O Tractatus de Wittgenstein: uma introdução [1 ed.]
 9786586595031

Citation preview

O Tractatus de Wittgenstein: uma introdução

Copyright © Associação Filosófica Scientiae Studia © H. O. Mounce 1981. Basil Blackwell Publisher Projeto editorial: Associação Filosófica Scientiae Studia Direção editorial: Pablo Rubén Mariconda Design editorial e capa: Leticia Freire Ilustração da capa: Guilherme Romero

Coleção Epistemologia e Filosofia Analítica EDITORES: PLÍNIO JUNQUEIRA SMITH; RENATO

Krnoucm

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação {Câmara Brasileira do Livre, SP, Brasil}

(CIP)

nocnce , H. O. 0 'r r acr.e.t.ua de W:í.·U:qr:tn,i,te:i.n uma í.n troooçê c / H. O. No tr adccac Gu.atavo CoeInc t.é e Pe uLc Fa.r i a ; Lí.Luet.racê c G1::.i..U,e.r,1M~ kcmero j _ s âc Pa uLc , t,;p 3:::·= e nr.dee unce

;

rev.í.s

Título original: wít.t.qenac Lnt r oduc t Lcn. Bibli q; e p; logo, q". Ou, então, "pvq; e -q; logo,p". Essas proposições são necessariamente verdadeiras, e sua verdade é independente do que acontece no mundo empírico. O conteúdo de "p" e de "q" nessas proposições, por exemplo, é irrelevante. Elas serão verdadeiras qualquer que seja o conteúdo de "p" e de "q". Sua verdade depende inteiramente das assim chamadas constantes lógicas"::>", "v" e"-". No entanto, nesse caso, pode-se dizer, essas constantes devem certamente representar algum tipo de objeto, pois, se não representam nada, como proposições que as contêm podem ser verdadeiras? Russell, assim como Frege, sustentou ideias desse tipo, como se pode notar pela seguinte passagem, na qual ele discute o que cha ma de "os indefiníveis", isto é, as noções fundamentais da lógica, das quais as constantes lógicas, ou sua própria noção de classe, seriam exemplos. A discussão dos indefmíveis - que constitui a principal parte da lógica filosófica - é a tentativa de enxergar claramente, e de fazer com que os outros enxerguem claramente, as entidades em questão, de modo que a mente possa ter com elas aquela espécie de conheci mento direto (acquaintance) que tem da vermelhidão ou do gosto de um abacaxi. Quando, como no presente caso, os indefiníveis são obtidos fundamentalmente como o resíduo necessário de um processo de análise, é frequentemente mais fácil saber que essas entidades têm de existir do que de fato percebê- las; há um processo análogo àquele que resultou na descoberta de Netuno, com a diferença de que a etapa final - a

lNTRODIJÇ>ÀO

procura com um telescópio mental pela entidade que foi inferida - é com frequência a parte mais difícil do empreendimento. No caso das classes, devo confessar, eu não consegui perceber qualquer concei to preenchendo as condições exigidas pela noção de classe. E a contradição discutida no capítulo X prova · que um erro foi cometido, mas que erro é esse eu ain da não fui capaz de descobrir (Russell, 1937, p. xv).

Note-se que, nessa passagem, Russell trata a noção de classe como se esta correspondesse a algum objeto ou entidade comparável aos objetos da astronomia. Ele é bastante claro, no entanto, quanto a esse objeto ou entidade não ser de natureza empírica. Como ele diz, nós o procuramos não com um telescópio físico, mas com um telescópio mental. Ainda assim, classes, e as constantes lógicas, correspon dem, enquanto representantes, a objetos de algum tipo .. Para Wittgenstein, entretanto, isso não era melhor do que a ideia de que a lógica representa objetos empíricos. Aos olhos de Wittgenstein, a lógica simplesmente não representa objetos, sejam eles de natureza empírica ou quase empírica. Adistinção, /em suma, entre o lógico e o empírico é radical. Dito de outro modo, a lógica é radicalmente diferente de todas as demais ciências. Não, porém, porque as ciências físicas nos informariam algo sobre o mundo físico enquanto a lógica nos informaria algo sobre um mundo não físico. A diferença é ainda mais radical. Para Wittgenstein, a lógica não nos informa, ou faz enunciados, sobre absolutamente nada. "Minha ideia básica", diz Wittgensteinem4.031~, "é que as 'constantes lógicas' não são representantes de nada, que não pode haver representantes da lógica dos fatos". Assim, a

~3

H. O. Mounce

verdade lógica

"p v q; e -q; logo, p" não é verdadeira porque

corresponda a um conjunto de objetos ou a um conjunto de fatos. Toda correspondência carece da solidez da necessidade lógica - é meramente acidental. Isso não quer dizer que a lógica não reflete nada do mundo. No entanto, ela reflete, segundo Wittgenstein, mostrando, e não dizendo. Essa, na verdade, é a doutrina central do Tractatus. A lógica difere de todas as demais ciências porque todas elas dizem algo sobre o mundo, enquanto a lógica apenas mostra algo. Em 4.0~~. Wittgenstein diz: "uma proposição mostra seu sentido. Uma proposição mostra como estão as coisas se for verdadeira. E diz que estão assim". E, em 4.1~1~: "o que pode ser mostrado não pode ser dito". Para ilustrar essa ideia, considere a proposição "está chovendo". Ela diz algo sobre o mundo porque tem uma estrutura lógica, porque tem sentido, mas ela mostra o seu sentido no fato de você ser capaz de apreender o que ela diz sobre o mundo, não no que ela diz sobre o seu sentido. A lógica, em suma, não é aquilo de que os enunciados falam; ela é o que faz com que seja possível que eles falem sobre alguma outra coisa, a saber, o mundo ou os fatos. Russell, portanto, ao falar das proposições da lógica como se elas representassem objetos, não está entendendo a própria natureza da lógica. A lógica não é algo representado; ela é o que faz com que a representação seja possivel.s Como tal, embora ela mesma não possa ser representada, ela se mostra em haver coisas que podem ser representadas. Como veremos mais adiante em detalhe, Wittgenstein ilustrou essas ideias comparando uma proposição com uma 5 Teria sido melhor- embora, neste estágio, talvez mais confuso - dizer que a lógica é a possibilidade da representação.

lNTRODuç:Ao

figuração. Uma pessoa sabe do que trata uma figuração, digamos uma pintura de um campo de trigo, não porque a figuração 1 he diz isso, mas porque pode ver, pela figuração, do que esta trata. É como se ela pudesse vê-lo na figuração, ainda que aquilo que ela afigura, o campo de trigo, não tenha jamais existido. É claro, aquilo de que a figuração trata também pode ser posto em palavras, mas o ponto de Wittgenstein é que, quando dizemos de que a figuração trata, estamos simplesmente introduzindo uma outra figuração. O enunciado está para a figuração como, em outro contexto, uma figuração pode estar para um enunciado. Por exemplo, suponha que alguém não consiga se fazer entender e, finalmente, faça um desenho em um pedaço de papel. Wittgenstein diria que isso é possível porque o que temos aqui são apenas dois tipos de figuração - o enunciado é também um tipo de figuração. Em outras palavras, pode-se elucidar o sentido da figuração A por meio de uma figuração equivalente, B. No entanto, o que não se pode fazer

é representar o sentido da figuração A (dizer o que ela diz) do mesmo modo como a figuração A pode representar um estado de coisas como existente. O sentido de uma proposição não é algo que corresponda a ela do modo como se pode dizer que um conjunto de objetos ou fatos corresponde. Esse ponto, na verdade, pode ser ilustrado por outro a ele relacionado: ainda que você possa fazer alguém apreender o sentido de uma figuração mostrando- lhe outra, isso só funciona se você não tem de explicar de que trata essa outra figuração. Em algum momento, m suma, você terá de esperar que a pessoa apreenda o sentido do que é dito sem que ele lhe seja explicado. O sentido só pode ser mostrado, ele não pode ser dito. Essa é, mais uma vez, a razão pela qual a lógica deve diferir radicalmente de todas as demais ciências. A lógica não pode

:;i5

H. O. Mounce

explicar o que é a estrutura lógica ou o sentido da linguagem como a ciência explica os fatos, pois um entendimento da estrutura lógica ou do sentido da linguagem estaria pressu posto nessa explicação. Em outras palavras, a explicação só poderia ser dada a alguém que já entendesse a estrutura lógica ou o sentido da linguagem. Qualquer teoria lógica estaria, portanto, pressupondo o que quisesse explicar. Finalmente, essas ideias precisam ser levadas em consideração quando se reflete acerca do que foi dito sobre a lógica formal, sobre o desenvolvimento de um cálculo lógico. Alguns filósofos pensaram que a lógica formal revela as leis ou os princípios sobre os quais repousa a lógica de nossa linguagem, como se esses princípios fossem explicar por que, digamos, um argumento na linguagem ordinária é válido. Essa é uma ideia que alguns estudantes defendem quando começam a estudar lógica formal. Eles às vezes pensam que a lógica formal lhes ensinará a pensar. No entanto, se refletirmos um pouco, é evidente que, se eles já não souberem como pensar, jamais entenderão a lógica formal. Em suma, só podemos desenvolver um cálculo formal porque já dispomos de uma apreensão do que é a validade. Wittgenstein estava chamando atenção para isso quando disse, em 6. 1~3: "Claramente, as leis lógicas não'podern, por sua vez, subordinar-se a leis lógicas". O que ele pensou, na época do Tractatus, é que um cálculo formal seria útil para mostrar a lógica já inerente à linguagem ordinária. A lógica da linguagem ordinária, Wittgenstein sustentou, está perfeitamente em ordem como está. Uma linguagem não pode ser imperfeitamente lógica. Ou algo tem sentido ou não tem; não pode haver meio-termo. Ele acreditava, no entanto, que, na linguagem ordinária, as relações lógicas não são tão evidentes para o estudo formal

lNTRO.nuç.:to

quanto podem ser em um cálculo que foi construído especialmente para exibir essas relações. A gramática, na linguagem ordinária, frequentemente esconde a forma lógica. A função de um cálculo lógico, Wittgenstein pensou, seria mostrar 11 lógica da linguagem ordinária com mais clareza do que a própria linguagem ordinária o faz. Como veremos, ele pensou que os sistemas formais desenvolvidos por Frege e Russell licaram aquém desse ideal em diversos aspectos.

/

CAPÍTULO

1

e Até aqui, estivemos expondo algumas das ideias centrais do Tracta_tus. Passemos agora a um estudo sistemático do próprio texto. Ao considerarmos os detalhes do texto, será importante ter em mente as ideias centrais que já foram esboçadas -por exemplo, a ideia de que as constantes lógicas não representam nada e, diretamente relacionada a ela, a ideia de que a lógica pertence ao que se mostra e não ao que se diz. Veremos que Wittgenstein argumenta em favor dessas ideias partindo de várias direções e com uma minúcia prolífica e engenhosa. Isso nos proporciona, na verdade, um dos prazeres do Tractatus. Como as obras dos grandes filósofos metafísicos, a Ética de Spinoza, por exemplo, ele tem algo da beleza de uma construção matemática. O Tractatus está organizado de acordo com um sistema de números decimais que Wittgenstein explica na primeira página. A proposição 1.1 é um comentário à proposição 1, a proposição 1.11 é um comentário à 1.1, e assim por diante. Consideremos as proposições sob 1. 1

O mundo é tudo que é o caso.

1.1

O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas.

1.11

O mundo é determinado pelos fatos, e por serem todos os fatos.

1.1~

Pois a totalidade dos fatos determina o que é o caso e também tudo que não é o caso.

1. 13

Os fatos no espaço lógico são o mundo.

~9

H . O. M ourice

1.~

O mundo resolve-se em fatos.

1. ~1

Cada item pode ser o caso ou não ser o caso en quanto tudo o mais permanece na mesma.

A primeira proposição é elucidada pela segunda, mas, para entender a segunda, é preciso entender por que Wittgenstein deseja distinguir entre fatos e coisas. Qual é, precisamen te, a diferença? Para perceber isso, será útil considerar as proposições 1.i3 e 1.~1, começando por esta última. "Cada item pode ser o caso ou não ser o caso enquanto tudo o mais permanece na mesma". Essa afirmação pode parecer uma negação do determinismo. O que é o caso não é determinado por algo mais ser o caso. Todavia, isso não é, de forma alguma, o que Wittgenstein quer dizer. O que ele quer dizer é que algo ser o caso não é determinado por algo mais ser o caso como uma questão de lógica. O sentido em que se diz que as coisas ocorrem necessariamente não é o da necessidade lógica. Esse, na verdade, é outro modo de dizer que a lógica não determina o que é o caso. Entretanto, existe uma ligação entre a lógica e os fatos porque, como Wittgenstein diz em 1.13, são os fatos no espaço lógico que constituem o mundo. Mas o que é o espaço lógico? Compreender isso é também compreender por que o mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas. Vejamos as proposições ~-~.01~: ~

O que é o caso - um fato - é a existência de estados de coisas.

~-01

Um estado de coisas é uma combinação de objetos (coisas).

3o

FNro e corsx

~. o 11

É essencial às coisas que elas possam ser partes constituintes de estados de coisas.

~.01~

Na lógica, nada é acidental: se uma coisa pode ocorrer em um estado de coisas, a possibilidade do estado de coisas deve estar inscrita na própria coisa.

Para ilustrar isso, consideremos as proposições "Sócrates é gordo" e "Platão é magro". Essas proposições, suporemos, representam estados de coisas. Esses estados de coisas existem no mundo, mas note que eles poderiam não ter existido. Sócrates poderia ter sido magro, e Platão poderia ter sido gordo. Ora, isso mostra que estados de coisas são complexos, pois podemos imaginá- los em outra disposição, com os seus elementos aparecendo em combinações diferentes daquelas em que de fato aparecem. Contudo, na lógica, diz Wittgenstein em ~.01~, nada é acidental; se uma coisapode ocorrer em um estado de coisas, a possibilidade do estado de coisas deve estar inscrita na própria coisa. Assim, está inscrito em Sócrates e em Platão que cada um deles pode ser gordo e pode ser magro. Há uma série de estados de coisas possíveis em que Sócrates e Platão se encaixam. Quais desses estados de coisas são o caso não é uma questão para a lógica, mas é uma questão própria da lógica a de saber quais estados de coisas são possíveis. Que Sócrates seja gordo ou magro é uma questão de fato, mas é uma questão de lógica que ele pode ser ou um ou outro. Alguém poderia lembrar aqui da noção fregeana de fun ção. Frege analisaria "Sócrates é gordo" em uma função, "x é gordo", para a qual "Sócrates" fornece o argumento. Pode-se dizer que "Sócrates" se encaixa na função "x é gordo". Ora,

H.O.

há um sentido em que se pode dizer que isso expressa o que Wittgenstein tem em mente quando diz que "o mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas". Dizer que o mundo é uma totalidade de coisas seria esquecer que as coisas man têm relações entre si. As coisas existem somente em fatos. Além disso, em que fatos uma coisa pode ocorrer já está determinado, está inscrito na natureza da coisa. É por isso que não são as coisas, mas os fatos, e não apenas os fatos, mas os fatos no espaço lógico, que constituem o mundo. Em ~.0131, Wittgenstein exemplifica as noções de espaço lógico e de forma lógica. "Não é preciso, por certo, que a mancha no campo visual seja vermelha, mas uma cor ela deve ter: tem à sua volta, por assim dizer, o espaço das cores. O som deve ter uma altura, o objeto do tato, uma dureza, etc.". A forma lógica se mostra em que uma mancha deve ter uma cor, um som deve ter uma altura, ao passo que uma mancha não pode ter uma altura, nem um som pode ter uma cor. Pontos se encaixam com cores, sons, com alturas. No entanto, algo de grande importância deve ser notado aqui. É importante que não se conceba o espaço lógico ou a forma lógica como um tipo especial de fato, algum tipo de cimento universal que une as coisas. Considere, novamente, "Sócrates é gordo". "x é gordo" é a função com a qual "Sócrates" se encaixa. Agora, suponha que alguém perguntasse: "o que faz com que 'Sócrates' se encaixe?". Poderíamos estar tentados a responder: "a forma lógica". Isso, contudo, seria um grande equívoco, porque sugeriria que a forma lógica é algum fato extra que liga as coisas entre si. Não se pode, porém, enunciar a forma lógica nesses termos. Ela se mostra em concatenarem-se as coisas umas com as outras. Devemos lembrar que a lógica não determina

Fvro

E COISA

nenhum fato, mas apenas quais combinações são possíveis. que mostra a forma lógica é que "Sócrates é gordo" é uma combinação possível, enquanto "gordura (fatness) é Sócrates", por exemplo, não o é. Wittgenstein expressa isso em ~.o3 por meio de uma imagem brilhante: "em um estado de coisas os objetos se concatenam como os elos de uma corrente". Um estado de coisas, como uma corrente, não (: apenas um conjunto, mas um conjunto que se concatena de uma determinada maneira. O que, no entanto, mantém unidos os elos de uma corrente? Nada, exceto estarem eles concatenados uns com os outros. Estarem eles concatenados uns com os outros é como eles se mantêm unidos. O mesmo 1-1e aplica à combinação de objetos em um_ estado de coisas. Estarem eles concatenados de determinada maneira mostra 11 lgo de sua forma lógica, mas a forma lógica não é um fato extra acerca deles, aquilo que os mantém unidos. O mundo, então, é a totalidade dos fatos no espaço lógico; ou, ainda, é a totalidade dos estados de coisas, que são constituídos por objetos que se concatenam de uma determinada maneira. Essas são as conclusões das primeiras páginas do 'l\·actatus. Mas que tipo de conclusões elas são? São enunciados sobre o mundo, mas, comoveremos adiante, não são, em nenhum sentido natural, proposições empíricas. São enunciados sobre como o mundo tem de ser para que haja sentido, para que haja proposições. Veremos isso mais claramente se examinarmos de perto a noção wittgensteiniana de objeto. Até aqui, tratamos "Sócrates" como se fosse o nome de um objeto. Isso basta para uma exposição inicial e panorâmica, mas precisa ser qualificado. Nem pessoas nem, na verdade, os objetos físicos de nossa experiência comum são objetos 110 sentido de Wittgenstein. Em a.oz, ele diz: "os objetos são 33

IL O. M ourice

simples". Os objetos de nossa experiência comum são com plexos. Uma cadeira, por exemplo, consiste em um encosto, um assento e pernas. Assim, para apreender o nome" cadei ra", parece que se deve primeiro compreender os nomes mais simples "encosto", "assento" e "pernas'l.Além disso, esses nomes mais simples não são eles mesmos simples. Também eles podem ser descritos e, portanto, dependem, para o seu sentido, de nomes que são ainda mais simples. Os objetos dos quais Wittgenstein nos fala são, no entanto, absolutamente simples. Os nomes para esses objetos podem ser apreendidos de imediato, pois, para que sejam apreendidos, não dependem da apreensão de nomes ainda mais simples. O que, então, seria um exemplo desses objetos? Wittgenstein nunca foi capaz de apresentar esse exemplo. No período de redação do Tractatus, Wittgenstein estava certo da existên eia desses objetos, mas não acreditava que fosse possível dizer o que eles são. Isso pode parecer suspeito, e o próprio Wittgenstein, mais tarde, chegou a julgar que toda essa ideia de objetos simples era radicalmente confusa. Por que, então, ele estava inclinado a falar sobre eles no Tractatus? Porque julgou que eles eram exigidos pela linguagem. Poderemos perceber o que ele tinha em mente se voltarmos ao exemplo de "cadeira". Para apreender o significado de "cadeira", dissemos, é preciso que se apreenda o significado de palavras mais simples como "perna", "assento" etc. É claro, porém, que esse processo não pode se estender para sempre. Se não existirem algumas palavras que sejam representantes diretos de objetos, jamais apreenderemos nome algum. Em alguma etapa da análise, tem de haver objetos, e, portanto, nomes, que são absolutamente simples. Do contrário, não haveria contato algum entre a linguagem e o mundo, e nada poderia

FATO E COISA

ser dito. Isso é o que Wittgenstein tem em mente em ~-o~u, onde ele diz que se não houvesse objetos simples, então ter uma proposição sentido dependeria de ser verdadeira outra proposição. O que ele quer dizer é que, se não pudéssemos estar certos de que as palavras são representantes de objetos, jamais poderíamos entender uma proposição qualquer a menos que tivéssemos a nosso dispor outra proposição que nos 11ssegurasse que os nomes da primeira proposição de fato são representantes de objetos. Esse, no entanto, é um estado de coisas impossível, pois não pode ser uma questão contingente que uma proposição tenha sentido. O que é contingente é se da é verdadeira (ou falsa), mas, para que seja verdadeira (ou lalsa), uma proposição já deve possuir um sentido. O sentido de uma proposição, em suma, tem de ser independente de ela ser verdadeira ou falsa. Consequentemente, tem de haver um c:ontato entre a linguagem e o mundo que é anterior à verdade ou à falsidade do que dizemos. Esse contato deve ser encontrado na relação entre um nome simples e um objeto simples, e essa relação tem de ser tal que o nome apenas corresponda no objeto, enquanto seu representante, independentemente de qualquer descrição. O que Wittgenstein está sugerindo, portanto, é que só poderemos compreender a natureza da linguagem se tam bém compreendermos que o mundo não é simplesmente um conjunto de coisas, mas uma totalidade de estados de coisas ([Ue são constituídos por objetos que se concatenam de uma determinada maneira. 6 Mas como, então, a linguagem se 6 Essa não é uma maneira inteiramente feliz de colocar a questão. No enlnnto, como veremos mais adiante, não existe uma maneira inteiramente Icliz de colocar a questão. Há, em poucas palavras, uma grande dificuldade, ser discutida mais adiante, sobre a natureza dos enunciados proferidos por Wlttgenstein, aqui e em outras partes, no Tractatus.

11

H. O. Mounce

relaciona com o mundo? Wittgenstein sugere que as proposições da linguagem afiguram ou representam o mundo, e é essa famosa comparação entre uma proposição e uma figuração que devemos agora examinar em maior detalhe.

36

C A PÍTU LO

2

proposição como figuração Wittgenstein introduz sua comparação entre uma proposição e uma figuração em ~.1: ~-1

Figuramos os fatos.

~-11

Uma figuração representa uma situação no espaço lógico, a existência e inexistência de estados de coisas.

~-1~

~.13

Uma figuração é um modelo da realidade. A objetos correspondem, em uma figuração, os elementos da figuração.

~.131

Em uma figuração, os elementos da figuração são os representantes dos objetos.

~.14

O que constitui uma :figuração é o fato de estarem seus elementos relacionados uns com os outros de uma determinada maneira.

~.141

Uma figuração é um fato.

~.15

O fato de os elementos da figuração estarem relacionados uns com os outros de uma determinada maneira representa que as coisas estão relacionadas umas com as outras da mesma ma neira ( ... )

À primeira vista, pode não parecer difícil compreender essas proposições. Uma proposição é como uma figuração porque representa algo no mundo e o faz porque é constituída

H. O. Mounce

de elementos que operam, cada um deles, como represen tantes de algo no mundo. Em "o livro está sobre a mesa", por exemplo, cada uma das expressões "o livro" e "a mesa" corresponde, enquanto representante, a um objeto, a palavra "sobre" corresponde, enquanto representante, a uma relação e, quando unidas na página, as palavras representam um arranjo particular desses objetos, isto é, um estado de coisas.: Organize as palavras de outra maneira e outro estado de coisas será representado. Assim, "o livro está sobre a mesa" representa um determinado estado de coisas; "a mesa está sobre o livro" representa outro estado de coisas muito diferente. Essa leitura está correta, mas ela omite muitas coisas, incluindo, em certo sentido, o ponto central da comparação de Wittgenstein. Para perceber isso, consideremos a relação entre a proposição "o livro está sobre a mesa" e os nomes que a compõem. A proposição como um todo tem um sentido porque os nomes que a compõem correspondem, enquanto representantes, a objetos. Na época do Tractatus, Wittgenstein identificava o significado de um nome com o objeto a que ele, enquanto seu representante, correspondia, de modo que o significado de um nome é como que externo a ele, algo a que ele, enquanto seu representante, corresponde. Mas é o significado da proposição como um todo algo a que ela corresponda? À primeira vista, poderíamos estar inclinados a pensar que sim. Assim como se pode apontar para um livro ou para uma mesa real como o significado das expressões "o livro" ou "a mesa", também se pode apontar para um estado de coisas existente, em que o livro está sobre a mesa, como aquilo que é representado pela proposição como um todo. No entanto, e se esse estado de coisas não existir? Um pouco de reflexão revelará que, se a proposição 38

lor falsa, não haverá nada para o que se possa apontar como nquilo a que a proposição como um todo corresponda. Uma proposição, entretanto, tem o mesmo sentido quer seja lalsa ou não. Como já vimos, uma proposição deve ter um sentido antes que se possa colocar a questão de saber se ela é verdadeira ou falsa. Segue-se daí que aquilo que a proposição como um todo significa não é algo a que ela corresponda, como os significados dos nomes que a compõem são coisas

que eles, enquanto seus representantes, correspondem. Uma proposição, em suma, não é um nome complexo. Não se pode apontar para aquilo que ela significa como algo externo à própria proposição. É precisamente essa ideia que Wittgenstein busca elucidar com a comparação com uma figuração. O significado ou sentido de uma proposição ! interno à proposição, está na proposição como a cena retratada por uma pintura está na pintura. Se a cena retratada pela pintura é imaginária, alguém pode ser capaz de apontar para objetos no mundo que correspondem às diversas partes da pintura, mas não será possível apontar para nada no mundo que corresponda à pintura como um todo. Ainda ussim, há uma cena retratada pela pintura, um estado de coisas possível. Essa cena, no entanto, não consiste em algo l'ora da pintura, e sim na justaposição dos elementos na própria figuração. Essa ideia poderá ficar mais clara se examinarmos duas proposições que ocorrem mais adiante no Tractatus. Em :l.1431, Wittgenstein diz que "fica muito clara a essência de 11m sinal proposicional quando o concebemos composto por objetos espaciais (digamos: mesas, cadeiras, livros) em vez de sinais escritos. A configuração espacial dessas coisas exprime, nesse caso, o sentido da proposição". Novamente,

11

H. O. Mounce

em 3.143~ ele diz: "Em vez de 'O sinal complexo "aRb" diz que a mantém a relação R com b' deveríamos dizer 'O fato de que "a" mantém uma certa relação com "b" diz que aRb' ". O sentido da segunda dessas proposições é, sem dúvida, obscuro em uma primeira leitura. Examinemo-la por meio da primeira. É evidente que poderíamos deixar uma mensagem para um amigo sem escrevê- la, mas dispondo os livros sobre sua mesa de acordo com um padrão pré- estabelecido. Os li vros, assim dispostos, formariam uma espécie de proposição.. Além disso, ficará evidente que o sentido dessa proposição será expresso pela disposição física dos livros. O fato de que este livro esteja sobre a mesa nesta exata relação física com aqueles outros livros diz uma coisa; mude-se a relação física e outra coisa será dita, ou até mesmo nada. Ora, de um modo similar, a asserção "ahb" diz o que quer que ela diga porque o sinal "a" está em uma certa relação com o sinal "b". M u dem-se os sinais para "bRa" e outra coisa é dita. Por que, no entanto, Wittgenstein insiste em pôr a questão nesses termos, dizendo "o fato de que 'a' mantém uma certa relação com 'b' diz que aRb", e não dizendo '"aRb' diz que a mantém com b uma certa relação"? O que ele quer dizer ficará claro se traduzirmos os símbolos por palavras. Suponha que eu diga: "'o livro está sobre a mesa' diz que o livro mantém com a mesa uma certa relação". Uma breve reflexão deixará claro que não acrescentei nada ao enunciado "o livro está sobre a mesa". Ou seja, meu enunciado é vazio. Do mesmo modo, é inteiramente vazio dizer '"aRb' diz que etc." porque qualquer pessoa que apreenda a relação que o símbolo a man tém com o símbolo b entenderá tudo que estou tentando dizer simplesmente através de "aRb". Quem quer que apreenda a disposição de palavras" o livro está sobre a mesa" não precisa

A PROPOSIÇ'ÀO COMO FIGURM;,Jo

que lhe seja dito o que ela diz. Ele o sabe quando lhe é dito "o 1 i vro está sobre a mesa". Em outras palavras, a relação entre uma proposição e o seu HC ntido é uma relação interna. Deve-se encontrar o sentido de uma proposição em um arranjo de sinais físicos; não se deve procurá-lo em algo a que esse arranjo corresponda, alguma r-utidade sobre e acima dele, seja no mundo empírico ou em 11 ,n mundo quase empírico. Wittgenstein já havia defendido l'Hsa ideia em seus Cadernos: "em aRb, não é o complexo que Hi mboliza, mas o fato de que o símbolo a mantém uma certa ,·e lação com o símbolo b. Assim, fatos são simbolizados por íutos, ou, mais corretamente: que algo seja o caso no símbolo diz que algo é o caso no mundo" (Wittgenstein, 1961, p. 105).7 Para perceber claramente o que Wittgenstein quer dizer, suponhamos que aRb (o livro está sobre a mesa) seja vc rdadeira. Nesse caso, haverá, como dizemos, algo no mun tio, algum conjunto de fatos, correspondendo à proposição, que é ela mesma um conjunto de fatos, um certo arranjo de sinais físicos. Note, porém, que o conjunto de fatos que r-onstitui a proposição não nomeia o conjunto de fatos que 1'11z com que ela seja verdadeira. "aRb" significaria a mesma roisa ainda que não houvesse nenhum conjunto de fatos correspondendo a ela, ou seja, ainda que ela fosse falsa. Isso é o que Wittgenstein quer dizer quando diz que em "aRb" não é 11 complexo que simboliza- "aRb" não é um nome complexo. No entanto, ele quer dizer algo mais, pois, se a proposição "nRb" não é um nome complexo, aquilo que ela significa não pode residir em algo que corresponda a ela, seja esse algo o 1•onjunto de fatos que faz com que ela seja verdadeira, seja 11 rua terceira entidade que estabeleça a relação entre ela e os 7 N. T.] Wittgenstein (1979), p. 96. 1

41

I-LO. Mounce

fatos. Ou seja, se "aRb" é verdadeira, temos simplesmente dois conjuntos de fatos, um constituindo a proposição, um certo arranjo de sinais físicos, e outro que faz com que a proposição seja verdadeira. E o que significa na proposição não é algum terceiro elemento, mas o simples fato de ela ser um arranjo físico particular dos sinais "a" e "b". Os sinais, assim dispostos, são uma representação do mundo, a representação não é algo que repousa por detrás deles. Aqui, entretanto, pode surgir uma dificuldade. Consideremos, por um momento, como uma figuração representa. Podemos supor que eu tenha feito um desenho de um rosto. Talvez esse rosto não exista; ele foi apenas imaginado. Ainda assim, podemos apontar para certas linhas no desenho que representam um olho, para outras que representam uma boca e assim por diante, o todo representando um rosto possível. Ora, parece não haver nenhuma dificuldade especial em entender como isso ocorre, como um rosto possível é representado pelas linhas físicas do desenho. Certas linhas représentam um olho porque, considerando a escala etc., elas se parecem com um olho, e parece não haver nenhuma dificuldade especial em entender como o desenho como um todo representa um rosto possível, pois, ao dizer isso, estamos apenas dizendo que poderia haver um rosto real que, considerando a escala etc., se parece com o que vemos quando olhamos para o desenho. Em outras palavras, o desenho representa algo porque há, ou poderia haver, uma relação natural, a saber, a de semelhança física, entre um objeto real e as linhas do desenho. No entanto, podemos dizer o mesmo dos traços físicos que constituem uma proposição? Parece evidente que não podemos. Não se pode, por exemplo, saber o que a palavra "livro", ou "mesa", significa simplesmente olhando para ela. A relação parece ser inteiramente con -

Á PROl'OSIÇ'ÃO COMO FIGURAÇ,ÂO

vencional. Além disso, também parecem ser inteiramente convencionais as relações entre as palavras na frase como um todo. Na frase "o livro está sobre a mesa", a palavra "livro" não está sobre a palavra "mesa", mas à sua esquerda. É verdade que o arranjo das palavras é importante. Como vimos, "o livro está sobre a mesa" diz algo diferente de "a mesa está sobre o livro". Isso, contudo, também parece convencional. Se assim quiséssemos, poderíamos dar à primeira frase o sentido da segunda e vice-versa. Alguém, no entanto, poderia se perguntar se isso prova algo de relevante. Não poderia ser dito que estamos simplesmente levando uma analogia longe demais? Não há dúvida de que uma proposição não é exatamente como uma figuração, mas é como uma figuração em alguns aspectos importantes. Ambas representam estados de coisas possíveis, uma, por manter uma relação convencional com o mundo, a outra, por meio de certas semelhanças objetivas. Isso, contudo, não é suficiente, pois é evidente que Wittgenstein deseja levar a 11 nalogia mais longe do que isso poderia sugerir. Por exemplo, cm ~.151, ele diz: "a forma de afiguração é a possibilidade de que as coisas estejam umas para as outras tais como os elementos da figuração". Com essa observação, Wittgenstein pretende esclarecer a natureza de uma proposição e sugere que existe algum tipo de relação não meramente convencional entre uma proposição e um estado de coisas possível. Mas ! 1 ual pode ser essa relação? Obviamente, não existe nenhuma semelhança entre as palavras escritas "o livro está sobre a mesa" e uma situação real em que um livro está sobre uma mesa, 8 Além disso, é igualmente óbvio que Wittgenstein não podia ignorar esse fato. li Exceto, é claro, no sentido em que alguma semelhança pode ser encon1 rada entre quaisquer duas coisas.

H . O. M ourice

A resposta a esse problema repousa no que descrevemos no primeiro capítulo como forma lógica ou espaço lógico. Como vimos, Wittgenstein pensava que se um objeto pode ocorrer em um estado de coisas, a possibilidade desse estado de coisas deve estar inscrita na própria coisa. Objetos têm forma lógica, ou existem no espaço lógico. Ora, isso significa que a relação entre uma proposição e o mundo não é inteiramente convencional. Existe, é claro, um elemento convencional. O sinal "livro" poderia não ter sido usado como o usamos, e algum outro sinal poderia ter sido usado em seu lugar. Mas o significado de um nome, muito menos o de uma proposição como um todo, não pode ser dado apenas por meio dessa relação convencional. Não se pode simplesmente como resultado de uma decisão estabelecer a relação entre um sinal e um objeto, isto é, transformar o sinal em um nome. Isso se segue da observação de Wittgenstein em 3.3: "só as proposições têm sentido; é só no contexto de uma proposição que um nome tem significado". O estabelecimento de uma correlação entre um sinal e um objeto só ocorre porque o si nal é usado em uma proposição. É a sua relação com os outros elementos no contexto de uma determinada estrutura lógica que torna o sinal um nome, que lhe confere significado. Além disso, a estrutura ou forma lógica de uma proposição não é, de modo algum, convencional. Uma proposição tem forma lógica quando espelha a forma lógica do mundo. Mas o que, precisamente, isso significa? Como a forma lógica de uma proposição se mostra? O que se deve notar é que a forma lógica de uma proposição não será encontrada no modo como ela se apresenta na página. O máximo que se pode obter com isso é a forma gramatical. Todavia, como Wittgenstein enfatiza no Tractatus, a forma gramatical é 44

A

PRffPOSIÇtlü COMO

FIGUR"-Ç:ÀO

muitas vezes enganadora no que diz respeito à forma lógica. Para apreender a forma lógica de uma expressão, é preciso observar as regras para o seu uso. Expressões que parecem 11s mesmas, mas que são governadas por regras diferentes, Hão expressões realmente distintas. Para tomar um exemplo de Wittgenstein, o significado da palavra "é" em "a rosa é vermelha" é diferente do seu significado em "a estrela da , nanhã é a estrela da tarde". A estrela da manhã é idêntica à estrela da tarde, mas a rosa não é idêntica à vermelhidão. Do mesmo modo, expressões que parecem diferentes aos olhos ou aos ouvidos, mas que são governadas pela mesma regra, 1-li'IO

realmente a mesma expressão. Encontraremos exemplos

destas mais adiante. Entretanto, alguém poderia se perguntar se obtemos algum nvanço com isso. Afinal de contas, não são convencionais as próprias regras que governam as expressões? De acordo com Wittgenstein, só em um sentido trivial. Em certo sentido, é 11 ma questão

de convenção que o sinal" é" seja usado de acordo

com alguma regra. O que não é matéria de convenção, contudo, ·: como podemos usar esse sinal uma vez fixado o seu signi l'icado por meio de uma regra. P~ra bem compreender isso, voltemos a "a rosa é vermelha". Dadas as regras para o uso de rosa" e "vermelha", esse é um enunciado perfeitamente inte11

1 igivel, d~sde que o uso de" é" seja predicativo. Poderíamos, no entanto, manter os significados usuais de "rosa" e "vermelha" ,, usar, não o "é" predicativo, mas sim o "é" de identidade? Não, não poderíamos. O enunciado torna-se ininteligível.

1 )ecidimos que ele deveria ser ininteligível? De forma alguma. Sua ininteligibilidade se segue logicamente de nossa decisão 111icial de usar "é" de uma determinada maneira. Em suma, não podemos escolher de acordo com nosso desejo as regras

45

H. O. Mounce

da linguagem, mas somente aquelas que refletem a estrutura lógica do mundo; e, por essa razão, quando tivermos fixado o significado de uma palavra por meio de uma regra, o modo correto de aplicação da palavra em ocorrências futuras será determinado, não pela convenção, mas pela lógica. Essa, na verdade, é uma maneira imperfeita de expressar essa ideia. Um sinal só tem significado se é aplicado de acordo com regras que refletem a forma lógica, pois é a forma lógica que confere significado a um sinal, e não nossa decisão de lhe conferir um significado. Tudo que podemos fazer é decidir usar um sinal logicamente. Para esclarecer um pouco mais essa ideia, considere as palavras "Sócrates" e"- é gordo". Elas poderiam ter sido usadas de um modo bastante diferente daquele em que de fato as usamos. Dado, porém, o modo como as usamos, não é arbitrário que possamos dizer "Sócrates é gordo", e não "gordura é Sócrates". No primeiro caso, seguimos a lógica, mas não no segundo. E isso se mostra, pois é somente no primeiro caso que dizemos algo com sentido. A ideia importante, então, é que a estrutura que é comum à proposição e ao mundo só é revelada se apreendemos o modo como os sinais que constituem a proposição são empregados, se entendemos as regras para o seu uso. Como Wittgenstein diz em 3.3~T "é só com seu emprego lógico-sintático que um sinal determina uma forma lógica". Essa é uma ideia frequentemente negligenciada pelos co mentadores devido ao fato de eles localizarem as diferenças entre o Tractatus e a obra posterior de Wittgenstein no lugar errado. Eles consideram ser distintivo do pensamento maduro de Wittgenstein o fato de que ele negava que um nome tenha significado a menos que seja usadopara dizer alguma coisa e de que ele pedia que pensássemos o significado de

A PHOPOSJq.i\.o COMO FIGURAÇ),o

uma palavra, não como alguma entidade especial ou algum processo psicológico, mas em termos de seu uso. Entretanto, ideias desse tipo já desempenham um papel central no Tractatus. Como já vimos, Wittgenstein negou no Tractatus rrue um nome tenha significado exceto no contexto de uma proposição. Além disso, ele afirmou na proposição 3.3~8: "se não tem serventia, um sinal não tem significado. Este é o sentido do lema de Occam. 9 (Se tudo se passa como se um sinal tivesse significado, então ele realmente tem significado)". O ponto em que ocorre a mudança importante entre a obra de juventude e a obra posterior de Wittgenstein é a sua concepção de forma lógica. No Tractatus, a forma lógica orno que sub jaz às regras da linguagem e garante o seu uso inteligível. Nas Investigações (1978), ele concebe a forma lógica como uma espécie de formalização das regras da lin guagem, e estas surgem do seu uso, não sub jazem a ela, nem garantem sua inteligibilidade. Comum a ambas as obras, ntretanto, é a ideia de que o significado não é alguma en lidade especial ou algum processo psicológico. No Tractatus, Wittgenstein já defende claramente que uma proposição é, num primeiro nível, apenas um conjunto de sinais físicos e que o que distingue um conjunto desse tipo de outro sem qualquer significação não é alguma entidade ou processo especial, mas simplesmente que existam regras para o uso dos sinais, regras que refletem a forma lógica, as possibilidades de combinação dos objetos no mundo. Será útil desenvolver um pouco mais essa ideia, considerando, para tanto, as proposições 3.1-3.13. ') Essa é uma máxima atribuída a Guilherme de Occam (c.1~85-1349). Com frequência, ela se expressa na forma: "entidades não devem ser postuladas desnecessariamente" (Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem).

47

H . O. M ourice

3.1

Em uma proposição, um pensamento encontra uma expressão que pode ser percebida pelos sen tidos.

3.11

Usamos o sinal perceptível (sinal escrito ou sonoro, etc.) de uma proposição como projeção de uma situação possível. O método de projeção é pensar o sentido da proposição.

3.1~

Chamo o sinal por meio do qual exprimimos um pensamento de sinal proposicional. E uma proposição é um sinal proposicional em sua rela ção projetiva com o mundo.

3.13

Uma proposição inclui tudo que pertence à projeção, mas não o que é projetado. Portanto, a possibilidade do projetado, mas não ele próprio. Uma proposição, portanto, não contém, de fato, seu sentido, mas contém a possibilidade de exprimi - lo. ("O conteúdo de uma proposição" significa o conteúdo de uma proposição dotada de sentido.) Uma proposição contém a forma de seu sentido, mas não seu conteúdo.

Wittgenstein se expressa nessa passagem de forma bastante enganadora, e, de fato, muitos comentadores se deixaram enganar. Eles presumiram que Wittgenstein está aqui defendendo uma posição que ele mais tarde criticou. Isso porque, nas Investigações, ele criticou a tendência a se supor que o significado é um tipo especial de processo psicológico que conecta um nome a um objeto e confere sentido a um

A P.ROPOSH/Ã.O co:rvro FIGORAç:Ao

conjunto de palavras ou sinais de outro modo vazio. Alguns 1 ntérpretes pensaram que ele estava, nesse contexto, cri 1 i cando uma posição antes defendida por ele mesmo e que ': precisamente na passagem acima citada que ela deve ser oncontrada. Uma proposição é meramente um conjunto de sinais. Somos nós que conferimos sentido a esses sinais eorrelaoionando , psicologicamente, nomes com objetos. Isso, porém, não é, de forma alguma, o que Wittgenstein quis dizer. Para entender o que ele quis dizer, devemos começar lembrando que uma proposição contém duas características importantes. Em primeiro lugar, uma proposição é uma coleção de elementos que tem uma estrutura lógica. Assim, 11 proposição "o livro está sobre a mesa" tem uma estrutura lógica que pode ser simbolizada como "aRb". Todavia, em Hcgundo lugar, a estrutura abstrata apenas diz alguma coisa , 1 uando é preenchida com nomes, quando os elementos que 11 compõem estão de fato relacionados a objetos no mundo, quandc, por exemplo, ela se torna "o livro está sobre a mesa". 1 sso, no essencial, é tudo o que Wittgenstein está dizendo nas proposições 3.1-3.i3. É somente quando os elementos de urna proposição estão de fato correlacionados com o mundo que a proposição tem um sentido. Antes disso, ela tem somente a possibilidade de um sentido. Assim, "aRb" tem somente a possibilidade de um sentido, enquanto "o livro nstá sobre a mesa" de fato possui um. Contudo, poderia ser dito, somos certamente nós que correlacionamos os elementos da proposição com o mundo e, portanto, somos nós que conferimos sentido à proposição. A resposta é que "correlação" éum termo ambíguo. O que é obviamente verdadeiro é que um sinal não se correlaciona por si 1 nesmo com o mundo: alguém tem que fazer alguma coisa, al49

H . O. M ourice

guma atividade psicológica é necessária para que a correlação ocorra. ( O que poderia ser esse processo psicológico é, como veremos, inteiramente irrelevante.) Ora, se assim se deseja, pode-se chamar isso de "correlação't.Aquestão, no entanto, é que se por "correlação" se entende uma conexão lógica, então ela não consiste numa atividade psicológica. Ou seja, a atividade psicológica, embora necessária para que a correlação ocorra, não estabelece por si mesma a conexão lógica entre nome e significado. Isso é estabelecido pela estrutura .lógica em que o sinal é introduzido. Como Wittgenstein diz em 3.3: "é só no contexto de uma proposição que um nome tem significado". Correlaciona -se um sinal com um objeto somente se ele mantém uma relação lógica com outros sinais em uma proposição. É por isso que o processo psicológico que pode estar envolvido no estabelecimento da correlação entre um sinal e um objeto é inteiramente irrelevante para a filosofia ou para a lógica. Em 4.11~1, Wittgenstein diz: "a psicologia não é mais aparentada com a filosofia que qualquer outra ciência natural". A psicologia é irrelevante para a filosofia ou para a lógica porque não é um processo psicológico que confere sentido à forma lógica; pelo contrário, é somente a forma lógica que pode conferir sentido a um processo psicológico, que pode torná-lo, por exemplo, um pensamento genuíno, por oposição a uma sucessão fortuita de imagens. Portanto, a atividade psicológ~ca envolvida no estabelecimento da correlação entre um sinal e um objeto é, em si mesma, inteiramente destituída de significado. O que lhe confere significado, o que a torna uma correlação genuína, é a estrutura lógica em que o sinal é introduzido. Além disso, o fato de que se possa correlacionar um sinal com um objeto sem que se tenha em mente qualquer uma das

proposições em que o sinal poderia ocorrer é inteiramente irrelevante. Wittgenstein teria dito, na época do Tractatus, o que disse mais tarde, a saber, que o ato de nomear só faz sentido porque já existe um cenário considerável montado na 1 inguagem. Ou, em outras palavras, alguém pode nomear um objeto como que isoladamente somente porque já dispõe de uma apreensão da estrutura lógica e porque sabe que existe, no interior dessa estrutura, um espaço para o nome. Alguém que não dispusesse dessa apreensão da estrutura lógica esta ria fazendo parte de uma cerimônia vã mesmo que o processo psicológico nele operante fosse idêntico àquele que opera em nlguém que dispõe da apreensão dessa estrutura. Essas observações ilustram a importância de não se im por muito rapidamente que qualquer ideia criticada por Wittgenstein na primeira parte das Investigações tenha sido defendida por ele anteriormente. Deveria ser lembrado que, quando reexaminou suas ideias fundamentais, Wittgenstein He esforçou para reconsiderar não apenas o que havia defen dido, mas também o que havia rejeitado." Vemos, portanto, neste capítulo, que uma proposição, para Wittgenstein, é um conjunto de sinais físicos dispostos sobre uma página de acordo com regras que refletem a forma lógica, de modo que os sinais, quando considerados individualmente, representam objetos no mundo e, quando considerados em

xeu arranjo completo, fornecem-nos uma figuração do que pode, de fato, ser o caso. Contudo, poderia ser notado que Wittgenstein, até aqui, ocupou-se apenas de proposições nmpiricas. Ele não teve nada a dizer sobre as chamadas verdades necessárias da lógica, as proposições que aparecem, por ; o Teremos ocasião para retornar a esse tópico quando considerarmos o que Wittgenstein diz no Tractatus sobre o solipsismo.

H. O. Monnce

exemplo, nos sistemas simbólicos desenvolvidos por Frege e Russell. Pensando bem, isso não deveria parecer surpreen dente. Como vimos, a lógica, para Wittgenstein, só pode se mostrar no que é dito sobre o mundo, sobre os fatos; ela não pode, ela mesma, ser enunciada. Essa é precisamente a razão pela qual Wittgenstein começa com proposições empíricas. A única coisa que pode causar surpresa no estágio em que nos encontramos é a questão de saber como ele pode lidar com tudo o mais. Se não se pode enunciar a lógica, como podem haver proposições da lógica a serem explicadas? Esse é o tópico que devemos agora examinar.

CAPÍTULO

3

A fim de compreender o tratamento conferido por Wittgenstein proposições da lógica, precisamos examinar mais um nspecto da assim chamada teoria da proposição como figuração IÍ8

1:, em particular, a relação entre o sentido de uma proposição

na possibilidade de ela ser verdadeira ou falsa. Como vimos, o sentido de uma proposição não é algo que corresponda a ela. Para uma proposição, ter um sentido é aimplesmente afigurar o que pode ser o caso, um estado de coisas possível. Disso se segue, como se poderá notar com 11m pouco de reflexão, que entender uma proposição, apreonder o seu sentido, é saber qual estado de coisas possível

da afigura, ou, o que é o mesmo, como são as coisas se ela é verdadeira. Entender, no entanto, como são as coisas se a proposição é verdadeira é entender que se as coisas forem de outro modo, então a proposição será falsa. Entender o que é para uma proposição ser falsa está, portanto, envolvido em entender o que é para a mesma proposição.ser verdadeira. Com base nisso, podemos ver que a possibilidade de uma proposição ser verdadeira ou falsa é constitutiva do seu sentido, não algo que ocorra como resultado de ela possuir 11m

sentido. As duas coisas, em suma, são a mesma coisa.

Será útil considerar como Wittgenstein ilustra essa doutrina nos cadernos de notas que ele escreveu enquanto trabalhava no Tractatus. A seguinte passagem ocorre na página 98 dos ;adernas. 11

i 1

[N.T.] O autor faz referência à já citada primeira edição em inglês (cf.

Wittge1;1stein, 1961; 1979, p. 104).

H. O. M ourice

Consideremos símbolos da forma "xRy"; a esses correspondem, fundamentalmente, pares de objetos, dos quais um tem o nome

"x"

e o outro, "y". Os xs e

ys mantêm várias relações entre si; entre outras rela ções, a relação R é o caso entre alguns, mas não entre outros. Eu agora determino o sentido de "xRy" pela seguinte regra: quando os fatos se comportam em relação a "xRy" de modo que o significado de "x" man têm a relação R com o significado de "y", digo que os fatos têm" o mesmo sentido" que a proposição "xRy"; do contrário, têm "sentido oposto". Eu correlaciono os fatos ao símbolo "xRy" por assim dividi - los em, de um lado, aqueles de mesmo sentido e, de outro, aqueles de sentido oposto.

Podemos ilustrar o que Wittgenstein quer dizer conside rando a proposição "o livro está sobre a mesa". Livros e mesas mantêm diversas relações entre si. Um livro pode estar sob, próximo a, longe de, assim como sobre uma mesa. Ora, diz Wittgenstein, determina-se o sentido de "o livro está sobre a mesa" estabelecendo-se que, quando o significado de "o livro" mantém com o significado de "a mesa" uma dessas relações em particular, os fatos têm o mesmo sentido; caso esses significados mantenham entre si qualquer uma dás demais relações, os fatos têm sentido oposto. Pelo significado de" o livro", Wittgenstein entende o próprio objeto ao qual a palavra, enquanto sua representante, corresponde. Quando se refere aos fatos de "mesmo sentido" que "o livro está sobre a mesa", ele está fazendo referência aos fatos que tornariam a proposição verdadeira; quando se refere ao que

54

As

LÓGICA

· de "sentido oposto", está fazendo referência aos fatos que a 1 ornariam falsa. É muito importante não se deixar confundir por isso. Wittgenstein não quer dizer que uma proposição muda de sentido quando é falsa. Uma proposição tem o mesmo sentido quer seja verdadeira, quer seja falsa. Quando uma proposição é falsa, são os fatos que têm sentido oposto, não n própria proposição. A razão pela qual Wittgenstein se expressa dessa maneira confusa é que, quando uma proposição é falsa, os fatos são tais que seriam corretamente descritos por uma proposição de sentido oposto. Dessa maneira, quando "o livro está sobre a mesa" é falsa, os fatos são tais que seria correto dizer "o livro não está sobre a mesa". Mas a ideia de Wittgenstein, em suas linhas essenciais, é bastante simples. O que ele quer dizer é que se pode determinar aquilo que uma proposição significa indicando-se o que a tornaria verdadeira por oposição ao que a tornaria falsa. Assim, pode-se determinar o sentido de "o livro está sobre a mesa" indicando-se, pela consideração das várias relações que o livro mantém com a mesa, que um conjunto será chamado "estar o livro sobre a mesa", e todos os outros serão chamados "não estar o livro sobre a mesa". Agora, a ideia importante, para o nosso propósito, é que a fixação do sentido envolve tanto o lado negativo quanto o positivo. Não existe correlação entre símbolos e fatos de mesmo sentido que não seja uma discriminação entre o que é de mesmo sentido e o que é de sentido oposto. Em outras palavras, é a discriminação do que tornaria uma proposição verdadeira em vez de falsa que confere a ela o seu sentido. Wittgenstein também expressou essa ideia, nessa mesma época, dizendo que uma proposição tem dois polos, um polo verdadeiro e um polo falso. Não se entende uma proposição, 55

O. Mounce

não se entende o que seria para ela ser verdadeira, a menos que se entenda o que seria para ela ser falsa. Ora, propria mente entendida, essa ideia leva a uma explicação engenhosa da negação, e será útil considerar essa explicação aqui porque ela elucidará a doutrina central de Wittgenstein de que as constantes lógicas não representam nada e servirá como uma introdução para o que ele tem a dizer sobre inferência lógica e sobre as proposições que pertencem à lógica. A ideia de Wittgenstein é que se entender uma proposição é apreender tanto o seu polo verdadeiro quanto o seu polo falso, então a negação não pode introduzir nenhuma nova discriminação de fatos. Se alguém entende uma proposição, entende como são as coisas se ela é verdadeira, e se entende isso, então, no que diz respeito aos fatos, não há mais nada que precise ser apreendido para que ele entenda a negação da quela proposição. Podemos ilustrar essa ideia considerando o problema dos assim chamados fatos negativos. Compare" o livro está sobre a mesa" com" o livro não está sobre a mesa". A primeira representa um fato positivo, a última, um negativo. Mas o que é um fato negativo? Pode-se apontar para o livro estando sobre a mesa, mas como se pode apontar para o livro não estando sobre a mesa? Certamente, o que quer que possa ser apontado será um fato positivo. Assim, se o livro não está sobre a mesa, ele deve estar sob a mesa, ou próximo à mesa, ou na outra sala, etc. No entanto, todos esses são fatos positivos: eles não são, quando considerados individualmente ou até mesmo coletivamente, equivalentes em significado ao livro não estando sobre a mesa. A que tipo de fato, então, esse último caso faz referência? Esse é um problema que surge inteiramente da gramátic~. Compare as proposições quando escritas da seguinte maneira.

As

f'llOPOSlÇÔI;S DA LÓGICA

O livro está sobre a mesa. O livro não/está sobre a mesa." /\.formadas frases poderia sugerir que "não-estar-sobrea-mesa" é uma relação diferente, mas do mesmo tipo de "estar-sobre-a-mesa". Para desfazer o problema podemos escrever as frases da seguinte maneira. O livro está sobre a mesa. Não/o livro está sobre a mesa. Escrita dessa maneira, a finalidade da segunda frase - isso ( 1 everia ficar claro - não é asserir a existência de uma relação diferente daquela asserida pela primeira. O seu propósito é simplesmente cancelar a primeira frase como um todo. Pode-se apresentar essa mesma ideia de outra maneira. Suponha que nos comunicássemos literalmente com figuras desenhadas em vez de palavras. Se desejássemos dizer que o 1 ivro está sobre a mesa, apresentaríamos um desenho desse estado de coisas. Mas como comunicaríamos que o livro não está sobre a mesa? Um pouco de reflexão revelará que não precisaríamos apresentar um outro desenho. Poderíamos apresentar o mesmo desenho e então, digamos, virá-lo, apresentando o seu verso. O propósito da negação é cancelar uma representação particular dos fatos, não asseri - los. Ora, essa é, em certo sentido, a ideia de Wittgenstein. O sinal para a negação ( como todas as constantes lógicas) não [N.T.] Aqui convém chamar atenção para uma pequena diferença entre língua inglesa e a língua portuguesa. No inglês, a negação ocorre após a cópula - "the book is/not on the table" (" o livro está/não sobre a mesa"). Assim, existe no inglês mais semelhança entre a estrutura da proposição 11 firmativa e a estrutura da proposição negativa na medida em que ambas parecem, mais do que no português, asserir a existência de um fato positivo. 1~

11

57

H . O. M ourice

representa os fatos. Se se entende uma proposição, já estão discriminados todos os fatos que são necessários para que se entenda sua negação. Naturalmente, isso não significa que uma proposição e sua negação tenham o mesmo sentido. O que isso quer dizer é que o sentido do sinal para a negação não repousa nos fatos. Diferentemente de um nome, seu propósito não é o de ser seu representante. Wittgenstein expressou essa ideia dizendo que das três proposições, p, -p e --p, a terceira e a primeira são idênticas. Quando se passa da primeira proposição para a terceira, não se adquire mais informação do que já se tinha antes de se fazer essa passa gem; apenas retorna-se ao ponto de partida. O sinal para a negação meramente cancelap, mas cancele o cancelamento e você voltará a p. Do mesmo modo, vire o desenho do livro sobre a mesa e você terá o polo negativo; vire-o novamente, e terá o positivo. Pois bem, o que consideramos até aqui neste capítulo deve servir, eu sugeri, como uma introdução para o que Wittgenstein diz sobre lógica formal e, especialmente, so bre as proposições da lógica, as assim chamadas verdades necessárias. À primeira vista, entretanto, pode parecer difícil perceber como isso pode ser o caso, pois, tendo em vista o que foi dito, pode agora parecer ainda mais difícil entender como Wittgenstein pode dar uma explicação das proposições da lógica. Afinal de contas, as proposições da lógica são necessariamente verdadeiras, isto é, verdadeiras quaisquer que sejam as circunstâncias. Contudo, de acordo com Wittgenstein, como dissemos, é necessário que uma proposição tenha um polo verdadeiro e um polo falso, ou seja, uma proposição não pode ser verdadeira quaisquer que sejam as circunstâncias. Para ver como Wittgenstein resolveu essas dificuldades, voltemo-nos para a sua explicação.

A s l'ROPOSIÇÕ.ES DA LÓGICA

A primeira noção que devemos entender é a de função de verdade. Já vimos que se quisermos explicitar a estru tura lógica das proposições da linguagem ordinária, então os nomes que as compõem precisam ser analisados. Tais como se encontram, em sua forma não analisada, eles são estruturas complexas formadas por proposições elementa res, as proposições cujos nomes realmente correspondem, de maneira direta, a objetos no mundo. Wittgenstein, como já dissemos, nunca dá um exemplo de uma proposição elementar. O que ele faz, entretanto, é indicar o tipo de relação que existe entre uma proposição complexa e as proposições elementares que a constituem. Uma proposição complexa, ele diz, é umafunção de verdade de proposições elementares. Para perceber o que Wittgenstein quer dizer, suponhamos que uma proposição seja constituída pelas proposições elementares "p" e "q". Vimos que cada proposição tem um polo verdadeiro e um polo falso - em outras palavras, cada proposição tem a possibilidade de ser verdadeira ou falsa. No entanto, em uma proposição complexa, constituída por "p" e "q", a verdade ou a falsidade da proposição como um todo dependerá da verdade ou da falsidade das proposições que a constituem, "p" e "q". Além disso, existem várias possibilidades, várias maneiras pelas quais, dependendo da verdade ou da falsidade de suas proposições constituin tes, a verdade ou a falsidade da proposição como um todo pode ser determinada. Por exemplo, em uma proposição complexa constituída por "p" e "q", "p" e "q" podem ser ambas verdadeiras, ou "p" pode ser falsa e "q", verdadeira, ou vice-versa, ou, ainda, "p" e "q" podem ser ambas falsas. Isso pode ser apresentado na forma das tabelas de verdade de Wittgenstein: 59

H. O. Mounce

p V

q V

F

V

V

F

F

F

Entretanto, a maneira como as possibilidades de verdade apresentadas nessa tabela afeta a verdade ou a falsidade da proposição como um todo não será a mesma para toda proposição constituída por "p" e "q". Isso dependerá de como "p" e "q" estiverem combinadas para formar a proposição como um todo. Assim, para algumas combinações, se "p" for verdadeira e "q" for falsa, a proposição como um todo será falsa; para outras combinações, será verdadeira. Aqui estão dois exemplos - a terceira coluna em cada caso representa a maneira como a verdade ou a falsidade da proposição como um todo é afetada pelas possibilidades de verdade de suas proposições constituintes: (B)

(A)

p q

p q

vv

V

FV

V

V V FV

V F

V F

V

V F

F

F F

F

F F

F

A tabela de verdade (A) é a tabela de verdade para a proposição "p ou q" (p v q). (B) é a tabela de verdade para a proposição "p eq" (p · q).Assim, "p ouq" será falsa se "p" e "q" forem ambas falsas, mas verdadeira para todas as demais possibilidades; "p eq" será verdadeira se "p" e "q" forem ambas verdadeiras e falsa para todas as demais possibilidades. Isso, então, é o que Wittgenstein quis dizer quando disse que uma proposição complexa é uma função de verdade de

60

A s PROl'OSIÇÕES DA LÓGICA

proposições elementares. A verdade ou a falsidade da proposição complexa depende, dessa maneira, das possibilidades de verdade das proposições elementares que a compõem. Vejamos, contudo, se realmente entendemos a ideia de Wittgenstein por completo. Tentei deixar claro em minha exposição que uma tabela de verdade é um sinal proposicional. Por exemplo, a tabela de verdade para a proposição "p ou q" (p v q) tem como terceira coluna (VWF). Ora, esses sinais são, para Wittgenstein, equivalentes. Em outras palavras, o mesmo sinal proposicional pode ser escrito tanto como "p v q" quanto como "(VVVF) (p, q)". Ou ainda, tanto como "p · q" quanto como "(VFFF) (p, q)". Ou ainda, como "p :::::> q" (se p, então q) ou como "(VVFV) (p, q)". Ora, substituir uma proposição que contém uma constante lógica por uma tabela de verdade serve para mostrar claramente que o sentido de uma proposição é equivalente às suas possibilidades de verdade. Além disso, serve ainda para enfatizar que as constantes lógicas não correspondem a objetos, que a lógica não representa os fatos. Como Wittgenstein diz em 4.441: "é claro que ao complexo dos sinais 'F' e 'V' não corresponde nenhum objeto (ou complexo de objetos); como tampouco aos traços horizontais e verticais, ou aos parêntesis - Não há 'objetos lógicos'". É evidente que os "F"s e "V"s na tabela de verdade não correspondem a objetos, mas sim às possibilidades de verdade das proposições, e é, portanto, evidente que as constantes lógicas, uma vez que são equivalentes a essas possibilidades, também não correspondem a objetos. Admitindo, porém, que compreendemos o que Wittgenstein entende por uma função de verdade, como isso nos permite compreender a natureza das proposições da lógica? Em 4.46, Wittgenstein diz:

H.

Entre os grupos possíveis de condições de verda de, há dois casos extremos. Num dos casos, a proposição é verdadeira para todas as possibilidades de verdade das proposições elementares. Dizemos que as condições de verdade são tautológicas. No segundo caso, a proposição é falsa para todas as possibilidades de verdade: as condições de verdade são contraditórias. No primeiro caso, chamamos a proposição de tautologia; no segundo caso, de contradição. Para perceber o que Wittgenstein quer dizer, considere as seguintes tabelas de verdade: p · -p

p::, p

V

F

F

V V

V

F

V

F

F

F

V

V F

F

V V

V

F V

F

F

V

F

Essas tabelas de verdade mostram que podemos construir proposições que são falsas quaisquer que sejam as possibilidades de verdade de suas proposições constituintes e outras que são verdadeiras quaisquer que sejam essas possibilidades. Podemos construir contradições e tautologias. Em 4.461, Wittgenstein diz que tautologias e contradições não têm sentido. Por exemplo, ele diz, eu não sei nada sobre o tempo quando sei que chove ou não chove. Em outras palavras, se uma proposição é verdadeira quaisquer que sejam as circunstâncias, o que quer que ocorra no mundo, então ela não afigura nada em particular. No entanto, se não afigura nada em particular, então ela não diz nada, pois 6~

PllOPOS!ÇÔES DA LÓGICA

dizer alguma coisa é precisamente afigurar, dentre diversas possibilidades, uma determinada possibilidade em particu lar. Agora, contudo, pode parecer óbvio que, se carecem de sentido, essas proposições, na verdade, simplesmente não são proposições. A questão não é tão óbvia quanto parece. Em 4.46u, Wittgenstein diz: "tautologias e contradições não são, porém, contrassensos". Essa afirmação, à primeira vista, é inteiramente mistificadora. Como tautologias e contradições podem não ter sentido e, ainda assim, não ser contrassensos? O que Wittgenstein quer dizer é que tautologias e contradi ções não têm sentido na medida em que não dizem nada, mas que, apesar disso, elas não são algaravias (gibberish). Elas são, como ele diz, parte do simbolismo. Ao construir uma tabela de verdade que gera uma tautologia, seguimos as mesmas regras usadas na construção de qualquer outro tipo de tabela de verdade. Não há regras comparáveis para a construção de algaravias. Além disso, embora não digam nada, tautologias e contradições mostram algo sobre a natureza da estrutura lógica. Assim, "p · -p" não diz nada, mas o fato de que isso não possa ser dito mostra algo sobre a lógica, ou melhor, o fato de que esses sinais, quando assim unidos, não digam nada mostra algo sobre a lógica. Em "p · -p", pode-se dizer, é revelada uma desintegração do sentido, mas o valor de "p · -p" consiste em que essa desintegração se revela por não ser arbitrária. Estamos cientes, por meio dela, de regras que refletem a forma lógica e que nos permitem construir, com os símbolos que a constituem, proposições que dizem alguma coisa. Nada disso se mostra em uma algaravia como "crase todavia uivo". Ora, o ponto de Wittgenstein é precisamente que as proposições da lógica são tautologias. Aqui, em outras pala vras, aproximamo-nos por outro ângulo da ideia central de 63

H. O. Mounce

Wittgenstein, a saber, a de que a lógica pode ser mostrada, mas não pode ser dita. As proposições da lógica são tautologias: elas mostram a forma lógica, mas não dizem nada sobre o mundo. Para perceber isso mais claramente, consideremos o que Wittgenstein diz sobre inferência lógica. Ele expressa o que pensa sobre o tema no aforismo 5.11: Se os fundamentos de verdade comuns a um certo número de proposições forem todos também funda mentas de verdade de uma determinada proposição, diremos que a verdade desta se segue da verdade da quelas. Será útil contrastar o que Wittgenstein está dizendo aqui com o pano de fundo dos sistemas simbólicos desenvolvidos por Frege e Russell. O sistema de Frege, como vimos, estava estruturado como um sistema de geometria. Certas verdades lógicas eram consideradas axiomas, ou proposições primitivas, e delas, por meio das assim chamadas leis de inferência, eram deduzidas outras verdades lógicas. Quando discutimos isso anteriormente, suscitamos a questão de saber como esses elementos do sistema deveriam ser entendidos. Que relação, por exemplo, as verdades lógicas deduzidas mantêm com aquelas das quais elas são deduzidas? São os axiomas, em algum sentido, mais fundamentais do que as verdades lógicas deles deduzidas? Poderia parecer natural responder a essas questões dizendo que a lógica, como apresentada por Frege e Russell, é um sistema hierárquico. Algumas verdades são mais fundamentais do que outras. Os axiomas, por exemplo, são fundamentais porque são autoevidentes, e as outras proposições do sistema dependem deles para sua verdade. Entretanto, existem dificuldades evidentes nessa concepção.

As

.PRO.POSIÇÔI:S DA LÓGICA

Em primeiro lugar, a escolha dos axiomas parece ser arbitrá ria. Os axiomas escolhidos por Frege eram da forma "se ... , - ... " : "P ::> --P" e "(P ::> Q) ::> ( - Q ::> -P)" senam . entao exemp 1 os, escritos na notação de Russell. O próprio Russell, entretanto, usou axiomas que empregavam as constantes "ou" e "não". Além disso, relacionada a essa, existe uma certa dificuldade quanto às assim chamadas leis de inferência. Frege deduziu as verdades do seu sistema de um conjunto de axiomas por meio da lei: "de 'A' e 'seA, entãoB' infere-se 'B"'. Mas qual é o status dessa lei? Ela mesma repousa sobre uma verdade lógica autoevidente? Se esse é o caso, é essa verdade, em alguma medida, ainda mais básicá do qu:e os axiomas? Wittgeristein apresentou uma concepção de inferência que desfaz todos esses problemas. Ele produziu, nas palavras de Russell, uma simplificação surpreendente da teoria da inferência. A essência de sua ideia é que a inferência repousa intei ramente sobre as relações internas mantidas entre proposições. Se deduzo que choverá porque me disseram que há nuvens carregadas no céu, não há qualquer relação interna entre as proposições envolvidas. A relação, nesse caso, é contingente, a inferência sendo justificada pela experiên eia passada. A inferência lógica é muito diferente. Se "p" se segue logicamente de "q", diz Wittgenstein em 5. 13~, as duas proposições são elas mesmas a única justificação possível para a inferência. Em poucas palavras, pode-se ver que uma se segue da outra simplesmente apreendendo o sentido das proposições envolvidas. Isso porque dizer que "p" se segue de "q" é apenas dizer que o sentido de "p" está contido no sentido de "q", ou, para expressar exatamente a mesma ideia em outras palavras, que os fundamentos de verdade de uma estão contidos nos fundamentos de verdade da outra. Por

H. O . M ourice

exemplo, aqui estão os fundamentos de verdade, as terceiras colunas das tabelas de verdade, de "p · q" e "p v q". P. q

pvq

V

V

F

V

F

V

F

F

Ora, pode-se inferir a verdade de "p v o" da verdade de "p • q". Além disso, não é necessário que se explique por que isso deve ser assim; pode-se vê-lo simplesmente olhando para as tabelas de verdade, pois, enquanto existem Vs na coluna da direita onde existem Fs na coluna da esquerda, não existem Vs na coluna da esquerda onde existem Fs na da direita. Isso significa que, enquanto "p vq" pode ser verdadeira e "p · q", falsa, "p · q" não pode ser verdadeira e "p vq", falsa. Em outras palavras, pode-se inferir "p vq" de "p · q". Ora, disso se segue que todas as proposições da lógica estão exatamente no mesmo nível. Se alguém deduz que choverá porque lhe disseram que há nuvens carregadas no céu, essa pessoa obteve alguma informação adicional. Ela sabe mais do que simplesmente que há nuvens carregadas no céu. Pode-se ficar tentado a olhar para a relação entre as verdades lógicas e os axiomas do sistema de Frege precisamente da mesma ma neira. Isso, no entanto, está inteiramente errado. Em certo sentido, nunca se vai além dos axiomas, pois tudo o que se faz ao desenvolver o sistema é extrair o que está neles contido. O sistema hierárquico da lógica deve, portanto, estar errado. Todas as proposições da lógica estão no mesmo nível e todas dizem a mesma coisa, a saber, nada. Em outras palavras, ao desenvolver um sistema lógico não se estão deduzindo mais e mais verdades sobre a realidade. O que se está fazendo é 66

..

As

PROPOSIÇÜES DA LÓGICA

explicitar as conexões internas entre as proposições, mostrar como seus sentidos estão inter-relacionados. Também por essa razão, as leis inferenciais que encon tramos em Frege e Russell são inteiramente desnecessárias. Sua introdução mostra, mais uma vez, uma confusão acerca da relação entre a lógica e as outras ciências. Se conheço a lei de que nuvens carregadas produzem chuva, então, do conhecimento de que há nuvens carregadas, posso deduzir que choverá. Sem a lei, eu não poderia ter feito essa dedução, não poderia ter deduzido que choveria de minha observação das nuvens carregadas. Contudo, como vimos, se "p" se segue de "q", pode-se saber disso com base apenas em "p" e "q". uma lei não se faz necessária. A inferência depende inteiramente das relações internas entre as proposições. Isso pode ser expresso de outra maneira. Considere a lei de inferência "de 'A' e de 'seA, então E', infere-se 'B"'. Agora, suponha que eu perguntasse: "por que eu deveria fazer isso?". A resposta poderia ser que a lei repousa sobre a verdade necessária "A ::) B · A . ·. B". Mas preciso agora de outra lei que garanta isso, ou posso ver a verdade da proposição nela mesma? Se precisamos de outra lei, estamos a caminho de uma regressão ao infinito. Se não precisamos de outra lei, então por que uma lei de inferência foi antes necessária? O que temos aqui é meramente outra expressão da ideia de Wittgenstein segundo a qual a lógica difere das demais ciências. Qual quer tentativa de provar ou de explicar a validade da lógica é inevitavelmente circular, já que deve pressupor a validade e compreensibilidade do que ela pretende provar ou explicar. A lógica, como diz Wittgenstein, deve cuidar de si mesma. Segue-se, portanto, que axiomas, leis de inferência e proposições deduzidas estão todos no mesmo nível. Leis de

H. O. M ourice

inferência são supérfluas. Expressas como proposições, são proposições lógicas como quaisquer outras. Além disso, o que é considerado axioma é uma questão de conveniência e não mostra nada sobre a lógica. Ora, como eu disse, as ideias que estão sendo aqui apresentadas são as ideias que aparecem ao longo do Tractatus, que são fundamentais para a obra. Note, porém, o quão maravilhosamente elas se encaixam com a análise das proposi ções como funções de verdade de proposições elementares. De acordo com essa análise, a verdade de uma proposição depende da verdade das proposições que a compõem. Pro posições lógicas se mostram em serem verdadeiras para todas as situações possíveis, isto é, elas são tautologias. Essa, no entanto, é apenas outra maneira de dizer que a lógica não pode ser dita, que ela só pode ser mostrada. Ainda de acordo com essa análise, as relações lógicas entre proposições consistem nos modos como seus fundamentos de verdade se inter-relacionam. É por isso que não pode haver relações lógicas entre proposições elementares, que a verdade de uma proposição elementar não pode se seguir da verdade de outra. Se são proposições elementares, "p" e "q" não são formadas a partir de outras proposições e, portanto, não podem ter fundamentos de verdade em comum. Nesse caso, contudo, a verdade de uma não pode se seguir da verdade da outra. Relações lógicas existem apenas onde há complexidade e proposições com fundamentos inter-relacionados. Mas essa é apenas outra maneira de dizer que relações lógicas são internas e devem, portanto, ser rigorosamente distinguidas das relações estudadas por ciências que não sejam alógica .. Além disso, se refletirmos sobre o que foi dito acerca da natureza de uma tautologia, veremos por que Wittgenstein

68

As

.:Pllü'POSI9ÔES DA LÓGICA

pensou que era importante desenvolver um sistema lógico. 13 Tautologias, dissemos, exibem a forma lógica. Consequentemente, um sistema lógico, que é um sistema de tautologias, exibirá a forma lógica sistematicamente. Será importante ter isso em mente quando considerarmos as críticas que Wittgenstein formulou contra os sistemas lógicos desenvolvi dos por Frege e Russell. À primeira vista, essas críticas podem ser facilmente mal interpretadas. Elas frequentemente con sistem em apontar para vagueza, ambiguidade etc., nos sistemas a que se dirigem. Corno tais, elas podem parecer pouco mais do que a expressão, por parte de Wittgenstein, de uma paixão por precisão ou até mesmo de uma preocupação exa gerada com detalhes. Isso, entretanto, é perder inteiramente de vista sua verdadeira natureza. As críticas se seguem daquilo que Wittgenstein julga ser o propósito de um sistema lógico. Para ele, o propósito de um sistema lógico não é fornecer uma linguagem logicamente mais-perfeita que a ordinária. Um projeto desse tipo é, para Wittgenstein, inteiramente incoerente. Uma coisa não pode ser mais lógica do que outra. Ou uma coisa é lógica ou não o é, ou ela tem sentido ou não tem nenhum sentido. Assim, o propósito de um sistema lógico não é fornecer a lógica de que a linguagem ordinária carece; pelo contrário, é exibir a lógica da linguagem ordinária de maneira mais perspícua do que a própria linguagem ordinária o faz. Nesse caso, contudo, segue-se que o pecado capital de um sistema lógico será falta de perspicuidade, vagueza, ambigui dade. Um sistema lógico vago nega o seu próprio propósito, pois o seu propósito só poderá ser alcançado se ele for claro. 13 Por razões que ficarão claras logo adiante, seria mais preciso dizer que o que Wittgenstein desejava ver desenvolvido não era um sistema lógico, como os de Russell e Frege, mas um simbolismo lógico mais adequado.

H. O. M ounce

No entanto, esses são tópicos que consideraremos em maior detalhe quando nos voltarmos para outra característica importante da argumentação de Wittgenstein.

CAPÍTULO

4

uma Como vimos, Frege e Russell usarGerentes axiomas em seus sistemas, e essa diferença se mostra especialmente no uso que eles fizeram de diferentes constantes lógicas como fundamentais. Frege usou "se" e "não", Russell usou "ou" e "não". Já vimos que, para Wittgenstein, a escolha de axiomas é uma questão de conveniência e não mostra nada sobre a lógica. Ele ainda sustentou, contudo, que a mera existência de uma pluralidade de constantes era indesejável na medida em que obscurecia as relações lógicas e fazia com que elas parecessem arbitrárias. Para perceber por que ele pensou isso, considere as seguintes inferências: (a)

(pvq)·-p.·.q

(h)

-(-p. -q). -p .·. q

À primeira vista, (a) e (h) são inferências diferentes; elas representam operações lógicas diferentes.Na verdade, porém, (a) é equivalente a (h). Isso porque "(p v q)" é equivalente a "-(-p · -q)". Em outras palavras, as inferências (a) e (h) permaneceriam as mesmas se" (p v q)" fosse substituída por "-(-p · -q)" em (a) e" -(-p · -q)" fosse substituída por" (p v q)" em (h). O que temos é uma única operação lógica aparecendo como duas, e é arbitrário que essa operação seja simbolizada por meio das constantes lógicas "v" e"-". No entanto, como vimos, é essencial para Wittgenstein que um simbolismo lógico não contenha elementos arbitrários. Um simbolismo lógico deveria constituir um espelho em que a forma lógica aparecesse com total clareza, em que uma única operação na

ILO.

lógica fosse representada por uma única operação no simbolismo. Esse ideal, entretanto, não pode ser alcançado por um sistema lógico que emprega uma pluralidade de constantes lógicas. Em qualquer sistema dessa natureza, o modo como operações lógicas são simbolizadas será, em alguma medida, uma questão arbitrária. Ora, na época em que Wittgenstein escreveu o Tractatus, já havia sido mostrado que as constantes lógicas poderiam ser todas substituídas por uma única constante - a assim chamada barra de Sheffer. Wittgenstein refere-se a ela na proposição 5.13u: se concluímos q de p v q e -p, a relação entre as formas das proposições "p v q" e "-p" é velada por esse modo de significação. No entanto, se escrevemos, por exemplo, "plq. l .plq" em vez de "p vq", e "plp" em vez de "-p"

(plq

=

nem p nem q), a conexão interna

torna-se óbvia.

Como diz Wittgenstein, p I q = nem p nem q; e pelo uso desse recurso pode-se eliminar a pluralidade de constantes lógicas, assim reunindo as operações lógicas sob uma única formá e representando as relações internas entre proposições de maneira mais perspícua. Por exemplo, "p v q" e "-(-p · -q)" podem agora ser escritas na forma "plq-1.plq". Isso significa: nem, nem p nem q, nem, nem p nem q - e precisa ser escrito desse modo um pouco artificial para preservar a forma "nem ... nem ... ". Entretanto, tudo o que está de fato acontecendo é que se está descartando a possibilidade de que nemp nemq, o que, se pensarmos um pouco, poderá ser reconhecido como equivalente a asserir "p ou q" ou "não é~ caso que não p e não q"

A

FORMA G:Efü\L DE llMA

PRüPOSH,:Ao

A ideia central acerca da barra de Sheffer, portanto, é que ela mostra que a pluralidade de constantes lógicas pode ser eliminada e, portanto, mostra também que qualquer simbolismo em que elas não sejam eliminadas-e,bs-~cerá a forma lógica. Isso nos leva à noção wittgensteiniana da forma geral de uma proposição. Poderemos perceber o que Wittgenstein entende por isso se tivermos em mente tanto que proposições são funções de verdade de proposições elementares quanto que há apenas uma constante lógica. Dado que proposições, ou ao menos as proposições do discurso ordinário, são funções de verdade de proposições elementares, deve haver alguma maneira pela qual elas são construídas a partir dessas proposições. À primeira vista, pode-se supor que as constantes lógicas que aparecem em Frege e em Russell desempenham esse papel. Duas proposições "p" e "q" tornam-se a proposição complexa "p v q" quando a constante "v" é colocada entre elas; elas se tornam uma proposição diferente quando unidas pela constante "· "; e assim por diante. Ou, para expressá - lo de forma mais precisa: "p" e "q" tornam-se proposições complexas diferentes quando sujeitas às diferentes operações lógicas representadas por "v" e"·". Todavia, já vimos que isso é inadequado, pois vimos que "v" e "·" não representam, na verdade, operações lógicas fundamentalmente diferentes. Dado que as constantes lógicas podem ser definidas umas pelas outras, podem ser substituídas por uma única constante, tem de haver uma única operação fundamental que subjaz a todas elas. É essa operação fundamental pela qual todas as proposições são produzidas a partir de proposições elemen tares que Wittgenstein chama a forma geral da proposição. Entretanto, para compreender isso adequadamente, precisamos entender o sentido preciso em que Wittgenstein fala de uma operação. Consideremos as proposições 5.~-5.~3.

H.O.

5.~

As estruturas das proposições mantêm entre si relações internas.

5.~1

A fim de realç~r essas relações internas, podemos adotar o seguinte modo de expressão: podemos representar uma proposição como o resultado de uma operação que a gera a partir de outras pro posições (que são as bases da operação).

5-~~

Uma operação é a expressão de uma relação entre a estrutura de seu resultado e de suas bases.

5.~3

A operação é o que deve ser feito com uma proposição para que dela se faça outra.

Aplica-se, então, uma operação sobre uma proposição de base para produzir uma proposição diferente como resul tado. Wittgenstein, no entanto, tem em mente um modelo particular de como isso é feito. Em 5.~5~1, ele diz: "se uma operação é aplicada repetidamente aos seus próprios resulta dos, falo em aplicações sucessivas dessa operação ("O'O'O' a" é o resultado da tripla aplicação sucessiva de "O' ç" a "a")". E, em 5.~5~3, ele diz: "o conceito de aplicações sucessivas de uma operação equivale ao conceito 'e assim por diante'", Em outras palavras, Wittgenstein está especialmente interessado em operações que tomam seus próprios resultados como base, em que, como ele diz em 5-~~. há uma relação estrutural entre a base e o resultado. Assim, aplicando-se O sobre a, obtém-se Oa; repetindo-se a operação e aplicando-se O sobre Oa, obtém-se OOa; e assim por diante. Em sua obra posterior, Wittgenstein viria a examinar continuamente a natureza desse "e assim por diante" de um modo que ele não

74

A. FOllMA GERAL llF

l,ROPOSlÇ.4.0

o fez no período de redação do Tractatus. Deixemos, porém, isso de lado por enquanto. A ideia é que uma opêraçãêY~de tomar seus próprios resultados como base. Um exemplo familiar é a multiplicação por~:~ multiplicado por~ é 4; pegue o resultado e multiplique-o por~ novamente. Ora, a operação fundamental (a forma geral de uma proposição) por meio da qual todas as proposições são geradas a partir de proposições elementares é desse tipo. Mas o que, mais especificamente, ela é? Na proposição 6, Wittgenstein representa a forma geral da proposição como [p, {, N(f)J, e o que isso diz, ele explica, é que toda proposição é o resultado de aplicações sucessivas da operaçãoN(l) a proposições elementares (isto é, "p"). O "N" indica que a operação envolve, de alguma maneira, a negação. Portanto, o que Wittgenstein está dizendo é que qualquer proposição que se considere será o resultado de aplicações sucessivas (isto é, aplicações do tipo ~ vezes ~. 4 vezes ~) a proposições elementares de alguma operação que _envolve a negação. Mas o que, mais especificamente, é N(ç)? Isso é explicado em 5.5: Toda função de verdade é um resultado de aplica ções sucessivas da operação (-----V) (ç, .... ) a proposições elementares. Essa operação nega todas as proposições entre os parênteses da direita, e chamo-a a negação dessas proposições.

O que temos nos parênteses da direita-" ç, .... " - representa simplesmente uma seleção particular de proposições elementares. O que temos nos parênteses da esquerda é

75

H . O. M ourice

uma tabela de verdade com os Fs deixados de fora. Assim, o símbolo de Wittgenstein pode, para os nossos propósitos, ser escrito como (FFFV) (p, q). Ora, o que Wittgenstein está fazendo é expli_5ar "N(f)" por meio daquela tabela de verdade. Em suma, "N(ç)" e" (FFFV) (p, q)" são equivalentes entre si. Mas aquela tabela de verdade nos leva, por sua vez, à barra de Sheff er - nem p nem q ou -p · -q. Assim: -p ·-q V

V

F

F

V

F

V

F

F

F

F

V

Portanto, "(FFFV) (ç, .... )" ou "N('[)" é equivalente a uma operação de negação conjunta, representada pela barra de Sheffer, e o que Wittgenstein está dizendo é que as aplica ções sucessivas dessa operação às proposições elementares produzirão todas as demais proposições. Ou seja, é assim que as proposições complexas do discurso ordinário são produ zidas. Considere, por exemplo, como a proposição "p v q" é produzida a partir de p, q, duas proposições elementares. Se aplicamos a operação de negação conjunta a p,

q, obtemos

N(p, q) - isto é, nemp nem q. Aplicando a operação a esse resultado, obtemos N(N(p, q)) - isto é, nem, nem p nem q; nem, nem p nem q, que é equivalente a "p v q". Podemos ver, portanto, como a essência da linguagem, sua forma comum, é espelhada mais claramente em um simbolismo lógico que elimina a pluralidade de constantes e as substitui pela barra de Sheff er. Retornaremos à forma geral da proposi ção mais tarde. Por enquanto, consideremos em maior detalhe o que Wittgenstein tem a dizer sobre o simbolismo lógico:

3.3~8

Se não tem serventia, um sinal não tem significado. Este é o sentido do lema de Occam.

E 3.33

Na sintaxe lógica, o significado de um sinal nunca deveria desempenhar papel algum; ela deve poder estabelecer-se sem que se fale do significado de um sinal: ela pode pressupor somente a descrição das expressões.

Em outras palavras, um simbolismo lógico deveria ser, em si mesmo, um espelho da forma lógica. Ele deveria funcionar, não dizendo o que a lógica é, mas exibindo a lógica na operação dos seus sinais. Por essa razão, a mão do lógico não deveria aparecer em seu sistema. Tendo estipulado as regras para como os sinais que aparecem em seu sistema podem se combinar, ele deveria se distanciar e deixar que a operação dos sinais fale por ele. Ademais, isso ocorrerá inevitavelmente se ele tiver garantido que as regras que governam a operação dos seus sinais refletem a forma lógica. Portanto, se os sinais funcionarem, ele não precisará enunciar o seu significado. Este será evidente, pois, se tudo se comporta como se um sinal tivesse significado, então ele tem significado. Se os seus sinais não funcionarem, ele terá deixado de dar- lhes significado, pois, se não tem serventia, um sinal não tem significado. Será útil ilustrar essa ideia fazendo referência a algumas outras críticas que Wittgenstein dirige contra o sistema de Russell. Uma de suas críticas diz respeito ao uso que Russell faz do sinal de identidade.

77

H . O. M ourice

5.53

Exprimo a identidade do objeto por meio da identidade do sinal, e não usando um sinal para a identidade. A diferença dos objetos, por meio da diferença dos sinais.

5.5303

Em termos aproximados: dizer de duas coisas que elas são idênticas é um contrassenso, e dizer de uma coisa que ela é idêntica a si mesma é não dizer rigorosamente nada. E vemos agora que pseudoproposições como "a= a", "a= b. b =e::::> a= e", "(x). x = x", "(3x). x = a"

etc. não podem nem mesmo ser formuladas numa ideografia correta.

Para Wittgenstein, os sinais em um simbolismo lógico correto expressarão o seu significado por meio do seu uso. Assim, a identidade de um objeto ao qual um sinal, enquanto seu representante, corresponde deveria ser evidente na identidade do sinal, e não deveria ser preciso asseri -Ia separadamente. De fato, uma proposição como "a= a" ou "a = b", quando con cebida como uma asserção sobre um objeto, é estritamente sem sentido (dizer que um objeto é idêntico a si mesmo é não dizer nada). Concebida como uma asserção sobre esses sinais, é claro que ela é bastante coerente; '"a' = 'b"' pode ser tomada como uma asserção de que esses sinais têm um uso equivalente. A ideia de Wittgenstein, contudo, é que, em um simbolismo adequado, este último tipo de asserção deveria ser desnecessário, pois o que é de fundamental importância em um simbolismo adequado é que um sinal deve significar através de sua identidade, por meio de um uso claro e determinado. Ter de remover uma ambiguidade, ter de explicar o

À FORMA

DE 01.fA. PROPOSIÇJ:;.o

uso de um sinal, no meio de um simbolismo lógico é evidência certa de que o simbolismo é inadequado. Essa ideia é de fundamental importância para compreen der o que Wittgenstein diz sobre a teoria dos tipos de Russell. Como vimos, Russell desenvolveu essa teoria dos tipos para evitar os paradoxos lógicos que parecem surgir se se permi te que proposições façam referência a si mesmas, ou se se permitem noções como classes de classes ou propriedades de propriedades, ou funções de funções. Em sua teoria dos tipos, Russell tentou restringir a construção de expressões como essas. Em 3.33~, Wittgenstein diz: Nenhuma proposição pode enunciar algo sobre si mesma, pois um sinal proposicional não pode estar contido em si mesmo· (isso é toda a "theory of types ").

Para ilustrar essa ideia, Wittgenstein imagina a tentativa de construir uma função que constitua o seu próprio argumento. Assim, na função "x é gordo" (fx), poderia a função ocupar a posição de seu próprio argumento, "x"? Supondo que pudesse, ela poderia ser simbolizada como F(f). No entanto, diz Wittgenstein, o que ocupa essas duas posições não é um símbolo, mas dois. A identidade de um sinal, isso deve ser lembrado, não é garantida pela sua forma física, mas pelo seu uso. Sinais com formas bastante diferentes, mas com o mesmo emprego, são o mesmo símbolo; sinais que têm a mesma forma, mas que são empregados de maneiras diferentes, são símbolos diferentes. Nesse caso, quando "F" está fora dos parênteses, ele é um símbolo diferente do que é quando está dentro dos parênteses, pois tem um emprego diferente. Sendo assim, não teremos construído uma expressão em que um e o mesmo símbolo ocorre tanto como função quanto 79

IL O. Mounce

como seu próprio argumento. A ideia de Wittgenstein é que, em um simbolismo correto, uma construção como essa será vista como impossível e que é isso que desqualifica a teoria dos tipos de Russell. Em outras palavras, não se pode, em um simbolismo correto, construir uma proposição que faça referência a si mesma sem tornar evidente que a proposição contida tem uma função diferente daquela da proposição que a contém. Nesse caso, no entanto, será evidente que não se pode construir uma proposição que faça referência a si mesma, pois, tendo em vista essa tentativa equivocada, será evidente que o que se tem não é uma proposição, fazendo referência a si mesma, mas proposições diferentes. Em suma, uma teoria dos tipos é inteiramente desnecessária, pois, em um simbolismo correto, o problema com o qual Russell pretende lidar simplesmente não surgirá. Ele desaparecerá na própria operação dos sinais. Wittgenstein defende basicamente a mesma ideia arespeito do axioma da infinidade de Russell. Este acreditava que era necessário supormos uma infinidade de objetos se quiséssemos garantir a plena inteligibilidade de nossa lin guagem; pois, do contrário, como poderíamos estar certos de que não há mais nomes em nossa linguagem do que objetos para conferir- lhes significação? A resposta de Wittgenstein é que isso se mostrará na aplicação de nossa linguagem. Onde há um objeto, pode ser-lhe atribuído um nome; se um sistema contém nomes vazios, se há sinais em um sistema que carecem de um objeto correspondente, as proposições em que esses sinais forem introduzidos não dirão nada. Seja como for, a suposição de Russell é desnecessária. Essa resposta, na verdade, precisa ser suplementada. Russell estava ocupado, fundamentalmente, com a matemática. Sua ideia , 80

A FORMA GJ,BAL DE UMA }'ROPOSIÇAO

era que, ao lidarmos com um sistema matemático, estamos comprometidos a aceitar uma infinidade de objetos, pois sabemos, com base em razões a priori, que o sistema pode ser estendido infinitamente. Em outras palavras, sabemos, de antemão, que, não importa o quanto estendamos o sistema, ele terá significação e, portanto, que tem de haver uma infinidade de objetos se a significação do sistema deve ser garantida. A resposta de Wittgenstein a isso não poderá ser inteiramente apreciada até considerarmos em detalhe o que ele tem a dizer sobre a matemática. Brevemente, no entanto, sua ideia é que Russell concebeu de maneira equivocada a natureza da matemática. Para Wittgenstein, a matemática é como a lógica na medida em que não representa o mundo, e o fato de falarmos sobre infinidade na matemática de modo algum exige que nos comprometamos com suposições sobre os fatos. No entanto, como eu disse, retornaremos a esse tópico mais tarde e o consideraremos em detalhe. Neste capítulo, portanto, ilustramos o tema de que tratamos no final do capítulo anterior. Para Wittgenstein, a lógica não pode ser dita, mas pode ser exibida em um simbolismo adequado. É necessário, entretanto, que o simbolismo seja adequado; e vimos alguns dos motivos pelos quais, segundo Wittgenstein, o sistema de Russell se afastou desse ideal.

81

CAPÍTULO

As equações

5

matemática

Até aqui, examinamos, pelo menos em linhas gerais, muitas das ideias centrais do Tractatus. Contudo, muitos detalhes precisam ser explorados. Precisamos considerar agora como Wittgenstein lida com uma variedade de proposições que, à primeira vista, não se encaixam adequadamente em sua explicação. Aqui estão alguns exemplos: 1.

Enunciados gerais, contendo as palavras "todo" e "algum".

~-

Enunciados matemáticos.

3.

Enunciados de probabilidade.

4.

Enunciados psicológicos; por exemplo, da forma "A acredita que p".

5.

Enunciados das leis da natureza.

6.

Enunciados de valor, na estética, na ética e na religião.

Alista não é exaustiva. Por exemplo, há ainda os enunciados do próprio Wittgenstein no Tractatus. Wittgenstein disse repetidamente que a lógica se mostra e não é dita, mas ele mesmo está fazendo enunciados sobre a lógica no Tractatus. Como esses enunciados devem ser tomados? Comecemos com o que Wittgenstein tem a dizer sobre enunciados matemáticos. Para entender esse tópico, será útil levar em consideração a noção de conceito formal. Em 4.1~6, Wittgenstein diz: Podemos agora falar de conceitos formais, nomesmo sentido em que falamos de propriedades formais.

83

H. O. Mounce

(Introduzo essa expressão a fim de exibir a fonte da confusão entre conceitos formais e conceitos propriamente ditos, que perpassa toda a lógica tradicional.) Quando algo cai sob um conceito formal como um de seus objetos, isso não pode ser expresso por meio de uma proposição. Isso se mostra no próprio sinal para esse objeto. (Um nome mostra que significa um objeto; um numeral. que significa um número, etc.) Com efeito, conceitos formais não podem, como conceitos propriamente ditos, ser representados por uma função. Pois suas características, propriedades formais, não são expressas por meio de funções. A expressão de uma propriedade formal é um tra ço de certos símbolos. O sinal para as características de um conceito formal é, portanto, um traço distintivo de todos os símbolos cujos significados caem sob o conceito. A expressão de um conceito formal é, portanto, uma variável proposicional em que apenas esse traço distintivo é constante. Ficará evidente para o leitor que Wittgenstein está expressando aqui uma ideia muito próxima àquela com a qual estávamos lidando no final do último capítulo. A lógica não pode ser dita; ela se mostra na operação dos sinais. Assim, conceitos formais, os conceitos nos quais buscamos expressar a característica da lógica, não são conceitos genuínos, pois buscam expressar o que só se pode mostrar. Por exemplo,

M ATEM .ll'IICA

"está chovendo" diz algo; "' está chovendo' é uma proposição" não diz nada. "Está chovendo" mostra que é uma proposição, que é inteligivel, ao dizer algo. Nada adicional é acrescentado ao se tentar dizer que ela é uma proposição. "x é uma proposição" é, portanto, um exemplo do que Wittgenstein descreve como um conceito formal, por oposição a um conceito real. Será interessante notar como essa ideia diferia da ideia de Frege. Este havia argumentado que ser um conceito é algo que se mostra, mas que não pode ser dito. Mostra-se que gordura é um conceito em sermos capazes de dizer "Sócrates é gordo", mas não "gordura é Sócrates". O fato de que algo seja um conceito mostra-se em que a expressão para o conceito aparece na posição de predicado. Frege, no entanto, não aplicou essa ideia tão amplamente quanto Wittgenstein. Por exemplo, o conceito de número é, para Wittgenstein, um conceito formal. Não se pode dizer "3 é um número". O fato de que 3 é um número mostra -se em podermos combinar" 3" com algumas expressões, por exemplo, "3 + 5 = 8", mas não com outras, como "3 é rosa". Frege, porém, estava bastante disposto a permitir uma frase como "3 é rosa". Isso se deve à sua ideia de que um numeral nomeia um objeto. É mais evidentemente falso que 3 é rosa do que a afirmação de que Sócrates é rosa, mas essa não é uma questão de lógica. Ora, isso nos leva ao coração da exi:ilicação apresentada por Wittgenstein para os enunciados matemáticos, pois, em sua explicação, ele procura mostrar que a ideia de Frege é inteiramente confusa. Wittgenstein começa sua explicação da noção de número em 6.o~, e é significativo que ela apareça logo após a apresentação da forma geral da proposição, a forma mais geral pela qual se pode gerar uma proposição a partir de outra por

H. O. Mounce

meio de uma operação. Como veremos, ele sustenta que há uma conexão interna entre a noção de número e a da operação pela qual se gera uma proposição a partir de outra. Em 6.o~, ele diz que dará as seguintes definições: (i)

x

(~)

QQN

=

Qºx Def., =

QN+,x Def.

Assim, de acordo com essas regras, escrevemos a série (3)

x, S'Jx, QQx, QQQx ... ,

como (4) !2ºx, go+ix, go+1+1x, Q 0+1+1+1x ••• , (5) Portanto, em vez de [x, ç, Qç] (6) Wºx, QNx, QN+'x]

E podemos dar as seguintes definições: (7)

0+1=1 0+1+1=~ 0+1+1+1=3

Colocar a questão dessa maneira faz transparecer a simila ridade, a conexão interna, entre número e operação formal (a, Oa, OOa, OOOa ... ) , uma operação cujo resultado é usado como base dessa mesma operação. Assim, partindo dessa operação tal como representada em (3), ou, ainda, partindo da forma dessa operação (5), podemos chegar a uma definição dos números 1, ~ e 3. Poderíamos expressar isso dizendo que os números representam vários estágios em uma operação ou série formal; ou, como Wittgenstein o expressa, um número é um expoente de uma operação. Com isso ele quer dizer qualquer operação, ou, pelo menos, qualquer operação formal. A noção de número é inerente a qualquer operação formal; dar um número é definir um estágio de uma operação desse tipo. 86

As

EQDAÇÔES DA MATEM.ÁTICA

Tentemos explicar essa ideia por meio de um exemplo da Sra. Anscombe. Podemos explicar "ancestral na linhagem masculina" dizendo "há o meu pai, e o pai do meu pai, e o pai do pai do meu pai, e assim por diante". Entende-se "ancestral na linhagem masculina" quando se entende, como se poderia dizer, que "do pai" pode ser acrescentado a "do pai" um número indefinido de vezes. Meu ancestral na linhagem masculina é qualquer um que faça parte da série meu pai, o pai do meu pai, o pai do pai do meu pai, e assim por diante. Suponha, no entanto, que alguém queira saber qual dos meus ancestrais masculinos uma determinada pessoa é. Isso, como sugere a Sra. Anscombe, requer um numeral para uma resposta. O que se deseja saber, pode-se dizer, é quantas vezes se deve voltar em "do pai". Ora, isso ilustra que a noção de número é inerente a qualquer operação formal. Qualquer série formal é apenas um número indefinido de aplicações de uma operação a uma base. Um número, 3, por exemplo, é a aplicação de uma operação a uma base um número definido de vezes. Assim posto, é claro que isso parece circular, pois quando falamos em "um número de vezes" já estamos empregando a noção de número e, poderia ser dito, não podemos, portanto, recorrer a isso para elucidar a própria noção de número. É como se explicássemos o significado de "3" dizendo que esse sinal significa uma operação formal aplicada 3 vezes. A circularidade, contudo, é, na verdade, inteiramente aparente, como poderemos ver se voltarmos a "ancestral na linhagem masculina". Ficará evidente, se refletirmos, que se pode apreender os passos sucessivos "pai; pai do pai; pai do pai do pai ... " sem recorrer, de forma alguma, à noção de número. É a aplicação da operação que elucida a noção de número, não o contrário. É por isso que Wittgenstein diz

H. O. Mounce

que um número é o expoente de uma operação. Isso significa que se pode traduzir qualquer frase contendo numerais em uma frase que represente a aplicação de uma operação. Por exemplo, pode-se escrever t'z + ~ = 4" como "Q25?2x = Q4x"; e pode-se escrever isso, por sua vez, como "(QQ)(QQ) x = QQQQx". Aqui deveria ficar evidente que a aparência de circularidade desaparece por completo; a noção de número é elucidada por referência a um estágio na aplicação de uma operação formal. Talvez a ideia possa ficar ainda mais clara. A finalidade de se insistir em que um número é um expoente de uma opera ção é enfatizar que os numerais não correspondem a objetos. Suponha que eu diga que há dois ovos em uma caixa. Isso não significa que a caixa contém três coisas - um ovo, outro ovo e dois deles. Há apenas este ovo, aquele ovo e a caixa. Suponha que eu acrescente mais um ovo. Agora tenho três ovos e o estado da caixa é diferente, mas a diferença é produzida inteiramente pelo ovo adicional. Os únicos objetos que tenho na caixa são este ovo, aquele ovo e aquele outro. O que, então, estou dizendo quando digo que 'o número de ovos na caixa é três? Estou dizendo que se pode realizar uma operação com os ovos de tal modo que, dada uma caixa vazia, posso acrescentar este ovo, Oa, aquele ovo, OOa, e aquele outro, OOOa; e não posso ir adiante. O número de ovos é equivalente à operação OOOa, pois, quando realizo a operação de acrescentar um ovo a um ovo, é lá que eu chego. Proposições matemáticas, portanto, uma vez que não representam objetos, não dizem nada sobre o mundo.É importante não se confundir aqui. Por proposição matemática entendemos uma proposição da forma t'a+ a = 4", não uma da forma "há três ovos na caixa". A última proposição é 88

As

EQUAÇÔES DA :\,L\TEM,\TICA

empírica; ela distingue um estado da caixa de outro (o de ela conter quatro ovos, por exemplo). Proposições matemáticas podem ser usadas na discriminação entre estados de coisas no mundo, mas as proposições em si mesmas, aquelas que são assim usadas, não representam quaisquer desses estados de coisas. Elas representam estágios na aplicação de uma operação formal e estão internamente relacionadas entre si. Em suma, elas são como tautologias; são puramente formais. Em 6.22, Wittgenstein diz: "a lógica do mundo, que as proposições da lógica mostram nas tautologias, a matemática mostra nas equações". A razão pela qual se perde isso de vista, pela qual é fácil conceber as proposições matemáticas à maneira de Frege (como representando objetos), é que a gramática obscurece a forma lógica. A proposição "2 + 2 = 4", em outras palavras, não exibe sua própria forma de maneira perspícua e é, portanto, fácil concebê-la como uma asserção sobre os fatos. Suponha, no entanto, que a escrevamos na forma "(1 + 1) + (i + 1) = 1 + 1 + 1 + 1". Aqui, a relação entre o que está à esquerda e o que está à direita do sinal de igualdade torna -se explícita. Torna -se evidente que estamos diante de uma equação ( uma , questão de sinais equivalentes), e não de uma proposição no sentido normal. Ou, como Wittgenstein diz em 6.2321, torna -se evidente que se pode determinar a correção dessa proposição sem compará- la com os fatos. Além disso, é importante perceber todas as implicações desta última ideia. Equações matemáticas não dizem nada, isto é, não dizem nada nem sobre o mundo nem sobre sua própria forma. Assim, podemos determinar a correção de "2 + 2 = 4" simplesmente com base no conhecimento do significado de "2 + 2" e de "4". Isso, porém, não é dizer que

H. O. Mounce

4" diz que "~ + ~" significa o mesmo que "4". Devemos lembrar o que Wittgenstein já disse sobre identidade, a saber, que ela se mostra na operação dos sinais e não pode ser dita. Ele faz uma afirmação semelhante em 6.~3~~: "é impossível asserir a identidade de significado de duas expressões. Pois, para poder asserir algo a respeito do significado delas, devo conhecer seu significado, e não posso conhecer seu significado sem saber se o que elas significam é o mesmo ou não". Uma equação matemática não nos diz que os sinais que ela contém são equivalentes entre si. Contudo, como ficará evidente se pararmos para pensar, ela não precisa fazê-lo. Com efeito, considere novamente "(1 + 1) + (1 + 1) = 1 + 1 + 1 + 1". Não é preciso que nos digam que as expressões em ambos os lados do sinal de igualdade são equivalentes; podemos vê-lo por nós mesmos. Em outras palavras, equações matemáticas mostram e não enunciam a equivalência do que contêm. Essas ideias são resumidas pela proposição 6. ~34: "a ma temática é um método da lógica". Note-se que isso não é dizer que a matemática é derivada de um conjunto de princípios lógicos, que é o que Frege e Russell procuraram mostrar. No entanto, há uma relação interna entre a matemática e a lógica. Para Wittgenstein, a matemática não é derivada de qualquer conjunto particular de proposições lógicas. Ela é um aspecto da operação lógica fundamental pela qual qualquer proposição é derivada de outra. "~ + ~

=

C A PÍTU LO

6

Devemos agora nos voltar para o tratamento que Wittgenstein confere a outro tipo de proposição contido em nossa lista; devemos examinar o tratamento que ele confere às proposições gerais. É evidente que proposições desse tipo são de especial importância para a lógica, seja a lógica aristotélica, seja a contemporânea. Afinal de, contas, foi a invenção fregeana de um expediente para quantificar proposições como essas- (x) (fx); (3x) (fx) - que levou ao desenvolvimento da lógica simbólica contemporânea. Vimos que, para Wittgenstein, toda proposição pode ser derivada de proposições elementares pelo que é fundamen talmente uma e a mesma operação. Como essa operação produz proposições que têm a forma da generalidade? Alguém poderia estar tentado a dar uma explicação da seguinte espécie. Considere a proposição "todos os ovos na cesta estão quebrados" e suponha que existam três ovos na cesta. Nesse caso, se este ovo, aquele ovo e aquele outro estão quebrados, segue-se que todos os ovos na cesta estão quebrados. A generalidade, pode-se dizer, é um produto lógico. "Todos os ovos estão quebrados"» "Este ovo, e aquele ovo, e aquele outro estão quebrados". Ou, se não é um produto lógico, é uma soma lógica. Assim, "algum ovo na cesta está quebrado" = "ou este ovo, ou aquele ovo, ou aquele outro está quebrado". Alguém poderia supor, então, g:ue proposições gerais sejam produzidas simplesmente pela conjunção ou disjunção de enunciados particulares.

91

H. O. Mounce

Uma breve reflexão revelará, entretanto, que isso não pode estar certo. Considere novamente a proposição "todos os ovos na cesta estão quebrados". É evidente, se pensamos um pouco, que isso não pode ser equivalente a "este ovo, aquele ovo e aquele outro estão quebrados", pois, mesmo que esses ovos estivessem quebrados, ainda assim, todos os ovos na cesta só estariam quebrados se não houvesse nenhum outro ovo na cesta. Dizer que um ovo particular está quebrado nunca nos levará ao enunciado de que todos os ovos estão quebrados, por maior que seja o número de enunciados particulares, a menos que acrescentemos o enunciado de que não existem outros ovos na cesta além daqueles particulares. Podemos ir ainda mais longe. É possível saber que todas as coisas na cesta estão quebradas sem saber de qualquer coisa particular que ela está quebrada. Por exemplo, a cesta tem um rótulo "maneje com cuidado", e um carregador desastrado deixa- a cair sob a roda de um trem. Podemos estar certos de que todas as coisas que a cesta contém estão esmagadas sem que sejamos capazes de dizer uma das coisas particulares que ela contém. No entanto, certamente, poderia ser dito, o enunciado geral não pode ser verdadeiro a me~os que algum produto de enunciados particulares seja verdadeiro. Portanto, se todas as coisas na cesta estão esmagadas, então algum enunciado da forma "a caixa de chá está esmagada e a xícara está esmagada e o prato está esmagado ... " tem de ser verdadeiro. Sem dúvida. Existem relações entre um produto lógico e um enunciado geral. A questão, entretanto, é que não se pode deduzir do enunciado geral qualquer produto particular. Os enunciados geral e particular constituem diferentes usos da linguagem. Eles estão relacionados, mas são diferentes. Anos mais tarde, Wittgenstein expressou essa

GENERALIIlADE

ideia da seguinte maneira. Se uso a figura @] para dizer "o círculo está no quadrado", a posição do círculo na figura não desempenha papel algum no significado da própria figura. Contraste-se isso com o seguinte uso: A

E]

B

C

D

êJ ~

Aqui posso ler, pela posição do círculo na figura, sua posi ção no quadrado real. A questão; entretanto, é que @] não pertence à sérieABCD ... de modo algum; trata-se de um uso diferente de uma figura. EmABCD ... , é necessário levar em consideração a distância entre o círculo e os lados do quadra do. Em@] a distância entre o círculo e os lados do quadrado não tem nenhum significado, não mais do que as distâncias entre as letras em "aRb". Poder-se-ia dizer que se@] está correta, então alguma coisa na série ABCD ... também deve estar correta. Certamente, mas qual está correta é uma questão inteiramente contingente. Aquilo para o que se quer chamar a atenção com @] é que podemos usá - la corretamente ainda que não saibamos qual figura da série ABCD ... está correta. Fiz referência a ideias que Wittgenstein defendeu em· seus anos posteriores. E quanto às ideias que ele defendeu na época do Tractatus? Penso que podemos estar certos, pelas observações do próprio Wittgenstein sobre o tema, de que ele não tinha clareza sobre esse assunto à época do Tractatus. O que, entretanto, não é de modo algum fácil de determinar é onde precisamente a faltahllareza se encontra. À primeira vista, suas ideias parecem inteiramente con sistentes com as que ele adotou mais tarde. Em 5.5~1 ele diz:

H. O. M ourice

Separo o conceito todo das funções de verdade. Frege e Russell introduziram a generalidade em conexão com o produto lógico ou a soma lógica. Assim, tornou-se difícil entender as proposições "(3x) fx" e "(x)fx", em que estão encerradas ambas as ideias. O que está sendo sugerido, aqui, é que não se pode explicar a generalidade por meio do produto lógico e da soma lógica, sendo Frege e Russell criticados por tentar fazê- lo. Como, então, ela deve ser explicada? Wittgenstein o faz por meio da função "[x", Em 5-5~ ele diz: "se os valores de são todos os valores de uma função fx para todos os valores de x, então N({)= -(3x) fx". Como vimos,

t

o sinal "[" representa um conjunto de proposições. Portanto, Wittgenstein está sugerindo que por meio da função fx estamos de alguma maneira providos de um conjunto de proposições a partir das quais se pode gerar uma proposição geral (-(3x) fx) por meio da aplicação da negação conjunta. Além disso, a ideia é que fx especifica proposições como um conjunto, isto é, sem percorrê- las uma a uma. Em outras palavras, quando dizemos "todos os · ovos na cesta estão quebrados", especificamos um conj-imto de proposições, mas não chegamos a essa especificação percorrendo as proposições individualmente. Mas como isso é possível? Qual é a importância da referência à função fx? Duas outras observações de Wittgenstein são relevantes aqui 5.5~3 5-47

O sinal da generalidade ocorre como um argumento. É claro que tudo que se possa em geral dizer de antemão sobre a forma de todas as proposições de-

ve-se poder dizer de uma vez por todas. Com efeito, em uma proposição elementar já estão contidas todas as operações lógicas. Pois "[o" diz o mesmo que 94

G EN ERALID ADE

"(3x) fx· x=a", Onde há composição, há argumento e função, e onde eles estão, já estão todas as constantes lógicas. O que Wittgenstein quer dizer quando diz que o sinal da generalidade ocorre como um argumento? Ele está se re ferindo, é claro, ao argumento de uma função, aquilo que ocorre no lugar de x emfx, (x é gordo). Mas, se isso é o que ele quer dizer com "argumento", como ele pode se referir ao sinal da generalidade como .11m argumento? Seria com certeza um contrassenso escrever, por exemplo,f (3x). Para perceber o que ele quer dizer, considere (x) (fx). Aquilo a que Wittgenstein está se referindo como o sinal da generalidade não é o quantificador, mas o segundo x. O que ele quer dizer é que a generalidade já está contida no x de fx. À luz disso, a observação em 5.47 torna-se clara. Se considerarmos um caso particular de fx como fa (ou Jb ou fc ... ) , veremos que ele já contém uma certa generalidade. De fato, isso está envolvido em dizermos que ele é um caso particular de fx; ele compartilha com outros casos particulares uma forma comum ou geral. Wittgenstein expressa isso dizendo que fa = (3x) fx·x = a (a é gordo = existe algo que é gordo e esse algo é a). É por isso que é um erro explicar a generalidade por meio de um produto lógico (ou soma lógica),fa,Jb,fc, ... Dado que cada um desses é um caso particular de fx, cada um deles já contém uma certa generalidade. Nesse caso.icontudo, a generalidade não pode ser ela mesma explicada por meio deles. Segue-se, portanto, que fx contém a generalidade; a função, poder-se-ia dizer, é um protótipo para um conjunto de proposições -fa,Jb,fc etc. Entretanto, n~se caso, também se segue que, se aplicamos a operação N(f) afx, estamos ao

95

H. O. M ourice

mesmo tempo aplicando-a às proposições para as quaisfx é um protótipo; e o fazemos sem enumerar as proposições individualmente. Russell coloca a questão da seguinte maneira em sua introdução ao Tractatus. O método usado por Wittgenstein no tratamento das proposições gerais ... difere de métodos anteriores pelo fato de que a generalidade aparece apenas especificando o conjunto de proposições envolvidas e, uma vez feita a especificação, a construção das funções de verdade prossegue exatamente como no caso de um número finito de argumentos enumerados p,

q, r .... Será útil insistir neste último ponto. Já vimos como, pela aplicação da operação N ([) a uma base de proposições, podemos desenvolver funções de verdade dessas proposições. Assim, onde temos p, q como nossa base, obtemos N(p, q) - nem p nem q - e com mais uma aplicação, N(N(p, q)) - ou P, ou q-; e assim por diante. Ora, o que Wittgenstein tentou mostrar é que exatamente o mesmo processo está envolvido no desenvolvimento de proposições gerais. Assim, se negamos o conjunto de proposições que formam os valores de fx, chegamos à proposição que diz que fx é falsa para todos os valores de x, isto é, -(3x) (fx). Se negamos essa proposição, obtemos "existe pelo menos umx para o qualfx é verdadeira", isto é, (3x) (fx). Se

1x,

tivéssemos começado com teríamos chegado, pela negação, a "fx é verdadeira para todos os valores de x", isto é, (x) (fx). Vemos, portanto, que o método para o desenvolvimento de fun ções de verdade permanece precisamente o mesmo tanto para proposições gerais quanto para os outros tipos de proposições.

G ENERALIDA DE

Ora, isso era de grande importância para Wittgenstein. Como ele diz em 5·4T "é claro que tudo que se possa em geral dizer de antemão sobre a forma de todas as proposições deve-se poder dizer de uma vez por todas". Tudo na lógica está presente ao mesmo tempo: o que aparece posteriormente em um sistema lógico já estava contido no que apareceu inicialmente. Ao defender essa ideia, Wittgenstein está preocupado em mostrar, por exemplo, que a noção de negação que aparece na lógica proposicional não é de um tipo diferente daquele que aparece na lógica de predicados; não deve parecer que existem duas lógicas em funcionamento. Além disso, parece que isso precisa ser mostrado. À primeira vista, por exemplo, não é evidente que o uso do sinal de negação é o mesmo em -p, -(p v q) e (3x) -(fx). Wittgenstein traz à tona a ::_nidade mostrando que se trata da mesma operação de N(t), que, quando aplicada a p, q, produz uma proposição no cálculo proposicional (-p · -q) e, quando aplicada afx, produz uma proposição no cálculo de predicados, -(3x) (fx). Por que é a mesma operação? Porque a única diferença repousa na maneira pela qual nossas proposições de base são especificadas.No primeiro caso, elas são enumeradas, especificadas individualmente; no segundo, elas são especificadas como um conjunto. Em ambos os casos, no entanto, o que temos é um conjunto de proposições a partir das quais geramos sua negação conjunta por meio da operação N. Pode agora parecer que Wittgenstein evitou o erro que mencionamos anteriormente, a saber, o de explicar ageneralidade em termos do produto lógico e da soma lógica. Contudo, a questão está longe de ser tão clara quanto parece. Russell, por exemplo, após descrever a ideia de Wittgenstein na passagem que citamos, refere-se, na página seguinte,

97

H. O. Mourice

"teoria do Sr. Wittgenstein acerca da derivação das proposições gerais a partir de conjunções e disjunções". Ou seja, pareceu a Russell que a ideia de Wittgenstein acerca da generalidade era compatível com uma que explica ageneralidade em termos do produto lógico e da soma lógica. Russell talvez estivesse simplesmente enganado. Mas como devemos interpretar a seguinte passagem da Gramática filosófica de Wittgenstein, uma obra escrita alguns anos depois do Tractatus? No tópico "Críticas à minha antiga concepção de generalidade", Wittgenstein escreve: à

Minha ideia acerca das proposições gerais era que (3x) · Qx é uma soma lógica e que, embora não estejam enumerados aqui, os seus termos podem ser enumerados (com base no dicionário e na gramática da linguagem). (1974b, p. ~68)

Penso que não pode haver muitas dúvidas de que Wittgenstein está fazendo referência nessa passagem à ideia que ele defendeu no Tractatus. No entanto, se esse é o caso, como essa passagem é consistente com aquela do Tractatus em que ele critica Frege e Russell por introduzirem a generalidade em conexão com o produto lógico e a soma lógica? Como, de fato, ela é consistente com a tendência geral de seu argumento no Tractatus, no qual ele parece claramente defender que o produto lógico e a soma lógica pressupõem a generalidade e não podem, portanto, ser usados para explicá-la? Para responder a essas questões, consideremos novamen te como, na Gramática filosófica, Wittgenstein caracterizou sua ideia anterior. Ele defendeu, como nos diz, que (3x) · Qx é uma soma lógica. Considere, porém, o que ele acrescenta: ele não defendeu que seus termos são enumerados aqui.

G .EN .El\ALIDA DE

É esta última ideia que aponta para sua crítica a Frege e Russell. Para chegar a (3x) (fx) não é preciso percorrer a disjunção "fa, oujb, oufc ... "; mas não porque as duas sejam logicamente distintas, e sim porque (3x) (fx) já faz esse trabalho. Frege e Russell estavam errados, não porque associaram a generalidade ao produto lógico e à soma lógica, mas porque introduziram a noção daquela maneira. Ao introduzirem a noção em associação com o produto lógico e a soma lógica, eles obscureceram o que é de vital importância, a saber, que a disjunção "fa oujb oufc ... " apresenta casos particulares de uma forma lógica comum e é, portanto, especificada por (3x) (fx) como uma questão de lógica. Em suma, para que se entenda a generalidade, deve-se começar percebendo como (3x) (fx) necessariamente capta uma disjunção; não se deveria começar com uma disjunção e, então, tentar alcançar a generalidade. Isso, entretanto, é evidentemente consistente com a ideia de que (3x) (fx) é uma soma lógica. Além disso, uma reflexão posterior revelará que essa ideia é, na verdade, vital para toda a posição de Wittgenstein no Tractatus. Como vimos, era im portante para Wittgenstein defender que a negação é a mesma operação, quer apareça no cálculo proposicional, quer apa reça no cálculo de predicados. Contudo, para defender essa ideia, ele também tem de defender que as diferenças entre o seu uso no cálculo proposicional e no cálculo de predicados consistem simplesmente na maneira pela qual são especificadas as proposições às quais a operação é aplicada. Assim, está -se aplicando a operação N(f) a uma base de proposições precisamente da mesma maneira, quer ela esteja sendo aplicada ap, q ou afx, quer esteja sendo aplicada aN(p,q) ou a-(3x) (fx). Nesse caso, porém, desconsiderando-se o modo

99

H . O. M ourice

de apresentação, não pode haver qualquer diferença entrefx e (3x) (fx) e uma sequência de proposições,p, q, r ... , isto é, elas devem ser respectivamente um produto lógico e uma soma lógica. É por isso que, na Gramática filosófica, Wittgenstein caracteriza sua ideia anterior dizendo que os termos de (3x)

(fx), embora não imediatamente enumerados, devem poder ser enumerados, e ele quer dizer "sobre fundamentos pura mente lógicos", pois logo diz que eles podem ser enumerados "com base no dicionário e na gramática da linguagem". Está, portanto, claro que a ideia anterior de Wittgenstein difere significativamente de sua ideia posterior. De acordo com sua ideia anterior, a verdade de (x) (fx) consiste na verdade do produto lógico fa·fbfc ... De acordo com sua ideia posterior, (x) (fx) e "fa·Jbfc ... " são usos diferentes da linguagem, sendo uma questão contingente a de saber, dada a. verdade de (x) (fx), qual produto lógico deve ser enumerado.

100

CAPÍTULO

7

.,,._ . d a ciencia

Será útil se agora considerarmos a generalidade sob um aspecto diferente, considerando a generalidade envolvida na ciência. Como vimos, há, para Wittgenstein, uma distinção absoluta entre a generalidade da lógica e o que ele chama de generali dade acidental. Ele retorna a essa ideia na proposição 6.3. "A pesquisa da lógica significa a pesquisa de toda legalidade. E fora da lógica tudo é acidental". Isso, no entanto, poderia parecer apresentar um problema para Wittgenstein, pois como ele dará conta das leis científicas, tais como aparecem, digamos, na física? À primeira vista, essas podem parecer não se encaixar nem na categoria do logicamente necessário nem na categoria do acidental. Para compreender a ideia de Wittgenstein, precisamos começar considerando as seguintes proposições: 6.31

A assim chamada lei da indução não pode, de modo algum, ser uma lei lógica, pois é obviamente uma proposição com sentido. - E por isso não pode também ser uma lei a priori.

6.363u

Que o Sol se levantará amanhã é uma hipótese; e isso significa que não sabemos se ele se levantará.

6.37

Não há compulsão em virtude da qual, porque algo aconteceu, algo mais deva acontecer. Só há necessidade lógica.

Por "a chamada lei da indução" Wittgenstein se refere à ideia de que o que ocorrerá no futuro se conformará ao que

101

H. O. Mounce

foi experienciado no passado. Essa, ele diz, não é uma lei da lógica, pois tem um sentido. Com isso ele quer dizer que ela afigura um estado de coisas possível e, portanto, diferentemente das leis da lógica, abre espaço para estados de coisas possíveis que a tornariam falsa. É por isso que ele diz que é uma hipótese que o Sol se levantará amanhã. Se ela é verdadeira ou não, depende do que o amanhã nos trará. Há um sentido, portanto, em que não podemos saber se ela será verdadeira. Isso porque a evidência de que dispomos para supor que seja verdadeira não pode incluir o que a tornará verdadeira ou falsa, e, embora haja, é claro, relações entre eventos, nenhuma delas é necessária. Se um evento, por exemplo, ocorre antes ou depois de outro, ele poderia não ter ocorrido dessa maneira. Isso leva Wittgenstein à sua concepção das leis da natureza. 6.371

Toda a moderna visão do mundo está fundada na ilusão de que as chamadas leis naturais são as expli cações dos fenômenos naturais. Assim, as pessoas de hoje detêm-se diante das leis naturais como diante de algo intocável, como os antigos diante de Deus e do Destino. E ambos estão certos e estão errados. Os antigos, porém, são mais claros, na medida em que reconhecem um termo frnal claro, enquanto, no caso do novo sistema, é preciso aparentar que está tudo explicado.

A ideia de Wittgenstein é que, se falamos em leis da na tureza, deveria ficar claro que não estamos falando de como as coisas devem ser, mas de como ocorre que elas são. Por exemplo, dizer que "o fogo queima" é uma lei da natureza é, 10~

As LEIS DA CIÊNCIA

em si mesmo, não explicar nada; não acrescentamos nada ao enunciado de que o fogo queima. As leis da natureza, em poucas palavras, resumem a experiência; elas não a explicam. Com isso, Wittgenstein não quer dizer, é claro, que a ciência não explica as ocorrências naturais em nenhum sentido. Pode-se explicar o fato de que o fogo queima no sentido de ligá- lo a outros fatos, e, em particular, a outras regularidades. Uma breve reflexão revelará, entretanto, que, ao fazê-lo, deixam -se os outros fatos, ou as outras regularidades, inexplicados. É claro que se pode explicar esses outros fatos, por sua vez, ligando-os a outros fatos. No entanto, ou esse processo é infinito e, portanto, nunca pode ser concluído ou existe algum conjunto de fatos últimos e, portanto, inexplicáveis. De qualquer maneira, é impossível explicar tudo. Por essa razão, os antigos, quando explicavam as ocorrências naturais referindo-se, em última instância, à vontade de Deus, eram, sob um aspecto, mais claros do que os modernos, pois eles eram claros quanto a suas explicações repousarem sobre algo que eles mesmos não podiam explicar e, portanto, não estavam iludidos em supor que poderiam explicar tudo. O que temos até aqui, então, na explicação de Wittgenstein, é uma asserção vigorosa da ideia de que a física tem como objeto o acidental ou, melhor, o contingente. As leis da natureza nos dão um sumário do que descobrimos ser o caso. Uma contingência pode estar ligada a outra, mas o processo assim ligado permanece puramente contingente. A questão, todavia, não para por aí, pois Wittgenstein pretende mostrar que existem alguns aspectos da ciência que requerem um tratamento diferente. Por exemplo, na proposição 6.3~, ele diz: "a lei de causalidade não é uma lei, mas a forma de uma lei". Por" a lei de causalidade" ou, como ele às vezes a chama,

103

H. O. Mounce

"o princípio de razão suficiente", Wittgenstein se refere ao enunciado de que tudo tem uma causa. Este, ele sugere, não é uma lei, mas a farma de uma lei. Com isso ele quer dizer que aquele, na verdade, não é um enunciado, isto é, que ele não diz nada sobre o mundo. Será de grande ajuda para a compreensão dessa ideia considerarmos a proposição 6.3611: ( ... )quando se diz, por exemplo, que nenhum de dois eventos (que se excluem mutuamente) pode ocorrer, por não haver nenhuma causa por que devesse ocorrer um em vez do outro, trata -se, realmente, de não sermos capazes de descrever um dos dois eventos na ausência de algum tipo de assimetria. E se há uma tal assimetria, podemos entendê- la como causa da ocorrência de um e da não ocorrência do outro.

Para perceber o que Wittgenstein quer dizer aqui, suponha que eu diga: "não choverá hoje à noite porque não choveu na noite passada, e as condições são exatamente as mesmas". Agora suponha que de fato chova. Diante disso, tenho agora de admitir ou que as condições não são exatamente as mesmas ou que algo aconteceu sem uma causa. A ideia de Wittgenstein, a meu ver, é que os fatos nunca podem nos forçar a adotar a última alternativa. Em outras palavras, nunca podemos ser forçados a dizer que algo aconteceu sem uma causa porque sempre podemos supor que existe uma diferença entre as condições sob as quais dois eventos ocorrem. Por quê? Porque na medida em que podemos distinguir um evento de outro, na medida em que sabemos que existem dois eventos, tem de haver alguma diferença entre eles, e podemos .sempre tratar essa diferença como a causa da ocorrência de

As

LEIS DA CIÊNCIA

um e da não ocorrência.do outro. Por essa razão, "tudo tem uma causa" não é realmente um enunciado sobre o mundo. Dizer que A tem uma causa pode, à primeira vista, parecer dizer algo definido sobreA, mas, na verdade, dizê-lo é não dizer absolutamente nada, pois qualquer diferença pode ser tratada como uma causa; eA, na medida em que simplesmente é uma coisa distinta, está fadado a diferir de outras coisas. Essa ideia pode ficar mais clara por meio de um exemplo que Wittgenstein usou muitos anos depois. Suponha que peguemos duas sementes, uma da planta A e a outra da planta

B, uma planta de um tipo diferente. Quando examinamos as sementes, não vemos nenhuma diferença entre elas, mas, quando as colocamos sob o solo, cada uma se transforma em uma planta do tipo de que ela veio. De início, deveríamos supor que existe uma diferença entre as sementes; nós apenas não a detectamos. No entanto, suponha que isso acontecesse continuamente e nunca achássemos uma diferença. Poderíamos acabar desistindo de procurar uma diferença nas sementes. A ideia de Wittgenstein, contudo, é que isso não significa que precisaríamos desistir de falar em causas. Por exemplo, poderíamos agora tratar a origem como a causa. Esta semente cresce desta maneira porque vem de tal e tal planta; a outra cresce diferentemente porque vem de uma planta de um tipo bastante diferente. Assim, as duas sementes, simplesmente por serem duas, devem diferir entre si em algum aspecto - na posição, talvez, ou na origem -, e não há nada na lógica que nos impeça de tratar qualquer diferença existente como a causa de certos eventos. Ora, é claro que, no momento, pode parecer-nos bastante arbitrário que as origens das sementes, em vez de algumas diferenças nelas mesmas, deveriam ser tratadas como cau-

105

H. O. Mounce

sas. Isso, porém, simplesmente indica a atração que uma forma particular de explicação exerce sobre nós. Se A e B têm efeitos diferentes, esperamos uma diferença em A e B. Mas isso ocorre porque usualmente encontramos essa diferença. Não há nenhuma prova na lógica de que as coisas devam ser assim. Imagine os fatos mudando e torna-se fácil imaginar nossa adoção de um esquema de explicação muito diferente. Assim, "tudo tem uma causa" não nos diz nada sobre o mundo. O que nos diz algo, o que é uma questão de fato, é que atribuímos causas do modo como o fazemos, isto é, desta maneira, oposta a alguma outra.Na época do Tractatus, Wittgenstein expressou isso dizendo que "tudo tem uma cau sa'' nos dá a forma de uma lei, não nos diz o que de fato ocorre. Em sua obra posterior, ele viria a expressar isso dizendo que a proposição expressa algo que pertence ao nosso método de representação, e não aos fatos que são representados. "Tudo tem uma causa" nos dá uma regra para representar os fatos. Dada a ocorrência de um certo evento, devemos ligá - lo à ocorrência de outro. Ela, contudo, não nos diz quais liga ções de fato existem. Nessa época posterior, Wittgenstéin sustentou que uma teoria científica pode ser comparada, em certos aspectos importantes, com um mapa. Como um mapa, o objetivo de uma teoria não é asserir algo sobre os fatos, e sim apresentá- los de uma maneira perspícua. Também como um mapa, uma teoria conterá elementos que não são empíri cos, mas não porque esses elementos sejam asserções sobre algum outro mundo que não o empírico. Pelo contrário, eles simplesmente não são asserções, mas pertencem ao aparato pelo qual os fatos do mundo são representados. Assim, dois mapas podem usar símbolos muito diferentes, digamos, para uma cidade ou uma ferrovia, e, ainda assim, apresentar 106

As

LEIS DA clÊNCIA

essencialmente os mesmos fatos. Os símbolos pertencem à maneira pela qual os fatos são representados. Essa concepção já está presente, em muitos de seus traços essenciais, no Tractatus, embora aqui ele use uma analogia diferente. Na proposição 6.341, ele nos apresenta uma analogia para a mecânica newtoniana pedindo- nos para imaginar uma rede quadriculada fina recobrindo uma superfície bran cacheia de manchas pretas irregulares. A distribuição das manchas pode ser descrita por meio da rede. Dizemos, por exemplo, "primeiro quadrado, branco; segundo quadrado, uma mancha preta, etc.". Agora, é evidente que se poderia obter uma descrição igualmente precisa por meio de uma rede bastante diferente - digamos, uma rede triangular. Elas são meramente formas diferentes de representação, diferentes sistemas para descrever o mundo. A mecânica newtoniana constitui apenas um desses sistemas. Dizer que o mundo é tal que se pode descrevê-lo pela mecânica newtoniana é tão pouco informativo quanto dizer que se pode descrever a superfície branca por meio de uma rede quadriculada. Isso porque existem inúmeros outros sistemas pelos quais se pode descrever o mundo, assim como se pode descrever a superfície branca não só por uma rede quadriculada, mas também por uma rede triangular ou hexagonal. Para alguns, isso pode parecer uma espécie de convencionalismo, como se Wittgenstein estivesse dizendo que os fatos do mundo são determinados pelas teorias que sustentamos acerca deles. Entretanto, se refletirmos, ficará bastante evidente que Wittgenstein não está dizendo nada disso. Para percebê-lo, basta reconsiderar a analogia. É evidente que os fatos são independentes de nossas teorias e que isso se revelará de pelo menos duas maneiras. Em primeiro lugar,

H. O. Mounce

embora as manchas sobre a superfície possam ser representadas de inúmeros modos, nem todas as maneiras de representá-las serão igualmente úteis. Como Wittgenstein diz, as manchas podem estar distribuídas de tal maneira, por exemplo, que seja muito mais difícil descrevê-las por meio de uma rede triangular de malhas mais grossas do que por meio de uma quadricular de malhas mais finas. Em segundo lugar, mesmo que nossa escolha da rede fosse inteiramente convencional, ainda assim a descrição que fizéssemos por meio dela não seria uma questão de convenção. Com efeito, suponha que escolhamos uma rede quadriculada. Ora, que seja correto dizer, quando essa rede é aplicada à superfície, "primeiro quadrado, branco" ou "primeiro quadrado, mancha preta" não é algo que nossa escolha nos permitirá determinar. No que diz respeito à nossa escolha, qualquer dessas descrições pode estar correta. O que é de fato correto só pode ser determinado pelos fatos. Como diz Wittgenstein: AP, leis da física, com todo seu aparato lógico, ainda falam, mesmo que indiretamente, dos objetos do mundo. 6.34~

( ... ) a possibilidade de descrever o mundo por meio da mecânica newtoniana não nos diz nada sobre o mundo; mas o que nos diz algo sobre ele é a maneira precisa pela qual se pode descrevê-lo por aquele meio. Também nos diz algo sobre o mundo o fato de que se pode descrevê- lo mais simplesmente por meio de uma mecânica que por meio de outra.

108

As

LEIS DA CIÊNCIA

A ideia, portanto, é que a ciência é uma mistura do empírico e do não empírico. Se estamos inclinados a conceber o enunciado científico como não contingente, isso se deve ao fato de nos determos sobre seus elementos não empíri cos - "tudo tem uma causa", por exemplo. O grande erro, entretanto, é supor que esse elemento não empírico trata dos fatos.Na medida em que dizem alguma coisa sobre o mundo, os enunciados da ciência são contingentes. Na medida em que não são contingentes, eles não dizem nada sobre o mundo, mas meramente refletem métodos para representá- lo.

6.35

Embora as manchas em nossa configuração sejam figuras geométricas, é evidente que a geometria não pode dizer rigorosamente nada a respeito da forma e posição que de fato possuam. A rede, con tudo, é puramente geométrica; todas as suas propriedades podem ser especificadas a priori. Leis como o princípio de razão, etc., tratam da rede, não do que a rede descreve.

Será conveniente neste ponto se dissermos alguma coisa sobre o tratamento que Wittgenstein confere à probabilidade. Para Wittgenstein, uma expressão ordinária de probabilidade não é uma questão de lógica. Por "uma expressão ordinária de probabilidade" refiro-me a um enunciado como o seguinte: "ele costuma ser pontual, por isso, se disse que estará aqui às 17 h, ele provavelmente estará aqui a tempo". Probabilidade dessa espécie, que nos dá uma indicação do que ocorrerá, é uma questão, não de lógica, mas de psicologia. Com isso, Wittgenstein não quer dizer que é ilógico fazer uma afirmação como essa, isto é, que ela entra em conflito com a lógica, mas que essa simplesmente não é uma questão lógica ( ou ilógica).

H. O. M ourice

Isso porque a lógica nada tem a ver com os fatos, com o que ocorrerá ou não ocorrerá. Consequentemente, se estamos inclinados a acreditar que uma determinada coisa acontecerá em vez de outra, essa é uma questão de psicologia. Em outras palavras, é uma questão do que estamos inclinados a acreditar, como resultado, por exemplo, de experiências passadas, do que vimos acontecer. Na medida em que é uma questão de lógica, a probabilidade diz respeito simplesmente à inter-relação de fundamentos deverdade. "Em si mesma", dizWittgensteinem5.153, "uma proposição não é nem provável nem improvável. Um evento ocorre ou não ocorre, não há meio-termo". Isso significa dizer que a probabilidade não representa nada no mundo. "Não há um objeto particular que seja próprio das proposições probabilísticas" (5.1511). Assim, se não é uma questão de como nossas atitudes estão guiadas, ela só pode ser uma questão de como os fundamentos de verdade de proposições relacionam-se entre si. Wittgenstein explica a relação entre probabilidade e fundamentos de verdade em 5.15. Se Vr é o número dos fundamentos de verdade de uma proposição

"r",

e se Vrs é o número dos funda -

mentos de verdade de uma proposição "s" que são também fundamentos de verdade de "r", então podemos chamar a razão Vrs : Vr de medida da probabilidade que a proposição "r" confere à proposição "s". Para perceber o que Wittgenstein quer dizer, consideremos, primeiro, proposições elementares. Que grau de probabilidade uma proposição elementar confere a outra? Uma vez que proposições elementares são independentes entre si, não pode haver qualquer inter-relação entre fundamenllO

As

LEIS DA

tos de verdade. Em outras palavras, dadas duas proposições elementares, cada alternativa é tão provável quanto a outra. Consequentemente, duas proposições elementares conferem uma à outra½ de probabilidade. Consideremos agora duas proposições complexas "p e q" e "p ou q", cujas constituintes são elementares. peq

pouq

V V

V

V

F

V

F

V

V

F

F

V

F

F

F

F

p

q

Comecemos vendo que grau de probabilidade "p e q" confere a "p ou q". Para ver isso, temos que olhar para os fundamentos de verdade que elas têm em comum (Vrs) e também para os fundamentos que "p e q" tem sozinha (Vr). As proposições têm somente um fundamento de verdade em comum (VV), e

"p e q", ela mesma, tem somente um fundamento de verdade, ambos coincidindo. Assim, a razão de Vrs para Vr é 1/i. Em outras palavras, "p eq" confere a "p ouq" a probabilidade

1,

que

é o que deveríamos esperar, já que a primeira implica a última. Vejamos agora como essa relação se dá na outra direção, considerando que grau de probabilidade "p ou q" confere a "p e q". Já vimos que essas proposições têm somente um funda mento de verdade em comum. Os fundamentos que "p ou q" tem sozinha são três. A razão de Vrs para Vr é, portanto, 1/3 e esse é o grau de probabilidade que "p ou q" confere a "p e q". Compreendemos, portanto, pelo capítulo como um todo, que Wittgenstein, em seu tratamento dos enunciados científicos, mantém consistentemente sua distinção rigorosa entre questões de lógica e questões de fato.

lll

CAPÍTULO

8

Dissemos, perto do final do último capítulo, que expressões ordinárias de probabilidade (como as denominei) são uma questão de psicologia, do que as pessoas estão inclinadas a acreditar. Além disso, como enfatizamos, isso não significa que esses enunciados sejam tolos ou incoerentes. No entanto, isso suscita uma questão importante: como enunciados psicológicos, supondo que sejam coerentes, encaixam-se na explicação de Wittgenstein? À primeira vista, parece haver uma dificuldade. Considere a proposição "Henrique acredita que está chovendo". A peculiaridade dessa proposição é que sua verdade ou falsidade parece não depender da verdade ou falsidade de seus constituintes. Para ver isso, consideremos a última parte da frase: "está chovendo". Isso pode ser verdadeiro e pode ser falso sem afetar a verdade ou a falsidade da proposição como um todo. Por exemplo, poderia ser falso que está chovendo e ainda ser verdadeiro que Henrique acredita que está chovendo; e poderia ser falso que Henrique acredita que está chovendo e ainda ser verdadeiro que está chovendo. Isso, contudo, para alguém que aceita a explicação do Tractatus, poderá parecer bastante problemático, pois, de acordo com o Tractatus, é essencial para uma proposição que ela seja uma função de verdade de proposições elementares. Ora, isso significa precisamente que a verdade ou a falsidade das proposições constituintes deveria determinar a verdade ou a falsidade da proposição como um todo. O que, então, Wittgenstein tem a dizer sobre proposições desse tipo?

113

H. O. Mounce

5.54~

É claro, porém, que "A acredita que p", "A pensap'', "A dizp", são da forma "'p' diz p"; e isso não envolve uma correlação de um fato com um objeto, mas a correlação de fatos por meio da correlação de seus objetos.

Ajudará na elucidação dessa proposição se começarmos com esta última parte: " ... '"p' diz p". E isso não envolve uma correlação de um fato com um objeto, mas a correlação de fatos por meio da correlação de seus obj etos", Para ver o que isso significa, basta nos lembrarmos de duas proposições que já consideramos. Fica muito clara a essência de um sinal proposicional quando o concebemos composto por objetos espaciais (digamos: mesas, cadeiras, livros) em vez de sinais escritos. A configuração espacial dessas coisas exprime, nesse caso, o sentido da proposição. 3.143~

Em vez de "o sinal complexo 'aRb' diz que a mantém a relação R com b" deveríamos dizer "o fato de que 'a' mantém uma certa relação com 'b' diz que aRb".

Como vimos, o que Wittgenstein está enfatizando aqui é que a relação entre uma proposição e seu sentido não é como a relação entre um nome e o objeto ao qual ele, enquanto seu representante, corresponde. Uma proposição tem sentido porque é um arranjo de sinais que, no contexto do arranjo, correspondem a objetos, mas o sentido da proposição não é um outro objeto, e sim aquilo que se mostra quando os sinais estão dispostos de uma maneira em vez de outra. Assim, não

Gm:Nç:A

se pode explicar a diferença de sentido entre "aRb" e "blia" em termos dos objetos aos quais elas correspondem; ambas correspondem exatamente aos mesmos objetos. Elas diferem em sentido porque afiguram diferentes configurações de objetos e fazem isso porque, em cada uma delas, os sinais para esses objetos estão arranjados diferentemente. Como Wittgenstein o expressa nos Cadernos, "fatos são simboliza dos por fatos, ou, mais corretamente: o fato de que algo é o caso no símbolo diz que algo é o caso no mundo". Ora, Wittgenstein insiste precisamente nessa ideia na última parte da proposição 5.54~.Aproposição "p" é um fato, um conjunto de sinais. O sentido de "p" não é um objeto ao qual aquele fato, aquele conjunto de sinais, corresponda. Ou seja, ele não envolve a correlação de um fato com um objeto. A proposição diz algo e, portanto, pode selecionar um fato no mundo porque ela mesma está correlacionada com o mundo por meio dos objetos, os sinais, que a compõem. A última parte de 5.54~ é, portanto, relativamente simples, dado o que já consideramos. O que é mais difícil é a pri meira parte da proposição, Em outras palavras, a dificuldade repousa, não no que Wittgenstein diz sobre "'p' diz p", mas no que ele diz acerca da relação disso com "A acredita que p" ou "A diz que p". Como "'p' diz p" pode ser equivalente a "A acredita que p "? Ou, para colocá- lo de outra maneira, como "Henrique acredita que está chovendo" pode ser equivalente a "'Está chovendo' diz que está chovendo"? A verdade é que não podem ser equivalentes. A explicação de Wittgenstein é enganosamente elíptica. O que Wittgenstein está nos dando não é uma explicação exaustiva de "A acredita que p", mas simplesmente uma pista para essa explicação. A pista é que a relação entre o pensamento (ou a crença) de A e aquilo de

H. O. Mounce

que aquele pensamento é um pensamento é a mesma que a relação existente entre a proposição "p" e o que ela diz. Para ver como isso pode ser esclarecedor, será útil examinar a explicação da noção de crença que Russell havia apresentado alguns anos antes de o Tractatus ter sido escri to. Russell havia argumentado que, se um homem acredita que A ama B, isso envolve uma relação entre ele, A, amor e B. Wittgenstein objetou a essa ideia argumentando que ela permitia que se acreditasse em um contrassenso. Considere "esta mesa porta-caneta o livro". Se isso não pode ser objeto de crença, não é porque não se possa ter conhecimento direto (be acquainted) dos elementos que o constituem. Na verdade, não é nem mesmo evidente na explicação de Russell por que ele pode distinguir entre a crença de que A ama B e a crença de que B ama A, pois os elementos envolvidos são os mesmos em ambos os casos. Para Wittgenstein, o que quer que seja aquilo com o que me relaciono na crença, o que quer que eu tenha em mente quando creio, isso deve possuir estrutura ou sentido. É por isso que ele insiste em que a crença de A envolve "p", isto é, um fato que tem forma ou estrutura lógica. Ora, isso significa que o objeto da crença de um homem, aquilo em que ele acredita, não pode, de modo algum, ser um objeto no sentido ordinário. A relação entre o pensamento (ou crença) de um homem e aquilo de que o pensamento é um pensamento não é uma relação externa, como pensou Russell, mas interna, como a relação entre a proposição "p" e o que ela diz. Essa é uma ideia especialmente difícil de se entender quando se discutem as chamadas atitudes proposicionais. Considere "A acredita que aRb". Existe uma forte tentação para se sustentar que aquilo em que A acredita não é nem o estado de coisas, pois o estado de coisas pode não

116

ocorrer, nem os meros sinais, mas uma terceira entidade, a saber, a proposição que é expressa pelos sinais. A "proposi-

ção", aqui, parece figurar como um objeto distinto que está empiricamente relacionado à crença do homem. A ideia de Wittgenstein é que isso é um engano. Acreditar que aRb é apenas ter em mente (ou proferir) os sinais "aRb" em seu arranjo lógico. Para compreender a ideia de Wittgenstein em maior detalhe, consideremos "A diz que p" em vez de "A acredita que p". O problema é o mesmo em ambos os casos, mas o primeiro pode ser abordado mais facilmente. Para que seja verdadeiro que A diz que p, é evidente que algo tem de ser verdadeiro de A. Essa é a parte da análise que Wittgenstein omite inteiramente. Talvez ele a julgasse muito óbvia para ser mencionada. Se é verdade que A diz que p, tem de ser verdadeiro deA que ele diz: "p". Mais estritamente: tem de ser verdadeiro de A que ele diz "p", ou algum outro conjunto de sons cuja estrutura tenha a mesma significação lógica. E "p" diz que p. Portanto, podemos dizer que, para Wittgenstein, A diz que p = A diz "p" e "p" diz que p. No entanto, é de vital importância compreender agora que o" diz" na frase acima marca dois tipos bastante diferentes de relação. No primeiro, A diz "p", a relação é externa ou empírica, ela indica o proferimento de certos sons que estão em um certo arranjo lógico; no segundo, "p" diz que p, a relação é interna. Isso é algo que a professoraAnscombe, por exemplo, parece perder de vista em sua introdução ao Tractatus. Ela pensa que a relação entre "p" e o que isso diz, como a relação entre A e os sons que ele profere, é inteiramente empírica, pois, ela diz, "p" poderia não dizer que p. Poderíamos, por exemplo, ter atribuído a esses sinais um uso muito diferente,

H. O. M ourice

e, nesse caso, eles teriam uma significação diferente. Mas o que, precisamente, isso quer dizer? É verdade que os sons

"p" poderiam ter sido usados de maneira diferente. Os sons ou as palavras "está chovendo", por exemplo, poderiam não ter tido o uso que têm na língua portuguesa. Dado, no entanto, que eles têm o uso que têm, é agora uma questão contingente que eles digam que está chovendo? O mesmo se aplica a "p". Wittgenstein está evidentemente pensando nesses sons como proferidos de acordo com as regras para seu uso na lingua gem. É uma questão empírica, certamente, que eles sejam proferidos assim. No entanto, quando proferidos assim, não é uma questão empírica adicional que eles digam que p.

Deveria ser agora possível apresentar por completo a ideia de Wittgenstein. Poderíamos expressá-la dizendo que, quando nos é dito "A diz que p", nos é mostrado o que A diz, o que ele assere sobre o mundo, ao nos ser dito o que ele profere. Ou ainda, se nos é dito "A acredita que p", nos é mostrado aquilo em que A acredita ao nos ser dito quais figurações ocorrem a ele. Isso não é tão complicado quanto parece. A ideia é simplesmente que B pode nos comunicar o que A diz (ou pensa) simplesmente nos dizendo que sons ele profere. Como isso é possível? Bem, primeiro, porque essas palavras possuem forma lógica e, segundo, porque, uma vez que nós mesmos dispomos de uma apreensão da forma lógica, isto é, entendemos uma linguagem, não é necessário que nos seja dito o que elas dizem; nós mesmos podemos compreendê-lo. O relato de B difere de um enunciado normal, é claro, na medida em que alguns dos sinais nele contidos são men cionados em vez de usados. Ainda assim, ele é claramente verdadeiro ou falso, na medida em que A poderia não ter proferido o que B diz que ele proferiu (ou ter tido em mente

u8

CRENÇA

o que B diz que ele teve). Além disso, onde o relato não funciona empregando diretamente a linguagem verifuncional, ele funciona apresentando o que se mostra em tal emprego, de modo que se pode explicar um relato desse tipo sem que seja preciso ir além daquilo com o que o Tractatus se compromete.

CAPÍTULO

9

Solipsismo Será agora conveniente considerar o que Wittgenstein tem a dizer sobre algumas outras noções da psicologia, especialmente sobre a noção do eu. Wittgenstein introduz parte desse material no que ele diz sobre "A acredita que p". O efeito, me parece, foi confundir alguns comentadores e, através deles, seus leitores, pois aqueles supõem que não se pode entender o que Wittgenstein diz sobre "A acredita que p" sem que se considere o que ele diz sobre o eu. Isso, contudo, não está correto. Os temas se tocam só num certo ponto e, dada sua complexidade, considerá-los juntos gera confusão. Em 5.54~1, imediatamente após considerar proposições da forma "A acredita que p", Wittgenstein diz: Isso também mostra que não há tal coisa como a alma - o sujeito, etc. - tal como entendida na psicologia superficial de hoje em dia. Uma alma composta não seria mais uma alma.

Para entender o que isso significa, consideremos de novo "A acredita que p". Isso, diz Wittgenstein, é da forma '"p' diz que p". No entanto, como vimos, isso não significa que, em uma análise adequada de "A acredita que p", A não seja sequer mencionado, o verdadeiro sujeito sendo "p". Aquilo a que Wittgenstein está objetando não é a ideia de que A seja o sujeito, mas a ideia de que a alma de A seja o sujeito, a alma de A sendo concebida de um certo modo, a saber, como uma entidade não composta. Mas por que ele acredita que sua

H. O. Mounce

própria análise mostra que não se pode conceber o sujeito de "A acredita que p" dessa maneira? A resposta é que a análise de Wittgenstein de "A acredita que p" envolve ele dizer que ocorrem a A certos elementos psicológicos que possuem forma lógica e que, portanto, afiguram ou mostram um estado de coisas possível. No entanto, para que possuam forma ou estrutura lógica, esses elementos psicológicos devem possuir complexidade. Consequentemente, o sujeito de "A acredita que p" não pode ser a alma deA, isto é, alguma entidade não composta. É fácil ver como isso leva a uma concepção do eu comparável à de Rume. Meu eu não é uma entidade simples; é um aglomerado de elementos psicológicos. Esses elemen tos estão relacionados, não com uma entidade simples que subjaza como que por trás deles, mas com outros elementos psicológicos que ocorreram antes ou que ocorrerão depois. Eu sou apenas este corpo com aquela história mental. Essa concepção, ou algo parecido com ela, é o que Wittgenstein parece estar sugerindo, ao menos em uma primeira leitura (como veremos, ela se torna mais complicada depois). Nada disso, é claro, implica que A não seja o verdadeiro sujeito de "A acredita que p"; isso apenas esclarece o que temos de considerar como A, o sujeito. Até aqui, as coisas parecem relativamente simples. Entretanto, elas se tornam consideravelmente menos simples quando, em uma seção posterior, Wittgenstein reintroduz a noção do eu em uma discussão sobre o solipsismo. Essa seção, que vai da proposição 5.6 à proposição 6, é, a meu ver, a mais obscura do Tractatus, e eu mesmo estou muito longe de entendê-la por completo. Vejamos, entretanto, o que podemos fazer dela, começando com uma seleção de suas proposições.

SoLIPSISM.o

5. 6

Os limites de minha linguagem significam os li mites de meu mundo.

5. 6i

A lógica permeia o mundo; os limites do mun do são também seus limites. Na lógica, portanto, não podemos dizer: há no mundo isso e isso, aquilo não. Isso pareceria pressupor que excluímos certas possibilidades, o que não pode ser o caso, pois, se pudesse, a lógica deveria ultrapassar os limites do mundo; pois somente assim ela poderia observar esses limites também do outro lado. Não podemos pensar o que não podemos pensar; portanto, tampouco podemos dizer o que não podemos pensar.

5.6~

Essa consideração fornece a chave para se decidir a questão de saber em que medida o solipsismo é uma verdade. O que o solipsista quer dizer é inteiramente correto; apenas é algo que não se pode dizer, mas que se mostra. O mundo é o meu mundo: isso se mostra no fato de que os limites da linguagem (a linguagem que, só ela, eu entendo) significam os limites de meu mundo.

5.6~1

O mundo e a vida são um só.

5.63

Eu sou meu mundo. (O microcosmos.)

H. O. Mounce

5.631

Não há tal coisa como o sujeito que pensa, representa(. .. )

5. 63~

O sujeito não pertence ao mundo; ele é um limite do mundo.

5.633

Onde no mundo se pode encontrar um sujeito metafísico? Você dirá que tudo aqui se passa como no caso do olho e do campo visual. O olho, porém, você realmente não vê. E nada no campo visual permite concluir que ele é visto por um olho.

Em 5.63~, Wittgenstein parece introduzir a noção de um sujeito que não pertence ao mundo, mas que é um limite do mundo. Para explicar essa ideia, ele apresenta a analogia do olho e do campo visual. A existência do campo visual mostra a existência do olho, mas o olho não aparece ele mesmo no campo visual. De um modo semelhante, o eu não aparece em minha consciência do mundo simplesmente porque ele é a fonte dessa consciência, e não um de seus objetos. Em outras palavras, Wittgenstein parece sugerir aqui que a filosofia pode trazer à tona, embora não possa dizer, um sentido do eu que não foi capturado no que foi dito sobre o eu empírico; nesse sentido, o eu não aparece no mundo da experiência, pois é a fonte dessa experiência e, portanto, não pode estar mais localizado naquele mundo do que o olho pode estar localizado no campo visual. Digo que Wittgenstein parece sugerir isso porque não fica claro se ele mesmo aceita essa noção do eu ou se ele a considera somente para rejeitá-la. Black, em A companion to the Tracta-

SOLIPSISMO

tus (1964, p. 308), adota a última interpretação. Sua ideia é que a noção de um eu não empírico ou metafísico é usada por Wittgenstéin simplesmente para ilustrar a espécie de confusão a que se pode chegar por não se entender a diferença entre o que se pode dizer e o que só se pode mostrar. O próprio Wittgenstein, entretanto, parece se apoiar sobre essa noção em seções posteriores do Tractatus. Por exemplo, em 6.43u, ele diz: "a morte não é um evento da vida. A morte não se vive ... Nossa vida é sem fim, como nosso campo visual é sem limite". Essas observações podem ser consideradas em conjunto com outra dos Cadernos (Wittgenstein, 1961, p. 77): "claro, a vida fisiológica não é 'a vida'. E nem o é a vida psicológica. A vida é o mundo" .'4 Em outras palavras, no sentido em que minha vida fisiológica e psicológica tem um fim, minha vida não tem fim. Com isso, Wittgenstein não quer dizer, é claro, que minha vida se estende para sempre. Ela não tem fim no sentido em que meu campo visual não tem limites. Assim, ao passo que faz sentido para mim a pergunta do que está à direita de um objeto que eu vejo, não faz sentido para mim a pergunta do que está à direita do meu campo visual, Nesse sentido, não há fim para o meu campo visual; ele não tem vizinhos. Há um sentido algo 14 [N.T.] Na já citada segunda edição em língua inglesa da obra, que viemos utilizando para facilitar a consulta das passagens referidas pelo autor, a passagem ocorre também na página 77 (Wittgenstein, 1979). Aqui, entretanto, Mounce rejeita uma escolha feita por Anscombe. Anscombe traduziu "das Leben" ("a vida"), que Wittgenstein contrapõe às noções de "vida fisiológica" e "vida psicológica", por "Life", e não "Iife" (com "l" minúsculo). No entanto, como Mounce parece ter percebido, o original alemão não fornece fundamento para essa escolha. Isso porque, no alemão, todos os substantivos são escritos com iniciais maiúsculas. Além disso, e este é o nosso ponto aqui, a tradução de Anscombe pode sugerir uma conotação transcendente ao conceito de vida utilizado no texto, porém Wittgenstein não fez uso de qualquer recurso semelhante ao de Anscombe que pudesse sugerir essa leitura.

H, O, Mourice

similar, Wittgenstein parece sugerir, em que também minha vida não tem fim, mas o eu ao qual se está fazendo referência, não é, de modo algum, um objeto, algo no mundo. Essa interpretação, se estivesse correta, nos ajudaria a entender o que Wittgenstein diz sobre o solipsismo. Em 5.6~, ele diz que "o que o solipsista quer dizer é inteiramente correto; apenas é algo que não se pode dizer, mas que se mostra". Wittgenstein, me parece, está aqui se expressando de um modo muito enganador. Por exemplo, alguns comentadores o interpretaram como se ele estivesse dizendo que, embora seja uma confusão expressar o solipsismo, este, no entanto, é realmente verdadeiro. '5 Mas isso, me parece, está claramente errado. O que Wittgenstein quer dizer é que o solipsismo é ele mesmo confuso, e não simplesmente que é uma confusão ten tar expressá- lo. Mas o que, então, ele tem em mente ao dizer que o que o solipsismo quer dizer está inteiramente correto? Sua ideia, a meu ver, é que o solipsismo é a tentativa confusa de dizer algo outro, que não pode ser dito e que deveria deixar-se mostrar. Existe como que uma verdade por trás do solipsismo, mas ela não pode ser dita, e o solipsismo é o resultado confuso de se tentar dizê-la. A verdade não é que só eu sou real, mas que eu tenho um ponto de vista do mundo que não tem vizinhos. Talvez possamos ver isso com maior clareza se considerarmos o que Wittgenstein diz sobre os limites da linguagem. "O mundo é o meu mundo", ele diz em5.6~, "isso se mostra no fato de que os limites da linguagem (a linguagem que, só ela, eu entendo) significam os limites de meu mundo". É importante notar a tradução da frase entre parênteses. Na

15 Esse é outro exemplo de como os comentadores se precipitaram ao supor que uma ideia que Wittgenstein critica nas Investigações é tal que ele mesmo a defendeu no Trocuitus,

SOLIPSISMO

primeira tradução inglesa, encontrávamos "(a linguagem que apenas eu entendo)". Traduzida dessa maneira, a frase confere algúm apoio à ideia de que Wittgenstein estava defendendo uma espécie de solipsismo, pois ela sugere que, segundo Wittgenstein, os limites da linguagem e do mundo seriam dados em uma linguagem privada a ele mesmo. A tradução, no entanto, é incorreta; o que a frase significa é "a única linguagem que eu entendo". Por "a única lingua gem que eu entendo", Wittgenstein não está se referindo ao alemão, ao inglês ou ao russo. Todas as linguagens, do modo como Wittgenstein as está concebendo, são uma só. Isso porque não pode haver uma linguagem ilógica. A lógica está completamente presente em qualquer linguagem que faça sentido, e uma linguagem que não faça sentido não é, de modo algum, uma linguagem. Todas as linguagens, então, podem ser consideradas em conjunto na medida em que a lógica está completamente presente em cada uma delas, as diferenças entre elas sendo meramente convencionais. Ora, a ideia de Wittgenstein, a meu ver, é a seguinte. O que eu concebo como o mundo me é dado na linguagem. Essa concepção é a única que há. Eu sei disso, não porque considerei outras possibilidades e as rejeitei, e sim, precisamente, porque isso se mostra em não haver outras possibilidades, pois não existe linguagem exceto a linguagem e, portanto, nenhuma outra concepção do mundo além daquela que a linguagem nos dá. Essa concepção é a minha concepção. Minha concepção do mundo, portanto, como meu campo visual, não tem vizinhos. Entretanto, outra vez, devemos tomar cuidado para não identificar isso com o solipsismo. É importante lembrar que minha concepção do mundo se mostra somente no que eu digo sobre o mundo. Mas não terei dito nada sobre o mundo

H. O. Mounce

a menos que, na ocasião em questão, ele possa ser diferente do que eu tiver dito que ele .é: ou seja, é uma condição do discurso que minha linguagem faça referência a objetos independentes de mim mesmo. Se esses objetos são irreais, então também o sou eu, pois é somente em meu discurso acerca deles que meu eu aparece. O eu, como Wittgenstein deixa claro, não é ele mesmo um objeto.Nesse caso, então, o solipsismo é evidentemente confuso. Propriamente entendido, ele colapsa com o realismo, pois o solipsista, ao desejar negar a realidade independente do mundo, ao defender que somente ele e suas ideias são reais, tem a ideia do seu eu como um objeto que está como que sobre e diante de um mundo irreal.No entanto, quando ele se dá conta da confusão que há· nisso tudo, quando percebe que não pode haver um objeto tal como ele concebe o seu eu, o mundo reaparece como a única realidade em que o seu eu pode se manifestar. 5.64

Aqui pode-se ver que o solipsismo, levado às últimas consequências, coincide com o puro rea lismo. O eu do solipsismo reduz-se a um ponto sem extensão e resta a realidade coordenada a ele.

CAPÍTVLO

10

Quero agora examinar as últimas páginas do Tractatus, que tratam, em grande parte, dos juízos de valor. Como vimos, uma proposição, para Wittgenstein, é uma figuração de um estado de coisas possível: a proposição é verdadeira se o que é afigurado é um fato, e falsa se não o é. Entende-se a proposição quando se sabe o que a torna verda deira e o que a torna falsa. Ora, pelo menos em uma primeira reflexão, enunciados de valof parecem não ser dessa forma. Por exemplo, "não roubarás", evidentemente, não se torna falso se roubamos. Uma pessoa é censurada se o faz, porque, embora o faça, não deveria fazê-lo. "Não roubarás", ou "você não deve roubar", parece evidentemente não ser, de modo algum, um enunciado acerca do que é o caso. Essa, de fato, é precisamente a ideia que Wittgenstein sustentou, não só no Tractatus, mas, em muitos de seus traços essenciais, ao longo de toda sua vida. Uma expressão de valor não é um enunciado sobre os fatos. No entanto, na época do Tractatus, ele sustentou que o sentido de uma proposição repousa precisamente em ela figurar os fatos, ou, ao menos, um fato possível. Segue-se que não pode haver proposições de valor. Essa é uma ideia que Wittgenstein expressa, próximo ao final do Tractatus, de diferentes maneiras. Por exemplo, em 6.4, ele diz: "todas as proposições têm igual valor". Em outras palavras, nelas não aparecem distinções de valor. Outra vez, em 6.4~, ele diz explicitamente que "tampouco pode haver

H. O. Mounce

proposições da ética". O sentido de uma proposição repousa em ela figurar o que acontece ou não acontece no mundo. Entretanto, o que acontece ou não acontece no mundo é diferente do que possui valor. Em 6.41, Wittgenstein diz: ( ... ) No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece; não há nele nenhum valor - e se houvesse, não teria nenhum valor. Se há um valor que tenha valor, deve estar fora de toda a esfera do que acontece e é o caso. Pois tudo o que acontece e é o caso é acidental.

Será útil trazer à tona a ideia central desta última proposição com algum detalhe. Suponha que um homem questione o valor, digamos, de usar um cinto de segurança em um carro. Tentaremos fazê-lo ver o valor disso explicando-lhe o que pode acontecer se ele não o usar. Aqui estamos explicando o que Wittgenstein chamou de valor relativo, o tipo de valor que depende das consequências, do que acontece no mundo. Isso não é o que Wittgenstein entende por "valor" no Tractatus. Ele está se referindo ao tipo de valor que encontramos na ética ou na estética, e sua ideia é que esse tipo de valor não depende do que acontece no mundo. Assim, suponha que alguém negasse o valor, digamos, da ação do Bom Samaritano. Seria simplesmente uma confusão se tentássemos fazê- lo mudar de opinião apontando para as consequências da ação.No caso da ação do Bom Samaritano, nenhuma de suas consequências poderia ser mais valiosa do que a ação em si mesma. Em sua "Conferência sobre ética" (1965), escrita alguns anos depois do Tractatus, Wittgenstein ilustrou novamente essa ideia. Se disséssemos a um homem que ele deveria estar jogando tênis melhor, e ele respondesse "eu não quero jogar melhor", 130

dirí_amos "Ah! Então, tudo bem!". No entanto, se disséssemos a outra pessoa "você deveria tratar melhor os seus pais", e

ela respondesse "eu não quero tratá- los melhor", responderíamos "então você deveria querer tratá- los melhor". A importância de tratarmos bem os nossos pais não depende de algo ser o caso, tal como o fato, contingente, de você querer tratá-los bem. Em sua conferência, Wittgenstein falou desse valor como absoluto, enfatizando novamente que valores desse tipo não poderiam ser expressos em uma proposição. É claro, entretanto, que as pessoas dão, de alguma maneira, expressão ao que elas valorizam ou admiram. Na "Conferência sobre ética", Wittgenstein diz que essas expressões são tentativas de dizer o que não pode realmente ser dito. Está claro, contudo, tanto na conferência quanto no Tractatus, que essa tendência a expressar o que não pode ser dito não é - como o solipsismo, por exemplo - produto de um mau entendimento da lógica. Por exemplo, não é algo a ser eliminado por uma análise lógica adequada. Em sua conferência, Wittgenstein diz que essa é uma tendência que ele admira e defenderá. Algo de importante se mostra, mesmo que não seja dito, quando uma pessoa tenta, dessa maneira, expressar o que não pode ser dito. A esse respeito, existe uma analogia com as proposições da lógica, e, nos Cadernos (1979, p. 77), Wittgensteinfaz essa comparação explicitamente. "A ética não trata do mundo. A ética deve ser uma condição do mundo, como a lógica". A ética, assim como a lógica, pertence ao que se mostra, não ao que é dito. Isso não quer dizer que ela se mostre da mesma maneira. Não há nada no caso da ética, por exemplo, que possa ser comparado ao método de mostrar a necessidade de um princípio lógico por meio da notação V. F. Ainda as-

ILO. sim, a ética, como a lógica, faz parte daquilo que "se mostra" (proposição 6.5~~). Isso também pode ser visto pela consideração da relação que existe, para Wittgenstein, entre a ética e a vontade. O mundo é independente de minha vontade. Ainda que tudo que desejássemos acontecesse, isso seria, por assim dizer, apenas uma graça do destino, pois não há nenhuma conexão lógica entre vontade e mundo que o garantisse, e a suposta conexão física, por seu lado, decerto não é algo que pudéssemos querer. 6.43

Se o bom ou mau exercício da vontade altera o mundo, só pode alterar os limites do mundo, não os fatos; não o que pode ser expresso por meio da linguagem. Em suma, o mundo deve então, com isso, tornar-se a rigor um outro mundo. Deve, por assim dizer, minguar ou crescer como um todo. O mundo do feliz é diferente do mundo do in feliz.

O que Wittgenstein está sugerindo aqui é que a diferença entre, digamos, a boa e a má vontade não será encontrada nos fatos, no que vem a ser o caso, pois o que a vontade de fato produz no mundo é uma questão acidental. É, portanto, possível, por exemplo, que a vontade de um homem mude, digamos, de boa para má sem que isso seja revelado em suas ações. Onde, então, se encontra a mudança? Wittgenstein sugere que ela se encontra não em ser diferente este ou aquele fato, mas em o mundo mudar como um todo. Mas o que, precisamente, isso

significa? Wittgenstein explica o que ele quer dizer por meio de uma analogia - "o mundo do feliz é um mundo diferente do mundo do infeliz". A ideia é que são os mundos do feliz e do infeliz que são diferentes.tnão os fatos. Os fatos, em outras palavras, constituem mundos diferentes dependendo da atitude que se assume em relação a eles. Assim, embora os fatos ~ sejam os mesmos, a boa e a má vontade confrontam-se com mundos diferentes. A ética, mais uma vez como a lógica, é uma questão não dos fatos, mas de sua significação. Devemos ter cuidado, no entanto, para não fazer uma leitura equivocada da analogia de Wittgenstein. Ao falar do mundo do feliz, é claro que ele está se referindo obliquamen te a um fenômeno comum. O homem com um temperamento feliz olha para o lado bom das coisas, aceita os mesmos fatos que levam o homem infeliz ao desespero. É importante notar, entretanto, que essa é meramente uma analogia. Wittgenstein não quer dizer que a atitude ética é ela mesma uma questão de temperamento: Pelo contrário, o temperamento que temos é apenas outro dos fatos em relação aos quais devemos adotar uma atitude ética. Essa é uma razão pela qual Wittgenstein, em 6.4~3, distingue a vontade que é portadora do bem e do mal da vontade como um fenômeno, a vontade que interessa apenas à psicologia. A vontade ética não é uma tendência psicológica. Ela se mostra no que fazemos das tendências psicológicas que possuímos, no que fazemos, por exemplo, de nosso temperamento feliz ou infeliz. "Os fatos", diz Wittgenstein, "fazem todos parte apenas do problema, não da solução". 16 Os fatos não resolvem problemas éticos, eles apenas podem fazê-los surgir. As soluções são encontradas nas atitudes que adotamos em relação aos fatos. Wittgenstein, 16 [N.T.] Tractatus, 6.43~1.

H. O. Mourice

porém, quer dizer todos os fatos, tanto psicológicos como físicos. A vontade, enquanto portadora do bem e do mal, ô independente da totalidade dos fatos, isto é, independente, em certo sentido, do mundo. Mais tarde, Wittgenstein veio a pensar que havia algumas confusões envolvidas na maneira como ele falou sobre a von tade na época do Tractatus. No entanto, há muito no Tractatu sobre a relação entre vontade e ética que ele manteve, embora em uma forma um pouco diferente, ao longo de sua vida. Em seus últimos anos, por exemplo, ele continuou a insistir em que os fatos, embora contribuam para a solução de um problema ético, não a determinam. O problema ético não é determinar que é o caso, mas o que fazer, que atitude se deve tomar. Em sua obra posterior, ele deu muito mais atenção aos tipos de situação em que surgem problemas dessa espécie e estava preocupado em enfatizar, como nunca o fez no Tractatus, o papel que os padrões de uma cultura desempenham no desenvolvimento do sentido do bem e do mal. No entanto, ainda assim, problemas éticos permanecem, em certo sentido, pessoais. Pouco apó escrever sua conferência sobre ética, ele disse, em uma discussão com Waismann: "no final de minha conferência sobre ética, falei na primeira pessoa. Penso que isso é algo essencial. Aqui não há mais nada para ser dito; tudo o que posso fazer é dar um passo à frente como indivíduo e falar na primeira pessoa". E, novamente: "tudo o que posso dizer é isto: eu não ridicularizo essa tendência no homem; eu a reverencio. E aqui é essencial que essa não é uma descrição da sociologia, mas que estou falando de mim mesmo" (Waismann, 1979, p. u7-8). Como eu disse, Wittgenstein estava preocupado, em sua obra posterior, em enfatizar que uma atitude pessoal se desenvolve nos padrões de uma cultura, mas ele também enfatizaria que

V:;.wn

uma atitude desse tipo não é simplesmente o produto desses padrões. Por exemplo, dois homens que cresceram na mesma cultura podem diferir, em algumas ocasiões, não apenas no que decidem quando confrontados com um problema ético, mas também no que tom~ como um problema ético. O que é um problema para um pode não ser problema algum para o outro.Além disso, se alguém pergunta "qual está certo?", essa própria questão requer, para uma resposta, que se tome uma decisão sobre o tema. Wittgenstein expressou isso, cerca de cinco ou seis anos antes de sua morte, da seguinte maneira. Suponha-se que alguém diga "um dos sistemas éticos deve ser o correto - ou o mais próximo do correto". Bem, suponha-se que eu diga que a ética cristã é a correta. Nesse caso, estou fazendo um juízo de valor. Ele equivale a adotar a ética cristã. Não é como dizer que uma dessas teorias físicas é a correta. O modo como alguma realidade corresponde - ou entra em conflito - com uma teoria física não tem nenhuma contrapartida aqui (Rhees,

1970,

p.

101).

No Tractatus, como na conferência sobre ética, Wittgenstein apresenta questões sobre o valor ético juntamente com questões sobre o sentido da vida, ou ao menos apresenta as duas conjun tamente em certos pontos. Problemas sobre o sentido da vida, como problemas sobre o bem e o mal, não são problemas cien tíficos. "Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados." (Proposição 6.5~) Além disso, não apenas os fatos da física, mas também os fatos, ou supostos fatos, da investigação psíquica são independentes de valor.

H. O. Mounce

6.431~

Não apenas não há nenhuma garantia da imortalidade temporal da alma humana, ou seja, de sua sobrevivência eterna depois da morte, como, de qualquer maneira, essa suposição absolutamente não se presta ao que com ela sempre se pretendeu. Com efeito, há enigma que se resolva por minha sobrevivência eterna? Não é essa vida eterna tão enigmática quanto a vida presente? A solução do enigma da vida no espaço e no tempo está fora do espaço e do tempo.

A tentativa de conferir sentido à vida não é uma tentativa de determinar se os fatos vão em uma direção em vez de outra. '7 É tendo isso em vista que se deve considerar o que Wittgenstein diz sobre o "místico". Essa palavra tem conotações infelizes, que a equivalente alemã talvez não tenha. Ela sugere uma revelação de eventos extraordinários por meios extraordinários. Isso, porém, não é, de forma alguma, o que Wittgenstein tinha em mente. Ele introduz o termo em 6.44. Não é como as coisas são no mundo que é místico, mas que o mundo existe.

Isso está provavelmente relacionado ao que Wittgenstein, em sua conferência sobre ética, descreve como a experiência de admiração quanto à existência do mundo. Lá ele diz que, quando deseja se concentrar no que entende por "valor 17 Isso não significa, aliás, que os fatos sejam irrelevantes para que se con fira sentido às coisas. Imagine-se, por exemplo, que certas peças estejam faltando para que se complete a figura de um quebra-cabeça. Sem elas, pode ser impossível conferir sentido à figura. O ponto, entretanto, é que o sentido não repousa nas peças extras, mas na figura como um todo - as peças extras são necessárias porque sem elas o todo não pode ser adequadamente visto. 136

v'.'-.LO.R absoluto", ele se lem bra de um a experiên cia particular e diz que a m elh or m an eira de descrever essa experiên cia é dizer que "quan do eu a ten h o, eu m e adm iro com a existên cia do m undo". W ittgen stein m en cion a essa experiên cia não com o algo que lh e seja peculiar, ou m esm o com o algo in com um , m as com o algo com o que os seus ouvintes provavelm en te estariam fam iliarizados. (D e outro m odo, o exem plo não surtiria efeito.) A lém disso, ela não é, precisamente, uma

experiênci\de algo extraordinário no sentido usual. Por exemplo, ela é bastante diferente de um caso que ele menciona mais tarde, o de ver a cabeça de um homem se transformar na cabeça de um leão. Admirar-se com a existência do mundo não é se admirar com o fato de o mundo ser de uma maneira em vez de outra. É admirar-se, pura e simplesmente, com a existência das coisas, o extraordinário aqui não sendo de maior significação que o lugar comum. Ora, é claro que a admiração pela existência do mundo poderia levar alguém a questões sobre o sentido do mundo e sobre a vida que leva nele. A ideia de Wittgenstein é que essas não são questões científicas; mas isso significa, dadas as ideias do Tractatus, que, em um sentido, elas simplesmente não são questões. É por isso que em 6.5~, após mencionar nosso sentimento de que, mesmo que todas as questões científicas venham a ser resolvidas, os problemas da vida continuarão completamente intocados, ele prossegue: "é certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa". "Percebe-se a solução do problema da vida", ele diz em 6.5~1, "no desaparecimento desse problema". Isso não significa, entretanto, que apreocupação seja irreal, produto de mera confusão, pois ele continua: "não é por essa razão que as pessoas para as quais,

H.

após longas dúvidas, o sentido da vida se fez claro não se tornaram capazes de dizer em que consiste esse sentido?". O sentido da vida é algo que pode se tornar claro. No entan to, outra vez, ele apenas se mostra; ele não pode ser dito. Anscombe sugere que Wittgenstein poderia ter ilustrado essa ideia referindo-se a Tolstói, que havia tentado, em diversos livros, dizer o que compreendeu sobre a vida. Wittgenstein pensava não apenas que esses livros o representavam em seu pior, e que ele estava em sua melhor forma em um livro como Khadji-Murát, onde se limita a contar uma história, mas que foi em um livro como Khadji-Murát que ele melhor expressou o que compreendeu sobre a vida. Ou seja, o entendimento de Tolstói se mostrou no que ele disse sobre outras coisas, como a lógica se revela, não no que dizemos sobre a lógica, mas no que dizemos sobre o mundo.

CAPÍTULO

As proposicõ

11

da filosofia

Resta ainda um assunto importante a ser discutido. Ele diz respeito à natureza das proposições que são encontradas na filosofia e, mais particularmente, no próprio Tractatus. Se a natureza da lógica não pode ser dita, como Wittgenstein pode, no Tractatus, dizer o que a lógica é? Em 6.54, ele diz: Minhas proposições servem como elucidações da seguinte maneira: quem me entende acaba por reconhecê-las como contrassensos, após tê-las usado como degraus - para subir além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela.) Deve sobrepujar essas proposições, e então verá o mundo corretamente. Essa proposição foi interpretada como uma admissão tácita de incoerência, pois, se as proposições do Tractatus são contrassensos, como elas podem ser entendidas, e, se não podem ser entendidas, como elas podem elucidar qualquer coisa? Ora, éimportante perceber que aquilo que Wittgenstein está expressando aqui, embora tenha as suas dificuldades, não é nem tão absurdo nem tão arbitrário quanto se fez parecer. Para perceber isso, devemos, em primeiro lugar, atentar precisamente para o que Wittgenstein diz. Note que ele fala não tanto em entendermos o que ele diz quanto em entendermos ele mesmo, isto é, o próprio Wittgenstein. Ele está sugerindo, em outras palavras, que, mesmo que não possamos, estritamente falando, apreender o sentido do que ele diz, podemos

n. O. Mounce certamente perceber onde ele quer chegar com o que diz. Em segundo lugar, devemos levar a sério uma ideia que aparece em diversas partes do Tractatus e não simplesmente, de um modo arbitrário, no final da obra. Essa é a ideia de que algo pode ser mostrado mesmo quando nada é dito. Wittgenstein já disse que nem tudo que carece de sentido é uma algaravia (gibberish). Tautologias, por exemplo, não são algaravias- elas mostram a forma lógica - , mas também não possuem sentido .. Ora, as proposições do Tractatus não são tautologias, mas pertencem grosso modo à mesma categoria. Elas carecem de sentido, porque não dizem nada sobre o mundo, mas cumprem uma função. Ao contrário dos enunciados do solipsista, por exemplo, elas não são o produto de uma confusão. Elas cum prem uma função, precisamente, na medida em que podem prevenir o surgimento desse tipo de confusão. Mas como, pode-se perguntar, pode um enunciado cumprir uma função se ele carece de um sentido? A pessoa que faz essa pergunta, quando pensa em algo que carece de sentido, está quase certamente pensando em algaravias. No entanto, no Tractatus, como dissemos, algaravias não são a única alternativa ao sentido. Será importante ilustrar esse tópico com algum deta lhe. Suponha que alguém mostre ser impossível fazer uma determinada construção na geometria. A impossibilidade envolvida nesse caso é de um tipo interessante e instrutivo. Por exemplo, é bastante diferente da impossibilidade física. Alguém pode, após diversas tentativas, ficar convencido de que é impossível levantar um determinado peso.No entanto, as tentativas foram úteis - foi assim que ele ficou conven cido -, e ele sabe como teria sido se tivesse conseguido. Na geometria, o caso é diferente porque a prova tem o efeito de

.A s

PHO"POsH;:(n;;s nA FJ.LOSOFI/r,

convencer uma pessoa de que não havia nada corresponden do ao que ela estava tentando fazer. Não é que a construção seja concebível, embora impossível de ser realizada; pelo contrário, o ponto é precisamente que ela não era concebível. Mas, nesse caso, o que a pessoa estava fazendo ao tentar construí-la? O que, de fato, era "isso" que ela estava tentando construir? A dificuldade é igualmente grande se vista do ou tro lado. O que era o "isso" que a prova de impossibilidade mostrou ser impossível? Esse tipo de perplexidade pode surgir repetidamente na filosofia. Por exemplo, alguns filósofos (ou teólogos) argumentaram que Deus pode ver o futuro diretamente e explicaram como isso é possível dizendo que, cómo ele existe fora do tempo, ele pode ver o passado, o presente e o futuro simultaneamente; ele pode ver como que diretamente o que para nós ainda está adiante. É fácil ver o que faz isso parecer plausível. Imagine soldados marchando em um dos lados de uma montanha. Eles não podem ver o que os espera no outro lado, mas alguém em uma posição privilegiada, em um helicóptero, por exemplo, estaria apto a ver ambos os ) lados da montanha simultaneamente e, portanto, saberia o que os espera em um dos lados da montanha enquanto eles sobem o outro. Todavia, há uma dificuldade, se pensarmos, em ver o quanto essa analogia é apropriada. A analogia parece apropriada simplesmente porque não refletimos sobre ela, pois adificuldade que se pretende eliminar com a analogia é a de entender como Deus pode ver de uma só vez o que está ocorrendo em dois tempos diferentes. Se os tempos são diferentes, como eles podem ser vistos de uma só vez, isto é, ao mesmo tempo? Ficará evidente, se refletirmos, que o homem no helicóptero não nos ajuda a compreender isso,

H. O. Mounce

já que é evidente que ele pode ver o que está ocorrendo em ambos os lados da montanha somente se os eventos não estão ocorrendo em tempos diferentes. Ele pode ver simultanea mente o que está ocorrendo ao mesmo tempo, mas se você lhe pedir para dizer o que está ocorrendo em um dos lados agora e no outro daqui a três anos, ele não estará em melhor posição para dizê-lo do que os soldados. A analogia entra em conflito com o que deveria explicar no exato ponto que precisa ser explicado. Mas o que, então, faremos da asserção de que Deus pode ver o futuro diretamente? Uma breve reflexão revelará que essas palavras (pelo menos ao que tudo indica) não constituem, de modo algum, uma asserção inteligível. Não podemos tomá-las sequer como representando um estado de coisas possível. Além disso, essa é apenas metade da dificuldade, pois, se a asserção não tem sentido, como pode haver um sentido em negá - la? O que, mais uma vez, seria o "isso" a ser negado? Ora, há um ponto acerca das frases contidas nesses exemplos que devemos observar se queremos entender o que Wittgenstein diz sobre a filosofia no Tractatus. As frases podem ser contrassensos, mas por certo não são algaravias. Poderemos ver isso se notarmos uma reação que elas geram naturalmente. Muitas pessoas estariam inclinadas a dizer, sobre o último caso, por exemplo, que se a asserção e sua negação são ambas contrassensos, ainda assim uma parece muito menos um contrassenso do que a outra. Isso porque, ainda que seja um contrassenso tanto asserir quanto negar que Deus pode ver o futuro diretamente, parece muito menos um contrassenso negá-lo do que asseri-lo. Isso porque a negação tem ao menos alguma função a desempenhar, mesmo que seja apenas a de impedir que a asserção seja feita. Essa

As PROPOSIÇÕES

DA FILOSOFIA

reação indica - embora, talvez, de uma maneira confusa - o ponto em questão. O ponto é que a afirmação, ao contrário de, digamos, "Cluck tok hoo", tem uma aparência de sentido que pode confundir as pessoas, pode enganá- las, e pode ser importante libertá- las de sua confusão. Isso está relaciona do à ideia de Wittgenstein no Tractatus. Tanto o enunciado "a lógica pode ser dita" quanto "a lógica não pode ser dita" carecem de sentido na medida em que não dizem nada sobre o mundo. No entanto, o último enunciado cumpre uma função, não com relação ao mundo, mas com relação ao que outras pessoas estão dizendo; por exemplo, ele pode servir para pôr fim a um certo tipo de conversa confusa, do qual o primeiro enunciado é um exemplo. Como, em si mesma, a negação não diz nada (isto é, não representa nada no mundo), ela se torna inútil uma vez que serviu ao seu propósito, uma vez que a conversa confusa foi encerrada. Assim, como uma escada, ela pode ser deixada de lado. Ora, como veremos em seguida, o que Wittgenstein está dizendo aqui é, na verdade, inadequado. Dada sua posição no Tractatus, não lhe foi possível tornar a questão inteiramente clara. Mas sua ideia também não era absurda. Ele estava lidando com um tema de grande importância para a filosofia. Na filosofia, muitos erros consistem não em falsidades empí ricas, mas em confusões. Além disso, é importante perceber que a confusão envolvida é de um tipo especial. Não se trata, por exemplo, de uma questão de mera falta de clareza ou de uma pessoa falar sobre algo que não entende direito (embora também se encontre esse tipo de confusão com muita frequência na filosofia). É por isso que Wittgenstein diz em 6.53 que o método correto na filosofia envolveria demonstrarmos a um homem que pretende dizer algo de metafísico que ele

I-LO. Mounce

"não conferiu significado a certos sinais em suas proposições". Ou seja, a confusão de que trata Wittgenstein é uma questão de haver algo de errado no uso das palavras. Isso, porém, não ocorre em função de as pessoas que usam essas palavras não estarem familiarizadas com elas, quando consideradas individualmente - em uma asserção metafísica, as palavras usadas são frequentemente muito familiares. Essa confusão surge pelo fato de elas usarem as palavras de tal maneira que estas deixam de ser governadas pela sintaxe lógica, pelas :regras que, refletindo a forma lógica, governam o seu uso em contextos ordinários e garantem, nesses contextos, que elas possam ser usadas para dizer alguma coisa. Assim, a confusão metafísica não é resultado de falta de clareza pessoal ou de falta de conhecimento, mas de uma má compreensão da lógica de nossa linguagem. "O livro trata dos problemas filosóficos", diz Wittgenstein no Prefácio, "e mostra - creio eu - que a formu lação desses problemas repousa sobre o mau entendimento da lógica de nossa linguagem". Na confusão metafísica, não percebemos isso por:que as palavras que usamos são familia res. É isso que distingue essas confusões de algaravias, que lhes confere sua aparência de sentido. Um dos propósitos de um método correto na filosofia é eliminar essa aparência de sentido mostrando que às palavras de uma asserção metafísica não foi conferido o seu uso familiar. Será útil, neste ponto, retornar à discussão de Wittgenstein sobre o solipsismo, pois nela encontramos o único exemplo detalhado que ele apresenta no Tractatus de uma asserção metafísica e de como se deve lidar com isso. A asserção "Somente eu existo" (ou, talvez, "o mundo é meu mundo") contém palavras que têm, cada uma delas, um uso bastante familiar. É fácil perceber, entretanto, que o solipsista, em

44

1

As

PROPOSIÇÕES DA .F ILOSOflA

seu uso dessas palavras, se afasta de seus usos familia res. Por exemplo, no uso ordinário de "eu", o solipsista é apenas um homem entre outros. Nesse sentido, se eu, em circunstâncias ordinárias, desejo fazer referência a mim mesmo, eu o faço distinguindo-me dos outros - a existência dos outros é, nesse caso, pressuposta. A ideia do solipsista, entretanto, é que há um outro uso de "eu" em que o pronome se refere a um objeto que está acima e diante do mundo no qual ele distingue a si mesmo como um ser corpóreo entre outros - sendo este último mundo irreal, sendo, na verdade, um produto de sua própria mente. A ideia de Wittgenstein, contudo, é que, na medida em que faz sentido distinguir um segundo nível no uso de "eu", a palavra não corresponde a objeto algum. O solipsismo surge por causa de uma confusão entre os diferentes níveis. Ele procura expressar uma verdade, que não pode ser dita e que só pode se manifestar, como se fosse uma verdade sobre um objeto no mundo; mas o eu tratado como um objeto no mundo é apenas um objeto entre outros. Em outras palavras, o solipsismo coincide com o puro realismo, ou melhor, coincide com o puw realismo quando adequadamente entendido, pois a ideia de Wittgenstein é que o solipsismo depende de ele não ser propriamente entendido. Assim, a refutação do solipsismo não consiste em mostrarmos que os fatos são diferentes de como o solipsista os representa: ela consiste em mostrarmos que ele não representa nenhum fato possível. O solipsismo surge de uma má compreensão da lógica de nossa linguagem. Permanece verdadeiro, entretanto, que o tratamento que Wittgenstein confere a esses temas no Tractatus não é inteiramente adequado. Isso, em parte, porque ele defendeu

45

1

H. O. Mounce

naquela época que existe uma distinção radical entre sentido e contrassenso, que o que conta como sentido e o que conta como contrassenso deve estar determinado para todos os casos possíveis. Mais tarde, ele veio a acreditar que adistinção entre sentido e contrassenso, como muitas distinções na linguagem, não é uma distinção radical. 18 Considere, por exemplo, a diferença entre noite e dia. Ao meio-dia, obviamente, não é noite; à meia-noite, não é dia; mas que seja noite ou dia durante, digamos, uma certa porção do entardecer é inteiramente indeterminado. Ocorre quase o mesmo com a diferença entre sentido e contrassenso. Na filosofia, perde-se isso de vista porque tendemos a julgar todos os casos por meio daqueles em que a distinção é facilmente traçada. Como exemplo de contrassenso, escolhemos uma algaravia, tal como "Gluck tok hoo"; como exemplo de algo que tem sentido, escolhemos um enunciado claramente factual como "está chovendo". O que perdemos de vista é que podem ser construídas inúmeras frases que não caem em nenhuma dessas categorias. Em sua obra posterior, Wittgenstein deu vários exemplos de frases desse tipo, o mais famoso sendo "que horas são no Sol?". Essa pergunta, ao contrário de uma algaravia, tem toda a aparência de sentido, e muitas pessoas, quando se deparam com ela pela primeira vez, são incapazes de dizer de imediato se ela tem sentido ou não. Entretanto, é fácil perceber, após alguma reflexão, que a frase não tem nenhuma aplicação natural. Isso porque, para determinar a hora do dia, devemos levar em consideração uma porção da Terra que é iluminada pelo Sol. Falar da hora do dia no próprio Sol não representa nenhum estado de coisas possível. Ora, 18 Talvez fosse melhor dizer que ele veio a acreditar que havia uma confusão em sua ideia anterior acerca do que constitui uma distinção clara ou radical.

As

.PHOPOSJÇÔES DA FILOSOFIA

na medida em que não representa nenhum estado de coisas possível, a frase é exatamente como qualquer algaravia, mas, na medida em que consiste em palavras normais arranjadas gramaticalmente, ela é exatamente como "está chovendo", um enunciado com sentido. Como vimos, é característico de muitas das assim chamadas teses da filosofia que elas caiam nessa categoria: elas não são nem algaravias nem enunciados claramente dotados de sentido. Elas têm como que a apa rência de um enunciado dotado de sentido, porém sem sua substância. O problema com a posição de Wittgenstein no Tractatus é que ele não pôde deixar isso inteiramente claro, porque sustentou que existe uma distinção radical entre sentido e contrassenso, que o que conta como sentido e o que conta como contrassenso tem de estar determinado para todos os casos possíveis. Dada uma distinção tão rígida, é di fícil apreciar a força do que ele diz sobre a filosofia como uma atividade que elimina confusões, pois é difícil perceber como pode haver diferentes graus de contrassenso, como uma proposição pode carecer de sentido sem ser uma algaravia. No entanto, como também sugeri, a posição de Wittgenstein, quaisquer que sejam suas dificuldades, tem certas características que são de grande valor. A fim de resumi-la, será útil considerar algumas das proposições do Tractatus que dizem respeito especificamente à filosofia.

4 .11

A totalidade das proposições verdadeiras é toda a ciência natural ( ou a totalidade das ciências na turais).

4.111

Afilosofia não é uma das ciências naturais.

1

47

H . O. M ounce

(A palavra "filosofia" deve significar algo que esteja acima ou abaixo, mas não ao lado, das ciên cias naturais.) 4.112,

A filosofia visa ao esclarecimento lógico dos pensamentos. A filosofia não é uma teoria, mas uma atividade. Uma obra filosófica consiste essencialmente em elucidações. A filosofia não resulta em "proposições filosóficas", mas no esclarecimento de proposições. Sem a filosofia os pensamentos são como que turvos e indistintos: sua tarefa é torná - los claros e dar- lhes limites precisos.

Para Wittgenstein, então, a filosofia é uma atividade de um tipo diferente da ciência. Isso, no entanto, não é dizer que ela é uma pseudoatividade, um desfile de contrassensos. Seu objetivo é esclarecer pensamentos, eliminar confusões, especialmente o tipo de confusão que está contido em tentativas mal sucedidas de falar sobre o mundo. Na época do Tractatus, Wittgenstein acreditava que a principal fonte dessas tentativas era a não apreensão da diferença entre que pode ser dito e o que só pode ser mostrado, e que urna vez que essa diferença fosse apreendida a confusão poderia ser eliminada. Ele também acreditava que, para eliminar essa confusão, era importante desenvolver um simbolismo lógico que fosse adequado para exibir a forma lógica. Em sua obra posterior, ele modificou essa ideia em diver sos aspectos importantes. Ele se convenceu, por exemplo,

As

V.R O'POSIÇÔES DA ITLOSOFIA

de que a lógica formal tinha apenas um valor limitado para a filosofia e de que não havia uma única fonte da confusão filosófica, de modo que jamais se poderia eliminar essa confusão de uma vez por todas. Em outros aspectos, entretanto, essa ideia permaneceu muito próxima à do Tractatus, pois ele continuou a distinguir a filosofia da ciência, sustentando que a investigação filosófica era fundamentalmente conceitua], e continuou a acreditar que a tarefa filosófica essencial não era estabelecer um corpo de doutrinas, mas alcançar a clareza.

49

1

CAPÍTULO

Aco

12

cão posterior

Antes de concluir esta breve introdução ao Tractatus, será útil considerar em maior detalhe algumas das diferenças entre a obra inicial de Wittgenstein e sua obra posterior. Isso será útil não apenas porque as diferenças são interessantes em si mesmas, mas também porque a obra inicial pode ser vista de maneira mais clara à luz dessas diferenças. Vimos que Wittgenstein, na época do Tractatus, era claro quanto às proposições da lógica não representarem os fatos. Pode-se notar, entretanto, que elas ainda são, em alguma medida, representacionais. Como Wittgenstein diz em 6.1~4, as proposições da lógica não "tratam" de nada, mas representam" a armação do mundo". Elas representam uma ordem de possibilidades, isto é, não o mundo, mas a lógica do mundo. Essa ideia aparece no que ele diz em 3.34~. Embora haja algo arbitrário em nossas notações, isto não é arbitrário: se já determinamos algo arbitrariamente, algo mais tem de ser o caso. (Isso decorre da essência da notação.) As regras de nossa linguagem não são simplesmente convencionais. Os sinais e os sons, o que há de convencional na linguagem, derivam seu sentido das regras para seu uso, e estas refletem a lógica do mundo. Ora, a diferença fundamental entre a obra inicial de Wittgenstein e sua obra posterior é que na obra posterior ele rejeita essa ideia. Na obra posterior, as proposições da lógica refletem as regras

H. O. Mounce

da linguagem, e estas são encontradas no seu uso; elas não subjazem a ele. Tentemos agora esclarecer essa ideia. Será útil começar com a forma geral da proposição. Como vimos, Wittgenstein pensou à época do Tractatus que todas as proposições possíveis estivessem determinadas pela aplicação sucessiva da operação N(ç) a proposições elemen tares. Dessa maneira, se a operação de negação conjunta é aplicada a "p" e "q", isso determina a proposição N(p,q). Se a operação é agora aplicada, do mesmo modo, a N(p ,q), a proposição N(N(p ,q)) é também determinada. Ou, para tomar um exemplo diferente, mas próximo a esses, se negamos p, obtemos -p; se negamos -p, obtemos uma proposição equi valente a p. Na época do Tractatus, Wittgenstein acreditava que esses passos fossem determinados inequivocamente pelo significado que havia sido dado ao sinal para a negação. Em outras palavras, é uma questão de convenção que devamos dar ao sinal.">" o significado que damos, mas o que não é uma questão de convenção é como, dado seu significado, ele deve ser aplicado, pois o significado do sinal, como que independentemente da interferência humana, determinará de maneira inequívoca todas as suas aplicações futuras. Mais tarde, Wittgenstein veio a acreditar que essa maneira de falar expressava uma concepção de forma lógica inteira mente confusa. Poderemos ver o que ele tinha em mente se refletirmos por um momento sobre o discurso ordinário. No discurso ordinário, a dupla negação, quando é usada, não é equivalente a uma afirmação: "eu não quero nada" é equivalente, não a "eu quero algo", mas a "eu quero nada" enfaticamente proferida. Além disso, esse uso, quer seja gra maticalmente correto ou não, é manifestamente inteligível. Na época do Tractatus, Wittgenstein teria dito que isso ocorre

A CONCEPÇÃO POSTERIOR

porque o significado do sinal para a negação foi modificado, isto é, no discurso ordinário, a segunda negação não está sendo usada da mesma maneira que a primeira. Se estivesse sendo usada da mesma maneira, então a dupla negação seria, logicamente, equivalente a uma afirmação.No entanto, mais tarde, ele veio a perceber que isso perdia inteiramente de vista o ponto em questão. Isso porque o ponto importante é: em que consiste usar a negação da mesma maneira? Ou, melhor, o que significa dizer que a dupla negação é determinada pelo significado da negação simples? Como o significado do sinal para a negação determina suas aplicações futuras? Uma breve reflexão revelará a força dessas questões. Dissemos que o uso do sinal para a negação é cancelar uma proposição afirmativa. Ora, se adicionamos uma segunda negação (--p), como isso deve ser interpretado? Lógicos formais pensam ser natural supor que se o primeiro sinal para a negação cancela "p", então o segundo cancela" -p", deixando "p" como resultado: a dupla negação equivale a uma afirmação. Contudo, se pensarmos um pouco, não é igualmente natural pensar da seguinte maneira? Se a primeira negação cancela "p ", a segunda repete o cancelamento de "p" com força du pla. Ou seja, por que deveríamos supor que o segundo sinal para a negação cancela "-p"? Por que não deveríamos seguir o discurso ordinário em considerar o segundo sinal para a negação como aplicando-se junto com o primeiro a "p"? Uma mente não tendenciosa descobrirá, se refletir, que aqueles que seguem o discurso ordinário têm tanta razão quanto seus oponentes em sustentar que estão usando o segundo sinal para a negação do mesmo modo que o primeiro. Mas, nesse caso, como o significado do sinal para a negação pode determinar inequivocamente suas aplicações futuras?

II. O. Mourice

Ora, essa questão, uma vez apreendida, nos levará a refletir sobre o que se quer dizer quando se diz que o significado de um sinal determina suas aplicações futuras. Essa é uma frase que nos ocorre naturalmente em certas circunstâncias. Por exemplo, quando se consideram os passos de uma série matemática (digamos,~. 4, 6, 8 ... ), pode-se ter a sensação de que os passos seguintes já estão determinados. Mesmo que ainda não os tenhamos dado, é como se eles estivessem esperando para serem dados. É como se, quando colocamos os passos no papel, estivéssemos apenas traçando o que de certa forma já existe. Essa não é exatamente a ideia que Wittgenstein tinha na época do Tractatus. Como vimos, ele foi claro quanto aos passos da série não existirem como objetos. Todavia, a possibilidade dos passos, ele sentia, está em algum sentido determinada pelos passos iniciais, independentemente do que qualquer pessoa que esteja continuando a série venha a colocar no papel. Mas a questão é: em que sentido "determinada"? É essa ideia de estar logicamente determinada que é deixada obscura no Tractatus, e é a ela que ele se dedica em sua obra posterior. A fim de esclarecer isso, consideremos um exemplo que o próprio Wittgenstein usou mais tarde. De" (X) fx" (tudo é f) segue-se quefa (que alguma coisa particular, a, éf). Se tudo que está sobre a mesa é vermelho, por exemplo, segue-se que esta maçã, que está sobre a mesa, é vermelha. Mas por que isso se segue? Ou, antes, em que sentido isso se segue? Alguém poderia estar inclinado a dizer que isso se segue do significado de "(X) fx". Qualquer um que entenda o signifi cado de "(X) [x" deve admitir que "[a" se segue. Mas em que sentido "deve"? Wittgenstein, em sua obra posterior, disse que isso ficaria claro se fosse expresso dizendo-se, não que o 54

1

A GONCEPÇKO POSTERIOR

significado de" (X) fx" determina que "[a" se segue, mas que qualquer um que não perceber que deve inferir "f a" de "(X) [x" não terá apreendido o significado de "(X) fx". Em outras palavras, deveríamos dizer que alguém entende "tudo o que está sobre a mesa é vermelho" se e somente se, ao asseri - lo, essa pessoa estiver disposta a asserir de qualquer coisa sobre a mesa (esta maçã, por exemplo) que ela é vermelha. A última asserção é uma condição da primeira asserção. Ou, para colocá-lo de outro modo, "(X) fx implicafa" pode ser tratada como uma regra para o uso de "(X) fx". Dessa maneira, o enunciado de que o significado de "(X) fx" determina que fa se segue é verdadeiro apenas no sentido em que o fato de inferirmos "[a" de "(X) [x" determina o significado de "(X) fx". A mesma ideia se aplica ao caso das constantes lógicas. Assim, de "p v q e -q" segue -se que "p". Em que sentido isso se segue? Ora, não está claro que alguém que assere "p ou q" já deve estar disposto, se pretende ser entendido, a asserir que se uma dessas proposições é falsa, "q", por exemplo, a outra é verdadeira? Em outras palavras, a última se segue da primeira somente no sentido em que é uma condição para asseri-la. Wittgenstein, de fato, chega perto de dizer isso no Tractatus. Entretanto, no Tractatus, uma proposição, como "p ou q", é gerada por meio da aplicação de uma operação sobre proposições elementares. Ela deriva o seu sentido de sua posição no interior do sistema de proposições, de enunciados inteligíveis.Na obra posterior, essa ideia é deixada de lado. A linguagem não forma um sistema, no sentido de um cálculo. Se quisermos saber como obtemos uma proposição como "p ou q", deveremos procurar em um lugar bastante diferente; deveremos examinar o propósito a que ela serve, o lugar que 55

1

H . O. M ourice

ela ocupa, no interior das atividades de uma vida social. Como eu disse, "(X) fx ::J fa" e "p v q . -q . ·. p" podem ser concebidas como regras para o uso de "(X) fx" e "p v q" respectivamente. Mas essas regras não são o reflexo de alguma estrutura lógica mais profunda. As proposições da lógica não refletem algo que subjaza às regras; elas são uma cristalização das próprias regras, as quais derivam seu papel daquilo que as envolve, a vida social em que elas se encontram. Façamos, no entanto, uma pausa, pois, para alguns, a análise acima parecerá conter uma falha óbvia. Dissemos que as inferências que se seguem, por exemplo, das constantes lógicas são realmente uma expressão do significado dessas constantes. Isso, entretanto, pode parecer plausível somente se nos confinamos a casos simples. Isso se torna menos plau sível, assim seria argumentado, se consideramos as inferências que permeiam um sistema lógico como um todo, pois é evidente que muitas dessas inferências ainda precisam ser feitas. Mas, nesse caso, como essas inferências, que ainda não foram feitas, podem ser parte do significado das constantes lógicas? Certamente, devemos primeiro determinar o significado das constantes antes que possamos seguir em frente e fazer novas inferências. Mas, então, que explicação daremos de como essas novas inferências se seguem do significado das constantes lógicas? Uma resposta a esse problema foi bastante criticada. Alguns dos positivistas lógicos (filósofos que foram influenciados pelo Tractatus em alguns aspectos) disseram que um sistema lógico pode ser dividido como que em duas partes. O significado dos sinais usados na primeira parte de nosso sistema é determinado pelas regras que lhes conferimos, en quanto o resto do sistema consiste no que se segue de nossas regras. No entanto, foi dito, isso não resolve o problema, pois

A CONCEl'ÇKO POSTI:IUOR

como devemos entender a frase "se segue de nossas regras"? Parece que existem apenas duas possibilidades. Ou os positivistas lógicos são obrigados a recorrer a uma noção que eles deveriam estar elucidando, a saber, a de uma estrutura lógica que, existindo independentemente dos fatos empíricos e do acordo humano, garante o desenvolvimento de nosso sistema, ou eles são forçados a supor que o desenvolvimento de um sistema lógico é inteiramente arbitrário, dependendo, em qualquer ponto, de como queremos desenvolvê-lo. A primeira alternativa, no entanto, supõe o que se pretende elucidar, e a segunda parece extremamente implausível. Ora, é importante perceber que esse problema é apenas aparente. Bem entendido, ele desaparece. Para perceber isso, será útil considerar uma analogia. Podem-se construir computadores que, diante de problemas, concordarão ao fornecerem respostas que até o momento não foram sequer consideradas por qualquer ser humano. Como isso é possível? Parece evidente que os computadores não dispõem de qualquer apreensão de princípios lógicos, que eles operam, em poucas palavras, de acordo com causas puramente naturais. Frente a isso, poder-se-ia dizer que os engenheiros que constroem os computadores dispõem de uma apreensão desses princípios e constroem computadores para operarem de acordo com eles. Entretanto, se pensarmos um pouco, veremos que essa não é uma resposta para o problema, pois como os engenheiros programam nos computadores a maneira como esses princípios devem ser aplicados a problemas que eles mesmos sequer consideraram? Como dois computadores, trabalhando independentemente, podem concordar na solução para um problema, solução essa que, até então, não havia sido vista pelo olho humano? 57

1

H. O. Mounce

Ora, não é evidente, se refletirmos, que o que temos aqui é meramente a ilusão de um problema? Os computadores concordam porque foram construídos nos mesmos moldes; o resto é apenas o trabalho da causação natural. Uma explicação análoga a essa se aplica ao caso de seres humanos que desenvolvem um sistema lógico ou matemático. Pessoas que foram ensinadas a usar sinais de determinadas maneiras continuarão, em diferentes circunstâncias, a concordar em seu uso desses sinais, mesmo quando estiverem traba lhando independentemente. A explicação para isso (se uma explicação for necessária) repousa no modo como elas foram inicialmente treinadas. É um fato que pessoas que receberam o mesmo treinamento em certas circunstâncias reagirão de maneira similar em outras, não como resultado de um acordo explícito, mas como resultado de seu treinamento. O desenvolvimento de um sistema lógico ou matemático depende desse acordo nas reações. Em outras palavras, o desenvolvimento de um sistema lógico ou matemático não é nem uma questão arbitrária, em qualquer sentido natural da palavra, nem uma questão de ele ser guiado por alguma estrutura lógica subjacente. Princípios lógicos, de fato, não são eles mesmos fatores na explicação do desenvolvimento de um sistema - o que não significa negar a existência de princípios lógicos, e sim elucidar sua natureza. Princípios lógicos são uma característica do sistema uma vez desenvolvido, e não fatores exigidos na explicação de como o desenvolvimento ocorre. Isso será melhor esclarecido se compararmos o desen volvimento de um sistema na lógica ou na matemática com a composição de variações sobre um tema na música, que é uma das analogias favoritas de Wittgenstein. O tema representará a

A CONCEl'ÇKO

POSTERIOR

primeira parte do sistema, enquanto as variações representa rão o seu desenvolvimento. A analogia é boa para o propósito de Wittgenstein porque seria inteiramente implausível sustentar tanto que um tema determina suas próprias variações (como que independentemente de interferência humana, de como ele é percebido pelo compositor) quanto que a forma variação na música é inteiramente arbitrária, estando o compositor livre para colocar na partitura o que quer que lhe venha à cabeça. Assim, parece evidente que aquele que compõe variações sobre um tema é tanto um criador quanto um descobridor e que um conjunto de variações não exclui outro conjunto de variações, igualmente bom, sobre o mesmo tema. Há um tema de Paganini, por exemplo, que é objeto de incontáveis variações de diferentes compositores - só Brahms chegou a compor dois desses conjuntos. Obviamente, seria uma tolice sustentar que existe apenas um conjunto correto dessas variações. No entanto, seria igualmente tolo sustentar que o modo como uma variação é composta é inteiramente arbitrário. Se não vemos nenhuma conexão entre um tema e sua variação, não dizemos que o compositor compôs uma má variação; dizemos que ele não compôs variação alguma. Muitos de nós, por exemplo, quando ouvimos pela primeira vez a mais famosa das varia ções que Rachmaninov compôs sobre o tema de Paganini, não conseguimos detectar nenhuma relação com o tema. A relação consiste em que a variação apresenta o tema invertido. Quando nos convencemos disso, reconhecemos que Rachmaninov compôs uma variação, e não apenas uma bela melodia. Em outras palavras, um tema é uma variação sobre outro somente se existe alguma conexão entre eles. Isso, porém, suscita uma reflexão importante. Não é possível encontrar alguma conexão entre quaisquer duas coisas?

1

59

H . O. M ourice

Por exemplo, suponha que Rachmaninov tivesse inserido "Cod save the Queen" como uma das variações sobre o tema de Paganini e, quando questionado sobre isso, tivesse dito que a primeira vez em que ele ouviu o tema de Paganini foi durante um concerto em que a rainha da Inglaterra esteve presente. Não deveríamos aceitar, com base nisso, que ele teria composto uma variação. Ainda assim, haveria uma conexão, bastante peculiar, entre o que ele compôs e o tema de Paganini. De maneira semelhante, suponha que eu continu asse a série a, 4, 6, 8 ... escrevendo 14; isso porque meu filho mais velho tem catorze anos, e os outros filhos, respectivamente, dois, quatro, seis e oito anos. Isso não contaria como uma continuação da série. Por outro lado, contaria como uma continuação da série se eu escrevesse 10, minha razão para isso sendo que este é o quinto número par da série dos números cardinais, e os quatro números pares precedentes constituem o começo da série que busco continuar. Mas por que isso ocorre? Em ambos os casos, existe uma conexão. Parece que, para compor uma variação ou continuar uma série matemática, devo encontrar não apenas uma conexão com o que a precede, mas uma conexão que seja pertinente. Isso, entretanto, pode parecer desqualificar toda a posição, pois como é possível explicar o que faz com que uma conexão seja pertinente sem recorrer aos fatos ordinários e às reações dos iniciados? Na verdade, é fácil mostrar que o que faz com que uma conexão seja pertinente não é algo que subjaza a uma prática, e sim as reações dos iniciados. Assim, se a conexão entre o tema de Paganini e a rainha da Inglaterra é inteira mente pessoal àquele que está compondo as variações, então não será uma variação se ele inserir "God save the Oueen". No entanto, suponha que fosse um fato bastante conhecido, algo

A CONCEPÇÃO POSTERIOR

familiar a todos os amantes da música, que o tema de Paganini foi composto a pedido de uma monarca britânica que esteve presente em sua primeira apresentação; nesse caso, seria inteiramente aceitável se um compositor incluísse ao menos uma pequena referência ao hino nacional britânico em suas variações sobre aquele tema. De um modo semelhante, ao continuar uma série matemática, supõe-se que eu não deva considerar as idades de meus filhos, e sim apenas aqueles fatores que são comuns àqueles com algum treino em ma temática. Um treinamento em matemática é precisamente uma tentativa de concentrar a atenção do aluno sobre alguns fatores em detrimento de outros. É por isso que o que vem à mente de alguém que passou por esse treinamento e a quem se pede que se concentre em algo presente na série será quase certamente idêntico ao que vem à mente de outra pessoa que se concentra sobre esses fatores e que passou pelo mesmo treinamento. É assim que matemáticos entram em acordo e que um sistema matemático é desenvolvido. Em suma, o que faz com que algo seja um passo correto na composição de uma variação ou na continuação de uma série é o fato de que isso está relacionado de um modo pertinente com o que o precede; o que faz com que uma conexão seja pertinente é determinado pelas reações dos iniciados. Talvez isso possa ser colocado de maneira ainda mais simples. Considere a relação entre o tema de Paganini e a mais famosa das variações de Rachmaninov. Naquela varia ção, como dissemos, o tema aparece invertido. O significado preciso disso não é importante. Basta que se refira a um fato a respeito das duas melodias que é tão objetivo quanto qualquer outro. Mas o que faz com que esse fato seja relevante na com posição de uma variação? Simplesmente, o fato de que existe

H. O. Mounce

uma atividade na qual as pessoas são levadas, por treinamento explícito ou não, a tratar fatos como esses como relevantes, e é essa atividade que chamamos de" compor variações". De um modo semelhante, a série a, 4, 6, 8 ... é constituída pelo que são de fato os primeiros quatro números pares na série dos números cardinais (ou, todo outro número nessa série). Os números 10, 1~, 14 ... continuam a série dos números pares. Mas o que faz com que esses fatos sejam relevantes na continuação de uma série matemática? Simplesmente, o fato de que existe uma atividade em que as pessoas são treinadas para tratar fatos como esses como relevantes, e a essa atividade chamamos "matemática". Não é a matemática que determina o que é relevante, isto é, algo que subjaza à prática humana. Pelo contrário, é o fato de aqueles que fazem parte de uma prática particular (ou conjunto de práticas) tratarem uma coisa como relevante em detrimento de outra que define a matemática. Ou seja, os fatos aos quais a matemática se refere não produziriam em si mesmos a matemática. Também tem de haver matemáticos para reagir a esses fatos. É da intera ção entre as duas coisas que surge a matemática. Em suma, pode-se dizer que o que faz com que a matemática não seja arbitrária é o fato de que os matemáticos não são arbitrários em suas respostas, eles respondem de maneiras que confirmam o que esperam uns dos outros, e a explicação para isso será encontrada, se é que será encontrada, em certos fatos gerais acerca da natureza física e humana. A razão pela qual esses pontos são perdidos de vista é que nossa percepção do que é relevante ou apropriado, não simplesmente na matemática e na música, mas na vida social em geral, é frequentemente influenciada por fatores que esquecemos ou dos quais dificilmente estávamos sequer

cientes, e, então, quando filosofamos, estamos inclinados a supor que os fatores que a influenciaram existem de maneira inteiramente independente de toda atividade humana. '9 Nas Investigações, Wittgenstein apresenta uma excelente ilustração do quão tacitamente nos baseamos no que é relevante ou apropriado. Suponha que tivéssemos pedido a alguém que 19 Isso está relacionado ao que Marx tinha em mente quando falou em alienação. A palavra "alienação" tornou-se hoje destituída de significado, mas Marx a usou para expressar um insight importante. Ele notou uma tendência a se atribuir como que à natureza das coisas o que é na realidade o produto das próprias ações das pessoas. Por exemplo. as pessoas às vezes acreditam, ou agem como se acreditassem, que aquilo que responde pelo funcionamento do estado ou do sistema econômico é algo mais do que as atividades daqueles que compõem o estado ou que lidam com questões econômicas; de fato, é quase como se elas acreditassem que as atividades daqueles que compõem o estado ou que lidam com questões econômicas pudessem ser explicadas pelo funcionamento, digamos, do Estado ou do Sistema Econômico. Elas tratam os produtos de sua própria atividade como se fossem alheios a elas. Um seguidor de Marx certa vez satirizou essa tendência dizendo qu~. além de considerarmos os interesses dos pacientes e dos médicos, devemos cuidar para não negligenciar os interesses da Medicina. Essa ideia foi vulga rizada por marxistas posteriores que, diferentemente de Marx, perderam de vista duas coisas igualmente importantes, a saber, (a) que a medicina, por exemplo, não existe independentemente das ações de pacientes e médicos e (b) que a relação entre um paciente e um médico não é algo que possa ser alterado arbitrariamente. É (b), de fato, que ajuda a explicar a tendência a tratar a Medicina como se ela existisse independentemente de pacientes e médicos. O ponto é que a atividade humana, em uma dada época, terá consequências que influenciarão a atividade humana futura, de modo que as instituições, em sua maioria, desenvolvem-se independentemente do que é desejado para elas. Ora, devemos ter cuidado com comparações apressadas, mas há, parece-me, uma relação real neste ponto entre o tratamento conferido por Marx às instituições sociais e o tratamento conferido por Wittgenstein à matemática e à lógica. Podemos dizer que o que Wittgenstein tentou mostrar era que não há, além dos fatos naturais e das atividades dos matemáticos, algo chamado "Matemática", mas que isso não significa que as operações matemáticas sejam arbitrárias e possam ser livremente alteradas.

IL O. Monnce

ensinasse um jogo a nossos filhos e, ao retornar para ver o andamento das coisas, víssemos que essa pessoa estava en sinando-lhes um jogo de azar, digamos, roleta ou blackjack. Indignados, diríamos: "não foi isso que quisemos dizer com um jogo". Por que estaríamos justificados em nossa indignação? Afinal de contas, roleta e blackjack são classificados como jogos. Além disso, não os excluímos no que dissemos, e é inteiramente improvável que os tenhamos excluído até mesmo mentalmente quando o dissemos. A razão é que, nesse contexto, essas coisas estão supostas. Não apenas é impróprio ensinar esse tipo de jogo a crianças como é normalmente impróprio pedir a alguém que não o faça. Adquirir esse sentido do que é apropriado dizer ou fazer é a parte mais importante do aprendizado de uma linguagem. Um conheci mento da estrutura gramatical é, por comparação, de menor importância. Alguém pode ser perfeitamente inteligível com um português errado e inteiramente ininteligível ainda que suas frases sejam perfeitamente construídas. Ora, o que se aplica à linguagem em geral se aplica em particular ao desenvolvimento de um sistema na matemática ou na lógica. Como eu disse, para pessoas com uma fisiologia similar, que compartilham um treinamento em co~um e que se deparam com um mundo em comum, certos fatos suscitarão outros fatos e, mesmo trabalhando independentemente umas das outras, elas concordarão na maneira de proceder. O matemático ou o lógico não desenvolve o seu sistema olhando atentamente para o futuro, mas procurando uma conexão pertinente com o que já passou, sendo razoavelmente con fiante em que aquilo que ele toma como pertinente também será tomado como pertinente pelos outros. Nesse sentido, ele é tanto um criador quanto um descobridor; e uma vez que,

_A CONCEPÇAO

POSTEI\101\

como o compositor de uma variação, ele só pode se basear no que já passou, ele não pode garantir que encontrará a conexão pertinente que procura, nem mesmo que essa conexão existe para ser encontrada. À luz desta última observação, será útil concluir considerando o que Wittgenstein tem a dizer em sua obra posterior sobre os paradoxos de Russell. De acordo com a concepção posterior de Wittgenstein, não teremos entendido propria mente um paradoxo como o do Mentiroso até que tenhamos chegado a sentir-nos intrigados a respeito de como qualquer pessoa pode se sentir intrigada por ele. Isso porque é muito fácil explicar o surgimento do paradoxo, cujos passos não são nem um pouco intrigantes. Por exemplo, considere o enun ciado "isto é falso". É evidente que os fundamentos de verdade dessa proposição, em seu emprego mais usual, são parasitários dos fundamentos de verdade de outra proposição. Em outras palavras, quando alguém diz "isto é falso", normalmente, essa pessoa está se referindo a algum outro enunciado (digamos, "está chovendo"), e não se sabe se o que ela diz é verdadeiro ou falso até que se tenha determinado a verdade ou falsidade do outro enunciado C'está chovendo"). Assim, se "está chovendo" é falso, o enunciado "isto é falso" é verdadeiro; se "está chovendo" é verdadeiro, o enunciado é falso. Agora, note que, se alguém nos pede para tratar a frase "isto é falso" como fazendo referência a si mesma, essa pessoa está nos pedindo para estender o uso da frase para além de seu emprego normal. Não há, é claro, nenhuma razão em si mesma segundo a qual não deveríamos fazê-lo. Estendemos o uso de uma frase para além de seu emprego normal quando tratamos "esta frase contém cinco palavras" como fazendo referência a si mesma. Nesse caso, parece bastante

O.

natural fazê-lo; temos pouca dificuldade, afinal de contas, em determinar se a frase em seu novo uso é verdadeira ou falsa. Note, entretanto, que existe uma diferença vital entre os dois casos. Uma frase da forma "X contém cinco palavras" não depende para sua verdade ou falsidade da verdade ou falsidade de alguma outra frase. O procedimento normalmente usado para verificá - la pode ser aplicado de forma igualmente simples tanto à própria frase quanto a qualquer outra. No entanto, a verdade ou falsidade de "isto é falso" depende manifestamente da verdade ou falsidade de alguma outra frase. Ou seja, quando tratamos "isto é falso" como fazendo referência a si mesma, não estamos apenas estendendo o seu uso, estamos removendo de seu uso normal uma das características que lhe são essenciais. Portanto, não surpreende nem um pouco que devêssemos nos meter em confusão. Seria muito surpreendente se isso não acontecesse. Todavia, o que isso não explica, poder-se-ia dizer, é a forma particular que a confusão assume. Por que ela assume a forma de um paradoxo, de uma contradição? Isso é muito facilmente explicado. A contradição surge porque, embora não estejamos mais usando a frase normalmente, continuamos a aplicar a ela, por raciocínio análogo, algumas das características de seu uso normal. Como dissemos, os fundamentos de verdade de "isto é falso" estão de tal modo relacionados aos de outro enunciado que, quando o outro enunciado é verdadeiro, "isto é falso" é falso, e, quando o outro enunciado é falso, "isto é falso" é verdadeiro. Ora, por raciocínio análogo, se "isto é falso" faz referência a si mesmo, então se é verdadeiro (é importante não olhar muito de perto para o que se supõe que isso signifique), ele é falso, e se é falso, ele é verdadeiro. Temos aí nossa contradição.

A CONCEPÇiíO

l'OSTERJOR

Ora, é essencial não reagirmos a essa contradição tentan do nos livrar dela. Se estamos corretos em nossa explicação, isso será, de qualquer forma, impossível, pois todo o objetivo da explicação é mostrar que a contradição é inteiramente esperada. O que seria surpreendente - na verdade, miraculoso -, dado o modo como estamos usando, ou tentando usar, a frase "isto é falso", é que uma contradição não surgisse. O que deveríamos considerar não é a contradição, mas o modo como as pessoas reagiram a ela. Por que, afinal de contas, as pessoas tentaram se livrar dela? Por que se sentiram intri gadas por ela? A resposta, me parece, não está muito longe. A contradição será intrigante somente se a analisarmos com uma visão preconcebida, de acordo com a qual ela não pode estar onde está. Por exemplo, se sustentarmos que o desenvolvimento de um sistema lógico reflete alguma estrutura subjacente infalível, então o aparecimento da contradição parecerá explicável somente com a suposição de algum erro humano. Ou seja, parecerá algo de que devemos nos livrar. No entanto, nosso esforço neste capítulo tem sido o de mostrar que essa visão está equivocada. Seguindo Wittgenstein, argumentamos que um sistema lógico ou matemático é uma construção humana em que, apoiando-nos em um sentido comum acerca do que é relevante ou pertinente, procuramos construir sobre o que já foi estabelecido.Já que não temos nada sobre o que nos apoiar exceto aquilo que já foi estabelecido, não podemos garantir que, na tentativa de estendermos nosso sistema, seremos indefinidamente bem sucedidos. Vista agora por esse ângulo, a contradição que estamos considerando não parecerá nem um pouco intrigante. Tudo o que ela provará é que não podemos esperar estender nossos

H. O. Mounce

procedimentos indefinidamente sem jamais nos meter:11-os em confusão. Isso estava implícito no primeiro exemplo que consideramos no presente capítulo. Dissemos que o uso de "-p" não garante um uso inequívoco a "--p". Algumas pessoas acharão pertinente usar o último sinal como equivalente a "p"; outras, como equivalente a "-p". Os fatos não se assimilam ao nosso sentido comum do que é pertinente. Nesse caso, porém, a questão torna-se indecidível;'º deparamo-nos com um obstáculo. A ideia de Wittgenstein é que a existência desse tipo de obstáculo não deveria nos surpreender. Precisamos esclarecer um pouco mais esta última ideia, pois Wittgenstein foi amplamente mal entendido no que disse sobre ambiguidade e contradição. Por exemplo, foi dito que, para Wittgenstein, uma contradição na matemática não tem nenhuma importância. Isso, entretanto, é um completo mal entendido. A ideia de Wittgenstein era que uma contradição na matemática, ou em qualquer outra área, é danosa somente onde causa dano. Obviamente, ela é danosa se nos mantém presos ou impede a comunicação, mas ela não faz isso por meramente existir. Em outras palavras, a existência de uma contradição no interior de um sistema não é nem surpreendente nem danosa em si mesma. Podemos ilustrar isso facilmente por referência a "isto é falso". Como vimos, se o uso da frase é estendido de um certo modo, deparamo-nos com uma contradição, mas o ponto é que a condição para o surgimento da contradição é que a frase não seja usada da ma neira usual, isto é, da maneira como todos desejarão usá-la. ~o Quero dizer, é claro, dentro do sistema. Obviamente, podemos alterar o sistema de um jeito ou de outro, digamos, de acordo com o que for conveniente. 168

A

CONCEPÇAO POSTEI\IOI\

Por essa razão, a contradição, no que diz respeito à linguagem ordinária, é inteiramente inofensiva. Onde as pessoas querem usar a frase, não existe nenhuma contradição; ela existe apenas onde ninguém desejaria usar a frase. Em outras palavras, é mera superstição tratar uma contradição como uma espécie de veneno que, se ocorre em uma parte de um sistema, gradualmente se espalhará pelo sistema como um todo. Ou uma contradição em um sistema causa dano ou ela não causa; se não causa, podemos ignorá-la; se causa, podemos tomar algumas providências para lidar com ela. Perceber-se-á, então, que o tratamento conferido por Wittgenstein ao paradoxo de Russell está de acordo com toda a sua concepção posterior da lógica. Resumindo, sua concepção posterior é a seguinte. Um sistema lógico ou ma temático é uma construção humana. Ele começa em um uso concordante de sinais. Podemos desenvolver um sistema porque o modo como originalmente usamos os sinais leva ao seu uso futuro. Pode-se dizer, se assim se quiser, que os usos (

anteriores determinam os usos posteriores. A determinação, no entanto, é uma questão de fato, não de lógica. Ela se dá por meio da natureza humana e física. Quando há um acordo no uso de sinais e no desenvolvimento desse uso, temos princípios lógicos, pois esses meramente registram e cristalizam o modo como usamos os sinais. Em outras palavras, princípios lógicos surgem a partir do uso da linguagem; eles não subjazem a ela. É de se esperar que, por contraste com essa concepção posterior, a concepção anterior ficará ainda mais clara.

APÊNDICE

temas do Tracuuus O seguinte índice analítico pode se mostrar útil para estudantes que já estão familiarizados com a parte principal deste livro. Fatos 1- 1.~1 "O mundo é tudo que é o caso". As proposições que se seguem a essa são suas elucidações. Assim, "tudo que é o caso" é a totalidade dos fatos, não das coisas. A diferença entre "fatos" e "coisas" é elucidada pelo enunciado de que são os fatos no espaço lógico que são o mundo. Estados de coísas z - ~.0141 "O que é o caso, um fato, é a existência de estados de coisas". A seção que começa com essa proposição é uma elucidação ulterior das proposições que caem sob 1. Um fato é um estado de coisas, é algo complexo. As coisas que constituem o complexo aparecem em certa combinação, mas elas poderiam estar combinadas de outro modo. Na lógica, entretanto, nada é acidental. Se uma coisa pode ocorrer em um estado de coisas, a possibilidade do estado de coisas já deve estar inscrita na coisa. Uma mancha no campo visual não precisa ser vermelha, mas deve ter uma cor; um som deve ter uma altura; objetos do tato, uma dureza; e assim por diante. Os objetos existem no espaço lógico, de modo que, se conheço um objeto, também conheço todas as suas possíveis ocorrências em estados de coisas. Objetos a.oa - ~.o63 "Objetos são simples". Um estado de coisas é complexo, de modo que todo enunciado sobre um estado de coisas pode ser analisado em um enunciado sobre os seus constituintes.No entanto, nenhum enunciado sobre seus constituintes pode ser analisado em outro

H. O. Monxcr

enunciado, do contrário, não haveria contato entre a linguagem e o mundo. Em algum ponto, portanto, palavras devem apenas ser representantes de objetos, estes sendo simples. Somente quando palavras são representantes de objetos algo pode ser dito. Além disso, o que quer que seja dito envolve complexidade, envolve a combinação de objetos. Dizer que algo é vermelho, por exemplo, é representar uma combinação de objetos, um estado de coisas. (É por isso que um objeto em si mesmo é, por assim dizer, incolor.) Uma combinação de objetos pode ser representada porque é possível para os objetos representados aparecerem nessa combinação. Essa é uma questão de lógica. O que é o caso, a realidade, o mundo, depende de quais dentre esses estados de coisas possíveis existem. Essa é uma questão de fato. A lógica determina apenas o que é possível; ela não pode determinar o que é o caso. Figurações ~.1- ~-~~5 "Figuramos os fatos". Uma proposição afigura; ela é a representação de um estado de coisas possível, do que poderia ser o caso. Os elementos de uma proposição correspondem a objetos; eles são seus representantes. Esses elementos estão relacionados uns com os outros de determinada maneira. A forma que os elemen tos assumem constitui a figuração. O fato de que os elementos da figuração estão relacionados de uma determinada maneira é uma representação de como as coisas estão no mundo. Assim, deve haver algo em comum entre a forma da proposição é a forma dos objetos que ela representa.No entanto, o que a proposição afigura é um estado de coisas possível; ela não pode afigurar sua própria forma. Além disso, a questão acerca de sua verdade ou falsidade é diferente da questão de saber o que ela afigura. Para saber se ela é verdadeira, deve-se primeiro saber o que ela afigura e, então, compará - la com a realidade. Ela afigurará a mesma coisa quer seja verdadeira ou não. Pensamento 3 - 3. 13 "Uma figuração lógica dos fatos é um pensamento". Isso pode ser lido na outra direção: um pensamento é uma figuração lógica dos

A Pt:N llJCE:

os TEMAS DO Troctatus

fatos. Em outras palavras, um pensamento é um pensamento apenas quando tem a estrutura lógica de uma proposição ou figuração. (Essa interpretação é, no entanto, controversa. Aconselha-se o estudante a consultar as páginas 47-51 deste livro, onde a questão é discutida em detalhe.)

Proposição e nome 3.14-3.~61 "O que constitui um sinal proposicional é o fato de que, nele, seus elementos (as palavras) estão uns para os outros de uma determinada maneira". O sentido de uma proposição repousa em sua estrutura. Nisso ela deve ser contrastada com um nome. Um nome não possui forma de afiguração; ele apenas corresponde, enquanto representante, a um objeto do mundo, que é o seu significado. Entretanto, o significado, ou melhor, o sentido de uma proposição ,n ão é algo no mundo a que ela corresponda. O sentido de uma proposição não é externo a ela como o significado de um nome é externo a ele. É por isso que uma proposição tem o mesmo sentido quer seja verdadeira ou falsa, quer corresponda a algo no mundo ou não.

Lógica e convenção 3.~6~ - 3.5 "O que os sinais não expressam, sua aplicação mostra. O que os sinais escamoteiam, sua aplicação denuncia". É somente porque uma proposição é uma coleção de sinais provida de estrutura lógica que ela tem um sentido, e é apenas no interior dessa estrutura que um nome tem significado. Todavia, a estrutura lógica nem sempre é claramente revelada pelos sinais. Por exemplo, um e o mesmo sinal, escrito ou falado, pode ter diferentes usos, como a palavra "é", que aparece às vezes como a cópula, às vezes como um sinal de identidade e às vezes como uma expressão para existência. Aqui a palavra "é" realmente corresponde a três símbolos diferentes, e isso é evidente em sua aplicação, em haver três regras bastante diferentes para o seu uso. Assim, a forma ou estrutura lógica é revelada não pelo modo de apresentação dos sinais escritos ou sonoros, não pelo que é convencional, mas por sua aplicação.Nessa medida, a lógica se distingue do que é convencional ou arbitrário,

H. O. Mouxcr

pois, embora seja arbitrário o fato de a palavra "é" ser simplesmente usada, não é arbitrário que algumas coisas se sigam quando lhe é dado um uso e não se sigam quando lhe é dado outro uso, que se possa dizer algumas coisas quando ela é usada como a cópula, mas não quando é usada como um sinal de identidade. A vantagem de uma notação (ou simbolismo) formal é que ela torna isso claro. Em um simbolismo adequado, a diferença na aplicação dos sinais seria indicada por diferenças nos próprios sinais, de modo que a forma lógica seria adequadamente exibida. Desse modo, o que é essencial a uma proposição seria claramente distinguível do que é convencional ou arbitrário. (As proposições 3.33 - 3.333 dizem respeito à teoria dos tipos de Russell. Para uma discussão sobre esse tema, ver as páginas 79-Si deste livro).

Filosofia 4-4.0031 "Um pensamento é uma proposição com um sentido". O que não tem sentido não é uma proposição e não pode ser pensado. No entanto, como vimos, o sentido de uma proposição pode estar disfarçado; a gramática, a convenção, pode ocultar a forma lógica. Assim enganados, podemos proferir palavras que somente parecem constituir uma proposição. Ou seja, palavras podem ser proferidas sem que tenham uma aplicação clara, uma lógica clara. Boa parte da filosofia consiste em proferimentos desse tipo, que surgem por não se compreender a lógica de nossa linguagem. A filosofia, propriamente entendida, é, portanto, em um sentido especial, "uma crítica da linguagem"; ela reconduz as palavras ao seu sentido próprio.

Verdadeiro e falso 4.01 -4.0641 "Uma proposição é uma figuração da realidade". Se entendo uma proposição, sei qual é a situação que ela representa. Entender uma proposição é saber o que é o caso se ela for verdadeira, e pode-se indicar o sentido de uma proposição indicando-se o que a tornaria verdadeira por oposição ao que a tornaria falsa. Assim, ser uma proposição verdadeira ou falsa não é uma consequência de ela ter um sentido: entender o que a tornaria verdadeira e o que a tornaria

74

1

A PÊN D ICE:

os TEMAS DO Tractatus

falsa é entender o seu sentido. Segue- se que o sinal para a negação não introduz uma nova discriminação dos fatos. Se entendemos uma proposição, sabemos o que a tornaria falsa, e, no que diz respeito aos fatos, não há mais nada a ser apreendido para que entendamos a negação dessa proposição. Para acompanhar a discussão, ver as páginas 56-8. Filosofia e ciência 4.1 - 4.116 "Proposições representam a existência e a inexistência de estados de coisas". A totalidade das proposições verdadeiras constitui as ciências naturais. A filosofia não é uma das ciências naturais. Ela não é uma teoria, mas uma atividade. Sua tarefa é o esclarecimento dos pensamentos.Na medida em que se considera uma teoria, ela é confusa. Ela confunde o que pode ser dito com o que só pode ser mostrado. Conceitos formais 4.1~ -4.~ "Proposições podem representar toda a realidade, mas não podem representar o que devem ter em comum com a realidade para que possam representá- la - a forma lógica". Relações lógicas são propriedades formais. A tentativa de enunciar as propriedades formais de um conceito é confusa. Essas não podem ser ditas, mas se mostram na aplicação do símbolo. Desse modo, asserir '"está chovendo' é uma proposição", ou "vermelho é uma cor", ou "1 é um número", é um contrassenso. "Está chovendo", por exemplo, mostra que é uma proposição, que é inteligível, naquilo que diz. Nada é acrescentado ao se tentar dizer que ela é uma proposição. (Wittgenstein introduz, nessa seção, a importante noção de série formal. No entanto, ver as proposições 5.~-5.541 para um tratamento mais detalhado). Função de verdade 4.~1-4.45 "A proposição de tipo mais simples, uma proposição elementar, assere a existência de um estado de coisas". As proposições da linguagem ordinária são complexas; elas são constituídas por proposições elementares. Uma proposição complexa é uma função de 1

75

H . O. M orrncr

verdade de proposições elementares, isto é, a verdade ou falsidade da proposição como um todo dependerá da verdade ou falsidade de suas constituintes elementares. Os modos pelos quais a verdade ou a falsidade da proposição como um todo pode ser determinada pela verdade ou falsidade das proposições que a constituem podem ser exibidos na forma de uma tabela de verdade. Uma tabela de verdade é um símbolo proposicional. Por exemplo, pode-se escrever o mesmo sinal proposicional tanto como "p v q" quanto como "(VWF) (p,q)". Tautologia 4.46-5.101 "Entre os grupos possíveis de condições de verdade, há dois casos extremos". Podemos construir proposições que são falsas quaisquer que sejam as possibilidades de verdade de suas proposições constituintes e outras que são verdadeiras quaisquer que sejam essas possibilidades. Podemos construir contradições e tautologias. Tautologias não dizem nada: nada sabemos sobre o tempo quando sabemos que chove ou não chove. Entretanto, tautologias não são contrassensos. Elas são parte do simbolismo. Diferentemente de algaravias, elas mostram algo sobre a forma lógica. As proposições da lógica são tautologias. Inferência 5.11-5.156 "Se todos os fundamentos de verdade comuns a um certo número de proposições forem, ao mesmo tempo, fundamentos de verdade de uma determinada proposição, diremos que a verdade desta se segue da verdade daquelas". A inferência lógica repousa inteira mente sobre as relações internas entre proposições. Se "p" se segue de "q" na lógica, elas mesmas são a única justificação possível para a inferência. As "leis de inferência", que se supõe que justifiquem as inferências, são supérfluas. Não existe hierarquia entre as proposições da lógica. Todas estão no mesmo nível e todas dizem a mesma coisa, a saber, nada. Ao desenvolver um sistema lógico, estamos meramente explicitando relações internas entre proposições, mostrando como seus sentidos estão inter-relacionados.

A PÊN D ICE:

os TEMAS DO Tracrotus

(Nessa seção e, brevemente, na última, Wittgenstein discute a probabilidade. Ver as páginas 110-1 deste livro para aprofundar a discussão). Operação formal 5.~-5.54 Essa é uma seção complexa na qual os modos como Wittgenstein apresenta as operações formais, a forma geral da proposição, a significação do simbolismo lógico e a generalidade estão interligados. Para uma explicação adequada dessas passagens, recomenda-se que o estudante volte aos capítulos 4 e 6 deste livro. A essa altura, Wittgenstein já completou a exposição de sua concepção da proposição e da lógica. Nas seções que restam, o principal objeto de sua atenção são aquelas proposições que, à primeira vista, parecem não se encaíxar de maneira conveniente em sua exposição. Em grande parte, a discussão presente nessas seções é demasiado complexa para admitir um resumo de alguma utilidade. Onde isso ocorre, adotarei o procedimento adotado no caso da seção 5.'.4-5.54: indicarei o tópico e então apontarei para o capítulo deste livro em que ele é discutido em detalhe. Enunciados de crença 5.541-5.54~3 A dificuldade com "A acredita que p" é que ela parece não ser verifuncional. Para uma discussão de como Wittgenstein resolve essa dificuldade, ver o capítulo 8. A lógica, o mundo e o eu 5.55-5.641 'Essa seção inclui a discussão wittgensteiniana acerca do solipsismo. Veja o capítulo 9. É importante que o estudante note que Wittgenstein não está defendendo uma versão do solipsismo, e sim que ele está apresentando o solipsismo como um exemplo de confusão filosófica que surge por não se perceber a diferença entre o que pode ser dito e o que só pode ser mostrado.

177

H. O. Morrxct

Lógica e matemática 6-6.~41 O que é importante nessa seção é perceber o sentido preciso em que a lógica e a matemática estão relacionadas. A matemática é um método da lógica. Ela não é derivada de um conjunto de princípios lógicos; ela é, sim, um aspecto da operação lógica fundamental através da qual qualquer proposição é derivada de outra. Para uma discussão detalhada, ver o capítulo 5. Ciência natural 6.3-6.37~ Aqui, Wittgenstein elucida um pouco mais a diferença entre a generalidade da lógica e a generalidade acidental considerando a natureza das leis científicas. Ver o capítulo 7. Valor 6.373-6.5~~ Uma expressão de valor não é um enunciado de um fato. Todas as proposições têm o mesmo valor porque todas as proposições meramente dizein o que é o caso.No entanto, o que é o caso, o que acontece no mundo, não é o mesmo que o que deve ser, aquilo que possui valor. Para aprofundar a discussão, ver o capítulo 10. O que pode ser dito e o que só pode ser mostrado 6. 53-7 Para uma discussão das questões complexas levantadas por essas últimas proposições, ver o capítulo 11.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEANEY, M. 1997. The Frege reader. Oxford: Blackwell Publishing.

BLACK, M. 1964. A companion to Wittgenstein's Tractatus. Cambridge: Cambridge University Press. FREGE, G. 1884. Die Grundlagen der Arithmetik: eine logisch-mathematische Untersuchung über den Begriff der Zahl. Breslau: W. Koebner. __ . 1974. The foundations of arithmetic: a logico-mathematical enquiry into the concept of number. zed revise d. Tradução J. L. Austin. Oxford: Blackwell. __ . ~0~1. Os fundamentos da aritmética: uma investigação lógico-matemática sobre o conceito de número. Tradução: L. H. Lopes dos Santos. São Paulo: Editora Livraria da Física. GEACH, P. & BLACK, M. (Ed.). 195~. Translations from the philosophical writings of Gottlob Frege.Oxford: Basil Blackwell. KENNY, A. 1973. Wittgenstein. London: Allen Lane/The Penguin Press. RHEES, R. 1969. Without answers: studies in ethics and the philosophy of religion. London: Routledge & Kegan Paul. __ . 1970. Discussions ofWittgenstein. London: Routledge & Kegan Paul. RussELL, B. 1937. The principles of mathematics. zed. London: Allen & Unwin. ____ . 1956. Logic and knowledge: essays 1901-1950. London: Allen & Unwin. RUSSELL, B. & WHITEHEAD,A. 1910-1913. Principia mathematica. Cambridge: Cambridge University Press. 3v. WAISMANN, F. 1979. Ludwig Wittgenstein and the Vienna Circle. Tradução J. Schulte e B. McGuinness. Oxford: Blackwell Publishing. WrTTGENSTEIN, L. 19~1. Logisch- Philosophische Abhandlung. Annale der Naturphilosophische, 14, 3-4. __ . 19~~- Tractatus logico-philosophicus. Tradução C. K. Ogden. London: Routledge & Kegan Paul.

H. O. Mouxcs

WITTGENSTEIN, L.1961.Notebooks 1914-1916. Tradução G. E. M. Anscombe. Oxford: Blackwell. __ . 1965. "Alecture on ethics", PhilosophicalReview, 74, p. 3-1~. __ . 1974a. Tractatus logico-philosophicus. Tradução D. F. Pears e B. F. McGuinness. London: Routledge & Kegan Paul. __ . 1974b. Philosophicalgrammar. Tradução A. Kenny. Oxford: Blackwell. __ . 1978. Philosophical investigations. Tradução G. E. M. Anscombe. Oxford: Blackwell. (Reimpressão da ~ed. do texto em inglês com índice.) __ . 1979. Notebooks 1914-1916. zcd. Chicago: The University ofChicago Press ·--· 1993. "Alecture onethics". ln: KLAGGE, J. C. & NoRDMAN,A. (Ed.). 1993. Philosophical occasions, 1912,-1951. Indiana: Hackett. p. 37-44. __ . ~oo3. Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola. ___ . ~008. Tractatus logico-philosophicus. Tradução L. H. Lopes dos Santos. 3ed. São Paulo: Edusp. __ . ~009. Philosophical investigations. Tradução G. E. M. Anscombe; P. M. S. Hacker e J. Schulte. Oxford: Wiley/Blackwell, Oxford. __ . ~015. Tratado lógico-filosófico/Investigações filosóficas. 6ed. Tradução M. S. Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. __ . ~015. Uma conferência sobre ética. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. __ . ~017. Cadernos 1914-1916. Lisboa: Edições 70.

ÍNDICE DE TERMOS

A

M

Axioma da infinidade, 18, 80

Matemática, 83-90, 178 Mecãnica newtoniana, 107-8

B Barra de Sheffer, 72,, 76

Místico, 136-8

N

e Causalidade, 104

Negação, 54-8, 152,-3

Conceito formal, 83-90, 175

o

Constante lógica, 10, 2,4 , 71-5

Objeto, 33-5, 171-2,

Contradição, 62,-3, 168

Operação,73-6,85-9

Crença, n3-9, 177

p

E

Paradoxo lógico, 15-8, 165-9

Espaço lógico (ou forma lógica) 3o3, 44-8, 89, 171-2,

Probabilidade, 109-n Produto e soma lógica, 91-100

Equação, 89-90

Proposições filosóficas, 139-49, 174

Ética, 83, 130-6

Psicológico, 49-51

Eu, 12,1-8

s

F

Solipsismo, 12,1-8, 140-6, 178

Fato

Soma lógica (ver Produto e soma

e coisa, 2,9-36, 171 negativo, 54-5 Forma geral da proposição, 71-Si Forma lógica (ver Espaço lógico) Função, 12,, 31 G Generalidade, 91-100

I Identidade, 78-9

lógica)

T Tabela de verdade, 59-61 Tautologia, 62,-70 Teoria dos tipos, 17, 79- 80

V Valor, 12,4 -38, 178 Verdade função de, 59-70, n3

Indução, 101 -2,

fundamentos de, 64-70

Inferência lógica, 64-70, 176-7

lógica, 10-2,, 2,1-4

L Lei científica, 101-12,

Verdadeiro e falso, 53-8 Vontade, 132,-4

H. O. Mouxcs

ÍNDICE DE NOMES

A Anscombe, G. E. M., 87, 117, 125, 138 Aristóteles, 9-10, 12 B Brahms, J., 159 F Frege, G., 9-15, 21-2, 27, 31, 52, 64-5, 67,69,71,73,85,89-9o, 94,98-9 K Kenny,A.,7 M Marx, K., 163 McGuinness, B. F., 8, 19

o Occam, W., 47, 77 Ogden, C. K., 19 p Paganini, N., 159-61 Pears, D. F., 8, 19 R

Rhees, R., 7, 135 Russell, B., 8-11, 15-9, 22-4, 27, 52, 64-5,67,69,71,73,78-81,90, 94, 96-9, 116, 165, 169, 174

s Spinoza, B., 29

w Whitehead,A. N., 9, 11

Tírm.os

DA COLEÇÃO DE EPISTEMOLOGIA E FILosoFIAA~ALÍTICA:

A significação do ceticismo filosófico, de Barry Stroud. ~o~o. 480 pp. A experiência do cético, de Plínio Junqueira Smith. ~o~o. 304 pp. QUEM SOMOS?

A Associação Filosófica Scientiae Studia nasceu em ~004, fundada por um grupo de pesquisadores e estudantes movidos por questionamentos sobre os modos de conduzir e produzir ciência no mundo. Em mais de uma década de existência, consolidou-se editorialmente com 60 volumes do periódico latino-americano homônimo, mais de 15 títulos e algumas peripécias no universo das artes gráficas e visuais. Entre os livros, artigos, resenhas e documentos científicos já publicados encontra -se a constante reflexão sobre a forma com que o conhecimento científico e as tecnologias devem ser utilizados, de modo a assegurar que os direitos, o bem-estar e as condições de participação democrática sejam fortalecidos e que a natureza e seus poderes regenerativos sejam respeitados e restaurados.

SArnÁ MAIS EM

www.scientiaestudia.org.hr

ENTRE EM CONTATO PELO E-MAIL

[email protected]

Este livro foi composto em Filosofia e impresso em papel pólen soft 8og/m 2 pela gráfica Eskenazi no

pandêmico inverno de 2021.

SOBRE O AUTOR HOWARD OWEN MOUNCE (1939) é Fellow Honorário da Universidade de Swansea, no País de Gales, editor da revista Philosophical Investigations - periódico oficial da British Wittgenstein Society - e autor de diversos artigos e livros, destacando-se, além do presente volume, The two pragmatisms: from Peirce to Rorty (Routledge, 1997); Hume's naturalism (Routledge, 1999); Tolstoy on aesthetics: what is art? (Routledge, ~001); e Metaphysics and the end of philosophy (Continuum, ~008).

SOBRE A COLEÇÃO O objetivo central da Coleção Epistemologia e Filosofia Analítica é difundir escritos que contribuam para a reflexão crítica sobre os gran des temas da epistemologia, bem como sobre os principais autores e assuntos da filosofia analítica. Com esse intuito, a Coleção visa à publicação de livros produzidos sobretudo por brasileiros, fruto de investigações originais nessas áreas, mas também de traduções para a língua portuguesa de obras que, embora relativamente recentes, já se tornaram clássicas. Desse modo, pretende contribuir para a divulgação da reflexão filosófica e para o debate público sobre a filosofia e a cultura na sociedade brasileira. A coleção está organizada em duas séries de textos: Epistemologia geral . Filosofia analítica contemporânea

Coleção _

EPISTEMOL