O que se Transcria em Educação?

500 39 7MB

Portugueze Pages 226 [228] Year 2013

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD FILE

Polecaj historie

O que se Transcria em Educação?

Citation preview

O QUE SE TRANSCRIA EM EDUCAÇÃO?

Conselho Editorial Betina Schuler (UCS/EMEF Rincão/PM-POA) Dóris Helena de Souza (SMED/POA) Gláucia Maria Figueiredo (UNIOESTE) Karen Nodari (UFRGS/Colégio Aplicação) Luciano Bedin da Costa (UFRGS/SETREM) Ludmila de Lima Brandão (UFMT) Maria Amélia Santoro Franco (Universidade Católica de Santos) Nadja Maria Acioly-Regnier (Université Claude Bernard Lyon1) Vânia Dutra de Azeredo (PUC/Campinas) Comitê Editorial Carla Gonçalves Rodrigues (UFPel) Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE) Silas Borges Monteiro (UFMT)

© Sandra Mara Corazza, 2013

Editoração por SUPERNOVA EDITORA Capa e escultura da Classe Monstra por LEONARDO GARBIN Classe Monstra · 2013 cerâmica, vidro, lápis e canetas, ferro, papel e nanquim. 25 x 30 x 22 cm acervo do artista · Porto Alegre/RS Fotos por WILLIAN ANSOLIN

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C788q Corazza, Sandra Mara. O que se transcria em educação?/ Sandra Mara Corazza. Porto Alegre-RS : Doisa, 2013. 228p.

ISBN: 978-85-66308-03-7 1.Educação. 2.Pesquisa 3.Docência. 4.Currículo. 5.Didática. I. Título. CDU 37

Bibliotecário: Douglas Rios (CRB - 1/1610)

O QUE SE TRANSCRIA EM EDUCAÇÃO? SANDRA MARA CORAZZA

A quem transparadisa o mundo: PEDRO, ALICE, LUCAS

SUMÁRIO

PARA FALAR DELA 11 Paola Zordan; Nilton Pereira; Samuel Bello PARTE 1 – ENSAIO E MÉTODO 1. Para artistar a educação: sem ensaio não há inspiração

15 17

2. Método Valéry-Deleuze: um drama na comédia intelectual da educação 41 3. Pedagogia dos sentidos: a infância informe no método Valéry-Deleuze 71

PARTE 2 – PESQUISA E DOCÊNCIA

91

4. A formação do professor-pesquisador e a criação pedagógica 93 5. Discurso biografemático: Vidarbos 103 6. O docente da diferença: identidade e singularidade

119

PARTE 3 – CURRÍCULO E DIDÁTICA 141 7. Os sentidos do currículo: necessidades inadiáveis 143 8. O drama do currículo: pesquisa e vitalismo da criação

163

9. Currículo da infância e infância do currículo: uma questão de imagem 183 10. Didática-artista da tradução: transcriações do currículo 203

OS QUE 225

PARA FALAR DELA1 Paola Zordan; Nilton Pereira; Samuel Bello

Estou aqui hoje pra falar DELA, falar sobre ELA, falar na cara DELA. Ela. A infernal botadora de boca nos trombones maquinais das comissões, dos colegiados, conselhos, do DEC, dessa Faculdade, da Universidade. Por isso chamam Ela de Fera. Ela, a colega do DEC da FACED, parceira intelectual que não se amesquinha por pontos e descontos. Ela, a distribuidora de brindes e rodadas. Partilhadora de ideias, sopradora de palavras, doadora de escritos, indicadora de bibliografias inesgotáveis, ela É MESMO FERA. Mas, como uma boa paradoxal, Ela também é Bela. Mãe do Paulo, do André e do Sérgio. Agora a avó do Pedro, da Alice e do Lucas. A dona dos dálmatas. A mulher de mil e uma multiplicadas noites do especial Hugo. Das poucas viventes desse pago que teve a coragem de deixar de ser gremista, talvez antes de ter deixado de ser Rodrigues. Sorte d’Ela, agora bicampeã da Libertadores... E o mundo nos espera de novo! Mas a taça que vem erguer no coração dessa homenagem é outra. ELA! Mesmo que “libertadora” tenha tentado ser. Isso no tempo em que vivia dentro dos livros do Paulo Freire. E atuava na Rede Estadual de Ensino, lutando por uma educação libertária, coordenando projetos em torno de um Tema Gerador. Quando acampava na Praça da Matriz e batia sineta na frente do Palácio do Governo. Ah, num tempo em que era militante, e sabia de cor e salteado as cartilhas de Freud e Marx, e lutava na linha de frente por uma Educação Básica de qualidade. Bah!

1

Texto produzido pelos colegas do Departamento de Ensino e Currículo (DEC): Paola Zordan, Nilton Pereira, Samuel Bello; e lido por Cesar Lopes (faladortransmissor-atravessador-corruptor do texto), em nome do DEC, na Sessão de Homenagem a Professores, em comemoração aos 40 anos da Faculdade de Educação da UFRGS, realizada em 10 de dezembro de 2010 na FACED/UFRGS.

11

12

Quase arrebentou as cordas vocais, tanto que quase desistiu de ser escutada pelo poder estatal e tenha se ocupado, dali para frente, a falar só para minorias. Mas com sua garganta forte que a levou muito jovem, ainda em Montenegro, para a frente de uma classe primária de Séries Iniciais, corpo coletivo infantil que toda aluna de curso Normal tem como decisivo na vida. E este seu amor pelo Infantil a carregou para os mares agitados de seus estudos infindáveis, maiores e bem mais ecléticos que os de sua Faculdade de Filosofia... E também a conduziu aquele medo horrível de ser (como alguns colegas efetivamente foram) carregada para dentro de um porão e apanhar por causa de ideologias; desaparecer sem nem ter ainda aparecido. Logo Ela, leoa rugidora que, goste ou não, sempre acaba aparecendo. Mesmo quando Ela é Uma. Porque Ela é muitos, muitos livros, muitos artigos, incontáveis publicações, pareceres, orientandos vários. Ela é Bando. Ela é uma multiplicidade em si. Ela dá de ombros para a sirene que avisa que acabou o período e a aula está burocraticamente encerrada. Para Ela, o ensino não termina nunca e a aprendizagem é sempre a aventura. Embarcando na Jangada de Medusa, largou bandeiras e ideologias para pegar a fina pena dos manifestos canibais. Antropófaga, quanto mais vive, mais autores devora. Aliás, também é conhecida por Esfinge. Assusta todos a quem questiona. E deuses, Ela QUESTIONA... E como eu sei bem disso... Desde nosso primeiro encontro, Professora-questionadorabanca x aluno-iniciante-químico num Salão de Iniciação Científica do século XX. Questionar faz parte do seu método pedagógico. Ainda que até o pedagógico seja um conceito a ser posto em xeque. Não porque Ela goste de ser crítica, e sim porque aprendeu com Nietzsche que sem o rugir do Leão o Camelo continua a carregar estupidamente seus fardos. A criança precisa brincar, sem peso, sem “camelagem”. E por mais séria e de terninho, de cabelo arrumado e de óculos que apareça, Ela, a Fera, nunca deixou de ser a menina Bela dançante sobre suas sapatilhas de balé. Só que agora, sexagenária, sua dança são as palavras precisas nas coreografias espetaculares que apresenta em sala de aula.

E quem já assistiu uma aula Dela sabe: ninguém sai do mesmo jeito que entrou. Muito menos o currículo. Do currículo, Ela já perguntou: o que queres? Então trouxe currículos nômades, vagabundos e de tantos tipos, que dizer de todos eles aqui seria viajar em letras que a Ela mesma escapam. Ela, que acabou com tantas prescrições e traz outras para facilitar os modos de uso. Artistou a pesquisa e veio criar um currículo cheio de Artistagens. Ela, que explora a potência do disciplinar e torna as palavras indesejadas, apavorantes, em questões vitais. Necessária, oportuna, quando se trata de pensar, de falar baixinho para si, as ideias que depois surgem literárias. Inventou, alguns julgam que até demais, cifrou conceitos em textos que a Educação estranha, fantasiando sempre. Tanto que a acusam de “filha de Hermes”, quando, por ignorância, não decifram os n códigos que seus textos costumam por em jogo. Ousou tanto que ninguém duvida o quanto seja Diferente. Não apenas por coordenar o DIF e sim por tudo o que veio a ser numa vida, à qual ninguém consegue ser indiferente. Perto d’Ela, ou se ama ou se odeia. Afectos neutros são impossíveis. Ela é trágica, exagerada, estridente. Pega sempre o teu ponto mais fraco, principalmente quando te ama. Boa professorinha, que nunca deixou de ser, quer que tu aprendas e sabe que isso, muitas vezes, é na marra. Bem, daí tanta gente sair correndo. Mas os que ficam aprendem a superar suas falsas limitações. Afinal, limite é uma palavra que, como muitas outras, Ela transforma em outra coisa. Limites são humanos e tudo o que é demasiadamente humano se torna intolerável, mesmo para a mais didática das professoras. E mais que, uma vez pesquisadora, essa professora só faz romper com os limites de suas próprias crenças, com o limite de todo discurso pedagógico. Ciente dos limites dos discursos, Ela os transverte em versos e fabuladas versões. Ela, a Mara, Márai, Maradea nunc sum, Amor fati, De Fouror, corazzakai, S. M. Costello, Lisbeth Salander, Salamandra, Cassandra, San, Sandy, sandramaracorazza. FERA! Vem pra cá. Da tribo dos adoradores da Medusa.

13

PARTE 1

ENSAIO E MÉTODO

PARA ARTISTAR A EDUCAÇÃO: – sem ensaio não há inspiração1

1

Em O Abecedário de Gilles Deleuze (Deleuze, 2007), no vocábulo Professor, Claire Parnet pergunta a Deleuze (então com 64 anos e aposentado) se ele não sentia falta de dar aulas, já que as dera, com paixão, durante quase 40 anos, nos níveis médio e superior de ensino. Deleuze responde-lhe que, no momento, é uma alegria não ter mais de dar aulas, porque já não tinha mais vontade, embora elas tivessem constituído uma parte importante da sua vida. Diz, então, que essa questão de aulas é simples, já que elas têm equivalentes em outras áreas, em função de ser algo muito preparado: – “Se você quer 5, 10 minutos de inspiração, tem de fazer uma longa preparação”. E acrescenta que sempre fez dessa maneira porque gostava: – “Eu me preparava muito para ter esses poucos momentos de inspiração”. Entretanto, com o passar dos anos, Deleuze começou a perceber que precisava de uma preparação crescentemente maior para obter uma inspiração cada vez menor. E concluiu que estava na hora de parar, para fazer outra coisa, como escrever. Ele diz que não saberia calcular quanto tempo essas preparações lhe exigiam, mas que, como tudo, tratava-se de ensaios: – “Uma aula é ensaiada, como no teatro”. Se não a ensaiarmos suficientemente, “não estaremos inspirados”; e se ela não resultar de “momentos de inspiração”, não quererá “dizer nada”. O ensaio que fornece a inspiração consiste em “considerar fascinante a matéria da qual tratamos”; em achar “interessante o que se está dizendo”; para “chegar ao ponto de falar de algo com entusiasmo”. E Deleuze finaliza: – “O ensaio é isso”. 1

Texto publicado, com variações, em 2007 e 2012 (2ª edição), na Revista Educação Especial Biblioteca do Professor (Editora Segmento, SP, volume 6, p. 16-27; p. 68-73); e, ainda, em 2008, na Revista de Educação Pública (Universidade Federal de Mato Grosso, UFMT, v.olume 17, número 34, p. 237-254).

17

Para ensaiar Deleuze, ao escrever sobre algumas ressonâncias, provocadas por sua Filosofia da Diferença na Educação, vários usos conceituais poderiam ser enfatizados, tais como os que vêm sendo produzidos em diversos espaços institucionais, de relações e textuais (Tadeu; Corazza, 2002; 2005). Seguindo Barthes (2005), para que as escolhas que fazemos dos conceitos, textos, livros, obras dos outros passem para nós, é necessário defini-los como escritos por nós; e, ao mesmo tempo, torná-los outros, deformando-os por amor, desde que por eles fomos seduzidos. O que buscamos nos conceitos que desejamos é que alguma coisa ocorra: uma nova aventura, uma nova conjunção amorosa; e, por isso, a relação que estabelecemos com determinados conceitos do autor amado é a de que eles fiquem lá, como signos de nós próprios, inspirando-nos a passar do Prazer de Ler ao Desejo de Escrever (Scripturire = Querer-Escrever). É em nome dessa relação que, primeiramente, ficcionalizo a questão “O que Deleuze quer da educação”? Em seguida, para imaginarizar respostas, extraio, traduzo e uso alguns conceitos deleuzianos, como cartografia, impessoalidade, simulacro, devir, nômade, acontecimento, entre outros. Com eles transvertidos, constituo e qualifico quatro temáticas educacionais, quais sejam: Crianças, Professores, Currículos e Pesquisa. Então, concluo, diferindo do que escrevi.

1. Deleuze O que Deleuze quer da Educação?

18

Quem vem por lá, no meio da neblina? Quem entra sem bater, sem se anunciar, sem dizer o próprio nome? Quem chega ao jardim de infância da Educação? As crianças se assustam, pois veem que é um homem de saúde frágil, a quem frequentemente falta ar. Elas gritam por socorro, ao olharem suas unhas longas, não aparadas, que protegem a falta de impressões digitais. Todas se perguntam: – “O que ele vem fazer aqui? O que quer da Educação? Cometerá violências contra a sua educação, ao fazê-las aprender a pensar sem imagens e a desaprender o que já aprenderam?

Quem ele pensa que é, para vir se meter com elas, até agora tranquilamente fixadas em formas essenciais e saturadas de definições substanciais? Quanto atrevimento por parte de quem nunca atribuiu à infância qualquer valor, enquanto fonte do sujeito, origem do sentir e do pensar adultos! Quanta invasão de quem jamais deu qualquer importância à infânciaarquivo, à criança-lembrança ou ao infantil-universal, por privilegiar somente um devir-criança do mundo! Que ousadia a desse homem intrometer-se na Educação, justamente ele que, enquanto aluno, foi uma nulidade na escola”. (Até descobrir que a filosofia podia ser tão desafiadora e divertida quanto qualquer obra de arte!) Os professores tentam acalmar as crianças, que choram de medo, quando o homem lhes fala com a sua voz rouca e a dicção fatigada, como as de um feiticeiro. Então, mostramlhes que este pensador traz, para todas, belas, novas e fortes lufadas de enunciação, que nos levam a pensar e a viver a Educação do mesmo modo que um artista pensa e vive a sua arte. Explicam-lhes tratar-se de um filósofo que prossegue a tarefa (que Spinoza começou e Nietzsche continuou) de nos levar a detestar todos os poderes ligados à tristeza, que transmitem a ideia de se viver em estado perpétuo de dívida infinita. De alguém que tem horror a tudo que apequena e entristece a vida, isto é, dos poderes de quem trabalha para diminuir ou nos separar das forças ativas de que somos capazes; e que, com isso, buscam conduzir nossas vidas à resignação, à má consciência, à culpa, recheando-as de afetos tristes e imobilizadores, de queixas e de ressentimentos. As crianças, agora, entendem melhor o rico presente que esse homem trouxe consigo: a possibilidade de pensar e de viver a alegria em Educação; já que ele mostra como amar tudo aquilo que desenvolve e efetua as potências afirmativas e como odiar todos os poderes que obstaculizam essa efetuação. E lhes diz que qualquer poder é sempre muito triste, mesmo se aqueles que o exercem alegram-se em fazê-lo: – “Os que exercem os poderes e com eles se alegram são uns pobres coitados, porque a sua é uma alegria triste”!

19

Nesse momento, as crianças param de chorar, porque se existem, neste Universo, criaturas que não querem saber de alegrias tristes, mas só de alegrias que as regozijam – por serem o que são e por chegarem aonde chegam, por meio de suas potências infantis –, essas criaturas são as crianças! No entanto, os professores alertam: – “Sejam prudentes! Não exibam demasiadamente essa alegria em estado puro, pois há muita gente para quem a infantilidade – que diz um Sim incondicional à Vida – é insuportável”!

2. Crianças Cartógrafas-impessoais-artistas

20

Após o pavor que o encontro inicial com o Feiticeiro do Pensamento da Diferença provocou, tudo muda na Educação. A começar pelas próprias crianças, que não mais se pensam ou são pensadas como embriões originários do ser humano cognitivo e psíquico, nem como fontes da sociedade e da cultura, mas se anunciam como cartógrafas, impessoais e artistas. Cartógrafas porque exploram os meios das aulas, escolas, parques; fazem trajetos dinâmicos pelas vizinhanças das ruas, campos, animais; traçam mapas virtuais dos currículos, projetos político-pedagógicos, em extensão e intensão, os quais remetem uns aos outros; e que elas superpõem aos mapas reais, cujos percursos, então, são transformados. Como mapeadoras extensivas dos movimentos das relações pedagógicas de poder e dos deslocamentos dos saberes curriculares, as crianças redistribuem impasses e aberturas desse poder, limiares e clausuras desses saberes, limites e superações dos seus modos de subjetivação, em busca do Acontecimento – que elas sabem não se tratar de fatos educacionais, dados históricos nem práticas pedagógicas; embora ele não exista fora dessas efetuações; só que, nelas e em seu existir atual, o Acontecimento não se esgota, pois é imaterial, incorporal e virtual. Já, enquanto mapeadoras intensivas de afetos (ativos e alegres, passivos e tristes), as crianças produzem constela-

ções educacionais, que preenchem suas deambulações sociais. Impessoais, elas falam e escrevem por indefinidos, que consistem naquela forma de expressão que precede as manifestações da sua subjetividade infantil, delas fazendo singularidades pré-individuais e consciências pré-reflexivas sem Eus. Por isso, as crianças adoram o indefinido UmaCriança, que é como elas se enunciam como sensíveis; o que as leva à conclusão de que também são Artistas. Artistas porque, definindo-se como sensíveis, fazem as mesmas coisas que a Arte. Ou seja, tanto as crianças Cartógrafas-Impessoais como a Arte não ordenam lugares, mas abrem rasgões para o Fora; movimentam-se sobre um devir-infantil e sobre o esquecimento da história e o abandono das lembranças de infância; percorrem passagens e linhas erráticas de materiais flexíveis e heteróclitos; desenroscam anéis de superfície pura, sem interior nem exterior; conectam e desconectam inimagináveis zonas de vizinhança; jogam pedras numa velocidade infinita contra todos os organismos; realizam viagens histórico-mundiais, sem saírem do Continente da Infância e da Arte; abrem e fecham portas, telhados e planos, enlouquecendo totalmente o pensamento do bom senso da Infância e do senso comum da Arte. Em suma, em devir-infantil, as crianças, cartógrafasimpessoais-artistas fazem até voar os morcegos que bicam as suas janelas.

3. Professores Devir-simulacro – “Estivemos sempre sob o jugo do Princípio de Identidade”. Eis um diagnóstico que Deleuze realiza, juntamente com toda filosofia pós-nietzschiana, e que orienta o seu pensamento na direção oposta ao do pensamento da identidade – o qual, para reunir a multiplicidade sob um conceito, deve, necessariamente, igualar o não-igual. Assim, ao utilizar esse Princípio da Identidade para formular a designação uniformemente válida do conceito de Professor, abandonamos todas as diferenças singulares das inúmeras

21

22

maneiras de ser, de tornar-se, de operar como um professor, além de despertar o pensamento da Representação. Assim procedemos porque tal Princípio, ao formular o conceito de Professor, leva-nos a esquecer tudo aquilo que é distintivo; como se, no campo da Educação, além dos vários professores e de suas ações individualizadas e desiguais, houvesse algo ou alguém que fosse O Professor-Primordial (Uno, Padrão, Verdadeiro, Normal). E, ainda, como se, a partir deste determinado professor, todos os outros fossem formados, embora por mãos inábeis; de maneira que nenhum saísse correto e fidedigno à Ideia Pura daquele ProfessorModelo, dotado de uma qualidade essencial, ou qualitas occulta, cujo nome pode ser Professoralidade; e à qual cada um e todos os professores deveriam submeter-se ou esforçarse para dessa categoria se aproximar, como Cópias bem ou mal assemelhadas; caso contrário, seriam considerados simulacros; e, assim, por estarem tão distantes e por serem tão dessemelhantes da Professoralidade (que é a causa de O Professor e de todos os professores) seriam profundamente desprezados. Essa matriz platônica compõe o que Deleuze denomina Imagem Dogmática de Pensamento, que integra a Filosofia da Representação; a qual, juntamente com todas as áreas que operam com o pensamento monocentrista, positiva as Cópias-Ícones como sucedâneos válidos do Original, enquanto teme os simulacros (fantasmes), considerados estranhos, primitivos, selvagens, desviados, divergentes e perigosos subversivos das hierarquias estabelecidas, verdadeiros casos perdidos, que Platão detestava e recomendava que fossem jogados nos abismos dos oceanos mais profundos, ou abandonados no mais recôndito das florestas; visto negarem tanto o Original quanto as Cópias. Imagem que, em Educação, valoriza positivamente os ProfessoresCópias (como imitações do Primordial), pois eles teriam relações diretas com a Ideia Pura da Professoralidade; sendo, dessa maneira, os seus pretendentes bem fundados; ao mesmo tempo que desvaloriza os professores-simulacros, como falsos pretendentes que sobrevivem graças a semelhanças

falsificadas; e que vivem abertos para a dessemelhança, ficando, cada vez mais, afastados do centro do Modelo-IdeiaEssência-de-O-Professor. Vê-se como um regime de imagem do pensamento desse tipo somente pode ser formulado num plano transcendente, metafísico, concebido em um além-mundo superior, organizado, ordenado e hierarquizado; que preexiste e sobre-existe àquele plano ordinário no qual os professores vivem e atuam; em um plano idealista, portanto, que amaldiçoa a diferença, ao desconsiderá-la por meio do conceito, uma vez que cada professor, como Cópia-Ícone, deve representar (re-apresentar) o Modelo; e, assim, repetir o seu agir, fazer, dizer, pensar, sentir. Logo, quando um professor é denominado Bom, Verdadeiro, Correto, Competente; enquanto outro é denominado Mau, Falso, Incorreto, Incompetente, é porque cada um deles está sendo julgado por sua Professoralidade; em função do maior ou menor grau de semelhança ou de infidelidade a ela, considerada a causa de todos eles. Já a Filosofia da Diferença (também chamada por Deleuze de Empirismo Transcendental) reverte esse plano transcendente e privilegia a mobilidade perpétua do real, exercida num plano de imanência; a ser traçado pelos professores, que lhe vão dando consistência à medida que o criam por meio de experimentações. Plano que é desse mundo dos professores e, no qual, o único ser-professor que pode ser dito é o do devir; isto é, daquele ser que não para nunca de se deter no jogo da sua própria proliferação. Plano que é povoado por professores em devir-simulacro e que extrai a força da sua imanência dos conceitos nietzschianos de Vontade de Potência e de Eterno Retorno; os quais não repetem o Mesmo; mas, a cada repetição, produzem a Diferença Pura. Por isso, o platonismo, inclusive em Educação, é ferido de morte em sua diferença relativa, entre O-Bom-Professor e O-Mau-Professor, que nada mais são do que Cópias, bem ou mal-assemelhadas ao Padrão; diferença que sempre hierarquiza, privilegiando uns e secundarizando outros

23

24

professores. Platonismo ferido pelo pensamento deleuziano, que valoriza justamente os professores-simulacros como os únicos que têm condições de produzir novidades e de levar a Educação à diferença não maldita; pois, somente eles possuem forças inventivas orientadas para o porvir. Esse devir-simulacro dos educadores-professores-pedagogos pode ser considerado, também, no plano educacional, como uma espécie de Gaia Ciência, que fornece ferramentas conceituais para pensar um devir-alegre, um devir-criador, um devir-artista. Plano, para o qual, a aula brilhante que um professor porventura tenha realizado, no dia de hoje, não seja comparada a nenhum Modelo-de-Aula, nem a outras aulas dadas por ele ou por seus colegas; tampouco, seja ele considerado um Bom-Professor, em comparação com um Professor-Padrão, nem com outros professores. Mas, considera brilhante uma aula, pelo fato de que, hoje, neste dia determinado, nesta aula específica, o professor em questão, circunstancialmente, conseguiu formular algo novo para pensar; problematizar, com e diante dos alunos, o que até então não era considerado problemático por ninguém; conseguiu levar os alunos a encararem as besteiras e desaprender as verdades, que lhes haviam sido transmitidas e ensinadas, e que eles haviam assimilado; para, desse modo, aprender algo que não fosse senso comum nem opinião. Esse professor conseguiria, assim, mostrar que a dificuldade de pensar é algo de direito do pensamento, não possuindo nada de inato ou de recognição; nem trataria de responder a perguntas para as quais já existem respostas; tampouco, pensaria a partir de postulados previamente definidos; já que, para ele, pensar é, antes de tudo, criar. Logo, trata de engendrar o pensar no próprio pensamento: condição de possibilidade para uma criação que merece esse nome, dado por um Pensamento sem Imagem. Um pensamento que os professores em devir-simulacro podem experienciar, pois é relativo à economia de fluxos materiais e semióticos do desejo (nem subjetivo nem representativo), que precedem sujeitos e objetos e procedem por afetos

e transformações, independentemente de serem ou não calcados sobre pessoas, imagens, identificações. Desse modo, um professor etiquetado como Tradicional, um pedagogo rotulado como Construtivista, ou um educador definido como Progressista podem ser atravessados por devires múltiplos: por um devir-simulacro, que coexiste com um devir-mulher, com um devir-criança, com um devir-animal, com um devir-negro, com um devirpoético, com um devir-imperceptível. Devires, que o ligam a processos de singularização e remetem à problemática da multiplicidade; processos e problemática que excluem a obsessão – que o Pensamento da Representação instalou no campo educacional – de encontrar, formular ou reconhecer algum perfil, identidade, função, papel de O Professor; os quais reificam uma natureza pedagógica verdadeira, uma essência universal de professor, uma arcaica vocação educadora, um modo certo de planejar, de dar aula, de avaliar, de formular um currículo. Tais devires-simulacros são compostos por processos transversais de artistagem, que permeiam as diferentes subjetividades dos educadores, instauram-se através de cada um deles e dos grupos sociais que integram, realizando uma crítica radical a formas determinadas e a funções legitimadas. Devires de pedagogos-artistas, feito por elementos virtuais, embora reais, que se distinguem apenas pelo movimento e pelo repouso, pela lentidão e pela velocidade; que não são átomos, apesar de serem finitos; que, embora possam ser dotados de formas, nem por isso são indefinidamente divisíveis; e que consistem nas últimas partes, infinitamente pequenas de um infinito atual, estendidas num plano de consistência. Partes essas que se definem pelos graus de intensidade e relações, nos quais entram, e que pertencem a este ou àquele professor, pedagogo, educador, artista, que pode ser parte de outro, numa relação complexa; embora cada um seja uma multiplicidade de multiplicidades perfeitamente individuadas. Os educadores-artistas são tomados em segmentos de um devir-simulacro, cujas fibras levam de um devir a outros,

25

26

transformados naquele e que atravessam limiares de poderes, saberes, subjetividades. Desse modo, quando professoresartistas compõem, pintam, estudam, escrevem, pesquisam, ensinam, orientam, eles têm apenas um único objetivo: desencadear devires. Devires que são sempre moleculares, já que devir não é imitar algo, nem identificar-se com alguém, tampouco promover relações formais entre identidades. A partir da bagagem cultural que esses pedagogos-artistas possuem, de suas formas-professorais, do sujeito-educador em que se transformam, das funções-educativas que aprendem a exercer, devir-simulacro é extrair partículas disso tudo; que são as mais próximas daquilo que eles estão em vias de se tornarem; e através das quais se tornam outros educadores, professores, pedagogos e artistas diferentes daqueles que são. Assim, devir-simulacro é o próprio processo do desejo de educar. Isto é, a partir do educador que é; dos fundamentos, metodologias, pedagogias que aprende; de como sabe exercer a profissão; o professor-artista entra na zona de vizinhança – que marca o pertencimento a uma mesma molécula, independentemente dos sujeitos e das formas – do desejo, ou em sua co-presença, entre as partículas extraídas do que carrega em si e que não mais pertencem ao que ele é, ao que possui, a como ensina. Por isso, um pedagogo-educador-professor, em devirartista-simulacro, é considerado uma hecceidade; isto é, uma coletividade molecular não separável de um espaço corpuscular. Não que um professor se torne um artista, nem que um pedagogo se assemelhe a um artista, tampouco que um educador seja análogo a um artista, ou vice-versa, já que o devir não é metáfora simbólica; mas, sim, que o educador, o professor, o pedagogo e o artista invocam uma zona objetiva de indeterminação ou de incerteza, comum e indiscernível; na qual não se pode dizer onde passam as fronteiras de uns e de outros. E não que esse devir-simulacro aconteça somente para alguns privilegiados, corajosos ou iluminados: todos os educadores, pedagogos, professores e artistas, independentemente de evoluções, possuem

potência para outras possibilidades inatuais e para outros devires. Devires que não são regressões, mas involuções criadoras, núpcias anti-natureza, que ocorrem fora dos corpos programados e dão testemunho de uma vivificação permanente. Essa é a realidade do devir-artista dos educadoressimulacros e do devir-educador dos artistas-simulacros, sem que os educadores se tornem artistas ou os artistas se tornem educadores; embora possam tornar-se. Isso porque, no devir-simulacro não se compara e, quando se usa a palavra “como”, esta já mudou de sentido e de função, porque fica remetida às hecceidades e não a sujeitos, significados ou estados significantes. Assim, quando um professor brinca, um educador uiva, um pedagogo canta, um artista ensina, se isso for feito com bastante intensidade e paixão, o professor emite uma criança molecular; o educador, um lobo molecular; o pedagogo, um cantor molecular; o artista, um professor molecular. Não que um se torne o outro, como se mudassem de espécies molares, em suas formas e subjetividades; o que ocorre é uma emissão de partículas, que entram em vizinhança com moléculas compostas e produzem um professor-criança, um educador-lobo, um pedagogo-cantor, um artista-educador moleculares. Claro que é no professor que a criança brinca, no educador que o lobo uiva, no pedagogo que o cantor canta, no artista que o pedagogo-educadorprofessor ensina; mas por meio de emissões corpusculares e não por imitação, nem pela proporcionalidade de suas formas. Portanto, mudam aqui, também, a realidade-emdevir da criança, do lobo, do cantor, do artista; sem que eles, necessariamente, tornem-se professores, educadores ou pedagogos.

4. Currículos Currículos-nômades Desde a chegada do pensamento de Deleuze na Educação, vê-se como, para crianças-cartógrafas-impessoais-em-devir-

27

28

artista e para professores-pedagogos-educadores-artistasem-devir-simulacro, não há mais possibilidade de operar com qualquer tipo de currículo, a não ser com currículos plurais, que podemos chamar por diferentes nomes, como Currículo-Nômade; o qual apresenta os seguintes componentes em seu plano de composição. Sem memória nem ambição, disforme e alienado, fora de si, esse Currículo-Louco é ilegítimo, odeia planos homogêneos e unidades metodológicas, objetivos e projetos, formas didáticas e medidas avaliativas. Pensado a partir de um desmoronamento da interioridade do pensamento curricular, é dotado da potência extrínseca de surgir em qualquer ponto e de traçar qualquer linha, irrompendo nas águas mansas da sabedoria adquirida, de modo involuntário, imprevisto, incompreensível, inassimilável. Vive às voltas com as forças do Fora, como uma violência que se abate destrutiva sobre os saberes consolidados, como um estranhamento recíproco entre o pensamento racional e a realidade de algum objeto. Por se movimentar em outro espaço-tempo, esse Currículo-Errante é inconstante, versátil, anda de terra em terra, corre mundo; de modo que os seus pontos se alternam, subordinados aos trajetos que eles mesmos vão traçando; enquanto os seus traços apagam-se à medida que os trajetos vão sendo feitos. Em movimento perpétuo, com vagos trejeitos de um Currículo-Ambulante, distribui-se, em espaços abertos, sem partilha, sem alvo nem destino, sem partida nem chegada, crescendo no meio do campo curricular como grama. Esse Currículo-Fluido desterritorializa e reterritorializa, faz ruptura das próprias territorialidades, abrindo-se para o novo e consolidando-o, mediante a construção de outras adjacências, desfaz-se e renuncia a si mesmo, vai embora para outra parte. E, mesmo que os fluxos desse CurrículoTurbilhão sejam canalizados por condutos e diques, precipitase, torna a jorrar, transborda, flexibilizando as distinções binárias, ternárias e sintéticas, afetando seus pontos heterogêneos, fazendo com que se revezem, ramifiquem-se

e se encadeiem, extrinsecamente, para se tornarem vetores de transformação. Polimorfo e difuso, bifurcado e fibrilado, esse CurrículoEstrategista corre solto numa atmosfera de errâncias. Deformante e móvel, o Currículo-Ubíquo agencia elementos díspares, opera multiplicidades acentradas, realiza disjunções inclusivas e, por meio de sua rapidez e leveza, conecta-se com outras máquinas de pensar e de viver que têm forças vivas de devires, para conjurar o peso e a gravidade de currículos paquidérmicos e tingidos de cinza-chumbo. Esse Currículo-Imoderado fornece provas de interações inéditas com crianças, professores, matérias, vivendo cada instante curricular molar, em termos de relações moleculares e de movimentos de fuga. Por ser um Currículo-Amoroso com tudo aquilo que inventa, conjura as cruéis forças econômicas e políticas, as insuportáveis humilhações humanas, os centros de poder, ao desenrolar os seus segmentos e figuras imóveis, dispersandoos, de modo que voltem a bailar. Currículo-Dançarino, que não pretende ter desenvolvimento autônomo ou tomar algum poder e, inclusive, espanta-se com a servidão abjeta dos Currículos-Oficializados, não entendendo como eles podem ser tão desejados, triunfantes e duradouros. Irritado com os torpores, adaptações e consciências dos Oficializados, esse Currículo-Abalo tensiona-os, faz com eles piruetas, rolinhos e cambalhotas, dá-lhes rasteiras com novas ideias, cria personagens misteriosos, que são irrepetíveis. Indisciplinado, o Currículo-Rebelde questiona conservações e convenções, regimes de legitimidade e roubalheira, direções constantes e delimitações fincadas sobre codificações. Esse Currículo-Bandido define-se por suas ações livres, inventa revides, luta, joga projéteis, questiona hierarquias, regimes de propriedade, direções constantes, delimitações de objetos e se transforma em arma para ferir os currículos firmados sobre bases sólidas, não relevando sentimentos ternos diante de nenhum sujeito dos Currículos-Equilibrados; embora seja pleno de afetos variáveis, que atravessam corpos de alunos e de pro-

29

30

fessores como flechas, numa velocidade infinita de desterritorialização andeja. Possuidor de uma Ciência-Menor, contrária à CiênciaRégia, o Currículo-Balístico reporta-se a agenciamentos maquínicos e coletivos de enunciação, definindo-se pelo conjunto das singularidades extraídas de seus fluxos curriculares, que convergem para uma consistência inventiva. Esse Currículo-Hiper-Ativo funciona como uma máquina vagamunda, social e coletiva, cujos agenciamentos definem, num determinado e volátil momento, a sua racionalidade curricular e o seu nível de compreensão; tais como os usos e a extensão dos seus conteúdos, as paixões e os desejos das emoções de um Currículo-Eros, que promove descargas de afetos múltiplos, opostos aos pesados conhecimentos estáveis, bagagens culturais, valores eternos, sujeitos idênticos, essências constantes, verdades verdadeiras. Um Currículo-Itinerante desse tipo pode ser chamado Currículo-Mar; pois é fluência pura, nada representa, não fixa lugares, não disciplina, mas engendra-se e percorre-se, faz fugir os sujeitos e os objetos, que implicam um ponto de vista fixo e exterior, procedem por iteração, valorizam reiterações, reconhecem fenômenos, buscam resultados, comprovam constantes. Já um Currículo-Intuitivo capta as singularidades da matéria e a variação contínua das variáveis para constituir a sua territorialidade móvel. Remetido ao par matéria e forças, subordina as suas operações a condições sensíveis da intuição e da construção; por isso, é tanto arte quanto técnica, produz mudanças de estado, processos de deformação e de transformação dos modelos, métodos e programas gradeados, opera individuações por acontecimentos, nunca por fatos ou por sujeitos. Como um Currículo-Anexato, não deixa de ser rigoroso, pois não é nem inexato como as coisas sensíveis, nem exato como as essências ideais, possuindo essências vagas – que despreendem uma materialidade não confundível com a essencialidade inteligível ou com a coisidade sensível –, as quais geram uma identidade anexata entre os pensamentos e as coisas curriculares. Materialidade de um Currículo-

Força, cuja matéria-movimento, matéria-energia e matériaem-variação são seguidas por uma intuição em ato, que não para de situar-se de um lado e de outro dos seus limiares, nem de transformar as matérias homogeneizadas e suas formas estabelecidas. Esse Currículo-Problemático antes formula problemas do que os resolve. Por isso, é um Currículo-Aprendizado, operando como experiência de problematização, que não fornece condições empíricas do saber, não faz transição do saber ao não-saber, não é solução para alguma falta de saber. Currículo-Aprendente, não sabe direito como alguém aprende; só sabe que não é por assimilação de conteúdos, nem por faculdades inatas, ideias a priori, elementos transcendentes. Ao juntar o pensar, o aprender e o viver, procura tornar o pensamento possível outra vez, pois acredita que, assim, pode retirar o pensar da sua imobilidade e separação da vida. Encontrando-se em relação com forças e velocidades infinitas do caos, é um Currículo-que -aprende-ao-mesmo-tempo-em-que-ensina, a partir da questão “O que é pensar”? – que só acontece na imanência absoluta, na criação de novidades e na vida ativa. CurrículoVitalista, dotado de vida com luz própria e de produtividade híbrida, rizomática, que dá saltos, faz desembocaduras, passagens e desvios, que costumam ser sobrecodificados pelo pensamento curricular reativo e triste, que os tenta capturar, sitiar e harmonizar; de modo a colmatar suas fugas, subordinar suas diferenças às identidades, impor limites a suas inumeráveis conexões. Por isso, é um Currículo-Inimigo da adequação do intelecto às coisas, do amigável acordo entre as faculdades mentais, do Bem/Mal, do Certo/Errado, do Verdadeiro/Falso. Esse Currículo-de-Briga com o pensamento moral, odeia besteiras comunicativas, opinião medíocre, contemplação, reflexão, clichês, decalques, regras, ordens, certezas fáceis e repetidas ad nausean. Esse Currículo-Violento tem a sua violência chegando-lhe do não conhecido, do tempo não cronológico de Aion, dos elementos selvagens não domesticados, ou seja, do Fora, que lhe é trazido pelos Signos.

31

32

Signos que fazem dele um Currículo-Enigma, pois o forçam a pensá-los, a decifrá-los, a interpretá-los; para que, desse modo, possa praticar um ensinar e um aprender imprevisíveis, que nos levam a não reconhecer nada do que até então conhecíamos, impedem-nos de pensar e de viver como antes, constrangendo-nos a nos desprender de nós próprios. O Currículo-Ignorante ensina que importa perder tempo para aprender e para enamorar-se dos Signos, de sua necessidade e urgência, inevitabilidade e força. Esse Currículo-Aventureiro não propõe gestos a serem reproduzidos ou conteúdos a serem reconhecidos; nunca diz – “Faça como eu faço”!, mas convida: – “Venha, faça comigo”!, encadeando sensibilidade, intuição e pensamento para sacrificar os Imperativos dos Objetos, as Palavras de Ordem da Linguagem e a Facilidade das Recognições; funcionando como um atrator-caótico, contagiando e propagando, puxando, arrastando matérias e encontros para um devirvagamundo, feito da proliferação de possíveis e da ramificação de não-sensos. E é tão forte esse Currículo-Desejante, que só se preocupa em ser avaliado pelo que produz e pelos efeitos que causa: se são importantes e interessantes, notáveis e potencializadores de mais vida. O Currículo-Ladrão-da-Paz não adota jamais uma posição neutra ou passiva diante do mundo e da vida; ao contrário, trata-os como uma questão de artistagem, vinculada à produção de diferenças, a intervenções e à invenção de vidas ricamente vividas por minorias ex-cêntricas, que procedem por difusões móveis de prestígio. Por sua própria natureza, esse Currículo-Gangue existe e opera, mesmo que de modo imperceptível, em Todos os Currículos Existentes e em Funcionamento. Embora os Currículos-Oficializados queiram sempre pô-lo na prisão, segmentarizar os seus espaços lisos, cortar as suas linhas de fuga, represar os seus fluxos que teimam em escorrer. O problema é que os Currículos-Bandos movimentam os Oficializados, porque estes (embora muita gente não aceite ou não perceba) vivem em metamorfose perpétua e em errância perigosa, voam,

galopam, varrem tudo aquilo que, neles, foi organizado e ordenado enquanto dualidades, correspondências, estruturas; de modo a poderem criar novos movimentos curriculares, que ousem impulsos inovadores e vivam em permanentes devires-revolucionários. Agora, chegou a hora de perguntar: – “Como criar, para si, um Currículo-Clandestino que desenvolva, no campo curricular, um novo espaço de pensar? Como abrir nossos poros e criar novas sensibilidades, que nos dêem condições de possibilidades para acompanhar os movimentos imperceptíveis e intempestivos de currículos fortemente codificados”? Ora, é simples: – “Fiquemos atentos”! Por que esses Currículos-Andarilhos, fazendo aparições descontínuas, praticando atos violentos, esticando linhas de inovação, criando contrapensamentos para pensar o impensável, o não-pensado do pensamento, a exterioridade pura, acabam movimentando todos os currículos, sem exceção. Então, cabe a um pedagogo-professor-educador, em devir-simulacro, que trabalha com crianças-cartógrafasimpessoais em devir-artista, analisar as multiplicidades não métricas e os pontos de singularidades de cada um daqueles Currículos-Codificados, para ver do que eles ainda são capazes, quais são as suas vagas e andamentos curvilíneos, o turbilhonar de suas linhas diferenciais e os novelos de seus fios subterrâneos, que saem de um Currículo-Malta, arrastam um Codificado e o explodem. Então, nesse campo de batalha desordenado, nesse vapor incorporal de pura intensidade, nessa cena funerária do sujeito, nesse espelho cego dos objetos, nessa película de experimentação rebelde, nesse tabuleiro de jogo ideal, nessa dobradiça do aprender, nesse reservatório do pensar; em um tempo fora dos gonzos, renascendo e recriando-nos, altiva e revolucionariamente, viveremos, com prazer e gozo, a porção Marginal dos Currículos-Certinhos. Porção que são como grandes fetos mexendo-se, boiando, mergulhando, circulando e crescendo na barriga do grande Tubarão Pensamental do Currículo-Maior. Engendrar, encontrar e seguir ou não esses fetos, cuidar ou não deles é uma questão de juventude

33

ou de velhice, de tristeza ou de alegria, de vida ou de morte. É aí que a covardia ou a coragem de cada um de nós se decide.

5. Pesquisa Pesquisa do

34

acontecimento

Por último, na relação amorosa e intelectual com os conceitos deleuzianos, distingo um conceito que me parece imprescindível para a pesquisa contemporânea em Educação: o de Acontecimento. Trata-se de um conceito formulado ao longo de toda a produção de Deleuze, desde a sua Tese de Estado Diferença e repetição (Deleuze, 1988) – na qual, tanto o problema quanto suas condições são remetidos à ordem do Acontecimento; até ganhar força e complexidade em Lógica do sentido (Deleuze, 1998) – sob influência da teoria estóica dos incorporais (Bréhier, 1997) e de Leibniz; passando pelo livro A dobra. Leibniz e o Barroco (Deleuze, 1991a) – em que há um capítulo inteiro dedicado à questão “Que é um acontecimento?”, no qual, Whitehead é identificado como o terceiro pensador do Acontecimento; indo até o último livro escrito com Guattari, O que é a filosofia? (Deleuze; Guattari, 1992) – em que aparecem como influências Péguy e Blanchot, saudados como os novos pensadores, que foram capazes de penetrar o Acontecimento; chegando até o seu último texto “A imanência: uma vida...”, em que escreve: “Uma vida [...] é feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades. Os acontecimentos ou singularidades dão ao plano toda sua virtualidade, como o plano de imanência dá aos acontecimentos virtuais uma realidade plena. O acontecimento considerado não atualizado (indefinido) não carece de nada” (Deleuze, 2002). De uma Pesquisa do Acontecimento (Corazza, 2005), seguem-se novas maneiras de pensar e de realizar uma críticaescrileitura, que vão até a singularidade da experimentação de cada pesquisador-professor, num processo de artistagem inventiva da Educação. Por essa via, buscam-se novas formas de expressão e de conteúdos, que derivam de percursos intensivos e de trajetos extensivos das produções que vêm

sendo realizadas, já há alguns anos, no campo educacional; lutas contra a secura dos corações, a acídia nas relações e o agreste dos códigos; inspirações fornecidas por filósofos, escritores, educadores do Pensamento da Diferença, os quais participam de um gesto coletivo, cuja divisa consiste na palavra simples de Nietzsche (1986), embora dotada de um poder infinito: “Uma nova maneira de sentir, uma nova maneira de pensar”. Esse gesto coletivo fornece impulsos para que também a Educação participe da pesquisa de novos meios de expressão, que Deleuze aponta para a Filosofia, em Diferença e repetição: “Aproxima-se o tempo em que já não será possível escrever um livro de Filosofia como há muito tempo se faz: ‘Ah! O velho estilo”... A pesquisa de novos meios de expressão filosófica foi inaugurada por Nietzsche e deve prosseguir, hoje, relacionada à renovação de outras artes, como, por exemplo, o teatro ou o cinema”. Uma Educação, portanto, a ser criticada, lida e escrita enquanto “ficção científica”, no sentido em que não se evita “aquilo que não sabemos ou que sabemos mal”; mas que é realizada, necessariamente , “neste ponto que imaginamos ter algo a dizer”; já que dar um jeito de acabar com a ignorância faria com que transferíssemos, indefinidamente, “a escrita para depois” ou a tornássemos impossível (Deleuze,1988, p. 18-19). Assim, para a Pesquisa do Acontecimento, escrever não é impor uma forma de expressão a uma matéria vivida, mas trata-se de um procedimento informe, de um processo inacabado, de uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. E, quando o professor-pesquisador critica-lê-escreve, fica comprometido com a Literatura do Acontecimento em Educação, necessitando ser um bom artesão, um esteta, um pesquisador de palavras, frases, imagens, para atuar no limite, na ponta extrema, que separa o saber e a ignorância, e os transforma. Por ser construída ao mesmo tempo em que se desenvolve, esta Pesquisa possui uma natureza empírica-transcendental e condensa, nas ações correlatas de pensar, criticar, ler e escrever, que lhes são constitutivas, a criação de sentidos

35

36

imanentes, que resultam de uma reversão das representações feitas por outras pesquisas. Age, despojada de qualquer significação prévia, pois forma-se na anulação dos referentes externos e nos sentidos transcendentes anteriormente construídos. Seus movimentos são expressivos, em relação aos sujeitos, objetos, temáticas, já que é uma pesquisa que não consiste num ato subjetivo decorrente de condições empíricas negativas, como a ignorância do pesquisador; nem objetiva ultrapassar obstáculos de desconhecimento acerca de algum fenômeno; como se pesquisar fosse uma passagem do não-saber ao saber. Ao contrário, trata-se de uma Pesquisa que investiga o conhecimento, no sentido deleuziano, como aquilo que não é “nem uma forma, nem uma força, mas uma ‘função’”. Conhecimento-função que não se realiza sobre “paradigmas arborizados do cérebro”, mas é feito com “figuras rizomáticas, sistemas acentrados, redes de autômatos finitos, estados caóides”, que se conjugam em processos criadores sobre planos de pensamento (Deleuze; Guattari, 1991, p. 26). A Pesquisa do Acontecimento esparrama-se, assim, sobre três “planos”, “disciplinas”, “pedagogias” e seus respectivos componentes, que são como solos nos quais ela se movimenta: a filosofia – com o seu plano de imanência, forma do conceito, conceitos e personagens conceituais; a arte – com o seu plano de composição, força da sensação, sensações e figuras estéticas; e a ciência – com o seu plano de referência ou de coordenação, função do conhecimento, funções e observadores parciais. A filosofia pode operar, em separado, sobre cada um desses planos e utilizar seus elementos específicos; pode, também, dedicar-se às interferências intrínsecas de um plano sobre o outro e aos deslizamentos entre funções, sensações, figuras estéticas; ou pode, ainda, efetivar-se sobre interferências ilocalizáveis, isto é, sobre os negativos de cada disciplina, desde que a ciência encontra-se em relação com uma não-ciência, a arte com uma não-arte; e a filosofia necessita de uma compreensão não-filosófica, em cada instante de seu devir ou desenvolvimento.

Assim, a sua energia provém da utilização de múltiplas linguagens (ciência, pintura, música, literatura, poesia, teatro, cinema), que lhe fornecem a consistência de uma coexistência heteróclita, a qual transforma os elementos pesquisados numa unidade virtual, à medida que cria um vazio na consciência atual que deles possuímos. Por dedicar-se à parte não-histórica do que acontece em Educação, esta Pesquisa trata os conceitos como acontecimentos e não como noções gerais; como singularidades e não como universais; o que não implica a reconversão ao aqui-eagora, nem a troca do essencial pelo acidental; já que o Acontecimento a ser pesquisado é um dinamismo criador – que permaneceria imperceptível caso se tentasse investigálo pelos canais habituais da tradição. Buscando o Acontecimento, a Pesquisa substitui a questão ontológica da Essência “O que é”? pelas questões da novela, do conto, do romance “O que se passou”? “O que vai se passar”? (Deleuze; Guattari, 2004, p. 235). Experimentando e mostrando o Acontecimento como produção de eventos, a Pesquisa troca o eterno pelo presente, não realizando uma fenomenologia da atualidade, mas uma Ontologia do Presente, no sentido de Foucault (Deleuze, 1991b). Assim, ela não pesquisa divisões, unidades, identidades definidas e formadas (crianças, professores ou currículos), mas diagramatiza-as em fuga, valoriza os seus devires, nomadismos e inatualidades, conceitualizando suas configurações por vir. Para tal Pesquisa, tudo é considerado Acontecimento puro, isto é, potencialidade inexistente fora de suas atualizações e, todavia, delas transbordante. Incorporal sem ser vago, coletivo e particular, perceptível e microscópico, o Acontecimento é modo de individuação, ligado a um clima, a um clarão, a um silêncio, a outros acontecimentos. Ele não designa coisas, fatos, ações, paixões dos corpos, estados de ser ou de coisas, pessoas, sujeitos, porque os toma como individuados por linhas acontecimentais, como individuações assubjetivas, impessoais, subpessoais; cada qual dotado de duração própria e variável, embora intensiva, feita de afetos e de sensações.

37

38

Relatórios, críticas, leituras e escrituras feitos nessa Pesquisa do Acontecimento são constantemente dissolvidos e reformulados por novos planos de pensamento, que procuram identificar a imagem peculiar de cada linguagem; afastar o nevoeiro de universalidade que rodeia cada pedagogia; restabelecer o momento da originalidade de cada pensar. A Pesquisa investe, portanto, contra tudo aquilo a que o pensamento se dirige: a besteira, o erro, a superstição, a ideologia, a estupidez, o senso comum, o bom senso, a opinião, a comunicação. Para escapar da Imagem Dogmática do Pensamento, ela se posiciona a favor de que pesquisar é criar e criar é problematizar; só que problematizar é determinar dados e incógnitas dos problemas, que vão sendo formulados à medida que a pesquisa se realiza e que persistem nas soluções que lhe são atribuídas, como em um jogo afirmativo de novidades, por meio da Vontade de Pesquisar. Esta Vontade que, para o professor-pesquisador, abre novos caminhos, que interferem e ecoam uns nos outros, graças a materiais de expressão ainda informes ou de conteúdos incodificados. Pesquisa que se dedica a raspar, escovar, lixar clichês de resultados já organizados, para construir um espaço liso, como no deserto, onde seja possível realizar experiências empírico-transcendentais. Pesquisa desenvolvida, por meio de imagens e de signos, que a burilam esteticamente e dela fazem um compósito de conceitos, afectos, perceptos e funções. Pesquisa que atenta, a um só tempo, para as multiplicidades das multiplicidades e para os seus movimentos de desterritorialização, reterritorialização e territorialização. Pesquisa que, ao traçar mapas de intensão e de extensão, considera, em primeiro lugar, as linhas de fuga; depois, as moleculares, mais flexíveis; e toma as linhas duras, molares, como resíduos secundários; pois refere decalques aos mapas, relaciona raízes e árvores aos rizomas, e nunca o inverso. Pesquisa que investiga os agenciamentos em suas duas faces: a do agenciamento técnico-maquínico, voltada para os estratos e a do agenciamento coletivo de enunciação, voltada para o corpo sem órgãos.

6. Diferir-Artistar Pensar-ensinar, pesquisar-criticar, ler-escrever, diferir-artistar com deleuze Amante dos encontros, a cada vez em que é exercida, a Pesquisa do Acontecimento estabelece diferentes relações entre os elementos e compõe geografias inéditas, nos quais os acontecimentos curriculares se tecem e destecem, já que não há, para essa pesquisa, primeiros princípios, representações eternas, regras normativas, orientações naturais. Assim, os Professores pesquisam incessantemente porque não acreditam nas coisas pré-fabricadas da Educação e detestam a inércia pedagógica que os impele a repetir. Eles possuem como guias iniciáticos as suas paixões concretas, que os desviam dos conjuntos espaço-temporais; não os deixam passar ao longo das Crianças; nem recolher a sua efetuação na atualidade; mas os levam a instalaremse no Acontecimento do Currículo, como num devir, para rejuvenescer e envelhecer, simultaneamente, componentes e singularidades que na Educação circulam. Então, os Pesquisadores-Professores conseguem criar algo novo ao promoverem a irrupção de um devir em estado puro, que Nietzsche chamou “Intempestivo” ou “Inatual”. Realizam, desse modo, uma Pesquisa-Docência de uma Infância-Inatual, que implica que sejam dignos do Acontecimento Curricular e que artistem a Educação, em devir-revolucionário: o único devir, que conjura o intolerável e os faz acreditar no mundo.

Referências BARTHES, Roland. A preparação do romance I: da vida à obra. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005. BRÉHIER, Émile. La théorie des incorporels dans l’ancien stoïcisme. Paris: J.Vrin, 1997. CORAZZA, Sandra Mara. Pesquisar o Acontecimento: estudo em XII exemplos. In: TADEU, Tomaz; CORAZZA, Sandra; ZORDAN, Paola. Linhas de escrita. Belo Horizonte: Autêntica, 2004 (p. 7-78).

39

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado) Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. A dobra: Leibniz e o barroco. (Trad. Luiz B. L. Orlandi.) Campinas, São Paulo: Papirus, 1991a. _____. Foucault. Paris: Minuit, 1991b. _____. Lógica do sentido. (Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes.) São Paulo: Perspectiva, 1998. _____. A imanência: uma vida... In: Dossiê Deleuze e a Educação. (Trad. Tomaz Tadeu.) Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, julho-dezembro 2002 (p. 10-18). ­­D ELEUZE, Gilles. O Abecedário de Gilles Deleuze. Disponível em: . Acesso em: 18 de setembro de 2007. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991. _____. 8. 1874 – Trois nouvelles, ou ‘qu’est-ce qui s’est passé? In: ____. Capitalisme et schizophrénie 2. Mille plateaux. Paris: Minuit, 2004 (p. 235-242). NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. (Trad. Mário da Silva.) São Paulo: Círculo do Livro, 1986. TADEU, Tomaz; CORAZZA, Sandra Mara. (Orgs.). Dossiê Deleuze e a Educação. In: Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 27, n. 2, jul./dez. 2002. _____. (Orgs.) Dossiê Entre Deleuze e a Educação. Educação e Sociedade. Campinas, v. 26, n. 93, set./dez. 2005.

40

MÉTODO VALÉRY-DELEUZE: um drama na comédia intelectual da educação2

2

Justamente porque o espírito humano enfrenta dificuldades para pensar o informe, este artigo constitui o Método Valéry-Deleuze (Método do Informe), enquanto componente de uma Educação ou Pedagogia da Sensação, que associa a vivência dos limites formais e a criação artistadora. Tributário do gosto filosófico, extrai conceitos do meio-Deleuze (expressão, pensar, dramatização) e do meio-Valéry (informe, criação, comédia), para operar com as unidades analíticas de Autor, Infância, Currículo e Educador (doravante referidos em um bloco AICE); pela via biografemática, ao modo de Roland Barthes. Com esses instrumentais operatórios, impulsiona as pesquisas a capturar as forças de acontecimentos educacionais, em suas modulações assignificantes, vitalidades assubjetivas, relações ininterpretadas, devires inorgânicos e imperceptíveis.

O valor Distante de Flaubert (1997; 1999) que, com Bouvard et Pécuchet e Dictionnaire des idées reçues, sonha realizar uma obra sobre a estupidez humana, o Método do Informe, aqui composto, sonha pesquisar o valor do espírito humano. Assim, em vez de celebrar o triunfo da mediocridade sobre o gênio, que imola “os grandes homens aos imbecis, os

2

Texto intitulado “Valéry-Deleuze Method: a Drama in the Intellectual Education Comedy”, publicado em Anais completos (p. 629-642) do evento International Conference & International Summer University: Borders, Displacemente and Creation: Questioning the Contemporary, realizado na Universidade do Porto, Portugal, de 29 agosto a 04 de setembro de 2011. Ainda publicado na revista Educação & Realidade, da Faculdade de Educação da UFRGS, v. 37, n. 3, set./dez. 2012 (p. 1009-1030).

41

42

mártires aos carrascos”, funcionando como uma “apologia da canalhice humana” (Reys, 1999, p. 407), empenha-se em fazer triunfar o espírito sobre a mediocridade. Se, diz Valéry (1997, p. 57), “um poema deve ser uma festa da inteligência” – isto é, “um jogo tão bem regulamentado que não se pode concebê-lo de modo diferente”; já que a “‘impressão de Beleza, tão irrefletidamente buscada, tão vãmente definida, é talvez o sentimento de uma impossibilidade de variação’” (Maurois, 1990, p. 46) –, acreditamos que, também, a literatura educacional pode ser essa espécie de festa, desde que em vias de se fazer. Literatura derivada de pesquisas que tomam, como objetos ou materiais, as Vidarbos – vidas-obras, e inversamente – de infantis, educadores, autores e currículos de diversas destinações e níveis de ensino (Adó, 2010; Corazza, 2010b; Costa, C., 2010; Costa, L., 2010; Feil, 2011; Oliveira, 2010). Para tanto, o Método detecta e lança saberes, em um AICE iluminado pela inteligência, delineando os processos de sua gênese e composição. Diante de cada AICE, os pesquisadores professam ignorância, em vez de projetarem seus sentimentos em ídolos; consideram os sistemas das verdades como aquilo que há de mais arbitrário, em termos de convenções, ficções e mitos; explicitam de que maneira multiplicidades, ideias e singularidades podem adquirir realidade em educação. O Método demonstra que, pela criação da obra de arte, a impossibilidade de variação e o arbitrário da criação transformam-se em necessidade de agir para viver, não podendo ser diferente (Bergson, 2006). À medida que os pesquisadores deslocam-se da boa vontade, do senso comum e das decisões premeditadas, para encontrar-se com o acaso e com o caos, o Método transforma-se na Paidéia (cultura) de AICE revisitado. Pesquisar consiste, assim, em devir outra coisa que não pesquisador: realizando movimentos de ataque e proteção, vontade e decisão, viagens e mutação; borboleteando intelectualmente e titubeando entre blocos de saber-poder e subjetividades; suspendendo o que encontra, para desenhar traços imprevistos e excêntricos de possibilidades; desmoronando

e traindo o sistemático; proliferando o processual e andarilhando num tabuleiro de experimentações fictícias, que sobrepujam qualquer retidão.

A busca A experimentação e a construção de um método consistem tanto numa força intensiva da obra de Valéry como de Deleuze. Em nome de quê e para quê? Em Valéry, sob a influência de Poe, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, o Método importa para fazer da criação poética uma obra de precisão, como resultado de uma consciência organizada: “Um espírito inteiramente ligado seria bem, em direção a esse limite, um espírito infinitamente livre, visto que a liberdade, em suma, não é mais que o uso do possível, e que a essência do espírito é um desejo de coincidir com seu Todo” (Valéry apud Maurois, 1990, p. 8). Em Deleuze, o método importa para a realização de um “alfabeto do que significa pensar”, considerando que a “Ideia não é o elemento do saber, mas de um ‘aprender’ infinito”. Para ter e aprender uma Ideia, a filosofia deve seguir a exigência bergsoniana, que indica a necessidade de formular não conceitos abstratos e gerais (que não concernem a nada em particular e podem aplicar-se a tudo e a seu contrário); mas conceitos precisos, talhados na medida dos objetos singulares, de modo que a filosofia alcance não as condições de toda experiência possível (como em Kant), e sim as condições da experiência real (Bergson, 2006, p. 3-4; p. 192 segs.; Deleuze, 1988, p. 295; p. 310; p. 153 segs.; 1998, p. 97 segs.; 1999, p. 13; p. 39). Em ambos os autores, dispõe-se e insiste a mesma questão, qual seja: uma inteligência ansiosa por precisão, necessária para elucidar as relações que tecem uma determinada maneira de pensar, de escrever, de estar no mundo, de viver. Assim, de um lado, em Valéry, encontramos uma epistemologia expandida em poética; enquanto, de outro, em Deleuze, uma epistemologia expandida em filosofia. Nas pegadas desses dois pensamentos rizomáticos, que procedem por aforismos, poemas, relâmpagos punctiformes

43

44

e linhas descontínuas, o duplo Método atinge a consciência, suas relações, condições e possibilidades. Método que é contrário ao substancialismo da representação, pelo uso da “exatidão de imaginação e de linguagem”, com uma “rigorosa geometria do cristal” (Calvino, 1990, p. 133): “o gosto da ordem intelectual da exatidão, a inteligência da poesia juntamente com a da ciência e da filosofia”. Perseguindo o dogmático e o vago, sob o controle da consciência, o Método constrói transversalidades entre as artes verbais e não-discursivas, as ciências da exatidão, a matemática, a física, a filosofia, a poética, a educação. Buscando o rigor e a consistência, sem perder a sensibilidade, o Método formula procedimentos, para os quais, “[Mr.] Teste é a impossibilidade caricatural”, enquanto “Leonardo [da Vinci é] o arquétipo da realização bem-sucedida” (Barbosa, 1991, p. 14). Operar com Valéry e o seu olhar semiológico implica que as pesquisas inscrevam-se “num campo de possibilidades combinatórias”, que transcende “qualquer expectativa crítica” (Gonçalves, 1991, p. 227). Existe, aqui, uma correspondência entre os domínios artísticos, técnicos e científicos, por intermédio de uma lógica imaginativa e analógica, fundada nas relações “entre coisas cuja lei de continuidade nos escapa”. Ao modo valéryano, a unidade do presente Método baseiase nas “vertigens da analogia”, vinculadas à “consciência das operações de pensamento”; a qual é capaz de articular a “indissolubilidade entre o sensível e o inteligível”; e que Valéry apreendia “tanto no ostinato rigore de Leonardo quanto no princípio de consistência elaborado e defendido por Poe em Eureka” (Barbosa, 1996, p. 272). Definindo o próprio ato poético como tensão para a exatidão, Valéry, leitor de Bergson e amante de Proust, com eles concordava que pouca valia tem remontar ao passado, para refazer episódios vividos; desde que a lucidez da consciência e da linguagem depende das operações do espírito e nunca das vivências mundanas. É o rigor da construção do espírito que processa os elementos da experiência e expressa, na literatura tratada como jogo da arte, a indissociabilidade entre linguagem e pensamento. Dessa maneira, “como se

tivesse um bisturi entre os dedos”, Valéry consegue “abrir cada fibra do mundo das referências tangíveis e imaginárias e decompor, aos nossos olhos, a natureza construída”. É esse mesmo movimento que “determina as irregularidades regulares não só das coisas e dos seres” e que “demonstra as noções de Tempo e de Espaço, mediante a consciência”. Consciência, que, para Valéry, “reside no Homem e só nele e, por isso, só esse animal sensível e inteligente torna-se capaz de agir sobre a Natureza e recriá-la, apontando para a sua insuficiência” (Gonçalves, 1991, p. 226). Já do lado da produção de Deleuze (1997), sob marcada influência de Nietzsche (além de Spinoza, Bergson, Foucault, Artaud, Kafka, Proust), o Método importa para tomar distância da epistemologia representacional, levando o pensamento a capturar forças, numa semiótica da sensação e numa física dos afectos. Dessa maneira, não requer escrileituras (escrituras-leituras) evolutivas, cronológicas ou progressivistas, acerca de sujeitos plenos ou autoridades; de mestres renomados ou grandes obras; de currículos bem sucedidos ou documentos-chaves; como se fossem expressões de Obra, Autor, Gênio, Pessoa, Pai, Senhor. Essas categorias ficam fora de questão, permanecem desfocadas, ou sujeitas a problematizações; desde que o terreno e os materiais das pesquisas atualizam-se, sob a forma de blocos de sensações, perceptos e afectos. Como artistas ou operadores das forças, ao efetivar experimentações de posturas vitais, os pesquisadores fazem da pesquisa, clínica; e, ao diagnosticar o tipo vital de cada Vidarbo de AICE (o seu deFora), fazem do discurso, crítica. Trata-se, para Deleuze, de articular pensamento e vida, devir e história, concebendo os encontros disjuntivos, daí advindos, enquanto irrupção da criação e do novo. Para tal, o Método, que lhe é correlato, formula uma teoria intensiva e diferencial das formas, como relações de forças e de afectos; a qual rompe com a hermenêutica da interpretação e seus sentidos invariantes, sujeitos, objetos, territórios de organização e de estratificação. Empenhando-se, nas zonas de intensidade das suas pesquisas, para diagnosticar como

45

as forças insensíveis produzem tanto signos como imagens, os pesquisadores agenciam movimentos e vibrações de afectos; encontros com hecceidades e variação de potências; relações complexas de velocidades e lentidões, movimento e repouso, entre moléculas ou partículas. Funcionando como Afectologia, as pesquisas transformam o poder de afetar e de ser afetado de cada participante; tornam sensíveis forças antes insensíveis; procedem a deformações inorgânicas; fogem da segurança das formas constituídas (clichês orgânicos); e lutam para permanecer no nível das intensidades instáveis (corpo sem órgãos). Feito as crianças que preferem as aventuras, com suas maravilhas, dificuldades, perigos e possibilidades, o Método Valéry-Deleuze, em sua infância aventureira, reconstrói o prazer de fazer (le plaisir de faire): “prazer atravessado de tormento, misturado de sofrimentos e prazer na busca do qual não faltam nem os obstáculos, nem as amarguras, nem as dúvidas e nem mesmo o desespero”. É que os efeitos do Método criam, para os pesquisadores, uma segunda natureza e uma segunda educação; através das quais, eles combinam e conservam estranhamentos, mediante o que executam. Provocado por esses efeitos, cada artista “troca a cada instante aquilo que ele quer por aquilo que ele pode, o que ele pode por aquilo que ele obtém” (Gonçalves, 1991, p. 230).

O método

46

Privilegiando o real puro de AICE, como percebido e não conhecido, irredutível a uma única lei, e não dedutível por meios racionais, o Método opera com os indefinidos – “um autor”, “um infantil”, “um currículo”, “um educador” –, considerados outsiders, excepcionais e anômalos, vagos e únicos, que não se parecem com ninguém, não são idênticos a nada e jamais foram vistos. Localiza essas hecceidades (singularidades) tão-somente ocupando um lugar no espaço e possuindo uma existência de fato; logo, que não têm formas, mas são forças. O ponto de partida radica na distância entre aquilo que os pesquisadores acreditam ver e

aquilo que efetivamente vêem, entre sua visão habitual e a visão vazia. Isso porque o quadro teórico-operatório do Método consiste em um construcionismo, que defende o fato de as impressões não terem, necessariamente, de ser substituídas, de maneira imediata, por conceitos ou signos, em detrimento de presenças anteriores aos arranjos inteligíveis. Desnudando as formas de AICE, através das ambiguidades do Informe, o Método leva os pesquisadores a realizarem dois movimentos, diversos e próximos: a percepção e a criação. Considerando-se não “uma doutrina”, mas “um sistema que realiza melhor que o espírito entregue a si próprio o trabalho do espírito”, com “operações quase materiais”, que “podem ser concebidas, senão realizadas, por meio dum mecanismo” (Valéry, 1965, p. 137), o Método propõe Exercícios do Informe (Valéry, 2003). Exercícios que, em primeiro lugar, desenvolvem a sutileza e a instabilidade sensorial, incitando os pesquisadores a ver AICE, para, deste, arrancar a impressão bruta e a existência efetiva; em vez das significações de objeto, representações de sujeito e configurações de códigos, que implicam a generalização pelo conceito. Mesmo que não haja disposição de ordem entre os elementos de AICE, vistos pelos pesquisadores, pois o Informe não emite lei, o Método posiciona-os no começo do começo, para ler as impressões visuais, únicas e insubstituíveis; e, assim, criar a possibilidade de conhecer as unidades dos corpos regulares de AICE. Fazendo-os demorar na sensação, possibilita criar uma visão singular, como se AICE fosse visto por vez primeira. Ao mesmo tempo, em que é abandonado tudo aquilo que, anteriormente, tinha sido constituído como tesouros, bagagens e ideais. Porém, ao lado dessa desconstrução, o Método exige construção. O seu segundo gesto requer a colaboração dos corpos dos pesquisadores, num diálogo entre o Eu que vê e o Eu que desenha (rabisca, escreve, pinta, esculpe, canta, etc.). Na passagem da sensação visual para a configuração manual, a visão encarna-se sobre um suporte (papel, tela,

47

monitor, teclas, pautas, areia, etc.); ao mesmo tempo em que são desfeitos o objeto e o sujeito de referência. Desse modo, ao lançarem, sobre algum suporte, não só o AICE que viram, mas aquele que querem fazer ver, os pesquisadores têm condições de criar um AICE, constituído por sua vontade de expressão, articulada à sensação. Podem, assim, atribuir ao AICE informe uma (nova) forma. Porém, esse ato não o fixa; já que, ao ser expresso, AICE pode ser modificado, enquanto “o Infantil”, “o Educador”, “o Autor” e “o Currículo” familiares tornam-se outros. Desde que “a expressão precede o conteúdo e o conduz” (Deleuze e Guattari, 1977, p. 62), as mãos dos pesquisadores também guiam sua visão: a “pintura é pensamento: a visão existe pelo pensamento, e o olho pensa” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 250). Se o Método considera AICE informe, isso não quer dizer que ele não possua formas; e sim que as formas de AICE não encontram mais, no pensamento das pesquisas (liberto de clichês e de memória), nada que permita substituílo pela recognição ou pelo reconhecimento. Diante das formas de AICE – que não são fixas, mas intensas, carregando puras possibilidades e sendo irredutíveis a nada –, o Método colabora para a identificação daquilo que os pesquisadores ignoravam ou que nunca haviam visto; bem como, para a condição que AICE pode ser modificado pelos Exercícios do Informe. Além disso, por breves e fugazes que sejam as novas formas de AICE, os pesquisadores são surpreendidos, exploram acasos felizes, dominam alguns achados, terminam sua criação. Podem, assim, exercer a potência própria de quem estuda uma Literatura Menor; educa uma Infância Informe; vive um impessoal Devir-Docente; e fabrica Currículos Nômades (Corazza, 2010a; 2010c).

O espírito e a ideia

48

Para se constituir, o Método Valéry-Deleuze junta o esprit de géométrie ao esprit de finesse, através, em parte, de elementos conceituais do pensamento em prosa de Paul Valéry, especialmente no que se refere àquilo que ele

denomina, a partir de 1894, “Comédia do Intelecto” (Comédie de l’Intellect) – também “Comédia Intelectual” (Comédie Intellectuelle); “Comédia da Inteligência” (Comédie de l’Intelligence); “Comédia do Espírito” (Comédie de l’Esprit) –, qual seja: “Acontece-me muito freqüentemente sonhar com uma obra singular, que seria difícil de fazer, mas não impossível”; “e que teria lugar no tesouro de nossas letras, junto à Comédia humana, de que seria um notável desenvolvimento, consagrada às aventuras e às paixões da inteligência”. Seria “o drama das existências dedicadas a compreender e a criar”; nelas, ver-se-ia “tudo o que distingue a humanidade, tudo o que a eleva um pouco acima das condições animais monótonas”; e que consiste na “existência de um número restrito de indivíduos, aos quais devemos o que pensar, como devemos aos operários o que viver” (Valéry, 1996, p. 252). Essa autarquia intelectual, pertinente à Comédia Intelectual – que Valéry define como “autodiscussão infinita”; “teoria de si mesmo”; “obra de arte feita com os fatos do próprio pensamento” –, entra em composição com o pensamento do Deleuze dos anos 60, no que se refere ao aporte do “Método de Dramatização”, presente nos livros Nietzsche e a filosofia (1991, [1962]) e Diferença e repetição (1988, [1968]); bem como, na conferência proferida na Societé Française de Philosophie, em 28 de janeiro de 1967, intitulada “O método de dramatização” (2006, p. 145), na qual afirma: “Tento definir mais rigorosamente a dramatização: são dinamismos, determinações espaçostemporais dinâmicas, pré-qualitativas e pré-extensivas que têm ‘lugar’ em sistemas intensivos onde se repartem diferenças em profundidade, que têm por ‘pacientes’ sujeitos-esboços, que têm por ‘função’ atualizar Ideias”. Assim, ao corresponder um tal sistema de determinações espaços-temporais a um conceito, “um logos é substituído por um ‘drama’”, e estabelecemos o drama desse logos. Se, afirma Deleuze, existe “um liame fundamental entre a dramatização e um certo mundo do terror, mundo que pode comportar o máximo de bufonaria, de grotesco”,

49

“uma cólera”, por exemplo, é uma dramatização que põe em cena sujeitos larvares”. Porém, em quais pontos, a Comédia Intelectual de Valéry e o Método da Dramatização de Deleuze levam suas produções a realizarem um bom (ativo) encontro, que nos possibilita erigir o Método do Informe em Educação?

1. O

50

espírito

Para Valéry, a cultura é obra do espírito humano. A tarefa do espírito é sonho, isto é, superação do dado, vontade ativa e busca incansável de um plano de realidade, que não seja o da aparência, nem o da experiência imediata, tampouco o plano sólido do já trilhado. Ocorre que este plano é prisão, o complexo de resistências dos estudiosos, no qual se debate todo querer humano, em seu afã de perfeição e justiça, segurança e certezas. O grande inimigo do espírito é, assim, a natureza, no que tem de mais imediato; por isso, embora o espírito seja também natureza, toda obra do espírito, desde que há cultura no mundo, é contranatural. Na concepção valéryana, o espírito trabalha, funciona; é pergunta sem resposta (demande sans réponse); negação de fundamentos e determinações. “Alma” é um dos nomes historicamente dados a espírito, como dinamismo perceptível, que suscita uma estruturação psíquica íntima. Há outras acepções da palavra espírito, que apontam para noções que, semanticamente, se aproximam, como ψυχή e anima, na antiguidade clássica: substância intelectual e incorpórea, que sobrevive à morte do corpo, nas doutrinas espirituais platônicas e neo-platônicas e no cristianismo. Para o aristotelismo e o estoicismo, o espírito consiste numa energia que vivifica e anima o corpo. Desde Montaigne e Descartes, na modernidade, o subjetivismo segue essa ideia de espírito como energia e a introduz no senso comum, sendo usada como característica central de uma instituição, disciplina, povo, nação. Em Hegel e no idealismo alemão, alma é entendida como espírito finito, intelecto; em

Schopenhauer, como vontade de viver; em Freud, como inconsciente; e em Nietzsche, como vontade de potência. Espírito, na acepção de consciência de si ou Eu, é raro, seja na antiguidade, no medievo ou na renascença, por ficar, até então, dependente da ordem cósmica e natural. Com a burguesia, no entanto, espírito adquire o sentido da substância (algo em si) de um pensar autônomo e livre, em relação a instituições, tradições e esquemas tidos como imutáveis. Valéry é um herdeiro crítico dessa tradição, chamada racionalista-cartesiana; e adota a palavra francesa esprit para designar Eu, consciência, consciência de si, razão, intelecto, sujeito (não assujeitado), que aspira e realiza criações. Em sua obra, contudo, não encontramos a noção de espírito remetida à metafísica de alguma alma imortal; nem inserida num sistema idealista; ou referida a qualquer divindade reguladora. Assim, quando poetiza o mar, o sol, a luz, a concha, a dança, Valéry é apolíneo, adotando um ambíguo sensualismo-materialista. Para ele, o espírito humano não é totalmente controlado por forças irracionais, escravizado pela inconsciência ou determinado por estruturas. Existindo em situação, o espírito tem, quase sempre, possibilidades de escapatória ou de superação das condições mais vis. O próprio inconsciente nada mais é do que um condicionante e tudo o que humano realiza é resultado da sua racionalidade, mesmo que mesclada com alguns fatores obscuros. O homem de gênio aproveita-se, conscientemente, das figuras lançadas pelo acaso; daí advindo a famosa fórmula valéryana: “Gênio = consciência das inconsciências” (Valéry, 1977, p. 221). Apenas a consciência realiza ações e obras, pois, um espírito totalmente inconsciente nada faz: “A consciência é a possibilidade de atos”. O inconsciente pode até fornecer soluções; porém, formular e decidir qual o melhor problema, ou solução, só pode ser feito pela consciência. Em suma, para Valéry, o espírito é o de um Eu funcional, em vez de um Eu substancial; não é separado do corpo, mas inseparável da matéria, e reciprocamente; não

51

52

é determinado nem determinante, mas em circunstância, existindo num dado tempo e espaço, em sua fragilidade real e limitações, condicionado a si mesmo, aos outros e ao mundo: “Após tudo, eu fiz o que eu pude”; é impermanência, self-variance, isto é: auto-variação, variação do ser, variação de si, processo, devir, movimentos interiores; possui, no entanto, uma identidade, uma unidade, um Eu invariante: se há recorrências, padrões, obsessões, nunca há término, tudo é retomada e invenção; apresenta a impossibilidade de pensar uma ideia fixa, já que nenhuma ideia, ou pensamento, existe como linha homogênea, mas como fenômeno contínuo, dotado de matizes e gradações: “Toda consciência é incessantemente mutável”; para o espírito, não existe último pensamento porque não há pensamento que esgote a própria virtualidade; como pensamento, o espírito é conflituoso, diálogo interior, “dissonância permanente”, “jogo ininterrupto”, “PR [pergunta-resposta]”; cuja linguagem interior “cria um Outro no Mesmo” (Valéry, 1931, p. 188). Na produção valéryana, há distinção entre dois tipos de espírito: o Eu empírico, self-variance; e um Eu puro, que é o Eu ao qual tende “o culto ao Ídolo do Intelecto” (Idolle de l’Intelect). Este Eu puro é tido como um dos conceitos mais problemáticos da obra de Valéry, por guardar ecos do Eu substancial e racionalista- cartesiano, bem como do Eu absoluto do idealismo alemão. Só que esse Eu puro não é moral (substancial ou absoluto), pois consiste: num “ponto virtual, para o qual, o meu conhecimento se ordena”; logo, na invariância daquilo que no espírito não muda: “O eu – é um invariante que resulta de toda produção de fenômenos suficientemente consciente e complexa”; na “origem, meio ou campo” de “uma propriedade funcional da consciência”; no núcleo duro, um centro, ao redor do qual gravitam a esfera movente do espírito, suas lembranças, aspirações, pensamentos e desejos: “0, 1 e infinito – 0 é o signo da negação, a resposta que é negada no diálogo demanderéponse do espírito; 1 é o signo da unidade do espírito ante as possibilidades; e infinito é o signo da pura possibilidade

do espírito”; numa virtualidade heurística, não numa realidade: “A palavra Eu designa sempre virtualidades – Não há Eu redutível ao atual” (Pimentel, 2008, p. 38-39). Portanto, o Eu puro é um estado de espírito, ao qual o Eu empírico aspira; um possível, que precisa ser conquistado, realizado, estabelecido no agir; um Eu virtual, que, tendo cumprido o culto ao Ídolo do Intelecto, encontra-se purificado das paixões, metafísicas, opiniões, subjetividades, outros ídolos e idolatrias, que impedem o seu livre pensar. O Eu puro é um vazio de pessoalidade; o espírito em estado de total despersonalização e desumanização; já que é preciso sair do acúmulo da personalidade para nele ingressar. O Eu puro é, assim, superior ao Eu empírico, porque este possui ego e aquele não; porque não é um “Eu penso” e a consciência de estar pensando, mas um “Pensase”, indefinido, e a consciência de se estar pensando, na imanência do mundo. Por isso, em face da self-variance do Eu empírico, importa aos pesquisadores desenvolver um programa de autoconsciência para purificar o espírito; de modo que o Eu puro possa cultuar o Ídolo do Intelecto, exercitando a consciência como a sua possibilidade de atos. Programa que integra uma espécie de funcionalismo, que não se restringe à meditação analítica de si; mas abre-se para analisar a gênese dos processos de todas as obras humanas, próprias e dos outros. Programa que, assim, exclui toda esperança teleológica, já que nada é necessário além do seu próprio processo. Quando a consciência pensa estar pensando-se, não deixa o pensamento solto ou distraído; mas fornece-lhe formas de meditação, para manter um certo grau de lucidez, controle e rigor. Com Valéry, os pesquisadores precisam prover-se do maior grau possível de consciência, durante qualquer ação; seja esta íntima ou ações que se transformam em arte, filosofia ou ciência. Seria como dizer a um pesquisador: controle-se a si mesmo, em eterna vigília, controlando o mecanismo de seus processos mentais, para eliminar o vago, as oscilações e as facilidades. As pesquisas ressaltam, por conseguinte, a

53

dedicação ao acompanhamento dos passos daqueles que criam; mesmo que na imaginação, mesmo que de modo conjetural, via uma Comédia do Espírito. Assim, interpretar e criticar obras alheias são modos de meditar sobre si mesmo: interpretar é interpretar-se, criticar é criticar-se. Daqui, decorre a necessidade de os pesquisadores fazerem um contínuo e disciplinado exercício de atenção do espírito e esforço da vontade, quando postos num fazer, pois, pergunta Valéry: “O que me importa aquilo que estou farto de saber”? Daqui, também, derivam as críticas ao mundo moderno e às suas facilidades, aos meios curtos e rápidos, que reduzem os esforços do espírito humano. Daqui, ainda, o próprio funcionamento valéryano de ascese intelectual, na aurora, entre 6 e 9 horas da manhã, todos os dias, de um dos milhares de dias, ao longo de mais de cinqüenta anos, em que escreveu seus Cahiers: “A arte não é nada mais do que um pedagogo, porém mais importante – pois ela pode me ensinar a dispor do meu espírito para além de suas aplicações práticas” Valéry (1977, p. 217).

2. A

54

ideia

Em 1967, na conferência “O método de dramatização”, Deleuze (2006) propõe, sob o nome de Dramatização, um Método para o exercício do pensamento filosófico. Método (ou “esquema kantiano”), que é de leitura, compreensão, análise e produção do pensamento; o qual, mais adiante, nos anos 70 e 80, será substituído, em parte, pelos conceitos de estratégia, operação, procedimento, especialmente nos dois livros sobre cinema (Deleuze, 2005; 2008). Agora, Deleuze apresenta o objeto da sua Tese de Estado (publicada em Diferença e repetição, especialmente nos capítulos III, IV e V), com a orientação determinada de uma dramatização. A que visa esse conceito extraído do quadro teatral? Ora, neste período, Deleuze distingue “Ideia” de “conceito”: este é considerado uma noção abstrata, hipotética, geral; enquanto Ideia é a verdadeira objetividade, feita de relações

diferenciais e provida do problemático, como “o conjunto do problema e de suas condições”, que são “as próprias Ideias”: “a Ideia é real sem ser atual, diferençada sem ser diferenciada, completa sem ser inteira” (Deleuze, 2006, p. 290; p. 343-344). Desse modo, o conceito está do lado da essência teoremática (platonismo); enquanto a Ideia está do lado do inessencial, dos acontecimentos, afecções, acidentes, multiplicidade. Os dramas (ou “processos dinâmicos”, que dramatizam as Ideias), na “aventura das Ideias”, colocam em cena forças e potências que agem nos acontecimentos, em detrimento do que aparece na superfície do pensar. Literalmente, é isso o que significa drama: fazer, agir, performar as Ideias, quase encobertas pela ação. O Método visa pôr em evidência o caráter dramático de todo acontecimento. Como afirma Deleuze (2006, p. 295; p. 347; p. 139): “Il y a toujours un ‘drame’ sous tout logos” (“Há sempre um drama sob todo logos”). O Método tem, aqui, por objeto a parte dramática do pensamento que é, em geral, dissimulada. Mas, o que o drama recobre? Por quê? O que impede as Ideias de serem manifestas? Aquilo que Deleuze denomina “a imagem do pensamento”: “o pensamento conceitual filosófico tem como pressuposto implícito uma imagem do pensamento, préfilosófica e natural, tirada do senso comum, onde ocorre a atividade conjunta das faculdades”. Segundo essa imagem, “o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro. E é sobre esta imagem que cada um sabe, que se presume que cada um saiba o que significa pensar” (Deleuze, 1988, p. 218-219). A retirada do pensar do domínio do senso comum e da generalização pelo conceito é o que a Dramatização objetiva. Nisso consiste a primeira dimensão do método: uma dimensão crítica e genealógica, que destaca o recobrimento da parte dramática do pensamento, em detrimento de uma imagem pré-filosófica, dogmática e moral. Imagem que se instala antes de toda operação conceitual explícita, de todo

55

56

exercício de pensar, formando uma espécie de “inconsciente da filosofia”. Em função dela, é que não existe um verdadeiro começo em filosofia; pois, tal imagem, radicada no senso comum, é prévia ao pensamento e pré-julga tudo o que é produzido. Se a filosofia participa desse acobertamento dos “dramas das Ideias” é porque está interessada em manter uma relação essencial com o exercício concertado de todas as faculdades. Mas, o que esse exercício de acobertamento objetiva? A possibilidade de recognição, apenas. Para tanto, as faculdades são mobilizadas ao redor de um reconhecimento possível daquilo que é dado na experiência. Nesse sentido, a recognição é uma re-apresentação, sob a forma do Mesmo. Além disso, porque essa imagem é natural, não pode ser plural. Pode, até mesmo, conter expressões divergentes, em tal ou qual filósofo, mas é sempre unívoca, impondose como idêntica para cada um. Por isso, Deleuze (1988, p. 310) afirma que existe tão-somente uma imagem em geral, que constitui o pressuposto subjetivo da filosofia: “caráter inconsciente das Ideias”. Sendo assim, como os pesquisadores podem pôr em evidência aquilo que recobre a parte dramática do pensamento? Pela substituição de um certo tipo de questão por outras, que acompanham a filosofia desde Nietzsche. Ora, a forma paradigmática de questão, que fica no centro do senso comum, consiste em “Que é”? Esta é uma questão que procura menos uma direção para o pensamento do que a indução de determinado comportamento, em prol da igualação do não-igual. Recorrendo a Nietzsche, Deleuze (1991) propõe questões de outra ordem: “Quem”? “Quando”? “Como”? “Onde”? Não mais “O que é o justo”?, por exemplo; mas “Quem o é”? “Em que condições”? “Por quais operações”? Questões que obrigam o pensamento a sair do seu recobrimento, remetendo o conceito ao drama e à imagem dogmática (que é moral), localizando a Ideia na concretude de uma dada hora e de um certo lugar. Chegamos, assim, ao segundo componente do Método da Dramatização, não mais crítico ou genealógico, mas

exploratório e experimental. Não se trata de sair da imagem dogmática do pensamento, mas de introduzir-se no interior de um outro nível de Ideias e de solicitar, para o pensamento, as forças de uma terra incógnita jamais conhecida. A exploração desse espaço sub-representativo é o principal elemento do Método. Porém, o que constitui esse espaço? Não objetos, coisas ou indivíduos, e sim, dinamismos: “agitações do espaço, buracos do tempo, puras sínteses de velocidades, direções, ritmos”; “processos dinâmicos que determinam a atualização da Ideia” (Deleuze, 1988, p. 347). Não há, aqui, lugar para generalizações, sob o conceito, na forma de uma Urdoxa; e, sim, para os modos como esses dinamismos dramáticos produzem individuações. A individuação torna-se o problema central do Método; originando-se, daí, um espaço pré-individual, não tributário do modelo ou da lógica da representação, mas elaborado com puras intensidades heterogêneas, que formam séries, as quais se comunicam por meio do que Deleuze (1988, p. 132) denomina “precursores sombrios”. Essas séries são disparatadas e paradoxais; sua comunicação não se processa por correspondência ou identificação; mas pela relação de heterogêneos. Em síntese, no meio da individuação, desenhando fatores individuantes, encontram-se: o espaço, onde se organizam as intensidades; as séries paradoxais que elas formam; o precursor sombrio, que põe as séries em comunicação; os pares, as ressonâncias internas, os movimentos forçados, que seguem as intensidades; e os sujeitos larvares que aí proliferam. Enquanto consequência do Método da Dramatização, a individuação não visa nem deriva de um indivíduo, mas rejeita o ser individual, já que é este que se encontra no centro da imagem representacional; deriva de campos e de regimes de individuação, isto é, de uma realidade mais aberta e mais constitutiva do que o indivíduo; não é tomada como objeto de conhecimento, objeto conjunto de faculdades, mas experimentada; encontra-se na condição de que não sabemos como os sistemas paradoxais se comunicam, pois a questão

57

passa a ser de encontros e de avaliação imanente; em sua teorização, constitui uma forma de pragmatismo ou de empirismo superior ou transcendental. Especificamente, para Deleuze, nos anos 60, esse Método de Dramatização fornece as coordenadas para que o empirismo transcendental de sua filosofia se constitua, ao explorar as consequências de um de um pensamento da individuação, apartado do indivíduo. Pela Dramatização, a filosofia da diferença rompe com o pensamento enquanto um universal abstrato, atemporal, neutro, moralmente comprometido, sendo tramado por configurações de forças. A nova imagem do pensamento (ou um pensamento sem imagem) não é mais a do Verdadeiro e do Falso, mas a do sentido e do valor, de acordo com as forças que do pensamento se apoderam. A lógica é, assim, substituída por uma topologia e uma tipologia, sobre as quais se debruça a cartografia das forças. Pelo Método, um conceito só tem sentido porque alguém que o formula, pensa ou enuncia, quer algo, ao pronunciá-lo, pensá-lo, enunciá-lo; passando, assim, a ser uma atividade, a ter uma concretude, desenvolvida por um tipo, desde um certo ponto de vista, em função de circunstâncias, a partir de um dado lugar, etc. O pensamento que pensa a diferença é sintomatologista, ou seja, trata fenômenos, ideias, conceitos, como sintomas de uma relação de forças capaz de produzi-los, cada um realizando um sentido ou um valor. O Método de Dramatização é, assim, crítico e experimental: cria novos tipos; valoriza os modos minoritários de vida; abre novos espaços. Afinal, escreve Deleuze (1988, p. 310), “a Ideia não é o elemento do saber, mas de um ‘aprender’ infinito”.

O informe

58

Desde o Espírito e a Ideia, diante de AICE, o Método Valéry-Deleuze indaga: de onde surgem as formas? Como se dá o ato de ver, de falar, de interpretar, de escrever as Vidarbos, num não-lugar, numa não-relação? Como pensar do lado de-Fora (Foucault, 1990)? “O que é o ato de criação”?

“O que significa ter uma ideia”? “O que acontece quando alguém diz: tive uma ideia” (Deleuze, 2003, p. 291; 2008, p. 16; 1988, p. 215 segs.)? O que é o ato de pensar (ou de escrever ou de criar)? Será “deter-se, e depois partir novamente”? (Valéry, 2008, p. 70)? Em outras palavras: como é possível o surgimento do novo e a produção do Informe em educação? A gênese das formas é tratada pelas teorias dinâmicas do pensamento das ciências, das artes e da filosofia. Na história dessas Unitas multiplex (diz Valéry), encontra-mos: a embriologia e a robótica; a Naturphilosophie (naturalismo) e a ciência dos sistemas; o cognitivismo e a teoria da Gestalt; a epistemologia genética e o pensamento da complexidade; a gnosiologia e a filosofia da composição; a fenomenologia e a filosofia da diferença; a crítica genética, na teoria literária; entre outras (Lestocart, 2008; Willermat, 2009). Em que pese suas especificidades, tais teorias convergem no entendimento que o pensar depende mais de um processo do que do objeto considerado; mais de um método de criação do que de resultados; mais de experimentações do que da aplicação de teoria à prática; mais de problematizações do que de descobertas. Dessa maneira, trata-se de saberes-processos, derivados das pesquisas acerca do “elemento genético”, como “o diferenciador da diferença” (Machado, 2009, p. 311); os quais, comportam duas operações principais: crítico-genealógica e experimental-exploratória (Deleuze, 1991; 2006; Gaède, 1962, p. 245-309). O Método do Informe é tributário dessas pesquisas e, como tal, em face das quatro unidades analíticas de AICE, desenvolve uma morfogênese: cria fenômenos de organização para dar conta dos auto-engendramentos da forma; bem como dos momentos fecundos e movimentos virtuais do espírito humano, numa invenção recorrente de si e da realidade: “Todo filósofo, depois que terminou com Deus, com Si-Mesmo, com o Tempo, o Espaço, a Matéria, as Categorias e as Essências, volta-se para os homens e suas obras” (Valéry, 1998, p. 190-191). Método do cuidado de si, pois, ao desenvolvimento das técnicas, os pesquisadores

59

60

agregam o autoconhecimento da maquinaria complexa do espírito: “As ‘Ideias’” são “meios de transformação – e, por conseguinte, partes ou momentos de alguma mudança. Uma ‘ideia’ do homem ‘é um meio de transformar uma questão’” (Valéry, 1997, p. 123). Método, que varia “com cada autor” e faz “parte da obra” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 217), criado pelo fluxo de experiências renováveis, sensibilidade e ação das disposições sensório-motoras e capacidades intelectuais (Darriulat, 2007; Hayashi, 2010; Lestocart, 2010; Mastronardi, 1955). Método gerado por um pensamento-cérebro, auto-organizado pelo corpo, como afirma Bergson (1999, p. 13): “É o cérebro que faz parte do mundo material, e não o mundo material que faz parte do cérebro. Suprima a imagem que leva o nome de mundo material, você aniquilará de uma só vez o cérebro e o estímulo cerebral que fazem parte dele”; como replicam Deleuze e Guattari (1992, p. 259): “É o cérebro que pensa e não o homem, o homem sendo apenas uma cristalização cerebral”; e, como exemplifica Valéry (apud Mastronardi, 1955, p. 38): “A prosódia, por exemplo, é governada pelos pulmões e pela boca. As ideias gerais não têm nada a fazer ali dentro”. Método cerebral, cuja condição necessária é um plano de práticas, que faz advir o sentido, o valor e o possível de um corpo, a partir de processos definidos, por meio dos quais os pesquisadores implicam-se na vasta rede dos elementos informes das forças de-Fora: mundo feito de significações pré-linguísticas; agitador de interações violentas com o pensamento; que evolui em permanência e forma novos mundos (Heuser, 2010, p. 81 segs.; Machado, 2009, p. 161 segs.). Logo, Método formalista do Informe, que desenvolve um funcionalismo dos pontos singulares do processo de vida: “método concreto”, “serial: “muito rigoroso em seu conjunto”; “fundado sobre as singularidades e as curvas”; “totalmente diferente do método de teses”; e, ainda, “método” ou “princípio de Foucault”, para o qual, “toda forma é um composto de relações de forças” (Deleuze, 1991, p. 28-29; p. 31; p. 34; p. 50-51; p. 86; p. 132; p. 134; p. 137-138). Método

das forças de AICE, que engendra uma poiesis de infância, docência, currículo, literatura educacional, nos cruzamentos com a filosofia, a arte e a ciência; via procedimentos, personagens e paisagens, derivados de um “pensamentoconquista” (não dádiva), para o qual: “até aqui, o acaso ainda não foi eliminado dos atos; o mistério, dos procedimentos; a embriaguez, dos horários; mas não garanto nada” (Valéry, 2003, p. 42).

Os olhos e a voz (Deleuze) Embora toda forma estratificada de saber seja precária, pois “depende das relações de forças e de suas mutações”, Deleuze (1991) a toma em dois sentidos: na organização (ou formação) de matérias e na finalização (ou formação) de funções. Nos estratos e em seus agenciamentos concretos – dispositivos, para Foucault –, há formações discursivas de enunciados e formações não-discursivas de visibilidades (luz e linguagem). Essas matérias formadas e funções formalizadas reduzem a multiplicidade, restringem-na a espaços determinados, impõem-lhe condutas. Embora existam correspondências entre formas de conteúdo e de expressão, elas são irredutíveis umas às outras (Foucault, 1988). Como podemos então explicar a sua co-adaptação? Determinando um conjunto de relações de forças (de poder), num elemento não-estratificado – como “abertura do futuro” –, as formas, em que as matérias fluentes e as funções difusas se encarnam, podem ser abstraídas. Não há mais, aí, o arquivo áudio-visual, de segmentaridade rígida ou flexível; mas puras matérias, não-formadas, não organizadas, com receptividade de ser afetadas; e puras funções, não-formalizadas, não-finalizadas, com espontaneidade de afetar. Existe, nesse caso, o “diagrama informal” (mapa, cartografia, phylum), que ignora as distinções entre ver e dizer; opera em pontas de descodificação e desterritorialização; jamais esgota suas forças (“móveis, evanescentes, difusas”), levando-as a entrarem em outras relações, desde que o seu devir não se confunde com a história das formas: “o devir,

61

62

a mudança, a mutação concernem às forças componentes e não às formas compostas” (Deleuze, 1991, p. 78 segs.; Deleuze e Guattari, 1997, p. 227-232). Como máquina abstrata, imanente, singular, criativa – “quase muda e cega, embora seja ela que faça falar e ver” (Deleuze, 1991, p. 44) –, o diagrama é multiplicidade espaço-temporal: real, sem ser concreto; atual, mesmo que não efetuado; datado, nomeado, co-extensivo a todo corpo social. Enquanto “causa imanente não-unificadora”, age nos interstícios das máquinas materiais (agenciamentos concretos, territoriais) e os abre para a microfísica, o molecular, o cósmico, os devires. Porém, mesmo agindo no informe, a distinção entre variáveis de conteúdo e de expressão mantém-se; só que, desta vez, tal distinção é recriada no estado de traços: “traços de conteúdo (matérias não formadas ou intensidades)”, que arrastam a matériamovimento (não matéria morta, bruta, homogênea); e “traços de expressão (funções não formais, tensores)”, que arrastam a expressividade-movimento (Deleuze e Guattari, 1997, p. 218-220; p. 228-229). Altamente instável e fluido, o diagrama não cessa de formar matérias visíveis e de formalizar funções enunciáveis, isto é, “de misturar matérias e funções de modo a constituir mutações”. Age desse modo não para representar um mundo já existente, mas para produzir novos mundos, realidades, verdades. É que o diagrama não “é sujeito da história nem a supera. Faz a história, desfazendo as realidades e as significações anteriores, formando um número equivalente de pontos de emergência ou de criatividade, de conjunções inesperadas, de improváveis continuuns”. Para os agenciamentos formais, há história; enquanto para os diagramas informes, há devir e mutações, como afirma Deleuze (1991, p. 45; p. 124): “Considerando-se o saber como problema, pensar é ver e falar, mas pensar se faz no entremeio, no interstício ou na disjunção do ver e do falar. É, a cada vez, inventar o entrelaçamento, lançar uma flecha de um contra o alvo do outro, fazer brilhar um clarão de luz nas palavras, fazer ouvir um grito nas coisas visíveis”.

Os olhos e a mão (Valéry) Pensar o Informe, para Valéry (2003), é ver que há “coisas – manchas, massas, contornos, volumes – que têm, de alguma maneira, somente uma existência de fato”. São coisas percebidas, mas não conhecidas, que não podem ser reduzidas a uma lei única; nem ter o todo deduzido de suas partes; tampouco ser reconstruídas por operações racionais. O pensamento do Informe é dado pela distância entre intelecto e sensação, entre uma visão habitual e uma visão vazia: “uma obra de arte deveria sempre nos ensinar que não tínhamos visto o que vemos”. Quando os pesquisadores vêem, por meio do intelecto, o erro reside na pressa de atingir o conceito: “a maioria das pessoas vê aí com muito mais frequência com o intelecto do que com os olhos. Em vez de espaços coloridos, tomam conhecimento de conceitos”. As formas nascem, bergsonianamente, do movimento, ou seja, “há uma passagem para os movimentos em que as formas se transformam, com a ajuda de uma simples variação do tempo de duração” (Valéry, 1998, p. 33-35; p. 43). Passagem que provém de duas ações opostas, embora complementares: a desconstrução e a reconstrução do olhar puro sobre as coisas, cuja única propriedade é ocupar lugar no espaço, e que podem ser classificadas conforme a facilidade ou a dificuldade que oferecem à compreensão: “Eis-me aqui, diz o construtor, sou o ato” (Valéry, 2003, p. 103). O Informe nada mais é do que essa ação de começar pelo começo, por um ponto de partida não-significativo da percepção, pelo qual se apreendem fenômenos ainda não interpretados; sentidos não atribuídos; valores não acrescentados ou associados: o Real de Grau Zero. No primeiro procedimento do mecanismo de ver o informe, são acumulados elementos de contato de uma determinada forma, adquirindo-se, ponto por ponto, o conhecimento e a unidade de um corpo regular. O olhar (cego) esquece o nome das coisas, não se endereça a ninguém, não emite pré-julgamentos. O ver se faz acompanhar pela ação de tocar, mesmo que esta ação não antecipe a sensação

63

64

empírica, em função da primazia da mecânica cerebral que opera sobre o verificável. Porque os pesquisadores percebem o Informe, acabam construindo sua própria visão, a partir dos toques realizados; porque não o compreendem com o auxílio do conhecimento, vê-lo requer que se demorem na sensação que dele têm. No segundo procedimento, eles fazem intervir a colaboração do seu corpo: “A vontade não pode atuar no espírito, sobre o espírito, a não ser indiretamente, por intermédio do corpo” (Valéry, 1998, p. 123). Se o Informe é sempre visto pela primeira vez, por ser singular, quanto mais é expresso de maneira própria, mais singular se torna. Ao encarnar a visão sobre um suporte, com a mão, os pesquisadores reconstroem, outra vez, a sua visão; ao passar da sensação visual e tracejamento mental ao trabalho manual, tornam precisa sua percepção; já que não podem desenhar alguma coisa “sem uma atenção voluntária que transforme de forma notável” o que antes acreditavam “perceber e conhecer bem”. Através do desenho, o Informe parece tomar uma forma fixa. Os pesquisadores descobrem, então, que ignoravam aquilo que viam ou que nunca o tinham visto antes: “Há uma imensa diferença entre ver uma coisa sem o lápis na mão e vê-la desenhando-a. Ou melhor, são duas coisas muito diferentes que vemos. Até mesmo o objeto mais familiar a nossos olhos torna-se completamente diferente se procurarmos desenhá-lo” (Valéry, 2003, p. 69). Porém, desenhar o Informe é sempre fixá-lo? Certamente não, pois mesmo o objeto próximo torna-se outro, se for desenhado: a mão também guia a visão, como um diálogo entre o Eu que vê e o Eu que desenha: “O filósofo não concebe facilmente que o artista passe de maneira quase indiferente da forma ao conteúdo e do conteúdo à forma; que lhe ocorra uma forma antes do sentido que dará a ela, nem que a idéia de uma forma seja igual para ele à idéia que requer uma forma”. É que, “talvez só concebamos bem o que tivermos inventado” (Valéry, 1998, p. 203; p. 205). Esses dois procedimentos do Informe são, ainda, produtos do acaso, por trazerem a desordem de algo des-

dobrado: os pesquisadores vêem, pela primeira vez e de uma vez por todas; suprimem objetos de referência; lançam, sobre algum suporte, não só o que vêem, mas também aquilo que querem fazer ver. Criam algo, em suma, constituído por sua visão e vontade de expressão; não como aqueles fotógrafos que buscam a representação exata das coisas vistas, mas como pintores que desenham. A inflexão ou o retorno ao Informe constitui, dessa maneira, uma virada em direção a um estado original da percepção e à expressão primitiva de traços, retrabalhados por séries mentais. O valor do “artista essencialmente artista” reside na singularidade da sua maneira de ver e de traçar. Como Degas diz a Valéry: o desenho não é a forma e sim “o modo de ver a forma”; “emanação de vida mais do que a forma” (Valéry, 2003, p. 95; p. 119; p. 122).

Tensões, efeitos e real Posto isso, resta ainda pensar: digamos que, acerca do Método Valéry-Deleuze esteja tudo bem, até aqui. Mas, afinal, o que é o bloco AICE? Quem é AICE disposto nos textos e nas existências? Como e onde vivem as subjetividades dispersas de AICE? O que querem esses Eus, enquanto superfícies feridas por punctuns? Quando agem e sentem essas puras contingências, essas flechas que ferem e sobressaltam, que fazem inscrições de instantes (Barthes, 1984, p. 69; Lira, 2006, p. 101)? Como selecionar, de AICE, alguns infantis, autores, currículos, educadores, e não outros? Um último esforço, leitores. Desde o início, os pesquisadores têm consciência que AICE não é gênero, espécie, instituição, território, sujeito; nos quais estariam contidas a sabedoria do mundo, a realidade da vida ou a verdade da educação. Autores, infantis, currículos, educadores não experimentam sua infância, docência, escrileitura e artistagens, como espelhos da realidade, mas enquanto maneiras singulares de estar e de viver no mundo. Ainda mais, os pesquisadores não agem acreditando que chegariam à vida verdadeira ou à obra legítima de algum Autor,

65

66

Currículo, Infantil ou Educador; nem que suas pesquisas poderiam garantir a eternidade, retratar algum filão heróico, dispor a moral, impor uma ordem obrigatória, atingir qualquer finalidade salvadora ou suprir ânsias epistêmicas. AICE vale por seu conteúdo e expressividade: não individuado, impessoal, sem maiúsculas, material comum, moldado pelo próprio espírito dos pesquisadores. Se AICE propõe enigmas, multiplicam-se seres estranhos, que forçam os pesquisadores a construir um método, para investigar o luminoso disfarce da sua complexidade. Através do Método do Informe, aliado a ações biografemáticas, usando estilhaços de linguagem e flocos de sensações, eles traçam AICE, com vincos das vidas-obras; marcas de incidentes; coleta de detalhes insignificantes; personagens foscos; virtualidades de significação; “coisas que caem, sem choque, e, no entanto com um movimento que não é infinito” (Barthes, 2004, p. 284; p. 283). Do bloco AICE, os pesquisadores selecionam alguns infantis, autores, currículos, educadores, de maneira elíptica, isto é: por amizade, relações de afectos, gosto filosófico, inteligibilidade do desejo. Para isso, nas ruas de suas pesquisas, andam, como flâneurs, atentos a tudo e a todos, que povoam o meio AICE: curiosos e sensíveis, com apetite voraz, alimentando-se das obras-vidas, revelando as próprias em suas escolhas e composições, expressando-as nas artes. As Vidarbos de AICE, que daí resultam, não são expressão do vivido, nem este é expressão daquelas; tampouco explicam a obra pela vida, ou vice-versa; e, sim, consistem em pólos de uma relação do textual e do biográfico, “um delicado jogo bio/gráfico” (Chelebourg, 2000, p. 115; Maingueneau, 1995, p. 46). Posicionando-se nesses pontos de convergência entre o biográfico e o literário, os pesquisadores capturam forças imaginárias, fantasísticas e intelectuais, que os conduzem ao trabalho criador. Definitivamente, por definição e prática, o Método Valéry-Deleuze faz ficção; aliás, como toda ação humana; não podendo não fazê-la. Mesmo assim, ou, talvez, por isso mesmo, as pesquisas de AICE têm a responsabilidade de

produzir efeitos de Real no mundo. Acabam formando um palimpsesto vitalmente atlético, provando que, com “as coisas intelectuais, fazemos ao mesmo tempo teoria, combate crítico e prazer; submetemos os objetos de saber e de dissertação – como em qualquer arte – não mais a uma instância de verdade, mas a um pensamento dos efeitos” (Barthes, 2003, p. 105). Teremos criado, assim, um romanesco, na Comédia Intelectual ou Drama do Espírito em Educação. Ou, melhor de tudo: um Romance de Formação do Intelecto em Educação.

Referências ADÓ, Máximo Daniel Lamela. Comédia intelectual da educação: filosofia, literatura, currículo. Proposta de Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010. 77 p. BARBOSA, João Alexandre. Permanência e continuidade de Paul Valéry. In: VALÉRY, Paul. Variedades. (Trad. João Alexandre Barbosa.) São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 9-17. _____. A biblioteca imaginária. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996. BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. (Trad. Júlio Castañon Guimarães.) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. _____. Crítica e verdade. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Perspectiva, 2003. _____. O grão da voz: entrevistas, 1961-1980. (Trad. Mario Laranjeira.) São Paulo: Martins Fontes, 2004. BERGSON, Henry. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. (Trad. Paulo Neves.) São Paulo: Martins Fontes, 1999. _____. O pensamento e o movente: ensaios e conferências. (Trad. Bento Prado Neto.) São Paulo: Martins Fontes, 2006. CALVINO, ÍTALO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. (Trad. Ivo Cardoso.) São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CHELEBOURG, Christian. L’imaginaire littéraire: des archetypes à la poétique du sujet. Paris: Nathan, 2000. CORAZZA, Sandra Mara. Diga-me com quem um currículo anda e te direi quem ele é. In: _____ (Org.). Fantasias de escritura: filosofia, educação, literatura. Porto Alegre: Sulina, 2010a, p. 143-171. _____. Introdução ao método biografemático. In: COSTA, Luciano Bedin da; FONSECA, Tania Mara Galli (Orgs.). Vidas do fora: habitantes do silêncio. Porto Alegre: Editora, 2010b, p. 85-107.

67

CORAZZA, Sandra Mara.. Pedagogia dos sentidos: a infância informe no método Valéry-Deleuze. In: KOHAN, Walter Omar (Org.). Devir-criança da filosofia: infância da educação . Belo Horizonte: Autêntica, 2010c, p. 81-94. COSTA, Cristiano Bedin da. Programa Fante: experimentação biografemática de um corpo estrangeiro. Proposta de Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010. 91 p. COSTA, Luciano Bedin da. O biografema como estratégia biográfica: escrever uma vida com Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry Miller. (Tese de Doutorado.) Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010, 188 p. DARRIULAT, Jacques. La poïetique de Paul Valéry. In: pohttp://www.jdarriulat. net/Auteurs/Valery/ValeryIndex.html (Mis en line le 29 octobre 2007.) (Utilizado em 07 julho 2010.) DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado) Rio de Janeiro: Graal, 1988. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. (Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias.) São Paulo: Brasiliense, 1991. _____. Crítica e clínica. (Trad. Peter Pál Pelbart.) São Paulo: Ed. 34, 1997. _____. Lógica do sentido. (Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes.) São Paulo: Perspectiva, 1998. _____. Bergsonismo. (Trad. Luiz B. L. Orlandi.) São Paulo: Ed.34, 1999. _____. “Qu’est-ce que l’acte de création”? In: ___. Deux régimes de fous. Textes et entrétiens 1975-1995. Paris: Minuit, 2003, p. 291-302. _____. A imagem-tempo. (Cinema 2) (Trad. Eloisa de Araujo Ribeiro.) São Paulo: Brasiliense, 2005. _____. A ilha deserta: e outros textos. (Trad. Luiz B.L. Orlandi, coord.) São Paulo: Iluminuras, 2006. _____. La imagem-movimiento: estudios sobre cine (I). (Trad. António Lopez Ruiz.) Buenos Aires: Paidós, 2008. _____; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. (Trad. Júlio Castanõn Guimarães.) Rio de Janeiro: Imago, 1977. _____; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. (Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa.) Rio de Janeiro: Ed.34, 1997. _____;GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz.) Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. FEIL, Gabriel Sausen. Procedimento erótico, na formação, ensino, currículo. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2011. FLAUBERT, Gustave. Le dictionnaire des idées reçues suivi du Catalogue des idées chic. Paris: Le Livre de Poche Classique, 1997.

68

_____. Bouvard et Pécuchet. Paris: Pocket, 1999.

FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. (Trad. Jorge Coli.) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. _____. O pensamento do exterior. (Trad. Jaime Salomão.) São Paulo: Princípio, 1990. GAÈDE, Édouard. Nietzsche et Valéry. Essai sur la comédie de l’esprit. Paris : Gallimard, 1962. GONÇALVES, Aguinaldo. Paul Valéry: o alquimista do espírito. In VALÉRY, Paul. Variedades. (Trad. João Alexandre Barbosa.) São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 222-230. HAYASHI, Naoko. La reconstrucion de la vision devant l’informe chez Valéry – à travers deux actes, voir et dessiner. In: www.let.osaka-u.ac.jp/france/gallia/ texte/36/36hayashi.pdf (Utilizado em junho de 2010.) HEUSER, Ester Maria Dreher. Pensar em Deleuze: violência e empirismo no ensino da filosofia. Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2010. LESTOCART, Louis-José. Paul Valéry: l’acte litteraire comme pensée de la complexité. In: http://www.tribunes.com/tribune/alliage/59/page8/page8.html (Utilizado em junho de 2010.) LIRA, José. Emily Dickinson e a poética da estrangeirização. Recife, PE: Programa de Pós-Graduação em Letras, UFPE, 2006. MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. (Trad. Maria Appenzeller.) São Paulo: Martins Fontes, 1995. MASTRONARDI, Carlos. Valéry o la infinitud del método. Buenos Aires: Raigal, 1955. MAUROIS, André. Introdução ao método de Paul Valéry. (Trad. Fábio Lucas.) Campinas, SP: Pontes, 1990. OLIVEIRA, Marcos da Rocha Oliveira. Biografemática do homo quotidianus: o Senhor Educador. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010. 169 p. PIMENTEL, Brutus Abel Fratuce. Paul Valéry. Estudos filosóficos. (Tese de Doutorado.) São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008. 187p. REYS, Pierre-Louis. “Regards critiques: le gouffre de la bêtise humaine”. In: FLAUBERT, Gustave. Bouvard et Pécuchet. Paris: Pocket, 1999, p. 407-411. VALÉRY, Paul. Cahiers Paul Valéry. Paris: Seuil, 1931. _____. O pensamento vivo de Descartes. Apresentado por Paul Valéry. (Trad. Sérgio Milliet.) São Paulo: Livraria Martins Editora, 1965. _____. Cahiers Paul Valéry 2. Mes théâtres. Paris: Gallimard, 1977. _____. Eupalinos ou O arquiteto. (Trad. Olga Reggiani.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.

69

VALÉRY, Paul. Monsieur Teste. (Trad. Cristina Murachco.) São Paulo: Ática, 1997. _____. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. (Trad. Geraldo Gérson de Souza.) São Paulo: Ed. 34, 1998. _____. Degas, dança, desenho. (Trad. Christina Murachco e Célia Euvaldo.) São Paulo: Cosak & Naify, 2003. _____. Eupalinos. L’âme et la danse. Dialogue de l’arbre. Paris: Gallimard, 2008. WILLERMAT, Philippe. Os processos de criação na escritura, na arte e na psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2009.

70

PEDAGOGIA DOS SENTIDOS: a infância informe no método Valéry-Deleuze3

3

O barro Nossa espécie é pesada. Suas criaturas são carregadas de formas. Vivemos de alguma forma. Pensamos conceitos que sintetizam formas. Calculamos formas. Tateamos para reconhecer formas. Cheiramos formas. Ouvimos alguma forma. Entramos ou saímos de forma. Estamos ou não em forma. Pelas formas, somos informados. Formas nos igualam. Encurtam caminhos. Garantem a comunicação. Apaziguam conflitos. Até nos alegram. Formas são odes do espírito humano à facilidade. É possível produzir uma enciclopédia só com formas. Porém, nem sempre foi assim. Houve um tempo em que fazíamos “deuses de pedra ou de madeira que nem mesmo se assemelhavam aos homens; alimentávamos, veneravámos essas imagens que eram imagens apenas de muito longe; e o fato digno de nota é que, quanto mais informes eram, mais foram adoradas, o que se observa também no trato das crianças com suas bonecas e dos amantes com suas amadas, e que é uma característica profundamente significativa. (Talvez acreditemos receber de um objeto tanto mais vida quanto mais vida somos obrigados a dar-lhe)” (Valéry, 1998, p. 209). Além disso, se você acha que “o barro toma a forma que você quiser”; “você nem sabe estar fazendo apenas o que o barro quer” (Leminski, 1983).

3

Texto publicado, em 2010, no livro Devir-criança da filosofia: infância da educação, organizado por Walter Omar Kohan, Editora Autêntica, Belo Horizonte, (p. 81-94); e, em 2011, com título abreviado, no livro Pesquisa, políticas e formação de professores: distintos olhares, organizado por Betina Hillesheim, Felipe Gustsack e Moacir Fernando Viegas, Editora UNISC, Santa Cruz do Sul, RS (p. 159-179).

71

O ato

72

De onde surgem as formas? Como se dá o ato de ver, de falar, de interpretar, de escrever num não-lugar, numa não-relação? Como pensar do lado de-Fora (Foucault, 1990)? “O que é o ato de criação”? “O que significa ter uma idéia”? “O que acontece quando alguém diz: tive uma idéia” (Deleuze, 2003, p. 291; 1994, p. 16; 1988, p. 215 segs.)? “O que é o ato de pensar (ou de escrever ou de criar)”? Será “deter-se, e depois partir novamente”? (Valéry, 2008, p. 70)? Em outras palavras: como é possível o surgimento do novo e a produção do informe? A genética das formas é tratada pelas teorias dinâmicas do pensamento das ciências, das artes e da filosofia. Na história dessa Unitas multiplex (diria Valéry), encontramos: a Embriologia e a Robótica; a Naturphilosophie (Naturalismo) e a Ciência dos Sistemas; o Cognitivismo e a Teoria da Gestalt; a Epistemologia Genética e o Pensamento da Complexidade; a Gnosiologia e a Filosofia da Composição; a Fenomenologia e a Filosofia da Diferença; entre outras (Lestocart, 2008). Tais teorias convergem no entendimento que o pensar depende mais de um processo do que do objeto considerado; mais de um método de criação do que de resultados; mais de experimentações do que da aplicação de teoria à prática; mais de problematizações do que de descobertas. Dessa maneira, trata-se de um saber-processo, derivado da pesquisa do “elemento genético”, como “o diferenciador da diferença” (Machado, 2009, p. 311), a qual comporta duas operações principais: crítico-genealógica e experimentalexploratória (Deleuze, 1976; 2006; Gaède, 1962, p. 245-309). O Método Valéry-Deleuze, que aqui nos ocupa, é tributário dessas pesquisas e, como tal, diante da infância, desenvolve uma morfogênese: cria fenômenos de organização para dar conta dos auto-engendramentos da forma; bem como dos momentos fecundos e movimentos virtuais do espírito humano, numa invenção recorrente de si e da realidade. – “Todo filósofo, depois que terminou com Deus, com SiMesmo, com o Tempo, o Espaço, a Matéria, as Categorias e

as Essências, volta-se para os homens e suas obras” (Valéry, 1998, p. 190-191). Método do cuidado-de-si, já que, ao desenvolvimento das técnicas agrega o autoconhecimento da maquinaria complexa do espírito: “As ‘Ideias’” são “meios de transformação – e, por conseguinte, partes ou momentos de alguma mudança. Uma ‘idéia’ do homem ‘é um meio de transformar uma questão’” (Valéry, 2007, p. 123). Método que varia “com cada autor” e faz “parte da obra” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 217), criado pelo fluxo de experiências renováveis, sensibilidade e ação das disposições sensório-motoras e capacidades intelectuais: linguagem, raciocínio, coordenação, planificação, explicação, cálculo, medição, compreensão, notação, operações lógicas, relações simbólicas, geometria das imagens, acordos e contrastes racionais, seqüências infinitas, equivalências, repetições, variações (Darriulat, 2007; Hayashi, 2010; Lestocart, 2010; Mastronardi, 1955). Método gerado por um pensamentocérebro, auto-organizado pelo corpo, como afirma Bergson (1999, p. 13): “É o cérebro que faz parte do mundo material, e não o mundo material que faz parte do cérebro. Suprima a imagem que leva o nome de mundo material, você aniquilará de uma só vez o cérebro e o estímulo cerebral que fazem parte dele”; como replicam Deleuze e Guattari (1992, p. 259): “É o cérebro que pensa e não o homem, o homem sendo apenas uma cristalização cerebral”; e como exemplifica Valéry (apud Mastronardi, 1955, p. 38): – “A prosódia, por exemplo, é governada pelos pulmões e pela boca. As ideias gerais não têm nada a fazer ali dentro”. Método cerebral, cuja condição necessária é um plano de práticas, que faz advir o sentido, o valor e o possível de um corpo, a partir de processos definidos, por meio dos quais nos implicamos na vasta rede dos elementos informes das forças do mundo de-Fora: feito de significações pré-linguísticas; agitador de interações violentas com o pensamento; que evolui em permanência e forma novos mundos (Heuser, 2010, p. 81 segs.; Machado, 2009, p. 161 segs.). Método formalista, que desenvolve um novo funcionalismo dos pontos singulares do processo de vida: “método

73

concreto”, “serial: “muito rigoroso em seu conjunto”; “fundado sobre as singularidades e as curvas”; “totalmente diferente do método de teses”; e, ainda, “método” ou “princípio de Foucault”, para o qual, “toda forma é um composto de relações de forças” (Deleuze, 1991, p. 28-29; p. 31; p. 34; p. 50-51; p. 86; p. 132; p. 134; p. 137-138). Método das forças, que engendra uma poiesis de infância, no cruzamento entre filosofia, arte e ciência, via procedimentos, personagens e paisagens derivados de um pensamento-conquista (não dádiva), para o qual: “até aqui, o acaso ainda não foi eliminado dos atos; o mistério, dos procedimentos; a embriaguez, dos horários; mas não garanto nada” (Valéry, 2003, p. 42).

O informe Os olhos, a voz

74

Para Deleuze (1991), no livro Foucault, embora toda forma (estratificada de saber) seja precária, pois “depende das relações de forças e de suas mutações”, ela é dita em dois sentidos: na organização (ou formação) de matérias; na finalização (ou formação) de funções. Temos, assim, nos estratos e em seus agenciamentos concretos – que Foucault denomina dispositivos –, formações discursivas de enunciados e formações não-discursivas de visibilidades: enunciável e visível; luz e linguagem; ver e falar. Essas matérias formadas e funções formalizadas servem para reduzir a multiplicidade humana, restringir-lhe a espaços determinados e imporlhe condutas. Embora haja correspondência entre elas, as duas formas (de conteúdo e de expressão) são irredutíveis (Foucault, 1988). Como então, indaga Deleuze, explicar sua co-adaptação? Por meio da determinação de um conjunto de relações de forças (ou de poder), num elemento não-estratificado – como o seu lado de-Fora, enquanto “abertura do futuro” –, abstraímos as formas em que as matérias fluentes e as funções difusas se encarnam. Não encontramos mais o arquivo áudio-visual (de segmentaridade rígida ou mais flexível), mas puras matérias (não-formadas, não organizadas: recep-

tividade de ser afetado) e puras funções (não-formalizadas, não-finalizadas: espontaneidade de afetar). Ou seja, nos deparamos com o “diagrama informal” (mapa, cartografia, phylum), que ignora as distinções entre o ver e o dizer; opera em pontas de descodificação e de desterritorialização; jamais esgota suas forças (“móveis, evanescentes, difusas”), levando-as a entrarem em outras relações, desde que o seu devir não se confunde com a história das formas: “o devir, a mudança, a mutação concernem às forças componentes e não às formas compostas” (Deleuze, 1991, p. 78 segs.; Deleuze e Guattari, 1997, p. 227-232). Como máquina abstrata (imanente, singular, criativa) – “quase muda e cega, embora seja ela que faça falar e ver” (Deleuze, 1991, p. 44) –, o diagrama é multiplicidade espaço-temporal: real, sem ser concreto; atual, mesmo que não efetuado; datado, nomeado, co-extensivo a todo corpo social. Enquanto “causa imanente não-unificadora”, age nos interstícios das máquinas materiais (agenciamentos concretos, territoriais) e os abre para a microfísica, o molecular, o cósmico, os devires. Porém, mesmo agindo no informe, mantém a distinção entre variáveis de conteúdo e de expressão; só que, desta vez, tal distinção é recriada no estado de traços: “traços de conteúdo (matérias não formadas ou intensidades)”, que arrastam a matéria-movimento (não matéria morta, bruta nem homogênea); e “traços de expressão (funções não formais ou tensores)”, que arrastam a expressividade-movimento (não metalinguagem sem sintaxe) (Deleuze e Guattari, 1997, p. 218-220; p. 228-229). Altamente instável e fluido, o diagrama não cessa de formar matérias visíveis e de formalizar funções enunciáveis, isto é, “de misturar matérias e funções de modo a constituir mutações”. Age desse modo não para representar um mundo já existente, mas para produzir novos mundos, novas realidades, novas verdades. É que o diagrama não “é sujeito da história nem a supera. Faz a história desfazendo as realidades e as significações anteriores, formando um número equivalente de pontos de emergência ou de criatividade, de conjunções inesperadas, de improváveis

75

continuuns. Ele duplica a história com o devir”. Por isso, para os agenciamentos formais, há história; enquanto para os diagramas informes, há devir e mutações. – “Considerandose o saber como problema, pensar é ver e falar, mas pensar se faz no entremeio, no interstício ou na disjunção do ver e do falar. É, a cada vez, inventar o entrelaçamento, lançar uma flecha de um contra o alvo do outro, fazer brilhar um clarão de luz nas palavras, fazer ouvir um grito nas coisas visíveis” (Deleuze, 1991, p. 45; p. 124).

Os

76

olhos, a mão

Pensar o informe, para Valéry (2003), no livro Degas Dança Desenho, é ver que há “coisas – manchas, massas, contornos, volumes – que têm, de alguma maneira, somente uma existência de fato”. São coisas percebidas, mas não conhecidas, que não podem ser reduzidas a uma lei única; nem ter o todo deduzido de suas partes; tampouco ser reconstruídas por operações racionais. O pensamento do informe é dado pela distância entre intelecto e sensação, entre uma visão habitual e uma visão vazia: “uma obra de arte deveria sempre nos ensinar que não tínhamos visto o que vemos”. Quando vemos, por meio do intelecto, nosso erro reside na pressa de atingir o conceito: “a maioria das pessoas vê aí com muito mais freqüência com o intelecto do que com os olhos. Em vez de espaços coloridos, tomam conhecimento de conceitos”. As formas nascem do movimento, ou seja, “há uma passagem para os movimentos em que as formas se transformam, com a ajuda de uma simples variação do tempo de duração” (Valéry, 1998, p. 33-35; p. 43). Passagem que provém de duas ações opostas, embora complementares: a desconstrução e a reconstrução do olhar puro sobre coisas, cuja única propriedade é ocupar lugar no espaço e que podem ser classificadas conforme a facilidade ou a dificuldade que oferecem à compreensão: “Eis-me aqui, diz o construtor, sou o ato” (Valéry, 2003, p. 103). O informe nada mais é do que a ação de começar pelo começo, por

um ponto de partida não-significativo da percepção, pelo qual apreendemos fenômenos ainda não interpretados; sentidos não atribuídos; valores não acrescentados ou associados: o Real de Grau Zero. No primeiro procedimento do mecanismo de ver o informe, acumulamos elementos de contato de uma determinada forma, adquirindo, ponto por ponto, o conhecimento e a unidade de um corpo regular. Nosso olhar (cego) esquece o nome das coisas, não se endereça a ninguém, não emite pré-julgamentos. O ver se faz acompanhar pela ação de tocar; mesmo que esta ação não antecipe a sensação empírica, em função da primazia da mecânica cerebral que opera sobre o verificável. Porque percebemos o informe, acabamos construindo nossa própria visão, a partir dos toques realizados; porque não o compreendemos com o auxílio do conhecimento, vê-lo requer que nos demoremos na sensação que dele temos. No segundo procedimento, fazemos intervir a colaboração do corpo, do olho, da mão: “A vontade não pode atuar no espírito, sobre o espírito, a não ser indiretamente, por intermédio do corpo” (Valéry, 1998, p. 123). Se o informe é sempre visto pela primeira vez, por ser singular – algo único, que não foi visto jamais, e que não se parece com nada conhecido –, quanto mais o expressamos da nossa maneira, mais singular ele se torna. Ao encarnar a visão sobre um suporte (folha, areia, tela), com a mão (caneta, pincel, pena), reconstruímos, outra vez, nossa visão; ao passar da sensação visual e tracejamento mental ao trabalho manual, tornamos precisa nossa percepção; já que não podemos desenhar alguma coisa “sem uma atenção voluntária que transforme de forma notável” o que antes acreditávamos “perceber e conhecer bem”. Através do desenho, o informe parece tomar uma forma fixa. Descobrimos, então, que ignorávamos alguma coisa ou que nunca a havíamos visto antes: “Há uma imensa diferença entre ver uma coisa sem o lápis na mão e vê-la desenhando-a. Ou melhor, são duas coisas muito diferentes que vemos. Até mesmo o objeto mais familiar a nossos olhos tornase completamente diferente se procurarmos desenhá-lo”

77

(Valéry, 2003, p. 69). Porém, desenhar o informe é sempre fixá-lo? Certamente não, pois mesmo o objeto próximo torna-se outro, se nos aplicamos a desenhá-lo: a mão também guia a visão, como um diálogo entre o Eu que vê e o Eu que desenha: “O filósofo não concebe facilmente que o artista passe de maneira quase indiferente da forma ao conteúdo e do conteúdo à forma; que lhe ocorra uma forma antes do sentido que dará a ela, nem que a idéia de uma forma seja igual para ele à idéia que requer uma forma”. É que, “talvez só concebamos bem o que tivermos inventado” (Valéry, 1998, p. 203; p. 205). – Deleuze e Guattari (1992, p. 250) afirmam: “A pintura é pensamento: a visão existe pelo pensamento, e o olho pensa”. Esses dois procedimentos do informe são, ainda, produtos do acaso, por trazerem a desordem de algo desdobrado: vemos pela primeira vez e de uma vez por todas; suprimimos objetos de referência; lançamos, sobre algum suporte, não só o que vimos, mas também aquilo que queremos fazer ver. Criamos algo, em suma, constituído por nossa visão e vontade de expressão; não como aqueles fotógrafos que buscam a representação exata das coisas vistas, mas como pintores que desenham. A inflexão ou o retorno ao informe constitui, dessa maneira, uma virada em direção a um estado original da percepção e à expressão primitiva de traços, retrabalhados por séries mentais. O valor do “artista essencialmente artista” reside na singularidade da sua maneira de ver e de traçar. Como Degas diz a Valéry: o desenho não é a forma e sim “o modo de ver a forma”. – “Emanação de vida mais do que a forma” (Valéry, 2003, p. 95; p. 119; p. 122).

O método Com Valéry e Deleuze, dispomos um método (poiético) do informe, o qual, mesmo com o sacrificio de seus matizes, pode articular-se como segue.

78

1. Educação profunda. Se as “tradições ou práticas escolares não nos impedissem de enxergar o que é

e não reunissem os tipos de espírito segundo seus modos de expressão, em vez de reuni-los pelo que têm a expressar, uma História Única das Coisas do Espírito substituiria as histórias da Filosofia, da Arte, da Literatura e das Ciências”. Nessa história, uma “educação profunda” (indiferente aos mitos e crenças) levaria à distinção entre uma infância adivinhada ou prevista e aquela que vemos: “as impressões do olho são para nós signos, e não presenças singulares, anteriores a todos os arranjos, resumos, escorços, substituições imediatas que a educação elementar, nos inculcou”. – “A educação profunda consiste em desfazer-se da educação primeira” (Valéry, 2003, p. 111; 1998, p. 35). 2. Prazer e necessidade. A infância não mais pensada “a não ser sobre modelos” (Valéry apud Lestocart, 2010, p. 1), diante da necessidade de expressá-la sem representação simbólica: ato de criação necessário, porque “um criador não é um ser que trabalhe pelo prazer”; “um criador só faz aquilo do qual tem absoluta necessidade” (Deleuze, 2003, p. 294); ou, mesmo, porque nada há de “mais admirável do que a passagem do arbitrário para o necessário, que é o ato soberano do artista, pressionado por uma necessidade, tão forte e tão insistente quanto a necessidade de fazer amor” (Valéry, 2003, p. 149). Extração, assim, da infância como deleite ou doxa tirânica de um sistema controlado, feito por palavras de ordem: informações ou comunicações, que dizem o que julgam que devemos crer; como devemos nos comportar; ou como fazer de conta que acreditamos (Deleuze e Guattari, 1995, p. 11 segs.). Primeiramente, consideração do indefinido “um infantil”, tal qual é: alguém que não possui um nome ou propriedade particular, incognoscível, um ser vago. A seguir, as questões: quem é esse anômalo? Como podemos ver esse outsider? Como expressá-lo? Tratamento

79

desse indivíduo excepcional, não como forma (por ser figurativa), mas exclusivamente enquanto força. Para relevar as ambigüidades do informe, como se o pintássemos, exercícios de visão e de desenho: conservação da cor, sutileza de traços, instabilidade sensorial; tentando dar dele uma impressão bruta e existência efetiva, em vez da significação (como objeto), implicada na generalização pelo conceito, que configura um código, avalizado pelo conhecimento comum. 3. Máquina abstrata e agenciamentos. Infância composta por um conjunto de matérias não-formadas que têm graus de intensidade e “funções diagramáticas que só apresentam equações diferenciais ou, mais geralmente, ‘tensores’” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 227). Infância tratada como obra de arte, que “se torna uma máquina destinada a excitar e combinar as formações individuais” dos espíritos (Valéry, 1998, p. 101). Verificação de cada um dos agenciamentos de infância, em sua maior ou menor afinação com a máquina abstrata (ou informe): em que grau apresenta linhas sem contorno, que passam entre os estados de coisas? Quanto frui da potência de metamorfose correspondente a sua matéria-função? Visto que a causa imanente do informe não cessa “de medir as misturas, as capturas, as intercessões entre elementos ou segmentos das duas formas” [de expressão e de conteúdo] (Deleuze e Guattari, 1997, p. 230; p. 231), procedimento de qualificação: análise (qualitativa e quantitativa) da máquina em uma tipologia de máquinas abstratas. Qual máquina abre os agenciamentos? Qual sobrecodifica ou axiomatiza a infância?

80

4. Ética de pesquisa; axiologia da forma. Indagação sobre a distância que cada agenciamento de infância guarda com a máquina: “um agenciamento está tanto

mais próximo da máquina abstrata viva quanto mais abre e multiplica as conexões, e traça um plano de consistência com seus quantificadores de intensidade e de consolidação” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 230). Substituição das conexões criadoras por bloqueios, estratos, buracos negros, linhas de morte? Efetuação, no agenciamento, da própria máquina? – “É como se houvesse coeficientes de efetuação do diagrama, e quanto mais alto o grau, mais o agenciamento se difunde nos outros, adequando-se a todo o campo social” (Deleuze, 1991, p. 50). Se as forças, em uma determinada formação histórica, somente compõem uma forma, ao entrarem em relação com as forças de-Fora (que não param de derrubar os diagramas), investigação das relações entre elas: qual formainfância resulta desse composto de forças? Essa forma enriquece e preserva as forças ativas do humano, tais como: “força de imaginar, de recordar, de conceber, de querer”; “a força de viver, a força de falar, a força de trabalhar” (Deleuze, 1991, p. 132; p. 140)? Com quais novas forças a infância vem entrando em relação? Pode daí advir uma nova Forma-Infância, que não seja mais a Criança nem o Infantil? 5. Crise e incompletude. Condições para um pensamento que não separa “o compreender do criar” ou “o construir do conhecer”. Logo, prática de interpretar a infância como um ato de resistência; como uma idéia que é possível ter na vida; como consciência de uma operação de pensamento, na qual, “as empresas do conhecimento e as operações da arte são igualmente possíveis; as trocas felizes entre a análise e os atos, singularmente prováveis: pensamento maravilhosamente excitante” (Valéry, 1998, p. 219; p. 111; 2008, p. 76). Exigência de uma crise, que nos aparta das convicções e mesmo das incertezas, trazidas pela observação imediata ou pelas informações; das imagens de infância obssessivamente fixadas;

81

dos registros, planos, objetivos. Em desordem – “o espírito tende a passar da desordem à ordem” (Valéry, 1934, p. 77) –, dobramento e desdobramento da infância, por meio de: fragmentos esparsos; blocos dispersos; des-associações de ideias; entrelaçamento de temas e de relações; imagens multidimensionais; desenhos da complexa rede de pistas que sugerem a incompletude, antes do que a possibilidade de conclusão. Demonstração que a arte de pensar a infância não segue a lógica dedutiva nem o reconhecimento platônico das formas; mas, antes, o exercício de construir uma razão, que se executa ao transformar, distinguir e avaliar os sistemas de símbolos, nos quais a escritura é uma forma de pensamento.

82

6. Prisma da criação e protocolo interno. Comprovando a máxima valéryana – “a tolice não é meu forte” (Valéry, 1997, p. 15): interrogação e experimentação contínua de ideias, operações do intelecto e problemas filosóficos sobre o terreno do sensível e do vivido. – “Não existe coisa informe, tolice colorida, anamorfose arbitrária que não se possa impor à atenção e até à admiração, por via descritiva ou explicativa” (Valéry, 2003, p. 114). Processo autoreflexivo de tensionamento da infância: conhecimento de mecanismos, possibilidades e limitações do espírito; análise, disciplinada e cuidadosa, das fontes do pensamento; registro de movimentos, em busca de algo que é problema. – “Para agir sobre o corpo, o espírito deve descer de grau em grau em direção à matéria e se espacializar” (Bergson, 1969, p. 34). Trabalho cotidiano do cérebro, em sua capacidade de manipular os estímulos; expressão de um vivido, intraduzível em fundamentos; registro das possibilidades de inspiração, que nascem do trabalho; tradução de regras e transmissão das formas de consciência para séries cognitivas, disjunções

conscientes e, sobretudo, gradações e enlaces inconscientes. 7. Morfogênese e construção. – “Quero emprestar do mundo (visível) apenas forças – não formas, mas material para fazer formas. Não a história – Não os Cenários – Mas o sentimento da própria matéria, rocha, ar, águas, matéria vegetal – e suas virtudes elementares. E os atos e as fases – não os indivíduos e sua memória” (Valéry, 1997, p. 119). Impulso para a forma própria, do qual deriva o que Valéry (1977, p. 257; 2000, p. 242) chama a “Voz” (conceito retirado da sonoridade de Kandinsky): jogo dinâmico de ressonâncias, que retraça um processo de transformação do Eu pelo mundo (meio físico ou social), através da meditação criativa e sua transcrição pela escritura. Formação sistemática das formas, pela pesquisa das transformações e modulações de um caos primitivo, contínuo formado por um descontínuo. Tipo de construção, organizada e lenta, feita pouco a pouco, por meio da distribuição e espalhamento do espírito: uma máquina, que inverte o sentido da operação introspectiva habitual e abandona a mitologia de uma filosofia lírica, para dar lugar ao intelecto, princípio do pensamento em sua forma mais elevada (nous). 8. Olho agonizante. Aceitação que o conhecimento e a percepção não resultam dos órgãos sensoriais do corpo, mas que, ao contrário, vemos mais “coisas do que sabemos a respeito delas” (Valéry, 1998, 69; p. 37). – “O olhar estranho sobre as coisas, esse olhar de um homem que não reconhece, que está fora desse mundo, olho fronteira entre o ser e o não-ser – pertence ao pensador. Ele é também um olhar de agonizante, de homem que perde o reconhecimento. Nisso o pensador é um agonizante, ou um Lázaro, facultativo. Não tão facultativo”

83

(Valéry, 1997, p. 130). Visão contextualizada e instrumental do pensamento como inteligência, que requer consciência das variáveis, para examinar mudanças possíveis: o construir existe entre um projeto ou uma visão determinada e os materiais escolhidos. Além do olho, os esquemas mentais e a estrutura neuronal do cérebro tecem a trama do texto ou da imagem. Nem superfície, nem tela, nem página, nem quadro: só momento de matéria e de pensamento. O desenvolvimento virtual do espírito: próximo às transformações topológicas, aos usos das matemáticas não-lineares e à teoria do caos, que permitem perceber a realidade em outro nível. Realidade supostamente mental que permanece física: no “país do pensamento”, aquilo que é caótico, instável, flutuante deixa o espaçotempo segmentarizado de nossas percepções e entendimento.

84

9. Programa de Teste: Eu Corpo-Espírito-Mundo. Para Valéry, Teste é, ao mesmo tempo, consciência e testemunha – testis, no latim, é testemunha; teste, no francês antigo, é uma palavra para tête, no sentido de cérebro, espírito –, o que produz um abismo entre Eu (narrador) e Eu-Teste (personagem); Teste designa também uma cabeça que se aplica a fazer sistema: “de tanto pensar, acabei acreditando que Monsieur Teste havia chegado a descobrir leis do espírito que nós ignorávamos. Com certeza devia ter dedicado anos a essa procura: com mais certeza, outros anos, e mais ainda anos, e ainda muitos anos, haviam sido usados para amadurecer suas invenções e transformálas em instintos. Encontrar não é nada. Difícil é acrescentar-nos o que encontramos” (Valéry, 1997, p. 19). A personalidade é estática, o Eu é múltiplo e móvel, constituindo-se a cada instante e assegurando a permanência da identidade e do devir: entre fases e limites, há também pontos de convergência e de

equilíbrio, cruzamento e agrupamento variável de possíveis. Esse Eu Corpo-Espírito-Mundo – CEM para Valéry (2009a, b) – é um acúmulo de ações e de circunstâncias diversas, momentaneamente convergentes. Compõe, assim, a figura efêmera de um novo Eu, sujeito da escritura, igualmente estrangeiro em relação àquele que o precedeu. Expressivos e impressivos, esses Eus seguem configurações imprevisíveis de pensamento e de criação, definindose, principalmente, em termos de energias e de lacunas. Antagonismo entre a personalidade, que se projeta em ideias paradigmáticas, e um Eu, que descreve e demonstra a passagem da imaginação à abstração e da criação real a puras virtualidades: “‘O ar’, diz [Leonardo da Vinci], ‘está cheio de infinitas linhas retas e radiantes, entrecruzadas e tecidas sem que uma ocupe jamais o curso da outra, e representam para cada objeto a verdadeira FORMA da sua razão (da sua explicação)’” (Valéry, 1998, p. 91). Entre a inteligência e o traço (signo), não há diferença para o poder do espírito: o sistema é mais do que nunca um fazer, um fabricar, uma poiesis. Imagética mental, morfologia generalizada, sistema pensamento-criação: “é um pensamento que se cristaliza, se solidifica, se arquiteta, se volatiza ou se liquefaz; em uma palavra ‘funciona’” (Lestocart, 2010, p. 8). 10. Forma e movimento. Uma pose (uma posição) é uma forma; e o movimento relaciona-se com as formas. Isso não quer dizer que a forma seja o contrário do movimento, já que ela não se encontra em movimento; ao contrário, uma forma pode tender ao movimento, adaptar-se ao movimento e, até mesmo, preparar o movimento; o que uma forma não pode é estar em movimento (Deleuze, 1981). Portanto, o movimento da infância não deriva de sua atualização numa matéria-fluxo; não é remetido “a elementos

85

86

inteligíveis, Formas ou Ideias”, imóveis e eternos; não é uma “‘dialética’ das formas, uma síntese ideal”, que atribui ordem e medida à matéria; nem consiste na “passagem regulada de uma forma a outra”. Não se trata da forma-infância transcendente, atualizada no movimento lógico; ou do movimento físico da matéria-infância, que passa de uma forma à outra; tampouco, de relações entre formas, cuja dialética serve de princípio à constituição do movimento (Deleuze, 1994, p. 17). Tornando possível uma nova forma de pensar a infância, realização de uma análise sensível do movimento, como sucessão de instantâneos, feitos pela “produção e confrontação dos pontos singulares imanentes ao movimento”. Movimento não referido a “instantes privilegiados”, mas a “um instante qualquer”; não pensado “a partir de elementos formais transcendentes” (como as poses), mas, a partir de “elementos materiais imanentes” (como os cortes cinematográficos). Desde que as formas são imóveis (no máximo, consistem nos movimentos de um pensamento puro), não é mais a forma-infância que se transforma e sim a matéria de infância que, por se movimentar, passa de uma forma à outra. Não fazemos, então, pesquisa de uma infância abstraída pela metafísica, que torna o movimento dependente da constituição de uma lógica das formas e, com isso, leva o abstrato a explicar o concreto; fazemos pesquisa, para a qual uma abstração de infância nada explica, mas precisa ser explicada. Daqui, releva o conceito de infância enquanto concreto (Deleuze, 1994, p. 19; 1988, p. 83 segs.). A duração, sendo posta no pensamento, e este naquela, torna-se própria ao pensamento; em função da duração, o pensamento distingue-se das coisas, por um modo de duração. O pensamento de criação da infância, tendo velocidade, movimento e duração próprios, torna-se um acontecimento de movimento porque pensa o movimento.

A liberdade O impressionante, para o Método Valéry-Deleuze, não é que a infância seja uma forma, mas que seja “dessa maneira e não de outra” (Valéry, 1998, p. 153). Desde que o cérebro-intelecto efetua, em permanência, atos de autovariância, que buscam saber como funciona o pensamento (e não para que funciona), o Método realiza processos que não se separam de suas produções e nem de si mesmo. Concedendo que a inteligência ordenadora possa não ser mais do que uma ficção (embora não tenhamos encontrado nada melhor do que ela), o Método dispõe efeitos de diferença e não representa o mundo da exterioridade da infância, mas toma tais efeitos como versões codificadas de acontecimentos. Modelizando processualmente o espírito, como ética do intelecto, o Método apresenta, ao mesmo tempo, compreensão das variações da vida mental e apreensão da infância (seja social, técnica, política, educacional, artística), produzidas pelas interrelações de ação, sentido e valor, entre Corpo, Espírito e Mundo (o CEM valéryano). Assim, quando tratamos da infânciainforme (para a qual os clichês ou a memória não contam), não pensamos que ela não tem formas; mas, que suas formas não encontram, em nosso pensar, nada que permita substitui-la por “um ato de traçado ou de reconhecimento nítido”. Essa perspectiva informal traz a lembrança de puras possibilidades da infância e sinaliza que podemos modificála com liberdade. Para tornar a infância novamente inteligível, desprezamos o que sabemos; exercitamos movimentos dos olhos, das mãos, de nosso querer; buscamos um estado zero de percepção coordenado à singularidade de expressão. Defendemos o nosso pensar das imagens dogmáticas e das ideias feitas, que tornam viável e fácil a vida prática, mas que dispensam os espíritos de se surpreenderem. Voltamos à formação da significação de infância, antes que fosse definida; e antes que o conhecimento encontrasse uma representação icônica da sua realidade ontológica.

87

88

Fazemos nascer, então, germes ou larvas de infância, por meio de incidentes de consciência; campos de possibilidades e transformações potenciais; pesquisas de contraexemplos; hipóteses absurdas. Desse modo, a infância, que se constituira, a partir de nossos sentidos, ideais, “tesouros adquiridos”, desloca-se, desfaz-se e nos abandona “a nosso comércio de minutos sem valor em troca de percepções sem futuro, deixando atrás algum fragmento que só pode ter sido obtido em um tempo, ou em um mundo, ou sob uma pressão, ou graças a uma temperatura da alma bastante diversos daqueles que contêm ou que produzem seja o que for”. Sem que saibamos se essa singularidade é uma “obra da vida, da arte, do tempo ou um capricho da natureza” (Valéry, 2008, p. 67), nasce uma forma-infância contra o saber, as retomadas e os juízos. Infância de união breve e sussurro fugaz (que sugere mais do que diz). Forma de vitalidade multiforme. Infância da exploração de acasos felizes. Forma de uma idéia precisa. Infância inventada, composta, criada e terminada, sem deixar ver as marcas de sua produção (como em Whistler). Forma que domina nossos achados (que nunca estão à altura do Método). Infância no extremo da fantasia da Grande Arte – “a arte que exige que todas as faculdades de um homem sejam utilizadas nela, e cujas obras sejam tais que todas as faculdades de outro sejam invocadas e se interessem por entendê-las” (Valéry, 2003, p. 86-88; p. 149). Logo, infância posta a nu, pelo Método Valéry-Deleuze, destinada a uma Educação do Informe, que “apreende o que só pode ser sentido”: a intensidade, “independentemente do extenso ou antes da qualidade”; forma tornada disforme, como “objeto de uma distorção dos sentidos”, destinada a uma Pedagogia do Conceito; forma-infância que integra o “‘transcendentalismo’” de uma Pedagogia dos Sentidos (Deleuze, 1988, p. 270; p. 378; Deleuze e Guattari, 1992, p. 21). Afinal das contas: “A pedagogia é infância. Diferença de infância. Afirmação de infância. Sensibilidade de infância”. – “A pedagogia é uma utopia da terra: chegar à infância” (Kohan, 2009, p. 153).

Referências BERGSON, Henry. La pensée et la mouvant. Paris: PUF, 1969. ___. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. (Trad. Paulo Neves.) São Paulo: Martins Fontes, 1999. DARRIULAT, Jacques. La poïetique de Paul Valéry in pohttp://www.jdarriulat. net/Auteurs/Valery/ValeryIndex.html (Mis en line le 29 octobre 2007.) (Utilizado em 07 julho 2010.) DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. (Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias.) Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. ___. CINEMA / IMAGE-MOUVEMENT - Nov.1981/Juin 1982 - Cours 1 à 21 - (41 heures) in http://www.univ paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=17 (Trancription: Douarche Fanny.) (Utilizado em 07 março 2005.) ___. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado.)Rio de Janeiro: Graal, 1988. ___. Foucault. (Trad. Claudio Sant’Anna Martins.) São Paulo: Brasiliense, 1991. ___. La imagem-movimiento. Estudios sobre cine 1. (Trad. Irene Agoff.) Barcelona: Paidós, 1994. ___. “Qu’est-ce que l’acte de création? In: ___. Deux régimes de fous. Textes et entrétiens 1975-1995. Paris: Minuit, 2003, p. 291-302. ___. A imagem-tempo. Cinema 2. (Trad. Eloisa de Araujo Ribeiro.) São Paulo: Brasiliense, 2005. ___. O método da dramatização. In: ORLANDI, Luiz B.L. (Org.). A ilha deserta: e outros textos. (Trad. Luiz B.L.Orlandi.) São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 129154. ___; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz.) Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. ___;___. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.2. (Trad. Ana Lúcia de Oliveira Lúcia Cláudia Leão.) Rio de Janeiro: Ed.34, 1995, p. 11-59. ___;___. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.5. (Trad. Peter Pal Pélbart e Janice Caiafa.) São Paulo: Ed.34, 1997. FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. (Trad. Jorge Colli.) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. ___. O pensamento do exterior. (Trad. Nurimar Falci.) São Paulo: Princípio, 1990. HAYASHI, Naoko. La reconstrucion de la vision devant l’informe chez Valéry – à travers deux actes, voir et dessiner in www.let.osaka-u.ac.jp/france/gallia/ texte/36/36hayashi.pdf (Utilizado em junho de 2010.) HEUSER, Ester Maria Dreher. Pensar em Deleuze: violência e empirismo no ensino da filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí, 2010. KOHAN, Walter Omar. “O que é a pedagogia”? In: AQUINO, Julio Groppa e CORAZZA, Sandra Mara (Orgs.). Abecedário: educação da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2009, p. 151-153.

89

LEMINSKI, Paulo. Caprichos & Relaxos. 1983. Disponível em htpp://planeta. terra.com.br/artes/PopBox/Kamiquase/poesia.htm (Utilizado em 2009.) LESTOCART, Louis-José. Paul Valéry: l’acte litteraire comme pensée de la complexité in http://www.tribunes.com/tribune/alliage/59/page8/page8.html (Utilizado em junho de 2010.) _____. Entendre l’esthétique dans ses complexités. Paris: L’Harmattan, 2008. MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. MASTRONARDI, Carlos. Valéry o la infinitud del método. Buenos Aires: Raigal, 1955. VALÉRY, Paul. L’idée fixe. Paris: Gallimard, 1934. ___. Cahiers Paul Valéry 2. “Mes théâtres”. Paris: Gallimard, 1977. ___. Monsieur Teste. (Trad. Cristina Murachco.) São Paulo: Ática, 1997. ___. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. (Trad. Geraldo Gérson de Souza.) São Paulo: Ed. 34, 1998. ___. Poésie perdu. Les poèmes en prose des Cahiers. Paris: Gallimard, 2000. ___. Degas Dança Desenho. (Trad. Christina Murachco e Célia Euvaldo.) São Paulo: Cosak & Naify, 2003. ___. Eupalinos. L’âme et la danse. Dialogue de l’arbre. Paris: Gallimard, 2008. ___. Cahier de Cette. Fata Morgana. Sète: Ministère de la Culture et de la Communication, 2009a. ___. Collège de Cette. Sète: Ministère de la Culture et de la Communication, 2009b.

90

PARTE 2

DOCÊNCIA E PESQUISA

A FORMAÇÃO DO PROFESSOR-ESQUISADOR E A CRIAÇÃO PEDAGÓGICA4

4

Defendo que a docência sempre foi pesquisa; e viceversa. Mesmo que os sistemas educacionais (com os seus motivos), durante muito tempo, tenham inventado e divulgado o mito que existiria, de um lado, pouquíssimos intelectuais da educação que pesquisam; enquanto, de outro, haveria uma grande massa daqueles professores que somente ensinam. Ou, mesmo, talvez, tenhamos sido nós próprios, educadores, quem, sem questionar, passamos a acreditar nessa divisão em castas; e que, até, tenhamos desejado acreditar nisso. Então, por facilidade e conforto, nem faríamos questão de nos considerar como pesquisadores; delegando, com satisfação, a outros essa função, e dividindo o mundo da educação assim: Eles que pesquisem, pensem, escrevam e publiquem; eu, apenas ensino. O problema é que, para o Pensamento da Diferença, docência sem pesquisa não existe, nunca existiu, nem existirá. Por um motivo bem simples: para quem educa, não se trata de “dar” nada (seja conselhos, aulas, conteúdos, afeto, etc.); mas de procurar e de encontrar (ou de não encontrar) (Corazza, 2002). Para pensar assim, podemos nos valer da reflexão de Pascal sobre a verdade: “Não me procurarias, se já não me tivesses encontrado”. Em educação, esse já-encontrado está sempre lá, mesmo que imperceptível, enquanto algo inventado, fabricado – como a verdade que é coisa feita. Ele consiste, justamente, em nossa potência, em nossa força, em nossa vontade de educar; naquela energia, feita de velocidades e lentidões, que

4

Em outra versão, texto derivado de palestra desenvolvida no 6º Encontro de Pesquisa em Arte, realizado em Montenegro, RS, em 15/06/2011; e publicado na Revista da FUNDARTE, volume 11, número 21, do mesmo ano (p. 13-16).

93

nos leva a permanecer educando, apesar de tantos fatores adversos e desanimadores. É essa condição que abre o canal de uma docência que procura; logo, que cria; e que é o canal da pesquisa. Dessa perspectiva, o pesquisador não integra uma elite; ele não é, necessariamente, alguém, que tenha bolsas financiadas por CNPq, CAPES, FAPERGS, ou outro órgão de apoio à pesquisa (embora também possa sê-lo). Desse ponto de vista, que adoto, todo professor é um pesquisador; possui um espírito pesquisador; entra em devirespesquisadores, enquanto educa. Caso não fosse assim, como ensinaria? O quê e como ensinaria? Ora, por sua natureza humana, a docência-pesquisa integra uma tipologia das ações que são feitas com, entre, acerca, junto, no encontro com humanos. Logo, ações que são, em menor ou maior grau, da ordem do acaso, da aventura, do acontecimento, da surpresa, da irrupção, da novidade, do caos. Ensinar (fazendo pesquisa) e pesquisar (ensinando) consistem, dessa maneira, em criar soluções e, ao mesmo tempo, enigmas. Numa frase pronunciada ou escrita; no olhar ou no sorriso de alguém; num raio de luz; numa hora do dia, alguma coisa se passa, que não existia antes; e um novo, um inédito se faz, mesmo que não consigamos apreendê-lo. É que, naquilo que se apresenta como encontrado (mas, que, ao contrário, é procurado; isto é, pesquisado), alguma outra coisa quer se realizar, qual seja: o ato de criação, próprio aos humanos. Criação, na qual, o professor-pesquisador acaba encontrando, a um só tempo, mais e menos do que buscava. O que ele encontra tem um valor único; porém, está prestes a escapar de novo; visto que, desde que o novo se instaura, instaura-se, também, a dimensão da sua própria perda. O que leva o educador a começar tudo outra vez; e, ainda, outra vez; outra vez.

Linhas 94

Porém, como chegamos até essa posição de pesquisadocência? Quais foram as principais linhas de forças, que

nos trouxeram até aqui? Podemos indicar três linhas transversais, que se encontram em operação, no mínimo, desde o século XX, quais sejam: primeiramente, uma linha de força mundial; em segundo lugar, uma nova linha de teorização nas ciências humanas e sociais; e, em terceiro, uma linha que atravessa os próprios educadores. Com a modernidade, a educação envolveu-se na formação de sujeitos, saberes e poderes, que redundaram na governamentalização liberal e no capitalismo global excludente; em condições empobrecedoras da qualidade de vida e privatizadoras das instituições sociais e das próprias subjetividades; no terrorismo internacional e em seu desmedido combate; na soberania de um cruel mercado transnacional; em guerras étnicas e civis de extermínio; no sofrimento das massas de refugiados, que perdem suas crianças e velhos, por caminhos sem volta; e assim por diante. A partir do final dos anos 80, a agenda teórica das ciências humanas e sociais deixou de estar concentrada, exclusivamente, na categoria de classe social. Ampliou-se com a incorporação de novas questões, geradas pela perda de credibilidade nas metanarrativas fundacionais e na metafísica do sujeito. Com a emergência das novas identidades coletivas e políticas, bem como de suas lutas e conquistas (como negro, índio, doente, louco, criança, colonizado, GLBTs, etc.), acelera-se o processo de erosão de categorias até então inquestionadas (como ideologia, ciência, minoria, autoria, vanguarda, revolução, alteridade, democracia, cidadania, etc.); produzindo a correlata complexificação do pensamento humano e social. Também na área educacional, passam a ser estudadas e valorizadas as denominadas teorias pós-críticas, pósestruturalistas, pós-modernistas, formadas pelos estudos culturais, feministas, gays, queers, de masculinidade, ecológicos, étnicos, de mídia e publicidade, pós-colonialistas, pós-marxistas, de religiosidade, entre tantos outros. Essa teorização fornece aos educadores diversas ferramentas conceituais e operatórias, novas linguagens e matériasprimas, que lhes permitem trabalhar uma diferenciada

95

problematização do mundo contemporâneo; que se tornava, também ele, diferenciado. Acompanhando a dinâmica do mundo e da vida, assim como essas teorizações humanas e sociais (dentre as quais, a educacional), os professores-pesquisadores reinterrogam os sistemas de pensamento moderno e suspeitam das suas verdades; questionam as formas de racionalidade e suas promessas de liberdade, igualdade e fraternidade; duvidam das naturalizações de raça, sexo, geração; estranham o que era familiar e problematizam o que não era problemático; desconstroem sentidos, referentes e privilégios; identificam os dinamismos espaços-temporais do que era tido como determinado e solidamente perpetuado; reconhecem o difícil equilíbrio entre técnicas de coerção e processos de construção e modificação dos Eus; ressignificam experiências de relações de poder, jogos e cálculos estratégicos, procedimentos de totalização, técnicas e intervenções de individualização, tecnologias de governo do Estado, dos outros e de nós mesmos.

Inimigo

96

Os educadores encontram-se, hoje, na confluência dessas três difíceis linhas e de suas complexas ferramentas conceituais e empíricas. Insatisfeitos com o já-dito, o jáfeito, o já-sentido, o já-pensado, o já-praticado da docência e das pesquisas modernas, e com os seus efeitos culturais e sociais, realizam um diagnóstico antenado e hiper crítico dos tempos, espaços, sujeitos e relações da contemporaneidade. Só que, ao processarem a pesquisa-ensino, que procura-e-cria, eles têm, antes de tudo, de enfrentar o pior inimigo: o seu inimigo íntimo. Inimigo que é formado pela resistente e encravada tradição da pedagogia moderna, expressa nas “receitas” de ajuda e nos “manuais” de autoajuda. São regras e normas, compostas pelos ensinamentos acumulados, no campo educacional, sobre, por exemplo, “como dar uma aula” (Corazza, 1996); qual a melhor forma

de organizar e desenvolver um currículo; quais os mais eficazes métodos e técnicas de bem ensinar; qual é a didática certa do ensino de...; e tantos outros conselhos, orientações e imperativos sobre conteúdo, metodologia, planejamento, aluno, identidade docente, etc. Todas as verdades que são promovidas e divulgadas por aqueles que exercem o poder de fazer crer que eles, sim, sabem o que é ensinar e como ensinar; como dar uma boa aula; como trabalhar com o currículo; como usar os métodos de ensino; como fazer da educação um processo de conscientização e de libertação dos oprimidos; como, como, como (Corazza, 2000). O problema é que os educadores dos tempos de agora não conseguem mais acreditar nem ensinar essas antigas e ultrapassadas ficções. Para interceptar o seu fluxo de relações de poder-saber e de modos de subjetivação (que são, de fato, modos de sujeição), a docência-pesquisa-que-cria torna-se um exercício, cada vez mais consciente, de formas possíveis de modificar a mesmice da formação e da ação docentes, diante da repetição quase secular da prática pedagógica; transformando-se em trampolim para um outro nível de educação; e colocando em funcionamento uma outra máquina de pensar e criar, de estudar e escrever, de ensinar e aprender, de ser professor e professora.

Cria Assim, para educar, pesquisamos, procurando e criando, para ensinar; ensinamos, pesquisando, para procurar e, também, para criar. Mas, o que é que procuramos? O ato de criação (Deleuze, 1988; 2003; 2006; Deleuze e Guattari, 1992), que faz da pesquisa-docência e da vida de cada educador uma obra de arte. Aquele que cria é aquele que adota um ponto de vista criador. Aquele que raspa, escova, faxina os clichês do senso comum e das formas legitimadas. Aquele que enfrenta o desafio de explicar suas criações, sem apelar para uma instância criadora, superior e extrínseca a ele e a seu fazer. Aquele que distingue criação

97

de criatividade; considerando a criatividade (isto é, a criação de soluções originais para problemas já dados), apenas, como uma parte do processo de criação; o qual é mais amplo e envolve a invenção dos próprios problemas. Aquele educador que sabe que a criação é sempre um processo de auto-criação, de criação de si; ou seja, um diferenciar, diferenciando-se. Daí decorre uma docência-pesquisa que reconhece que só funciona, isto é, torna-se ativa e afirmativa, se, além de criar uma nova sensibilidade, também lida com as problemáticas contemporâneas; transformando-se numa educação nunca definitivamente fixada, jamais esgotada, intempestiva (no sentido de Nietzsche), a favor de um tempo por vir. Porém, nada disso acontecerá se a educação que fizermos for feita do mesmo jeito que nos educaram; se for uma educação igual àquela que todos fazem, fincada na tradição, na opinião ou no dogma; se for uma educação que achamos que dominamos, que temos certeza que sabemos fazer, que é só seguir as diretrizes X ou Y, o livro didático, a voz da experiência, ou aquilo que a faculdade nos ensinou. Em outras palavras, definitivamente, hoje, educar, por meio de certezas e de verdades verdadeiramente verdadeiras, não pode mais ser considerado educar. Para realizar uma educação que esteja sintonizada com a contemporaneidade, o mais importante é nos interrogar se tudo o que dissemos, até então, sobre pedagogia, currículo, escola, aluno, professor é tudo o que podemos dizer; se tudo o que vimos, até agora, é, de fato, tudo o que podemos ver; se tudo o que pensamos é tudo o que podemos pensar; se tudo o que sentimos é tudo o que podemos sentir; e assim por diante.

Coragem

98

O ensino-pesquisa de nosso presente rejeita tanto as lógicas quanto as práticas daquele outro ensino, feito sem-pesquisa, e daquela outra pesquisa, feita sem-ensino. O que afirma é a falta de verdade absoluta desses modos

de ensinar e de pesquisar, indagando: como, em que condições, as verdades pedagógicas, transmitidas pela docência-sem-pesquisa e pela pesquisa-sem-docência, chegaram a ser verdadeiras? Quais relações de poder e formas de saber possibilitaram a sua construção? Quais seus efeitos sobre os educadores que assujeitaram? Como professores-pesquisadores, o que podemos saber, o que podemos fazer, e o que devemos esperar da educação do século XXI? É não é que essa pesquisa-ensino não produza, ela também, saberes e verdades; só que estes são parciais, localizados e datados. Saberes e verdades que, por mais eficazes que sejam, não deixam de ser simples experimentações; configurando, muito mais, um problema do que soluções – as quais, se obtidas, prosseguem sendo questões e problemáticas. O ensino-pesquisa é, assim, uma invenção; não comprovação do que já foi sistematizado; nem aplicação ou mediação de conhecimentos produzidos em outros domínios. Sua principal contribuição é ser uma sementeira de vivências e sentidos imprevistos, que implode o sistema habitual e consensual da educação. Implosão, que cria condições, tanto para professores quanto alunos, de capturar as forças dos acontecimentos educacionais, em suas modulações assignificantes, vitalidades assubjetivas, realidades ininterpretadas, devires inorgânicos e imperceptíveis. Essa pesquisa-ensino exige um grau razoável de tolerância à frustração, representada pelas incertezas geradas; pelo abandono de qualquer pretensão à universalização dos seus resultados; pela capacidade de suportar tudo o que, apesar dos esforços, ainda não-faz-sentido, ou será sempre inseguro. Requerendo insubordinação e transgressão, vontade e coragem de optar por uma nova ética de trabalhar e de viver a educação, extrai outros modos de olhar e outras palavras para ver e dizer o mundo e nós próprios. Isso porque quem faz o ensino-pesquisa busca a transformação deste tempo, desta cultura e desta sociedade, em algumas coisas outras, que não as que já são; a par de transformar-se em alguém que não aquele que já é.

99

Desafios

100

Resumindo, para concluir, afirmo que, para nós, educadores, dentre os desafios que, no presente, são lançados, o mais urgente parece ser uma artistagem de criação e inovação. Penso que é por meio da pesquisadocência, artistadora de variações múltiplas, que a educação pode produzir ondas e espirais; compor linhas de vida e devires reais; promover fugas ativas e desterritorializações afirmativas. A educação feita por aqueles que nos antecederam, em outros tempos e espaços, constitui a efetiva e necessária condição para elaborar e executar nossa própria docênciapesquisa; e, ao mesmo tempo, o privilegiado campo de experimentação, para que possamos exercitar outras possibilidades educacionais. Dentre essas possibilidades, ao fissurar certezas e verdades herdadas, a nossa pesquisa-ensino potencializa os fluxos desejantes, que se insinuam entre os blocos epistêmicos e sensíveis. Eminentemente crítica, maquina suas composições, sob o signo da heterogênese contra a homogênese, atribuindo primado à fluidez criadora, em detrimento das normas formais. Embora suscetível a regimes de ações estáveis, é um sistema aberto, distante do equilíbrio e do apaziguamento; e, mesmo quando estabiliza suas ações, bifurca-se e ingressa em novos regimes de instabilidade. Executamos, por seu intermédio, uma autopoiese, enquanto processo de produção do novo, criando codificações (formas de expressão e formas de conteúdo), em campos de comutabilidade e diferencialidades. Circunscrevendo os limites de uma educação, que tem como matéria principal a vida, valorizamos a multiplicidade e funcionamos como resistência e luta contra a mesmidade, a mediocridade e as injustiças. O ensino-pesquisa que fazemos é, assim, impuro, pois mescla e cruza o que passou, o que nos afeta, e os mundos possíveis por vir. Extrai acontecimentos das coisas, dos corpos, dos estados de coisas: inventando personagens e

estabelecendo ligações entre eles e os acontecimentos. Rejeita as modelizações confinantes, que negam o novo e requerem, apenas, regularidades, médias e métricas: priorizando a poética, o processual e a reversibilidade. Captura e libera as forças inéditas e vitais, que agem sob as formas: trabalhando as potências que estas carregam e carreiam. Associa e desfaz disciplinas, em devires de mutação, favorecendo as culturas do dissenso. Reinventa novas significações, posições de indivíduos e de grupos, traçando linhas, que dobram saberes, fazeres, sentires, uns sobre os outros. Com atos de ruptura, nossa pesquisa-docência instala-se em regiões de ser e de pensamento, que portam problemas que, talvez, não consigamos ainda formular; por isso, pode revelar aspectos de seres que estavam ocultos e abrir circuitos inéditos de pensamento-ação. Os seus critérios de avaliação são o vital, o interessante e o notável. Critérios que verificam a maior ou menor liberação de nossas forças vitais (onde quer que estejam represadas), trabalhando para que reencontrem a sua virtualidade, via desestratificação das camadas sedimentadas de saber, poder e subjetividade. Assim, a finalidade precípua da docência-pesquisa, que nos tocou criar, neste século XXI, é tornar-nos dignos dos acontecimentos que nos constituíram como educadores; e, ainda, daqueles acontecimentos que nós mesmos, apesar de tudo, estamos conseguindo produzir.

Referências CORAZZA, Sandra Mara. ‘Como dar uma aula’? Que pergunta é esta? In: MORAES, Vera Regina Pires. Melhoria do ensino e capacitação docente: programas de aperfeiçoamento pedagógico – PAAP/UFRGS. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1996, p. 57-63. _____. O que faz gaguejar a linguagem da escola. In: ENDIPE (Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino). Linguagens, espaços e tempos no ensinar e aprender. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p. 89-103. _____. Pesquisa-ensino: “o hífen” da ligação necessária na formação docente. In: ESTEBAN, Maria Tereza; ZACCUR, Edwiges. (Orgs.). Professora- pesquisadora: uma práxis em construção. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 55-69. _____. Labirintos da pesquisa, diante dos ferrolhos. In: COSTA, Marisa Vorraber. (Org.) Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007, p. 103-127.

101

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi; Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. Qu’est-ce que l’acte de création? In: ___­­__. Deux régimes de fous. Textes et entrétiens 1975-1995. Paris: Minuit, 2003, p. 291-302. _____. A ilha deserta e outros textos. (Trad. Luiz Orlandi, coord.) São Paulo: Iluminuras, 2006. _____; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Júnior; Alberto Alonso Muñoz.) Rio de Janeiro: Ed.34, 1992.

102

DISCURSO BIOGRAFEMÁTICO: Vidarbos5

5

O discurso, o método, a biografemática O Discurso do Método Biografemático considera Método distante de doutrina e de processo técnico; de sistema, como aspecto de conteúdo, e do próprio método, como aspecto formal; distante, ainda, de leis científicas e da natureza reta da faculdade de conhecer superior (Deleuze, 1994); do modelo matemático, das regras da lógica formal, de garantias analíticas e sintéticas sobre o conhecimento da Verdade. Método é entendido, aqui, como meta + hodós (= por essa via): “direção definível e regularmente seguida numa operação do espírito” (Lalande, 1999, p. 679). Direção que se transforma em procedimento de pesquisa, não determinado a priori, nem independentemente de sua aplicação, como um programa de operações, iniciado só após a formulação de regras. Método realizado em operações efetivas, enquanto percurso de conhecimento estabelecido “como criação e não como descoberta”, desde que “o percurso é conhecer; seu método, a criação, o ensaio”. E, caso produza algum saber, este será apenas “uma perspectiva entre outras e não, ao estilo metafísico, o conhecimento único e eterno sobre a realidade” (Monteiro e Biato, 2008, p. 270; p. 267). Logo, trata-se de Método não ordenado, repetível e autocorrigível. Guiado conceitualmente por Roland Barthes (1979; 1982; 1984; 1988; 1989a,b; 1991; 2003a,b; 2005a,b; 2008),

5

Uma versão ampliada deste texto, sob o título “Introdução ao método biografemático”, foi apresentada no evento Vidas do fora: habitantes do silêncio e publicada no livro do mesmo nome, organizado por Tania Mara Galli Fonseca e Luciano Bedin da Costa, pela Editora da UFRGS, em Porto Alegre, 2010 (p. 85-107).

103

104

o Método tem por objeto a própria linguagem, sendo uma ficção que segue o método da linguagem e luta para baldar todo discurso que pega, procurando mantê-lo sem, no entanto, impô-lo. Logo, sua principal tarefa é obter meios próprios para desprender e aligeirar o poder discursivo das formas, através das quais é proposto. O Discurso do Método é apreciado por quem, alguma vez, já se interessara por vida (biografia) e por obra (bibliografia); só que, em vez de vida e obra, tomadas em separado, ou uma como derivada ou causa da outra, trata de Vidarbo. Para pôr vida na obra, implica atos de mutação, que se engajam no disfarce e no mascaramento. Ao despersonalizar o sujeito que vive e escreve, realiza escrita de vida. Cria o narrador da obra, ao fragmentar o autor da vida. Inventa o autor da vida, ao pulverizar o narrador da obra. Escritura de vida, risca, inscreve, traça e ocupa “o terreno do tempo por uma energia de inscrição, inteiramente perversa” (Barthes, 2004c, p. 287; 2005b, p. 156). Ao encontrar “o real da ficção” ou, “quem sabe, o real da realidade” (Nolasco, 2004, p. 14), a escritura encontra o prazer do texto, que transmigra para a vida-obra. Prazer que, ao realizar a escrita de outrem, como mundo possível (Deleuze, 1998), reelabora fragmentos de cotidianidade, considerando que todo fragmento (acabado no momento em que é escrito) é dotado não de uma “grandeza da ruína ou da promessa”, mas da “grandeza do silêncio que acompanha todo acabamento” (Barthes, 2004c, p. 282-283). Na “efetuação de realidade” (Ribeiro, 1988, p. 21), o índice para o prazer expressa-se no viver com um autor, embora a vida seja “feita a golpes de pequenas solidões”. Passando para a cotidianidade fragmentos de inteligível, não narramos o que vemos ou o que sentimos, nem agimos como psicólogos ou psicanalistas, que se serviriam “de uma linguagem feliz para enumerar os atributos originais de sua visão”; mas, como escritores, criando uma metonímia desejante: “escrita contagiosa que faz recair sobre o leitor o desejo mesmo com que formou as coisas” (Barthes, 1984, p. 11; 2004c, p. 292).

Os textos biografemáticos emitem, assim, ordens fantasísticas (fantasmáticas), desde que a idéia de autor voltou à cena com algum valor. Mas não se trata de um autor chapado em documentos de identidade; herói das biografias; o grande narcisista das autobiografias; mortos famosos; mestres imortais; ícones de sedentos ideais-do-eu; tampouco trata-se de biografias, que funcionam como autoajuda, modelos, ou janelas indiscretas para o voyeurismo. O autor, que salta dos textos e entra na vida do leitor, não tem unidade, mas é plural de encantos, lugar de pormenores sutis, fonte de vivos clarões, canto descontínuo. Definitivamente, não se trata de uma pessoa civil ou moral; mas de um corpo impessoal que lança um eu, cuja individualidade é dada pela “mão corporal que escreve”. A substância que separa as pessoas da narração não é de identidade, somente de anterioridade: “ele é cada vez aquele que vai escrever eu; eu é cada vez aquele que, começando a escrever, vai no entanto entrar na pré-criatura que lhe deu origem” (Barthes, 1982, p. 23-24). O Método adota de Nietzsche (1995, p. 50) o processamento de uma “casuística do egoísmo”, por intermédio de uma “Vida Metódica” (Barthes, 2005b, p. 175; p. 201; p. 205), encontrando-se, outra vez, com o sujeito, embora desfeito e deformado, para readequar os planos de vida. Realiza intersecções entre vida e escrita, não fazendo a obra parecer-se com a vida, mas a escrita conduzir a vida. Quanto mais fragmenta escrita e vida, mais cada fragmento se torna homogêneo: “Um fragmento de escritura é sempre uma essência de escritura” (Barthes, 2004c, p. 282). Arquitetando uma tipologia dos eus que escrevem, Barthes (2005b, p. 173-174) ensina a distinguir entre a persona (pessoa cotidiana); o scriptor (imagem social); o auctor (fiador do que escreve); e o scribens (que vive escrevendo). Ao fragmentar e expor a digressão – “ou, para dizê-lo por uma palavra preciosamente ambígua: a excursão” –, o Método dissemina traços de textos da cultura: “pertinentes e por isso mesmo descontínuos”. Através de fórmulas irreconhecíveis, apaga a falsa eflorescência sociológica,

105

106

histórica e subjetiva de determinações, estruturas, visões, projeções dos textos. Ostenta textos nômades, desligados dos sentidos recebidos, que buscam recobri-los. Recusase a inferir autor da obra e obra do autor. Descreve a sua própria população, posicionado no mundo do autor, sem fontes exteriores. Abala os sentidos do mundo, fazendo uma interrogação indireta, que sofre abstenção de resposta única. Afirma e substitui respostas que passam, enquanto as interrogações permanecem, já que não pára de responder ao escrito, fora de qualquer resposta (Barthes, 1989a, p. 43-44; 2003a, p. 330; Barthes, 2008, p. VII-XI). Dessa maneira, o Discurso afirma: a biografemática é filosofia, ciência e arte, como “um jogo de imagens, de espelhos” daquilo que é “colhido numa narrativa, num texto” (Barthes, 2003a, p. 212); quem realiza a biografemática é um biografólogo; o biografólogo coleta e cria biografemas; o biografema produzido pela biografemática consiste em um traço distintivo, elemento quase-unitário, que finge que revela; o biografema, a biografemática e o biografólogo são grandes mentirosos ontológicos, que emitem raios radioativos; sem documentos, não há biografemática, nenhum biografema, nada de biografólogos; biografemas montados, em um bastidor biografemático, resultam numa biodiagramação (Pignatari, 1996); a biodiagramação dá visão do conjunto de uma-vida (Deleuze, 2007); uma-vida não é feita com “o ‘vivido’ (o ‘vivido’ é banal e é justamente ele que o escritor deve combater)”, nem, tampouco, com “a razão (categoria geral adotada sob diversos artifícios por todas as literaturas fáceis)” (Barthes, 2004c, p. 290); por realizar “a utopia de uma linguagem particular”, a substância de umavida é constituída por espaços vazios, flutuantes, lacunas, incidentes, punctuns; assim, uma-vida não é veraz, da mesma maneira que a biografemática não é imaginária: trata-se da biografemática veraz de uma-vida imaginária. Por tudo isso, o Discurso do Método Biografemático fica e não fica na vizinhança de um manual, de uma quimera, do anarquismo (Feyerabend, 1989); não apela à heurística, “que visaria a produzir deciframentos e apresen-

tar resultados” (Barthes, 1989a, p. 42); e terá atingido as fimbrias da perfeição, se fornecer energia vital àquele pensador que o experimentar.

A fantasia, a leitura e a escritura 1. Fantasia de origem Assim como nas origens de uma pesquisa, de um ensino e de uma cultura, também a biografemática parte da fantasia, tomando-a como um “Guia Iniciático”, para executar um “engendramento de formas”, que é engendramento de diferenças (Barthes, 1989a, p. 44; 2003a, p. 8; p. 273; 2005a, p. 22). Mesmo que a fantasia seja apenas uma virtualidade, sua realização, por meio de atos biografemáticos, propicia prazer, por criar um objeto fantasístico, que “não quer ser assumido por uma metalinguagem (científica, histórica, sociológica)” (Barthes, 2005a, p. 117; p. 23; p. 29; 2003d, p. 284). Dotada de originalidade, a biografemática considera que, ao menos no que tange à discursividade, costumamos estudar o que desejamos ou tememos (Barthes, 2003d, p. 430). Há, assim, como no romance, uma generosidade da biografemática, que nos leva a amar o mundo, abarcá-lo e abraçá-lo, enquanto uma prática “para lutar contra a secura do coração, a acídia”. Uma pulsão amorosa colore a biografemática, porque esta é fantasiada como ato de amor, não na direção do “Amor apaixonado= falar de si como apaixonado = lírico”; mas do “Amor-Agápe: falar dos outros que se ama”, “dizer aqueles que se ama”. Pela biografemática, ama-se e escreve-se aqueles que conhecemos, fazendo-lhes justiça, testemunhando “por eles, (no sentido religioso)”, imortalizando-os (Barthes, 2005a, p. 28). Escrevendo aqueles que amamos, importa considerar a biografemática não sob a ótica dialética, “o contrário de seu contrário racional, lógico”, nem “uma frustração vivida como avesso”. Se os guias forem fantasias negativas, não se tratará da oposição entre “uma imagem e uma realidade”; mas da existência de “duas imagens fantasmáticas”, ou de

107

108

roteiros imaginários, desde que a fantasia é um “= enredo breve, enquadrado”, “absolutamente positivo, que encena o positivo do desejo, que só conhece positivos”. Um roteiro, como “vislumbre narrativo do desejo”, que “se entrevê, muito recortado, muito iluminado, mas imediatamente esvaecido”. Roteiro, pelo qual voltam os desejos, “que se buscam em nós, por vezes durante uma vida toda, e freqüentemente só se cristalizam através de uma palavra”. Palavra-roteiro que “induz da fantasia à sua exploração”, “por diferentes bocados de saber = a pesquisa”, sendo a fantasia “um filme com tomadas fixas”, explorada “como uma mina a céu aberto” (Barthes, 2005b, p. 117; p. 177; 2003a, p. 9-10; p. 12; p. 35). Para haver biografemática, “é preciso haver cenário, portanto lugar”, e a fantasia funciona como “projetor incerto”, que varre, mesmo que de modo entrecortado, “fragmentos de mundo, de ciência, de história – de experiências” e recorta “a cena iluminada onde o desejo se instala e deixa na sombra os dois lados da cena” (Barthes, 2003a, p. 14; p. 17; p. 35). Para movimentar-se, a fantasia se liga “a uma imagem grosseira, codificada”, como o Poema, o Romance, a Biografia, etc. Energia, ela “põe em marcha”; mas, aquilo que, a seguir, é por ela produzido “não depende mais do Código”. Ao lutar e se chocar com o Real – que “é o Tempo (a Duração) como potência de atraso, de freagem, e portanto de modificação, de infidelidade” –, a fantasia perde-se, abandona a sua “rigidez”, “ingenuidade” e “virtualidade” (Barthes, 2005a, p. 277; p. 22; p. 25; p. 117), para atingir o ineditismo. Já se vê como o querer-escrever (scripturire) da fantasia relaciona o texto biografemático com a verdade: principia “não pelo falso, mas quando se misturam, sem prevenir, o verdadeiro e o falso”, vindos “da ordem do Desejo e do Imaginário”. Compõe uma “tela pintada de ilusões, de logros, de coisas inventadas, de ‘falsidades’: tela brilhante, colorida”. Um “véu da Maia”: “poikilos, estampado, variado, mosqueado, sarapintado, coberto de pinturas, de quadros, vestimenta bordada, complicada, complexa; raiz pingo [pintar], bordar com fios diversos, tatuar”; “um heterogêneo, um heterológico de Verdadeiro e de Falso” (Barthes, ib., p. 224).

2. Leitura por cima do ombro A leitura, requerida pelo Método Biografemático, não consiste em um gesto parasita, mas trata-se de um trabalho, como “ato lexiológico, lexiográfico”; desde que escrevemos aquilo que lemos e “cujo método é topológico”, deslocando “sistemas cujo percurso não pára no texto nem no ‘eu’” (Barthes, 1992, p. 44). Ocorrendo em “três campos de diferenças”, a leitura apresenta três ordens: ordem individual (corporal), no qual os textos são lidos – “em picada”, isto é, sobrevoando a página e recolhendo “um sintagma saboroso, ou chocante, ou problemático, enfim, “digno de nota”; “em prise”: apreendendo, com delicadeza, uma página inteira do texto e saboreando-a; “em rolo”: desenrolando o texto, do início ao fim, e avançando, sem ligar para prazer ou tédio; “em aplainador”: lendo, em detalhe, cada palavra, sem economizar tempo; “em céu aberto”: vendo o texto, como “um objeto distante, pretexto para uma reflexão”, recolocando-o na “paisagem histórica”; ordem sociológica de leitura, na qual não se distingue o texto de sua acolhida crítica, como se esta o compusesse; ordem histórica, na qual se lê como “leitores que não vivem no mesmo tempo de leitura (mesmo se biograficamente são contemporâneos)”, correndo o risco da “pulverização na História” (Barthes, 1982, p. 69-72). Há, também, três tipos de relações para uma tipologia dos prazeres da leitura biografemática: fetichista, que “tira prazer das palavras” (“prática oral e sonora oferecida à pulsão”) e necessita de “vasta cultura lingüística”; de desgaste, em que o leitor é puxado para frente, por uma força, “mais ou menos disfarçada, da ordem do suspense” – “quero surpreender, não agüento esperar: pura imagem do gozo”; aventura de escritura, cuja leitura conduz o desejo de escrever e que não deseja “escrever como o autor cuja leitura nos agrada”, mas “apenas o desejo que o escritor teve de escrever” – “desejamos o ameme que está em toda escritura” (Barthes, 2004c, p. 38-40). Liberando-nos de uma falsa idéia objetiva, para incluir, na leitura de um texto, “o conhecimento que podemos ter

109

de seu autor”, a leitura defende a posição de quem age o texto é o leitor. Há, para um mesmo texto, “uma multidão de leitores”, que não são apenas indivíduos diversos, mas, em cada corpo que lê, “ritmos diferentes de inteligência, conforme o dia, conforme a página”. Decididamente, essa leitura acontece “por cima do ombro daquele que escreve, como se nós escrevêssemos ao mesmo tempo que ele”. Ao realizá-la, levantamos “a cabeça o tempo todo para devanear ou refletir” e reencontrar, “no nível do corpo, e não do da consciência”, como aquilo foi possível de ser escrito. A cabeça levantada implica nos colocar “na produção, não no produto” e ler, “senão voluptuosamente, pelo menos ‘apetitosamente’”, “fora de qualquer responsabilidade crítica”. Encontramos, assim, um “prazer de leitura livre, feliz, guloso”, como escrever, isto é, re-escrever o texto lido, às vezes, “melhor e mais adiante do que o seu autor o fez” (Barthes, 1982, p. 72; 2004a, p. 268-269; 1984, p. 84).

3. Escritura

110

nebulosa de teia

Já a escritura, feita com o Método Biografemático, arma sua teia interpretante (aleatória, arbitrária, inconsciente) para ler-escrever uma Vidarbo, tal como a aranha às moscas (Pignatari, 1996). Para tanto, escapa aos riscos e codificações da tradição biográfica, tais como: estagnação dos vínculos entre vida e obra, através de conexões lineares, causais, axiológicas, psicologistas, historicistas; fetichização da descendência, do fatalismo, da extraordinariedade, da verdade, da transparência, do tempo (Vilas Boas, 2008); execução de biografias bisbilhoteiras, moralistas, institucionais, logocêntricas, mecanicistas, apocalípticas, militantes, aliciantes (Noronha, 2001; Lejeune, 1986); impregnação de pobreza intelectual, por meio de postulados teleológicos “do sentido da existência, da ilusão de coerência e da construção ex post de uma necessidade dos acontecimentos”; criação de ilusões, retrospectivamente coerentes, pela “coagulação das imagens”, “condensação do legendário em ‘traços’, ‘anedotas’,

‘idiotias’” (Boyer-Weinmann, 2005, p. 56; p. 52); trabalho em prol da “ilusão biográfica”, considerando uma-vida como “um todo, um conjunto coerente e orientado”, a ser apreendido enquanto “expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva, de um projeto”; preocupação “de tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância” a uma-vida, pela descrição de relações inteligíveis, “como a do efeito à causa eficiente ou final, entre os estados sucessivos, assim constituídos em etapas de um desenvolvimento necessário” (Bourdieu, 1996, p. 184); operação por meio de “modelos que associam uma cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estável, ações sem inércia e decisões sem incertezas” (Levi, 1989, p. 169). A nebulosa dessa escritura é cultivada através da seleção, recolhimento e revalorização de resíduos difusos, excertos, cortes, hiatos, esgarçamentos miúdos, imagens inacabadas, fluidos pulsantes, que povoam o que é (e o que não é) mostrado nas formas da anotação do presente, em sua proliferação densa: documentos pessoais, diá-rios, depoimentos, entrevistas, memórias, confissões, correspondência, álbuns, cadernetas, fotografias, auto-retratos, testamentos, hieróglifos, etc. (Barthes, 2005a; Chaia, 1996). A escritura biografemática efetiva, assim, uma “anamnese factícia”, como “recordação errática, caótica”, atribuída ao autor que amamos; ou seja, mistura gozo e esforço e nos faz “reencontrar, sem o ampliar nem o fazer vibrar, uma tenuidade de lembrança”. Anameses que, quanto mais forem foscas, insignificantes, isentas de sentido, impedindo qualquer indução, mais chances terão de escapar ao imaginário (Barthes, 2003d, p. 126; 2004c, p. 288; Martin-Achard, 2007). Nas vidas-obras, interessa “os buracos que elas comportam, as lacunas”, as “catalepsias ou uma espécie de sonambulismo”, pois é neles que o movimento se processa. Agora, como fazer esses movimentos? Talvez, responde Deleuze (1992, p. 172), “não se mexendo demais, não falando demais” e residindo “onde não há mais memória”;

111

112

ou, responde Barthes (1979, p. 14), optando pelos “espaços vazios”, que contém alguns pormenores, gostos, inflexões, os quais deambulam “fora de qualquer destino” e contagiam, “como átomos voluptuosos”, “algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão”. Escritura que, para substituir as crônicas das identidades pela “biotópica de um Eu disperso e volátil” (BoyerWeinmann, 2005, p. 52), segue o princípio da vacilação do tempo: abre as comportas de abalo da cronologia, subtraindo “o tempo rememorado à falsa permanência da biografia”; desorganiza, não o inteligível do tempo, mas “a lógica ilusória da biografia, na medida em que segue tradicionalmente a ordem puramente matemática dos anos”; preserva a biografia, visto que “numerosos elementos da vida pessoal são conservados”, embora deformados (Barthes, 2004c, p. 354). Por isso, a escritura biografemática desvia-se de: um enunciador: “o eu que escreve o texto nunca é mais do que um eu de papel”; pois quem enuncia põe “em cena – ou em escritura – um ‘eu’ (o Narrador)”, não mais “exatamente um ‘eu’ (sujeito e objeto da autobiografia tradicional)”, civil e patronímico, senão “um eu de escritura, cujas ligações com o ‘eu’ civil são incertas, deslocadas”; narrativa, já que a escritura consiste em um desejo de escrever “uma vida desorientada”, enquanto a biografemática “não é a de uma vida”; vida mesma, pois a escritura faz “biografia simbólica” ou “história simbólica da vida”, que requer a escrita não de um curriculum vitae, mas de “uma constelação de circunstâncias e de figuras” (Barthes, 2004c, p. 72; p. 354-356). A natureza dessa escritura é feita com lembranças fragmentárias de linguagem que pululam. O fragmento consiste em elevada condensação, “não de pensamento, ou de sabedoria, ou de verdade (como na Máxima), mas de música”, como “a idéia musical de um ciclo”, intermezzo. Coletamos, portanto: traços biográficos, que são aqueles que, em uma-vida, nos “encantam tanto quanto certas fotografias” – “a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia”; punctuns, que consistem

em detalhes, objetos parciais vistos, registrados; pontos de referência, “chamadas de atualidade, sintagmas prontos, pequenas ‘condensações de saber’”, “lufadas de legibilidade, breves coágulos surgidos do discurso dos outros”. Nessas coletas, a memória social surge, vagueia, não fica no lugar, eclipsa-se. Produzimos, então, uma “nova língua na língua, um grund, uma tela móvel, eletrificada” (Barthes, 2003d, p. 109-110; 1984, p. 51). A unidade dessas experimentações de escritura é o Incidente – “menos contundente que o acidente, mas mais inquietante” –: “minitextos, recados, haicais, anotações, jogos de sentido, tudo o que cai, como uma folha, etc.” (Barthes, 2003d, p. 167). Incidente feito com aquilo que tomba, sem choque, num movimento infinito, mas também que sobrevive: “pequenas cenas, estilhaços de romance”, de linguagem, “nem esboços, nem anotações, nem materiais, nem exercícios”. Com esse “contínuo descontínuo do fluxo de neve”, promovemos, amorosamente, aquilo que é tomado por um pormenor insignificante. Tomamos pormenores precisos, descontínuos irregulares, interrompidos, intermitentes (Barthes, 2004c, p. 282-284; p. 372) – frutos do Satori (Zen), da Kairós (céticos), da Epifania (Joyce), do Momento de Verdade (Proust), do Instante Pleno (Diderot) – para captar “um fragmento de presente”, ao vivo, “o cume do particular”, uma “picada essencial”, “com-presença”, “ligação instantânea”, que indica “retorno da letra”. Cada incidente de uma-vida pode “dar azo ou a um comentário (uma interpretação), ou a uma fabulação que lhe dá ou lhe imagina um antes e um depois narrativos”. Ao ligar e desenvolver os incidentes, tecemos “uma narrativa, ainda que frouxa”, com os seguintes traços estilísticos: aventuras infinitesimais; incongruência mínima; rápido deslocamento na apreensão do cotidiano; detalhe que toca; acontecimento minúsculo; impressão breve; diálogos descontínuos e rápidos; dobra sutil no tecido dos dias; modo menor de enunciações não argumentativas, mas toques, diante dos acontecimentos fortes (midiáticos, políticos); indiferenciação temporal, que abole a noção

113

114

de duração e introduz uma temporalidade cíclica, ritual; sobredeterminação espacial, que elimina a distância entre enunciação e enunciado, criando efeito de simultaneidade entre incidente e anotação; forma de escrita do presente absoluto, em notação grau zero, necessária para escrever: “faz da linguagem a frágil salvação de certo sofrimento” (Barthes, 1988; 2004c, p. 350; p. 289; p. 66; p. 283). Contrária às histórias de vida, narrativas autobiográficas, totalidade, fidelidade, autocontrole (Barthes, 1982, p. 78), a escritura biografemática persegue “a arte do retrato em pintura”, executando “retratos mentais, conceituais”, por meios diferentes, nos quais a semelhança é produzida e não “um meio para reproduzir” – “aí nos contentaríamos em redizer o que o filósofo disse” (Deleuze, 1992, p. 169). Para realizar esses retratos em movimento, a escritura vivifica corpos, introduzindo neles a “dimensão carnavalesca”, qual seja: usa antes o imaginário do que os fatos; incide o desconhecido, suspeito, lacunar, ausente, sub-reptício, negado, interditado; surpreende estados intervalares; evidencia nuances contra formas de pensamento pronto, que repetem “falsas evidências” (Pierre, 2006, p. 48); trabalha com enigmas latentes, entre os pólos da vida e da obra; desvincula e transfere componentes de zonas e instâncias de pertencimento. Através de “erotografia”, “autobiografema”, “autobiograficção” e “cartografemática”, a escritura faz uma “antibiografia”, na qual o biografematizado é visto como uma “estrutura estelar repleta de desvãos que escondem as faces perdidas e na qual os signos equivalentes estão soltos para pontilharem outros rostos” (Noronha, 2001, p. 10; p. 11). Em diálogo escritural de montagem e composição, recolhe pedaços, feito molas propulsoras, refeitas no ato ficcional. Desenha máscaras trocadas. Identifica ardis romanescos, que jazem ocultos nas franjas do vivido. Constrói uma imagem cambiante de pulsões desejantes: “falo de mim como se estivesse um pouco morto, preso numa leve bruma de ênfase paranóica” (Barthes, 1979; 1984; 1988; Costa, 2008; Eiró, 2008; Barthes, 2003d).

Escritura sensual, a biografemática exercita ausência de palavras e força “a passagem dos objetos sensuais dentro do discurso”, de modo que “a substância sensual das coisas” leva a linguagem a dispor alguns efeitos físicos, lembranças táteis, voluptuosas, saborosas; integra passagens, que são sempre legíveis (“se você quiser ser lido escreva de maneira sensual”), tais como: em Chautebriand, “as laranjeiras da Vida de Rancé”; em Bataille, “o prato de leite da História do olho”; em Hegel, “a plumagem da coruja” de Minerva, a qual, “só no início do crepúsculo”, “alça seu vôo”; em Marx, “a silhueta do tecelão e do entalhador” (Barthes, 1982, p. 62-63; Feil, 2009). Escrevendo uma “rapsódia de vida”, sem respeitar o todo e reduzindo o universo a “sistemas de instantes”, essa escritura compõe uma “arte original, como é a da costureira: peças, pedaços são submetidos a cruzamentos, a arranjos, a ajustes”; e cujos “fragmentos intelectuais ou narrativos” formam “uma seqüência que se subtrai à lei ancestral da Narrativa ou do Raciocínio”, produzindo “a terceira forma, nem Ensaio, nem Romance” (Barthes, 2004c, p. 353-355).

Vidarbos Vida-obra. Obravida. Vid’obra. Obra d’vida. Obr’ida. Vida-obra. Que diabo. Vidarbo. Viver como quem escreve. Escrever vivendo. Viver escrevendo. Reviver. Fabulação de gostos, des-gostos, descobertas, sensibilidade, estados d’alma, imagens, poses, figuras, músicas, afectos. Como é, para mim, o que não fala, sem alegar a si mesmo, condenado ao exílio da generalidade. Transliteração: mudar o livro é mudar a vida. Cenografia espaço-temporal. Nos passeios de uma-vida, aparição de personagens. Na retina, ações que podem ser tocada. Aromas ávidos no ar. Pensares apanhados. Quereres guardados. Sentires desovados. Na magia de ler, fascínio por limites. Voz do sujeito-de-escritura: escrever o que não pôde dizer. Grãos de sentidos, na pele do eu-de-papel, após travessia do deserto. Cruel desafio à interpretação. Fundos de silêncio. Habitantes dos interstícios. Sem economia de bem e mal. Não-lucro. Luxo de escritura livre. Pulsão por

115

des-formas. Radicalização na preparação. Munição impaciente. Anarquicamente debochada. Atravessar, navegar, saltar: e pronto. Corda bamba, sem sombrinha, embriagado. Pronto. Cair. Se for o caso. Pronto. Avaliar valor dos largados. Simulacro romanesco anamnésico. Paixão por perturbação, motilidade, leveza. Sem pessoa. Caleidoscópio insólito. Estranho dissonante. Bolas de emoção. Roçadela. Fricção. Como se vê, a biografemática inunda vidas. Minha. Tua. Nossa. Por isso, o Discurso Biografemático põe “no topo aqueles capazes da risada de ouro”: “rir de maneira nova e sobre-humana – e à custa de todas as coisas sérias”. É porque os “deuses gostam de gracejos: parece que mesmo em cerimônias religiosas não deixam de rir” (Nietzsche, 1992, p. 195).

Referências BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loiola. (Trad. Maria de Santa Cruz.) Lisboa: Edições 70, 1979. ___. Sollers escritor. (Trad. Lígia Maria Ponde Vassallo.) Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Fortaleza: UFC, 1982. ___. A câmara clara: nota sobre a fotografia. (Trad. Júlio Castañon Guimarães.) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. ___. Incidentes. (Trad. Júlio Castañon Guimarães.) Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. ___. Aula (pronunciada dia 7 de janeiro de 1977). (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Cultrix 1989a. ___. Fragmentos de um discurso amoroso. (Trad. Hortência dos Santos.) Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989b. ___. Michelet. (Trad. Paulo Neves.) São Paulo: Companhia das Letras, 1991. ___. S/Z. (Trad. Léa Novaes.) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. ___. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos: cursos e seminários no Collège de France, 1976-1977. (Trad. Leyla PerroneMoisés.) São Paulo: Martins Fontes, 2003a. ___. Crítica e verdade. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Perspectiva, 2003b. ___. O neutro: anotações de aulas e seminários ministrados no Collège de France, 1977-1978. (Trad. Ivone Castilho Benedetti.) São Paulo: Martins Fontes, 2003c.

116

___. Roland Barthes por Roland Barthes. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Estação Liberdade, 2003d.

BARTHES, Roland. O grão da voz: entrevistas, 1962-1980. (Trad. Mario Laranjeira.) São Paulo: Martins Fontes, 2004a. ___. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. (Trad. Mario Laranjeira.) São Paulo: Martins Fontes, 2004b. ___. O rumor da língua. (Trad. Mario Laranjeira.) São Paulo: Martins Fontes, 2004c. ___. A preparação do romance I: da vida à obra. Notas de cursos e seminários no Collège de France, 1978-1979. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005a. ___. A preparação do romance II: a obra como vontade. Notas de curso no Collège de France 1979-1980. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005b. ___. O prazer do texto. (Trad. J. Guinsburg.) São Paulo: Perspectiva, 2006. ___. O império dos signos. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Martins Fontes, 2007. ___. Sobre Racine. (Trad. Ivone C. Benedetti.) São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2008. BOYER-WEINMANN, Martine. La relation biographique: enjeux contemporains. Paris: Champ Vallon, 2005. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaína (Orgs). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996 (p. 183-191). CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável e outros ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1972. CHAIA, Miguel. Biografia: método de reescrita da vida. In: HISGAIL, Fani (Org.). Biografia: sintoma da cultura. São Paulo: Hacker Editores; Cespuc, 1996 (p. 75-82). COSTA, Luciano Bedin da. A vida em escrileitura: biografemas e o problema da biografia. Porto Alegre, RS: PPGEDU/UFRGS, junho 2008. Proposta de Tese de Doutorado, 186p. (Texto dig.) DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. (Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias.) Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. ___. Conversações, 1972-1990. (Trad. Peter Pál Pelbart.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. ___. A filosofia crítica de Kant. (Trad. Germiniano Franco.) Lisboa: Edições 70, 1994. ___. Lógica do sentido. (Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes.) São Paulo: Perspectiva, 1998. ­­ ___. O método da dramatização. In: ORLANDI, Luiz B.L. (Org.). A ilha deserta: e outros textos. (Trad. Luiz B.L.Orlandi.) São Paulo: Iluminuras, 2006a (p. 129154). ___. Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In: ORLANDI, Luiz B.L. (Org.). A ilha deserta: e outros textos. (Trad. Hilton F. Japiassu.) São Paulo: Iluminuras, 2006b (p. 221-247). DELEUZE, Gilles. A imanência: uma vida... In: Dossiê Deleuze e a Educação. (Trad. Tomaz Tadeu.) Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, julhodezembro 2002 (p. 10-18).

117

EIRÓ, Jorge. Cartografemas: fragmentos autobiográficos de um artistaprofessor. Belém, Pará: PPGEDU/UFPA. Dissertação de Mestrado, maio 2009, 140p. (Texto dig.) FABBRINI, Regina. Das linhas incertas onde a vida se inserta. In: HISGAIL, Fani (Org.). Biografia: sintoma da cultura. São Paulo: Hacker Editores; Cespuc, 1996 (p. 63-73). FEIL, Gabriel Sausen. Procedimento erótico, na formação, ensino, currículo. Porto Alegre, RS: PPGEDU/UFRGS, janeiro 2009. Tese de Doutorado, 245p. (Texto dig.) FEYERABEND, Paul. Contra o método. (Trad. Octanny S. da Mota e Leonidas Hegenberg.) Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. . (Trad. Fátima Sá Correia et alii.) São Paulo: Martins Fontes, 1999. LEJEUNE, Philippe. Moi aussi. Paris: Éditions du Seuil, 1986. LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996 (p. 167-182). MARTIN-ACHARD, Frédéric. Le nez collé à la page: Roland Barthes et le roman du present. In: http://trans.univ-paris3.fr/ Trans – Nº 3: Écrire le present. Hiver 2007. (Capturado em julho 2008.) MONTEIRO, Silas Borges; BIATO, Emília Carvalho L. Uma avaliação crítica acerca de método e suas noções. In: Revista de Educação Pública. Cuiabá: maio/ ago. 2008, v.17, n.34, p. 255-271. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. (Trad. Paulo César de Souza.) São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ___. Ecce homo: como alguém se torna o que é. (Trad. Paulo César de Souza.) São Paulo: Companhia das Letras, 1995. NOLASCO, Edgar Cezar. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2004. NORONHA, Luzia Machado Ribeiro de. Entreretratos de Florbela Espanca: uma leitura biografemática. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001. OLIVEIRA, Marcos da Rocha. Biografemática de um educador. Porto Alegre, RS: PPGEDU/UFRGS, dezembro 2008. Proposta de Dissertação de Mestrado, 118p. (Texto dig.) PIERRE, Jean-. Roland Barthes: dernier paysage. Lille, FR: Éditions Verdier, 2006. PIGNATARI, Décio. Para uma semiótica da biografia. In: HISGAIL, Fani (Org.). Biografia: sintoma da cultura. São Paulo: Hacker Editores; Cespuc, 1996 (p. 13-19). RIBEIRO, Renato Janine. A política de Don Juan. In: ___ (Org.). A sedução e suas máscaras: ensaios sobre Don Juan. São Paulo: Companhia das Letras, 1988 (p. 9-21).

118

VILAS BOAS, Sergio. Biografismo: reflexões sobre as escritas de vida. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

O DOCENTE DA DIFERENÇA: identidade e singularidade6

6

Tratado como ser, indivíduo, pré-individual, impessoal, tomado em segmentos de devir, que são processos de desejo, o docente é pensado a partir da Filosofia da Diferença em Educação. Extrator de partículas, que não pertencem mais a como vive, pensa, escreve, pesquisa, mas são as mais próximas daquilo que está em vias de tornar-se, e através das quais ele se torna diferente do que é, o docente da diferença atravessa os limiares do sujeito em que se tornou, das formas que adquiriu, das funções que executa. Entretanto, não se identifica, não imita, não estabelece relações formais e molares com algo ou alguém, mas estuda, aprende, ensina, compõe, canta, lê, apenas com o objetivo de desencadear devires. Ressalta o seu próprio potencial de variação contínua e critica, assim, o conceito Docente e a forma docente. Desenvolve traços fugidios do seu ensinartistar, por meio de XX devires. Então, indaga: – Como criar uma artistagem docente? Sabe que engendrar, encontrar e seguir alguma resposta de tristeza ou de alegria, de juventude ou de velhice, de ânimo ou de cansaço, de vida ou de morte, é o que configura a covardia ou a coragem de cada docente artistador (Corazza, 2006).

Ser Tradicionalmente, a palavra docente nos reporta a um indivíduo constituído, já pronto: atomon, individuum, não6

Este texto foi publicado, pela primeira vez, em 2009, Online, na Revista PALAVORAZ da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ, campus Duque de Caxias, com a editoria de Henrique Sobreira; e em 2010, no livro Educação: articulações, confrontos e controvérsias, organizado por Marcelo de A. Pereira, Rosa M. Filipozzi e Sandro de C. Pitano, pela Editora da UFPel, em Pelotas, RS (p. 75-94).

119

120

dividido. Um indivíduo do tipo cartesiano, que não apenas tem sua alma separada do corpo, mas é dotado de uma alma homogênea, cuja unidade impede qualquer distanciamento do Eu atual. Para tanto, supomos que existe um certo princípio de individuação, por meio do qual o indivíduo é individuado e individuável, e que ainda explica, produz ou conduz a sua realidade. A partir desse indivíduo dado, que tem primazia sobre qualquer outro, buscamos, então, remontar às condições da sua existência. Dessa maneira, enfocamos somente aquilo que constitui a individualidade de um ser já individuado, por acreditar que o indivíduo segue-se à individuação e por colocar o princípio de individuação antes, além e acima da própria operação de individuar. Espalhamos, assim, a individuação por toda parte, tornando-a co-extensiva ao ser, e a transformamos não somente no primeiro momento do ser fora do conceito, mas em todo o ser. Para o Pensamento da Diferença (Simondon, 2003; Deleuze, 2006), primordial é a própria operação de individuação e, nesta, a zona obscura (insuficientemente tratada pela tradição), na qual o indivíduo pronto é ligado ao princípio de individuação (princípio considerado efeito daquela operação). Assim, para esse Pensamento, o indivíduo acabado não é solução, mas o problema mais interessante a ser pesquisado e explicado. Um indivíduo que só pode ser contemporâneo da sua individuação e esta contemporânea do princípio de individuação. Ou seja, um indivíduo que não apenas é resultado, mas meio (milieu) de individuação; bem como a sua individuação não é o momento primeiro, nem abriga todo o ser: “não há substâncias, mas processos de individuação, não há sujeitos, mas processos de subjetivação” (Lévy, 2003, p. 28). Se, antes, considerávamos o docente, principalmente, como ser concreto, em sua completude, ou como substância, matéria, forma, é porque supúnhamos o ser unicamente como em estado de equilíbrio estável. A este equilíbrio (que excluía o devir, devido a seu baixo nível energético), a física quântica e a mecânica ondulatória acrescentaram a noção

de energia potencial de um sistema metaestável. Sistema supersaturado, situado acima do nível da unidade, carregado de tensões pré-individuais, que não é estável nem instável, tampouco se encontra em movimento ou em repouso. Sistema, no qual existe a disparação (disparation) de duas ordens heterogêneas de grandeza ou de realidade, sem que haja comunicação interativa entre elas. É a individuação que estabelece comunicação entre essas ordens díspares, resolvendo o problema pela atualização: que “o indivíduo mediatiza quando vem a ser” (Simondon, 2003, p. 101). Podemos, então, pensar o pré-individual, como onda ou corpúsculo, cuja individuação não esgota a imensa (e tensa) carga de potenciais, que compõem a condição prévia de sua individuação. Nesse caso, o indivíduo-docente, mesmo constituído, carrega consigo, em regime de metaestabilidade, a realidade pré-individual que o constitui, e que permanecerá sempre associada a ele, como fonte de estados futuros de onde sairão novas individuações. Decorre daí a distinção entre singularidade e individualidade do docente, já que o sistema metaestável concebe o pré-individual como provido de singularidades, as quais correspondem à existência e à repartição de potenciais do ser. Singular sem ser individual, eis o estado desse ser, tomado como um campo de singularidades pré-individuais, e que, acima de tudo, é diferença e disparidade. Singularidade de um ser, que não designa um estado provisório do nosso conhecimento, nem um conceito subjetivo indeterminado, mas, simplesmente, um momento do ser: o primeiro momento pré-individual, suposto “por todos os outros estados, sejam eles de unificação, de integração, de tensão de oposição, de resolução de oposições... etc.” (Deleuze, 2003, p. 118). Sendo, dessa maneira, organização de uma resolução para um sistema objetivamente problemático (não negativo), a individuação surge como o advento de um novo momento do ser, agora, fasado. O próprio processo de individuação é que cria as fases desse ser, as quais consistem no desenvolvimento de algumas das suas partes. Logo, do

121

docente pré-individual, pode-se afirmar que é o ser, no qual não existem fases; ao passo que, após a individuação, ele é o ser fasado, acoplado a si mesmo; enquanto o seu devir “é o ser em cujo seio se efetua uma individuação” (Simondon, 2003, p. 101). Essa concepção conecta a individuação e o devir do ser; faz o pré-individual permanecer associado ao indivíduo; e mantém o indivíduo como fonte de estados metaestáveis futuros. Portanto, ontologicamente, o ser-docente nunca é uno, já que, por excelência, é pré-individual, mais do que um superposto e simultâneo a si próprio. Mesmo individuado, ele ainda é múltiplo, porque defasado e polifasado, encontrando-se numa fase do devir que o conduzirá a novas operações, num processo de individuação permanente: “uma seqüência de acessos de individuação, avançando de metaestabilidade em metaestabilidade” (Simondon, 2003, p. 107).

Indivíduo

122

Falar assim da individuação do docente implica abrirse ao problema que atraiu Avicena (filósofo árabe do século XI), qual seja: “O que faz com que uma substância ou natureza comum a vários se torne este ou aquele indivíduo” (Orlandi, 2003, p. 90)? Interessa-nos, por isso, formular as seguintes questões: – O que faz de um docente um docente, em vez de um engenheiro, um advogado, uma psicóloga, uma nutricionista? – O que faz de um docente este docente? A ênfase não reside mais na indagação – O que é...?, a qual nos encaminha a perguntar sobre a essência do ser, mas radica no este..., o que configura uma inflexão sobre a sua existência (Antonello, 2002). Há, aqui, uma importante distinção entre o problema da individuação e o da especificação (denominada, genericamente, diferenciação): a especificação não enfatiza o individuar, mas o definir, desde que não queremos saber de um docente individual, mas do conceito Docente. Uma operação é, pois, conhecer e definir o Docente, isto é, deter-

minar ou apreender a sua essência, por meio do conceito: o que se pensa que o Docente é. Outra operação, ao contrário, é individuar o docente (para a qual já temos disponível o que o Docente é, pela via do conceito) e determinar a sua posição e existência. Segue-se que a definição do Docente é uma operação do tipo conceitual, enquanto a individuação do docente parece, à primeira vista, ser uma operação exclusivamente perceptiva. Assim, quando queremos individuar um docente, não perguntamos – O que o Docente é? E sim: – Onde o docente está, neste momento? Operamos, dessa maneira, um reconhecimento no ambiente circundante e, dentre todos os que exercem a docência, selecionamos aquele docente que se distingue dos outros, por meio de um conjunto de traços que o diferenciam. Se, portanto, o intelecto define e a percepção individua, podemos dizer (com filosofemas tradicionais) que o docente é definido por algo essencial e individuado por algo empírico e acidental. Entre definir o Docente e individuar o docente existe uma relação análoga àquela que há entre demonstrar e mostrar, de modo que, se podemos mostrar um docente não temos necessidade de demonstrar o que é o Docente; ou, ainda, se temos um docente mostrado não precisamos demonstrar que ele é o Docente, pois temos necessidade de demonstrar unicamente aquilo que não podemos mostrar. O indivíduo-docente, por conseguinte, não é definível, mas pode ser apenas indicado, mostrado; enquanto, ao contrário, o Docente, como conceito, não é individuável, já que não tem nem um onde nem um quando. É, assim, a própria individualidade de um docente que o subtrai de toda possível definição. Interrogar o princípio da sua individuação é, nesse caso, querer saber: – O que faz um docente deixar de ser somente definível e passar a ser descrevível? Ou então: – O que transforma um docente definível em um docente indicável? E ainda: – O que transforma o Docente (enquanto universal, pensável e definível, por via conceitual) neste docente, localizável na realidade, por via empírica?

123

Ora, acontece que a individualidade de um docente consiste naquilo que o determina em seu ser, de modo que ele é este docente e não outro. As determinações que individualizam um docente não dizem respeito à essência, mas ao ser e, portanto, não são determinações reais, mas ônticas. Um docente, em sua individualidade, não se iguala a nenhum outro e, primariamente, consiste no ser, enquanto não é outro. Falar em individualidade nos leva a considerar não somente este docente, mas mais de um docente: ao menos dois. Assim, mesmo que, no problema da individuação, encontremos uma diferença numérica entre indivíduos, se essa diferença for concebida tão-somente como real, revela-se insuficiente, por permitir o ato de substituição indiferente dos indivíduos, o qual é totalmente antagônico ao processo de individuação.

Unidade, identidade, igualdade

124

Desde que ressaltamos o movimento que vai do préindividual ao indivíduo, ficam abaladas tanto a unidade do ser (síntese, sujeito), como característica do ser individuado, quanto a identidade (“que autoriza o uso do princípio do terceiro excluído”) do indivíduo, já que este é apenas uma fase do ser, posterior à operação de individuação. Como escreve Simondon (2003, p. 110): o ser “não possui uma unidade de identidade, que é a do estado estável em que nenhuma transformação é possível”, e sim “uma unidade transdutora”: isto é, “ele pode defasar-se em relação a si próprio, ultrapassar a si próprio de um lado e de outro de seu centro”. O indivíduo-docente integra, nessa perspectiva, um regime de além-unidade e de alémidentidade. Por outro lado, podemos pensar que a individualidade diz respeito mais a um problema de identidade do que de igualdade. Se, por exemplo, um docente afasta-se de uma determinada escola, a Direção pode contratar outro docente igual àquele que se afastou: com formação na mesma área ou disciplina, o mesmo nível de especialização,

a mesma carga horária de trabalho, e assim por diante. Mas o que a Direção não pode é reaver o mesmo docente. Se, no entanto, a Direção considera que está recebendo um docente igual àquele que se afastou, exprime, com essa atitude, uma absoluta indiferença em relação à individualidade do primeiro docente. Se o interesse da Direção é somente reencontrar as mesmas características e funções do primeiro, e ela aceita o outro docente, igual àquele afastado, é porque não o queria, enquanto tal. É por isso que o espaço e o tempo funcionam como princípios de individuação de todos os entes, dentre os quais os docentes. Entretanto, quanto a isso, vale indagar: – Para determinar a individualidade de um docente, é suficiente a determinação espaço-temporal, sobre a qual se funda a distinção numérica entre os docentes, isto é, a sua multiplicidade? – Podemos usar o princípio de individuação, pela via de algo determinado, como a quantidade, o espaço e o tempo? – Podemos partir do docente individuado para buscar as determinações acidentais que o tornam tal qual é? Mesmo que a concepção de individualidade, como multiplicidade numérica, seja atribuída à matéria, temos que o conceito não é exclusivamente material, nem a sua unidade é formal. Como conceito, Docente é um universal propriamente dito, uma unidade de tipo coletivo, divisível, capaz de dar lugar a uma multiplicidade de instâncias, que recaem todas sob o mesmo conceito (embora essas instâncias não sejam ulteriormente divisíveis). Assim, o Docente – seja como conceito genérico ou específico – é ilocalizável em alguma instância, ou seja, capaz de transmitir as próprias determinações a um número infinito de indivíduos. Isso porque o universal, enquanto forma única e idêntica de uma multiplicidade, caracteriza-se por sua capacidade de dividir-se em partes, de modo a não romper a própria unidade: Paulo, André, Sérgio, Flávia e Juliana são divisões do conceito Docente e, mesmo assim, ainda são docentes. O conceito é dividido pelos indivíduos que o integram, mas apenas logicamente. A multiplicidade dos indi-

125

126

víduos necessita tanto da unidade lógico-formal (não material), quanto da identidade do conceito (o universal predicável de cada um dos seres). Porém, essa divisão numérica é entendida como uma divisão real, substancial (não lógico-formal), e o indivíduo é concebido não como um universal, já que não pode predicar-se de nada. Logo, a dimensão sensível não é fator individuante, mas o princípio definidor do individual em relação ao universal e do perceptível em relação ao pensável. Admitindo-se, por exemplo, que André diferencia-se do conceito Docente por ser sensível, não podemos evitar a conclusão que o ser-docente material é precisamente aquilo que reúne André e Sérgio, isto é, aquilo que os torna não conceitos mas indivíduos: exatamente indivíduos (genericamente falando), não propriamente os indivíduos chamados Sérgio e André. Dessa maneira, embora individuação, multiplicidade e distinção numérica estejam conectadas (Aristóteles, 1954, Livro V, IX, p. 108-109; Livro XII, p. 242-262), se voltamos ao exemplo do docente que se afasta da escola e é substituído por outro, constatamos que a perfeita igualdade entre os dois docentes e a distinção entre eles, por meio de determinações espaços-temporais, consiste justamente naquilo que os torna intercambiáveis entre si; ou, em outras palavras, naquilo que torna irrelevante a individualidade de cada um. Assim, se reinvidicamos que são apenas o onde e o quando que sustentam a individualidade de cada docente, encontramos a sua existência como sendo nada mais do que um acidente ou a mera posição da essência, o que leva tal individualidade a se perder. Ou seja: se dois docentes são perfeitamente iguais (símiles, indistinguíveis), não há nenhuma razão intrínseca para que sejam dois. E se não há qualquer distinção entre diferentes indivíduos, por serem totalmente indiscerníveis entre si, cai por terra o próprio princípio de individuação. Por isso, os indivíduosdocentes não diferem apenas por determinações extrínsecas, mas, entre eles, há diferenças que lhes são atribuídas por qualidades intrínsecas.

Virtual São as qualidades intrínsecas de cada indivíduo que fazem dele um ser eminentemente virtual, como argumenta Duns Scott (Antonello, 2002). Virtual, não enquanto um ser formado por possibilidades, à espera de um ato externo, que o transforme em docente, mas um ser dotado de essências plenamente determinadas, embora ainda não explicitadas em alguma forma de ser. Um docente, assim, não é este docente (um ente particular); nem é o conjunto dos docentes (uma multiplicidade de entes particulares); tampouco pode ser confundido com o conceito Docente (um universal). Isso porque um docente não pode predicar-se, do mesmo modo pelo qual um universal se predica de um singular, ou seja: podemos dizer que Paulo é um docente, mas não podemos dizer que Paulo é toda a Docência. Nesse sentido, o docente carrega sempre, em si, alguma forma de indeterminação originária e possui uma pura potencialidade de atualização. Logo, nenhuma determinação pode individuar plenamente um docente, já que a individuação (visto ser abertura e virtualidade) não exige nem a universalidade nem a singularidade, sendo indiferente quer ao uno quer a muitos. Se, inclusive, a individuação produzisse um composto docente, formado de substância mais acidentes, o indivíduo, assim produzido, seria um docente ontologicamente diminuído, na medida em que se distinguiria dos outros docentes apenas em função dos acidentes. A sua individualidade não diria respeito à essência, mas a uma limitação da mesma; enquanto a sua dignidade ontológica estaria subsumida pela forma inteligível do indivíduo, já que este nada mais seria do que uma particularização acidental da essência. Para a ontogênese da individuação, ao contrário, a diferença pura do docente não é a posse ou a privação de uma determinação, uma vez que ela é essencial, ou seja: uma organização diversa, um projeto diverso, uma estruturação diversa do indivíduo em sua inteireza.

127

Em devir

128

Talvez, neste momento, se entenda melhor porque a individuação é apreendida não como modelo do ser, mas designando o caráter de devir do ser: aquilo pelo qual o indivíduo devém enquanto ser. Talvez se veja melhor que o devir não é um quadro, no qual o ser existe, pois, mais do que uma dimensão, o devir é o próprio ser: um modo de resolução de uma incompatibilidade inicial, rica em potenciais. Talvez, agora, se perceba mais nitidamente que a individuação, como devir, corresponde ao surgimento de fases no ser, das quais o indivíduo é apenas uma das fases. Talvez se intua melhor porque a individuação não é uma conseqüência, postada ao lado do devir ou dele isolada, mas a própria operação de individuação ao ser efetuada. Talvez se identifique melhor o ser, em cujo seio se efetua a individuação, pela capacidade de desdobrar-se em relação a si mesmo, de resolver defasando-se, e de carregar, em si, uma dimensão pré-individual, para a qual nenhuma fase existe. Talvez se compreenda melhor porque o indivíduo é contemporâneo da sua própria individuação e esta contemporânea do princípio de individuação. Talvez, neste ponto, também fique mais consistente a idéia de individuação como situável em relação ao ser, num movimento que passa do pré-individual ao indivíduo, sendo este não apenas resultado, mas meio de individuação. Com essas inflexões, consegue-se pensar o primado atribuído ao indivíduo ainda não constituído, em vez do privilégio costumeiramente dado ao indivíduo já constituído. Consegue-se aquilatar a necessidade de tomar a operação individuadora como algo a ser explicado e não como a tranqüila fonte que fornece explicações. Consegue-se passar, mais lentamente, em primeiro lugar, pelo princípio de individuação; a seguir, pela operação de individuação; e, por fim, não chegar tão rapidamente à realidade última que é o indivíduo. Consegue-se armazenar dedicação para conhecer mais o indivíduo por meio da individuação do que esta a partir daquele. Consegue-se fabular o indivíduo como uma

realidade relativa, por implicar uma anterior realidade pré-individual. Consegue-se imaginar que o indivíduo não existe completamente só, mesmo após a individuação, já que esta não esgota os seus potenciais pré-individuais. Consegue-se sentir que aquilo que a individuação faz aparecer não é apenas o indivíduo, mas o par indivíduo-meio. Desse modo, pensar a imanência entre a individuação e o indivíduo; conceitualizar a individuação como operação complexa ativada no indivíduo; e tomar o indivíduo como meio de individuação, que implica uma realidade préindividual, erige, na Educação da Diferença, o campo de um empirismo transcendental (Deleuze, 1988, p. 236-237; 1998, p. 69, p. 125 ss.). Empirismo, no qual as faculdades são levadas a exercícios transcendentais, não decalcados sobre formas empíricas ordinárias determinadas pelo senso comum (Deleuze, 1994), nem sobre a relação entre um sujeito e um objeto (Deleuze, 2001). Empirismo, no qual as relações são exteriores a seus termos, não há submissão dos dados da experiência às representações a priori, nem aplicação dessas representações à experiência (Deleuze, 1994); mas como um domínio composto pela natureza intensiva das singularidades nômades, impessoais e pré-individuais que o povoam (Machado, 1990; Heuser, 2008). Esse empirismo de potência superior revela um mundo de exterioridade, em estreita relação com o Fora, de maneira que o docente pode ultrapassar os dados imediatos e a cristalização das singularidades, realizada segundo percursos determinados. Em conseqüência, modifica as relações com os docentes encontrados em nosso cotidiano e, também, conosco mesmos; pois, desde uma “posição de ser”, que se desenvolve “no interior de uma nova individuação”, toda relação “não surge entre dois termos que já seriam indivíduos”, mas consiste num “aspecto da ressonância interna de um sistema de individuação” (Simondon, 2003, p. 106). Preferimos, assim, no cotidiano, indagar pelo sistema metaestável, no qual estamos tomados durante o processo de individuação; descobrir suas inusitadas dimensões; explorar suas problemáticas; agitar seus díspares; detectar

129

suas dissimetrias; disparar o em-si da diferença pura. Pois, como indivíduos-docentes, nos concebemos dotados de um precário e metamórfico revestimento de individuação, produzido no campo de resolução da realidade-atual (em que as singularidades pré-individuais, ainda não canalizadas, distribuem-se nomadicamente), e que transborda para o rico campo problemático da realidade-virtual (Deleuze, 1998; Orlandi, 2003).

Impessoal Porque pensamos os processos de individuação (que se desdobram e excedem os indivíduos, por serem desproporcionais à unidade), entramos numa realidade que não podia ser percebida, quando éramos guiados pelos conceitos de indivíduo (desde sempre constituído) e de sua identidade. A partir daí, nosso encontro é feito com um impessoal, designado por um modo de individuação que formula o princípio individuador de sujeitos, objetos e indivíduos constituídos (Deleuze, 2002). Ficamos diante desse ser que, desde as operações pré-individuais que o constituem, passando pelo indivíduo como uma de suas fases, segue em direção à superação, enquanto realidade dada. É assim que, finalmente, o docente pode ser pensado da maneira que privilegia os acontecimentos, em detrimento das subjetividades e das objetividades. Maneira, para a qual não existem objetividades e subjetividades, a não ser aquelas operadas por acontecimentos (como fluxos de criação pré-individual), e que reporta tanto os indivíduos a acontecimentos quanto os acontecimentos a indivíduos-docentes.

Ensinartistar em XX devires 1. Devir-enxame. O devir-docente começa pelo devirenxame de partículas.

130

2. Devir-atmosfera. Neste devir, o importante não está no sujeito, como ponto ou centro, mas naquilo

que se passa entre os docentes e seus corpos: um acontecimento impessoal. 3. Devir-olho. Possuindo um olho que não pára nos indivíduos, esse devir vai aos acontecimentos puros e aos outros devires, que funcionam por meio de potências afectivas (com poder de afectar e de ser afectadas), nas fases de um processo de individuação. Devir-potência, que descobre sob “as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau: um homem, uma mulher, um animal” (Deleuze, 1997, p. 13). Arte é o nome desse reino de individuações sem sujeito, que é percorrido por: uma docente-hora-do-dia; um docente-pontos e outra docente-brilho compondo telas; um docenteritornelo que assobia um tralalá (Costa, 2006); um docente-rua e outra docente-nua; um docente-olhar e outra docente-haicai; um docente-infantil e outra docente-anil; um docente-poema e outra docenteromance; um docente-puma e outra docente-pluma; e assim por diante. 4. Devir-traços. Não basta afirmar que o docente é impessoal, como oposto ou ao lado das individuações subjetivas, já que é cada elemento seu (mesmo o rosto, sentimentos, cores, desejos) que se torna singularidade impessoal. De um docente em devirimpessoal, no qual acontece a emergência de traços circunstanciais (que são de outra ordem que os processos pessoais), elimina-se todo recurso ao geral (Docente), pois a sua singularidade não é da ordem do indivíduo, mas dos acontecimentos e das atmosferas (Deleuze, 1997; 1998). 5. Devir-viagem. A artistagem docente expressa-se pela exploração de meios, realização de trajetos e de viagens, numa dimensão extensional. Dimensão,

131

para a qual, não são suficientes os traços singulares dos implicados no trajeto, mas, ainda, a singularidade dos meios refletida naquele docente que o percorre: materiais, ruídos, acontecimentos. Em devir-trajetória, o docente dá partida a uma operação de individuação, que se desdobra e se individualiza em personagem e meio, e os conduz por uma via impessoal. Como, por exemplo, no trajeto da fabricação de um currículo, um docente depende da cartografia feita com mapas, caminhos, planos de viagem, encontros e muito pouco (quase nada) de memória. Assim como os “Desprendimentos: aprendizagens” de Octavio Paz (1976, p. 170): “Viajar não é morrer um pouco e sim exercitar-se na arte de despedir-se para, assim, já leves, aprender a chegar, aprender a receber”. 6. Devir-gradiente. Definido, ontologicamente, pelas populações de afectos e de intensidades de que o docente é capaz, para esse devir, não há subjetividade, pessoalidade nem humanidade, pois é vivido num plano de vida pré-subjetivo: como grau de potência ou diferença intensiva. 7. Devir-turbilhão. Trata-se do movimento de docentes, em efervescência do caos, que efetuam o trânsito das intensidades mais radicais. 8. Devir-bebê. Seguindo o último texto de Deleuze (2002), A imanência: uma vida..., o docente é dotado de uma vida indefinida – a vida de um bebê –, na qual os afectos e os problemas são transformados em signos puros da arte e em intensidades de um rosto (Deleuze; Guattari, 1996). Rosto, que afirma a grandeza de uma vida.

132

9. Devir-rede. Desde os conceitos de individuação e de impessoal, as singularidades extensivas (trajeto e

meio) e as intensidades (afectos) introduzem-se na problemática do docente, fazendo com que ele não possa mais ser pensado sem os dinamismos dessa realidade complexa e diferenciada, que o tornam uma multiplicidade. Enquanto multiplicidade interconectada ou que vive entre multiplicidades, numa rede de conexões fora da qual não há individuação, o docente entra em movimentos que fazem dele um ser sempre agitado por intensidades (Nodari, 2007). 10. Devir-grupo. Ao individuar-se, o docente integra uma problemática vasta e participa de amplos sistemas de individuação. Estabelece aí relações, de maneira que a sua realidade pré-individual reúne-se à de outros docentes, o que os leva a participarem de uma operação de individuação coletiva. Os processos de individuação supõem, assim, não um simples somatório de indivíduos, mas um estado transindividual, dotado de potenciais de transformação e de constituição de novas individuações. Esse movimento vai em direção contrária ao que afirma um senso comum disforme, supersticioso, obtuso e equivocado epistemologicamente, alimentado por quem acredita que o indivíduo é um ponto de partida imediato. Desde o ponto de vista ético, no coletivo, a singularidade não apenas não se dilui, mas a vida em grupo é o momento de uma ulterior e mais complexa individuação. Na esfera pública, longe de ser regressiva, a singularidade é polida e alcança o seu apogeu pela atuação conjunta e pluralidade de vozes. Assim entendido, o coletivo não prejudica nem atenua a individuação, mas a persegue e aumenta a sua potência, desde que tal continuidade concerne àquela parcela de realidade pré-individual que o primeiro processo de individuação não resolvera. Logo, a instância do coletivo é ainda uma instância de individuação, na qual está em jogo a

133

tarefa de dar, ao indivíduo, uma forma contingente e impossível de confundir com o indeterminado, que precede a singularidade: “Podemos chamar Natureza a essa carga de indeterminado” (Simondon, 2003, p. 102). 11. Devir-cristal. Consiste num devir movimentado por uma operação transdutora, a qual, mais do que ser aplicada à ontogênese, é a própria ontogênese, ou seja: uma “operação física, biológica, mental, social”. Operação, por meio da qual, “uma atividade se propaga gradativamente no interior de um domínio”, e funda essa propagação “sobre uma estruturação do domínio operada de região em região”. A região de estrutura constituída serve de princípio de constituição à região seguinte, ocasionando uma modificação que se estende ao mesmo tempo que a operação estruturante. O docente em devirtransdutor cresce e aumenta, desde um germe pequeno, no centro do seu ser, em todas as direções. Disso resulta “uma estrutura reticular amplificante”, em que cada camada molecular serve de base à camada em formação. Esse devir exprime não apenas a individuação orgânica do docente, mas também suas operações psíquicas, procedimentos lógicos e mentais; além de, quanto ao saber, definir os progressos de invenção: a qual “não é indutiva nem dedutiva, mas transdutora”, e corresponde “a uma descoberta das dimensões segundo as quais uma problemática pode ser definida” (Simondon, 2003, p. 112, p. 113).

134

12. Devir-escritor. Como na literatura menor (Deleuze; Guattari, 1977), esse devir processa-se numa condição da linguagem que não aquela de um coletivo entendido como fundo social que fica em segundo plano. Utiliza o conceito de agenciamento não somente para apontar a existência de dois

termos (1 docente + 1 docente), e sim para conectar heterogêneos, o que faz algo acontecer entre os docentes: uma operação de individuação que os cerca e arrebata. Da mesma maneira que o escritor e os seus personagens são tomados num agenciamento coletivo de enunciação, o docente, em devir-escritor, não dá a palavra àqueles que não a possuem, mas encontra-se com eles. Encontro, sem o qual nada haveria, nem palavras. 13. Devir-prenhe. Desde que tem o corpo prenhe de devires, o docente encontra o seu pedaço de mundomenor, o seu povo-menor, o seu currículo-menor, o seu aluno-menor, a sua aula-menor, o seu textomenor. E torna-se tudo isso. A docência-menor expressa o conjunto desses encontros. 14. Devir-abertura. Devir que abre as subjetividades, os objetos e as palavras da docência a uma virtualidade que os extrapola, para além dos limites do individual e do meramente coletivo. O docente atinge, assim, processos e acontecimentos que transformam relações, saberes, exercícios, livros. 15. Devir-infinitivo. Sendo o princípio de individuação a origem da hecceidade, a forma verbal do infinitivo (chegar, encontrar, planejar, ensinar, escrever, etc.) apreende as singularidades de sentido e o tempo do acontecimento puro da docência, independentemente de coordenadas espaços-temporais. Na mesma direção, o docente verifica que nomes próprios, artigos e pronomes indefinidos designam individuações por hecceidades (Deleuze, 1998); pois, nomear algo (como uma invenção, um cálculo, uma operação curricular) é recolher na linguagem traços evenemenciais, que se encarnam no designado e encontram sua individuação no agenciamento do qual fazem parte.

135

16. Devir-larvar. O docente não coincide com aquele individuado, senão contém em si uma proporção irredutível de realidade pré-individual, que passa pela operação de individuação, sem ser efetiva ou totalmente individuada. Nesse devir-anfíbio, brilha o aspecto in-individuado do docente: o tecido íntimo do sujeito. 17. Devir-anônimo. Aqueles que persistem no erro de assimilar o sujeito ao docente individuado não atentaram suficientemente para a sua realidade préindividual e ignoram o que nele é meio. Condenamse, assim, a não encontrarem jamais a via do trânsito entre interior e exterior, entre Eu e Mundo. 18. Devir-frágil. No domínio do sujeito-docente, a coexistência do pré-individual e do indivíduo é mediada pelas emoções e paixões, que assinalam a integração provisória dos dois aspectos; além de, também, ser mediada por um eventual desapego, já que não faltam crises, recessões, catástrofes. Inclusive, para o docente, resta medo, pânico, angústia, na medida em que ele não consegue compor os aspectos pré-individuais da sua experiência com aqueles já individuados. O docente sabe que, entre a sua natureza pré-individual e o ser, é o aqui-eagora que é individuado; mas reconhece também que esse aqui-e-agora pode impedir uma infinidade de outros aquis-e-agoras virem à tona. Dá-se conta, assim, que a individuação nunca está garantida de uma vez para sempre, visto que ela pode fragilizarse, trincar, romper-se, estalar, reduzindo os aspectos pré-individuais da experiência a uma singularidade apenas pontual.

136

19. Devir-abolição. Concerne a uma vida enquanto ex-pressa. A expressão homo tantum (homem simplesmente) abole a pessoa, lapida o seu poder

de dizer Eu, e faz emergir uma quarta pessoa, pela qual ninguém fala, da qual ninguém fala, mas que, todavia, existe: um extra-ser, como o acontecimento do qual o indivíduo se faz o sujeito (Shérer, 2000). Esse indivíduo encontra aí a dispersão ou a elusão do sujeito, o ego dissolvido e o Eu rachado, como diz Deleuze (2002, p. 12-14): “a vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, mas singular, que desprende um puro acontecimento, liberado dos acidentes da vida interior e da vida exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade daquilo que acontece. Homo tantum do qual todo mundo se compadece e que atinge uma espécie de beatitude”. Em tal devir, o docente substitui o Eu-penso-logosou, toda consciência de sujeito, sua individualidade maciça, molar (característica de uma pessoa artificial ou alegórica), por singularidades moleculares e moventes, destacadas de um campo transcendental. Um campo impessoal, que junta o mais impessoal com o mais singular, e onde as singularidades são verdadeiros acontecimentos transcendentais (nem individuais nem pessoais), que presidem a gênese do indivíduo. 20. Devir-alquimia. Este devir liberta o docente do peso das normas, das obrigações do comportamento social, do sujeito pessoal, de tudo que o estrutura fixamente. Sua natureza (aberta por um vazio, quando a linguagem falta) movimenta-se como dinamismo e potência, dos quais ele é expressão imanente. Ocupa, assim, um lugar alquímico de criação. Lugar operado pelo impessoal, onde coisas e palavras se trocam. Lugar, nem exterior nem interior, abandonado tanto pela subjetividade como pela objetividade. Lugar, no qual o acontecimento incorporal eclode, abre a região do sentido, opõe-se à incerteza das determinações do verdadeiro e do falso, do bem e do mal. E, assim, de banal, vulgar,

137

lamurioso, o docente, com os seus devires, convertese em índice da mais alta potência: a evidência da singularidade não perecível e insubstituível de uma vida de docência.

Como? Agora: – Como criar uma artistagem docente? O pontolimite que detona nossos devires-docentes é o inexperimentado, o imperceptível, o impensável, o inominável, o indizível, o inimaginável, o intolerável. Graças ao acontecimento e ao impessoal, a vida é disputada à morte; e esta obtém valor somente por revelar a vida. A individuação mostra, de um lado, a vida; enquanto a morte fica do lado do Eu: “Toda vida é, obviamente, um processo de demolição” (Deleuze, 1998, p. 157). Ocorre de nós, docentes, em movimento permanente de individuação, decididamente estancar nossos Eus, para viver como um conjunto de fluxos, em relação com outros fluxos (fora de nós e em nós), permanecendo abertos a todos os devires e podendo “unicamente individuar, individuar-nos e individuar em nós” (Simondon, 2003, p. 117). Nesse complexo Teatro da Individuação, criamos, assim: 1) uma Estética da Composição Transdutora; 2) uma Ética da Individuação/Subjetivação/Virtualização; 3) e uma Política do Devir-Artista. Ética, Estética e Política, que abarcam encontros corajosos com o Fora selvagem; um transitar improvisador no Caosmos; uma vertigem axiológica dos problemas vitais; um nomadizar a alegria das cenas e a beleza dos personagens, como expressões vibrantes de uma vida docente criadora de diferença.

Referências ARISTÓTELES. Metafísica. (Trad. Patricio de Azcárate.) Buenos Aires: EspasaCalpe, 1954. ANTONELLO, Giuliano. Capítulo 3: O problema da individuação. In: SILVA, T.T.da. Introdução à leitura de Diferença e repetição, de Gilles Deleuze, 2002. (Texto dig.) (Trad. Tomaz T. da Silva.)

138

CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens: filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

COSTA, Luciano Bedin. da. Ritornelos, takes e tralalás. Porto Alegre: PPGEDU/ UFRGS, 2006. Dissertação de Mestrado. 82 p. (Texto dig.) DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. A filosofia crítica de Kant. (Trad. Germiniano Franco.) Lisboa: Edições 70, 1994. _____. Crítica e clínica. (Trad. Peter Pál Pelbart.) São Paulo: Ed.34, 1997. _____. O atual e o virtual. In: _____; PARNET, Claire. Diálogos. (Trad. Eloisa A. Ribeiro.) São Paulo: Escuta, 1998 (p. 171-179). _____. Lógica do sentido. (Trad. Luiz R. S. Fortes.) São Paulo: Perspectiva, 1998. _____. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. (Trad. Luiz B. L. Orlandi.) São Paulo: Ed. 34, 2001. _____. A imanência: uma vida.... In: Dossiê Gillles Deleuze. (Trad. Tomaz Tadeu.) Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, julho-dezembro 2002, p. 10-18. _____. O indivíduo e sua gênese físico-biológica. In: ORLANDI, Luiz B. L. (Org.) A ilha deserta: e outros textos. (Trad. Luiz B. L. Orlandi.) São Paulo: Iluminuras, 2006 (p. 117-121). DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. (Trad. Júlio C. Guimarães.) Rio de Janeiro: Imago, 1977. _____. Ano Zero: Rostidade. In: _____. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. (Trad. Ana Lucia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996 (p. 31-61). _____. Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível.... In: _____. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. (Trad. Suely Rolnik.) São Paulo: Ed. 34, 1997 (p. 11-113). DOSSIÊ GILLES DELEUZE. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, julho-dezembro 2002. HEUSER, Ester Maria Dreher. Pensar em Deleuze: violência às faculdades no empirismo transcendental. Porto Alegre: PPGEDU/UFRGS, 2008. Tese de Doutorado. 214p. (Texto dig.) LÉVY, Pierre. Plissê fractal. In: _____. Cadernos de Subjetividade. O reencantamento do concreto. (Trad. Soraya Oliveira.) São Paulo: Hucitec, EDUC, 2003 (p. 23-37). MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990. NODARI, Karen Elisabete Rosa. Além da escola: percursos entre Nietzsche e Deleuze. Porto Alegre: PPGEDU/UFRGS, 2007. Tese de Doutorado. 191p. (Texto dig.) ORLANDI, LUIZ B. L. O indivíduo e sua implexa pré-individualidade. In: _____. Cadernos de Subjetividade. O reencantamento do concreto. São Paulo: Hucitec, EDUC, 2003 (p. 87-96). PAZ, Octavio. Signos em rotação. (Trad. Sebastião U. Leite.) São Paulo: Perspectiva, 1976.

139

SHÉRER, René. Homo tantum. O impessoal: uma política. In: ALLIEZ, Éric (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. (Trad. Paulo Nunes.) São Paulo: Ed. 32, 2000 (p. 21-38). SIMONDON, Gilbert. A gênese do indivíduo. In: _____. Cadernos de Subjetividade. O reencantamento do concreto. (Trad. Ivana Medeiros.) São Paulo: Hucitec, EDUC, 2003 (p. 97-117).

140

PARTE 3

CURRÍCULO E DIDÁTICA

OS SENTIDOS DO CURRÍCULO: necessidades inadiáveis7

7

Das necessidades inadiáveis Nesta mundialização liberal, polimorfa e cruel, temos, no Brasil, um pensamento curricular que nos força a criar problemas e a nos posicionar, cada vez mais criticamente, diante da megamáquina capitalista e de suas insaciáveis formas de controle social e dominação subjetiva, miséria e mediocridade, crimes, solidão e horror? Neste momento de fascínio pela globalização econômica reprodutora e cultural homogeneizadora (em que comunidades e indivíduos portam um niilismo absoluto ou um pessimismo atávico), qual currículo, dentre os que conseguimos produzir, mantém-nos em devir-revolucionário (no domínio do indestrutível), para nos confrontar, radicalmente, aos abismos econômicos, sociais, tecnológicos, políticos? Neste aqui-e-agora de ligação (alienadoramente apaixonada) com a mídia e a publicidade humanista, as teorias de formação de professores desenvolvem uma nova sensibilidade para afectos e perceptos, disjunções inclusivas e conjunções intensitárias, anteriores aos códigos e irredutíveis à cognição? Para o limite neutro de níveis marginais de sentido? Para a violência inerente às definições e iden-

7

Com o título “Os sentidos do currículo”, este texto foi publicado na Revista Teias (Online), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ, no “Dossiê Currículo” (v.11, p. 1-15, 2010), sob a coordenação de Alice Casemiro Lopes; uma versão integral do mesmo texto, com o título “Diga-me com quem um currículo anda e te direi quem ele é”, estabeleceu-se no livro organizado por mim e intitulado Fantasias de escritura: filosofia, educação, literatura, Editora Sulina, Porto Alegre, 2010 (p. 143-171).

143

144

tificações? Para os processos gerativos de individuação ou de subjetivação, antes do que para subjetividades ou sujeitos, constituídos pela Filosofia do Indivíduo coextensivo ao Ser (Deleuze, 1988; 1994; 2001)? Nestes espaços de neo-arcaísmos (família universal; juventude eterna; saúde puritana; lei seca do álcool e drogas molhadas; corrupção rotineira; direitos humanos estupefatos; esporte analfabeto bilionário; tirania disfarçada de pregação; etc.), ainda impregnados pelas dicotomias Indivíduo/Estado, Homem/Mulher, Inclusão/Exclusão, o pensamento curricular nos orienta no tecido fibroso dessa realidade e nos faz transbordar dessas dicotomias, ao introduzir, entre elas, insuspeitas dobras e lutas variadas? Nesta rede planetária de tecnocosmos, ciberespaço, reprodução regulada por computador, exploração genética, pedofilia em rede, fast-food googleano, bioética, biodiversidade, DNA, células tronco, idiotia comunicacional, automatismos informatizados, besteiras mecânicas e industriais, a Educação nos livra da Epistemologia da Pureza Essencial e da sua correspondente apreensão de seres, fenômenos e coisas estáveis, ao fazer a Diferença Pura, com sua capacidade de se multiplicar? Ou nos encaminha, no máximo, até a variedade e a diversidade multiculturais, como sendo o Bem Máximo? Nesta época de fragmentação em mil marcadores sociais e culturais, em que estaríamos fortemente individuados e personalizados (como seres humanos, pessoas, etnias, gêneros, classes), as teorias de formação questionam a serialidade majoritária e as formas inerciais da subjetividade capitalística (trivial, frívola, supérflua)? Desvelam o engano de achar que, fora das luzes da razão e dos centros de significância, divisões e hierarquias identitárias, existe somente confusão, anarquia, absurdo ou o indiferenciado? Agora, em que as minorias coincidem com o povo por vir (multidão indefinida), qual currículo se abre para subjetividades esgarçadas e sujeitos desfigurados? Qual teoria metamodeliza figuras emergentes e tipos sociais transitórios? Qual agrupamento curricular amplia e supera

os próprios viscos subjetivos, de interesse e de poder? Qual pensamento penetra em costumes e revira maneirismos do avesso, estimulando processos de minorização e singularização, incorporando zonas de indeterminação, que acompanham formas de organização, e são correlatas à Substância de Spinoza e à Vida para Nietzsche (Deleuze, 1994; 1999; 2002; Deleuze e Guattari, 1996a)? Neste pesadume do presente, o campo curricular fundamenta-se nos resultados de exames nacionais e nos rankings internacionais? Radica na expertise de alguns poucos? Por inanição, prediz e conserva certezas de conhecimentos estabelecidos, ou desorbita a tradição e a faz abandonar suas elipses para inserir-se em outras? Reelabora o que extrai das culturas, trabalhando o sentido da novidade e da originalidade, não como transgressão ou interrupção, mas como arte da conexão e da experimentação: ousadia de querer pensar, deixar-se afetar e se apaixonar (Deleuze, 1988)? Quais educadores inventam travessias, produzem efeitos de margem, fim das continuidades, ultrapassagem das fronteiras? Quais cavoucam sombras e mistérios? Quais criam outras materialidades para os fazeres-saberes? Quais produzem coletividades anômalas, idades bastardas, pensamentos vagos, além de Bem e Mal? Quais estabelecem ressonâncias, articulações, encontros, traduções, transduções, entre elementos dos diversos domínios culturais, abrem mundos possíveis e acabam de vez com o Juízo de Deus (Deleuze 1997; 1998b)? A Pedagogia torna visíveis problemas que persistem nas soluções e concebe uma ciência nômade (anexata, itinerante, ambulante), que não se confunde com a “ciência régia” (de Estado) e seus procedimentos científicos “de reprodução, de iteração e reiteração” (Deleuze e Guattari, 1997c, p. 39-40)? A formação de professores opera com um empirismo transcendental imanente, impelido pelo vitalismo? Isto é, age sobre o que está em gestação, redefinindo noções de realidade, prática, abstração, fantasia? Mantém-se no fictício

145

e excede o real? Formula, ainda, problemas lógico-identitários, que remetem ao domínio do Ser (O que é o currículo...) ou problemas de vida, que alimentam as potências do devir (Como construir um currículo, para mim e para o mundo, enquanto obra de arte...) (Deleuze, 1988; 2001)? Afinal, o pensamento educacional brasileiro pensa? Confia que algo passará do seu agenciamento trans-histórico, embora não forneça certeza do que será (Deleuze e Guattari, 1997c, p. 218-220)? Ou fica na nostalgia das revoluções do século XX, na doxa, no bom senso, no senso comum, na bagagem acumulada, na recognição, na tradição não criticada? O campo do currículo lavra, continuamente, suas terras, para nelas semear o ineditismo da contemporaneidade, que é a nossa, e que não pode deixar de ser tratada? As teorias pedagógicas criam a alegria afirmativa de educar, via procedimentos inatuais, extemporâneos, intempestivos, para que nunca mais tenhamos de tolerar o intolerável?

Da epistemologia política

146

Por que há urgência de perguntar (e de responder) ao que foi perguntado? (Além de, a seguir, apontar o sentido de um currículo geograficamente orientado, isto é, de um geocurrículo.) Porque, desterrados e clandestinos, habitamos lugares permanentemente controlados ao ar livre (Deleuze, 1992). Periferias transformam-se em desertos. Bandos e maltas aumentam o seu poder de fogo. Somos conjunção-disjunção de comércio de informações, sobre-produção global, internacionalização do acelerado capitalismo de mercado. Espaços e tempos estendem-se indefinidamente, em função da linhagem tecnológica da todo-poderosa divindade do século XXI, chamado “O Sistema”. Porque o pensamento curricular, longe das coações, dá-se conta da impotência do entendimento binário para lidar com o contemporâneo. Desconstrói a “equação socrática de razão = virtude = felicidade” (Nietzsche, 2006, p. 19). Despoja categorias de auras metafísicas, em missão quase

impossível. Deseja outra humanidade, tecida de matériafluxo impalpável. Trilha e esburaca o solo nômade do espaço liso. Autoriza-se a experimentar currículos em pesquisas de prática plural, para produzir uma geografia inédita. Assume-se como integrante do conjunto antropomórfico das ficções úteis à manutenção da vida. Mostra as variações intrínsecas, que modificam tanto videntes quanto trajetórias. Proclama a sua principal função: não reconhecer “algo estranho” remetido a “algo conhecido” (Nietzsche, 2001, p. 250), típico do mundo da opinião; nem construir ou adquirir conhecimentos pré-estabelecidos (o que bloquearia a ousadia de pensar e viver, mantendo tudo como se encontra); mas liberar o ar fresco de outras possibilidades (ANPED, 2009). Porque a teorização educacional ameaça o império da verdade e a sua entropia mortífera. Exercita modos de educar, que comportam estriamentos e também oportunidades de recriação. Conjuga uma realidade surpreendente, que parece debilitar as energias, mas cujo desequilíbrio abre recomeços. Conserva a sutileza estética de lutar. Porque os educadores mantêm um pouco de atenção e estão suficientemente distraídos, para não caírem nas armadilhas da coincidência consigo mesmos. Renunciam à unidade. Esquecem a busca das origens perdidas. Escapam de currículos que são assentados em temporalidades e lugares seguros. Detestam a árvore da metafísica, seus ramos universais de sentido e raízes essenciais. Navegam em novos mares, desembarcam e não colonializam. Porque a Educação aprende que as verdades de um currículo não preexistem a ele, mas decorrem da reformulação das suas formas de conteúdo e de expressão; da invenção de problemas e suas condições; da suscitação de originais modos de ver, sentir, pensar. Intui que os saberes, poderes e subjetividades, produzidos por um currículo, são sempre verdadeiros, segundo as verdades que ele introduz, passa, faz fugir. Logo, que não existem resultados melhores ou piores de um currículo, em relação a outros, apenas os mais apropriados às verdades formu-

147

ladas por cada um (Deleuze, 2004; Deleuze e Guattari, 1995b; Foucault, 1993). Porque as teorias de formação não antecipam, instruem, transmitem, transportam, transformam, civilizam, custodiam. Descobrem forças migrantes que agem nos processos pedagógicos; ofendem a crueldade dos espaços escolares e não-escolares; formulam uma heterogênese de elementos didáticos e um conjunto heteróclito de programas; desgarram a Educação para fora da saudade de seus fundamentos. Porque fazer currículo não é lidar com a fria gramática do logos e a pegajosa identidade do sujeito. Não é tarefa de alguma comunidade eleita, mas aventura agônica, aberta à plurivocidade. Não atende a nenhuma condição utópica (que integra um sonho de messianismo, de não-identidade), à qual se apela para interromper as continuidades. Porque fazer currículo segue uma filosofia prática, ao modo de Spinoza, qual seja: construir um plano involutivo, no qual, “a forma não pára de ser dissolvida para liberar tempos e velocidades”; e, sem se perderem, as singularidades combinam-se com outras, em multiplicação molecular (Deleuze, 1996; 2002; Deleuze e Guattari, 1997a, p. 56). Porque um currículo não é só um pensamento, mas a ética desejante de viver com o caos e seus devires. E porque os educadores são arquipélagos: territórios atípicos, difíceis de delimitar, não integráveis, em errância, sempre desterritorializados. O que implica que podemos “transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo” (Nietzsche, 2001, p. 13).

Do sentido espacial

148

Após quase um século de direção histórica, imprimida ao campo curricular, uma orientação espacializante se impõe por necessidade. Quando, hoje, perguntamos O que é nos orientar no pensamento curricular?, não enfatizamos mais o elemento histórico, mas uma geografia,

como domínio diferencial de transformações potenciais (Deleuze e Guattari, 1992). Quando designa as condições, das quais se desvia para criar a novidade, o pensamento curricular reconhece que a historiografia fornece apenas a atualização de variáveis para a forma histórica; enquanto a geografia lança eixos e orientações virtuais para um currículo poder devir. Mesmo que não baste opor uma dimensão espacial (que seja estática) a movimentos históricos (que sejam progressivistas), dizemos que um currículo tem, primeiramente, uma geografia, e só então tem uma história. Assim, se a genealogia (Foucault, 1990) de um currículo articula as lutas com a memória, descrevendo as forças históricas e seus enfrentamentos, que possibilitam culturas e formas de vida, a orientação geográfica não é “somente física e humana, mas mental (desenho abstrato), como a paisagem” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 125; 1997a, p. 55). Ao ferir a dominância do sentido histórico, não negamos a história, mas tão-somente “a abstração do elemento histórico tornado circular” (Deleuze e Guattari, 1992, 125). Ao recusar o elemento histórico (como forma de interioridade), podemos conhecer a pluralidade infinita das histórias reais; sem autômato central, não somos obrigados a conservar a memória longa (“família, raça, sociedade ou civilização”), que “decalca e traduz”; funcionando com memória curta (ou antimemória), “de tipo rizoma, diagrama”, descartamos a memória “arborescente e centralizada”, que produz “impressão, engrama, decalque ou foto” (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 25; p. 26). E se, nesse pensamento curricular espacializado, restar ainda alguma história, esta é feita de elementos nãohistóricos, que não seguem de um estado estabelecido a outro, mas circulam em séries divergentes e paradoxais, procedendo por variação, expansão, conquista, picada, captura. Assim, implicados em uma linha de “catástrofe”, não como desastrosa, mas como promotora de partidas e chegadas, prosseguimos aquém e além das territorialidades (Deleuze, 2007, p. 103).

149

De tantos Mas...

150

Afirmamos que, assim como “a história é uma geohistória” e “a filosofia é uma geo-filosofia” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 78), também o currículo é um geocurrículo. O campo curricular deixa, então, de ser mediador entre a história do e os seus modos de saber-fazer, assumindo as fragilidades daquilo que se apresenta como evidente; afirma a irredutibilidade dos meios e a potencialidade das passagens, atuando nos limiares da ciência, da arte, da filosofia; arranca-se ao culto de suas estruturas, aventurando-se na poiesis da própria manufatura e na criação de outros currículos que recaem na história, mas nela não se originam. Esses movimentos são de fácil compreensão: o pensamento não tem como não assumir a sua dimensão espacializante, de exterioridade, na medida em que a mundialização é correlata à urgência de integrar, num devir-revolucionário comum, vários territórios, culturas, relações, subjetividades. Essa multiplicidade de um geocurrículo condensa-se em vários Mas…, pois ele pode dar a impressão de invariante ou de modelo majoritário; quando o que produz nada mais é do que a projeção da possibilidade de singularização de todos os currículos estandartizados. Vejamos como esses Mas…se apresentam. Pode ser que um geocurrículo seja tomado como coisaem-si, abstração conceitual ou verbalista, sem qualquer concretude, impossível de ser relacionado com o observável da experiência. Mas…, em vez da clausura metafísica, consiste em um conjunto de processos auto-organizadores, relativos a estratos (orgânicos, físico-químicos, tecno-sociais, bio-políticos); ou seja, numa máquina revolucionária: “tanto mais abstrata quanto é real” (Deleuze e Guattari, 1997d, p. 229; 2002). Talvez um geocurrículo seja entendido como estratificação universal (Deleuze e Guattari, 1995b, p. 227-232), que captura intensidades em sistemas e as explica. Mas…, é, antes, uma máquina abstrata, que traça o diagrama

do acontecimento; sobrevoa a paisagem curricular, constituída por rostos, corpos, coisas, figuras, cenas; procede a mineralizações, endurecimentos, desacelerações dos fluxos (de biomassa, gens, códigos), definidos tanto pelos materiais quanto pela escala temporal dessas operações. Falar de um geocurrículo, como máquina abstratarevolucionária, que opera em agenciamentos concretos, é falar metaforicamente. Mas…, trata-se, aqui, de uma analogia entre noções de ordem sensível (e erótica) e noções de uma ordem inteligível (e literária), bem como dos efeitos de transferência de uma a outra ordem. Compostos por camadas sedimentares, formações históricas, práticas, positividades, empiricidades, variáveis limitadas, os estratos de um geocurrículo parecem uma repetição quantificada do real, que nega qualquer novo modo de existência. Mas…, esses estratos realizam uma itinerância interminável, que foge e faz fugir, que não julga e faz existir. A estratificação de um geocurrículo, como a de outros currículos, é instrumento de poder, logo, uma forma molar, equilibradora, regulatória. Mas…, essa estratificação consiste numa metaestável (nem estável nem instável) e bidirecional máquina, provida da energia potencial de afetar e de ser afetada (Deleuze e Guattari, 1995b). A superfície de estratificação de um geocurrículo é um organismo. Mas…, essa superfície age como: uma membrana, que estabelece contato entre o espaço interior e o exterior; um corpo sem órgãos de distribuição nômade (do puro spatium), atravessado por matérias não-formadas (leves, livres, transitórias), que correm e se interrompem em todos os sentidos da topologia de contato (Deleuze e Guattari, 1996b; 1997a; 1997b; 1997c). Um geocurrículo é atual porque identifica coisas e palavras, fixa e unifica significações, fabrica realidades. Mas…, em grande parte, ele é virtual, auto-diferenciador e criador; ocupa-se de idealidades, que agem como limites daquilo que pode ser visto-e-dito e da desterritorialização dos estratos; modifica formas de representação, compre-

151

ensão, apreensão e ação, propiciando efeito de presença do real (Deleuze, 1998c; Cossutta, 1989). Um geocurrículo é um caos indiferenciado; mas…, sua natureza caosmótica implica um ser mutável, que se divide, é dividido por intermináveis bifurcações e capturado na margem infinita do devir. Parece centralizador e hierárquico, absorve e bloqueia a força dos fluxos; mas…, como espaço-tempo virtual a-histórico, é campo transcendental. Dá-se como científico; mas…, constitui uma filosofia política da corporeidade. Faz pose de realista (ter os pés no chão); mas…, possui uma linha de sobrevôo dada pelo criacionismo do desejo, movimento impessoal das subjetividades e uma pragmática ativa, sem direção, sempre reinventada. Mostra-se pleno de diferença empírica, extensiva, relativa; mas…, é morada da diferença imanente, anti-essencialista e intensitária da diferença pura; a qual, num jogo de espelhos sem fim, é evasiva do próprio pensamento e do mundo.

Do método

152

O método (técnica, procedimento, operação) de leitura – e também de compreensão, de análise, de avaliação e de produção – de um geocurrículo não é teorético, que oporia à unidade abstrata da teoria a multiplicidade concreta dos fatos; tampouco positivista, que desqualificaria o elemento especulativo, para contrapor-lhe, sob um cientificismo banal, o rigor de conhecimentos legitimados; ao contrário, é perspectivista e deriva do ponto. A partir de uma dada inflexão, estabelecemos um ponto de vista, que não percorre a inflexão, não é o ponto de inflexão, nem “exatamente um ponto”: consiste, antes, em “um lugar, uma posição, um sítio, um ‘foco linear’, linha saída de linhas”. Mesmo que haja uma variedade (caóide) de pontos de vista, “todo ponto de vista é ponto de vista sobre uma variação”, e esta variação não existe sem aquele ponto de vista (Deleuze, 1991, p. 39; p. 40). Um currículo (como ponto de vista) não consiste em “um juízo teórico”, já que o procedimento de perspectivar

“é a vida mesma” (Deleuze, 1998a, p. 179-180): “Até onde vai o caráter perspectivista da existência, ou mesmo se ela tem algum outro caráter, se uma existência sem interpretação, sem ‘sentido’ [Sinn], não vem a ser justamente ‘absurda’ [Unsinn], se, por outro lado, toda a existência não é essencialmente interpretativa” (Nietzsche, 2001, p. 278). Um ponto de vista (logo, um currículo) não possui regras exclusivas, que fazem cada ponto abrir-se sobre outros pontos, na medida em que convergem; mas abrese sobre uma divergência que afirma: “A perspectiva – o perspectivismo – de Nietzsche é uma arte mais profunda que o ponto de vista de Leibniz, pois a divergência cessa de ser um princípio de exclusão, a disjunção deixa de ser um meio de separação, o incompossível é agora um meio de comunicação” (Deleuze, 1998a, p. 180). Esse perspectivismo não é um agregado unilinear de pontos de vista, sem dinamismo interno ou abertura para outros pontos e ângulos, o que levaria um trajeto a ficar entre dois pontos; ao contrário, o “entre-dois” pontos ganha relevância, autonomia e direção próprias (Deleuze e Guattari, 1997c, p. 50-62). Tampouco implica um relativismo comum (“variação da verdade de acordo com um sujeito”), e sim a “condição sob a qual a verdade de uma variação aparece ao sujeito” (Deleuze, 1991, p. 40). Condição que, para Nietzsche (2001, p. 278), leva à infinitude do mundo: “hoje, pelo menos, estamos distanciados da ridícula imodéstia de decretar, a partir de nosso ângulo, que somente dele pode-se ter perspectivas. O mundo tornou-se novamente ‘infinito’ para nós: na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações”. Como infinito, o perspectivismo acolhe, não a descontinuidade, mas a topológica “distância positiva dos diferentes”, que afirma “toda sua distância”, “como o que os relaciona um ao outro” (Deleuze, 1998a, p. 178-179). Assim, não há vazio entre pontos de vista (em nosso caso, currículos) porque o espaço vazio não existe, já que tudo é força. O que encontramos, aí, é uma continuidade dada pela variação infinita: “temos diante de nós um continuum,

153

154

do qual isolamos algumas partes” (Nietzsche, 2001, p. 140); além de pontos singulares, que não são contíguos e integram o contínuo (infinito e inacessível) de acontecimentos. Também, no perspectivismo, pontos de inflexão determinam dobras, constituindo uma primeira singularização no extenso, o qual é a repetição contínua da posição (do ponto de vista) e atributo do espaço: “como ordem das distâncias entre pontos de vista que torna possível essa repetição”. Constituindo um tipo de singularidade no espaço, de acordo com relações indivisíveis de distância, os currículos (pontos de vista) compõem uma “jurisprudência ou arte de julgar” (Deleuze, 1991, p. 40-41; p. 42-43). Enquanto modelos ópticos “da percepção e da geometria na percepção”, os currículos se impregnam dos seguintes critérios de valor: toda qualificação que fazemos ao contínuo de puras quantidades (que é um currículo) constitui uma intervenção perspectivista; qualquer distinção entre pontos de vista (currículos) é uma ficção reguladora; logo, é uma interpretação ou um sentido, já que toda “interpretação é determinação do sentido de um fenômeno” (Deleuze, 1994, p. 21); como os currículos (pontos de vista) são sempre de alternância, só existem para serem abandonados, e não há nenhum sentido (ou interpretação) que prepondere sobre os demais. Assim, toda ficção (interpretação, intervenção) é determinação de sentido. Sendo o sentido uma chama sem vela ou o sorriso sem gato da Alice de Lewis Carroll (Deleuze, 1998a), afirmamos que o sentido de um currículo é a sua própria gênese, pressuposto desde que um Eu começa a falar ou a escrever “currículo”. Só que, diante da multiplicidade de sentidos curriculares cambiantes, não existe nenhum centro de configuração, hierarquia transcendente ou generalidade. Por conseguinte, nem todos os sentidos dos currículos (matérias-movimentos) se equivalem ou valem o mesmo. Isso deriva da condição que cada currículo perspectivado, ao selecionar, dispor, por em funcionamento instrumentos (representacionais, cognitivos, esquematizantes, corporais),

o faz em relação à vontade de poder (Wille sur Macht) (Nietzsche, 2002, p. 159-160). Ou seja, cada currículo apresenta valor mais forte ou mais fraco, em função da abrangência multiforme e plural do seu campo interpretativo; do maior ou menor desconhecimento do próprio caráter ficcional (com graus também diversos de substancialização); de sua delimitação interperspectivista na relação com outras ficções necessárias (Marques, 2003, p. 69-101); assim como da possibilidade, maior ou menor, de realizar experimentações com aquilo que foi marginalizado por outras perspectivas: “Certos caminhos (movimentos) não tomam sentido e direção, senão como os atalhos ou os desvios de caminhos apagados” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 77). Nas relações móveis entre currículos, não há, portanto, incomensurabilidade absoluta entre os seus planos pensáveis, perspectivas, pontos de vista; assim como os currículos podem se reunir ou se distanciar, uns dos outros, possuindo em comum a restauração da transcendência (da ilusão), visto que não podem evitá-la, a não ser “combatêla com vigor”. Ao buscar distinguir qual deles é “o melhor”, qual é o “bom ponto de vista”, aquele que “nos dá as respostas e os casos, como em uma anamorfose barroca” (Deleuze, 1991, p. 43), verificamos: se determinado currículo abdica da imanência; se fecunda o transcendente; se inspira mais ou menos ilusões; se entrega ou não “a imanência a Algo = x”; se “não simula mais nada de transcendente” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 78); ou, em outras palavras, se “isso de que lhe falo, e no que você também pensa, está você de acordo em dizê-lo dele, com a condição de que se saiba a que se ater sobre ela e que se esteja também de acordo sobre quem é ele e quem é ela” (Deleuze, 1991, p. 43)? Produzido por um ponto de vista, que nos fornece um tipo de permanência no mundo do devir, o método geocurricular apresenta, ainda, os seguintes traços: é sempre um outro currículo (ponto de vista) que corresponde a cada ponto de vista (currículo), mas não um que seja inferior ou superior aos outros; todos os currículos estão ligados

155

156

e se afirmam por meio de suas distâncias, ressoando, entre si, pela divergência dos conceitos, seres, objetos; há, portanto, sempre um currículo no geocurrículo, que não carece de qualquer instrumento ou órgão para conhecer a verdade, desde que não existe “nem espírito, nem entendimento, nem pensar, nem consciência, nem alma, nem vontade, nem verdade: tudo ficções” (Nietzsche, 2002, p. 79). Na medida em que realiza atos curriculares, esse método instaura sentidos, ideias, generalizações, empirias, abstrações, imagens, vocabulários, recorrências, paráfrases, metáforas, polêmicas, esquemas de inteligibilidade, vozes, referentes enunciativos, condições de validade, regras de leitura, operadores textuais, etc. Ao ser processado, apresenta componentes associados aos de outros campos semânticos, lógicos e ontológicos, áreas de saber-fazer, planos precedentes de pensamento. Reordena formas de organização pré-estabelecidas (cristalizadas ou em movimento), encetando prolongamentos e curvaturas, tracejando outras imagens e dispondo superposições “numa ordem estratigráfica”: “mudanças de orientação que só podem ser situadas sobre a imagem anterior (e mesmo para o conceito, o ponto de condensação que o determina supõe ora a explosão de um ponto, ora a aglomeração de pontos precedentes)” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 77). Frente ao método interpretativo, não totalizante, eternamente movente, maximamente diferenciado, damos extrema atenção ao ponto que segue: se algum currículo jactar-se de não possuir (nem de ser) um ponto de vista, isto se deve a sua assunção do ponto de vista único, absoluto, “fixo, exterior”, daquele que vê “fluir, estando na margem” (Deleuze e Guattari, 1997c, p. 40). Então, tal currículo perspectivo (mas que nega essa sua condição) não será nunca um geocurrículo; mas um currículo que não renova o pensamento educacional, por introduzirse enquanto uma ficção, que se pretende completa e substancializada; e que, desse modo, só pode derivar da “beatitude de um pensamento inteiramente pronto” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 69).

Da cartografia Para montar um currículo, que localize a própria posição, num determinado plano de composição, sem elementos primeiros e transcendentes, não elaboramos um gráfico, programa, projeto, desenho, fotografia, retrato, decalque, plano de desenvolvimento ou de organização; mas, usando a arte cartográfica (do grego chartis, carta, mapa, e graphein, grafia, escrita), traçamos um mapa (Deleuze e Guattari, 1995a; Rajchman, 2000). Esse mapa geocurricular, através de operações transformacionais, abre-se a locais e percursos, que tomam direções imprevistas ou promovem ações desordenadas; é passível de constante modificação; conectável em todas as dimensões; desmontável, rasgável e reversível, em suas múltiplas entradas e saídas. Importa não confundir o mapa com o decalque, pois, mesmo que o mapa possa ser decalcado, o decalque é como uma foto ou um rádio, isolando aquilo que reproduz, via “procedimentos de coação”. Além disso, ao traduzir o mapa em imagem, o decalque organiza, estabiliza, neutraliza “as multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação que são os seus”, reproduzindo do mapa apenas “os impasses, os bloqueios, os germes de pivô ou os pontos de estruturação” e estruturando o que é rizomático: “não reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa. Por isto ele é tão perigoso”. Enquanto o decalque remete “a uma presumida ‘competência’” (“é sempre o imitador quem cria seu modelo e o atrai”), por sua vez, também o mapa possui e propaga fenômenos de redundância (os estratos) – “onde se enraízam unificações e totalizações, massificações, mecanismos miméticos, tomadas de poder significantes, atribuições subjetivas”. Sendo o mapa “uma questão de performance”, a nós compete religar os decalques ao mapa, isto é, voltar a situar os impasses (“poderes significantes”, “afetos subjetivos”, “territorialidades endurecidas”) sobre o mapa e abrir tais impasses “sobre linhas de fuga possíveis”.

157

Mapa que pode ser “preparado por um indivíduo, grupo ou formação social”; desenhado “numa parede”; construído “como uma ação política ou como uma meditação”; concebido “como obra de arte” (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 22-24); rabiscado em muros e pixado em viadutos; grafitado nas asas de um besouro; discursado como ação política; refletido na solidão; descrito ao nascer da aurora; concebido como um projeto arquitetônico; chupado feito uma bala; construído como metrô ou estádio de futebol; teatralizado; poetizado; cantado; tocado; balbuciado; assoprado; murmurado; gaguejado; assobiado no escuro, feito um ritornelo. Usamos o princípio de seleção cartográfica, seguindo coordenadas anteriores a formas, objetos, organismos, conteúdos, sujeitos, indivíduos e identidades; de modo a reter e conservar (portanto, criar e tornar consistente) aquilo que “aumenta o número de conexões a cada nível da divisão ou da composição” (Deleuze e Guattari, 1997d, p. 223). Desse modo, grafematizar o mapa curricular é uma crítica-clínica do pensar, do educar e do viver, dotada de rara e eletrizante beleza.

Sentidos inúmeros

158

Preparando-se para o embate com o caos, um geocurrículo tem, assim, sentidos nômades, desde que é feito por nômades e para nômades. Desperto, não habita a cidade da consciência. Leve, não tem guarda-chuva, sombrinha, nem guarda-sol, para se proteger de um caos livre e tempestuoso. Desagregado, não rasteja atrás de consoladoras leis transcendentes. Espantado, não estabelece contratos prévios. Divertido, não formula uma humanidade estereotipada, acanhada, estúpida, triste. Armadilha amorosa, não possui ideais de formação. Sabedor de que não “cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas” (Deleuze, 1992, p. 220), não avaliza as imagens criadas pela opinião dominante. Com valor de fecundação, não renuncia àquilo que cria problemas. Tempestade de forças, não projeta

conteúdos diferentes dos pensados até então, para salvar algo ou alguém. Desestratificado, não pressupõe, com certezas, o que existe para ser pensado. Espaço anterior (onde nada é ainda), não se ocupa com métodos para pensar ou com modos canônicos de viver. Relação da força consigo mesma, dobra o lado de fora e derruba os próprios mapas e diagramas. Topologia extraordinariamente fina, “não repousa sobre pontos ou objetos”, mas varia no espaço táctil, háptico, sonoro, e “modifica sua cartografia” (Deleuze, 2004; Deleuze e Guattari, 1997c, p. 54). Leque a dobrar-se e desdobrar-se, dramatiza estranhos potenciais. Dotado de ligeireza, fantasia existências fragmentárias. Curvilíneo e turbilhonar, informa a bandidagem de naturezas descontínuas. Atravessador do Rubicão, tematiza a sua estética múltipla, que complica vários currículos. Abertura ao futuro, pensa de outra maneira: afirmativamente. Roubado ao além, reparte aprendizagens sem fim no espaço aberto. Alquimista em deslocamento, não entroniza a vida como sobrevivência. Arabesco esfumaçado de contornos, deixase ativar pela vida. Fabulosa reserva rizomática, existe para reinventar a vida. Sísmico, em labirintos, faz circular nuances infinitas da vida, pelas quais vale a pena constituir novos modos de existência. Artistagem do viver, para tornar-se “vivível, praticável, pensável” (Deleuze, 1992, p. 138), o geocurrículo biografematiza (Barthes, 2005) a sua própria feitura, identificando-se com Mallarmé (2006, p. 31-32), quando este premedita e arquiteta “o Livro”: “mostrar um fragmento executado, fazer cintilar a partir de um ponto sua autenticidade gloriosa, indicando todo o resto para o qual uma vida não basta. Provar pelas porções feitas que este livro existe, e que conheci o que não poderei ter cumprido”.

Referências ANPED – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO. TRABALHO ENCOMENDADO – Programação do GT Currículo na 32ª Reunião Anual, 2009 http://www.fe.unicamp. br/ gtcurriculoanped/32RA/32RA-programacao.html.

159

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. (Trad. Mário Laranjeira.) São Paulo: Martins Fontes, 2005. COSSUTTA, Frédéric. Eléments pour la lecture des textes philosophiques. Paris: Bordas, 1989. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. A dobra: Leibniz e o barroco. (Trad. Luiz B.L.Orlandi.) Campinas, São Paulo: Papirus, 1991. _____. Conversações, 1972-1990. (Trad. Peter Pál Pelbart.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. _____. Nietzsche. (Trad. Alberto Campos.) Lisboa: Edições 70, 1994. _____. Spinoza y el problema de la expresión. (Trad. Horst Vogel.) Barcelona: Muchnik Editores, 1996. _____. Para dar um fim ao juízo. In: _____. Crítica e clínica. (Trad. Peter Pál Pelbart.) São Paulo: Ed. 34, 1997 (p. 143-153). _____. Lógica do sentido. (Trad. Luiz Roberto S. Fortes.) São Paulo: Perspectiva, 1998a. _____. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: _____. Lógica do sentido. (Trad. Luiz Roberto S. Fortes.) São Paulo: Perspectiva, 1998b (p. 311-330). _____. O atual e o virtual. In: _____; PARNET, Claire. Diálogos. (Trad. Eloisa Araújo Ribeiro.) São Paulo: Escuta, 1998c (p. 171-179). _____. Nietzsche et la philosophie. Paris: Quadrige/PUF, 1999. _____. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. (Trad. Luiz B. L. Orlandi.) São Paulo: Ed. 34, 2001. _____. Espinosa: filosofia prática. (Trad. Daniel Lins e Fabien Pascal Lins.) São Paulo: Escuta, 2002. _____. Foucault. Paris: Minuit, 2004. _____. Francis Bacon: lógica da sensação. (Trad. Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. _____. 1. Introdução: Rizoma. In: _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. (Trad. Aurélio Guerra Neto.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995a (p. 11-37). _____. 3. 10.000 A.C. – A geologia da moral (Quem a terra pensa que é)? In: _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. (Trad. Célia Pinto Costa.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995b (p. 53-91). _____. Kafka: pour une litterature mineure. Paris: Minuit, 1996a.

160

_____. 6. 28 de novembro de 1947 – Como criar para si um corpo sem órgãos. In: _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. (Trad. Aurélio Guerra Neto.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996b (p. 9-29).

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 10.1730 – Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível. In: _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. (Trad. Suely Rolnik.) São Paulo: Ed. 34, 1997a (p. 11-113). _____. 11.1837 – Acerca do ritornelo. In: _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. (Trad. Suely Rolnik.) São Paulo: Ed. 34, 1997b (p. 115-170). _____. 12. 1227 – Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. (Trad. Peter Pál Pelbart.) São Paulo: Ed. 34, 1997c (p. 11-110). _____. 15. Conclusão – Regras concretas e máquinas abstratas. In: _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. (Trad. Peter Pál Pelbart.) São Paulo: Ed. 34, 1997d (p. 215-232). _____. L’ anti-oedipe: capitalismo e esquizofrenia. Paris: Minuit, 2002. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: _____. Microfísica do poder. (Org. e trad. Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Graal, 1990 (p. 15-37). _____. História da sexualidade 1: a vontade de saber. (Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A.Gilhon Albuquerque.) Rio de Janeiro: Graal, 1993. MALLARMÉ, Stéphane. Autobiografia. In: _____. Contos indianos. (Trad. Dorothée de Bruchard.) São Paulo: Hedras, 2006 (p. 29-35). MARQUES, Antônio. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003. NIETZSCHE, Friedrich W. A gaia ciência. (Trad. Paulo César de Souza.) São Paulo: Companhia das Letras, 2001. _____. Fragmentos finais. (Trad. Flávio R. Kothe.) Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. _____. Crepúsculo dos ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. (Trad. Paulo César de Souza.) São Paulo: Companhia das Letras, 2006. RAJCHMAN, John. The Deleuze connections. Cambridge: Massachusets Institute of Tecnology Press, 2000.

161

O DRAMA DO CURRÍCULO: pesquisa e vitalismo de criação8

8

Vontade criadora Vitalismo de toda criação. Vontade criadora de tudo o que é vivo. Força de vida imanente a todas as coisas. Pulsação vital. Relações de força que se exercem sobre linhas de vida e de morte, que se dobram e desdobram para traçar o limite do pensamento: “vitalismo sob fundo de mortalismo”. Linha afetiva, atlética, cheia de desvios, nunca reta, que atravessa a concretude dos organismos e da biosfera: “São os organismos que morrem, não a vida” (Deleuze, 1992, p. 114; p. 131; p. 179). Energia afirmativa de experimentação. Potência anorgânica, como a de um bebê, que pode existir numa linha de música, de desenho, de escrita: “querer-viver obstinado, cabeçudo, indomável”, que “concentra em sua pequenez a energia suficiente para arrebentar os paralelepípedos”. Vitalidade do tipo “bebêtartaruga de Lawrence” (Deleuze, 1997, p. 151), que existe também em um currículo. Pensado desse modo – com variações entre suas relações de movimento e repouso, velocidade e lentidão –, não há currículo que não expresse ou não viva uma vida. Vida impessoal, que precede hábitos, rotinas, regularidades, posições de sujeito, objetos reconhecíveis, valores instituídos, normas legitimadas, ordens estabelecidas, verdades transmitidas – “as verdades são ilusões, das quais se

8

Texto apresentado no GT “Educação e Arte”, no X Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul (ANPED), realizado na Universidade de Caxias do Sul, em Caxias do Sul, RS, de 29 de julho a 1º de agosto de 2012; com versão publicada digitalmente em http://www.ucs.br/etc/conferencias/index. php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewFile/128/786.

163

164

esqueceu que o são” (Deleuze; Guattari, 2004, p. 334). Vida incondicionada, portanto, que não pode ser confundida com a vida do currículo tal, porque excede, em sua concepção, a existência particular de qualquer currículo. Vida nunca dada, já que a própria ideia de vida é uma ficção – embora capaz de produzir o real e não apenas de, tolamente, corresponder-lhe. Vida pré-individuada, singular, experimental, desenredada de causalidades, memória psicológica e condições materiais. Vita femina, como em Nietzsche (1974, p. 56; 2001, p. 22): “talvez esteja nisso o mais forte encanto da vida: há sobre ela, entretecido de ouro, um véu de belas possibilidades, cheio de promessa, resistência, pudor, desdém, compaixão, sedução. Sim, a vida é uma mulher”! E “uma mulher que dança”, acrescenta Valéry (1996, p. 23). Aqui, este texto trata disso: a vida (transcendental) de um currículo (virtual). Dessa perspectiva, não há currículo que não indique entradas e saídas para novas vidas, percursos para outras formas de existência, incidências sobre inéditas possibilidades de viver: “trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 222). Não há um, que não integre “as ‘coisas feitas’, o humano e o transcendental, a natureza e a cultura, o pré-social e o social” (Silva, 1999, p. 73). Não há currículo que não tensione a segunda natureza dos indivíduos e impulsione “uma vida anterior em potência, capaz de convocar e de reunir, sem abolir aquilo que nos torna singulares” (Rajchman, 2000, p. 89). Não há um, que não abale as próprias representações, arrastando-se até os seus limites, avesso ou Fora. Não há currículo que produza só invariantes. Não há um, que se repita, sem o fazer diferentemente. Não há currículo que, nas bordas das individuações, não se dedique aos anômalos nem deixe de se opor às normalidades. Não há um, que não fissure os padrões, reconhecimentos, recognições. Não há currículo que imagine e acate só identidades majoritárias. Não há um, que não opte pela multiplicidade em detrimento da diversidade. Não há currículo que não

tenha como inquietação aquela preexistente às identificações: Como fazer o múltiplo? – pois “Le multiple, il faut le faire” – “O múltiplo, é preciso fazê-lo” (Deleuze, 1997, p. 16; DeleuzE; Guattari, 2004, p. 298). Não há currículo que não acabe se distanciando da ciência oficial e do aparelho de Estado, em seus consensos sobre estratos, classes, espécies, modelos. Nenhum, que não redistribua os dados, force novos lances, relance teses alegres e livres. Não há currículo que não considere a realidade, senão como interpretativa ou perspectivista. Nenhum, que não minorize currículos majoritários, calcados na opinião e no senso comum. Não há currículo que apenas aplique a teoria à prática ou vice-versa. Nenhum, que se contente com o vazio da compreensão especulativa. Não há currículo que não tenha intuições. Nenhum, que não crie ilusões, as quais “não são contrassensos abstratos, nem somente pressões de fora, mas miragens do pensamento” (Wotling, 2001, p. 55-56; Deleuze; Guattari, 1992, p. 67). Não há currículo que ignore que grande parte das coisas não merece ser dita nem escrita. Nenhum, que não ria, especialmente de si mesmo. Não há currículo que não sofra as vicissitudes de sua concepção, os devires de sua gestação e as dores do seu vir à luz. Nenhum que não saiba que vai morrer e que outros currículos advirão justamente da sua morte. A pesquisa curricular depara-se, assim, com a ideia de um biocurrículo, a qual implica “toda uma política, uma ‘política de vida’” (Dias, 1995, p. 152). Nessa pesquisa, lateja um currículo vivente, que recorta o caos: “O caos tem três filhas segundo o plano que o recorta: são as Caóides, a arte, a ciência e a filosofia, como formas do pensamento ou da criação” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 267). Através dessas Caóides (que rugem diante do caos e se movimentam nas coisas e em nós), um currículo exclama: – “Dê-me um cérebro”, visto que o cérebro é “a junção (não a unidade) dos três planos” (Deleuze, 2005a, p. 244). Tal cérebro (tornado sujeito) realiza uma pragmática múltipla, cuja matéria plástica (relativamente indiferenciada e incerta)

165

166

não segue circuitos fixos, mas abre-se para imprevistos trajetos. Em seu devir-sujeito, o cérebro de um currículo lida com signos, acontecimentos, rizomas; remetendo os pesquisadores “a um caos tornado consistente, tornado Pensamento, caosmos mental” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 267). Ao lutar, em aliança com outras práticas criadoras e forças afirmativas, um currículo vitalista cria “possibilidades de vida: transmutação” (Deleuze, 1997, p. 121). Integra, por conseguinte, a “célebre ‘luta pela vida’” (Nietzsche, 2006, p. 71; Dias, 1995, p. 147-148), no sentido anti-Darwin, qual seja: “o aspecto geral da vida não é a necessidade, a fome, mas antes a riqueza, a exuberância, até mesmo o absurdo esbanjamento – quando se luta, luta-se pelo poder” (Nietzsche, 1992, p. 171). Erige-se, assim, como “poder afirmativo da vida, enquanto sua vida age como força ativa do pensamento” (DELEUZE, 1997, p. 150). Poder de uma força que tão-somente existe, como tal, ao agir sobre outras forças: “não devido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida é precisamente vontade de poder” (Nietzsche, 1992, p. 171). Vontade que, ao encontrar obstáculos e limites, promove “combates-contra” (contra o Outro) e “combates-entre” (entre Si): o combatecontra “procura destruir ou repelir uma força”; enquanto o combate-entre consiste no “processo pelo qual uma força se enriquece ao se apossar de outras forças somando-se a elas numnovo conjunto, num devir” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 270). Vida, portanto, de um currículo decididamente combatente, exercida em seus conteúdos, órgãos, tecidos, conexões; e ainda em sua paixão pura, fantasia, alma, espírito (ou força). Sem trégua, esses afrontamentos do cérebro curricular com o caos resultam em hierarquias nunca definitivas; pois, como qualquer vida, também aquela de um currículo “é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração” (Nietzsche, 1992, p. 171).

Vidas-obras contemporâneas A pesquisa enfatiza um vitalismo curricular, desenvolvido em névoas não-eternas, e que acompanha aqueles autores que pensam o nosso presente, ou seja, os contemporâneos de um currículo (ANPED, s/d). Sob a condição que o presente é o que são e, por isso mesmo, o que já deixam de ser, os pesquisadores operam num tempo de coexistência, entre as suas próprias Vidarbos (vidas-obras), as dos currículos e as de seus contemporâneos, superpondo-os numa ordenação estratigráfica; juntamente com outras obras-vidas que atravessam a história da ciência e da filosofia, da literatura e do teatro, da poesia e da pintura, da música e do cinema, da crítica e da clínica. Lidam, assim, com diversas temporalidades e possibilidades de viver, as quais resistem a um nada de vontade; desde que a criação é resistência, enquanto devires e acontecimentos puros. Deslizando no devir-infinito que atravessa essas vidas-obras, os pesquisadores consideramnas “seja como pontos luminosos”, que os fazem passar pelos componentes de um conceito; “seja como os pontos cardeais de uma camada ou de uma folha”, que os visitam (Deleuze; Guattari, 1992, p. 145; p. 78). Entendem tais Vidarbos, das quais são tributários, no sentido de Nietzsche (1995, p. 52; p. 67; 2006, p. 11; p. 53; Souza, 2006, p. 113): mais do que “temporâneas”, “tempestivas” ou “atuais”, elas são “extemporâneas”, “intempestivas” ou “inatuais”: menos compreendidas do que as temporâneas, mas mais ouvidas – daí a sua autoridade. As obras-vidas de um currículo agem, dessa maneira, “contra o passado, e assim sobre o presente”, em favor de um porvir, “que não é um futuro da história, mesmo utópico, é o infinito”: “o Intensivo ou o Intempestivo, não um instante, mas um devir” (Deleuze; Guattari, 1992, 144-145). Como, para elas, “o pensamento jamais foi questão de teoria, e sim problemas de vida, a própria vida”, quando cada um vive o seu presente, pensa e, ao mesmo tempo, o contraefetua, abstraindo-o dos “estados de coisas, para liberar seu

167

168

conceito” (Deleuze, 1992, p. 131). E como vivem, também, o nosso presente, levam-nos a problematizar experiências presentes (existenciais, acadêmicas, artísticas, políticas), a par de contra-efetuá-las. Fornecem, desse modo, condições para pensar, perceber, sentir, avaliar, afetar um currículo, de maneira vívida – “uma possibilidade de vida se avalia nela mesma, pelos movimentos que ela traça e pelas intensidades que ela cria” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 205). A Vidarbo de um currículo é, desse modo, maquinada entre as vidas-obras dos pesquisadores e as obras-vidas dos seus contemporâneos, que são agentes de enunciação ou “precursores sombrios” (Deleuze, 2006, p. 132); os quais distribuem as energias de seus traços páticos, relacionais, dinâmicos, jurídicos, existenciais, para a execução de movimentos concretos do pensamento. Como “precisamos sempre de alguém que ‘interceda’ na abertura de novos caminhos, ou no esboço de novas linhas para as nossas vidas” (Rajchman, 2000, p. 92), tais agentes funcionam como intercessores de alguma Vidarbo curricular, ou seja: “uma aptidão do pensamento para se ver e se desenvolver através de um plano”. Pensando esse plano, a Vidarbo curricular é experimentada, desde que “a experimentação é sempre o que se está fazendo – o novo, o notável, o interessante, que substituem a aparência de verdade e que são mais exigentes que ela” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 143). Não que, nos procedimentos de pesquisa, criados para vivificar um currículo, as histórias de vidas assegurem alguma interioridade ontológica; ou que as obras dos contemporâneos tenham perdido a validade; ou, mesmo, que a pesquisa pretenda superar problemas que foram anteriormente formulados. Acontece que, quando um pesquisador pensa um currículo, nele ressoam essas Vidarbos; o que prova, inequivocamente, que um currículo, mesmo que lá, naquela vida-obra determinada, não existisse, estava por vir. Isso porque os intercessores dos currículos, como artistas, criam sensações (num plano de composição, via figuras estéticas), trazendo variedades do caos; ou, como cientistas, criam funções (num plano de

referência, via observadores parciais), trazendo variáveis do caos; ou, como filósofos, criam conceitos (num plano de imanência, via outros personagens conceituais), do caos trazendo variações (Deleuze; Guattari, 1992). Assim, quando os pesquisadores estudam a Vidarbo de um currículo ou de um contemporâneo, não realizam um retorno a algum autor ou obra, mas, a cada um que conta “(para não dizer: amado)” (Barthes, 2005, p. 20), e do qual são simples invólucros, pseudônimos, idiossincrasias, perguntam: com que intensidade você prossegue na companhia de um currículo, levando a fecundidade da sua experimentação a torná-lo um contemporâneo? Como sua vida-obra funciona para diagnosticar os devires de um currículo, em cada presente? Neste agora, o que você tem a dizer sobre um currículo? Quais modos de existência a sua Vidarbo implica, considerando que “um modo de existência é bom ou mau, nobre ou vulgar, cheio ou vazio, independente do Bem e do Mal, e de todo valor transcendente”; e que, portanto, “não há nunca outro critério senão o teor da existência, a intensificação da vida” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 98)? Quais possibilidades de obras e vidas são abertas ou fechadas por sua Vidarbo? Como os conceitos, sensações ou funções, que você cria – “mediante que recomposições ou mesmo desvirtuações necessárias” (Dias, 1995, p. 146) –, encontram ainda os problemas que são os de hoje e nos ajudam a pensar outras coisas? Ao formular essas questões, que vivificam um currículo, os pesquisadores passam da leitura amorosa ao ato de escrever. Ao agir, reescrevem cada Vidarbo de suas “matrizes de escrita” (Deleuze, 1997, p. 16), voltada àquele currículo. Ao tornarem cada vida-obra outra, juntam-se, ativamente, “ao que é belo” (Barthes, 2005, p. 14). Ao se movimentarem em zonas de indeterminação das Vidarbos, apanham suas “interferências ilocalizáveis” (Dias, 1995, p. 43). Ao apelarem a forças extra-curriculares, executam “a passagem da vida na linguagem que constitui as Ideias”. Ao se autorizarem, por mutações precedentes de escrituras, constroem “formas do Pensamento-cérebro, ou do Espírito

169

como Criação”. Ao não considerarem qualquer diagnóstico de deficiência a ser reparada, alienação política, inautenticidade autoral ou depreciação moral de outros currículos, procedem a trabalhos de ficção. Ao mostrarem a “Vida no vivente ou o Vivente no vivido”, expressam mundos possíveis: nem atuais nem virtuais, tendo “o possível como categoria estética” (Deleuze; GuattarI, 1992, p. 278; p. 224; p. 230). Dessa maneira, os pesquisadores tornam pública “uma força efetiva para além da cultura e do mundo das letras”, operando “sobre o dividual, o político, o social” (Pellejero, 2009, p. 58; p. 70). Alimentando o plano informal da vida curricular, erguem uma reserva imprevisível e um viveiro inatribuível de sentidos e valores. Estimulando a abertura e o acolhimento crítico do pensamento às potencialidades de outras relações, categorizações e individuações, tornam os currículos inespecíficos e imprecisos. Forçando-os a não pertencerem a gênero algum, resguardam o seu caráter inefável, por amor às Vidarbos curriculares. Evitando que caiam no jazigo dos currículos acabados, exercitam o questionamento: “se eles nos convêm ou desconvêm, isto é, se nos trazem forças ou então nos remetem às misérias da guerra, às pobrezas do sonho, aos rigores da organização” (Deleuze, 1997, p. 153). Irradiando forças vitais, diante das rígidas segmentarizações, criam condições para, junto a Foucault, infinitamente, bradar: “Possível, por favor, senão eu sufoco” (Deleuze, 1992, p. 230)!

Cultura dramática

170

A partir dessas vontades criadoras de Vidarbos, como pensar e falar, escrever e ler sobre as vidas e obras contidas, descritas ou produzidas nos currículos? Dentre diversas maneiras possíveis, que integram a literatura curricular, este texto apresenta o Método (técnica, operação, procedimento) de Dramatização, para tratar um currículo como drama e fazer um drama do currículo. Tal modo de curricularização deriva do pensamento do filósofo Gilles Deleuze dos anos 60 (Deleuze 1976; 1988;

2006), no que se refere ao aporte do “Método de Dramatização”, presente, especialmente, nos livros Nietzsche e a filosofia; Diferença e repetição; e na conferência proferida na Societé Française de Philosophie, em 28 de janeiro de 1967, intitulada dessa mesma maneira, na qual Deleuze (2006, p. 144) afirma: “Tento definir mais rigorosamente a dramatização: são dinamismos, determinações espaçotemporais dinâmicas, pré-qualitativas e pré-extensivas que têm ‘lugar’ em sistemas intensivos onde se repartem diferenças em profundidade, que têm por ‘pacientes’ sujeitos, esboços, que têm por ‘função’ atualizar Ideias” (Deleuze, 2006, p. 144). Deleuze (2006, p. 145-146) argumenta que, ao corresponder um sistema de determinações espaçostemporais a um conceito, “um logos é substituído por um ‘drama’”. Fornece o exemplo de “uma cólera”, como “uma dramatização que põe em cena sujeitos larvares”; existindo, inclusive, “um liame fundamental entre a dramatização e um certo mundo do terror, mundo que pode comportar o máximo de bufonaria, de grotesco”. Apoiado no drama filosófico do logos – transmutado, aqui, em drama educacional de um currículo –, este trabalho examina a inserção do teatro na obra de Deleuze; estuda os seus principais componentes conceituais e operatórios; e, ao mesmo tempo, propõe um roteiro de leitura e de escritura (uma Chave de Escrileitura), para evidenciar o caráter dramático de um currículo – Debaixo de todo currículo há um drama.

O teatro deleuziano Aquilo que Deleuze escreveu especificamente sobre o teatro é pouco trabalhado, tanto pelos filósofos quanto pelos teóricos do teatro (Pellejero, 2006; Wiame, 2009). O próprio Deleuze (2005b), no Abecedário (letra C de Cultura), afirma a sua falta de interesse pela produção teatral contemporânea, exceção feita a Carmelo Bene (Deleuze, 2003) e a Bob Wilson. No livro Anti-Édipo, em 1972, junto a Guattari, Deleuze (1976) dota o teatro de um valor nega-

171

172

tivo, ao afirmar que o inconsciente não é um teatro, mas uma fábrica; não é uma tragédia clássica, que funciona seguindo a ordem da representação, mas uma produção desejante, de funcionamento maquínico. Já em Diferença e repetição, de 1968, o modo como Deleuze (1988, p. 311) tratava o teatro era outro, visto que, desde o prefácio, declarava estarem esgotados os modos antigos de expressão em filosofia; sendo necessário renoválos, seguindo os novos meios de outras artes, como o teatro e o cinema. Esse apelo a um novo teatro, oposto ao da representação, configura um teatro das multiplicidades, cuja pesquisa encena o pensamento, indo de uma máscara a outra e reinventando os papéis: “teatro que não deixa subsistir a identidade de uma coisa representada, de um autor, de um espectador, de um personagem em cena”; logo, “teatro de problemas e de questões sempre abertas”, que leva junto “o espectador, a cena e os personagens no movimento real de uma aprendizagem de todo o inconsciente, cujos últimos elementos são ainda os problemas” (Deleuze, 1988, p. 310-311). Mesmo diante da descontinuidade que a relação de Deleuze com o teatro sofre – em função do encontro com Guattari e das críticas de ambos à psicanálise –, há um invariante em sua posição acerca do teatro, qual seja: essa ideia está ligada à crítica de Nietzsche à representação, que toma o teatro como meio de experimentação cênica, mais do que como fixação sob a forma de drama. Considerando, desde o início, o teatro sobre o plano de expressão do pensamento, Deleuze mostra que Nietzsche e Kierkegaard possuem obras, que contêm uma nova concepção de movimento, para a qual toda representação é desde sempre mediação; e que eles são os primeiros filósofos a utilizar os meios de expressão próprios aos diretores de teatro (metteurs en scène). Chegam mesmo a fazer desse teatro, que se realiza no pensamento, uma máquina de guerra contra Hegel e contra aquilo que chamam o seu “falso teatro”, composto por movimentos lógicos abstratos, que operam pela mediação e representam conceitos; em vez de dramatizarem as Ideias.

A proposta deleuziana é produzir um movimento de pensar, capaz de colocar o espírito fora de toda representação; fazer desse movimento uma obra, sem interposição; substituir os signos diretos pelas representações mediadas; inventar vibrações, rotações, gravitações, que atinjam diretamente o espírito. Compreende-se que essa concepção de um teatro do pensamento não corresponde ao teatro clássico; porque, nela, não há preocupação nem atos com a representação, com a produção de ilusão, com a distinção entre ator e personagem. Deleuze (1988, p. 35) constrói a ideia de um teatro sub-representativo, feito de intensidades, máscaras e singularidades, que movimentam o pensamento: “No teatro da repetição, experimentamos forças puras, traçados dinâmicos no espaço que, sem intermediário, agem sobre o espírito, unindo-o diretamente à natureza e à história”; “uma linguagem que fala antes das palavras, gestos que se elaboram antes dos corpos organizados, máscaras antes das faces, espectros e fantasmas antes dos personagens – todo o aparelho da repetição como ‘potência terrível’”. Deleuze (2006, p. 134) concebe, assim, seguindo Artaud, um Teatro da Crueldade contra o Teatro da Representação. Se recorre ao potencial expressivo do teatro em filosofia, de onde vem a insistência deleuziana sobre o teatro no pensamento? Essa articulação gira ao redor do conceito de repetição; tanto que, muitas vezes, Deleuze denomina-o “teatro da repetição”; o qual encontra sua razão de ser nas camadas mais profundas do psiquismo. Inclusive, um dos objetivos de sua Tese de Estado é elaborar um conceito de repetição que não seja uma repetição bruta, baseada na similaridade entre termos repetidos; mas dissimétrica, produtora de diferença de potências, condensadora de singularidades: por exemplo, o eco em relação à voz; o fantasma em relação à pessoa que vive; gêmeos repetidos, mas, para os quais, não há substituição possível entre os termos. Assim, para Deleuze (1988, p. 16), “as repetições físicas, mecânicas ou nuas (do Mesmo) encontrariam sua razão nas estruturas mais profundas de uma repetição oculta, em que se disfarça e se desloca um diferencial”.

173

As forças fundamentais da Ideia são, intrinsecamente, a repetição e a questão dramática. A Ideia constitui-se numa pulsão teatral, através de disfarces (dramatização), que não vêm recobrir uma outra realidade; pois ela não é outra coisa que a repetição singular desses disfarces, que não escondem qualquer verdade nua: “A repetição é verdadeiramente o que se disfarça ao se constituir e o que só se constitui ao se disfarçar”. Ela não fica sob as máscaras, “mas se forma de uma máscara a outra”, como indo de um relevante ponto a outro, de um privilegiado instante a outro: “As máscaras nada recobrem, salvo outras máscaras”. A repetição é um travestimento, que desfaz e reinventa personagens e papéis, constituindo sem cessar o sujeito: “É a máscara o verdadeiro sujeito da repetição” (Deleuze, 1988, p. 45; p. 47).

Aventura das ideias

174

Em 1967, na conferência “O método de dramatização”, Deleuze (2006) propõe um método para o exercício do pensamento filosófico – método que é de leitura e compreensão, de análise e produção. Mais adiante, “método” (ou “esquema kantiano”) será substituído, em parte, pelos conceitos de “estratégia”, “operação”, “procedimento”, especialmente nos livros dos anos 80 (dentre os quais, Deleuze, 1985; 2003; 2005a; Deleuze; Guattari, 2004). Por enquanto, a produção deleuziana tem a orientação determinada de uma dramatização. A que visa esse conceito tirado do quadro teatral? Ora, neste período, Deleuze (1988, p. 290; p. 343-344) distingue “Ideia” de “conceito”: se este é considerado uma noção abstrata, hipotética, geral; aquela é a verdadeira objetividade, feita de relações diferenciais e provida do problemático, enquanto “o conjunto do problema e de suas condições”: a Ideia é “real sem ser atual, diferençada sem ser diferenciada, completa sem ser inteira”. Desse modo, o conceito está do lado da essência teoremática (platonismo); enquanto a Ideia fica do lado do inessencial, das afecções e dos acidentes.

Os dramas – ou “processos dinâmicos” –, na “aventura das Ideias” (Deleuze, 1988, p. 347; p. 295), colocam em cena forças e potências que agem nos acontecimentos, em detrimento daquilo que aparece na superfície do pensar. Literalmente, é isso o que significa drama: performar as Ideias, quase encobertas pela ação. O método visa pôr em destaque o caráter dramático de todo acontecimento. Como afirma Deleuze (2006, p. 139): “Il y a toujours un ‘drame’ sous tout logos” (“Há sempre um drama sob todo logos”). Porém, se o método tem por objeto essa parte dramática do pensamento que é, em geral, dissimulada, o que esse drama recobre? O que impede as Ideias de serem totalmente manifestas? Ora, aquilo que Deleuze denomina “a imagem do pensamento”, qual seja: o pensamento conceitual tem como pressuposto implícito uma imagem pré-filosófica e natural, retirada do senso comum, “onde ocorre a atividade conjunta das faculdades”. Segundo essa imagem, o pensamento tem afinidade, possui formalmente e quer materialmente o verdadeiro; “e é sobre esta imagem que cada um sabe, que se presume que cada um saiba o que significa pensar” (Deleuze, 1988, p. 218-219). A extração do pensar do domínio do senso comum e da generalização pelo conceito é o que a dramatização objetiva. Nisso consiste a primeira dimensão do método: uma dimensão diagnóstica, crítica e genealógica, que destaca o recobrimento da parte dramática do pensamento, em lugar de uma imagem dogmática e moral. Imagem que se instala antes de todo exercício de pensar, formando um “inconsciente da filosofia”. Em função dessa imagem, é que Deleuze afirma não existir um verdadeiro começo em filosofia; desde que ela, sendo prévia ao pensamento, préjulga tudo que ali é produzido. Se a filosofia participa desse acobertamento dos dramas das Ideias é porque tem interesse em manter uma relação essencial com o exercício concertado de todas as faculdades. Contudo, o que esse exercício pretende? Apenas a recognição; para a qual, as faculdades são mobilizadas

175

ao redor de um reconhecimento possível daquilo que é dado na experiência. Nesse sentido, a recognição é uma reapresentação, sob a forma do Mesmo. Além disso, porque essa imagem é natural, ela não pode ser plural; pode, até mesmo, conter expressões divergentes, neste ou naquele filósofo, mas é sempre unívoca, existindo somente uma imagem em geral, que constitui o pressuposto subjetivo da filosofia: “caráter inconsciente das Ideias” (Deleuze, 1988, p. 310).

Movimentos do método de dramatização

176

Como pode o pesquisador pôr em evidência aquilo que recobre a parte dramática do pensamento de um currículo? Esse teatro é encenado através de dois grandes movimentos: o crítico-genealógico e o experimental-exploratório. 1. Crítico-genealógico. Inicialmente, em um currículo estudado, o pesquisador diagnostica as séries constituintes, disparatadas e paradoxais, que integram um sistema metaestável, constituído de puras intensidades heterogêneas. Tais séries desenrolam-se em dois planos, os quais ecoam sem semelhança: uns, reais, ao nível das soluções engendradas; outros, ideacionais ou ideais, ao nível das condições do problema de um currículo, como atos; além de serem postas em comunicação, por meio de encontros e de avaliação sempre imanente. Para cada uma das séries, o pesquisador relaciona todos os indícios e signos, que agem nas situações e nos acontecimentos do currículo em questão, são dados à representação e podem ser encontrados como sintomas de uma vontade que quer alguma coisa, tais como: 1) Objetos\ Coisas\Fenômenos; 2) Conceitos\Conhecimentos\Saberes; 3) Sentimentos\Emoções\Sensações; 4) Poder\Relações; 5) Crenças\Desejos\Pretensões; 6) Sujeitos\Subjetividades; 7) Identidades\Identificações. Dentre todos os indícios e signos relacionados, em cada uma das séries, o pesquisador escolhe aquele (somente um) que seja o mais recorrente ou o mais incomum.

Considerando que os processos dinâmicos que dramatizam o currículo são atualizantes e diferenciantes, destaca as suas propriedades, criando espaços e tempos particulares; formando regras de especificação para os conceitos; determinando o duplo aspecto da diferençação, qualitativo e quantitativo (qualidades e extensos, espécies e partes); designando um sujeito, mas um sujeito embrionado; constituindo um teatro especial, que exprime Ideias. Tratando cada indício e signo selecionado como sintoma de uma vontade (força, potência), que quer alguma coisa, o pesquisador atribui importância máxima à forma das perguntas da qual deriva o Método de Dramatização. Para isso, não responde às perguntas, por meio de exemplos, mas pela determinação de um tipo; já que o que uma vontade quer não é um objeto, mas um tipo: o tipo daquele que fala, pensa, age, não age, reage. Sublinhando que um “tipo” é constituído pela nuança ou qualidade da vontade de poder e pela relação de forças correspondentes, e que todo o resto é sintoma, o pesquisador reconhece que um tipo só é possível de ser definido quando se determina o que quer a vontade, nos exemplares desse mesmo tipo. Em vez de perguntar “O que é este currículo?” (que levaria à essencialização e à igualação do não-igual), privilegia um certo comportamento do pensamento, indagando: 1) QUEM QUER? Quem é aquele que quer? O que quer aquele que diz? Quais são as forças que dominam aquele que quer isso? Qual a vontade que possui aquele que quer isso? Quem, então, se exprime e, ao mesmo tempo, se oculta naquele que quer isso? Qual o seu tipo, isto é: a vontade, a força, o lugar e a ocasião em que ele quer? Quem ou de qual ponto de vista quer isso? Esta vontade de poder (este “quem”?) supõe o quê? Qual a imagem do pensamento pressuposta por esse tipo, que não é um indivíduo, mas aquele que quer a vontade de? O que quer aquele (tipo) que diz, pensa, sente ou experimenta isso? O que quer aquele que não poderia dizer, pensar, sentir ou experimentar isso, se não tivesse tal vontade, tais forças, tal maneira de ser? 2) QUANDO QUER? Em que condições?

177

Em que caso(s)? 3) ONDE QUER? Lugares? Circunstâncias? Pontos de vista? 4) COMO QUER? Por quais operações? Por quais configurações de forças? 5) QUANTO QUER? Intensidade das forças que querem isso? Extensão da vontade que quer isso? 2. Experimental-exploratório. O pesquisador chega, agora, ao segundo movimento do Método, não mais crítico ou genealógico, mas exploratório e experimental. Não evita mais a imagem dogmática de pensamento; mas se introduz no interior de outro nível de Ideias, de uma outra experiência do pensamento, solicitando forças que são potências de uma terra incógnita jamais antes conhecida. A exploração desse espaço sub-representativo e préindividual é o principal elemento do Método, enquanto constituído não por objetos, coisas ou indivíduos, mas por agitações do espaço, buracos do tempo, puras sínteses de velocidades, direções, ritmos, “que determinam a atualização da Ideia” (Deleuze, 1988, p. 347). Assim, para descrever o sentido e o valor de cada série do currículo em questão, o pesquisador pode operar em termos de: tipologia e topologia; relação de forças que determina uma vontade (um tipo); ontologia (sujeitos larvares); ética e política; “essência” (como sentido e valor); modos de existência derivados da experimentação; ressonâncias internas e externas; nova Ideia (pensamento sem imagem ou nova imagem do pensamento); campos e regimes de individuação; encontros imanentes; transmutação de determinações demasiado humanas (o sobrehumano); elementos ideais, diferenciais e problemáticos; acontecimentos, intensidades, produção de sentidos incorporais; vivência da sensação e a criação artística; Vidarbos curriculares; invenção de tudo.

Tensões permanentes

178

Lidando com os elementos conceituais e operatórios dispostos acima, a pesquisa vitalista pode, então, responder: como, através da multiplicidade espaço-temporal, do

“diagrama informal” (Deleuze, 1991, p. 78), um currículo deixa passar as tensões permanentes entre o enunciável e o visível das Vidarbos? Como atribui às matérias fluentes e às funções difusas do pensamento histórico, antropológico, psicológico, social ou cultural dos contemporâneos de um currículo, a densidade teatral sem perder a sua inteligibilidade? Como transforma em drama curricular os traços de conteúdo e de expressão da existência cotidiana com os seus ecos na consciência? Perseguindo o vago e o arbitrário, sob o controle de uma consciência, que “vai sem parar da ciência ao sonho e inversamente” (Deleuze, 1988, p. 353), a pesquisa busca ressonâncias entre as artes verbais e as ciências da exatidão. Produzindo escrituras que engendram interpretações e avaliações, não decodifica a linguagem para determinar o significado de um currículo. Fazendo uma leitura distante da global, não salta ou inflexiona as mesmas passagens. Apreciando não a estrutura ou os conteúdos, dedica-se às fendas, intermitências e esfoladuras curriculares. Despregada da autossuficiência, como instituição ou gênero, não objetiva a sabedoria, a realidade da vida nem a verdade. Propõe enigmas aos pesquisadores, que os leva a se debruçarem sobre o luminoso disfarce da complexidade de um currículo. Máscara sobre máscara, ambiciona ser pesquisa sem maiúscula, cuja importância ocorre em função da sua habilidade de se disfarçar ao se constituir: “em última instância, nada há, salvo a vontade de potência, que é potência de metamorfose, potência de modelar as máscaras, potência de interpretar e de avaliar” (Deleuze, 2006, p. 157). A dramatização de um currículo faz-se “na cabeça do sonhador, mas também sob o olho crítico do cientista”, agindo aquém dos conceitos e das representações. Através de deslizamentos e rotações das determinações puras – que agitam o espaço e o tempo e agem diretamente sobre os espíritos –, o Método expõe os dinamismos da constituição atual de um currículo. Não pode, pois, deixar de encenar o caosmos curricular, “nesses mundos de movimentos sem sujeito, de papéis sem ator” (Deleuze, 1988, p. 351).

179

Cavando espaços, precipita ou desacelera tempos, via torções e deslocamentos de inteligibilidade, que mobilizam as Vidarbos nos currículos. Desde que os pesquisadores procuram saber como funciona o drama do logos de um currículo (e não para que funciona), realizam processos que não se separam de suas Vidarbos e nem de seus contemporâneos. Concedem, portanto, que a inteligência formadora de um currículo possa não ser mais do que uma ficção; embora não encontrem nada melhor do que ela. Por isso, dispõem, no campo do currículo, efeitos de diferença, que não representam o mundo da exterioridade; mas tomam tais efeitos como versões codificadas de acontecimentos. Modelizam, processualmente, um currículo, como ética do intelecto – seja social, técnica, política, educacional, artística –, produzida pelas inter-relações de ação, sentido e valor, entre Corpo, Espírito e Mundo – o CEM de Valéry (1931; 1977). Quando a pesquisa vitalista dramatiza o informe curricular, não acredita que um currículo não tenha formas; mas, que estas não encontram mais, no pensar, nada que permita substituí-las por um reconhecimento. Esse informe traz a lembrança das puras possibilidades dos currículos e defende o pensamento das ideias feitas, que tornam viável e fácil a vida prática, mas dispensam os pesquisadores de se surpreenderem. De algum modo, faz nascer germes de biocurrículos, tornados disformes. Cria, assim, uma vitalidade multiforme, no extremo da fantasia da Grande Arte de um currículo, a qual só pode ser experimentada, independentemente da sua extensão: “obra da vida, da arte, do tempo ou um capricho da natureza” (Valéry, 2008, p. 67).

Referências

180

ANPED – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO. GT 24, GRUPO DE TRABALHO EDUCAÇÃO E ARTE, s/d. In: http://www.anped.org.br/internas/ver/historico-gt-24?m=24 (Consultado em 13 dezembro 2011.)

BARTHES, Roland. A preparação do romance II: a obra como vontade: notas de curso no Collége de France 1979-1980. (Trad. Leyla Perrone-Moysés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. (Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias.) Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. _____. Cinema 1. A imagem-movimento. (Trad. Stella Senra.) São Paulo: Brasiliense, 1985. _____. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. Foucault. (Trad. Claudio Sant’Anna Martins.) São Paulo: Brasiliense, 1991. _____. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. _____. Crítica e clínica. (Trad. Peter Pál Pelbart.) São Paulo: Ed. 34, 1997. _____. Superposiciones. (Trad. Jacques Algasi.) Buenos Aires: Artes del Sur, 2003. _____. A imagem-tempo. Cinema 2. (Trad. Eloisa Araujo Ribeiro.) São Paulo: Brasiliense, 2005a. _____. O Abecedário de Gilles Deleuze. (Trad. Anônima.) In: http://www. oestrangeiro.net/esquizoanalise/67-o-abecedario-de-gilles-deleuze (Texto consultado em 06 agosto 2005b.) _____. “O método de dramatização”. (Trad. Luiz B.L.Orlandi.) In: _____. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 129-154. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. (Trad. Georges Lamazière.) Rio de Janeiro: Imago, 1976. _____. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz.) Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. _____. Capitalisme et schizofrénie: millle plateaux. Paris: Minuit, 2004. DIAS, Sousa. Lógica do acontecimento: Deleuze e a filosofia. Porto: Afrontamento, 1995. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. “Sobre verdade e mentira no sentido extramoral”. In: _____. Obras incompletas. Os pensadores. XXXII. (Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho.) São Paulo: Abril, 1974, p. 51-60. _____. Além do bem e mal. (Trad. Paulo César de Souza.) São Paulo: Companhia das Letras, 1992. _____. Ecce homo: como alguém se torna o que é. (Trad. Paulo César de Souza.) São Paulo: Companhia das Letras, 1995. _____. A gaia ciência. (Trad. Paulo César de Souza.) São Paulo: Companhia das Letras, 2001. _____. Crepúsculo dos ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. (Trad. Paulo César de Souza.) São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

181

PELLEJERO, Eduardo. “Deleuze y el teatro de la filosofía: dramatización, minorización y perspectivismo”. In: Devenires, 2006, 27p. (Texto digitalizado.) _____. A postulação da realidade (filosofia, literatura, política). Lisboa: Vendaval, 2009. RAJCHMAN, John. The Deleuze connection. Cambridge: MIT Press, 2000. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. SOUZA, Paulo César de. “Notas”. In: NIETZSCHE, F. W. Crepúsculo dos ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 111-130. VALÉRY, Paul. Cahiers Paul Valéry. Paris: Seuil, 1931. _____. Cahiers Paul Valéry 2. Mes théâtres. Paris: Gallimard, 1977. _____. A alma e a dança e outros diálogos. (Trad. Marcelo Coelho.) Rio de Janeiro: Imago, 1996. _____. Eupalinos. L’âme et la danse. Dialogue de l’arbre. Paris: Gallimard, 2008. WIAME, Aline. “Un étrange théâtre psychique: la pulsión de mort selon Gilles Deleuze”. In: Actes de la Journée des Doctorants du CRHT, Centre de Recherche sur l’Histoire du Théâtre, Université Paris-Sorbonne, Paris-IV, 16 mai 2009. (Texte en ligne, 8p. ) WOTLING, Patrick. Le vocabulaire de Nietzsche. Paris: Ellipses, 2001.

182

CURRÍCULO DA INFÂNCIA E INFÂNCIA DO CURRÍCULO: uma questão de imagem9

9

E se tudo fosse uma questão de imagem? Se a infância, para a qual preparamos, organizamos e desenvolvemos o currículo, que lhe corresponde, nada mais fosse do que tão-somente imagem? Se também esse currículo fosse apenas imagem? E se o próprio pesquisador só pesquisasse a partir da imagem que faz da pesquisa? Se, antes, inclusive, de o pesquisador pensar o currículo da infância e a infância do currículo fosse necessário ter inventado essas imagens – dentre elas, a de pesquisa e a do próprio pesquisador – para, só então, poder pensar? Se esse movimento formador de imagens fosse a sua própria gênese, à qual lhe seguisse o pensar? E se essas pesquisas, que extraem imagens e forjam modos de existência, tornassem o pensamento que os pensa de novo possível, promovendo inéditas articulações entre arte, conhecimento e vida? Se a pesquisa da imagem, que é a mesma da criação do pensamento, estimulasse a estrangeiridade do pensar, evitando que as certezas coincidam com as verdades e afastando críticas eruditas e capciosas? Se, ao conceber a imagem, relevada do registro do pensamento, a pesquisa fornecesse, face à obstrução e, mesmo, à exclusão do pensar, algo inédito para experimentar, problematizar, formular e criticar problemas? Preparasse o pensar para a intensi-

9

Texto apresentado na sessão intitulada “Currículo e educação infantil”, no X Colóquio sobre Questões Curriculares e VI Colóquio Luso-Brasileiro de Currículo, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais, de 04 a 06 de setembro de 2012; e publicado, com variações, no livro Desafios contemporâneos sobre currículo e educação básica, organizado por Marlucy Alves Paraíso, Rita Amélia Vilela e Shirley Rezende Sales, pela Editora CRV, de Curitiba/PR, em 2012 (p. 25-38).

183

184

dade e a diferença, distinguindo-se da pesquisa que apenas reconhece a infância e o currículo, por meio de estruturas, regularidades e leis; divisão do trabalho e sexual; modelos e fitas métricas; representação e universais? No caso de assumirem esse procedimento singular, denominado noologia, ou estudo das imagens do pensamento (Corazza, 2002; 2010), os pesquisadores investigam as imagens de currículo, infância e pesquisa, não para refutar ou certificar aquelas que existem e operam neles e na sociedade, mas para voltar a pensa-las de outra maneira. Promovem um pensamento por vir, que queima a memória e esfarela a história, enquanto controles miméticos, instalados no mito da infância e na essência do currículo. Pensam infância e currículo, como totalidades abertas, que mudam incessantemente, por meio da pesquisa que dispara, afirma e arrisca, lavada das sujidades do negativo. Pensamento insolente e fictício, que pensa sem trocas reguladas, tomando a pesquisa em educação, o currículo da infância e a infância do currículo como puros acontecimentos e variabilidades infinitas. Essa noologia, contudo, nada vale sem o agenciamento das forças efetivas que atuam sobre a pesquisa e as indeterminações afetivas que forçam o pesquisador a pensar. Pesquisa que acontece no presente e cria aquilo que é requerido pela experiência real, não apenas possível. A sua potência é avaliada pelos sentidos de infância que renova; pelos novos recortes que impõe ao currículo; pelas experimentações de pesquisa que suscita. Uma pesquisa, realizada como jogo e vertigem, em zonas préindividuais e impessoais, sem remissão a objeto ou a sujeito; que expressa o que há de potente, selvagem e vital, nos movimentos pesquisadores. Para viver essa pesquisa das imagens do pensamento, o texto usa, como ponto de partida e trampolim, a produção de Deleuze (1976; 1985; 1987; 1988; 2003; 2005; 2006; 2007; 2009; 2010; 2011), e de Deleuze e Guattari (1992; 1995; 1997), feita ao redor do conceito de imagem. Cria condições para ativar o pensar do pesquisador, em meio ao

pensamento educacional; e avaliar se tal pensar é nefasto ou propício ao vitalismo das suas afecções.

Pensar No entanto, a pesquisa noológica não teria qualquer valor, caso não chegássemos a um acordo sobre o que, nessa condição, é entendido por pensar. Diremos, então, que o pensamento difere do conhecimento e da reflexão, os quais são voluntários e conscientes; que pensamos sem o saber, até contra os saberes; e que, por isso, pensar é um ato involuntário, seja no seu surgimento seja no seu criar. Não nos damos conta que pensamos e o fazemos sempre sem querer; por isso, afirmamos que refletimos; mas, talvez, não possamos afirmar que pensamos; já que pensar é uma experiência de raridade. Para a noologia, pensar não é exercício de boa vontade, feito com a correta aplicação de um método; não é indagar sobre a verdade das coisas, que correspondem às próprias perguntas e definições; não é julgar, pois não se preocupa com a verdade. Pensar é impressão, expressão, encontro com signos: “algo tornado estranho porque instantaneamente imantado por uma heterogeneidade que não se oferta à recognição tranquilizadora” (Orlandi, 2012, p. vi). Forçando-nos a olhar, constrangendo-nos a interpretar e nos obrigando a pensar de outro modo, os signos propõem imagens que irrompem e afetam aquilo que já sabemos. Carregam, assim, uma violência da exterioridade, que arranca o pensamento do seu natural torpor e da vacuidade de meras possibilidades abstratas. Essa violência impele a pesquisa a fabricar conceitos, perceptos, afectos ou funções, em uma singular luta contra o caos; a qual, ao mesmo tempo, esconde a secreta aliança contra aquilo que é o seu inimigo: lugares comuns da opinião, clichês, idées reçues (ideias feitas). Contra as convenções e as imitações, a reflexão e a comunicação, a aliança do pensamento com o caos é o que restitui à pesquisa “a incomunicável novidade que não mais se podia ver” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 262).

185

186

Em face dos signos, o pensamento é faca que corta o caótico, como um plano corta um cone; o que implica captar, apreender, definir uma fatia de caos; o qual, no entanto, permanece livre em outras direções. O pensamento é um crivo, que seleciona e fixa, determina e contém o rio de Heráclito; embaralha a sintaxe e produz ideias voláteis, precárias, facilmente perdíveis, mas que atravessam todas as atividades criadoras. Pensar difere, assim, dos conhecimentos adquiridos e consolidados, da erudição e da bagagem cultural dos pesquisadores. Logo, para estes, aprender consiste em decifrar a ininterrupta emissão de signos, que “são objeto de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato”, diante de “uma matéria, um objeto, um ser” (Deleuze, 1987, p. 4). O pensamento que pensa as imagens e os signos é perturbação, ruptura, experimentação, processo de criação, singularidade, diferença, fluxo nômade, viagem. Tendo uma geografia antes de ter uma história: “o pensamento pressupõe ele próprio eixos e orientações segundo os quais se desenvolve”, traçando “dimensões antes de construir sistemas” (Deleuze, 1998, p. 131). Ao pesquisar noologicamente, esse pensamento-outro não se pensa a si mesmo, sem tornar-se inútil ou aprisionarse numa interioridade estéril, condenado ao subjetivismo, ao relativismo, ou à impotência. O seu problema é pensar a exterioridade e a sua necessidade; exercitando não uma sucessão regrada dos conhecimentos do espírito, mas um construcionismo; que encontra o pensar se fazendo e, ao fazer-se, pensando as suas criações. Todo pensamento nasce nos limites do próprio pensar, desde que carrega a potência de saltar, de ultrapassar-se, de ir até o extremo do que pode pensar. Assim operando, a pesquisa propõe um pensamento sem imagem; ou desenvolve uma nova imagem do pensamento, expressa pelo plano de imanência, na filosofia; pelo plano de composição, na arte; ou pelo plano de referência, na ciência. Diferenciam-se, desde aí, a concepção e a prática da pesquisa noológica de outras pesquisas,

baseadas na reflexão sobre o currículo e a infância. Isso encaminha a imagem com a qual pesquisamos.

Imagem A imagem do pensamento é o que precisamos para pensar. Em cada tipo de pensamento, encontramos imagens, embora elas nem sempre sejam evidentes. Ao formar uma imagem de infância e de currículo, ou ao deslocar-se dramaticamente de uma a outra, cada pesquisador começa a pensar de novo; isto é, volta a formular o que seja pensar a infância e o currículo. Assim, para a noologia, o que valem são as imagens, como pressupostos do que seja pensar, nessa ou naquela direção. Qualquer criação supõe, em primeiro lugar, uma imagem – como figura, paisagem, cena, chão pré-teórico –, que subjaz ao saber e o prefigura; de modo que um saber só é compreendido a partir desse campo prévio. Mas, o que é uma imagem de pensamento? Não se trata de cópia mental ou representação subjetiva; nem mesmo é uma Weltanschauung (concepção de mundo); não é representante da coisa no intelecto, ou visão do objeto na consciência; não pode ser deduzida da ideologia, nem do contexto social e econômico; tampouco, pode ser confundida com a transparência das formas ou das ideias, nem com o esclarecimento de proposições; não é um dado psicológico, nem está no cérebro do sujeito – ao contrário, tanto o cérebro quanto o sujeito são imagens entre outras. A imagem é diagrama, horizonte e solo, atmosfera e reservatório, vibração movente da matéria e relação de forças sensíveis, desprendidas dos afectos. Ela é um ser, uma coisa, “um arquivo audiovisual” (Deleuze, 1991, p. 60). Entendida como uma aparição, no sentido de Bergson (1999), não necessita ser percebida para existir; mas tem uma existência física, como um choque, traumatismo, concussão, fulguração. Nesse realismo, a imagem não é encontrada; mas é fabricada, como resposta a problemas; os quais não se resolvem de uma vez por todas; mas formulam-

187

se continuamente, ou se dissolvem em novos problemas, persistindo nas soluções que recebem. A noologia lida com intuições sobre problemas (Deleuze, 1999), que fazem aparecer a imagem; e, ao mesmo tempo, acompanham a sua construção. Sendo plural, como a força, não há nunca uma imagem isolada, mas multiplicidade de imagens, feitas de velocidades e lentidões. Podemos encontrar dois tipos básicos, radicalmente diferentes um do outro: a imagem dogmática do pensamento, baseada no modelo do reconhecimento; e um pensamento sem imagem (ou uma nova imagem do pensamento), considerado como encontro com a heterogeneidade dos signos. Seguindo os percursos do conceito, na obra de Deleuze, os pesquisadores podem operar com esses tipos básicos de imagem, a moral e a heterogênea; sendo que esta última se abre, ainda, em duas direções, quais sejam: sensação e plano.

1. Moral

188

Junto à tradição filosófica dominante, especialmente racionalista, a imagem é uma preconcepção implícita e tácita, que o pensamento se dá dele mesmo. Tal imagem deriva do senso comum, do consenso, do pensamento identitário, pretensamente natural: “segundo esta imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro” (Deleuze, 1988, p. 219). Os pesquisadores trabalham, aqui, com uma imagem clássica do pensamento, que é sempre moral, fundamentando-se em oito postulados: princípio da existência de um pensamento universal, bom por natureza; o bom senso ou o senso comum são a determinação do pensamento puro; o modelo transcendente, que opera a distinção entre o fato e o direito, é a recognição, ou o exercício concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como o mesmo, que implica a identidade do Eu; a representação, que subordina a diferença ao quádruplo:

Mesmo e Semelhante, Análogo e Oposto; o negativo do pensamento, concebido como erro; a função lógica, ou o primado, na proposição, da designação, identificada à relação da verdade sobre a expressão; a modalidade das respostas e soluções, que se dá a problemas já dados; o fim, ou o resultado obtido, qual seja, o saber (Deleuze, 1988, p. 218-p. 273). A imagem dogmática é um dispositivo repressor, pois impede a pesquisa de pensar o inédito, ao valorizar noções, como: universalidade, ideias justas, método, pergunta e resposta, reconhecimento e recognição; ou temas como: república dos espíritos, pesquisa do entendimento, tribunal da razão, puro direito do pensamento. No transcurso da história, a pesquisa tem emprestado essa imagem aos aparelhos de Estado; e, assim, perdido sua potência como máquina de guerra (Deleuze; Guattari, 1997). Para ela, pensar significa conhecer, desde que o pesquisador rejeita as coisas como aparecem e as acolhe como verdadeiramente são. Fora de si, o pensamento reconhece materialmente o que, de maneira formal, já possui; levando a imagem a funcionar por meio de um dualismo entre a interioridade pura (intelecto) e a exterioridade indiferente (essência da coisa). A verdade da pesquisa é, assim, pensada como adaequation intellectus et rei (adequação do intelecto à coisa); na qual, a faculdade do pensamento adequa-se ao objeto externo, fazendo corresponder aquilo que a infância e o currículo são em essência e as suas representações intelectuais. Nesse tipo de imagem, pesquisar seria responder corretamente à pergunta “o que é a infância e o currículo”?, de modo a conhecê-los em suas verdadeiras naturezas. Para tanto, a pesquisa os prefigura em lugares comuns; e, no contato com essa imagem dogmática, reconhece-os, julgando sua verdade e falsidade. Logo, sabe o que significa e quer (mesmo) a infância e como elaborar e desenvolver (de fato) um currículo, por força de um ou mais atos fundadores. Há, nessa imagem, uma necessidade essencial de começar; a qual nada mais é do que uma ilusão; visto

189

que todo fundamento refere-se diretamente à opinião vigente, ou à sua forma disfarçada em Urdoxa. A partir desse fundamento, outros conceitos conquistam objetividade, como desenvolvimento infantil ou paradigma curricular; porém, sob a condição de estarem ligados aos primeiros; de responder a problemas sujeitos às mesmas condições; e de permanecer sobre o mesmo plano de pensamento.

2. Heterogênea

190

Em contraponto à dogmática, a pesquisa encontra uma nova imagem na obra de Nietzsche (Deleuze, 1976); tributária, ainda, de Spinoza, Hume, Bergson, Proust, Godard, entre outros. O verdadeiro e o falso não são mais os elementos do pensamento; mas o sentido e o valor, o nobre e o vil, o alto e o baixo, o interessante e o banal; segundo a natureza das forças que dele se apoderam. Para essa imagem, importa o fora do pensamento, o seu outro, o diferente de si, que o tira dos trilhos. O ato de pensar não é possibilidade natural, mas uma criação; de maneira que só pensamos verdadeiramente ao criar. Outrossim, se a pesquisa for além dessa nova imagem, pode até encontrar um pensamento livre de imagem (entenda-se de imagem dogmática): sem modelo, sem formato subjacente, sem regras prévias, sem estriagens. Um pensamento que sustenta e assina o seu começo autorreferente, repetição do novo e diferença múltipla; enquanto espaço liso, vetorial, cortado por intensidades e por forças de atualização; as quais passam pelo virtual e dele retiram consistência: “o pensamento é como o Vampiro, não tem imagem, nem para criar modelo, nem para fazer cópia” (Deleuze; Guattari, 1997, p. 47). A noologia trabalha, aqui, com a imagem-Heterogênea de um pensamento imprevisto, incompreensível, inassimilável; que apresenta a radical novidade de ver o ato de pensar engendrado em sua própria genitalidade; o qual inclui o nomadismo, os devires, as núpcias contra-natureza, as capturas e os voos, as línguas menores, as gagueiras na língua.

Essa imagem pensa o fora por meio de acontecimentos com conceitos; estados de coisas com funções; monumentos com sensações. Um desses pensares não é melhor do que o outro, ou mais plenamente pensado; mas cruzamse e se entrelaçam, sem síntese nem identificação; traçando, nas três grandes formas do pensamento (arte, ciência e filosofia), planos sobre o caos. Há todo um tecido de correspondência entre elementos heterogêneos, dotado de pontos culminantes e igualmente perigosos; os quais podem reconduzir a pesquisa à opinião de onde pretendia sair; ou, então, precipitá-la no caos que se dispôs a enfrentar.

2.1. sensação Existe, ainda, para a pesquisa noológica, a possibilidade de utilizar a imagem- Heterogênea, no nível da sensação. Os pesquisadores remetem-se, assim, às imagens picturais e cinematográficas, independentes da linguagem e articuladas semioticamente à realidade plástica dos corpos, das linhas, das cores, dos sons, do movimento e do tempo (Artaud, 2008; Aumont, 1995; Aumont; Marie, 2003; Bogue, 2003; Buyden, 1990; Colebrook, 2006; Deleuze, 1985; 1991; 2005; 2007; 2009; 2011; Kennedy, 2000; Lins, 2007; Marrati, 2003; Mostafa; Cruz, 2011; Paquot, 2008; Pelbart, 2004; Rancière, 2001; Revue d’Estéthique, 2004; Sasso; Villani, 2003; Sauvagnargues, 2006; 2009; Vasconcelos, 2006; 2008). Derivada das artes não-discursivas, a matéria dessa imagem do pensamento de currículo e infância é nãolinguisticamente formada; assignificante e assintática; irredutível aos enunciados e significações linguageiras. Essa imagem signalética remete a uma lógica do sensível, que não deixa de ter efeito sobre o pensamento e de dar o que pensar. A pesquisa estética e programática dessa nova imagem implica avaliar a variação de seus movimentos, em seu poder de afetar e de ser afetada; e analisar o tempo, em estado puro, sem os liames sensório-motores. Fazendo coexistir uma imagem atual com seu duplo virtual, a imagem-Movimento e a imagem-Tempo definem, desta

191

feita, a forma do que seja pensar; além de se associarem à matéria do ser: “é nesse sentido que se diz que pensar e ser são uma só e mesma coisa. Ou melhor, o movimento não é imagem do pensamento sem ser também matéria do ser” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 41). A pesquisa constrói enquadramentos e montagens, cortes móveis e perspectivas temporais no pensamento, desenvolvidos em prol da potência para pensar o Todo da infância e do currículo, que é o Aberto, como um vazio ou meio fluido: “o Todo é o que muda, é o aberto ou a duração” (Deleuze, 1985, p. 41; Bergson, 2005). Os seus movimentos reais e durações concretas fazem com que se autodiferenciem e exteriorizem em imagens que se dão à visibilidade; ou, inversamente, com que interiorizem, na própria totalidade, suas linhas, figuras de luz e blocos de espaço-tempo (Deleuze, 2005). A originalidade dessa imagem-Sensação reside no seu impoder de pensar discursivamente currículo e infância; e em poder pensa-los enquanto agenciamentos de movimentos, sistemas de ação-reação, ou imagens óticas e sonoras puras – impoder e poder que habitam o coração mesmo do pensamento.

2.2. plano

192

A segunda dobra da imagem-Heterogênea remete a uma utilização inteiramente positiva do conceito de imagem, que corresponde ao abandono da busca por um pensamento sem imagem. Agora, a imagem, como requisito inevitável para pensar, é assimilada a planos de imanência, composição e referência. Para a pesquisa dessa imagem-Plano, infância e currículo não são conceitos pensados nem pensáveis; mas tornam-se, antes, traçados não-filosóficos, não-artísticos e não-científicos; orientações no pensamento; imagens para fazer uso do pensar; reivindicando o movimento infinito do próprio pensamento. Mais complexa do que um método e positivamente pressuposta, como a condição mesma do exercício do pensamento, a imagem nunca é transcendente a algo,

seja à consciência ou à qualquer forma do eu; mas exercese nos termos de uma interrogação relativa às transformações das próprias imagens. Dota de consistência a pesquisa da natureza dos postulados inerentes à imagem (dogmática) de currículo e de infância; que funcionam (ilusoriamente), na imagem-Moral, como prolegômenos ao pensar; para ir em direção à construção de uma nova imagem, que não obedece àquela imagem prévia que determina de antemão o que implica orientar-se no pensamento. A pesquisa apresenta-se, decididamente, menos como a produção regulada de algum quebra-cabeça e mais como um lance de dados. Ressoando entre si, sobre um só e mesmo plano de imanência, de referência ou de composição, currículo e infância impelem a noologia a traçar os planos; ao mesmo tempo em que criam os pensares que os povoam. Os planos instauram-se, então, como solos da pesquisa; a par de desterritorializá-la; constituindo a imagem de pesquisador que o pensamento se atribui de direito: “Imagem do Pensamento-Ser” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 88). Nessas operações, a noologia leva o pensar e o ser a se transformar um no outro; reconhece que a base de todos os planos pensáveis, imanente a cada um, não pode ser pensado por si mesmo, mas por aquilo que permanece sempre o seu fora absoluto; e não somente pensa o plano, seja ele qual for, mas mostra que está lá, como o não-pensado em cada plano: “não cessa de se tecer, gigantesco tear” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 41). A partir daqui, a pesquisa cria regimes de visibilidade e de dizibilidade da infância e do currículo, nos quais, existe uma pluralidade de imagens diferentes. Imagens em que, no entanto, é possível encontrar similitudes, como: o abandono do erro, que coloca a pesquisa na errância infinita; a recusa de um modelo único de pensamento e de pensador; a multiplicação de imagens a serem pensadas e de planos a serem traçados. Assim, a pesquisa cumpre o requisito do ato de pensar; qual seja, a autocriação no seio do próprio pensamento.

193

Admitindo a pertinência de usar a noção de imagem para pesquisar o currículo da infância e a infância do currículo, as análises conduzem os pesquisadores a confrontar uma imagem com outras. Longe de invalidar os princípios dos quais procedem cada uma, o trabalho com as imagens renova o interesse e alarga os limites da pesquisa; nos quais, elas são estabelecidas na exploração e tentativa de compreensão dos planos.

Dos três tipos de imagens Na noologia, não perguntamos pelas imagens, mas pensamos em imagens. Para isso, realizamos uma taxionomia das imagens, que podemos encontrar, no campo problemático do intratável, do não-pensado, na pesquisa de infância e currículo. Damos, agora, a ver três imagens, que são relações de forças plurais, situadas ao nível da própria matéria fluente e em sua variação; que existem em si e subjazem aos exercícios da pesquisa; deles se nutrindo e, ao mesmo tempo, os instaurando. Dispostas segundo perspectivas de uma geografia do pensar, em que se move a pesquisa noológica, essas imagens distribuem os pensares em relação à mudança, ao movimento e à duração. O texto cartografa essa disposição, ou seja: esboça um exame crítico dos tipos de pesquisa e de pesquisador, postos em jogo; realiza um mapa do seu poder de afetar e de ser afetado; faz estética, semiologia e etologia de suas potências; percebe e apreende seus materiais e vias de subjetivação; desenha seus tipos sócioshistóricos; leva seus gritos, crivos, desertos moventes, em viagens de tradução (Corazza, 2011). Nos circuitos da pesquisa de currículo e de infância, aparecem, então: a imagemProfunda; a imagem-Ascensional; e a imagem-de-Superfície.

1. Profunda 194

Herdeira dos pré-socráticos, a imagem-Profunda é aquela da pesquisa do fundo, do mais baixo sob a terra, da

autoctonia, do Tártaro. Na profundidade absoluta e negra da physis de infância e de currículo, a pesquisa faz escavações nos corpos e no pensamento, sondando os elementos primordiais: água e fogo, ar e terra. Para ir a campo, os pesquisadores calçam sandálias de bronze (que o vulcão Etna costuma devorar e regurgitar). O seu arquétipo é Empédocles. Seus pais são Diógenes Laércio; Diógenes o Cínico; Crisipo o Estóico. Eles têm por irmãos os megáricos, os estóicos e os cínicos. Os animais de sua zoologia são: a toupeira, o rato e o tatu. Os instrumentos com os quais trabalham são os martelos do geólogo e do espeleólogo. Com eles, sentem a vibração dos infantis; a aspereza das pedras curriculares; a umidade dos buracos da pesquisa. Também deformam e quebram estátuas de crianças; destroem os pés de barro dos ícones das áreas curriculares; escavam e rasgam modelos didáticos. Mesmo promovendo tais subversões no mundo da pesquisa, desta esperam a salvação. Alguns, dentre os pesquisadores do subsolo, são populares na pólis e habitam ou ocupam lugares públicos. Mostram-se implacáveis, autônomos e suficientes. Todos recusam o fio de Teseu; e, se o usam, é para enrolar-se ou enforcar-se nele. Calam-se quando indagados; brandem o seu bastão; quebram barris; vestem andrajos; dizem disparates; pensam em paradoxos. Isso faz com que sustentem discursos novos, que contêm a força do chumbo; e criem espaços e tempos determinados, ritmos, máscaras, anedotas. No abismo infernal e em suas dobras, encontram matérias venenosas para sair da imagem moral de pensamento, que produz clichês. Sabem que só o impensável tem condições de fazê-los pensar; mas, nem por isso, deixam de ser confundidos com o clichê científico mais básico do personagem-pesquisador: aquele que é profundo. Por isso, comprometem-se a romper a maldição da pesquisa feita com clichês. Para começar, reconhecem os clichês como pivôs decisivos e ecos importantes do impensado; logo, a via pela qual este pode tornar-se perceptível.

195

Para os pesquisadores profundos, os clichês não são degenerescência da imagem e não vêm depois da imagem original de currículo e de infância; ao contrário, os clichês precedem essas imagens. Ou melhor, são os clichês que permitem à imagem aceder, nascer a seu olhar e atualizarse, para traçar algo. Indagam, desde aí: em que consiste uma imagem de infância e de currículo que não seja um clichê? Onde termina o clichê e começa a imagem? Onde a pesquisa começa, efetivamente, a pensar? Quando a pesquisa começa a criar e não mais a reproduzir os clichês; mas exporse às suas pequenas mortes, enfrentando o risco de ficar, eventualmente, prisioneira de sentidos congelados?

2. Ascensional

196

Para a imagem-Ascensional, há toda uma reorientação do que significa pensar: não mais em profundidade, mas na altitude celeste. Os pesquisadores são dotados de asas. A fim de fazer suas pesquisas, devem sair das cavernas e elevar-se, mediante o cumprimento de exercícios ascéticos. O seu arquétipo é, sem dúvida, Platão. Os seus animais são: a águia, o abutre e o condor. Devido à metafísica dessa imagem, cultivam laços estreitos entre moral e pensamento. Transcendentes, padecem de um psiquismo ascensional. Seus ideais elevados os jogam em outra ideia popular e científica de pesquisadores: aqueles que têm a cabeça nas nuvens. E, para eles, o céu é, de fato, inteligível; haja visto que compreendem suas leis. As operações centrais desses pesquisadores, rumo à salvação, são a ascensão e a conversão. Voltados ao princípio do alto, do qual procedem, se, por desgraça, caem, na imanência terrestre, tratam de ascender aos cumes, pela purificação. Muito se determina se, nessa volta, encontram o vazio ou monstros alados, duplos dos abismos infernais. O grande perigo da sua pesquisa é ser acusada de evocar a existência de uma representação mental da natureza do pensamento; condicionante do fato mesmo de pensar. Lá, nas alturas do oriente platônico, onde tudo se passa,

mora a suposição que a pesquisa é incapaz de atingir a verdadeira ideia de currículo e de infância; estando, de partida, condenada a não perceber mais do que os seus reflexos ou sombras. Por isso, à pesquisa Ascensional são atribuídos os epítetos de impotente ou ilusória; visto manejar um pensamento que está determinado a ignorar a sua verdadeira natureza e os seus reais pressupostos; tal como afirma Heidegger (2007), para o qual, os pesquisadores não pensaram ainda; ou como Foucault (1966) analisa no mundo clássico da representação. Os pesquisadores elevados, no entanto, têm também, como os seus colegas da imagem-Profunda, de lutar contra os clichês de currículo e infância, para se permitirem a positividade de pensar alguma coisa. Entendem que as imagens são o próprio currículo e a própria infância; e que estão sempre lá, pré-fabricadas e performadas na matéria; como os simulacros de Lucrécio, as criaturas animadas e as imagens vivas. Os seus cérebros são écrans (telas), onde essas imagens vêm se imprimir ou se clicherizar; de modo que os clichês são quase o princípio do seu pensar; isto é, imagens flutuantes, imagens-coisas, dados figurativos; os quais não são os meios de ver uma imagem; mas são eles que os pesquisadores veem e não veem nada mais do que eles (Deleuze, 2007).

3. De-superfície O terceiro tipo de imagem da pesquisa e do pesquisador de infância e de currículo não possui a orientação pelo alto, com suas elevadas causas; tampouco a orientação das profundezas, com suas essências recobertas. Esta é uma imagem de-Superfície, efeito dos acontecimentos de currículo e de infância (Corazza, 2004). Aqui, a profundidade é vista como uma ilusão digestiva; e as alturas enquanto uma ilusão ótica ideal. A sua gesta é cantada pela filosofia do futuro de Nietzsche; a qual coloca em questão, justamente, o problema das orientações do pensamento,

197

198

por onde o ato de pensar se engendra no pensamento; e, ainda, por onde o pensador se engendra na vida: “não devemos nos contentar nem com biografia nem com bibliografia, é preciso atingir um ponto secreto em que a mesma coisa é anedota da vida e aforismo do pensamento” (Deleuze, 1998, p. 132). Na junção entre modo de pensar e estilo de existência, os pesquisadores lidam com as forças vitais da linguagem, da sensação e dos corpos da infância e do currículo. A zoologia dessa imagem passa pelos golfinhos, carrapatos e todos os anelídeos. Os pesquisadores concebem que pensar é um efeito de-Superfície, da qual operam como agrimensores e pacificadores da terra. Conectando Dioniso, habitante do abismo; e Apolo, povoador do celestial; encarnam, agora, o Hércules da Superfície; trajando o manto duplo de Antístenes e Diógenes. Ao ser destituída de altura e de profundidade, a imagem sofre uma reorientação geral dramática. Subindo, descendo e permanecendo na superfície (como ave de rapina), o pensamento recebe um estatuto completamente outro e uma autonomia para descobrir os acontecimentos incorporais e os sentidos, irredutíveis aos estados de coisas, aos corpos profundos e às altas ideias. Nada há no céu, atrás das cortinas, a não ser misturas inomináveis; assim como nada há debaixo do tapete, salvo o piso do não-senso. Os sentidos de currículo e de infância surgem e atuam, como vapores sobre o vidro; que os dedos dos pesquisadores escrevem com letras de poeira. Não há, nessa imagem, nem conversão nem subversão; mas, perversão. A pesquisa não contempla, não reflete, nem comunica; mas traça, inventa e cria na imanência pura. O pensamento deixa de ser dócil e submisso, aplicado e satisfeito; torna-se urgente, contrariado e perigoso, nascendo sob o impulso dos signos e dos acontecimentos intrusivos que o surpreendem. O ato de pensar é feito sob a contingência apavorante de uma experiência do fora, que o desbloqueia ou desencadeia, sem que dele se possa apropriar. O pensar resiste à capacidade de saber

dos pesquisadores: “pensar é criar e, antes de tudo, criar no pensamento o ato de pensar” (Deleuze, 1987, p. 109). Nesses redemoinhos, a pesquisa noológica confronta o pensamento das formas, dos sujeitos, dos órgãos, das funções e dos estratos às suas representações elevadas e subterrâneas; a ponto de se representar a possibilidade de pensar, independentemente de toda representação. Mostra as piores dificuldades para pensar, que põem a nu uma estrutura que pertence, de pleno direito, a todo pensamento: a existência de uma acefalia, que conduz à necessidade de engendrar pensar no pensamento; indo da percepção orgânica à sua franja intensiva; do significante e significado à semiótica de imagens e signos; do subjetivo individuado a uma singularidade impessoal. A ética dessa imagem aponta que não é suficiente deformar ou parodiar os clichês de infância e de currículo para obter uma verdadeira deformação. Os pesquisadores precisam deixar-se impregnar por esses canais sociais; por essas imagens feitas, vulgares, reativas, cansadas pelo uso; por essas percepções comuns, opinativas, estatísticas; e, até mesmo, moldar as suas condutas molares de pesquisa por eles; em outras palavras, entrar em um devir-clichê. Só então, ao quebrar a imagem dogmática e receber a violência de uma sensação real, não mais convencional, terão procedido a uma pesquisa de vidência, que faz aparecer o currículo e a infância, na Superfície deles mesmos – literalmente, sem metáforas nem analogias.

Trama Uma pesquisa da imagem do pensamento é concebível? Há várias tábuas e uma trama de imagens a conhecer. Essa é a questão da noologia. Tentar dizer com imagens e sair da narratividade; fragmentar os protagonistas e extrair procedimentos; criar novos desenhos, visualidades, falas, biografemáticas, sem-sentidos, que apresentam problemas. Recorte e colagem de elementos díspares. Na prática, um uso do discurso indireto livre. Artificio do

199

200

intervalo, do hiato, em direção ao método de criação do entre-imagens. Experiência de disjunção inclusiva. Importa não lidar com as imagens no plano da significância; não fazer uma hermenêutica; não produzir uma massa interpretativa. Seria um exagero afirmar que tudo é imagem? Os pesquisadores são centros de indeterminação, que funcionam como obstáculos: para refletir o visível e o enunciável, produzindo imagens. Imagens de pensamento, que rebotam como bumerangues, para criar. Pesquisar é seleção, ação de retirada, delimitação, subtração, sonho, alucinação, embriaguez, dobramento do universo. As imagens são os seres vivos da pesquisa; enquanto os seus dinamismos espaçotemporais são condições de possibilidades para a criação. Se o pesquisador de imagens é um mostrador de vidências, o mundo informe da pesquisa é plástico. Já o tempo da pesquisa é transcendental; pois, não muda; porém, muda tudo o que faz aparecer. Apreensão sensível e corte imóvel na duração, que possibilitam a diferenciação. A noologia pode nos levar a pesquisar em educação: não mais representando, mas engendrando e percorrendo; não descobrindo as formas, mas procurando singularidades; não contemplando, mas nos arrastando no fluxo turbilhonar de infância e de currículo. O que costuma produzir a pesquisa régia? Dogmatização, representação, recognição. De qualquer modo, tudo aquilo que produzimos vira clichê. A clicheria parece ser a fatalidade humana, demasiadamente humana. Só que o clichê pode ser uma via para o não-clichê. Entre a forma e o informe, o encontro: novas direções de percepção; novos poros; novas sensibilidades. A noologia faz pensar: pensar imagens. Imaginarizar é questão de pesquisa. O ato de criar diferencia imagens na pesquisa. Pesquisa educacional como arte de selecionar, organizar e inventar imagens. O pesquisador-Vidente tornase Amigo da Imagem. Alguém que define que a sua pesquisa intervém, na infância do currículo e no currículo da infância; e cria, ela própria, currículos e infâncias possíveis. Como pesquisadores, sejamos dignos dessas imagens.

Referências ARTAUD, Antonin. El cine. Buenos Aires: Alianza Editorial, 2008. AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 1995. _____; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. _____. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BOGUE, Ronald. Deleuze on cinema. New York: Routledge, 2003. BUYDEN, Mireille. Sahara: l’esthétique de Gilles Deleuze. Paris: Librairie Philosophique J.Vrin, 1990. COLEBROOK, Claire. Deleuze: a guide for the perplexed. London; New York: British Library, 2006. CORAZZA, Sandra Mara. Noologia do currículo: Vagamundo, o problemático; e Assentado, o resolvido. In: Educação & Realidade. Porto Alegre, Faculdade de Educação/UFRGS, jul/dez. 2002, 27(2), p. 131-142. _____. Pesquisar o acontecimento: estudo em XII exemplos. In: TADEU, Tomaz; CORAZZA, Sandra; ZORDAN, Paola. Linhas de escrita. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 7-78. _____. Pedagogia dos sentidos: a infância informe no método Valéry-Deleuze. In: KOHAN, Walter Omar. Devir-criança da filosofia: infância da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 81-94. _____. Notas. In: HEUSER, Ester M. D. Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011, p. 31-96. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. _____. Cinema 1. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. _____. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. _____. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1991. _____. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. _____. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998. _____. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34, 1999. _____. Deux régimes de fous. Textes et entretiens (1975-1995). Paris: Minuit, 2003. _____. A imagem-tempo. Cinema 2. São Paulo: Brasiliense, 2005. _____. Sobre Nietzsche e a imagem do pensamento. In: _____. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 175-183.

201

DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. _____. Cine 1: Bergson y las imágenes. Buenos Aires: Cactus, 2009. _____. O esgotado. In: Sobre o teatro. Um manifesto de menos. O esgotado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010, p. 65-111. _____. Cine II. Los signos del movimiento y el tempo. Buenos Aires: Cactus, 2011. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofía? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. _____. Introdução: Rizoma. In: _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995, p. 11-37. _____. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.5. São Paulo: Ed.34, 1997, p. 11-110. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa: Portugália Editora, 1966. KENNEDY, Barbara M. Deleuze and cinema: the aesthetics of sensation. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2000. HEIDEGGER, Martin. O que quer dizer pensar? In: _____. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2007. LINS, Daniel (org.). Nietzsche, Deleuze: imagem, literatura e educação. Simpósio Internacional de Filosofia – 2005. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza, CE: Fundação de Cultura, Esporte e Turismo, 2007. MARRATI, Paola. Gilles Deleuze: cine y filosofía. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003. MOSTAFA, Solange P. ; CRUZ, Denise V. da Nova. Deleuze vai ao cinema. Campinas, SP: Alínea, 2011. ORLANDI, Luiz B. L. Prefácio. Elogio ao pensamento necessário. In: ZOURABICHVILI, François. Deleuze. Uma filosofia do acontecimento. (Texto dig.). IFCH, UNICAMP e Núcleo de Subjetividade – PUC-SP, fevereiro de 2012. PAQUOT, Claudine (coord.). Gilles Deleuze et les images. Cahiers du Cinéma. Paris: Institut National de l’Audiovisuel, 2008. PELBART, Peter Pál. O tempo não-reconciliado: imagens de tempo em Deleuze. São Paulo: Perspectiva, 2004. RANCIÈRE, Jacques. La fable cinématographique. Paris: Le Seuil, 2001. REVUE D’ESTHÉTIQUE. Ce que l’art fait à la philosophie. Le cas Deleuze. Paris: Jean-Michel Place, 2004. SASSO, Robert; VILLANI, Arnaud. Les cahiers de noesis – Le vocabulaire de Gilles Deleuze. Vocabulaire de la philosophie contemporaine de langue française. Cahier nº3. Paris: Centre de Recherches d’Histoire des Idées, 2003. SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze: del animal al arte. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. _____. Deleuze et l’art. Paris: Presses Universitaires de France, 2009. VASCONCELOS, Jorge. Deleuze e o cinema. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2006.

202

_____. A pedagogia da imagem: Deleuze, Godard – ou como produzir um pensamento do cinema. In: Educação & Realidade. Porto Alegre, Faculdade de Educação/UFRGS, jan/jun 2008, 33(1), p. 155-168.

DIDÁTICA-ARTISTA DA TRADUÇÃO: transcriações do currículo10

10

Como, na área da Educação, pensar em termos dos processos de criação de cada um de seus domínios? Como definir cada domínio por sua respectiva atividade criadora? Nesse enfoque criacionista, o que a Pedagogia, o Currículo e a Didática criam? Quais as especificidades dos seus atos de criação em processo? O que acontece quando temos uma ideia em Currículo, em Pedagogia, em Didática? O Currículo e a Didática seriam engendrados pela criação pedagógica? No caso deste texto: em que consistem os meandros e limites de criação da Didática? O que é criar didáticas? Como se dão as ações de ver, falar, escrever, interpretar e traduzir de maneira didática? Como ocorrem a produção de informes e a irrupção de novidades didáticas? Para criar em Didática, em que medida necessitamos de outros processos, como os literários, cinematográficos, musicais, plásticos, científicos, filosóficos? Quais as diferenças entre esses processos e os didáticos? Como desenvolver didáticas, a partir de um objeto, tema musical, fórmula matemática, passo de dança, fato policial, ritmo, melodia, pintura, filme, ensaio, romance?

10

A forma textual foi engendrada durante o XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino “Didática e Práticas de Ensino: compromisso com a escola pública, laica, gratuita e de qualidade”, realizado na UNICAMP, de 23 a 26 de julho de 2012; mas o texto deriva de “Notas”, presentes no Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias, organizado por Ester M.D. Heuser e publicado pela EdUFMT, em 2011 (p. 31-96), na Coleção Escrileituras, integrante do Observatório da Educação FACED/UFRGS, Projeto “Escrileituras: ler-escrever em meio à vida”. Com outro título, foi publicado, em 2013, http://aprendeenlinea.udea.edu.co/revistas/index.php/ mutatismutandis/, Medellín, Colombia.

203

204

De onde surgem as formas didáticas? A Didática carrega um capital prévio de formas, tal como sugerido pela ideia de estrutura? Ou a forma didática é sempre inédita, enquanto um fenômeno de auto-organização da matéria (Focillon, 2001)? A Didática abala qualquer estrutura ou forma preestabelecida, segundo a sua mobilidade vai se processando; a qual inclui até mesmo o ponto de vista criador? Os planos, esboços, esquemas, definidos didaticamente, devem ser esquecidos, em algum momento, para que sucedam rasuras, silêncios, grau zero? Como a criação didática atribui valor e sentido a elementos de perceptos e afectos, fabulados pela Arte; das funções, produzidas pela Ciência; e dos conceitos, criados pela Filosofia (Deleuze; Guattari, 1992)? Como a Didática opera com esses elementos, para torna-los didáticos? De que maneira os didatas contemporâneos, criadores de didáticas (ANPED, 2012; ENDIPE, 2012), processam esses elementos e os integram ao mundo educacional? Ao educar, cada um de nós cria didáticas? Quais? Como? Quando? Onde? Por quê? Tomando tais questões como desafios, este texto localiza a Didática como resultante dos atos de criação pedagógica; e, ao mesmo tempo, como o meio em que a própria Pedagogia funciona, ao atualizar-se em Currículo: “a didática, o que se cria em Pedagogia, é um modo, um processo de atualização de uma ideia de natureza pedagógica que se expressa em currículos” (Oliveira, 2012, p. 27). Pensa a Didática como inseparável de variadas traduções e definições comunicáveis; embora provisórias e sujeitas a contínuas reformulações. Considera os percursos, realizados na história da Didática (Candau, 1984; Pimenta, 1991; Libâneo, 2012), como índices de processos singularmente criadores de conhecimento, registro, memória, tratamento metodológico, relacional e dialógico. Encontra alegria no babelismo didático de diferença e abertura, passagens e transposições, pluralidade e multiplicidade de influências, textos e autores. Configura a Didática como um território transdisciplinar, translinguístico, transemiótico, transliterário,

transartístico, transcultural e transpensamental; que nasce e vive em diversas obras de diferentes línguas (Barthes, 2006). Concebe, ainda, esse território didático indissociável de uma ética, de uma política e de uma prática tradutórias, que realiza artistagens (Corazza, 2006; 2011; 2012a), desde os seguintes apoios teóricos: a) filosofia da diferença, atinente à criação e ao pensar (Deleuze, 2003; Deleuze; Guattari, 1992); b) teorias da tradução literária no Brasil, que a tratam como processo criador, ao lado de Haroldo de Campos (1972; 1976) e Augusto de Campos (1978; 1986); c) obra de Paul Valéry (1997; 1998; 2003), relativa a exercícios do informe e método de criação; d) formulações didáticas contemporâneas, especialmente de Selma Pimenta (2011) e Vera Candau (2012), dentre outras.

DidáticArtista É em transcursos e circuitos de tradução, que a Didática-Artista (DidáticArtista, foneticamente) movimenta os seus processos de pesquisa, criação e inovação. Acolhe e honra os elementos científicos, filosóficos e artísticos – extraídos de obras já realizadas, que diversos autores criaram, em outros planos, tempos, espaços –, como as suas efetivas condições de possibilidade, necessárias para a própria execução; e, ao mesmo tempo, como o privilegiado campo de experimentação, necessário para as próprias criações. Com esses elementos, constitui um campo artistador de variações múltiplas e disjunções inclusivas; que compõe linhas de vida e devires reais, pontos de vista ativos e desterritorializações afirmativas. Quando, em detrimento das normas formais, potencializa fluxos informes, que se insinuam entre os blocos sensíveis e epistêmicos da Filosofia, da Arte e da Ciência, essa Didática fissura as certezas e verdades herdadas. Eminentemente heterogênea, maquina as suas composições contra a homogênese. Embora suscetível a sistemas de ações estáveis, considera-se um território em processo, obra sempre aberta, distante do equilíbrio e do apazigua-

205

206

mento; e, mesmo quando estabiliza as suas ações, encontra maneiras de bifurcar-se, para ingressar em novos regimes de instabilidade. Executa uma autopoiese, através de novas codificações didáticas, em campos de comutabilidade e diferencialidades, que circunscrevem suas demarcações e funcionamento. A principal matéria da DidáticArtista é a vida mesma, promovida por encontros com formas de conteúdo e de expressão do mundo histórico, filosófico, geográfico, científico, artístico e linguístico. Ao mesmo tempo em que se apropria dessas formas, desafia as línguas que as produziram, liberando-as dos meios que as articularam. Conserva, no entanto, traços dos elementos originais, transformando-os e agenciando-os de maneiras inusitadas. O seu realismo não se reduz, assim, à mimese do real; desde que busca, aí, o outro misterioso da realidade, que possibilita a existência didática criadora. Contrária ao idealismo e ao racionalismo, suscetível a imagens de pensamento e a problemáticas culturais, a Didática agita-se num misto de empirismo transcendental (Deleuze, 1988), que valoriza a multiplicidade. Funcionando como resistência às repetições do mesmo e luta contra a mediocridade da opinião, mescla e cruza o que passou, o que nos afeta e os mundos possíveis por construir. O seu método de criação possui orientação cartográfica (Deleuze; Guattari, 1997; Corazza, 2010; Kastrup; Passos; Escóssia, 2010); composto por velocidades e lentidões, que transversalizam e cortam em diagonal functivos, conceitos, perceptos e afectos. Para extrair acontecimentos inteligíveis e sensíveis desses elementos, que persistem em seus corpos, estados de coisas e seres, executa traduções das línguas originais de partida para a língua de chegada (língua-meta, língua-alvo), que é didática. Rejeitando modelizações confinantes, que requerem regularidades, médias e métricas, elege o processual e a reversibilidade. Construindo dobras didáticas no plano de imanência (da Filosofia), de composição (da Arte) e de referência (da Ciência), captura e libera as forças vitais,

que agem sob as formas. Trabalhando as potências que essas formas carregam, substitui a relação forma-matéria pela relação força-material. Associando obras, autores e tradutores, em devires de mutação das culturas, favorece culturas do dissenso. Reinventando significações, posições de indivíduos, comunidades e grupos, cria novas linhas de saberes, sentires, fazeres. Realizando atos minoritários de ruptura e consonâncias, instala-se em regiões desconhecidas de problemas. Revelando aspectos ocultos dos seres e circuitos inéditos de pensamento, transforma momentos, lugares, incidentes e circunstâncias em móveis fecundos de experimentações. Esse criacionismo didático movimenta-se através de procedimentos crítico-genealógicos e exploratório-experimentais (Feil, 2011; Corazza, 2012b), que partem de clichês – formas, sentidos, interpretações, indivíduos, identidades, conhecimentos. Identifica, então, a imagem dogmática de pensamento, que lhes corresponde, em seus pressupostos explícitos e implícitos de doxa e senso-comum (Heuser, 2010). Borra e raspa os clichês, através de diagramas, ou conjuntos operatórios de traços pré-individuais, involuntários, contingentes, não-representativos, não-ilustrativos, não-figurativos, não-narrativos. Nessas zonas de indiscernibilidade e indeterminação, a DidáticArtista segue devires, ao produzir formas deformadas, figuras desfiguradas, paradoxos e não-sensos. Ao arrancar e isolar o material, o figural e o jogo de forças (Deleuze, 2007) dos elementos científicos, artísticos e filosóficos, desfaz os efeitos sobrecodificados e redistribui suas potências informais. Ao propor e desenvolver novas vivências relacionais de alunos e professores com os elementos originais, injeta-lhes interesse e faz circular vitalidade. Ao traduzi-los didaticamente, em cenários contemporâneos, torna notáveis ideias já criadas e vivifica currículos; libera forças indomesticadas dos participantes, onde quer que estejam represadas; desestratifica camadas sedimentadas de saber, poder e subjetividade, trabalhando para que reencontrem a sua virtualidade.

207

Processo de Tradução

208

Considerando que “a vida deve ser traduzida, como processo de criação” (Villani, 1999, p. 71), a tradução percorre a DidáticArtista, como um dispositivo que a desencadeia e uma prática que a desdobra. Sua natureza didática passa a ser constituída pela tradução de perceptos, afectos, funções e conceitos; vertendo-os das línguas em que foram criados e expressando-os na cultura, no meio e na língua da Didática. Nesse processo tradutório, distingue entre descoberta e invenção; já que a descoberta “incide sobre o que já existe, atualmente ou virtualmente; portanto, cedo ou tarde ela seguramente vem”; enquanto “a invenção dá o ser ao que não era, podendo nunca ter vindo” (Deleuze, 1999, p. 9). A Didática funciona, preferencialmente, sobre o plano empírico-transcendental de uma tradução-invenção, que liga o tempo ordinário e a produção de novos elementos artísticos, científicos e filosóficos; não segue “linha reta, nem nas coisas, nem na linguagem”; mas assume “desvios femininos, animais, moleculares” (Deleuze, 1997, p. 12; Deleuze; Guattari, 1977). A tradução didática é, assim, uma espécie de “des-tradução”; que não age como “teoria da cópia ou do reflexo salivar”; e sim como “produção da di-ferença no mesmo” (Campos, 2008, p. 208); ou uma “operação contra a corrente” que, mais do que transferir elementos para a língua didática, toma os originais distantes “como ponto de chegada”; em direção ao qual expande a própria língua (Mandelbaum, 2005, p. 198). Nas relações educacionais, curriculares e pedagógicas, com os mundos da Arte, da Filosofia e da Ciência, essa tradução introduz novos modelos, ideias, gostos, vocabulários, sintaxes, estilos. Sendo mimética e não-mimética, a um só tempo, funciona com a força motriz das mudanças, assegurando uma “sobrevida” dos elementos originais, como “estágio do seu perviver”; para que vivam “mais tempo e também de modo diverso”. Capaz de anamorfoses, quando reescreve e repensa os originais, torna-se capaz “de ser ela mesma e um outro” (Paz, 1981, p. 11).

Acontece que, para a Didática da Tradução, todas as línguas são diferenciais. Pela via do trânsito entre o original e sua tradução, requer diálogos entre elas, sob a condição que cada língua aceite tornar-se dupla de si mesma. A tradução é, dessa maneira, um ato político, que desfuncionaliza línguas instrumentais e aproxima distâncias, num processo de transformação cultural. Em seus atos de traduzir, opera como meio, que desestabiliza o próprio status quo da linguagem educacional. Revela-se como dissidente das línguas legitimadas, transtornando suas palavras originais, para lhes devolver “o sentimento do diferente, o poder de conceber o ‘outro’”, numa reconfiguração de si própria. Vertendo, refratando, mesclando e reescrevendo saberes, desejos, sujeitos, valores, planos de pensamento e culturas, enceta ações recíprocas entre as línguas traduzidas; desapropria pertencimentos, liberando “referências a sangue, solo ou história coletiva”; alimenta-se de diferentes línguas, sem sofrer “de otite” (Matos, 2005, p. 144; p. 139; p. 132). Em estado de heterofilia e de anacronismo explícito, a tradução didática compartilha línguas heterogêneas e simultâneas, modificando e desfazendo identidades sedentárias dos elementos originais. Sob o fascínio das interinfluências trazidas pelas linguagens contemporâneas, implica a invenção de um corpus crítico-seletivo, que liga, criteriosamente, “tradução poética, operação metalingüística, paródia, carnavalização, intertextualidade, literatura comparada e relações entre diversos sistemas de signos” (Santaella, 2005, p. 222). A novidade imprevisível das suas invenções exige que a Didática não traduza tudo; mas privilegie aqueles elementos que mudam, afetam ou revolucionam cada uma das áreas com as quais trabalha. Segue, assim, Augusto de Campos (1978, p. 7), que afirma: “nunca me propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto. Só aquilo que minto. Ou que minto que sinto, como diria, ainda uma vez, Pessoa em sua própria persona”. Por isso, traduz aquilo que, dotado de “obscuridade ou dificuldade intencional”, apresenta maiores desafios, pois mais recriáveis se mostram, “enquanto possibilidade

209

aberta à recriação”; ou mesmo aquilo que releva de um projeto “de militância cultural” (Campos, 1992, p. 35; Milton, 1998, p. 206). A tradução didática é, assim, “transcriação e transculturação”; já que textos e séries culturais “se transtextualizam no imbricar-se subitâneo de tempos e espaços” diversos: “Transcodagem. Tropismo. Tradução” (Campos, 1976, p. 10-11). Consiste numa questão de forma, mas também de alma, na ressonância do poema de Augusto de Campos (1986, 2ª orelha): re-criar é a meta/ de um tipo especial/de tradução:/ a tradução-arte// mas para chegar à/re-criação/ é preciso identificar-se/ profundamente/ com o texto original/ e ao mesmo tempo/ não barateá-lo/ enfrentar todas as suas/ dificuldades/ tentar reconstituir/ a criação/ a partir de cada palavra/ som por som/ tom por tom// é uma questão de forma/ mas também/ é uma questão de alma

Dobra transcriadora

210

Ao dobrar as línguas originais sobre as próprias formas, a DidáticArtista parte em busca de novos sentidos e valores, usando a reimaginação: “‘reimaginar’ (prefiro esta palavra, no caso, ao conceito usual de ‘traduzir’)” (Campos, 1972, p. 121). Mesmo que afectos, perceptos, conceitos e funções lhe pareçam, em princípio, linguística e culturalmente intraduzíveis, a Didática recorre à “área da traduzibilidade” de textos criativos (aos quais é atribuído o estatuto de impossibilidade), para “traduzir o intraduzível” (Campos, 1992, p. 35). Assume, desse modo, a “possibilidade, também em princípio, da recriação”, movimentando-se “por transcriações, a partir das latências do original” (Matos, 2005, p. 137). Considerando que é da natureza da tradução ser infiel ao original, sabe que toda didática criada não pode ser menos do que resultado de alguma artistagem, dedicada a verter elementos que valem a pena: “Somente as coisas

impossíveis são dignas de ser feitas”; ou, “Impossível, claro – é por isso que faço” (Milton, 1998, p. 144). Como prática teórica transcriadora, à Didática importa não reconstituir a informação semântica ou formal de um elemento original; mas, reconstituir os movimentos de sua língua e sistema de signos. Portanto, pode ocupar-se de: linguagem verbal e não-verbal; elementos de estrutura e visuais; homologias fônicas e sintáticas; espacialização e imagética visual; filmes e cartazes publicitários; combinações sonoras e coreografias logopaicas; assonâncias, rimas, aliterações, métrica, ritmo, melodias, canções; fórmulas e equações matemáticas; etc. Essas traduções não são funcionais, automáticas, etimológicas, estruturalistas, hermenêuticas, celebrações epifanísticas, sobretraduções, semidecalques, superafetações; também não soam como extravagâncias; não traduzem palavra por palavra, linha por linha; não transmitem mensagens; não contém purismos acadêmicos; não explicam os textos pelo contexto histórico, econômico, social, ideológico ou político. Ao contrário, consistem em traduções, nas quais são postas tão altas potências recriadoras, que os seus efeitos valem como se fossem as obras originais, vivas e abertas (Paes, 1990; Laranjeira, 1993; Wanderley, 1993). Assumindo a realização de transposições criadoras, a Didática da Tradução pode, ainda, ser designada por: “transparadisação, transluminação, transluciferação mefistofáustica, bem como os mais comuns recriação e reimaginação” (Milton, 1998, p. 208; Campos, 1987). Não surpreende que as transcriações do Didata-Tradutor – ou Professor – sejam, mais ou menos inventivas, segundo a sensibilidade e a capacidade artistadoras de cada um (Jakobson, 2001; Campos, 2004).

Didata-Tradutor O Professor não se obriga a transmitir o conteúdo literal ou verdadeiro dos elementos originais científicos, filosóficos, artísticos; não faz cópia, dublagem ou fingimento; não é um bufão, escravo ou ladrão dos autores e

211

212

obras que traduz; não busca a autenticidade textual; não preserva a essência dos originais; não é um conselheiro, que goza de intimidade com as obras; não trata o original como sagrado; não remove a tampa de um poço escuro; não é filtro do autor ou chave do texto; não é fotógrafo, taxidermista ou anatomista; não é filólogo, erudito ou paleólogo; não é o traduttore-traditore (tradutor-traidor) do trocadilho italiano, nem o sourcier-sorcier (descobridor de fontes e mágico) dos franceses; não é um autor-camaleão ou um “trad-revisor”; não tira a casca, que reveste “a fruta original”, nem ergue um “manto real de amplas dobras”; não faz “treinamento na selva”, nem protagoniza uma “ressurreição” (Milton, 1998, p. 2-6; Santaella, 2005, p. 227). Suas traduções, também, não têm o escopo de servir como simples auxiliares à leitura dos originais. Ao contrário, esse Didata-Tradutor é um escrileitor (escritor-eleitor), que transcria e transcultura os elementos científicos, filosóficos e artísticos, reconhecendo a sua própria produção, em meio a um “universalismo polimorfo e cosmopolita”, de tipo novo: “transverso a governos, economias e mercados”; e que “instala em nós a diferença como condição de nosso estar com os outros” (Mandelbaum, 2005, p. 199; Matos, 2005, p. 134). Sem medo do novo ou medo do antigo, defende “até a morte o novo por causa do antigo e até a vida o antigo por causa do novo”; desde que “o antigo que foi novo é tão novo como o mais novo”; cabendo-lhe discernir entre eles (Campos, 1978, p. 7). Cultivando uma saudável empatia com os elementos originais, exercita suas fantasias e habilidades amorosas, projetando-as em experimentações tradutórias. Usando a recriação imaginativa, por meio de escrileituras (escritas-eleituras) e diálogos críticos, encaminha o estranhamento dos originais, num processamento singular de interpretações. Como se possuísse mirada aléfica, exercita um olho criador, que condensa, presentifica e vivifica o passado e a tradição dos originais, reinventando-os, por meio da tradução, como queria T. S. Eliot (apud Campos, 1972, p. 110): “necessitamos de um olho capaz de ver o passado em seu lugar com suas

definidas diferenças em relação ao presente e, no entanto, tão cheio de vida que deverá parecer tão presente para nós como o próprio presente”. Não se contentando com repetições empobrecedoras, o Professor procede a uma re-doação da forma, ao empregar recepções disseminadas dos originais, que prefiguram aquelas do “espectador de cinema, enquanto examinador distraído” (Oseki-Dépré, 2005, p. 214). Reconhecendo-se como datado e situado, em sua contemporaneidade, e necessitando tomar decisões criadoras, que confiram algum sentido aos originais da Arte, da Ciência e da Filosofia, trataos como diferentes de tudo aquilo que ele mesmo poderia produzir em cada uma dessas áreas. E, quando não consegue efetuar uma tradução que produza a diferença, presume ter-lhe faltado a imaginação necessária: “se o tradutor não traz o seu próprio ser, seu relacionamento com sua sociedade”, o resultado da tradução será “artificial, frágil e flácido” (Milton, 1998, p. 101).

Procedimentos didáticos Nas ações de traduzir didaticamente, cada elemento original é concebido e tratado como algo já criado, mas “visto por alguém que só pode enfocá-lo pela ótica do tempo presente” (Campos, 1972, p. 112). Logo, os procedimentos tradutórios não compreendem ou referem-se a sistemas prontos de interpretação; mas desenvolvem experiências, que têm relação com modos de desterritorialização do existente. Por isso, pretendem que os elementos didáticos, emersos dos originais, valham em lugar dos mesmos; para fazer com que a Didática funcione criadoramente. Parafraseando Valéry (1945, p. 173), os procedimentos didáticos não tentam impor à língua dos alunos aquela que os professores não impõem ao próprio ouvido: “Isto é traduzir de verdade. Isto é realmente traduzir, é reconstituir o mais próximo possível o efeito de certa causa”. Por conseguinte, o Professor é um agente de fluxos da invenção, reproduzindo “o original com sua marca distin-

213

214

tiva” (Milton, 1998, p. 221). Assim, suas traduções transgridem as circunscrições sígnicas; rompem a relação aparente entre forma e conteúdo; recusam-se a ficar atreladas à “tirania de um logos pré-ordenado”. Subversoras por excelência, propõem-se, no limite, a ser operações radicais de transcriação; visando converter, “por um átimo que seja, o original na tradução de sua tradução” (Santaella, 2005, p. 228). Entretanto, mesmo que um elemento traduzido traga sempre algo de novo ao mundo, “por força há de se manifestar através das ideias já prontas que encontra à sua frente e arrasta em seu movimento” (Bergson, 2006, p. 129). Ou seja, o Didata traduz ideias prontas; porém, o faz “sob o signo da invenção”, que rasura a origem e oblitera a sua originalidade; visto que a tradução está, para ele, desde o início, disposta “como espécie da categoria criação” (Campos, 1972, p. 111). Ao traduzir elementos já existentes, o Didata não os funde numa generalização ou síntese superior; ao contrário, através de um projeto radical de intertextualidade, transcria-os; expondo-se aos riscos que envolvem toda audácia e “aventura do involuntário” (Deleuze, 1988, p. 270). Transforma-se, assim, em um Didata-Artista (DidatArtista), envolvido em um perigoso traduzir que é sempre “retraduzir, ao sabor das mutações da língua ‘cativa’ do original, transpondo-a”. Esse gesto rompe o dogma da unidade identitária entre línguas de partida e línguas de destino; pois a tradução, em si mesma, manifesta que “o caráter originário é sempre plural” (Matos, 2005, p. 146); e “libera a forma semiótica oculta no original, no mesmo gesto em que se dessolidariza, aparentemente, de sua superfície comunicativa” (Campos, 2008, p. 208; Benjamin, 2011). Conversando com o elemento que traduz; promovendo a catarse de formas desconhecidas; e conjurando outros sentidos, o Didata descobre o autor “dentro dele mesmo” (Milton, 1998, p. 140); intuindo que, ao traduzir, está encontrando uma solução possível para os seus próprios problemas de criação (Valéry, 1984; 1991; 1996; 2009).

Alargando as fronteiras da linguagem educacional, como tradutor didático, o Professor “subverte-lhe os dogmas ao influxo do texto estrangeiro” (Campos, 1976, p. 35), por meio de: bricolagens de saberes e intuições; agenciamentos de elementos heterogêneos e acontecimentos; processos de singularização e forças de experimentação; fabulação de finitos abertos ao infinito; crivos no caos circundante (deFora) e extrações de Ideias; evocação e deslocamentos do estranho linguístico; transformação de elementos familiares e forças distantes em “mundos possíveis” (Deleuze, 1991; 1998). Assim, cada uma das línguas originais, de que o Tradutor se ocupa, passa por tantas transmutações didáticas, que acaba não sendo mais língua de ninguém.

Elementos isomórficos Em cada Didata-Tradutor, habita, por conseguinte, um Autor; constituído por lances inventivos, desde que traça “uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da língua”. Tumultuando a linguagem da Educação, escava uma outra língua nas línguas originais; fazendo com que estas sofram, por sua vez, reviravoltas, que as levam “a um limite, a um fora ou um avesso que consistem em Visões e Audições que já não pertencem à língua alguma” (Deleuze, 1997, p. 15-16). Os procedimentos tradutórios implicam mais do que transportar ou transladar os sentidos de uma língua para outra; visto que o elemento a ser vertido é recriado, de acordo com um “estoque de formas”, referente ao domínio das possibilidades de agenciamento “da língua para a qual o texto é traduzido” (Campos, 1972, p. 110). Rompendo com o traçado reto da tradição, a Didática apropria-se dos elementos originais da Arte, da Filosofia e da Ciência, tornando-os seus; e, neles, fazendo ecoar a própria voz do Didata; de modo a não conseguir mais separa-la das vozes precursoras. Assim, para que a língua-meta capture forças, repertórios, perspectivas e sentidos das línguas originais,

215

216

a maior responsabilidade do Professor é agir como um atualizado e competente escrileitor daqueles elementos que são transcriados. A sua língua materna será, a partir de então, a didática, usada para liberar as línguas precedentes. A fim de realizar essa apropriação criadora, o Professor necessita apresentar: “nível curricular”, para selecionar os mais importantes elementos filosóficos, artísticos e científicos do seu tempo e espaço; “irreverência temática”, para privilegiar elementos, obras e autores emergentes, marginalizados ou anômalos, que introduzem novos e heterodoxos temas, questões e problemas; manejo da linguagem educacional como instrumento de experimentação dos variados elementos das línguas; além de trabalhos “de estruturação e de ajuste”, feitos em termos de artesanato (Milton, 1998, p. 209-210). Suas recriações didáticas possuem uma ampla gama de formas à disposição: orgânicas, analógicas, qualidades musicais, ironia, humor, tragédia, comédia, intertextualidade, metáfrase, imitação, misturas híbridas. Porém, mesmo realizando encontros entre traduções e originais, a língua didática não pode perder o parentesco, a proximidade, a vizinhança com as outras línguas. É preciso que o DidatArtista mantenha uma relação de isomorfia (“paramorfia” – “do sufixo grego pará, ‘ao lado de’, como em paródia, ‘canto paralelo’”) entre os elementos originais e as traduções. Para que, operatoriamente, as traduções didáticas consistam em “criação paralela, autônoma, porém recíproca” (Campos, 1992, p. 35); que evitam “o problema das equivalências sem cair na ideia de tradução-cópia do original” (Oseki-Dépré, 2005, p. 214). Os movimentos de derivação e de ramificação por obliquidade das traduções consistem, acima de tudo, em vivências interiores dos mundos e das técnicas dos elementos originais, que causam novos efeitos ou variantes, que eles próprios autorizam “em sua linha de invenção” (Campos, 1992, p. 37). Logo, a mira tradutória do Didata é “produzir um texto isomórfico em relação à matriz, um texto que, por seu turno, ambicione afirmar-se como um ori-

ginal autônomo, par droit de conquête” (Santaella, 2005, p. 225).

Trabalho crítico e técnico O Professor domina a tradução quando coloca o “seu próprio ser dentro dela”. Para tal, permite que uma tradução seja mais subjetiva “do que imitação e mais visceral do que paráfrase”, escolhendo reproduzir o significado do original e ficar abaixo do nível estético do restante; ou, então, garantir um equivalente próximo. Uma das normas básicas da tradução didática fica sendo “verter não inverter” (Campos, 1986, p. 17). Além disso, importa também não se entregar a traduções facilitadas (“pseudotraduções”), feitas com termos preestabelecidos, que não possibilitam contato com outros modos de pensamento e estilos de escrever e ler. Ainda, não fingir que os elementos de partida são escritos na mesma língua de chegada; pois essa condição transmite uma “ilusão do natural” e a impressão que as línguas são transparentes (Milton, 1998, p. 167). O trabalho prévio às traduções é, primeiramente, crítico, no sentido poundiano da palavra crítica, isto é: “uma penetração intensa da mente do autor”; em seguida, o trabalho torna-se técnico, ou seja: “projeção exata do conteúdo psíquico de alguém e, pois, das coisas em que a mente desse alguém se nutriu”. Ao desmontar e remontar “a máquina da criação” (Campos, 1992, p. 37; p. 43), em face do processo inventivo dos elementos existentes – numa atitude de “crítica genética” (Gréssilon, 2007; Salles, 2008; Willemart, 2000; 2002; 2005; 2008; 2009; Zular, 2002) –, o DidataTradutor homenageia a habilidade que os autores tinham sobre os elementos que criaram. A partir daí, aquilo que ensina (escreve, lê, fala, faz) compõe um elemento propriamente didático; que segue tons e contornos daquele (pretenso) original que tinha diante de si. Sendo crítica e técnica, a tradução é uma “forma privilegiada de leitura” (Campos, 1972, p. 115), resultante de “uma leitura afiada, detalhada, quase musical” (Mandelbaum,

217

2005, p. 198). Leitura que compreende não a simples descodificação do elemento original; mas, o mapeamento das condições, em que foi criado, em termos do espaço-tempo que ocupa na língua e na cultura de origem, na literatura da área, no conjunto da obra do autor. Na continuidade, o movimento é o do trabalho transcriador; por meio do qual os elementos didáticos são transvertidos. Toda leitura (difícil) é uma tradução, como afirma Valéry (1956, p. 4): “qualquer tipo de escritura que necessita de um certo tempo de reflexão é tradução”; e “não há nenhuma diferença entre esse tipo de tradução e aquele que envolve transformar um texto de uma língua para outra”. Por isso, a Didática é eminentemente crítico-vivificadora, que revolve as entranhas dos elementos artísticos, científicos e filosóficos, para trazê-los novamente à baila, em outros corpos linguísticos, pragmáticos, intelectuais; desde que a sua tradução é “uma das melhores formas de crítica”; ou, pelo menos, “a única verdadeiramente criativa, quando ela – a tradução – é criativa” (Campos, 1978, p. 7).

Estratégia de renovação

218

Através da DidáticArtista da Tradução, o velho é tornado novo, seguindo a máxima de Ezra Pound (2006): Make it New – isto é: renovar, vitalizar, dar nova vida àquilo que passou. Ao traduzir os elementos filosóficos, científicos ou artísticos, a Didática reconfigura-os, inventivamente, num palimpsesto que ultrapassa qualquer limite disciplinar; inclusive os próprios. Em suas operações programáticas, lida com a tradução, tanto no aspecto micro de procedimentos transcriadores; quanto no aspecto macro, sistêmico, de seleção dos elementos a serem traduzidos. Guiada pelo valor da interlocução crítica com o alheio a si, anima-se na confluência isomórfica entre esses elementos e aqueles transcriados, tornados didáticos. Na produção de traduções, o Didata considera “boas” aquelas que funcionam; isto é, que atribuem Vita Nuova aos originais e passam a sensação que eles ainda vivem.

Considera traduções didáticas “ruins” aquelas que matam a vitalidade para pensar, ler e escrever o elemento traduzido, tornando-o desqualificado, fácil, trivial ou comum. O erro elementar do Professor é conservar o estado da própria linguagem educacional, sem deixá-la ser afetada por outras línguas; e a sua maior covardia (diante da aparente impossibilidade de traduzir) é desistir de realizar as traduções, antes mesmo de começa-las ou de termina-las. Em Didática, uma tradução será honestamente exitosa, se assumir a função de um verdadeiro elemento científico, filosófico ou artístico; não apenas como uma tradução, que queda em lugar desses elementos. Assim, em vez de mera representante ou substituta dos perceptos, afectos, conceitos e funções, a tradução será eficaz se, após minuciosamente trabalhada, tornar-se autônoma como uma obra de Arte, de Filosofia ou de Ciência. Isso acontecerá, se guardar, com os elementos de partida, relações de reimaginação, para além do literalismo rudimentar e da banalidade explicativa. Então, as traduções do ProfessorArtista poderão, por vezes, tornar-se mais importantes do que os originais; desde que a língua didática mostre-se digna de repercutir os seus impactos, enquanto estratégia de renovação dos sistemas educacionais e culturais contemporâneos.

Referências ANPED. ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO. Grupo de Trabalho 4 DIDÁTICA. In: http://www.anped.org. br/internas/ver/participantes-gt-4?m=4 (Acesso em 12 de maio de 2012.) BARTHES, Roland. O prazer do texto. (Trad. J. Guinsburg.) São Paulo: Perspectiva, 2006. BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor (Die Aufgabe des Übersetzers, Gesammelte Schriften, IV.1, p. 9 -21) In: http://www.c-e-m.org/wp-content/ uploads/a-tarefa-do-tradutor.pdf (Acesso em 08 de janeiro de 2011.) BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. (Trad. Bento Prado Neto.) São Paulo: Martins Fontes, 2006. CAMPOS, Augusto de. Verso, reverso, controverso. São Paulo: Perspectiva, 1978. _____. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

219

CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1972. _____. A operação do texto. São Paulo: Perspectiva, 1976. _____. Octavio Paz e a poética da tradução. In: Folhetim, Folha de São Paulo, 09 janeiro 1987. _____. Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992. _____. Éden: um tríptico bíblico. São Paulo: Perspectiva, 2004. _____. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 2008. CANDAU, Vera Maria. (Org.) A Didática em questão. Petrópolis: Vozes, 1984. _____. Diferenças culturais, interculturalidade e educação em direitos humanos. In: Educação & Sociedade, v. 33, p. 235-250, 2012. CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens: filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. _____. Diga-me com que um currículo anda e te direi quem ele é. In: _____ (Org.). Fantasias de escritura: filosofia, educação, literatura. Porto Alegre: Sulina, 2010, p. 143-171. _____. Notas. In: HEUSER, Ester M. D. (Org.) Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011, p. 31-96. _____. Didaticário de criação: aula cheia, antes da aula. In: XVI ENDIPE: Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino. Campinas, SP: 23 a 26 de julho de 2012a, FE/UNICAMP. http://www.endipe2012.com.br/ _____. O drama do currículo: pesquisa e vitalismo de criação. In: IX ANPED SUL, GT Educação e Arte, 2012b. Caxias do Sul: 29 de julho a 01 de agosto de 2012, Universidade de Caxias do Sul, RS. http://www.ucs.br/ucs/tplAnped2011/ eventos/anped_sul_2012/ DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. Foucault. Paris: Minuit, 1991. _____. Crítica e clínica. (Trad. Peter Pál Pelbart.) São Paulo: Ed. 34, 1997. _____; PARNET, Claire. Diálogos. (Trad. Eloisa A. Ribeiro.) São Paulo: Escuta. _____. Diálogos. (Trad. Eloisa Araujo Ribeiro.) São Paulo: Escuta, 1998. _____. Bergsonismo. (Trad. Luiz B. L. Orlandi.) São Paulo: Ed. 34, 1999. _____. Qu’est-ce que l’acte de création? In: _____. Deux régimes de fous. Textes et entrétiens 1975-1995. Paris: Minuit, 2003, p. 291-302. _____. Francis Bacon: a lógica da sensação. (Trad. Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. (Trad. Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Imago, 1977.

220

_____. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz.) Rio de Janeiro: Ed.34, 1992.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V.4. (Trad. Ana Lúcia de Oliveira.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. ENDIPE XVI. ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICAS DE ENSINO. “Didática e práticas de ensino: compromisso com a escola pública, laica, gratuita e de qualidade”. Campinas, SP: 23 a 26 de julho de 2012, FE/ UNICAMP. FEIL, Gabreil Sausen. Procedimento erótico, na formação, ensino, currículo. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2011. FOCILLON, Henri. A vida das formas. Seguido de Elogio da mão. (Trad. Ruy Oliveira.) Lisboa: Edições 70, 2001. GRÉSILLON, Almuth. Elementos de crítica genética: ler os manuscritos modernos. (Trad. Cristina Campos.) Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. HEUSER, Ester Maria Dreher. Pensar em Deleuze:  violência e empirismo no ensino de filosofia. Ijuí: UNIJUÍ, 2010. JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. (Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes.) São Paulo: Cultrix, 2001. KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo; ESCÓSSIA, Liliana da (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção da subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010. LARANJEIRA, Mário. Poética da tradução: do sentido à significância. São Paulo: EDUSP, 1993. LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 2012. MANDELBAUM, Enrique. Tradução e des-tradução na bíblia de Haroldo de Campos. In: MOTTA, Leda Tenório da (Org.). Céu acima: para um “tombeau” de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 193-212. MATOS, Olgária. Babel e Pentescotes: heterofilia e hospitalidade. In: MOTTA, Leda Tenório da (Org.). Céu acima: para um “tombeau” de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 131-147. MILTON, John. Tradução: teoria e prática. São Paulo: Martins Fontes, 1998. OLIVEIRA, Marcos da Rocha. Método de dramatização: O que é a pedagogia? Porto Alegre, 2012. Projeto de Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. OSEKI-DÉPRÉ, Inês. Make it new. In: MOTTA, Leda Tenório da (Org.). Céu acima: para um “tombeau” de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 213-220. PAES, José Paulo. Tradução: a ponte necessária. São Paulo: Ática, 1990. PAZ, Octavio. Traducción: literatura y literalidad. Barcelona: Tusquets, 1981. PIMENTA, Selma Garrido. (Org.). Didática e formação de professores: percursos e perspectivas no Brasil e em Portugal. São Paulo: Cortez, 1997. _____. (Org.). Pedagogia, ciência da educação? São Paulo: Cortez, 2011.

221

POUND, Ezra. ABC da literatura. (Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes.) São Paulo: Cultrix, 2006. SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. São Paulo: EDUC, 2008. SANTAELLA, Lucia. Transcriar, transluzir, transluciferar: a teoria da tradução de Haroldo de Campos. In: MOTTA, Leda Tenório da (Org.). Céu acima: para um “tombeau” de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 221-232. VALÉRY, Paul. Varietés V. Paris: Gallimard, 1945. _____. Traduction en vers des Bucoliques de Virgile. Paris: Gallimard, 1956. _____. Esboço de uma serpente. In: CAMPOS, Augusto de. Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 27-57. _____. Variedades. (Trad. João Alexandre Barbosa.) São Paulo: Iluminuras, 1991. _____. A alma e a dança e outros diálogos. (Trad. Marcelo Coelho.) Rio de Janeiro: Imago, 1996. _____. Monsieur Teste. (Trad.Cristina Murachco.) São Paulo: Ática, 1997. _____. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. (Trad. Geraldo Gérson de Souza.) São Paulo: Ed. 34, 1998. _____. Degas, dança, desenho. (Trad. Cristina Murachco e Célia Euvaldo.) São Paulo: Cosak & Naify, 2003. _____. Alfabeto. (Trad. Tomaz Tadeu.) Belo Horizonte: Autêntica, 2009. VILLANI, Arnaud. La guêpe et l’orchidée: essai sur Gilles Deleuze. Paris: Belin, 1999. WANDERLEY, Jorge. 22 ingleses modernos: uma antologia poética. São Paulo: Civilização Brasileira, 1993. WILLERMAT, Philippe (Org.). Fronteiras da criação. VI Encontro Internacional de Pesquisadores do Manuscrito. Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário (APML). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2000. _____. A educação sentimental em Proust. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. _____. Crítica genética e psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2005. _____. A crítica genética hoje. In: Alea: Estudos Neolatinos. Rio de Janeiro Jan./ Jun. 2008, volume 10, n.1, 6 p. _____. Os processos de criação na escritura, na arte e na psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2009.

222

ZULAR, Roberto (Org.). Criação em processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002.

OS QUE

OS QUE11 os os os os

rápidos que aurificam dias e noites, astutos que semeiam campos de espanto, altivos que aliviam fardos do passado, fugidios que não arrastam cadáveres,

os inimigos dos profetas do verdadeiro e dos eufóricos do falso, os fantasmáticos que com olhos ensafirados esfarrapam tanta realidade, os desapegados que por vezes jogam fora seus poemas, contos e planos de ensino, os antenados que podem até morrer em alto mar, mas nunca na praia, os polimorfos que se escutam irreais, os livres que vampirizam runas, os enfeitiçados que amealham tesouros de medusas, os lúdicos que vivificam a concreção fictícia de um currículo, os renegados que se cansam das opiniões e as deixam cair por inteiro, os impulsivos que possuem una disperata vitalità, os desplumados que vivem em companhia, cumplicidade e alegria, os intuitivos que fabricam aulas com beijo, cheiro, suor, dor, excitação e tentáculos, os possuídos que fazem da escrileitura sua cama, coito e martírio, os tesos que avançam em fluir in-substancial, os provocadores que se liquefazem em hálito de mariposa, os titereiros que insinuam o destino, os arabescados que transformam a incoerência em lua e teixo, 11

Meu agradecimento à Homenagem do Departamento de Ensino e Currículo, por ocasião dos 40 anos da Faculdade de Educação, UFRGS, em 10/12/2010.

225

os provocadores que descascam asperezas, os desnaturados que ciscam tensões, os ladrões de tudo que pulsa e brilha, os expressivos que enrouquecem a linguagem-acupuntura, os estranhos que renegam a facilidade, os fluorescentes que esmerilham a peste, a fadiga, o carbúnculo e o gerúndio, os ímpios que desmembram ossos e carne das garras da tristeza, os resistentes que trincam crateras e centrifugam fissuras, os montanhosos que perigam riscos, os risonhos que recolhem pétalas de rosa e forquilhas de pinheiro, os improváveis que cravam puas nos métodos, os sensíveis que grifam ideias, os indomesticáveis que escovam nihilismos, os dramáticos que escorrem textos de seiva sensível e rodomel, os inconformados que arrancam estacas e deformam heranças, os conjuradores que fazem corpos, lâminas, perfumes, músicas, bichos, peças, filhos, guinchos, alunos e cinzas, os desenganados que se tratam com rubras campânulas, caldeirões de aurora e Perseus sem escudos, os teimosos que exterminam a bibliofobia, os transgressores que celebram a infidelidade intelectual, os multifacetados que não deixam o ressentimento matar a arte, os amados familiares e o primeiro-neto Pedro, vetor intenso de felicidade, os queridos orientandos, bolsistas, amigos e colegas do DEC e da FACED, que constelam a anarcopédia das formas de uma existência, todos esses artistam minha vida inteira.

226

Sou grata por sua energia.

[email protected] Porto Alegre/RS – Fone: (51) 3386 1984

Esta obra foi composta pela Supernova Editora Ltda – ME em ComeniusAntiqua e Marathon Xlight. Impressa pela Gráfica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em Ofsete sobre papel Pólen Print.