O Perfume do Chianti: História de uma Família 9788581221625

O perfume do Chianti é o relato em primeira pessoa do atual patriarca Piero Antinori. O livro é uma biografia de sua fam

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O Perfume do Chianti: História de uma Família
 9788581221625

Table of contents :
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Folha de Rosto
Sumário
PREFÁCIO
I – MONTENISA BRUT ROSÉ
II – VILLA ANTINORI
III – SOLAIA
IV – TIGNANELLO
V – CERVARO DELLA SALA
VII – ANTICA NAPA VALLEY
VIII – MEZZO BRACCIO MONTELORO
UMA HISTÓRIA ATRAVÉS DE SETE VINHOS
Montenisa Rosé
Villa Antinori
Solaia
Tignanello
Cervaro della Sala
Antica Napa Valley Cabernet Sauvignon
Mezzo Braccio Monteloro
Créditos
O Autor

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poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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Piero Antinori O PERFUME DO CHIANTI História de uma família Tradução de Mario Fondelli

SUMÁRIO Para pular o Sumário, clique aqui. PREFÁCIO I. MONTENISA BRUT ROSÉ II. VILLA ANTINORI III. SOLAIA IV. TIGNANELLO V. CERVARO DELLA SALA VI. ANTICA NAPA VALLEY VII. MEZZO BRACCIO MONTELORO UMA HISTÓRIA ATRAVÉS DE SETE VINHOS Montenisa Rosé • Villa Antinori • Solaia • Tignanello • Cervaro della Sala • Antica Napa Valley Cabernet Sauvignon • Mezzo Braccio Monteloro Créditos O Autor

PREFÁCIO

C

om uma cesta que negreja de uvas, duas leves figuras correm no pano de fundo de desordenadas fileiras, num

pôr do sol do Chianti. As duas jovens – não, as duas meninas – já estavam havia bastante tempo de olho na grande videira que, ao longo dos anos, se arraigara na velha árvore no fundo do campo. “Ela se maridara”, costuma-se dizer na Toscana. Uma videira rebelde que, naquele resto de 1979, enquanto os adultos estavam arrumando o novo vinhedo, se tornara totalmente delas. – Podemos fazer vinho com suas uvas, papai? – perguntaram, e continuaram a perguntar as duas irmãs, até eu responder que sim. Foi a brincadeira delas naquele fim de outono, nas colinas da nossa casa de campo. Uma brincadeira laboriosa. Porque então foi preciso limpar e desengaçar aqueles cachos, pisálos e guardar o líquido nos tonéis. E então ficar pacientemente esperando, para ver o que aquela uva daria. E quando chegou a hora coube mais uma vez a elas engarrafar o vinho numas dez garrafas “bordelesas”, e inventar um digno rótulo para apresentar a sua obra-prima, durante um grande jantar na cidade, aos nossos melhores amigos, inclusive àquele bem-humorado cavalheiro que de

vez em quando aparecia lá em casa para conversar comigo sobre barrique e terroir. Já faz mais de dois mil anos – ou dez mil, se levarmos em conta alguns fósseis de Vitis vinifera – que daquelas videiras se tiram, todo setembro, cachos maduros. Mas aquela pequena vindima de brincadeira tem, aos meus olhos, um valor todo particular. O negócio é que aquela propriedade se chama Tignanello, galga com calma uma encosta entre os vales de Greve e de Pesa, ao sul de Florença, e naquele 1979 produzia, havia poucos anos, um tinto que fazia falar de si a Toscana e o mundo. Daquela nova vinha que ia crescendo em volta das minhas filhas, por sua vez, nasceria dali a pouco o Solaia, um tinto que alguns anos depois seria para a revista cult Wine Spectator o melhor vinho do mundo. Aquelas meninas eram as minhas Albiera e Allegra. O mencionado jantar, organizado para apresentar o Tignanello, aconteceu no palácio Antinori. Na Praça Antinori. Florença. E aquele elegante cavalheiro – que escrevia livros e falava de vinhos e gastronomia na RAI TV, e que contou em seguida a primeira aventura vinícola das duas em Panorama – se chamava Luigi Veronelli. Um divulgador, um crítico, um livre-pensador, o poeta do néctar de Baco, que fez conhecer ao mundo a aventura dos novos, grandes vinhos italianos. Isto, também, porque ele mesmo lhe deu a partida. Albiera, agora vice-presidente da Antinori, contou-me que vinte anos depois, durante um Vinitaly, a feira dos vinhos

em Verona, viu Veronelli chegar segurando uma daquelas famosas garrafas. “Não creio que ainda valha alguma coisa, nem mesmo como vinagre!”, observou ela com um sorriso. “Nunca saberemos”, respondeu ele. “Para mim é tão preciosa, que nunca tive a coragem de abri-la!” O pai da nova cultura do vinho italiano, que nos deixou em 2004, talvez já tivesse entendido desde então que naquelas garrafas-brinquedo ia fermentando algo novo e importante. Justamente no fim do meio século mais atribulado da firma que leva o nome da minha família. Quando parecia que nada mais sobrava no copo e, ao contrário, tudo estava prestes a começar.

I – MONTENISA BRUT ROSÉ Semeando o futuro

S

e eu tivesse de apresentar as minhas filhas com um vinho, escolheria um Montenisa. Um espumante. Um

Franciacorta Brut Rosé, talvez, das últimas safras. Albiera, Allegra, Alessia são a moderna alma internacional da Marchesi Antinori. Criadas nos antigos aposentos do palácio Antinori (onde fica o seu escritório), têm uma vida pontilhada de aviões, trens e feiras internacionais. A mais velha, Albiera, nossa vice-presidente, muitas vezes está na Ásia. Cabeça do marketing Antinori, apaixonada por arquitetura, criou e continua a cuidar do nosso hotelfazenda em Fonte de’ Medici, está assistindo ao nascimento das novas adegas de Bargino, na comarca de San Casciano Val di Pesa, e venceu o desafio de ser presidente – mulher e florentina – de uma tradicional firma vinícola piemontesa, a Prunotto. – Quando cheguei – confessou – ainda estava com menos de trinta anos, não conhecia a uva Nebbiolo, e o enólogo tinha de traduzir para mim o dialeto dos nossos viticultores! Allegra, alma das nossas relações-públicas, cultora da boa cozinha, entre outras coisas exportou as Pequenas Adegas Antinori para Viena, Moscou e Zurique.

Alessia, a caçula, que no entender dos meus amigos é a cara do vovô Niccolò, devora livros de vinicultura desde menina. É a nossa enóloga, e o Montenisa, em nível produtivo, é uma sua criatura, que ela acompanhou por longos anos. Mas também se encarrega da exportação para os Estados Unidos e os mercados emergentes. E em 2003 foi presidente da organização Premium Familiae Vini, as “Nações Unidas” das famílias históricas do vinho. Uma grande honra. Hoje em dia as revistas italianas de enologia, e não só elas, gostam de entrevistá-las, amiúde até mais do que a mim. Uma de cada vez ou todas as três juntas. Seus rostos e suas vozes de sotaque toscano ricocheteiam em mil filmes de divulgação, em mil línguas diferentes, enquanto apresentam uma garrafa ou vindimam numa das nossas vinhas toscanas ou californianas. E no começo de 2011 o semanário estadunidense Newsweek as incluiu entre as quinze mulheres-ícone do made in Italy, “não conhecidas somente por aparecer na TV ou por saber preparar um bom jantar”. Pensando nelas, cada garrafa de Montenisa é assinada com um tríplice ”A” que se enrosca no rótulo claro, para celebrar o trabalho de equipe destas três “vinhateiras”. As mulheres dos três “A” têm o mesmo sobrenome, mas aptidões e caracteres diferentes. Allegra, entusiasta e extrovertida. Alessia, comunicativa e decidida. Albiera a bancar a moderadora entre as duas, como é de esperar de

uma boa irmã mais velha. As duas mais velhas tiveram uma educação um tanto rígida, entre babás e rigorosos horários para sair à noite. A mais nova recebeu um pouco mais de liberdade (os tempos mudam): cursou a universidade, começou a viajar mais cedo. Cada uma tem a sua própria história, mas, juntas, encontraram uma maneira toda feminina de acabar com as divergências e abrir espaço para a sua contribuição pessoal. Foram elas que imaginaram, produziram por conta própria e apresentaram ao mercado este novo vinho, um Franciacorta intenso e complexo, com uma bonita história por contar. Afinal, por trás de todo grande vinho há muita coisa por dizer. “Todo vinho tem a sua história”, escreveu certa vez Veronelli. A propriedade, cujo nome lembra o monte consagrado a Baco, fica no coração da Franciacorta, ao sul do lago de Iseo. Trabalhar entre aquelas fileiras, para nós, significava muitas coisas. Havia a incógnita de exportar a nossa história secular para longe do seu berço na Toscana. E também havia o incentivo de retomar aquela espécie de epopeia que foi o relacionamento entre os espumantes e os Antinori. Tecnicamente, precisamos lembrar que, geralmente, as nossas uvas toscanas não possuem as características necessárias para produzir vinhos espumantes de alta qualidade. E, além do mais, nada está mais longe do perlage, as bolhinhas, do que a imagem e o espírito dos vinhos toscanos tradicionais, que são uma tribo feita de substâncias e personalidade, com os pés bem plantados no

chão e poucas concessões às frivolidades borbulhantes. Uma firma que, no entanto, quer crescer e perdurar no tempo precisa sempre enveredar por novos caminhos e superar velhas fronteiras. O primeiro a aventurar-se numa versão toscana dos míticos champanhes, vinhos da alegria e dos palácios reais, foi Piero Antinori, o meu avô, numa época em que a indústria vinícola italiana ainda estava em sua pré-história. Viajando pelos mais lindos vinhedos da França em busca de inspiração, levara consigo umas garrafas do melhor branco de Cigliano, uma das nossas primeiras fazendas toscanas. No Marne, em Épernay, a capital dos champanhes, os bruxos das bolinhas do Instituto enológico experimentaramno. Pois é, porque ali, descobriu meu avô, já havia aquelas “escolas enológicas” que na Itália da época ninguém tinha sequer imaginado. Afinal a sentença foi que, sim, de qualquer maneira, até que se poderia tentar alguma coisa. Nasceu assim o primeiro Gran Spumante Marchese Antinori. Era 1904. No nosso país fomos os segundos a experimentar o método champenois, depois dos Ferrari, a família italiana do espumante por excelência. Tratava-se, então, de umas poucas centenas de caixas. Que logo nos deram, no entanto, muitas gratas satisfações, bem como grandes dores de cabeça. O “Champanhe do Chianti” – a nossa zona de origem, naquele tempo já famosa pelos tintos – não demorou a chegar ao cardápio dos restaurantes mais renomados, bem

como à carta dos vinhos dos banquetes do palácio do Quirinal, onde os reis da Itália brindavam. Também chegaram os elogios de Giacomo Puccini, o grande músico, que em 1914 – é uma carta até hoje zelosamente guardada numa gaveta da escrivaninha do meu pai – pedia informações acerca daquele frisante – “para finos cavalheiros”. “Cordon Rouge”, como era chamado naquele tempo. Mas, uma vez que o espumante nunca deixa de ser um espírito caprichoso, também houve aquela manhã de uns poucos anos depois, quando cerca de sete mil garrafas explodiram num prazo de poucas horas retumbando sob os arcos das adegas de San Casciano. Pareceu a explosão de uma rajada de metralhadora pesada. Tudo devido a um erro de “dosagem” por parte do técnico francês que a minha família tinha chamado para a tarefa (e que não demorou a ser mandado de volta para casa): para enfrentar o “tiroteio”, foi preciso proteger o rosto com máscaras de esgrimista. O suposto mago dos champanhas, que ostentava o reboante nome de Charlemagne, tinha evidentemente errado alguma coisa entre o tirage, o remuage e o dégorgement, as então bastante misteriosas fases de fermentação que levavam àquele vinho tão particular. Alguém disse, na época, que estava simplesmente com saudade dos barris das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, onde ele lutara como combatente do exército transalpino. De qualquer maneira, meu pai quase teve de

brigar com meu avô para seguir adiante por aquele caminho perigoso. E para fazer sobreviver os nossos vinhos fermentados teve de pedir um empréstimo bancário, pedir mais dinheiro a uma parenta, deslocar a produção para outra adega, em San Martino alla Palma, e mandar vir da França um novo técnico. O nome deste era Granvalet e, ao contrário do seu conterrâneo antecessor, demonstrou o seu valor. Nós, os Antinori, dificilmente nos rendemos. E das nossas adegas também continuaram a sair vinhos borbulhantes. Para encerrar esta fase pioneira e gasosa, só quero salientar que sempre ficamos no pequeno número de produtores de espumante italianos de qualidade. E em 1975 lá estávamos nós, entre as dez firmas que fundaram o Instituto Espumante Clássico – método champenois. Novos tempos, por outro lado, requerem novos parâmetros de qualidade do vinho. No fim da década de 1990, com as minhas filhas, começamos a procurar uma terra onde se pudesse trabalhar com um espumante capaz de celebrar dignamente os nossos cem anos de borbulhas. Encontramo-la neste cantinho mágico da Lombardia, entre o lago e a montanha. É uma vinha fechada por um pomar, um velho muro, com uma pequena aldeia e umas pequenas ermidas medievais por perto, e uma vila do século XV: uma visão que nos deixou emocionados. Sempre acreditei que, de alguma forma, o bom vinicultor e a sua vinha se reconhecem. E constatei que os melhores vinhos sempre nascem em paisagens harmoniosas, ricas de história e

personalidade, cuja beleza, por inefáveis caminhos, acaba revivendo no copo. Neste caso, então, falamos de terreno prestigioso. A “terra do espumante”, na imagem que dela temos, é justamente isto. Para operarmos da melhor forma possível nesta área, tão diferente da nossa por tradição e cultura do vinho, em 1999 decidimos nos aliar a uma nobre e antiga família de Brescia: os condes Maggi. Pessoas ecléticas. O primeiro dono daquele terreno, Aymo, amava na mesma medida espumantes e motores. E foi um dos fundadores das Mil Milhas, estafante maratona automobilística que se corria a partir da década de 1920 nas estradas estatais.[1] Atualmente Alessia mantém um excelente relacionamento com a nova geração da família. Os grandes vinhos sempre nascem de uma rede de contatos, alianças, amizades. Fundamental, ainda mais quando se fazem enxertos e se vindima longe da Praça Antinori. Os Maggi, portanto, continuam a ser os donos da propriedade; nós tivemos carta branca para relançar a produção. Albiera, Allegra e Alessia verificaram a “vocação” da terra, plantaram novas vinhas, ajeitaram a adega. E ficaram esperando. Um vinho das irmãs Antinori. Para entender o que isto significa para mim, é preciso lembrar que, ainda no começo dos anos 1980, esta virada parecia improvável e distante. Era um momento delicado e precário. A minha irmã Ilaria e o meu irmão Lodovico haviam decidido sair da firma. Ela

não estava interessada no mundo do vinho, ele tencionava dedicar-se a seus planos pessoais. Liquidar dois dos principais herdeiros deixara a marca Antinori numa situação de repentina fragilidade financeira. Mas além da sensação de um fim iminente e irrecuperável para aquele longo ciclo histórico, também nascia em mim um sentimento muito mais íntimo e pessoal. Hoje estou convencido de que homens e mulheres têm as mesmas qualidades e potencialidades, até no mundo da viticultura. Nos vinhedos italianos, com efeito, está acontecendo uma verdadeira revolução “rosa”. Penso em Gaia Gaja, filha de Angelo (ele também gostou de brincar com os nomes de batismo!), que já há algum tempo trabalha com sucesso na grande casa dos tintos piemonteses. Na Sicília, em Francesca Planeta ou em José[2] Rallo, da família Donnafugata, já na segunda geração de vinhos decididamente “femininos”. E ainda nas irmãs Lungarotti na Úmbria. Em Elisabetta Foradori no Trentino e em tantas outras apaixonadas e extremamente competentes produtoras. Bem como na própria Associação das Mulheres do Vinho, que reúne muitas delas. Acredito que muito em breve na Itália também as mulheres ocuparão o espaço que bem merecem na sociedade e no empresariado. Com ou sem cotas rosa. Devo admitir que trinta anos atrás, no entanto, não podia francamente imaginá-las, a estas meninas Antinori, numa vida entre vinhas e adegas, ou tratando de uvas e de preços

com os nossos representantes nos quatro cantos do mundo. É preciso pensar que o nosso cosmopolita e requintado ambiente de vinhateiros – um círculo um tanto fechado de pessoas do ramo, que vivem apaixonadamente do vinho e pelo vinho – nem sempre foi tão aberto às novidades. No que concerne ao conteúdo do tonel, mas também a respeito de tudo aquilo que está por trás e em volta. Acreditem, pois eu bem sei disto. Tentei, é claro, procurar precedentes nas memórias familiares a que meu pai vinha dedicando os últimos anos da sua vida (livro mais tarde editado em Florença, em 1990, por Paolo Sacchi). Pois bem, pelo menos uma mulher determinante para o destino da casa existira. Era 1385, o nosso ano fundamental. É um ano em que o melhor vinho do mundo já se faz, há muito tempo, na região francesa de Bordéus. Na futura Napa Valley americana, por sua vez, ainda andam à solta os índios Wappos, ignorando a videira silvestre que vinga por todos os lados. Em Florença, Albiera di Geri degli Agli é a mãe de Giovanni da Pietro Antinori, que pode ser considerado o primeiro businessman da estirpe. Giovanni já foi soldado e diplomata e, enquanto o irmão Lodovico leva adiante o comércio da seda, procura agora novos caminhos. “Por que não se filia à corporação dos vinattieri?”, parece que sugeriu a mãe. Foi assim que tudo começou: com a entrada na Associação florentina da uva, cujo brasão é o cálice em campo branco que ainda se vê numa parede do térreo do palácio Antinori. “Vinattiere” é,

propriamente, a palavra antiga e toscana que indica quem vende vinho e depois, em sentido mais lato, quem o produz, isto é, o vinheiro ou vinhateiro. Quanto a nós, como já devem ter percebido, ainda gostamos de usá-la, com alguma ironia, para indicar aquele que se dedica ao vinho em todos os seus aspectos, e que de vinho vive. Talvez tenha sido, de qualquer maneira, por algum palpite meu, que em 1966, 581 anos depois, chamei de Albiera a minha primeira herdeira. Um antigo nome de família para a primeira filhinha do vigésimo sétimo rebento da árvore Antinori. Ter recuperado, depois de tantos séculos, aquele nome incomum, e talvez todos aqueles “As” que enfileirei com os nomes das minhas outras filhas – que afinal de contas eram o “A” de Antinori, a primeira entre todas as letras – parecia querer dar um empurrão no destino. O meu próprio pai, por outro lado, decidira que os seus dois varões levassem o nome dos fundadores, aqueles irmãos Piero e Lodovico que em meados do século XIX inscreveram as suas adegas na Ordem dos empresários vinicultores e que, em 1895, haviam criado com o irmão adquirido Guglielmo Guerrini a sociedade das Adegas dos Marqueses Piero e Lodovico Antinori: explicando que fizera isto justamente porque vislumbrara para a sua dinastia e o seu vinho um futuro brilhante. Ainda que, como escreveu mais tarde, na época “a empresa não possuía vinhas nem, muito menos, fazendas”.

Naqueles anos 1980, que agora parecem tão distantes, a minha conclusão só podia ser, no entanto, uma. Depois de ter tido três filhas, depois de ter assistido ao afastamento dos meus irmãos, receava que o relacionamento famíliafirma pudesse afrouxar-se. Depois de seiscentos anos. Fim da dinastia que ao longo dos séculos tinha resistido a crises econômicas e derrotas políticas, a intrigas palacianas e parasitos da videira. Fim do crescimento da nossa árvore genealógica, que de um quadro pendurado no segundo andar do palácio Antinori sempre nos lembra quem somos e de onde viemos. Uma árvore que em meio milênio se tornou uma espécie de floresta. Não haveria outra geração de Antinori tomando conta das minhas vinhas e dos meus vinhos. Fim de papo. Foi por isso tudo que, pela primeira vez em 26 gerações de Antinori cantineiros, em 1984 decidi abrir a firma a um sócio externo, a alguém que não era da família. As Adegas Antinori já não eram só nossas. A escolha, dolorosamente ponderada durante longas noites insones, caiu sobre um grupo inglês que já nos representava nos Estados Unidos e na Inglaterra: a Whitbread. Multinacional da cerveja, de hotéis e restaurantes, havia sido fundada por Samuel Whitbread em 1742 (comparada conosco, uma marca “adolescente”!). Tinham começado com cerveja e licores, mas já fazia algum tempo que estavam pensando em aumentar os investimentos no setor

do vinho. Ligar-me a eles parecia, na época, uma excelente maneira de garantir de alguma forma a continuidade operativa da firma e recuperar a solidez financeira. Chegamos a um acordo. Os jornais toscanos levantaram-se contra a invasão do forasteiro. Gerações de Antinori retratados de armadura, peruca ou redingote nas paredes do palácio Antinori olhavam enviesado para o bisneto que estava rachando a herança. Nunca teriam feito uma coisa dessas, eles, que durante séculos tinham incluído em todo testamento o fideicomisso, um instrumento que confiava toda propriedade, indivisível e de forma indissolúvel, à linha masculina da casa. Durou oito longos anos, durante os quais, como veremos mais adiante, duas maneiras completamente diferentes de conceber o que era uma firma vinícola, o que era lucro, o que era o tempo se chocaram de forma inconciliável e com recíproca frustração. Ficou logo claro que a convivência forçada estava ficando justa demais tanto para mim quanto para eles. Afinal, já vi muitos outros grandes grupos entrar no setor do vinho e depois sair. Quando tudo acabou, os ingleses da Whitbread também decidiram nunca mais meter-se em vinhedos e tonéis de mosto fermentando. A minha maneira de ver as coisas sofreu o seu primeiro choque em 1985. Ano de ótima vindima para os tintos da Toscana. Eu era presidente da Federvini, a associação nacional da nossa categoria. Com outros representantes das mais tradicionais famílias do vinho, havíamos planejado

uma viagem promocional aos Estados Unidos e Canadá. Albiera, que acabava de completar 19 anos e concluíra o curso secundário no liceu clássico de Florença, me acompanharia. As suas experiências com a uva podiam ser contadas nos dedos de uma mão. Lembro um jantar no começo do verão, em Florença, alguns meses antes da partida; fazia um calor insuportável, e ela se mostrava meio desnorteada. – Parece-me que está com poucas ideias, e além do mais confusas – disse a ela. – Que tal fazer a vindima no Castello? Aí poderia acompanhar a fermentação do Cerbaro, controlar as barricas. Vai sentir o ambiente, vai descobrir se fica à vontade… Estava me referindo à nossa propriedade na Úmbria, o Castello della Sala. O nosso reino dos vinhos brancos. A fermentação – momento em que as uvas vindimadas e prensadas são deixadas nos tonéis para transformar em álcool os seus açúcares – era em particular a que tinha a ver com o Cervaro della Sala, um branco de concepção original que, justamente naqueles meses, saía de uma longa e complexa gestação. A técnica de maceração a frio, incomum para os brancos italianos, era um dos pontos cruciais para a produção do novo vinho. Outro aspecto interessante era a passagem pelas barricas, barris de 225230 litros, que considerávamos fundamentais para levar aos mais altos níveis aquele vinho. O enólogo e os cantineiros, naquela fase, precisam acompanhar a evolução do vinho

com provas periódicas. E, a certa altura, antes do engarrafamento, é necessário transferir o vinho para uma segunda série de pequenas pipas, para que no processo sejam eliminados todos os resíduos sólidos e o Cervaro possa chegar “puro” às garrafas. Eu estava propondo à minha filha, em resumo, um mergulho no coração do laboratório vinícola Antinori. Num dos principais sancta sanctorum dos meus enólogos. Talvez Albiera tenha ficado um tanto pasmada e lisonjeada. Ficou curiosa. Testou o ambiente. E começou a pensar no assunto. A viagem aos Estados Unidos na primavera de 1986 tinha nascido como uma espécie de passeio-prêmio depois do diploma do clássico. E naquele primeiro tour de force enológico, ao qual nenhum de nós dois dava, àquela altura, nenhuma particular importância, o papel dela devia ser o de espectadora do trabalho de relações-públicas do pai. Mas então estoura, na Itália, o escândalo do metanol, uma história feia de vinhos adulterados, surgida no Piemonte e logo alastrada até envolver todo o nosso sistema vinícola. Foi provavelmente o ponto mais baixo de todos os tempos para a imagem do nosso vinho. O que depois levou a repensar todos os mecanismos de produção, controle e certificação. Em resumo, a situação forçou-me a partir apressadamente de volta à Itália, ainda mais porque, justamente, eu era o presidente da Federvini, àquela altura no olho do furacão. Meio a contragosto, levando em conta

que um Antinori devia estar presente, não tive outra escolha a não ser deixar a minha filha mais velha, que acabava de chegar à maioridade, como representante da firma. Uma grande responsabilidade, e numa hora bastante difícil para a nossa marca e para toda a Itália do vinho. Aconteceu, portanto, que naquela viagem a observadora se tornou protagonista. Uma preciosa ocasião para crescer, graças também a dois pequenos lances de sorte. O primeiro foi que, diante de uma plateia de jornalistas e apreciadores americanos, teve de falar do Tignanello (“um dos raros vinhos de que sabia alguma coisa”, admitiu depois). O outro, que os meus amigos vinicultores mais calejados cuidaram de ampará-la. Quando, com ela no palco, um espectador começou a vociferar contra os italianos que botam etanol em tudo, meia delegação, sob o comando de Italo Folonari, das adegas Ruffino, levantou-se em defesa da mais jovem do grupo. Que descobriu então o que significa ser parte da grande família italiana do vinho. Em setembro, voltando a acompanhar a colheita da uva em Guado al Tasso, Albiera fechou o círculo do seu primeiro ano como viticultora. Descobriu os tempos do vinho, procedimentos velhos de séculos e novas técnicas que estávamos experimentando. Compreendeu que o vinho é um ser vivo, e que no seu ciclo não há absolutamente nada de repetitivo. Que uma vinha cresce, se torna adolescente, adulta, madura, idosa, de forma que nenhuma vindima é igual a outra. Muito tempo depois, numa entrevista,

explicou que foi justamente naquele ano que intuíra pela primeira vez o que havia atrás daquela uva engarrafada pela qual tanto se esforçavam, estudando, debatendo e viajando, os homens adultos do palácio Antinori. “Fui fisgada por este mundo”, gosta de dizer. Resumindo numa frase, havia sido capturada pelo vinho e pela marca Antinori. A grande surpresa foi esta: descobrir que o futuro da firma estava justamente dentro do palácio Antinori. Que dava para aprender o vinho, desde que houvesse paixão. Que uma Antinori mulher podia ter o mesmo amor por este trabalho, podia sentir igualmente forte o liame com ele, com a terra e com a tradição. Não uma Antinori, aliás, mas três. Pois ficou logo evidente que Albiera tinha dado a partida a uma reação em cadeia. As duas outras irmãs seguiram caminhos diferentes, mas todos acabariam levando-as às nossas adegas. Allegra, que tinha frequentado um colégio na Suíça, trabalhou num primeiro momento nas adegas Mondavi, os nossos amigos de Napa Valley. Para Alessia, a “caçulinha”, houve primeiro a escola americana em Florença e então a Universidade em Milão. Agronomia, diploma em viticultura e enologia, um curso onde, de moças, só havia duas. No começo pensava em estudar história da arte. Eu disse a ela: “Por que não experimenta?” E quando aceitou compreendi que algo estava realmente se mexendo. Sei entender as pessoas. É nisto que, basicamente, consiste o meu trabalho,

pelo menos desde que me vi cercado de vinhas e de frentes de trabalho demais para que um homem pudesse cuidar delas sozinho. Exatamente como acontece com as videiras, das pessoas é importante entender as qualidades e as potencialidades, mas é igualmente importante “plantá-las” no terreno certo para que possam “abrir-se” ao mundo e dar o melhor de si. A única diferença é que, em lugar do sol, da água ou de um adubo, é preciso oferecer principalmente estímulos e confiança. Nos mesmos meses em que Alessia partia para Milão, Albiera viu-se empenhada na compra de uma nova vinha para a firma Prunotto, nas colinas perto de Asti. Antes de selar o trato com a assinatura definitiva, perguntou-me: – Não quer mesmo dar uma olhada? – Não é preciso – ouviu-me responder –, tenho certeza de que você já pensou em tudo. Para cada uma das minhas três filhas houve, como no caso de Albiera nos Estados Unidos, um “batismo de fogo” diante de uma plateia de gente do vinho. Só para dar uma ideia de como hoje em dia um vinheiro precisa prestar atenção seja na adega, seja diante de um microfone. E só para começar a entender os dois mundos diferentes, mas variamente interligados, que formam a nossa profissão: o produtivo e o promocional-comercial. Acho que para Alessia a “estreia na sociedade” aconteceu quando tinha uns 15, 16 anos. Mas ela ainda lembra com particular terror uma apresentação

um pouco posterior. Levara-a comigo a Chicago, na ocasião de um leilão de beneficência. Íamos falar na monumental Opera House daquela metrópole, de estilo art déco. Lembro que naquela noite fiz uma apresentação no meu papel, àquela altura inevitável, de mais conhecido viticultor italiano, e que, enquanto me afastava do palco passando por uma plateia de mais de quinhentas pessoas, roçando nela murmurei: “É a sua vez; daqui a cinco minutos terá de apresentar os nossos vinhos.” Obviamente, à pobre garota de vinte e dois anos eu nada tinha dito acerca daquela “iniciação”. É bom salientar que nenhuma das minhas três filhas, talvez devido ao traço introspectivo da terra da Maremma, gosta de falar em público, embora a esta altura já estejam amplamente acostumadas. Alessia confessa que me odiou profundamente, naquele momento, mas a minha jovem enóloga já sabia muita coisa de vinhos, e se saiu maravilhosamente bem. Foi uma escolha premeditada a minha? Quem sabe… – No começo, com papai, era sempre assim – elas contaram numa das muitas reportagens televisivas que indagam sobre a “geração rosa” do vinho italiano. – Começava nos empurrando com toques gentis para o mundo do vinho… e então você descobria que estava mergulhada nele até o pescoço. De qualquer maneira, àquela altura isto já era um fato. As minhas três filhas haviam crescido mostrando inequívocos e sinceros sinais do fio vermelho que ligava seis séculos de

vinhateiros do Chianti. Via diante de mim um novo futuro. Alguém a quem passar com confiança tudo aquilo que o meu avô e o meu pai tinham construído até então. Só havia um problema: àquela altura, na minha firma, eu já não podia tomar decisões sozinho. – Nem pensar, Piero! É uma loucura, tire isso da cabeça! Vincenzo Maranghi, florentino da gema, administrador delegado de Mediobanca, discípulo e braço direito de Enrico Cuccia (o mais influente e poderoso banqueiro da Itália moderna), concedera a si mesmo, durante toda a vida, somente uma semana de férias: em 1985. E estamos falando de uma extremamente longa e brilhante carreira: de funcionário a chefe supremo de um dos maiores bancos do país e da Europa. Maranghi vivia para o trabalho, e já tinha visto de tudo. Quando porém, em 1992, pedi um vultoso financiamento para comprar de volta a cota da firma cedida aos anglo-saxões, a sua primeira reação foi de incredulidade. Mas como? Estávamos falando de um grande grupo. Cotizado na bolsa. Sólido. O que me ajudara num momento difícil. Além do mais, do ponto de vista financeiro, não podia haver momento menos favorável. A firma Antinori, nos últimos anos, havia crescido muito, ganhara uma reputação internacional, e a Whitbread não iria soltar facilmente o seu pacote acionário. Aliás, como ele explicava, a operação que os ingleses estavam tentando realizar ia exatamente no sentido oposto do que eu desejava. O conglomerado inglês, como todos sabiam no

ambiente financeiro, visava comprar em várias etapas a maioria das ações Antinori. E isto para usar em seguida a minha não tão grande, mas prestigiosa, firma como toque final num pacote de ações que estavam tentando vender, por um preço muito maior que o de compra, a outro ambicioso colosso dos licores, a Allied Lyons, em seguida Allied Domecq, outra multinacional que queria entrar no mundo do vinho. O objetivo dos meus sócios era duplo: maximizar o investimento efetuado e, ao mesmo tempo, sair de um setor que consideravam cada vez mais trabalhoso e pouco rentável. – É o mundo dos grandes negócios, Piero – resumia Maranghi. – A Lyons só quer o pacote se ele incluir o controle da Antinori. Se você se soltar da Whitbread, para eles toda a operação desmorona. E o preço que pedirão pelas ações, a esta altura, terá de cobrir o lucro que deixarão de ter. Uma enormidade. E um gigantesco risco para você, para as adegas e para nós. – Para mim, no entanto, em todo este grande monopoli só havia uma coisa clara: somente com o controle total da firma poderia levar adiante o meu trabalho de viticultor que tantas satisfações estava nos dando naquele final do século. – E como pensa em cobrir o financiamento? – insistia o amigo. – Com o meu patrimônio pessoal, e além do mais… – Além do mais o quê? – Ainda há o palácio Antinori…

– A casa de vocês, há séculos. O palácio que seu pai conseguiu recomprar com tanto sacrifício… Você tem certeza mesmo? Foi então que comecei a contar ao administrador de Mediobanca o que realmente estava acontecendo nas minhas adegas. Os vinhos que eu, e com cada vez maior envolvimento, as minhas filhas estávamos imaginando e criando. E os ainda por vir. E também os novos terrenos em que tínhamos posto os olhos na Toscana, nas demais regiões vinícolas na Itália e no mundo. As novas adegas já planejadas, os prêmios e os números em crescimento das nossas exportações. Pouco a pouco ele começou a ficar convencido de que a reconquista da Antinori era algo mais que um impossível gesto sentimental. É claro, foi uma operação arriscada, um salto no escuro para os Antinori, uma estirpe que, ao contrário, era desde sempre admirada em Florença pela cautela em suas escolhas, pela diplomacia e pela capacidade toda itálica de desembaraçar-se entre poderosos e burocracias. Voltando no tempo, muito atrás (lá em casa a gente pensa em termos de centenas de anos), incomodava-me bastante a lembrança da desagradável aventura financeira das primeiras décadas do século XVI, quando Alessandro di Niccolò Antinori tivera de declarar bancarrota: as suas finanças, junto com as de meia Florença, haviam secado devido a enormes empréstimos, nunca pagos, às monarquias europeias em luta entre si. Particular

perturbador, a mais escandalosa inadimplente parece ter sido a Coroa inglesa. Desde então, havíamos preferido nos dedicar cada vez mais às videiras, aos comércios e à política, e menos às operações bancárias. Quando os tempos ficaram maduros para o Grande Salto, chegaram então para mim novas noites de sono agitado no quarto do terceiro andar do palácio Antinori. O meu pai, que até o fim acompanhara as minhas iniciativas e todos os meus planos com uma paixão e uma curiosidade não afetadas pelos anos, havia nos deixado em novembro de 1991. A presença dele havia sido muito importante. “Se precisar de um conselho, conte comigo”, costumava dizer. “No mais, faça como achar melhor.” Mas havia Albiera. A minha filha acabava de completar 25 anos e ainda não tinha nenhum cargo oficial definido, mas acompanhou e defendeu o tempo todo a operação. Assim como fez um observador externo que sempre me apoiou: Piero Ieri, falecido uns poucos anos atrás, um consultor financeiro que começara como mero contador e sem um currículo prestigioso, mas que naqueles anos se tornou uma das mais preciosas pessoas da minha confiança. O bom senso e a sua inteligência foram de grande ajuda em inúmeras circunstâncias. E também havia o amigo Alessandro Pazzi, advogado florentino, atualmente o único não Antinori, junto com Renzo Cotarella, administrador delegado, a sentar-se no nosso conselho de administração.

Eu podia contar, além do mais, com o efeito surpresa. A Whitbread estava a ponto de me procurar com uma oferta para comprar a minha parte, e eu, já sabendo da possibilidade do vultoso financiamento, iria deixá-los deslocados com a decisão de retomar tudo. Foi uma aposta, um risco calculado. E houve o costumeiro deus Baco, que, de cima da sua nuvenzinha cor de vinho no Olimpo, nos deu um pequeno empurrão. Não me refiro a uma boa safra ou à inspiração de uma nova vinha. Refiro-me àqueles recursos econômicos que me permitiram chegar à queda de braço com mais um tiquinho de confiança. Havia vários anos que eu era titular de um pacote minoritário de ações da Fondiaria Assicurazioni. Pois bem, aconteceu que justamente naqueles dias os maiores grupos financeiros do país tinham ficado de olho na histórica seguradora florentina, no âmbito de uma grande jogada de pacotes acionários e de equilíbrios industriais. Raul Gardini estava então no apogeu da sua vertiginosa parábola. Chamavam-no “o Camponês” ou “o Corsário de Ravena” pelo seu jeito direto e pela maneira não muito ortodoxa de navegar nas perigosas águas das finanças italianas, aquelas em que iria se perder no verão de 1993: Gardini foi um dos suicidas de alto nível da primeira fase de Tangentopoli, o vendaval de processos contra a corrupção que estava atropelando o mundo político e empresarial. Só um ano antes, este atrevido executivo, cheirando a presa, se dedicara abertamente a juntar toda possível migalha

acionária da Fondiaria no intuito de ter nas mãos a maioria. Muito em breve, graças aos meios de que podiam dispor, neste enfrentamento, Gardini e o seu grupo, e o encouraçado Montedison, o meu pacote tornou-se, de uma hora para outra, decisivo. Isto provocou uma supervalorização que foi um verdadeiro maná caído do céu. Que foi imediatamente liquidado e reinvestido na operação que tanto nos interessava. Pronto. A coisa funcionou. Quando, com Albiera, brindamos com um Chianti Clássico[3] ao acordo concluído, acho que em Londres os representantes da firma inglesa ficaram com um pouco de amargor na boca. Não deviam ter acreditado, provavelmente, que eu iria até o fim. Conheciam, ou julgavam conhecer, a minha situação de caixa. E raciocinavam como um grupo financeiro. Não como alguém que tem de fazer um vinho e reestruturar algumas adegas para as próximas três ou quatro gerações. Eu, então como hoje, acho que neste tipo de circunstância o único comportamento possível é tomar uma decisão e não divergir dela até o fim. A firma e a marca eram novamente nossas. Era a realização de um sonho. E o tempo disse que estávamos certos, porque, graças ao sucesso dos nossos produtos no mundo nos anos imediatamente seguintes, o financiamento concedido por Mediobanca foi logo coberto sem maiores problemas. Muitos ficaram pasmados: sobretudo aqueles que, nos primeiros anos da nossa recuperada

independência, continuaram a propor participações ou a compra de parte ou de toda a firma, talvez pensando que os balanços, depois daquele gesto “mais romântico que lógico” (como certa vez disse numa entrevista o meu irmão Lodovico), estivessem exangues e precários. A primeira coisa que fiz ao voltar de Londres, depois daquela viagem vitoriosa de 1992, foi acrescentar nos rótulos, em todo o material publicitário e nos documentos oficiais da firma a escrita “26 gerações”. A história começada seis séculos antes retomara o seu curso. E estávamos orgulhosos e conscientes disto. Hoje não somos os únicos a saber disto. Nos anos mais recentes da nossa história empresarial, o fato tornou-se um “caso” notório. Em abril de 2008, um dos principais diários econômicos do mundo, o Wall Street Journal, publicou uma das mais abrangentes e interessantes matérias que já li sobre a Marchesi Antinori. Escrita em Florença por Gabriel Kahn, percebia-se nela uma profunda admiração pelos tempos e modos extremamente longos e ponderados do nosso ofício, por aquela vintage strategy, aquela estratégia antiga que visa ao futuro, tão diferente dos ritmos da sociedade estadunidense. Uma ideia vintage, mas bemsucedida e, portanto, extraordinariamente atual. Justamente o que eu gostaria que as pessoas sentissem em tudo o que fazemos. Uns poucos meses depois, a rede americana de televisão CBS dedicou-nos um longo serviço durante a transmissão 60

Minutes, cujos hóspedes são normalmente astros de Hollywood e políticos de Washington. Morley Safer, o gentil correspondente da CBS na Europa, entrevistou-me no meu escritório. Depois, acompanhou-me numa visita ao palácio Antinori. O serviço também compreendia entrevistas com as minhas filhas enquanto trabalhavam entre as fileiras dos nossos vinhedos toscanos e californianos. Havia um pouco de toda a nossa história, desde a entrada na associação dos vinhateiros dos meus antepassados até a surpreendente virada feminista da última década. Gostei de ver que, com concretude toda americana, a nossa aventura secular não foi apresentada como uma fábula de “acredite se quiser”, uma estranheza digna dos recordes do Guinness, mas sim como um caso de excelência empresarial. Em resumo, sugeria-se mais uma vez ao público do outro lado do oceano um dos conceitos que me são mais queridos, que é o fundamento deste livro e do qual voltaremos a falar: a linha familiar no gerenciamento das nossas adegas não foi uma escolha sentimental, a repetição forçada de uma tradição, mas sim a maneira mais apropriada, talvez a única, com que se pode fazer o melhor possível, ao longo do tempo, no nosso trabalho. Agora já estamos pensando em como transmitir, mesmo por via feminina, o nome Antinori e o marquesado às futuras gerações. Estamos de olho nos próximos seis séculos. Olhamos para os netos. Vittorio, o mais velho, filho de Albiera, está com 18 anos, estuda economia e já passou

um verão nos escritórios dos nossos importadores na GrãBretanha e nos Estados Unidos. Niccolò, 11 anos, primogênito de Allegra, já foi levado a brincar de engarrafador, no verão passado, na nossa fazenda na Califórnia. Só para ele começar a pôr a mão na massa, a cheirar o mundo do vinho. A mãe diz que o roubo continuamente dela, mas que, afinal de contas, sou um bom avô. E, para continuar esta estação de gênero feminino, há as minhas netinhas: a outra criança de Albiera, Verdiana, está agora com 16 anos e já roda pelo mundo; Vivia, 10 anos, a caçula de Allegra, promete. O último a chegar, por enquanto, é Giovanni Piero, pelo qual Alessia interrompeu desde o fim de 2010 o seu costumeiro tour de force global. Todos juntos, avô e mães, decidimos que estes rapazes e estas moças terão de seguir seu próprio caminho sem muitas pressões de nossa parte. Sem obsessões de tonéis e dinastias. Gostaríamos que todos adquirissem experiência longe de casa e da Itália, não necessariamente no setor vinícola: para a minha família, a começar por mim, como veremos, conhecer o mundo sempre foi uma coisa importante. Mas a esperança que o chamado do vinho se faça ouvir certamente existe.

  1 Depois de um grave acidente em que, além do piloto De Portago, morreram dezenas de pessoas, a corrida foi definitivamente suprimida em 1957. (N. do T.)

2 Em italiano, José é nome feminino. (N. do T.) 3 A denominação Chianti Clássico não se refere a uma marca em particular, e sim a uma área bem definida dentro da região do Chianti. Independentemente da marca, portanto, só os vinhos produzidos naquela área podem usar o nome “clássico”, e são identificados por um pequeno rótulo com um galo preto. (N. do T.)

II – VILLA ANTINORI Tornar-se vinhateiro

C

hama-se Villa Antinori. Tinto de sangue toscano. É verdade, à base original e puríssima de Sangiovese

junta-se uma pequena quantidade de uvas internacionais. Mas nascidas, amadurecidas e colhidas nas nossas vinhas, e então transformadas em vinhos e envelhecidas nas adegas Antinori. Nasceu uns dez anos antes de mim o Villa Antinori. Em 1928. Mas tem o mesmo pai, Niccolò Antinori. O homem que, fulgurado pela excelência dos grandes vinhos de Bordéus, perseguindo uma sua nova visão do vinho, o quis rebelde a todas as convenções da época. A primeira característica inovadora foi o uso exclusivo de uvas cultivadas pela nossa firma, nas fazendas que o meu pai andara adquirindo e renovando ao longo dos anos. Uma sequência contínua, do sarmento à garrafa, que hoje está na base de todo vinho de qualidade, mas que então nem todos respeitavam. O segundo desvio da regra – os peritos da época, depois, definiram-no como “genial” – foi justamente casar, com sabedoria, a uva do Chianti Clássico com o Cabernet francês. Foi particularmente importante, no caso, a recuperação da uva Cabernet de Tignanello, que havia sido

tratada com muito descuido na primeira parte do século, também porque, para os meeiros, continuava a ser uma uva estrangeira e não plenamente compreendida. Tornou-se em seguida, e continua a ser até hoje (e acredito que continuará a ser no futuro), um dos melhores bacelos Antinori. Trabalhou-se então no packaging, na apresentação. Até então, o Chianti costumava ser vendido em fiaschi, os típicos recipientes bojudos e empalhados, de até dois litros e meio: ele engarrafou-o nas bordelesas, largas de pescoço e de ombros, para lançar um desafio às idênticas garrafas francesas que tinha visto em Londres, expostas numa vitrine como se fossem joias preciosas. E finalmente o nome. “Eles têm os châteaux? Nós temos as vilas!”, disse a si mesmo o melhor vinhateiro da nossa vigésima quinta geração. E dedicou a sua criatura à propriedade onde muitos Antinori haviam nascido e outros repousavam no oratório do Santíssimo Nome de Maria. Mandar desenhar no primeiro rótulo os contornos da vila também foi, na Itália, uma ideia inovadora e muito bemsucedida. As lendas familiares contam que o desenho foi feito pela minha tia-avó Ernestina Ludolf, irmã de Nathalie Antinori, esposa do meu avô. Atualmente, a vila na Via Pisana já não faz parte do patrimônio da família. Ferida de morte pelos bombardeios aliados, depois cercada de fábricas e galpões a partir da década de 1970 (antigamente, dali a vista alcançava, livre, as abóbadas e as torres dos

sinos de Florença), acabou sendo excluída da área geográfica da denominação Chianti Clássico. Pertence agora a uma família de empreendedores rurais. O Villa Antinori, no entanto, ainda existe. Um tinto tradicional mas elegante, que continua a ser apreciado por todas as partes. É, aliás, um dos nossos vinhos mais conhecidos. Também porque continuamos a melhorá-lo, e a sua plena maturidade só acaba de começar. A partir de 2001 dedicamo-nos à sua evolução (mas sem desfigurá-lo, e sem mudar nem um tiquinho o seu rótulo), tornando-o um IGT (Indicação Geográfica Típica) Toscana. É, para mim, o vinho da tradição e das recordações, o que liga a Marchesi Antinori de hoje aos longos séculos em que os meus antepassados produziram e comercializaram fiaschi na Itália e no exterior. Um dos modelos de que nasceram os rótulos com que a família mudou a história do Chianti. E, em parte, a história do vinho. Como aconteceu com o Tignanello nos meus anos 1960, o Villa Antinori relançou a nossa aventura justamente quando, para nós, tudo parecia estar acabado. “A firma vinícola da família tinha frágeis estruturas e um futuro extremamente incerto”, escreveu meu pai a respeito dos primeiros anos da sua formação. Sim, é claro, o nosso nome já era conhecido na Itália pelos seus vinhos. E em 1873 o marquês Niccolò, avô do meu pai, tinha até conseguido um diploma de honra na Exposição Universal de Viena por seu trabalho de pequeno produtor e negociante de vinho. Mas

quase nada deixava prever uma visão de longo prazo e em larga escala para as adegas. Na firma constituída em 1895, como já vimos, cabia a Guglielmo Guerrini cuidar das questões burocráticas e administrativas. No entender do meu pai, este nosso rabugento parente foi, por um lado, o primeiro a lançar as bases de um empreendimento moderno, e, por outro, aquele que refreou por muito tempo a sua evolução. Descendente de uma antiga família romana de banqueiros, de visão um tanto limitada e alheio a reformas e melhorias, a sua ideia de reunião de trabalho era fechar-se numa sala e distribuir ordens e indicações pedantes e taxativas a filhos e netos, a maioria dos quais começou então a odiar a marca e o vinho, escolhendo em seguida outros caminhos. Para piorar ainda mais as coisas, Piero e Lodovico não demoraram a se separar. Um escolheu terras e campinas, o outro as adegas e a atividade vinícola. Resumindo, antes de “conformar-se” com seu destino de viticultor, e antes de conseguir da geração anterior a direção das adegas, meu pai foi soldado, voluntário para as trincheiras da Primeira Guerra Mundial, e depois representante comercial, sempre de viagem para algum lugar. Muitas vezes duvidando que algum dia chegaria a produzir um vinho dele na vida. Mas, ao contrário… Hoje o family business, aquele tipo de firma todo particular em que a propriedade fica por várias gerações nas mãos da

mesma família, é objeto de numerosos estudos. Já foi estatisticamente comprovado que se trata de uma estrutura frágil. Segundo duas pesquisas do fim da década de 1990, uma suíça e outra inglesa, 40% das firmas de cunho familiar decaem e se perdem na passagem entre a primeira e a segunda geração. Só 15% sobrevivem a este salto geracional. Isto porque, normalmente, entre os herdeiros naturais falta um digno sucessor, em termos de paixão, preparo, carisma e dedicação. Ou então porque uma sucessão cansada e automática gera estagnação: agarradas a seus brasões, as dinastias não crescem nem inovam; só se limitam a clonar a si mesmas no tempo, à sombra de um chefe patriarcal que adia infinitamente aposentadoria e sucessão. E também há as rivalidades internas. Quase sempre entre os membros da mesma geração. Aconteceu com o meu pai, aconteceu comigo. É igualmente aceito, no entanto, que esta fórmula, no caso de ter enfrentado com sucesso o tempo, tem produzido riqueza e progresso nas épocas mais variadas e nos tipos mais diferentes de sociedade. Desde Manhattan até os países emergentes. Nos últimos anos os estudiosos de economia chegaram até a elaborar uma espécie de “teoria do family business”. Atualmente, afirma-se que manter o know-how e o poder decisório num reduzido círculo ligado a interesses pessoais, e não somente econômicos, que se renovam nas gerações, tende a formar um sistema de conhecimentos, de experiências e práticas muito coeso e

criativo. Uma energia alimentada pela paixão e pela tradição e aperfeiçoada no tempo, provavelmente não reproduzível através de outras formas de gerenciamento. É preciso que existam, no entanto, sólidas bases. John Davis, da Business School de Harvard, que desde sempre estuda a capacidade das firmas de persistir no tempo, explica: “No fim de cada geração as empresas familiares precisam ter construído uma reserva de confiança, orgulho e dinheiro que possa garantir à geração sucessiva a continuidade do negócio e o espírito familiar.” Mas chega de teoria. Sou o vigésimo quinto descendente da marca da família. Vivo 832 anos depois do primeiro documento oficial com o sobrenome Antinori, um pergaminho que registra uma passagem de propriedade entre um Accarisio Antinori de Cambiate e o mosteiro de San Michele em Passignano. Construo adegas 626 anos depois da entrada da minha família na “associação de setor” do vinho. Mostram-me uma lista internacional compilada em fins de 2008 justamente sobre este assunto pela Family Business Magazine, uma revista de história econômica de Filadélfia: salientam que estamos em décimo lugar entre as empresasdinastia mais antigas do globo. No primeiro lugar há um clã japonês que vem construindo templos budistas há 1.429 anos, e cujas quarenta gerações estão mencionadas num rolo de três metros de comprimento. Já fiquei pensando, junto com as minhas filhas: “E por que não?” Como foi

possível que guerras, convulsões políticas e desastres financeiros, sem contar as brigas familiares e as diferenças de caráter e de vocação entre os inúmeros Antinori que se sucederam, não conseguiram em sete séculos romper este fio? De alguma forma, o lugar onde vivemos e crescemos teve a sua influência. Pode parecer improvável, mas, entre todas as civilizações, raças e nações que existem e existiram no mundo, neste “mostruário de longevidade”, nada menos que cinco vezes aparecem famílias que nasceram e floresceram na nossa península. Histórias italianas que começaram antes mesmo que a Itália existisse, a não ser na mente de Dante Alighieri e de mais uns poucos iluminados. E poderíamos então lembrar a importância que sempre tiveram na nossa cultura a família, o senso da tradição, o respeito pelos mais velhos… Mas há algo mais. Vamos dar mais uma olhada neste desfile de casas bem-sucedidas: entre as muitas e mais variadas atividades do homem há nada menos que três famílias, entre as dez primeiras, que há séculos escolheram se dedicar ao mesmo, idêntico setor: o vinho. Os franceses De Goulaine, os nossos vizinhos Ricasoli (que nos anos 1990 voltaram a tomar em suas mãos a empresa do mesmo nome) e nós. Deixando de lado as classificações oficiais, não podemos esquecer outras famílias do vinho de longa tradição, como os Frescobaldi e os Mazzei, cujo antepassado

Filippo Mazzei colaborou com Thomas Jefferson na realização de uma vinha na Virgínia. Será que o segredo é o vinho que vence o tempo, prendendo-nos com um fio vermelho a homens e mulheres que viveram três, quatro ou cinco séculos atrás? Os Antinori foram comerciantes de seda e lã, banqueiros, diplomatas e artistas, estudiosos e guerreiros. Mas, como pano de fundo das suas existências, sempre houve o sumo da uva, que a partir de meados do século XVI se torna uma das suas atividades principais. Penso em Alessandro di Niccolò, financista daquela época, que emprestava dinheiro aos reis franceses, vendia trigo e seda, e que chegou a pedir o apoio do grãoduque Cosimo de’ Medici a propósito de uma remessa de malvasia confiscada em Messina por razões bélicas. Ou em Filippo Antinori, que tentou entrar no mercado do vinho a varejo no Estado da Igreja. Ou nos Antinori dos séculos XVIII e XIX que, entre outras coisas, derrotaram a filoxera e começaram a produzir os melhores vinhos da Toscana. Celebrados por poetas e cortesãos. Procuro pensar um pouco no meu caso, em suas histórias. Como acontece na nossa família, o vinho é um filete vermelho que corre ao longo de toda a minha vida, ligando a criança que fui ao homem de hoje. Comecei a experimentá-lo quando tinha 5 ou 6 anos. Um Chianti qualquer, sem nome. Vinho misturado com um pouco de

água, como se costumava fazer com os miúdos nos dias de festa. Uma espécie de iniciação pela qual passavam, então, todas as crianças toscanas. Assim como, naquele tempo, não havia sobremesa mais almejada pela meninada do que um pedaço de pão molhado no vinho tinto e salpicado de açúcar. Desde aqueles longínquos momentos o vinho se associou na minha sensibilidade a tudo aquilo que há de aprazível na vida. Ainda antes disso, talvez eu já tivesse aprendido a reconhecer o cheiro das nossas uvas pretas. Uva Sangiovese, de belos cachos negros, espessos e pesados. Aquela que dali a pouco iria produzir todos os grandes tintos toscanos. Uma uva já cultivada, amada e cantada pelos romanos e, antes deles, pelos etruscos. Racemos de estirpe divina. O nome, extremamente antigo, nada tem a ver com os santos do calendário cristão: vem do latim sanguis Jovis, o sangue de Júpiter, pai dos deuses. Em outubro o cheiro do Sangiovese explodia em todos os nossos campos. Estava nas vinhas, entre as fileiras, nas colinas aonde eu ia caçar com meu pai. Ele gostava de caçar com seus cães, saindo de manhã bem cedo com os amigos, com grandes cestas cheias de coisas boas de comer e beber. Naquele tempo, no começo de outubro, era uma verdadeira cerimônia de família parar para saborear, tirando-a diretamente dos sarmentos, a nossa uva doce e madura. Então, numa manhã no fim de 1944 (eu acabava de completar 6 anos) descemos de bicicleta de Montefiridolfi

para a propriedade de Santa Cristina a Tignanello, no Chianti. Meu pai recebeu um apreensivo telefonema de San Casciano Val di Pesa. Era onde, desde 1898, ficavam as nossas adegas. Aquelas que Piero e Lodovico Antinori haviam imaginado como coração da moderna empresa para reunir as atividades familiares ligadas ao vinho, que, com o passar dos séculos, se haviam tornado dispersas e desordenadas. Em seu escuro frescor, o meu avô e o meu pai haviam experimentado por anos a fio novos métodos de vinificação e envelhecimento dos vinhos. Encontramos uma velha charrete e uma parelha de cavalos. Saímos a toda e, já a um quilômetro de distância, percebemos que o ar estava saturado de cheiro de vinho e de mosto. Eram dias em que a minha terra experimentava as últimas e convulsas sequelas da guerra. Perseguidos pelos Aliados, que iam entrar em San Casciano depois de sujeitála a longos canhoneios e a dois bombardeios, os alemães estavam se retirando em debandada. Eram tempos terríveis para a Toscana. Por todas as partes os sinais da devastação e do saque feriam a paisagem do Chianti. Muitos edifícios haviam sido derrubados com explosivos, as campinas estavam salpicadas de minas e escombros. Lembro que, quando a tempestade finalmente passou, alguém calculou que mais da metade dos prédios do território municipal estavam destruídos ou danificados. Seja pelas bombas aliadas, seja pela fúria dos alemães derrotados e perseguidos. E não só as casas, mas também torres de

sinos, igrejas, castelos, aldeias medievais. E, justamente, a nossa vila de família, cuja única culpa era estar perto de uma central elétrica. Objetivo militar. Nas Adegas de San Casciano – as pessoas do lugar continuam até hoje a chamá-las simplesmente “as Adegas” – os alemães, à cata de homens e mantimentos, tinham encontrado tonéis de Chianti Clássico e paredes inteiras de garrafas empilhadas a envelhecer, indefesas e ignaras de guerras e armistícios. Não dispondo de tempo para apreciálos nem de meios para levá-las consigo para a Alemanha, os soldados haviam decidido atacá-los, aos tonéis e garrafas, a rajadas de metralhadora. Sistematicamente. Para que o inimigo tampouco pudesse aproveitá-los. Em seus papéis o meu pai menciona os prejuízos daquela violência insensata: “Um galpão derrubado, prédios destelhados, equipamentos destruídos…” E, por todas as partes, regatos de tinto que goteja e empoça. Embebe a terra. Perdido e desperdiçado. Aquele cheiro de Chianti imaturo que impregna todas as coisas, cheiro de destruição, cheiro de anos de trabalho e de dedicação queimados sem motivo, é para mim uma lembrança indelével. Ainda experimento aquela sensação de algo profundamente errado. E que precisava ser consertado. Troquei uns olhares com o meu pai, que naquele momento quisera com decisão a minha presença ali. E os seus olhos diziam: algum dia, um bom vinho voltará a encher estas adegas. Um vinho melhor, aliás. O vinho, aprendi, é esperança, projeto e responsabilidade.

O meu foi, portanto, um lento treinamento no mundo do vinho e dos seus segredos. Um mundo de beleza, trabalho e diversão também, onde o percurso de ajudante a futuro guia da firma seguia adiante sem solavancos. Por volta dos 15 anos, comecei a estudar e a degustar com seriedade os vinhos, primeiro os italianos, depois os do mundo inteiro. Com a mesma idade, passei a acompanhar as diversas fases da vindima e da vinificação nas nossas propriedades e adegas. Nas minhas lembranças, assim como na memória de todos os Antinori, reluzem inúmeras, extraordinárias vindimas no Chianti. Quase me parece reviver uma delas, logo antes da última guerra, quando pela primeira vez aprendi a amar o cheiro único do mosto em fermentação nos tonéis. O odor daquele processo misterioso durante o qual o aroma original do mosto se torna um intenso e fragrante perfume vinoso. Nos anos seguintes, enquanto a firma se recuperava e as adegas – que, depois da guerra, tiveram até de hospedar os jipes das tropas canadenses – voltavam a encher-se de garrafas íntegras, também houve o liceu clássico em Florença e então a faculdade. Tinha pensado em agronomia, mas o meu pai me aconselhou economia e comércio (“Bons técnicos há muitos, aqui as empresas estão indo à falência porque não sabem fazer as contas!”). Ainda bem que o professor Roberto Bracco – um luminar de direito comercial, um florentino brilhante que também foi presidente da Câmara de Comércio e da Banca Toscana – me abrigou sob

a sua asa protetora e pensou para mim uma tese sobre o setor agrícola. Foram, de qualquer maneira, quatro anos de estudos, aulas, exames sem muito entusiasmo. Acho até que nem sequer cheguei a pegar o meu diploma de formatura. Foi mais uma experiência útil para a minha formação, mas eu já tinha compreendido que o meu destino apontava para outra direção. Bem diferentes, e de outro tipo, eram os exames que eu tencionava enfrentar. Lembro que ao longo dos anos de faculdade comecei a meter o nariz com cada vez maior insistência nos escritórios da empresa. Como estudante aprendiz, fazia um pouco de tudo e cuidava, amiúde, da correspondência. Os computadores ainda estavam num futuro distante. Era a época das máquinas de escrever tiquetaqueantes e do papel carbono. Até parece que ainda estou lendo a linguagem estereotipada e cheia de cerimônias daquelas missivas de trabalho. Todas as cartas começavam com fórmulas automáticas, tais como “Senza pregiata Sua a riscontrare” [Sem apreciada Sua a registrar], que fiquei usando e copiando durante anos, sem nem sequer saber ao certo o que queria dizer. Assim que podia, no entanto, fugia da escrivaninha onde se controlavam contas e balanços e ia pôr o nariz entre as mesas do “setor comercial”, entre as cartas que chegavam de todos os cantos do mundo e as guias de uvas e vinhos que chegavam ou partiam.

Como acho que aconteceu depois com as minhas filhas, não me lembro de ter ficado particularmente ansioso diante das crescentes responsabilidades. Apesar de eu ser o primogênito. Talvez isto tenha acontecido porque, embora separados por uma distância de muitos anos – ele era de 1898, eu de 1938 –, sempre mantive um ótimo relacionamento com o meu pai. E ele sempre teve a maior confiança em mim. Ou talvez porque este ofício, antes mesmo de eu entender direito em que consistia, sempre me pareceu mais um privilégio que um dever. Depois de 45 anos sentado à grande escrivaninha do palácio Antinori, não consigo imaginar outra profissão tão prazerosa e satisfatória. Os Antinori sempre trataram o vinho com respeito, e o vinho sempre retribuiu com existências agradáveis e intensas. Na experiência da alta vinicultura há de tudo: a tradição, o contato direto com a terra e a natureza, a arte da hospitalidade e dos pequenos prazeres cotidianos. Há a possibilidade de frequentar uma comunidade a esta altura internacional, a do vinho, composta quase sempre por pessoas interessantes, agradáveis e criativas. Há as viagens, a possibilidade de ver os mais lindos lugares dos cinco continentes (a uva, como já disse, sempre escolhe lugares bonitos para dar o melhor de si). Gosto de viajar. Principalmente de uns 15 anos para cá, desde que o mercado começou a ampliar-se e nós multiplicamos as participações, as assessorias e as colaborações e, quando

possível, as compras de terrenos no exterior onde dar início à produção do nosso vinho. Há viagens de rotina para lugares distantes que já chamo de “casa”. Pelo menos duas ou três vezes por ano é preciso visitar os nossos vinhedos nos Estados Unidos. Pelo menos uma vez por ano estou na Ásia, medindo a pressão dos novos mercados. Não falto a nenhum dos grandes eventos vinícolas. Mas também há as viagens de exploração, em busca de boas terras e de boas ideias. São as que muitas vezes faço com os meus enólogos de confiança. Primeiro Giacomo Tachis, e depois Renzo Cotarella. Viajar abre a mente. E foi viajando que o meu tirocínio na Antinori passou a ser para valer. Depois de um longo aprendizado como “inspetor” (agora são chamados “chefes de área”) da firma por toda a Itália, primeiro no Lácio e na Campânia, e depois na Lombardia, no começo da década de 1960 eu estava programado para uma visita completa aos nossos importadores de Nova York. Bem em cima da hora o meu pai pediu que passasse primeiro por Toronto, a fim de encontrar o nosso novo importador para o Canadá, escolhido por via epistolar, mas ainda não conhecido pessoalmente por ninguém da família. Talvez meu pai quisesse ver se (e como) eu era capaz de avaliar as pessoas que trabalham para nós. Principalmente aqueles que levavam pelo mundo o nosso nome. Fico então conhecendo esse polaco tagarela cujo nome soava mais ou menos Simonovic. Vai logo explicando que

representa naquela nação imensa toda uma série de importantes firmas italianas da época. Entre as quais o Cavallino Rosso, um brandy então muito na onda, mito dos primeiros “Carosello”.[1] Em outras palavras, até que o senhor Simonovic tinha as credenciais certas. Conversamos um pouco, e então ele me propõe esticar a minha permanência canadense para visitarmos, juntos, os principais monopólios (no Canadá, até hoje, os produtos alcoólicos estão sob controle direto do Estado) nas diferentes províncias. Aceito, principalmente para aprender alguma coisa deste complexo mercado. Mas há um problema: os dólares previstos para a expedição além-mar esperam por mim em Nova York. O desvio canadense, com efeito, só havia sido decidido em cima da hora e devia ser breve. Em resumo, estou sem dinheiro para enfrentar a primeira tournée importante fora da minha terra. Ligo para o meu pai. Ele responde sem pensar duas vezes: “Pergunte se o nosso homem pode adiantar a quantia.” “Sem problema”, é a pronta resposta do nosso neoimportador, “vamos fazer as contas depois.” Estamos combinados. Mas não levo mais que uns dois dias para começar a ficar preocupado, o tempo de descobrir que o meu anfitrião tem uma queda por gostos extravagantes e dispendiosos: hotéis de luxo, caviar, champanhe… Exagero demais para a viagem de trabalho de um jovem ainda inexperiente. Não posso certamente oporme às suas escolhas. Mas já me preocupo com a conta final,

provavelmente em desacordo com os nossos frugais hábitos empresariais. A nossa ainda era uma firma de porte médiopequeno; certas quantias iriam provavelmente deixar meu pai de cabelo em pé. Além do mais, nem tudo me convence no meu acompanhante, a começar pela sua real competência acerca dos vinhos que vamos apresentando, uma cidade após outra, aos dirigentes dos vários monopólios. Montreal, Calgary, Winnipeg, Regina, capital provincial do Saskatchewan. Foi uma viagem exótica por lugares onde o vinho italiano, aliás o vinho em geral, ainda era um objeto misterioso. Como já mencionei, naquele tempo, assim como hoje, quem quisesse vender na Federação tinha de entrar numa lista especial, mantida num específico escritório em cada capital de província. No fim da nossa “travessia” canadense encontramos o responsável pelo escritório dos monopólios de Victoria. Era um velho oficial inglês aposentado, um tal de Coronel McCougan, chegado àquela escrivaninha depois de sabe-se lá que vida aventurosa nos quatro cantos do Commonwealth. Uma vida amenizada por muito uísque e gim, imagino. Porque, depois de uma hora passada tentando despertar o seu entusiasmo pelos nossos rótulos, lançou-me uma olhada cética e sentenciou: “Não há futuro para o vinho no Canadá, meu rapaz.” Gosto de me lembrar dele hoje, num mundo diferente em que os vinhos italianos, em 2010, superaram pela primeira vez a França nas exportações para o grande país norte-americano.

Mas chegou a hora de enfrentar com o bom Simonovic o assunto despesas, antes da minha partida para Nova York. Já preparado para receber a conta com fingida indiferença, lá estou eu esperando pelo homem na sala do hotel na hora do café da manhã. Mas então vem a surpresa: o polonês já foi embora, deixou o quarto de armas e bagagens há mais de uma hora e pagou a conta; e na maior pressa. Vagamente pasmado diante da estranha situação, e um tanto chateado por não poder saldar uma dívida que me incomodava, só podia voar para Manhattan para dar continuidade ao meu período de aprendizagem esperando que, mais cedo ou mais tarde, o sujeito voltasse a aparecer. Nada; por toda a duração da minha primeira missão do outro lado do oceano, nenhuma notícia dele. Viajo de volta à Itália e logo escrevo ao nosso importador para receber a bendita conta. E fico esperando a resposta. Fico vários meses perguntando se por acaso chegou de lá uma carta para mim. Silêncio absoluto. Não me parecia correto deixar passar em brancas nuvens uma dívida com um colaborador estrangeiro. Nunca faria uma coisa dessas o atrevido Vanni di Filippo Antinori, manager da alta Idade Média, nem Alessandro di Niccolò, que no século XVI já tinha um escritório comercial em Toledo e negociava barris com Djerba e Argel. Decido escrever diretamente à nossa embaixada no Canadá, pedindo um novo endereço ou qualquer tipo de notícia recente do cerimonioso polaco que afirmava representar in loco o made in Italy. Até a

representação diplomática, no entanto, contemporiza. Então, a incrível notícia. Quando finalmente se dão conta da pessoa a que estou me referindo, vem à tona que o tal sujeito, o polonês do Cavallino Rosso, que nunca me convencera plenamente, sumiu sem deixar pistas, provavelmente do outro lado da “cortina”. Do outro lado da “cortina”? Isto mesmo, pois de fato parece que esse espalhafatoso Simonovic era na verdade um agente da KGB, que provavelmente fugira do Canadá por ter sido descoberto e procurado. Um espião russo hedonista, em resumo, com uma queda pela enologia e notável conhecimento da língua italiana. Nunca mais perguntei acerca da minha dívida. E a quem, além do mais? Pois é, nem todos podem dizer que viajaram, pernoitaram, beberam e comeram como um nababo à custa dos serviços secretos soviéticos! Ainda lembro, alguns anos depois, uma longa viagem pela Suécia e pela Finlândia, eles também países de monopólio, onde é preciso se registrar nas listas para poder vender. O nosso agente lá era um homão grandalhão e pesado. E bom de copo; arruinou o meu estômago com as misturas alcoólicas locais. Houve então uma escala na Inglaterra, à qual se seguiram outras na Bélgica e na Alemanha. Os alemães, naquela época, não eram lá muito dados aos vinhos italianos. Só tinham mercado aqueles garrafões de tampinha de rosca, comprados pelos nossos emigrantes.

Para eles, o vinho da terrinha só servia para esquecer a monotonia das fábricas ou das minas, uma espécie de estímulo para a saudade. Entre os apreciadores mais sérios, por sua vez, a imagem do vinho italiano não podia ser pior, ainda mais quando comparado com as célebres, e mais próximas, garrafas de Bordô. Já fazia algum tempo que tentávamos entrar naquele mercado, mas sem muito sucesso. Faltava-nos credibilidade, um sponsor de peso. Alguém que se desse conta dos progressos que, havia meio século, estávamos fazendo nas nossas adegas. Procurei um representante competente e conhecido, perito em vinhos de qualidade (naquele tempo, eram todos franceses). Encontrei a pessoa e a firma adequada para a finalidade, muito conhecida e influente. Perfeita para dar uma nova imagem aos nossos rótulos. Sucede porém que, quando lhe escrevi, o senhor Michael Bömers, titular da Reidemeister & Ulrich, então a mais importante firma de importação e distribuição vinícola na Alemanha, deixou logo bem claro que não estava particularmente interessado na produção itálica, talvez não a considerando à altura da sua marca. Insisti num esclarecimento pessoal. Era este o motivo da minha escala em Bremen, bem no coração do “território inimigo”. Estamos falando da cidade portuária onde, desde sempre, desembarcavam, de grandes barcaças que desciam pelo rio Weser, os invencíveis grands crus franceses, para ser então endereçados às adegas e às mesas dos alemães mais requintados.

Mas havia um antecedente. Só na noite anterior, em Londres, durante o meu breve desvio britânico, eu tinha participado de um jantar beneficente. Naquela época, na Inglaterra éramos muito mais queridos: foi um dos primeiros países estrangeiros a apreciar o que estava nascendo nas nossas propriedades. Depois de tomar o lugar na mesa dos nossos importadores, fora-me apresentada uma escolha de vinhos realmente rebuscada. Eram todos excelentes e, em sua maioria, mais uma vez falavam francês. Uma garrafa, no entanto, foi para mim algo mais. Uma onda de prazer, de consciência de ter encontrado a perfeição. Refiro-me a um dos melhores vinhos que já me aconteceu provar. Uma experiência tão intensa, que a etiqueta ficou gravada na minha mente, onde a reencontro, perfeitamente legível, quarenta anos depois. Tratava-se de um Château La Mission Haut-Brion de 1959. Um Graves. Uma safra, a de 1959, celebrada até hoje pelas suas extraordinárias características qualitativas. Bremen. Os anfitriões teutônicos anunciam, educadíssimos, que irão tratar de negócios durante um almoço de trabalho. Estamos no escritório deles. Na escrivaninha está perfilada uma pequena escolha de tintos. Três ou quatro. Todos em jarros, sem rótulo nem demais indicações. Um hábito local? Duvido imediatamente de que se trate de vinhos baratos, de taberna. Será que os cavalheiros alemães, até só para levar em consideração a ideia de perderem seu tempo comigo, estão querendo me

pôr à prova? Tencionam averiguar se nós, bárbaros vinhateiros do Chianti, sabemos mesmo alguma coisa a respeito de vinhos? O primeiro é, de qualquer maneira, um tinto toscano clássico, aliás o nosso clássico. O grande vinho renovado por meu pai. Um Villa Antinori de 1967. Entre as outras coisas, aquela fora justamente a “minha” primeira vindima, após ter assumido a completa responsabilidade pela firma um ano antes. O meu verdadeiro batismo de vinhateiro, abençoado por um outono de Sangiovese extraordinário. Como é reconfortante encontrá-lo ali, bem no meio do país da cerveja! Reconheço-o no primeiro gole. Só faltava essa! Será que os meus interlocutores achavam que eu teria problemas até para identificar o tinto com o qual crescera? E começam a olhar para mim de forma um tanto diferente. – Prove este, então. Se for um exame, estou indo bem. O segundo vinho, no entanto, é mais difícil. Hesito. Observam-me, indagadores, Michael Böhmers em pessoa, um grande conhecedor com o qual, depois, trabalhamos por longos anos, e o seu encarregado de compras. Os dois estão provavelmente satisfeitos com a pequena cilada que armaram para o jovem e inexperiente vinheiro mediterrâneo. “O primeiro copo era uma brincadeira”, devem ter pensado, “vamos ver como você se sai dessa agora.” Dou um pequeno gole. Fico concentrado. – Um Bordô!

– É claro – condescendem –, mas há muitos vinhos de Bordéus. – Margem esquerda – arrisco. E enquanto isso, na minha mente, começa a brilhar uma luz. Mas sim, claro! É ele mesmo, o vinho que umas poucas horas antes tanto me impressionara em Londres. Quase na certa, pelo menos. – A margem esquerda é grande – respondem. – Poderia ser um Graves… – Ótimo! E então percebo que os tenho nas mãos. Faço então um pouco de cena, rodando devagar o líquido vermelho no vidro e examinando o copo contra a luz… – La Mission Haut-Brion! Os dois estão pasmados: – E… saberia também dizer de que ano? – 1959! Naquela tarde assinaram o contrato conosco. Coisa que, agora tenho certeza, naquela manhã não tinham a menor intenção de fazer. O deus Baco havia sido mais uma vez benévolo com um Antinori. Gostaria de dar, a esta altura, um salto de meio século para o futuro e lembrar que, atualmente, os alemães estão entre os nossos maiores importadores. Quanto ao mito inabalável da excelência francesa, é de junho de 2011 a notícia de que ao longo de 2010 a Itália, até os anos 1960 na periferia do vinho de elite, superou os transalpinos

justamente na produção vinícola. Isso mesmo. Pelos dados oficiais da Comissão Europeia, somos o primeiro produtor mundial de vinho: 49.600.000 hectolitros contra 46.200.000 dos nossos vizinhos. Já em 2002 acontecera a ultrapassagem no maior mercado vinícola fora da Europa, o dos Estados Unidos, para onde desde então, sorte nossa, o aumento das nossas exportações nunca parou. E, se alguém sugerir que não se pode confundir quantidade com qualidade, acrescento que superamos os mestres de Bordéus até na primazia das denominações DOC, IGT e DOCG.[2] Tudo num momento em que muitos diminuem a produção por não conseguir expandir seus mercados. Enquanto isso, em Florença, com a década de 1960 chegara a hora de providenciar a minha gradual entrada na cúpula da firma. Meu pai e eu pensávamos num percurso de uns quatro ou cinco anos, incluindo uma longa pausa longe de tonéis e livros de contabilidade: depois de muito penar – tivera de juntar inúmeros papéis e documentos –, eu estava a ponto de realizar um meu antigo desejo, o serviço militar na aeronáutica, partindo com um histórico grupo de amigos florentinos. A vida a serviço das armas sempre foi, também, um traço importante na nossa história familiar, mesmo sem incomodar o Morticino, aquele Giovan Francesco nosso parente, figura discutida e sombria mas também, ao que parece, habilidoso mercenário que sobressaiu na defesa de

Florença de 1530, quando a cidade foi sitiada pelo imperador Carlos de Habsburgo. O meu bisavô Niccolò portara-se como herói contra os austríacos em 1848, na batalha de Curtatone e Montanara, durante a primeira guerra de independência italiana. O meu pai participara como voluntário da Primeira Guerra Mundial, vivendo pessoalmente a retirada de Caporetto e, como oficial de ligação, a batalha do Piave, até a entrada festiva entre duas alas de povo, em fins de 1918, numa Trieste que se tornava finalmente italiana. Era, em resumo, uma experiência que me atraía e que eu procurara com determinação. Mas lá aparece um daqueles acontecimentos que às vezes aceleram e mudam as existências e as histórias. Vamos chamá-los desafios, entraves que só se podem desatar trocando de passo e perspectivas. Naqueles anos, o braço direito do meu pai era Vincenzo Benazzi. Incansável trabalhador da região de Romanha, tinha atrás de si toda uma vida passada entre vinhos de mesa e por atacado, com os quais tinha viajado, como pequeno comerciante, pela Itália inteira. Após chegar, por caminhos de que não me lembro, à firma Antinori, distinguira-se pelo empenho de verdadeiro self-made man e pelo conhecimento do ofício. Podemos dizer que naquele momento, no seu papel de administrador, quem fazia a empresa funcionar era ele. Na sala ao fundo do pátio do nosso palácio florentino, sentavase atrás da grande escrivaninha. Eu ficava ao lado, a uma

menor, da qual o assistia e, em parte, o estudava. E quanto mais estudava, mais me convencia de que o caminho por seguir era um tanto diferente. Já estava claro na minha mente que só podíamos crescer com vinhos de qualidade. Garrafas que as pessoas pudessem escolher entre tantas outras, e guardar e lembrar. O meu “chefe”, por sua vez, parecia-me ainda vir do planeta dos vinhos “de massa”, onde a melhor adega era aquela que produzia mais, no menor tempo possível e ao custo mais reduzido. Um lugar onde a cultura do vinho de luxo era realmente… um luxo. Parecia-me até que no nosso escritório pairava o cheiro daquele vinho pobre, que nos nossos campos foi por muitos séculos consolo durante o trabalho, remédio para qualquer doença e companheiro que suavizava a noite. E a paixão? E aquele Vinho Perfeito que algum dia eu sonhava em ver amadurecer, lentamente e com arte, nas nossas adegas? Em muitos casos, naqueles dias, eu teria feito escolhas diferentes das dele. Mas havia hierarquias e tempos por respeitar. O bom Benazzi reinava no caderninho dos contatos, naquela esfera para mim ainda misteriosa da burocracia e dos balanços. Sentia-me levado para aquele trabalho, mas talvez a segurança em mim mesmo ainda tivesse de se desenvolver e amadurecer. O primeiro aviso chegou de um representante nosso na Itália central: depois de abrir uma garrafa nossa, alguém tinha passado mal. Possível? Procuramos saber mais.

Tratava-se, na verdade, de um pequeno enjoo. E quem podia demonstrar que havia sido causado justamente pelo nosso vinho? Procuramos redimensionar a coisa, e acabamos esquecendo o assunto. Mas lá começaram a chegar novas reclamações de outras regiões da península. E então uma cena que não pudemos ignorar: Benazzi em pessoa, administrador delegado na ativa, no fim da costumeira pausa para o almoço na Cantinetta com um sanduíche e um copo de vinho (tudo rigorosamente da casa), admitiu não se sentir muito bem. Foi imediatamente acionada a investigação interna. E não demoramos a identificar o culpado num saco meio vazio abandonado numa das adegas. Naquele tempo o “biológico” era algo que nem se imaginava; vagas eram as regras sobre a produção, e os enólogos, atualmente cada vez mais expertos em levedos e bactérias, eram um cruzamento entre químico e aprendiz de feiticeiro. Lembro que a principal tarefa deles era estabilizar de alguma forma os vinhos para prepará-los para a exportação e o envelhecimento, ao fim de um processo de vinificação “industrial” que, naquela época e na maioria dos casos, era aproximativo e improvisado. Com esta finalidade, era então comum usar o tartarato de potássio. Descobrimos, no entanto, tarde demais, que a substância tinha um temível “irmão gêmeo”: um tartarato com o mesmo aspecto, mas com um poderoso poder emético. O nosso fornecedor, uma

famosa firma de Milão que agora não vale a pena mencionar, confundira-se na hora de fazer a remessa. Foi o pânico. Naquela época ainda não se falava em possibilidade de remontar ao responsável do produto. Quantos e quais eram os Chianti “vomitórios”? Onde haviam sido vendidos? Paramos todas as demais atividades, e, por uns dois meses, todos os nossos funcionários foram mandados viajar pelo país a fim de experimentar garrafas com a ordem, no caso de haver até a mais vaga suspeita de contaminação, de retirá-las do mercado. Nas aflitivas semanas que se seguiram, milhares de garrafas inocentes foram talvez destruídas inutilmente. Dessa forma, o relacionamento com muitos dos nossos bons e tradicionais distribuidores ficou seriamente comprometido. A notícia começou a circular. Mais umas poucas semanas, e a marca Antinori ficou à beira do desastre. Precisávamos de uma guinada decisiva. O nosso administrador estava perto da aposentadoria. O erro, de qualquer maneira, apontava para ele. Benazzi decidiu, com gesto nobre e generoso, assumir a completa responsabilidade do infortúnio. E, após receber o que lhe era devido, saiu de cena. A emergência tartarato parecia superada, mas o meu pai, agora, estava com um problema. Onde encontrar outro administrador para aquela escrivaninha àquela altura tão incômoda? Estava com 68 anos, eu tinha 28, de saída para servir na aeronáutica.

– É a sua vez – disse –, a partir de agora os Antinori têm de assumir. Só levou uns poucos dias para eu descobrir uma lei pela qual, como filho primogênito de pai idoso, eu podia evitar o alistamento, coisa que afinal de contas não me deixou nem um pouco satisfeito. Mas foi isto. Em lugar de uma lenta e progressiva tomada de poderes, fui forçado a pular acrobaticamente de funcionário a diretor e a imagem pública da casa. Em lugar de uma investidura solene, um batismo de fogo. O meu pai, na época dele, tinha sofrido e esperneado muito antes de chegar à direção da empresa, que queria reformular à sua imagem e semelhança. Eu cheguei lá, talvez, antes do devido tempo. Estávamos em 1966. A Itália estava em pleno boom econômico. Para o vinho foi um ano excepcional, e na Borgonha foram vinificados alguns dos melhores brancos de todos os tempos. Ia concluir-se aquele ano com o funesto novembro da inundação de Florença. Com seis metros de água no centro histórico, dezenas de vítimas, as obras dos Uffizi cobertas de óleo diesel, e tantas garrafas centenárias, guardadas na adega do nosso palácio, destruídas pela violência da enchente. Mas também foram dias em que o mundo se comoveu com a nossa cidade, quando milhares de jovens da Europa inteira vieram remover a lama e secar ao sol livros e quadros. Para a Toscana começava, de certa forma,

uma época nova. E eu estava lá, vigésimo quinto chefe da família Antinori.

  1 Brandy, e não “cognac”, uma vez que a lei proíbe o uso desta denominação no caso de produtos que não sejam originários daquela região francesa. Quanto a “Carosello”, indica o primeiro, e na época único, programa publicitário da TV italiana. (N. do T.) 2 No intuito de defender o consumidor, criaram-se estas siglas, que significam respectivamente: Denominação de Origem Controlada; Indicação Geográfica Típica; e Denominação de Origem Controlada Garantida. (N. do T.)

III – SOLAIA Cultivar um estilo

Q

uem decidisse abrir, em noite em que houvesse realmente alguma coisa memorável por celebrar, uma

garrafa de Solaia de 1986, de 1982 ou até de 1979 (eu estava com 40 anos, a minha filha Alessia com 4), encontraria um vinho àquela altura “aberto” e desenvolvido, mas ainda com todo o frescor e o fundo “frutado” que tinha quando o colocamos para descansar na adega. Encontraria mais elegância que potência. A perfeição de uma uva internacional, o Cabernet, que aprendeu a falar toscano, como dizia Giacomo Tachis. Por muitos aspectos, o Solaia é o vinho com que eu sonhava. Um gosto que se enobrece com o tempo, como as mais celebradas garrafas francesas, e uma personalidade inconfundível. Encontrá-lo é uma experiência hedonista, mas também um exercício intelectual: vinho de verdadeiros entendidos, o seu significado é intrínseco, precisa ser interpretado. Se o Villa Antinori e o nosso Chianti Clássico Badia a Passignano são afrescos renascentistas, o Solaia é uma obra de arte contemporânea, quase conceitual, eu diria. Que se baseia na essencialidade.

As vinhas de Solaia ficam ao lado das do Tignanello, no canto mais ensolarado da nossa antiga propriedade de Santa Cristina, perto de Mercatale Val di Pesa. Região do Chianti Clássico. Em 1978, depois de uma primavera chuvosa, longa e fria, tivemos ali uma produção excedente de Cabernet, uva que então casávamos com o nosso Sangiovese na produção do Tignanello. Já fazia pelo menos dois anos que aquela vinha nos dava grandes satisfações. Desta vez decidi vinificar a uva excedente à parte, e então engarrafar, acomodar tudo na adega e ficar esperando para ver no que dava. Eram 3.600 garrafas. Aquelas plantas eram relativamente jovens; ninguém fazia ideia do que poderia acontecer com o envelhecimento. E tampouco tínhamos certeza de que o mercado estivesse preparado para um Chianti Clássico feito exclusivamente de uvas forasteiras. Em 1979, lá estamos nós de novo com outra vindima excepcional de Cabernet Sauvignon e de Cabernet Franc. Desta vez, no entanto, somos mais atrevidos: vinificamos, engarrafamos, esperamos o tempo certo e, em 1981, encaminhamos finalmente o nosso vinho franco-toscano para as enotecas. Foi um grande sucesso, tanto que decidimos comercializar também as garrafas “experimentais” do ano anterior, que na adega haviam conseguido uma sábia e boa evolução. Passamos, portanto, a insistir no investimento e a trabalhar nele, aperfeiçoando as doses das duas variedades de uva francófona.

A história, para quem se interessa por enologia, é conhecida. Em 1982 acabamos dando aos Cabernets um sotaque toscano mais marcado, graças a 20% de Sangiovese. Resultou disto um grande vinho de colecionador que até hoje encontro nos principais leilões na Itália e no exterior. Então, em 1997, a primavera e o verão da Toscana foram uma única estação seca e quente, mas não demais, com uma breve e quase imperceptível queda de temperatura em abril. A uva vindimada naquele ano em Solaia, apresentada ao mundo em garrafa em 2000, até hoje perfeita, seria, naquele mesmo ano, o primeiro vinho italiano da história a ocupar o degrau mais alto da classificação internacional das etiquetas, preparada anualmente pela Wine Spectator, a revista enológica de Nova York, uma das autoridades máximas do setor. Uma garrafa italiana de 115 dólares no teto do mundo. Um vinho nascido como experiência que se tornou o tinto de coleção por excelência (Albiera descobriu que em certos estabelecimentos o Solaia é vendido por um preço cinco vezes maior que o nosso preço de venda). Já em 1979 este vinho extremamente nobre confirmava e demonstrava de uma vez por todas várias coisas a todo o ambiente. Primeiro, que de uvas internacionais como o Cabernet Sauvignon e o Cabernet Franc, nascidas na França mas atualmente cultivadas em muitos lugares do mundo, podia nascer um produto marcado por forte identidade territorial, ligado à terra onde tais uvas haviam sido

adotadas e valorizadas com amor. Tornando-se com o passar do tempo, graças ao clima, ao terreno, e às tradições vinícolas locais, algo diferente e único. Era a definitiva ruptura, como veremos depois, de um “sagrado vínculo” bairrista entre uva e território, que tinha caracterizado, e de alguma forma refreado, o setor do vinho italiano dos últimos séculos. Segundo, aquele admiradíssimo Solaia demonstrava que o futuro pertencia aos vinhos que davam mais importância à elegância do que ao vigor, e que era possível conjugar a “potabilidade” com a capacidade de envelhecer longamente e bem, enquanto, até então, se achava que somente os tintos “monumentais” – excessivamente “lígneos”, de elevado teor tânico e de acidez – pudessem enfrentar sem risco muitas estações. Ao contrário, o nosso Solaia oferece frescor e suaves aromas frutados mesmo muitos anos depois da sua vindima. Desabrocha e se desenvolve como qualquer outro vinho do ano, é claro, mas faz isto com graça, com harmonia, sem perder ao longo do caminho a força dos campos e do sol. Como mediador entre tradição e futuro, é um vinho que contribuiu para mudar o mundo da enologia, mas que leva um nome antigo; o topônimo, extremamente toscano, de Solaia estava escondido entre antigos papéis do arquivo de Tignanello e se referia a uma exposição ao sol que, como os vinhateiros da Idade Média já tinham entendido, ali era perfeita.

Nascido, não planejado, num afortunado setembro de mais de trinta vindimas atrás, aperfeiçoado com calma e dedicação, cada vez melhor com a idade, o Solaia envelhece desde então no primeiro nível das adegas de Tignanello, de uvas escolhidas a dedo “um bago depois do outro” só nos melhores anos. E é um puro destilado de tudo aquilo que somos e fazemos. O estilo das modernas adegas Antinori, uma planta semeada pelo meu avô e pelo meu tio, fortalecida e tornada viçosa pelo meu pai, e da qual venho cuidando, ora podando, ora adubando, há mais de meio século. O estilo Antinori, estilo empresarial e estilo de vida, é feito de uma multidão de pequenos elementos, cada um indispensável para a qualidade final do meu trabalho. Um modelo, um protocolo aperfeiçoado e transmitido de uma geração a outra. Se eu tivesse de reduzir esta “receita” de excelência a uma série de princípios, resumindo o que aprendi com o meu pai e com o meu avô, e o que aprendi sozinho através tanto dos meus sucessos como dos meus erros ao longo de uma vida de trabalho, partiria da sequência dos “P”. O primeiro dos quais é certamente o “P” de Paciência. Quando, no começo dos anos 2000, com os nossos importadores estadunidenses da Chateau Ste. Michelle, no estado de Washington, começamos a procurar uma área para implantar um vinhedo completamente novo, o presidente da firma americana, Allen Shoup, me propôs uma

zona que eu não conhecia. Era perfeita como localização e tipo de terreno, exposição ao sol e declive. Parecia coisa feita. Só no fim me informaram que o aluguel proposto pelos donos se referia a um período de quarenta anos. “Nada feito, então! We don’t think that short term!”, fui logo dizendo. “Não pensamos em termos de prazos tão curtos. Quarenta anos não bastam para desenvolver um projeto deste tipo!” Inútil dizer que os meus amigos ficaram desconcertados, assim como o jornalista do Wall Street Journal que, em abril de 2008, anotou e contou este episódio naquela memorável matéria sobre nós, os Antinori, que já mencionei: os viticultores italianos que chegam da Idade Média e fazem business em termos de gerações. Vamos admitir que eu tenha acabado de comprar o terreno perfeito. Só para dar início à produção, vou precisar de uns três, quatro anos. Mais cinco ou seis se vão para tornar o vinhedo mais adulto e capaz de produzir uvas de qualidade. Então, principalmente para os tintos, três ou quatro anos de envelhecimento na adega são sempre necessários. Há vinhos relativamente novos cuja reação ao envelhecimento só pode ser imaginada, com o risco de abrirmos garrafas cedo ou tarde demais. Há vinhas, mesmo entre aquelas cujas uvas acabam nos nossos produtos mais famosos, mesmo entre as mais reconhecidas e aparentemente aprovadas, que podem dar o melhor de si imediatamente, dez, vinte ou sessenta anos depois da primeira vindima. “A vinha precisa de três anos para dar os

primeiros frutos”, resumia o bom Veronelli no seu clássico Il vino giusto, “de dez a doze para adquirir ‘inteligência’, e só depois de vinte a quarenta ela se torna transcendental.” Isto pode dar uma ideia de quanto tempo passa entre o investimento original, a comercialização do produto e o primeiro retorno financeiro. E talvez dê para entender melhor, agora, o tipo de divergências que começaram desde logo a complicar a gestão conjunta AntinoriWhitbread. Depois do nosso acordo, os ingleses podiam finalmente ostentar em seu grupo uma conhecida e universalmente admirada marca italiana de vinho. Usaram provavelmente em várias oportunidades o nosso nome para revitalizar a sua imagem com o Italian touch, o toque italiano, com a aura sugestiva da nobreza e da herança renascentista, e com uma coleção de vinhedos renomados nas áreas mais famosas do nosso país. Investiram consistentes quantias. E ficaram logo à espera do retorno. Começou, ao contrário, uma série de encontros nos quais eu era forçado a explicar que precisávamos de novos hectares de vinhas para dar início a uma seleção qualitativa que “mal chegava a ser suficiente” para as nossas necessidades, que aquele vinhedo ainda não estava pronto para produzir vinho de “nível Antinori”. Ou então anunciava a decisão, tomada com os meus colaboradores, de deixar que as preciosas barricas que descansavam nas nossas adegas esperassem mais uns

invernos antes de enfrentar o mercado e se transformar em receita. Ficavam preocupados não só com os tempos longos, ou muito longos, do vinho, mas também com aquela margem de imponderabilidade que lhes pareceu totalmente incompatível com o seu estilo de gerenciamento empresarial. Já fazia pelo menos trinta anos, naquela época, que a família Whitbread tinha as ações da sua sociedade cotadas no London Stock Exchange. Acho que isto sempre foi uma das principais barreiras entre nós e eles. Mesmo durante o mais recente Vinitaly, em abril de 2011, uma jornalista americana – mais uma vez do Wall Street Journal, me parece –, após dar uma olhada nos últimos dados sobre as nossas vendas, a nossa expansão e a diversificação da empresa, e também tendo em vista os repetidos convites à criação de uma partnership por parte desta ou daquela agressiva multinacional, perguntava por que motivo não abríamos o capital e cotávamos as nossas ações na Bolsa. – Vocês têm o perfil perfeito para o mercado acionário – afirmava. Expliquei, talvez pela centésima vez nos últimos anos, anos em que muitas marcas de excelência do made in Italy passaram pelo portal da Piazza Affari,[1] que a própria mentalidade da Bolsa é incompatível com um vinho bem cuidado e meditado. Quando você decide entrar na Bolsa, ou de qualquer maneira reparte o controle da sua firma, é como se passasse a ser empregado de cada acionista, de

cada um dos sócios. E também há os analistas, os observadores. Diante de todos eles você tem de justificar cada escolha, cada investimento. E justificar quer dizer programar, preto no branco, quando e até que ponto a sua decisão irá transformar-se em dividendos, segundo parâmetros padronizados que não sabem distinguir entre grandes vinhos e rolamentos de esfera. No meu mundo isso é impossível. Uma vinha de que começo a cuidar agora, selecionando plantas e experimentando dosagens de uvas, pode ser que só venha a dar o melhor de si sob a direção do meu neto. “Não se pode forçar a natureza”, gosta de repetir a minha filha Albiera. Numa herdade, podemos tentar três, quatro ou cinco caminhos diferentes, para depois seguir adiante por um só. Ou pode acontecer que desvirtuemos uma vinha apesar de ela ser muito rentável do ponto de vista comercial, porque temos planos que, a longo prazo, poderão torná-la ainda melhor. Sem mencionar vinhos como o Tignanello, que, se em determinado ano não parecem levar à qualidade que deles se requer, simplesmente não serão produzidos. São prioridades e riscos assumidos com a sensibilidade do viticultor que busca a perfeição, que diante de um novo terreno intui o que dele pode tirar com o seu trabalho. As potencialidades de uma videira, repito, não se medem de forma objetiva, com os graus de inclinação da encosta ou a composição química do solo: também conta a harmonia da paisagem em volta, a sua história, o seu

componente humano. Valores que não se encontram num boletim da Bolsa, mas somente usando o instinto e o coração. Estou falando de uma tensão fundamental entre dois mundos alheios, que só compreendi plenamente na “era Whitbread”. Naqueles anos em que a globalização estava mudando tudo – o tamanho do nosso mercado, a imagem do vinho italiano e a maneira como ela era difundida –, foi justamente a primeira e única experiência de divisão das cotas societárias a deixar claro, para mim, como eu queria que fosse feito o nosso trabalho, com que tempos e com que estilo. E como NÃO queria que fosse feito. De forma que sempre digo não a este ou àquele grupo bancário que periodicamente me enviam ofertas mirabolantes em troca de um quinhão da empresa, explicando-me que “o mercado nunca mais será como é agora” ou que “jamais conseguirá uma avaliação melhor”. E também dou a mesma resposta ao estudo de gerenciamento que propõe planos trienais para fortalecer as nossas exportações: não creio que se possa fazer alguma coisa realmente importante ou duradoura em três anos, e julgo ter aqui mesmo, em casa, todos os recursos necessários para desenvolver as nossas estratégias. Por isso, durante os meus cinquenta anos na direção da empresa, até nos momentos mais difíceis, afirmo com orgulho que nunca distribuí dividendos (e tampouco precisei

dispensar em massa a nossa mão de obra, forçando-a a recorrer ao seguro-desemprego). Houve um momento específico em que a fundamental incompatibilidade com os meus sócios ingleses dos anos 1990 começou a tornar-se clara. Eu e os meus colaboradores considerávamos que tinha chegado a hora de ampliar a consistência produtiva vinícola. Em outros termos: precisávamos de mais vinhedos. E então, em breve espaço de tempo, se apresentaram duas oportunidades muito interessantes. Isto é, interessantes para nós, os Antinori. A primeira foi a proposta de comprarmos Pèppoli, em 1985. Trata-se de uma propriedade a cinco quilômetros de Tignanello, no coração do Chianti Clássico, o reino da uva Sangiovese, onde os monges de Vallombrosa já vinham fazendo vinho desde a Idade Média. É um lugar que ostenta antigos liames com a minha família e com as nossas adegas: já fazia séculos que comprávamos ali as nossas uvas. Em nome deste antigo relacionamento, por recíprocas razões sentimentais, os proprietários nos tinham oferecido a propriedade inteira – um pequeno vale ensolarado com o solo rico de minerais propícios – em condições francamente vantajosas. Nos séculos, depois dos monges, aquela terra tinha pertencido aos Cerchi, aos Ridolfi, aos Saccardi; tínhamos a possibilidade de nos tornar os novos proprietários exatamente seiscentos anos depois da entrada

de um membro da nossa família na corporação dos vinheteiros. A outra propriedade que nos interessava, e que estava sendo oferecida na praça, era Badia a Passignano. Mais uma ótima ocasião para acrescentar qualidade e prestígio à nossa coleção de vinhas no Chianti, também muito perto das fileiras de Tignanello. Outra vez, uma escolha por fazer principalmente com o coração, e não de olhos fixos nos balanços, e sem querer saber ao certo quantos anos aquela terra levaria para compensar o gasto. Ali, bem no meio do terreno, num pequeno planalto calcário, ergue-se desde o ano de 1050, sobre as fundações de uma estrutura ainda mais antiga, a abadia de San Michele Arcangelo, o mosteiro do fundador da ordem de Vallombrosa, São Giovanni Gualberto. Agora os monges continuam a morar naqueles aposentos, enquanto a minha família restaurou e usa as antigas adegas e as mais de duas mil barricas de carvalho que lá se encontravam. Durante séculos os monges da ordem cultivaram aqui a difícil prática da diplomacia, desempenhando amiúde o papel de mediadores nas controvérsias entre Siena e Florença; aqui trabalharam alguns dos maiores teólogos daquele tempo. E aqui se aperfeiçoou a arte do vinho. Podemos dizer que os monges foram os primeiros a cultivar extensamente e com todo o carinho o que chamamos “vinho do Chianti”. O vinho local era conhecido e apreciado desde a mais longínqua antiguidade, e nesta zona, em San

Vivaldo, foi encontrado em 1983 o fóssil de uma planta de Vitis vinifera de pelo menos dez mil anos atrás: a uva mais antiga da Itália. Aqui, na abadia, o pintor Domenico Ghirlandaio deixou o afresco de uma Última ceia onde na mesa, diante dos apóstolos, se distinguem uns copos de vinho. Aqui Galileu Galilei, o maior cientista toscano, ensinou matemática e tentou dar uma ordem ao universo. E sempre aqui, como já vimos, provavelmente no rigoroso inverno de 1179, se encontraram um monge e um Antinori para tratar da venda de bens e terrenos, assinando pela primeira vez na história o nosso sobrenome num pergaminho atualmente guardado nos arquivos de Badia a Ripoli. São sugestões que não têm valor algum nos Stock Exchange. E menos ainda podiam ter valor as lembranças pessoais que aquelas antigas paredes despertavam em mim. Numa foto de 1890, conservada por meu pai no palácio Antinori, o perfil da abadia na colina, com suas torres fortificadas e a pequena aldeia em volta, serve de pano de fundo para um alegre passeio no campo com os amigos que, elegantes cavalheiros em trajes de caça, partilham um fiasco de vinho. A mesma torre dos monges com sua nuvem escura de ciprestes, símbolo para mim da paz e da poesia da Toscana que eu amava, cortava o horizonte que eu via nos dias de ócio e preocupações da minha janela na propriedade de Santa Cristina a Tignanello,

onde havíamos buscado abrigo nos dias sombrios da última guerra. Tanto em Pèppoli como em Badia a Passignano, ficou logo claro que precisaríamos de muito trabalho para adaptar o terreno à moderna vinicultura. Traduzindo para os parâmetros pragmáticos com que a Whitbread raciocinava, seriam necessários ingentes investimentos. Nos anos em que os ingleses tentavam tirar de mim novos pacotes acionários para assumir o controle da empresa, eu propunha a compra de duas propriedades de bom tamanho sem nem sequer arriscar a data em que sairia de lá um vinho vendável e, por conseguinte, quando o investimento poderia começar a dar os primeiros lucros. Na prática, os meus sócios e seu pequeno exército de managers não conseguiam entender a operação em termos econômicos. Em termos técnicos, não viam garantias para o return on investment, sagrada fórmula que, para os que não são do ramo, pode ser descrita como o índice que calcula a oportunidade de um investimento em relação ao capital investido. Explicaram-me, aliás, que todo aquele amontoado de videiras e abadias, velhas barricas e afrescos do século XV talvez aumentasse o valor patrimonial da empresa, em prejuízo porém do seu desempenho. Em termos financeiros, tudo aquilo não fazia sentido. Como acabou? Acabou que decidi ignorar o mau humor deles e os convites a procrastinar e a agir com cautela. Em 1985, adquirimos Pèppoli, onde agora, mais de vinte anos

depois, nascem o nosso azeite extravirgem biológico e um dos nossos Chianti Clássico mais vendidos no mundo. Em 1987 foi a vez de Badia a Passignano. Onde agora, nos subterrâneos, sob arcos cruzados enegrecidos pelo tempo, envelhece em pequenas barricas de carvalho o Badia a Passignano Riserva, a ponta de diamante do nosso Chianti Clássico, e onde em seguida abrimos uma enoteca e uma cantina. Não poderíamos ter escolhido melhor. Mas de Londres começaram a soprar ventos de desaprovação. A Paciência, portanto. Nesses últimos tempos, dei-me conta de que os ritmos longos e meditados da viticultura são quase um desafio à corrida desvairada da vida moderna. A minha filha Albiera usa amiúde esta imagem em suas apresentações. “Hoje em dia”, observa, “temos aviões super-rápidos, trens de alta velocidade, o pensamento e a palavra voam nas asas da web. O vinho não, ele tem desde sempre os mesmos tempos. E não é possível acelerá-los.” O vinho, com efeito, nasce e se aperfeiçoa lentamente. Uma garrafa de alta qualidade, produzida por quem aprendeu a correr devagar junto com o seu vinho, durará muito mais que qualquer moda ou qualquer novo smartphone. Mudam os carros, os governos, o clima, e ele envelhece sem modificar a sua essência. Você mesmo muda, nas diferentes estações da sua vida, e ele vai envelhecendo devagar. E, quando vai servi-lo, encontra-o maduro mas ao mesmo tempo provido do mesmo frescor e vigor de quando foi

engarrafado. Para a sensibilidade moderna o vinho é, por este aspecto, um escândalo, uma provocação. E é nesta anarquia que consiste o seu fascínio. E aqui está outro “P”, um traço todo toscano: a Perseverança, a firmeza tenaz, a cabeça dura dos agricultores. Aqueles que no século XIX derrotaram a filoxera e outras patologias da videira que tinham dizimado os nossos vinhedos. Foi um camponês pisano “Provando e riprovando”, isto é, tentando e tentando de novo (como recita o lema da Accademia Del Cimento, fundada em 1657 por um grupo de cientistas florentinos), quem conseguiu vencer, por exemplo, a moléstia do oídio, submetendo as videiras a uma cura de enxofre e sabão. Ou aqueles que “reinventaram” as nossas vinhas quando se conseguiu finalmente vencer a peste da filoxera, inseto devorador de raízes que, após chegar de navio da América do Norte, como clandestino, devastou as culturas do Velho Continente. Sem tentarmos e tentarmos de novo, hoje não teríamos o Tignanello nem o Solaia. Sem perseverança não teríamos reconstruído as nossas adegas em cima dos cacos de vidro da Segunda Guerra Mundial e, em lugar do escritório do meu pai, no palácio Antinori – o escritório que cheira a madeira e a antigos tapetes que, após a sua morte, deixamos intacto, sem mexer numa alfaia sequer –, haveria agora a agência de empréstimos de um banco. Sem este

“P” não teríamos saído da Toscana para vender os nossos vinhos em mercados onde nem sabiam quem éramos e o que fazíamos havia séculos. “Não, obrigado, não precisamos de louças”, disse-me nos anos 1960, despachando-me, o dono de um restaurante de Avellino, talvez confundindo Antinori com Ginori, os marqueses florentinos da porcelana (provavelmente ignorando que as vitrines de uma das suas lojas olham para o centro de Florença a apenas uns poucos passos de distância do palácio Antinori). É preciso insistir sempre, identificar o problema, planejar a contramedida. (Para que ninguém voltasse a me confundir com um produtor de pratos e cerâmicas, lembro que na Campânia confiamos a representação da firma à família Mastrobernardino, que por muito tempo fez um ótimo trabalho e atualmente produz, na empresa homônima, excelentes vinhos na zona de Avellino.) Tentar e tentar de novo. Lembro com carinho uma experiência adoidada do meu pai. No pós-guerra, uma grande parte das suas energias se concentrava na conquista de um novo público e de novos mercados no exterior e na própria Itália. Mago autodidata do marketing, saiu-se um certo dia com uma garrafa em forma de peixe. Um formato bastante fora do comum, um brinquedo que devia despertar a curiosidade de quem nada sabia de denominação de origem controlada nem de decanter. “Precisamos trabalhar na apresentação”, costumava dizer ele, que, como já vimos, foi um dos primeiros a renegar,

para o seu vinho, o uso do fiasco empalhado, presença obrigatória em nossas tabernas há pelo menos sete séculos. A garrafa-peixe – não faz muito tempo encontrei uma na loja de um antiquário – teve sucesso até na América. Não muito tempo depois, no entanto, percebi que aquele talvez não fosse o caminho certo, quando, durante o controle aduaneiro num grande aeroporto americano, ao ler o meu nome nos documentos um funcionário exclamou: “Ah! Aqueles da fish bottle! A garrafa com forma de peixe!” Não fiquei nem um pouco lisonjeado. Pareceu-me ter encontrado a popularidade da marca através de um atalho. Teria preferido que as pessoas dissessem: “Antinori! Ah, aqueles dos maravilhosos vinhos toscanos!” Desde então, deixamos os peixes nos aquários. E a aparência externa do nosso marketing, desde os rótulos até a publicidade, está mais focada na essencialidade e na subtração. Mesmo assim, continuo a achar que só podemos admirar aquele empenho contínuo em tentar novos caminhos, com poucos tabus e muita fantasia. Mais uma lembrança, mais uma daquelas garrafas corajosas defendidas pelo meu pai em nome dos seus vinhos. Uma das primeiríssimas visitas de representação que enfrentei com ele, ainda no papel de mero acompanhante-espectador, aconteceu numa tarde de muitos anos atrás em Roma. Havia dois nomes no seu livrinho de apontamentos. O primeiro era o idoso comendador Gabbrielli, dono da mais importante loja de

vinhos da capital, a Buton, perto da praça da fonte de Trevi. Ainda me lembro do cálice de sherry que oferecia a todos os visitantes, e da sua idade veneranda. Meu pai explicou que o apoio dele era fundamental para que o nosso vinho pudesse circular nos lugares que contavam da capital: uma das minhas primeiras aulas de “diplomacia do vinho”. Mais importante ainda era o nosso segundo encontro. Tratava-se do engenheiro De Corné. Era o responsável italiano da Companhia Internacional dos Wagon-Lits, um cavalheiro extremamente rigoroso nos negócios, que depois pude conhecer melhor, já no meu papel de jovem executivo. Naquele tempo, para um vinicultor, estar presente na carta dos vinhos dos vagões-restaurante que corriam pelo continente, verdadeiras e autênticas vitrinas semoventes e internacionais, era a mais prestigiosa das metas. Para papai, portanto, fazer entrar os seus vinhos naqueles trens tornara-se uma questão de honra. Seguiu-se então uma espécie de corpo a corpo entre ele e o tal De Corné, que, por natureza ou por ordens superiores, se mostrou, ao longo de demoradas e cansativas visitas, bastante avesso a nos incluir no número dos seus extremamente selecionados fornecedores. A coisa levou muitos anos. Visitas e mais visitas àquele escritório romano. Mas afinal conseguimos. Um belo dia recebemos a notícia de que as nossas garrafas seriam finalmente incluídas na áurea lista dos vinhos ferroviários. Depois do anúncio,

também chegou o primeiro pedido oficial de vinhos, ao qual se seguiu o envio. Àquela altura, meu pai decidiu festejar de alguma forma a vitória. Organizou uma viagem de trem com alguns amigos, plantou-se no vagão-restaurante e logo pediu ao garçom, alto e bom som, algumas garrafas do seu vinho. Grande foi a frustração, no entanto, quando o empregado, tomando nota do pedido, se curvou com discrição e cochichou a seu ouvido: “Aceite o meu conselho, peça outro: disseram-me que é feito com maçãs.” Não sei ao certo como aquele almoço viajante acabou. Mas sei perfeitamente que, mais uma vez, meu pai não se rendeu. Pois é, isto nos deixa entender que fazer um bom vinho é só o primeiro passo, se ao mesmo tempo não cuidarmos da sua divulgação. E salienta o “estômago” e resistência de que você precisa, e a imensa tolerância necessária diante de concorrentes que não perdoam o seu sucesso. A Previdência é a única arma que conheço para enfrentar o elemento imponderável que faz parte do vinho. Você prepara terrenos, planta videiras, planeja vindimas, já tem prontas as adegas, as barricas novinhas em folha e as garrafas. E algo dá errado. Desanimador, mas inevitável: enquanto as videiras não forem cultivadas em laboratório (dia que, pessoalmente e sinceramente, espero nunca ver), a uva nascerá entre terra e pedra, embaixo do céu, aberta ao ambiente que a cerca, resumo e destilado de um ano de

canícula e chuvaradas, de brumas e plenilúnios, de tempestade e bonança. Mas lá vem o calor excessivo que desestabiliza os açúcares; lá vem a geada fora de época que queima a floração. Pouco sol ou sol demais, muita chuva ou chuva nenhuma. Há o granizo ou a neve, inócuos até o começo da primavera, mas que se tornam um desastre quando os cachos amadurecem nos sarmentos. Há vento bom que limpa o ar e seca depressa, nas videiras, chuva e rocio, e há o ruim que dobra as plantas, as desfolha, as quebra e as leva consigo. E eis, então, as mil incógnitas daquele processo muito delicado a que chamamos envelhecimento, com o risco de inaugurar um vinho cedo demais. A vinificação é um processo longo, que mesmo com as técnicas e a ciência de hoje, e aí está a sua poesia, tem aspectos ainda misteriosos. E que no fim pode fazer com que você encontre no seu copo um milagre ou uma decepção. Acredito que o bom vinhateiro precisa fazer um trabalho psicológico sobre si mesmo, enfrentando com firmeza os fracassos, usando os antigos sucessos como reserva de confiança, aceitando com serenidade os aspectos do seu trabalho que não pode controlar. A previdência faz com que você sempre guarde na adega algum vinho, e um mínimo de recursos econômicos, “estocados”, com o instinto do bom feitor, para entrarem em cena quando o ano for fraco, o verão árido, o inverno rígido, ou escassa a demanda. A prudência faz com que você continue a ser um sábio

camponês, mesmo quando os seus campos estão espalhados por três continentes, quando é preciso manter uma visão de conjunto de todos os vinhedos para apostar ora em um, ora em outro, conforme a situação muda. A previdência faz com que você sempre tenha pronto um plano B. Num 2002 extremamente chuvoso, chegamos ao momento da vindima em Tignanello com a maioria dos cachos ainda imaturos ou quase apodrecidos nos sarmentos. O que faz, num caso desses, o produtor de vinhos de qualidade? Muito simples: pula o ano. A maior parte da uva, particularmente o nosso amado Sangiovese, cepa tardia, sensível à umidade, não foi utilizada. Produzimos, no entanto, um Solaia “Safra diferente”, como costumamos dizer no jargão técnico, apostando as nossas fichas nas uvas Cabernet Sauvignon e Cabernet Franc. Os expertos descreveram-no, mais tarde, como um vinho “intenso, rico de perfumes e elegante”, embora tivesse nascido quase por acaso. Fica o fato de que naquele ano, como aliás em 1992, outro ano insalubre e maldito, fomos os únicos a tomar a decisão de não engarrafar as “estrelas” da nossa lista de produtos, apesar do prejuízo econômico. Nada de Tignanello, de Guado al Tasso (das terras de Bolgheri), nada de Chianti Clássico Reserva. O próprio 2011, pensando bem, viu uma primavera estranha, com um começo de abril de temperaturas elevadas que foram de repente esfriando. Um ano incomum, periclitante:

o calor fez desabrochar os rebentos, o frio nas gemas deteve-os. Mas afinal, embora só possamos saber disto em 2013, pode ser que acabe saindo um grande vinho. Quanto às incógnitas do mercado, bastaria lembrar o insistente granizo, inesperado por seu alcance e sua duração, que é a crise econômica dos últimos anos, oriunda da América como a filoxera e atualmente espalhada no mundo inteiro. Na minha experiência, dou-lhe o nome de “lei do dez”: embora atrasos e contratempos nunca faltem, os verdadeiros problemas costumam aparecer mais ou menos uma vez cada dez anos. E não estou falando simplesmente de uma tempestade de granizo fora de estação. Um infortúnio muito mais grave que um verão úmido demais foram, logo depois que me tornei o responsável pela firma em 1966, algumas compras que se mostraram em seguida decididamente inconsideradas. No primeiro caso dirigimos a nossa atenção para o Nordeste. Os nossos importadores nos Estados Unidos já nos haviam assinalado várias vezes o aumento da demanda de vinho do Vêneto, particularmente de Soave e Valpolicella. O branco Soave da família Bolla tornara-se uma espécie de status symbol adorado pelas stars hollywoodianas. Contavam que Frank Sinatra, o maior astro ítalo-americano de todos os tempos, desistia de comer se não encontrasse uma garrafa do branco, prontinha e na temperatura certa, na mesa. Decidi então adquirir a empresa Santi que, nas terras de Verona,

trabalhava desde sempre com o Soave, o Valpolicella e o Amarone. Uma decisão tomada de impulso. Não demorei a dar-me conta do erro. As vinhas deles, assim como todas as estruturas, estavam em condições bastante precárias. Lembro que tinha de viajar para lá pelo menos uma vez cada quinze dias para ver o que podia ser feito a fim de recuperar a propriedade. Tive de confrontar-me várias vezes com o antigo dono, ao qual, no meu entender, faltavam àquela altura a dedicação sincera e a paixão necessária para enfrentar o novo e difícil mercado do vinho. Também lembro que precisei encarregar do projeto um perito que eu já conhecia fazia um bom tempo, Paolo Perissinotto, uma grande figura, um verdadeiro amante do vinho. Foi a única coisa positiva em toda a infeliz aventura. Alguns anos antes, como responsável comercial da firma Santa Margherita, Perissinotto criara do nada o fenômeno do Pinot Grigio, então um branco como tantos outros, com uma intuição genial: usar com as uvas “acobreadas” do Trivêneto[2] as mesmas técnicas de vinificação dos brancos clássicos. Se não encontrarem o nome dele escrito em letras de ouro nos livros de história da enologia, é só porque sempre foi uma pessoa esquiva e modesta. Talvez seja por isto que eu gostava dele. E gosto de lembrá-lo aqui. Nem ele, de qualquer maneira, conseguiu reerguer a empresa, e a Santi não demorou a tornar-se um fardo para nós, um

buraco negro no qual acabavam muitos dos nossos recursos e das nossas não infinitas energias. Dirigi-me em seguida para a Úmbria, na zona de Orvieto, onde o meu pai iniciara, como já vimos, a sua lenta conquista de terrenos na região das “uvas brancas”, o plano estratégico de ampliar com um branco o seu leque de grandes tintos da Toscana. Chegou-nos, da parte do proprietário, o florentino Giancarlo Cassi, uma boa oferta de venda das Adegas Bigi, uma histórica empresa local que parecia perfeita para as nossas finalidades. Aqui também, no entanto, só precisamos de uns poucos meses para entender que não chegaríamos a lugar algum sem antes modificar drasticamente as infraestruturas. Com Tachis, o meu enólogo de confiança, começamos a pensar numa adega totalmente nova. Deveria ser, aliás, uma das adegas para vinho branco mais inovadoras da Itália. Entusiasmante, mas as despesas começaram a subir. Resumindo, fazia pouco tempo que eu estava no comando da Antinori e já descobrira até que ponto a vida de vinicultor podia tirar o sono da gente: bastaram duas contas para tornar bem claro que a dupla operação não só havia sido um erro de perspectiva devido à impetuosidade juvenil, mas um verdadeiro desastre. Com o próprio futuro da firma perigando e os bancos de tocaia. A boa sorte manifestou-se desta vez com o semblante de Alberto De Marchi. Protagonista da moderna comercialização dos vinhos italianos depois da Segunda

Guerra Mundial, eu o conhecera na Bélgica, onde representava a sua firma, durante o meu primeiro tour como porta-voz da Antinori na Europa. De Marchi, após começar como pequeno comerciante de vinhos, chegara ao topo da Wine Food (atualmente Grupo Italiano Vini). Tratavase de um grupo que naqueles anos, com ambições e recursos bem diferentes dos nossos graças a ingentes capitais suíços, tinha começado a comprar, salvando-as da extinção, várias prestigiosas marcas italianas em dificuldade. Os planos de aquisição de De Marchi incluíam, para sorte nossa, tanto a Santi como a Bigi. Encontramos um acordo rápido e satisfatório para ambos os lados. E nós retomamos fôlego. Foi sem dúvida uma boa lição. Mas o que tinha dado errado, afinal? Talvez eu não tivesse tomado suficientes informações a respeito das reais potencialidades do mercado ou talvez não tivesse calculado direito se o nosso caixa daria conta do empreendimento. Um pecado contra a Previdência. Se houve um aspecto positivo que lembrar na minha espinhosa partnership com a Inglaterra foi, talvez, ter aprendido com eles o rigor contábil, o cuidado com o retorno dos capitais e com o frio realismo gerencial. Nunca chegarei a ser um homem de negócios de olhos fixos na Bolsa, pois antes de decidir acerca de um investimento sempre olharei primeiro para o vinho que ele poderá gerar, e só depois para as tendências dos mercados. Mas o banho de concretude vivido ao lado da grande multinacional

cotizada nos mercados acionários, nos anos imediatamente seguintes, talvez me tenha ensinado a avaliar melhor, dali em diante, os saltos no escuro como a aventura vêneta. Poderia ser dito, talvez, que ainda não estávamos prontos para sair da Toscana para terras tão diferentes. Pecado de impaciência. Ou, então, que procurei de forma afoita demais um atalho, correndo atrás de momentâneos modismos do vinho. Um grave pecado de leviandade. Bastante imponderável, com efeito, também é o fator humano. A expressão “pública” daquilo que você faz. As modas do vinho mudam, se transformam, surgem e se apagam velozes. Basta pensar naquele boom das barricas, que tão importantes seriam mais tarde para nós, os pequenos barris de carvalho no começo hostilizados e depois considerados uma espécie de ânfora milagrosa onde um vinho medíocre podia tornar-se nobre como nas bodas de Canaã. Ou então na febre do Novello, o vinho nascido de uma particular fermentação dos cachos, fresco, instável, a ser consumido logo: inspirado no Beaujolais Nouveau francês, por alguns anos só se falava nele. E prefiro até não falar do vinho frisante direto do barril, como chope… São viradas repentinas do gosto que, de uma hora para outra, podem tornar vãos anos inteiros de investimentos. Como prever a próxima onda? Digamos que, assim como a videira precisa interagir com o microclima, a troposfera e a paisagem, o empresário de um produto de qualidade tem de

estar plenamente inserido na sociedade, no mundo dos homens. É preciso viajar, ficar informado, falar com as pessoas, ficar sempre em dia com as novidades. É preciso, em resumo, estar interessado, estimulado por tudo aquilo que se move em volta da nossa atividade. E é preciso amar o vinho. O viticultor que não toma com prazer um bom copo todos os dias, que não dá uma frequente passada na trattoria atrás da esquina, bem como na enoteca do Grande Hotel, para saber o que sai das outras adegas, é como o chef que não experimenta os próprios pratos e nunca entra em restaurantes e mercados: jamais confiar num cozinheiro magro! A gente tem de ser ao mesmo tempo produtor e consumidor apaixonado; com o passar dos anos isto nos permite entrar em sintonia com o mercado, com o que as pessoas sentem. Cada época tem o seu próprio conceito de bom vinho. O segredo está em dar-se conta dele, em identificá-lo. O que posso dizer é que nas mesas de astros hollywoodianos como Tom Cruise e Robert De Niro, que tanto fazem sonhar o público, ou de personagens como Francis Ford Coppola (tão apaixonado pelos vinhos a ponto de tornar-se, ele mesmo, um produtor em Napa Valley), hoje em dia já não há o Soave. Há o nosso Solaia e o nosso Tignanello. E existe a Precisão. No cultivo da videira deve haver método, nada pode ser improvisado. O viticultor moderno

deve saber como cada tipo de uva reagirá àquele tipo de terreno. Atualmente se fala, justamente, de viticultura de precisão, na qual é possível controlar como influi na garrafa final um cacho tirado do meio ou das pontas da mesma fileira, dez metros mais para cima ou para baixo da mesma encosta, na base de infinitesimais variações na composição do terreno, do grau de umidade ou de irradiação solar. Na prática, você tem de conhecer cada vinhedo, cada “parcela” individual – isto é, cada setor específico da vinha – com seus ritmos e suas qualidades. Precisa saber como mudam no tempo, como reagem às diferentes estações e aos vários caprichos do clima. Precisa ser íntimo de cada planta. E acompanhar cada fase do trabalho. A estaca que sustenta a videira, a hora e o tipo de poda precisam de uma escolha meditada. E com o mesmo discernimento deverão ser escolhidos o tonel – nenhum tonel é igual a outro, todos, durante o refino, requerem uma prova, uma avaliação –, a garrafa e a cor do seu vidro (mais uma “mania” de Tachis), a rolha, o rótulo. A precisão do produtor de vinho é uma mistura de perfeccionismo e prática. Alimenta-se dos novos conhecimentos científicos, desde os químicos até os microbiológicos. Usa novos meios hi-tech; hoje, com a teleavaliação de dados, posso dosar adubos e remédios conforme as condições de saúde e de vigor de cada planta. Mas sem nunca esquecer a tradição; gestos, ritos, práticas de vinha e de adega que se destilaram nos séculos.

Detalhes fundamentais para que o nosso vinho nunca deixe de ser reconhecível e rico de identidade. Assim, nos últimos anos, participamos do projeto e adquirimos para as nossas terras as mais modernas “máquinas inteligentes” disponíveis na praça. Começando por aquela que desfolha e aduba as videiras sozinha – com a dose certa, diferente conforme as exigências de cada parcela – nas fileiras da nossa nova propriedade toscana de Le Mortelle. Para citarmos outro exemplo, demos andamento a um novo sistema integrado de gestão dos depósitos das nossas adegas na Puglia, formando uma partnership com a IBM para o gerenciamento dos arquivos, das etiquetas e até das videiras. Hoje em dia, quando o tempo permite, chego às propriedades toscanas ou ao Castello della Sala pilotando, para minha grande diversão, o meu helicóptero. E, graças a uma ideia da minha filha Alessia, vendemos o nosso azeite extravirgem, único na Itália, congelado assim que sai do lagar. Para muitas outras coisas, no entanto, continuam válidas as práticas dos meus antepassados vinhateiros. Em Tignanello a uva branca para o Vin Santo (o vinho licoroso toscano usado, durante séculos, na Missa) ainda é espalhada manualmente sobre uma esteira de hastes entrelaçadas: a operação requer dois dias de trabalho de quarenta pessoas. Da mesma forma, em muitas das vindimas mais delicadas, também contam os olhos, o tato e

o cheiro do camponês experiente, provavelmente filho e neto de meeiros. Talvez nem todos saibam que as vindimas dos grandes tintos se levam a cabo num prazo de uns quinze dias, passando e voltando a passar pelas mesmas fileiras. Os muitos cachos de uma videira podem chegar ao amadurecimento em tempos diferentes: é preciso colhê-los na hora certa. Muitas vezes é mister tirar primeiro os que ficam mais alto na mesma planta, e só uns dias depois os que ficam mais perto do solo. Ou então precisamos simplesmente estudá-los para entender qual é a hora certa deles. Para os brancos, por sua vez, é necessário colhê-los e trabalhá-los numa temperatura não excessiva. E então saímos a vindimar ao alvorecer ou nas últimas horas da tarde, num ar mais fresco conforme o clima e as peculiaridades da estação. Coisas que, evidentemente, não podem ser explicadas a uma máquina. Além disso, estudam-se hoje novas embalagens e novos materiais, mas a garrafa de vinho, para mim, sempre foi e continua a ser a de vidro; nem me falem em latinhas ou de Tetra Pack! Eu exijo a cortiça natural para as rolhas, que “beije” o vinho nas garrafas durante o envelhecimento: qualquer outra alternativa tiraria valor e fascínio do produto final. A matéria-prima, neste caso, fazemos que nos chegue de Portugal e, principalmente, da Sardenha, onde, em colaboração com a Universidade de Cagliari, e juntamente

com outros viticultores, apoiamos uma iniciativa para reflorestar com cinco mil sobreiros os bosques perto de Nuoro. Renovamos uma tradição antiga e, ao mesmo tempo, na perspectiva da “responsabilidade social da empresa”, reduzimos com as novas árvores a quantidade de CO2 na atmosfera. Precisão e respeito da tradição não significam, no entanto, que o vinho tenha leis absolutas, que tudo já tenha sido escrito e codificado. Que o viticultor seja um perito em ciências contábeis sem margem para a criatividade. Muito importantes são, com efeito, ainda que não comecem com a letra “P”, a capacidade de aproveitar as oportunidades, o instinto para utilizar-se do acaso, a intuição e a imaginação. Um exemplo? Certa vez, no fim dos anos 1960, acabei jantando com os nossos representantes em Milão num restaurante fora da cidade. A salientar a genuinidade da sua carta dos vinhos havia, na sala principal, uma pequena fileira de barricas novinhas em folha. Para completar a poética encenação, ao saber quem eu era e qual era o meu ofício, o proprietário perguntou-me se poderia ter algum vinho com que enchê-las, com a ideia de servi-lo algum dia em honra dos clientes, como um verdadeiro taberneiro de antigamente. Era, para nós, uma encomenda fora do comum; raramente, pelo menos no último século, havíamos trabalhado com vinho a granel. Mas, para manter um bom relacionamento com um ponto de encontro então muito

conhecido, e levando em conta que seria um favor facilmente realizável, ajudei-o neste pequeno capricho. Em poucos dias providenciei que o restaurante milanês recebesse uma quantidade de Chianti Clássico Villa Antinori suficiente para encher suas barricas. Então, uns dois ou três anos depois, tive a oportunidade de aparecer por lá de novo. E a curiosidade de saber que fim aquele vinho levara foi natural. Pelo que eu sabia então, tinha quase certeza de que a passagem para aquelas pequenas barricas novas já comprometera a qualidade do Villa Antinori, tornando-o oxidado, com um alto teor de acidez volátil; em poucas palavras, intragável. A surpresa foi que aquele “embarricado por acaso” resultou até melhor que o mesmo vinho envelhecido por nós de forma tradicional. Dizer que esta pequena aventura me convenceu da guinada em prol das barricas, naquela época muito inovadora na Itália, seria dizer demais. Mas, sem dúvida, levou-me a pensar no assunto. E, quando chegou a hora de decidir como envelhecer os novos toscanos, este episódio também foi para mim uma experiência para não esquecer. Só agora chega o “P” de Proveito, isto é, do lucro financeiro. Meu pai sempre me ensinou que os ganhos, as vendas, a expansão das terras cultivadas e dos mercados não são o fim último no nosso trabalho, mas apenas um meio. Uma fase indispensável do ofício. O proveito é sinal de eficiência. É a prova e a confirmação de que as nossas garrafas foram

produzidas como manda o figurino, vão ao encontro das expectativas do cliente, são melhores que as do concorrente. É a razão pela qual você consegue vender o seu vinho por um preço que considera justo. O proveito é condição de sobrevivência: só um bom balanço e uma contabilidade correta podem nos proteger de anos ruins e de crises financeiras, das flutuações da demanda e rachaduras dentro da empresa. Como já vimos, é garantia de independência, porque evita que tenhamos de recorrer aos outros, permite que nos arrisquemos em novas aventuras e nos proporciona uma visão de longo prazo. Por todos estes motivos, o proveito é promotor de melhoria. Sem recursos econômicos uma empresa não pode fazer pesquisas, não pode continuar a aperfeiçoar a sua matériaprima, as próprias estruturas e os instrumentos que utiliza. Não pode evoluir constantemente, acompanhando os mercados, o mundo que muda e a própria inspiração. Um exemplo de compromisso entre lucro e qualidade? Neste livro falaremos muito pouco de Galestro. Ainda assim, por muito tempo, entre os anos 1980 e 1990, o vinho que tinha o nome de uma pedra local foi o nosso maior sucesso, absolutamente. E mais: aquele branco fresco, simples e leve, onipresente no verão, foi o produto que de repente fez evoluir os nossos negócios a um nível imprevisto e totalmente desconhecido. Tudo nascia de um projeto coletivo de um grupo de empresas toscanas, com a finalidade bem definida de

encontrar uma saída para o excesso de uvas brancas (Trebbiano, em particular) produzidas na região e anteriormente usadas, com resultados desastrosos quanto à qualidade, na produção do Chianti. A linha Galestro – o rótulo de maior sucesso é certamente o Capsula Viola – representa um pequeno boom, baseado, no entanto, num vinho que, considerando o material intrínseco, não podia de forma alguma aspirar àquela qualidade que eu procurava. Além disso, levando-se em conta as dimensões do seu mercado, sobretudo na Itália, os nossos vinhedos não demoraram a mostrar-se absolutamente insuficientes para a produção. E voltamos a comprar uvas de outras vinhas. O resultado foram milhões de garrafas que engordaram o nosso caixa, mas que também representaram uma parcial marcha a ré no caminho que havíamos escolhido com meu pai: o de acompanhar o processo do vinho da planta à adega, procurar sempre e de qualquer maneira a qualidade, nunca mais fazer vinhos somente para tirar a sede. Por outro lado, foram justamente os lucros do Galestro, imediatamente reinvestidos, que permitiram por toda a década seguinte a consolidação e as iniciativas experimentais da nossa firma pelo mundo afora. O Galestro, em resumo, funcionou. Foi para nós uma espécie de seguro para o futuro. O que nos faltara na época do Soave e do Valpolicella. Agora, já passado o seu grande momento, a sua produção é mais ou menos um quinto do quinhão de então.

Como avalio, hoje, esta experiência? Renzo Cotarella, que me conhece e já trabalha comigo há trinta anos, que me liga todos os dias, não importa onde esteja, mesmo que seja apenas para me informar se chove ou faz sol nas nossas vinhas, certa vez me disse que sou um empresário com um instinto extremamente marcado para o aspecto comercial, para o mercado, e um amor igualmente poderoso pelo aspecto produtivo, pela busca do vinho perfeito. Meu pai, talvez melhor do que eu, conseguiu viver com a mesma paixão e participação ambas as esferas dominantes deste ofício, a comercial e a produtiva. Ao contrário dos seus colegas, amigos e agricultores, ele entendera claramente que, às vezes, era mais sábio delegar pelo menos em parte o puro trabalho da produção da uva para dedicar-se a outros aspectos da profissão. Muitos viticultores toscanos, sinceros amantes do vinho, sobretudo aqueles de famílias nobres, preferiam ficar nas antigas vilas, perto das suas videiras, julgando não propriamente “digno” cuidar do aspecto “comercial”, como, por exemplo, a compra e a venda da uva ou, pior ainda, a venda e distribuição de garrafas que, na maioria dos casos, não traziam o nome do dono e produtor. Fazia-se o vinho por tradição e requintado hobby, mas não parecia “fino” gastar nele o próprio nome. Justamente o contrário do que acontece hoje, quando muitos fazem vinho só para ver gravado nele o próprio ego.

Este limiar psicológico já havia sido superado, de alguma forma, pelo meu avô. Mais precisamente, Piero e Lodovico Antinori haviam repartido entre si, como bons irmãos, as duas vocações: mais dado ao comércio e às relações o primeiro, mais apaixonado e levado à produção e à experimentação o segundo. Mas foi justamente o meu pai, o ex-representante de produtos sanitários, quem se dedicou pela primeira vez com a mesma paixão a tudo o que antecedia e seguia o trabalho de vinha e de adega. E quem se apresentou como único responsável de todos os aspectos ligados ao seu vinho. Coube a ele entender que o vinho de qualidade, o único que pode levar a um crescimento sólido e duradouro da firma, nasce de um ciclo articulado do qual todas as facetas são importantes. A compra de uma propriedade, a plantação da vinha e a densidade das videiras e dos cachos, a adega, a criação do vinho, o estudo da sua imagem, o planejamento da distribuição. A primeira fase de nada adianta sem a segunda, e podemos dizer o mesmo do contrário. Acredito que Albiera, Allegra e Alessia acabarão repartindo cada vez mais entre si os diferentes campos de ação da empresa. Mas as três irmãs, todas elas, deram antes uma “provadinha” nos vários ofícios do vinho. Eu sempre me senti um tanto sacudido entre estes dois polos amiúde opostos. Em geral, posso dizer que nos últimos anos a Marchesi Antinori está tentando conjugar com empenho estas duas forças muitas vezes conflitantes: qualidade total,

sem concessões, enxertada em bases e estruturas mais sólidas. Daí a compra de novas terras, daí os projetos de novas instalações. Trata-se, por vários caminhos, da eterna busca do equilíbrio. Para fechar esta minha pequena análise do “fator marketing”, também acrescento que os prêmios, as classificações, as manchetes nos jornais são apenas um meio rumo a um objetivo mais articulado e longínquo. Nunca me senti muito atraído pela publicidade, nunca investimos em spots na TV, e muito pouco nas revistas. E o que fazemos neste campo depende muito mais do coração que da cabeça. Uma pergunta pode surgir espontânea, a esta altura: qual é, então, a finalidade de tudo isto? Porque tanta pesquisa e labuta? Se o lucro, a expansão do mercado, a maior visibilidade são apenas instrumentos, o que alimenta esta obsessão pelo “vinho ideal” – transcendental, citando mais uma vez Veronelli – que para mim e os meus antepassados, a minha família e o círculo dos meus colaboradores, imbui quase todos os aspectos do dia? Meditei longamente a respeito disto, e também lembrei o que meu pai defendia. E acredito poder dizer que o foco de todo este fazer e imaginar o vinho, deste contínuo modernizar adegas, aperfeiçoar os vinhos e comprar vinhedos, é a ideia de deixar para a próxima geração uma empresa melhor que a que recebi. A consciência de existir como um protagonista

ativo no rio de existências que se passaram fazendo vinhos nas colinas toscanas. Só assim poderei dizer que não desperdicei o meu tempo. A família-empresa de que tanto falamos não funciona limitando-se a manter o que já existe, mas visando ao futuro e ao melhor. Com paixão. Meu pai conseguiu isto apesar das dificuldades criadas por dois sucessivos conflitos mundiais. Eu, em condições certamente mais fáceis, espero fazer o mesmo. O último “P”, que porém é o que tudo resume, é justamente o “P” de Paixão. É a paixão por tudo o que fazemos e aquilo que este tudo representa. É uma maneira de enfrentar a vida. Não se vê somente no seu produto final, mas no estilo com que você vive o seu tempo, com que se apresenta. A paixão é uma fagulha muito mediterrânea. E muito toscana. Da Itália e da minha região, o que mais fascina os estrangeiros é o fato de a beleza e a harmonia – no objeto de artesanato, na mais famosa obra de arte, num prato de feijão com azeite extravirgem de oliva – não nascerem, aqui, só do brilho de uma mente criadora e arrojada: são emanação contínua e natural de um “sistema do Belo”. Eu, viticultor italiano, ou então chef, dono de restaurante, designer ou artista, gero beleza e qualidade porque para elas fui educado, porque nelas cresci e as reconheço a cada instante à minha volta, nas cidades e nos campos do meu país, porque renovo este pacto do estilo toda vez que me sento à mesa ou escolho um objeto.

No nosso particular sistema do Belo, sistema da qualidade que acredito ser o traço fundamental do estilo Antinori, o vinho é o onipresente pano de fundo e a meta. Mas não há só ele. Olho para as crônicas dos meus antepassados e encontro literatos e guerreiros, cardeais e embaixadores, de Bríndisi a Milão. Encontro diplomatas e funcionários da República florentina e, depois, do Grãoducado dos Médici, do Reino dos Lorena e da nova burocracia do reino de Saboia, ensaio geral da Itália moderna. A minha foi uma dinastia com raízes profundas e ramificadas na cultura e na política das épocas que atravessou. Amiúde no centro da grande história. Tommaso Antinori, no fim do século XV, foi um dos sábios no processo contra Girolamo Savonarola, o frade dominicano que sacudira a cidade com seus sermões que atacavam a Igreja daquele tempo e a ordem constituída (e que acabou enforcado e queimado na Praça da Signoria). Só para constar, Tommaso votou pela absolvição. Uma geração depois, Amerigo di Camillo foi por sua vez chefe de uma facção contrária aos Médici, um desterrado e capitão ventureiro de alterna fortuna que muitas vezes precisou do socorro do pai para sair da prisão. Em compensação, este Antinori de quinhentos anos atrás, rebelde e de farta cabeleira, olhará para sempre em nossos olhos de um retrato de Jacopo Carucci, o Pontormo. Tivemos um Antinori – Alessandro, filho de Niccolò, por volta de 1550 – diretor do Ufficio Del Monte, o primeiro

banco italiano. Outro, Bastiano, entre os fundadores no século XVI da Accademia della Crusca, os defensores da identidade e da pureza da língua italiana. Mais outro, Vincenzio, nascido no fim do século XVIII, foi um estudioso e cientista renomado. Como membro da ilustre Accademia dei Georgofili, uma das primeiras instituições na Itália a tratar da ciência do território e da agricultura, Vincenzio foi, entre muitas outras coisas, curador dos escritos de Galileu Galilei, o homem que tirou o planeta Terra do centro do sistema solar (nada de fogueira para ele, a punição foi a prisão domiciliar), e de Alessandro Volta, o inventor da pilha elétrica. Houve Antinori bailarinos da corte e jogadores de calcio florentino, a violenta versão renascentista do moderno futebol. E Antinori escritores e poetas. Sempre achei romântica a figura de Bernardino di Antonio di Raffaello Antinori, poeta e homem de corte do século XVI. Especialista em rimas em louvor das damas da nobreza florentina, conta-se que para Bianca Cappello, loira e badalada segunda esposa de Francesco I de’ Medici, compôs um verso demasiado. Acontece que o ciumento grão-duque primeiro mandou aprisioná-lo, e depois, quase certamente, matá-lo no cárcere. Outras fontes, na verdade, contam uma história um tanto diferente, isto é, que a relação de Bernardo Antinori teria sido com Dianora di Toledo, mulher de outro filho de Cosimo, o feroz Pietro, e sobrinha da requintada Eleonora di Toledo (aquela retratada por Bronzino num incrível vestido branco, preto e ouro). Mas

o resultado é o mesmo, com o Antinori condenado ao cárcere e à morte por um marido ciumento. Por causa de uma mulher bonita demais. A arte sempre atraiu os meus antepassados. Ao palácio Antinori chegou, no fim do século XVII (o chefe da família era então Antonio di Giovanni Antinori), uma sublime Madonna con Giuseppe e Giovannino de Rafael Sanzio. Dois séculos depois, Egisto Fabbri, que era cunhado do meu avô, teve o faro de comprar nada menos que dezesseis telas de Paul Cézanne, gênio do Impressionismo ainda desconhecido. O próprio Piero Antinori – é uma história familiar zelosamente guardada e transmitida no tempo – foi amigo de Giacomo Puccini, grande músico, grande toscano e, como nós, os Antinori, viajante curioso e caçador, sobretudo de aves migratórias, em seu barco, pelos canais do lago de Massaciuccoli. Teria sido justamente ele quem teria sugerido que o compositor de Lucca se inspirasse, para um novo drama lírico, numa obra teatral que tinha visto nos Estados Unidos, The Girl of the Golden West, de David Belasco. Iria se tornar La fanciulla del West, a sua obra-prima americanófila. Os modernos Antinori também vivem uma existência completa, rica de estímulos e de interesses. Plena e ativamente inseridos no sistema do Belo e do Bem Viver próprio do estilo toscano e italiano. Não se encontrarão membros da minha família nos ministérios ou na mesa

diretora de uma grande multinacional. O melhor das nossas energias vai para as nossas garrafas, mas sempre procuramos dar a contribuição da nossa experiência nas sedes da moderna diplomacia do vinho, ou onde possamos trabalhar para a imagem de Florença ou da Toscana. As oportunidades para usar o meu inglês de sotaque meio toscano, meio americano, nunca faltam. O mesmo não acontece com o francês, que estudei por longos anos e já foi a língua do vinho, mas que agora só uso, praticamente, no intercâmbio que mantenho com a universidade de Bordéus. O nosso relacionamento com a arte concretiza-se, no entanto, nas iniciativas da Academia Antinori, uma estrutura com que procuramos defender, valorizar e tornar conhecidos artistas, obras e empreendimentos ligados ao vinho e às nossas paisagens rurais. Um pequeno culto familiar, todo nosso, é Egisto Ferroni, pintor naturalista de Lastra a Signa, que retratou em telas grandes e extremamente vitais o trabalho e os rituais dos campos e das vinhas do século passado. Em 2002, contribuímos para a restauração e a exposição em Livorno de um ciclo de oito obras deste mestre que brigou com os colegas devido ao excessivo realismo das suas pinturas, e que sempre preferiu às salas livornesas e florentinas o estudo solitário nos campos. Em 2007, também decidimos organizar uma mostra de vasilhame do vinho na antiga Grécia, expondo-o no pátio do palácio Antinori, com peças de até 1.500 anos provenientes de Chipre e do Egeu, do acervo do Museu

Arqueológico Nacional de Florença. Também abrigamos no palácio uma coletiva de arte contemporânea sobre o tema do vinho e patrocinamos muitas outras iniciativas. A mostra que mais tocou o meu coração foi uma escolha de fotos do Arquivo Alinari, feita em 2003, sempre no palácio Antinori: duzentas imagens dos nossos campos de cem anos atrás – o Chianti, a Maremma, o Mugello, a Valdichiana… – cheias de feitores e trabalhadores sazonais ocupados entre as vinhas, de piqueniques nos bosques de abetos e de carros puxados por cândidas vacas maremmanas de chifres desmedidos. Entre uma e outra vindima, os Antinori das últimas gerações sempre arrumaram um tempinho para praticar algum esporte, base de existências ativas e saudáveis, mas também fruto do nosso hábito “genético” de viver ao ar livre, no meio da natureza e das paisagens em que crescemos. O meu avô Piero foi o primeiro presidente da Federazione Italiana Tennis, fundada em 18 de maio de 1910 no Circolo Tennis de Florença, encastoado no grande parque urbano de Le Cascine (atualmente, a melhor raquete da família é Alessia). Eu tive uma adolescência de pedais; meu pai, que amava tanto o mar quanto a montanha, que já em idade avançada passeava pela Holanda de bicicleta, que foi presidente do Ente del Turismo e dello Sport, gostava de levar consigo os filhos em longos passeios ciclísticos. Lembro expedições decididamente aventurosas na Val d’Aosta, no Abruzzo, em

todas as estradas e trilhas da Toscana. Muitas das quais fui percorrer de novo com as minhas filhas. Outras excursões de vários dias a gente fez, depois, nos primeiríssimos dias das motoquinhas. E mais: sempre fomos bons golfistas e continuamos ligados ao mundo do golfe. É uma disciplina pela qual me apaixonei principalmente nesses últimos anos, mais um esporte na natureza que vive de elegância e precisão. E também de contatos: encontrar colegas viticultores e empresários, ou clientes e distribuidores em algum bonito green da Toscana ou dos Estados Unidos, sempre foi uma excelente maneira de farejar o que acontece fora do portão do palácio Antinori. E depois há os cavalos. Allegra criou um haras de purossangues de alto nível, a coudelaria de Macchia del Bruciato, bem no coração de Guado al Tasso. Albiera, que já participou de concursos hípicos, de manhã, antes do trabalho no palácio Antinori, sempre concede a si mesma uma meia hora de treinamento no Centro de Hipismo de Le Cascine, e aproveita qualquer oportunidade para promover publicamente este esporte como escola de estilo e de vida: “O hipismo e o mundo empresarial têm muita coisa em comum”, defende. Por isso, talvez, em lugar de endereçá-la à clássica “iniciação Antinori” com uma vindima, mandei a minha neta Verdiana trabalhar nos Estados Unidos como groom, para se acostumar com o que der e vier. Um verdadeiro rito Antinori, de uns séculos para cá, é a caça nos nossos campos, como se pode ver pelos troféus de

antigos ungulados pendurados nas paredes da casa em Guado al Tasso, junto com uma porção de quadros com cenas venatórias. (Muitas foram pintadas por Eugenio Cecconi, um pós-macchiaiolo[3] livornês, grande amigo do meu avô Piero e apaixonado caçador.) Meu pai também caçava; dedicado e válido fotógrafo, deixou-nos um grande número de fotos em preto e branco que são um extraordinário testemunho da Maremma toscana do passado. Depois caçou comigo, sempre nas redondezas dos morros de Tignanello. Coube em seguida a mim e à minha filha Albiera seguir pelas trilhas entre as moitas de Guado al Tasso com os nossos cães Doc e Cyroc. Atualmente, quem leva adiante a tradição é principalmente ela, com suas crianças, lá na Maremma. Quanto a mim, tornei-me um caçador solitário, que só raramente dispara. Cacei por muito tempo na África, na Áustria e em outros lugares do mundo. Hoje prefiro ficar na minha zona. A espingarda do time Antinori que mais se parece comigo, agora, talvez seja Renzo Cotarella. Embora separados pelos respectivos territórios de caça. Ele costuma andar, ao alvorecer, pelas matosas colinas da sua Úmbria, famosas pelas trufas brancas, não muito longe do nosso Castello della Sala. Eu, pelos pinheirais salobros de Bolgheri, pelos campos e charcos de Guado al Tasso. Ambos gostamos de partir sozinhos. Da caça, amamos o silêncio da natureza, caminhar longe das trilhas, o relacionamento com os cães.

Sempre houve muitos cães nestas últimas gerações de Antinori que voltaram a viver a maior parte do tempo fora de Florença. Nas propriedades, mas também nos aposentos do palácio (neste caso, de tamanho menor). Os meus cães, como por outro lado muitos dos nossos cavalos, têm nomes que começam por “A”: Asterix, Asso… É a minha pequena mania. Albiera preferiu rebelar-se e deu ao cão dela o nome de Zulu. Desde então, virou anarquia. O vocabulário “vinícola” também domina: no Castello della Sala, por exemplo, Alessia já teve um cão chamado Bricco[4] e um pastor alemão chamado Cork (rolha, em inglês). E, uma vez que estou sempre preparado para revolucionar os clichês, pelo menos uma vez eu também quebrei a sequência dos “A” para dar ao meu amado perdigueiro alemão o nome de “Doc”. De qualquer maneira, com este cão de caça de “denominação de origem controlada”, não me afastei tanto assim da primeira letra do alfabeto, e afinal ainda se falava de vinho, e acho que, no fundo, foi uma saudável exceção à regra. São todas coisas que só um verdadeiro caçador pode entender. Assim como só um verdadeiro caçador pode entender que pegar ou não um faisão, no fim do dia, não faz a menor diferença. Quando acabei me tornando o chefe da empresa, era jovem e inexperiente. Mas já conhecia esta paixão que impregna tudo o que você faz. O trabalho e as relações familiares, a arte e o empenho público, as viagens e o esporte, a caça, os

cães, os cavalos. O vinho. É disto que se alimenta o comportamento que nos guia na vida e na profissão, este é o carburante da paciência e da perseverança, da precisão e da criatividade empresarial. E era justamente isto o que as nossas garrafas deveriam transmitir. Um estilo de vida, o estilo da minha família que, a partir daquele momento, eu era chamado a personificar e representar. As “missões” ao exterior, expor o meu rosto e o meu sobrenome, já me haviam feito compreender o sentido profundo da empresafamília e do meu papel. Porque a sobreposição entre a marca e a história familiar é o outro fundamento do nosso estilo, a base da substância dos nossos produtos e da percepção deles. Garantia da sua qualidade no tempo. Por toda essa série de razões, vestir este sobrenome é inevitavelmente um privilégio e uma responsabilidade. Em todos os momentos do dia, a maneira como você se apresenta e ao seu trabalho dizem aos outros o que é um Antinori. E o que faz a diferença são tanto o preparo técnico quanto a paixão e o envolvimento pessoal. O diretor de uma firma vinícola deve ser como o taberneiro em sua taberna: os fregueses voltam a frequentá-la toda noite porque conhecem o nome dele, que talvez seja o mesmo do pai taberneiro, do avô taberneiro; sabem que não servirá em seus copos vinho aguado ou mal envelhecido. É preciso cuidar do próprio nome. Emanuele Pellucci, nas primeiras páginas de Antinori Vintners in Florence (Antinori vinhateiros em Florença, de 1981), escreve uma das coisas

mais simples e ao mesmo tempo mais bonitas que já tive oportunidade de ler acerca do nosso trabalho: “I have never heard anyone speak badly about the Antinori House” (Nunca ouvi alguém falar mal da firma Antinori). Para reforçar o nosso princípio de contato direto com as pessoas que tomam e amam o vinho, toda vez que alguém vem me visitar em Florença mostro a janelinha, quase um postigo, do tamanho certo de um fiasco toscano, através da qual os meus antepassados, até uns duzentos anos atrás, vendiam aos transeuntes as bojudas garrafas empalhadas da adega do palácio Antinori. Um fiasco por uma moeda. Meu pai, que levou o seu Villa Antinori aos restaurantes e aos hotéis mais renomados do mundo, renovou o pacto “do produtor ao consumidor” naquela Cantinetta Antinori, a pequena adega de degustação, que fica no térreo, bem diante da nossa sala das reuniões. E hoje, quando vendemos muito mais garrafas, seis em cada dez, para o mercado exterior, também abrimos “Cantinette” em Zurique, Viena e Moscou. A fim de conquistar novos mercados e novas gerações. E é por todos esses motivos que, desde as primeiras incursões em territórios onde o vinho não era lá muito amado, nunca parei de viajar. Viajar ocupa metade do tempo que dedico à empresa. Foi viajando que meu pai encontrou o seu caminho. Por isto Albiera, Allegra e Alessia viajam. A presença física, como família, nos lugares onde se produz, se vende e se julga o nosso vinho é tudo. Não

podemos delegar. Aqui estamos nós, somos a família Antinori, aqueles que há séculos “fazem o bom vinho”, como certa vez escreveu numa dedicatória a meu pai o prefeito da inundação de Florença, Piero Bargellini. O sobrenome e a maneira como o leva pelo mundo afora também garantem, portanto, aquilo que você faz. O que veem e o que eu gostaria que vissem o público e os peritos do ramo quando me encontram numa feira do vinho ou atrás da mesa de uma conferência? Brincando, Paola, do nosso setor de comunicações, afirma que quando desembarco em Nova York sou como Sophia Loren: personifico toda a beleza que os estrangeiros ligam à palavra “Itália”, isto é, requinte, criatividade, bom gosto, “dolce vita”. Na verdade, não creio que as coisas sejam exatamente assim, mas certamente, quando estou no exterior, sinto orgulho de ser florentino e de representar uma cidade que tem um fascínio tão universal. No exterior, um empresário italiano de qualidade não pode deixar de assumir a responsabilidade de representar o próprio país. Um país de grande poder evocativo na costumeira imaginação internacional. Assim como um poderoso sentido simbólico marca a palavra “Toscana”. Estou me referindo à Toscana como entidade histórica, como paisagem admirada em qualquer lugar do mundo. Como estilo. Quinta-essência italiana. Mas também me refiro à Toscana física, feita de torrões, seixos, barros.

Albiera, que às festas sociais sempre preferirá uma boa galopada pelas vinhas, nas entrevistas gosta de salientar que os Antinori continuam a ser vinhateiros, pessoas que trabalham a terra sem medo de sujar as mãos. Pelo menos desde que o meu pai compreendeu que o vinho, se quisermos que seja vinho para “dar prazer” e não apenas para “tirar a sede”, não podia ser produzido nas nossas adegas com uvas compradas de outros produtores. Tínhamos de acompanhá-lo desde o plantio da videira até a prateleira da enoteca. “O grande vinho nasce na vinha”, costuma repetir Giacomo Tachis. “O melhor vinho é obra do camponês”, dizia Luigi Veronelli. São dois gênios do vinho que trabalharam e criaram com os Antinori. O campo toscano é o sinal concreto da nossa história. Podemos andar pelo mundo de cabeça erguida, plantar novos vinhedos em todos os continentes porque temos sólidas raízes em Bolgheri e em Tignanello, em Badia a Passignano e em Montalcino. E também há os títulos, que ajudam principalmente nas relações-públicas. Em Florença, entre os meus colaboradores e nos jornais, sou o “marquês Antinori”: mas, antes de tudo, nós continuamos a ser uma família de mercadores da República florentina. Particularmente resistente ao tempo e aos caprichos do clima. Ao longo dos séculos os Antinori espalharam-se por todas as partes. E por todas as partes se arraigaram como boa grama: desde a

Argentina até o Sul da Itália. Pelo que resulta dos nossos arquivos, mas também de vários livros, teses e ensaios escritos sobre a minha família, sempre prestamos muito mais atenção à substância das coisas que à celebridade ou ao carrossel da vida mundana. E continua a ser assim. Somos descendentes de magistrados e funcionários da corte dos Médici. O mundo tipicamente florentino das antigas famílias nobres, com seus ritos e liames, também é o nosso mundo. Mas se quiserem nos procurar será muito mais fácil que nos encontrem no meio de uma fileira de Sangiovese, ou em companhia de um cavalo ou de um cão. O nosso primeiro contato com as pessoas, quaisquer pessoas, é o do comerciante orgulhoso da sua mercadoria e do seu trabalho. Não muito dado à jactância. Fui “Man of the Year 1986” para a Decanter, o primeiro italiano a merecer este título, e a mesma revista enológica britânica acaba de me eleger, em junho de 2011, “o homem mais influente do vinho italiano”. Sou Premio Leonardo Qualità Italia do Presidente da República 2004, melhor produtor na Vinitaly de 2006, Viticultor do ano para a revista Wine Enthusiast em 2008 e muitas outras coisas. A visibilidade e transparência da minha empresa e o empenho que sempre dediquei ao meu país, à minha região e ao mundo do vinho, mesmo fora do âmbito do trabalho, levaram-me a posições como a de presidente da Federação Italiana dos Produtores de Vinho, Destilados de Vinho e

Licores, membro da Academia Italiana da Videira e do Vinho e (como, aliás, os meus antepassados) da Accademia dei Georgofili. Atualmente sou, entre outras coisas, presidente do Instituto do Vinho de Qualidade Grandes Marcas. Mas, se realmente eu tiver de escolher entre todas estas insígnias honoríficas, então prefiro “Cavaliere del Lavoro”. Quem me concedeu a condecoração foi Oscar Luigi Scalfaro, presidente da República, em 1995. Para o meu pai foi Luigi Einaudi, em 1952, com a dupla motivação dos sucessos vinícolas e das obras de saneamento com que estávamos mudando os campos de Bolgheri. Os dois diplomas estão pendurados um ao lado do outro, numa parede da sala do Conselho de palácio Antinori. Para ele, no entanto, o “título” mais amado sempre foi aquele com que era chamado pelos amigos: “o Vinhateiro”. Estou agora me lembrando de outro personagem dos meus primeiros tempos de “vendedor”. O seu nome era Lino De Vito. E se fazia chamar de marquês, ainda que eu nunca tenha procurado saber se a família fizesse jus ao título. Certamente nobres foram o empenho e a generosidade com que sempre se dedicou ao trabalho. Nascido no Abruzzo nos anos 1920, De Vito tivera uma vida bastante agitada, povoada de numerosas damas e senhoritas. Fora um verdadeiro dom-joão. Mas contam que a certa altura se sentiu tão sufocado pela atenção de tantas mulheres e, talvez, de alguns maridos não muito satisfeitos, que decidiu fugir para Nova York. Lá, à beira da miséria,

para tocar o barco decidiu vender vinhos por conta de uma pequena firma ítalo-americana, batendo pernas por toda Manhattan. Coisa que continuou a fazer pelo restante da vida, até a morte alguns anos atrás, transformando pouco a pouco aquele trabalho de representação, naquele tempo muito humilde, numa arte e numa missão. Na época da sua chegada aos Estados Unidos, os vinhos italianos só eram encontrados nas modestas cantinas mantidas e frequentadas por imigrantes, com prato feito à base de “spaghetti with meatballs”, “veal piccata” e o infalível “spumone”, pratos que nenhum italiano, na sua pátria, se atreveria a comer, mas que por lá eram considerados por muitos estabelecimentos a mais típica gastronomia europeia. O Italian style, em resumo, andava bastante por baixo. Neste contexto De Vito fez um verdadeiro milagre: conseguiu botar o Soave Bolla na carta dos vinhos do mais prestigioso restaurante nova-iorquino da época, o Colony. Tratava-se de um estabelecimento internacional, dirigido por outro mítico personagem italiano de Nova York, chamado Gene Cavallero, mas não era uma trattoria: era o ponto mais requintado e frequentado de toda a cidade, por onde passavam políticos e atores famosos, bilionários e estrelas do palco. Contam que, para conquistá-lo, o vendedor italiano chegou a usar a influência de uma conhecida filha de um grande magnata nova-iorquino. Seja como for, para ele foi a consagração. Entrar no Colony significava ter nas mãos as

chaves da cidade. Na prática, tinha conquistado a América, coisa que depois tornou mais fácil o trabalho de todos nós. Quando comecei a bater pernas na Grande Maçã com ele, durante anos me virei ao ouvir chamar “Marquês!”. Mas não era a mim que se dirigiam: naquela cidade o “Marquês italiano do vinho” era ele. Uma pessoa que vendia e contratava com tamanha dignidade, que transformava o ofício no que parecia ser a profissão mais importante do mundo. Em Nova York, De Vito entrava nos restaurantes de luxo como o hóspede mais esperado; conhecia a todos, de todos sabia o nome e a história, e por todos era benquisto. Ajudava qualquer um que precisasse de um empurrãozinho ou de um conselho, mas também estava igualmente pronto para pôr em seu lugar, com elegante firmeza, quem quisesse se aproveitar dele ou do seu nome. Trabalhar com ele, aprender o seu estilo e a sua paixão nos anos em que trabalhou conosco foi para mim uma grande lição de vida. Mesmo que pela árvore genealógica eu fosse “mais marquês” que ele, aquele homem me ensinou a nobreza do agir. A nobreza do vinho. Como já disse, prefiro falar do nosso trabalho e dos meus vinhos a falar de mim mesmo, e acho que isto também vale para as minhas filhas. A vigésima sexta e a vigésima sétima gerações Antinori são zelosas da sua privacy. A escada que do pátio do palácio Antinori, sempre aberto aos turistas, aos colaboradores e ao sol de Florença, sobe aos nossos apartamentos nos andares superiores e marca uma

fronteira muito clara entre a esfera pública e a privada. Como é justo que seja. Tudo o que somos é muito bem representado pela nossa casa. Um refúgio de pedra plantado em terra toscana, a poucos metros do Arno florentino, encimado pelo brasão da família reelaborado em 1512 pelos della Robbia, exímios ceramistas do Renascimento. Há cinco séculos o palácio Antinori é a nossa sede administrativa e a nossa morada. Atrás da própria fundação do palácio Antinori como castelo urbano da família, também há uma história. E há uma dama. Chamava-se Camilla Marsuppini, beldade florentina de meados do século XV. Há um pequeno retrato dela na moldura de uma lareira esculpida por Desiderio da Settignano, atualmente no Victoria & Albert Museum de Londres. Depois de casar com um tal Giovanni, filho do rico banqueiro e comerciante de seda florentino Bono di Giovanni di Bartolo Boni, Camilla fez falar muito (demais) de si. Um infortúnio sentimental, uma secreta ofensa: ninguém sabe ao certo. Mas surgiram tantos boatos acerca dela, que o marido pediu a separação. Um gesto clamoroso, na época, e uma afronta para a donzela e toda a sua família. Tanto assim que os Marsuppini não acharam outra saída a não ser vingar a ofensa com o sangue. Giovanni, filho de Bono di Giovanni di Bartolo Boni, foi morto em novembro de 1466 por um cunhado.

O que isso tem a ver com os Antinori? Acontece que o banqueiro acabara de comprar para o filho e a nora um vasto e extremamente cobiçado terreno diante da igrejinha de San Michele Bertelde (agora Santos Michele e Gaetano), a poucos passos do rio Arno e do batistério. Ali, derrubados os velhos casebres medievais que ocupavam a área, estava sendo erguido um grande palácio, sinal tangível e concreto do status e do poder dos Boni. Por causa de Camilla e da rixa familiar por ela provocada, os eventos se precipitaram. Um filho assassinado, uma nora repudiada, uma mancha negra sobre toda a estirpe, com consequente ruína econômica e de imagem para todos. Em 1470 os Boni declaram bancarrota, e o seu terreno, incluído o dispendioso canteiro de obras no centro do centro de Florença, diante de condições tão adversas, se torna um fardo de que é preciso livrar-se quanto antes. Começa uma espécie de competição entre as famílias mais endinheiradas para adquirir aquele ponto estratégico. Até os Médici, os grandes senhores da cidade, ficam interessados, e acabam entregando o palácio à família Martelli. Mais uns poucos anos, estamos em fevereiro de 1506, e a grande fachada de pedra que dá para a rua Tornabuoni encontra os seus donos e seu destino definitivos. Cabe a Niccolò di Tomaso Antinori, aconselhado ao que tudo indica pelo próprio Lourenço, o Magnífico, em pessoa, adquirir dos Martelli “por 4 mil florins pesados e grossos” aquela que desde então é a nossa morada principal, bem

como o nosso símbolo e quartel-general. Para Niccolò foi a maneira de ratificar os sucessos empresariais dos Antinori nas atividades bancárias e têxteis. Mas a partir de então foi, na verdade, um sacrário para a minha família e um endereço significativo para toda a cidade. Hoje em dia a identificação entre nós e aquele canto de Florença é completa: chega-se ali pela estreita rua Antinori, e Antinori é o nome da praça bem em frente. Do outro lado, encostada à igreja dos Santos Michele e Gaetano, ergue-se a capela Antinori, mandada construir no começo do século XVII por Bastiano, Lorenzo e Vincenzio Antinori. Abriga o túmulo de Alessandro Antinori. Fechada ao público, restaurada com afinco conforme o desejo do meu pai, é desde sempre o nosso lugar de recolhimento. Há um pequeno episódio que, muitas vezes, o meu pai gostava de contar, talvez por ser mencionado nos livros de história local do grande amigo Piero Bargellini. Mas também porque se falava do palácio. E do vinho. Encontro-o numa velha fotocópia entre as fotos de um seu álbum. No alvorecer do Renascimento, ao abrigo do nosso pórtico, hoje parcialmente coberto, reunida em volta da mesa uma turma de amigos festeja o verão. Entre os hóspedes, com um grupo de padres da cidade e dos arredores, sobressai o pároco Arlotto. Este sacerdote do condado florentino, que realmente existiu no começo do século XV, é uma espécie de “máscara” popular do padre bonachão e jubiloso. Em

quadros, contos e anedotas é sempre representado como amante do bom vinho e da boa comida, além das brincadeiras e das alfinetadas às vezes mortíferas. (Até depois de morto, o pároco Arlotto continua a zombar da gente. No seu túmulo no oratório de Gesù Pellegrino, em Florença, está escrito: “Esta sepultura o pároco Arlotto mandou fazer para si e para quem quiser entrar”.) No meio do jantar, de qualquer maneira, de repente falta o vinho. Normalmente os fiaschi chegavam diretamente da adega subjacente presos a uma corda manobrada pelos serviçais, através da bomba central de uma pequena escada em espiral que hoje já não existe. Naquela noite, entretanto, não havia serviçais. É preciso sortear um convidado que desça para tirá-lo dos barris, que naquela época sazonavam nos nossos subterrâneos. A esta altura, o alegre bando de companheiros conspira para que a honra desta tarefa incômoda e cansativa caiba ao padre brincalhão. Que, desta vez burlado em vez de burlar, meio a contragosto – parece que não era lá muito dado a trabalho –, desce, se espicha, e volta arfando. Mas há algo errado: o hóspede, famoso pelo seu bom humor, fica de repente com ar sombrio e preocupado. – O que houve, vigário? – perguntam os donos da casa. – Estou muito preocupado, senhores, porque não lembro se coloquei de volta o zippolo (o espicho) nos barris! Nem é preciso dizer que a turma toda esqueceu cálices e bandejas para descer correndo e averiguar se os porões do

palácio estavam realmente ficando alagados do precioso tinto Antinori. Burla bem-sucedida: o pároco tinha conseguido fazer com que, de comida atravessada na goela, os seus ilustres anfitriões se levantassem da mesa. Aconteceu tudo aqui, onde agora mesmo estou escrevendo. Para entender quanto este lugar é importante para nós, bastaria lembrar o breve período em que a harmoniosa fachada de pedra com o seu assimétrico portão de madeira não foi “casa Antinori”. Eram os anos 1920. Dias não muito prósperos. Fosse para cortarem as despesas de manutenção do palácio, fosse porque precisavam de dinheiro vivo, os meus parentes haviam decidido ceder a sua histórica morada. É preciso salientar que, então, quem ocupava o palácio não era o mesmo ramo da família Antinori a que meu pai e eu pertencemos, mas outra linha de descendência, agora extinta. Uma dinastia de fidalgos do campo que nunca se interessou pelo vinho. A “bifurcação” acontecera na época do famoso Vincenzio, o senador-cientista que tivera dois filhos homens: Giuseppe Niccolò e Niccolò Giuseppe (ainda bem que, na escolha do nome dos vinhos, sempre tivemos mais imaginação que na que transparece dos nomes de batismo). Coube a Giuseppe Niccolò, nascido em 1844 e três anos mais velho que o irmão, ser escolhido como continuador do sobrenome. E foram os seus netos que deixaram o palácio.

Concluída a venda, a antiga morada abrigou primeiro os escritórios de um pequeno banco florentino do qual se perdeu até a razão social, e então os da BNL, a Banca Nazionale Del Lavoro, um dos principais grupos bancários italianos. Os “meus” Antinori, por sua vez, estavam então morando no histórico palácio Capponi, na rua Gino Capponi. Era alugado, mas o consideravam a sua casa, embora passassem a maior parte do tempo nos vinhedos. Lá morava o meu pai, e lá nasceram as minhas tias. Lembro que, quando um descendente da casa Capponi, Folco Farinola, anunciou a decisão de vender o prédio ao município de Florença, com a ideia de transformá-lo numa escola, os meus entraram em pânico. Até a intervenção salvadora do nosso parente mecenas Egisto Fabbri, que decidiu comprar de papel passado o palácio Capponi, financiando a operação com a venda dos seus famosos Cézannes. Resumindo, estávamos pensando em fazer daquele lugar o nosso endereço definitivo. Mas então a grande ideia. Haviam-se passado mais uns vinte anos. Na mesma época em que eu estava tentando relançar a firma e os seus vinhos, a mesma em que estávamos juntando os cacos das Adegas de San Casciano, meu pai decidiu dar novamente à família – pois éramos nós, agora, o ramo principal dos Antinori florentinos – a sua verdadeira casa. Aquela que, em todos aqueles anos, em seus passeios pela rua Tornabuoni, ele tinha ficado olhando do lado de fora. Para fazer isto,

vendeu a vila Antinori, que, como já vimos, se tornara por vários motivos inabitável. Sujeitou-se a mil privações e a um investimento financeiro, para a época, enorme, mas em 1957 voltamos para cá. Ao longo da nossa longa história fora apenas um breve parêntese longe da nossa sede, menos de quarenta anos em cinco séculos. Mas para os Antinori em busca de um futuro no século XX foi uma guinada e tanto. Nos cômodos reconquistados meu pai recriou, com amor e paixão, a decoração original, fez trazer das nossas espalhadas residências as mais variadas lembranças e alfaias: fotos, quadros, cerâmicas, livros, arquivos; o seu capacete de soldado de infantaria, o tratado de enologia de Gioanvettorio Soderini de 1610, com as notas de Bastiano Antinori, a minúscula lebre de pedra que o meu avô lhe dera de presente depois da primeira caçada dos dois juntos. Rearrumamos os escritórios no térreo e os nossos apartamentos à altura dos telhados de Florença. Na sala ocupa agora um lugar especial uma foto que me retrata com minha mãe, naquele mesmo aposento, diante de uma grande tapeçaria com cenas de batalha, radiantes no dia da volta. Foi uma operação heroica, guiada pelo sentimento mas também pela consciência de que aquele símbolo em alvenaria era crucial para a imagem da família e da empresa, ligando os Antinori de hoje ao seu passado e à sua história. Escritórios e morada juntos, no centro urbano.

Miraculosamente intato no coração da cidade que passou por infinitas reestruturações, assédios militares, um feio bombardeio em 1943 e uma desastrosa inundação em 1966, o palácio é uma sólida metáfora do estilo que comunica ao mundo a nossa paixão por aquilo que fazemos e somos. O quartel-general da estratégia que procuramos levar adiante como família e empresa vinícola. Quase tudo aquilo que fazemos pode ser reduzido a esta fórmula: inovar sempre no respeito da qualidade, mas mantendo firme a estrutura e a essência da nossa história. O palácio tem mais de meio milênio de vida, mas as ideias que nascem nele são sempre novas, o seu portão está sempre aberto aos florentinos e aos hóspedes estrangeiros, abriga mostras, congressos, degustações, eventos. A história do vinho toscano do último meio século, afinal de contas, também está toda aqui: um espírito moderno que se enxerta numa história antiga de lindas uvas. O Chianti Clássico estava azedando, no sentido metafórico e ao mesmo tempo material do termo, e isto justamente quando no restante do mundo a meta era cada vez mais a qualidade, a leveza, a elegância. Do palácio Antinori partiu o projeto para melhorá-lo abrindo as nossas adegas às novas técnicas e às novas filosofias do vinho. Não foi um atropelamento, uma subversão do que existia; tratou-se mais de uma recuperação, de alguma forma “filológica”, da essência do Chianti, cavando com novos instrumentos e com nova consciência nas concreções de maus hábitos

enológicos, comerciais, agrícolas que se lhe haviam estratificado em cima. Mas teremos chance de voltar ao assunto. Albiera, Allegra e Alessia também trabalham no palácio, mesmo tendo escolhido não morar nele com as respectivas famílias. E é durante as nossas refeições juntos que nascem projetos e vinhos. Ou durante as reuniões cotidianas em volta da grande mesa do escritório no térreo, entre antigas gravuras, variados diplomas e todos os vinhos da família que olham para nós de uma estante-vitrine. Com os turistas na Cantinetta Antinori do outro lado do corredor e o vaivém das motoquinhas na rua Tornabuoni fora da janela. Hoje em dia, muitas vezes eu nem apareço e deixo que decisões cada vez mais importantes sejam tomadas no confronto direto entre os membros da vigésima sétima geração. Geralmente, diante de um copo de vinho. Família é, mais uma vez, uma palavra-chave na receita do nosso estilo. Uma pequena fórmula mágica. Uma delicada alquimia que para nós conjuga vida e trabalho, talvez nascida do fato de que, por muitos aspectos, para nós os dois termos são a mesma coisa. E além do mais, neste momento de transição entre duas gerações, estamos na situação perfeita de um grupo plenamente afinado. Afinal de contas, para levarmos adiante as nossas atividades, só existimos eu e as minhas três garotas, quatro cabeças ao todo. Com, ademais, Renzo Cotarella, que tanto eu quanto as minhas filhas quase consideramos um

membro da família, e que, entre outras coisas, tem a delicada tarefa de ser o traço de união entre as duas gerações. Falamos do senso de família, da herança de uma ideia, do nosso conceito de nobreza, do gosto de fazer as coisas direito e cada vez melhor. Dos pequenos e grandes prazeres e dos árduos desafios enfrentados na vida. Do vínculo com a minha região, com a sua cultura e com a minha casa. Tudo isso, através da paixão, acaba nos meus vinhos. E a todo gesto, a toda palavra que emprego para alcançar este resultado, me entrego de corpo e alma. O vinho que nasce das minhas terras se aperfeiçoa e amadurece a partir dos meus conhecimentos e experiências, é o que sei fazer melhor, o que melhor me representa. Daí a atenção ao detalhe, ao sentido de cada pormenor. Daí a procura, em tudo, da máxima qualidade, a vontade de crescer e aprender. Por isso, quando apresento um vinho, apresento todo o meu mundo. E acho que isto vale e valerá também para as minhas filhas e os meus colaboradores. Agora, talvez tenha ficado mais claro o que tento repassar. A herança, a continuidade que vendemos, o meu nome no rótulo, as raízes. São estes os motivos pelos quais, até nos momentos mais difíceis, a saída da firma do círculo familiar só pode ser a última opção. Um rótulo que também é um nome, um brasão, a longa aventura de uma família, não pode ser vendido a estranhos. A alguém que fará de tudo isto algo diferente de você.

Eu quero saber o tempo todo como este nome é usado e para onde está indo, não importa que se fale de uma garrafa ou de um prato de sopa de pão com tomate à florentina. De outra forma não funciona. Não pode ser.

  1 “Praça dos Negócios”: nome com que é normalmente chamada a Bolsa de Valores de Milão. (N. do T.) 2 O Vêneto é atualmente formado por três regiões separadas: o Vêneto propriamente dito (Veneza), o Trentino-Alto Adige (Trento) e o Friul (Údine). Trivêneto indica as três regiões juntas, como um todo. (N. do T.) 3 Macchiaioli: pintores da escola chefiada por Telemaco Signorini, inspirados no Impressionismo francês. (N. do T.) 4 Cafeteira, mas também jarro em geral. (N. do T.)

IV – TIGNANELLO Reinventar o vinho

O

Tignanello perfeito talvez continue a ser o de 1975. Um vinho que faz apaixonar no primeiro gole. Com

uma pureza luminosa de aromas que se alternam, quando você tira a rolha, o cheira, o saboreia, sem solução de continuidade. Afinal de contas não é tão complicado fazer vinhos intensos e saborosos sob o sol italiano. Difícil é encontrar uma elegância que não precise falar grosso. Ainda mais numa cultura do vinho que muitas vezes chegou a medir em graus a “importância” de uma garrafa. Sinto o Tignanello de 1975 como um vinho particularmente “meu”. Hoje eu sei que daquela vindima, e então das garrafas, depois de três anos de envelhecimento nas adegas da fazenda, saiu justamente aquilo que eu tinha imaginado. O vinho que realmente vale consiste apenas nisto: uma vinha e uma ideia. Uma vontade aplicada ao oportuno terroir – a mágica palavra francesa que indica o terreno específico e o específico ambiente que vão caracterizar o vinho – e aos bacelos certos. Um projeto levado a cabo sem desvios, superando qualquer obstáculo natural ou cultural, com a ajuda de um prezado grupo de colaboradores.

Gosto de pensar que nos aromas destes novos vinhos nascidos na Toscana, com a etiqueta da nossa marca, entre os anos 1960 e 1970, se pode perceber o caráter de todas as pessoas que de mil formas diferentes contribuíram para o seu nascimento. São os rostos e, com eles, as ideias, as palavras e os gestos encontrados no caminho de terra que levou ao Solaia e, sobretudo, ao Tignanello. Sem eles, o tinto das nossas vinhas teria continuado a ser somente um bom Chianti. Um vinho pronto para cumprir com o seu dever diante de uma “bistecca”[1] à florentina, é claro, mas que não acabaria sendo premiado no mundo inteiro, nem definido como “o vinho mais influente de toda a história vinícola italiana”. E muitas coisas seriam diferentes na minha vida e nos vinhedos toscanos. Quando vim a dirigir a firma, já fazia cinco anos que Giacomo Tachis era o nosso enólogo. Desde o primeiro momento nascera entre nós um relacionamento de amizade e apreço, além de uma completa sintonia, quando falávamos de vinho, que não se modificou com o passar dos anos. O mesmo relacionamento já existira entre ele e o meu pai. Tachis prezava Niccolò Antinori como homem e como vinhateiro; reconhecia nele, como veio a escrever depois, “o grande cromossomo” do vinho. Meu pai definia-o como “inteligente e apaixonado”, primeiro expoente daquela enologia que ia se transformando de prática em ciência, e

ficou-lhe eternamente grato por ter estudado e melhorado os seus queridos espumantes. O enólogo que assinou os melhores vinhos dessa época fundamental tinha começado a carreira numa firma da Romanha onde, de encomenda, faziam de tudo. Vermute, licores, vinhos… Era só o cliente pagar. Com aquela marca não surgiram destilados que fizeram história, mas para um aprendiz não podia haver escola melhor. Tachis distinguiu-se por desembaraço, dedicação e capacidade de improvisar. A sua chegada à Antinori foi, mais uma vez, fruto do acaso. Já fazia algum tempo que o meu pai “cultivava” em casa o futuro enólogo da firma. Chamava-se Checcucci. Um bom rapaz. Recém-formado em enologia, com a auréola de “escolhido” pelos Antinori: quem financiara os seus estudos na escola enológica de Conegliano Veneto havia sido o meu pai. Mas infelizmente alguma coisa não funcionou quando ele se viu diante da prova no campo, entre prazos e resultados por levar para casa. Sob pressão, o jovem não conseguia transformar facilmente em propostas e trabalho todos os seus estudos, e teve problemas de relacionamento com os colegas. Talvez não fosse exatamente para aquilo que ele tinha nascido. O desenvolvimento daquela que Vittorio Alfieri chamava “planta-homem” tampouco pode ser previsto e imaginado até o fim. No vazio que dessa forma se criou, Tachis foi indicado ao meu pai por Piergiovanni Garoglio. Não poderia haver melhor apresentação. Garoglio era naquela época “o”

mestre italiano de enologia e indústria agrária. Extravagante e lunático como na iconografia mais clássica do estudioso, então idolatrado pelos seus textos de química do vinho (atualmente, na verdade, um tanto superados), tinha viajado e estudado o vinho na Alemanha e na Argentina. Depois de voltar para Florença, após a guerra, colaborava conosco e aparecia bastante lá em casa. Certa vez, nos anos 1940 – eu era praticamente uma criança –, incitou-me a fazer a minha primeira “damigiana”[2] a partir de uns cachos da vinha de Tignanello em Santa Cristina, e voltou várias vezes para ver como eu estava me saindo (como Albiera e Allegra, portanto, eu também tive o meu “vinho-brinquedo”). Depois da indicação de Garoglio, Tachis tornou-se em breve indispensável para a Casa Antinori. Isso demonstra mais uma vez que muito daquilo que realizei nos anos seguintes sempre se baseou também na inspiração e nas escolhas feitas por meu pai. A começar pelo fato de que a revolução do vinho, de “carburante energético” para o trabalho no campo a experiência emocional, tivesse de se arraigar num time de colaboradores de comprovada qualidade profissional e de grande dimensão humana, além de uma compartilhada pulsão para o mesmo objetivo. O meu primeiro enólogo nascera em 1933 em Poirino, antigo domínio da família Saboia ao sul de Turim, famosa por muitas coisas – os seus aspargos, as tencas dos seus canais, a sua desenfreada terça-feira gorda –, mas não pelo

vinho. Formara-se em Alba, a rainha das Langhe, como todos os grandes do vinho piemontês, mas a Toscana tornou-se e ficou sendo a sua segunda casa, a grande vinha das suas pesquisas e obras-primas. Giacomo sempre foi, principalmente, um grande talento natural, com uma profunda e poliédrica paixão pelo vinho. Além de criá-lo, valorizá-lo e estudá-lo, Tachis também aprofunda há muitos anos, como dedicado bibliófilo, a cultura que gravita em torno do “néctar dos deuses”, da mitologia à poesia, da arte aos símbolos religiosos. De uns tempos para cá decidiu alhear-se do trabalho na adega, com grande surpresa de toda a Itália do vinho. Ele era a mente criadora daquele grupo que ia se formando na empresa ao longo da minha aprendizagem como administrador. Lembrei-o, a Florença e ao mundo, numa noite muito especial da primavera de 2011, quando, durante um jantar nas salas do nosso palácio, entre garrafas de Tignanello de 1982 e de Cervaro della Sala de 2001, Giacomo recebeu oficialmente o prêmio de “Man of the Year 2011” da revista britânica Decanter. A plateia compreendia muitos amigos e todos os vinicultores que tiveram a sorte de tê-lo como colaborador, desde a Toscana até a Sardenha. Vinte e cinco anos antes eu recebera aquele mesmo prêmio. Mas, enquanto a placa de Homem do Ano 1986 representava o selo de um ciclo que não se podia repetir, de uma estação única da evolução enológica, a dos Super Tuscans, o decanter de cristal de

Tachis era, ao contrário, o reconhecimento de uma inteira, infinita e extremamente fecunda vida entre os tonéis, nos bastidores do renascimento dos nossos vinhos. “Já é um ótimo resultado realizar um grande vinho, e é fora do comum conseguir criar mais que um”, explicou a editora da famosa revista, Sarah Kemp, “mas é uma proeza de fato excepcional ter assinado tantos deles, todos de altíssima qualidade, e ter contribuído para a valorização de territórios inteiros, desde a Maremma até as ilhas.” Isso mesmo. Tachis não doou ao mundo somente grandes vinhos, não se limitou a fazer apenas muitas coisas para introduzir e fazer entender na Itália as implicações das várias técnicas de seleção das videiras e de fermentação (quem introduziu a “malolática”,[3] na prática, foi ele). O seu maior merecimento é ter criado uma nova filosofia do vinho, ter deixado claro de uma vez por todas que o vinho, hoje em dia, precisa nascer de um pacto, de um ajuste com o território. Como expressão da essência de uma terra. Ensinou que realizar, num vale específico, numa colina específica, numa específica paisagem, um vinho de alta qualidade significa levar aquele lugar à expressão da sua vocação; significa destilar a sua alma. Uma alma que agora pode ser engarrafada e sair pelo mundo falando daquela terra e da sua gente. Também havia, na minha “jocosa comitiva”, como Dante talvez tivesse gostado de chamar a minha reduzida equipe, Giovanni Santoni, o nosso histórico diretor comercial, que eu

já conhecia havia muito tempo. Sempre considerei Santoni, acima de qualquer outra coisa, um “psicólogo do marketing”, um homem que, apesar de desprovido de um específico background de estudos econômicos, possuía o “instinto das pessoas”, o dom extremamente precioso, naquele desafio, de entender o caráter e as expectativas do interlocutor, não importa se fosse um representante ou um cliente. E, se ele era o cérebro do setor comercial, Giancarlo Notari, seu mais próximo colaborador, além de aluno, diretor de vendas, era a alma. Giancarlo sempre foi um amigo. Nascera, além do mais, no mesmo ano que eu, e no mesmo dia que eu começou a trabalhar no nosso palácio florentino. Foi o embaixador da Antinori, o porta-bandeira: quando se aposentou, em 1997, para dedicar-se aos seus vinhos da Compagnia del vino, tinha trabalhado comigo por trinta e um anos sob a bandeira do amor ao vinho e à nossa firma. Este foi o grupo que mudou o vinho toscano. Todos doentes de “Antinorite aguda”, como recentemente a definiu Angelo Gaja, grande viticultor piemontês, durante mais uma noite dedicada a Giacomo Tachis. Pessoas do vinho, unidas por uma grande paixão comum, com as quais podíamos falar de trabalho, mas também passar bons momentos à mesa; deixando de lado as diferentes origens, as suas experiências formativas, talvez até suas lembranças e palavras, eram iguais às minhas.

Hoje como então, se eu tiver de escolher um colaborador, um representante no exterior, seja ele um executivo ou o mais humilde estoquista, o traço marcante que procuro nele é sempre o mesmo: a paixão. Eu já disse: é preciso amar e conhecer o que se faz ou se vende. É preciso trabalhar com pessoas com que haja um relacionamento não só profissional, mas também humano. Nos muitos países em que hoje trabalhamos, costumo procurar no lugar os candidatos com o mais alto índice de profissionalismo, mas depois sempre mando um dos “meus” para controlar, algum talento que cultivei nas nossas vinhas, como Renzo Cotarella, ou alguém de algum modo ligado a nós. Para Xangai, para aquele desmedido mercado potencial que é a China, enviamos um rapaz com menos de 30 anos. É um afilhado meu, Jacopo Pandolfini, filho de um querido amigo. Esperamos muito dele, e tenho certeza de que não nos decepcionará. O time existia, portanto. Mas qual era exatamente o desafio que iríamos enfrentar? Para entendermos como se chega ao Tignanello, podemos começar falando do aspecto que o campo toscano tinha quando cheguei à chefia da firma. Eram os anos em que a figura do meeiro ia aos poucos desaparecendo, substituída pelos proprietários que passavam a cuidar das terras e das vinhas. Era o fim de uma época e o começo, desajeitado, de outra. A meação era a fórmula que, a partir

da baixa Idade Média, tinha moldado nos séculos algumas das mais belas lavouras da Europa, e na Itália central era a regra. A casa de reboco e pedra no topo da colina, com a fileira de ciprestes e o palheiro, as aldeias apinhadas em volta da igreja entre hortas de repolho e feijão… Tudo nascia disto. Era assim que funcionava: eu, dono, permito que você, camponês, viva aqui na minha terra com a sua família, more na casa rústica, cultive os campos e crie animais. Benefícios que poderá transmitir ao seu filho, aos filhos dele e aos filhos dos filhos. Em contrapartida, caberá à propriedade a metade (ou outra parcela estabelecida pela lei) dos produtos e dos lucros que consiga tirar da terra. Esta praxe por todos aceita povoou os nossos campos com sólidas casas campestres onde gerações de meeiros, sob o comando de um capataz-patriarca, se revezavam trabalhando na herdade de um patrão amiúde distante. Um proprietário que, depois de receber o dele, não demonstrava o menor interesse pela fazenda. A agricultura de meação era promíscua e fechada em si mesma. Para otimizar a exploração das terras concedidas e torná-las autossuficientes, os meeiros cultivavam campos e vinhas, mas também pomares e olivais, cuidavam de pequenas hortas e criavam porcos e galinhas, vacas e coelhos. A videira crescia entre árvores e espigas de trigo, em harmonia com a paisagem, a natureza e as estações. Era um ecossistema fechado, que parecia destinado a durar

para sempre, mas que, olhando melhor, se revelava gasto e cansado. Nenhuma das duas partes tinha interesse em melhorar as técnicas de produção, em tentar experiência e pesquisas, nem, muito menos, em redefinir papéis e responsabilidades: a Toscana meeira era harmoniosa, poética, mas congelada no tempo como um cartão-postal. Dessa longuíssima estação sobram poucas cores e poucos resquícios. Mais na paisagem da mente do que na real. Foi a época dos intermediários e dos feitores. Enquanto hoje, como dissemos, toda a uva usada pelos produtores “de qualidade” chega das vinhas das suas próprias empresas, e o cultivo é de fato parte do processo certificado que leva ao vinho, quando eu era garoto, com as nossas vinhas a gente só conseguia um número do fiaschi suficiente para o consumo familiar. Os poucos produtorescomerciantes tinham de se abastecer de vinho no território. Desde os tempos de Petrarca e Boccaccio, havia na Toscana uma estirpe de intermediários que, visitando as várias propriedades, as várias famílias, conseguiam harmonizar a oferta e a procura (por uma comissão de 2%); compravam e vendiam remessas de uva, mas também de azeite, milho, feno, palha, grão-de-bico, conforme as necessidades de cada um. Era um ofício bastante especializado, passado de pai para filho junto com o sobrenome que garantia a qualidade da mercadoria. Era preciso ter experiência e carisma. Os intermediários eram personagens coloridos, que viajavam, às vezes na maior

elegância, em charretes cheias do seu mostruário. No inverno você podia vê-los chegar, muitas vezes, em sua “capa casentina”, um vistoso casacão de tecido laranja com gola de pele de raposa. Sobressai, entre esses vultos da minha adolescência, um tal Matteuzzi, intermediário de San Casciano, dito “Ciapo”; naquela época todos tinham, na aldeia, um apelido que carregavam nas costas pelo resto da vida. Incansável visitante das fazendas do Chianti, confiável e de lábia envolvente, Ciapo teve depois um filho que, obviamente, também se tornou intermediário; o rapaz trabalhou por longos anos conosco e, de forma igualmente óbvia e pertinaz, acabou sendo apelidado de “Ciapino”. Outra figura fundamental era o feitor, o capataz a quem os donos de terras da época, principalmente alguns nobres que preferiam as salas da cidade, ou a caça, aos campos, confiavam totalmente os cuidados das suas lavouras. Eles também eram, amiúde, filhos e netos de feitores, depositários de preciosas técnicas e segredos vinhateiros (além, em alguns casos, de mil maneiras para arredondar o salário). Estou me referindo a tradições que, revistas e adaptadas, também são fundamentais no caso do vinho moderno, para que no desafio da globalização e da alta qualidade não se percam no caminho a identidade e o sentido das origens. Os liames familiares, como mostra a história da minha família, são uma maneira de transmitir estas antigas sabedorias. Outra maneira são as relações de trabalho vividas com paixão: a fidelidade a uma marca em

que você se reconhece, qualquer que seja a sua posição na firma. Funcionava cem anos atrás, continua a funcionar hoje: o nosso atual responsável administrativo, Fabrizio Panattoni, é filho daquele que por muito tempo foi nosso capataz, primeiro em Bolgheri, e depois em Castello della Sala. Chamava-se Idalgo. Muitos dos nossos trabalhadores de vinha ou de adega também são filhos ou netos de pessoas que desempenhavam para nós o mesmo ofício. E é preciso lembrar que o sistema da meação também tinha a ver com quem não estava diretamente envolvido nele. As adegas de San Casciano foram durante muito tempo um fulcro que catalisava toda a atenção e as melhores energias da comunidade inteira. Não eram nossos meeiros e tampouco nossos agricultores os membros de uma família do lugar, os Matteuzzi, como o intermediário da uva, que nunca esquecerei. É preciso voltar aos trágicos dias da derrota alemã que já mencionamos. Giancarlo Matteuzzi, que então tinha 12 anos e depois se tornou professor na escola, conta que naqueles dias todas as famílias, cientes dos saques que aconteciam por todas as partes na região, procuravam esconder os seus parcos bens, além dos seus homens (os alemães levavamnos para cavar os buracos das minas). Diante do desastre iminente, alguns dos nossos empregados decidiram por conta própria salvar um bom número de garrafas muito preciosas. Mas onde escondê-las? Identificaram um esconderijo satisfatório numa grande cisterna vazia no

quintal dos Matteuzzi. O risco era grande, mas a família não hesitou em se encarregar daquele pequeno tesouro que, evidentemente, era considerado patrimônio da coletividade local. Então a cisterna foi selada de qualquer maneira com uma porção de velhas tábuas de madeira. Depois que a tempestade passou, contaram-nos que na sua retirada os alemães de fato haviam passado por lá, procurando por todas as partes e até andando em cima do telhado de tábuas, mas sem encontrar o pequeno tesouro. “Nunca esquecerei o tambor dos seus saltos ecoando em cima do vinho escondido”, contou depois o jovem Giancarlo quando, junto com os empregados que as haviam “salvado”, veio nos devolver, intactas, todas as garrafas, sem nenhuma faltando. E não foi só aquela família, naquelas semanas, que defendeu, mesmo arriscando a vida, os lugares de trabalho, as lavouras e os depósitos. Se a nossa empresa ainda existe, também se deve àquelas pessoas, à sua dedicação à firma. Quem me deu, por sua vez, uma bonita aula de afeição ao produto foi um velho cantineiro de então. Chamava-se Checcucci, de uma antiga família de San Casciano (isto mesmo, o pai daquele Checcucci que frequentaria a escola de enologia e que por algum tempo seria o enólogo das Adegas Antinori). Na aldeia, todos o chamavam Lallo. Brilhante e excêntrico, desde sempre empregado dos Antinori, orgulhoso de trabalhar entre os nossos tonéis, era obviamente um bom copo. Desmamado, crescido e

envelhecido no Chianti. Aliás, naquele tempo, era normal passar a vida inteira tomando o mesmo vinho, o da terra, da cidade, ou até aquele que a família produzia para uso pessoal. E, no fim, este vinho acabava entrando no sangue. Certa vez o meu pai o fez experimentar um precioso Château Lafite, rei dos Bordôs. Estamos falando de um vinho extremamente elegante, com vagos aromas de madeira de cedro, um tinto que em alguns leilões desses últimos anos chegou a entrar na história como o mais caro filho da uva de todos os tempos e de todos os países. O nosso Lallo, no entanto, só precisou de um gole para cuspilo no chão, com desdém, exclamando: – Mas isto não é vinho! O ocaso repentino desta idílica paisagem do Chianti aconteceu por lei. Para acabar com aquilo que a muitos parecia uma herança medieval, e para dar à Itália do boom econômico uma agricultura e lavouras finalmente modernas, em setembro de 1964 o governo italiano decretou a proibição de estipular novos contratos de meação, enquanto os que já existiam deveriam ser eliminados o quanto antes. Acontece que muitos colonos não conseguiram se encaixar na nova economia rural ou, ao se tornarem meros dependentes de carteira assinada, se mudaram com a família para as cidades mais próximas. Quantas propriedades abandonadas se veem hoje, em ruínas, passando de carro pelas nossas rodovias? E também

acontece que nestes campos esvaziados, em busca de novos rendimentos que cobrissem despesas até então desconhecidas, muitos donos destas bandas destinaram de uma hora para outra as suas terras ao cultivo intensivo da videira. Dentro de poucos anos milhões de plantas de videira apareceram em massa em qualquer espaço livre. De pequenos vinhedos espalhados e bem cuidados, passou-se a extensões verde-claras de monocultura. E, enquanto em outros lugares, graças também a programas europeus, naqueles primeiros anos de transição os terrenos foram escolhidos com discernimento e cuidado, aqui, justamente aqui, na antiga terra dos vinhos, a corrida à uva tornou-se logo descontrolada e, em alguns casos, improvisada. Muitos empresários eram desprovidos das noções mais elementares. “Esta terra sempre deu um bom vinho”, parecia ser o pensamento geral daqueles dias. “Vamos plantar o máximo possível, e depois a gente vê no que vai dar.” Apareceram vinhas em lugares impróprios: no fundo dos vales, em encostas não expostas ao sol. Para entender até que ponto o caminho da quantidade sem qualidade daquele período estava errado, precisamos salientar que agora, para as novas plantações, são ao contrário e felizmente utilizadas técnicas de seleção “clonal” ou “massal” que identificam e preparam as plantas já no viveiro. Em outras palavras, só o melhor do melhor pode chegar aos tonéis se

estivermos pensando em produtos de qualidade. Naquele tempo, ao contrário, os próprios viveiristas, aqueles que por profissão forneciam os mergulhões por plantar aos improvisados viticultores, invadiram o mercado com pontas de estoque, sobras de videiras Sangiovese não selecionadas. Um desastre. Um descaso que deixa a sua marca, porque uma vinha errada hoje vai punir você amanhã. E até depois de amanhã. A primeira consequência disso foi o desaparecimento de uma paisagem. Para abrir espaço para os vinhedos, as máquinas de terraplanagem acabaram com antigos talhões nas encostas; vetustas muretas entre os campos, hortas e pomares tornaram-se inúteis e dispendiosos. As fileiras ficaram mais extensas, mas separadas por mais amplos espaços a fim de permitir a passagem de máquinas até então nunca vistas. Tudo feito às pressas, pois a ideia era passar o mais rápido possível do investimento ao lucro. Havia poucas videiras por hectare, mas exigia-se delas uma enorme produção de cachos. Como veremos depois, para chegar aos toscanos de qualidade, foi necessário fazer exatamente o contrário. Passamos por um verdadeiro descalabro estético, durante o qual as administrações locais e nacionais raramente intervieram para moderar e regulamentar. E, quando tentaram, provocaram prejuízos ainda maiores, como no caso daquele protocolo que previa, para obtenção da contribuição comunitária do fundo para a agricultura Feoga

(Fundo europeu agrícola de orientação e garantia), as estacas padronizadas de cimento para sustentar as videiras: uma solução contrária ao bom senso e à natureza, além de horrível de ver. Hoje as estacas “sintéticas”, no Chianti, foram em sua maioria substituídas, com uma saudável volta à madeira. Mas isso levou anos, sem contar o custo elevado e os danos ao ambiente. A segunda e inevitável consequência do “ecossistema meação” foi a piora da qualidade do vinho. Já fazia algum tempo que o Chianti era um vinho em decadência. Alguns pontos firmes do credo dos nossos viticultores se haviam tornado a sua ruína. Não vou entrar nos detalhes enológicos, mas podemos dizer que a crença de que uma elevada acidez fosse a condição básica da longevidade do nosso tinto transformou-se, com o passar do tempo, num verdadeiro fardo. Hoje sabemos que um vinho tem potencialidade de envelhecimento quando é rico de taninos e polifenóis, características que amiúde escasseiam nas uvas toscanas. Uma das primeiras reclamações de que temos notícia no que concerne à exportação dos nossos vinhos é de 1653, quando o cavalheiro Charles Longland, com uma carta urgente de Londres, se queixou da “poor quality”, da má qualidade, de uma carga de barris vindos do Chianti depois de muitos meses de navegação. Bastava uma tempestade no canal da Mancha, um contratempo na alfândega, para os nossos vinhos ficarem mareados. E o importador também.

Três séculos depois, o problema ainda não tinha sido plenamente resolvido. Não quero dizer, com isto, que mesmo então alguns produtores conscienciosos, como o meu avô, não conseguissem vender até para a América do Sul. Só quero dizer que a fórmula era frágil. Ainda mais quando se tornou costumeiro vender como Chianti vinhos provenientes de vinhas e zonas toscanas de qualidade inferior, tanto assim que nas primeiras décadas do século XX, apesar de regras cada vez mais definidas e de várias proibições, se tornara quase impossível reconhecer o que de fato deveria ser um vinho do Chianti. Resumindo, de um Sangiovese não selecionado e de vinhedos improvisados como os dos primeiros anos pósmeação amadurecia, nos outonos de cinquenta anos atrás, um mosto pobre de taninos nobres, com alto grau de acidez e de fácil oxidação. E tampouco ajudava o clima, que já naquela época – embora só tenhamos conseguido perceber isto nos anos mais recentes – começava a mudar, entre longos verões quentes e fases úmidas tropicais. Esta matéria-prima sofrível, além do mais avaliada de forma aproximativa, ia àquela altura envelhecer em tinas que, segundo a tradição e a contenção de despesas, eram invariavelmente enormes, de madeira de pouca qualidade e reutilizadas por várias dezenas de anos. Engarrafava-se, no fim do processo, um Chianti frágil, aguado e sem estrutura. Claro e cansado de nascença, e incapaz de envelhecer. Com a queda da qualidade também houve a queda da imagem

dos nossos rótulos e da nossa terra. Com a derrocada da imagem e da qualidade também sobreveio a queda do preço e das exportações. O resultado final foi uma crise generalizada de todo o sistema rural toscano. Para encontrar uma saída deste círculo vicioso, como eu começava a intuir, seria necessário trabalhar em várias frentes. Mantendo fixo na mente o imperativo moral da casa Antinori: melhorar, e buscar sempre a qualidade absoluta. Para nós, não se trata apenas de uma frase escrita num brasão. É a única receita que – naqueles campos doentes, assim como hoje diante da crise econômica global – realmente funciona: se o ano foi ruim, a última coisa a fazer é tentar salvar o que der para salvar, e ficar sentado à espera de as coisas melhorarem; a primeira é tentar alguma novidade, estudar, olhar em volta, livrar-se das velharias e investir no futuro. A alternativa, logo escolhida, aliás, por muitos daqueles produtores improvisados dos anos 1960, era mudar de profissão. Dei-me conta de que era necessário recuperar o relacionamento entre o vinho e o seu hábitat, tendo como base os magníficos terrenos reunidos ao longo dos anos pela minha família. Era ao mesmo tempo necessária uma “invenção do vinho” que talvez, na Toscana, nunca tivesse sido tentada antes. Finalmente, procurei pensar como consumidor. Não bastava remediar o descalabro dos anos 1960 e voltar a fazer os vinhos do meu avô e do pároco

Arlotto. Quando comecei a imaginar aqueles que se tornariam os Super Tuscans, também foi porque os tintos de então, até os melhores e os mais sinceros, já não satisfaziam nem sequer a mim. Sentava-me à mesa, tomando com um amigo vinhos que me haviam acompanhado por toda a vida, e percebia a falta de alguma coisa. Alguma coisa mais requintada, mais estruturada, algo mais reconhecível e com personalidade mais marcante. O caminho era aquele que o meu pai indicara, muitas vezes contrariando o meu avô e todo o ambiente vinícola, quando, voltando de suas viagens cheio de ideias, apostava tudo na inovação. Novas escolhas e misturas de uvas, com o Cabernet casado com o Sangiovese (em 1924 pela primeira vez), novos tipos de tinas, o controle da temperatura durante a fermentação e nas adegas: coisas que naquela época eram ficção científica. Era porém preciso dar mais um salto, como me dizia a mim mesmo, debatendo o assunto por noites e dias com Giacomo Tachis. Foi mais uma vez graças a ele que, naqueles anos de exploração, olhei para a França em busca de inspiração, como no passado já tinha acontecido com o meu pai. E tive a sorte de encontrar o professor Émile Peynaud. O encontro daquele que seria o mais influente enólogo italiano da sua época e o gênio francês inspirador do moderno Bordô tem os contornos confusos da lenda. Estudante em Alba no começo dos anos 1950, Tachis não hesitara em escrever diretamente ao já célebre estudioso

devido a umas dúvidas suas a respeito de leveduras e fermentações. Percebendo a aguda e precoce inteligência do rapaz, Peynaud logo respondeu, enviando até outras publicações. A coisa ficou nisto. Mas depois, em 1968, eu e aquele que àquela altura já era o meu enólogo de confiança decidimos empreender uma das nossas viagens “de exploração” à região do Bordô. Segundo a reconstituição feita em seguida por Tachis, a finalidade da nossa expedição era, inicialmente, encontrar outro luminar da uva, o professor Pascal Ribéreau-Gayon, autor de fundamentais manuais de vinificação, para propor-lhe uma assessoria. Ao chegarmos à França, no entanto, descobrimos que o grande homem estava fora devido a um congresso. Marcamos, então, uma série de novos encontros para não deixar que a nossa visita fosse completamente inútil. Uma coisa que lembro bem foi a ajuda que nos foi prestada por um amigo nosso local, o barão de Luze. O barão era um proprietário de terras e um négociant, termo que até hoje indica, na França, aquele que trata de compra e venda de vinho, um ofício que, ao contrário do que acontecia na Itália, era considerado muito especializado e gozava da mais alta consideração. Além de nos hospedar, De Luze aconselhou que, para uma assessoria, nos dirigíssemos diretamente ao Departamento de Enologia da Universidade de Bordéus, então o mais famoso do mundo no setor. Foi ali que, em lugar de Ribéreau-Gayon, encontramos entre prateleiras e provetas justamente o ídolo de Tachis. Peynaud não só se

lembrava do seu jovem correspondente piemontês, mas também, arrebatado pelas explicações e histórias apaixonadas dele, aceitou visitar as adegas de San Casciano e, logo em seguida, tornar-se nosso assessor. Peynaud, falecido em 2004 aos 92 anos, foi um dos poucos gigantes do vinho do último meio século. Um predestinado que aos 15 anos trabalhava na Maison Calvet e aos 20 já tinha seus escritos publicados na Revue de Viticulture. Uma mente que, antes de deixar a sua marca profunda na nova estação dos vinhos toscanos, já tinha revolucionado as adegas da França. Com ele tudo mudou: a seleção das videiras, o nível de amadurecimento da uva por levar à adega, a acidez do mosto, as tinas, a fermentação (quem ensinou a nós todos como dar início e controlar a fermentação malolática foi ele). Além disso, no meu entender, possuía a rara capacidade de conjugar uma extraordinária capacidade científica com uma dúctil capacidade prática na vinha e na adega. Era um cientista, um prestigioso docente de enologia – os seus muitos livros continuam até hoje válidos e extremamente atuais – que refinou a teoria “pondo as mãos na massa” em muitas firmas diferentes: dos melhores châteaux, as tradicionais herdades-castelos bordelesas, até a Itália e a Grécia. Era um escritor brilhante, um divulgador com grande capacidade de comunicação: deu aulas por todas as partes, sempre conseguindo transmitir a paixão pelo vinho ainda que só falasse francês. Era um intelectual com um

transporte muito terreno pela sua matéria: Peyneaud gostava de beber e comer coisas sempre novas, regozijavase ao encontrar um grande vinho ou um rótulo desconhecido e intrigante. Nunca mais encontrei uma pessoa que praticasse a arte do vinho naquele nível; na biblioteca, entre as tinas ou a uma mesa entre amigos. “Cada um toma o vinho que merece”, dizia. E também: “A tradição é uma experiência que foi bem-sucedida.” Graças ao relacionamento especial com Tachis e à simpatia que sentia pelas nossas tentativas de relançar os vinhos toscanos de qualidade, Peynaud estudou as nossas uvas, vislumbrou as potencialidades do projeto, tornou-se partidário da nossa causa. E com suas visitas anuais à Toscana, entre um e outro jantar em Tignanello ou em Castello della Sala, ajudou-nos a formular uma filosofia diferente para o novo vinho. Havia, além do mais, toda uma lista de proibições. “Para conseguir um tinto de alta qualidade”, sentenciou o mestre francês, “já não se podem usar, como aqui amiúde acontece, altas porcentagens de uvas brancas. Nem se pode trancá-lo por três ou quatro anos em tinas grandes demais de castanheira. Nem se podem usar sempre as mesmas tinas.” Na prática, era preciso mexer, drasticamente, na fórmula costumeira do Chianti. Havia sido o “barão de ferro” Bettino Ricasoli, grande vinhateiro e grande político, quem “determinara”, por volta de 1870, o tipo de uva ideal para o Chianti. Coubera a ele (o

segundo chefe de governo da história da Itália, sucessor de Camillo Benso, conde de Cavour) estabelecer, entre outras coisas, que o verdadeiro tinto do Chianti Clássico devia basear-se no Sangiovese. Coubera também a ele prescrever o recurso a uma mistura de uvas brancas para “suavizar” o sabor dos mostos, que, já bastante tânicos por natureza, à falta dos modernos instrumentos para separar os grãos de uva dos engaços, eram então invariavelmente ásperos e adstringentes. Ricasoli também indicava a uva mais apropriada para o “corte”, a Malvasia, variedade que já se cultivava com excelentes resultados na Toscana desde o fim do século XIV (parece que foi introduzida logo depois da pavorosa peste de 1348, quando nas hortas urbanas de Florença se experimentaram novas técnicas e uvas brancas para dar novo alento aos campos semiabandonados). Não eram raciocínios improvisados. Apesar da longa crise dos campos toscanos que se seguiu ao fim da era dos Médici, devemos reconhecer que muitas mentes iluminadas haviam começado, ainda que lentamente, a ver com novos olhos o vinho local. O grão-duque de Toscana Cosimo III definira, em 1716, uma primeira delimitação geográfica dos vinhedos toscanos de qualidade. E a partir de 1753 a nossa região podia ser considerada em absoluto a mais adiantada das ciências agrícolas graças à fundação da Academia dos Georgófilos (com a contribuição, gosto de lembrar, de um Antinori). Esta associação foi tão importante e bemsucedida, que continua viva e ativa até hoje: o seu atual

presidente é Franco Scaramuzzi, meu amigo pessoal e antigo reitor magnífico da Universidade de Florença, além de eminente perito em ciências agrárias e, ele mesmo, apaixonado agricultor. Com a chegada da dinastia dos Lorena ao trono deixado vago pelos Médici, dera-se então início a um amplo plano de saneamento e impulso à agricultura. Em 1895, finalmente, nasceria o primeiro protótipo de consórcio do Chianti, inclusive com logotipo comercial de origem. Dentro das condições e concepções da época, em resumo, a fórmula do barão era até bastante sábia. Infelizmente, com o passar dos anos, para tornarem potáveis e vendáveis Chianti cada vez mais aproximativos, muitos chegaram a desvirtuar por completo a sua essência acrescentando até 30% uvas brancas, principalmente de Trebbiano, que era uma cepa resistente e produtiva ainda que de qualidade não propriamente excelente. No fim dos anos 1960, em outras palavras, o nosso inimigo não eram as leis de Ricasoli, mas sim a sua progressiva degeneração, os “atalhos” experimentados por algum camponês ou feitor em busca de proveito imediato, o que acabou por se tornar a prática habitual. Naquela batalha que só estava começando, eu tinha, portanto, do meu lado os conselhos de Peynaud e o talento de Tachis. Tinha a equipe de colaboradores que me acompanhava desde que eu sucedera a meu pai e tomara o lugar de Benazzi. Precioso também foi, naqueles dias, o

encorajamento de alguém que pouco a pouco se tornaria cada vez mais presente nos momentos cruciais da nossa história: Luigi Veronelli, obviamente, o jornalista-enólogo por excelência, que já naquele tempo era um dos críticos mais severos e influentes da península. Eu acompanhava os seus escritos desde sempre, mas só recentemente chegara a conhecê-lo pessoalmente. Veronelli confirmara de pronto as minhas intuições. Pois é, já era hora de um novo Chianti, e aquele era o único jeito de sair da crise do setor. Pois é, era plenamente justificável esquecer as antigas regras, recorrendo também a uvas “de fora”, mudando tempos e procedimentos. E, é claro, as uvas da região deviam continuar a ser a base, mas só as melhores, de vinhas de comprovada qualidade, que conhecemos há séculos. O que me deu ulterior confiança foi algo que estava acontecendo um pouco mais a sudoeste, onde uma pequena experiência estava se tornando um caso vinícola internacional. Foi nos primeiros anos 1940 que Mario Incisa della Rocchetta, de antiga família piemontesa, famoso criador de cavalos, amante dos vinhos da França e meu tio, reparou que a paisagem de sua propriedade de San Guido, no litoral de Livorno, perto de Bolgheri, lembrava de alguma forma a região do Graves bordelês. Comparada com o nosso Chianti, aquela era uma Toscana totalmente diferente, salobra e selvagem. Uma Itália periférica que só uns poucos anos

antes havia se livrado, finalmente, dos charcos, dos bandidos e da malária. Para nós, os Antinori, era uma velha conhecida, pois lá tínhamos a nossa casa de férias na empresa da minha mãe, Carlotta della Gherardesca. Também para Mario Incisa aquelas terras haviam chegado como dote da esposa, especificamente com Clarice della Gherardesca, irmã da minha mãe. Originário de Rocchetta Tanaro, pátria do vinho piemontês Barbera, mas residente em Roma, quando o meu tio fazia alguma coisa costumava fazê-la direito. Sócio, entre as outras coisas, de Federico Tesio, criador de Ribot, um dos maiores cavalos dos anos 1950; como proprietário da raça equina Dormello-Olgiata, quem cuidou das últimas corridas do extraordinário animal foi ele: “A melhor máquina de correr jamais vista num hipódromo”, disseram as manchetes francesas. Ambientalista ante litteram, o marquês Incisa decidiu muito cedo que suas terras maremmanas precisavam ser protegidas: esteve entre os primeiros a promover a criação do oásis de Bolgheri e, uma vez assumida a missão da proteção do ambiente, empenhou-se com tamanha dedicação, que logo se tornou presidente do WWF italiano, ativo desde 1966 e, então como hoje, importante sigla das associações ambientalistas. Um homem como ele tinha bastante abertura mental (qualidade não propriamente comum, naquela época) para saber apreciar e compreender até aquela paisagem toscana tão distante das suas planícies

piemontesas. Bem como a seus vinhedos e seus vinhos. Acho válido dizer que foi principalmente um esteta. Havia séculos que os Della Gherardesca tinham terras por lá, e um deles, Guido Alberto, já no começo do século XIX, tentara fazer agricultura com instrumentos modernos e as noções que tinha aprendido na França. Coube a ele a primeira tentativa de fazer vingar na costa tirrena uma cepa forasteira que se chamava “Carmené”, que era na verdade o tão francês Cabernet. Ao alvorecer do século seguinte, no entanto, a maior parte deste trabalho se havia perdido nos anos mais sombrios da última estação dos meeiros. E o que fez, então, Mario Incisa? Arranjou através da firma Migliarino, dos duques Salviati, cepas de Cabernet Sauvignon e de Cabernet Franc suficientes para plantar duas vinhas. Videiras magníficas: dizem até que os duques as mandavam vir nada menos que dos célebres vinhedos bordeleses de Château Lafite. Então passou a cuidar como um verdadeiro maníaco daquelas fileiras. Começou a engarrafar o seu “Bordô maremmano” já em 1944. Como bom aristocrata do campo, o meu tio produziu durante décadas este vinho somente para a sua mesa e para alguns amigos. E sem muito alarde. – Chama-se Sassicaia. Faço-o na garagem da minha casa – explicava com modéstia. Esta era a situação em meados dos anos 1960, quando toda a região embarcou na aventura do Chianti “fácil”. Já fazia um bom tempo que eu admirava aquele vinho e o meu

tio, com o qual viajei várias vezes pelas vinhas da França “para estudar”. De maneira que, em 1968, propus que me deixasse introduzir no mercado algumas daquelas garrafas usando a nossa rede de vendas. “Está bem, mas muito poucas, por favor”, concedeu ele. Deixei Tachis disponível, para tornar o Sassicaia um pouco menos “artesanal”. Com a ajuda da antiga tipografia Pinaider de Florença, planejamos a etiqueta. E partimos para as primeiras vendas. Começou como uma aventura, mas entre os conhecedores do ramo (a partir do infalível Veronelli, que logo dedicou ao vinho de Bolgheri um peã nas páginas de Panorama) foi uma espécie de terremoto: não só se descobria que bem no meio da Maremma havia um cavalheiro aparentado com os Antinori que cultivava Cabernet, mas também que o seu vinho era da melhor qualidade, e com um perfil totalmente novo. Nos dez anos seguintes, o trabalho de Giacomo Tachis (que na prática só parou de acompanhar este vinho há uns dois anos) tornou o Sassicaia um dos mais admirados e influentes vinhos italianos. Uma obra-prima que até mudou a própria aldeia de Bolgheri, transformando-a num novo pequeno Éden vinícola da Itália e, com sua alameda de ciprestes celebrada pelo poeta Carducci, num imperdível ícone de toscanidade. Em 1974, em mais um embate épico entre históricas escolas do vinho organizado pela Decanter, um Sassicaia de 1968 superou com a sua pontuação um

sortimento dos mais requintados Bordôs: era o nascimento de um mito. Com a morte do tio, toda a responsabilidade passou para o meu primo Niccolò. Eu só me limitara a dar o primeiro empurrão àquela avalanche criadora; lembro porém que, quando alguém me entrevistava achando que o Sassicaia era uma criatura Antinori, a coisa até que me dava prazer. Logo a seguir, no entanto, apressava-me a esclarecer como tudo realmente havia acontecido. Sensação do momento, o vinho de San Guido foi um grande estímulo para nós. Tínhamos um modelo, agora. Havia um projeto. E, quando o nosso antigo, glorioso Villa Antinori safra 1970 também se revelou renovado e claramente melhorado pelos procedimentos de vinha e adega sugeridos por Peynaud e postos em prática por Tachis, entendemos que já havia bases para seguir em frente. Chegara a hora de nos concentrarmos num terreno. E isto foi simples. Onde poderia nascer um grande vinho senão nas terras onde amadurecia desde sempre o nosso melhor Sangiovese? Atualmente ocupado por dois vinhedos, Tignanello e Solaia, aquela propriedade era o lugar onde por mais de meio século tínhamos ido passar as férias. Fora ali que eu e as minhas filhas havíamos descoberto a uva. E, o que mais importava, era um lugar ideal para o vinho. Exposto ao sol do Sudoeste, entre 350 e 450 metros acima do nível do mar, com uma inclinação e uma drenagem da água que parecem

planejadas por um escritório de engenharia, Tignanello tem um terreno pedregoso ideal e um microclima perfeito: durante o dia produz com o calor certo os açúcares das minhas uvas, e de noite guarda seus ácidos e desenvolve seus perfumes. Aqui, como eu sabia, meu pai tinha trabalhado longamente para plantar as famosas vinhas experimentais de Cabernet no primeiro pós-guerra para conseguir o seu Villa Antinori. Aqui tínhamos de começar a trabalhar seriamente, seguindo o seu exemplo. Produzimos o primeiro Tignanello “experimental”, só vinte mil garrafas, com a própria vindima de 1970. Criado com os novos métodos de seleção e manipulação da uva, era um Chianti Clássico de uva Sangiovese com apenas uma pequena dose de uvas brancas. Um ótimo Chianti Clássico, na verdade, mas ainda ligado de alguma forma à tradição. Foi rotulado como “Villa Antinori”, com a especificação “Vigneto Tignanello” ao lado. No ano seguinte cortamos definitivamente os nossos vínculos com o passado. Criamos afinal algo sem a presença de nenhuma uva branca. Vindimamos uma uva completamente madura que fermentamos com sucessivas “remontagens”, técnica que consiste em derramar o líquido subjacente em cima do “chapéu” formado pelas cascas, de forma que se tire delas a maior quantidade possível de taninos “nobres”. E, depois da fermentação alcoólica, o vinho foi submetido, sob o controle de Peynaud, à fermentação malolática.

Esta segunda fermentação serve para criar, no vinho, as melhores condições para que o ácido málico presente na uva gere, com a ação de determinadas bactérias, o ácido láctico. Sem entrar em pormenores demasiado técnicos, é um processo natural que resolve o antigo problema da alta acidez das nossas misturas de uva tradicionais, permitindo a obtenção de vinhos mais equilibrados e preparados para uma serena velhice. Chegou então a hora de deixá-lo dormir por uns dois anos em pequenos tonéis de 225 litros, de carvalho novo. Eram as famosas barriques, aquelas que Luigi Veronelli, durante uma sucessiva visita a Tignanello, quis depois rebatizar em italiano com o nome de “carati”. Uma ótima ideia: os “caratelli”, isto é, os pequenos “carati”, eram de fato os barris em que, na Toscana, se deixava envelhecer o Vin Santo, e o termo já tinha em si um sentido precioso.[4] Após sair dos “carati”, o vinho ficou então se refinando mais um ano em garrafa. Em resumo, criamos algo que era mais toscano que os vinhos de igual teor alcoólico daquela época e, ao mesmo tempo, uma coisa completamente nova. Resiste até hoje uma lenda, na Toscana, segundo a qual o fantasma do Barão de ferro Bettino Ricasoli ficaria perambulando com a sua matilha de cães pelos bosques em volta da antiga morada da família, o castelo de Brólio. Quem sabe se, naqueles dias de trabalho febril para nós, este grande fantasma de vinhateiro não passou alguma vez nas nossas

adegas, onde estávamos mudando para sempre o seu Chianti? A revolução, no entanto, só estava no começo. Já então o plano visava a aperfeiçoar o “sacrilégio” juntando ao Sangiovese aquele Cabernet responsável pela unicidade do Sassicaia e já experimentado com sucesso por meu pai naquele mesmo lugar. Seguiram-se, porém, algumas vindimas não propriamente brilhantes, e nós, fiéis ao ideal de qualidade que nos norteava, decidimos não engarrafar. Chegou 1974, ano em que o primeiro Tignanello produzido podia finalmente sair das profundas adegas e enfrentar a prova da enoteca. Embora não tivesse, ainda, um nome escolhido e uma apresentação definitiva. E surgiram as primeiras dúvidas. É preciso lembrar que em 1967 havia sido introduzida na Toscana a Denominação de Origem Controlada Chianti. A famosa DOC. De várias maneiras era uma válida tentativa de acabar de uma vez com a sub-reptícia indústria dos Chianti de origem duvidosa que infestavam o mercado. Aconteceu, porém, que muitos produtores se iludiram com que a novidade se traduziria automaticamente em sucesso comercial. Era a busca da DOC pela DOC, e isto não me convencia. A finalidade, obviamente, era regulamentar o setor, proteger o verdadeiro vinho toscano das imitações fraudulentas, defender o consumidor de alimentos não

suficientemente monitorados, e ligar um produto de marcada identidade e qualidade ao seu território. A filosofia da identificação certificada, que com toda a razão abrange atualmente mil pequenos e grandes tesouros da enogastronomia made in Italy, é o caminho certo na era da globalização e da produção globalizada. Em muitos aspectos desta normatização que de um dia para o outro devia tornar-se a bíblia do viticultor toscano, no entanto, eu descobria um espírito retrógrado e conservador. O regulamento de produção dizia como devia ser um Chianti, indicava o seu sabor, a cor, o grau de limpidez. Como fazêlo e como não fazê-lo. Na prática, cristalizava-se um método justamente quando ele acabava de mostrar-se envelhecido e inadequado. Sem nenhum espaço para a experimentação e a iniciativa pessoal. Ficou logo claro que as normas de denominação de origem e o meu Tignanello falavam línguas diferentes. Elas não levavam em conta a abolição da uva branca, nem, muito menos, permitiam o recurso às uvas não autóctones que tencionávamos utilizar dali a pouco. Moral: um dos vinhos mais ambiciosos da minha família em seiscentos anos de história, nascido e crescido no coração da Toscana, por aquelas normas deveria chegar ao mercado desprovido da etiqueta “Chianti Clássico”. E como era classificado, na Itália, um vinho sem DOC? Muito simples, como vinho a granel. O castigo pelo nosso pecado de rebeldia era a tacha de vinho para refeitório industrial.

Outro problema: o preço. Ao longo de vinte gerações os Antinori haviam aprendido que, para crescer, é preciso melhorar. Para melhorar, é preciso investir. E eu tinha investido: adegas completamente renovadas, novos recipientes para um novo tipo de fermentação, mais a despesa por milhares de pequenos tonéis encomendados na França a um custo considerável. E muito, muito mais. Calculei que, para a operação fazer algum sentido, uma garrafa de Tignanello deveria custar pelo menos três vezes mais que um normal Chianti daquela época. Iríamos pedir aos nossos consumidores este custo extra em troca do quê? De um genérico “vinho de mesa de Val di Pesa”? Os peritos de marketing iriam ficar de cabelo em pé. Tratava-se, em resumo, de um dilema “histórico”. Até umas poucas décadas antes, nas ruas de Florença, uma garrafa de vinho nem chegava a custar o dobro de uma de água: uma margem de lucro que certamente não estimulava os produtores a investimentos e melhorias. O progresso devia passar por um reposicionamento do próprio vinho no imaginário e na concepção comercial. Isto só podia acontecer com um evidente salto de qualidade que justificasse um novo valor, um novo preço e, de mãos dadas, margens de lucro melhores e novos investimentos. Daí a necessidade de certificar a qualidade com a denominação de origem e outros instrumentos similares. O problema era que, do meu ponto de vista, aquela legislação ia no sentido diametralmente oposto: certificava-

se a mediocridade. Voltaram, para mim, as noites insones no apartamento do palácio Antinori. Felizmente ainda havia, naqueles dias cruciais de 1974, o apoio do meu pai e da minha equipe. E, mais uma vez, fui calorosamente encorajado por Luigi Veronelli, que àquela altura se tornara um verdadeiro gênio tutelar das nossas iniciativas. Veronelli e eu, como já disse, havíamo-nos encontrado várias vezes e tínhamos recíproco apreço. Do complexo “parto” do Tignanello, entretanto, o astro da nova enologia italiana nada sabia nem desconfiava. Naqueles dias acontecia em Orvieto um dos primeiros, e talvez o primeiro em absoluto, congressos da jovem Associação Italiana Sommelier. Um pequeno evento histórico que marcava um notável progresso do nosso país no caminho do profissionalismo enológico, do cuidado com a qualidade e da cultura do vinho. Plantado no nosso Castello della Sala, a poucos minutos de carro da pequena cidade, eu acompanhava os trabalhos daqueles opinion leaders das adegas. E, certa noite, consegui raptar o Veronelli. Trouxe-o para jantar no castelo. Lembro que a mulher do feitor havia preparado umas excelentes pombas-trocais com cebolas. Eu lhe servi um copo do fatídico vinho, safra 71, ainda anônimo, sem dizer de que se tratava, e fiquei observando as suas reações. Vi-o animar-se de prazer e interesse. “Excepcional. O que é?”, quis logo saber. Naquela noite, creio que só diante de mim e de Giovanni Santoni, o primeiro dos nossos jornalistas-enólogos garantiu-me que

com um vinho como aquele o problema da denominação se tornava um detalhe sem a menor importância. Bem como o do preço. Sempre durante o jantar, nas salas medievais daquela que tinha sido a morada dos Monaldeschi della Vipera, explicou que o nome certo também era o mais simples: “Tignanello.” – O melhor é ligar de forma direta este vinho à sua vinha, ao seu terroir, sem tentar enfeitar. Vai ser esta a sua “origem controlada”. Batizamos, portanto, a nossa nova criatura com um nome antigo. Derivado, ao que parece, de uma antiga família do lugar, os Tignani. Um diminutivo quase carinhoso que os costumeiros expertos de marketing dificilmente associariam a um produto de qualidade. Tignanello faz rima com “vinello”, isto é, um vinho novo e despretensioso, mas o que realmente importava, para nós, era a identificação com o território e a identidade histórica. “Ninharias!”, concluíra sem meias palavras Veronelli. E foi mais uma vez ele, se a memória não estiver me traindo, quem sugeriu durante o mesmo jantar o designer para o rótulo: Silvio Coppola, desenhista industrial famoso, então já célebre pelas suas mesas e lustres filiformes e lineares. Surgiu disto um trabalho gráfico muito essencial, com grande espaço reservado ao texto descritivo. Muito poucos símbolos e muito pouca cor. Como eu já tive oportunidade de escrever, a referência mais próxima ao imaginário daquela nova geração de vinhos era a arte conceitual.

Mesmo o rótulo, de alguma forma, era inovador. Mas com um pormenor atrás do qual se escondia uma história: uma pequena assinatura preta, em baixo à direita. Não é o meu gordo “P” que se incha a nordeste como uma vela. Mas sim um “N” miúdo: N Antinori. Quer dizer Niccolò Antinori. Talvez seja preciso explicar por que o vinho para mim mais importante, aquele mais ligado à minha história pessoal, traz o nome do meu pai. Alguns anos antes o Villa Antinori começara a ser comercializado nos Estados Unidos com uma nova apresentação. Os nossos importadores, a fim de personalizar ainda mais o nosso produto àquela altura já famoso, pediram que, como administrador delegado, eu assinasse o rótulo. Contentei-os sem dar muita importância à coisa. E cometi um erro. Algum velho amigo florentino, ao voltar de Nova York, comentou o assunto com meu pai. “Decidiram encostar você”, salientou, “e justamente com o seu vinho!” Ele não gostou nem um pouco, e deixou isto bem claro. Em outras palavras, aquele “N” na assinatura do novo vinho não foi um capricho, mas um jeito de remediar o meu erro. E tampouco é o único detalhe que me liga ao Tignanello. A conclusão do encontro em Orvieto foi que Veronelli ainda teve tempo de organizar, no âmbito daquele congresso de críticos profissionais, a primeira verdadeira degustação do Tignanello. E foi um grande sucesso. Havíamos jogado a pedra no lago. O Tignanello tinha um nome, um rótulo e uma fama crescente. Foi o que nos

estimulou a criar, em 1975, a segunda safra, o Tignanello “definitivo”. O Sangiovese estava perfeito, o Cabernet também. Era uma uva não autóctone, mas cultivada e aperfeiçoada havia muitos anos nas nossas terras: em pequena porcentagem, deu ao meu vinho aquele toque de elegância e complexidade que ainda faltava. O fruto disto foram vinte e cinco mil inesquecíveis garrafas. Logo recebidas com entusiasmo pelos críticos e pelo público. Em 1977 Veronelli foi o primeiro, obviamente, a escrever a respeito, levantando a onda na Itália e no exterior. É claro, algum perito no ramo a torcer o nariz apareceu na mesma hora. O que definia o Tignanello “fora da tradição” e aquele que não suportava as barriques. Lembro uma degustação, justamente em Tignanello, na qual eu receava sobretudo o cenho de Lamberto Paronetto, que, de trás de seus grandes óculos, tudo avaliava, considerado que era “doutor do vinho”. Muito influente, muito sério, era o autor de Magnifico Chianti, o responsável pela revista L’Enotecnico, um mestre premiado pelo Office International de la Vigne et du Vin de Paris e muitas outras coisas. Uma sobrancelha dele, levantada na direção certa, seria ouro puro para a Antinori. No momento fatídico, portanto, Paronetto levantou o copo, roçou nele com a ponta do nariz, mal chegou a molhar os lábios. E soletrou apenas duas palavras: “Quercus robur.” Carvalho, em latim. O vinho com que tencionávamos reescrever a enologia italiana e desafiar os franceses, para ele só sabia a

carvalho. A madeira. A serragem. Para dar outro exemplo, no entanto: o Tignanello logo apareceu na carta de vinhos dos melhores hotéis e restaurantes da minha cidade. Mas Giorgio Pinchiorri, nosso amigo e apreciador, titular da homônima e conhecida enoteca florentina, chegou a brigar naqueles primeiros anos com alguns clientes tradicionalistas que pediam um “verdadeiro Chianti” em lugar do nosso novo vinho que ele propunha e glorificava. Com o passar do tempo, de qualquer maneira, o Tignanello demonstrou que no caminho da qualidade não dá para voltar atrás. Com o Sassicaia, que melhorava a cada ano, e o Solaia, que se juntou à turma em 1978, ficou claro que tínhamos criado uma nova geração, um movimento que mudaria o próprio imaginário do Chianti. Vinte anos depois, no dia em que foi divulgada a notícia do primeiro lugar do Solaia na classificação da Wine Spectator, onde os Super Tuscans marcavam oficialmente a sua presença nos livros de história e nos noticiários da TV, resumi assim o que havia acontecido na Toscana: – Queríamos nos igualar à França. Mas fazer meras imitações do Bordô estava errado. De forma que fizemos vinhos com as assim chamadas “uvas internacionais”, mas com um jeito toscano e um caráter próprio. A chave para o futuro é esta. No fim dos anos 1970, entretanto, continuava irresoluta a questão da classificação. Principalmente quando, do exterior, começaram a nos perguntar com insistência como

podiam ser definidos estes vinhos que não se pareciam com coisa alguma que já estivesse no mercado. “Vinhos de mesa inovadores?” “Vinhos de mesa de alta qualidade?” Os primeiros a usar em suas recensões o termo “Super Tuscans” foram os americanos. Com supertoscanos definiam vinhos que, embora desprovidos de uma etiqueta específica, se identificavam com um vinhedo histórico e manifestavam uma altíssima qualidade. Uma definição acertada, muito americana. A fase pioneira e histórica dos “toscanos renovados”, enquanto isso, fechara com chave de ouro este ciclo graças a outro “monumento” da nossa enologia: o Ornellaia. Vinho idolatrado na Itália e no exterior, puríssimo tinto de Bolgheri de uvas bordelesas da melhor qualidade, o Ornellaia nasce bem perto das videiras do Sessicaia e da nossa propriedade maremmana de Guado al Tasso. É uma invenção tenazmente perseguida pelo meu irmão Lodovico, que algumas décadas antes tinha saído da firma em busca de independência e novos estímulos. Este Super Tuscan, vinificado pela primeira vez em 1981 e muito francófono, nasce de um percurso diferente do meu. Mas ele também parte de uma terra por todos nós muito querida, a antiga fazenda dos Della Gherardesca onde a minha mãe morara. Para o Ornellaia também houve um “maestro” a reger a orquestra, o lendário enólogo russo André Tchelistcheff. E para este vinho também houve uma viagem iluminadora, entre as vinhas da Califórnia, aonde

Lodovico chegou pela primeira vez como responsável da nossa firma naquele mercado. Depois de sair da empresa familiar, o seu primeiro projeto era fixar-se e vinificar em terra americana. Mas o seu experto não concordava: – E por quê? O Eldorado do vinho você já tem prontinho na sua casa! Continuamente renovados e aperfeiçoados ao longo dos anos, os vinhedos onde nasce o Ornellaia seguem, principalmente e sem titubear, o meu credo: a busca da qualidade e da perfeição. (Exatamente um ano depois da conquista por parte do Solaia do primeiro lugar na classificação mundial dos vinhos redigida pela Wine Spectator, o mesmo lugar ficou justamente com uma safra de Ornellaia, a de 1998.) Seguindo o mesmo caminho, o meu irmão criaria uns poucos anos depois, na mesma propriedade, outro esplêndido vinho, conquanto de tipo completamente diferente: o elegante Masseto, um 100% Merlot que não pode faltar na coleção dos verdadeiros apreciadores. Gostaria de lembrar que em quase todos os vinhos desta inigualável temporada – do Sassicaia do tio Mario Incisa ao nosso Tignanello, aos vinhos de Lodovico – sempre houve o “toque” da estirpe de Rinuccio dos Antinori. Foram muitos, nos anos seguintes, os vinhos que procuraram entrar nesta categoria, tão afortunada quanto oficiosa, dos toscanos reelaborados. Muitos produtores descobriram de repente misturas com uvas forasteiras e barricas. O pequeno tonel tornou-se, no entanto, uma

espécie de moda; demasiados vinhos foram nele enfiados à força. – A barrique – disse certa vez Renzo Cotarella numa entrevista – é uma minissaia com que nem todas as mulheres ficam bem. É uma técnica que não pode ser improvisada: perguntem a Giacomo Tachis, que, em seus escritos, explica pormenorizadamente por páginas e mais páginas qual é o tipo certo de carvalho, quando e a que altura do tronco se deve cortar a madeira para conseguir o material perfeito, como ele deve ser rachado e em que posição as aduelas precisam ser dispostas, e como elas devem ser “tostadas”. Sem as noções certas, sem os tempos certos, sem paciência e paixão surgiram então vinhos que talvez soubessem realmente a madeira, como se queixava o bom Paronetto, enquanto depois o crítico enogastronômico Davide Paolini falaria da geração de “vinhos de carpinteiro”. Nunca copiar de forma servil e seguindo a moda uma solução, pois todos os vinhos, criaturas vivas e cheias de personalidade, têm, cada um, a sua própria maneira de nascer, crescer e envelhecer. Hoje ouço dizer que os verdadeiros, autênticos Super Tuscans são poucos. Além do Sassicaia, dos nossos Solaia e Tignanello e do Ornellaia do meu irmão Lodovico, os rótulos feitos com paixão e com um plano transparente e não improvisado podem ser contados nos dedos das mãos.

Incluo certamente no número deles o Cepparello de Isole e Olena, tinto “de mesa” de Barberino Val d’Elsa, o Fontalloro, tinto da fazenda de Fèlsina, em Castelnuovo Berardenga, e o Flaccianello de Fontodi, amadurecido nas cercanias de Panzano in Chianti e adorado pelos críticos americanos. O Siepi do Castelo de Fonterutoli, perto de Siena; o Vigna d’Alceo produzido pelos Di Napoli na propriedade de Santa Lucia (com o costumeiro toque mágico de Giacomo Tachis). E, finalmente, Le Pergole Torte, Sangiovese coetâneo do Tignanello, criado com amor e perseverança por Sergio Manetti na fazenda de Montevertine. Existem, além disso, quatro ou cinco Super Tuscans até fora do território do Chianti Clássico, como o Galatrona de Lucia Sanjust ou o Borro de Ferruccio Ferragamo, e mais alguns outros em Montalcino, em Montepulciano e na Maremma. E isso demonstra claramente que o grupo dos supertoscanos ainda está em fase de pleno amadurecimento. Mesmo que já tenha conseguido algumas significativas vitórias. Foi graças ao Sassicaia, originalmente considerado um Super Tuscan, que em 1994 nasceu a indicação DOC da zona de Bolgheri: uma das áreas de denominação de origem controlada menores e mais preciosas da Itália. Além disso, e principalmente, primeiro em 1984 e depois em 2002, foi completamente reformulada a famosa regulamentação da DOC do Chianti Clássico que tantas dores de cabeça nos dera. Agora é permitido o uso de uvas não autóctones. Podemos eliminar por completo os

“brancos” na mistura de uvas. Levam-se em conta as novas técnicas de seleção das videiras e da maceração e fermentação da uva. Atualmente, e este foi o mais vistoso e agradável dos paradoxos, a partir de 1975 o Tignanello seria de fato e de direito um Chianti Clássico. Em outras palavras, a atual dosagem oficial de uvas do Chianti Clássico está fundamentalmente baseada na fórmula do nosso produto. O vinho gerou a lei, e não o contrário. Mais um belo resultado. O meu Tignanello, enquanto isso, completou 40 anos. Continuamos a melhorá-lo trabalhando na seleção das plantas e na sua distribuição. Voltam à minha mente as imagens dos campos maltratados do fim dos anos 1960, aquelas videiras desordenadas. Olho para eles agora. Agora plantamos seis mil delas em cada hectare, o dobro de então. Mas cada uma produz menos cachos, e é acompanhada e cuidada singularmente. São plantas extremamente selecionadas e nobres que podem viver até cem anos esbanjando saúde. Na prática, ao longo desses anos procuramos reeducar nelas o Sangiovese. Esta cepa que conhecemos tão bem, com efeito, às vezes é excessivamente “expansiva”: uva demais nos sarmentos, isto é, o risco de cansar a planta em demasia e de aguar a sua qualidade. Tentamos plantá-la em terrenos menos férteis para darlhe um ritmo mais equilibrado, tendo em vista a melhora da sua saúde no futuro. Selecionamos cuidadosamente as melhores plantas para em seguida propagá-las com a

“seleção massal” (começamos escolhendo trinta e cinco, e acabamos ficando com apenas cinco…). Fizemos, e continuamos a fazer, experiências de cultivo em vários lotes do mesmo terreno com técnicas e procedimentos levemente diferentes para então confrontar os resultados a longo prazo. Hoje posso dizer com conhecimento de causa que, apesar da sua excelência – são plantas que fizeram história –, nos anos 1970 as videiras da propriedade de Tignanello ainda se ressentiam dos maus-tratos dos anos 1960. Que as dos anos 1990, apesar de mais bem selecionadas e gerenciadas, ainda eram de alguma forma “adolescentes”. E que só aquelas com que estivemos trabalhando nos últimos quinze anos começam realmente a se aproximar do que eu queria. Depois de inúmeras provas e avaliações, agora quero uma videira a cada oitenta centímetros, em fileiras com dois metros e meio de distância uma da outra. Quero tirar de cada planta um quilo de uva perfeita, para então conseguir dela setenta e cinco centilitros de vinho: uma garrafa. Um exercício de geometria renascentista, no sulco da “vinha perfeita” desenhada e descrita por Leonardo da Vinci num célebre tratado, atualmente guardado no castelo de Windsor, na Inglaterra. Talvez agora o leitor possa ter uma ideia mais clara do que queríamos dizer com aquele “P” de Perfeição. A safra de 2004 foi boa. A de 2007 ótima, e ficará melhor ainda envelhecendo. Modelo dos vinhos de qualidade de

hoje, o Tignanello precisa ser reinventado todos os anos. Seja porque continuamos nossos esforços por melhorar as videiras e os vinhedos. Seja porque procuramos nos adaptar aos desejos da natureza, às infinitesimais variações do clima e do terreno. E, ainda, porque as próprias plantas, envelhecendo, mudam imperceptivelmente o próprio caráter e a maneira com que reagem à ação do homem e do céu. Considero a propriedade de Tignanello, pelo menos durante todos os anos 1970 e 1980, o principal laboratório a céu aberto da minha empresa. Enquanto a Marchesi Antinori expandia seus mercados e seus espaços, com seus vinhos de excelência, e também com iniciativas mais comerciais como o Galestro, enquanto começávamos a procurar por toda a Itália e pelo mundo afora novos vinhedos ideais para ampliar a nossa visão e a nossa arte regional, aqui o trabalho continuava, através de pequenas, infinitas inovações, em busca do Chianti perfeito. Nisso tudo, entretanto, não se deve ver um asséptico laboratório de bioengenharia com vindimadores de jaleco branco e estetoscópio, e sensores eletrônicos fincados no topo de cada estaca. Qualquer melhoria tem de se basear na natureza da videira e do lugar. Consideremos o terreno, por exemplo. Uma das grandes qualidades da propriedade de Tignanello é a constante presença, além da pedra de galestro, da pedra alberesa. Esta pedra calcária branca, onipresente na região, desde os seixos no leito do Arno até

as colinas perto de Prato, sempre foi muito importante para a Toscana. Os antigos romanos tiravam dela a cal; na Florença medieval era usada como calçamento das ruas; a catedral de Prato, com seus rendados bicolores, é toda feita de pedra alberesa, assim como o Castelo Pretório e o Palácio do Imperador no centro histórico da mesma cidade. A alberesa, um “calcário margoso” entremeado de reluzentes cristais de manganês, é o veio branco que caracteriza inúmeras paisagens toscanas. É desde sempre um material amigo da videira, graças à sua capacidade de manter limpo o terreno e refratar a luz do sol. Na propriedade de Tignanello encontramos grandes blocos de alberesa pura, que fragmentamos e depois “encordoamos”, quer dizer, espalhamos ao longo das fileiras. Conseguimos desta forma um solo cândido onde a grama não cresce: só há terra, pedra e a videira em contato direto e contínuo. O que faz com que não seja necessário o uso de herbicidas. E, sobretudo, as pedras brancas (que na Renascença até os grandes pintores usavam em suas telas) com seus reflexos “regam” de sol a fileira de todos os lados. Toda cepa. Todo cacho. Uma solução até econômica, de grande força simbólica. E, além do mais, natural. Em várias escolas de agronomia tem sido estudada a relação entre amadurecimento da uva e refração solar, o que levou a aconselhar o posicionamento de películas plásticas em baixo de cada fileira para otimizar a exposição natural. Nós fazemos isto com as nossas pedras.

Quero gastar mais umas poucas palavras a respeito da safra de 2010. Um ano que não foi fácil. Chuvoso, vez por outra quente demais, forçou-nos a acompanhar as nossas videiras sem descanso, até o último momento, sempre temerosos de que pudesse acabar sendo mais um ano sem Tignanello. Mas, como às vezes acontece no nosso trabalho, quando fomos colher os cachos negros daqueles sarmentos, quando os selecionamos, desfolhamos e colocamos nas tinas, o resultado pareceu-nos francamente excepcional. O que repousa agora nas nossas adegas, em barricas de madeira francesa de Allier e Tronçais, pode ser o sumo da melhor uva Sangiovese de que eu posso me lembrar. Às vezes vou visitá-lo nas adegas de Tignanello, afagando com o olhar as fileiras de barricas perfiladas naquele escuro frescor. As adegas Antinori são uma bonita imagem daquela mistura de inovação e orgulho das origens que estou tentando explicar neste livro; daquela capacidade de não esquecer e respeitar todos os vinhateiros toscanos, e todos os Antinori que nos antecederam, permanecendo firmes, diante do desafio de um novo vinhedo, sempre prontos para começar tudo de novo. Descemos aos subterrâneos da vila do século XVI onde, antes de nós, também já viveram alguns membros da família dos Médici. Atravessamos, numa escada de pedra que começa na entrada no térreo, as antigas fundações que remontam a 1346, quando a mansão fortificada pertencia aos Buondelmonti, a família que aqui morava. Chegamos a

um antigo porão de amplos arcos cruzados, onde se encontram as longas fileiras de barricas de madeira clara: é o Solaia, irmão de origem e de vinhedo do Tignanello. Ele precisa descansar por pelo menos dezoito meses, e depois passará mais um ano nas garrafas, nas modernas adegas de afinamento que não ficam longe. Agora é preciso descermos mais, por um longo corredor inclinado, até encontrarmos as barricas de Tignanello, deitadas ao comprido em grandes pilhas sob os arcos emboçados. Estamos no coração do Chianti, muitos metros embaixo das campinas onde guelfos e gibelinos travaram suas batalhas. Mas é bom não se deixar levar pelo ar quase místico deste lugar silencioso, pelo leve cheiro da madeira e do vinho: esta adega é, na verdade, a parte mais recente de toda a propriedade. Foi inteiramente reestruturada no fim dos anos 1990. Depois, novamente, em 2003. E continuamos a aperfeiçoá-la: só quero o melhor para este vinho. Se o vinho da vindima que encerrou os primeiros dez anos do novo milênio se tornará, quando finalmente sair daqui de baixo, o melhor Tignanello que já foi saboreado, o vinho que fará suspirar de deleite os enólogos e os apreciadores, saberemos muito em breve. Que sabor terá, por sua vez, o que engarrafaremos daqui a cinco, dez, vinte anos, ou em 2071, quando o nosso Super Tuscan completar cem anos, é difícil dizer. Talvez só os meus netinhos venham

a saber aonde este vinhedo pode chegar. Agora, como sempre, só podemos esperar.

  1 A demonstrar a presença antiga de uma colônia anglo-saxã residente na Toscana, o nome deste prato de carne grelhada tipicamente florentino é uma deturpação do inglês beef-steak. Uma boa “bistecca”, com o filé de um lado do osso e o contrafilé do outro, não deveria pesar menos que quatrocentos gramas. (N. do T.) 2 De etimologia bastante incerta (talvez do árabe damagan), o nome se refere a um garrafão de vidro, revestido de vime, com capacidade de pelo menos 50 litros. (N. do T.) 3 Transformação, durante a fermentação, do ácido málico em ácido láctico. (N. do T.) 4 Além desta acepção puramente enológica, carati significa propriamente “quilates”. (N. do T.)

V – CERVARO DELLA SALA A Úmbria e a Toscana

T

em aromas de frutas exóticas, de grande complexidade, um sabor cheio e envolvente, uma grande

personalidade. O Cervaro della Sala nasce na propriedade úmbria do Castello della Sala de uvas Chardonnay e Grechetto. A primeira é típica da Borgonha, embora há muito tempo seja cultivada no mundo inteiro. A outra é uma das mais típicas uvas brancas da Itália central. O Cervaro pode ser definido como um dos poucos vinhos brancos italianos capazes de evolver e envelhecer até por longos anos com estilo. Destampamos uma garrafa dele, pela primeira vez, no fim dos anos 1980, quase meio século depois que o meu pai comprara a propriedade. Bem perto da fronteira com a Toscana, numa corcova de arenito coberta de terra argilosa, 400 metros acima do nível do mar, o castelo foi erguido em 1350 pelo nobre Angelo Monaldeschi della Vipera. Um fidalgote belicoso cujos antepassados, para melhor brigarem entre si, se haviam dividido em quatro ramos. Os Monaldeschi del Cane, os Monaldeschi dell’Aquila, os Monaldeschi della Cervara e, justamente, os Monaldeschi della Vipera [isto é, da Víbora], os mais venenosos de todos, como contavam. Moraram

longamente ali, em seguida, os condes Della Cervara, dos quais tiramos o nome do vinho. Depois, mais uma vez, os Della Vipera. Até as duas famílias chegarem a um acordo graças a um casamento no fim do século XV: criaram então um brasão onde uma víbora se unia a um cervo com um cordão umbilical, e viveram em paz. O Castello é um lugar de antiga magia, bem no meio da área onde, desde sempre, se cultivam grandes vinhas de uva dourada. Setenta anos atrás, quase por acaso, em Nápoles, meu pai descobrira que meia Itália pedia os brancos. O fato foi bastante divertido. Estamos em 1924, meu pai está viajando a trabalho com outro mítico colaborador nosso daquele tempo. Chamava-se Umberto Cornia, um milanês grandalhão, simpático, jeitoso como uma locomotiva. Um homão que comia muito, muito bebia e se entregava aos prazeres da música e da literatura. Nascido para vender, ativo primeiramente em Roma e depois por todas as partes, percorria a Itália inteira com os nossos vinhos sem que nada pudesse detê-lo. Quando um cliente malcriado se recusava a comprar batendo a porta na cara dele, sentenciava: “Só quem não deixa herança de afetos pouco prazer encontra no túmulo.” A ideia de levar o meu pai a Nápoles fora dele. Por lá, naquela época, os nossos tintos não passavam de um produto exótico só encontrável em alguns hotéis internacionais. Entre os inúmeros restaurantes de peixe que pontilhavam a orla do mar, onde passeavam os turistas e a gente bem, ninguém jamais ouvira falar de nós.

– Também vendem este? – perguntou o dono de uma trattoria na zona do porto mostrando uma garrafa de Orvieto (este era, então, o nome genérico dos brancos da Úmbria). E o vinhateiro florentino, com muito desgosto, teve então de explicar que a sua família, havia alguns séculos, só fazia tintos da melhor qualidade. – Mas o pessoal quer brancos frescos. Para o peixe! – replicou o taberneiro napolitano e, ainda que gentilmente, deu-lhes as costas. Mais um restaurante, mais uma recusa para os nossos Chianti. – É disto que a gente precisa! – concluiu o interlocutor, agitando diante dos olhos desanimados do meu pai uma pulcianella (o frasco barrigudo e achatado típico dos vinhos úmbrios) cheia do costumeiro Orvieto. – Têm deste? – perguntou o homem. – É claro que temos! Receberá a encomenda o quanto antes! – intrometeu-se àquela altura o milanês, adiantandose a meu pai, que só pôde ficar boquiaberto. Então, de lápis na mão, o Cornia começou imperturbável a tomar nota do pedido. Só parou ao anoitecer, quando as encomendas já chegavam a várias dúzias de caixas de pulcianelle. – E onde vou encontrar todo esse branco? – perguntou, preocupado, meu pai.

– Não é problema meu – sorriu o milanês. – Eu só cuido das vendas. Foi assim que, para não deixar no esquecimento todos aqueles pedidos, o futuro dono da nossa empresa teve de sair correndo para San Casciano e convencer vovô Piero (que, como eu já disse, não gostava de riscos nem de surpresas) a encontrar o quanto antes na praça os brancos do caso. Não sei como, mas de alguma forma conseguiram. E no ano seguinte começaram a estudar as propriedades e as uvas daquela Úmbria tão popular entre os bons de copo partenopeus, que, talvez, também quisessem uma alternativa ao muito difundido Capri Scala local. Resumindo, dali a pouco, graças principalmente à insistência do meu pai, a nossa produção de brancos cresceu em quantidade e qualidade; usávamos uvas Trebbiano e Grechetto naquela que desde sempre era considerada a principal região italiana daquelas variedades, em particular na área de Castiglione in Teverina. Na mesma linha de pensamento, em 1940, meu pai, àquela altura já firmemente no comando das Adegas, decidiu comprar para a Marchesi Antinori as vinte e cinco lavouras da herdade Della Sala. “Percebi”, escreveu meu pai, “que para consolidar a nossa presença operativa na zona de Orvieto durante a vindima já não nos bastava alojar-nos em alguma hospitaleira fazenda do lugar”. Naquela época, no entanto, as lavouras locais estavam em condições desoladoras. Levou quinze anos para arrumar

as coisas. Mas já no começo dos anos 1960 as suas adegas eram consideradas um modelo de inovação, embora o Castello, repleto de armaduras e tapeçarias medievais, ainda tivesse de levar vários anos para cumprir o seu destino de significativo produtor de um grande branco. Gosto de lembrar que meu pai teve tempo de ver o começo da sua última reestruturação: atualmente, no castelo do Cervaro, vinificamos e experimentamos com técnicas de vanguarda, temperaturas controladas em todas as fases da vinificação, eliminação das ações mecânicas de bombeamento, substituídas pela gravidade, numa adega novinha em folha. Também fazemos azeite e queijo de cabra. É um endereço cada vez mais importante na recente geografia dos Antinori. O símbolo de uma estação, mais uma vez, totalmente nova. Se o Solaia e o Tignanello, aperfeiçoados na dosagem das uvas e na qualidade ao longo dos anos, foram os nossos porta-bandeiras no fim dos anos 1970 e nos primeiros 1980, dois foram os vinhos nascidos na década seguinte e dos quais continuo a sentir muito orgulho. Os que deram ao mundo e ao mercado o sinal de que a Marchesi Antinori ainda tinha muito que dizer. E que não cessaria de esforçarse em seu progresso só porque os balanços ficavam cada vez mais positivos. O primeiro deveu-se ao engenho e ao trabalho apaixonado de Renzo Cotarella, nascido no coração daquela terra de Bolgheri onde recentemente havia

acontecido a revolução dos Super Tuscans: o Guado al Passo. Se a equipe do Tignanello girava em torno do talento enológico de Giacomo Tachis, o homem que teve o grande mérito de transformar em vinho as minhas ideias, os anos seguintes foram por sua vez marcados pela presença de um colaborador que não era de Florença, não era toscano e tampouco piemontês, não tinha Antinori entre os seus antepassados, e que, quando ouvi mencionar o seu nome pela primeira vez, tinha muito pouca experiência de adega. Hoje, trinta anos depois, é praticamente um membro da minha família. Administrador delegado da Marchesi Antinori, Renzo Cotarella fica, por caráter e certidão de nascimento, exatamente no meio entre a “minha geração do Tignanello” e a das irmãs Antinori, chamadas a enfrentar novos desafios globais. Renzo foi uma felicíssima descoberta minha. Agora é um astro da enologia internacional, mas quando me foi indicado, em Orvieto, dividia o seu tempo entre os últimos exames para se formar em Ciências Agrárias na Universidade de Perugia e o trabalho na pequena empresa vinícola da família, onde, graças também a um diploma de perito químico e aos estudos de agronomia, fazia um pouco de tudo. Estávamos em 1977. Eu era então o presidente da Associação para a Proteção dos Vinhos de Orvieto, uma entidade que eu acompanhava na medida do possível, até para fortalecer os liames com uma região onde a recuperação do castelo continuava a ser um projeto em

estágio ainda embrionário. Quando na Associação veio a faltar de repente o diretor, aconteceu que entre os currículos das pessoas do lugar propostas para aquele cargo também estava o dele. Encontramo-nos em julho. Pode ser que alguém já me tivesse falado da sagacidade e do empenho demonstrados por aquele rapaz, mas acontece que eu logo intuí alguma coisa nele. Talvez a alta qualidade da pessoa e do viticultor. Ou, mais provavelmente, a famosa paixão que considero um traço imprescindível em todos os que quero ao meu lado no meu trabalho. Quando se tratou de escolher um novo diretor, portanto, eu já tinha pronta uma decisão realmente original: não um candidato conhecido e calejado, mas sim um rapaz muito jovem que só tinha trabalhado “em família”, ainda sem títulos sérios e desprovido de experiência. A Associação seguiu em frente por dois anos graças à contínua troca de ideias e à colaboração entre o presidente distante e o jovem diretor recém-empossado. Era uma estrutura extremamente reduzida, formada por apenas dois funcionários, mas de grande valor estratégico na zona de Orvieto, desde sempre uma terra estimulante para quem faz vinho. Não sei se, lá no fundo, eu já tinha considerado aquela experiência de Renzo Cotarella nos escritórios da Associação como o primeiro passo no caminho que o levaria ao palácio Antinori. O que sei é que, no fim dos anos 1970, eu tinha amadurecido dentro de mim a certeza de querer

aquele botão de viticultor nas minhas adegas. Enquanto isso, o rapaz conseguira se formar com, além do mais, uma pequena ajuda de Giacomo Tachis. O nosso enólogo era, desde sempre, um ídolo para ele, e no fato de Renzo não ter hesitado em consultá-lo para ser aconselhado acerca da sua tese, assim como Tachis, muitos anos antes, pedira audazmente ajuda ao seu “pai espiritual” Émile Peynaud, vi um jogo de referências e auspícios de que gostei muito. Tendo isto em mente, a partir daí me manchei de uma pequena e consciente falta de ética da qual nunca me arrependi: pouco a pouco passei a “roubá-lo” da Associação. Durante uma das minhas visitas a Orvieto, fiz-lhe uma proposta que nenhum verdadeiro amante do vinho poderia recusar. Estaria ele disposto a cuidar das terras do Castello della Sala, cujas adegas e vinhas precisavam de um novo estímulo para se nivelar com as nossas estruturas de excelências na Toscana? O “sim” dele vibrou de entusiasmo e curiosidade. Muito bem. Só pedi que mantivesse momentaneamente o seu cargo de diretor em Orvieto; fosse porque por enquanto não dispúnhamos de um substituto, fosse porque a repentina passagem do responsável pela Associação da qual eu era presidente para a minha empresa não teria sido correta. Cotarella visitou pela primeira vez a nossa propriedade na Úmbria, suas antigas adegas de arenito, os campos e as vinhas, em 1979. A partir de então, e até hoje, apesar das suas muitas tarefas e novas responsabilidades, percorre

toda vez que lhe é possível aquelas fileiras para certificar-se de que tudo está certo. Durante alguns anos teve de dividir o seu tempo entre o escritório do Castello della Sala e aquele vinhedo em desenvolvimento onde eu queria realizar algum dia uma adega modelar. O resultado foi um imediato fluir, pelo telefone, por carta ou então pessoalmente, de projetos e propostas. Ideias que às vezes precisavam ser polidas, racionalizadas (não é esta, afinal, a tarefa do empresário diante de um colaborador particularmente esperto e criativo?), mas amiúde interessantes e novas. Apesar dos estudos centrados na agronomia, entre aquelas velhas paredes Cotarella tinha irremediavelmente contraído, àquela altura, o vírus da enologia. O encontro dele com a nossa empresa foi um verdadeiro enlace de paixões. – Na minha cabeça e no meu coração, Antinori sempre foi uma fonte de atração fatal – explicou certa vez numa entrevista. Ainda teve tempo de conhecer o meu pai, que, mais uma vez, aprovou a minha escolha. Desde então Cotarella sempre esteve conosco. É claro, antes de acabar no comando da firma, em 2005, teve de percorrer um longo caminho, assim como eu antes dele e como todos os nossos colaboradores. De consultor e diretor do Castello della Sala tornou-se, em seguida, responsável por toda a nossa produção, depois diretor-geral em 1998 e, desde 2005, administrador delegado. Costuma afirmar que, muito mais que os cargos profissionais, o que conta é o papel humano que ele desempenhou na empresa, a

progressiva conquista da confiança minha e das minhas filhas, das quais se considera hoje uma espécie de “irmão mais velho”. Uma progressiva tomada de responsabilidades que acompanhava a ampliação das suas experiências. O seu primeiro desafio, portanto, foi tirar do nosso castelo úmbrio uma adega, um vinhedo e, mais cedo ou mais tarde, um vinho de vanguarda. Sem macular a solenidade da poderosa morada encastoada entre os bosques, dominada pelos trinta metros de pedra da torre de 1350. A ideia inicial era a “reavaliação local”: partir dos tradicionais vinhos do lugar, e de uma área que, pelo clima e pelas características do terreno, continuava a ser uma das mais apropriadas, na Itália, para os vinhos brancos de qualidade, para então chegar a um produto mais personalizado e provido de um “toque Antinori”. Um “aperfeiçoamento na continuidade”, como decidíramos chamá-lo. Não demorou muito, no entanto, para eu e o meu novo colaborador descobrirmos que entre aquelas florestas úmbrias existiam as premissas para um objetivo bem mais ambicioso. Houve, neste caso, um jantar que mudou a nossa percepção do problema. Eu, o meu novo enólogo e o amigo Darrell Corti, enciclopédico dono de enoteca em Sacramento, estávamos na Borgonha, a outra grande região francesa do vinho. Certa noite, num restaurante cujo nome não lembro direito, depois de um dia inteiro passado entre adegas e vinhas em busca de inspiração para os nossos

brancos, decidimos pedir como fecho de ouro da nossa expedição um Corton-Charlemagne, um Chardonnay de perfumes extremamente delicados, com uns dez anos de envelhecimento. Vinha da Côte-de-Beaune, zona de baixas colinas e suaves terrenos calcários. E foi mais um daqueles choques enológicos cujos detalhes sempre lembrarei. O vinho era exatamente aquilo de que estávamos falando naquele momento. Um branco perfeito, que podia ser deixado na adega por longos anos. Recordo que, para não ser ouvido pelos outros comensais, dobrei-me levemente para ciciar em seus ouvidos: “Acho que nunca conseguiremos reproduzir algo tão perfeito nas nossas terras!” Pois é: como muitas vezes Renzo já me lembrou, talvez para alfinetar-me, naquela noite o marquês Antinori, o que sempre defendera o Tignanello contra toda e qualquer crítica tradicionalista, o que lutara contra tudo e todos para ter de volta a sua empresa, estava a ponto de jogar a toalha. Ainda bem que, àquela altura, ele estava lá para convencer-me, para dizer-me que com a devida atenção e perseverança nada era impossível. Que as uvas úmbrias eram perfeitas e que não faltava muito para a nova adega ficar pronta. Alguns anos depois, Cotarella contou o mesmo episódio com um espírito bastante diferente. Deixo a palavra com ele, que do “seu” vinho já falou muitas vezes com entusiasmo: “O que nos fez vislumbrar novos caminhos foi uma visita a Borgonha em 1981. O descobrimento de

vinhos brancos que não só podiam envelhecer, mas ‘tinham’ de fazê-lo para expressar-se plenamente, levou-nos a conhecer uma nova dimensão do mundo do vinho e… decidimos tentar.” Otimismo, mais uma palavra a ser escrita no meu decálogo do moderno vinhateiro. Resultado: quando voltamos da França, já não queríamos simplesmente inserir um rótulo com a marca Antinori na lista dos tradicionais vinhos brancos da Úmbria, mas queríamos, como Renzo depois explicou, “um grande vinho, capaz de afirmar-se pelo caráter, pela personalidade, pela longevidade. Ao qual transferir uma alma que representasse o território e o produtor”. Dizer que passar da ideia ao vinho na garrafa foi complicado é um eufemismo. Não sofríamos, no entanto, as pressões comerciais e de balanço que nos haviam afligido até uns poucos anos antes, e o jovem enólogo pôde trabalhar sem pressa. Era preciso experimentar o uso das barricas, que, só recentemente aceitas na Itália para os tintos graças ao nosso trabalho, ainda eram consideradas uma incógnita e um risco para os brancos. A mesma falta de exemplos e modelos anteriores também existia para outros detalhes técnicos, como a maceração pré-fermentativa a frio das uvas (um dos segredos da futura qualidade daquele vinho). Disso tudo surgiu uma primeira vinificação, em 1982, que decepcionou tanto a mim quanto a ele. O jovem úmbrio, no entanto, não desistia tão facilmente. Continuou as suas experiências, esperou a vindima certa por três

longos anos (durante os quais, confessaria depois, chegou várias vezes a perder as esperanças de encontrar o que procurava) e, em 1986, tentou de novo. Desta vez, além da uva borgonhesa, recorreu com mais decisão ao Grechetto. Para enfrentar a contento o problema da maceração, mandou colher as uvas de manhã bem cedo, para aproveitar a baixa temperatura (com esta finalidade, hoje em dia dispomos de um aparelho para a maceração a frio que os encarregados da adega chamam de “máquina do diabo” devido às suas grandes baforadas de vapor). E mais: só usou barricas “de primeira passagem”. Controlou a fermentação que, naquele ano, a uva aceitava de maneira melhor. Descobriu, em resumo, a receita. Mais de um século depois das primeiras tentativas dos meus antepassados, nascia o Tignanello “loiro”: o primeiro branco nosso da mais alta qualidade. O Cervaro, em que se “formou”, em suas primeiras experiências na adega, a minha filha Albiera, e de que o seu filho Vittorio fará este ano a sua primeira vindima, foi se aperfeiçoando ao longo dos anos. Assim como a sua adega, que, começada em 2004, é atualmente uma das mais adiantadas da Antinori e da Itália, conforme aquela filosofia de modernidade na tradição que acabamos aplicando a muitos outros dos nossos lugares de produção. Parcialmente enterrada, com telhado inclinado que se adapta perfeitamente ao perfil das colinas, a adega onde nasce o Cervaro é uma excelência mimetizada na paisagem, uma

revolução tranquila que bem representa o homem que nela trabalhou desde o começo. A coroar a façanha, chegou mais uma daquelas noites enológicas inesquecíveis que salpicam a minha história. Em Londres, no fim da década de 1990, lá estava eu num jantar de trabalho com produtores do mundo inteiro no âmbito do IWSC (International Wine & Spirits Competition). Cada um devia apresentar rapidamente o próprio vinho, acompanhando-o de uma degustação. Aconteceu-me estar sentado ao lado de um dos mais famosos produtores da Borgonha, cujo nome, citando Dante, agora “calar é belo”. Da sua premiadíssima vinha francesa ele trouxera um branco Montrachet, e eu o meu Cervaro della Sala 1987. Quando se levantou, o viticultor transalpino começou a decantar detalhadamente os louvores do cálice diante dele: a cor e a luminosidade, a complexidade, o aroma, a plenitude do gosto e o sabor restante. Então chegou a minha vez, e tive uma pequena, divertida surpresa: no meu cálice acabei encontrando o Montrachet. Tinha certeza disto. Que vinho haviam, então, servido no copo do meu vizinho? Sim, claro: tratava-se de uma troca! A mesa inteira riu. Eu receara nunca alcançar os níveis daqueles famosos brancos da Borgonha, e agora o meu Cervaro podia comparar-se com todo o direito a qualquer um deles. Palavra de produtor francês! Como confirmação deste longo percurso e deste apaixonado trabalho, a prestigiosa revista Il Gambero Rosso achou oportuno premiar com “três

copos”, isto é, com o atestado de excelência, todas as safras de Cervaro a partir de 1988, menos a de 1991, isto é, vinte entre vinte e uma safras. Se Tachis é o homem dos Super Tuscans, da revolução, Cotarella é o da consolidação, dos retoques de aperfeiçoamento. Naqueles anos as adegas Antinori estavam crescendo tanto em prestígio e visibilidade quanto, é bom não esquecer isto, no volume de negócios. Qual seria o próximo objetivo? Decidimos que, na euforia de todo aquele sucesso, diante de todas aquelas possibilidades que se abriam, o importante era não perder de vista a estrela polar da qualidade. Poderíamos fazer, àquela altura, muitos outros vinhos “fáceis”, de impacto assegurado no mercado; decidimos, em vez disso, investir a médio e longo prazo na fórmula do Tignanello: grande trabalho de pesquisa nas vinhas, grande seleção da matéria-prima, ponderadas experimentações, salvaguarda da essência da tradição. Fizemos isto em duas frentes: por um lado queríamos estender ao mundo inteiro a procura de “terroir” ideais, por outro era hora de adaptar esta nova filosofia de fazer vinho a todos os diferentes “hábitats vinícolas” do território histórico dos Antinori: o Chianti Clássico e depois, ampliando sistematicamente o raio da pesquisa, a Toscana e a Itália. Cotarella resume o contexto dizendo que a década de 1980 foi a dos nossos anos mais “comerciais”, enquanto na de 1990 voltamos de todos os pontos de vista,

principalmente os produtivos, a enfatizar a pesquisa, ainda que numa escala e com uma clareza de intenções bastante diferentes. É uma bela síntese de um aspecto muito importante da minha, da nossa filosofia. Já disse várias vezes que a essência do meu trabalho consiste no equilíbrio entre a produção e as vendas, entre o fazer o vinho e o valorizá-lo tornando-o conhecido e fazendo-o circular nos mercados. Esta guinada dos últimos vinte anos, inaugurada pelo Cervaro della Sala, só podia deixar-me feliz. Como já salientei, sempre fui um espírito agricultor, alguém que gosta de passar o tempo entre as fileiras, mesmo sem esquecer, jamais, a importância dos números, talvez devido também aos estudos de economia que meu pai me fez cursar. É o trabalho no campo, sem nunca perder de vista o resultado concreto, que torna de fato possível perseguir o ideal perfeccionista que me foi transmitido pelos cromossomos Antinori, e que nos torna de alguma forma únicos no panorama empresarial. É isto o que Cotarella quer dizer quando afirma que, antes de conseguir fazer a parte dele, o mundo Antinori parece, de fora, singular e, a certas horas, quase misterioso. “O senhor é realmente um homem de outro planeta”, gosta de me dizer. O importante é sermos sempre, e até o fim, nós mesmos. Sempre achei que, no estilo diferente dos dois maiores enólogos da Marchesi Antinori do pós-guerra, está claramente representado todo o trajeto percorrido pela empresa neste último meio século. Tachis, o criador do

Tignanello, ao longo da sua experiência na Antinori escolheu amiúde, com efeito, guardar para si espaços pessoais “traindo” o Chianti para explorar e ajudar a emergir vinhas sardas ou sicilianas. Fez estas experiências, obviamente, com a nossa bênção. E isto porque a nossa, na época, era uma firma vinícola pequena, quase toda encolhida em seu berço de origem no Chianti: era compreensível que o seu instinto pirotécnico de vinhateiro precisasse de espaços e estímulos mais amplos e variados. Renzo, por sua vez, sempre trabalhou e criou sob as insígnias da Casa Antinori. Mas também reconheceu que, para a sua criatividade, sempre tivera ao seu dispor as iniciativas e os novos horizontes de uma firma já a essa altura internacional e cada vez mais diversificada. “Pude fazer vinho no Chile e na Hungria, na Pulha e na Califórnia”, explicou, “sempre mantendo-me ligado a uma empresa em que me reconheço e cujos ideais compartilho.” As coisas mudam. Hoje em dia, para nós, pensar em vinho já não pode ser um trabalho de meio expediente; tem de ser algo que ocupa todo o nosso tempo. Provavelmente, por hectares de terra cultivados com videiras, estamos entre os maiores produtores e proprietários vinícolas da Europa. Ainda mais se considerarmos apenas as empresas familiares. Nós acreditamos na terra e nos campos. Desde o momento em que compreendi que os vinhos de excelência só podem nascer se os acompanharmos passo a passo até a

degustação, num terreno próprio e nas próprias adegas, a história da firma foi em grande parte uma história de expansão territorial. Reconhecer os melhores terrenos para o vinho e fazer com que possam dar o melhor de si num projeto de longo prazo: a nossa missão é esta. Do outro lado de um oceano ou a meia hora de carro de Florença. “Terroir” é mais uma vez a palavra-chave. Um francesismo que, na nossa história vinícola, talvez esteja adquirindo um sentido mais complexo e completo. Atualmente podemos dizer que indica tudo aquilo que contribui para a criação de um vinho, a partir da cepa original. Tudo aquilo que, como escreveu Giacomo Tachis, faz com que um vinho seja “único”. Quando você entra em contato com um novo lugar onde tenciona produzir vinho, quando procura interpretá-lo, precisa levar em conta, obviamente, as características físicas do terreno, a exposição e a inclinação, a composição química, os micro-organismos, o microclima, a ausência de poluição. Mas também contam, como já vimos, a paisagem e a maneira como esta paisagem foi elaborada, moldada por gerações de agricultores. Conta a história da aldeia próxima, os tipos de animais encontrados no bosque além da colina, como o vinho é tomado nas tabernas dos arredores, o que se come nas casas aos domingos. Conta tudo aquilo que você souber construir em volta da sua futura vinha: a equipe que lá irá trabalhar, as plantas e os animais que irão viver por perto, a adega e a cor do edifício dos escritórios. Para quem vive no nosso mundo, encontrar

um novo “terroir”, entendê-lo, começar a trabalhar nele, acompanhar devagar o seu desenvolvimento, ver como ele muda graças à sua ação, é a experiência mais linda e gratificante que se pode ter. Por isso tudo, nem mesmo nas mais recentes estações, jamais interrompemos o nosso lento avanço para outras terras na Toscana e na Itália, fora do nosso original pedaço de terra no Chianti. Uma conquista em nome do vinho começada na longínqua Idade Média e agora ainda em andamento, num ritmo cada vez mais acelerado. Uma expansão que é fonte de contínuos estímulos e oportunidades. Tal como acontecia com os nossos antepassados, que abriam suas “filiais” por toda a Europa para desenvolver seus comércios. E gosto de pensar que, de algum modo, este anexar e exaltar com o nosso trabalho um número cada vez maior de vinhas toscanas também é uma forma de redenção para estas paisagens e estes campos aviltados pela crise da viticultura dos anos 1960, pela especulação urbana e por muitos outros males dos tempos modernos. Quando, em junho de 2011, foi alardeada a histórica ultrapassagem da nossa produção vinícola sobre a França, expliquei aos jornalistas que me pediam um comentário que não era só uma questão de quantidade. Esta primazia vem principalmente salientar que na Itália há cada vez mais vinhas e adegas. E, ao contrário do que acontecia quarenta anos atrás, trata-se de vinhas e adegas de qualidade.

Quando foi feita de forma ajuizada, a produção vinícola sempre teve um impacto positivo nas nossas paisagens. Mais vinhas de qualidade significarão cada vez mais harmonia e proteção para as áreas agrícolas, laboratório e vitrine do nosso estilo de vida. Menos vinhedos, ao contrário, representariam um empobrecimento para todo o território. E para nós todos. Plantar uma nova videira sempre será, em qualquer lugar, um investimento para o futuro de uma sociedade inteira. Interpretando os tempos em sentido mais amplo, poderíamos até dizer que os Antinori pegaram de volta, com juros e correção monetária, os campos que lhes foram tirados no século XIII com a destruição do castelo de Combiate e dos territórios limítrofes por parte dos soldados de Florença. Pois é, já houvera um “palácio Antinori”, uma fortaleza em posição estratégica entre a planície florentina e a zona do Mugello, perto de Calenzano. Estamos no começo do século XIII; era o tempo em que a muito jovem República florentina dava os primeiros passos para tornar-se uma das mais importantes cidades da época em âmbito europeu. Uma Manhattan, uma Xangai. Florença estava com pressa, queria conseguir o controle absoluto da região. Menos de um século depois de aparecer pela primeira vez num documento oficial, lê-se nas crônicas da época que o sobrenome Antinori indicava naquele tempo uma família de bem-sucedidos mercadores que comerciavam tecidos com

as cidades vizinhas. E o fato de os Antinori ocuparem então justamente aquela fortaleza do século IX, que já pertencera a outras casas naqueles séculos obscuros, demonstra a influência que já tinham. Desconhecemos os pormenores. Não há dúvida, no entanto, de que Florença exigiu daqueles meus longínquos antepassados alguma forma de submissão. Coisa que eles recusaram. Mesmo então os Antinori já eram pessoas decididas, que não se desviavam dos seus propósitos. Preocupadas, porém, com o fato de aquela família poder algum dia tornar-se poderosa demais, e desejosas de assumir o controle das atividades e dos florins dela, as autoridades da cidade optaram, em 1202, por uma “compra” forçada. Decidiram enviar um pequeno exército, que depois de um breve cerco conseguiu a rendição dos meus longínquos antepassados, arrasou a morada sem deixar pedra sobre pedra e sancionou uma “proibição pública”, como conta o historiador do século XIV Giovanni Villani, “para nunca mais a fortaleza de Combiate ser reerguida”. Para os meus antepassados, a única opção possível para sobreviver como família (e como empresa) foi a mudança para dentro das muralhas da capital. Cidadãos florentinos na marra, antigos donatários de terras com um futuro cada vez mais dirigido ao comércio. Somos, portanto, “camponeses de volta”, que hoje podem afirmar a sua presença em todos os lugares onde nascem os grandes vinhos toscanos. Como conseguimos isto?

Comecemos pelo começo. Sabemos que, logo antes do cerco e da destruição da nossa fortaleza, Rinuccino Antinori de Combiate, o primeiro representante da minha família sobre o qual existem documentos seguros, fazia vinho para o seu próprio uso nas terras em volta do castelo. Quase certamente, tratava-se de cepas de Sangiovese. Vinhas que, provavelmente, foram destruídas em 1202. Ainda que os primeiros Antinori inscritos na associação dos vinhateiros também vendessem uvas e vinhos adquiridos alhures, um bom vinho (como nos conta o grande literato toscano Francesco Redi no poema “Bacco in Toscana”, do século XVII) vinha sendo produzido na propriedade Le Rose, ao sul de Florença, onde um Niccolò Antinori do século XV erguera uma vila de estilo renascentista com três lavouras. Àquela altura, já tínhamos as oito belas propriedades de Cigliano di San Casciano (aquelas onde crescia a uva dos primeiríssimos espumantes Antinori), e mais outros vinhedos perto de Prato, no Valdarno e em outros lugares. O primeiro que voltou a adquirir com bastante constância terras e vinhas com a finalidade declarada de suprir de matéria-prima as adegas da família sem precisar recorrer a intermediários de uva foi, como eu já disse, o meu pai. E foi graças ao seu casamento com Carlotta della Gherardesca, minha mãe, que chegaram às terras de Bolgheri: a propriedade de Guado al Tasso. Guado al Tasso se encontra no litoral da Toscana, 96 quilômetros a sudoeste de

Florença. Estende-se do mar às colinas em volta de Bolgheri. É um lugarzinho tão pequeno, que nem chega a ser um município: é uma mera circunscrição dependente de Castagneto Carducci; mesmo assim conseguiu ser tão importante do ponto de vista enológico que conquistou uma DOC toda sua e um lugar bem merecido no Olimpo do vinho. O lugarejo formou-se em volta de um castelo fortificado que remonta a poucos anos depois da queda do Império Romano. Parece que foi a base de um grupo de búlgaros, aliados dos lombardos, dos quais deriva o nome. Depois, por vários séculos, foi terra dos Della Gherardesca. Até aqui, a história. A natureza, por sua vez, moldou nestas bandas uma terra de vinha absolutamente ideal. Émile Peynaud, nos dias do grande choque enológico internacional provocado pelo aparecimento na praça do Sassicaia, nunca parava de mostrar o próprio pasmo: parecia não poder acreditar que desta terra pantanosa, conhecida por sua umidade, pelo ar malsão e pelos mosquitos, pudessem sair vinhos tão bem estruturados. Graças à coroa de colinas que fecha a zona dos vinhedos num anfiteatro perfeito, aberto aos eflúvios do Tirreno e protegido pelos grandes bosques, reino dos javalis. Aqui, desde sempre, florescem trigo, girassóis e oliveiras. Aqui, desde sempre, também se faz bom vinho. “… pelas ruas da aldeia / do borbulhar das tinas / sai o áspero odor dos

vinhos / as almas a alegrar”, escreveu na sua Bolgheri o poeta Giosuè Carducci. Só de uns poucos anos para cá, no entanto, se produzem nesta terra vinhos que surpreenderam o mundo com sua qualidade. Nós temos mil hectares, dos quais trezentos plantados com videiras, em terrenos que passam do arenoso ao argiloso-calcário; há também uma casa rústica que remonta a 1637 e, nos arredores, ruínas de antigos castelos e de numerosas torres de vigias milenárias, usadas no passado para assinalar a presença de sarracenos. Também há um trecho palustre e uma reserva natural onde vivem gamos, veados, javalis, faisões e, às vezes, até texugos, que dão o nome à nossa firma.[1] Ali, na Macchia del Bruciato, também correm soltos os cavalos do haras de Allegra, além, obviamente, dos porcos da raça de Siena que ela, atual “alma” da nossa “base da Maremmana”, cria em condições semisselvagens. É um lugar único, local privilegiado das férias da minha família há mais de meio século. Há gerações sempre consideramos os nossos principais vinhedos históricos não somente como fontes de produção da matéria-prima da empresa, mas também como lar. E, toda vez que as inúmeras missões ao exterior ou de uma ponta a outra da península nos permitem, voltamos a nos abrigar aqui. Longe da cidade e perto das videiras. Tignanello foi o nosso recanto de paz durante os difíceis anos da passagem da guerra, e depois, por um bom tempo,

a “vila dos vovôs”, onde as minhas filhas encontravam meu pai e minha mãe. Já faz um século que todos os membros da família ali se reúnem em setembro, para a vindima. O castelo úmbrio della Sala é praticamente “casa” para Renzo Cotarella, mas também para Alessia, que mora em Roma, a uma hora de carro de lá. Em Badia a Passignano, muito antiga herdade-abadia adquirida nos anos 1990, casou a minha filha Albiera, na igreja de San Michele, fundada logo depois do ano 1000. Há algumas décadas, no entanto, a nossa casa de campo predileta é justamente Guado al Tasso, onde se sucederam gerações de cavalos e de cães de caça. Onde todas as minhas filhas possuem atualmente morada nos arredores imediatos. E onde há anos quase sempre nos reunimos nos fins de semana. Isto, muito antes do estouro do fenômeno Bolgheri. Hoje em dia, americanos e ingleses ficam loucos já no fim de cada inverno para encontrar uma vaga num bed and breakfast ou uma mesa nos restaurantes locais. As multinacionais mundiais ali organizam congressos. O que faltava, pelo menos até o começo da década passada, era um grande vinho nosso do lugar, pois antes da “revolução” Sassicaia aquela era, para nós, principalmente terra de brancos e de rosados. Nasceu então o Guado al Tasso, muito desejado por mim e por Renzo Cotarella. Para chegar a ele, tivemos de experimentar longamente com Cabernet Sauvignon, Merlot e Syrah, mas, em 1990, o Guado al Tasso estava pronto. Um

tinto forte, como esta terra, um Bolgheri Superior que precisa, depois de desarrolhar a garrafa, de várias horas de oxigenação para dar o melhor de si. Mas vale a pena. Atualmente Guado al Tasso é, ao mesmo tempo, o nosso refúgio particular e um dos principais laboratórios da nossa futura viticultura. Ali nasceram, com efeito, vários outros vinhos, como o Vermentino de Bolgheri em 1996, do qual muito esperamos (Alessia considera-o um dos seus vinhos brancos preferidos), ou o Scalabrone, um rosado de nova geração que quisemos dedicar ao lendário bandidocavalheiro que contam ter vivido por estas bandas no século XVIII. Em 1994 também se implantou aqui um viveiro de preciosas barbatelle (as extremidades da cepa que criam raízes e que, portanto, não podem ainda ser plantadas em outro lugar), nas quais precisamos ficar de olho o tempo todo: os javalis são particularmente gulosos delas. No viveiro ainda encontramos o Vermentino, o excelente branco autóctone das costas do Tirreno, mas também novas seleções de Sangiovese, Cabernet-Sauvignons e Merlots, que irão depois arraigar-se nas nossas outras vinhas espalhadas pelo mundo. O nosso próximo grande vinho, provavelmente, nascerá das experiências que fazemos aqui. Vamos nos deslocar só um pouco. Há água sulfurosa correndo no interior da Maremma, atualmente uma das zonas mais verdes e selvagens da região. Dois mil anos atrás a coisa era bem diferente. Este foi o coração da

civilização etrusca, que aqui tinha prósperas cidades como Populônia e estradas, portos e lindas vinhas de um antepassado qualquer do Sangiovese. Houve em seguida séculos de esquecimento e abandono. Então, um novo despertar com obras de saneamento dos Lorena. Nos arredores de Sovana, cidade de louça e pedra onde os etruscos quiseram túmulos parecidos com catedrais, esculpidos no tufo (a famosa Tumba Ildebranda), começamos a comprar terrenos a partir de 1995. No local, ergue-se agora a nossa Fazenda Aldobrandesca. Na “paleta” cada vez mais multicolorida das terras onde amadurecem os nossos vinhedos, temos, nesta zona, o tufo, macia pedra vulcânica. Em sua polpa porosa os etruscos recortaram templos, necrópoles e as suas incríveis “vias cavas”, os caminhos escavados até vinte metros de profundidade na rocha viva, que ainda cortam a vegetação rasteira. As pessoas do lugar continuam até hoje a abrir na pedra cantinas, porões e garagens. Esta também é a área da uva Aleático, cepa aromática de grão preto, conhecida há pelo menos mil anos. Das fileiras da Fazenda Aldobrandesca vislumbram-se a sudeste as torres da antiga cidade de Pitigliano, fincada num grande esporão de tufo e famosa pela sua sinagoga e pelo seu seco branco DOC de Trebbiano toscano. A sudoeste, a imponente massa do Monte Amiata. Da nossa vinha etrusca já sai, há muitos anos, um Aleático com perfumes de rosa silvestre. E depois de

cheirarmos e experimentarmos esta terra, também decidimos tentar o Malbèc, uma cepa de fruta macia e delicada, quase inédito no nosso país. Francês, faz parte da mistura clássica bordelesa e já demonstrou o seu valor na Argentina. Ao vinho resultante desta experiência, um agradável IGT que ainda pode melhorar, demos um nome que evoca coisas antigas: “Le vie cave”, as vias cavas. Fazer vinho nesta terra dos etruscos muito me agrada. Tachis, apaixonado historiador do vinho, explicaria que na cultura deles a vida cotidiana, a espiritual e a espera do além se entremeavam de forma inextricável. Que a vida, para os etruscos, era um preparar-se para passar para outra dimensão. Que o mundo “depois” era a continuação feliz da vida. E o que juntava estes diferentes planos da realidade numa coisa só era o vinho. Daí a sua absoluta centralidade. Seus túmulos pareciam casas e eram tão frescos como uma adega. Suas urnas cinerárias tinham a forma de ânforas. Sarmentos e jarras de vinho, alegrando cenas de banquetes, enfeitam as paredes de Tarquínia e aparecem, onipresentes, nos vasos do museu etrusco de Vulci. Em seus enxovais fúnebres, entre pentes e joias, também encontramos sementes de videira. O vinho, em resumo, ocupava uma posição de destaque em qualquer tipo de cerimônia e de manifestação dos deuses. Era através da ebriedade do vinho que os “iniciados” entravam em contato com a esfera divina de Fufluns (o Baco da Etrúria) e se preparavam para o seu eterno além de alegria. Por isso, segundo o escritor

romano Plínio, no centro da cidade de Populônia se erguia uma estátua de Júpiter entalhada em madeira de videira. Os etruscos tinham “bosques” de videiras, pois faziam crescer estas plantas, provavelmente da espécie Vitis silvestris, como pequenas árvores apoiadas em troncos de olmo. Produziam quase certamente um vinho atualmente intragável, pois a qualidade vem de videiras mantidas baixas, enquanto a dos etruscos era uma viticultura “alta”. “Duro” e denso, precisava provavelmente ser misturado com mel e ervas aromáticas para tornar-se bebível e estável. Mas até que eu gostaria de experimentar. O que sabemos com certeza é que eles trouxeram para a Itália continental a moderna planta da videira, talvez do Oriente. E também foram os seus primeiros exportadores para o exterior; no fundo do mar, perto de Cap d’Antibes, entre os restos de um dos seus barcos, foram encontradas cento e setenta ânforas de vinho do tipo de Vulci, antiga cidade não muito longe de Sovana: os etruscos tinham conseguido conquistar o mercado provençal! É por isso que desde sempre eles fascinaram a minha família: já no começo do século XX um Antinori, Gaetano, foi um dos fundadores e “lucumone”, isto é, presidente – tomando emprestado o título dos antigos reis-sacerdotes daquela civilização –, da Academia Etrusca nascida em 1727 para incentivar os estudos sobre este povo misterioso. Fala-se de vinho e de vinhas na Tabula Cortonensis, uma preciosa tábua do século II a.C. descoberta em Cortona em

1992, com o mais longo texto em língua etrusca jamais encontrado. No verão de 2011 o museu da Academia Etrusca da cidade de Cortona organizou uma mostra, com peças que chegaram até do Louvre, centrada neste artefato. A estrela era Ariadne, um requintado busto de mulher em estilo etrusco-helenístico do século III a.C., vindo de Paris. Também esta jovem de 2.300 anos atrás, para ficar mais bonita e agradar mais aos deuses, entrelaçara nos cabelos sarmentos e folhas de videira. Decidimos celebrar o evento (e os primeiros vinte anos da nossa propriedade da Braccesca) com um cardápio totalmente etrusco: moretum (o queijo com alho cantado até pelo poeta Virgílio), massas com ervas, javali da mata toscana com mel e polenta de farro, alhos-porós no molho e creme etrusco. A nossa conquista na Maremma continuou até nos anos mais recentes. Sempre com o duplo propósito de descobrir novos “terroirs”, nesta zona que tanto está dando à enologia, e de proteger e exaltar o hábitat toscano. Trata-se de um princípio que sempre esteve implícito no meu trabalho, mas que, acredito, acabará se tornando cada vez mais importante para nós: a ideia de um vinho que, por onde passar, vai embelezar o ambiente, saneá-lo. Salvá-lo. Um claro exemplo deste crescente empenho é sem dúvida alguma a Fattoria delle Mortelle, um pouco mais ao sul que os pinheirais de Guado al Tasso. Desde 1999 acrescentamos aos nossos territórios esta herdade próxima do oásis natural

dos pântanos da Diaccia Botrona: um pequeno reino de patos, gansos, frangos d’água e outras aves migratórias, não muito longe de Castiglione della Pescaia. A Fattoria delle Mortelle ergue-se em cima de um morro a uns quinze quilômetros da praia. O nome se deve às onipresentes moitas de murta silvestre, localmente chamada, justamente, “mortella”. Os Lorena, que depois dos Médici reinaram na Toscana até uns cento e cinquenta anos atrás, com suas primeiras obras de saneamento livraram a região dos charcos, tornando-a própria para a agricultura. Os meus antepassados, em Florença, trabalharam longamente como altos funcionários e embaixadores para esta família nobre vinda do Norte, fidalgos iluminados que muito fizeram para modernizar a região. Hoje posso dizer que, de algum modo, eu levei adiante o trabalho deles. Antes da nossa chegada, neste canto meridional da Toscana a videira era uma verdadeira exceção. Na paisagem, dominavam os eucaliptos, onipresentes árvores australianas que no século passado foram importadas para a Itália para aromatizar o ar pantanoso e proteger os campos. E mais: mirtilos e grandes pomares de pêssegos, ameixas e damascos. Uma área vinícola totalmente nova: uma vez que podíamos trabalhar numa zona virgem, decidimos tornar a sua parte mais colinosa um dos nossos primeiros vinhedos totalmente dedicados à defesa ecológica e à tecnologia de ponta, desde os materiais reciclados das

estruturas até a escolha de vidros e embalagens mais leves para os produtos. Transformamos o conjunto arrancando a maior parte dos eucaliptos “estrangeiros” e deixando as árvores frutíferas autóctones, atualmente cultivadas segundo os ditames da agricultura biológica. Derrubamos uma porção de feios edifícios industriais abandonados e, em lugar deles, construímos uma adega quase toda enterrada para que não tivesse um impacto negativo na paisagem. É uma das nossas adegas da mais recente geração, que usa a gravidade para movimentar o vinho, deixando-o “precipitarse” naturalmente sem recorrer a bombas mecânicas. Deixamos onde estava, por sua vez, uma velha casa de campo na colina, depois de restaurá-la. Finalmente, e só então, começamos a fazer vinho. Destas vinhas extremamente jovens, que ainda estamos estudando e fortalecendo, nascem de uns poucos anos para cá o Botrosecco, tinto da Maremma, e o branco Vivia (como a minha netinha), intenso e aromático. Quem cuida de tudo, como titular da firma agrícola, é a minha filha mais nova, Alessia, a nossa enóloga emergente. Vejamos, então, a situação atual das minhas videiras toscanas. Perto do mar, entre Bolgheri e Grosseto, Guado al Tasso e Le Mortelle são o passado e o futuro da nossa penetração na Maremma. Logo acima, já na Úmbria, a noroeste da Fattoria Aldobrandesca, erguem-se as torres do Castello della Sala. Imediatamente a sul e a leste do nosso

berço vinícola de Tignanello, em 1985 e 1987, Pèppoli e Badia a Passignano também haviam passado a fazer parte das nossas propriedades. Em 1990 cuidamos da compra e da modernização da propriedade da Braccesca. Estamos, neste caso, na terra do vinho Nobile de Montepulciano. Entre as cidades de Cortona e Montepulciano. Terra etrusca, no começo, depois romana, e então berço da arquitetura e da poesia da Renascença graças aos trabalhos de arquitetos como Antonio da Sangallo, de pintores como Luca Signorelli e de poetas como Angelo Poliziano, esta é principalmente a pátria de outro vinho-mito da região, acerca do qual escreveram Voltaire e Alexandre Dumas. DOC desde 1966, DOCG a partir de 1981, o Nobile de Montepulciano nasce, como manda a receita, de uvas de Prugnolo gentil e de Canaiolo preto. “Parente” do Sangiovese o primeiro (para muitos, é apenas uma variante sua), de antiga raça toscana o segundo. Para chegarmos ao Nobile de Montepulciano plantamos novas vinhas, construímos uma bela adega nova, mas ainda usamos, para apresentá-lo ao mundo, o vetusto brasão dos Bracci, a família que por muito tempo foi a proprietária daquelas terras: um braço fechado numa armadura, brandindo uma espada. Em 1995 chegaram por sua vez os 186 hectares de bosques e vinhas de Pian delle Vigne, 60 hectares dos quais plantados com videiras de Sangiovese, na DOCG de

Montalcino e à beira da Val d’Orcia, de cujas adegas saiu em 2000 o nosso primeiro Brunello. O nome retoma o da estação ferroviária local, construída no século XIX e que ainda funciona. O Brunello de Montalcino foi a mais celebrada e famosa denominação do vinho toscano na década de 1990. Um tinto de um vermelho intenso, mas ao mesmo tempo límpido e puro, feito unicamente de uvas nativas. O Brunello de Pian delle Vigne é para mim mais um confronto com o Sangiovese, a uva da família e do coração. Uma uva profundamente toscana que nós, os Antinori, estudamos, selecionamos e casamos com uvas internacionais. A cepa do território de Montalcino, além do mais, é uma uva Sangiovese elevada à enésima potência. Foi selecionada no século XIX pela família Biondi-Santi, a partir de um clone chamado “Sangiovese grosso”, que aqui chamavam de Brunello devido à cor escura e profunda. Os Biondi-Santi também são mais uma bela história do vinho. Uma família de vinhateiros-humanistas de Pienza que há mais de dois séculos possui terras naquelas colinas perfeitas para o vinho. Eles também tiveram de lutar contra a filoxera. Também tiveram de proteger as suas garrafas mais preciosas durante a retirada alemã em junho de 1944. Os Biondi-Santi esconderam-nas num quartinho, atrás de uma parede levantada às pressas numa só noite por um empregado fiel.

Em meados do século XIX o problema deles era o mesmo que nós, os Antinori, enfrentávamos, bem como quase todos os maiores viticultores italianos da época. Havia um mundo que se expandia para além de qualquer limite, com navios cada vez mais velozes, trens e rotas comerciais àquela altura globais. Havia instrumentos que permitiam comunicar-se facilmente com o restante do mundo. Mas havia um vinho que, como vimos, mal aguentava os porões, as mudanças de clima, as demoras na alfândega. Quantos hectolitros de Chianti azedaram pelo atraso de uma semana de um navio? Clemente Santi foi o primeiro a procurar resolver a antiga irascibilidade e impaciência das suas uvas cuidando da pureza. Investindo tempo e dinheiro. Mas foi o neto de Clemente, Ferruccio Biondi-Santi, pintor-enólogo, quem no fim do mesmo século, experimentando tonéis e novas técnicas de refino, criou o Brunello Riserva 1888, que, na prática, serviu de modelo para aquele que tomamos até hoje. Nascia um vinho que gosta de boa comida, um concentrado de fortes taninos que pode até parecer “duro” ao paladar no começo, mas que depois fascina para sempre. Nas adegas Biondi-Santi da Fattoria del Greppo, em Montalcino, guardam-se ainda duas garrafas do primeiro verdadeiro Brunello. As últimas duas no mundo inteiro. Estão com 123 anos de vida, mas, segundo as mais recentes análises, continuam “vivas” e a gozar de ótima saúde.

A Wine Spectator incluiu o Brunello Riserva Biondi-Santi de 1955 entre os cem melhores vinhos produzidos no século XX. Gosto de lembrar que, no começo deste novo milênio, a mesma revista também incluiu na sua Top 100 daquele período o nosso Brunello Pian delle Vigne. A meu ver, junto com o Chianti Clássico, o Brunello de Montalcino é uma das manifestações mais equilibradas e longevas do Sangiovese. Não podemos deixar de lembrar, aqui, que da família Biondi-Santi saiu outro grande enólogo, Tancredi, cujo nome também está ligado a um dos melhores vinhos jamais produzidos no Lácio, o Fiorano Rosso da propriedade do príncipe Alberico Boncompagni Ludovisi. Este Rosso era fruto de uma mistura de Merlot e Cabernet Sauvignon, amadurecia em barricas, e dele Veronelli escreveu que, “com o primeiro gole, cava um sulco na nossa memória e nos melhora para sempre”. Este tinto nos leva a outra região vinícola, o Lácio, e a outra página muito importante da história da nossa família. Uma história começada mais de sessenta anos atrás e que só agora volta a se movimentar. O príncipe, desaparecido em 2005, era o pai da minha mulher, Francesca. Casamos em 1966, justamente em Fiorano, perto da via Ápia. As nossas duas famílias haviam-se encontrado, mais uma vez, sob o signo do vinho. Antes mesmo do desaparecimento da meação, a agricultura italiana, e particularmente a do Centro-Sul, tinha passado por outra revolução histórica e traumática: a

reforma agrária com que o nosso governo, em 1950, também usando os recursos americanos do Plano Marshall, começou a distribuir aos camponeses parte das grandes propriedades particulares, às vezes expropriando-as com o uso da força. Foi uma grande reforma democrática que tencionava acabar com antigos privilégios e barreiras sociais. Mas, como toda intervenção que vem “de cima”, devido a tempos e modos que não levavam em conta o contexto em que intervinham, também teve aspectos negativos. No processo desta fragmentação repentina e forçada, também desapareceram recursos, tradições e realidades produtivas inteiras que depois não foi mais possível recuperar. O vendaval também soprou no Lácio e na Toscana. Nestas duas regiões, entre as poucas firmas históricas que se salvaram da desintegração, três foram, depois, fundamentais para a história do vinho italiano: a do meu pai, a de Mario Incisa, gênio dos cavalos e dos vinhos que já mencionamos, e a de Fiorano. Haviam sido salvas pela qualidade: decidira-se, com efeito, que estas “fazendasmodelo” deviam sobreviver para ajudar, com o seu exemplo, todo o desenvolvimento do setor. Justamente naqueles anos, os Boncompagni Ludovisi e os Antinori viram-se juntos como vencedores de um prêmio nacional de agricultura, categoria “grandes empresas de planície”. Naquele dia, na cerimônia da premiação, a minha mãe, Carlotta della Gherardesca, acabou se sentando

justamente ao lado de Alberico. Os pontos de contato entre as nossas firmas não se resumiam àquilo. Os Boncompagni também eram uma antiga família, com uns dois papas na árvore genealógica. E Alberico Boncompagni Ludovisi também era um produtor apaixonado que perseguia constantes e contínuas melhoras. Esteve entre os primeiros, na Itália, a usar uvas francesas e barricas, e foi um dos pioneiros que praticaram em suas fileiras a agricultura biológica de forma rigorosa. Eu e as minhas filhas ainda o lembramos enquanto passava montado em seu enorme trator John Deere, que sempre queria dirigir pessoalmente. Também foi criador e amante dos cavalos, além de amigo de muitos famosos jóqueis da época. Era um homem original. Neil Empson, o seu importador americano dos anos 1970, lembra que, entre muitas outras coisas, era inútil mandar-lhe um pedido detalhado dos vinhos que se desejava receber: “Sempre acabava enviando os da escolha dele.” A certa altura, no fim da década de 1990, já na casa dos 90 e doente, o meu sogro percebeu que já não podia acompanhar pessoalmente as suas videiras no campo, e que tampouco suportava a ideia de alguém mais fazer isto por ele. Tomou então uma decisão drástica, repentina e, além do mais, mantida em segredo até para o último dos inúmeros apreciadores do seu vinho: mandou desarraigar o vinhedo. Lembro que quando Luigi Veronelli soube daquela tragédia, em 2000, ficou profundamente abalado, para

então dedicar-se a um longo e complicado salvamento dos milhares de garrafas que ainda sobravam nas adegas de Fiorano, muitas vezes nem sequer catalogadas, e de uma pequena parte da vinha. Aquelas garrafas acabaram, depois, nas coleções dos maiores apreciadores e expertos do mundo, como testemunho de algo que já não existia. Mas ao vinho sempre é preciso dar uma segunda chance: após a morte do pai, a minha mulher, herdeira da propriedade Boncompagni Ludovisi, decidiu doar num gesto de generosa previdência uma parte dos terrenos em que amadurecera o Fiorano às nossas três filhas, pedindo somente uma coisa: que se voltasse a fazer vinho neles. De alguma forma, portanto, ressuscitar o Fiorano tornara-se uma responsabilidade da minha família. Poderíamos dizer que seria a mais nova aventura nossa com os vinhos italianos: Albiera, Allegra e Alessia acabam de plantar bem perto da herdade original quatro hectares de vinhas, com o propósito de produzir um novo Fiorano até 2015. Retomando a filosofia do antigo proprietário, naquele vinhedo serão respeitadas todas as regras da agricultura biodinâmica, que pelo menos em parte também retoma práticas tradicionais e, de várias formas, é até mais complicada que a biológica. Um desafio, mas bastante estimulante. No fim da última década, em resumo, estávamos presentes em todas as principais zonas vinícolas da minha região. Mas este lento coligir de vinhas toscanas, como veremos depois,

ainda não chegara ao fim. Enquanto isso, porém, a nossa equipe Antinori também continuou a ampliar os seus confins. Depois do período da revolução produtiva, depois dos anos da expansão comercial, chegara a hora de produzir novos grandes vinhos. E, desta vez, longe de casa.

  1 Texugo, em italiano, é tasso. Daí o nome da propriedade: Guado al Tasso. (N. do T.)

VII – ANTICA NAPA VALLEY Fazer vinhos pelo mundo afora

P

ercebem-se aromas de ameixa, de amora e de framboesa num copo de Antica Napa Valley Cabernet

Sauvignon, filho de uma seleção de Cabernet plantados entre quinhentos e seiscentos metros acima do nível do mar no “vale dos índios napas”, o “pequeno Chianti” do Norte da Califórnia. Antica, contração de Antinori Califórnia, também é o nome desta propriedade. A primeira verdadeira vinha 100% Antinori realizada longe da Itália, além de um dos projetos que mais nos estimulam e divertem. O fato que desta vagarosíssima conquista que foi Antica tenha nascido finalmente, em 2007, um vinho de tão alta qualidade é, para mim, mais uma confirmação de quão acertado era começar a explorar o mundo fora da nossa Toscana, e a prova definitiva de quão longe esta aventura poderia nos levar. Se por um lado a atividade dos Antinori como exportadores de vinho para países estrangeiros começou há quase seis séculos, a de produtores fora dos confins italianos, por sua vez, só se iniciou gradualmente na década de 1990. Mas considero-a um dos capítulos mais interessantes desta nossa mais recente temporada. As vinhas extraterritoriais de algum modo tocadas pelo nosso

know-how – tanto as efetivamente plantadas por nós quanto as nascidas de um acordo de partnership ou de participação – são um grande work in progress perfeitamente sintonizado com a era da globalização. Nem dá para imaginar aonde isto tudo poderá nos levar. Como eu já disse, gosto de viajar. Não é um ambiente particularmente aberto a outras culturas e a aventuras exóticas o dos agricultores toscanos, arraigados em seus torrões, em suas vinhas e em suas convicções. Mas eu sou descendente de mercadores florentinos que já nos séculos XIV e XV viajavam pela Europa criando filiais e agências para os seus comércios. E sou filho do meu pai, um caixeiroviajante que se tornou vendedor internacional de vinhos, um homem que no seu livro de memórias relata com entusiasmo as suas vicissitudes pelos quatro cantos do mundo, desde a internação num hospital na periferia de Atenas devido às febres maláricas (onde o “torturaram” com o vinho resinado local) até as insídias alfandegárias de uma Istambul ainda otomana; desde a América do Sul dos imigrantes italianos até o transatlântico para Nova York, onde foi bisbilhotar nas despensas para ver como eram conservadas as garrafas. Pois toda experiência pode ensinar alguma coisa. Para ele, viajar foi missão e obsessão: “Depois de chegar”, escreve “não demorava muito para sonhar com novas partidas; só de ouvir, na sonolência noturna, um longínquo apito de trem, imediatamente renascia em mim o incontrolável desejo de fazer as malas e

sair por aí, a vender o vinho que envelhecia nas adegas de San Casciano.” Uns descendentes de um ramo nosso ainda vivem na Itália meridional, aqueles Antinori que se tornaram duques de Brindisi. Não a cidade da Pulha, mas sim Brindisi di Montagna, uma pequena localidade perdida entre os montes da Lucânia. Os meus antepassados lá chegaram em 1458 com um Antonio Antinori, depois membro da corte de Fernando de Aragão, rei de Nápoles. Sei que durante séculos os Antinori da Campânia negociaram e compraram terras, e que na igreja napolitana dos Santos Apóstolos ainda se podem admirar os bustos dos nobres Fabrizio e Flaminio Antinori. Nunca produziram vinho, mas um deles foi um personagem bastante famoso e um grande viajante. Estou me referindo ao duque Giuseppe Antinori, que viveu entre 1773 e 1856. Bonito e amante da boa vida, parece que conseguiu dissipar sozinho, entre mulheres, jogo e festanças, grande parte do patrimônio familiar antes de tornar-se um dos mais famosos espiões daquele tempo. Servindo, no começo, ao rei Joaquim Murat, em Nápoles, para tornar-se depois informante da corte austríaca e até do czar de todas as Rússias. Quanto a espírito desbravador, entretanto, acho que ninguém pode se comparar a Orazio Antinori. Um verdadeiro, multiforme herói do conhecimento, de fato e de direito nosso antepassado, ainda que pertencesse àqueles Antinori que no século XVIII se mudaram para Perúsia.

Nascido exatamente duzentos anos atrás, em 1811, deixou escrito que “poucas ebriedades são comparáveis àquela de quem se prepara para partir para países desconhecidos”. Foi ornitólogo, pintor, embalsamador, naturalista e exímio caçador; ainda que certa vez, na África, ficando diante de um leão, tenha percebido que tinha pego por engano a espingarda de chumbo miúdo. Encontrou até tempo para tornar-se oficial de vários exércitos, um liberal maçom e admirador de Mazzini. Quando caiu a República romana de 1848-49, experiência democrática por ele defendida tanto na sua função de deputado quanto na de excelente atirador, enojado com o país de origem, decidiu dedicar o restante da vida ao Continente Negro. Nos mesmos anos em que os meus avós começaram a exportar as primeiras remessas de vinho para a América do Sul, ele explorava incansavelmente as margens do Nilo Branco e do Nilo Azul, em busca de achados naturalistas para serem colecionados ou doados a algum museu de história natural. Aos 42 anos de idade era um explorador em horário integral para o governo italiano. Aos 56 fundou a Sociedade Geográfica Italiana, em Florença. Aos 58 assistiu, como embaixador de Roma, à inauguração do Canal de Suez. Já com 65 anos dirigiu uma ambiciosa e desastrosa expedição italiana que tinha a tarefa de encontrar um caminho desde os planaltos da Etiópia e da Somália, então colônias italianas, até os Grandes Lagos da região equatorial. Morreu seis anos depois, sem conseguir levar a

cabo a sua última missão. Foi detido, ao que parece, por um acidente de caça e pelas eternas brigas de fronteira entre as potências coloniais. Sempre afirmou preferir a “tenda do beduíno” e um “amanhã de incertezas” a qualquer outro estilo de vida. Não posso deixar de lembrar que nas complexas circunvoluções da nossa árvore genealógica também se encontra um ramo da nossa família na Argentina, apesar de termos perdido quase completamente as pistas dele. O que fica claro é que a paixão pelas viagens e por novos horizontes está gravada nos nossos genes, embora possamos dizer que os Antinori das últimas três gerações tenham sido os primeiros e os mais determinados, na Toscana e na Itália, a colocar esta aptidão cosmopolita a serviço do vinho. Voltando à dicotomia entre “vinhateiros de vinha” e “vinhateiros de mercado”, é preciso dizer que sempre procuramos dar o melhor de nós em ambas as frentes. A excepcionalidade do meu pai entre os produtores daquele tempo foi justamente a sua dupla paixão pelas novidades tecnológicas e pela exploração de novos mercados. Da mesma forma, a minha vida inteira teve de dividir-se entre estas duas funções. No começo, fui simplesmente um “encarregado de área”. Primeiro no Lácio e na Campânia, depois no Norte da Europa, e finalmente nas duas Américas. Depois passei a ser sobretudo um administrador atrás da

mesa do palácio Antinori, e um viticultor entre as fileiras das nossas propriedades úmbrias e toscanas. A aprendizagem das minhas filhas também se deu, em sua maior parte, longe de Florença, apresentando o nosso rosto e o nosso sobrenome ao lado das garrafas por exportar. Estas viagens foram justamente a base para podermos, depois, desempenhar melhor as nossas tarefes nos escritórios e nas adegas, onde aquilo que tínhamos aprendido acerca dos gostos e da evolução do mercado teria de ser traduzido em qualidade e competitividade dos nossos vinhos. Poderíamos até dizer que para a evolução de um produtor vinícola de alta qualidade a experiência da análise, com a sucessiva conquista de um mercado, é tão importante quanto a descoberta e valorização de um novo vinhedo. Trata-se, em ambos os casos, de uma maneira de experimentar o mundo, de sondas lançadas fora das nossas fronteiras naturais da Toscana. Quanto mais longínqua e, em âmbito vinícola, virgem é a nova meta por alcançar, mais estimulante e enriquecedora se torna a experiência. Para mim, como já contei, a terra de conquista incontaminada e remota foi, de muitos modos, o Canadá. O Canadá do importador polonês que trabalhava para a KGB e dos funcionários que nada sabiam de vinho. O Canadá foi o meu faroeste. Nunca esquecerei uma viagem surreal a Edmonton, no estado de Alberta, algumas décadas atrás. No hall do único hotel decente da cidade dei de cara, de forma

totalmente imprevisível, com um velho amigo de Prato, o empresário Felice Guarducci. Guarducci mudara-se para o estado de Alberta com a família nos anos 1950, e aquele, agora, era o seu país. Conhecia-o bem e, uma vez que o dia seguinte era domingo, propôs na mesma hora um passeio de carro para explorar os campos da região. Lá fomos nós, no carro dele, mas talvez o termo “campos” não fosse o mais apropriado. Tratava-se antes de landas imensas e desoladas, onde por horas a fio não se encontravam vivalma nem casas. Aconteceu que o marcador da gasolina começou a baixar perigosamente, e o meu amigo percebeu que nos havíamos metido numa zona por muitas milhas desprovida de postos de abastecimento. O que fazer? Celulares e GPS, naquela época, não existiam. O único jeito era seguir em frente confiando, de algum modo, na sorte. E então, ao longe, começamos a vislumbrar os contornos de uma fazenda. Precisávamos pedir ajuda. Aproximamo-nos, estacionamos, aprontamo-nos para abrir as portas quando, de repente, uma espécie de avalanche branca e cacarejante nos investiu. Patos. Mas não um bando de poucas dúzias como tantas vezes tinha visto nas minhas fazendas. Estou falando de centenas e mais centenas de palmípedes enormes, vociferantes, aparentemente entregues a si mesmos e, ao que parecia, extremamente zelosos do seu território. Não sabíamos de onde poderia vir aquele exército de aves enfurecidas, e achamos melhor não descobrir. Não recordo

como, afinal, conseguimos encontrar gasolina, mas de alguma forma voltamos para casa. Fica, de qualquer maneira, indelével na minha lembrança a imagem daqueles lugares onde tudo, até os bichos da fazenda, sempre parecem maiores e mais selvagens do que nas nossas bandas. Em tempos mais recentes, no entanto, também descobri, felizmente, o Canadá de Vinicio Ortolani, só para mencionar mais um ítalo-americano que foi muito importante nos acontecimentos da nossa empresa e para os vinhos italianos em geral. Ortolani, úmbrio de Spello, era um mero adido comercial da embaixada italiana em Ottawa, mas, levando em conta as suas aptidões e a sua paixão, o nosso embaixador em pessoa, um triestino chamado Smoquina, pediu que estudasse uma maneira de promover por lá os vinhos da península. Foi então, em meados dos anos 1980, que Ortolani teve uma brilhante ideia: uma associação de apreciadores, os Amigos da Enótria, que através de eventos e de campanhas de informação fosse capaz de dar impulso na Federação inteira à cultura do vinho italiano. Amigos da Enótria (com referência a um dos antigos nomes da Itália, literalmente “terra do vinho”) era estruturada de acordo com “capítulos”, isto é, pequenas seções espalhadas pelas maiores cidades, e em poucos anos, graças à paixão e à dedicação do seu fundador e coordenador, se tornou uma formidável máquina promocional. Para a sua “criatura”, Ortolani viajava e

trabalhava sem parar, numa incessante proliferação de iniciativas e de ideias, tanto assim que a certa altura se viu forçado a escolher entre o trabalho na embaixada e a atividade associativa. E, obviamente, escolheu a Enótria. Lembro pelo menos duas ou três viagens com ele pelo Canadá. Uma série contínua de encontros e jantares dos quais participava um número incrível de associados extremamente atentos e apaixonados. E isto tanto nas metrópoles como nos mais perdidos aglomerados urbanos, onde você podia encontrar personagens coloridos e extraordinários. Com ele como organizador, também aconteceu o famoso tour de produtores italianos no qual me fiz acompanhar, pela primeira vez, da minha filha Albiera, e que acabou se tornando o seu “batismo de fogo” como representante da nossa firma. O único aspecto negativo que lastimo, daquele período, eram as visitas aos cônsules honorários italianos das várias localidades e a outros dignitários das nossas comunidades no exterior. O modelo particular de monopólio estatal canadense sobre as bebidas alcoólicas era então, e acredito até hoje, severo e caviloso no que diz respeito às importações (começando pelos impostos), mas permitia ao mesmo tempo que qualquer um produzisse artesanalmente, para o próprio uso, livremente e sem nenhum tributo, pequenas quantidades de vinho. Descobri, portanto, que inúmeras famílias italianas haviam aproveitado esta oportunidade. Normalmente

compravam as uvas na Califórnia, para então preparar o seu vinhozinho em casa, em nome da pátria perdida. Nem é preciso dizer que a primeira coisa que faziam, quando chegava até eles algum hóspede italiano como eu, e além do mais viticultor, era pôr na mesa as suas garrafas e pedir uma apreciação e um encorajamento. Inútil dizer, também, que nunca, em nenhuma das minhas romarias canadenses, experimentei nestas casas algo que fosse pelo menos decente. E obviamente, até em consideração pelo amigo Ortolani, não podia falar mal daquelas tentativas. Eram, falando claramente, uns líquidos intragáveis, mas era preciso encenar uma degustação com ar profissional e, no fim, inventar algum elogio de circunstância. Quando Vinicio Ortolani nos deixou, no seu funeral (que ele quis em Spello, na sua Úmbria) havia uma imensa multidão de amigos, colegas e muitos outros que, de alguma forma, haviam cruzado com o seu incansável trabalho e a sua paixão. Atualmente, Amigos da Enótria está aos cuidados da sua esposa, Elsebee, de origem holandesa, que lhe dedica o mesmo empenho. A minha filha Alessia sempre reconheceu que a experiência de representante da família e da empresa em Nova York foi muito importante para ela; surgiram disto contatos cruciais e grandes satisfações, mas os anos que ela considera fundamentais para a sua formação foram sem dúvida os passados na Ásia, no Oriente Médio e na Oceania. Tendo

como base Hong Kong. Estamos falando de mais ou menos dez anos atrás, quando pouquíssimos produtores italianos se aventuravam a propor seus produtos tão longe. E, mesmo quando o faziam, limitavam-se às costumeiras manifestações vinícolas de Tóquio, Pequim ou Singapura. Pegando – ela mesma chegou a calcular – até vinte e três aviões num só mês, Alessia decidiu por sua vez chegar à Tailândia, ao Camboja, à Coreia, e ainda ao Vietnã, às Filipinas, à Malásia e ao Sul da China. Lugares que não só nos desconheciam, mas que nem sabiam onde ficava a Toscana ou como os vinhos deviam ser servidos à mesa. Se se encontrava alguma garrafa nos restaurantes mais exclusivos ou nos hotéis internacionais, era de algum Chardonnay da relativamente próxima Austrália. Ou então os costumeiros Bordôs. Alessia me ligava e falava das conversas com os nossos importadores, pessoas que, em teoria, deviam cuidar da venda dos nossos vinhos: nestas reuniões ela percebia que os seus interlocutores nem sabiam que havia uma “variedade” tinta e outra branca do vinho, e também ignoravam que alguns vinhos precisavam ser guardados na geladeira enquanto outros deviam ser rigorosamente mantidos longe dela. Mas, ao mesmo tempo, me contava quão estimulante podia ser explicar, partindo do bê-á-bá, o nosso mundo do vinho, dizer o que era uma vinha e uma barrica, o que se entendia por qualidade. Tudo isso, apresentando-se como uma perfeita desconhecida, jovem e

mulher (por lá, o nome Antinori não podia certamente ajudá-la). – Você acaba por ter de fazer um “resumo” da essência de tudo aquilo que faz e que é – explicava. Depois, no entanto, acrescentava como era encorajador reparar, com o passar do tempo, nos pequenos progressos que podiam ser feitos naquelas longínquas fronteiras. Descrevia-me uma geração de cambojanos refugiados no Ocidente durante a longa série de guerras e ditaduras que haviam assolado aquela nação, os quais em meados dos anos 1990 voltavam à pátria para modernizar o país e ensinar-lhe, entre outras coisas, a cultura do vinho. Comentava sobre o crescente, genuíno interesse dos chineses pelo mundo da enogastronomia de qualidade, sobre o emergente mito da Itália como capital, em todos os setores, do estilo. Podemos dizer, ainda, que vender ou produzir vinho numa nova terra também pode ser um desafio de mão dupla. Uma vinha num país estrangeiro pode ser a melhor maneira de tornar conhecida a nossa marca naquela nação, quebrando o gelo e trabalhando lado a lado com os viticultores locais, propondo uvas autóctones mais próximas do espírito do lugar. Muitos dos nossos novos vinhos de além-fronteira, de um ponto de vista totalmente globalizado, só foram criados pensando no mercado exterior. Da mesma forma, podemos sair em busca de novas zonas do mundo com a finalidade de encontrar ali ulteriores espaços comerciais e voltar com uma lista de possíveis,

futuros terroirs. Só é preciso ficar de olhos abertos e manter a elasticidade mental. Vale a pena deixar isto bem claro: assim como a maior parte das vinhas de que cuidamos ou com que colaboramos no exterior ainda representam uma parcela bastante pequena do total da nossa produção, estes mercados “experimentais” também continuam a ser, até hoje, um item marginal dos nossos balanços. O nosso núcleo produtivo, cultural, emocional continua a ser o Chianti Clássico toscano, com “incursões” cada vez mais importantes na Úmbria e na Maremma. Os nossos principais mercados ainda são a Itália, a América do Norte e a Europa. Mas o que importa é estarmos lá, em Hong Kong, Phnom Penh, Canberra. É importante que tentemos, que lancemos os nossos alicerces. E aceitemos mais uma vez o desafio de territórios desconhecidos. Onde eu ponho a palavra “paixão” no topo daquela lista de valores fundamentais para o verdadeiro vinhateiro, Renzo Cotarella prefere muitas vezes colocar outro termo-chave: “curiosidade”. É o espírito de Antica. Esta propriedade, cujo nome vem de “Antinori California”, é fruto de um amor à primeira vista, seguido de um longo e lento namoro e de um pacto de amor que só deu os seus primeiros, verdadeiros frutos nesses últimos anos. O segredo, mais uma vez, foi a paciência. Eu e este planalto nascido para as videiras nos encontramos pela primeira vez em 1985. Eram os anos das vindimas mais sofridas, quando a propriedade estava dividida com os ingleses da

Whitbread. Eu estava pousando mais uma vez do outro lado do Atlântico a convite deles, como sócio perito em vinhos. Naquele momento, havia umas cinco ou seis propriedades à venda que eu devia examinar. Tudo indicava que fossem apropriadas à produção de qualidade que interessava aos ingleses, que tencionavam consolidar nos States a sua aventura do vinho. Quando telefonaram de Londres, em agosto, eu estava de férias, mas aceitei partir com prazer. Se algo novo estava acontecendo no mundo da viticultura, era justamente ali, nas colinas do interior ao norte de San Francisco. Para um produtor como eu, sempre em busca de novas experiências, a possibilidade de trabalhar nelas era uma oportunidade imperdível. Já fazia algum tempo, de qualquer maneira, que eu ficava de olho nesta parte do mundo tão distante de nós. A Califórnia era o estado norte-americano que estava mudando o panorama internacional da enologia. E isto já desde o histórico Judgement of Paris de 1976, quando, após uma degustação às cegas (isto é, sem conhecer de antemão o nome e a origem do vinho) por parte dos melhores expertos e sommeliers franceses, um grupo de Chardonnays e Cabernets Sauvignon californianos – particularmente Chateau Montelena e Stag’s Leap Wine Cellars – derrotara, aliás humilhara, outros tantos representantes transalpinos. Para surpresa e verdadeiro horror de todos os gauleses. Estamos falando do povo que, praticamente, tinha criado a enologia, a sua terminologia e a sua aura mística. Um

povo mestre, escreveu certa vez meu pai, em “glorificar os seus ‘Châteaux’ bordeleses e os seus ‘crus’ de Borgonha”. E prosseguia, cheio de admiração: “Em Dijon contam de um coronel Bisson, comandante de um valoroso regimento de infantaria, que ao longo de uma marcha rumo à frente de batalha, passando diante de um esplêndido vinhedo da Côte d’Or, deteve o regimento para os soldados baterem continência enquanto a fanfarra tocava solenemente os tambores.” Se o vinho era para os franceses um símbolo do orgulho e da superioridade nacional, o que passou à história como o Judgement of Paris foi para eles uma derrota inesperada. Depois da qual todos nós, produtores do Velho Mundo, começamos a reavaliar o nosso papel e a nossa profissão. Para mim, pessoalmente, os claríssimos e repentinos progressos da viticultura californiana não foram nem um pouco uma surpresa. A minha primeira visita à Napa Valley remonta, na verdade, a 1966. E com Giacomo Tachis, desde os primeiros anos da década de 1970, e época em que nos dedicávamos ao estudo do Tignanello e de toda a revolução que fervilhava em volta daquele projeto, vínhamos quase regularmente visitar as mais renomadas propriedades californianas. Havíamos sido conquistados, desde o primeiro momento, por aquele espírito pioneiro e atrevido que para nós, continuamente empenhados em enfrentar as resistências e o atraso do nosso ambiente vinícola e dos nossos mercados, era como oxigênio puro.

Um dos nossos primeiros guias nesta nova dimensão fora Darrell Corti, mais um precioso amigo que já mencionei. Este famoso dono de enoteca em Sacramento, que havíamos encontrado pela primeira vez na Itália, era uma espécie de enciclopédia ambulante do vinho e da gastronomia. Não somente californianos. De ascendência italiana (o avô tinha emigrado de Gênova), era um daqueles ítalo-americanos capazes de inserir-se e integrar-se perfeitamente na sociedade americana e, ao mesmo tempo, de se manter profundamente ligados às suas origens. É bom dizer que naquela época, nos States, estavam emergindo italianos de terceira geração, muito mais sensíveis às próprias raízes do que os seus antecessores. Seus avôs, muitas vezes carregando nos ombros histórias de miséria e de marginalização, tinham feito o possível para eliminar nos seus descendentes nascidos além-mar todo e qualquer resquício cultural da pátria mãe: para que filhos e netos tivessem menos dificuldade de inserir-se no Novo Mundo, só os deixavam brincar com coetâneos 100% yankees, apagavam neles qualquer indício do estilo de vida mediterrâneo e, com grandes sacrifícios econômicos, mandavam-nos estudar nos melhores colleges. Nos anos 1960, muitos rapazes de sobrenome italiano nem sabiam cumprimentar na nossa língua. Darrell e muitos outros como ele tinham, no entanto, começado a se rebelar contra esta “remoção forçada”. Já adulto, conseguiu recuperar não só um italiano fluente, mas também um perfeito dialeto

genovês com o sotaque dos carrugi,[1] que amava usar toda vez que lhe fosse possível. Quem nos acompanhava na maioria das nossas explorações americanas era este notável personagem. Darrell conhecia pessoalmente todos os produtores da Califórnia, e por todos era apreciado e continuamente convidado para convenções e degustações. Certa vez, como meu hóspede na Itália, vi-o exibir-se num desempenho que até hoje me deixa maravilhado. Talvez poucos saibam que Mario Incisa, criador do Sassicaia e meu tio, amigo e inspirador no assunto “vinhos”, mesmo depois da entrada de Giacomo Tachis como enólogo da firma e do começo da comercialização das suas garrafas, continuou por muitos anos a produzir uma versão pessoal daquele celebrado vinho de Bolgheri. Quase às escondidas, por vias travessas, uma parte da uva acabava num setor particular da adega, onde ele a trabalhava pessoalmente, como sempre fizera, antes do grande boom. Disto nascia, todos os anos, algo como umas duas ou três barricas, para um punhado de garrafas artesanais (até no rótulo desenhado à mão) por distribuir a poucos amigos como eu. “Vinho diferente do Sassicaia”, como ele o chamava. Naquela noite, na Cantinetta, quis brincar com o meu hóspede americano e lhe servi justamente um copo daquele vinho “anarquista” e ignorado pelas revistas e pelos mercados, sem dar nenhuma explicação. Pois bem, ele identificou imediatamente a origem toscana. Restringiu em

seguida a região à Maremma. Chegou a mencionar o Sassicaia, mas, experimentando de novo, disse que havia algo estranho, detalhes que não combinavam, nuanças que o deixavam intrigado. Afinal decidiu arriscar: “E se fosse aquele Sassicaia ‘diferente’ que o marquês Incisa faz sozinho?” Ele adivinhara. Incrível: eu nem sabia que, fora do nosso círculo familiar, alguém mais estava a par daquela experiência “diferente”. Estive novamente com Corti no grande jantar para Tachis no palácio Antinori, quando ele contou daquela vez em que, durante a primeira viagem zanzando pela Califórnia comigo e com o meu enólogo, paramos para comer um sanduíche num lugar onde não havia vinho algum. Achando que aquilo era uma afronta para os seus hóspedes italianos, Darrell tirou de algum esconderijo no seu carro uma garrafa para acompanhar a comida, a qual foi, obviamente, uma pequena, grande surpresa: um tinto feito na Napa Valley com uvas Barbera. Tirou a rolha, serviu-nos o vinho e ficou todo satisfeito ao ver Giacomo Tachis, o talentoso criador de vinhos nascido justamente na zona dos grandes tintos piemonteses, arregalar os olhos. “Sabia que por aqui se produziam grandes Cabernet”, exclamou Tachis, “mas jamais poderia imaginar encontrar um Barbera melhor que os feitos na minha terra.” Não recordo a marca daquela garrafa, mas sei que a lembrança do aroma e da qualidade daquele Barbera da América nunca mais saiu da minha mente.

A minha filha Allegra diz que esta sintonia entre os Antinori e a América, entre uma família de mercadores surgida no século XII nos campos florentinos e uma nação aparecida do nada só dois séculos atrás, se deve à nossa parcela de sangue americano. A minha mãe, Carlotta della Gherardesca, era “por três quartos” americana. Americanas haviam sido, com efeito, a mãe e a avó dela. Ela amava a Itália e a Toscana, mas o “senso cívico” e a generosidade que sempre procurou infundir em nós talvez derivassem muito mais do seu lado estadunidense. Pessoa extraordinária, nada sabia de vinho, mas nos ensinou que quando nascemos afortunados, seja pela família, seja pelos sucessos pessoais ou pelos caprichos da sorte, nunca devemos nos esquecer de quem não teve chance de gozar da mesma ventura. A boa sorte precisa ser retribuída. Grande patrocinadora das artes e benfeitora, quis com todas as suas forças transformar uma vila que tinha herdado da mãe, perto de Florença, num centro assistencial para a infância, o Istituto Principessa di Piemonte, onde por muito tempo, até a nacionalização das estruturas sanitárias, foram curadas da tuberculose e de outras doenças da época crianças menos afortunadas que nós. Atualmente é uma clínica para doentes terminais: continua a receber a ajuda da nossa família e leva o nome dela. A minha mãe só tinha um “defeito”: era completamente abstêmia. Em toda a sua vida só bebericou uns poucos

copos, quando as circunstâncias não lhe deixavam outra saída. Meu pai descobriu isto durante a viagem de núpcias à França, no começo dos anos 1930. Ofereceu-lhe, então, para “convertê-la”, os que naquela altura deviam ser os melhores vinhos do planeta. Mas não conseguiu levar a cabo os seus propósitos, e deu-se conta disto quando, diante de mais um copo que ele a convidava a saborear, ela disse: – Deste até que gostei, pois não sabe a vinho! E também havia o sangue americano trazido como dote pela minha avó paterna, Natalia “Nathalie” Fabbri, nascida numa família de florentinos que haviam prosperado na América. Ao chegarem à Grande Maçã em 1851, os arrojados Fabbri haviam começado, como nós, com o comércio da seda, para tornar-se então armadores, financistas (foram sócios do colosso JP Morgan) e mecenas: Egisto Paolo Fabbri, toscano da América que no entanto escolheu nascer e morrer em Florença, foi até um dos fundadores do Metropolitan Opera de Nova York. Os Fabbri, resumindo, ligam os Antinori àqueles emigrantes italianos que contribuíram para construir os alicerces dos modernos Estados Unidos. Natalia conheceu o meu avô depois da volta de uma parte do clã a Florença, casou, sempre morou na capital toscana com nacionalidade italiana e deixou uma série de elegantes aquarelas do centro histórico da cidade. O avô

Piero chegou a ver os primeiros arranha-céus de Nova York e a caçar alces nas florestas canadenses do New Brunswick, no longínquo 1906. Houve, em seguida, as viagens do meu pai. Os longos anos para conquistar espaço nos mercados de lá. E finalmente o meu pessoal descobrimento da Califórnia e da Nova York dos anos 1960. São as duas facetas, de muitas formas opostas, do mesmo país. E nós, os Antinori, conhecemos muito bem a ambas. A Califórnia é vida descontraída entre as suaves colinas ensolaradas; Manhattan é uma usina de energia pulsante e nervosa. Na primeira faz-se o vinho, mas é preciso estar na segunda para fazer contatos e falar do próprio trabalho, para ficar a par das últimas novidades e entender aonde estão indo as modas e os estilos. De muitas maneiras, entre a East Coast e a West Coast da América do Norte, entre a costa atlântica e a costa do Pacífico, volta à tona a dicotomia que caracteriza o meu trabalho (ou, talvez, o trabalho de qualquer empresário da era global): de um lado a esfera produtivo-criadora, do outro a comercial e de relacionamento. Para vencer neste desmedido mercado, é preciso saber detalhadamente quais foram as últimas etiquetas lançadas pelas firmas vinícolas da Napa e da Sonoma Valley; pode ser interessante vindimar com os produtores locais; e será certamente sugestivo ter uma vinha própria sob o sol californiano para entender devidamente aquela escola do vinho. Mas isso tudo de nada adiantará se você não souber

falar de vinho em Nova York. Se não souber qual é o “círculo enófilo” mais influente do momento, o crítico mais respeitado, o restaurante na crista da onda. Em Nova York dá para comer e beber qualquer coisa, e sempre dos mais altos níveis. Quando alguma coisa nova acontece no mundo da enogastronomia e dos serviços, desde um vinho que ontem não existia até um “conceito” experimental de hotel ou restaurante, mais cedo ou mais tarde ela passa por aqui. Aqui há o melhor de qualquer setor, e por isso é uma vitrine privilegiada do mundo, mas também é um imenso campo de testes a céu aberto, onde você pode pôr à prova os seus músculos empresariais numa elétrica atmosfera de competição global. É um lugar onde você simplesmente não pode deixar de estar presente. É por isso que a minha filha Alessia se mudou, por vários anos, para lá. A presença in loco de uma Antinori fechou o círculo começado pelo meu avô e pelo meu pai, quando o mercado estadunidense ainda parecia algo muito mais remoto e misterioso, e conseguíamos vender muito mais facilmente na América Latina. Depois do primeiro ano de trabalho, Alessia já tinha “conquistado” uns cinquenta novos restaurantes novaiorquinos. Sinal de que a nossa aposta havia sido acertada. Todas as minhas filhas viveram a sua estação “comercial” viajando pelo mundo. Não me canso de dizer que enfrentar novos mercados, aprender a entender as tendências da demanda, funcionar como veículos do nosso nome e de tudo aquilo que ele representa são uma parte fundamental

do nosso trabalho. O mundo muda, mexe-se mais rápido, expande-se, mistura o real e o virtual, mas, para vender o vinho, o ingrediente fundamental continua o mesmo dos tempos do meu pai e das minhas primeiras viagens alémfronteira: a capacidade de gerenciar corretamente as relações e os contatos humanos. A confiança que você consegue transmitir com o seu rosto, com o seu estilo e com a sua palavra. De muitas formas, a minha caçula é a que mais se identificou com esta missão, encontrando a sua vocação justamente do outro lado do Atlântico. A confirmar o eterno conflito entre os dois polos do nosso trabalho, Alessia nasce enóloga, e os anos passados na realização dos Franciacorta Montenisa continuam a ser, por enquanto, a sua façanha mais estimulante; mas ela também quis ampliar a sua experiência difundindo cada vez mais os nossos vinhos no mundo. Só agora, depois de ter tido há muito pouco tempo uma criança, voltou a passar a maior pare do tempo na sua casa em Roma. Quem sabe não é uma boa oportunidade para ela voltar a cuidar dos vinhos nas adegas? Ainda é cedo para dizer. Todos os Antinori que moraram ou trabalharam além-mar perceberam que em qualquer lugar dos Estados Unidos, seja nas vinhas, seja nas metrópoles, se respira o mesmo ar refrescante de otimismo: uma mistura de fantasia e business, entusiasmo e aplicação, a eletricidade de uma

sociedade em contínua agitação, onde o merecimento importa mais que as origens ou que um sobrenome. Nunca deixo de ficar surpreso ao ver a dedicação absoluta com que lá se enfrentam qualquer desafio, qualquer novidade, qualquer oportunidade de aprendizagem. Há umas poucas décadas, aqui, só os nossos emigrantes mostravam interesse pelo vinho. Agora não só é um culto difundido, mas também quem decide conhecer o mundo dos vinhedos e das adegas faz isto de forma muito mais metódica e humilde do que acontece no nosso país de supostos “conhecedores”: na Itália todos se consideram finos apreciadores do vinho (mais ou menos a mesma coisa que acontece com o futebol). Nos States, em resumo, o vinho nunca é considerado, como acontece por aqui, um fato consumado. Eles não viveram o tempo do vinho a granel, do “tinto ou branco” de mesa, cotidiano, mas sim o da garrafa objeto precioso, sinônimo de requinte. Os americanos prenunciam o futuro do mercado global: menos beberrões para menos garrafas, mas de qualidade. E, se agora em algumas das nossas regiões se começa a falar insistentemente em turismo enológico, em caminhos e museus do vinho, deve-se em grande parte ao exemplo de lugares como a Napa Valley, aonde desde os mais incipientes inícios as famílias chegavam para entender o que havia por trás das garrafas que compravam para os dias de festa, e que guardavam com todo o cuidado no lugar mais fresco da casa. Providos de guias ilustrativos,

câmeras e caderninhos de notas, dá para encontrar os enoturistas do Novo Mundo por todos os cantos, visitando como romeiros os lugares onde são produzidos os vinhos mais famosos do seu país, compenetrados e atentos como se estivessem visitando um museu ou um memorial. “Coronéis Bisson” de licença que pagam e viajam quilômetros para ver, para fazer perguntas e tocar com a mão. Daí também um diferente conceito de empresa vinícola, que nos Estados Unidos é um espaço aberto, em contínua comunicação com as pessoas e com o mundo. A admiração por tudo o que é italiano também é sincera e comovente; percebo um tão grande desejo de entender e aprender o nosso estilo, que toda vez saio daqui cheio de orgulho, de ideias e de força construtiva. Ver a si mesmo com os olhos deles, para um empresário italiano, é como remontar aos valores que tornaram grande o made in Italy: a criatividade, o espírito inovador que não perde de vista a tradição, a capacidade de fazer muito com pouco, a possibilidade de se movimentar num sistema cultural orgânico único no mundo. Graças também à parte melhor dos nossos emigrantes, felizmente a Itália ainda é para os americanos um lugar onde a vida é uma agradável brincadeira. A nação feita de mil almas locais, de mil diferentes culturas: um mosaico em evolução que nunca deixa de surpreender os habitantes desta superpotência monolítica e igualitária.

Finalmente, hoje como ontem, o que mais invejo nos meus colegas americanos é uma burocracia que ajuda e apoia os produtores em lugar de atrapalhá-los e refreá-los com um número excessivo de regras sancionadas por uma infinidade de órgãos diferentes. Regras entre nós quase sempre de difícil interpretação, às vezes visivelmente contraditórias. Nos campos da América, por sua vez, as leis sobre o vinho são poucas, mas transparentes e unanimemente respeitadas. A minha filha Alessia afirma, além disso, que muitos dos States ainda continuam a ser totalmente “virgens” no que diz respeito à difusão do vinho de qualidade. Muitos americanos ainda têm de descobrir o nosso mundo. E a fronteira estadunidense ainda guarda muitas surpresas. Quando fui chamado para assessorar um bom investimento na Napa Valley, já conhecia este país, o seu povo e os seus vinhos. E mais: sobretudo devido ao nosso apaixonado acompanhante, o amigo Darrell Corti, já tinha conhecido Robert Gerald Mondavi, o pai da revolução vinícola americana. O homem que primeiro compreendeu profunda e completamente o potencial qualitativo da Napa Valley depois dos quatorze anos absurdos em que o Volstead Act tinha proibido em todo o território americano a produção, a venda, a importação e o transporte de qualquer tipo de álcool. De humilde família originária das Marcas, no lado adriático da Itália central, os seus parentes imigrantes começaram a entrar no ambiente enviando uvas da

Califórnia para a East Coast. Adquiriram, em seguida, uma pequena firma local com as respectivas terras, a Charles Krug Winery. Mondavi também tinha um irmão do qual, depois, acabou por se afastar. Ele também acreditava na empresa-família, mas, depois de toda uma série de desavenças e desgostos, acabou ficando fora da winery familiar, produzindo o seu próprio vinho. A sua firma, pensada, assim como a minha, para permanecer no tempo para as futuras gerações, nasceu em 1966, exatamente no mesmo ano em que eu me assentava atrás da mesa principal do palácio Antinori. Sempre me deixou fascinado o fato de a estação mais intensa da sua vida ter começado quando ele já estava com 52 anos. A criação da Robert Mondavi Winery, as experiências em busca da qualidade, o mecenato, uma explosão contínua de ideias no campo do marketing e do packaging: com uma idade que muitos já consideram de fim de carreira. Mondavi amava o vinho com uma paixão perfeccionista que nunca se detinha, nunca se contentava com os resultados alcançados. Acreditava, primeiro entre todos no seu país, na produção de alta qualidade. Mas também tinha uma boa formação econômico-financeira, e era extremamente dotado para a comunicação. Como nós, perseguia um sonho de excelência capaz de se impor como modelo, acima de qualquer modismo e convenção momentânea. Sem nenhum temor reverencial da milenar tradição europeia. Desafiando, aliás, o nosso mundo

vinícola feito de inúmeras pequenas firmas competindo umas com as outras, dilaceradas por bairrismos e provincianismos, ergueu um impressionante colosso em contínua expansão. Em resumo, partindo do nada, criou a indústria americana do vinho de qualidade, baseando-a na pesquisa e na partilha de informações. De alma generosa, ofereceu muito do seu tempo e dos seus recursos para promover a imagem da Napa Valley. E também empregou muitas energias e um vultoso investimento para criar, junto da universidade da Califórnia, em Davis, um moderníssimo Departamento de Viticultura e Enologia para os futuros produtores, uma realidade que foi decisiva para transformar a Califórnia no paraíso dos viticultores. Mais: patrocinou as artes, restaurou teatros e inventou a própria ideia do turismo do vinho com o American Center for Wine, Food and Arts, na cidade de Napa. E, acima de tudo, presenteou-nos com vinhos inesquecíveis, de qualidade sublime e nível mundial. Este monumento vivo da enologia americana, sempre à procura de novas ideias, era para nós um interlocutor ideal. O seu exemplo e as suas experiências na adega nos influenciaram de forma decisiva nos anos em que esboçamos os primeiros Super Tuscans. Talvez, ainda que por motivos diferentes, tão profundamente quanto as inspirações de Émile Peynaud. E, nos anos 1990, acolheu com grande e generosa hospitalidade uma Allegra de dezessete anos para que se fortalecesse na linha de frente,

sem hesitar em envolvê-la, com grande abertura mental, nas suas pesquisas e nas suas experiências na adega. Robert Gerald Mondavi faleceu em 2008; foi uma figura extraordinária, carismática e visionária. O dele era o espírito dos americanos do século anterior, garimpeiros de ouro e colonizadores. Talvez seja por isto que as minhas filhas diziam, quando eu voltava dos meus encontros californianos com este grande homem do vinho, que eu parecia outra pessoa, cheia de um novo otimismo e vontade de fazer. Com o passar do tempo, tornamo-nos bons amigos e sempre ficamos em contato com recíproco respeito, a ponto de ele decidir entrar numa pequena participação na Toscana, na herdade da Ornellaia: o meu mestre americano tinha acompanhado a revolução dos Super Tuscans, e amava a Itália e seus vinhos. Ainda hoje, qualquer um que trabalhe neste ramo deveria ler a sua autobiografia, Harvest of Joy, um livro no qual repercorre a sua existência como o arquétipo do sonho americano. Uma filosofia que pode ser resumida assim: neste país, num clima humano onde o espírito e o caráter nunca ficam sem fôlego, a sua vida pode mudar a qualquer momento, você pode realizar qualquer propósito e alcançar qualquer meta desde que tenha perseverança e determinação. Infelizmente, também há outro “clássico” ligado ao seu mito: The House of Mondavi. The Rise and Fall of an

American Wine Dynasty, de Julia Fynn Siler, que conta a moderna história da Mondavi, entre crises financeiras, tropeços de imagem e herdeiros que se rejeitam. Robert teve uma menina e dois meninos, logo separados por irremediáveis divergências. Além disso, com suas ações negociadas na Bolsa, a empresa vinícola mais importante dos States talvez não tenha conseguido conciliar a manutenção de certo estilo e de certa qualidade com as exigências cada vez mais prementes dos analistas. A dispersão, em poucas décadas, do imenso patrimônio humano e empresarial que este grande mestre e amigo tinha deixado tem sido motivo de longa reflexão para mim e as minhas filhas. Em missão na Califórnia, em 1985, eu tinha, portanto, bem clara na mente a lição de vida e de enologia de Robert Mondavi. Aconteceu, porém, que nenhuma das vinhas visitadas naquela ocasião me pareceu garantir um bom investimento. Ainda assim, justamente quando estava a ponto de voltar de mãos vazias, surgiu mais um nome na lista dos terrenos por avaliar. No meu último dia americano, no fim de uma estrada cheia de curvas, a Soda Canyon Road, acabei chegando a uma recanto um tanto afastado, diante de um vale escondido e praticamente virgem. Na época só havia umas poucas fileiras, enquanto o restante era puro declive inculto.

Não sei se de fato possuo aquilo que Giacomo Tachis chama de “cromossomo Antinori”, um sexto sentido particular para “ler” os terrenos e seu potencial de longo prazo. Renzo Cotarella, que desde os anos 1990 sempre esteve ao meu lado em todas as missões em que vistoriávamos novos terrenos, afirma que nunca se deveria visitar um potencial vinhedo já com a ideia de comprar, mas apenas para dar uma olhada e conhecer. A exploração de novos territórios deve ser guiada por uma correta mistura de intuição e de preparo, de paixão e, é bom lembrar, de curiosidade. Muitas vezes, tratou-se de encontros devidos ao mero acaso, à inspiração de um momento: como se as vinhas também quisessem me encontrar. De qualquer maneira, aquele vale a poucos quilômetros do Pacífico despertou imediatamente alguma coisa em mim. Não vi apenas uma paisagem árida e colinosa que quase parecia ter sido arrancada diretamente dos campos do Chianti, mas também todos os sinais de uma vocação decidida e gritante para a videira. Desde o terreno pedregoso até a encosta suavemente inclinada daquele grande anfiteatro natural, desde a altitude até a fresca brisa que chegava do oceano. A luz, no entanto, não era como a da minha terra; era como que mais ampla e pura no horizonte. Era a luz de um novo mundo. Depois daquele primeiro encontro houve muitos anos de trabalho. Graças ao meu insistente conselho, a Withbread adquiriu o terreno, com uma pequena participação nossa e

da Champagne Bollinger, e prodigou um vultoso investimento para a radical transformação da empresa. No papel de “assessor”, além de depositário, como família Antinori, de 5% da propriedade, eu acompanhava todo o processo evolutivo. Achava o projeto simplesmente entusiasmante. Quando, depois, a Withbread decidiu sair total e definitivamente do mundo vinícola, o trabalho estava praticamente concluído. Eu continuei com os meus 5%, aguentei pacientemente por mais algum tempo e na hora em que o novo proprietário, um importante grupo financeiro, nos ofereceu a compra do lugar foi como se a mim e às minhas filhas tivesse sido feito um presente de Natal. Em 1993 adquirimos a firma, trezentos hectares de vinhas ao todo. Não foi nem um pouco simples, houve cansativas contratações entre nós, os donos e o banco que devia possibilitar a operação. Não entrarei em detalhes; só direi que, como sempre, foi fundamental o trabalho do advogado Alessandro Pazzi, meu amigo e precioso conselheiro florentino, e o do meu administrador delegado de então, Giovanni Geddes da Filicaia. Percebo que até agora nunca tinha mencionado GGF (como, às vezes, encontro o nome abreviado nos meus apontamentos), mais um valioso amigo florentino daquele tempo. Muito habilidoso com os números, plenamente à vontade nas relações humanas e na diplomacia, foi acompanhando os negócios da firma nos complexos anos da Withbread, que também foram aqueles em que começamos a trabalhar

longe do Chianti. E desempenhou o seu papel de forma admirável. Finalmente, acabamos comprando, mas com uma complicação: o compromisso de realugar a propriedade aos mesmos antigos donos por mais quinze anos, um mecanismo de que precisavam por razões de balanço (cotados na Bolsa, tinham de manter determinado nível de “retorno sobre os investimentos fixos”), e que também nos servia para cobrir o empréstimo bancário. Em outras palavras, eu tinha a minha vinha californiana, mas ainda não podia trabalhar nela. Eu esperneava impaciente, mas então houve mais uma pequena mudança que nos ajudou. Identificamos, bem ao lado daqueles terrenos no momento “congelados”, uma pequena propriedade limítrofe com exatamente as mesmas características físicas. Perfeita para dar início às nossas experiências com vinhos americanos. Eram, ao todo, uns dez hectares. Tomamos informações e, num primeiro momento, achamos que o “alvo” era acessível. Tratava-se de uma criação de galinhas que pertencia a uma certa senhora Townsend. Uma velhinha com 90 anos, viúva e sem filhos, que morava sozinha numa pequena casa no meio do terreno onde passara a vida inteira ao lado do marido, entre ovos e rações. Perguntamos, com muito tato, se porventura estava disposta a vender, garantindo-lhe que poderia ficar com a casa. Ela comunicou-nos um preço, perfeitamente correto, mas, quando tudo parecia estar se resolvendo a contento, a

dama gelou-nos com uma pequena, mortífera cláusula: “Só precisam dar-me a garantia de que aqui nunca serão plantadas uvas de vinho.” Ficamos pasmados e até pensamos que fosse uma brincadeira, uma esquisitice que de alguma forma poderíamos superar. Mas a senhora Townsend não podia ser mais séria. Como devoto membro de uma rígida igreja evangélica local, à qual já tinha prometido deixar, ao morrer, todos os seus haveres e os proveitos daquela venda, a velhinha era abstêmia e, assim como os seus correligionários, considerava qualquer bebida alcoólica uma ofensa a Deus. Depois de falar a respeito com o seu pastor, concluíra que permitir a produção de vinho nas suas terras – que ficavam, é bom lembrar, no coração da Napa Valley – seria uma coisa imperdoável. “Mas poderão produzir uvas de mesa ou sucos não alcoólicos”, propôs para nos consolar. “Fiquem sabendo que a uva cresce que é uma beleza por aqui.” Nós sabíamos. Com a velha dama nascida no começo do século XX, em resumo, acabamos tendo uma queda de braço mais difícil do que as enfrentadas com várias multinacionais ou empresas consolidadas na praça. Quem encontrou o ovo de Colombo foi Glenn Salva, o meu homem de confiança na Napa Valley desde 1986 e atual manager da Antica, que já fizera inúmeras romarias até a casa da senhora Townsend. – OK, vamos plantar uvas de mesa – disse-lhe –, mas, uma vez que a uva de mesa custa um décimo da de vinho,

então a gente vai pagar um décimo daquilo que a senhora pediu. Acho que a dama acompanhou o raciocínio, titubeou, ganhou tempo, talvez tenha até voltado a conversar com o pastor. E finalmente sentenciou: – Está bem, podem plantar uvas de vinho! Foi uma reviravolta importante: no lugar dos poleiros, plantamos imediatamente as primeiras videiras dos futuros vinhos da Antica. O primeiro Antica Napa Valley Cabernet Sauvignon foi vindimado em 2004. Fruto maduro de um terreno que mantivera todas as suas promessas. Um vale perfeito para a nossa procura de qualidade, onde agora se podem cultivar uvas Chardonnay na parte mais baixa, e Cabernet e Sangiovese nas encostas mais inclinadas. A nossa família – estirpe de cosmopolitas e viajantes, de exploradores e embaixadores, que em meados do século XV já tinham filiais para vender suas sedas em Bruges e Lião, que no século seguinte operavam em Flandres e em Toledo, que viajaram pela Argentina e pela Turquia – tinha agora a sua firma californiana. Outra aventura americana, enquanto isso, havia começado nos primeiros anos da década de 1990, quando acabei sendo o juiz de uma competição entre vinhos do Noroeste americano, em Seattle, no estado de Washington, na fronteira com o Canadá. Foi uma surpresa descobrir que no

interior daquele estado famoso pela pesca do salmão existiam condições favoráveis ao crescimento da videira e uma orgulhosa, conquanto recente, tradição vinícola. Ali, entre colinas de clima suave, faz-se há algum tempo um vinho de qualidade que lembra os do Velho Mundo pela elegância e pela personalidade. Tanto assim, que me senti imediatamente à vontade, como se estivesse em casa, e a partir de então sempre tentei incluir nas minhas voltas pela América uma parada naquela zona para testar o trabalho dos produtores locais. Em várias ocasiões, estimulados pelos convites e sugestões do grande enólogo russo, e nosso amigo, André Tchelistcheff, entramos em contato com a Chateau Ste. Michelle, uma firma que produzia vinho de alta qualidade naquele estado desde meados dos anos 1960. Entre longas conversas e primeiras experiências com as suas uvas e os nossos métodos de cultivo e trabalho na adega, surgiu afinal uma colaboração muito estimulante. A primeira, nesta parte dos Estados Unidos, entre uma marca histórica do Velho Mundo e uma do Novo. Com a ideia de darmos início, juntos, partindo de zero, a um pequeno projeto vinícola. Fruto desta aliança foi, a partir de 1995, o Col Solare. Um tinto pensado para o mercado americano. O primeiro caso, na minha carreira, de um vinho realmente nascido “a quatro mãos”. Para ele escolhi, com os meus parceiros, as melhores uvas de seis diferentes propriedades ultrasselecionadas e construí uma nova e específica adega.

Com ele, tanto eu quanto os meus sócios aprendemos algumas coisas. Hoje a fazenda Col Solare é uma pequena empresa de qualidade que visa principalmente ao mercado interno. Mas com perspectivas de crescimento no futuro. Acredito que a partnership com um produtor local em que reconheço a minha mesma paixão pelo vinho seja a única maneira de realmente entender e compreender os mundos do vinho longe do meu, para sair de uma visão provinciana e fechada. Todo novo terroir enfrentado, com seus problemas técnicos e as mil pequenas soluções práticas por encontrar, é uma oportunidade de aprendizagem. E o mesmo acontece quando se entra em contato com uma “escola de vinho” diferente da nossa com o desejo de sair dos nossos acanhados limites. Mais uma bela história americana é a que nos levou à colaboração, extremamente recente, com a Stag’s Leap Wine Cellars de Warren Viniarski, sempre na Napa Valley. No vale, aliás, esta firma talvez seja uma das marcas mais conhecidas e gloriosas. Já falamos do Judgement of Paris, o embate enológico franco-americano que mudou o panorama mundial do setor. Pois bem, justamente aqui brotara e amadurecera, para depois ser espremida e fermentada, engarrafada e envelhecida, a uva do tão impressionante quanto, então, pouco conhecido Stag’s Leap Wine Cellars 1973 S.L.V. Cabernet Sauvignon. Aquele que no fatídico 24 de maio de 1976 humilhara os mestres transalpinos com a

pontuação máxima dos provadores: um estratosférico 127,5. Atualmente, uma garrafa daquele tinto está exposta como uma obra-prima de arte ou cimélio histórico numa sala do Smithsonian de Washington, o maior e mais importante museu de história nacional da América. Viniarski, nascido em 1928 e há muitos anos meu amigo, é mais um épico herói do vinho estadunidense. Criado no bairro polonês de Chicago, estudara geologia, ciências políticas e agronomia, mas foi depois de um ano de estudos na Itália, entre Nápoles e a Toscana, que foi definitivamente atraído pela enologia: afinal de contas, o seu sobrenome eslavo até que lembra um pouco a palavra “vinhateiro”. E, uma vez que os caminhos do vinho, quando se trata de verdadeiro vinho, sempre se cruzam, lá acabou ele, o estudante polaco, trabalhando como enólogo na Robert Mondavi Winery antes de começar a trabalhar, em 1970, nos “seus próprios” vinhos. Com imenso sucesso. Depois do Judgement of Paris, Viniarski continuou a receber durante anos cartas pasmadas de viticultores franceses que queriam acusá-lo de ter, de alguma forma, “manipulado” a famosa degustação. Foi em 2006 que o trio formado pelo “carrasco” californiano do Julgamento de Paris, pelos viticultores californianos e por nós, os do Tignanello, começou a “fuçar” em volta procurando algum tipo de colaboração. A coisa que me dá mais prazer, aliás, é que na hora de vender, após tanto tempo, a sua mítica empresa, mas desejoso que ela

ficasse “em boas mãos” para garantir a continuidade do espírito original, Viniarski deu o seu primeiro telefonema justamente para mim, esperando que eu estivesse interessado no negócio. Concordei por amizade e, sobretudo, por apreço profissional. Ele também acreditava no espírito de empresa familiar. Acreditava na busca da qualidade. E reconhecera ambas as coisas no nosso trabalho e na nossa história. Em 2007 concluímos o negócio: Antinori e Ste. Michelle são os novos donos do vinhedo de Stag’s Leap. Quem engarrafa o lendário S.L.V., amadurecido durante vinte e quatro meses em barricas de carvalho francês, somos nós. Mas o meu preferido, nas adegas da Stag’s Leap, é o Cask 23, Cabernet aromático e elegante do qual só engarrafamos as melhores safras. O último é de 2007. Há mais um tocante e bem recente reconhecimento que recebi nos Estados Unidos pelo meu trabalho e pela minha filosofia empresarial. No começo de 2011, faleceu Jesse Jackson, fundador e alma de mais uma das wineries de maior sucesso da Califórnia: a Kendall-Jackson. A sua criatura nascera e florescera num tempo relativamente curto, usando os melhores vinhedos do estado, além de umas ótimas terras na América do Sul e até na Toscana, em Villa Arceno, no meu Chianti Clássico. Pois bem, no extremamente concorrido enterro deste notável personagem, na oração fúnebre se mencionou que a máxima ambição da sua vida havia sido o desejo de

construir uma empresa “como a Antinori”. Soube disto durante a minha mais recente viagem à Napa Valley, em julho passado: é certamente uma das homenagens mais bonitas que já recebi. Também fica marcada pelo recíproco apreço a nossa colaboração com a família Matte, que, na fazenda Haras de Pirque, no Maipo (o “Chianti” chileno entre o rio e as colinas), cultiva com a mesma paixão, e com o mesmo sucesso, vinhos de qualidade e, para alegria das minhas filhas, puros-sangues de corrida: a adega deles foi planejada em forma de ferradura de cavalo. O Chile, graças a uma perfeita combinação de montanhas e de influxos oceânicos, de ar puro e grandes espaços, produz há séculos tintos excepcionais; a primeira videira chilena parece ter sido plantada perto da cidade de La Serena apenas sessenta anos após o desembarque de Cristóvão Colombo. Só nos anos 1990, no entanto, o mundo e o mercado se deram conta desta marcada vocação do Chile, mas já há quem acredite que se trata da pátria dos melhores vinhos do planeta. Graças ao feliz encontro de um “terroir” perfeito com os primeiros técnicos e empreendedores americanos e europeus. Principalmente franceses: até eles, àquela altura, “traíram” o sagrado solo da pátria, exportando conhecimentos (e cepas) para todos os cantos do mundo. Símbolo do encontro da nossa marca com esta grandiosa, emergente superpotência do vinho é o Albis, um tinto intenso, cheirando a groselheira e alcaçuz, que casa o

Cabernet Sauvignon com a uva “chilena” Carmenère. Um vinho “mestiço”. Um daqueles primeiros acasalamentos entre “escolas” diferentes nos quais, espero, trabalharão cada vez mais as minhas filhas e os meus netos. Pois é, quando me falam de crise econômica, de uma Itália que perde o fôlego na competição mundial, acredito que esta possa ser uma das respostas: a exportação nem tanto de produtos e serviços, mas do nosso saber fazer, o tão falado know-how. Valores imateriais como a experiência, mas também o prestígio e a tradição – acredito firmemente nisto –, acabarão sendo os nossos mais preciosos recursos. A matéria-prima de um novo alento e da revitalização da nossa economia. O combustível, por sua vez, terá de ser a qualidade monitorizada, protegida, cultivada e defendida todos os dias em cada detalhe do nosso trabalho. A busca sistemática da qualidade está gravada no cromossomo italiano. E no dos Antinori de hoje e do passado. No antigo brasão de losangos amarelos e azuis da minha família, entre enfeites e querubins, lê-se o lema latino “Te duce proficio”: sob a sua orientação prossigo. Ganho. Cresço. Melhoro. O vinho há de melhorar o mundo. Acreditamos firmemente nisto. Cresci como homem e como empreendedor num planeta dividido entre dois blocos políticos e econômicos opostos e incomunicáveis. Depois da derrubada do Muro de Berlim em 1989, no entanto, tudo mudou. Entre as muitas “tramas vermelhas” que fomos

tecendo e continuamos a tecer entre os continentes com o nosso trabalho, gosto particularmente de lembrar a fazenda de Tuzko Bàtaapàti, na Hungria. Nesta esplêndida terra do Leste, produziu-se vinho desde os tempos dos antigos romanos. Estamos falando de uma das áreas vinícolas mais tradicionais do Velho Continente, aquela que durante séculos abasteceu de brancos extremamente elegantes a corte dos Habsburgos e as festas do Império austrohúngaro. Então vieram o comunismo, o bloco soviético e a agricultura coletivizada. Do outro lado da cortina, é claro, continuava-se a vinificar, mas tratava-se de garrafas “industriais”, nascidas em estabelecimentos desmedidos, onde as vindimas tinham de respeitar cronogramas mecanizados. Programas nos quais a quantidade levava a melhor sobre a pesquisa e a qualidade. O vinho, é bom lembrar, não faz política, mas tampouco gosta de sujeitar-se à pressa e à violência. No começo dos anos 1990, a Hungria abriu novamente as fronteiras aos investimentos estrangeiros. Peter Zwack, um amigo, o último representante de uma família local que havia cinco gerações vinha produzindo amargos licores digestivos (a começar pelo célebre Unicum, destilado “de quarenta ervas”), voltara à pátria em 1988, só um ano antes da queda do comunismo. Quando me pediu que retomasse a produção de vinhos de qualidade numas terras

onde, até então, só eram elaborados licores e bagaceiras, o setor precisava de uma completa reformulação. Com o meu sócio italiano Jacopo Mazzei, partimos do zero, viajando pelo país em busca de algum vinhedo em que valesse a pena investir. E encontramos o terreno entre as colinas de Tolna, perto do Danúbio, cento e cinquenta quilômetros ao sul da capital, Budapeste. Resquícios de antigas vinhas e adegas mostravam que ali já haviam vingado grandes cepas. E a paisagem verde e suave era um bom auspício. De muitas formas, a nossa aventura no Leste europeu só está no começo. Em 1991 compramos as terras. Desde 2000 controlamos completamente a firma. Agora, com novas vinhas e uma nova adega, trabalhamos com uvas Chardonnay, Traminer, Pinot gris, mas também com variedades autóctones, tais como Kékfrankos, Bìborkadarka e Kékoporto. Para exportarmos estas garrafas, precisamos, antes de qualquer outra coisa, reformular a imagem dos vinhos da Europa do Leste, ainda opaca e pouco conhecida. Mas vamos conseguir. E quem sabe não será justamente com estes vinhos que chegaremos aos novos mercados orientais? Há culturas inteiras, no Oriente, que precisam conhecer melhor o vinho. Primeiro a Rússia, e depois a China, a Índia. Novos mercados exigem soluções diferentes, mas afinal de contas os obstáculos continuam os mesmos de quando o meu pai tentava entrar com suas bordelesas nos melhores restaurante de Roma ou Nápoles. E as armas

para vencer toda resistência mental e barreira cultural também continuam as mesmas: perseverança, qualidade irrepreensível e um nome por defender, sempre. A firma vinícola fundada pelos meus avôs controla atualmente 1.742 hectares de vinhedos na Itália, que chegam a 2.358 se também considerarmos o restante do mundo. Um coração verde toscano com uma coroa de vinhas de extrema qualidade, desde o Piemonte até a Pulha. De Norte a Sul da Itália. E uma constelação de novos vinhedos que estão vingando pelo mundo afora. Produzimos muitas garrafas por ano, e ainda há muita coisa para acontecer. O que me leva a pensar isto é uma pequena, extravagante aventura na Biosfera Unesco. Uma iniciativa de solidariedade humanitária na província de Issyk-Kul, entre as montanhas do paupérrimo Quirguistão. Em 1999 Carl Hahn, antigo presidente da Volkswagen, pediu-me que colaborasse como consultor num projeto agrícola na República do Quirguistão. A ideia, que encontrou o imediato apoio de mais duas outras grandes marcas internacionais, Swarovsky Cristalerias e Loro Piana Indumentária Italiana de Luxe, era ensinar ao povo local as modernas técnicas de produção artesanal com os recursos locais. A tarefa da minha família, como é fácil imaginar, era lançar uma primeira produção de vinho. Saímos então em exploração para ver onde seria possível plantar videiras.

Encontramos um planalto perfeito a 1.700 metros de altitude. Depois desta minha visita de teste, Albiera e Alessia apareceram por lá umas quatro ou cinco vezes, até a primeira vindima. Uma verdadeira aventura só de reparar na expressão que, ao chegarem, podiam ver nos rostos daqueles duros nômades das montanhas. Elas, duas jovens italianas – Alessia só tinha uns 26 ou 27 anos – nas rotas percorridas por Marco Polo. A paisagem escolhida para o vinhedo, de qualquer maneira, era muito sugestiva e selvagem. A vinha fica às margens do Issyk-Kul, um dos mais altos e extensos lagos do mundo, capaz de amenizar com o seu enorme volume de água o microclima de toda a região em volta. – O primeiro grande desafio – contou-me depois Albiera – foi explicar o que são a videira e o vinho a pessoas que nunca haviam ouvido falar a respeito. Depois tivemos de explicar o conceito de vindima, de adega, de fermentação. Para sobreviverem ao inverno, sob meio metro de neve, as videiras (Chardonnay, Riesling e Pinot noir) precisavam ser protegidas com feixes de palha. O amadurecimento, por lá, é rápido mas intenso. E o vilarejo teve de estabelecer turnos de vigia para que os cachos não fossem roubados antes até de se tornarem maduros, ou durante o transporte: muitos simplesmente não entendiam que frutos comestíveis não pudessem ser servidos na mesa imediatamente. Finalmente, no entanto, o mosto foi festejado com muito

alarde por toda a comunidade. Com grandes fogueiras, vodca e salsichas. Atualmente a vinha e a pequena adega do Quirguistão dão trabalho e sustento a umas poucas dúzias de pessoas, mas esperamos que o número delas aumente e que as videiras continuem a ser uma atividade para elas rentável pelos anos afora. Ainda que, talvez, de uma forma diferente da que nós imaginamos: descobrimos que as garrafas lá produzidas não são vendidas por dinheiro, mas intercambiadas entre as famílias e as comunidades vizinhas em troca de carnes, sementes, peles. Trata-se de uma espécie de volta às origens da agricultura e das culturas estavelmente assentadas. Não sei se chegaremos a produzir vinhos premiados, mas a arte da uva também vive de sugestões. Pequenos mitos. Por aquilo que no momento sabemos, a Vitis vinifera “pura” apareceu no mundo justamente no meio da Ásia. E não foi muito longe do nosso vinhedo quirguiz que a planta e o homem cruzaram seus caminhos. Os primeiros sinais do seu cultivo foram encontrados nos vales do Cáucaso, na fronteira entre a atual Armênia e o Turquestão, e remontam a sete, oito mil anos atrás. Numa caverna armênia descoberta em 2007, um grupo de arqueólogos americanos identificou uma espécie de tina com resquícios de sementes de uva processada há pelo menos oito mil e cem anos. Ali, provavelmente, os cachos eram esmagados pelos pés de remotos vinhateiros que também haviam aprontado, no

antro, uma grande concha de pedra de recolhimento. Tudo num ambiente fresco e seco, como deve ser uma boa adega. Tratava-se, presumivelmente, daquela Vitis vinifera original que alguns paleobotânicos ainda acham possível encontrar em algum canto perdido da Ásia. A que, talvez, daqui a não muito tempo seremos capazes de recriar em laboratório. A videira moderna, com efeito, também devido à importância que teve na história da humanidade, é uma das raríssimas plantas alimentares para as quais foi completada a sequência do genoma; um mapa do seu DNA existe desde 2007, graças a uma equipe mista de biólogos italianos e franceses, desta vez, finalmente, trabalhando juntos. Quem leu Dante sabe que para os homens da Idade Média a civilização avançava acompanhando a direção do sol poente. De leste para oeste. Entre os primeiros a sair das trevas da pré-história, com efeito, haveria os moradores das antigas cidades da Mesopotâmia, vindo a seguir os do Egito, da Grécia e os de Roma. O descobrimento da América, de alguma forma, fortaleceu ainda mais esta visão. De maneira que o vinho, preciosa manifestação da civilização humana, teria nascido entre as montanhas da Ásia para em seguida ser aperfeiçoado pelos gregos. Os romanos quiseram que estivesse presente em todas as terras conquistadas, desde a África do Norte até as Alemanhas. Os galos e os ibéricos, isto é, os franceses e os

espanhóis, transformaram-no numa arte sublime e numa obsessão. Com o passar dos séculos, chegaram então os grandes vinhos estadunidenses, chilenos, argentinos, sulafricanos. E, finalmente, os do Novíssimo Mundo do outro lado do Pacífico, os australianos e os neozelandeses. Pois é, gosto de pensar que algum dia, na eterna procura dos melhores terroirs, depois do périplo da Terra ao longo da faixa temperada, alguém voltará a cultivar profissionalmente a videira no Cáucaso, justamente onde tudo começou. Quando isto acontecer, depois de termos completado a volta ao mundo, poderemos afirmar que colonizamos com a videira todas as terras possíveis. Tenho certeza de que, em algum lugar, a essa altura haverá um Antinori levantando o copo para festejar o evento.

  1 As típicas ruelas da cidade velha de Gênova. (N. do T.)

VIII – MEZZO BRACCIO MONTELORO Adegas de portas abertas

C

hega ao nariz, dizem as primeiras recensões dos enólogos, com toques de laranja e sabugueiro, para

então envolver o paladar com longínquas sugestões de pêssego-amarelo. O Mezzo Braccio, que vindimamos pela primeira vez em 2007, é um dos nossos vinhos mais novos, mais um toscano que acompanho com particular afeição. É um vinho que dispensa a barrica. Nele, o espírito do terroir chega ao paladar e às narinas sem precisar de filtros ou de intermediários. Nasce nas encostas das colinas, num vinhedo ao norte de Florença, uns quinhentos metros acima do nível do mar nos suaves declives logo depois de Fiésole. Há pelo menos uns dez séculos, os florentinos sobem até aqui, no verão, para respirar um pouco de ar fresco e fugir do ar abafado da planície. Para Dante era o paraíso, pois era por aqui mesmo que a sua Beatriz vinha passar as férias. Acho sugestivo que uma das nossas experiências italianas mais tecnologicamente adiantadas nasça numa paisagem quase montanhosa. Entre oliveiras e ermidas, bosques e pequenas casas de campo, perto dos aquedutos da época dos Médici e entre inúmeras nascentes de água cristalina. Nesta propriedade, após um atento estudo do terreno e do

microclima, plantamos a partir de 2002 a Riesling renano, Pinot branco e Pinot gris, Sauvignon e Gewürztraminer, e eu francamente espero que dentro de uns poucos anos ela produza um vinho branco excepcional e único. A safra de 2007 foi boa, mas o Mezzo Braccio ainda não alcançou, nem de longe, a qualidade de que o considero capaz. Como sempre, precisaremos de um pouco de paciência. Mas o objetivo é fascinante: o primeiro branco de alta qualidade, um vinho destinado a envelhecer e melhorar com o passar dos anos, produzido a partir somente de uvas internacionais, marcadamente nórdicas, em terra florentina. O sonho de pelo menos duas gerações que continua. Bastante interessante também é o fator altitude: quinhentos metros não é pouco para um vinhedo. Sempre me senti particularmente fascinado pela viticultura de montanha. É para lá que a agricultura tende cada vez mais a deslocar-se, em busca de ar melhor e mais fresco. Já estamos comentando as mudanças climáticas no nosso planeta há várias décadas. Particularmente no que tem a ver com o acelerado aquecimento da atmosfera e do mar. Não é minha intenção, aqui e agora, falar nas causas e na evolução desta emergência global. Mas sei que a videira, organismo obstinado que pode viver tanto quanto um homem ou mais, encontrará o seu caminho mesmo neste amanhã incerto e indefinido, talvez se mudando para cada vez mais perto das nuvens.

A viticultura de altitude é uma prática que observei e admirei no exterior e nas nossas próprias montanhas. Na Itália setentrional, no Vale de Aosta, na Espanha, nos Andes argentinos. Ainda que na Itália quinhentos metros sejam tradicionalmente considerados o extremo limite altimétrico das vinhas, nos Andes estão começando a cultivar sistematicamente a videira acima dos mil metros. Subindo, os argentinos conseguiram produzir vinho na província de Salta, cuja distância do equador é exatamente a mesma que a de Bagdá. E ninguém se refere a eles como a “vinhos de emergência”, nascidos para satisfazer a sede do enorme mercado interno, mas sim como a garrafas que crescem com a melhor qualidade um ano após outro, rótulos que talvez, algum dia, possam ser encontrados no lugar de honra das prateleiras das nossas enotecas. A viticultura de altitude é um desafio, mas é um belo desafio. Lá para cima, é preciso encontrar novos sistemas de criação. É preciso aprender a enfrentar noites e alvoradas mais frias, e isto é bom, mas também mais sujeitas a geadas repentinas no começo do outono e no fim da primavera. E mais: a irradiação mais direta do sol ajuda a fotossíntese, mas precisa ser monitorada constantemente para que não produza um vinho desequilibrado. Neste novo espaço de exploração, a viticultura de qualidade precisará ser, como todas as demais coisas do vinho, capaz de discernir com previdência o futuro. Distinguir, reconhecer com antecedência, de longe. Precisará começar a

experimentar hoje mesmo, para encontrar a receita certa depois de amanhã. Além destas tentativas dirigidas a novos hábitats, o trabalho a que estamos hoje mais particularmente nos dedicando, como firma e como família, é a valorização de todos os melhores terroirs já utilizados pelo homem. Queremos que todo lugar onde a videira desde sempre é cultivada realize plenamente a sua vocação e, eventualmente, todo o seu potencial. Por isso colaboramos com um programa quadrienal da União Europeia para o estudo e a valorização das cepas autóctones menos conhecidas ou olvidadas. A começar por aquelas 118 subespécies de uva local toscana consideradas “ameaçadas de extinção”. Por isso mesmo, saindo definitivamente do nosso território úmbrio-toscano, também estamos trabalhando há algum tempo em outras regiões históricas do vinho. Já a partir de 1989 possuímos nas Langhe, talvez a mais nobre região vinícola piemontesa, a firma Prunotto. O primeiro contato acontecera na época da parceria com os ingleses da Whitbread, e no fim dos anos 1990, depois que consegui reassumir o controle total, fiz com que estas vinhas à sombra dos Alpes permanecessem conosco. Quem cuida delas, já há vários anos, é a minha filha Albiera. No Piemonte já se fazia vinho dez séculos antes de Cristo, misturando semente de sabugueiro e amoras silvestres. Quem fazia isto eram os celtas, povos do Norte que, mais

ou menos dois mil e quinhentos anos antes do Tignanello, foram os primeiros a introduzir na Itália os barris de madeira. Depois foi a vez dos romanos. Os Savoia, a casa soberana do ducado do mesmo nome que depois daria a partida aos movimentos que levariam à unificação da Itália, foram os precursores da evolução do status do suco de uva: de “ópio” e remédio dos pobres a produto para conhecedores. Em meados de 1500 os Savoia já mantinham na corte uns criados especificamente encarregados do vinho que, em seu dialeto basicamente francês, chamavam de “someglieri”: os atuais sommeliers. No início do século XX a nossa família real ainda gostava de falar dialeto piemontês, mas quando se sentava à mesa tinha os mesmos gostos das grandes monarquias europeias. Estes “someglieri” serviam dois tipos de vinho: o “de boca”, exclusivos dos duques da casa reinante, e o “comum”, para qualquer outro hóspede. Os Savoia interessaram-se pelas uvas locais, pelas adegas e pelas novas técnicas enológicas. Foi também graças a eles que, durante todo o século XVIII e o XIX, o Piemonte cresceu em importância como grande laboratório do vinho, com o Barolo, que era chamado “o vinho dos reis, o rei dos vinhos”, e o Barbaresco, que, pelo trabalho de um grande e iluminado produtor, Angelo Gaja, conseguiu alcançar os vértices do prestígio qualitativo. É aqui que nasceram o Vermuth (um vinho alcoolizado e aromatizado) e o Barolo quinado, isto é, aromatizado com ervas locais, que na opinião dos camponeses das Langhe curava

qualquer doença. Aqui apareceram as primeiras associações enológicas, a Escola Enológica de Alba e a Associação Agrária Subalpina. A que tinha como lema uma frase de Alphonse de Lamartine: “Não é só trigo o que sai de uma terra bem trabalhada: é uma civilização inteira.” Na Itália, a comparação entre os vinhos do Piemonte e os toscanos domina o setor praticamente desde o começo. São duas estirpes de vinhateiros orgulhosos, ligados ao seu território. Pessoas que remexeram em suas cepas tradicionais para tirar delas vinhos que ganharam prêmios no mundo inteiro. Costurar harmoniosamente estes dois mundos, estas duas histórias, foi uma pequena, difícil revolução. Não impossível, contudo, quando se mantém como ponto de referência a qualidade final. Desde a sua fundação por vontade de Alfredo Prunotto, há mais ou menos um século, até a nossa chegada, a Prunotto vinificava principalmente uvas oriundas das redondezas, sem possuir terrenos próprios. Nós começamos a montar uma rede de vinhas selecionadas que foi crescendo sem parar. Na prática, esta nobre firma das Langhe foi a base de onde partimos para explorar e começar a moldar os terroirs perfeitos a fim de cuidarmos da qualidade dos vinhos da região. No Piemonte, encontramos cepas lendárias como o Nebbiolo, o Barbera e o Dolcetto, juntando a nossa experiência à sabedoria dos produtores locais. Foram então surgindo o vinhedo de Costamiole, em Agliano, para o Barbera de Asti, o vinhedo

de Bussia para o Barolo, o de Calliano para o Albarossa e o Syrah, mais cinco hectares de Bric Turot na zona do Barbaresco, e mais cinco em Treiso para o Moscato. Acontece em 1998, por sua vez, o nosso desembarque em terras de Pulha, com o sistema de vinhas e adegas do rótulo Tormaresca, na planície nos arredores de Bari e no Alto Salento. Mais uma história de redenção de maravilhosos terroirs. Talvez a mais importante de todas. Nos baixos planaltos do “salto” da Itália faz-se vinho desde a época dos antigos romanos. Quantitativamente, aliás, esta região continuou a ser por muito tempo, até uns poucos anos atrás, a maior produtora de uvas de vinho da península. Tratava-se principalmente, no entanto, de cachos de exportação, tirados das suas videiras para ser logo a seguir enviados para todos os cantos da Itália e do mundo a fim de “robustecer” os vinhos de mesa de outras adegas. Se há uma terra onde historicamente nasceu o vinho de quantidade, mais que de qualidade, o lugar é justamente este, entre o Adriático e o Jônio. Só há pouco tempo as coisas começaram a mudar. Agora está acontecendo um grande Renascimento dos terroirs locais. A Pulha inteira é cortada por Roteiros do vinho e pontilhada por novas adegas de vanguarda. Estamos falando do redescobrimento do Primitivo de Manduria, do Negroamaro, da Malvasia preta, do Aglianico, vinhos DOC, pérolas de uma estação toda nova e extremamente fecunda. À qual esperávamos dar a nossa contribuição.

Tratou-se mais uma vez de uma longa viagem por novas terras, ao mesmo tempo de férias e de exploração. Uma viagem que nos fez entender as potencialidades desta nova fronteira meridional. Estávamos em meados dos anos 1990 e, Cotarella e eu, como sempre juntos, percebemos logo que aqui havia uvas antigas, uvas que vinham nada menos que da Magna Grécia e que, do ponto de vista enológico, ainda precisavam desabrochar. Se, em outros lugares, ao chegarmos a uma nova área vinícola, tivéramos de começar com a seleção e a reelaboração das videiras e dos terrenos, aqui a situação era completamente diferente: as uvas eram maravilhosas, a terra perfeita, mas, no meu entender, sentia-se principalmente a falta de estruturas modernas norteadas para a qualidade. Nasceu então, entre outras coisas, a Adega de Masseria Maime, que funciona desde 2009. Muito moderna, planejada dentro dos mais recentes ditames da vinificação por Renzo Cotarella, ainda cercada de campos, bosques e oliveiras seculares. E também cuidamos do marketing, com pequenas ideias como a do Fichimori, que propõe que se crie uma nova tradição de tinto tomado frio. Ou com o azeite extravirgem de oliva que se faz mesclando duas variedades de azeitonas locais: a Cellina e a Coratina. As nossas iniciativas no Piemonte e na Pulha são, como eu já disse, mais um sinal dos tempos; em congressos e encontros públicos, toda vez que me perguntaram como poderiam os empresários italianos fortalecer-se diante da

cada vez mais acirrada competição internacional, a minha resposta sempre foi a mesma: precisamos de colaboração, de trabalho de equipe, de networking, como dizem os ingleses. O eterno duelo vinícola entre Piemonte e Toscana, todo cheio de segredos obtusamente escondidos e recíprocos ciúmes, é um ótimo exemplo daqueles bairrismos míopes e tipicamente italianos cuja existência atualmente já não faz sentido. Assim como o setor do vinho italiano não teria conseguido sobreviver à crise dos anos 1960 se não tivesse investido na pesquisa e na seleção da matéria-prima, assim também hoje não haverá futuro para o nosso negócio se vier a faltar um maior empenho comum. No mercado global, numa sociedade onde as ideias circulam livremente, ricocheteiam nos novos meios de comunicação e saltam para todos os lados sem barreiras espaçotemporais, já não fazem sentido nem sequer as barreiras ideológicas e a rivalidade acrítica entre as superpotências do vinho: a França contra a Itália, a Califórnia contra o Chile. No plano técnico, torna-se inteiramente estéril a rixa entre usar ou não usar barricas, entre cepas autóctones e tradicionais, e assim por diante. E já não fazem sentido as reticências e os segredos industriais entre vinhedos do mesmo país. Chegou a hora de as regiões clássicas do vinho, como a Toscana e o Piemonte, começarem a colaborar com as emergentes, como a Pulha e a Sicília, e com as mais recém-chegadas, e inesperadas, como a

Sardenha e o Abruzo. Numa livre e aberta circulação de recursos e know-how. Seja no que diz respeito à vinha, seja quanto ao marketing e à distribuição. A França, e principalmente os novos países do vinho, desde sempre souberam fazer disto uma regra. Aqui entre nós, o mundo do vinho permanece fragmentado e se mexe sem uma meta definida. Em volta de umas poucas marcas importantes, orbitam nebulosas de microempresas frágeis, sujeitas à volatilidade dos mercados e indefesas diante de uma concorrência internacional cada vez mais agressiva. Ainda bem que, ao que parece, alguma coisa está finalmente mudando. A conjugar esta necessidade de localizar um rótulo com a exigência de uma maior cooperação entre os fazedores de vinho, vejo um futuro próximo cheio de pequenas empresas e herdades de qualidade, de novos rótulos e de novos protagonistas. Com os produtores cada vez mais bem interligados entre si em associações e consórcios, com regras claras e marcas reconhecíveis e transparentes para protegê-los e defendêlos. Atualmente, por exemplo, estamos tentando fazer isto com o Instituto italiano do vinho de qualidade Grandes Marcas, de que participam dezenove firmas italianas desde o Piemonte até a Sicília, e que tenho a honra de presidir desde a fundação, oito anos atrás. A desempenhar esta função, um belo exemplo de cooperação que está sempre diante dos meus olhos é

certamente o de Pino Khail, que nos deixou justamente no ano passado. Precisamos voltar aos anos 1970, quando na Itália um grupo de produtores fundou a União Vinhos Italianos de Prestígio. A UVIP tinha como missão a promoção e a valorização do vinho italiano de qualidade. Participavam dela a piemontesa Fontanafredda, a veronesa Bolla, nós e a Ricasoli da Toscana, a pulhesa Rivera e a siciliana Corvo di Salaparuta. No contato com o público éramos então auxiliados pelo doutor Pino Khail, naquela época titular de uma pequena agência de publicidade em Trieste. Depois de alguns anos de atividade, no entanto, pareceume ter chegado a hora de mudarmos a nossa estratégia de comunicação. Em lugar da clássica publicidade na mídia – que, como já mencionei, nunca me deixara particularmente entusiasmado –, pensei em criar uma revista que tratasse exclusivamente de vinho. O grupo concordou com a ideia e, numa reunião que tivemos em Fontanafredda, informamos Khail de uma decisão que nos levava a interromper o nosso relacionamento com ele. Depois de uma rápida reflexão, o nosso encarregado da comunicação disse: “Se quiserem criar uma revista que fale de vinho, eu mesmo estou disposto a fazer isto. Acho que já disponho de bastante experiência.” Nasceu, assim, a Civiltà del Bere, nos primeiros anos com o apoio da UVIP e, em seguida, totalmente autônoma, até financeiramente.

Mas Pino Khail foi, para o vinho italiano, muito mais que o editor de uma revista especializada, e, se algum dia for escrita a história daquilo que se costuma chamar de “Renascimento do vinho italiano”, isto é, a história dos últimos quarenta anos, o doutor do Friul aparecerá como um indiscutível protagonista. E uma das qualidades fundamentais que lhe será reconhecida será justamente o fato de ter conseguido levar a trabalhar em equipe, com o seu carisma, os líderes de um setor desde sempre dividido. Quem se livrou de uma vez por todas das antigas desconfianças e rivalidades foi ele. Coube a ele organizar com os vários membros promoções e degustações do mais alto profissionalismo por todo o mundo. Foi ele, resumindo, o primeiro a criar no nosso país um espírito corporativo entre os produtores de vinho. A sua pequena “obra-prima” foi juntar, no grupo que levava pelo mundo afora, dois grandes personagens do vinho bastante diferentes entre si por origem, por ideias políticas e pela localização das suas vinhas. Um era o senador comunista Walter Sacchetti, da Romanha e histórico presidente das Adegas Reunidas de Régio Emília. Era a empresa produtora daquele Lambrusco que conseguiu vender quase duzentos milhões de garrafas por ano nos Estados Unidos, permitindo ao seu importador naquele mercado, a firma Banfi dos irmãos Mariani, investir uma parte dos lucros num megaprojeto vinícola nas terras de Montalcino, sob a iluminada e sábia direção de outro grande

protagonista, o enólogo Ezio Rivelli. O outro era o senador democrata-cristão Paolo Desana, piemontês e primeiro presidente do Comitê Nacional dos Vinhos de Origem. Sacchetti e Desana eram algo parecido com Peppone e dom Camillo:[1] brigavam o tempo todo por razões políticoideológicas, mas afinal de contas eram grandes amigos. E, provavelmente, era justamente o amor ao vinho que os mantinha unidos. Khail desempenhou todas estas atividades com modéstia, nobreza, estilo e, principalmente, imenso amor ao vinho. O seu falecimento foi uma grande perda para o setor. Com mente aberta e sem bairrismos, portanto, na Itália ainda há áreas vinícolas por descobrir, novas misturas de uvas por experimentar. E, além do mais, são tão numerosas as variáveis que intervêm num ano de vida de uma videira, que não só cada vinho – encontro de determinada variedade com um terroir e com uma filosofia de produção – será sempre diferente de qualquer outro produzido em qualquer lugar do mundo, mas também a própria safra do mesmo vinho sempre será uma história à parte, escrita ao mesmo tempo pela vontade do vinhateiro e pelo imponderável. É por isso que nunca me cansarei de fazer vinho. É por isso que o vinho perfeito só pode ser um valor abstrato que se perde no infinito. Novamente na Toscana, e novamente na Maremma, há pelo menos mais um projeto novo que gosto de acompanhar de perto. Uma vinha em Guado al Tasso chamada

Matarocchio, onde de uns poucos anos para cá produzimos um Cabernet Franc. Foi vinificado em 2007, com apenas três mil garrafas, e acaba de chegar ao mercado. Ainda é cedo para saber, mas podia resultar num unicum, um vinho criado para uma única safra, antes de desviarmos aquelas uvas para outras tarefas. Ou poderia ser o começo de uma linda história. Aqueles cachos de 2007, maravilhosos, aquele pequeno pedaço de terra acenaram para mim com sinais extraordinários; acredito que foram a minha mais recente paixão enológica em ordem de tempo. Estou falando daquele encantamento diante de uma vinha pelo qual já passei nas colinas californianas de Antica e na criação do Solaia. Vi, percebi, “senti” de alguma forma um vinho elegante e estruturado, que iria distinguir-se da multidão de outras garrafas devido aos seus taninos doces e delicados aromas de especiarias. Se levarmos em conta o garrafão de uvas reunidas ao acaso com que brinquei sob os olhares benevolentes do professor Garoglio quando ainda usava calças curtas, já são quase setenta anos que faço vinho. Mas Matarocchio mostra que a terra e o vinho da minha região, assim como o meu ofício, ainda podem surpreender e ensinar alguma coisa. Quer dizer, é na Toscana que a gente acaba tendo mais uma vez o ponto de partida. E é a “toscanidade”, uma combinação de gosto, sensibilidade e sensação de

identidade, que forma o núcleo sólido do ser Antinori. Imutável através das épocas e das modas. Uma paixão toscana que passa da agricultura à literatura, da arte aos hábitos e aos lugares de todos os dias. O fato de a nossa pequena empresa do Chianti ser a esta altura conhecida no mundo, com um dos mais extensos e variados patrimônios de videiras e terrenos, não alterou este liame. Somos toscanos e somos florentinos. Pessoas que amam o próprio trabalho, empreendedoras e criativas. E é um vínculo territorial que também demonstramos e confirmamos nesses últimos anos. Reconhecem-nos nas ruas do centro de Nova York ou nas lojas de Hong Kong, mas o nosso canto é via Tornabuoni, onde fica o nosso palácio e a capela dos meus antepassados. Não hesitei, não faz muito tempo, em subscrever com o meu nome uma associação de empresários florentinos que querem salvar do abandono e do descuido esta antiga e elegantíssima rua do centro. Na via Tornabuoni, só uns poucos metros depois do nosso portão, encontra-se o Procacci, histórico ponto de encontro florentino do pãozinho de trufas, que se acompanha de um copo de bom vinho. Fundado em 1885 por Leopoldo Procacci, agraciado pelo rei Vitor Emanuel III como parte da gastronomia da corte com o selo da Real Casa, é um lugar pelo qual todos nós e os nossos amigos passamos. Uma parada que diz muito mais sobre a “toscanidade” que um tratado ou uma

enciclopédia. Quando, em 1997, este pequeno templo de bom gosto local corria o risco de fechar devido aos cada vez maiores custos de manutenção (a globalização não ama as pequenas firmas tradicionais) e à falta de continuidade familiar, nós não tivemos dúvida: mantendo o nome e o estilo até nos mínimos detalhes, do balcão de madeira às pequenas vitrines do começo do século passado, decidimos salvá-lo da extinção. Em 2006 abrimos então uma filial sua em Viena. E, em 2010, em Singapura. Outro pequeno recanto do gosto toscano é a nossa Cantinetta, enoteca-restaurante desejada por meu pai no palácio em meados dos anos 1950, atualmente “transplantada” em várias capitais. Outro ainda é a Osteria, na nossa propriedade de Badia a Passignano. Criada em 2000 por Marcello Crini, acompanhada com amor pela minha filha Allegra e premiada com uma estrela Michelin, a Osteria transforma todos os dias em cardápio o mundo Antinori. Lá você encontra os leitõezinhos dos campos ao redor de Siena, criados soltos, em condições praticamente bravias, por Allegra nas terras selvagens do Bruciato, perto de Bolgheri. Há os azeites que produzimos na Toscana, na Úmbria e na Pulha. O pão das nossas farinhas biológicas, um vinagre artesanal feito a partir de um vinho de qualidade. E, naturalmente, todos os nossos vinhos. Sob seus antigos arcos de pedra encontram-se todos os sabores da tradição, mas reelaborados por toda uma equipe de jovens

chefs liderados por Matia Barciulli, pois até na cozinha é preciso crescer sempre, melhorar. Os turistas estrangeiros vêm de todos os cantos do mundo para frequentar os cursos de cozinha que ministramos à tarde, e aprender a preparar as moelas de vitela empanadas ou o suflê de peixe com aspargos silvestres e molho de tomate agridoce. Aí participam das degustações enológicas e, depois disto, fazem suas compras na loja ao lado (a única onde vendemos até as safras mais antigas). E finalmente vão visitar as adegas cavadas na pedra viva pelos monges. É justamente trabalhando a partir destes sinais e símbolos toscanos que, nos anos mais recentes, a nossa marca começou pouco a pouco a aumentar o seu leque de produtos e atividades que não são propriamente vinho: azeite, hotéis-fazenda, restaurantes, os pontos de venda… É um novo caminho, um projeto em sua maior parte desejado e gerenciado pelas minhas filhas. Não sei aonde estas iniciativas poderão nos levar, mas estamos empenhados em que todas estas atividades nascidas “em volta do vinho” nunca percam de vista os valores fundamentais e o estilo Antinori: a qualidade, a “toscanidade”, a busca e a salvaguarda da tradição. E o vinho. Hoje em dia muitos marcam com o próprio nome mil coisas diferentes, com o risco de diluir o seu impacto e percepção. É a costumeira, eterna diferença entre um nome que se torna mera abstração comercial, nas Bolsas de Valores ou nas embalagens dos suvenires “made in China”,

e um nome de família intensamente vivido e interpretado todos os dias em todas as coisas que a gente faz. A minha mente está aberta, como sempre, a qualquer novo empreendimento Antinori. Mas, afinal de contas, hotéisfazenda e restaurantes, queijos e geleias sempre terão de ser um veículo e um acompanhamento do que continua a ser o âmago do nosso trabalho: uma garrafa de vinho de alta qualidade. Vinho toscano ou vindimado em qualquer outra parte do mundo com toscana paixão e dedicação. Mesmo sob as raízes mais profundas da nossa identidade de vinhateiros toscanos, em resumo, ainda há muita coisa por descobrir. Nunca esquecendo que precisamos continuar a explorar novos territórios e novas fórmulas. O futuro do vinho será decidido entre estes dois polos em relação dialética entre si. As uvas mais antigas e autóctones continuarão a melhorar e apurar suas qualidades na seleção e no trabalho na vinha. As uvas internacionais continuarão a explorar a biosfera em busca de novos territórios. Há todo um planeta ainda por semear, cultivar, podar, vindimar… Estou acompanhando as notícias que chegam do Sul da Inglaterra, por exemplo, onde há muito pouco tempo está se trabalhando com vinhos espumantes. Em 2006, no Buckingham Palace, para o octogésimo aniversário da rainha Elizabeth II, brindou-se com um espumante da herdade de Ridgeview, East Sussex. Conheço os ingleses, sempre dispostos a comover-se diante de um Bordô ou de um bom vinho toscano. E sei o que isto pode significar para

eles. Ou então leio sobre a Escócia, onde no passado ninguém pensaria em cultivar videiras nem servir, nos pubs, alguma coisa que não fosse cerveja ou uísque. O seu primeiro vinho de qualidade, produzido em Ardeonaig, nas margens do Lago Tay, bem no meio das Highlands e dos fiordes do mar do Norte, foi comercializado em 2010. Falando em futuro e nas muitas frentes do nosso trabalho em que precisamos estar presentes e atuantes, temos de acompanhar e, se possível, incentivar todas elas norteando as mudanças de imagem, do uso e da circulação do vinho. Caberá aos consumidores, afinal de contas, decidir quais serão os nossos novos estilos de produção, as nossas linguagens, as diretrizes da nossa experimentação. Os “sinais” que recebo da “vinha” do mercado italiano e internacional são animadores e, mais uma vez, interessantes. Lallo já sumiu de cena: os toscanos já não tomam somente vinhos toscanos, nem os piemonteses apenas vinhos das Langhe. Os rótulos australianos ou americanos, sul-africanos, chilenos ou croatas já não são vistos somente como uma curiosidade pelos frequentadores das feiras do vinho. E é justo que seja assim. Ao tomar um bom vinho, a “fidelidade” já não é um valor, é um freio; corre-se sempre o risco de perder alguma coisa. O vinho é prazer, e o prazer também nasce da curiosidade, do desejo de descobrir coisas novas.

Está se tornando cada vez mais costumeiro acompanhar o peixe com vinhos tintos? Tudo bem, então vamos examinar melhor o assunto. Estamos explorando todo o mundo novo da cozinha étnica, cada vez mais presente nas nossas casas e nas nossas reuniões? Por que não? Pensar em que vinho escolher para melhor acompanhar um prato árabe, indiano ou chinês pode até ser muito estimulante. Estou interessado no mundo da distribuição moderna. Parece-me já poder ver um público mais informado, consciente, até entre os mais jovens. Proliferam os wine bars, os lugares de degustação informal. E o vinho está cada vez mais ao alcance de todos. Reparo que na Itália até a grande e a global distribuição estão se mexendo. E eu não tenho absolutamente nada contra isto. O que importa é que quem os vende saiba como devem ser expostos, transportados e explicados ao consumidor. Quando há paixão e respeito por este produto, todo lugar e todo instrumento podem facilitar que ele seja conhecido pelo maior número possível de pessoas. Diante desta exigência de qualidade, desta nova atenção ao assunto, a grande revolução, ainda que leve algumas décadas, será a de produzir menos, mas produzir melhor. Já vimos que o vinho subirá pelas encostas das montanhas, descobrirá novos países e novos continentes. Mas nunca poderá nascer em qualquer lugar. A Vitis vitifera, se quisermos tratá-la com justiça para conseguirmos um produto sincero, sempre precisará de sol no verão, de chuva

e de frio no inverno; sofrerá se a deslocarmos para longe demais dos climas temperados do planeta, se não deixarmos que cheire o mar ou se a levarmos para certas latitudes onde não existem as estações. A uva detesta a umidade excessiva no verão, odeia o smog e o concreto. O seu hábitat não pode ser mudado. Nunca será possível vindimar mais de uma vez por ano, como já se faz com o trigo transgênico e as frutas nas estufas. Não poderemos pedir que as videiras deem mais cachos que o normal, como já reparou quem o experimentou e se deu mal, pois se quisermos produzir qualidade a coisa não funciona. O vinho, portanto, é e sempre será um recurso renovável e limpo, mas não inesgotável. Se algum dia as multidões da China, da Índia e do Brasil quiserem ter, com toda a razão, o seu “bom copo cheio”, repito que a grande lei do viticultor só poderá ser “menos vinho, mas de alta qualidade”. Em lugares como a Itália, historicamente acostumados com o fiasco, o bojudo recipiente empalhado de dois litros, tornarse-á cada vez mais difícil ter vinho na mesa como antigamente. Mas, quando a oportunidade se apresentar, o consumidor procurará informar-se muito mais do que o comprador médio de hoje e buscará uma garrafa que possa proporcionar-lhe uma experiência, uma emoção sensorial. Sairá em busca do melhor e do novo. Por sua vez, o vinho ocupará cada vez mais espaços onde até agora é percebido como um bem de consumo forasteiro e alheio, ou até exclusivo: o planeta Índia, o universo China. Lugares que

jamais conheceram a nossa longa fase do vinho “a granel” e cotidiano, medido em fiascos e garrafões. Neste panorama, diminuirá o espaço para o vinho de amplo consumo, o “vinho de mesa” de origem nem sempre clara e garantida, o vinho que ajuda a tirar a sede e que serviu de ponto de partida para os meus antepassados. O vinho para a multidão, que afinal de contas não faz bem à saúde, nem às videiras, nem à paisagem. E o que encontraremos nas garrafas? Qual será o vinho da segunda década do século? Vamos continuar no âmbito do vinho italiano de alta qualidade, o que influencia as modas enológicas e dá um nome a toda uma época. Pois bem, não vejo por enquanto nenhuma grande revolução à vista. A barrica, antigamente um objeto misterioso que aos poucos acabou por ser aceito para ser, em seguida, sistematicamente utilizado (mesmo fora de propósito), é agora uma possibilidade experimentada à disposição do viticultor onde e quando possa ajudá-lo em seu trabalho. O vinho novo, o vinho do ano, foi uma verdadeira febre nos anos 1980 e 1990, mas atualmente o seu consumo está rapidamente se retraindo. Ao contrário, hoje em dia aumenta a procura de vinhos mais maduros, cada vez mais ligados a uma terra e a uma tradição. Vinhos que carregam uma história. Que envelhecem sem estardalhaço. A sua perfeição, o seu caráter dependerão principalmente da maneira como se trabalha a vinha, de como se vive e se respeita a terra.

Por isso tudo, o vinho será cada vez mais, por definição, um produto natural. E a qualidade deverá ser conseguida através do respeito ao ambiente. Prosseguirão os estudos sobre a química do terreno e do mosto, assim como os trabalhos sobre a melhora genética, sobre um conhecimento cada vez mais profundo dos processos microbiológicos que levam a um bom vinho, mas teremos de evitar todos os processos mais intrusivos da modernidade. A química, como atalho para fertilizar, para acelerar os processos, para alterar as cores e os sabores, desaparecerá por completo. O próprio mercado exigirá isto. Naturais terão de ser os materiais usados para o cultivo e a conservação, a embalagem e a distribuição. Vidro, cortiça, madeira, papel, papelão: tudo devidamente reciclado. As nossas adegas e os lugares do vinho deverão respeitar a paisagem e o seu ciclo vital, usar da melhor forma possível o sol e a luz natural e poupar água. Tudo aquilo que da videira não é usado para fazer o vinho terá de ser reciclado e transformado em energia. Há um projeto da aventura Antinori que resume e liga muitos dos fios que se desenrolaram no século passado e neste livro, entremeando-os diretamente nestes caminhos do futuro do vinho: a família e a Toscana, as vinhas distantes e as adegas compatíveis com o respeito ecológico ao ambiente. Estou me referindo à empresa Biserno e ao homônimo vinho que ali se produz. Nascido nos primeiros

anos deste século, o Biserno é um vinho do meu irmão Lodovico, uma nova aventura sua da qual fiz questão de participar. Sou o irmão mais velho, tive o encargo de dirigir a firma, tornei-a mais ampla, mais forte. Mas Lodovico, com um trajeto todo dele, de Nova York a Londres e às terras da Maremma, fez muito em prol do nosso nome e do vinho. O meu Tignanello foi a peça de um grande mosaico, um capítulo importante numa história que vem de longe. O seu Ornellaia foi uma explosão de orgulho e criatividade. Ambos queríamos, afinal de contas, fazer um grande vinho. E chegou a hora de tentar fazer isto juntos. Assim como, juntos, passamos o tempo entre filhos e netinhos. Conversando sobre vinho e esporte: como já reconhecemos diante de um público de jornalistas, ele garante que esquia melhor que eu, e eu afirmo que jogo golfe melhor que ele. Acabamos então por nos reencontrar mais uma vez na Toscana, bem perto dos vinhedos do meu pai e da minha mãe. Começamos de três vinhas no caminho entre Bolgheri e Bibbona, a área onde o vinho toscano se tornou grande. Disto nasceu o Insoglio del Cinghiale, vinho em que uns 35% de Syrah se misturam com as nossas mais experimentadas uvas francesas. O Biserno, elegante néctar na trilha dos grandes vinhos de Bolgheri, chegou em 2006. Mas, uma vez que os vinhateiros de hoje também têm outros pontos de vista e outros confins, Lodovico e a sua enóloga Helena Lindberg decidiram que chegara a hora de fazer uma escolha de terreno em larga, larguíssima escala.

A uva Sauvignon Blanc do seu novo rótulo está amadurecendo no sopé das colinas de Wither, perto da cidadezinha de Marlborough, na Nova Zelândia. Num vale aluvial perfeito para o vinho. – Escolheu o melhor local de toda a zona para plantar videiras – comentou o guru local da viticultura, Brent Marris. – Até que entendem de vinhos esses dois irmãos toscanos! Lá, no arquipélago, a primeira videira foi plantada duzentos anos atrás por um pastor anglicano, quando na nossa terrinha o palácio Antinori já vendia fiascos e garrafas havia mais de quatrocentos anos. Os vinhos de qualidade são coisa de uns quinze anos para cá, mas muitos peritos já afirmam que o terreno perfeito para os grandes brancos está lá, na terra que os maoris chamam Aotearoa, mais próxima da Antártida que qualquer outra nação habitada. Nunca teria pensado nisto, mas devemos estar sempre prontos para reescrever o próprio planisfério mental. E, como na Califórnia, como no Chile, só podemos entender o que uma terra do vinho pode dar depois que se começa a trabalhar nela junto com os seus viticultores. Só depois de podermos lembrar pelo menos duas vindimas. Em Marlborough nasce, em 2007, o Mount Nelson Rams Hill Sauvignon Blanc. É vendido diretamente a uma rede dos melhores restaurantes do mundo. E é perfeito para o sushi. Enquanto isso, já se chegou ao fim dos anos zero do novo milênio. Muitas coisas estão acontecendo no mundo. Com as minhas filhas, com os meus colaboradores, nós estamos

preparados. Continuaremos a fazer vinhos que usem o melhor da matéria-prima e o melhor das tecnologias e dos conhecimentos que estão ao nosso alcance, sem perdermos de vista as raízes e a tradição. Dispomos, por sorte, de meios e de homens para levar adiante esta missão em várias frentes. Justamente entre as raízes toscanas e o vinho do futuro, há mais uma história que desejo contar. Tem a ver com uma colina… E com algo que o meu irmão Lodovico disse uns anos atrás: “Os franceses têm os châteaux? Os castelos do vinho? Então nós vamos encher nossos campos de adegas de autor.” O que, afinal, é uma reafirmação do que dizia o meu pai, Niccolò, enquanto se esforçava por encontrar o nome do seu primeiro vinho tinto, lançando um orgulhoso desafio ao Bordô e ao mundo: “Eles têm seus châteaux? Nós temos as nossas vilas!” Naquele tempo, nos derradeiros anos 1920, muita coisa estava para mudar, tal como agora, nesta segunda década do novo milênio. San Casciano Val di Pesa é o coração histórico das adegas dos marqueses Antinori. Vovô Piero quis ali as primeiras estruturas de vinificação e envelhecimento: espaçosas, eficientes e em fácil contato com a cidade. Uma grande ideia, bem moderna. Foi justamente ali, entre o pequeno centro urbano e um bosque de carvalhos e faias, logo além do rio Pesa, fronteira natural do Chianti Clássico, que explodiram as garrafas de espumante mal fermentado pelo

doutor Charlemagne e que as rajadas de metralhadora dos alemães que se retiravam estilhaçaram outras tantas, no dia em que compreendi o que queria fazer na vida. Dali, há mais de cinquenta anos, saem as nossas garrafas para o mundo todo. Primeiro lavadas e enxugadas, depois enchidas e devidamente seladas por gerações de vinheiros das redondezas e boas mulheres que colavam as etiquetas manualmente, e finalmente encaixotadas pelas primeiras aparelhagens mecânicas de fita transportadora. Em volta dos seus edifícios fica enferrujando uma pequena floresta de tanques para vinho de várias épocas, de diferentes tamanhos e materiais. Em San Casciano juntamos, na primeira metade do século passado, as melhores uvas do Chianti Clássico, depois que os meus avôs e meu pai as haviam comprado dos intermediários; em seguida as transformamos em hectolitros e mais hectolitros de excelente vinho. Fizemos com que fossem experimentados, louvados ou, às vezes, até reprovados na grande sala de degustação com teto abaulado por milhares de jornalistas enológicos de todas as línguas e escolas de pensamento. Finalmente difundimos e enviamos para longe seus aromas e sabores – em caixas de seis, em garrafões ou em garrafas avulsas –, de Florença a Montevidéu, de Moscou a Toronto. É o lugar onde, cinco séculos depois das nossas primeiras garrafas, nasceu a nossa maneira de fazer vinho e tornou-se empresa. Palácio Antinori, Praça Antinori, Florença, é por sua vez o endereço ao qual enviam pacotes, cartas e

pedidos os nossos importadores e distribuidores de todos os cantos. O “château florentino” que nos liga como uma âncora de pedra à nossa identidade, enquanto o mundo se move cada vez mais rápido. Lá, enquanto escrevo, converso, falo ao telefone, estou cercado pelas memórias dos meus antepassados. Acima da cabeça tenho as vigas de madeira marchetada de Giuliano da Maiano, arquiteto, seguidor do estilo de Brunelleschi, que Lourenço, o Magnífico, recomendou à minha família para terminar a obra da nova casa. Saio para tomar ar no pátio e me perco entre o cinzento da pedra e o vermelho do tijolo, o branco do reboco e o preto da madeira antiga, à sombra de uma grande magnólia. Esta é a nossa pequena fortaleza sobre o rio Arno, perdida por algumas décadas, mas reconquistada por meu pai, com as salas onde durante séculos os meus antepassados ficaram tomando decisões, às vezes sentados à mesa, sobre a política de Florença e as rotas dos comércios europeus; onde convidavam a jantar magistrados e representantes da Igreja, generais e cabeças coroadas, lhes serviam taças de Chianti e fechavam um bom negócio. O palácio e as adegas de Val di Pesa são ao mesmo tempo o sinal concreto, os muros de arrimo daquilo que somos e fomos. Mas, apesar disso tudo ou, talvez, justamente por isso, dentro em breve deixarão de existir, pelo menos como hoje os conhecemos.

A decisão foi tomada uns dez anos atrás, mas nunca como desta vez foi difícil passar da ideia ao projeto e do projeto à realidade. Já faz um bom tempo que San Casciano ficou, para nós, meio apertada. Imaginada há cerca de um século, e depois várias vezes retocada e ampliada para acompanhar o crescimento e a evolução da nossa firma, a nossa principal infraestrutura toscana tornou-se de difícil gerenciamento e custosa. Um caminho longo demais para o vinho. Pouco espaço para um mercado em expansão. Demasiadas estruturas inviáveis para as novas técnicas e tecnologias. A própria cidadezinha de San Casciano Val di Pesa cresceu toda à nossa volta e já quase não aguenta o vaivém de caminhões de pequeno e grande porte: entrando com a uva, saindo com as bordelesas. Finalmente chegou o projeto de um anel rodoviário, um rio de asfalto que passaria a poucos metros de onde descansam os Chianti Clássicos. Resultado: aquelas adegas deixaram de ser funcionais. No prazo de um ano ou pouco mais produziremos as últimas garrafas, e depois a estrutura será, em grande parte, desmantelada, tal como já aconteceu com o castelo de Combiate. Desta vez, no entanto, na mais completa paz. Está na hora de nos mudarmos. E o palácio florentino também ficou apertado. Fica cada vez mais difícil gerenciar as nossas adegas do centro histórico de uma cidade movimentada, sempre cheia de turistas. Precisamos de um novo quartel-general. Mas, uma vez que os momentos de transformação, aqueles que

encerram um ciclo, também são oportunidades para um novo impulso, para uma limpeza geral que acabe com preconceitos e teias de aranha, decidimos que não construiremos apenas uma nova adega e uma nova sede de escritórios, mas algo completamente novo e diferente. De início, da estrada, só parece mais uma colina típica do Chianti, coberta de vinhas verde-claras. Mas então, de repente, dá para notar um duplo corte transversal na encosta. Como um meio sorriso num cartão-postal toscano, ou um rasgo de Fontana numa tela feita de grama. As novas adegas Antinori do Chianti Classico, em Bargino, no mesmo território da prefeitura de San Casciano, mas longe do núcleo urbano, estão praticamente prontas. Ficam ao longo do antigo traçado da Via Cássia, na diretriz estratégica entre Florença e Siena, no meio de vinhas e olivais. Sua longa “boca” pela qual terão de passar, entrando e saindo, funcionários e tratores, desaparecendo sob a curva do terreno, é revestida de pedra serena, o material desde sempre empregado na construção dos prédios toscanos. O interior é um pequeno reino subterrâneo, uma cidade-adega de tijolo, mármore, madeira e vidro. Nós mesmos a imaginamos. Depois escolhemos um arquiteto florentino, Marco Casamonti, que é trinta anos mais jovem que eu. Quando começamos a dar uma olhada ao nosso redor, Casamonti, fundador da Archea Associati, criador, entre outras coisas, da entrada da quinquagésima

edição da Bienal de Veneza, acabava de ter o livro Cantine [Adegas] publicado pela Motta Editore. No livro, passando em revista as adegas assinadas nos últimos anos pelos mega-astros da Itália (mas também da França, da Espanha e dos Estados Unidos), mencionava-se a exigência de harmonizar a monumentalidade e a funcionalidade destas novas estruturas revolucionárias, lugares de representação e ao mesmo tempo de trabalho, com a paisagem e a natureza. – A adega é um espaço ambivalente – disse-me depois Casamonti nos nossos primeiros encontros pessoais. – É um lugar sagrado e de silêncio, templo dos antigos rituais da uva, mas ao mesmo tempo lugar de produção, que deve atender a algumas exigências de qualidade bem definidas. E hoje em dia também precisa ser cada vez mais um edifício agreste mergulhado na natureza e em perfeita harmonia com ela: todo o fascínio e todo o risco do projeto consistem justamente neste vínculo. – E foi assim que me convenceu. Àquela altura, Albiera decidiu tomar conta de tudo acompanhando o projeto e os trabalhos, assistida na parte mais ligada à engenharia pelo Studio Hydea do amigo Paolo Giustiniani, e com Renzo Cotarella a monitorar os aspectos técnicos dos lugares onde se faz o vinho. “Foi uma obra e tanto! Até pensando somente na parte burocrática, entre alvarás e autorizações”, diz a minha filha, já verdadeira perita na construção de novas adegas, para a qual o projeto Bargino foi a principal tarefa dos últimos anos. Então surgiu

o problema de imaginarmos um canteiro de obras que não atrapalhasse as vinhas em volta. Houve uma demorada escolha de materiais e, quando tudo parecia bem encaminhado, houve o desmoronamento de uma parte do morro: tivemos de escorar a encosta, introduzir mudanças estruturais no projeto, fincar estacas de sustentação e começar tudo de novo. Colocamos na adega de Bargino tudo aquilo que ao longo dos anos aprendemos sobre o mundo do vinho, o novo mundo do vinho. Será uma adega ecológica, de impacto zero, que não perturba a paisagem (são 37 mil metros quadrados quase invisíveis do lado de fora), uma estrutura que usa ao máximo a luz natural. Todo o conjunto será subterrâneo, incluindo os estacionamentos. Naturais e toscanos também são os materiais. Em todos os nossos vinhedos podem ser feitas visitas programadas, em muitos abrigamos mostras, eventos musicais, festas e convenções. Mas esta será a primeira grande estrutura Antinori nascida pensando unicamente no lado de fora. No público do vinho. No começo, irá se tratar principalmente de estrangeiros, mas acredito que muito em breve por aqui também haverá cada vez mais pessoas que não se contentarão simplesmente com a compra do vinho; quererão conhecê-lo melhor, saber como e onde nasce. Uma virada cultural que começou na Califórnia, transplantou-se para a França e, agora, viu finalmente nascer também na Itália roteiros do vinho, museus

enológicos e aquela pequena revolução criativa representada, justamente, pelas adegas de autor de que falavam o arquiteto Casamonti e o meu irmão Lodovico. Refiro-me em particular àquelas novas adegas surgidas principalmente na Maremma durante a última década. Estruturas modernas, eficientes e ecologicamente compatíveis, que não são apenas lugares de vinificação e venda dos grandes vinhos toscanos, mas também obras de arte, pequenos monumentos à enologia e à criatividade italiana. Fulcros de um novo modelo de “marketing territorial”, uma vez que a própria paisagem toscana se tornou, ela mesma, um logotipo, uma garantia de produto de excelência. Refiro-me a lugares como aquela espécie de “barril desfolhado” de pedra e tijolo cavado na colina de Suvereto pelo arquiteto suíço Mario Botta. E à nova casa de Petra, a propriedade de trezentos hectares na colina de San Lorenzo, desejada por Vittorio Moretti, empreendedor de Bréscia e criador do ótimo Petra Val di Cornia (gosto de lembrar que agora, confirmando a new wave dos nossos vinhos, quem dirige a vinha é a filha Francesca). Refiro-me à nova sede das adegas Rocca di Frassinello, nas cercanias de Grosseto, do amigo editor Paolo Panerai. Foi desenhada por Renzo Piano, o “Brunelleschi genovês” autor do Centre Pompidou em Paris e do arranha-céu do New York Times. Piano quis uma torre, um paralelepípedo

cor de barro, parcialmente enterrado, onde a uva chega aos lugares de vinificação de forma natural, “por queda livre” como em todas as adegas de nova concepção (e como em muitas das mais recentes adegas Antinori). Em volta da torre, abre-se um largo para hospedar eventos e visitantes. Nas entranhas da terra repousam as barricas em suas fileiras de descanso e envelhecimento. Enquanto isso, em Castagneto Carducci, Ambrogio Folonari e o filho Giovanni estão construindo na sua propriedade de Campo di Mare uma adega-museu de madeira, vidro e lajotas de barro. Foi imaginada por JeanMichel Wilmotte, que mexeu em várias alas do Louvre de Paris. Mais uma vez na Maremma, temos a Ca’ Marcanda do arquiteto piemontês Giovanni Bo, com a qual a família de Angelo Gaja, histórica realidade do vinho das Langhe, fez sua entrada na Toscana: uma estrutura de volumes variáveis, parcialmente enterrada, que aparece e desaparece entre as oliveiras. E há finalmente a nova adega da herdade de Campo di Sasso, desejada pelo meu irmão Lodovico. Coube a ele dizer que “as adegas toscanas de autor, marcadas pela sobriedade e pela elegância do ambiente, podem acrescentar identidade, caracterizar ainda mais o nosso território”. O projeto, neste caso, é do arquiteto e famoso designer milanês Gae Aulenti. Será mais uma construção sóbria, linear, em grande parte enterrada na gleba da

Maremma, bem perto da conhecida alameda dos ciprestes de Bolgheri, cantada pelo poeta Carducci. Com o meu irmão, ali produziremos e envelheceremos dois novos vinhos: o Pino di Biserno e o Biserno, com a assistência do astro francês da enologia Michel Rolland. As adegas de Bargino, no entanto, serão algo mais. De tamanho fora do comum, mostrar-se-ão incomparáveis quanto à sua vocação para receber e acolher os visitantes em larga escala. Os nossos visitantes poderão ver, estudar, tocar com mão os lugares onde nasce e se refina o vinho, o laboratório onde construímos as barricas, o pequeno viveiro e a “vinsanteria”, isto é, o local específico onde fazemos o “vinsanto” (vinho santo), o mais típico dos vinhos licorosos toscanos e que, antigamente, era reservado à missa. Acompanharão o processo do vinho desde o descarregamento das uvas no primeiro nível, passando pelos tanques de vinificação, até as adegas propriamente ditas, onde o mosto se tornará Chianti Clássico no escuro e no silêncio de dez mil barricas. Haverá lembranças e raridades, sinais da antiga viticultura e obras de arte. Haverá um museu do vinho: ainda não decidimos o que contará, mas o seu núcleo será formado por uma série de gravuras centradas na caça e no vinho (oriundas das várias residências dos Antinori) e por um estupendo lagar de uva que remonta à época de Leonardo da Vinci e foi projetado por aquele grande gênio da Renascença. Da Úmbria ao

Piemonte, já existem inúmeros museus do vinho, e é nossa intenção encontrar uma nova fórmula. Bargino será antes de qualquer outra coisa um lugar vibrante, onde o mundo do Chianti Clássico e das nossas mais excelentes especialidades toscanas pulsará ao vivo: entre vitrais transparentes ou passeando nas pontes suspensas, os amantes do vinho poderão ver as tinas de fermentação do mosto, mas também uma moenda, um forno para pão e inúmeras garrafas formando uma espécie de arquivo de cortiça e vidro de todos os vinhos que até agora criamos. O vinho amadurece desde sempre embaixo da terra: toda fase do processo que vai do cacho à garrafa ficará num ambiente fresco, ao amparo dos raios do sol. Já mencionamos as rivalidades entre produtores de vinho que hoje em dia já não fazem sentido: a nova adega será totalmente transparente, para que todos possam ver como trabalhamos – um conceito de adega que aprendi na Califórnia, com o meu amigo Mondavi – e para que o vinho nasça num ambiente aberto, onde o ar e as ideias circulem livremente. Será um templo moderno do Chianti Clássico e da nossa história familiar bem no coração das nossas terras. Aqui, depois da mudança do palácio Antinori, também ficarão os principais escritórios da firma, o nosso centro deliberativo ligado aos mercados de todo o mundo. Enquanto a vida permitir, continuarei a trabalhar aqui, com as minhas filhas e os meus colaboradores. Nestes locais que quis invisíveis

do exterior, enquanto eu posso debruçar-me a qualquer hora sobre um longo corredor panorâmico e olhar os campos e as minhas videiras. Trata-se de mais uma pequena, grande virada, como quando chegamos a Florença, como quando inscrevemos o nosso nome na Corporação dos Vinhateiros, como quando dispersamos as ações da marca para então juntá-las de novo: até 2012, entre caixas e fichários empacotados, começaremos oficialmente a nos mudar. Pela primeira vez em pelo menos sessenta anos, também decidi deslocar muitas das raridades e dos livros mais preciosos reunidos por meu pai. Quero que fiquem perto das vinhas, e que estejam lá para nos lembrar toda a história que nos trouxe até aqui. Desta vez não será uma fuga: as nossas paredes de pedra clara continuarão a hospedar, em Florença, convenções e degustações; a Cantinetta, no térreo, seguirá falando da gente. Mas já era hora de mudar. De criar uma base totalmente nova para as próximas gerações da minha família. Com o Bargino voltamos oficialmente ao campo, de onde os meus antepassados foram escorraçados por inveja oitocentos anos atrás. Voltamos como vinhateiros e empreendedores. Homens e mulheres de três gerações entrelaçadas e mais unidas do que nunca. E lá começaremos a ser menos florentinos e mais camponeses do Chianti.

Como uma boa vinha, cultivada com amor depois de nela muito investir, experimentar e selecionar, esta adega é um projeto de longo prazo. E é impossível saber aonde nos poderá levar. É por isso que vê-la nascer é o coroamento da minha carreira e da minha vida como produtor. Será um lugar que me representa e diz a todos o que penso do vinho, da terra, da Toscana, do futuro. Um palácio de terra extremamente requintado mas não invasivo, novo mas feito de antigos materiais, harmonioso como uma cúpula renascentista mas também eficiente. Tenho bem presente na mente o que disse e escreveu a respeito deste proliferar de adegas-espetáculo o meu companheiro de aventuras, o enólogo Giacomo Tachis: – Construam à vontade os seus porões-museus, mas nunca esqueçam que no centro de tudo devem permanecer a terra e o vinho. De forma que, no fundo, o que mais me fascina nestas minhas novas adegas é que, enquanto em certas áreas poderá haver um congresso, ou se poderá comer num restaurante toscano, ouvir um concerto no auditório ou comprar garrafas, em outras se continuará a desramar os cachos, a transferir na hora certa o doce sangue da uva dos tanques para as barricas, e das barricas para as garrafas. Os primeiros que descansarão no frescor do andar mais profundo do conjunto, quinze metros abaixo do solo, serão no começo os Chianti Clássicos e os Villa Antinori do meu pai, junto com os seus irmãos mais velhos. E gosto de

pensar que na superfície, só uns poucos metros de terra acima dos escritórios e do museu, alguém continuará a sachar e adubar, a enxertar, a podar e a vindimar. Os críticos já falam das “superadegas” da empresa dos Super Tuscans com a vinha no telhado. De uma grande obra de arte toscana. De uma nova Renascença, como se Michelangelo e Rafael estivessem de volta. Quanto a mim, vejo nelas, principalmente, um lugar maravilhoso para fazer grandes vinhos.

  1 Personagens de uma série de livros muito populares, do autor Guareschi, nos quais, na verdade de forma bastante bonachona, se defrontam o prefeito comunista Peppone e o pároco dom Camillo. (N. do T.)

UMA HISTÓRIA ATRAVÉS DE SETE VINHOS Notas técnicas

MONTENISA ROSÉ (Primeira comercialização em 2003)

CLASSIFICAÇÃO: UVA:

Franciacorta DOCG.

100% Pinot noir.

VINIFICAÇÃO:

No começo da primavera, depois da primeira

fermentação alcoólica, que acontece parcialmente em tanque, parcialmente em barricas, o vinho é submetido a uma segunda fermentação em garrafa e a sucessivo contato com leveduras por um período de pelo menos 24 meses. O remuage continua a ser feito à mão através das típicas pupitres, conforme a mais clássica tradição, a fim de dedicar a cada garrafa as atenções mais particulares. Depois do dégorgement as garrafas descansam por pelo menos três meses antes de ser introduzidas no mercado. CARACTERÍSTICAS DE DEGUSTAÇÃO:

Cor rosada, clara, espuma

cremosa com perlage fino e persistente. A expressão aromática lembra claramente o Pinot noir, com típicas sugestões de fruta. Na boca é fragrante, fino, levemente acídulo, fresco e devidamente complexo, também graças à longa permanência sobre as leveduras.

VILLA ANTINORI (Safra 2007)

CLASSIFICAÇÃO: UVAS:

Toscana IGT.

55% Sangiovese, 25% Cabernet Sauvignon, 15%

Merlot e 5% Syrah. CLIMA:

As condições meteorológicas invernais e primaveris,

com temperaturas acima da média, favoreceram um desenvolvimento vegetativo bastante adiantado que, por sua vez, influiu na formação dos frutos logo após a floração e no seu amadurecimento. A notável precocidade do ciclo vegetativo, ao longo da estação, ficou então mais comedida devido às chuvas que caíram na segunda quinzena de agosto. As condições climáticas de setembro, marcadas por tempo bom e clima seco, permitiram quer o perfeito amadurecimento de todas as variedades de uva, quer a possibilidade de vindimar na hora mais certa. Os processos da vindima começaram no início de setembro com o Merlot, continuaram com o Syrah e o Cabernet Sauvignon, e se concluíram nos primeiros dias de outubro com o Sangiovese. VINIFICAÇÃO:

As uvas colhidas foram desramadas e pisadas de

forma suave e colocadas em especiais tanques de

temperatura controlada. A fermentação alcoólica começou no dia seguinte à espremedura e continuou por mais 5 a 7 dias; a maceração, por sua vez, durou de 8 a 12 dias, conforme as diferentes variedades. As temperaturas de fermentação não passaram de 30°C para as uvas Cabernet e Sangiovese, favorecendo desta forma a extração de cor e taninos doces. Nos casos das uvas Syrah e Merlot, nunca superamos os 25°C no intuito de preservarmos as substâncias aromáticas. O vinho resultante passou por fermentação malolática nos meses de outubro e novembro, para ser em seguida guardado em barricas de roble francês, húngaro e americano por um período de afinação de 12 meses. O vinho foi então engarrafado e ulteriormente refinado por mais 8 meses na garrafa. CARACTERÍSTICAS DE DEGUSTAÇÃO:

Cor vermelha, com reflexos de

rubi, intensa. Perfume amplo e complexo, com sugestões de várias frutas, geleia de ameixa, hortelã, chocolate e tabaco. O vinho chega à boca encorpado, redondo, com taninos suaves e aveludados, permanecendo longamente nela com o gosto de fruta madura.

SOLAIA (Safra 1997 – Wine of the Year 2000 de Wine Spectator)

CLASSIFICAÇÃO: UVAS:

Toscana IGT.

75% Cabernet Sauvignon 5% Cabernet Franc, 20%

Sangiovese. CLIMA:

O fim do inverno e o começo da primavera foram

temperados e muito secos. Isto favoreceu um florescimento bastante precoce (mais ou menos dez dias antes da média). Em abril as temperaturas baixaram, provocando a parada do crescimento dos brotos. O verão foi quente e ensolarado, e este padrão climático continuou durante todo o mês de setembro e ao longo de toda a vindima, permitindo portanto colher uvas particularmente sadias e com alta concentração de açúcar. A vindima 1997 acabou por ser muito mais escassa do que se esperava, mas, do ponto de vista qualitativo, pode ser considerada uma safra excepcional, quase certamente superior à de 1990, e portanto uma das melhores dos últimos cinquenta anos. VINIFICAÇÃO:

As uvas provenientes das vinhas de Solaia, que

são rigorosamente selecionadas, são umas das últimas a ser vindimadas (a partir de 22 de setembro para o Cabernet, e da semana seguinte para o Sangiovese). As uvas foram

desramadas e pisadas de forma suave e vinificadas separadamente usando os novos métodos que garantem uma técnica de trabalho muito delicado. A maceração aconteceu em tinas de madeira de 50hl (nas quais, periodicamente, foram praticadas sucessivas calcaduras para conseguir uma melhor extração de cor, de complexidade e de taninos). Durante este período (15 dias para o Sangiovese e 20 dias para o Cabernet), o vinho também completou a fermentação alcoólica a uma temperatura não superior aos 30°C. O vinho foi então guardado em barricas novas com a idade de doze meses (marca Alliers & Tronçais) onde, antes do fim do ano, concluiu a fermentação malolática. Em seguida, o vinho foi transvasado para uma aprimorada harmonização das diferentes variedades e levado de volta às barricas, onde ficou por cerca de 14 meses, no fim dos quais se deu início ao engarrafamento. Seguiu-se então um aprimoramento na garrafa de pelo menos 12 meses antes que fosse introduzido no mercado. CARACTERÍSTICAS DE DEGUSTAÇÃO:

Cor vermelho-grená, intensa, as

sugestões aromáticas lembram perfumes de couro, de feno, de pimenta-do-reino e fruta preta com leves toques de hortelã e chocolate amargo. É um tinto que chega à boca equilibrado e rico, com taninos suaves e sedosos que tornam forte e prolongada a sua persistência aromática. É

um vinho muito elegante que, no entanto, sabe manter a alma austera do território.

TIGNANELLO (Safra 1975)

CLASSIFICAÇÃO: UVAS:

Toscana IGT (Vinho de mesa de Val di Pesa).

90% Sangiovese, 10% Cabernet Sauvignon e Cabernet

Franc. CLIMA:

As condições climáticas da estação foram bastante

boas, com uma primavera razoavelmente satisfatória apesar de algumas extemporâneas geadas. Seguiu-se um verão longo e quente, e depois um outubro de tempo bom. As uvas foram primorosamente selecionadas durante a vindima, tendo em vista uma produção limitada. VINIFICAÇÃO:

As duas variedades de uva foram vinificadas

separadamente. A maceração se deu num prazo de 12 dias, numa temperatura máxima de 29°C, acompanhada pela fermentação malolática, concluída por sua vez em 18 de dezembro. O vinho foi a esta altura transferido para barricas de carvalho francês Allier & Tronçais, onde ficou 18 meses. Ao envelhecimento em barrica seguiu-se então um ulterior período de envelhecimento de 15 meses em garrafa. CARACTERÍSTICAS DE DEGUSTAÇÃO:

Vinho que continua em ótimas

condições, até na intensidade e na tonalidade da cor.

Envolvente no nariz, sugere aromas de tabaco, feno molhado e especiarias. A boca guarda um ótimo entrelaçamento tânico, com final ainda levemente vibrante e suave. Tem excelente envergadura, intensa e prolongada.

CERVARO DELLA SALA (Safra 1986)

CLASSIFICAÇÃO: UVAS:

Vinho de mesa branco da Úmbria.

80% Chardonnay, 20% Grechetto.

CLIMA:

A primavera e a primeira metade do verão foram

frescas, com algumas chuvas. Do meio de julho em diante, o clima foi perfeito para o amadurecimento das uvas, que chegaram à hora da vindima com ótimo nível de açúcares e de acidez. VINIFICAÇÃO:

As uvas, colhidas durante as primeiras horas da

manhã, chegaram à adega e, depois da desfolhadura, foram submetidas a uma breve maceração (cerca de 10 horas) numa temperatura de 3 a 5°C. Logo a seguir o mosto foi separado das cascas e colocado nas barricas de carvalho de 225 litros nas adegas do Castello della Sala, onde começou a fermentação alcoólica, que durou cerca de 20 dias. O vinho levou então adiante a fermentação malolática, não mudando de recipientes até o momento do engarrafamento, para facilitar o prolongado contato com as suas próprias leveduras. O vinho permaneceu nas barricas de roble francês (Allier, Tronçais e Limousin) por seis meses ao todo, para em seguida ser harmonizado e engarrafado. Depois do

engarrafamento, processado no Castello, o Cervaro continuou nas adegas para um ulterior período de refinamento de mais ou menos 10 meses. CARACTERÍSTICAS DE DEGUSTAÇÃO:

Vinho cujo aroma chega ao

nariz apresentando uma ótima evolução, com tons minerais, de fruta e de pederneira. O paladar, envolvente e saboroso, é coerente com as sugestões aromáticas e “fecha” com um toque mineral típico do Cervaro. Vinho nem um pouco pesado, muito equilibrado e sutil.

ANTICA NAPA VALLEY CABERNET SAUVIGNON (Safra 2004)

CLASSIFICAÇÃO: UVA:

Atlas Peak District, Napa Valley.

100% Cabernet Sauvignon.

CLIMA:

Um período climático de calor uniforme, caracterizado

por uma floração precoce na primavera e algumas pontas de calor no fim do verão, criou as condições favoráveis a uma colheita quinze dias adiantada em relação à média. A vindima de 2004 aconteceu portanto de forma antecipada, entre 27 de setembro e 14 de outubro, e produziu cachos de Cabernet Sauvignon com grãos pequenos mas bem maduros. VINIFICAÇÃO:

Os cachos de Cabernet Sauvignon foram colhidos

nas frescas horas da manhã. Depois de desramadas e pisadas, as uvas foram colocadas no vinificador. Aqui o mosto deu início ao processo de fermentação, que durou 10 dias, numa temperatura máxima de 29°C. Em seguida o vinho foi transferido para barris novos de roble francês onde, até o mês de dezembro, aconteceu a fermentação malolática. O vinho permaneceu então nos barris por mais 12 meses, com trocas de envasamento ao ar livre quando necessário. Durante a primavera de 2006 o vinho foi

engarrafado, ficando então mais 12 meses nas garrafas para aprimorar-se antes de ser oferecido no mercado. CARACTERÍSTICAS DE DEGUSTAÇÃO:

O Cabernet Sauvignon 2004 é

rico e concentrado, com ecos de groselha, ameixa e amarena.1 O cheiro torrado do roble lhe confere sugestões de café. Um vinho equilibrado, com um longo final, taninos bem estruturados e um leve toque de mineralidade. Graças à elegância da fruta, rica e concentrada, é um vinho com excelente potencialidade de afinação.

  1 Variedade de cereja de sabor levemente amargo. (N. do T.)

MEZZO BRACCIO MONTELORO (Safra 2009)

CLASSIFICAÇÃO: UVA:

Toscana IGT.

100% Riesling.

CLIMA:

A estação começou com uma primavera um tanto

chuvosa, o que acarretou um leve atraso no ciclo vegetativo, sem porém interferir no seu regular desenvolvimento. O farto acúmulo de água no terreno foi, aliás, providencial para reconstituir as reservas hídricas mais profundas, que se mostraram preciosas no verão. Julho e agosto foram, de fato, meses bastante quentes e secos, com dias ensolarados e temperaturas elevadas. As primeiras chuvas em meados de setembro trouxeram refrigério, evitando fenômenos de estresse vegetativo das plantas. A fase de amadurecimento começou antes do dia dez de agosto e continuou de forma bastante rápida. A vindima começou nos últimos dez dias de setembro, com uma antecipação de 15 dias em relação a 2008. VINIFICAÇÃO:

A colheita foi feita à mão, selecionando as uvas

das vinhas mais ensolaradas. Com efeito, só um amadurecimento muito repentino das uvas consegue levar o Riesling ao desejado teor de açúcar sem comprometer a sua

acidez. Os cachos, depois de desramados, foram pisados para tirar deles, com a maior delicadeza possível, o sumo. A fermentação alcoólica se deu in purezza, isto é, com uma só qualidade de uva, em tinas de aço inoxidável, numa temperatura não superior a 16°C. A mescla das várias remessas de Riesling aconteceu em abril. Em seguida o vinho foi mantido a uma temperatura de 10°C, a fim de preservar a sua fragrância até a hora do engarrafamento, acontecido no começo do verão. CARACTERÍSTICAS DE DEGUSTAÇÃO:

Perfume sutil e bem definido

que se expressa numa boa complexidade construída sobre aromas de damasco cristalizado. No paladar, a parte que cheira a fruta mantém uma suave maturidade, apoiada no apropriado sabor e corroborada pela elegante acidez. No fim da degustação, sobram na boca claras notas de hidrocarbonado típicas da variedade.

Título original IL PROFUMO DEL CHIANTI Storia di una famiglia di vinattieri Copyright © 2011 by Arnoldo Mondadori Editore S.p.A., Milão Direitos desta edição reservados à EDITORA ROCCO LTDA. Av. Presidente Wilson, 231 – 8º andar 20030-021 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 3525-2000 – Fax: (21) 3525-2001 [email protected] www.rocco.com.br preparação de originais CARLOS NOUGUÉ Conversão de arquivo ePub EQUIRE TECH Coordenação Digital LÚCIA REIS Assistente de Produção Digital JOANA DE CONTI

CIP-Brasil. Catalogação na Fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ A634p Antinori, Piero O perfume do Chianti [recurso digital]: história de uma família/Piero Antinori; tradução de Mario Fondelli. – Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2013. recurso digital Tradução de: Il profumo del Chianti: storia di una famiglia di vinattieri ISBN 978-85-8122-162-5 (recurso eletrônico) 1. Ficção italiana. I. Fondelli, Mario. II. Título.

12-8380  

CDD: 853 CDU: 821.131-1-3

PIERO ANTINORI, no comando da firma familiar desde 1966, assina o Tignanello, o Solaia e o Cervaro della Sala – junto com colaboradores como Émile Peynaud, Giacomo Tachis e, agora, Renzo Cotarella –, e alguns dos vinhos mais premiados e inovadores do nosso tempo. Já tendo sido presidente da Federvini, chefia atualmente o Istituto del Vino Italiano di Qualità – Grandi Marchi, foi eleito Man of the Year pela revista Decanter Magazine, conseguiu o Distinguished Service Award da Wine Spectator, o Prêmio Leonardo Qualità Itália do presidente da República italiana e muitas outras indicações de distinção nacionais e internacionais.