sem pressa, fez com que começasse por absolutamente não me organizar. Transportado bruscamente para lá, só e despojado, mandei vir sucessivamente minha governanta,6 meus livros e alguma bagagem, que tive o prazer de não desencaixotar, deixando minhas caixas e minhas malas como tinham chegado e vivendo na casa em que contava acabar meus dias como num albergue de onde tivesse de partir no dia seguinte. Todas as coisas se apresentavam tão perfeitas que, querer arrumá-las melhor, seria estragar alguma coisa. Uma das minhas maiores delícias era sobretudo a de deixar sempre meus livros bem encaixotados e de não ter escrivaninha. Quando infelizes cartas me forçavam a tomar a pena para responder-lhes, tomava, resmungando, a escrivaninha do recebedor e me apressava em devolvê-la na vã esperança de não mais precisar tomá-la novamente emprestada. Em lugar dessas melancólicas papeladas e de todo esse monte de alfarrábios, enchia meu quarto de flores e de feno; pois encontrava-me então no primeiro fervor pela botânica, pela qual o doutor d’Ivernois me inspirara um gosto que em breve se tornou paixão. Não desejando mais obra trabalhosa, precisava de uma que me distraísse, que me agradasse e que me desse apenas o trabalho de que gosta um preguiçoso. Tomei a resolução de fazer a Flora petrinsularis 7 e de descrever todas as plantas da ilha sem omitir uma só, com detalhes suficientes para me ocupar pelo resto de meus dias. Dizem que um alemão escreveu um livro sobre uma casca de limão; eu teria escrito um sobre cada erva dos prados, sobre cada musgo dos bosques, sobre cada líquen que recobre os rochedos; enfim, não queria deixar um único filamento de erva, nem um átomo vegetal sem uma ampla descrição. Como consequência deste belo projeto, todas as manhãs, após o desjejum, que tomávamos todos juntos, ia, com uma lente na mão e meu Systema naturae8 sob o braço, visitar um cantão da ilha, que, com essa finalidade, dividira em pequenos canteiros, na intenção de os percorrer um após o outro, em cada estação. Nada é mais singular do que estes entusiasmos, estes êxtases que experimentava a cada observação que fazia sobre a estrutura e a organização

vegetal e sobre o funcionamento das panes sexuais na frutificação, cujo sistema era então completamente novo para mim. A distinção dos caracteres genéricos, dos quais não tinha antes a menor ideia, me encantava, ao verificá-los nas espécies comuns, esperando que espécies mais raras se oferecessem a mim. A bifurcação de dois longos estames do abrunho bravo, a espiral das da urtiga e da parietária, a explosão do fruto da balsamina e da cápsula do buxo, mil pequenos funcionamentos da frutificação que observava pela primeira vez me enchiam de alegria e ia perguntando se haviam visto as diabelhas do abrunho bravo, como La Fontaine perguntava se haviam lido Habacuc.9 Após duas ou três horas, voltava carregado de ampla colheita, provisão de diversão para a tarde, em casa, em caso de chuva. Empregava o resto da manhã, indo, com o recebedor, sua mulher e Teresa, visitar seus trabalhadores e sua colheita, pondo quase sempre mãos à obra juntamente com eles e, muitas vezes, Bernenses que vinham me visitar me encontraram empoleirado sobre grandes árvores, cingido por um saco que enchia de frutos e que fazia baixar em seguida ao chão por uma corda. O exercício que fizera pela manhã e o bom humor que lhe é inseparável me tornavam o repouso do almoço muito agradável; mas quando se prolongava demais e quando o bom tempo me convidava, não podia esperar tanto, e, enquanto estavam ainda à mesa, esquivava-me e ia me atirar, sozinho, num barco, que conduzia ao centro do lago, quando a água estava calma, e lá, estendendo-me completamente no barco, com os olhos voltados para o céu, deixava-me estar e derivar lentamente ao sabor da água, algumas vezes durante várias horas, mergulhado em mil devaneios confusos mas deliciosos, e que, sem nenhum objeto bem determinado nem constante, não deixavam de ser, na minha opinião, cem vezes preferíveis a tudo o que encontrara de mais doce no que chamam os prazeres da vida. Frequentemente, advertido pelo pôr do sol, da hora da volta, encontrava-me tão longe da ilha que era forçado a remar com todas as forças para chegar antes da noite fechada. Outras vezes, em lugar de me afastar ao largo, gostava de costear as verdejantes margens da ilha, cujas águas límpidas e cujas sombras frescas muitas vezes me levaram a banhar-me. Mas uma das minhas mais frequentes navegações era a de ir da grande à pequena ilha, de desembarcar e de nela passar a tarde, ora em caminhadas bem circunscritas por entre salgueiros, arnieiros, persicárias, por toda espécie de arbustos e ora estabelecendo-me no cume de um outeiro arenoso coberto de relva, de tomilho selvagem, de flores, até de sanfeno e de

trevos que teriam sido, verossimilmente, semeados outrora e muito próprios para albergar coelhos, que lá podiam se multiplicar em paz, sem nada temer e nada prejudicar. Dei essa ideia ao recebedor que mandou vir de Neuchâtel coelhos machos e fêmeas, e fomos, em grande pompa, sua mulher, uma de suas irmãs, Teresa e eu, estabelecê-los na pequena ilha, que começavam a povoar antes de minha partida e onde terão sem dúvida prosperado se tiverem podido suportar o rigor dos invernos. A fundação dessa pequena colônia foi uma festa. O piloto dos argonautas não se sentia mais orgulhoso do que eu, levando em triunfo as pessoas e os coelhos da grande para a pequena ilha e eu observava com orgulho que a mulher do recebedor, que temia por demais a água e nela sentia-se sempre mal, embarcou com confiança sob minha direção e não mostrou nenhum medo durante a travessia. Quando o lago agitado não me permitia a navegação, passava minha tarde percorrendo a ilha, herborizando cá e lá, sentando-me ora nos retiros mais agradáveis e mais solitários, para sonhar à vontade, ora nos terraços e nos outeiros, para percorrer com o olhar a magnífica e encantadora perspectiva do lago e de suas margens, coroadas, de um lado, por montanhas próximas e, do outro, ampliadas em ricas e férteis planícies nas quais a vista se estendia até as montanhas azuladas, mais afastadas, que a limitavam. Quando a noite se aproximava, descia dos cumes da ilha e ia de bom grado sentarme à beira do lago, sobre a praia, em algum refúgio escondido; lá, o ruído das vagas e a agitação da água fixando meus sentidos e expulsando de minha alma qualquer outra agitação, a mergulhavam num devaneio delicioso, em que a noite me surpreendia muitas vezes sem que o tivesse percebido. O fluxo e refluxo dessa água, seu ruído contínuo mas crescente por intervalos, atingindo sem repouso meus ouvidos e meus olhos, supriam os movimentos internos que o devaneio extinguia em mim e bastavam para me fazer sentir com prazer minha existência sem ter o trabalho de pensar. De tempos em tempos, nascia alguma fraca e curta reflexão sobre a instabilidade das coisas deste mundo do qual a superfície das águas me oferecia a imagem: mas, em breve, essas impressões leves se apagavam na uniformidade do movimento contínuo que me embalava, e que, sem nenhuma ajuda ativa de minha alma, não deixava de me fixar, a tal ponto que, chamado pela hora e pelo sinal combinado, não podia arrancarme de lá sem esforço.

Após o jantar, quando a noite era bela, íamos ainda todos juntos fazer algum passeio no terraço, para respirar o ar do lago e o frescor. Descansávamos no pavilhão, ríamos, conversávamos, cantávamos alguma velha canção que valia bem a ginga moderna e enfim íamos nos deitar contentes da jornada e não desejando senão uma outra igual para o dia seguinte. Tal foi, excetuando as visitas imprevistas e importunas, a maneira pela qual passei meu tempo nessa ilha durante a estada que nela fiz. Que me digam hoje o que há nela de tão atraente para excitar em meu coração tão vivas, tão ternas e tão duráveis nostalgias, para que, ao fim de quinze anos, me seja impossível pensar nessa habitação cara sem para lá me sentir transportado ainda pela aspiração do desejo. Observei, nas transformações de uma longa vida, que as épocas das mais doces alegrias e dos mais vivos prazeres não são, contudo, aquelas cuja lembrança me atrai e me toca mais profundamente. Esses curtos momentos de delírio e de paixão, por mais vivos que possam ser, não são, todavia, e isso pela sua própria intensidade, senão momentos bem escassos, na linha da vida. São por demais raros e por demais rápidos para constituir um estado, e a felicidade que meu coração lamenta não é composta de instantes fugidios mas de um estado simples e permanente, que nada tem de intenso em si mesmo, mas cuja duração aumenta o encanto ao ponto de nele encontrar, enfim, a suprema beatitude. Tudo vive num fluxo contínuo na terra: nela, nada conserva uma forma constante e definitiva e nossas afeições, que se apegam às coisas exteriores, passam e se transformam necessariamente como elas. Sempre à nossa frente ou atrás de nós, lembram o passado, que não mais existe ou antecipam o futuro que, muitas vezes, não deverá existir: nada há de sólido a que o coração se possa apegar. Assim, na terra, temos apenas um pouco de prazer que passa; quanto à felicidade duradoura, duvido que seja conhecida. Mal existe, em nossas mais vivas alegrias, um instante em que o coração possa realmente nos dizer: Quisera que este instante durasse sempre; e como podemos chamar felicidade a um estado fugidio que nos deixa ainda o coração inquieto e vazio, que nos faz lamentar alguma coisa antes ou desejar ainda alguma coisa depois? Mas se há um estado em que a alma encontra um apoio bastante sólido para descansar inteiramente e reunir todo o seu ser, sem precisar lembrar o passado nem

avançar para o futuro; em que o tempo nada é para ela, em que o presente dura sempre, sem, contudo, marcar sua duração e sem nenhum traço de continuidade, sem nenhum outro sentimento de privação nem de alegria, de prazer nem de dor, de desejo nem de temor, a não ser o de nossa existência e em que esse único sentimento possa preenchê-la completamente, enquanto este estado dura, aquele que o vive pode ser chamado feliz, não de uma felicidade imperfeita, pobre e relativa, como a que se encontra nos prazeres da vida, mas de uma felicidade suficiente, perfeita e plena, que não deixa na alma nenhum vazio que sinta a necessidade de preencher. Tal foi o estado em que me encontrei muitas vezes na Ilha de St. Pierre, em meus devaneios solitários, seja deitado em meu barco, que deixava vagar ao sabor da água, seja sentado sobre as margens do lago agitado, seja em outro lugar, à margem de um belo rio ou de um regato a murmurar sobre o cascalho. De que desfrutamos numa tal situação? De nada de exterior a nós, de nada a não ser de nós mesmos e de nossa própria existência; enquanto este estado dura bastamonos a nós mesmos como Deus. O sentimento da existência, despojado de qualquer outro apego é por si mesmo um sentimento precioso de contentamento e de paz, que sozinho bastaria para tornar esta existência cara e doce a quem soubesse afastar de si todas as impressões sensuais e terrenas que vêm continuamente nos afastar dela e perturbar, na terra, sua suavidade. Mas a maioria dos homens, agitados por paixões contínuas, conhece pouco esse estado e tendo-o experimentado apenas de forma imperfeita, durante poucos instantes, dele não conservam senão uma ideia obscura e confusa que não lhes faz sentir seu encanto. Nem mesmo seria bom, na presente constituição das coisas, que, ávidos desses doces êxtases, adquirissem aversão pela vida ativa, da qual suas sempre novas necessidades lhes prescrevem o dever. Mas um infeliz que foi separado da sociedade humana e que nada mais pode fazer de útil e de bom na Terra para os outros ou para si mesmo, pode encontrar nesse estado, para todas as felicidades humanas, compensações que o destino e os homens não lhes poderiam retirar. >É verdade que essas compensações não podem ser sentidas por todas as almas, nem em todas as situações. É preciso que o coração esteja em paz e que nenhuma paixão venha perturbar sua calma. Para isso são necessárias certas disposições da parte daquele que as sente, é preciso que existam no auxílio dos objetos que o

rodeiam. Não deve haver nem um repouso absoluto nem demasiada agitação, mas um movimento uniforme e moderado, sem abalos nem intervalos. Sem movimento, a vida é apenas letargia. Se o movimento é desigual ou por demais forte, acorda; chamando nossa atenção para os objetos que nos rodeiam, ele destrói o encanto do devaneio e nos arranca de dentro de nós mesmos para nos recolocar imediatamente sob o jugo do destino e dos homens e nos devolver ao sentimento de nossas infelicidades. Um silêncio absoluto leva à tristeza. Oferece uma imagem da morte. Então, o socorro de uma imaginação alegre é necessária e se apresenta com bastante naturalidade àqueles que o céu gratificou com tal imaginação. O movimento que não vem de fora nasce então dentro de nós. O repouso é menor, é verdade, mas é também mais agradável quando leves e doces ideias, sem agitar o fundo da alma, por assim dizer, apenas tocam levemente sua superfície. Somente o necessário para lembrar-se a si mesmo, esquecendo todos os seus males. Essa espécie de devaneio pode ser apreciado onde quer que se possa estar tranquilo e pensei muitas vezes que na Bastilha e mesmo numa masmorra, onde nenhum objeto viesse chocar minha vista, teria ainda podido sonhar agradavelmente. Mas é preciso confessar que isso acontecia muito melhor e mais agradavelmente numa ilha fértil e solitária, naturalmente circunscrita e separada do resto do mundo, onde apenas se me ofereciam imagens alegres, onde nada me trazia recordações tristes, onde a companhia dos poucos habitantes era afável e doce, sem ser interessante a ponto de me ocupar incessantemente, onde podia, enfim, me entregar todo o dia, sem obstáculos e sem cuidados, às minhas ocupações favoritas ou à mais indolente ociosidade. A ocasião, sem dúvida, era bela para um sonhador que, sabendo alimentar-se de agradáveis quimeras, em meio aos mais desagradáveis objetos, podia saciar-se à vontade, para isso fazendo concorrer tudo o que impressionava realmente seus sentidos. Saindo de um longo e doce devaneio, vendo-me rodeado de verdura, de flores, de pássaros e deixando vagar meus olhos ao longe sobre as romanescas margens que rodeavam uma vasta extensão de água clara e cristalina, assimilava às minhas ficções todos esses amáveis objetos e, enfim, voltando pouco a pouco a mim mesmo e ao que me rodeava, não podia marcar o ponto de separação entre ficções e realidades; de tal forma tudo concorria igualmente para me tornar cara a vida recolhida e solitária que levava nesse belo lugar. Por que não pode renascer ainda?

Por que não posso ir acabar meus dias nessa ilha cara, sem nunca mais abandoná-la, nem rever nunca mais algum habitante do continente que viesse trazer-me a lembrança das calamidades de toda a espécie que gostam de acumular sobre mim há tantos anos! Seriam em breve esquecidos para sempre: sem dúvida, não me esqueceriam da mesma maneira: mas que me importaria, contanto que não tivessem nenhuma possibilidade de vir perturbar meu repouso? Livre de todas as paixões terrenas produzidas pelo tumulto da vida social, minha alma se lançaria frequentemente acima dessa atmosfera e entraria desde já em relação com as inteligências celestes, cujo número ela espera ir aumentar em breve. Os homens terão o cuidado, bem o sei, de não me devolver um tão suave refúgio, onde não quiseram me deixar. Mas não me impedirão, pelo menos, de para lá me transportar cada dia, sobre as asas da imaginação, e de saborear, durante algumas horas, o mesmo prazer que teria se a habitasse ainda. O que faria de mais doce seria devanear à vontade. Sonhando que estou lá, não faço a mesma coisa? Faço mesmo mais; aos atrativos de um devaneio abstrato e monótono, acrescento imagens encantadoras que o vivificam. Em meus êxtases, seus objetos escapavam muitas vezes a meus sentidos, e agora, mais meu devaneio é profundo mais os pinta com energia. Permaneço muitas vezes mais profundamente entre eles e de forma mais agradável ainda do que quando lá me encontrava de fato. Infelizmente, à medida que a imaginação se entorpece, isso acontece com maior dificuldade e não dura tanto tempo. Ai de mim, é quando se começa a abandonar seus despojos que se é mais perturbado por eles! 1

Ao norte do lago de Neuchâtel. É a primeira vez que Rousseau emprega esta palavra. Do inglês Romantic. Rousseau a emprega com o sentido de romanesco e pitoresco. 3 Funcionário encarregado de receber, de arrecadar contribuições e impostos. Trata-se do recebedor Engel. 4 Por um decreto do governo de Berna, Rousseau foi obrigado a abandoná-la em 24 horas. 5 Como se fosse prisioneiro de si mesmo. 6 Sua mulher, Therese Levasseur. Chama-a Governanta pois é ela quem governa sua casa e trata de sua pessoa. 7 A flora da Ilha de Saint-Pierre: A expressão latina é criada por Rousseau. 8 Obra de Carl von Linné, naturalista sueco, publicada em 1735. 9 Engano de Rousseau. La Fontaine perguntava se haviam lido Baruch. 2

SEXTA CAMINHADA Primavera e verão de 1777

Quase não temos movimentos maquinais cuja causa não possamos encontrar em nosso coração, se soubéssemos procurá-la bem. Ontem, passando pelo novo bulevar,1 para ir herborizar ao longo da Bièvre2 pelos lados de Gentilli,3 fiz um desvio à direita, aproximando-me da barreira d’Enfer4 e entrando pelos campos, fui, pela estrada de Fontainebleau, atingir as alturas que circundam este riozinho. Essa caminhada era perfeitamente indiferente em si mesma, mas lembrando que fizera várias vezes, maquinalmente, o mesmo desvio, procurei a causa em mim mesmo e não pude deixar de rir quando cheguei a compreendê-la. Num canto do bulevar, à saída da barreira d’Enfer, estabelece-se diariamente, no verão, uma mulher que vende postres, tisanas e pãezinhos. Esta mulher tem um menino encantador mas coxo que, capengando com suas muletas, vai, com muita gentileza, pedir esmola aos passantes. Eu travara relações com esse rapazinho; cada vez que passava, não deixava de vir me cumprimentar, o que era sempre seguido por minha pequena oferenda. As primeiras vezes, fiquei encantado por vê-lo, dei-lhe de muito bom grado e continuei por algum tempo a fazê-lo com o mesmo prazer, acrescido mesmo, o mais das vezes, pelo de excitar e de ouvir sua pequena tagarelice, que achava agradável. Tendo-se esse prazer tornado, pouco a pouco, um hábito, transformou-se não sei como, numa espécie de dever, do qual, em breve, senti o constrangimento; sobretudo por causa da arenga preliminar que era preciso ouvir e na qual nunca deixava de me chamar às vezes senhor Rousseau, para mostrar que me conhecia bem, o que me mostrava, muito pelo contrário, que não me conhecia melhor do que aqueles que o haviam instruído. A partir de então, passei por lá com menor boa vontade e enfim tomei, maquinalmente, o hábito de fazer, o mais das vezes, um desvio, quando me aproximava desse atalho. Eis o que descobri, refletindo sobre o caso: pois nada daquilo, até então, chegara claramente ao meu pensamento. Esta observação me lembrou sucessivamente inúmeras outras que me confirmaram perfeitamente que os verdadeiros e primeiros

motivos da maior pane de minhas ações não são tão claros para mim mesmo quanto havia por muito tempo imaginado. Sei e sinto que fazer o bem é a mais verdadeira felicidade que o coração humano pode experimentar; mas faz muito tempo que essa felicidade foi colocada fora de meu alcance e não é num destino tão infeliz quanto o meu que se pode esperar fazer, cuidadosamente e com bons resultados, uma única ação boa. O maior cuidado daqueles que regulam meu destino tendo sido o de tudo tomar, para mim, uma falsa e enganadora aparência, um motivo para praticar a virtude é sempre um engodo que me apresentam para me atrair na armadilha na qual querem me enlaçar. Sei disso; sei que o único bem que, de agora em diante, tenho o poder de fazer é o de me abster de agir por medo de proceder mal sem o querer e sem o saber. Mas houve tempos mais felizes em que, seguindo os movimentos de meu coração, podia, algumas vezes, tornar contente um outro coração e tenho a obrigação de declarar dignamente que, cada vez que pude apreciar esse prazer, achei-o mais doce do que qualquer outro. Essa tendência foi forte, verdadeira, pura e nada, no mais fundo de minha alma, a desmentiu jamais. Contudo, senti muitas vezes o peso de minhas próprias boas obras, pelo encadeamento de deveres que traziam consigo: então, o prazer desapareceu e não mais encontrei, na continuação das mesmas atenções, que a princípio me haviam encantado, senão uma obrigação quase insuportável. Durante meus curtos momentos de felicidade, muitas pessoas recorriam a mim e nunca, em todos os serviços que lhes pude prestar, alguma delas foi repelida. Mas desses primeiros benefícios, feitos com a efusão do coração, nasciam correntes de contínuas obrigações que eu não previra e das quais não mais podia sacudir o jugo. Meus primeiros serviços não eram, aos olhos dos que os recebiam, senão penhores dos que deviam ainda vir; e a partir do momento em que algum infeliz se agarrava a mim por algum benefício recebido, já não havia mais nada a fazer e esse primeiro benefício, livre e voluntário, se tornava um direito indefinido sobre todos aqueles de que ele poderia precisar mais tarde, sem que a própria impotência bastasse para deles me libertar. Eis como satisfações agradabilíssimas se transformavam depois, para mim, em obrigações onerosas. Essas cadeias, contudo, não me pareceram muito pesadas enquanto, ignorado pelo público, vivi na obscuridade. Mas quando um dia minha pessoa se tornou conhecida por meio de meus escritos, falta grave, sem dúvida, porém mais do que expiada por

minhas infelicidades, a partir de então, tornei-me a agência geral de informações de todos os sofredores ou que se diziam tal, de todos os aventureiros que procuravam vítimas, de todos aqueles que, sob pretexto do grande crédito que fingiam atribuir-me, queriam, de uma forma ou de outra, dominar-me. Foi então que tive a oportunidade de saber que todas as tendências da natureza, sem excetuar a própria beneficência, usadas ou seguidas na sociedade, sem prudência e indiscriminadamente, mudam de natureza e se tornam muitas vezes tão prejudiciais quanto eram úteis em sua primeira orientação. Tantas cruéis experiências mudaram pouco a pouco minhas primeiras disposições, ou melhor mantendo-as enfim em seus verdadeiros limites, elas me ensinaram a seguir menos cegamente minha tendência para proceder corretamente, quando tal tendência servia apenas para favorecer a maldade alheia. Mas não lamento essas mesmas experiências, visto que me trouxeram, pela via da reflexão, novas luzes sobre o conhecimento de mim mesmo e sobre os verdadeiros motivos de minha conduta em mil circunstâncias sobre as quais me iludi com tanta frequência. Vi que para ter o prazer de proceder bem era preciso agir livremente, sem obrigação, e que, para retirar-me toda a doçura de uma boa obra, era suficiente que se tornasse um dever para mim. A partir de então, o peso da obrigação transforma em fardo as mais doces satisfações, e, como o disse no Emile, parece-me, teria sido entre os turcos um mau marido, no momento em que o pregão público os chama a preencher os deveres de seu estado. Eis o que modifica muito a opinião que tive por muito tempo sobre minha própria virtude; pois não há virtude em seguir suas inclinações e em ter o prazer de fazer o bem quando elas nos conduzem a fazê-lo. Mas ela consiste em vencê-las quando o dever o ordena, para fazer o que nos prescreve e eis o que qualquer homem no mundo soube fazer melhor do que eu. Tendo nascido sensível e bom, tendo levado a piedade até a fraqueza e sentindo minha alma exaltada por tudo o que está ligado à generosidade, fui humano, beneficente, compassível, por gosto, por paixão mesmo, enquanto tocaram apenas meu coração; teria sido o melhor e o mais clemente dos homens se tivesse sido o mais poderoso e para extinguir em mim todo desejo de vingança, ter-me-ia bastado poder vingar-me. Teria mesmo sido justo, sem dificuldade, contra meu próprio interesse, mas contra o das pessoas que me eram caras não teria podido resolver-me a sê-lo. No momento em que meu dever e meu coração

entravam em contradição, o primeiro raramente saía vitorioso, a menos que fosse suficiente abster-me; então, na maioria das vezes era forte, mas foi-me sempre impossível agir contra minha inclinação. Não importa se a ordem vem dos homens, do dever ou mesmo do destino, quando meu coração se cala, minha vontade permanece surda e eu não poderia obedecer. Vejo o mal que me ameaça e prefiro deixá-lo chegar a agitar-me para o antecipar. Começo algumas vezes com esforço, mas esse esforço me cansa e me esgota muito depressa; não poderia continuar. Em tudo o que se possa imaginar, o que não faço com prazer, em breve, não o posso mais fazer. Há mais. A obrigação de estar de acordo com meu desejo basta para o aniquilar e basta que aja com uma certa força para transformá-lo em repugnância, em aversão mesmo; eis o que me torna penosa a boa obra que se exige e que eu mesmo fazia quando não o exigiam. Um benefício puramente gratuito é certamente uma obra que gosto de fazer. Mas quando aquele que o recebeu faz disso um direito para exigir sua continuação, sob pena de odiar-me, quando transforma em lei o fato de ser para sempre seu benfeitor, por ter inicialmente gostado de sê-lo, começa então o incômodo e o prazer se evapora. Assim, quando cedo, é por fraqueza e falsa vergonha, mas não existe mais boa vontade e, longe de aplaudir-me a mim mesmo, censuro-me, em consciência, por proceder bem contra a minha vontade. Sei que há uma espécie de contrato, e mesmo o mais sagrado de todos, entre o benfeitor e o favorecido. É uma espécie de sociedade que formam um com o outro, mais forte do que aquela que une os homens em geral e, se o favorecido se obriga tacitamente ao reconhecimento, o benfeitor se obriga, da mesma forma, a conservar para com o outro, enquanto dela não se tornar indigno, a mesma boa vontade que acaba de lhe testemunhar e a renovar-lhe os atos, todas as vezes que puder fazê-lo e que a isso for solicitado. Essas não são condições expressas, mas são efeitos naturais da relação que acaba de se estabelecer entre eles. Aquele que, pela primeira vez, recusa um favor gratuito que lhe pedem não dá nenhum direito de queixar-se àquele a quem recusou; mas aquele que, em caso semelhante, recusa ao mesmo o mesmo favor que lhe concedeu precedentemente frustra uma esperança que lhe autorizou a conceber; engana e desmente uma espera que fez nascer. Sente-se nessa recusa não sei o quê de injusto e de mais duro do que no outro; mas não deixa por isso de ser o efeito de uma independência que o coração ama e à qual não renuncia sem esforço. Quando

pago uma dívida é um dever que cumpro; quando faço um dom é um prazer que dou a mim mesmo. Ora, o prazer de cumprir com seus deveres é daqueles que somente nascem com o hábito da virtude: os que nos vêm imediatamente da natureza não se elevam assim tão alto. Após tantas tristes experiências, aprendi a prever de longe as consequências de meus primeiros impulsos repetidos e me abstive frequentemente de uma boa ação que tinha o desejo e a possibilidade de fazer, assustado pela obrigação à qual, em seguida, iria me submeter se a ela me entregasse inconsideradamente. Nem sempre senti esse temor, ao contrário, em minha juventude afeiçoava-me a meus próprios benefícios e, da mesma forma, muitas vezes senti que os que beneficiava se apegavam a mim, ainda mais por reconhecimento do que por interesse. Mas as coisas mudaram muito a esse respeito como em muitos outros, logo que minhas infelicidades começaram. Vivi, a partir de então, entre uma nova geração que não se assemelhava à primeira e meus próprios sentimentos pelos outros sofreram transformações que encontrei nos seus. As mesmas pessoas que vi sucessivamente nessas duas gerações tão diferentes, por assim dizer, se assimilaram sucessivamente a uma e a outra. É assim que o conde des Charmettes, por quem tive uma tão terna estima e que me amava tão sinceramente, ao tornar-se um dos organizadores das intrigas de Choiseul, nomeou bispos alguns parentes seus, é assim que o bom padre Palais, outrora meu favorecido e meu amigo, bom e honesto rapaz em sua juventude, estabeleceu-se na França tornando-se traidor e falso para comigo. É assim que o padre de Benis, meu subsecretário em Veneza, e que sempre me manifestou a simpatia e a estima que minha conduta deve ter-lhe inspirado naturalmente, mudando, no momento oportuno, sua linguagem e suas maneiras, em seu próprio interesse, soube conquistar bons benefícios a expensas de sua consciência e da verdade. O próprio Moultou mudou do dia para a noite. De sinceros e francos que eram, no início, tendo-se tornado o que são, fizeram como todos os outros e pelo simples fato de os tempos terem mudado, os homens mudaram como eles. Oh! Como poderia conservar os mesmos sentimentos por eles, em quem encontro o contrário daquilo que os fez nascer. Não os odeio, porque não poderia odiar; mas não posso deixar de desprezá-los como merecem nem me abster de lhes testemunhar. Talvez, sem o perceber, eu mesmo tenha mudado mais do que deveria. Que natureza resistiria sem se alterar a uma situação igual à minha? Convencido, por vinte

anos de experiências, de que todas as felizes disposições que a natureza colocou no meu coração são transformadas por meu destino e por aqueles que dele dispõem, em prejuízo de mim mesmo ou de outrem, não mais posso olhar uma boa ação que me pedem senão como uma armadilha que me armam e sob a qual está escondido algum mal. Sei que, seja qual for o efeito da ação, não deixarei de ter o mérito de minha boa intenção. Sim, este mérito está sempre presente, sem dúvida, mas o encanto interior não existe mais, e quando me falta este estímulo, não sinto senão indiferença e gelo dentro de mim, e, certo de que, em lugar de fazer uma ação realmente útil, não sou senão o enganado, a indignação do amor próprio acrescentada à reprovação da razão somente me inspira repugnância e resistência, quando teria me sentido naturalmente cheio de ardor e de zelo. Há espécies de adversidades que elevam e reforçam a alma, mas há outras que a abatem e a matam; assim é aquela de que sou presa. Se na minha tivesse havido um pouco de mau fermento, ela o teria feito fermentar excessivamente, ter-me-ia tornado frenético; mas ela apenas me tornou nulo. Não tendo condições de proceder bem, em relação a mim e aos outros, abstenho-me de agir; e esse estado, que somente é inocente porque é forçado, me faz encontrar uma espécie de doçura ao me entregar completamente, sem censura, à minha inclinação natural. Vou demasiadamente longe, sem dúvida, já que evito as ocasiões de agir, mesmo quando não vejo senão o bem a fazer. Mas, certo de que não me deixam ver as coisas como são, abstenho-me de julgar, baseado nas aparências que lhe dão, e se cobrirem com algum engodo os motivos para agir, basta que tais motivos sejam deixados ao meu alcance, para que eu tenha a certeza de que são enganadores. Meu destino parece, desde minha infância, ter armado a primeira armadilha que me tornou, por muito tempo, tão inclinado a cair em todas as outras. Nasci o mais confiante dos homens e durante quarenta anos completos jamais essa confiança foi enganada uma única vez. Tendo caído de repente entre uma outra espécie de pessoas e de coisas, caí em mil ciladas sem nunca perceber nenhuma e vinte anos de experiências foram apenas suficientes para me esclarecer sobre meu destino. Uma vez convencido de que não há senão mentira e falsidade nas demonstrações afetadas que me prodigam, passei rapidamente ao outro extremo: pois, quando uma vez saímos do nosso natural, não há mais limites que nos retenham. A partir de então, senti

repugnância pelos homens e a minha vontade, concorrendo com a deles, nesse sentido, deles me mantém ainda mais afastado do que o fazem todas as suas intrigas. Agirão em vão: essa repugnância nunca pode ir até a aversão. Pensando na dependência em que se colocaram em relação a mim, para me manter na dependência deles, tenho por eles uma piedade real. Se não sou infeliz, eles mesmos o são e cada vez que reflito, considero-os sempre dignos de lástima. Talvez o orgulho se misture ainda a esses julgamentos, sinto-me por demais acima deles para os odiar. Podem me interessar, no máximo, até o desprezo, mas nunca até o ódio: enfim, amo-me demasiadamente a mim mesmo para poder odiar quem quer que seja. Seria restringir, limitar minha existência e eu desejaria, ao contrário, estendê-la sobre todo o universo. Prefiro fugir-lhes a odiá-los. Sua presença choca meus sentidos e, através deles, meu coração, com impressões que mil olhares cruéis me tornam penosas; mas o malestar cessa logo que o objeto que o causa desaparece. Preocupo-me com eles, e contra a minha vontade, quando estão presentes, mas nunca com sua lembrança. Quando não os vejo mais, são para mim como se não existissem. Nem mesmo me são indiferentes, senão no que me concerne; pois, em suas relações entre si, podem ainda interessar-me e me comover como os personagens de um drama que visse representar. Seria preciso que meu ser moral fosse aniquilado, para que a justiça se me tornasse indiferente. O espetáculo da injustiça e da maldade me faz ainda ferver o sangue de cólera; as ações virtuosas em que não vejo nem bazófia nem ostentação me fazem sempre estremecer de alegria e me arrancam ainda doces lágrimas. Mas é preciso que as veja e as aprecie eu mesmo; pois após minha própria história, deveria ser insensato para adotar, sobre o que quer que seja, o julgamento dos homens e para crer em alguma coisa baseando-me em declarações alheias. Se meu rosto e meus traços fossem tão perfeitamente desconhecidos aos homens quanto o são meu caráter e meu natural, viveria ainda sem dificuldade entre eles. Mesmo sua companhia poderia agradar-me enquanto lhes fosse perfeitamente estranho. Entregue, sem constrangimento, às minhas inclinações naturais, amá-los-ia ainda se nunca se preocupassem comigo. Exerceria sobre eles uma benevolência universal e perfeitamente desinteressada: mas sem nunca apegar-me particularmente e sem o jugo de nenhum dever, lhes faria, livre e espontaneamente, tudo o que têm tanta

dificuldade para fazer, incitados por seu amor próprio e obrigados por todas as suas leis. Se tivesse permanecido livre, obscuro, isolado, como fora naturalmente feito, somente teria feito o bem: pois não tenho no coração o germe de nenhuma paixão prejudicial. Se tivesse sido invisível e todo poderoso como Deus, teria sido beneficente e bom como ele. É a força e a liberdade que fazem os excelentes homens. A fraqueza e a escravidão somente fizeram os maus. Se tivesse possuído o anel de Gyges5 ele me teria subtraído à dependência dos homens e os teria posto sob a minha. Perguntei-me, muitas vezes, ao fazer castelos no ar, que uso teria feito desse anel; pois é exatamente neste ponto que a tentação de enganar deve acompanhar o poder. Sendo dono de realizar meus desejos, podendo tudo sem poder ser enganado por ninguém, que teria podido desejar mais tarde? Uma única coisa: ver todos os corações contentes. Somente o aspecto da felicidade pública teria podido tocar meu coração com um sentimento permanente, e o ardente desejo de concorrer para isso teria sido minha mais constante paixão. Sempre justo sem parcialidade e sempre bom sem fraqueza, eu me teria igualmente defendido das desconfianças cegas e dos ódios implacáveis; porque, vendo os homens tais como são e lendo facilmente nos seus corações, poucos teria encontrado suficientemente amáveis para merecerem todas as minhas afeições, poucos suficientemente odiosos para merecerem todo o meu ódio e cuja própria maldade me tivesse predisposto a lamentá-los, pelo conhecimento certo do mal que se fazem a si mesmos querendo fazê-la aos outros. Talvez tivesse tido, em momentos de alegria, a infantilidade de algumas vezes operar prodígios: mas perfeitamente desinteressado de mim mesmo e não tendo por lei senão minhas inclinações naturais, ao lado de alguns atos de justiça severa, teria tido mil de clemência e de equidade. Como ministro da providência e dispensador de suas leis, na conformidade do meu poder, teria feito milagres mais sábios e mais úteis do que aqueles da lenda dourada6 e do túmulo de St. Médard.7 Há um único ponto sobre o qual a faculdade de penetrar por toda a parte, invisível, me teria podido fazer procurar tentações às quais teria dificilmente resistido e, tendo uma vez entrado nesses caminhos enganosos, aonde não teria sido conduzido por eles? Seria conhecer muito mal a natureza e a mim mesmo pensar que essas facilidades não me teriam seduzido ou que a razão me teria detido nesse declive fatal.

Seguro de mim em qualquer outro ponto, estaria perdido neste único. Aquele cujo poder o coloca acima do homem deve estar acima das fraquezas da humanidade, sem o que tal excesso de força somente servirá para colocá-lo realmente abaixo dos outros e do que teria sido ele mesmo se tivesse permanecido seu igual. Tudo bem considerado, creio que seria preferível jogar fora meu anel mágico, antes que me tivesse feito fazer alguma tolice. Se os homens se obstinarem em me ver completamente diferente do que sou e se minha vista excita sua injustiça, para que não me vejam é preciso fugir-lhes, mas não eclipsar-me entre eles. São eles que devem se esconder diante de mim, esconder-me suas intrigas, fugir à luz do dia, enterrar-se na terra como toupeiras. Quanto a mim, que me vejam, se o puderem, tanto melhor, mas isso lhes é impossível; nunca verão em meu lugar senão o J.J.8 que criaram para si mesmos e que criaram como o desejavam, para odiá-lo à vontade. Estaria errado, portanto, afligindo-me com a maneira pela qual me veem: não devo realmente interessar-me por isso, pois não sou eu que veem desta maneira. O resultado que posso extrair de todas essas reflexões é que não fui realmente feito para a sociedade civil na qual tudo é opressão, obrigação, dever, e que meu natural independente me tornou sempre incapaz das sujeições necessárias a quem quer viver com os homens. Enquanto ajo livremente sou bom e somente faço o bem; mas, logo que sinto o jugo, seja da fatalidade, seja dos homens, torno-me rebelde, ou melhor, insubmisso, então sou inexistente. Quando é preciso fazer o contrário do que desejo, não o faço, aconteça o que acontecer; da mesma forma, não faço minha própria vontade porque sou fraco. Abstenho-me de agir: pois toda a minha fraqueza se revela diante da ação, toda minha força é negativa e todos os meus pecados são de omissão, raramente de comissão. Nunca acreditei que a liberdade do homem consistisse em fazer o que quer, mas sim em nunca fazer o que não quer, é esta liberdade que sempre reclamei, que muitas vezes conservei e pela qual provoquei maior escândalo entre meus contemporâneos. Pois, quanto a eles, ativos, inquietos, ambiciosos, detestando a liberdade nos outros e não a querendo para si mesmos, contanto que façam, algumas vezes, sua vontade, ou melhor, que dominem a dos outros, se obrigam a fazer, por toda a vida, o que lhes repugna e não omitem nada de servil para dominar. Seu erro, portanto, não foi o de me afastar da sociedade como um membro inútil, mas o de me proscrever dela como um membro pernicioso: pois poucas vezes fiz o bem, confesso-

o, mas quanto ao mal, durante minha vida, ele não entrou em minha vontade e duvido que exista algum homem no mundo que realmente o tenha feito menos do que eu. 1

O atual bulevar Raspail. Nome do vale ao sul de Paris e do rio que o percorre. 3 Hoje, Gentilly. 4 Em suas notas à Edição Pléiade, Marcel Raymond observa que tal barreira se encontrava mais ao norte da atual praça Denfert-Rochereau. 5 Anel que tornava invisível seu possuidor. 6 Coletânea da Vida dos Santos, composta em latim por Jacques de Voragine no século XIII. Teve grande voga no século XV. 7 Alusão aos jansenistas convulsionários e aos pretensos milagres do diácono Pâris, por volta de 1730, que atraíam o povo a seu túmulo, no cemitério ao lado da igreja de Saint Médard em Paris. 8 Jean-Jacques. 2

SÉTIMA CAMINHADA Primavera e verão de 1777

A coletânea de meus longos sonhos recém começou e já sinto que chega a seu fim. Uma outra distração lhe sucede, me absorve e me retira mesmo o tempo de sonhar. Entrego-me a ela com um entusiasmo que chega às raias da extravagância e que a mim mesmo faz rir quando reflito sobre o assunto; mas não deixo de me entregar a ela porque, na situação em que me encontro, não tenho outra regra de conduta senão a de seguir, em tudo, sem constrangimento, a minha inclinação. Nada posso contra meu destino, tenho somente inclinações inocentes e todos os julgamentos dos homens sendo, de agora em diante, inexistentes para mim, a própria sabedoria quer que, no que permanece ao meu alcance, faça tudo o que me agrada, seja em público, seja a sós, sem outra regra senão a minha fantasia, sem outra medida além das poucas forças que me restaram. Eis-me, portanto, reduzido a meu feno como único alimento e à botânica como única ocupação. Já velho, tomara por ela o primeiro gosto na Suíça, junto ao doutor d’Ivernois e herborizara bastante bem, durante minhas viagens, para adquirir um conhecimento passável do reino vegetal. Mas, tendo-me tornado mais do que sexagenário e sedentário em Paris, tendo as forças começado a me faltar para as grandes herborizações e, aliás, suficientemente entregue à minha cópia de música para não ter necessidade de outra ocupação, abandonara essa distração que não mais me era necessária; devolvera meu herbário, vendera meus livros, contente por rever, algumas vezes, as plantas comuns que encontrava ao redor de Paris, em minhas caminhadas. Durante esse intervalo, o pouco que sabia desapareceu quase completamente de minha memória e bem mais rapidamente do que levara para se fixar. De repente, com mais de 65 anos, privado da pouca memória que possuía e das forças que me restavam para percorrer o campo, sem guia, sem livros, sem jardim, sem herbário, eis-me retomado por essa loucura, mas com um ardor ainda maior do que tive ao me entregar pela primeira vez; eis-me seriamente ocupado com o sábio projeto de aprender de cor todo o “Regnum vegetabile” de Murray1 e de conhecer todas as plantas conhecidas na Terra. Sem as condições de comprar novamente livros

de botânica, senti-me no dever de transcrever os que me emprestaram e, resolvido a refazer um herbário mais rico do que o primeiro, esperando pôr nele todas as plantas do mar e dos Alpes e todas as árvores da Índia, começo sempre, realmente, pelo morrião, pelo cerefólio, pela borragem e a tasneirinha; herborizo de maneira erudita sobre a gaiola de meus pássaros e, diante de cada nova haste de erva que encontro, digo-me com satisfação, eis uma planta a mais. Não procuro justificar a decisão que tomo de seguir essa fantasia; acho-a muito razoável, persuadido de que na situação em que me encontro, entregar-me aos divertimentos que me encantam é uma grande sabedoria e mesmo uma grande virtude: é a maneira de não deixar germinar em meu coração nenhum fermento de vingança ou de ódio, e, para encontrar ainda no meu destino algum gosto por uma diversão, é preciso seguramente ter um natural, bem depurado de todas as paixões irritantes. Isso significa vingar-me de meus perseguidores à minha maneira, não poderia puni-los mais cruelmente do que ser feliz apesar deles. Sim, sem dúvida, a razão me permite, me prescreve mesmo entregar-me a toda inclinação que me atrai e que nada me impede de seguir; mas ela não me ensina por que essa inclinação me atrai e que atrativo posso encontrar num vão estudo feito sem proveito, sem progresso e que, embora sendo eu um velho tonto, já caduco e pesado, sem facilidade, sem memória, me traz de volta aos exercícios da juventude e às lições de um escolar. Ora, é uma extravagância que gostaria de explicar a mim mesmo; parece-me que, bem elucidada, ela poderia lançar alguma nova luz sobre esse conhecimento de mim mesmo a cuja aquisição consagrei meus últimos lazeres. Algumas vezes, pensei com bastante profundidade; mas raramente com prazer, quase sempre contra minha vontade e como à força: o devaneio me descansa e me diverte, a reflexão me cansa e me entristece; pensar foi sempre para mim uma ocupação penosa e sem encanto. Algumas vezes, meus devaneios acabam pela meditação, mas, mais frequentemente, minhas meditações acabam pelo devaneio e durante tais divagações minha alma vagueia e plana no universo sobre as asas da imaginação, em êxtases que ultrapassam qualquer outro gozo. Enquanto desfrutei do primeiro, em toda a sua pureza, qualquer outra ocupação sempre me foi insípida. Mas quando, definitivamente lançado na carreira literária, por impulsos estranhos, senti o cansaço do trabalho do espírito e a importunidade de uma

celebridade infeliz, senti, ao mesmo tempo, languescerem, esmorecerem meus doces devaneios, e em breve, forçado a me ocupar, contra a minha vontade, com minha triste situação, só muito raramente pude encontrar ainda esses caros êxtases que durante cinquenta anos haviam substituído a fortuna e a glória e, sem outro gasto do que o do tempo, me haviam tornado, na ociosidade,2 o mais feliz dos mortais. Devia mesmo temer, em meus devaneios, que minha imaginação assustada pelas minhas infelicidades não dirigisse enfim para esse lado sua atividade e que o contínuo sentimento de minhas penas, apertando-me pouco a pouco o coração, não me esmagasse finalmente com seu peso. Nesse estado, um instinto que me é natural, fazendo-me fugir de toda ideia entristecedora, impôs silêncio à minha imaginação e, fixando minha atenção nos objetos que me rodeavam, me fez, pela primeira vez, ver em seus detalhes o espetáculo da natureza, que até então quase só contemplara como uma massa e em seu conjunto. As árvores, os arbustos, as plantas são o enfeite e a vestimenta da Terra. Nada é tão triste como o aspecto de um campo nu e sem vegetação, que somente expõe diante dos olhos pedras, limo e areias. Mas, vivificada pela natureza e revestida com seu vestido de núpcias no meio do curso das águas e do canto dos pássaros, a terra oferece ao homem, na harmonia dos três reinos, um espetáculo cheio de vida, de interesse e de encanto, o único espetáculo no mundo de que seus olhos e seu coração não se cansam nunca. Quanto maior for a sensibilidade de sua alma, mais o contemplador se entregará aos êxtases que excita nele essa harmonia. Um devaneio doce e profundo apodera-se então de seus sentidos e ele se perde, com uma deliciosa embriaguez, na imensidade desse belo sistema3 com o qual se sente identificado. Então, todos os objetos individuais lhe escapam; nada vê, nada sente senão no todo. É preciso que alguma circunstância particular comprima suas ideias e circunscreva sua imaginação para que possa observar por partes esse universo que se esforçava por abarcar. Foi o que me aconteceu naturalmente quando meu coração, comprimido pelo desespero, aproximava e concentrava todas as suas emoções ao redor de si para conservar este resto de calor prestes a se evaporar e a se apagar no abatimento em que eu caía pouco a pouco. Vagava indolentemente nos bosques e nas montanhas, não ousando pensar por medo de avivar minhas dores. Minha imaginação, que recusa os

objetos aflitivos, deixava meus sentidos se entregarem às impressões leves mas doces dos objetos que me rodeavam. Meus olhos passeavam sem cessar de um a outro e não era possível que numa variedade tão grande não se encontrassem alguns que os fixassem ainda mais e os retivessem por maior tempo. Tomei gosto por essa recreação dos olhos que, no infortúnio, repousa, diverte, distrai o espírito e interrompe o sentimento das penas. A natureza dos objetos favorece muito essa divagação e a torna mais sedutora. Os odores suaves, as cores vivas, as mais elegantes formas parecem disputar à porfia o direito de fixar nossa atenção. Basta amar o prazer para se entregar a sensações tão doces, e, se tal fato não se realiza em todos aqueles que por ele são impressionados é, em alguns, por uma falta natural de sensibilidade e na maioria é porque seu espírito, por demais ocupado por outras ideias, só furtivamente se entrega aos objetos que impressionam seus sentidos. Uma outra coisa contribui ainda para afastar do reino vegetal a atenção das pessoas de gosto; é o hábito de somente procurar nas plantas drogas e remédios. Teofrasto4 agira diferentemente e pode-se considerar esse filósofo como o único botânico da Antiguidade: assim, quase não é conhecido entre nós; mas, graças a um certo Dioscórides,5 grande compilador de receitas, e a seus comentadores, a medicina de tal forma se apoderou das plantas, transformadas em símplices, que nelas só não vemos o que absolutamente não vemos, isto é, as pretensas virtudes que qualquer um quer atribuir-lhes. Não se concebe que a organização vegetal possa, por si mesma, merecer alguma atenção; pessoas que passam sua vida catalogando sabiamente as conchas desprezam a botânica como se se tratasse de um estudo inútil, quando não lhe acrescentam, como dizem, o das propriedades, isto é, quando não abandonam a observação da natureza, que não mente e que nada nos diz sobre tudo isso, para se entregarem unicamente à autoridade dos homens, que são mentirosos e que nos afirmam muitas coisas em que devemos acreditar baseados em sua palavra, baseada ela mesma, o mais das vezes, na autoridade de outros. Detenhamo-nos num prado ornado de flores para examinar sucessivamente as flores que o fazem brilhar, os que nos observarem, tomando-nos por um frater 6 nos pedirão ervas para curar a tinha inveterada das crianças, a sarna dos homens ou o mormo dos cavalos. Esse preconceito fastidioso foi destruído em parte, nos outros países e sobretudo na Inglaterra, graças a Linnaeus, que retirou um pouco a botânica das escolas de farmácia

para devolvê-la à história natural e aos empregos econômicos; mas na França, onde este estudo penetrou menos na sociedade, permanecemos, neste ponto, de tal forma bárbaros que um homem culto de Paris, vendo em Londres o jardim de um curioso, cheio de árvores e de plantas raras, exclamou como único elogio, eis um belíssimo jardim de apoticário. Nesse sentido, o primeiro apoticário foi Adão. Pois não é fácil imaginar um jardim mais bem fornecido de plantas do que o do Éden. Tais ideias medicinais certamente são pouco próprias para tornar agradável o estudo da botânica, fazem desaparecer a variedade das flores dos prados, o colorido das flores, secam o frescor dos arvoredos, tornam a verdura e as sombras insípidas e desagradáveis; todas essas diversas formas encantadoras e graciosas interessam muito pouco a quem quer que deseje apenas esmagar tudo isso num pilão, e não se procurarão guirlandas para os pastores entre ervas para clisteres. Toda essa farmácia não sujava minhas imagens campestres, nada estava mais longe dela do que tisanas e emplastros. Pensei, muitas vezes, olhando de perto os campos, os vergéis, os bosques e seus numerosos habitantes, que o reino vegetal é um depósito de alimentos dados pela natureza ao homem e aos animais. Mas nunca me veio à mente nela procurar drogas e remédios. Nada vejo em suas diversas produções que me indique um tal uso e ela nos teria mostrado a escolha, se nô-la tivesse prescrito, como o fez em relação aos comestíveis. Sinto mesmo que o prazer que tenho em percorrer os arvoredos seria envenenado pelo sentimento das enfermidades humanas, se me fizesse pensar na febre, nos cálculos, na gota e no mal caduco.7 De resto, não contestarei aos vegetais as grandes virtudes que se lhes atribuem; direi somente que, supondo essas virtudes reais, é pura maldade dos doentes continuarem a sê-lo: pois, entre tantas doenças que os homens se atribuem, não há uma única que vinte espécies de ervas não curem radicalmente. Tais giros do espírito, que só dizem respeito a nosso interesse material, que fazem procurar por toda a parte proveito ou remédios e que fariam olhar com indiferença toda a natureza, se tivéssemos sempre saúde, nunca foram os meus. Nesse ponto, penso exatamente o contrário dos outros homens: tudo o que diz respeito ao sentimento de minhas necessidades entristece e deteriora meus pensamentos e nunca encontrei verdadeiro encanto nos prazeres do espírito senão perdendo completamente de vista o interesse de meu corpo. Assim, mesmo que acreditasse na medicina e

mesmo que seus remédios fossem agradáveis, nunca experimentaria, ao me ocupar deles, estas delícias que trazem uma contemplação pura e desinteressada e minha alma não poderia se exaltar e planar sobre a natureza, enquanto a sentisse ligada aos laços de meu corpo. Aliás, sem nunca ter tido grande confiança na medicina, tive muita em médicos que estimava, que amava e a quem deixava governar minha carcaça com plena autoridade. Quinze anos de experiências me instruíram às minhas expensas; tendo voltado agora às únicas leis da natureza, retomei, por meio delas, minha primitiva saúde. Se os médicos não tivessem contra mim outras queixas, quem poderia se espantar com seu ódio? Sou a prova viva da inconsistência de sua arte e da inutilidade de seus cuidados. Não, nada de pessoal, nada que diga respeito ao interesse do meu corpo pode interessar verdadeiramente minha alma. Nunca medito, nunca sonho mais deliciosamente do que quando me esqueço de mim mesmo. Tenho êxtases, arroubos inexprimíveis a ponto de me fundir, por assim dizer, no conjunto dos seres, de me identificar com a natureza inteira. Enquanto os homens foram meus irmãos, fazia projetos de felicidade terrena; como esses projetos eram sempre relativos ao todo, somente podia ser feliz de uma felicidade pública e a ideia de uma felicidade particular somente tocou meu coração quando vi meus irmãos procurarem a sua apenas na minha infelicidade. Então, para não os odiar, foi realmente necessário fugirlhes; então, refugiando-me na mãe comum, procurei em seus braços subtrair-me aos ataques de seus filhos, tornei-me solitário, ou, como dizem, insociável e misantropo, porque a mais selvagem solidão me parece preferível à companhia dos maus, que somente se alimentam de traições e de ódio. Forçado a me abster de pensar, por medo de pensar contra a minha vontade, nas minhas infelicidades: forçado a conter os restos de uma imaginação alegre, mas abatida, que tantas angústias poderiam acabar por assustar; forçado a procurar esquecer os homens, que me cobrem de ignomínia e de ultrajes, por medo de que a indignação me irrite, enfim, contra eles, não posso, contudo, concentrar-me inteiramente em mim mesmo, porque minha alma expansiva procura, apesar das minhas hesitações, expandir seus sentimentos e sua existência sobre outros seres e não posso mais, como outrora, lançar-me de ponta-cabeça neste vasto oceano da natureza, porque minhas faculdades enfraquecidas e menos tensas não encontram mais objetos

suficientemente definidos, suficientemente fixos, suficientemente ao meu alcance, para me apegar com força e porque não sinto mais bastante vigor para nadar no caos de meus antigos êxtases. Minhas ideias quase não são mais do que sensações, e a esfera de meu entendimento não ultrapassa os objetos que me rodeiam de perto. Fugindo dos homens, procurando a solidão, não imaginando mais, pensando ainda menos e, contudo, dotado de um temperamento vivo que me afasta da apatia languescente e melancólica, comecei a ocupar-me com tudo o que me rodeava e, por um instinto muito natural, preferi os objetos mais agradáveis. O reino mineral não tem em si nada de aprazível e atraente; suas riquezas, encerradas no seio da terra, parecem ter sido afastadas dos olhares dos homens para não tentar sua cupidez. Estão lá como de reserva, para servir um dia de suplemento às verdadeiras riquezas que estão mais ao seu alcance e pelas quais perde o gosto à medida que se corrompe. Então, deve chamar em socorro às suas misérias, a atividade, a dificuldade e o trabalho; escava as entranhas da terra, vai procurar em seu centro, com o risco de sua vida e às expensas de sua saúde, bens imaginários em lugar dos bens reais que ela mesma lhe oferecia quando deles sabia desfrutar. Foge do sol e do dia que não é mais digno de ver; enterra-se vivo e faz bem, pois não merece mais viver à luz do dia. Lá, pedreiras, abismos, forjas, fornos, um conjunto de bigornas, de martelos, de fumaça e de fogo substituem as doces imagens dos trabalhos campestres. Os rostos lívidos de infelizes que definham nos infectos vapores das minas, negros ferreiros, horríveis ciclopes são o espetáculo que o conjunto das minas substitui, no seio da terra, ao da verdura e das flores, do céu azulado, dos pastores apaixonados e dos trabalhadores robustos da superfície. É fácil, confesso-o, ir juntando areia e pedras, encher com elas seus bolsos e seu gabinete e, com isso, dar-se ares de naturalista: mas os que se apegam e se limitam a essas espécies de coleções são, em geral, ricos ignorantes que não procuram senão o prazer da ostentação. Para progredir, no estudo dos minerais, é preciso ser químico e físico; é preciso fazer experiências penosas e custosas, trabalhar em laboratórios, gastar muito dinheiro e muito tempo entre o carvão, os cadinhos, os fornos, as retortas, na fumaça e nos vapores sufocantes, sempre com o risco da própria vida e muitas vezes às expensas da saúde. De todo esse melancólico e fatigante trabalho, resulta, de ordinário, muito menos saber do que orgulho, e onde está o mais medíocre

dos químicos que não creia ter penetrado todas as grandes operações da natureza por ter encontrado, por acaso talvez, algumas pequenas combinações técnicas? O reino animal está mais ao nosso alcance e certamente merece ainda mais ser estudado. Mas, enfim, este estudo não tem também suas dificuldades, suas complicações, seus trabalhos, suas penas? Sobretudo, para um solitário que não espera a ajuda de ninguém, nem em seus jogos nem em seus trabalhos. Como observar, dissecar, estudar, conhecer os pássaros no ar, os peixes na água, os quadrúpedes mais leves do que o vento, mais fortes do que o homem e que não estão mais dispostos a se oferecer às minhas pesquisas do que eu a correr atrás deles para submetê-las pela força? Teria, portanto, como único recurso, lesmas, vermes, moscas e passaria minha vida a perder o fôlego para correr atrás das borboletas, empalar pobres insetos, dissecar camundongos, quando pudesse caçá-los, ou as carcaças dos animais que por acaso encontrasse mortos. O estudo dos animais nada é sem a anatomia; é por intermédio dela que se aprende a classificá-los, a distinguir os gêneros, as espécies. Para estudá-los por seus costumes, por seus caracteres, seria preciso possuir grandes gaiolas, viveiros, estrebarias; seria preciso obrigá-los, de alguma maneira, a permanecerem reunidos ao meu redor. Não possuo nem o gosto nem os meios de mantê-los cativos, nem a agilidade necessária para segui-los em seu andar, quando em liberdade. Será, portanto, necessário estudá-los mortos, rasgá-los, desossá-los, escavar à vontade em suas entranhas palpitantes! Que horrível conjunto é um anfiteatro de anatomia, cadáveres fétidos, pastosas e lívidas carnes, sangue, intestinos repugnantes, esqueletos medonhos, vapores pestilenciais! Dou minha palavra de que não é lá que J. J. irá procurar seus divertimentos. Brilhantes flores, coloridos dos prados, sombras frescas, regatos, bosquezinhos, verdura, vinde purificar minha imaginação maculada por todos esses hediondos objetos. Minha alma, morta para todas as grandes emoções, não pode mais ser impressionada senão por objetos sensíveis; nada mais tenho exceto sensações e é somente mediante elas que a dor ou o prazer podem me atingir na Terra. Atraído pelos agradáveis objetos que me rodeiam, considero-os, contemplo-os, comparo-os, aprendo, enfim, a classificá-los e eis-me de repente tão botânico quanto precisa sê-lo aquele que quer estudar a natureza somente para encontrar continuamente novas razões para amá-la.

Não procuro instruir-me: é demasiadamente tarde. Aliás, nunca julguei que tanta ciência contribuísse para a felicidade da vida. Mas procuro proporcionar-me diversões suaves e simples que possa apreciar sem dificuldades e que me distraiam das minhas infelicidades. Não tenho nem despesas nem trabalho para vagar descuidadamente de erva em erva, de planta em planta, para examiná-las, para comparar seus diversos caracteres, para marcar suas relações e suas diferenças, enfim, para observar a organização vegetal de maneira a seguir a marcha e o jogo dessas máquinas vivas, para procurar, algumas vezes com sucesso, suas leis gerais, a razão e a finalidade de suas diversas estruturas e para me entregar ao encanto da admiração agradecida à mão que me faz gozar de tudo isso. As plantas parecem ter sido semeadas com profusão sobre a terra, com as estrelas no céu, para convidar o homem, pelo atrativo do prazer e da curiosidade, ao estudo da natureza; mas os astros são colocados longe de nós; é preciso ter conhecimentos preliminares, instrumentos, máquinas, bem longas escadas para os atingir e os trazer ao nosso alcance. As plantas estão naturalmente ao nosso alcance. Por assim dizer, nascem sob nossos pés e nas nossas mãos e, se a pequenez de suas partes essenciais as rouba, às vezes, à simples vista, os instrumentos que permitem vê-las são de um uso muito mais fácil do que os da astronomia. A botânica é o estudo de um ocioso e preguiçoso solitário: um estilete e uma lupa são todo o equipamento de que precisa para observá-las. Passeia, vagueia livremente de um objeto a outro, investiga cada flor com interesse e curiosidade e, logo que começa a aprender as leis de sua estrutura, saboreia, ao observá-las, um prazer sem esforço, tão vivo quanto se lhe tivesse custado muito. Há, nessa ociosa ocupação, um encanto que somente é sentido na completa calma das paixões, mas que, sozinho, basta então para tornar a vida feliz e doce; mas logo que a ele se mistura o interesse ou a vaidade, seja para preencher lugares ou para escrever livros, logo que se quiser aprender apenas para instruir, logo que se herboriza somente para se tornar autor ou professor, todo esse doce encanto se desvanece, não se veem mais nas plantas senão instrumentos de nossas paixões, não se encontra mais nenhum verdadeiro prazer em seu estudo, não se quer mais saber mas mostrar que se sabe e, nos bosques, está-se apenas no teatro do mundo, com a preocupação de se fazer admirar; ou então, limitando-se, no máximo, à botânica de gabinete e de jardim, em lugar de observar os vegetais na natureza, preocupamo-nos

somente com sistemas e métodos; eterno motivo de disputa que não faz conhecer uma planta a mais e não lança nenhuma verdadeira luz sobre a história natural e o reino vegetal. Daí os ódios, os ciúmes que a concorrência pela celebridade excita entre os autores botânicos tanto quanto ou mais do que entre os outros sábios. Desnaturando este agradável estudo, transplantam-no para as cidades e as academias, onde não degenera menos do que as plantas exóticas nos jardins dos curiosos. Disposições bem diferentes fizeram, para mim, deste estudo uma espécie de paixão que preenche o vazio de todas aquelas que não tenho mais. Galgo os rochedos, as montanhas, mergulho nos vales, nos bosques, para me furtar, tanto quanto possível, à lembrança dos homens e aos ataques dos maus. Parece-me que sob as sombras de uma floresta sou esquecido, livre e calmo como se não mais tivesse inimigos ou como se a folhagem dos bosques me defendesse de seus ataques, como os afasta de minha lembrança e imagino, na minha tolice, que, não pensando neles, eles não pensarão em mim. Encontro uma tão grande doçura nessa ilusão que a ela me entregaria inteiramente se minha situação, minha fraqueza e minhas necessidades me permitissem. Então, mais a solidão em que vivo é profunda, mais é preciso que algum objeto lhe preencha o vazio e aqueles que minha imaginação recusa ou que minha memória repele são substituídos pelas produções espontâneas que a terra, não forçada pelos homens, oferece aos meus olhos por toda a parte. O prazer de ir a um deserto procurar novas plantas esconde o de escapar a meus perseguidores e, tendo chegado ao local em que não vejo nenhum traço humano, respiro mais à vontade como num refúgio onde seu ódio não me persegue mais. Lembrar-me-ei por toda a vida de uma herborização que fiz um dia pelos lados da Robaila,8 quinta do justicier 9 Clerc. Estava só, mergulhei nas anfractuosidades da montanha e, de bosque em bosque, de rocha em rocha, cheguei a um reduto tão escondido que, em toda a minha vida, nunca vi uma vista tão selvagem. Negros abetos entremeados de faias prodigiosas, entre as quais várias mortas de velhice e entrelaçadas entre si fechavam esse reduto com barreiras impenetráveis; alguns intervalos deixados por esse sombrio recinto ofereciam, mais longe, apenas rochas cortadas a pique e horríveis precipícios que somente ousava olhar deitando-me de bruços. O Bufo, a chevêche10 e o xofrango faziam ouvir seus gritos nas fendas da montanha, alguns pequenos pássaros raros, mas familiares, temperavam, contudo, o

horror dessa solidão. Lá, encontrei a Dentaire heptaphyllos, o ciclame, o nidus avis, o grande laserpitium e algumas outras plantas que me encantaram e me divertiram por muito tempo. Mas, insensivelmente dominado pela forte impressão dos objetos, esqueci a botânica e as plantas, sentei-me sobre almofadas de Lycopodium e de musgo e pus-me a devanear mais à vontade, pensando estar num refúgio ignorado por todo o universo, onde os perseguidores não me descobririam. Um movimento de orgulho misturou-se em breve a esse devaneio. Comparava-me a esses grandes viajantes que descobrem uma ilha deserta, e dizia a mim mesmo com complacência: sem dúvida, sou o primeiro mortal a penetrar até aqui; considerava-me quase como um outro Colombo. Enquanto me pavoneava com essa ideia, ouvi, não longe de mim, um certo tinido que pensei reconhecer; escuto: o mesmo ruído se repete e se multiplica. Surpreso e curioso, levanto-me e atravesso espessas urzes no lugar de onde vinha o ruído e, num pequeno vale a vinte passos do próprio local onde pensava ter sido o primeiro a chegar, percebo uma manufatura de meias. Não poderia exprimir a agitação confusa e contraditória que senti em meu coração diante dessa descoberta. Minha primeira emoção foi um sentimento de alegria por me encontrar novamente entre humanos, no local onde me julgara totalmente só. Mas essa emoção, mais rápida do que o relâmpago, cedeu logo o lugar a um sentimento doloroso mais duradouro, como se não pudesse, nos próprios antros dos Alpes11, escapar às mãos cruéis dos homens encarniçados em me atormentar. Pois tinha certeza de que não haveria talvez dois homens nesta fábrica que não estivessem iniciados no complô de que o predicante Montmollin12 se fizera chefe e cujas intenções vinham de mais longe. Apressei-me em afastar essa ideia melancólica e acabei por rir, comigo mesmo, tanto da minha vaidade pueril quanto da maneira cômica pela qual fora punido. Mas, na verdade, quem, alguma vez, teria esperado encontrar uma manufatura num precipício! Somente a Suíça, no mundo, pode apresentar esta mistura de natureza selvagem e de atividade humana. A Suíça inteira não é mais, por assim dizer, do que uma grande cidade, cujas ruas largas e mais longas do que a de St. Antoine13 são semeadas de florestas, cortadas por montanhas e cujas casas esparsas e isoladas não se comunicam entre si senão por jardins ingleses. Esse assunto me lembrou uma outra herborização que Du Peyrou d’Eschemy, o Coronel Pury, o justicier Clerc e eu

havíamos feito, havia algum tempo, na montanha de Chasseron,14 de cujo cume se avistam sete lagos. Disseram-nos que havia somente uma casa nessa montanha e não teríamos certamente adivinhado a profissão daquele que a habitava se não tivessem acrescentado que era um livreiro e que, mesmo, realizava muitos bons negócios na região. Parece-me que um único fato como este faz conhecer melhor a Suíça do que todas as descrições dos viajantes. Eis outro do mesmo tipo ou quase que não faz conhecer menos um povo muito diferente. Durante minha estrada em Grenoble, fazia, frequentemente, pequenas herborizações fora da cidade com o senhor Bovier, advogado daquela região, não porque amasse ou conhecesse a botânica, mas porque, tendo-se feito meu garde de la manche,15 obrigava-se, tanto quanto possível, a não me abandonar um só momento. Um dia, passeávamos ao longo do Isère, num local cheio de salgueiros espinhosos. Vi, sobre esses arbustos, frutos maduros, tive a curiosidade de experimentá-los e sentindo-lhes uma pequena acidez muito agradável, pus-me a comê-los para me refrescar; o senhor Bovier mantinha-se a meu lado, sem me imitar e sem falar. Um de seus amigos chegou de repente, e vendo-me comer tais frutos, me disse: – Oh! senhor, que fazeis? Ignorais que esta fruta envenena? – Esta fruta envenena, exclamei completamente surpreso! – Sem dúvida, prosseguiu, e todo o mundo o sabe tão bem que ninguém, na região, pensa em saboreá-lo. Olhei o senhor Bovier e lhe disse: – Por que então não me advertíeis? – Ah! senhor, respondeu-me num tom respeitoso, não ousava tomar tal liberdade. Pus-me a rir dessa humildade delfinesa, interrompendo, contudo, minha pequena refeição. Estava persuadido, como o estou ainda, de que qualquer produção natural agradável ao gosto não pode ser nociva para o corpo ou, pelo menos, somente o é por seu excesso. Todavia, confesso que me observei um pouco todo o resto do dia: mas nada senti exceto um pouco de inquietude; jantei muito bem, dormi ainda melhor e levantei-me pela manhã em perfeita saúde após ter engolido, na véspera, quinze ou vinte frutas deste terrível hipofaé que, em pequenas doses, envenena, segundo o que me disseram todos em Grenoble, no dia seguinte. Essa aventura pareceu-se tão divertida que nunca a lembro sem rir da singular discrição do senhor advogado Bovier. Todas as minhas caminhadas botânicas, as diversas impressões da localização dos objetos que me impressionaram, as ideias que me provocaram, os incidentes que a

elas se ligaram, tudo isso deixou-me impressões que se renovam pela vista das plantas herborizadas nesses mesmos locais. Nunca mais verei essas belas paisagens, essas florestas, esses lagos, esses bosquezinhos, esses rochedos, essas montanhas cuja vista sempre tocou meu coração: mas agora que não mais posso andar por essas felizes regiões, abro meu herbário e logo ele me transporta para lá. Os fragmentos das plantas que colhi bastam para me lembrar todo esse magnífico espetáculo. Este herbário é para mim um jornal de herborizações que me faz recomeçar com um novo encanto e produz o efeito de um instrumento de ótica que as pintasse novamente a meus olhos. É a cadeia das ideias acessórias que me liga à botânica. Ela reúne e lembra à minha imaginação todas as ideias que mais a lisonjeiam. Os prados, as águas, os bosques, a solidão, a paz, sobretudo, e o repouso que se encontram entre tudo isso são continuamente retraçados por ela à minha memória. Ela me faz esquecer as perseguições dos homens, seu ódio, seu desprezo, seus ultrajes e todos os males com que pagaram minha terna e sincera afeição por eles. Transporta-me para as calmas habitações entre pessoas simples e boas como aquelas com quem vivi outrora. Lembra-me tanto minha infância quanto meus inocentes prazeres, ela mos faz saborear novamente e me torna feliz ainda muitas vezes em meio à mais triste sorte que já tenha sofrido um mortal. 1

Introdução do editor Murray ao livro Systema vegetabilium de Linné (1777). Atividade livre, no sentido latino de otium. 3 A natureza. 4 Teofrasto, escritor e filósofo grego (372-287), escreveu Pesquisas sobre as plantas (nove livros) e Princípios das plantas (seis livros). 5 Dioscórides, médico nascido na Cilícia no 1º século d.C. Seus escritos foram editados a partir do século XV. Entre outras obras escreveu De universa medicina. 6 Ajudante de cirurgião. Termo pejorativo. 7 A epilepsia. 8 Montanha do Jura, cadeia de montanhas entre a França e a Suíça. 9 Justicier, membro do tribunal de Neuchâtel. 10 Espécie de coruja. 11 Rousseau está herborizando no Jura, mas acostumado aos Alpes suíços, é neles que pensa realmente. 12 Pastor de Môtier – Travers. 13 Em Paris. 14 Perto do lago de Bienne. 2

15

Guarda que, nas cerimônias oficiais, se postava ao lado do rei.

OITAVA CAMINHADA Fevereiro de 1778

Meditando sobre as disposições de minha alma em todas as situações de minha vida, sinto-me profundamente impressionado ao ver tão pequena proporção entre as diversas formas que tomou meu destino e os sentimentos habituais de bem-estar ou mal-estar com que elas me afetaram. Os diversos intervalos de meus curtos e felizes momentos não me deixaram quase nenhuma lembrança agradável da forma íntima e permanente com a qual me afetaram e, ao contrário, em todas as infelicidades de minha vida, sentia-me constantemente cheio de sentimentos ternos, tocantes, deliciosos, que, derramando um bálsamo salutar sobre as feridas de meu coração aflito, pareciam converter sua dor em voluptuosidade e cuja amável lembrança volta sozinha, liberta da dos males que ao mesmo tempo experimentava. Parece-me que apreciei mais a doçura da existência, que realmente vivi mais, quando meus sentimentos, comprimidos, por assim dizer, ao redor de meu coração, pelo meu destino, não partiam para se evaporarem sobre todos os objetos estimados pelos homens, que em si mesmos o merecem tão pouco e que são a única ocupação das pessoas que julgamos felizes. Quando tudo estava bem ao meu redor, quando me sentia contente com tudo o que me rodeava e com o ambiente no qual tinha de viver, preenchia-o com meu afeto. Minha alma expansiva se estendia sobre outros objetos e, continuamente atraído para fora de mim mesmo por gostos de mil espécies, por apegos amáveis que continuamente ocupavam meu coração, num certo sentido, esquecia a mim mesmo, entregava-me inteiramente ao que me era estranho e experimentava, na contínua agitação de meu coração, toda a transformação das coisas humanas. Essa vida tempestuosa não me deixava nem paz interior nem repouso exterior. Aparentemente feliz, não tinha nenhum sentimento que pudesse resistir à prova da reflexão e no qual pudesse comprazer-me. Nunca me sentia perfeitamente contente nem com outrem nem comigo mesmo. O tumulto da sociedade me atordoava, a solidão me entediava, tinha a contínua necessidade de mudar de lugar e não me sentia bem em nenhum.

Todavia, era festejado, benquisto, bem recebido, tratado com amabilidade por toda a parte. Não possuía nenhum inimigo, nem um antagonista, nem um invejoso. Como não procuravam senão obsequiar-me, tinha frequentemente o prazer de obsequiar eu mesmo muitas pessoas e, sem bens, sem emprego, sem protetores,1 sem grandes talentos bem desenvolvidos, nem bem conhecidos, gozava das vantagens ligadas a tudo isso e não via ninguém cujo destino me parecesse preferível ao meu. Que me faltava, então, para ser feliz? Ignoro-o; mas sei que não o era. Que me falta hoje para ser o mais infortunado dos mortais? Nada do que os homens puderam se esforçar para fazer. Pois bem, neste estado deplorável ainda não trocaria meu ser e meu destino pelo mais afortunado entre eles; e prefiro ainda ser eu mesmo em toda a minha infelicidade a ser algumas dessas pessoas em toda a sua prosperidade. Reduzido unicamente a mim, alimento-me, é verdade, de minha própria substância, mas ela não se esgota e eu me basto a mim mesmo ainda que rumine, por assim dizer, sem assunto e ainda que minha imaginação esgotada e minhas ideias extintas não forneçam mais alimento a meu coração. Minha alma perturbada, obstruída por meus órgãos, se abate dia a dia e, sob o peso destas fortes massas, não tem mais suficiente vigor para lançar-se, como outrora, fora de seu velho envoltório. É a este retorno a nós mesmos que nos força a adversidade e é talvez isso que a torna mais insuportável à maioria dos homens. Quanto a mim, que só encontro erros para me reprovar, acuso minha fraqueza e me consolo; pois jamais um mal premeditado se aproximou de meu coração. Contudo, a menos que seja estúpido, como poderei contemplar por um momento minha situação sem a ver como ma tornaram horrível e sem perecer de dor e de desespero? Longe disso, eu, o mais sensível dos seres, contemplo-a e não me emociono ao fazê-la e, sem lutas, sem esforços sobre mim mesmo, vejo-me quase com indiferença, num estado em que nenhum outro homem talvez suportasse a vista sem medo. Como cheguei a este ponto? Pois bem longe estava dessa calma disposição quando da primeira suspeita do complô que me enlaçava havia muito, sem que eu o tivesse absolutamente percebido. Esta nova descoberta me transtornou. A infâmia e a traição me surpreenderam inesperadamente. Que alma honesta está preparada para tais espécies de sofrimentos, seria preciso merecê-las para os prever. Caí em todas as

armadilhas que abriram sob meus passos, a indignação, o furor, o delírio apoderaramse de mim, desorientei-me, minha cabeça se transtornou e, nas trevas horríveis em que não cessaram de me manter mergulhado, não percebi mais nem clarão para me orientar, nem apoio, nem proteção em que pudesse me manter firme e resistir ao desespero que me arrastava. Como viver feliz e tranquilo neste estado horrível? Contudo, ainda me encontro nele e mais entranhado do que nunca, nele encontrei a calma e a paz, vivo feliz e calmo, rio dos incríveis tormentos que em vão infringem a si mesmos e incessantemente meus perseguidores, enquanto permaneço em paz, ocupado com flores, estames e puerilidades, sem nem mesmo pensar neles. Como se fez tal passagem? Naturalmente, insensivelmente e sem dificuldades. A primeira surpresa foi medonha. Eu, que me sentia digno de amor e de estima; eu, que me julgava honrado, querido, como o merecia, vi-me, de repente, transformado num monstro horrível como nunca existiu outro igual. Vejo toda uma geração precipitar-se inteiramente nessa estranha opinião, sem explicação, sem dúvida, sem vergonha e sem que eu possa, pelo menos, chegar algum dia a saber a causa dessa estranha transformação. Debati-me com violência e apenas consegui enlaçar-me ainda mais. Quis forçar meus perseguidores a uma explicação, não quiseram dá-la. Após ter-me, por muito tempo, atormentado sem sucesso, foi preciso enfim retomar o fôlego. Contudo, continuava a esperar, dizia a mim mesmo, uma cegueira tão estúpida, uma tão absurda prevenção não poderiam apoderar-se de todo o gênero humano. Há homens sensatos que não partilham deste delírio, há almas justas que detestam a fraude e os traidores. Procuremos, encontrarei, talvez, enfim, um homem; se o encontro, sentir-se-ão confundidos. Procurei em vão, não o encontrei. A conspiração é universal, sem exceção, irreversível e tenho certeza de acabar meus dias nesta horrível proscrição sem nunca penetrar-lhe o mistério. Foi neste estado deplorável que, após longas angústias, em lugar do desespero que parecia dever, enfim, ser meu quinhão, encontrei novamente a serenidade, a tranquilidade, a paz, a felicidade mesmo, visto que, cada dia de minha vida me lembra com prazer o da véspera e visto que não desejo outro igual para o dia seguinte. De onde vem esta diferença? De uma única coisa. É que aprendi a suportar o jugo do destino sem murmurar. É que me esforçava por me interessar ainda por mil coisas

e, tendo-me escapado sucessivamente todos esses pontos de apoio, reduzido apenas à minha pessoa, retomei, enfim, minha posição. Pressionado por todos os lados, permaneço em meu equilíbrio, porque, não me ligando mais a nada, apoio-me somente em mim mesmo. Quando me enlevava com tanto ardor contra a opinião, sofria ainda seu jugo, sem o perceber. Queremos ser estimados pelas pessoas que estimamos e enquanto pude apreciar favoravelmente os homens, ou pelo menos alguns homens, seus julgamentos sobre mim não me podiam ser indiferentes. Via que muitas vezes os julgamentos do público são justos, mas não via que esta própria equidade era o efeito do acaso, que as regras sobre as quais fundamentam suas opiniões são extraídas apenas de suas paixões ou de seus preconceitos, que provêm delas e que, mesmo quando julgam corretamente, muitas vezes ainda esses julgamentos corretos nascem de um mau princípio, como quando fingem honrar em alguma coisa o mérito de um homem, não por espírito de justiça, mas para dar-se ares de imparcialidade, caluniando à vontade o mesmo homem em outros pontos. Mas, quando após longas e vãs procuras, vi-os a todos ainda, sem exceção, no mais iníquo e absurdo complô que um espírito infernal pôde inventar. Quando vi que, em relação a mim, a razão fora banida de todas as cabeças e a equidade de todos os corações; quando vi uma geração frenética entregar-se inteiramente ao cego furor de seus guias contra um infortunado que nunca fez, nunca quis, nunca devolveu o mal a ninguém; quando, após ter em vão procurado um homem durante dez anos, foi preciso apagar, enfim, minha lanterna e exclamar: ele não mais existe. Então, comecei a me ver sozinho sobre a Terra e compreendi que meus contemporâneos não eram, em relação a mim, senão seres mecânicos que agiam apenas por impulso e cuja ação eu somente podia calcular pelas leis do movimento. Fosse qual fosse a intenção, a paixão que eu tivesse podido supor em suas almas, elas nunca teriam explicado sua conduta em relação a mim, de uma forma compreensível. Foi assim que suas disposições interiores cessaram de significar alguma coisa para mim. Neles não vi mais do que massas que se movimentavam de diferentes maneiras, desprovidas, em relação a mim, de qualquer moralidade. Em todos os males que nos acontecem, olhamos mais a intenção que o efeito. Uma telha que cai de um telhado pode nos ferir mais, mas não nos aflige tanto quanto uma

pedra lançada propositalmente por uma mão malévola. O golpe erra o alvo algumas vezes mas a intenção nunca o erra. A dor física é a que menos se sente nos ataques da sorte e quando os infortunados não sabem a quem culpar por suas infelicidades, culpam o destino, que personificam e ao qual atribuem olhos e uma inteligência para atormentá-los propositalmente. É assim que um jogador exasperado por suas perdas se enfurece sem saber contra quem. Imagina um destino que se encarniça deliberadamente contra ele, para atormentá-lo e encontrando um alimento para sua cólera, excita-se e inflama-se contra o inimigo que criou para si mesmo. O homem sábio, que em todas as suas infelicidades não vê senão golpes da fatalidade cega, não tem estas agitações insensatas, grita na sua dor, mas sem veemência, sem cólera, do mal que o atinge sente apenas o ataque material e os golpes que recebe em vão ferem sua pessoa, nenhum chega a seu coração. É muito ter chegado até este ponto mas não é tudo se nele nos detivermos. É bom ter cortado o mal mas isto significa ter deixado a raiz. Pois essa raiz não se encontra nos seres que nos são estranhos, ela está em nós mesmos e é aí que é preciso trabalhar para arrancá-la completamente. Eis o que senti perfeitamente no momento em que comecei a voltar a mim. Como minha razão não me mostrava senão absurdos em todas as explicações que procurava dar para o que me acontece, compreendi que, como as causas, os instrumentos, os meios de tudo isso me eram desconhecidos e inexplicáveis, deviam ser inexistentes para mim. Que eu devia olhar todos os detalhes de meu destino como outros tantos atos de uma pura fatalidade em que não devia supor nem direção, nem intenção, nem causa moral, que devia submeter-me sem raciocinar e sem resistir porque seria inútil, porque, como a única coisa que tinha a fazer ainda na Terra era me considerar como um ser puramente passivo, não devia usar, para resistir inutilmente ao meu destino, a força que me restava para o suportar. Eis o que dizia a mim mesmo; minha razão, meu coração concordavam e, todavia, sentia que este coração ainda protestava. De onde vinha este protesto, procurei-o, encontrei-o, vinha do amor próprio que, após ter-se indignado contra os homens, levantava-se ainda contra a razão. Tal descoberta não era tão fácil de fazer quanto se poderia pensar, pois um inocente perseguido considera, por muito tempo, como um puro amor da justiça o orgulho de sua insignificante pessoa. Mas também, uma vez bem conhecida a

verdadeira fonte, é ela fácil de esgotar ou pelo menos de desviar. A estima de si mesmo é o maior móbil das almas altivas: o amor próprio, fértil em ilusões, se disfarça e se faz passar por esta estima, mas quando a fraude, enfim, é descoberta e quando o amor próprio não mais pode se esconder, consequentemente, não deve mais ser temido e, ainda que o abafemos com dificuldade, pelo menos dominamo-lo com facilidade. Nunca fui muito inclinado ao amor próprio, mas essa paixão factícia se exaltara em mim na sociedade e especialmente quando fui autor; tinha-o talvez ainda menos do que outro qualquer, mas tinha-o prodigiosamente. As terríveis lições que recebi em breve o confinaram em seus primitivos limites; começou por revoltar-se contra a injustiça, mas acabou por desdenhá-la. Debruçando-se sobre minha alma e cortando as relações exteriores que o tornam exigente, renunciando às comparações e às preferências, contentou-se com que eu fosse bom para comigo mesmo; então, tendo-se novamente tornado amor de mim mesmo, voltou à ordem natural das coisas e me libertou do jugo da opinião. A partir de então, encontrei novamente a paz da alma e quase a beatitude. Em qualquer situação que nos encontramos é somente por sua causa que somos constantemente infelizes. Quando se cala e quando a razão fala, ela nos consola, enfim, de todos os males que não dependeu de nós evitar. Ela os aniquila mesmo, na medida em que não agem imediatamente em nós, pois estamos certos então de evitar seus mais pungentes ataques, ao cessar de nos preocuparmos com eles. Nada são para aquele que não pensa neles. As ofensas, as vinganças, os danos, os ultrajes, as injustiças nada são para aquele que não vê nos males que suporta senão o próprio mal e não a intenção, para aquele cujo lugar não depende, em sua própria estima, daquela que os outros querem lhe conceder. Não importa a maneira pela qual os homens queiram me ver, não poderiam transformar meu ser e, apesar de seu poder e apesar de todas as suas surdas intrigas, continuarei, façam o que fizerem, a ser, apesar deles, o que sou. É verdade que suas disposições em relação a mim influem sobre minha situação real, a barreira que puseram entre mim e eles me retira qualquer recurso de subsistência e de assistência na minha velhice e nas minhas necessidades. Ela me torna mesmo o dinheiro inútil; já que não pode me obter os serviços que me são necessários, não há mais comunicação nem ajuda recíproca nem trocas entre mim e

eles. Sozinho entre eles, tenho somente a mim como recurso e este recurso é bem fraco na minha idade e no estado em que me encontro. Esses males são grandes, mas perderam, para mim, toda sua força desde que soube suportá-los sem me irritar. Os pontos em que a verdadeira necessidade se faz sentir são sempre raros. A previdência e a imaginação os multiplicam e é por essa continuidade de sentimentos que nos inquietamos e que nos tornamos infelizes. Quanto a mim, nada significa que vou sofrer amanhã, basta-me não sofrer hoje para estar tranquilo. Não me aflijo com o mal que prevejo, mas somente com aquele que sinto e isso o reduz a muito pouca coisa. Sozinho, doente e abandonado em minha cama, posso morrer de indigência, de frio e de fome sem que ninguém se preocupe. Mas, que importa, se eu mesmo não me preocupo e se me aflijo tão pouco quanto os outros com o meu destino, seja ele qual for? Sobretudo, não é nada, na minha idade, ter aprendido a ver a vida e a morte, a doença e a saúde, a riqueza e a miséria, a glória e a difamação com a mesma indiferença. Todos os outros velhos se inquietam com tudo; eu não me inquieto com nada, não importa o que possa acontecer, tudo me é indiferente, e essa indiferença não é a obra da minha sabedoria, ela é a de meus inimigos. Aprendamos a receber, portanto, essas vantagens como compensação aos males que me fazem. Tornando-me insensível à adversidade, fizeram-me um bem maior do que se me tivessem poupado seus ataques. Não a sofrendo, poderia sempre temê-la, enquanto, dominando-a, não a temo mais. Essa disposição me abandona, em meio aos reveses de minha vida, à indolência de meu natural, quase tão completamente quanto se vivesse na mais completa prosperidade. Excetuando os curtos momentos em que a presença dos objetos me traz à memória as mais dolorosas inquietudes. Estando, todo o resto do tempo, entregue, por minhas inclinações, às afeições que me atraem, meu coração se alimenta ainda dos sentimentos para os quais nascera e deles gozo com os seres imaginários que os produzem e os partilham como se tais seres existissem realmente. Existem para mim, que os criei, e não temo nem que me traiam nem que me abandonem. Durarão tanto quanto minhas próprias infelicidades e bastarão para mais fazer esquecer. Tudo me traz de volta à vida feliz e doce para a qual nascera. Passo três quartas partes de minha vida ocupado com objetos instrutivos e mesmo agradáveis, aos quais entrego com prazer meu espírito e meus sentidos, com os filhos de minha fantasia, que

criei como os desejava meu coração e do qual nutrem os sentimentos, ou somente comigo, contente comigo mesmo e já imerso na felicidade que, sinto, me é devida. Em tudo isso, o amor de mim mesmo faz tudo, o amor próprio nada tem a fazer. O mesmo não acontece nos melancólicos momentos que passo ainda entre os homens, joguete de suas traidoras demonstrações de afeto, de seus elogios empolados e derrisórios, de sua melosa malignidade. Não importa a maneira pela qual eu possa ter procedido, o amor próprio age sempre. O ódio e a animosidade que vejo em seus corações através desse grosseiro envoltório rasgam de dor o meu, e a ideia de ser assim tolamente logrado acrescenta ainda a esta dor um despeito profundamente pueril, fruto de um tolo amor próprio, do qual sinto todo o disparate, mas que não posso dominar. Os esforços que fiz para me acostumar a esses olhares insultantes e zombeteiros foram incríveis. Cem vezes passei pelos passeios públicos e pelos lugares mais frequentados com o único desígnio de me habituar a essas cruéis patranhas; não somente não o consegui, mas mesmo em nada progredi e todos os meus penosos mas vãos esforços me deixaram tão propenso à perturbação, à aflição, à indignação, quanto o era antes. Dominado irremediavelmente pelos meus sentidos, nunca soube resistir às suas impressões e enquanto o objeto age sobre eles, meu coração não cessa de ser afligido; mas essas emoções passageiras duram tanto quanto a sensação que as causa. A presença do homem rancoroso me aflige violentamente mas logo que ele desaparece, a impressão cessa; no momento em que não o vejo mais, não penso mais nele. Nada significa saber que vai ocupar-se de mim, não poderia ocupar-me dele. O mal que não sinto atualmente não me aflige de forma alguma, o perseguidor que não vejo é inexistente para mim. Sinto a vantagem que essa disposição dá aos que dispõem de meu destino. Que disponham dele, portanto, à vontade. Prefiro mesmo que me atormentem, sem resistência, a ser forçado a pensar neles para me defender de seus golpes. Essa ação de meus sentidos sobre meu coração é o único tormento de minha vida. Nos dias em que não vejo ninguém não penso mais no meu destino, não o sinto mais, não sofro mais, sou completamente feliz e contente, sem obstáculo. Mas raramente escapo a algum ataque sensível e, quando menos penso nele, um olhar sinistro que percebo, uma palavra venenosa que ouço, um malévolo que encontro bastam para me transtornar. Tudo o que posso, em semelhante caso, é esquecer bem depressa e fugir.

A perturbação de meu coração desaparece com o objeto que o causou e volto à calma logo que estou só. Ou, se alguma coisa me inquieta, é o medo de encontrar em meu caminho algum novo motivo de dor. É este meu único pesar; mas basta para alterar minha felicidade. Moro no centro de Paris. Saindo de casa, desejo ardentemente o campo e a solidão, mas é preciso ir procurá-los tão longe que antes de poder respirar à vontade, encontro em meu caminho mil objetos que me comprimem o coração e a metade do dia se passa em angústias, até ter atingido o refúgio que vou procurar. Sou feliz, pelo menos, quando me deixam terminar meu caminho. O momento em que escapo ao cortejo dos maus é delicioso e logo que me vejo sob as árvores, em meio à verdura, creio estar no paraíso terrestre e saboreio um prazer íntimo tão vivo quanto se fosse o mais feliz dos mortais. Lembro-me perfeitamente de que, durante meus curtos momentos de felicidade, essas mesmas caminhadas solitárias que hoje me são tão deliciosas, me eram insípidas e enfadonhas. Quando me encontrava em casa de alguém, no campo, a necessidade de fazer exercício e de respirar ar puro me fazia muitas vezes sair sozinho e, fugindo como um ladrão, ia passear no parque ou no campo; mas, longe de neles encontrar a calma feliz que saboreio hoje, levava a agitação das vãs ideias que me haviam ocupado no salão; a lembrança das pessoas que nele deixara me seguia na solidão, os vapores2 do amor próprio e o tumulto da sociedade empanavam, a meus olhos, o frescor dos bosquezinhos e perturbavam a paz do retiro. Em vão fugia para o fundo dos bosques, uma multidão importuna me seguia por toda a parte e me encobria toda a natureza. Foi somente após ter-me desprendido das paixões sociais e de seu melancólico cortejo que a encontrei novamente com todos os seus encantos. Convencido da necessidade de conter essas primeiras emoções involuntárias, cessei todos os meus esforços para fazê-lo. A cada ataque, deixo meu sangue inflamar-se, a cólera e a indignação apoderarem-se de meus sentidos, cedo à natureza esta primeira explosão que todas as minhas forças não poderiam deter nem interromper. Procuro somente deter suas consequências antes que tenha produzido algum efeito. Os olhos brilhantes, o rosto afogueado, o tremor dos membros, as sufocantes palpitações, tudo isso é puramente físico e o raciocínio nada pode fazer; mas após ter deixado a natureza produzir sua primeira explosão, pode-se voltar a ser senhor de si mesmo, retomando pouco a pouco seu domínio; foi o que procurei fazer,

por muito tempo, sem sucesso, mas finalmente com maior facilidade. E, cessando de usar minha força numa vã resistência, espero o momento de vencer, deixando agir minha razão, pois ela somente me fala quando pode fazer-se ouvir. Mas que digo, ai de mim! Minha razão? Cairia ainda num grande erro se lhe desse a honra deste triunfo, pois nele quase não toma parte. Tudo vem igualmente de um temperamento versátil que um vento impetuoso agita, mas que volta à calma logo que o vento não sopra mais. É o meu natural ardente que me agita, é meu natural indolente que me acalma. Cedo a todos os impulsos presentes, qualquer choque me confere uma emoção viva e curta, logo que não há mais choque a emoção cessa, nada que tenha sido comunicado pode prolongar-se em mim. Todos os acontecimentos da sorte, todas as intrigas dos homens têm pouco poder sobre um homem assim constituído. Para me afligir com penas duradouras, seria necessário que a impressão se renovasse a cada instante. Pois os intervalos, mesmo curtos, bastam para me devolver a mim mesmo. Sou o que os homens desejam, enquanto puderem agir sobre meus sentidos; mas, ao primeiro momento de descanso, volto a ser o que a natureza quis; este é, apesar de tudo o que possam fazer, meu mais constante estado e aquele pelo qual, a despeito do destino, saboreio uma felicidade para a qual me sinto constituído. Descrevi este estado num de meus devaneios. Convém-me tão bem que somente desejo que dure e apenas temo vê-lo perturbado. O mal que me fizeram os homens não me toca de forma alguma; somente o medo daqueles que poderiam fazer-me ainda é capaz de me perturbar; mas certo de que não possuem mais um novo poder com o qual possam me afligir por um sentimento permanente, rio de todas as suas tramas e gozo de mim mesmo a despeito deles. 1 2

O termo tem aqui sentido pejorativo. Termo da medicina da época: perturbações devidas à exalação de vários humores.

NONA CAMINHADA Março de 1778

A felicidade é um estado permanente que parece não ter sido feito, na Terra, para o homem. Tudo aqui vive num fluxo contínuo que não permite a nada manter uma forma constante. Tudo se transforma ao nosso redor. Nós mesmos mudamos e ninguém pode estar certo de amar amanhã o que ama hoje. Assim, todos os nossos projetos de beatitude para esta vida são quimeras. Aproveitemos a alegria do espírito quando a temos; evitemos afastá-la por nossa culpa, mas não façamos projetos para prendê-la, pois esses projetos são puras loucuras. Vi poucos homens felizes, talvez nenhum; mas vi muitas vezes corações contentes e, de todos os objetos que me impressionaram, é aquele que mais me contentou. Creio que é uma consequência natural do poder das sensações sobre meus sentimentos internos. A felicidade não possui marca exterior; para a conhecer seria preciso ler o coração do homem feliz; mas a alegria se lê nos olhos, no porte, no acento, no andar e parece comunicar-se àquele que a percebe. Pode haver um prazer mais doce do que ver um povo inteiro entregar-se à alegria, num dia de festa, e todos os corações desabrocharem aos raios supremos do prazer que passa rápida e intensamente através das nuvens da vida?1 Faz três dias que o senhor P. veio, com uma solicitude extraordinária, mostrar-me o elogio da senhora Geoffrin, escrita pelo senhor d’Alembert. A leitura foi precedida por longas e grandes gargalhadas, causadas pelo ridículo neologismo desse trecho e pelos jocosos jogos de palavras de que a dizia atulhada. Começou a ler; rindo sempre, ouvi-o com uma seriedade que o acalmou e, continuando a ver que eu não o imitava, cessou, por fim, de rir. O artigo mais longo e mais rebuscado desse trecho versava sobre o prazer que tinha a senhora Geoffrin em ver as crianças e em fazê-las conversar. O autor extraía, com razão, dessa disposição, uma prova de um natural bondoso. Mas não se detinha aí e acusava positivamente de má índole e de maldade todos aqueles que não tinham o mesmo gosto, ao ponto de dizer que, se interrogássemos sobre isso os que são levados à forca e ao suplício da roda, todos reconheceriam não ter amado as crianças. Essas afirmações faziam um efeito singular

no lugar em que se encontravam. Supondo como verdadeiro tudo isso, seria essa a ocasião de dizê-lo e seria preciso sujar o elogio de uma mulher digna de estima com imagens de suplício e de malfeitores? Compreendi facilmente o motivo desta desonesta imputação e, quando o senhor P. acabou de ler, realçando o que me parecera bom no elogio, acrescentei que o autor, ao escrevê-lo, tinha no coração menos amizade do que ódio. Como no dia seguinte o tempo fosse bastante bom, embora frio, fui fazer um passeio até a Escola Militar, esperando encontrar musgos floridos. Caminhando, pensava na visita da véspera e no escrito do senhor d’Alembert, pensava que esse trecho, acrescentado e episódico, não fora colocado sem um desígnio e o artifício de me trazer essa brochura, a mim, a quem escondem tudo, já me fazia compreender muito bem qual era sua finalidade. Pusera meus filhos na roda de expostos, isso era suficiente para me terem transformado em pai desnaturado e, daí, ampliando e afagando essa ideia, pouco a pouco, extraiu-se a consequência evidente de que eu odiava as crianças; seguindo com o pensamento a sequência dessas progressões, admirava com que habilidade a astúcia humana sabe transformar as coisas de branco em preto. Pois não creio que alguma vez um homem tenha gostado mais do que eu de ver pequerruchos folgar e brincar juntos e, muitas vezes, na rua e nas caminhadas, detenho-me para olhar suas travessuras e suas brincadeirinhas, com um interesse que não vejo em mais ninguém. No próprio dia em que veio o senhor P., tivera, uma hora antes de sua visita, a dos dois pequenos Du Soussoi, os filhos menores de meu hóspede, o mais velho dos quais poderá ter sete anos. Tinham vindo me beijar de tão bom grado e eu lhes devolvera com tanto carinho sua ternura que, apesar da diferença de idade, pareceram gostar sinceramente da minha companhia e, quanto a mim, sentia-me encantado, feliz, ao ver que meu velho rosto não os repelira. O mais moço, mesmo, parecia voltar a mim tão espontaneamente que, mais criança do que eles, eu já me sentia afeiçoado a ele por predileção e o vi partir com tanto pesar quanto se fosse meu filho. Compreendo que a censura por ter colocado meus filhos na roda de expostos tenha facilmente degenerado, forçando-se um pouco os fatos, na de ser um pai desnaturado e de odiar as crianças. Contudo, é certo que foi o medo de um destino para eles mil vezes pior e quase inevitável, na falta de qualquer outro caminho, que mais me

determinou nessa diligência. Se eu fosse mais indiferente ao que se tornariam e sem as possibilidades de os criar eu mesmo, teria sido necessário, na minha situação, permitir que fossem criados por sua mãe, que os teria mimado, e por sua família, que deles teria feito monstros. Tremo ainda ao pensar nisso. O que fez Mahomet com Séide2 nada é ao lado do que teriam feito com eles, por minha causa, e as armadilhas que me armaram a esse respeito, mais tarde, me confirmam suficientemente que tal projeto fora organizado. Na verdade, estava bem longe de prever então essas tramas atrozes: mas sabia que a educação menos perigosa para eles seria a do asilo de enjeitados e lá os coloquei. Fá-lo-ia ainda com bem menores dúvidas também, se tivesse de fazê-lo, e sei bem que nenhum pai é mais terno do que eu teria sido para com eles, contanto que o hábito tivesse ajudado um pouco a natureza. Se fiz algum progresso no conhecimento do coração humano, foi o prazer que tinha em ver e observar as crianças que me proporcionou este conhecimento. Esse mesmo prazer foi, em minha juventude, uma espécie de obstáculo, pois brincava com as crianças com tanta alegria e de tão bom grado que pouco pensava em estudá-las. Mas quando, ao envelhecer, vi que meu rosto decrépito as inquietava, abstive-me de as importunar e preferi privar-me de um prazer a perturbar sua alegria, contente então por me satisfazer olhando seus jogos e todas as suas pequenas artimanhas; encontrei a compensação de meu sacrifício nas luzes que essas observações me fizeram conquistar sobre as primeiras e verdadeiras emoções da natureza que todos os nossos sábios absolutamente não conhecem. Relatei, em meus escritos, a prova de que me ocupara deste estudo com demasiado cuidado para não o ter feito com prazer e seria certamente a coisa mais incrível do mundo que a Héloïse e o Emile fossem a obra de um homem que não amasse as crianças. Nunca tive nem presença de espírito nem facilidade de palavra; mas desde que começaram as minhas infelicidades, minha língua e minha cabeça cada vez se perturbaram mais. A ideia e a palavra própria me escapam igualmente e nada exige um melhor discernimento e uma escolha de expressões mais justas do que as palavras que se dizem às crianças. O que aumenta ainda em mim esse embaraço é a atenção dos ouvintes, as interpretações e o peso que dão a tudo o que parte de um homem que, por ter escrito expressamente para as crianças, é posto no dever de falar-lhes apenas por oráculos. Esse extremo constrangimento e minha inaptidão me perturbam, me

desconcertam e estaria muito mais à vontade diante de um monarca da Ásia do que diante de um pequerrucho que fosse preciso fazer tagarelar. Um outro inconveniente me mantém agora mais afastado delas, e, desde as minhas infelicidades, vejo-as sempre com o mesmo prazer; mas não tenho mais com elas a mesma familiaridade. As crianças não gostam da velhice, a vista da natureza abatida é hedionda a seus olhos, sua repugnância, que percebo, me aflige; e prefiro abster-me de as acariciar a provocar-lhes constrangimento ou aversão. Esse motivo, que somente age sobre os corações verdadeiramente amorosos, é inexistente para todos os nossos sábios e sábias. A senhora Geoffrin se preocupava muito pouco se as crianças tinham ou não prazer em sua companhia contanto que ela o tivesse na companhia delas. Mas para mim este prazer é menos do que nada, ele é negativo quando não é partilhado e não me encontro mais na situação nem na idade em que via o coraçãozinho de uma criança desabrochar com o meu. Se isso pudesse acontecer-me ainda, esse prazer, agora mais raro, seria mais vivo e o experimentei perfeitamente naquela manhã, pelo gosto que sentia em acariciar as crianças Du Soussoi, não somente porque a criada que as conduzia não me intimidava muito e porque sentia menor necessidade de me controlar diante dela, mas ainda porque o ar jovial com o qual me abordaram não as abandonou e porque não pareceram nem aborrecer-se nem entediar-se em minha companhia. Oh! Se eu tivesse ainda alguns momentos de puras carícias que viessem do coração, mesmo que fossem de uma criança ainda em jaquette,3 se eu pudesse ver ainda em alguns olhos a alegria e o contentamento por estarem comigo que via outrora com tanta frequência ou, pelo menos, causados por mim, de quantos males e penas não me compensariam essas curtas mas doces efusões do meu coração? Oh! Não seria obrigado a procurar entre os animais o olhar de benevolência que me é, agora, recusado entre os humanos. Posso julgá-lo com base em poucos exemplos mas sempre caros à minha recordação. Eis um que, em qualquer outro estado, teria quase esquecido e cuja impressão, gravada em mim, mostra bem toda a minha infelicidade. Há dois anos, tendo ido passear pelos lados da Nouvelle France4, fui ainda mais longe, depois, tomando à esquerda e querendo andar ao redor de Montmartre, atravessei a aldeia de Clignancourt. Caminhava distraído e divagando sem olhar ao redor, quando, de repente, senti-me agarrar pelos joelhos. Olho e vejo uma criança de cinco ou seis

anos que apertava meus joelhos com toda a força, olhando-me com um ar tão familiar e tão carinhoso que meu coração se emocionou e eu me dizia, é assim que teria sido tratado pelos meus. Tomei a criança em meus braços, beijei-a várias vezes numa espécie de arrebatamento e depois continuei meu caminho. Sentia, ao caminhar, que me faltava alguma coisa, uma necessidade que desabrochava me trazia de volta ao caminho percorrido. Censurava-me por ter deixado tão bruscamente essa criança, pensava ver, em seu ato sem causa aparente, uma espécie de inspiração que não devia ser desdenhado. Enfim, cedendo à tentação, volto pelo caminho percorrido, corro para a criança, beijo-a novamente e dou-lhe dinheiro para comprar pãezinhos de Nanterre, cujo vendedor passava por acaso, e comecei a fazê-la tagarelar. Perguntei-lhe onde estava seu pai; mostrou-me, estava pondo arcos em tonéis. Estava prestes a deixar a criança para ir falar-lhe, quando vi que fora antecipado por um homem de mau aspecto, que me pareceu ser um desses espiões que colocam sempre atrás de mim.5 Enquanto esse homem lhe falava ao ouvido, vi os olhos do toneleiro fixarem-se com atenção em mim, com um ar que nada tinha de amigável. Esse fato me apertou imediatamente o coração e afastei-me do pai e do filho ainda mais rapidamente do que o fizera ao refazer o caminho percorrido, mas numa agitação menos agradável que modificou todas as minhas disposições. Contudo, senti-as renascer, desde então, com bastante frequência; passei várias vezes por Clignancourt na esperança de rever essa criança mas não mais a revi nem a ela nem a seu pai, e desse encontro apenas me ficou uma recordação bastante viva, sempre um misto de doçura e de tristeza, como todas as emoções que penetram ainda algumas vezes até ao meu coração. Há compensação para tudo. Se meus prazeres são raros e curtos, saboreio-os também mais profundamente, quando vêm, do que se me fossem mais familiares; rumino-os, por assim dizer, por frequentes lembranças e, por mais raras que sejam, se fossem puras e sem mistura seria mais feliz talvez do que na minha prosperidade. Na extrema miséria, pouca coisa nos torna ricos. Um indigente que encontra um escudo fica mais impressionado do que um rico que encontrasse uma bolsa de ouro. Ririam se vissem em minha alma a impressão que nela fazem os menores prazeres dessa espécie que posso roubar à vigilância de meus perseguidores. Um desses prazeres apresentou-

se há quatro ou cinco anos, e nunca lembro o fato sem me sentir encantado por tê-lo tão bem aproveitado. Um domingo, fôramos, minha mulher e eu, almoçar na porta Maillot. Após o almoço, atravessamos o bosque de Boulogne até a Muette;6 lá, sentamos na relva, à sombra, esperando que o sol baixasse, para voltarmos em seguida, tranquilamente, por Passy. Umas vinte meninas, conduzidas por uma espécie de religiosa, vieram, algumas para se sentarem, outras para se divertirem, bastante perto de nós. Durante seus jogos, passou um vendedor de oublies,7 com seu tambor e seu mostrador, procurando clientes. Vi que as meninas cobiçavam as oublies e duas ou três entre elas, que evidentemente possuiam alguns liards,8 pediram permissão para jogar.9 Enquanto a governanta hesitava e argumentava, chamei o vendedor e lhe disse: – Fazei com que todas estas donzelas tirem à sorte, cada uma por sua vez e eu vos pagarei o total. Estas palavras produziram em todo o grupo uma alegria que teria mais do que pago minha bolsa, se a tivesse usado só para isso. Como vi que elas se apressavam um pouco confusamente, com a aprovação da governanta, mandei colocá-las todas de um lado e depois mandei-as passar para o outro lado, uma depois da outra, à medida que haviam sorteado. Embora nenhum bilhete tivesse saído em branco e embora tivesse havido, pelo menos, uma oublie para cada uma das que não teriam obtido nada, nenhuma poderia estar completamente descontente; a fim de tornar a festa ainda mais alegre, disse discretamente ao vendedor que empregasse sua habilidade usual em sentido contrário, fazendo cair tantos números premiados quantos pudesse, que os pagaria todos. Dessa maneira, houve perto de uma centena de oublies distribuídas, embora cada jovem apenas tivesse tirado à sorte uma única vez, pois neste ponto fui inexorável, não querendo nem favorecer abusos nem marcar preferências que produziriam descontentamentos. Minha mulher insinuou àquelas que tinham bilhetes premiados que avisassem suas companheiras, de forma que a partilha se tornou quase igual e a alegria mais geral. Pedi à religiosa que, por sua vez, tirasse à sorte, com grande receio que ela rejeitasse desdenhosamente meu oferecimento; aceitou-o gentilmente, tirou, como as pensionistas, e tomou com simplicidade o que lhe coube; fui-lhe infinitamente agradecido e vi nesse gesto uma espécie de polidez que me agradou muito e que vale mais, creio, do que a dos hipócritas. Durante toda essa operação, houve disputas que

foram trazidas diante de meu tribunal e essas meninas que vinham sucessivamente advogar sua causa me forneceram a ocasião de observar que, embora não houvesse nenhuma bonita, a gentileza de algumas fazia esquecer sua feiura. Separamo-nos, enfim, reciprocamente contentes; e essa tarde foi uma daquelas de minha vida cuja recordação me traz maior satisfação. Aliás, a festa não foi ruinosa, mas por trinta soldos que me custou, no máximo, houve mais de cem escudos de alegria. Tanto isso é verdade que o verdadeiro prazer não se mede pela despesa e que a alegria é mais amiga dos liards do que dos luízes.10 Voltei várias vezes ao mesmo local, à mesma hora, esperando encontrar ainda o pequeno grupo, mas isso nunca mais aconteceu. Este fato me lembra um outro divertimento mais ou menos da mesma espécie, cuja recordação vem de muito mais longe. Era no tempo infeliz em que, tendo-me introduzido entre os ricos e os literatos, era, às vezes, obrigado a partilhar de seus melancólicos prazeres. Encontrava-me na Chevrette,11 na época da festa12 do dono da casa; toda a sua família se reunira para celebrá-la e, para realizá-la, recorreu-se a todo o brilho dos prazeres ruidosos. Jogos, espetáculos, banquetes, fogos de artifício, nada foi economizado. Não havia tempo para tomar fôlego e todos se aturdiam em lugar de se divertir. Após o almoço, fomos tomar ar na alameda; havia uma espécie de festa campestre. Dançava-se, os senhores se dignaram dançar com as camponesas, mas as senhoras conservaram sua dignidade. Vendiam-se pães d’épices.13 Um jovem do grupo mundano lembrou-se de comprar alguns para lançá-los um por um em meio à multidão e divertiram-se tanto, vendo todos esses camponeses precipitarem-se, brigarem, derrubarem-se, para agarrá-los, que todo o mundo quis ter o mesmo prazer. Os pães d‘epices voavam de cá para lá, as moças e os rapazes corriam, se amontoavam e se estropiavam; isso parecia encantador a todo o mundo. Fiz como os outros por falsa vergonha, embora, no íntimo, não me divertisse tanto quanto eles. Mas, em breve, cansado de esvaziar minha bolsa para fazer com que as pessoas se esmagassem, abandonei os companheiros e fui passear sozinho na festa campestre. A variedade das situações me divertiu por muito tempo. Percebi, entre outros, cinco ou seis saboianos ao redor de uma menina que tinha ainda em sua giga uma dúzia de maçãs passadas, das quais teria desejado se livrar. Os saboianos, por seu lado, teriam desejado livrá-la, mas possuíam apenas, entre todos, dois ou três liards, o que não

bastava para acabar com as maçãs. Essa giga era para eles o jardim das Hespéridas14 e a menina era o dragão que o guardava. Essa comédia me divertiu por muito tempo; finalmente, completei a cena pagando as maçãs à menina e lhes fazendo distribuir aos meninos. Tive então um dos mais suaves espetáculos que possam deleitar um coração de homem, o de ver a alegria, unida à inocência da idade, espalhar-se ao redor de mim. Pois os próprios espectadores vendo-a, dela partilharam, e eu, que partilhava facilmente dessa alegria, tinha ainda a de sentir que era obra minha. Comparando essa diversão com aquelas que acabava de deixar, sentia, com satisfação, a diferença entre gostos sãos, prazeres naturais e os que nascem da opulência e que são apenas prazeres de zombaria e gostos pessoais engendrados pelo desprezo. Pois, que espécie de prazer se poderia ter ao ver rebanhos de homens humilhados pela miséria, se amontoarem, se sufocarem, se estropiarem brutalmente, para arrancar uns aos outros, avidamente, alguns pedaços de pão d’épice calcados aos pés e cobertos de lama? Quanto a mim, quando refleti profundamente sobre a espécie de prazer que sentia nessas ocasiões, percebi que consistia menos num sentimento de beneficência do que no prazer de ver rostos contentes. Este espetáculo tem para mim um encanto que, embora penetre até ao meu coração, parece vir unicamente da sensação. Se não vejo a satisfação que causo, tenho certeza de ter apenas a metade do prazer. É mesmo para mim um prazer desinteressado que não depende da parte que nele posso tomar. Pois, nas festas populares, o prazer de ver rostos alegres sempre me atraiu profundamente. Essa espera, contudo, foi muitas vezes frustrada, na França, pois esta nação, que se considera tão alegre, mostra pouca alegria em seus jogos. Frequentemente, ia outrora às tavernas para ver o povo dançar: mas suas danças eram tão enfadonhas, seu aspecto tão lastimoso, tão desajeitado, que saía de lá mais entristecido do que alegre. Mas em Genebra e na Suíça, onde o riso não se evapora continuamente em loucas maldades, tudo, nas festas, respira contentamento e alegria, a miséria não traz seu aspecto horrível, o fausto também não mostra sua insolência; lá, o bem-estar, a fraternidade, a concórdia dispõem os corações a desabrocharem e, muitas vezes, nos entusiasmos de uma alegria inocente, os desconhecidos se aproximam, se abraçam, e convidam-se mutuamente a gozar juntos dos prazeres do dia. Para gozar eu mesmo dessas amáveis festas, não preciso mais participar delas, basta-me vê-las; vendo-as, partilho delas; e,

entre tantos rostos alegres, estou certo de que não há um coração mais alegre do que o meu. Ainda que este seja apenas um prazer ligado à sensação, ele tem certamente uma causa moral e a prova é que este mesmo espetáculo, em lugar de me deleitar, de me agradar, pode me dilacerar de dor e de indignação, quando sei que esses sinais de prazer e de alegria, nos rostos dos maus, não são senão as marcas de que sua malignidade está satisfeita. A alegria inocente é a única cujos sinais deleitam meu coração. Os da cruel e zombeteira alegria o ferem e afligem, ainda que ela não me diga respeito. Esses sinais, sem dúvida, não poderiam ser exatamente os mesmos partindo de princípios tão diferentes: mas enfim, são igualmente sinais de alegria e suas diferenças sensíveis, seguramente, não são proporcionais às das emoções que excitam em mim. As emoções de dor e de pesar são para mim ainda mais sensíveis, ao ponto de me ser impossível suportá-las sem estar eu mesmo agitado por emoções talvez ainda mais vivas do que as que representam. A imaginação, reforçando a sensação, me identifica com o ser sofredor e me dá, muitas vezes, maiores angústias do que as que ele mesmo sente. Um rosto descontente é ainda um espetáculo que me é impossível suportar, sobretudo se tenho razões para pensar que este descontentamento me diz respeito. Não poderia dizer quanto o ar rabugento e desagradável dos lacaios que servem de mau humor me arrancou escudos nas casas em que tinha outrora a tolice de me deixar levar e onde os criados sempre me fizeram pagar bem caro a hospitalidade dos senhores. Sempre por demais atingido por tudo o que é sensível e, sobretudo, por tudo o que traz a marca do prazer ou do pesar, de benevolência ou de aversão, deixo-me levar por essas impressões exteriores sem poder, frequentemente, furtar-me senão pela fuga. Um sinal, um gesto, um piscar de olhos de um desconhecido bastam para perturbar meus prazeres ou acalmar minhas penas; não me pertenço senão quando estou só, caso contrário, sou o joguete de todos aqueles que me rodeiam. Vivia, outrora, com prazer, na sociedade, quando via em todos os olhos somente benevolência, ou, no mínimo, indiferença naqueles para quem era desconhecido. Mas hoje, quando não há menos interesse em mostrar meu rosto ao povo do que em mascarar-lhe meu natural, não posso pôr os pés na rua sem ser rodeado de coisas aflitivas; apresso-me, a grandes passos, em alcançar o campo; logo que vejo a verdura,

começo a respirar. Como espantar-se se amo a natureza? Somente vejo animosidade nos rostos dos homens e a natureza me é sempre risonha. Contudo, é preciso confessá-lo, sinto ainda prazer em viver entre os homens enquanto meu rosto lhes é desconhecido. Mas é um prazer que raramente me concedem. Ainda há alguns anos, gostava de atravessar as aldeias e ver, pela manhã, os trabalhadores consertar suas malhas ou as mulheres na porta com seus filhos. Esse espetáculo tinha alguma coisa que tocava meu coração. Detinha-me, algumas vezes, sem precaução, para olhar a pequena movimentação dessa boa gente e sentia-me suspirar sem saber por quê. Ignoro se me viram sensível a esse pequeno prazer e se quiseram ainda mo retirar; mas, pela transformação que percebo nas fisionomias, à minha passagem, e pelo ar com que me olham, sou forçado a compreender que muito empenho tiveram em me retirar esse anonimato. A mesma coisa me aconteceu, e de forma mais acentuada ainda, nos Invalides. Este belo estabelecimento sempre me interessou. Nunca vejo sem enternecimento e veneração esses grupos de bons velhos que podem dizer como os de Lacedemônia: “Nous avons été jadis Jeunes, vaillans et hardis” 15 Uma das minhas caminhadas favoritas era ao redor da Escola Militar e encontrava, com prazer, cá e lá, alguns inválidos que, tendo conservado a antiga polidez militar, me cumprimentavam ao passar. Esse cumprimento, que meu coração lhes devolvia ao cêntuplo, me lisonjeava e aumentava o prazer que tinha ao vê-los. Como não sei esconder nada do que me toca, falava muitas vezes dos inválidos e da maneira pela qual me emocionava ao vê-los. Não foi preciso mais. Ao fim de algum tempo, percebi que não era mais um desconhecido para eles, ou melhor, que o era muito mais, já que me viam da mesma maneira que o público. Não havendo mais honestidade, não houve mais cumprimentos. Um ar repugnante, um olhar feroz haviam substituído sua primitiva urbanidade. Como a antiga franqueza de seu ofício não lhes deixava, como aos outros, cobrir sua animosidade com uma máscara encarnecedora e traidora, mostram-me, abertamente, o mais violento ódio e, tal é o excesso de minha infelicidade, que sou forçado a distinguir, na minha estima, os que me escondem menos seu furor.

Desde então, passeio com menor prazer pelos lados dos Invalides; contudo, como meus sentimentos por eles não dependem dos que têm por mim, ainda não vejo sem respeito e sem interesse esses antigos defensores de sua pátria: mas é bem duro verme tão mal pago, de sua parte, pela justiça que lhes faço. Quando, por acaso, encontro algum que escapou às instruções comuns ou que, não conhecendo meu rosto, não me mostra nenhuma aversão, a saudação honesta deste único homem me compensa da atitude desagradável dos outros. Esqueço-os para só me ocupar dele; e imagino que possui uma dessas almas como a minha, onde o ódio não poderia penetrar. Tive ainda esse prazer, no ano passado, atravessando a água para ir passear na Isle aux Cignes.16 Um pobre velho inválido, num barco, esperava companhia para atravessar. Apresentei-me e disse ao barqueiro que partisse. A água estava agitada e a travessia foi longa. Quase não ousava dirigir a palavra ao inválido por medo de ser tratado com rudeza e repelido como de ordinário, mas seu ar honesto me tranquilizou. Conversamos. Pareceu-me um homem de bom senso e bons costumes. Senti-me surpreso e encantado por seu tom aberto e afável, não estava acostumado a tanta benevolência; minha surpresa cessou quando soube que recém chegara da província. Compreendi que ainda não lhe haviam mostrado minha pessoa e lhe dado suas instruções. Aproveitei desse anonimato para conversar alguns momentos com um homem e senti, pela suavidade dessa conversa, como a raridade dos prazeres mais comuns é capaz de lhes aumentar o preço. Ao sair do barco, ele preparava seus dois pobres liards. Paguei a passagem e roguei-lhe que os guardasse, temendo chocá-lo. Tal não aconteceu; pelo contrário, pareceu sensível à minha atenção e sobretudo àquela que tive ainda, pois era mais velho do que eu, de ajudá-lo a sair do barco. Quem pensaria que fui suficientemente infantil para chorar de contentamento? Morria de vontade de pôr-lhe na mão uma moeda de 24 soldos, para comprar tabaco; nunca ousei fazê-lo. A mesma vergonha que me reteve me impediu muitas vezes de fazer boas ações que me teriam enchido de alegria e de que me abstive deplorando minha fraqueza. Desta vez, após ter-me separado de meu velho inválido, consolei-me logo pensando que teria, por assim dizer, agido contra meus próprios princípios, misturando às coisas honestas um preço em dinheiro que degrada sua nobreza e suja seu desinteresse. É preciso apressar-se em socorrer os que de socorro precisam mas, nas relações ordinárias da vida, deixemos a benevolência natural e a urbanidade

fazerem cada uma seu trabalho, sem que alguma vez algo de venal e de mercantil ouse se aproximar de uma tão pura fonte para corrompê-la ou alterá-la. Dizem que, na Holanda, o povo cobra para nos dizer a hora e para nos indicar o caminho. Um povo que negocia com os mais simples deveres da humanidade deve ser bem desprezível. Notei que somente na Europa se vende a hospitalidade. Em toda a Ásia, se é hospedado gratuitamente; compreendo que lá não se encontram todas as perfeitas comodidades. Mas não significa nada dizer sou homem e sou recebido em casa de humanos, é a humanidade pura que me dá abrigo? Suportam-se sem dificuldades as pequenas privações quando o coração é mais bem tratado do que o corpo. 1

Este primeiro parágrafo é posterior ao segundo. No texto de Rousseau as duas numerações são mantidas: 9, (9). 2 Personagens da tragédia Mohonret de Voltaire (1742). 3 Traje, vestido que usavam os meninos ainda pequenos demais para usarem calças. 4 Taberna na região norte de Paris. 5 Rousseau era vigiado pela polícia por ter voltado a Paris, sem autorização, após a condenação de 1762. 6 As portas Maillot e Muette são entradas do bosque de Boulogne. 7 Cartuchos ou cilindros feitos de massa fina, a mesma com que se fazem obreias. Hoje, são servidos com sorvete. 8 Liard, moeda valendo um pouco mais de um cêntimo. 9 Uma agulha, girando sobre um mostrador, sorteava o número de oublies a que cada cliente tinha direito. 10 Antiga moeda francesa. Valia vinte francos. 11 Castelo da Chevrette, perto de Montmorency, ao norte de Paris. Propriedade do senhor d’Epinay. 12 Dia do santo de que a pessoa traz o nome. 13 Pães feitos com farinha de centeio, mel e especiarias. 14 Filhas de Atlas. Possuíam um jardim que produzia maçãs de ouro e era guardado por um dragão de cem cabeças. Hércules matou o dragão e apoderou-se das maçãs. 15 “Nós fomos outrora / Jovens, valentes e ousados”. Plutarco, Vida de Licurgo. O hôtel des Invalides fora mandado construir no século XVII, por Luís XIV, para abrigar os soldados feridos a serviço do rei. 16 Ilha do rio Sena, diante da esplanada dos Invalides, chamada ilha Marquerelle no século XV e anexada à margem esquerda no século XIX.

DÉCIMA CAMINHADA Inacabada, 12 de abril de 1778

Hoje, domingo de Ramos, faz precisamente cinquenta anos que conheci a senhora de Warens. Ela tinha 28 anos então, tendo nascido com o século. Eu ainda não tinha dezessete e meu temperamento em formação, mas que eu ainda ignorava, conferia um novo calor a um coração naturalmente cheio de vida. Se não era surpreendente que ela concebesse uma certa benevolência por um jovem cheio de vivacidade, mas suave e modesto, com um aspecto bastante agradável, era ainda menos surpreendente que uma mulher encantadora, cheia de espírito e de graças, me inspirasse, juntamente com minha gratidão, sentimentos mais ternos, que eu não chegava a distinguir. Mas o que é menos comum é que esse primeiro momento determinou a sorte de minha pessoa por toda a minha vida e estabeleceu, por um encadeamento lógico, o destino do resto dos meus dias. Minha alma, cujas mais preciosas faculdades meus órgãos não haviam desenvolvido, não possuía ainda nenhuma forma precisa. Ela esperava, numa espécie de impaciência, o momento que lha devia dar, e esse momento, apressado por esse encontro, contudo, não veio logo, e, na simplicidade de costumes que a educação me dera, vi, por muito tempo, prolongar-se esse estado delicioso mas rápido, em que o amor e a inocência habitam o mesmo coração. Ela me afastara. Tudo ma fazia lembrar, foi preciso voltar. Esta volta determinou meu destino e, por muito tempo ainda antes de a possuir, só vivia nela e para ela. Ah! Se eu tivesse bastado a seu coração como ela bastava ao meu! Que dias calmos e deliciosos teríamos fluído juntos! Vivemos alguns, mas como foram curtos e rápidos e que destino os substituiu! Não há dia em que não lembre com alegria e enternecimento essa única e curta época de minha vida em que fui eu mesmo, plenamente, sem mistura e sem obstáculos e em que posso realmente dizer que vivi. Posso dizer, mais ou menos como aquele chefe de legião pretoriana que, tendo caído em desgraça, no tempo de Vespasiano, foi acabar calmamente seus dias no campo: – Passei setenta anos na Terra e vivi sete–. Sem esse curto mas precioso espaço de tempo teria permanecido talvez incerto sobre mim mesmo, pois, todo o resto de minha vida, fraco e sem resistência, fui de tal forma

agitado, sacudido, lançado de um lado para outro pelas paixões alheias que, quase passivo numa vida tão tempestuosa, teria dificuldade em distinguir o que há de meu na minha própria conduta, de tal forma o duro destino não cessou de pesar sobre mim. Mas durante esse pequeno número de anos, amado por uma mulher cheia de bondade e de doçura, fiz o que queria fazer, fui o que queria ser e, pelo emprego que fiz de meus lazeres, ajudado por suas lições e por seu exemplo, soube dar à minha alma, ainda simples e amorfa, a forma que mais lhe convinha e que conservou para sempre. O gosto pela solidão e pela contemplação nasceu no meu coração com os sentimentos expansivos e ternos, feitos para serem seu alimento. O tumulto e o ruído os comprimem e os sufocam, a calma e a paz os reanimam e os exaltam. Preciso recolher-me para amar. Exortei mamãe1 a viver no campo. Uma casa isolada no declive de um pequeno vale foi nosso refúgio e foi lá que, no espaço de quatro ou cinco anos, gozei de um século de vida e de uma felicidade pura e plena que apaga, com seu encanto, tudo o que há de horrível no meu atual destino. Precisava da amiga que meu coração desejava, eu a possuía. Desejara o campo, obtive-o; não podia suportar a submissão, era perfeitamente livre, e, mais do que livre, pois dominado somente por minhas afeições, só fazia o que queria fazer. Todo meu tempo era preenchido por cuidados afetuosos ou por ocupações campestres. Nada desejava senão a continuação de um estado tão doce. Meu único pesar era o medo de que não durasse por muito tempo, e esse medo, nascido da dificuldade de nossa situação, não deixava de ter fundamento. Por conseguinte, pensei em conceder-me, ao mesmo tempo, derivativos para essa inquietude e recursos para prevenir-lhes o efeito. Pensei que uma provisão de talentos era o recurso mais seguro contra a miséria e resolvi usar meus lazeres para me pôr em estado de, se fosse possível, devolver um dia, à melhor das mulheres, a assistência que dela recebera. 1

Termo afetuoso, usado na Saboia, com que Rousseau sempre se referiu à senhora de Warens.

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