O mundo em queda livre: Os Estados Unidos, o mercado livre e o naufrágio da economia mundial [1 ed.] 9788580862720, 8580862728

A crise financeira que nos últimos anos se alastrou pelo mundo a partir de Wall Street, e cujos efeitos se fizeram senti

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O mundo em queda livre: Os Estados Unidos, o mercado livre e o naufrágio da economia mundial [1 ed.]
 9788580862720, 8580862728

Table of contents :
Rosto
Sumário
Prefácio
Queda livre
Dificuldades de interpretação
Agradecimentos
1. A formação da crise
Resumo da história
A distribuição da culpa
Falhas do mercado
Quem poderia ter previsto o desastre?
2. A queda livre e suas consequências
O debate sobre a recuperao e a campanha presidencial
A evoluo da economia
Viso
A grande aposta: dinheiro e justiça
3. Uma resposta falha
O estmulo
O que foi feito e o que deveria ser feito
As consequências
O caminho adiante
4. A fraude das hipotecas
O sistema bancrio tradicional
Inovações distorcidas: uma infinidade de maus produtos
Alarmes ignorados
Securitização
A ressurreição do mercado de hipotecas
5. O grande roubo americano
Insuficiências do sistema americano
O resgate que não existiu
Os esforços iniciais para salvar um sistema financeiro falho
O banco central
Comentrios e concluses
6. A ganância triunfa sobre a prudência
A necessidade da regulação
Incentivos falhos
Falta de transparência
Riscos desenfreados
Grandes demais para falir
Inovações perigosas: derivativos
Empréstimos predatórios
Competio inadequada: supresso das inovações
Fazer funcionar as regulaes
Além das finanças e da regulação financeira
Inovações
7. A nova ordem capitalista
A necessidade de reestruturar a economia uma avaliação honesta das perspectivas
O papel do estado
Então, o que é que o governo deveria estar fazendo?
Mudanças no papel do governo
8. Da recuperação à prosperidade global
Uma reação global fracassada
Perda de confiança no capitalismo de estilo americano
Uma nova ordem econmica global: a china e os estados unidos
Um novo sistema global de reservas
Rumo a um novo multilateralismo
9. Reforma da ciência econômica
A guerra das ideias
As batalhas macroeconômicas
A batalha sobre a política monetária
A batalha das finanças
A batalha sobre a economia da inovação
10. Rumo a uma nova sociedade
Como a ciência econômica conforma a sociedade e os indivduos
Crise moral
O que você mede é o que você vale — e vice-versa
Comunidade e confiança
Comentários e conclusões
Posfácio
O rumo da economia
Sonhos perdidos
Problemas novos, receitas velhas
Perspectivas globais
Desequilíbrios globais
A reforma do setor financeiro
A história reescrita
Havia escolha
As perspectivas e o caminho pela frente
Notas
Créditos

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                          Aos meus alunos, com quem aprendi tanto, na esperança de que aprendam com nossos erros.  

Sumário

Prefácio Agradecimentos   1 . A formação da crise 2. A queda livre e suas consequências 3. Uma resposta falha 4. A fraude das hipotecas 5. O grande roubo americano 6 . A ganância triunfa sobre a prudência 7. A nova ordem capitalista 8. Da recuperação à prosperidade global 9. Reforma da ciência econômica 10. Rumo a uma nova sociedade   Posfácio Notas

Prefácio

Na grande recessão que começou em 2008, milhões de pessoas, nos Estados Unidos e em todo o mundo, perderam casas e empregos. Muitos mais sofreram a angústia de temer que lhes ocorresse o mesmo, e quase todos os que pouparam dinheiro para a aposentadoria ou para a educação dos lhos viram seus investimentos reduzir-se a apenas uma fração do seu valor. A crise, que teve início nos Estados Unidos, logo se tornou global: dezenas de milhões de pessoas pelo mundo afora perderam seus empregos — só na China foram 20 milhões — e dezenas de milhões caíram na pobreza.1 Não era isso o que se esperava. A economia moderna, com sua convicção no mercado livre e na globalização, prometera prosperidade para todos. A tão enaltecida Nova Economia — as fantásticas inovações que marcaram a segunda metade do século XX, o que inclui a desregulação e a engenharia nanceira — supostamente permitiria um melhor gerenciamento do risco, trazendo com isso o m das oscilações econômicas. Se por um lado a combinação da Nova Economia com a ciência econômica moderna não chegara a eliminar as utuações econômicas, pelo menos estas estavam sendo domadas. Ou assim nos diziam. A Grande Recessão — claramente a pior crise desde a Grande Depressão, 75 anos antes — pulverizou essas ilusões e nos forçou a repensar pontos de vista que acalentamos por muito tempo. Durante 25 anos, prevaleceram certas doutrinas do mercado livre: os mercados livres e desregulados são e cientes; os erros que possam cometer são rapidamente corrigidos por eles próprios. O melhor governo é o menor governo; e a regulação só faz

di cultar a inovação. Os Bancos Centrais devem ser independentes e concentrar-se apenas em manter baixa a in ação. Hoje, até Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve Board, o Banco Central americano, sumo pontí ce dessa ideologia durante o período em que esses pontos de vista predominavam, admite que havia uma falha nesse raciocínio. Mas sua con ssão chegou tarde demais para todos os que sofreram suas consequências. Este livro se ocupa de uma batalha de ideias, das ideias que levaram às políticas fracassadas que precipitaram a crise e das lições que devemos aprender com isso. Com o tempo, todas as crises passam. Mas nenhuma crise, e muito menos uma crise com essa intensidade, simplesmente se esgota sem deixar uma herança. A herança de 2008 nos dará novas perspectivas com relação ao longo con ito a respeito do tipo de sistema econômico que pode nos prestar os maiores benefícios. A batalha entre o capitalismo e o comunismo pode ter terminado, mas as economias de mercado apresentam grandes variações entre si e a concorrência entre elas continua viva. Creio que os mercados estão na essência de todas as economias bemsucedidas, mas também creio que não funcionam bem por sua própria conta. Nesse sentido, sigo a tradição do célebre economista britânico John Maynard Keynes, cuja in uência se faz sentir em todos os estudos sobre a economia moderna. Os governos têm um papel a desempenhar, papel que não se limita apenas aos esforços para salvar a economia quando o mercado fracassa, e a impor-lhe regulações para prevenir o tipo de fracasso que acabamos de experimentar. As economias dos países requerem um equilíbrio entre o papel dos mercados e o dos governos — com contribuições importantes por parte de instituições não governamentais e não mercadológicas. Nos últimos 25 anos, os Estados Unidos perderam esse equilíbrio e exportaram essa perspectiva desequilibrada aos países de todo o mundo. Este livro explica como essas perspectivas falhas acarretaram a crise, turvaram a visão dos principais dirigentes privados e públicos, levando-os a

não perceber os problemas que já se multiplicavam, e contribuíram para a incapacidade de controlar efetivamente a situação. A duração da crise dependerá das políticas que adotemos. Com certeza, os erros já cometidos tornarão a crise mais longa e profunda do que poderia ser. Mas a gestão da crise é apenas a minha primeira preocupação. Também me preocupa o mundo que surgirá a partir da crise. Não voltaremos — na verdade não podemos voltar — ao mundo como era antes. Antes da crise, os Estados Unidos e o mundo em geral enfrentavam muitos problemas, entre os quais a adaptação à mudança do clima. O ritmo da globalização estava forçando rápidas alterações nas estruturas econômicas, levando ao limite a capacidade de resistência de muitas economias. Esses desa os persistirão, em forma ampli cada, depois da crise, mas os recursos de que dispomos para enfrentá-los serão consideravelmente menores. Espero que a crise resulte em mudanças no domínio das políticas e no mundo das ideias. Se tomarmos as decisões corretas, e não apenas as que pareçam mais fáceis do ponto de vista político ou social, conseguiremos tornar menos provável a ocorrência de uma nova crise, e talvez até logremos desenvolver os tipos de inovações que efetivamente sirvam para melhorar as condições de vida dos povos de todo o mundo. Se tomarmos as decisões erradas, teremos uma sociedade mais dividida e uma economia mais vulnerável a uma outra crise e menos preparada para fazer frente aos desa os do século XXI. Um dos propósitos deste livro é nos ajudar a compreender melhor a ordem global pós-crise que poderá emergir e as consequências que as ações que hoje empreendemos terão sobre nosso futuro — para o bem ou para o mal.     Seria possível pensar que, com a crise de 2008, o debate sobre o fundamentalismo do mercado — a noção de que os mercados desregulados podem, por si sós, assegurar a prosperidade e o crescimento econômico — esteja encerrado. Seria possível pensar que ninguém nunca mais — ou pelo

menos até que a memória dessa crise se tenha perdido no passado remoto — venha a argumentar que os mercados se autorregulam e que podemos con ar em que o interesse próprio dos seus integrantes seja su ciente para que tudo funcione bem. Os que se deram bem com o fundamentalismo do mercado oferecem uma interpretação diferente. Alguns dizem que a nossa economia sofreu apenas um “acidente” e que os acidentes são inevitáveis. Ninguém chega a propor que deixemos de usar os automóveis porque eles às vezes se chocam. Os que defendem essa posição querem que regressemos ao mundo de antes de 2008 o mais depressa possível. Os banqueiros não zeram nada de errado, dizem eles.2 Vamos dar aos bancos o dinheiro que eles pedem, dar um jeitinho nas regulações, fazer umas palestras duras para que os reguladores nunca mais permitam que pessoas como Bernie Madoff possam praticar esse tipo de fraude, acrescentar alguns cursos sobre ética nas faculdades de economia e todos sairemos bem. Este livro tenta provar que os problemas são mais arraigados. Nos últimos 25 anos, nosso sistema nanceiro, esse aparato supostamente autorregulado, tem sido salvo pelo governo repetidas vezes. E o fato de que o sistema sobreviveu nos fez aprender a lição errada — a de que ele funcionava bem por conta própria. Na verdade, nosso sistema econômico já não estava funcionando bem para a maioria dos americanos antes da crise. Alguns estavam se saindo bem, mas não o americano médio. Um economista observa as crises do mesmo modo como um médico observa as patologias: em ambos os casos, aprende-se muito sobre o funcionamento normal das coisas examinando o que acontece quando estas não estão funcionando normalmente. Ao examinar a crise de 2008, senti que tinha uma clara vantagem sobre outros observadores. Em certo sentido, eu era um “veterano das crises”, um crisologista. Essa não foi a primeira crise importante dos anos recentes. Nos países em desenvolvimento, as crises têm ocorrido com regularidade alarmante: segundo uma estimativa, foram 124 entre 1970 e 2007.3 Eu era o economista-chefe do Banco Mundial na época da crise nanceira global de 1997-8. Acompanhei a crise

que começou na Tailândia e se irradiou a outros países da Ásia Oriental, à América Latina e à Rússia. Era um exemplo clássico de contágio — quando um problema em uma área do sistema econômico global se estende a outras áreas. As consequências nais de uma crise econômica podem levar anos para manifestar-se. No caso da Argentina, a crise começou em 1995, como consequência da crise mexicana, e foi exacerbada pela crise da Ásia Oriental de 1997 e da crise brasileira de 1998, mas o verdadeiro colapso só ocorreu no nal de 2001. Os economistas podem orgulhar-se dos progressos da ciência econômica nas sete décadas posteriores à Grande Depressão, mas isso não signi ca que haja unanimidade a respeito de como as crises devem ser combatidas. Em 1997, vi estupefato como o Tesouro dos Estados Unidos e o Fundo Monetário Internacional (fmi) responderam à crise da Ásia Oriental propondo um conjunto de políticas que remetiam às decisões equivocadas do tempo do governo de Herbert Hoover, durante a Grande Depressão, e que não tinham a menor condição de funcionar. Houve então um sentimento de déjà vu quando observamos o mundo resvalar novamente para a crise em 2007. As similaridades entre o que eu vi nessa ocasião e o que vira dez anos antes eram assustadoras. Para mencionar apenas uma, a negação pública da crise quando ela começa: dez anos antes, o Tesouro dos Estados Unidos e o fmi negaram inicialmente que houvesse uma recessão/depressão na Ásia Oriental. Larry Summers, então subsecretário do Tesouro e agora principal conselheiro econômico do presidente Obama, entrou em órbita quando Jean-Michel Severino, então vice-presidente do Banco Mundial para a Ásia, usou as palavras “recessão” e “depressão” para descrever o que estava acontecendo. Mas como descrever de outro modo uma crise que levou o desemprego ao nível de 40% em Java, a principal ilha da Indonésia? Assim também, em 2008, o governo Bush inicialmente negou a existência de qualquer problema mais sério. O presidente sugeriu que tínhamos simplesmente construído algumas casas a mais.4 Nos primeiros meses da crise, o Tesouro e o Banco Central (Federal Reserve, ou Fed) dos

Estados Unidos dirigiam a crise como motoristas bêbados, mudando de rumo a toda hora, resgatando alguns bancos e deixando que outros afundassem. Era impossível discernir os princípios em que se baseavam as suas decisões. Os funcionários do governo Bush alegavam que estavam sendo pragmáticos, e é justo reconhecer que estavam andando em território desconhecido. À medida que as nuvens da recessão começavam a se agigantar sobre a economia dos Estados Unidos em 2007 e no início de 2008, os economistas passaram a ser consultados sobre as possibilidades de uma nova depressão, ou de uma recessão profunda. A maior parte deles respondia por instinto: não! Os progressos da ciência econômica — inclusive os conhecimentos relativos à gestão da economia global — signi cavam, segundo muitos peritos, que uma catástrofe assim era inconcebível. No entanto, dez anos antes, quando ocorreu a crise da Ásia Oriental, tínhamos fracassado; e tínhamos fracassado redondamente. Teorias econômicas incorretas levam, como esperado, a políticas econômicas incorretas, mas os que as defendiam pensavam, é claro, que dariam certo. Mas estavam errados. Políticas errôneas não só provocaram a crise da Ásia Oriental na década passada, mas também exacerbaram sua intensidade e duração e deixaram um legado de economias enfraquecidas e montanhas de dívidas. O fracasso ocorrido há dez anos também foi, em parte, o fracasso da política global. A crise golpeou os países em desenvolvimento, muitas vezes considerados a “periferia” do sistema econômico global. Os gestores do sistema econômico global não estavam muito preocupados em proteger as vidas e as condições de vida dos habitantes das nações atingidas, mas sim em preservar os bancos ocidentais que haviam emprestado dinheiro a esses países. Hoje, quando os Estados Unidos e o resto do mundo lutam para restabelecer taxas sólidas de crescimento em suas economias, voltamos a observar o fracasso da política e das políticas especí cas.    

queda livre

  Quando a economia mundial entrou em queda livre em 2008, o mesmo aconteceu com as nossas convicções. Conceitos estabelecidos há muito tempo sobre a economia e sobre os Estados Unidos e seus heróis também entraram em queda livre. Logo após a grande crise nanceira dos anos 1990, em 15 de fevereiro de 1999, a revista Time publicou na capa uma foto do presidente do Banco Central, Alan Greenspan, e do secretário do Tesouro, Robert Rubin, dos Estados Unidos, aos quais se creditava havia muito tempo o forte crescimento daquela década, junto com seu pupilo Larry Summers. Eles receberam o título de “Comitê de Salvação do Mundo” e as pessoas comuns os viam como verdadeiras divindades. Em 2000, Bob Woodward, o famoso jornalista investigativo, escreveu uma hagiogra a sobre Greenspan intitulada Maestro.5 Tendo visto bem de perto o manejo da crise da Ásia Oriental, eu não estava tão impressionado quanto o Time e Bob Woodward. Para mim e para a maior parte dos habitantes da Ásia Oriental, as políticas a eles impostas pelo fmi e pelo Tesouro dos Estados Unidos, sob o comando do “Comitê de Salvação do Mundo”, tornaram a crise muito pior do que poderia ter sido. Essas políticas revelavam falta de compreensão a respeito dos fundamentos da macroeconomia moderna, que requer políticas expansionistas na área monetária e na scal diante de uma queda na atividade econômica.6 Como sociedade, acabamos perdendo o respeito pelos nossos tradicionais gurus da economia. Nos anos recentes, já nos voltávamos para Wall Street como um todo — e não só para os semideuses como Rubin e Greenspan — para aconselhar-nos sobre como administrar o complexo sistema da nossa economia. E agora — a quem havemos de recorrer? Na maioria dos casos, os economistas tampouco puderam ajudar. E muitos proporcionaram a blindagem intelectual que os dirigentes políticos invocaram no movimento a favor da desregulação. Infelizmente, a atenção com frequência se desvia das batalhas das ideias para concentrar-se nos papéis dos indivíduos — os vilões que criaram a

crise e os heróis que nos salvaram. Outros escreverão (e na verdade já escreveram) livros que acusam este ou aquele político, este ou aquele executivo das nanças que contribuíram para que se instalasse a crise atual. O objetivo deste livro é outro. O ponto de vista aqui exposto é o de que, essencialmente, todas as políticas cruciais, como as relativas à desregulação, foram consequências de “forças” políticas e econômicas — interesses, ideias e ideologias — que vão além das individualidades. Quando o presidente Ronald Reagan indicou Alan Greenspan como presidente do Banco Central americano em 1987, ele procurava alguém comprometido com a desregulação. Paul Volcker, que fora o presidente do Fed anteriormente, recebeu notas altas em sua gestão por haver rebaixado a taxa de in ação dos Estados Unidos de 11,3% em 1979 para 3,6% em 1987.7 Normalmente, esse feito teria levado a uma recondução automática ao cargo. Mas Volcker sabia da importância das regulações e Reagan desejava alguém que as retirasse do programa. Se Greenspan não estivesse disponível para o lugar, haveria muitos outros capazes e desejosos de assumir a missão desreguladora. O problema não era Greenspan, e sim a ideologia da desregulação, que tomara o poder. Embora este livro se re ra sobretudo aos credos econômicos e à maneira como afetam a política, para observarmos os vínculos entre a crise e esses credos é necessário esclarecer os fatos ocorridos. O livro não é um romance policial, mas há elementos importantes na sua trama que se assemelham aos de um livro de suspense e mistério: como a maior economia do mundo entrou em queda livre? Que políticas e que fatos desencadearam a grande contração econômica de 2008? Se não chegarmos a um acordo quanto às respostas a essas perguntas, não chegaremos a um acordo quanto ao que fazer, seja para sair da crise, seja para evitar uma outra. Analisar o papel relativo do mau comportamento dos bancos, as falhas dos reguladores ou a frouxidão da política monetária do Fed não é fácil, mas eu explicarei por que coloco o ônus da responsabilidade sobre os mercados nanceiros e suas instituições.

Encontrar as causas básicas é como descascar uma cebola. Cada explicação dá margem a novas perguntas em um nível mais profundo: incentivos perversos levaram os banqueiros a comportar-se de maneira míope e arriscada; mas por que existiam esses incentivos perversos? Há uma resposta imediata: problemas da governança corporativa; a maneira pela qual os incentivos e os pagamentos são determinados. Mas por que o mercado não impôs disciplina à má governança corporativa e aos incentivos mal estruturados? A seleção natural deve proporcionar a sobrevivência dos mais aptos; as rmas com melhor governança e as estruturas de incentivo mais bem concebidas para o êxito a longo prazo deveriam ser as triunfantes. A teoria é uma das baixas dessa crise. Se pararmos para pensar nos problemas que essa crise revelou no setor nanceiro, torna-se óbvio que esses problemas são mais gerais e que ocorrem de maneira similar em outras áreas. Chama a atenção também o fato de que, quando se examinam as questões com um pouco mais de profundidade — além dos novos produtos nanceiros, das hipotecas subprime e dos instrumentos colaterais de débito —, a crise parece bem similar a muitas antes já ocorridas, nos Estados Unidos assim como no exterior. Havia uma bolha e ela estourou, trazendo a devastação no seu rastro. A bolha era alimentada por maus empréstimos bancários, que usavam como colaterais ativos cujo valor havia sido in acionado pela própria bolha. As inovações permitiram aos bancos ocultar grande parte dos maus empréstimos e retirá-los dos seus balanços, para aumentar sua alavancagem efetiva — o que tornou a bolha bem maior e o caos provocado pelo seu estouro, bem pior. Os novos instrumentos (seguros de crédito), supostamente concebidos para administrar o risco, mas na realidade engendrados para iludir os reguladores, eram tão complexos que, na verdade, ampli cavam o risco. A grande pergunta, que ocupa grande parte deste livro, é: Como e por que deixamos que isso acontecesse de novo, e em tal escala? Encontrar as explicações mais profundas é uma tarefa difícil, mas algumas explicações mais simplórias podem ser rejeitadas sem di culdade.

Como disse, os que trabalhavam em Wall Street preferiam acreditar que, como indivíduos, não haviam feito nada de errado, e preferiam acreditar também que o próprio sistema no fundo era correto. Eles acreditavam ser as infelizes vítimas de uma tempestade que ocorre uma vez a cada mil anos. Mas a crise não foi algo que simplesmente aconteceu nos mercados nanceiros. Foi criada pela ação humana; foi algo que Wall Street fez a si mesma e ao resto da nossa sociedade. Para os que não aceitam o argumento de que ela simplesmente “aconteceu”, os advogados de Wall Street têm outras explicações. Foi o governo que nos levou a gerá-la, encorajando a expansão da propriedade imobiliária e os empréstimos aos pobres. Ou então: o governo deveria ternos impedido de fazê-lo. A culpa é dos reguladores. Há um toque particularmente indecoroso nessas tentativas do sistema nanceiro norteamericano de passar adiante a culpa pela crise, e os capítulos posteriores explicarão por que esses argumentos não são convincentes. Os que creem no sistema articulam também uma terceira linha de defesa, a mesma utilizada alguns anos antes por ocasião dos escândalos da Enron e da WorldCom. Todo sistema tem as suas maçãs podres e, por alguma razão, o nosso “sistema” — o que inclui os reguladores e os investidores — não fez o trabalho necessário para nos proteger contra elas. Aos Ken Lays (o principal executivo da Enron) e Bernie Ebbers (o principal executivo da WorldCom) dos primeiros anos da década, acrescentamos agora Bernie Madoff e uma coleção de outros nomes (como Allen Stanford e Raj Rajaratnam) que agora respondem a processos. Os defensores do setor nanceiro não quiseram ver que a cesta das maçãs podres era a deles.8 Sempre que se veem problemas tão alastrados e persistentes como os que infestaram o sistema nanceiro dos Estados Unidos, há apenas uma conclusão a que se pode chegar: os problemas são sistêmicos. As altas recompensas de Wall Street e o foco no lucro como objetivo único podem atrair uma proporção maior de pessoas eticamente vacilantes, mas a universalidade do problema sugere a existência de falhas fundamentais no sistema.

    dificuldades de interpretação

  No reino das políticas, a determinação do êxito ou do fracasso apresenta um desa o ainda mais difícil que o da atribuição do crédito (ou da culpa). Mas o que são o êxito e o fracasso? Para os observadores dos Estados Unidos e da Europa, os resgates da Ásia Oriental em 1997 foram um êxito porque os Estados Unidos e a Europa não sofreram consequências. Para os habitantes da área, que viram as suas economias devastadas, os seus sonhos desfeitos, as suas companhias falidas e os seus países afundados em dívidas bilionárias, os resgates foram um grande fracasso. Para os críticos, as políticas do fmi e do Tesouro americano pioraram as coisas. Para os que as apoiaram, elas evitaram o desastre. Essa é a questão e estas são as perguntas: como teriam evoluído as coisas se outras políticas tivessem sido adotadas? As ações do fmi e do Tesouro americano prolongaram e acentuaram a derrocada, ou a abreviaram e suavizaram? Para mim, a resposta é clara: as altas taxas de juros e os cortes de gastos que o fmi e o Tesouro impuseram — exatamente o contrário das políticas seguidas pelos Estados Unidos e pela Europa na crise atual — pioraram as coisas.9 Os países da Ásia Oriental acabaram recuperando-se, mas isso ocorreu apesar dessas políticas e não por causa delas. Do mesmo modo, muitos dos que observaram a longa expansão da economia mundial durante a era da desregulação concluíram que os mercados que atuam em liberdade funcionam bem — a desregulação propiciara um crescimento alto e que seria sustentável. A realidade foi bem diferente. O crescimento estava baseado em uma montanha de dívidas; seus alicerces eram frágeis, para dizer o mínimo. Os bancos ocidentais foram reiteradamente salvos da loucura das suas políticas de empréstimos através de resgates — não só na Tailândia, na Coreia e na Indonésia, mas também no México, Brasil, Argentina, Rússia... a lista é quase interminável.10 Depois de cada episódio, o mundo retomava a sua marcha

da mesma maneira, e muitos concluíam então que os mercados estavam funcionando bem por conta própria. Mas era o governo que reiteradamente salvava os mercados dos erros que eles próprios cometiam. Os que achavam que estava tudo bem com a economia de mercado zeram a inferência errada, mas o erro só se tornou “óbvio” quando uma crise tão grande que não podia ser ignorada ocorreu nos Estados Unidos. Esses debates sobre os efeitos de certas políticas ajudam a compreender como as más ideias logram persistir por tanto tempo. Para mim, a Grande Recessão de 2008 parecia ser a consequência inevitável das políticas praticadas nos anos precedentes. É evidente que essas políticas foram con guradas por interesses especiais dos mercados nanceiros. O papel da ciência econômica é mais complexo. Na longa lista dos responsáveis pela crise eu incluiria a classe dos economistas, por ter fornecido aos interesses especiais os argumentos em favor da e ciência e da capacidade dos mercados de se autorregular — muito embora os progressos da ciência econômica nas duas décadas anteriores tivessem revelado que as condições em que essa teoria se mostra verdadeira são limitadas. Em consequência da crise, a ciência econômica, tanto na teoria quanto nas políticas que recomenda, deverá certamente sofrer mudanças tão intensas quanto a própria economia; e no penúltimo capítulo discutirei algumas dessas mudanças. É comum me perguntarem como foi que a classe dos economistas errou tanto. Sempre existem os economistas “pessimistas”, os que sempre veem problemas no futuro e previram nove recessões para as cinco últimas que ocorreram. Mas havia um pequeno grupo de economistas que não só eram pessimistas, mas também compartilhavam pontos de vista a respeito do porquê de a economia se defrontar com esses problemas inevitáveis. Quando nos reuníamos em diversos encontros anuais, como o Fórum Econômico Mundial de Davos, no inverno europeu, comparávamos nossos diagnósticos e tentávamos explicar por que o dia da verdade, que cada um de nós via se aproximar com tanta clareza, ainda não havia chegado.

Nós, os economistas, somos bons para identi car forças subjacentes; mas não para fazer previsões temporais. No encontro de Davos de 2007, eu me vi em uma posição embaraçosa. Nos encontros anuais anteriores, eu previra problemas ameaçadores com crescente intensidade. Contudo, a expansão econômica global prosseguia no seu ritmo normal. A taxa de crescimento global de 7% praticamente não tinha precedentes e trazia boas notícias até para a África e a América Latina. Eu explicava para as plateias que isso podia signi car que as minhas teorias básicas estavam erradas, ou que a crise, quando chegasse, seria mais difícil e duradoura. Obviamente, escolhi a segunda interpretação.     A crise atual pôs a nu a existência de falhas essenciais no sistema capitalista, ou pelo menos na versão peculiar do capitalismo que surgiu na última parte do século XX nos Estados Unidos (por vezes chamada de capitalismo de estilo americano). Não se trata apenas de falhas individuais ou de erros especí cos. Tampouco é o caso de corrigir certos problemas menores ou de ajustar algumas políticas. Tem sido difícil identi car essas falhas porque nós, americanos, desejávamos muito acreditar no nosso sistema econômico. “Nosso time” tivera uma atuação muito superior à do nosso arqui-inimigo, o bloco soviético. A pujança do nosso sistema possibilitara a vitória sobre as de ciências do sistema deles. Torcemos pelo nosso time em todos os cenários: Estados Unidos versus Europa, Estados Unidos versus Japão. Quando o secretário da Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, denegriu a “Velha Europa” por opor-se à nossa guerra no Iraque, a contenda que ele tinha em mente — entre o esclerótico modelo social europeu e o dinamismo dos Estados Unidos — era clara. Na década de 1980, os êxitos do Japão nos trouxeram algumas dúvidas. Nosso sistema seria de fato melhor que o do “Japão, Inc.”? Essa ansiedade foi uma das razões pelas quais alguns sentiram certo alívio com a derrocada de 1997 na Ásia Oriental, uma vez que muitos países da região haviam adotado

aspectos do modelo japonês.11 Não tripudiamos em público diante dos problemas que duraram toda a década de 1990 no Japão, mas claramente aconselhamos os japoneses a adotar o nosso estilo de capitalismo. Os números reforçavam nossas ilusões. A nal de contas, nossa economia crescia a taxas muito maiores que as de praticamente todos os demais países, exceto a China — e levando em conta os problemas que pensávamos ver no sistema bancário chinês, o colapso daquele país era apenas uma questão de tempo.12 Ou assim pensávamos. Não foi a primeira vez que os julgamentos (inclusive os frágeis julgamentos de Wall Street) foram construídos com base em uma leitura equivocada dos números. Nos anos 1990, a Argentina era elogiada como o grande êxito da América Latina — o triunfo do “fundamentalismo do mercado” no Sul. As estatísticas de crescimento pareceram boas durante alguns anos. Mas, como nos Estados Unidos, o crescimento estava baseado em uma montanha de dívidas que fomentava níveis insustentáveis de consumo. Por m, em dezembro de 2001, as dívidas se tornaram avassaladoras e a economia entrou em colapso.13 Mesmo agora, há muitos que negam a magnitude dos problemas que afetam nossa economia de mercado. Uma vez superadas nossas di culdades atuais — e toda recessão tem m —, eles esperam a retomada de um crescimento vigoroso. Mas um exame mais aprofundado da economia dos Estados Unidos sugere que existem alguns problemas mais sérios: somos uma sociedade em que mesmo os que estão nos níveis médios viram seus rendimentos estagnar-se por toda uma década; uma sociedade marcada por uma crescente desigualdade; um país em que, apesar de algumas notáveis exceções, a possibilidade estatística de que um americano pobre chegue ao topo da escala é menor que na “Velha Europa”,14 e em que o desempenho médio nos testes padronizados de educação é, na melhor das hipóteses, medíocre.15 Inegavelmente, vários dos setores econômicos essenciais nos Estados Unidos, além do setor nanceiro, enfrentam problemas, inclusive a saúde, a energia e a indústria.

Mas os problemas que têm de ser enfrentados não ocorrem apenas no interior das fronteiras dos Estados Unidos. Os desequilíbrios do comércio internacional que marcaram o mundo antes da crise não desaparecerão por si sós. Em uma economia globalizada, os problemas dos Estados Unidos não podem ser plenamente resolvidos sem que se adote uma visão mais ampla. É a demanda global que determinará o crescimento global, e será difícil que os Estados Unidos tenham um crescimento vigoroso — em vez de cair em uma estagnação ao estilo japonês — a menos que a economia mundial esteja forte. E pode ser difícil ter uma economia global forte enquanto uma parte do mundo continuar a produzir muito mais do que consome e outra parte — que deveria estar poupando para atender às necessidades de uma população que envelhece — continuar a consumir muito mais do que produz.     Quando comecei a escrever este livro, havia um espírito de esperança: o novo presidente americano, Barack Obama, corrigiria as falhas políticas do governo Bush e nós avançaríamos, não só com uma recuperação imediata, mas também enfrentando os desa os de longo prazo. O dé cit scal do país seria temporariamente mais alto, mas o dinheiro seria bem gasto: ajudando as famílias a conservar suas casas, apoiando os investimentos que aumentariam a produtividade a longo prazo, preservando o meio ambiente e, em troca de qualquer dinheiro que tivesse sido dado aos bancos, transferindo para o público a parte dos lucros futuros, para compensar os riscos que sofremos. Foi doloroso escrever este livro: só parte das minhas expectativas foi satisfeita. Evidentemente, devemos celebrar o fato de ter sido resgatados da beira do precipício tão visível em 2008. Mas certos presentes dados aos bancos foram tão ruins quanto no tempo de Bush, e a ajuda aos que haviam comprado casas foi menor do que eu esperava. O sistema nanceiro que vai tomando forma é menos competitivo, e os grandes bancos, grandes demais para poder falir, constituem um problema ainda maior. O dinheiro

que deveria ter sido empregado na reconstrução da economia e na criação de empresas novas e dinâmicas foi gasto para salvar empresas velhas e falidas. Outros aspectos das medidas de política econômica de Obama foram claramente acertados. Mas eu não poderia criticar Bush por certas políticas e calar-me quando essas mesmas políticas são praticadas por seu sucessor. Também foi difícil escrever este livro por outra razão. Eu critico — alguns dizem que eu denigro — os bancos, os banqueiros e outros corretores do mercado nanceiro. Tenho muitíssimos amigos no setor — homens e mulheres inteligentes e dedicados, bons cidadãos, que pensam escrupulosamente sobre como contribuir para uma sociedade que lhes deu recompensas tão amplas. Eles não só o fazem com generosidade como também trabalham com a nco pelas causas em que acreditam. Eles não se reconheceriam nas caricaturas que aqui esboço e eu tampouco os reconheço nelas. Com efeito, muitos dos que trabalham no setor sentem-se vítimas, tanto quanto qualquer outro. Eles perderam boa parte das poupanças de toda a vida. A maior parte dos economistas que tentaram prever o rumo da economia, os negociadores que tentaram tornar nosso setor corporativo mais e ciente e os analistas que tentaram usar as técnicas mais so sticadas para prover lucratividade e propiciar aos investidores a maior recompensa possível não se envolveram na malversação que arrasou a reputação do setor nanceiro. Tal como parece acontecer tantas vezes na nossa sociedade moderna e complexa, “às vezes dá errado”. Há resultados ruins que não são culpa de nenhum indivíduo. Mas esta crise foi o resultado de ações, decisões e argumentos do próprio setor nanceiro. O sistema que fracassou tão agrantemente não foi obra do acaso. Foi criado. Na verdade, muita gente trabalhou duro — e investiu muito dinheiro — para que ele tomasse a forma que tomou. Os que tiveram um papel na criação do sistema e na sua gerência, inclusive os que foram tão bem recompensados por ele, têm de ser responsabilizados.  

  Se formos capazes de compreender o que produziu a crise de 2008 e por que algumas das políticas corretivas iniciais fracassaram tão redondamente, poderemos fazer que as crises vindouras sejam menos frequentes, mais curtas e com menos vítimas inocentes. Poderemos mesmo encontrar o caminho do crescimento estável com base em alicerces sólidos e não o do crescimento efêmero, baseado na dívida, que tivemos nos anos recentes. Poderemos até assegurar que os frutos desse crescimento sejam repartidos pela vasta maioria dos cidadãos. A memória é curta. Em trinta anos uma nova geração aparecerá, con ante em que não sucumbirá diante dos problemas do passado. A criatividade humana não tem limite. Seja qual for o sistema que adotemos, haverá aqueles que encontrarão a maneira de contornar as regras e regulações que criarmos para nos dar proteção. O mundo também mudará. E as regulações postas em prática hoje serão imperfeitas para a economia de meados do século XXI. Mas no rastro da Grande Depressão, conseguimos criar uma estrutura regulatória que nos serviu bem durante meio século, promovendo o crescimento e a estabilidade. Este livro foi escrito na esperança de que possamos voltar a fazê-lo.  

Agradecimentos

Nos últimos anos, me vi absorvido pela crise, observando como era gerada e depois mal gerida. Milhares de conversas com centenas de pessoas em países de todos os continentes me ajudaram a compor minhas opiniões e meu entendimento do que vinha acontecendo. A lista de todos os que contribuíram para isso daria um livro do tamanho deste livro. Ao mencionar alguns, não desejo menosprezar outros, e os mencionados não devem ser responsabilizados pelas conclusões a que eu chego, pois suas próprias conclusões podem ser bem diferentes. Nos anos que antecederam a crise, minhas conversas com Steven Roach, Nouriel Roubini, George Soros, Robert Shiller, Paul Krugman e Rob Wescott — todos os quais compartilhavam meu pessimismo com relação ao que estava por vir — foram valiosíssimas. Longas jornadas foram dedicadas a discussões sobre a crise econômica global e o que se devia fazer a respeito dela com membros da comissão de peritos do presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre Reformas do Sistema Internacional Monetário e Financeiro, dirigido por mim.1 Expresso meu profundo agradecimento pelas observações que zeram e pela compreensão que me propiciaram a respeito de como a crise vinha afetando todas as partes do mundo. Não só me senti na posição particularmente feliz de poder observar em primeira mão como a crise afetava os países de todos os pontos do mundo, como também de discutir seus impactos com presidentes, primeirosministros, ministros da Economia e das Finanças e/ou presidentes de Bancos Centrais e seus assessores econômicos de muitos países, grandes e pequenos, desenvolvidos e em desenvolvimento (inclusive do Reino Unido,

Estados Unidos, Islândia, França, Alemanha, África do Sul, Portugal, Espanha, Austrália, Índia, China, Argentina, Malásia, Tailândia, Grécia, Itália, Nigéria, Tanzânia e Equador). Tenho escrito sobre o tema da regulação nanceira desde a derrocada da poupança e do crédito nos Estados Unidos, no nal da década de 1980. A in uência dos meus coautores nessa área, tanto na Universidade Stanford quanto no Banco Mundial, é visível: Kevin Mudock, omas Hellmann, Gerry Caprio (atualmente no Williams College), Marilou Uy e Patrick Honohan (hoje presidente do Banco Central da Irlanda). Reconheço minha dívida com Michael Greenberger, agora professor de Direito na Universidade de Maryland e diretor da Divisão de Comércio e Mercado da Commodity Futures Trading Commission durante o período crítico em que se fez uma tentativa de regular derivativos, e com Randall Dodd, hoje no fmi, mas antes no Fórum de Política Financeira e Centro de Estudos sobre Derivativos, por aprimorar meu conhecimento a respeito do que aconteceu no mercado de derivativos. Menciono alguns outros que me ajudaram a formar minhas opiniões: Andrew Sheng, antes no Banco Mundial e ex-chefe da Hong Kong Securities and Futures Commission; Dr. Y. V. Reddy, ex-governador do Reserve Bank of India; Arthur Levitt, expresidente da Securities and Exchange Commission dos Estados Unidos; Leif Pagrotsky, que teve papel fundamental na resolução da crise bancária da Suécia; o presidente Zeti Aziz, do Banco Central da Malásia, que teve papel fundamental na administração da economia da Malásia durante sua crise nanceira; Howard Davies, ex-chefe da Financial Services Administration do Reino Unido e agora na London School of Economics; Jamie Galbraith, da Universidade do Texas em Austin; Richard Parker e Kenneth Rogoff, de Harvard; Andrew Crockett e Bill White, ambos antes no Bank for International Settlements; Mar Gudmundsson, que, como economista-chefe do Banco Central da Islândia, do qual agora é presidente, me levou pela primeira vez ao seu país; Luigi Zingales, da Universidade de Chicago; Robert Skidelsky, da Universidade de Warwick; Yu Yongding, do Institute of World Economics and Politics de Pequim; David Moss, do

Projeto Tobin e da Harvard Law School; Elizabeth Warren e David Kennedy, também da Harvard Law School; Damon Silver, diretor de políticas da a -cio; Ngaire Woods, de Oxford; José Antonio Ocampo, Perry Merhing, Stephany Griffith-Jones, Patrick Bolton e Charles Calomiris, todos da Universidade Columbia; e Keith Leffler, da Universidade de Washington. Por sorte há alguns jornalistas excelentes e corajosos que ajudaram a obter e divulgar informações sobre o que sucedia no setor nanceiro. Bene ciei-me particularmente dos escritos de Gretchen Morgenson, Lloyd Norris, Martin Wolf, Joe Nocera, David Wessel, Gillian Tett e Mark Pittman, assim como de prolongadas conversas que mantive com alguns deles. Ao lado de todas as minhas críticas ao Congresso, parabéns devem ser dados à deputada Carolyn Maloney, copresidente do Comitê Econômico Conjunto, pelos esforços realizados e pelas discussões que tivemos sobre muitas das questões aqui consideradas. Qualquer lei que venha a ser aprovada terá o selo do deputado Barney Frank, presidente da Comissão de Finanças da Câmara, a quem agradeço pelas múltiplas conversas que tive com ele e com seu principal assessor econômico, David Smith, assim como pelas oportunidades de prestar depoimentos perante a Comissão. Apesar das críticas que faço neste livro a certos enfoques do governo Obama, reconheço minha dívida com sua equipe econômica (inclusive a Timothy Geithner, Larry Summers, Jason Furman, Austan Goolsbee e Peter Orzag) pelas perspectivas que ofereceram e por me ajudar a compreender sua estratégia. Quero agradecer também a Dominique Stauss-Khan, o diretor executivo do fmi, não só pelas numerosas conversas que tivemos ao longo dos anos, mas pelos esforços que fez com o m de reformular aquela instituição. Duas pessoas merecem menções especiais por sua in uência na formação das minhas ideias nesse campo: Rob Johnson, ex-aluno de Princeton, trouxe perspectivas distintas para crise, fruto de sua experiência nos setores público e privado, como economista-chefe da Comissão Bancária do Senado

quando dos problemas do setor de poupança e crédito e também por seu trabalho em Wall Street. E Bruce Greenwald, meu coautor por 25 anos e professor de nanças na Universidade Columbia, que, como sempre, me proporcionou insights criativos em todos os temas em que toco neste livro — do panorama bancário às reservas globais e à história da Grande Depressão. Versões anteriores e certos trechos deste livro foram publicados em Vanity Fair, e agradeço especialmente ao meu editor naquela revista, Cullen Murphy, pelo papel que desempenhou na redação e edição desses artigos (“Wall Street’s toxic message”, Vanity Fair, julho de 2009, e “Reversal of fortune”, Vanity Fair, outubro de 2008). Na produção do livro, tive a particular felicidade de contar com a cooperação de uma equipe de assistentes de pesquisa de primeira linha — Jonathan Dingel, Izzet Yildiz, Sebastian Rondeau e Dan Choate; e de assistentes de edição — Deidre Sheehan, Sheri Prasso e Jesse Berlin. Jill Blackford não só supervisou todo o processo como também prestou valiosas contribuições em todos os estágios, da pesquisa à edição nal. Mais uma vez tive o prazer de trabalhar com W. W. Norton e Penguin: recebi valiosíssimos aportes de edição e comentários detalhados de Brendan Curry, Drake McFeely e Stuart Proffitt. Mary Babcock fez um magní co trabalho de edição nal em condições extremamente apertadas de tempo. Finalmente, como sempre, devo meus maiores agradecimentos a Anya Schiffrin, desde a discussão das ideias em seu estágio formativo até a edição do manuscrito. Este livro não existiria sem ela.  

. A formação da crise

1

A única surpresa a respeito da crise econômica de 2008 foi que sua chegada pegou muita gente desprevenida. Para uns poucos observadores, ela seguia exatamente o gurino: não só previsível, mas também prevista. Um mercado desregulado, inundado de liquidez e com taxas de juros baixas, uma bolha imobiliária global e uma escalada de empréstimos subprime formavam uma combinação tóxica. Acrescentem-se a isso os dé cits scal e comercial dos Estados Unidos e a correspondente acumulação de enormes reservas de dólares na China — ou seja, uma economia global desequilibrada — e era claro que as coisas estavam terrivelmente mal. A diferença entre essa crise e a profusão de outras que a precederam nos últimos 25 anos era que essa crise tinha o rótulo “Made in USA”. E, enquanto as crises anteriores caram con nadas, essa crise, “Made in USA”, se expandiu rapidamente pelo mundo inteiro. No passado, convinha-nos pensar em nosso país como um dos motores do crescimento econômico global, um exportador de políticas econômicas sadias — e não de recessões. A última vez que os Estados Unidos exportaram uma crise de grandes proporções foi na Grande Depressão dos anos 1930.1 Os aspectos básicos da história são bem conhecidos e bem divulgados. Os Estados Unidos tinham uma bolha imobiliária. Quando a bolha estourou e os preços das casas caíram dos níveis estratosféricos em que estavam, um número cada vez maior de proprietários se sentiu “afogado”. Eles deviam

mais em hipotecas do que o valor das suas casas. Ao perderem as casas, muitos perderam também as poupanças de toda a vida e os sonhos para o futuro — formação universitária para os lhos, aposentadoria em boa situação nanceira. Em certo sentido, os americanos estavam vivendo um sonho. O país mais rico do mundo vivia além das suas posses, e a força da economia dos Estados Unidos — e da economia mundial — dependia disso. A economia global necessitava de um consumo cada vez maior para crescer, mas como isso podia continuar a acontecer se a renda de tantos americanos estava estagnada havia tanto tempo?2 Os americanos encontraram uma solução engenhosa: tomar emprestado e consumir, como se a sua renda estivesse crescendo. E assim zeram. A taxa média de poupança caiu a zero — e como muitos americanos ricos tinham poupanças substanciais, isso signi cava que os americanos pobres tinham uma taxa de poupança fortemente negativa. Em outras palavras, eles estavam se afundando em dívidas. Tanto eles quanto os que lhes emprestavam dinheiro se sentiam bem com o que estava acontecendo: o frenesi do consumo prosseguia sem que fosse necessário enfrentar a realidade da renda estagnada ou decrescente, e os emprestadores mantinham níveis inigualáveis de lucros, com base em taxas e comissões cada vez mais altas. Taxas de juros baixas e regulações frouxas alimentaram a bolha imobiliária. Com a subida dos preços das moradias, os proprietários passaram a usar suas casas como garantia para contrair empréstimos. Esses empréstimos de base hipotecária — que em um ano chegaram a 975 bilhões de dólares, o que é mais de 7% do pib3 (Produto Interno Bruto, a medida da soma de todos os bens e serviços produzidos na economia) — permitiam que os tomadores de empréstimos dessem a entrada para comprar um carro novo e ainda car com alguns fundos para a aposentadoria. Mas todo esse movimento de empréstimos dependia da premissa arriscada de que os preços das moradias continuassem a subir, ou, pelo menos, que não caíssem.

A economia estava distorcida: entre dois terços e três quartos de toda a economia (do pib) se relacionavam à atividade imobiliária: da construção de casas novas ou da compra de móveis e equipamentos para estas, ou dos empréstimos que tinham as próprias casas como garantia e que se destinavam a nanciar o consumo. Isso era insustentável — e se mostrou insustentável. O estouro da bolha afetou inicialmente as piores hipotecas (as hipotecas subprime, feitas para pessoas de baixa renda), mas logo passaram a afetar todo o setor residencial. Quando a bolha estourou, os efeitos se ampliaram porque os bancos haviam criado uma série de produtos complexos que tinham por base as hipotecas. O pior foi que se dedicaram a apostas multibilionárias entre si e com outros corretores nanceiros do mundo inteiro. Essa complexidade, combinada com a rapidez com que a situação se deteriorava e com a alta alavancagem dos bancos (também estes, assim como os proprietários de imóveis, nanciavam seus investimentos com fortes empréstimos), signi cava que os bancos já não sabiam se o que deviam aos depositantes e acionistas excedia o valor dos seus ativos. Da mesma forma, perceberam que tampouco podiam conhecer a verdadeira posição de qualquer outro banco. A con ança, que é a base do sistema bancário, se evaporou. Os bancos se recusaram a emprestar dinheiro a seus congêneres — ou passaram a cobrar fortes taxas de juros para compensar os riscos. Os mercados globais de crédito começaram a congelar. Nesse momento, os Estados Unidos e o mundo se viram diante de uma crise que era nanceira e econômica ao mesmo tempo. A crise econômica tinha vários componentes: havia uma crise imobiliária residencial em desenvolvimento, que logo foi seguida por problemas imobiliários na área comercial. A demanda caiu, à medida que as famílias viram entrar em colapso o valor das suas casas (e também o das ações que possuíam) e sua própria propensão a contrair empréstimos. Ocorreu um ciclo negativo de estoques: os mercados de crédito congelaram, a demanda caiu e as empresas reduziram seus estoques o mais rapidamente possível. E veio o colapso da indústria americana.

Havia também perguntas mais profundas: que outro fator poderia substituir o consumo desenfreado dos americanos, que era o que sustentava a economia nos anos anteriores ao estouro da bolha? Como os Estados Unidos e a Europa lograriam reestruturar-se, fazendo, por exemplo, a transição a uma economia de serviços, que já fora tão difícil durante a fase da expansão? A reestruturação era inevitável — a globalização e a evolução tecnológica a exigiam —, mas não seria fácil.     resumo da história

  Os desa os futuros se tornavam claros e uma pergunta perdurava: como foi que a crise aconteceu? Não é assim que as economias de mercado devem atuar. Algo deu errado — e muito errado. Não há uma data especí ca a assinalar no uxo contínuo da história. Com o desejo de ser breve, começarei com o estouro da bolha tecnológica (ou bolha ponto-com), na primavera de 2000 — bolha que Alan Greenspan, na época presidente do Banco Central dos Estados Unidos, deixara in ar e que sustentava o forte crescimento do nal dos anos 1990.4 O valor das ações tecnológicas caiu 78% entre março de 2000 e outubro de 2002.5 Esperava-se que essas perdas não afetassem a economia como um todo, mas foi o que ocorreu. Grande parte dos investimentos haviam se dirigido ao setor de alta tecnologia, e com o estouro da bolha das ações das empresas de tecnologia, esses investimentos estancaram. Em março de 2001 os Estados Unidos entraram em recessão. O governo do presidente George W. Bush usou a pequena recessão que se seguiu ao colapso da bolha tecnológica como desculpa para promover sua agenda de redução de impostos para os ricos, que o presidente apresentava como a cura milagrosa para todos os males da economia. A redução de impostos, no entanto, não foi con gurada para estimular a economia e o seu impacto nesse campo foi limitado. Isso transferiu para a política monetária o ônus de fazer retornar o pleno emprego. Por essa razão,

Greenspan reduziu as taxas de juros e inundou o mercado de liquidez. Com tanta capacidade ociosa na economia, não chega a ser surpresa que as taxas de juros mais baixas não tenham levado a um aumento dos investimentos em fábricas e equipamentos. Elas tiveram um efeito — o de substituir a bolha tecnológica pela bolha imobiliária, que alimentou o auge do consumo e do setor de construção. A pressão sobre a política monetária aumentou quando os preços do petróleo começaram a subir depois da invasão do Iraque em 2003. Os Estados Unidos gastaram centenas de bilhões de dólares com a importação de petróleo — dinheiro que, se não fosse por isso, poderia ter sido gasto na economia americana. Os preços do petróleo subiram de 32 dólares por barril, em março de 2003, quando começou a guerra do Iraque, para 137 dólares por barril, em julho de 2008. Isso signi cou que os americanos passaram a gastar 1,4 bilhão de dólares por dia para importar petróleo (contra 292 milhões de dólares por dia antes do início da guerra), em vez de gastar esse dinheiro no próprio país.6 Greenspan achava que podia manter as taxas de juros baixas porque a pressão in acionária era pequena7 e porque, sem a bolha imobiliária, sustentada pelas baixas taxas de juros, e sem o auge do consumo, sustentado pela bolha imobiliária, a economia americana mostraria fraqueza. Em todos esses anos de dinheiro barato e especulação, Wall Street não ofereceu um bom produto hipotecário. Um bom produto hipotecário teria baixos custos de transação e baixas taxas de juros e ajudaria as pessoas a administrar os riscos de comprar uma casa, inclusive uma proteção para a hipótese de a casa perder valor ou de os proprietários perderem o emprego. Os proprietários também desejam mensalidades previsíveis, que não comecem a subir sem aviso prévio e que não tenham custos ocultos. Os mercados nanceiros americanos não se preocuparam em elaborar esses produtos melhores, embora estes sejam utilizados em outros países. Ao contrário, as empresas de Wall Street, empenhadas em maximizar seus lucros, passaram a trabalhar com hipotecas de altos custos de transação e taxas de juros variáveis, com pagamentos que podiam disparar

repentinamente e sem nenhuma proteção contra o risco de perda de valor do imóvel ou de perda de emprego. Se os formuladores dessas hipotecas se houvessem concentrado nos ns — o que com efeito esperamos do mercado hipotecário — em vez de concentrar-se na maximização dos seus lucros, poderiam ter engendrado produtos que teriam ampliado o mercado hipotecário permanentemente. Poderiam “fazer bem fazendo o bem”. Em vez disso, produziram toda uma série de hipotecas complicadas que lhes geraram muito dinheiro a curto prazo e levaram a uma ampliação pequena e temporária do mercado hipotecário, e com grande custo para a sociedade como um todo. As falhas do mercado hipotecário eram sintomas de falhas maiores que ocorriam em todo o sistema nanceiro e especialmente no sistema bancário. O sistema bancário tem duas funções essenciais. A primeira é a de prover um mecanismo e ciente de pagamentos, no qual o banco facilita as transações transferindo o dinheiro dos seus depositantes àqueles de quem eles compram bens e serviços. A segunda função essencial é a avaliação e a administração dos riscos e a realização de empréstimos. Esta se relaciona com a primeira função essencial, porque se o banco zer avaliações creditícias de cientes, se zer apostas irresponsáveis, ou se puser dinheiro demais em operações arriscadas que terminem por fracassar, não poderá honrar a promessa de remunerar o dinheiro dos depositantes. Se zer bem o seu trabalho, o banco proporciona dinheiro para o estabelecimento de novos negócios e para expandir os já existentes, a economia cresce, criam-se novos empregos e, ao mesmo tempo, seus próprios lucros aumentam, o que lhes possibilita pagar juros aos depositantes e recompensar os que investiram seus ativos no banco. A tentação de obter lucros fáceis a partir dos custos das transações levou muitos bancos grandes a negligenciar suas funções essenciais. O sistema bancário, nos Estados Unidos e em muitos outros países, não se concentrou em emprestar dinheiro a pequenos e médios produtores, que constituem a base da criação de empregos em qualquer economia, mas concentraram-se,

em vez disso, em promover a securitização, especialmente no mercado hipotecário. Foi esse envolvimento na securitização das hipotecas que se revelou fatal. Na Idade Média, os alquimistas tentavam transformar metais básicos em ouro. A alquimia moderna buscou a transformação de hipotecas subprime de alto risco em produtos de cotação aaa, capazes de atrair os investimentos dos fundos de pensão. E as agências de classi cação de risco deram a bênção ao que os bancos zeram. Por m, os bancos se empenharam diretamente em fazer apostas — inclusive não se limitando a atuar como intermediários das operações de risco que criavam, mas chegando a conservar a posse dos ativos. Os bancos, e os reguladores, talvez tenham pensado que haviam passado adiante os incômodos riscos que criaram, mas quando chegou o dia da verdade — quando os mercados entraram em colapso —, eles próprios estavam com a guarda baixa.8     a distribuição da culpa

  À medida que a profundidade da crise encontrava uma compreensão mais ampla — em abril de 2009 já se tornara a recessão mais prolongada desde a Grande Depressão —, era natural que se buscassem os culpados e que não faltasse culpa a ser distribuída. É essencial que saibamos a quem, ou pelo menos a quê, se deve atribuir culpas, para que possamos reduzir as possibilidades de que algo assim volte a ocorrer e para que possamos corrigir aspectos dos mercados nanceiros atuais que são obviamente disfuncionais. Devemos nos acautelar contra explicações demasiado fáceis: muitas começam pela ganância excessiva dos banqueiros. Isso pode ser correto, mas não oferece uma base para a reforma. Os banqueiros agiram com ganância porque tiveram incentivos e oportunidades para fazê-lo, e isso é o que precisa ser mudado. Além disso, a base do capitalismo é a busca do lucro: devemos culpar os banqueiros por fazer (talvez um pouco pior) o que todos na economia de mercado devem fazer?

Na longa lista de culpados, é natural começar pela base, com os originadores das hipotecas. As companhias hipotecárias ofereceram hipotecas exóticas a milhões de pessoas, muitas das quais não sabiam bem em que estavam se metendo. Mas as companhias hipotecárias não poderiam fazer o mal que zeram se não tivessem sido ajudadas e encorajadas pelos bancos e pelas agências de classi cação de risco. Os bancos compraram as hipotecas, transformaram-nas em produtos atraentes e as venderam a investidores desatentos. Os bancos e instituições nanceiras dos Estados Unidos se regozijavam com seus novos e ágeis mecanismos de investimentos. Criaram produtos novos que, embora tidos como instrumentos de controle de risco, eram tão perigosos que chegaram a ameaçar a sobrevivência do sistema nanceiro dos Estados Unidos. As agências de classi cação de risco, que deveriam ter impedido o crescimento desses instrumentos tóxicos, lhes deram, em vez disso, sua chancela, o que encorajou outros agentes — inclusive os fundos de pensão que buscavam lugares seguros para aplicar o dinheiro que os trabalhadores tinham reservado para sua aposentadoria — a comprá-los, nos Estados Unidos e no resto do mundo. Em síntese, os mercados nanceiros dos Estados Unidos não cumpriram suas funções essenciais perante a sociedade — administrar o risco, alocar o capital e mobilizar as poupanças, mantendo baixos os custos de transação. Ao contrário, criaram riscos, erraram na alocação do capital, encorajaram dívidas excessivas e impuseram altos custos de transação. No auge, em 2007, os mercados nanceiros inchados absorveram 41% dos lucros do setor corporativo.9 Uma das razões pelas quais o sistema nanceiro teve um desempenho tão ruim na gerência de riscos está no erro cometido pelo mercado na preci cação e no julgamento do risco. O “mercado” errou grosseiramente na avaliação dos riscos de inadimplência nas hipotecas subprime e cometeu um erro ainda maior ao con ar nas agências de classi cação de risco e nos bancos de investimentos, que reempacotaram suas hipotecas subprime e deram a cotação aaa aos novos produtos. Os bancos (e seus investidores)

também erraram crassamente no julgamento dos riscos associados à alta alavancagem bancária. Ativos de risco, que em geral requereriam lucros substancialmente maiores para atrair clientes, rendiam apenas um pequeno prêmio de risco. Em alguns casos, os erros aparentes de preço e julgamento de risco se baseavam em uma aposta interessante: eles acreditavam que, se surgissem problemas, o Banco Central e o Tesouro os salvariam. E tinham razão.10 O Banco Central, presidido inicialmente por Alan Greenspan e depois por Ben Bernanke, e os outros reguladores silenciaram e deixaram tudo isso acontecer. Alegaram que era impossível saber da existência de uma bolha antes que esta estourasse, e, mesmo se o soubessem, não havia nada que pudessem fazer. Estavam errados em ambos os casos. Poderiam, por exemplo, ter trabalhado em favor do pagamento de entradas mais altas para a compra de casas ou requerido margens mais altas na compra e venda de ações, medidas que teriam diminuído a pressão sobre esses mercados superaquecidos. Mas preferiram não fazê-lo. O pior é que Greenspan talvez tenha tornado a situação mais grave ao permitir que os bancos passassem a dar empréstimos cada vez mais arriscados e encorajando as pessoas a contrair hipotecas de taxas variáveis, cujos pagamentos poderiam facilmente explodir, como de fato aconteceu, o que levou até famílias de classe média à inadimplência.11 Os que defendiam a desregulação — e continuam a fazê-lo apesar de todas as consequências evidentes — a rmam que os custos da regulação superam os benefícios. Com os custos globais (orçamentários e reais) da crise subindo aos trilhões de dólares, é difícil compreender como esses indivíduos continuam a manter tal posição. Eles alegam, contudo, que o custo real da regulação é o de sufocar as inovações. A triste verdade é que, nos mercados nanceiros dos Estados Unidos, as inovações se limitaram a buscar contornar as regulações, os padrões de contabilidade e a cobrança dos impostos. Criaram produtos tão complexos que tiveram por efeito aumentar os riscos e as assimetrias na informação. Não é estranho, portanto, que seja impossível atribuir a ocorrência de qualquer aumento sustentado

no crescimento econômico (além da bolha para a qual elas contribuíram) a essas inovações nanceiras. Ao mesmo tempo, os mercados nanceiros não inovaram em ações que teriam ajudado os cidadãos comuns nas tarefas simples de avaliar os riscos da compra de uma casa. As inovações que teriam ajudado as pessoas e os países a administrar os outros riscos importantes que enfrentavam foram, na verdade, combatidas. Com regulações adequadas, as inovações poderiam ter sido reorientadas com o m de aumentar a e ciência da nossa economia e a segurança dos nossos cidadãos. Não surpreende que o setor nanceiro tenha tentado desviar a culpa para outras partes — quando a sua a rmação de que tudo não passara de um “acidente” (uma tormenta que ocorre a cada mil anos) não encontrou ouvidos receptivos. Os que trabalham no setor nanceiro costumam se queixar de que o Fed permitiu que as taxas de juros cassem baixas demais por tempo demais. Mas essa tentativa especí ca de desviar a culpa é singular: que outro tipo de atividade diria que o custo dos seus insumos (aço, salários) foi a razão de seus lucros terem sido tão baixos e o desempenho tão ruim? O principal “insumo” da atividade bancária é o custo dos seus fundos, e no entanto os banqueiros parecem queixar-se de que o Fed tornou o dinheiro demasiado barato! Se os fundos de baixo custo tivessem sido bem usados — no apoio a investimentos em novas tecnologias ou na expansão de empresas, por exemplo —, teríamos uma economia mais competitiva e dinâmica. Regulações frouxas sem dinheiro barato talvez não houvessem causado uma bolha. O mais importante, porém, é que, com um sistema bancário que funcionasse bem e que fosse bem regulado, o dinheiro barato poderia ter levado a um pico de crescimento, como aconteceu em outros lugares, em outros tempos. (Do mesmo modo, se as agências de classi cação de risco houvessem cumprido bem seu papel, os fundos de pensão e outras instituições teriam comprado menos hipotecas e o tamanho da bolha poderia ter sido acentuadamente menor. Isso também poderia ter ocorrido mesmo que as agências de classi cação de risco zessem um trabalho tão

ruim como o que de fato zeram, desde que os próprios investidores analisassem os riscos adequadamente.) Em suma, a crise alcançou a magnitude que vimos devido a uma combinação de fracassos. Greenspan e outros, por sua vez, tentaram desviar a culpa pelas taxas de juros baixas para os países da Ásia e para a inundação de liquidez proveniente do seu excesso de poupanças.12 Também nesse caso, importar capitais em melhores condições deveria ser uma vantagem, uma bênção. Mas essa é uma a rmação notável: na verdade, o que o Fed estava dizendo é que não pode mais controlar as taxas de juros nos Estados Unidos. É claro que pode. O Fed escolheu manter as taxas de juros baixas, em parte pelas razões que já expliquei.13 Em um ato que pode ser descrito como tremenda ingratidão com os que os salvaram no leito de morte, muitos banqueiros acusam o governo — cuspindo no prato em que comem — por não ter impedido sua própria ação, como o menino que, ao ser apanhado roubando doce na loja, culpa o dono, ou a polícia, por não ter prestado atenção, dando assim a impressão de que ele podia car com o doce. O argumento é ainda mais incongruente porque os mercados nanceiros efetivamente haviam pagado a polícia para não olhar. Eles conseguiram derrotar as tentativas de regular os derivativos e restringir as concessões de empréstimos predatórios. A vitória que alcançaram sobre os americanos foi total. Cada vitória lhes dava mais dinheiro e com isso mais in uência no processo político. E eles ainda tinham o argumento adicional de que a desregulação lhes trouxera mais dinheiro — e o dinheiro é a marca do êxito: como foi provado. Os conservadores não gostam que o mercado seja acusado dessa maneira. Se existe algum problema com a economia, estão convictos de que o motivo verdadeiro tem de ser o governo. O governo queria expandir a propriedade imobiliária, mas em defesa própria os banqueiros diziam que estavam apenas cumprindo seu papel. Fannie Mae e Freddie Mac, as duas empresas privadas que haviam começado como agências governamentais, foram particularmente difamadas, assim como o programa governamental denominado Community Reinvestment Act (cra) (Lei de Reinvestimentos

Comunitários), que estimula os bancos a emprestar dinheiro para as comunidades carentes. Se não fosse por causa desses esforços para emprestar aos pobres, diz o argumento, tudo estaria bem. Essa ladainha quase sempre carece totalmente de sentido. O resgate de quase 200 bilhões de dólares dado à aig (uma grande soma em quaisquer circunstâncias) tinha por base derivativos (seguros de crédito) — banco especulando com outro banco. Os bancos não precisaram de nenhum estímulo ao igualitarismo habitacional para dedicar-se ao risco excessivo. E o superinvestimento maciço em propriedades comerciais não tem nada a ver com a política habitacional do governo. Tampouco têm a ver com isso os reiterados maus empréstimos feitos mundo afora, pelos quais os bancos tiveram que ser repetidamente resgatados. Além disso, as taxas de inadimplência nos empréstimos do cra eram, na verdade, comparáveis às que ocorriam em outras áreas dos empréstimos bancários — o que mostra que esses empréstimos, quando benfeitos, não oferecem grandes riscos.14 O ponto mais esclarecedor, no entanto, é que Fannie Mae e Freddie Mac foram instruídos a fazer “empréstimos ortodoxos”, empréstimos para a classe média. Os bancos saltaram para as hipotecas subprime — área na qual Fannie Mae e Freddie Mac não estavam atuando naquela época — sem nenhum incentivo por parte do governo. O presidente pode ter feito discursos a respeito de uma “sociedade de proprietários”, mas não há muitos indícios de que os bancos correm para entrar em ação quando o presidente faz um discurso. Uma política deve estar acompanhada de recompensas e punições, e nesse caso não havia nem umas nem outras. (Se um discurso tivesse esse poder, as constantes exortações de Obama para que os bancos reestruturassem mais hipotecas e zessem mais empréstimos para as pequenas empresas teriam tido algum efeito.) Especi camente, o que os defensores da propriedade imobiliária tinham em mente era a propriedade permanente, ou pelo menos de longo prazo. Não havia o menor sentido em oferecer uma casa a uma família por alguns meses e em seguida expulsá-la, depois de extrair-lhe a poupança de toda a vida. Mas foi isso o que os bancos zeram. Não sei de nenhum funcionário do governo que tenha

recomendado aos emprestadores que se dedicassem a práticas predatórias, que zessem empréstimos além da capacidade de pagamento dos prestamistas e que trabalhassem com hipotecas que combinam altos riscos com altos custos de transação. Posteriormente, anos depois de o setor privado ter inventado as hipotecas tóxicas (que discuto mais a fundo no capítulo 4), Fannie Mae e Freddie Mac, privatizadas e sub-reguladas, decidiram aderir à festa. Seus executivos pensaram: por que não podemos nos bene ciar com bônus semelhantes aos do resto do setor? Ao fazê-lo, ironicamente, ajudaram a salvar o setor privado de uma parte da sua própria loucura: muitas das hipotecas securitizadas acabaram nos seus balanços. Se as duas empresas não as tivessem comprado, os problemas do setor privado poderiam ter sido bem maiores, ainda que, ao comprar tantos papéis, também possam ter ajudado a bolha a crescer.15 Como mencionei no prefácio, tentar reconstituir o que aconteceu é como “descascar uma cebola”: cada explicação provoca novas perguntas. Ao descascar a cebola, temos que perguntar por que o setor não conseguiu de modo algum exercer suas funções sociais precípuas, nem atender aos seus próprios acionistas e credores.16 Os executivos das instituições nanceiras parecem ser os únicos que saíram com os bolsos cheios — menos cheios do que se não houvesse ocorrido o desastre, mas melhor do que, digamos, os pobres acionistas do Citibank, que viram seus investimentos quase desaparecer. As instituições nanceiras se queixaram de que os reguladores não as impediram de comportar-se mal. Mas não é verdade que as empresas devem comportar-se bem por conta própria? Nos capítulos posteriores, darei uma explicação simples: incentivos falhos. Mas então devemos insistir: por que havia incentivos falhos? Por que o mercado não “disciplinou” as rmas que utilizaram estruturas falhas de incentivos de uma maneira que a teoria econômica ortodoxa diz que não se deve fazer? As respostas a essas perguntas são complexas, mas passam por um sistema falho de governança corporativa, pela implementação inadequada da legislação sobre competição, pela informação incorreta e pela falta de compreensão a respeito do risco por parte dos investidores.

Se bem que o setor nanceiro mereça arcar com a maior parte da culpa, os reguladores, por seu lado, não zeram o trabalho que se esperava deles — o de assegurar que os bancos não se comportem mal, como é seu costume. Pessoas que atuam na parte menos regulada dos mercados nanceiros (como os fundos de hedge), ao observar que os problemas maiores ocorriam na parte mais regulada (os bancos), concluíram levianamente que o problema era a regulação. “Se eles estivessem desregulados como nós, os problemas nunca teriam acontecido”, dizem eles. Mas essa posição ignora o ponto fundamental: a razão pela qual os bancos são regulados é que sua falência causa danos consideráveis ao resto da economia. A razão pela qual se necessita de menos regulação para os fundos de hedge, pelo menos para os menores, é que eles provocam menos danos. Não foram as regulações que zeram os bancos comportar-se mal; foram as de ciências que existem nelas e na sua implementação que não impediram que os bancos impusessem custos ao resto da sociedade, como eles têm feito reiteradamente. Com efeito, o único período da história dos Estados Unidos em que os bancos não impuseram esses custos foram os 25 anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, quando as regulações eram fortes e bastante scalizadas. É possível fazê-lo. O fracasso da regulação nos últimos 25 anos continua a requerer explicação. A história que eu conto a seguir tenta correlacionar esses fracassos com a in uência política dos interesses especiais, particularmente os interesses dos que, no setor nanceiro, ganharam dinheiro com a desregulação (muitos dos seus investimentos econômicos tiveram maus resultados, mas seus investimentos políticos foram muito mais certeiros) e com as ideologias — as ideias que proclamavam que não era necessário regular.     falhas do mercado

 

Hoje, depois do desastre, quase todos concordam que a necessidade da regulação é real — ou pelo menos seu número é maior do que antes da crise. A ausência das regulações necessárias nos custou muitíssimo: as crises teriam sido menos frequentes e menos daninhas e os custos causados pelos reguladores e pelas regulações seriam irrisórios em comparação aos que foram gerados pela sua falta. Os mercados deixados por conta própria evidentemente fracassam — e fracassam com muita frequência. Há muitas razões para esses fracassos, mas duas têm especial ligação com o setor nanceiro: o “agenciamento” — no mundo de hoje há um número considerável de pessoas que trabalham com dinheiro e tomam decisões em nome de outras (ou seja, como seus agentes) — e a importância cada vez maior das “externalidades”. O problema do agenciamento é um problema moderno. As corporações modernas, com sua in nidade de acionistas, são fundamentalmente diferentes das empresas geridas em base familiar. Há uma separação entre propriedade e controle, em que os gestores, que costumam ser donos de apenas uma pequena parte da empresa, podem administrá-la basicamente em benefício próprio.17 Também há problemas de agenciamento no processo de investimento, grande parte do qual é feita por meio de fundos de pensão e outras instituições. Os que tomam as decisões relativas aos investimentos — e avaliam o desempenho da corporação — não o fazem em seu próprio nome, mas em nome dos que puseram seus fundos sob a guarda deles. Ao longo de toda a cadeia do “agenciamento”, os cuidados com o desempenho se traduzem em um foco concentrado nos lucros de curto prazo. Como sua remuneração se vincula aos preços das ações nas bolsas e não aos resultados de longo prazo, é natural que os gestores façam o possível para elevar o valor das ações — mesmo que isso dê lugar a uma contabilidade ilusória (ou criativa). Esse foco no curto prazo é fortalecido pela exigência de lucros trimestrais altos por parte dos analistas da bolsa. A busca de lucros de curto prazo levou os bancos a concentrar-se em gerar mais taxas de operação — e, em alguns casos, em contornar questões de

contabilidade e regulações nanceiras. O impulso inovador de que Wall Street ultimamente tanto se orgulhava consistia em sonhar com produtos novos que gerassem mais rendas de curto prazo para as suas empresas. Os problemas que poderiam ser causados por uma taxa alta de inadimplência no contexto dessas inovações pareciam coisas de um futuro distante. Por outro lado, as rmas nanceiras não estavam nem um pouco interessadas em inovações que pudessem ajudar as pessoas a conservar suas casas ou proteger-se contra aumentos súbitos das taxas de juros. Em síntese, o “controle de qualidade” efetivo era pouco ou nenhum. Uma vez mais, a teoria supõe que o mercado proporcione essa disciplina. As rmas que oferecem produtos com risco excessivo perderiam reputação e o valor das ações cairia. Mas, no mundo dinâmico de hoje, essa disciplina do mercado se dissolveu. Os magos das nanças inventaram produtos de alto risco que produziram lucros normais por algum tempo — mantendo oculto o lado negativo durante anos. Milhares de gestores de fundos se gabavam de poder “ganhar do mercado”, e havia uma população de investidores míopes pronta para acreditar neles. Mas os magos das nanças se deixaram levar pela sua euforia, iludindo a si mesmos tanto quanto os que compravam seus produtos. Isso ajuda a explicar por que, quando o mercado caiu, eles caram com bilhões de dólares de produtos tóxicos em mãos. A securitização, o campo mais quente dos produtos nanceiros nos anos que levaram ao colapso, compõe um exemplo característico dos riscos gerados pelas inovações recentes, pois signi cava o rompimento da relação entre quem dá e quem recebe um empréstimo. A securitização trazia uma grande vantagem, na medida em que permitia a dispersão do risco. Mas trazia também uma grande desvantagem, já que criava novos problemas de informação imperfeita, os quais suplantaram os benefícios da diversi cação ampliada. Os compradores de papéis baseados em hipotecas estão, na verdade, emprestando dinheiro aos proprietários das casas, pessoas a respeito das quais nada sabem. Acreditam que os bancos que lhes venderam esses papéis tenham feito a averiguação. E os bancos acreditam

que o originador das hipotecas a tenha feito. Os incentivos dos originadores das hipotecas mantinham o foco na quantidade, e não na qualidade. Com isso, geravam enorme quantidade de hipotecas verdadeiramente péssimas. Os bancos gostam de pôr a culpa nos originadores das hipotecas, mas bastaria um olhar de relance nas hipotecas para revelar os riscos inerentes a elas. O fato é que os bancos não tomaram conhecimento. O que os movia era a determinação de tão logo quanto possível passar adiante os papéis criados com base nas hipotecas. Nos laboratórios frankensteinianos de Wall Street, os bancos criavam novos produtos de risco (instrumentos de dívida colateralizados, instrumentos de dívida colateralizados ao quadrado e seguros de crédito, alguns dos quais serão discutidos nos capítulos vindouros) sem mecanismos de controle sobre os monstros que haviam criado. Converteram-se em companhias de mudança, tomando as hipotecas dos seus originadores, empacotando-as e levando-as para os livros dos fundos de pensão e outras instituições. Aí estavam as taxas mais altas, e não no “negócio de guarda-móveis”, que era o modelo de negócios tradicional dos bancos (originando hipotecas e conservando-as). Ou pelo menos assim pensavam até que o desastre ocorreu e eles descobriram bilhões de dólares de ativos podres nas suas contas.   Externalidades   Os banqueiros não se importaram com o perigo que alguns dos instrumentos nanceiros representavam para todos os demais, em função das grandes externalidades que estavam sendo criadas. Em economia, o termo técnico externalidade se refere a situações em que uma operação de mercado impõe custos ou benefícios a outros que não participam da operação. Se você está operando sua própria conta e perde dinheiro, isso na verdade não afeta ninguém mais. No entanto, o sistema nanceiro é hoje tão interligado e tão essencial para a economia que a falência de uma grande instituição pode derrubar o sistema inteiro. A recessão atual afetou a todos: milhões de proprietários perderam suas casas; milhões mais viram

desaparecer o valor líquido das suas casas; comunidades inteiras foram devastadas; os contribuintes tiveram de arcar com a conta das perdas dos bancos; trabalhadores perderam seus empregos. Os custos foram enfrentados, não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo, por bilhões de pessoas que não receberam nenhum centavo de recompensa pelo comportamento temerário dos bancos. Quando há problemas sérios de agenciamento e de externalidades, é típico que os mercados não consigam produzir resultados e cientes — o que contraria a crença generalizada na e ciência dos mercados. Essa é uma das razões para a regulação do mercado nanceiro. As agências reguladoras eram a última linha de defesa contra o comportamento excessivamente arriscado e contra o comportamento inescrupuloso por parte dos bancos, mas depois de anos de ininterrupto trabalho de lobby feito pelos bancos, o governo não só desmantelou as regulações existentes, mas também deixou de adotar regulações novas em resposta às mudanças ocorridas no panorama nanceiro. Pessoas que não entendiam por que as regulações eram necessárias — e, em consequência, não acreditavam que fossem necessárias — se tornaram reguladores. A derrubada, em 1999, da Lei Glass-Steagall (Glass-Steagall Act), que mantinha separados os bancos de investimento e os bancos comerciais, possibilitou a criação de bancos cada vez maiores, grandes demais para poder falir. A consciência de que não podiam quebrar se tornou um incentivo para a tomada de riscos excessivos. No nal das contas, os bancos caíram em suas próprias armadilhas. Os instrumentos nanceiros usados para explorar os pobres se voltaram contra os mercados nanceiros e os derrubaram. Quando a bolha estourou, a maior parte dos bancos acabou cando com uma quantidade de papéis de risco su ciente para ameaçar sua própria sobrevivência. Evidentemente, não zeram tão bem quanto pensavam que podiam fazer o trabalho de passar adiante os riscos. Essa é apenas uma das muitas ironias que marcaram a crise: no afã de reduzir ao mínimo o papel do governo na economia, Greenspan e Bush acabaram fazendo o governo assumir a propriedade da maior produtora de automóveis do mundo, da maior

companhia de seguros e de alguns dos maiores bancos (se os tivesse recebido em troca do dinheiro que lhes dera) — algo sem precedentes em um amplo espectro. País em que o socialismo é muitas vezes tratado como anátema, realizou a socialização do risco e a intervenção nos bancos de maneira inédita. Essas ironias encontram paralelo nas aparentes incoerências nos argumentos do Fundo Monetário Internacional (fmi) e do Tesouro americano, antes, durante e depois da crise da Ásia Oriental — e nas incoerências entre as políticas de então e de agora. O fmi pode a rmar que acredita no fundamentalismo do mercado — a crença em que os mercados são e cientes, que se autocorrigem e que devem ser deixados entregues aos seus próprios expedientes para que haja níveis máximos de crescimento e e ciência —, mas no momento em que ocorre uma crise, o Fundo reclama a assistência governamental imediata e maciça, preocupado com o “contágio”, a disseminação da doença de um país para outro. Mas o contágio é uma externalidade arquetípica, e se existem externalidades, não se pode (logicamente) acreditar no fundamentalismo do mercado. Mesmo após os resgates multibilionários, o fmi e o Tesouro americano resistiram à imposição de medidas (regulações) que poderiam tornar esses “acidentes” menos frequentes e menos onerosos — porque ambos acreditavam que os mercados na verdade funcionam bem por conta própria, mesmo tendo acabado de passar pela experiência de repetidos exemplos em que isso não ocorreu. Os resgates fornecem um exemplo de um conjunto de políticas incoerentes, com consequências potenciais de longo prazo. Os economistas se preocupam com os incentivos e pode-se mesmo dizer que se trata da sua preocupação número um. Um dos argumentos enunciados por muitos que atuam nos mercados nanceiros em defesa da atitude de não ajudar os donos de hipotecas que não conseguem cumprir suas obrigações é o de que isso dá lugar a um “risco moral” — ou seja, o cumprimento das obrigações decai se os donos de hipotecas souberem que existe alguma chance de receberem ajuda em caso de inadimplência. Foram as preocupações com o

risco moral que levaram o fmi e o Tesouro americano a opor-se veementemente à concessão de resgates na Indonésia e na Tailândia — o que levou a um colapso maciço do sistema bancário e exacerbou a crise naqueles países. As preocupações a respeito do risco moral afetaram também a decisão de não salvar Lehman Brothers. Mas essa decisão gerou, a nal, a maior série de salvamentos da história. Quando chegou a vez dos grandes bancos dos Estados Unidos, no rastro de Lehman Brothers, os pruridos com o risco moral foram postos de lado, a tal ponto que os funcionários graduados puderam receber enormes bônus como recompensa por perdas colossais, os dividendos continuaram no nível em que estavam e os acionistas e credores receberam proteção. Os sucessivos resgates (não apenas resgates, mas sim provisões imediatas de liquidez, dadas pelo Banco Central para os tempos difíceis) constituem parte da explicação da crise atual: permitiram que os bancos se tornassem cada vez menos cuidadosos, por saber que havia uma boa chance de que seriam resgatados caso surgisse algum problema. (Os mercados nanceiros se referiram a isso como o “Greenspan/Bernanke put”.) Os reguladores cometeram um erro de julgamento: como a economia tinha “sobrevivido” tão bem, os mercados, segundo eles, estavam funcionando bem por conta própria e as regulações não eram necessárias. Esqueceram- -se de notar que eles haviam sobrevivido por causa da intervenção maciça do governo. Hoje, o problema do risco moral é muito maior do que em qualquer momento anterior. As questões de agenciamento e as externalidades signi cam que o governo tem um papel necessário. Se cumprir bem esse papel, haverá menos acidentes, e mesmo que ocorram terão custos menores. Quando há acidentes, o governo tem que ajudar a recolher os cacos. Mas o modo como recolhe os cacos afeta a probabilidade de crises futuras — assim como a noção de justiça que a sociedade desenvolve. Toda economia bem-sucedida — toda sociedade bem-sucedida — envolve tanto o governo quanto os mercados. É preciso que os papéis estejam em equilíbrio. Não se trata apenas de “quanto” se deve fazer e sim também de “o quê” se deve fazer. Nos governos de Reagan e de ambos os Bush, os Estados Unidos perderam

esse equilíbrio. Fazer muito pouco então signi cou fazer demais agora. Fazer coisas erradas agora pode signi car ter de fazer mais no futuro.   Recessões   Um dos aspectos mais notáveis das revoluções de “mercado livre” iniciadas pelo presidente Ronald Reagan e pela primeira- -ministra Margaret atcher, do Reino Unido, é que a mais importante situação em que os mercados deixam de produzir resultados e cientes talvez tenha sido esquecida: os reiterados episódios em que os recursos não são totalmente utilizados. A economia muitas vezes opera abaixo da sua capacidade, com milhões de pessoas que querem trabalhar e não conseguem encontrar emprego e com utuações episódicas em que mais de uma em cada doze pessoas não consegue trabalho — proporções que chegam a ser muito piores para as minorias e a juventude. A taxa o cial de desemprego não chega a oferecer o quadro completo. Cidadãos que gostariam de trabalhar em tempo integral trabalham em meio expediente, porque não conseguem nada melhor. E eles não são incluídos no índice de desemprego. O índice tampouco inclui os que aparecem como incapacitados, mas que estariam trabalhando se conseguissem encontrar um emprego. Tampouco inclui os que cam tão desanimados por não conseguir trabalho e desistem de procurar. Essa crise, contudo, é pior do que o normal. De acordo com os indicadores mais abrangentes de desemprego, em setembro de 2009 mais de um em cada seis americanos que gostariam de ter um trabalho por tempo integral não o tinham. E a situação se agravou ainda mais em outubro.18 Embora o mercado se autocorrija — a bolha acabou estourando —, a crise mais uma vez revela que a correção pode ser lenta e o custo, enorme. O hiato cumulativo entre a produção real da economia e a produção potencial está na faixa dos trilhões de dólares.     quem poderia ter previsto o desastre?

  Na esteira do desastre, tanto os que operam no mercado nanceiro quanto seus reguladores diziam: quem poderia ter previsto esses problemas? Na verdade, muitos críticos o haviam feito, mas suas duras previsões eram uma verdade inconveniente: havia muita gente fazendo muito dinheiro para que esses alertas fossem escutados. Eu, seguramente, não era o único a ter como certo que a economia dos Estados Unidos passaria por uma crise de consequências globais. Nouriel Roubini; economista da Universidade de Nova York, George Soros, nancista; Stephen Roach, do Morgan Stanley; Robert Schiller, perito em habitação da Universidade Yale; e Robert Wescott, antigo membro do Conselho de Assessores Econômicos/Conselho Nacional de Economia do governo Clinton, todos emitiram repetidas advertências. Todos eram economistas keynesianos que externavam a noção de que os mercados não se corrigem sozinhos. A maioria de nós estava preocupada com a bolha habitacional; alguns, como Roubini, se concentravam nos riscos de que os desequilíbrios globais pudessem gerar um súbito ajustamento das taxas de câmbio. Mas os que fabricaram a bolha (Henry Paulson levara Goldman Sachs a níveis inéditos de alavancagem e Ben Bernanke permitiu o prosseguimento da emissão de hipotecas subprime) mantinham a con ança na capacidade dos mercados de se autocorrigir — até que tiveram que defrontar-se com a realidade do colapso em massa. Não é preciso ter um título de doutor em psicologia para entender por que eles queriam fazer de conta que a economia passava apenas por um leve distúrbio, que poderia ser facilmente superado. Em março de 2007, o presidente do Banco Central, Bernanke, a rmou que “o impacto dos problemas do mercado subprime sobre a economia e os mercados nanceiros parece estar sob controle”.19 Um ano depois, mesmo após o colapso de Bear Stearns, ante insistentes rumores sobre a queda de Lehman Brothers, a linha o cial (difundida não só em ocasiões públicas, mas em encontros fechados com outros dirigentes de

Bancos Centrais) era de que a economia já estava a caminho de uma sólida recuperação depois de alguns solavancos. A bolha habitacional que não podia deixar de estourar era o sintoma mais óbvio da “doença econômica”. Mas por trás desse sintoma estavam problemas mais fundamentais. Muitos haviam advertido quanto aos riscos da desregulação. Desde 1992 eu temia que a securitização das hipotecas terminasse em desastre, uma vez que tanto compradores quanto vendedores haviam subestimado a probabilidade de queda de preços e a força da correlação.20 Com efeito, quem quer que examinasse com atenção a economia americana poderia facilmente ver que existiam importantes problemas, nos níveis “macro” e “micro”. Como já assinalei, nossa economia vinha sendo mantida por uma bolha insustentável. Sem a bolha, a demanda agregada — a soma total dos bens e serviços demandados pelas famílias, empresas, governo e estrangeiros — mostraria fraqueza, em parte por causa da crescente desigualdade nos Estados Unidos e no resto do mundo, que transferiu dinheiro das pessoas que o gastariam para as que não o zeram.21 Durante anos, meu colega Bruce Greenwald, de Columbia, e eu chamamos a atenção para o problema adicional de uma queda global da demanda agregada, ou seja, da soma total de todos os bens e serviços que as pessoas de todo o mundo querem comprar. No mundo da globalização, a demanda agregada global é o que importa. Se a soma nal de tudo o que todas as pessoas do mundo quiserem comprar for menor do que o que o mundo pode produzir, haverá um problema — uma economia global enfraquecida. Uma das razões que podem acarretar uma demanda agregada global fraca é o nível crescente das reservas — o dinheiro que os países deixam guardado para um “mau momento”. Os países em desenvolvimento puseram centenas de bilhões de dólares em reservas para proteger-se do alto nível de volatilidade global que marcou a era da desregulação, assim como dos constrangimentos que sentem ao buscar ajuda do fmi.22O primeiro-ministro de um dos países arrasados com a crise nanceira global de 1997 me disse: “Nós estávamos

na turma de 97. Sabemos o que acontece se não tivermos reservas su cientes”. Os países ricos em petróleo também estavam acumulando reservas — sabiam que o preço alto do petróleo não era sustentável. Para alguns países havia outra razão para a acumulação de reservas. O crescimento com base em exportações tem sido apresentado como a melhor via de crescimento para os países em desenvolvimento. Depois que as novas regras comerciais elaboradas pela Organização Mundial do Comércio eliminaram grande parte dos instrumentos tradicionais que os países em desenvolvimento empregavam para favorecer a criação de novas indústrias, muitos se dedicaram à política de manter as suas taxas de câmbio competitivas. E isso signi cava comprar dólares, vender a própria moeda e acumular reservas. Todas eram boas razões para a acumulação de reservas, mas produziram uma consequência negativa: havia uma demanda global insu ciente. Meio trilhão de dólares, ou mais, estavam sendo transformados em reservas a cada ano no período anterior à crise. Por algum tempo os Estados Unidos auxiliaram com a prodigalidade do seu consumo baseado em dívidas, gastando muito além dos meios de que dispunha. O país se tornou o consumidor mundial de último recurso. Mas isso não era sustentável.   A crise global   Essa crise logo se tornou global — o que não surpreende, uma vez que quase a quarta parte das hipotecas dos Estados Unidos havia ido para o exterior.23 De maneira não intencional, isso acabou ajudando os Estados Unidos: se as instituições estrangeiras não houvessem adquirido tantos instrumentos tóxicos e tanta dívida, a situação do país poderia ter sido muito pior.24 Mas antes os Estados Unidos haviam exportado sua loso a desregulatória. Sem isso os estrangeiros talvez não tivessem comprado tantas hipotecas tóxicas.25 A nal, os Estados Unidos também exportaram sua recessão. Essa foi, naturalmente, apenas uma das diversas maneiras através das quais a crise americana se tornou global: a economia dos

Estados Unidos ainda é a maior do mundo e é difícil que uma retração dessa magnitude não produza um impacto global. Além disso, os mercados nanceiros internacionais se tornaram intensamente interligados — o que é evidenciado pelo fato de que dois dos três maiores bene ciários do resgate que o governo dos Estados Unidos deu à aig eram bancos estrangeiros. No início, muita gente na Europa falou de desacoplamento, no sentido de que os países europeus poderiam sustentar o crescimento das suas economias mesmo diante de um retrocesso nos Estados Unidos: o crescimento da Ásia os salvaria de uma recessão. Já deve ter cado claro que também isso não era mais do que um devaneio. As economias asiáticas ainda são demasiado pequenas (o consumo total da Ásia corresponde a apenas 40% do consumo dos Estados Unidos),26 e seu crescimento depende decisivamente das exportações para os próprios Estados Unidos. Mesmo com um estímulo fortíssimo, o crescimento da China em 2009 foi de 3% a 4% inferior ao que vinha sendo antes da crise. O mundo está demasiado interligado: uma recessão nos Estados Unidos não pode deixar de levar a uma desaceleração global. (Há uma assimetria: o imenso mercado interno da Ásia, parcialmente inexplorado, pode retomar o crescimento sólido mesmo que os Estados Unidos e a Europa permaneçam fracos — ponto ao qual retornarei no capítulo 8.) Se por um lado as instituições nanceiras da Europa sofreram com a compra de hipotecas tóxicas e com as apostas arriscadas que zeram com bancos americanos, alguns países europeus também enfrentaram problemas criados por si mesmos. A Espanha também permitiu a formação de uma enorme bolha imobiliária e agora sofre com o colapso quase total do seu mercado imobiliário. Em contraste com o que ocorreu nos Estados Unidos, contudo, as sólidas regulações bancárias espanholas permitiram que os seus bancos aguentassem um trauma muito maior com resultados melhores — embora, o que não chega a surpreender, a economia como um todo tenha sofrido um impacto muito pior. O Reino Unido também sucumbiu ante uma bolha habitacional. Mas, pior, sob a in uência da City de Londres, um grande centro nanceiro, ele

caiu na armadilha da “corrida para o fundo” e tentou fazer tudo o que podia para atrair empreendimentos nanceiros. A regulação “leve” não surtiu lá melhores resultados que nos Estados Unidos. Como a GrãBretanha permitira que o setor nanceiro desempenhasse um papel mais amplo na sua economia, o custo dos resgates foi (proporcionalmente) ainda maior. Como nos Estados Unidos, aí se desenvolveu uma cultura de salários e bônus altos. Mas pelo menos os britânicos entenderam que, quando se dá dinheiro dos contribuintes aos bancos, é necessário fazer todo o possível para certi car-se de que este seja usado para ns adequados — para novos empréstimos e não para bônus e dividendos. E pelo menos no Reino Unido houve alguma compreensão para o fato de que é preciso ter responsabilidades: os diretores dos bancos resgatados foram substituídos e o governo britânico exigiu que os contribuintes recebessem valores justos em troca dos resgates para que eles não se transformassem nos “presentes” que marcaram as operações de resgate tanto do governo Bush quanto do governo Obama.27 A Islândia é um excelente exemplo do que pode dar errado quando uma economia pequena e aberta adota cegamente o mantra da desregulação. Seu povo, bem instruído, trabalhou duro e se mantinha na vanguarda da tecnologia moderna. O país havia superado as desvantagens de sua localização remota, da temperatura gélida e da progressiva redução do seu acervo de peixes, uma das suas fontes de renda tradicionais, e gerava uma renda per capita de 40 mil dólares por ano. Hoje, o comportamento incauto dos seus bancos pôs em risco o futuro do país. Visitei a Islândia várias vezes nesta década e adverti quanto aos riscos das suas políticas de liberalização.28 Esse país de 300 mil habitantes tinha três bancos que aceitaram depósitos e compraram ativos no valor de 176 bilhões de dólares — onze vezes o valor do pib do país.29 Com o dramático colapso do seu sistema bancário no outono de 2008, a Islândia se tornou o primeiro país desenvolvido, em mais de trinta anos, a pedir ajuda ao fmi.30 Os bancos islandeses, como os de outros países, estavam trabalhando com alta alavancagem e assumindo altos riscos. Quando os mercados nanceiros

perceberam o risco e começaram a retirar o dinheiro, os bancos locais, sobretudo o Landsbanki, atraíram dinheiro de depositantes no Reino Unido e na Holanda, oferecendo-lhes títulos “Icesaver”, com altos rendimentos. Tolamente, os depositantes pensaram que se tratava de um “almoço grátis” e que receberiam seus grandes lucros sem risco. Tolamente também, talvez tenham pensado que seus próprios governos estavam cumprindo suas funções reguladoras. Mas, como em toda parte, os reguladores sobretudo achavam que os mercados cuidariam de si mesmos. Tomar dinheiro dos depositantes não fez mais que adiar o dia da verdade. A Islândia não tinha como continuar a derramar centenas de bilhões de dólares nos seus bancos debilitados. Aos poucos, à medida que essa realidade foi sendo conhecida pelos que haviam proporcionado os fundos aos bancos, a transformação disso em corrida ao sistema bancário se tornou apenas questão de tempo. A agitação global que se seguiu ao colapso de Lehman Brothers precipitou o que, de todo modo, teria sido inevitável. Ao contrário dos Estados Unidos, o governo islandês sabia que não conseguiria resgatar os acionistas e credores. As únicas dúvidas eram se o governo faria o resgate da corporação islandesa que dava o seguro aos depositantes, e o grau de generosidade que seria dispensada aos depositantes estrangeiros. O Reino Unido usou táticas de pressão — chegando ao ponto de con scar ativos islandeses com base em leis antiterroristas —, e quando a Islândia pediu a ajuda do fmi e dos países nórdicos, eles insistiram que os contribuintes islandeses resgatassem os depositantes britânicos e holandeses, acima mesmo dos valores pelos quais as contas haviam sido asseguradas. Em outra visita que z à Islândia, em setembro de 2009, quase um ano depois, a ira era palpável. Por que os contribuintes islandeses deveriam pagar pela falência de um banco privado, especialmente quando os reguladores estrangeiros deixaram de cumprir seu trabalho de proteger os próprios cidadãos? Um ponto de vista amplamente compartilhado a respeito da forte resposta dos governos europeus foi que a Islândia havia exposto uma falha fundamental na integração europeia: o “mercado único” signi cava que qualquer banco europeu podia operar em qualquer país. A

responsabilidade pela regulação foi colocada nos ombros do país “de origem”. Mas, se o país de origem deixasse de cumprir a missão, cidadãos de outros países poderiam sofrer perdas bilionárias. A Europa não quis pensar a respeito disso e das profundas implicações que trazia. Melhor seria simplesmente fazer a pequena Islândia pagar a conta — uma soma que muitos orçam em 100% do pib do país.31 Com o aprofundamento da crise nos Estados Unidos e na Europa, outros países, em todo o mundo, sofreram com o colapso da demanda global. Os países em desenvolvimento, em especial, tiveram prejuízo com a queda das remessas (transferências de dinheiro de familiares que vivem em países desenvolvidos) e a forte diminuição — em alguns casos, uma reversão — do uxo de capital a eles dirigido. Enquanto a crise americana começou no setor nanceiro e depois se expandiu para o resto da economia, em muitos países em desenvolvimento — inclusive aqueles em que a regulação do setor nanceiro é muito melhor que nos Estados Unidos — os problemas da “economia real” eram tão grandes que acabaram por afetar o setor nanceiro. A crise se espalhou com grande rapidez, em parte por causa das políticas adotadas — sobretudo as relativas à liberalização dos mercados nanceiros e de capital — por imposição do fmi e do Tesouro dos Estados Unidos a esses países, com base na mesma ideologia do mercado livre que levou os Estados Unidos à crise.32Mas uma vez que mesmo os Estados Unidos encontram di culdade em disponibilizar os trilhões de dólares destinados a resgate e a estímulos, ações correspondentes nos países mais pobres cam simplesmente muito além da sua capacidade.   O quadro geral   Por trás de todos esses sintomas de disfunção está uma verdade maior: a economia mundial passa por mudanças tectônicas. A Grande Depressão coincidiu com o declínio da agricultura nos Estados Unidos; com efeito, os preços agrícolas estavam em queda já antes do colapso da bolsa em 1929. Os aumentos da produtividade no campo eram tão grandes que uma

pequena porcentagem da população podia produzir todos os alimentos que a nação consumia. A transição de uma economia baseada na agricultura para outra em que predominava a indústria não foi fácil. Na verdade, a economia só retomou o crescimento quando o New Deal se instaurou e a Segunda Guerra Mundial deu empregos nas fábricas para multidões. Hoje, a tendência básica nos Estados Unidos é a de transferência do setor manufatureiro para o de serviços. Como antes, isso se deve em parte ao êxito do aumento da produtividade na indústria, de maneira que uma pequena parcela da população pode produzir todos os brinquedos, automóveis e televisões que mesmo a mais materialista e extravagante das sociedades pode comprar. Mas nos Estados Unidos e na Europa existe uma dimensão adicional: a globalização acarretou a mudança do local de onde vem a produção industrial, e da vantagem comparativa, em favor da China, da Índia e de outros países em desenvolvimento. Acompanhando esse ajustamento “microeconômico”, desenvolve-se um conjunto de desequilíbrios macroeconômicos: os Estados Unidos, que deveriam estar economizando para a aposentadoria da sua crescente população idosa, têm vivido além dos seus meios, nanciados em grande medida pela China e outros países em desenvolvimento que têm produzido mais do que consumido. É natural que uns países emprestem a outros — seja para neutralizar dé cits ou para compensar superávits comerciais —, mas o padrão dos empréstimos, em que os países pobres emprestam aos ricos, é peculiar e a magnitude dos dé cits parece insustentável. À medida que os países se endividam, os que lhes emprestam podem perder con ança em sua capacidade de pagamento — o que pode acontecer mesmo a um país rico como os Estados Unidos. Devolver a saúde à economia norteamericana e à economia global requererá a reestruturação de ambas de modo a re etir a nova con guração econômica e corrigir os desequilíbrios globais. Não podemos voltar ao mundo em que vivíamos antes de que a bolha estourasse em 2007. Nem sequer deveríamos desejá-lo. Havia muitos problemas com essa economia, como já vimos. É claro que existe a

possibilidade de que outra bolha venha a substituir a bolha imobiliária, assim como a bolha imobiliária substituiu a bolha tecnológica. Mas essa “solução” apenas retardaria a chegada do dia da verdade. Qualquer nova bolha apresenta perigo: a bolha do petróleo ajudou a levar a economia à beira do desastre. Quanto mais demorarmos a resolver os problemas subjacentes, mais demoraremos a retomar o crescimento sólido. Há um teste simples para ver se os Estados Unidos se esforçaram o su ciente para evitar o surgimento de uma nova crise: se as reformas propostas tivessem sido feitas, a crise atual poderia ter sido evitada? Ou teria ocorrido de qualquer modo? Dar mais poder ao Banco Central dos Estados Unidos, por exemplo, é um ponto crucial para a reforma regulatória proposta por Obama. Mas quando a crise começou, o Banco Central tinha mais poderes do que costumava ter. Em quase todas as interpretações da crise, o Banco Central aparece no centro do processo de criação da bolha. O presidente do Banco Central talvez tenha aprendido a lição. Mas nós vivemos em um país regido por leis e não apenas por indivíduos. Será que deveríamos ter um sistema que requeresse que o Banco Central fosse incendiado para termos certeza de que não vai haver outra bolha? Será que podemos con ar em um sistema que depende tão precariamente da loso a econômica ou do entendimento de uma única pessoa — ou mesmo dos sete membros do Conselho de Administração do Fed? No momento em que este livro vai para a impressão, é evidente que as reformas não avançaram o su ciente. Não podemos esperar até depois da crise. Na verdade, o modo como temos lidado com a crise pode estar tornando cada vez mais difícil a resolução desses problemas mais profundos. O próximo capítulo focaliza o que deveríamos ter feito para enfrentar a crise — e por que não chegamos nem perto de fazê-lo.

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. A queda livre e suas consequências

Em outubro de 2008, a economia norte-americana estava em queda livre, rumo a arrastar toda a economia mundial com ela. Antes, já havíamos passado por colapsos da bolsa de valores, contrações de crédito, debilidades no mercado habitacional e ajustes de estoques. Mas, desde a Grande Depressão, nunca todas essas coisas tinham acontecido ao mesmo tempo. E nunca antes as nuvens da tempestade se moveram tão rapidamente sobre o Atlântico e o Pací co, ganhando força à medida que se deslocavam. Mas, para que tudo isso pudesse estar acontecendo ao mesmo tempo, havia uma razão comum: os empréstimos insensatos do setor nanceiro, que alimentaram a bolha habitacional que acabou por romper-se. O que se viu foi o desdobramento das consequências previsíveis e previstas do rompimento da bolha. Tais bolhas e suas consequências são tão velhas quanto o capitalismo e os próprios bancos. Os Estados Unidos caram livres dessas bolhas por décadas depois da Grande Depressão por causa das regulações que o governo pusera em vigor depois daquele trauma. Com a chegada da desregulação, tornou-se apenas uma questão de tempo a volta desses horrores do passado. As chamadas inovações nanceiras haviam possibilitado o crescimento ulterior da bolha até que esta explodisse, e tornaram mais difícil desemaranhar os destroços depois da explosão.1 A necessidade de medidas radicais era clara desde agosto de 2007. Naquele mês, a diferença entre as taxas de juros em empréstimos interbancários (a taxa pela qual os bancos emprestam dinheiro entre si) e

em títulos do Tesouro (a taxa pela qual o governo pode tomar dinheiro emprestado) subiu drasticamente. Em uma economia “normal”, as duas taxas de juros diferem pouco. Essa grande diferença signi cava que os bancos não estavam con ando uns nos outros. Os mercados de crédito corriam o risco de car congelados — e com muita razão. Todos conheciam o enorme risco que enfrentavam com as suas próprias folhas de balanço, uma vez que as hipotecas que haviam conservado estavam se deteriorando e as suas perdas aumentavam. Sabiam como eram precárias suas próprias condições — e podiam imaginar a precariedade da situação dos demais. O colapso da bolha e o aperto do crédito tiveram consequências inevitáveis que não se zeram sentir da noite para o dia. O processo duraria meses, mas não havia otimismo que o detivesse. A economia desacelerou e com isso subiu o número de execuções hipotecárias. Os problemas imobiliários apareceram primeiro no mercado subprime, mas logo se tornaram manifestos também em outras áreas. Se os americanos não conseguiam fazer seus pagamentos hipotecários, logo também teriam di culdade em pagar seus cartões de crédito. Com a queda dos preços das casas, a chegada da crise ao setor mais rico do mercado imobiliário, residencial e comercial, era apenas questão de tempo. Com a redução dos gastos de consumo, era inevitável que muitos negócios entrassem em falência — e isso signi cava que a taxa de inadimplência nos bancos comerciais também aumentaria. Para o presidente Bush, o que acontecia no mercado imobiliário era apenas uma pequena utuação, e seriam poucos os proprietários atingidos. Quando o mercado imobiliário chegou ao nível mais baixo dos últimos catorze anos, ele tranquilizou a nação, em 17 de outubro de 2007: “Estou tranquilo com muitos dos indicadores econômicos dos Estados Unidos”. No dia 13 de novembro, voltou a assegurar que “as bases da nossa economia estão fortes e a nossa economia é resistente”. Mas as condições nos setores imobiliário e bancário continuavam a piorar. Quando a economia entrou em recessão, em dezembro de 2007, ele começou a admitir que poderia

haver um problema: “Existem sem dúvida algumas nuvens de tempestade e algumas preocupações, mas os alicerces são rmes”.2 Com o aumento do clamor dos economistas e do setor empresarial, o presidente Bush recorreu ao seu remédio usual para todas as enfermidades da economia e assinou uma redução de impostos de 168 bilhões de dólares em fevereiro de 2008. A maior parte dos economistas keynesianos previu que o remédio não surtiria efeito. Os americanos estavam abarrotados de dívidas e sob tremenda ansiedade. Por que, então, iriam gastar, em vez de poupar o dinheiro da redução de impostos? Na verdade, eles pouparam mais do que metade desse dinheiro, o que em nada ajudou o propósito de estimular a economia desacelerada.3 Mas embora tenha apoiado a redução de impostos, o presidente se recusava a acreditar que a economia estivesse no rumo da recessão. Com efeito, ainda que o país já estivesse em recessão nos últimos dois meses, ele se recusava a admiti-lo, e declarou, em 28 de fevereiro de 2008: “Não creio que estejamos entrando em recessão”. Quando, logo depois, os dirigentes do Banco Central e do Tesouro patrocinaram o casamento forçado entre o gigante dos investimentos Bear Stearns e JPMorgan Chase pelo valor ín mo de dois dólares por ação (depois revisto para dez dólares por ação), já estava claro que o rompimento da bolha havia causado algo mais do que uma “pequena utuação” na economia.4 Quando Lehman Brothers se defrontou com a falência no mês de setembro, os mesmos dirigentes mudaram subitamente o rumo e deixaram que o banco falisse, desencadeando, assim, uma cascata de resgates de muitos bilhões de dólares. Depois disso, a recessão já não podia ser ignorada. Mas o colapso de Lehman Brothers foi consequência, e não causa, da derrocada econômica. Ele acelerou um processo já bem encaminhado. Apesar das crescentes perdas de postos de trabalho (nos primeiros nove meses de 2008, uma perda de cerca de 1,8 milhão de empregos, com mais 6,1 milhões de americanos fazendo meio expediente por não conseguir trabalho em tempo integral) e de uma queda de 24% no índice Dow Jones

a partir de janeiro de 2008, o presidente Bush e seus assessores insistiam em que as coisas não eram tão ruins quanto pareciam ser. Bush a rmou em um discurso no dia 10 de outubro de 2008: “Conhecemos os problemas, temos os instrumentos para resolvê-los e estamos trabalhando rapidamente para fazê-lo”. Mas, na prática, o governo Bush utilizou um conjunto limitado de instrumentos — e mesmo assim, não atinou com a maneira de fazê-los funcionar. O governo se recusou a ajudar os proprietários dos imóveis, recusou-se a ajudar os desempregados e recusou- -se a estimular a economia por meio das medidas normais (o aumento dos gastos governamentais, ou mesmo o seu “instrumento preferido”, novas reduções de impostos). O governo se concentrou em jogar dinheiro nos bancos, mas tropeçou em sua luta para de nir um modo efetivo de fazê-lo; um modo que permitisse uma restauração rápida dos empréstimos bancários. Em seguida ao fracasso de Lehman Brothers, à nacionalização de Fannie Mae e Freddie Mac e ao resgate da aig, Bush se apressou em ajudar os bancos com uma enorme operação de salvamento de 700 bilhões de dólares, em um programa eufemisticamente chamado “Troubled Asset Relief Program” (Programa de Auxílio a Ativos Problemáticos) (tarp). A política de Bush no outono de 2008, de ajudar os bancos mas ignorar os milhões de famílias cujas casas iam à bancarrota, pode ser comparada a dar uma enorme transfusão de sangue a um paciente que está morrendo de uma hemorragia interna. Deveria ser óbvio: a menos que algo fosse feito com relação à própria economia e ao uxo de hipotecas em direção à inadimplência, injetar dinheiro nos bancos poderia nem sequer salvá-los. No máximo, o in uxo seria um paliativo temporário. Um resgate se seguiu a outro, e às vezes um mesmo banco (como o Citibank, o maior dos Estados Unidos na época) precisou ser resgatado mais de uma vez.5     o debate sobre a recuperação e a campanha presidencial

 

Com a aproximação da eleição presidencial de novembro de 2008, estava claro para todos (exceto, naturalmente, para o presidente Bush) que era necessário fazer algo mais para tirar o país da recessão. O governo esperava que, além dos resgates bancários, as baixas taxas de juros fossem su cientes. Se, por um lado, as políticas monetárias equivocadas podem ter tido um papel crucial na geração da Grande Recessão, por outro lado, não poderiam fazer que o país saísse dela. John Maynard Keynes já explicara a impotência da política monetária em uma recessão ao compará-la ao ato de empurrar uma corda. Quando as vendas declinam, diminuir a taxa de juros de 2% para 1% não induzirá as rmas a construir novas fábricas nem a comprar novas máquinas. Em geral, o excesso de capacidade produtiva aumenta em intensidade à medida que a recessão ganha corpo. Diante dessas incertezas, até mesmo uma taxa de juros igual a zero pode não ter o poder de ressuscitar a economia. Além disso, o Banco Central pode diminuir a taxa de juros que o governo paga, mas isso não determina a taxa de juros que as rmas pagam nem mesmo o desejo dos bancos de emprestar dinheiro. O máximo que se pode esperar da política monetária é que não faça as coisas piorarem — como pioraram, por exemplo, quando o Fed e o Tesouro erraram no tratamento do caso de Lehman Brothers. Ambos os candidatos presidenciais, Barack Obama e John McCain, estavam de acordo quanto à necessidade de uma estratégia com três linhas de ação: conter a inundação de hipotecas ruins; estimular a economia; e ressuscitar os bancos. Mas os dois discordavam quanto ao que deveria ser feito em cada uma dessas áreas. Muitas das antigas batalhas econômicas, ideológicas e distributivas que haviam sido travadas nos últimos 25 anos reapareceram. O estímulo proposto por McCain se concentrava em uma redução de impostos que encorajaria o consumo. O plano de Obama recorria ao aumento dos gastos governamentais e sobretudo aos investimentos, sobretudo os “investimentos verdes”, que bene ciariam o meio ambiente.6 McCain tinha uma estratégia para lidar com os fechamentos de empresas — o governo caria com as perdas sofridas pelos bancos pelos seus maus empréstimos. Nessa área, o grande gastador era

McCain. O programa de Obama era mais modesto, mas concentrava-se em ajudar os proprietários de casas. Nenhum dos dois candidatos tinha ideias claras sobre o que fazer com os bancos e ambos estavam temerosos de assustar os mercados até mesmo com simples insinuações de críticas aos esforços de resgate do presidente Bush. Curiosamente, McCain tomou uma posição mais populista que a de Obama e parecia mais à vontade em criticar o comportamento indecoroso de Wall Street. Ele podia fazê-lo: os republicanos eram conhecidos como o partido dos grandes capitalistas, e McCain já tinha reputação de iconoclasta. Obama, tal como Bill Clinton antes dele, lutava para distanciar-se da reputação de anticapitalista que tinham os velhos democratas, embora ele tivesse feito, durante as primárias, um forte discurso na Cooper Union, no qual explicava por que era chegado o dia de pôr em vigor uma regulação mais e caz.7 Nenhum dos candidatos quis explorar as causas mais profundas da crise. Criticar a ganância de Wall Street podia ser aceitável, mas discutir os problemas de governança corporativa que geraram as estruturas inadequadas de incentivos e encorajaram o mau comportamento teria sido demasiado técnico. Falar do sofrimento do americano comum era aceitável, mas associar esse aspecto à insu ciência da demanda agregada poderia contrariar o princípio de que as campanhas devem ser “simples”. Obama defenderia o fortalecimento do direito à sindicalização, mas só como direito básico e não como parte de uma estratégia que pudesse estar ligada à recuperação econômica ou mesmo ao objetivo mais modesto de reduzir a desigualdade. Quando o presidente tomou posse, houve um suspiro coletivo de alívio. Por m, algo seria feito. Nos capítulos que se seguem, examinarei os desa os que o governo Obama enfrentava no momento da posse, como ele respondeu à crise e o que deveria ter feito para reativar a economia e evitar a ocorrência de uma nova crise. Tentarei explicar por que os políticos tomaram certos rumos — inclusive o que eles achavam ou esperavam que viesse a suceder. Em última análise, a equipe de Obama optou por uma

estratégia conservadora, que eu descrevo como de “empurrar com a barriga”. Talvez tenha sido, ao contrário do que se esperava, uma estratégia de alto risco. Alguns dos aspectos negativos inerentes ao plano do presidente Obama já podem ser visíveis no momento em que este livro é publicado. Outros só aparecerão com o passar dos anos. Mas a pergunta que permanece é: por que Obama e seus assessores preferiram empurrar com a barriga?     a evolução da economia

  Conceber uma linha de ação com uma economia em queda livre não é fácil. Saber que todo período negativo acaba terminando traz pouco alívio. O rompimento da bolha imobiliária em meados de 2007 levou — como previsto por mim e por outros — a uma recessão logo em seguida. As condições de crédito, que já eram ruins antes da falência de Lehman Brothers, pioraram ainda mais depois. Diante dos altos custos do crédito — se fosse possível obter um crédito — e do retrocesso dos mercados, as rmas reagiram depressa, reduzindo estoques. As encomendas caíram abruptamente — de maneira desproporcional com relação à queda do pib — e os países que dependiam de produtos de investimento e de consumo durável, gastos que podem ser adiados, foram atingidos de modo particular. (De meados de 2008 a meados de 2009, o Japão viu suas exportações caírem 35,7% e a Alemanha, 22,3%.)8 A melhor aposta era a de que os “brotos verdes” vistos na primavera de 2009 indicavam uma recuperação em algumas das áreas que mais haviam sofrido ao nal de 2008 e no começo de 2009, inclusive uma reposição de alguns dos estoques que haviam sido excessivamente reduzidos. A observação atenta das bases da situação que Obama herdou ao tomar o poder deve tê-lo deixado profundamente pessimista: milhões de casas haviam sido perdidas, com preços imobiliários ainda em queda em muitas partes do país. Isso signi cava que outros milhões de hipotecas estavam

ameaçadas e eram candidatas a novas quebras. O desemprego continuava aumentando, com centenas de milhares de pessoas chegando ao término do período, já ampliado, do seguro-desemprego. Os estados federados estavam sendo forçados a demitir trabalhadores devido à queda da arrecadação scal.9 Os gastos governamentais constantes da lei de estímulo, que foi um dos primeiros triunfos de Obama, ajudaram — mas apenas para impedir que as coisas piorassem ainda mais. O Fed permitia que os bancos lhe tomassem empréstimos baratos, com base em colaterais ruins, e tomassem posições arriscadas. Alguns bancos declararam lucros na primeira metade de 2009, na maior parte dos casos com base em ganhos contábeis e comerciais (leia-se: especulação). Mas esse tipo de especulação não levaria a economia adiante como se queria. E, se as apostas feitas não rendessem, o custo para o contribuinte americano seria ainda maior. Bene ciando-se desses fundos de baixo custo e emprestando- -os a taxas de juros muito mais altas — a redução da competição interbancária signi cava que eles tinham mais poder para aumentar as taxas de juros sobre os empréstimos que zessem —, os bancos aos poucos se recapitalizariam, contanto que não fossem esmagados por perdas com hipotecas, imóveis comerciais, empréstimos empresariais e cartões de crédito. Se nada disso acontecesse, os bancos poderiam escapar sem outra crise. Em alguns anos (assim se esperava), estariam em melhor forma e a economia voltaria ao normal. Evidentemente, as altas taxas de juros cobradas pelos bancos em recuperação, em sua luta por recapitalizar-se, prejudicaria a retomada econômica, mas essa era uma parte do preço a pagar para evitar debates políticos desgastantes. Os bancos (inclusive muitos dos bancos menores que abastecem de crédito um número enorme de pequenas e médias empresas) enfrentavam di culdade em quase todas as categorias de empréstimos: imobiliários — comerciais e residenciais —, cartões de crédito, empréstimos comerciais e nanciamento ao consumo. Na primavera de 2009, o governo fez os bancos passarem por um teste de estresse (que, na verdade, não era tão

estressante), para ver como eles enfrentariam um período de desemprego alto e preços imobiliários declinantes.10 Mas, mesmo que os bancos estivessem sadios, o processo de desalavancagem — com a redução do débito que afetava toda a economia — tornava provável que a atividade econômica permanecesse fraca durante um bom tempo. Os bancos haviam tomado os valores que lhes restavam (seu “capital” básico, ou seu “valor líquido”) e levantado grandes empréstimos com base neles, para formar uma grande base de ativos — em certos casos, trinta vezes maior que seu valor líquido. Os proprietários de casas também haviam tomado empréstimos pesados com base no pouco valor líquido que suas casas ainda tinham. Estava claro que havia demasiadas dívidas com base em muito pouco valor líquido, e seu nível teria que ser reduzido. Isso, por si só, já seria uma grande di culdade. Mas ainda por cima os preços dos ativos, que eram mantidos por todos esses empréstimos, provavelmente cairiam. A perda de riqueza induziria estresse em muitas partes da economia. Haveria falências, mas mesmo as rmas e as pessoas que não falissem cortariam seus gastos. Era possível, é claro, que os americanos pudessem continuar a viver como antes, com poupança zero, mas apostar nisso era temerário e os dados que revelavam o crescimento da taxa de poupança para 5% da renda familiar sugeriam o oposto.11 Uma economia fraca signi cava, tudo levava a crer, mais perdas para os bancos. Alguns esperavam que as exportações pudessem salvar a economia dos Estados Unidos, pois já haviam ajudado a suavizar a queda ao longo de 2008. Mas, no mundo da globalização, os problemas que aparecem em uma parte do sistema logo reverberam em outras partes. A crise de 2008 foi um retrocesso sincrônico e global. Isso signi cava que era improvável que os Estados Unidos lograssem sair da crise através da exportação — como a Ásia Oriental zera na década anterior. Quando os Estados Unidos entraram na primeira Guerra do Golfo, em 1990, o general Colin Powell articulou o que veio a chamar-se doutrina Powell, que tinha como elemento o ataque com força decisiva. Deveria

haver algo análogo na teoria econômica, talvez a doutrina Krugman-Stiglitz. Quando uma economia está fraca, muito fraca, como parecia estar a economia mundial no começo de 2009, o ataque deve ser feito com força esmagadora. Um governo pode sempre reter a munição adicional e deixá-la à sua disposição imediata, mas não ter essa munição à disposição pode provocar consequências destrutivas a longo prazo. Atacar o problema com munição insu ciente era uma estratégia perigosa, especialmente à medida que ia cando claro que o governo Obama havia subestimado a intensidade do declínio, inclusive o aumento do desemprego. Pior ainda, pois por um lado o governo persistia em seu apoio aparentemente ilimitado aos bancos e, por outro, não parecia haver uma visão de futuro para a economia americana e para seu combalido setor nanceiro.     visão

  O New Deal de Franklin Roosevelt deu forma à vida econômica dos Estados Unidos por meio século, até que esquecêssemos as lições da Grande Depressão. Em 2008, com o sistema nanceiro dos Estados Unidos em frangalhos e com a economia passando por transformações súbitas e difíceis, necessitávamos ter uma visão a respeito do tipo de mercado nanceiro e de economia que queríamos ter após a crise. Nossas ações afetariam, ou poderiam afetar, a forma da nossa economia por várias décadas. Necessitávamos de uma nova visão, não só porque nosso velho modelo fracassara, mas também porque aprendêramos, com muita dor, que as premissas em que se baseava o modelo antigo estavam erradas. O mundo se modi cava e não estávamos conseguindo acompanhar o ritmo. Uma das maiores forças de Obama era a capacidade de engendrar esperança — um sentimento a respeito do futuro e da possibilidade da mudança. Contudo, em um sentido mais profundo, Obama, o “sem drama”, era conservador. Ele não ofereceu uma visão alternativa do capitalismo. Além do merecidamente famoso discurso na Cooper Union, antes

mencionado, e de juntar sua voz ao coro de críticas aos bônus pagos com os resgates, Obama tinha pouco a dizer sobre o novo sistema nanceiro que surgiria das cinzas e sobre como funcionaria. O que ele ofereceu foi um plano amplo e pragmático para o futuro — programas ambiciosos para dar um jeito nos sistemas de saúde, educação e energia — e uma tentativa, ao estilo Reagan, de substituir o sentimento de desespero do país pela esperança, em uma situação em que o desespero era a consequência natural de uma cadeia aparentemente sem m de más notícias sobre a economia. Obama tinha também outra visão — a de um país menos dividido do que durante o governo Bush e menos polarizado por lutas ideológicas. É possível que o novo presidente tenha evitado uma discussão profunda sobre o que dera errado na economia americana — e especi camente sobre os erros cometidos por membros do setor nanceiro — por temer que, ao fazê-lo, pudesse provocar con itos em uma hora em que necessitava de unidade. Uma discussão ampla e completa levaria à coesão social ou exacerbaria o con ito? Se, como argumentavam alguns observadores, a economia e a sociedade estivessem enfrentando apenas um problema menor, melhor seria deixar que os males se curassem sozinhos. O risco, no entanto, era que os problemas na verdade fossem uma feridas in amadas que só pudessem ser curadas pela exposição aos efeitos antissépticos da luz do sol. Se os riscos de formular uma visão eram claros, os riscos de não tê-la também eram. Sem uma visão, todo o processo de “reforma” poderia ser captado pelas pessoas do setor nanceiro, deixando o país com um sistema nanceiro ainda mais frágil do que o que fracassara e menos capaz de lidar com o risco e de encaminhar os recursos com e ciência aos lugares onde devem estar. Precisávamos encaminhar mais dinheiro para os setores de alta tecnologia do país, criar novos empreendimentos e expandir os já existentes. Havíamos canalizado dinheiro demais para o setor imobiliário — dinheiro demais e em quantidade superior à capacidade de pagamento de quem o recebia. A função do setor nanceiro era encaminhar os fundos aos

destinos em que os ganhos para a sociedade fossem os mais altos. E nisso ele fracassara por completo. O setor nanceiro tinha sua própria visão, baseada na geração de mais lucros e, sempre que possível, o retorno ao mundo pré-2007. As empresas nanceiras haviam passado a ver suas atividades como um m em si mesmo e se orgulhavam do seu porte e da sua lucratividade. Mas o sistema nanceiro é um meio e não um m em si mesmo. Lucros excessivos no setor nanceiro podem acontecer em detrimento da prosperidade e da e ciência do resto da economia. O gigantesco setor nanceiro teria que ser reduzido — ao mesmo tempo que alguns de seus componentes, como os empréstimos para as pequenas e médias empresas, teriam que ser reforçados. O governo Obama tampouco tinha (ou pelo menos não articulou) uma visão clara da razão do fracasso do sistema nanceiro dos Estados Unidos. Sem uma visão do futuro e sem a compreensão das falhas do passado, sua resposta foi vacilante. Inicialmente, ofereceu pouco mais do que as costumeiras banalidades sobre uma regulação melhor e uma operação bancária mais responsável. Em vez de replanejar o sistema, o governo gastou grande parte do dinheiro para reforçar o fracassado sistema existente. Instituições “grandes demais para poder falir” repetidamente recorriam ao governo para obter resgates, mas o dinheiro dos contribuintes que se dirigia aos grandes bancos, que eram o centro do fracasso, na verdade reforçava a parte do sistema que sempre lhe trazia problemas. Ao mesmo tempo, o governo não estava desembolsando recursos na mesma proporção para fortalecer as partes do setor nanceiro que forneciam capital para os setores dinâmicos da economia — novos empreendimentos e pequenas e médias empresas.     a grande aposta: dinheiro e justiça

 

Sob certos pontos de vista, o enfoque do governo Obama pode ser descrito como pragmático, como um compromisso realista com as forças políticas existentes e mesmo como um esforço sensato para ajustar a economia. Obama enfrentava um dilema nos dias que se seguiram à sua eleição. Ele queria acalmar as tempestades em Wall Street, mas precisava dedicar-se a corrigir suas falhas fundamentais e a atender às preocupações do povo americano. O começo foi bom. Praticamente todos desejavam seu êxito. Mas ele devia saber que não pode agradar a todos ao mesmo tempo no meio de uma grande guerra entre as pessoas comuns e Wall Street. O presidente cou no meio. Nos anos de Clinton, essas tensões foram mantidas abaixo da superfície. Clinton indicou assessores econômicos de diversas posições, com Robert Reich, seu velho amigo dos tempos de Oxford, à esquerda (como secretário do Trabalho); Robert Rubin e Larry Summers à direita; e Alan Blinder, Laura Tyson e eu próprio no Conselho de Assessores Econômicos, ao centro. Era, na verdade, um gabinete que re etia ideias rivais e os debates eram intensos, embora quase sempre civilizados. Lutamos em torno de prioridades — atribuí-las à redução do dé cit, ou aos investimentos e à satisfação de necessidades básicas (reforma dos programas de bem-estar social e de saúde, com ampliação dos benefícios). Sempre achei que a preferência de Clinton estava na esquerda e no centro, mas as realidades da política e do dinheiro levavam a perspectivas diferentes: a direita ganhou em muitas questões, especialmente depois das eleições parlamentares de 1994, através das quais os republicanos tomaram o controle do Congresso. Uma das questões que mais levantavam a pressão arterial se referia ao ataque à rede de proteção das corporações, os megapagamentos às empresas americanas sob a forma de subsídios e tratamento scal favorecido. Rubin não gostava da expressão “rede de proteção das corporações” e achava mesmo que tinha conotações de luta de classes. Fiquei do lado de Reich: não se tratava de luta de classes e sim de uma

questão econômica. Os recursos são escassos e o papel do governo é aumentar a e ciência da economia e ajudar os pobres e os desvalidos. Esses pagamentos às empresas tornavam a economia menos e ciente. As redistribuições estavam sendo feitas no sentido inverso e, sobretudo em uma época de aperto scal, isso signi cava que o dinheiro que devia ir para os americanos pobres, ou para investimentos de alto retorno em infraestrutura e tecnologia, se dirigia, ao contrário, para corporações ricas. O país como um todo pouco se bene ciava desse dinheiro que se esvaía a partir de Washington. Nos últimos dias do governo Bush, a rede de proteção das corporações alcançou níveis altíssimos: as somas gastas estavam além da imaginação de qualquer pessoa em qualquer governo anterior. Essa rede de proteção se estendeu dos bancos comerciais aos bancos de investimento e por m a uma companhia de seguros — a rmas que não haviam pago seguro contra os riscos em função dos quais agora recebiam dinheiro dos contribuintes e que, além disso, haviam feito de tudo para escapar do pagamento de impostos. Quando Obama tomou posse, a questão era saber se ele prosseguiria com essa proteção às corporações ou se buscaria novo equilíbrio. E se ele desse mais dinheiro aos bancos, exigiria algum tipo de responsabilização? Exigiria que os contribuintes recebessem dinheiro de volta? Wall Street não exigiria nada menos se tivesse que socorrer alguma rma infeliz que estivesse sofrendo a ameaça da falência. O governo Obama decidiu, sobretudo na área crucial da reestruturação bancária, correr o grande risco de manter basicamente a linha demarcada pelo governo Bush e evitar, tanto quanto possível, seguir as regras usuais do capitalismo. Quando uma rma não consegue pagar suas dívidas, vai à falência (ou pede concordata), situação em que normalmente os acionistas perdem tudo e os credores se tornam os novos acionistas. Do mesmo modo, quando um banco não pode pagar o que deve, é forçado a car sob “tutela” do governo. Para satisfazer Wall Street — e talvez para acelerar sua recuperação —, ele preferiu arriscar-se a provocar a ira do cidadão comum. Se a estratégia de Obama funcionasse, isso permitiria evitar grandes

batalhas ideológicas. Se a economia se recuperasse rapidamente, o cidadão comum poderia perdoar a generosidade oferecida a Wall Street. Havia, contudo, fortes riscos inerentes a essa linha: riscos para a economia, a curto prazo, riscos para a posição scal do país, a médio prazo, e riscos para o nosso sentido de justiça e a nossa coesão social, a longo prazo. Toda estratégia envolve riscos, mas não estava claro se a longo prazo essa estratégia os minimizaria. Esta apresentava também o risco de desagradar até muitos integrantes do setor nanceiro, que percebiam ser essa política dirigida pelos grandes bancos. O tabuleiro do jogo já se inclinava em favor das megainstituições e isso parecia acentuar-se, sobretudo em favor das partes do sistema nanceiro que causaram os problemas logo no início. Encontrar maneiras de fazer chegar dinheiro aos bancos teria custos e poderia comprometer a agenda com a qual Obama vencera as eleições. Ele não aspirara à presidência para ser o médico de emergência do sistema bancário. Bill Clinton já sacri cara boa parte das suas ambições presidenciais ante o altar da redução do dé cit. Obama se arriscava a perder as suas ante o altar ainda menos nobre da recapitalização bancária, devolvendo a saúde aos bancos para que estes pudessem dedicar-se de novo aos procedimentos insensatos que haviam sido responsáveis pelo estado tormentoso em que se encontrava a economia. A aposta de Obama de conservar a linha estabelecida pelo governo Bush com relação aos resgates dos bancos tinha múltiplas dimensões. Se a debilidade econômica se revelasse mais profunda e mais duradoura que o estimado, ou se os problemas dos bancos fossem maiores do que eles próprios diziam ser, os custos da solução seriam maiores. Obama poderia não dispor de dinheiro para resolver os problemas. Talvez fossem necessários montantes adicionais para uma segunda rodada de estímulos. O Congresso poderia desenvolver resistências aos crescentes gastos com os bancos e di cultar a liberação dos fundos. E por certo os gastos nessa área prejudicariam o desenvolvimento das suas outras prioridades. Até mesmo sua autoridade moral poderia ser posta em dúvida, uma vez que os resgates pareciam recompensar exatamente os que levaram os Estados Unidos e o

mundo à beira da ruína. O clamor do povo contra o setor nanceiro só faria crescer, pois esse setor utilizara seus lucros desproporcionais para comprar a in uência política que primeiro liberou o mercado nanceiro das regulações e depois garantiu resgates de trilhões de dólares. Não se podia saber por quanto tempo o público toleraria a hipocrisia dos antigos defensores da responsabilidade scal e do mercado livre, que continuavam a criticar a ajuda aos pobres donos de casas com base no critério de risco moral — no sentido de que ajudá-los levaria a novos resgates e reduziria o incentivo ao pagamento dos empréstimos —, ao mesmo tempo que continuavam a pedir desenfreadamente recursos para si próprios. Obama logo veria que seus novos aliados das nanças eram amigos caprichosos. Eles estavam prontos a aceitar bilhões de dólares em ajuda e assistência, mas se Obama desse alguma razão às críticas que a principal corrente de pensamento dos Estados Unidos fazia aos pagamentos exagerados feitos aos corretores nanceiros, a ira destes últimos se voltaria contra ele. E se Obama não zesse nenhuma crítica, pareceria fora de sintonia com o sentimento do cidadão comum com relação ao uso dado ao dinheiro que os contribuintes haviam passado aos banqueiros. Devido aos excessos cometidos pelos banqueiros, que custaram tanto a tantos americanos, ninguém deveria car surpreso com hipérboles e invectivas lançadas contra o sistema nanceiro. Mas, na verdade, as hipérboles estavam chegando do outro lado. Um projeto de lei destinado a limitar as compensações aos executivos dos bancos que recebiam dinheiro de resgate foi denominado “Lei Nuremberg”.12 O presidente do Conselho Diretor do Citigroup a rmou que todo mundo tinha alguma culpa, mas que “a cultura está muito mais acostumada a encontrar um vilão e difamar o vilão”.13 Uma “esposa tarp” a rmou que a queda em desgraça dos banqueiros americanos foi “mais rápida e mais dura do que qualquer outra desde que Mao mandou os intelectuais da China para o campo”.14 Não há dúvida de que os algozes se sentiram vítimas. Se Obama foi tão duramente criticado por levantar preocupações quanto aos pagamentos aos banqueiros, não surpreende que suas manobras não o

tenham conduzido a articular uma visão clara do tipo de setor nanceiro que deveria surgir após a crise. Não só os bancos tinham se tornado grandes demais para poder falir, como fortes demais politicamente para poder ser controlados. Se alguns deles caram tão grandes a ponto de não poder falir, por que permitir esse tamanho? Os americanos já deveriam ter um Sistema Eletrônico de Transferência de Fundos digno do século xxi, com a redução dos custos das transações que a tecnologia atual propicia, e não há desculpas para que os bancos americanos ainda não o tenham instalado. Os americanos já deveriam ter um sistema hipotecário que fosse pelo menos tão bom quanto o da Dinamarca, ou de qualquer outro país — mas não têm. Por que permitir que essas instituições nanceiras, que foram salvas pelos contribuintes americanos, continuem a saquear o cidadão normal com práticas enganosas de cartões de crédito e empréstimos também predatórios? A própria formulação dessas perguntas já seria vista como hostil pelos grandes bancos. Observei antes que, durante o governo Clinton, a reação de alguns membros do gabinete àqueles de nós (eu e Robert Reich, por exemplo) que chamavam de “rede de proteção social das corporações” os bilhões de dólares de subsídios que as empresas ricas recebiam era a de que estávamos promovendo a luta de classes. Se as nossas sóbrias tentativas de mitigar o que na perspectiva de hoje eram pequenos excessos foram recebidas com tal insulto, o que se poderia esperar como resposta a um ataque direto a estas novas e inéditas transferências de recursos para o setor nanceiro dos Estados Unidos?   Um padrão familiar começa a desdobrar-se   Com a chegada da crise, senti a preocupação de que o que tantas vezes eu vira acontecer nos países em desenvolvimento sucedesse também nos Estados Unidos. Os banqueiros, que em grande medida haviam precipitado o problema, se aproveitaram do pânico resultante para redistribuir riqueza — tirando da bolsa do povo para rechear a deles próprios. Em todo caso, foi

dito aos contribuintes que o governo tinha que recapitalizar os bancos para que a economia se recuperasse. Nas crises anteriores, o governo deu bilhões de dólares aos bancos na base de pai para lho e a economia acabou por recuperar-se. (Toda recessão termina e, em muitos casos, não ca claro se os resgates aceleraram ou atrasaram a recuperação.)15 Com a recuperação, o país, agradecido, dá um suspiro de alívio e presta pouca atenção ao que ocorre abaixo da superfície. O custo do resgate bancário do México em 1994-7 foi estimado em 15% do pib do país, e uma parte substancial dessa soma foi parar nas mãos dos ricos donos de bancos.16 Apesar dessa enorme infusão de capital, os bancos não chegaram a retomar os empréstimos, e a oferta reduzida de crédito contribuiu para o baixo crescimento do México durante a década seguinte. Dez anos depois, os salários dos trabalhadores mexicanos, descontada a in ação, eram mais baixos e a desigualdade, maior.17 Assim como a crise mexicana pouco fez para diminuir o poder dos banqueiros, a crise americana não signi cou o m da in uência do setor nanceiro. A riqueza do setor pode ter diminuído, mas o capital político de algum modo sobreviveu. O mercado nanceiro continuou a ser o fator mais importante da política americana, sobretudo no reino da economia. Sua in uência era direta e indireta. As rmas envolvidas no mercado nanceiro zeram contribuições de campanha de centenas de milhões de dólares para ambos os partidos políticos ao longo de uma década18. E colheram bons frutos — muito maiores que os gerados no que supostamente é sua área de especialidade, ou seja, investimentos e empréstimos. Os primeiros frutos vieram com o movimento de desregulação. Lucros melhores ainda vieram com os maciços resgates governamentais. Estou certo de que esperam obter ainda mais ganhos com esses “investimentos” — inviabilizando um retorno às regulações. As portas giratórias de Washington e Nova York também alimentaram o movimento para evitar novas iniciativas regulatórias. Um grupo de funcionários que tinham vínculos diretos ou indiretos com o setor

nanceiro foi incumbido de formular as regras para o seu próprio ramo de atividade. Quando os funcionários que têm a responsabilidade de formular as políticas para o setor nanceiro provêm do próprio setor nanceiro, por que haveríamos de esperar que eles incorporem pontos de vista marcadamente diferentes daqueles que o setor deseja? Por um lado, existem processos mentais já estabelecidos, além do que não se pode ignorar por completo o papel dos interesses pessoais. Indivíduos cujas perspectivas de vida e de trabalho futuro dependem do desempenho dos bancos têm maior probabilidade de concordar com a premissa de que o que é bom para Wall Street é bom para os Estados Unidos.19 Se ainda houvesse a necessidade de comprovar o alcance da in uência dos mercados nanceiros, o contraste entre o tratamento dado aos bancos e o que recebeu a indústria automobilística o teria demonstrado.   O resgate dos automóveis   Os bancos não eram as únicas rmas que precisavam de resgate. No m de 2008, duas das três grandes fábricas de automóveis, a gm e a Chrysler, estavam à beira do colapso. Mesmo as empresas automobilísticas bem geridas enfrentavam problemas em consequência da calamitosa redução das vendas — e ninguém a rmaria que essas duas empresas eram bem geridas. Havia a preocupação de que ocorresse um efeito cascata: seus fornecedores iriam à falência, o desemprego aumentaria muito e a desaceleração econômica pioraria. Fato notável foi que, mesmo em público, alguns dos nancistas que correram a Washington para pedir ajuda argumentaram que uma coisa é resgatar os bancos — que são a corrente sanguínea da economia — e outra muito diferente é sair resgatando empresas que produzem bens. Isso seria o m do capitalismo como o conhecemos. O presidente Bush hesitou — e transferiu o problema para seu sucessor, dando às empresas uma ajuda que as manteria utuando por um curto período. A condição para uma assistência maior era de que elas

desenvolvessem um plano viável de sobrevivência. O governo Obama articulou uma clara duplicidade de critérios: os contratos dos executivos da aig eram sacrossantos, mas os contratos salariais dos trabalhadores das empresas que recebiam ajuda deviam ser renegociados. Trabalhadores de baixa renda que tinham labutado a vida inteira e não haviam feito nada de errado teriam que aceitar uma redução salarial, mas não os nancistas que ganhavam mais de 1 milhão de dólares por ano e que haviam posto o mundo à beira da ruína nanceira. Estes eram tão preciosos que tinham que receber bônus de permanência, mesmo que não houvesse lucros com os quais pagar tais bônus. Os executivos dos bancos podiam continuar com seus altos salários; os executivos das empresas automobilísticas tiveram que mostrar um pouco menos de arrogância. Mas diminuir a arrogância não bastava: o governo Obama forçou as duas empresas a ir à falência. As regras normais do capitalismo anteriormente descritas foram aplicadas: os acionistas perderam tudo e os credores e outros reclamantes (fundos sindicais de previdência e governos que ajudaram a salvar as empresas) se tornaram os novos acionistas. Os Estados Unidos entravam em nova fase de intervenção governamental na economia. Isso pode ter sido necessário, mas o que deixou muita gente intrigada era a razão de ser da duplicidade de critérios. Por que os bancos receberam um tratamento tão diferente do que foi dado às empresas automobilísticas? Isso tornou ainda mais nítido um problema maior que afeta a reestruturação do país: Dada a pressa com que foi feito o remendo de 50 bilhões de dólares que o governo proporcionou no verão de 2009, havia pouca con ança de que funcionasse bem. Também havia pouca con ança de que as empresas, que basicamente mantinham os mesmos diretores (embora o chefe da gm tenha sido substituído) e que não haviam conseguido competir contra os concorrentes japoneses e europeus durante 25 anos, de repente chegassem a ser as melhores da classe. Se o plano não funcionasse, o dé cit nacional dos Estados Unidos aumentaria em 50 bilhões de dólares, mas a tarefa de reestruturar a economia quase não teria avançado.

  Resistência à mudança   Com o aumento do vigor da tempestade nanceira, nem os banqueiros nem o governo queriam envolver-se em discussões losó cas sobre quais seriam as principais características de um sistema nanceiro novo e bom. Os banqueiros só queriam que se injetasse mais dinheiro no sistema. Quando surgiam discussões sobre a possibilidade de que se adotassem novas regulações, eles tocavam o sinal de alarme. Em um encontro de titãs do mundo dos negócios em Davos, quando a crise já era ameaçadora, em janeiro de 2007, uma das preocupações expressas com maior intensidade se referia à possibilidade de uma “reação excessiva”, em referência a novas regulações. Sim, eles admitiam que alguns excessos haviam sido cometidos, mas a lição fora aprendida. O risco faz parte do capitalismo. O risco real, argumentavam, era o excesso de regulação, que as xiaria as inovações. Mas não bastava dar mais dinheiro aos bancos. Eles haviam perdido a con ança do povo americano — e com muita razão. Suas “inovações” não haviam levado a um crescimento maior e sustentável nem haviam ajudado os americanos médios a administrar os riscos da propriedade imobiliária; conduziram apenas à pior recessão desde a Grande Depressão e a resgates maciços. Dar mais dinheiro aos bancos sem modi car seus incentivos e sem resolver os problemas que eles enfrentavam apenas permitiria que continuassem no rumo em que estavam. E, em grande medida, foi isso que de fato aconteceu. A estratégia dos atores dos mercados nanceiros era clara: deixar falar os que defendem uma mudança real no setor bancário, pois a crise estaria superada antes que se pudesse chegar a um acordo sobre isso. E, com o m da crise, a pressão em favor da reforma desapareceria.20   Dança das cadeiras no Titanic  

O maior desa o de um novo presidente é a escolha da equipe. Embora a expectativa convencional em torno dos indicados seja a de que eles re itam e implementem a visão do presidente, na verdade, em uma área de grande complexidade como a economia, são eles que dão a forma dos programas. O novo presidente enfrentava um importante dilema: sua opção seria pela continuidade ou pela mudança? E isso era verdade tanto com relação aos assessores quanto às políticas. Quanto capital político ele estaria disposto a gastar para superar a resistência à mudança? A equipe de Bush era composta por Ben Bernanke, o presidente do Banco Central, indicado por ele em 2006; Timothy Geithner, presidente do Banco Central de Nova York; e Henry (Hank) Paulson, secretário do Tesouro. Ben Bernanke herdou uma bolha em desenvolvimento e pouco fez para desin á-la.21 Talvez isso fosse até compreensível: Wall Street se bene ciava de lucros inigualáveis, com base na bolha, e não caria nem um pouco satisfeita se Bernanke tomasse medidas que zessem murchar a bolha, ainda que gradualmente. Mesmo que ele tivesse reconhecido a existência da bolha, enfrentaria um dilema: se soasse o alarme — se, por exemplo, tentasse impedir os empréstimos imobiliários mais temerários e a complexa securitização que se estabeleceu em torno deles —, caria com a culpa de ter feito murchar a bolha e desacelerado a economia. E começariam a surgir todas as comparações desfavoráveis com relação a Alan Greenspan, o maestro que o precedeu, que (alega-se) teria sabido desin ar a bolha gradualmente, ou mesmo sustentá-la para sempre! E havia ainda outras razões possíveis para que Ben Bernanke deixasse a bolha crescer. Talvez ele tivesse levado a sério a retórica de Greenspan: talvez achasse mesmo que não havia bolha alguma e sim apenas uma pequena marola; talvez de fato acreditasse que, de qualquer modo, nunca se pode ter certeza da existência de uma bolha até que ela estoura.22 Talvez ele acreditasse, assim como Greenspan, que o Fed não dispunha de instrumentos capazes de desin ar a bolha gradualmente e que fosse mais fácil consertar as coisas depois que ela estourasse.

De todo modo, é difícil imaginar como e por que um economista sério não deve car preocupado — tão preocupado que o alarme teria que soar. Em qualquer dos dois casos, o quadro não é o mais brilhante: um presidente de Banco Central cria uma bolha e um sucessor seu a deixa continuar até ultrapassar todas as proporções. Tim Geithner tivera um papel de mais longo prazo. Ele fora assistente de Larry Summers e Robert Rubin, dois dos artí ces do movimento de desregulação da era Clinton. Mais ainda, foi o principal regulador dos bancos de Nova York — inclusive o maior dos maiores, o Citibank, com ativos de quase 2,36 trilhões de dólares em 2007.23 Geithner fora o seu regulador-chefe desde 2003, quando foi indicado presidente do Banco Central de Nova York. Evidentemente, como regulador, ele não viu nada de errado no que os bancos de Nova York estavam fazendo — muito embora logo eles estivessem precisando de bilhões de dólares de assistência governamental. É claro que ele fez discursos alertando contra os riscos excessivos. Mas ele era o regulador, e não um pregador. O terceiro membro da equipe de Bush para a crise era Henry Paulson, que, como o secretário do Tesouro de Clinton, Robert Rubin, se mudara para Washington depois de um tempo como chefe da Goldman Sachs. Já com a fortuna feita, ele se voltou para o serviço público. É notável que o presidente Obama, que zera a campanha com base na promessa de uma “Mudança em que você pode acreditar”, tenha feito apenas um ligeiro rearranjo nas cadeiras no convés do Titanic. Os de Wall Street recorreram ao seu instrumento de sempre — o medo de “assustar” o mercado — para conseguir o que queriam: uma equipe que já havia demonstrado propensão a dar aos bancos amplas somas em termos favoráveis. Geithner substituiu Paulson como secretário do Tesouro e Ben Bernanke cou onde estava. Seu mandato duraria até o começo de 2010, mas Obama anunciou em agosto de 2009 que o con rmaria para um segundo mandato, até 2014. Para coordenar a equipe econômica, Obama chamou o antigo assistente de Rubin, Larry Summers, que declarou que um dos seus grandes êxitos

como secretário do Tesouro em 1999-2001 foi assegurar que os derivativos explosivos permaneceriam desregulados. Obama escolheu sua equipe apesar de dever saber — e de certamente ter sido advertido a esse respeito — que era importante contar com caras novas na mesa de jogo, que não tivessem interesses e compromissos com a área nanceira no passado, seja no movimento pela desregulação, que nos levou ao problema, seja nas hesitações que marcaram os resgates de 2008, de Bear Stearns a Lehman Brothers e à aig. Um quarto membro da equipe de Obama era outro nome herdado de Bush, Sheila Blair, chefa da Corporação Federal de Seguro de Depósitos (Federal Deposit Insurance Corporation — fdic), o órgão que, como diz o nome, assegura os depósitos bancários. Enquanto Bush cava inerte diante da enxurrada de falências, ela se tornou uma eminente defensora de que algo fosse feito para ajudar os proprietários de casas, através da reestruturação das hipotecas e, ironicamente, à medida que crescia a desilusão com alguns membros da nova equipe de Obama, ela aparecia como a única pessoa da equipe econômica com vontade e coragem su cientes para enfrentar os grandes bancos. Muitos dos truques de “fumaça e espelhos”, destinados a nanciar os bancos sem ter que passar pelo Congresso, envolviam a mágica do fdic, cuja nalidade era proteger os pequenos depositantes e não garantir os títulos bancários ou emprestar dinheiro para ajudar os fundos de hedge a comprar os papéis tóxicos dos bancos a preços superin acionados. Como disse o New York Times, a questão era saber “se eles [a equipe econômica de Obama] aprenderam com os erros anteriores e, nesse caso, o que aprenderam”.24 Obama escolhera uma equipe de servidores públicos honestos, dedicados a bem servir o país. O problema não era esse. As questões eram a sua maneira de ver o mundo e a maneira como os americanos os veriam. Precisávamos de uma nova visão para os mercados nanceiros, e as tarefas de formular, articular e concretizar essa visão requereriam todo o talento político e econômico de Obama e da sua equipe. Pessoas como essas, tão envolvidas nos erros do passado, seriam as

ideais para implementar uma nova visão e tomar as decisões mais difíceis? Ao olhar para a história e para as experiências de outros países, eles aprenderiam as lições corretas? Muitos dos funcionários encarregados de tomar decisões cruciais sobre regulação tinham posições tomadas havia muito tempo a respeito dos tópicos em discussão. Em psicologia se conhece um fenômeno denominado comprometimento crescente. Uma vez tomada uma posição, a pessoa se sente compelida a defendê-la. A ciência econômica oferece uma perspectiva contrastante: o que passou passou. Deve-se olhar sempre para a frente, avaliar se as posições tomadas anteriormente funcionaram e, se não for esse o caso, evoluir para uma nova posição. Os psicólogos têm razão e os economistas não, o que não surpreende. Os defensores da desregulação tinham o interesse já assumido de lograr que suas ideias prevalecessem — mesmo diante de esmagadoras indicações do contrário. Pois bem: quando parecia que teriam que ceder ante as exigências de regulação, pelo menos em certos casos, havia o temor de que procurariam fazer que as novas regulações cassem o mais próximo possível das suas ideias anteriores. Quando eles dissessem que as regulações (por exemplo, sobre os derivativos explosivos) propostas por eles seriam as “certas” — nem duras demais nem suaves demais, mas sim a média ponderada entre os extremos —, suas declarações teriam credibilidade? Havia outra razão para a preocupação com o fato de tantos membros da equipe anterior terem sido preservados. A crise demonstrara que as análises econômicas, modelos e julgamentos dessa equipe estavam extremamente equivocados. Era inevitável, no entanto, que a equipe econômica tivesse o desejo de acreditar no oposto. Em vez de uma rápida aceitação de que havia ocorrido uma grande quantidade de maus empréstimos com base em preços formados pela bolha, os membros da equipe queriam acreditar que o mercado estava apenas temporariamente deprimido e que, se conseguisse restaurar depressa a “con ança”, os preços das casas também seriam restaurados e a economia continuaria como antes. Basear a política econômica nessa esperança era arriscado e tão insensato quanto os próprios

empréstimos bancários que precederam a crise. As consequências se esboçariam no transcurso dos meses seguintes. Mas não se tratava apenas de uma questão de pontos de vista a respeito de economia. Alguém teria que arcar com as perdas: quem seria — o contribuinte americano ou Wall Street? Quando os assessores de Obama, tão intimamente ligados ao setor nanceiro e aos fracassos do passado, diziam que haviam pressionado os bancos até o limite ao lhes impor os maiores sacrifícios possíveis, cuidando apenas de não prejudicar sua capacidade de emprestar dinheiro, era possível acreditar neles? Os americanos acreditariam que a equipe estava trabalhando para eles? — ou para Wall Street? Os princípios econômicos (que requerem que as rmas paguem pelas consequências de seus atos) e a justiça indicavam que os bancos deveriam pagar pelo menos a integralidade dos custos de estabilizar o sistema nanceiro — mesmo que não tivessem que pagar pelos danos que provocaram. Mas os bancos diziam que fazê-los pagar prejudicaria a recuperação. Os bancos que sobreviveram diziam que não era “justo” fazêlos pagar pelas perdas dos que fracassaram — mesmo sabendo que sua própria sobrevivência dependera, em momentos cruciais, da ajuda do governo. O governo Obama cou do lado dos bancos. O governo podia alegar que, ao proceder assim, não estava simplesmente dando um presente aos bancos e que não tinha opções para salvar a economia. Os americanos suspeitaram, e com razão: Como veremos nos capítulos seguintes, havia opções que teriam preservado e fortalecido o sistema nanceiro e feito mais em favor da restauração dos empréstimos; opções que, a longo prazo, teriam deixado o país com uma dívida nacional centenas e centenas de bilhões de dólares menor e com uma sensação superior de justiça. Mas essas opções teriam deixado mais pobres os acionistas e os credores dos bancos. Para os críticos do pacote de resgate de Obama, não houve surpresa no fato de sua equipe, tão estreitamente ligada a Wall Street, não ter promovido essas opções.

Conservar tantos integrantes da equipe anterior também expôs o presidente à culpa por certas decisões tomadas, ou pelo menos aparentemente tomadas, pelo Fed. O Fed e o Tesouro pareciam atuar coordenadamente no tempo de Bush, e essa intimidade continuou no tempo de Obama. Ninguém sabia bem quem dava as ordens. E a uidez da transição sugeria que nada mudara. Paulson deu 89 bilhões de dólares para ajudar a aig e sua antiga rma, Goldman Sachs, foi a maior bene ciária. E isso já era bem ruim. Mas depois esse montante foi quase duplicado para 180 bilhões de dólares (o que ocorreu em parte já no tempo de Obama). Pior ainda foi a maneira pela qual as obrigações da aig foram resolvidas — e os 13 bilhões entregues a Goldman Sachs estão entre os mais difíceis de justi car. Se uma companhia de seguros decide cancelar uma apólice de seguro contra incêndio pertencente a um americano comum, a pessoa tem de procurar outra empresa de seguros que esteja disposta a lhe dar cobertura. Mas, quando o governo decidiu cancelar as apólices que a aig tinha com Goldman Sachs, o governo as pagou como se a casa tivesse sido totalmente devorada pelo fogo. Não havia justi cativa para essa generosidade: outros seguros de crédito haviam sido liquidados a 30% do valor nominal.25 Esse e outros episódios despertaram inquietude a respeito das motivações dessas decisões — a respeito do que se fez e do que não se fez — tomadas durante a crise. Como pôde o governo dizer, por exemplo, que os bancos eram grandes demais para falir — na verdade, tão grandes que as regras normais do capitalismo tiveram que ser suspensas para proteger seus acionistas e credores — sem propor, ao mesmo tempo, que eles fossem divididos, ou taxados, ou objeto de restrições adicionais, de modo que não voltassem a ser grandes demais para falir?26 Do mesmo modo, é impossível não perguntar como o governo americano, depois de referir-se à importância da reestruturação das hipotecas, pôde criar um pacote tão ine caz. Havia uma resposta óbvia, mas inquietante (que discutiremos no capítulo 4): o que deveria ser feito forçaria os bancos a reconhecer as perdas decorrentes dos seus maus empréstimos, e isso eles não queriam admitir.

  Nova versão de um velho con ito   Os americanos há muito descon am dos bancos, especialmente os grandes bancos, o que se re ete nas controvérsias a respeito das propostas do primeiro-secretário do Tesouro, Alexander Hamilton, em favor do estabelecimento de um banco nacional. As regulações relativas à operação bancária em mais de um estado (que foram nalmente abolidas pelo presidente Clinton) se destinavam a limitar o poder dos grandes bancos de Nova York e outras grandes cidades. As cidades menores dependiam dos bancos para ter recursos e os lucros dos bancos provinham dos empréstimos às cidades menores. Era uma relação simbiótica, mas com frequência permeada pela falta de con ança. A batalha entre Wall Street e a classe média pode ser uma caricatura de con itos complexos entre grupos econômicos diferentes. Existem, contudo, con itos reais de interesses e de perspectivas que a Grande Recessão de 2008 trouxe à baila. Nessa nova variante do antigo con ito entre Wall Street e o resto do país, os bancos apontaram um revólver contra a cabeça do povo americano: “Se vocês não nos derem mais dinheiro, vão sofrer”. Não há escolha — assim diziam eles: se vocês nos impõem restrições, como impedir o pagamento de dividendos ou bônus, ou responsabilizar nossos executivos (como o governo fez no caso da gm), nunca mais poderemos levantar capitais no futuro. Talvez eles tivessem razão — e nesse caso, nenhum político gostaria de estar na posição de ter causado a morte da economia americana. Wall Street usou o medo ao colapso econômico para extrair rapidamente enormes somas de dinheiro dos contribuintes americanos. Era incrível, mas as reclamações continuavam: por que não nos deram mais dinheiro? Por que empregaram a expressão “resgate”? Se tivessem encontrado um nome melhor, como programa de “recuperação”, ou de “investimento”, talvez não houvesse tanta oposição. Os veteranos de crises anteriores sabiam o que vinha pela frente: existiam perdas e haveria batalhas para determinar quem pagaria por elas.

Ninguém se surpreendeu quando Bush se alinhou com Wall Street e cedeu à sua chantagem. Muitos esperavam que Obama adotasse um enfoque mais equilibrado. Mas, a despeito de sua preferência, os atos de Obama ao menos pareceram pender fortemente para o lado dos interesses de Wall Street. Um presidente que deveria reunir todos os grupos na mesma sala de novo pareceu, com a seleção da sua equipe econômica, ter escolhido o lado em que caria, antes mesmo de tomar posse do cargo. Até mesmo a maneira pela qual foi medido o êxito dos resgates pareceu distorcida. Enquanto ainda se escolhiam as maneiras de prestar assistência aos bancos (algumas das quais estão descritas no capítulo 5), a atenção se voltou para a reação de Wall Street e para os preços das ações dos bancos. Mas um acordo melhor para os bancos, que se traduziria em preços mais altos para suas ações, signi cava, de modo recíproco, um acordo pior para os contribuintes. O que a classe média queria era a retomada dos empréstimos e, nesse ponto, praticamente nenhum dos programas de recuperação bancária funcionou. Wall Street tornou a tarefa de Obama, de promover a conciliação nacional, muito mais difícil com a sua insensibilidade política — pagando bilhões de dólares em dividendos e bônus enquanto os contribuintes derramavam bilhões de dólares nos bancos, supostamente para recapitalizálos, para que eles voltassem a fazer empréstimos.27 Com o crescimento do escândalo em torno dos bônus, em fevereiro de 2009, Obama teve de se pronunciar. Mas, ao criticar os bônus, viu-se em uma situação difícil: as esperadas reações positivas de Wall Street logo se dissiparam, e o presidente continuava sem contar com uma equipe econômica que tivesse a con ança do americano médio. Esses erros contaminaram o ambiente político e podem até ter dado forma aos constrangimentos sofridos pelo governo em seus esforços para ressuscitar os bancos, estabilizar o mercado hipotecário e estimular a economia. Os investidores relutavam em participar de alguns programas patrocinados pelo governo, com medo de que, se produzissem os lucros previstos, o Congresso viesse a mudar as regras do jogo e cortar esses

mesmos lucros ou impor outras penalidades e restrições. Embora fosse impossível dizer de quanto dinheiro os bancos precisavam, a crescente impopularidade dos resgates bancários signi cava que, se fosse preciso mais dinheiro, seria muito difícil obtê-lo do Congresso. A situação tornou necessária uma estratégia que envolvia complexidade crescente e pouca transparência. O Congresso deve aprovar todas as despesas do governo, mas o emprego de subterfúgios, através do Fed e da fdic, se transformou em uma prática constante, proporcionando a utilização de fundos que escapavam ao tipo de exposição que os americanos consideram parte essencial da sua democracia.28 O Fed alegou que a Lei da Liberdade de Informação não se aplicava, pelo menos em certos aspectos cruciais. Bloomberg, a empresa de notícias nanceiras, desa ou esse critério. Em agosto de 2009, um Tribunal Distrital dos Estados Unidos deu parecer contra o Federal Reserve. Mesmo assim, o Fed se recusou a aceitar que estivesse sujeito ao tipo de transparência que a nossa democracia espera de uma instituição pública, e apelou.29 Os bancos caram em apuros por haver deixado demasiadas operações que praticavam “fora do balanço” — uma tentativa de iludir investigadores e reguladores — e agora esses magos nanceiros estavam ajudando o governo a fazer a mesma coisa, talvez com o propósito de iludir os contribuintes e os eleitores.30   Perspectivas econômicas   Nove meses depois da posse de Obama, ainda não estava claro se as apostas que ele zera renderiam frutos. A economia já não estava na uti e havia saído da beira do precipício. O melhor que se podia dizer a esse respeito era que, no outono de 2009, a economia parecia estar chegando ao nal de uma queda livre, de um declínio sem m à vista. Mas o m de uma queda livre não é o mesmo que uma volta à normalidade. No outono de 2009, a economia tivera alguns meses de crescimento forte, uma vez que os estoques que haviam sido excessivamente rebaixados

foram repostos.31Mas mesmo esse crescimento pouco ajudou a fechar o hiato entre o desempenho real da economia e seu potencial, e não signi cava que a economia americana, ou a economia mundial, estivesse pronta para uma recuperação sólida no futuro imediato. Com efeito, a maior parte dos pesquisadores previa uma desaceleração do crescimento no nal de 2009 e em 2010 e novos problemas chegando em 2011. A retomada do crescimento signi cava que, do ponto de vista técnico, a recessão havia terminado. Os economistas de nem recessão como dois ou mais trimestres de crescimento negativo. Portanto, quando o crescimento se torna positivo, por mais anêmico que seja, é declarado o m da recessão. Para os trabalhadores, a economia ainda está em recessão quando o desemprego está alto e especialmente quando está aumentando. Para os empresários, a economia está em recessão enquanto eles virem a existência de capacidade ociosa, o que quer dizer que a economia está operando abaixo do seu potencial. Enquanto houver capacidade ociosa, eles não investem. No momento da publicação deste livro, as perspectivas de que a economia volte a produzir à altura do seu potencial, mesmo em um ano ou dois, são reduzidas. Se considerarmos os fundamentos da ciência econômica — deixando de lado o autoengano — falta muito tempo ainda para que o desemprego volte ao nível normal. A simples in exão da curva do crescimento para cima, portanto, não devolve a economia ao lugar onde deveria estar, e o mais provável é que a economia se mantenha em uma estagnação ao estilo japonês por muito tempo até que se restaure o pleno emprego. (O crescimento dos Estados Unidos poderia ser um pouco mais forte que o do Japão no seu longo período de estagnação, simplesmente porque a força de trabalho do Japão está estagnada, enquanto a americana tem crescido ao nível de 1% anualmente. Mas não devemos ter muitas ilusões sobre essa diferença.) Pode haver oscilações no caminho, à medida que a economia sofra um choque ou outro: o súbito colapso de alguma outra instituição nanceira, problemas com o setor imobiliário comercial, ou simplesmente o m do pacote de estímulos, em 2011. Como explicarei

depois, a volta do desemprego aos níveis normais requererá um crescimento sustentado de mais de 3% ao ano, e isso não se vê ainda no horizonte. É natural que tanto o governo quanto os vendedores de ações tentem incutir uma sensação de otimismo. A restauração da con ança deveria encorajar o consumo e o investimento; poderia até mesmo restaurar os preços dos imóveis. E se isso acontecesse, a Grande Recessão de 2008 passaria rapidamente para a história — um pesadelo cuja memória desapareceria depressa. A recuperação dos preços das ações, a partir dos seus níveis mais baixos, com frequência é vista como um barômetro da restauração da saúde econômica. Infelizmente, o simples aumento dos preços das ações no mercado não é um indicador seguro de que tudo vá bem. Esses preços podem subir porque o Fed está inundando o mundo com liquidez e porque a taxa de juros está baixa e as ações parecem mais atraentes que os títulos de dívida. A enxurrada de liquidez aportada pelo Fed encontrará algum caminho. Supostamente, ela deve levar ao aumento dos empréstimos aos empreendedores, mas também pode resultar em uma pequena bolha nos preços dos ativos e do mercado de ações. Ou o aumento dos preços das ações pode ser re exo do êxito das empresas em cortar custos — demitindo mais empregados ou diminuindo salários. Sendo assim, seria uma fonte de problemas para a economia como um todo. Se a renda dos trabalhadores permanece fraca, também será fraco o consumo, que responde por 70% do pib. Como já observei, essa retração é complexa — uma crise nanceira que convive e interage com uma desaceleração econômica. As recessões recentes foram pequenas aberrações temporárias. Na maior parte dos casos, a causa parecia ser o fato de o Fed ter puxado o freio com muita força — por vezes, em consequência de o governo ter antes pisado com muita força no acelerador.32 E a recuperação era fácil: o Fed reconhecia o erro, tirava o pé do freio, voltava a apertar o acelerador, e o crescimento se restabelecia. Outras recessões foram causadas por um acúmulo excessivo de estoques.

Assim que os excessos eram corrigidos — normalmente dentro de um ano —, o crescimento também se recuperava. A Grande Depressão foi diferente: o sistema nanceiro entrou em colapso. A experiência obtida com outras recessões associadas a crises nanceiras mostra que a recuperação nessas circunstâncias é muito mais difícil e longa. Deveríamos celebrar o fato de que os bancos que estavam à beira da falência já não se encontram nessa situação. Apesar do degelo dos mercados nanceiros e do fortalecimento dos balanços das instituições bancárias, há ainda uma in nidade de nuvens no horizonte. Existem, por exemplo, problemas pendentes no mercado nanceiro causados pelo colapso do setor imobiliário comercial e pela persistência dos problemas no setor imobiliário residencial e no endividamento dos cartões de crédito. A persistência do alto nível de desemprego apresentará novos problemas para as hipotecas e os cartões de crédito. As novas medidas que permitem aos bancos manter em seus livros pelo valor nominal hipotecas de baixo desempenho têm comprometido a capacidade de julgamento a respeito da saúde do sistema bancário. Maus empréstimos podem ser renegociados, retardando a chegada do dia da verdade. Mas muitos dos empréstimos para o setor imobiliário comercial foram securitizados e têm de ser renegociados nos próximos anos. O cenário está armado para uma nova onda de falências e fechamentos. Os mercados imobiliários, tanto o comercial quanto o residencial, foram estimulados pelas medidas que o Fed toma usualmente, com a redução das taxas de juros de longo prazo. Que acontecerá quando o Fed deixar de fazer as intervenções extraordinárias nos mercados nanceiros? E que acontecerá se o Fed não deixar de fazê-las, como prometeu, por achar que os riscos de retirar o paciente da uti são grandes demais? Mas ainda que o sistema nanceiro tivesse a saúde restaurada por completo, existem os problemas da economia real. Se examinarmos cada um dos componentes da demanda agregada, veremos que há pouca base para otimismo. Mesmo que estivessem totalmente recuperados, os bancos não estariam dispostos a emprestar descuidadamente como zeram no passado;

e mesmo que estivessem desejosos de emprestar, a maior parte dos americanos não desejaria tomar os empréstimos. Eles aprenderam uma lição custosa. Certamente pouparão mais, e é provável que poupem muito mais do que faziam quando os bancos lhes ofereciam dinheiro a rodo. Mesmo que não houvesse incertezas a respeito do aumento do desemprego, a riqueza de grande parcela dos americanos sofreu uma forte erosão: o valor das suas casas era o seu principal trunfo, e mesmo aqueles que lograram conservar algo desse valor sabem que ele é hoje muito menor e que não voltará aos níveis anteriores durante muitos anos, se é que algum dia voltará. Visto de outra maneira, o processo de desalavancagem — reduzindo, por exemplo, o nível anormal da dívida familiar, que correspondia a 1,3 vez o nível da renda disponível — requer poupanças mais altas que o normal, o que signi ca menores níveis de gastos familiares. Uma recuperação robusta para os outros elementos da demanda agregada também parece problemática. Com tantos outros países enfrentando seus próprios problemas, os Estados Unidos não podem contar com um aumento rápido das exportações. É evidente, como já vimos, que o mundo inteiro não pode crescer através das exportações ao mesmo tempo. Na Grande Depressão, os países tratavam de proteger-se às custas dos vizinhos. Era a política de “arruíne seu vizinho”, que incluía o protecionismo (a imposição de tarifas e outras barreiras ao comércio) e as desvalorizações competitivas (baixar o preço da própria moeda para tornar as exportações mais baratas e as importações mais caras). Esses expedientes não renderão hoje mais do que renderam então, e o mais provável é que fracassem. O crescimento da China tem sido forte, mas seu consumo é ainda tão menor que o dos Estados Unidos que o aumento dos gastos dos chineses não pode compensar o retrocesso havido aqui, e além disso apenas uma pequena fração do aumento dos gastos da China aparecerá como aumento das exportações americanas. E como a crise global afetou fortemente muitos países do mundo em desenvolvimento, os que puderem fazê-lo manterão

somas substanciais como reservas — o que continuará a enfraquecer a demanda global. Sem uma forte recuperação do consumo ou das exportações, é difícil imaginar como os investimentos podem recuperar-se, pelo menos até que a capacidade ociosa da economia expire ou vá desaparecendo com a obsolescência. Enquanto isso, a futura retirada dos estímulos e os cortes nos gastos em níveis estadual e local, em decorrência dos respectivos dé cits de arrecadação scal, provavelmente exercerão uma pressão negativa adicional sobre a economia americana. O que sustentava a economia americana — e, em grande medida, a economia global — antes da crise era um surto de consumo nanciado por dívidas e apoiado em uma bolha imobiliária. As pessoas podiam viver além das suas posses porque acreditavam que os preços das casas não cairiam nunca. Mas ninguém mais acredita nisso agora. O “modelo” em que se baseava o crescimento americano se esgotou, mas não havia nada no horizonte que pudesse substituí-lo. Em síntese, produziu-se um alívio porque a economia saiu da beira do precipício em que parecia estar no outono de 2008, mas ninguém poderia dizer que ela tivesse recuperado a saúde. A dívida crescente punha em risco outros programas do presidente Obama. A ira em torno dos resgates dos bancos também contaminara outras arenas. Mas se, por um lado, os bancos continuavam renitentes em fazer empréstimos, por outro, seus executivos estavam recebendo bônus em níveis recordes (uma pesquisa feita em novembro de 2009 indicou que um operador médio ganhara 930 mil dólares em recompensas),33 e os acionistas gostaram de ver o preço das suas ações subir no mercado. Obama aprendera que não podia satisfazer a todos. Mas será que satis zera as pessoas certas? O que podia parecer uma estratégia de baixo risco — sair da situação de qualquer jeito e evitar con itos — se revelava de alto risco do ponto de vista econômico e político. A con ança no governo corria o risco de baixar; os con itos entre os grandes bancos e o resto do país corriam o risco de tornar-se mais pronunciados; a economia corria o risco de uma recuperação

lenta; e os custosos resgates, abertos ou ocultos, punham em risco a posição scal do governo — assim como outros programas governamentais essenciais para o futuro da nação. Obama poderia ter tomado um curso de ação alternativo, e ainda há muitas opções disponíveis, embora as decisões já tomadas possam ter diminuído substancialmente seu impacto. Nos próximos quatro capítulos descreverei como o governo fez para estimular a economia (capítulo 3), como ajudou ou deixou de ajudar os proprietários de casas (capítulo 4) e como tentou ressuscitar o sistema nanceiro e voltar a regulá-lo (capítulos 5 e 6). O que me preocupa é que, em função das escolhas já feitas, não só a crise será bem mais longa e profunda do que o necessário, mas que sairemos dela com uma carga de dívida muito maior, com um sistema nanceiro menos competitivo, menos e ciente e mais vulnerável a outra crise e com uma economia menos preparada para enfrentar os desa os deste século.

. Uma resposta falha

3

Quando Barack Obama e seus assessores assumiram o poder em janeiro de 2009, defrontaram-se com uma crise de proporções inéditas. Felizmente, reconheceram que não poderiam restaurar a saúde do sistema bancário sem fazer algo a respeito da economia real. Era necessário devolver-lhe a vida e conter a inundação de hipotecas executadas. Há 75 anos os Estados Unidos não passavam por crise tão severa. Mas em outras partes do mundo as crises se haviam tornado lugar-comum. A história e as experiências do exterior apresentavam um tesouro de informações disponíveis sobre como tratar as crises econômicas, inclusive as derivadas do rompimento de bolhas imobiliárias. A equipe de Obama poderia ter recorrido às teorias, aos elementos empíricos e ao bom-senso para formular um pacote que estimulasse a economia a curto prazo e fortalecesse o país para o futuro. Mas nem sempre a política é capaz de ser tão analítica. A ideia mais importante da tarefa de lidar com o rastro de consequências de uma crise é simples: as crises não destroem os ativos reais de uma economia. Os bancos podem quebrar. Muitas rmas e famílias podem ir à falência. Mas os ativos reais são basicamente os mesmos de antes — os mesmos edifícios, as mesmas fábricas, as mesmas pessoas; o mesmo capital humano, físico e natural. O que acontece em uma crise é a erosão da con ança e o enfraquecimento do tecido institucional da sociedade, à medida que os bancos e as rmas se aproximam da falência e a economia de mercados se vê às voltas com batalhas sobre o controle de propriedade.

Nem sempre se sabe muito bem quem é o dono ou controlador de determinados ativos quando, por exemplo, a propriedade é transferida dos acionistas para os credores nos processos normais de falência. Quando uma crise se aproxima, muitos recursos são desperdiçados — na construção de casas, por exemplo, e não em atividades mais produtivas. Mas isso é água que sai pelo ladrão, ou, como dizem, choro pelo leite derramado. A questão é saber como os recursos serão usados depois que a bolha estoura. Em geral, é aí que as perdas ocorrem, quando os recursos não são usados de maneira e ciente e completa e quando o desemprego sobe. Essa é a verdadeira falha do mercado e ela é evitável caso se executem as políticas corretas. O que espanta é a frequência com que as políticas corretas não são executadas e as perdas ocorridas na vigência da bolha se somam às que aparecem depois que ela estoura.     o estímulo

  O grande debate na era da Depressão se deu entre os conservadores scais, que queriam diminuir o dé cit, e os keynesianos, que preferiam que o governo incorresse em dé cits e estimulasse a economia. Em 2008 e 2009, quando todo mundo virou keynesiano devoto (de repente e só por um momento), não havia acordo quanto à forma precisa que a resposta do governo à crise deveria tomar. À época em que Obama tomou posse, o movimento descendente era tão forte que não havia nada que pudesse ser feito para revertê- -lo prontamente. Mas a concepção do estímulo e sua magnitude determinariam a velocidade com que a economia se estabilizaria. Infelizmente, o governo Obama não apresentou um quadro claro do que era necessário. Ao contrário, deixou em grande parte para o Congresso a tarefa de determinar a forma e o tamanho do estímulo. E o que saiu não era bem o que a economia requeria. Um programa de estímulo bem concebido deve re etir sete princípios:  

1. Deve ser rápido. O atraso do presidente George W. Bush custou caro. As políticas econômicas levam meses para tornar-se plenamente efetivas. É imperativo, portanto, pôr sem demora o dinheiro para girar na economia.   2. Deve ser efetivo. Efetividade signi ca tirar o máximo proveito de cada dólar gasto, para provocar um grande aumento nos níveis de emprego e na produção. O aumento da renda nacional para cada dólar gasto se denomina “multiplicador”: na análise keynesiana clássica, um dólar de gasto governamental produz mais de um dólar de aumento do produto nacional. Se o governo gasta dinheiro em um projeto de construção, os trabalhadores gastam o dinheiro que recebem para comprar coisas, o que estimula outros a também gastar esse dinheiro. Cada elo da cadeia alimenta a renda nacional, o que a faz aumentar muito mais do que o montante inicial gasto pelo governo.     Em média, o multiplicador de curto prazo da economia americana é de cerca de 1,5.1 Se o governo gasta 1 bilhão de dólares agora, o pib deste ano crescerá 1,5 bilhão de dólares. Os multiplicadores de longo prazo são maiores: alguns dos benefícios dos gastos de hoje serão sentidos no ano que vem ou no ano seguinte; como a atual recessão provavelmente será longa, os formuladores das políticas também devem contemplar benefícios que se materializem dois ou três anos depois. Nem todos os gastos têm o mesmo multiplicador: os gastos com contratados estrangeiros no Iraque, por exemplo, têm um multiplicador baixo porque grande parte do consumo assim gerado ocorrerá fora dos Estados Unidos. O mesmo acontece com a redução de impostos para os ricos — que poupam grande parte do que recebem. O aumento dos benefícios de desemprego tem um multiplicador alto porque os que de repente sentem uma aguda falta de dinheiro são os que gastam praticamente tudo o que recebem.2  

3. Deve contemplar os problemas de longo prazo do país. Baixos níveis nacionais de poupança, dé cits enormes, problemas nanceiros de longo prazo na previdência social e outros programas de apoio aos idosos, infraestrutura obsoleta e o aquecimento global são fatores que afetam negativamente as perspectivas de longo prazo do país. Um estímulo efetivo deve contemplá-los, ou, no mínimo, não agravá-los.   4. Deve concentrar-se nos investimentos. Um pacote de estímulo inevitavelmente causa o aumento do dé cit do país, mas a dívida de um país mede apenas um dos lados do balanço — o lado do passivo. Os ativos também são importantes. Quando o dinheiro do estímulo é investido em ativos, aumenta a produtividade do país a longo prazo, e a economia estará em melhor forma a longo prazo em consequência do estímulo — além dos aumentos de curto prazo na produção e no nível de emprego. Essa preocupação em melhorar o balanço do país é particularmente importante hoje, quando os Estados Unidos tomam tanto dinheiro emprestado no exterior. Se um país estimula sua economia com base no consumo nanciado pelas dívidas, o padrão de vida no futuro será menor, quando chegar o tempo de pagar a dívida ou até mesmo os juros que incidem sobre ela. Se um país estimula sua economia por meio de investimentos, a produção futura será maior e, se o investimento for bom, esse aumento será mais do que su ciente para pagar os juros. Tais investimentos não só aumentam o padrão de vida de hoje, mas também o da próxima geração.   5. Deve ser justo. Os americanos de classe média perderam muito terreno para os ricos nos últimos anos.3 Todo e qualquer estímulo deve ter isso em mente na sua formulação. O sentido de justiça signi ca que o tipo de redução de impostos feito por George W. Bush em 2001 e 2003 — quando a grande parte dos benefícios foi para os ricos — estaria fora de questão.   6. Deve atender às exigências de curto prazo criadas pela crise. Em uma recessão, os estados federados muitas vezes cam sem dinheiro e se

encontram diante da necessidade de cortar empregos. Os desempregados passam a car sem seguro de assistência médica. Os que lutam para pagar suas hipotecas podem naufragar caso percam o emprego ou se alguém da família adoecer. Um estímulo bem concebido deve levar em conta o maior número possível dessas questões.   7. Deve privilegiar as áreas onde há maior desemprego. Se as perdas de emprego têm a probabilidade de serem permanentes, o estímulo deve dirigir-se ao retreinamento dos trabalhadores, capacitando-os para os empregos futuros.     Por vezes esses objetivos entram em con ito entre si e por vezes são complementares. Grande parte dos gastos destinados a satisfazer as exigências de curto prazo é muito e caz — seu multiplicador é grande — mas não cria ativos. Gastar dinheiro para salvar as empresas automobilísticas pode equivaler a jogar dinheiro fora, muito embora preserve empregos temporariamente. Investimentos em estradas podem contribuir para o aquecimento global, um dos maiores problemas de longo prazo do planeta. Seria muito melhor criar um sistema de transporte público moderno e de alta velocidade. Gastar dinheiro para salvar os bancos sem obter nada de volta é dar dinheiro aos americanos mais ricos, com um multiplicador quase nulo.4 Estabilizadores automáticos — despesas que aumentam automaticamente quando a economia declina — são uma das formas mais efetivas de estímulo porque “calibram” o nível de gastos de acordo com as necessidades da economia, dando mais dinheiro conforme a necessidade. Esses estabilizadores incluem, por exemplo, benefícios adicionais aos desempregados, que são pagos automaticamente caso o nível do desemprego aumente.    

o que foi feito e o que deveria ser feito

  Esses princípios dão uma rme orientação quanto ao tamanho do incentivo e ao modo como deveria ser formulado. Alguns países, a Austrália em particular, formularam o estímulo de maneira coerente com esses princípios. Sua recessão foi modesta e foi o primeiro país de economia industrial avançada a retomar o crescimento. A nal, o incentivo do governo Obama teve grande impacto — mas poderia ter sido mais amplo e mais bem formulado. Ficou pequeno demais; uma parcela demasiado grande (a terça parte) foi usada para redução de impostos; recursos muito baixos se destinaram aos estados federados, às municipalidades e às pessoas que não encontravam apoio nas redes de proteção social; e o programa de investimentos poderia ter sido mais efetivo.   Tamanho   O custo do pacote de incentivo, de quase 800 bilhões de dólares, parecia inicialmente ser uma enorme quantidade de dinheiro. Deveria ser gasto em um período de mais de dois anos e, em uma economia de 14 trilhões de dólares, essa soma representava menos de 3% do pib por ano. Mais ou menos a quarta parte desse dinheiro seria gasto no primeiro ano, mas esses 200 bilhões de dólares mal davam para cobrir os cortes de gastos nos níveis estadual e local. Em resumo, em 2009, se descontarmos os cortes de gastos estaduais do aumento previsto para o “incentivo” federal, quase não sobra incentivo algum. Os números dados pelo próprio governo assinalam essa inadequação. O presidente e seus assessores disseram que o incentivo criaria 3,6 milhões de novos postos de trabalho — ou impediria a perda desse número de empregos.5 (Eles estavam conscientes de que poderia não ocorrer nenhuma criação líquida de empregos durante o período de dois anos coberto pelo incentivo.) Mas esse número de 3,6 milhões precisa ser posto em

perspectiva. Em um ano normal, um contingente de quase 1,5 milhão de pessoas se soma à força de trabalho, e a economia cria os empregos para elas. Entre o começo da recessão, em dezembro de 2007, e outubro de 2009, a economia perdeu 8 milhões de empregos.6 Se incluirmos aí os que se incorporam à força de trabalho, isso signi ca que no outono de 2009 o dé cit de postos de trabalho, ou seja, o número de empregos que teriam que ser criados para repor a economia no nível do pleno emprego, crescera para mais de 12 milhões.7 Na economia, é preciso correr para conservar o lugar. A di culdade de atingir o nível do pleno emprego é clara. Com a força de trabalho crescendo ao ritmo normal e com a produtividade crescendo, também normalmente, a 2% ou 3% ao ano, para que o desemprego não aumente, o pib tem de crescer entre 3% e 4% ao ano. Para reduzir o desemprego dos níveis que atingiu em 2009, a economia precisa crescer mais rápido que isso. Mas as “previsões consensuais” — que não representam nem os economistas mais otimistas nem os mais pessimistas — indicam um crescimento cumulativo em 2009 e 2010, com o incentivo, abaixo de 1,5%,8 o que é uma grande defasagem. Numa análise mais atenta, vê-se uma nuvem ainda mais escura sobre o que estava acontecendo. Os números focalizados pelo governo e pela imprensa eram “trimestralmente corrigidos”. Eles levam em conta os fatos de que, normalmente, mais pessoas se incorporam à força de trabalho em junho e julho, quando os estudantes se formam, e de que as vendas sobem na época do Natal. No entanto, essas “correções trimestrais” não funcionam bem durante as recessões. Elas descrevem os ajustes “normais”, mas as recessões são eventos anormais. Assim, quando o governo informou que cerca de 492 mil empregos foram perdidos entre junho e agosto, houve um suspiro geral de alívio: o ritmo das perdas de postos de trabalho havia diminuído. Mas a realidade era outra: o verdadeiro número de empregos perdidos era três vezes maior — 1,622 milhão. Esse é o número de postos de trabalho que teriam que ser criados para que a economia voltasse ao “normal”. Em dois meses a economia destruíra a metade do número de

empregos que o programa de Obama como um todo esperava criar em dois anos. O programa de incentivo, ainda que tenha pleno êxito, como o governo diz que terá, não conseguirá sequer aproximar-se do pleno emprego ao nal de 2011. Logicamente, os que tratam de manter as expectativas e de animar as pessoas falam do “hiato” entre o crescimento do nível de emprego e o crescimento da economia. Admitem que a recuperação dos empregos será lenta. Esses cálculos mostram como será difícil criar empregos su cientes, mesmo que não houvesse hiato. Se houver o hiato — e é quase certo que haja, pois os empregadores hesitam em contratar mais trabalhadores enquanto não estiverem seguros de que a recuperação é real —, a questão será ainda pior. Na verdade, o índice de desemprego “anunciado” — em outubro de 2009 era de apenas 10,2% — disfarçava a verdadeira debilidade da força de trabalho. Já assinalei que esse índice o cial de desemprego não inclui os milhões de pessoas que abandonaram a força de trabalho, sem ânimo sequer de procurar ocupação (se os trabalhadores não procuram trabalho, não são considerados desempregados, embora, obviamente, não estejam empregados), nem os outros milhões que tiveram que aceitar empregos de tempo parcial por não conseguirem trabalho em tempo integral. Uma medida mais ampla do desemprego, que inclui esses trabalhadores em tempo parcial “involuntários”, revela uma subida de 10,8%, antes da crise, em agosto de 2008, para 17,5% em outubro de 2009, o nível mais alto já atingido.9 A parcela da população em idade de trabalhar que estava empregada era de 58,5% — a mais baixa desde 1947. Esses são, é claro, números médios. Em alguns lugares e para alguns grupos, as cifras não eram tão ruins assim; mas para outros, eram muito piores. Em outubro de 2009, quando o índice o cial de desemprego em Michigan chegou a 15,1%, os indicadores abrangentes estavam em 20,9% — mais de um trabalhador em cada cinco não conseguia encontrar emprego em tempo integral. Na Califórnia, os indicadores abrangentes

eram de quase 20%. O desemprego entre os adolescentes subira a 27,6% — um recorde — e entre os afro-americanos, a 15,7%.10 Havia ainda outra razão para que o índice de desemprego subestimasse a verdadeira dimensão dos fatos. Muitos dos desempregados preferiram declarar-se incapacitados — caminho que gera pagamentos maiores por mais tempo. Nos primeiros oito meses de 2009, o número de requerimentos de incapacidade aumentou em 23% — sem que houvesse uma onda de enfermidades nos Estados Unidos. Em 2008, os pagamentos por incapacidade atingiram o nível recorde de 106 bilhões de dólares, equivalente a 4% do orçamento da nação. A administração da previdência social estima que ao nal de 2011 mais 1 milhão de pessoas deverá reivindicar a condição de incapacidade por causa da recessão, e cerca de 500 mil a receberão. E uma grande parcela destes estará na lista dos inabilitados para o resto da vida.11 Se a recessão tiver duração superior a um ano e meio, o número de desempregados a longo prazo (os que cam desempregados por mais de seis meses) alcançará nível nunca visto depois da Grande Depressão. A duração média do desemprego estava próxima a meio ano (24,9 semanas).12 Alguns analistas observaram que o índice de desemprego (ainda) não estava tão mal quanto na recessão de Reagan, em 1981-2, quando chegou a 10,8%, e era bem menor que o da Grande Depressão. Essas comparações devem ser vistas com certo cuidado. A estrutura da economia se modi cou, tendo se deslocado do setor manufatureiro (que constituía 20% da economia em 1980, contra 11,5% hoje) para o de serviços.13 Naquela época, havia menos postos de trabalho em tempo parcial. Além disso, a estrutura da força de trabalho também se modi cou de maneira notável. O desemprego é normalmente mais alto entre os trabalhadores jovens, e em 1980 a proporção de jovens era bem maior. O ajustamento com relação a essas mudanças demográ cas aumenta em pelo menos mais 1% o índice de desemprego de hoje.

A falta de emprego aumentava a ansiedade — mesmo os que estavam empregados temiam receber uma carta de demissão, e sabiam que, se isso acontecesse, seria quase impossível arranjar outro emprego. Em meados de 2009 havia seis desempregados para cada vaga, o que é um recorde e chega a ser o dobro do que fora no auge da recessão anterior.14 Os que tinham trabalho faziam semanas mais curtas, até de 33 horas, o menor número de horas trabalhadas desde que teve início a coleta de dados, em 1964.15 E a debilidade do mercado de trabalho também exercia uma pressão de baixa sobre os níveis dos salários. O colapso do mercado imobiliário interagiu com a fraqueza do mercado de trabalho, aumentando as ansiedades de duas outras maneiras. O mercado de trabalho dos Estados Unidos está entre os mais dinâmicos do mundo. Essa tem sido uma das forças do país, inclusive por assegurar que os trabalhadores são utilizados do modo mais e ciente. Mas esse dinamismo enfrenta grandes obstáculos. Em primeiro lugar, tradicionalmente, os que perdem o emprego em um lugar se dispõem a viajar milhares de quilômetros para encontrar trabalho em outro lugar. Mas, para a maior parte dos americanos, a casa é o seu maior bem, e mesmo aqueles para quem o imóvel representa ainda alguma liquidez (ou seja, cuja hipoteca não naufragou) perderam uma grande parcela desse ativo — tão grande que o que lhes sobrou não dá nem para pagar os 20% de entrada em uma casa de tamanho comparável. Sua capacidade de fazer uma mudança cou muito reduzida. Quem tem trabalho não vai sair para procurar outro. Quem não tem trabalho provavelmente cará desempregado por algum tempo. Mudar de casa se tornou uma opção menos atraente. Além disso, muitos americanos de mais idade enfrentam outro problema que também afeta o desemprego. Em sua maior parte, os programas de aposentadoria costumavam ser programas de benefícios de nidos — nos quais os aposentados sabiam o que receberiam quando deixassem de trabalhar. Nos últimos vinte anos, contudo, houve uma mudança no rumo dos “programas de contribuição de nida”, nos quais o empregador contribui

com uma certa soma, a qual é, então, investida no mercado — e grande parte era investida no mercado de ações.16 O colapso do mercado de ações, combinado com o do mercado imobiliário, signi ca que muitos americanos estão repensando os seus esquemas de aposentadoria.17 Com menos pessoas deixando a força de trabalho, haverá ainda menos oportunidades de emprego — a não ser que o emprego se expanda. Em síntese, poucos meses depois da entrada em vigor do programa de incentivo, já estava claro que este era insu ciente. Mas isso já deveria estar claro na época em que o governo o estava formulando.18 A contração do consumo, com o crescimento da poupança, a partir do nível insustentável de zero, combinada com os cortes nos gastos estaduais e locais, signi cava que os 800 bilhões de dólares do incentivo, estendidos ao longo de dois anos, simplesmente não seriam su cientes.   Assistência aos estados   Em uma crise, quando não há assistência federal, estados e municípios cortam seus gastos, que representam cerca de um terço de todo o gasto público do país. Os estados trabalham com esquemas de orçamento equilibrado e têm de limitar as despesas ao nível da arrecadação. Quando o valor das propriedades e os lucros diminuem, a arrecadação de impostos também despenca. O total dos dé cits orçamentários para os anos scais de 2010 e 2011 é estimado em pelo menos 350 bilhões de dólares.19 Em 2009, a Califórnia teve de cortar gastos e aumentar impostos em 42 bilhões de dólares.20 Só a neutralização dos dé cits dos orçamentos estaduais requereria um estímulo federal de mais de 1% do pib por ano. A aprovação do incentivo, em fevereiro de 2009, continha alguma ajuda para os estados e municipalidades, mas não o su ciente. Os cortes nos programas estaduais e locais atingiram os pobres de maneira particularmente dura. Enquanto o governo tratava de “vender” seu pacote de incentivo, os jornais traziam histórias que descreviam o sofrimento de muitas das vítimas inocentes da crise. A prioridade absoluta deveria ter sido

a compensação dos dé cits dos orçamentos estaduais. Faz pouco sentido, do ponto de vista econômico, contratar novos trabalhadores para construir pontes e ao mesmo tempo despedir professores e enfermeiros. O governo tinha sensibilidade quanto a isso e no seu primeiro relatório sobre a criação de empregos no contexto do incentivo, em outubro de 2009, assinalou que, dos 640 mil empregos salvos ou criados na primeira rodada de gastos, cerca de metade estava no setor da educação e apenas 80 mil no da construção.21 Mas o incentivo não era grande o su ciente para acabar com as demissões e licenças coletivas entre os professores, e até mesmo os projetos mais simples levam tempo para entrar em ação. As perdas de empregos contribuíram para a perda de moral, e isso ocorreu muito mais depressa do que a criação de novos postos de trabalho. Em setembro de 2009, os empregos na área governamental haviam decrescido em 40 mil.22 Uma fórmula simples — compensar o dé cit orçamentário estado por estado — teria feito justiça e utilizaria o dinheiro mais rápido. Esse dinheiro teria tido multiplicadores altos e alcançaria os mais necessitados. E teria funcionado como um estabilizador automático: se, por milagre, a economia não demorasse a se recuperar, o gasto não ocorreria. Se, o que era mais provável, a recessão se mostrasse mais profunda e mais longa que o esperado, haveria mais dinheiro.   O conserto dos furos da rede de proteção   A prioridade seguinte deveria ser consertar os furos da rede de proteção. A lei aprovada fazia um pouco disso, mas não o su ciente. O Congresso aprovou três extensões de nanciamento federal aos benefícios de desemprego, até um limite máximo de 73 semanas (muitos estados só conseguem benefícios por um terço desse período),23 mas com o prosseguimento da recessão, cou claro que isso não seria su ciente.24 Pela primeira vez, no entanto, o governo tomou alguma providência quanto ao fato de as pessoas perderem a cobertura do seguro de saúde ao perder o emprego, já que o sistema é baseado no empregador. As reformas anteriores

permitiam que o trabalhador comprasse o seguro (cobra), se pudesse pagar por ele, mas era cada vez maior o número de desempregados que não tinham como fazê-lo. Sem a ajuda pública, o número de trabalhadores sem seguro — que já era alto — aumentaria ainda mais. Parte do pacote de incentivo de Obama previa o pagamento de 65% do custo do seguro de saúde no contexto da ampliação dos benefícios de desemprego (mas apenas para os trabalhadores que perderam o emprego depois de 1o de setembro de 2008 e antes do m de 2009). Talvez seja ainda mais revelador o fato de que o governo não fez o bastante para ajudar em uma questão que estava no cerne da crise: os desempregados não podem fazer pagamentos de hipotecas. Muitos dos desempregados perderam suas casas logo depois de perder o emprego — tudo isso sem que tivessem culpa alguma. O governo Obama deveria ter proporcionado um tipo novo de “seguro-hipoteca” que, nas circunstâncias, se ocupasse dos pagamentos das hipotecas, permitindo que o trabalhador voltasse a pagá-las quando tivesse um novo emprego. Não se trata apenas de uma questão de justiça, mas também de interesse nacional: com mais casas entrando em regime de falência, os preços caíram ainda mais, exacerbando o ciclo negativo.   Investimentos   Teria feito sentido dar prioridade aos investimentos que fortalecem nosso futuro — sobretudo os investimentos de alta lucratividade em pessoas e em tecnologia. Com os efeitos negativos do colapso dos mercados sobre as bolsas das universidades privadas e com os enormes dé cits dos orçamentos estaduais, esses investimentos foram duramente atingidos. Grande parte do dinheiro do incentivo se dirigiu a projetos imediatos de construção, vindo em seguida os investimentos “verdes” que podiam ser postos em prática de maneira relativamente rápida. Deveria estar claro já então a existência de um sério risco de que a economia ainda estivesse carente de novos incentivos no m de dois anos. Um pacote de incentivo a

um prazo mais longo teria permitido iniciativas que fossem além dos projetos imediatos de construção e envolvessem investimentos públicos que propiciassem maiores retornos — o que é uma das poucas vantagens de uma recessão longa. As carências mais importantes de investimento nos Estados Unidos estão no setor público, mas existem limitações na capacidade do setor de pôr em prática novos investimentos de forma acelerada. Cortes de impostos destinados a impulsionar investimentos acelerariam o uxo de novos recursos para economia — e renderiam benefícios de longo prazo. Um programa que propiciasse incentivos de redução de impostos para que proprietários pudessem providenciar isolamento elétrico para suas casas, por exemplo, teria gerado empregos para os trabalhadores da construção civil quando o setor mergulhava na pior crise dos últimos cinquenta anos. Em uma recessão, a maior parte das empresas não deseja enfrentar o risco de fazer novos investimentos. A concessão de um crédito temporário sobre a taxação dos investimentos pode propiciar o incentivo adequado. Com efeito, uma redução de impostos torna mais barato investir agora, quando os benefícios nacionais são amplos, em vez de deixar para mais tarde, quando a economia volte ao normal. É como uma venda de bens de capital. Um crédito temporário incremental sobre a taxação dos investimentos é ainda melhor. Mesmo em uma recessão, algumas empresas investirão, e não faz muito sentido recompensá-las por fazer algo que de todo modo já fariam. Dar o crédito apenas a investimentos que superem, digamos, 80% do dinheiro que a companhia investiu nos últimos dois anos aumenta o efeito positivo do crédito.   Reduções ine cazes de impostos   Não foram apenas o tamanho e o fator tempo do programa de incentivo que erraram o alvo. Com quase um terço do incentivo dedicado a reduções de impostos, havia o risco de que grande parte desse esforço fosse ine caz. A redução de impostos do presidente Bush em fevereiro de 2008 não

funcionou porque grande proporção dela gerou apenas poupança, e não havia razões para crer que dessa vez as coisas seriam muito diferentes, mesmo que as reduções fossem destinadas a provocar um aumento do consumo. Os americanos haviam acumulado uma dívida excessiva, assim como ansiedades a respeito do emprego e do futuro. Mesmo os que tinham maior predisposição a contrair dívidas compreendiam que, em um ambiente de crédito mais difícil, não convinha exagerar no uso do cartão de crédito. Em consequência, eles provavelmente preferiam poupar grande parte do dinheiro que recebessem a curto prazo. Esse tipo de comportamento é compreensível, mas vai contra o propósito do incentivo, que é o de aumentar as despesas. A redução de impostos aumentaria a dívida nacional e produziria poucos frutos, tanto no curto quanto no longo prazo.25 Outras partes do programa de incentivo tomavam empréstimos contra o futuro: o programa de troca de automóveis (cash for clunkers) ajudou a estimular a demanda de carros, mas os veículos comprados por causa do programa já não serão comprados no futuro, de modo que uma estratégia que poderia fazer sentido se a recessão durasse apenas uns seis meses era muito mais arriscada diante de uma crise de duração incerta como esta. Os temores se revelaram fundamentados: o programa fez as vendas de automóveis aumentarem no verão de 2009, mas às custas das compras no outono. Esse programa exempli ca também o pouco rigor na seleção das áreas onde os gastos deveriam se concentrar. Havia maneiras de gastar esse dinheiro com o efeito de estimular mais a economia a curto prazo e ajudála a reestruturar-se adequadamente a longo prazo. Havia, ademais, algo peculiar com as reduções de impostos, assim como com o programa de troca de automóveis: o problema era que os americanos não estavam consumindo pouco antes da crise. Estavam consumindo demais. Contudo, a resposta à crise era fazer as pessoas consumirem mais. Isso era compreensível, dada a queda vertiginosa do consumo, mas o foco não deveria concentrar-se tanto no fomento ao consumo e sim nos investimentos, que são necessários para o crescimento a longo prazo.

    as consequências

  Na passagem da primavera para o verão de 2009, o número de desempregados continuava a crescer e formou-se um coro de vozes que reclamavam que o incentivo não estava funcionando. Mas a verdadeira medida do êxito do incentivo não é o nível absoluto do desemprego e sim, o nível em que este estaria se não houvesse o incentivo. O governo Obama deixava sempre claro que criaria uns 3 milhões de postos de trabalho a mais do que o que aconteceria se não existissem as suas políticas. O problema estava em que o choque da crise nanceira sobre a economia fora tão forte que mesmo o incentivo scal aparentemente enorme de Obama não era su ciente. Enquanto a maior parte dos economistas estava convencida da necessidade do incentivo e de sua e cácia — embora um incentivo maior fosse desejável —, havia também alguns descrentes. Certos conservadores têm tentado mesmo reescrever a história para sugerir que os gastos governamentais não funcionaram na Grande Depressão.26 Evidentemente, eles não tiraram o país da Depressão — os Estados Unidos só saíram de fato dela com a Segunda Guerra Mundial —, mas a razão disso foram as vacilações do governo Roosevelt e do Congresso. O incentivo não teve a força e a consistência su cientes. Como nesta crise, os cortes nos gastos estaduais neutralizaram parcialmente o aumento do gasto federal. Na verdade, nunca se chegou a tentar a aplicação plena do pensamento econômico keynesiano em tempo de paz — apesar de a retórica indicar o contrário. Os gastos governamentais em tempo de guerra efetivamente lograram pôr a economia em regime de pleno emprego — e com grande rapidez. Depois do incentivo de Obama, os críticos voltaram a a rmar que o pensamento keynesiano mostrara suas falhas agora, ao sofrer o teste da realidade.27 Mas isso não é verdade — e a realidade mostra que o estímulo fez as coisas melhorarem.

Há três razões pelas quais um incentivo pode não funcionar. Uma delas, frequentemente mencionada por economistas acadêmicos, mostra como eles tendem a se manter fora da realidade, mas as outras duas evocam preocupações reais. Alguns economistas dizem que, quando o governo começa a acumular dé cits, as famílias são levadas a poupar, sabendo que em algum momento futuro terão que pagar a dívida através de um aumento de impostos. Segundo esse ponto de vista, o aumento do gasto governamental é inteiramente neutralizado pela redução do gasto familiar. Essa equivalência ricardiana, como os economistas a conhecem, é ensinada em todas as faculdades de economia do país. E não faz nenhum sentido. Quando o presidente Bush reduziu impostos no começo da década, os índices de poupança na verdade baixaram. Naturalmente, no mundo da ciência econômica as coisas nunca são como parecem. Os defensores da equivalência ricardiana alegariam que talvez elas tivessem caído ainda mais sem a redução de impostos. Isso signi caria que a taxa de poupança dos Estados Unidos antes da crise teria que ser solidamente negativa, em vários pontos percentuais. Os conservadores invocam a equivalência ricardiana como argumento contra os aumentos de gastos com mais frequência do que contra as reduções de impostos. Na verdade, a teoria sugere que nada disso tem muita importância. Se o governo aumenta os impostos, as pessoas se adaptam e gastam exatamente a mesma quantidade de dinheiro que gastariam em outras circunstâncias, sabendo que terão que pagar menos impostos no futuro. Essas teorias se baseiam em algumas premissas simples que passaram a ser aceitas pelas escolas econômicas que tiveram um papel tão importante na precipitação de crise atual. Duas dessas premissas são lugares-comuns, mas obviamente erradas: os mercados e as informações são perfeitos. Nesse cenário, todas as pessoas podem tomar emprestado o que quiserem. Se o governo aumentar os impostos, quem quiser aumentar os gastos para compensar só precisa ir ao banco e tomar o dinheiro emprestado — e à mesma taxa usada pelo governo (com os devidos ajustes para compensar o

risco de inadimplência). Duas das premissas são peculiares: os indivíduos vivem para sempre e as redistribuições não importam. Se as pessoas vivem para sempre, não podem deixar de pagar o que hoje tomam emprestado. Mas, na realidade, esta geração pode passar o encargo para a próxima, o que permite à geração mais velha consumir mais do que se não fosse assim. Nessa teoria peculiar, embora as pessoas pobres e idosas possam gastar uma fração um pouco maior da sua pouca renda do que as pessoas ricas de meia-idade, a redistribuição de renda dos ricos para os pobres não produziria nenhum efeito sobre o consumo total. Na realidade, a taxa de poupança das casas de família deve aumentar nesta recessão, quer o governo aumente o seu dé cit quer não; e a taxa de poupança não deve ser muito afetada pelo tamanho do dé cit. Uma preocupação mais séria deriva de que, se o governo aumenta seus empréstimos, seus emprestadores começarão a pensar se ele terá condições de pagar o que lhes deve. Se essa preocupação aumenta, a taxa de juros pode subir. Esse problema é bem conhecido nos países em desenvolvimento, que cam entre a cruz e a caldeirinha. Se eles não gastarem dinheiro com incentivos, suas economias se enfraquecem e os credores aumentarão as taxas de juros. Se gastarem o dinheiro com incentivos, a dívida crescerá e os credores aumentarão as taxas de juros. Os Estados Unidos, felizmente, não estão (ainda) nessa situação crítica. No meu julgamento, os benefícios atuais de um incentivo são tão fortes que compensam esses riscos de longo prazo. Outra premissa correlata é a de que os investidores carão mais preocupados com as perspectivas futuras de in ação. Os países que emprestam dinheiro aos Estados Unidos já estão expressando o temor de que venha a ocorrer um incentivo para “pagar com a in ação” a enorme dívida que se está formando, ou seja, fazendo decrescer seu valor real graças à in ação. Além disso, temem que os investidores, vendo essa dívida, pensem que o dólar está em risco e que seu valor (em relação a outras moedas) diminuirá. A despeito da racionalidade que essas preocupações possam ter, o fato de existirem faz aumentar a taxa de juros de longo prazo

e isso pode fazer diminuir os investimentos, diminuindo também o aumento líquido da demanda agregada. Por meio da política monetária, o Banco Central pode basicamente evitar que qualquer tendência ao aumento dos empréstimos governamentais venha a causar o aumento pelo menos das taxas de juros de curto prazo. Mas, na crise atual, a magnitude e o caráter inédito das suas medidas28 têm causado inquietações quanto à capacidade de desenvolver as ações no tempo certo. O Fed tem tentado convencer o mercado de que pode fazê-lo, assegurando que a in ação não crescerá, graças a um pertinente aperto na política monetária no tempo exatamente justo. Como eu observo no capítulo 5, há boas razões para uma certa falta de con ança na reação do Fed. Além disso, sejam ou não justi cadas, se essas crenças se espraiarem, deixarão o Fed em maus lençóis: se ele retornar às suas políticas “normais”, concentrando a atenção nas taxas de juros de curto prazo, as taxas de longo prazo podem subir, mesmo que as de curto prazo permaneçam baixas, o que afetará a recuperação. Por outro lado, se o dinheiro do incentivo for gasto em investimentos, esses efeitos adversos terão menos probabilidade de ocorrer porque o mercado reconheceria que os Estados Unidos estariam em uma posição econômica mais forte por causa do incentivo, e não em uma posição mais fraca. Se o gasto com o incentivo for para a área dos investimentos, o lado ativo da balança de pagamentos da nação aumentará em consonância com o passivo e os emprestadores não terão razão para preocupar-se nem as taxas de juros terão razão para subir.29 A preocupação com a possibilidade de o dé cit crescer e car fora de controle leva à verdadeira fonte das preocupações: o risco político de que os Estados Unidos não consigam manter o rumo, assim como aconteceu durante a Grande Depressão e como se deu com o Japão depois do rompimento da sua bolha no começo da década de 1990. O governo continuará a proporcionar o incentivo se a economia não alcançar uma recuperação sólida depois da primeira dose do remédio? Os que nunca acreditaram na economia keynesiana se aliarão aos campeões do combate

ao dé cit no Congresso para forçar o corte dos gastos do governo? Temo que sim, e, se isso acontecer, a volta do crescimento sólido terá que esperar.     o caminho adiante

  Os governos de Bush e Obama subestimaram a severidade da recessão. Eles acreditavam que o ato de dar dinheiro aos bancos restauraria a saúde da economia, reencetaria o uxo do crédito e ressuscitaria o mercado hipotecário. O incentivo de Obama se destinava a sustentar a economia até que tudo isso acontecesse. Todas essas hipóteses estavam erradas: a restauração do balanço dos bancos não traria automaticamente os níveis de crise de volta ao “normal”. O modelo de consumo subjacente da economia americana, baseado na dívida, desmoronou com o rompimento da bolha imobiliária, e consertá-lo não é tarefa fácil. Mesmo a contenção da queda dos preços dos imóveis não signi ca que eles voltarão ao nível anterior. E isso signi ca que a maior fonte de riqueza da maioria dos americanos — o valor líquido das suas casas — sofreu grande diminuição ou mesmo, em muitos casos, o desaparecimento total. Precisamos nos preparar para uma segunda rodada de gastos com o incentivo à medida que a rodada atual chega ao m — o que, por si só, contribuirá para um crescimento “negativo”. Alguns dos itens que já deveriam ter sido incluídos na primeira rodada (como medidas compensatórias para a queda de arrecadação nos estados) devem ser incluídos na próxima etapa. Temos de nos preparar para mais gastos com investimentos em 2011. Talvez não seja necessário, mas se não começarmos a nos preparar agora, não estaremos prontos na hora certa. Se nos prepararmos agora, podemos desativar o programa caso este não seja necessário. Infelizmente, as escolhas feitas pelos governos de Bush e Obama tornaram difícil, ou mesmo muito difícil, evitar outro pacote de incentivo. Algumas das consequências negativas da arriscada estratégia de conciliação adotada por Obama já estão se manifestando.

Em última análise, o incentivo nanciado por dé cits é por si só um paliativo temporário, especialmente com o aumento das pressões, em muitos países, inclusive os Estados Unidos, com relação ao crescimento da dívida. Os críticos apontam que o país simplesmente passou de um consumo privado nanciado por dívidas para um consumo público nanciado por dívidas. Se, por um lado, é verdade que esses gastos podem ajudar a precipitar a reestruturação da economia, que é um passo necessário para assegurar o crescimento a longo prazo, por outro lado, as somas dirigidas a esse m são muito pequenas — e os gastos que levam à preservação do estado atual são muito grandes. Há outras políticas que podem ajudar a sustentar a economia — e substituir a bolha de consumo nanciada pela dívida. Para que a totalidade do consumo americano seja restaurada em bases sustentáveis, teria de haver uma grande redistribuição de renda, dos que estão no topo e podem poupar para os que estão abaixo e gastam tudo o que ganham. Uma escala de impostos mais progressiva (aumentando a contribuição dos que estão no topo e diminuindo a dos que estão abaixo) não só alcançaria esse objetivo como também ajudaria a estabilizar a economia. Se o governo aumentar os impostos dos americanos da classe alta para nanciar um aumento do gasto público, especialmente no campo dos investimentos, a economia se expandirá — com o que se chama “multiplicador de orçamento equilibrado”. Os economistas que privilegiam a oferta, tão populares nos dias de Reagan, a rmavam que tais impostos desencorajam o trabalho e a poupança e, portanto, abaixam o pib. Mas essa análise (se estiver correta) só se aplica a situações em que a produção está limitada pela oferta. O que existe agora é a capacidade ociosa, e a produção está limitada pela demanda. Se é preciso fortalecer o consumo global, terá que haver um novo sistema global de reserva que possibilite aos países em desenvolvimento gastar mais e poupar menos.30 A comunidade internacional terá que propiciar mais ajuda aos países pobres e a China precisará se empenhar mais do que nos últimos anos em reduzir sua taxa de poupança. Se o mundo se

comprometer com preços mais altos para os derivados de carbono (o que as rmas e as famílias têm de pagar pela emissão de gases de estufa), haverá grandes incentivos para reequipar a economia. Isso inspirará inovações e investimentos em formas mais e cientes de uso da energia nas habitações, nas fábricas e nos equipamentos. Nenhum desses melhoramentos deverá acontecer rapidamente, e, até aqui, muitas dessas questões nem ao menos estão sendo discutidas. Os Estados Unidos e o mundo estão diante de três desa os: a restauração de uma demanda agregada sustentável e forte o su ciente para assegurar o pleno emprego global; a reconstrução do sistema nanceiro para que exerça as funções a ele atribuídas, e não as aventuras dos riscos desatinados que caracterizaram sua atuação antes da crise; e a reestruturação da economia dos Estados Unidos e de outros países do mundo — de modo a re etir, por exemplo, as alterações ocorridas nas vantagens comparativas globais e as mudanças tecnológicas. No momento em que escrevo, estamos sendo reprovados nas três matérias. Com efeito, muito pouco se discute a respeito de qualquer um desses problemas profundos, enquanto nos debruçamos sobre nossas inquietações imediatas. Um temor fundamental focalizado neste livro é o de que as medidas que tomamos para nos salvar de uma queda no abismo em cujo limiar nos encontrávamos possam, ao mesmo tempo, inibir nosso retorno ao pleno crescimento. Assim como os bancos foram míopes ao emprestar dinheiro, assim também fomos míopes no resgate — com consequências que poderão ser sentidas durante muito tempo. Tais medidas aparecem com especial nitidez no setor nanceiro, que estava no coração da tormenta. Os próximos três capítulos focalizarão as tentativas de resgatar e ressuscitar o sistema nanceiro. O próximo capítulo analisa o mercado hipotecário. Embora o presidente Obama tenha reconhecido que seria difícil restaurar plenamente a saúde da economia enquanto milhões de americanos enfrentam a ameaça da falência, muito pouco foi feito: as falências continuam quase no mesmo ritmo. O contraste entre o que foi feito e o que deveria ser feito é muito maior que no caso do incentivo. O incentivo pode

ter cado aquém do necessário, mas de todo modo foi um êxito. Mas não se pode dar uma nota alta para o que foi feito com relação às hipotecas. E quando chega a vez dos bancos — tema dos capítulos 5 e 6 —, o desapontamento é ainda maior.

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. A fraude das hipotecas

Os atos e os fatos da indústria das hipotecas nos Estados Unidos serão relembrados como a grande fraude do início do século xxi. Possuir uma casa sempre foi um aspecto essencial do sonho americano e uma aspiração em todos os lugares do mundo. Quando os bancos e as companhias hipotecárias começaram a oferecer hipotecas baratas, muitos foram os que correram para aproveitar a oportunidade.1 Milhões de pessoas assumiram hipotecas que, na verdade, não estavam ao seu alcance. Quando as taxas de juros começaram a subir, essas pessoas perderam as casas e os valores que a elas haviam agregado.2 O desastre imobiliário produziu efeitos secundários nos Estados Unidos e no mundo. Através de um processo conhecido como securitização, as hipotecas haviam sido trabalhadas, rearranjadas, reempacotadas e passadas adiante a todo tipo de bancos e fundos de investimento por todo o país. Quando o castelo de cartas nalmente ruiu, arrastou na sua queda algumas das instituições mais veneráveis: Lehman Brothers, Bear Stearns e Merrill Lynch. Mas as provações não pararam nas fronteiras dos Estados Unidos. Essas hipotecas securitizadas, muitas das quais foram vendidas mundo afora, se revelaram tóxicas para os bancos e fundos de investimentos dos mais diferentes lugares, como Noruega, Bahrein e China. No verão de 2007, encontrei a gerente de um fundo indonésio em um evento organizado para o Banco Central daquele país. Ela estava aturdida com as perdas e sentia-se culpada por haver exposto seus clientes ao volátil

mercado americano. Disse que, como esses instrumentos eram feitos nos Estados Unidos, ela pensara que fossem bons investimentos para os seus clientes. “O mercado americano de hipotecas é tão grande que eu nunca pensei que gerasse problemas”, ela me disse. O risco excessivo somado à alavancagem excessiva criara o que parecia ser uma alta lucratividade, que foi realmente alta por algum tempo. Wall Street pensava que, reempacotando as hipotecas e passando-as a um grande número de investidores, estava compartilhando o risco e protegendo-se ao mesmo tempo, uma vez que um risco amplamente compartilhado podia ser absorvido com facilidade. Mas a securitização na verdade aumentou o risco das hipotecas. Os banqueiros que precipitaram o problema dizem agora que não foi só por culpa deles. Dick Parsons, o presidente do Citigroup, exempli ca o ponto de vista dos banqueiros: “Além dos bancos, a supervisão regulatória era reduzida, os empréstimos a clientes não quali cados eram encorajados e muitos zeram hipotecas ou empréstimos contra o valor das suas casas em termos que iam além da sua capacidade de pagamento”.3 Executivos como Parsons põem a culpa nos tomadores de empréstimos por comprar casas que não poderiam pagar, mas muitas dessas pessoas eram analfabetas do ponto de vista nanceiro e não sabiam onde estavam se metendo. Isso era especialmente verdadeiro no mercado hipo>subprime, que se tornou o epicentro da crise. As hipotecas subprime eram dadas a indivíduos menos quali cados do que aqueles que tinham hipotecas “convencionais”, em função de terem renda baixa ou instável. Outros proprietários foram estimulados pelos emprestadores a tratar suas casas como se fossem caixas eletrônicas, tomando sucessivos empréstimos contra o seu valor. Por exemplo, a casa de Doris Canales cou ameaçada de cobrança executiva depois de ter sido nanciada treze vezes em seis anos com hipotecas “sem papéis”, que requeriam pouca ou nenhuma documentação quanto à renda e quanto aos ativos. “Eles telefonavam e perguntavam: ‘Escuta, você está precisando de dinheiro do banco?’. E eu dizia: ‘Certo; eu preciso de dinheiro do banco’”, ela contou. Muitos dos

formulários apresentados pelos corretores em nome da senhora Canales mentiam a respeito da sua renda.4 Em alguns casos, os resultados eram literalmente mortais.5 Suicídios e divórcios ocorreram por todo o país quando os tomadores de empréstimos viram que suas casas já não lhes pertenciam. Até mesmo pessoas que continuavam a pagar suas taxas e prestações tiveram suas casas leiloadas sem sequer sabê-lo. Essas histórias dramáticas que frequentaram os jornais podem ter sido a exceção e não a regra, mas tocaram em uma ferida aberta: os Estados Unidos enfrentam agora uma tragédia social ao lado da tragédia econômica. Milhões de americanos pobres perderam ou estão perdendo suas casas — segundo uma estimativa, 2,3 milhões apenas em 2008. (Em 2007 houve cobranças executivas contra quase 1,3 milhão de propriedades.)6 Economy.com, da Moody’s, fez uma projeção segundo a qual um total de 3,4 milhões de proprietários deixariam de pagar suas hipotecas em 2009 e 2,1 milhões perderiam suas casas. Outros milhões de pessoas devem enfrentar cobrança executiva até 2012.7 Os bancos puseram em risco as poupanças de toda a vida de milhões de pessoas, persuadindo-as de que podiam viver além dos próprios meios — embora seja verdade que, em certos casos, sem dúvida não foi preciso exagerar na persuasão. Com a perda da casa, muitos americanos estão perdendo as suas poupanças e os sonhos de um futuro melhor, da educação dos lhos e de uma aposentadoria em boa situação nanceira. Por vezes pareceu que apenas os humildes — os originadores das hipotecas que as venderam no mercado subprime — tinham alguma noção de culpa, ainda que dissessem estar apenas cumprindo seu papel. Eles dispunham de estruturas de incentivo que lhes permitiam assinar todas as hipotecas que conseguissem. Con avam que os técnicos só aprovariam hipotecas que zessem sentido. De toda maneira, alguns dos funcionários de nível mais baixo sabiam que havia perigo. Paris Welch, que trabalhava com hipotecas na Califórnia, escreveu aos reguladores americanos em janeiro de 2006: “Podem esperar contaminação; podem esperar falências;

podem esperar histórias de horror”. Um ano depois, a implosão imobiliária lhe custou a perda do trabalho.8 Em última análise, os instrumentos nanceiros que os bancos e os emprestadores usaram para explorar os pobres também lhes foram fatais. Os instrumentos foram concebidos para extrair a maior quantidade possível de dinheiro dos prestamistas. O processo de securitização proporcionava taxas in ndáveis, as taxas in ndáveis proporcionavam lucros sem precedentes, os lucros sem precedentes proporcionavam bônus inéditos e tudo isso ofuscou o julgamento dos banqueiros. Eles podem ter suspeitado que era bom demais para ser verdade — e assim era. Podem ter suspeitado que era insustentável — daí a pressa em ganhar tudo o que pudessem, o mais rapidamente possível —, e era insustentável. Alguns não tinham consciência das baixas até que o sistema entrou em colapso. Se as contas bancárias de muitos dos principais executivos do setor nanceiro sofreram grandes perdas, muitos outros aproveitaram a confusão para ganhar milhões de dólares — em alguns casos, centenas de milhões de dólares. Mas nem o colapso do sistema conteve a sua ganância. Quando o governo passou dinheiro aos bancos para que estes se recapitalizassem e garantissem o uxo do crédito, eles utilizaram o dinheiro para pagar a si mesmos: bônus sem precedentes para perdas sem precedentes! Nove emprestadores cujas perdas somadas chegavam a 100 bilhões de dólares receberam 175 bilhões como resgate por meio do tarp e pagaram quase 33 bilhões de dólares em bônus, inclusive mais de 1 milhão por cabeça para quase 5 mil funcionários.9 Outras somas foram usadas para pagar dividendos, que supostamente se pagam para compartilhar lucros com acionistas. Nesse caso, porém, não havia lucros, mas apenas verbas públicas. Nos anos que precederam a crise, o Banco Central mantivera as taxas de juros baixas. Ora, o dinheiro barato pode ensejar um surto de investimentos em fábricas e equipamentos, altas taxas de crescimento e prosperidade sustentada. Mas nos Estados Unidos, e em boa parte do resto do mundo, o que isso ensejou foi a bolha imobiliária. Não é assim que se presume que o mercado deve funcionar. O que se presume é que os

mercados aloquem o capital aos seus usos mais produtivos. Mas historicamente tem havido reiteradas instâncias em que os bancos usam o dinheiro alheio para dedicar-se a atividades de alto risco e a fazer empréstimos a pessoas que não podem pagá-los. E reiteradas instâncias em que esses empréstimos dão lugar a bolhas imobiliárias. Essa é uma das razões para as regulações. Contudo, no frenesi das desregulações das décadas de 1980, de 1990 e dos primeiros anos da década de 2000, até mesmo as tentativas de restringir as piores práticas na concessão de empréstimos — tais como empréstimos predatórios no mercado subprime — foram derrotadas.10 As regulações servem para múltiplos propósitos. Um deles é impedir que os bancos explorem as pessoas pobres ou pouco instruídas. Outro é assegurar a estabilidade do sistema nanceiro.11 Os desreguladores dos Estados Unidos retalharam ambos os tipos de regulação e, ao fazê-lo, abriram caminho para que os banqueiros imaginassem novas maneiras de explorar os proprietários de casas, muitos dos quais eram pobres e estavam comprando uma casa pela primeira vez. As instituições nanceiras americanas do mercado subprime criaram um arsenal de hipotecas subprime — inovações destinadas a maximizar as taxas por elas geradas. Os bons mercados nanceiros fazem seus negócios de maneira e ciente, e isso signi ca trabalhar com baixos custos de transação, ou seja, com taxas baixas. Mas, enquanto na economia real a maioria das pessoas não gosta dos custos das transações, no jogo das hipotecas — e no setor nanceiro em geral — elas os adoram. Esses custos são a sua fonte de renda e, portanto, essas pessoas lutam por maximizar as taxas e não para minimizá-las.     o sistema bancário tradicional

  Antes da chegada das recentes inovações nas nanças, os emprestadores viviam em um mundo simples: avaliavam o status creditício do tomador, faziam empréstimos, monitoravam-nos para assegurar-se de que o dinheiro

emprestado era usado para os ns pactuados e recebiam o dinheiro de volta, com juros. Os banqueiros e o sistema bancário eram entidades monótonas. Isso era exatamente o que as pessoas que lhes con avam seu dinheiro esperavam que fossem. As pessoas comuns não queriam que alguém usasse o dinheiro que haviam ganhado com esforço e zesse apostas com ele. Era uma relação baseada na con ança — con ança de que o dinheiro dado ao banco seria recebido de volta. Mas, no decorrer dos últimos cem anos, houve numerosas corridas a bancos, episódios em que as pessoas acorrem aos bancos para resgatar seu dinheiro por temerem que estes não tenham fundos para cobrir seus depósitos. No meio da Grande Depressão, em 1933, o governo decidiu agir e criou a Corporação Federal de Seguros de Depósitos (Federal Deposit Insurance Corporation — fdic) para garantir os depósitos e para que as pessoas sentissem que o seu dinheiro estaria protegido mesmo que houvesse rumores de que algum banco estivesse em di culdades. Uma vez que passou a proporcionar esse seguro, o governo também precisava certi car-se de que não estava exposto a riscos indevidos, assim como uma companhia de seguros contra incêndios busca reduzir a probabilidade de perdas por fogo, insistindo que haja extintores nos prédios. O governo assim fazia através da regulação dos bancos, assegurando-se de que estes não corressem riscos excessivos. Como conservavam consigo os empréstimos que originavam, os bancos tinham que acautelar-se. Precisavam, assim, de um incentivo para se assegurar de que os tomadores de empréstimos lhes pagariam de volta. Para isso, tinham que veri car a renda dos tomadores e estabelecer incentivos para o pagamento. Se o dinheiro emprestado pelo banco representasse, por exemplo, 80% do valor de uma casa e se o tomador do empréstimo não pagasse a sua dívida, ele se arriscaria a perder não só a casa, mas também os 20% que ele próprio tinha aportado, ou seja, seu valor líquido, o que é uma soma considerável. Além do mais, a probabilidade de que uma hipoteca de 80% acabasse ultrapassando o valor da casa era pequena — pois, para isso, os preços teriam que cair 20%. Os banqueiros entenderam, com acerto, que

uma hipoteca em “naufrágio” apresentava grande risco de inadimplência, especialmente por causa do peculiar sistema americano dos empréstimos irrecorríveis, em que, quando um prestamista deixa de pagar, o pior que lhe pode acontecer é perder a casa.12 O emprestador não consegue obter nada mais. O sistema funcionava muito bem. As aspirações por uma casa maior eram desestimuladas pelo fato de o proprietário ter de fazer um aporte de 20% do valor para conseguir o empréstimo. O sistema nanceiro “inovador” dos Estados Unidos conseguiu esquecer essas lições antigas e elementares do ofício do banqueiro. Há muitas razões para essa amnésia. Na verdade, as lições são esquecidas periodicamente — o mundo já passou por sucessivas bolhas e sucessivos estouros imobiliários, e bancos do mundo inteiro já tiveram que receber ajuda para sobreviver. O único período relativamente longo em que isso não aconteceu foram os 25 anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, quando havia fortes regulações que eram de fato implementadas. O seguro de depósito garantido pelo governo deve ter dado um ímpeto adicional (como se os bancos precisassem disso) para os maus empréstimos e outras formas de risco excessivo. Signi cava que, se o banco corresse um risco e perdesse, o governo absorveria o custo; e se o banco ganhasse, caria com o lucro. (Esse é outro exemplo de “risco moral”.) Quando o seguro de depósito foi proposto pela primeira vez, na esteira da Depressão, o presidente Franklin Roosevelt tinha tanta preocupação com o risco moral envolvido que hesitou em apoiar a ideia. Foi persuadido, no entanto, pelo conceito de que, se o seguro fosse acoplado a uma regulação bastante forte, o risco poderia ser controlado.13 Os defensores da atual tendência à desregulação esqueceram não só que os mercados nanceiros correram riscos excessivos com frequência, mas que, com o seguro de depósito, os incentivos e as oportunidades para o mau comportamento se multiplicavam. É digno de nota que o movimento em favor da desregulação ocorreu num período em que os perigos do risco excessivo estavam aumentando por causa dos novos produtos nanceiros.

Há outras razões que explicam a decisão dos bancos de passar a fazer empréstimos extremamente arriscados e adotar outras práticas de risco excessivo. Sobretudo depois da revogação, em 1999, da lei Gass-Steagall, que mantinha separados os bancos comerciais e os bancos de investimento, os bancos maiores foram se tornando cada vez maiores: grandes demais para falir — e sabiam disso. Sabiam que, se passassem por di culdades, o governo os resgataria. Isso era verdade até mesmo para os que não tinham seguro de depósito, como os bancos de investimento. Em segundo lugar, os banqueiros dispunham de incentivos perversos que estimulavam o comportamento míope e o risco excessivo. Eles sabiam não só que o banco seria resgatado se entrasse em di culdades, mas que mesmo que o banco falisse eles próprios estariam bem. E estavam certos. A esses problemas se somou o fato de que os modelos de controle de risco usados pelos bancos apresentavam falhas gritantes. Os chamados peritos em controle de risco não chegaram a compreender os próprios riscos em que incorriam. No complexo mundo de hoje, os bancos “so sticados” tentam ter maior precisão a respeito dos riscos que correm, e não querem con ar em julgamentos intuitivos ou empíricos. Desejam saber a probabilidade de o mau desempenho de um lote de hipotecas (ou de uma parcela signi cativa da sua carteira de empréstimos), por exemplo, levar o banco a uma situação de perigo. Se algumas hipotecas apresentassem problemas, a situação poderia ser facilmente administrada. A probabilidade de que muitas apresentassem di culdades ao mesmo tempo dependeria de muitos tipos de risco, diferentes mas correlatos: as chances de que o índice de desemprego ou as taxas de juros se elevassem ou de que os preços dos imóveis caísse. Caso se conhecessem as probabilidades de cada item e as suas inter-relações, seria possível estimar o risco de que uma hipoteca especí ca casse inadimplente. Mais importante ainda é que seria possível estimar as chances de que, digamos, mais de 5% das hipotecas se dessem mal. Os modelos poderiam então prever a parcela da hipoteca falida que poderia ser recuperada pelo banco — ou seja, o preço pelo qual a casa poderia ser vendida. E, com base nisso, seria possível estimar as

possibilidades de que o banco viesse a enfrentar uma situação de perigo, em que as perdas fossem de tal ordem que o impedissem de pagar aos depositantes. (Modelos similares podiam ser empregados para estimar as perdas com relação a qualquer grupo de hipotecas agrupadas em pacotes, ou as perdas dos papéis complexos que os bancos de investimento construíram com base nos pacotes hipotecários.) Mas as previsões de um modelo não podem ser melhores que as premissas que o orientam. Caso se cometam erros — por exemplo, na estimativa das probabilidades de uma queda nos preços das casas —, todas as conclusões do modelo estarão erradas. Os bancos se orientaram por esses modelos não só para avaliar os produtos nanceiros que compravam e vendiam, mas também para administrar o risco global das operações. Por “engenharia nanceira” eles acreditavam que podiam estar certos de que seu capital era bem utilizado — o que lhes possibilitaria correr todo o risco que os reguladores lhes permitissem. A ironia está em que a tentativa de utilizar o capital nanceiro de maneira mais e ciente contribuiu para a geração da crise, que resultou na subutilização maciça do capital real, físico e humano. Esses modelos falhos talvez não tenham sido apenas acidentais: esquemas de compensação distorcidos afetaram negativamente os incentivos para o desenvolvimento de modelos sadios de administração de riscos. Lembre-se também que muitos dos que se encarregavam dos mercados, mesmo os que poderiam orgulhar-se da habilidade e aptidão para avaliar os riscos, simplesmente não tinham capacidade de julgar se os modelos eram bons ou não. Muitos eram advogados, sem treinamento no que diz respeito às sutilezas matemáticas dos modelos. Havia outra diferença importante entre a época dos bancos tradicionais e a dos bancos modernos, sobretudo quanto à maneira pela qual os bancos geram seus lucros. No passado, a maior parte dos lucros dos bancos provinha da diferença entre a taxa de juros que recebiam dos que lhes tomavam dinheiro emprestado e a taxa de juros que pagavam aos depositantes. Essa diferença, ou spread, com frequência não era muito

grande, o que permitia aos bancos comerciais lucros satisfatórios, embora não exorbitantes. Com o afrouxamento das regulações e as mudanças na cultura bancária, no entanto, os bancos começaram a buscar novas maneiras de gerar lucros. Encontraram a resposta em uma palavra simples: taxas. Com efeito, muitos dos produtos “inovadores” baseados em hipotecas tinham em comum alguns fatores críticos: podem não ter ajudado os tomadores de empréstimos a administrar bem os riscos, mas foram concebidos para afastar tanto quanto pudessem os riscos dos bancos e gerar o maior volume possível de taxas — muitas vezes em aspectos de que o tomador não tinha sequer pleno conhecimento. Quando necessário, os produtos também eram engendrados de modo a contornar restrições regulatórias e contábeis que pudessem cercear a concessão de empréstimos e a tomada de riscos. As inovações concebidas como formas de administrar o risco, quando mal empregadas, podiam na verdade ampliar o risco e, seja por incompetência, seja por incentivos falhos, foi o que aconteceu. Além disso, algumas das inovações ajudaram os bancos a contornar as regulações que buscavam impedi-los de se comportar mal. Tais inovações ajudaram a esconder o que estava acontecendo e a retirar os riscos do balanço. Eram complexas e obscuras, de modo que, mesmo que os reguladores quisessem cumprir bem a sua missão, mesmo que acreditassem na necessidade das regulações para manter a estabilidade da economia, teriam encontrado di culdades crescentes para fazê-lo.     inovações distorcidas: uma infinidade de maus produtos

  Não há espaço que comporte uma descrição detalhada dos inumeráveis tipos de hipotecas em uso durante o surto, mas podemos dar um exemplo: a hipoteca de 100%, em que o banco empresta 100%, ou mais, do valor da casa. Uma hipoteca irrecorrível de 100% é o que os economistas chamam

de opção. Se o preço da casa subir, o proprietário ca com a diferença. Se o preço baixar, ele não tem nada a perder: o prestamista pode entregar a chave da casa ao credor e ir embora a qualquer momento. Isso signi ca que quanto maior a casa, tanto mais dinheiro o prestamista pode ganhar potencialmente. O resultado é que os compradores da hipoteca se sentiam tentados a buscar casas mais caras do que suas posses permitiam. E como os banqueiros e os originadores das hipotecas de qualquer modo cobravam suas taxas, pouco incentivo tinham eles para parar com essa libertinagem. As hipotecas com taxas de sedução (taxas temporariamente baixas, que explodiram depois de alguns anos) e pagamentos-balão (que ocorrem quando uma hipoteca de curto prazo se aproveita da vigência de taxas de juros baixas que tinham que ser re nanciadas em cinco anos) eram vantajosas sobretudo para os emprestadores. Provocavam sucessivos re nanciamentos. A cada re nanciamento, quando o tomador do empréstimo enfrentava o pagamento de um novo conjunto de taxas, o originador da hipoteca tinha nova fonte de lucro. Quando terminava o período da sedução e as taxas subiam, as famílias que se haviam endividado ao máximo passavam por grandes di culdades para fazer os pagamentos. Mas, se elas perguntassem aos emprestadores sobre esse perigo potencial, muitas recebiam a orientação de não se preocupar, porque os preços das suas casas subiriam antes que a taxa de sedução expirasse, o que lhes permitiria um fácil re nanciamento — e mais algum dinheiro para comprar um carro ou tirar umas férias. Havia hipotecas que permitiam até que o prestamista escolhesse quanto pagaria por mês — ele não precisava sequer pagar a totalidade dos juros mensais. Essas são chamadas hipotecas de amortização negativa — ou seja, no nal do ano o tomador deve mais do que devia no começo. Mas também nesse caso ele era informado de que, embora devesse mais, o aumento de valor da casa seria maior que o valor adicional da dívida e ele, a nal, estaria mais rico. Assim como os reguladores e os investidores deveriam ter suspeitado das hipotecas de 100%, também deveriam ter

suspeitado das hipotecas que deixam o tomador cada vez mais endividado e das que o forçam e re nanciá-las constantemente. Os “empréstimos mentirosos”, assim chamados porque os tomadores não eram obrigados a comprovar sua renda para consegui-los, estavam entre os novos produtos mais peculiares. Em muitos casos, os tomadores foram aconselhados a declarar uma renda maior do que a que possuíam. Em outros, os próprios corretores do empréstimo o faziam e o tomador só descobria o “erro” ao nal.14 Tal como acontecia com outras inovações, tudo isso estava a serviço de um simples mantra: quanto maior a casa, maior o empréstimo e maiores as taxas. Ninguém se preocupava com os problemas que poderiam surgir. Todas essas hipotecas “inovadoras” tinham muitas falhas. A primeira era a premissa de que o re nanciamento seria fácil porque os preços das casas continuariam a subir com a mesma rapidez com que vinham subindo. Tratava-se praticamente de uma impossibilidade econômica. A renda real (descontada a in ação) da maioria dos americanos estava estagnada — em 2005 a mediana da renda familiar (o valor abaixo do qual está a metade de todas as rendas familiares e acima do qual está a outra metade) era quase 3% menor do que em 1999.15 No mesmo período, os preços das casas subiram muito mais do que a in ação e do que a renda real. De 1999 a 2005, os preços das casas subiram 32%.16 O resultado era que, para a família mediana, a relação entre o preço da casa e a renda, que era de 3,72 em 1999, passou para 5,29 em 2005 — o maior valor desde que se começou a fazer esse registro, em 1991.17 Além disso, o estranho mercado de hipotecas operava com base na premissa de que, quando chegasse o momento de re nanciar determinada hipoteca, os bancos estariam dispostos a fazê-lo — o que talvez fosse verdade, ou não. As taxas de juros poderiam subir, as condições de crédito poderiam car mais apertadas, o desemprego poderia aumentar — e cada um desses fatores representava um risco para o tomador que viesse a precisar de um re nanciamento.

Se muitas pessoas precisassem vender suas casas ao mesmo tempo, por causa de um aumento do desemprego, por exemplo, isso faria os preços das casas baixarem e a bolha estourar. E foi então que os diversos erros das hipotecas interagiram. Se os emprestadores tivessem emitido hipotecas de 100% (ou se o valor do que era devido tivesse subido a 100% em consequência da amortização negativa), não haveria como vender a casa e pagar a hipoteca. Não havia como reduzir a hipoteca a um nível que a família pudesse pagar: só restava a falência. O presidente do Banco Central, Alan Greenspan, o homem que tinha a missão de proteger o país das ações de risco excessivo, na verdade as encorajou. Em 2004, Greenspan fez um discurso, hoje tristemente famoso, no qual observou que os proprietários de casas “poderiam ter economizado dezenas de milhares de dólares se tivessem optado por hipotecas de taxas ajustáveis [cujas taxas variam de acordo com as taxas de juros] em vez das de taxas xas, no transcurso da década anterior”.18 No passado, a maioria dos americanos havia assumido hipotecas de longo prazo (de vinte a trinta anos) com taxas xas, cujas mensalidades não mudam até a quitação da operação. Isso traz uma grande vantagem. Informadas do valor dos pagamentos futuros, as famílias podem planejar seu orçamento. Mas Greenspan as aconselhou a fazer o contrário. A razão pela qual teria sido melhor para os proprietários optar pelas taxas hipotecárias variáveis, e não pelas taxas xas, era óbvia. Normalmente, as taxas de juros de longo prazo re etem o valor médio esperado com base em uma projeção do presente. Por isso, também normalmente, os mercados projetam para o futuro valores próximos aos do passado recente — exceto em períodos incomuns. Mas em 2003 Greenspan havia feito algo sem precedentes: baixara a taxa de juros a 1%. É claro que o mercado não previra esse movimento. Também é claro que os que haviam apostado nas hipotecas com taxa variável se deram melhor do que os que permaneceram com as taxas xas. Mas, se já estava a 1%, a taxa de juros só poderia subir. Isso signi cava que qualquer um que tivesse uma hipoteca com taxa variável podia estar praticamente certo de que os pagamentos de juros no futuro seriam maiores — e talvez muito

maiores. E de fato aumentaram: a taxa de juros de curto prazo subiu de 1% em 2003 para 5,25% em 2006. Os que seguiram a tendência a contratar a maior hipoteca possível rapidamente começaram a enfrentar pagamentos que excediam seus orçamentos. E quando todos tentaram vender as casas, os preços dos imóveis despencaram. Para os que tinham hipotecas de 100%, isso signi cou que eles não podiam re nanciá- -las, não podiam pagá-las e não podiam car esperando que as coisas melhorassem. Com a queda dos preços das casas, isso aconteceu também com os que haviam pactuado hipotecas de 90% e, em alguns casos, mesmo hipotecas de 80%. Ficar inadimplente foi a única opção para milhões de pessoas. Greenspan, na verdade, havia aconselhado o país a seguir uma conduta de extremo risco. Outros países, como a Turquia, simplesmente não permitiram hipotecas com taxas variáveis. No Reino Unido, muitas das hipotecas de taxas variáveis mantêm a possibilidade de um pagamento xo, de modo que as pessoas não se vejam forçadas à falência. Em vez disso, os bancos aumentam o prazo de pagamento das hipotecas, embora, obviamente, isso não funcione para hipotecas que já alcancem 100% do valor da propriedade e cujos titulares já não estejam pagando os juros. Quando várias dessas inovações foram usadas em conjunto — por exemplo, hipotecas de amortização negativa combinadas no valor de 100% da casa e com base em renda “mentirosa” —, o potencial de perda era particularmente explosivo. Como já disse, o prestamista não parecia ter nada a perder ao contratar a maior hipoteca que o banco permitisse. Como os originadores da hipoteca recebiam taxas maiores para hipotecas maiores, mas em geral não arcavam com o risco caso o prestamista não pagasse o que devia, os incentivos do originador e do prestamista da hipoteca estavam alinhados da mais curiosa das maneiras: ambos queriam a maior casa e a maior hipoteca que pudessem conseguir. Isso signi cava mentir o tempo todo: mentir sobre a capacidade de pagamento e mentir sobre o valor da casa.

Se o originador da hipoteca conseguisse que o avaliador atribuísse o valor de 350 mil dólares a uma casa de 300 mil, ele podia vender a hipoteca por, digamos, 325 mil dólares. Nesse cenário, o vendedor ganhava, o corretor imobiliário ganhava, o originador da hipoteca ganhava e o proprietário da casa parecia ter pouco a perder. Com efeito, para que o proprietário se sentisse seguro de que não tinha nada a perder, ele recebia mais um incentivo: uma entrada negativa.19 Infelizmente, pelo menos da perspectiva dos originadores das hipotecas, alguns avaliadores imobiliários agiram com pro ssionalismo e se recusaram a fazer avaliações in acionadas. Mas eles podiam recorrer a uma solução fácil: criar sua própria empresa de avaliação imobiliária, o que ainda tinha a vantagem adicional de gerar novas taxas. Por exemplo, Wells Fargo tinha sua própria empresa subsidiária de administração de avaliações, chamada Rels Valuation.20 Provar a existência de casos particulares em que tenha havido atribuição excessiva de valor é na melhor das hipóteses difícil, sobretudo em uma bolha, quando os preços sobem rapidamente. Mas o óbvio é que havia um con ito de interesses: havia incentivos para o mau comportamento. Os reguladores deveriam ter reconhecido isso e posto um m a essa prática.21 Muitos compradores de casas procuraram corretores hipotecários para obter a menor taxa de juros possível. Estes deveriam trabalhar em favor do tomador do empréstimo, mas com frequência recebiam recompensas dos emprestadores, o que constitui um óbvio con ito de interesses. Os corretores logo se tornaram parte vital do sistema de empréstimos predatórios dos Estados Unidos. Os tomadores de empréstimos subprime se deram pior quando recorreram aos corretores do que quando negociavam direto com os emprestadores: o pagamento adicional de juros para os que operaram através de corretores variou entre 17 mil e 43 mil dólares para cada 100 mil dólares de empréstimo.22 Para os corretores, isso era, é evidente, adicional à comissão de 1% ou 2% do valor do empréstimo, que recebiam do tomador do empréstimo por supostamente lhe propiciar um bom negócio. Pior ainda, os corretores ganhavam mais quando conduziam os tomadores a contratar as hipotecas mais arriscadas, com taxas ajustáveis

e pagamento antecipado de penalidades, e ainda recebiam dinheiro quando o tomador fazia re nanciamentos. A recompensa aumentava ainda mais quando levavam o tomador a contratar uma hipoteca maior do que a compatível com seu nível de renda.     alarmes ignorados

  Sabia-se bem que o setor nanceiro estava usando de todos esses truques enganosos, o que devia ser um sinal de alerta para os tomadores, para os investidores que compravam hipotecas e para os reguladores. Todos deveriam ter visto que a formação das hipotecas era orientada pelas taxas. O tomador precisava re nanciar constantemente e pagava taxas cada vez que o fazia: grandes pagamentos antecipados para reformar a hipoteca antiga e novas taxas para a emissão de nova hipoteca. As taxas podiam ser registradas como lucro, e o lucro alto aumenta o valor das ações para os originadores das hipotecas, assim como para outras pessoas do setor nanceiro. (Mesmo que os originadores das hipotecas as conservassem consigo, os procedimentos normais de contabilidade teriam atuado em seu favor. Embora qualquer indivíduo que agisse racionalmente pudesse ver a probabilidade de que muitas dessas hipotecas “inovadoras” acabariam não sendo pagas, não era necessário lançar nenhuma nota sobre perdas futuras até que a hipoteca de fato naufragasse.) As inovações respondiam a incentivos e os incentivos se destinavam a criar produtos que gerassem mais taxas no presente, e não produtos que administrassem melhor os riscos. Os grandes lucros e as taxas altas deveriam também ser sinal de que algo não estava no rumo certo. Para os originadores de hipotecas, inclusive os bancos, uma outra inovação — a securitização — lhes facilitava a vida por proporcionar-lhes a arrecadação de taxas altas aparentemente sem nenhum risco.    

securitizao

  Como disse antes, nos bons tempos (antes que a securitização entrasse em moda, na década de 1990) em que os bancos eram bancos, eles conservavam as hipotecas que emitiam. Se um prestamista casse inadimplente, o banco aguentava as consequências. Se um prestamista enfrentasse problemas, como a perda do emprego, o banco podia ajudá-lo. Os bancos sabiam quando deveriam dar crédito e quando era necessário enfrentar a cobrança executiva, algo que não faziam só por fazer. Com a securitização, um grupo de hipotecas era enfeixado e vendido a investidores de qualquer lugar. Os investidores possivelmente jamais terão visitado as comunidades em que as casas se localizam. A securitização oferecia uma grande vantagem: diversi cava e dividia os riscos. Os pequenos bancos locais emprestavam principalmente para gente da própria comunidade. Assim, se uma fábrica do lugar fechasse, muita gente não poderia pagar suas hipotecas e o banco local podia arriscar-se a falir. Com a securitização, os investidores podiam comprar ações sob a forma de lotes de hipotecas e os bancos de investimento podiam combinar múltiplos feixes de hipotecas, facilitando ainda mais a diversi cação para o investidor. A lógica da estratégia supunha ser improvável que hipotecas provenientes de diferentes regiões geográ cas experimentassem problemas simultâneos. Mas também existiam perigos. Há muitas circunstâncias em que a diversi cação funciona de maneira imperfeita. Como indicado acima, neste capítulo, um aumento das taxas de juros causaria problemas simultâneos em todo o país.23 E a própria securitização traria diversos problemas novos. Um deles é a formação de assimetrias de informação: o comprador da hipoteca em geral sabe menos do que o banco ou a rma que a origina. E como o originador não sofria as consequências de um erro seu (exceto a longo prazo, com a perda de sua reputação), seus incentivos para fazer um bom trabalho na avaliação do crédito eram fortemente atenuados. O processo de securitização envolvia uma longa cadeia. Os originadores da hipoteca as criavam e elas eram agrupadas em conjunto pelos bancos de

investimento, que, em seguida, as convertiam em novos títulos. Os bancos conservavam alguns desses papéis em veículos especiais de investimento que cavam fora dos seus balanços. A maioria, no entanto, era passada adiante aos investidores, inclusive fundos de pensão. Para comprar títulos, os administradores de fundos de pensão tinham que certi car-se de que os papéis que estavam comprando eram seguros e a atuação das agências de avaliação de crédito tinha uma importância crucial na certi cação da sua segurança. Os mercados nanceiros criaram uma estrutura de incentivos que fazia que todos os participantes da cadeia cumprissem com entusiasmo seus papéis nessa grande ilusão. Todo o processo de securitização dependia da teoria do bobo maior — que diz que há bobos aos quais se podem vender as hipotecas tóxicas e os papéis perigosos baseados nelas. A globalização havia aberto um enorme campo de bobos; muitos investidores no exterior não compreendiam as peculiaridades do mercado americano de hipotecas, especialmente a ideia das hipotecas irrecorríveis. Essa ignorância de pouco serviu para evitar que aceitassem essas ofertas. Nós devíamos agradecer. Se os estrangeiros não tivessem comprado tantas hipotecas, os problemas do nosso mercado nanceiro por certo seriam maiores.24   Incentivos perversos e modelos falhos — acelerados por uma corrida ao fundo do poço   As agências de classi cação de risco deveriam ter reconhecido o caráter perigoso dos produtos cuja segurança lhes cabia certi car. Se tivessem cumprido seu papel, teriam pensado a respeito dos incentivos perversos, tanto dos originadores das hipotecas quanto dos banqueiros e dos bancos de investimento. E isso teria feito que fossem mais comedidas. Alguns expressaram surpresa diante do mau trabalho apresentado pelas agências de classi cação de risco. O que mais me surpreendeu foi essa surpresa. A nal, essas agências têm um longo histórico de mau desempenho — que começa bem antes dos escândalos da Enron e da

WorldCom, no início da década de 2000. Durante a crise da Extremo Oriente de 1997, as agências foram responsabilizadas por favorecer a bolha que a precedeu. Deram notas altas para as dívidas de países como a Tailândia até dias antes da eclosão da crise. Quando retiraram a nota alta, rebaixando a Tailândia em dois níveis e deixando-a abaixo do grau de investimento, os fundos de pensão e outros “ duciários” se viram forçados a vender os títulos tailandeses, contribuindo para a derrocada dos mercados e da moeda do país. Tanto na crise do Extremo Oriente quanto na recente crise americana, as agências de classi cação de risco estavam claramente atrasadas com relação aos fatos. Em vez de proporcionar informações que ajudassem o mercado a tomar boas decisões de investimentos, só tomaram consciência de que algo não andava bem na mesma ocasião em que o próprio mercado o fez — tarde demais para evitar que o dinheiro dos fundos de pensão fosse parar onde não deveria ter ido. Para explicar o mau desempenho das agências de classi cação de risco, temos de examinar de novo os incentivos. Como acontecia com todos os demais que trabalham no setor, seus incentivos estavam distorcidos e elas tinham seus próprios con itos de interesse. As agências de classi cação de risco eram pagas pelos bancos que originavam os papéis que elas deviam avaliar. Pode ser que a Moody’s e a Standard & Poor’s, entre outras, não compreendessem bem o risco, mas compreendiam bem os incentivos. Tinham um incentivo para agradar aos que lhes pagavam. E a competição entre as agências só fez as coisas piorarem: se uma agência de risco não desse a nota desejada, os bancos de investimento podiam recorrer a outra. Era uma corrida para o fundo do poço.25 Para complicar o problema, as agências de classi cação de risco haviam descoberto uma nova maneira de aumentar sua renda: o fornecimento de serviços de consultoria, como o de ensinar a obter avaliações melhores, inclusive o cobiçado nível aaa. Cobravam taxas para dizer às empresas de investimentos como obter boas notas de avaliação e ganhavam ainda mais quando as notas eram dadas. Os banqueiros de investimento mais ágeis logo perceberam como obter as melhores notas de avaliação para qualquer

tipo ou conjunto de papéis. Inicialmente, os lotes de hipotecas eram apenas divididos em classes. Qualquer dinheiro recebido como pagamento ia primeiro para a classe mais “segura” (ou mais alta). Uma vez pagos os benefícios da primeira classe, era a vez da segunda, e assim por diante. A classe mais baixa só recebia seus pagamentos depois que as mais altas tivessem recebido todo o seu dinheiro. Mas os magos das nanças descobriram então que a primeira classe continuaria recebendo a avaliação aaa se passasse a proporcionar alguma renda à classe mais baixa, em alguma situação improvável, como, por exemplo, se mais de 50% dos empréstimos do lote cassem inadimplentes. Como a probabilidade da ocorrência do evento era considerada muito remota, esse “seguro” não afetava a nota de avaliação da classe mais alta; mas, com uma boa estruturação, a nota de avaliação da classe mais baixa receberia um impulso. Pouco tempo depois, as diferentes classes já estavam articuladas em uma complexa rede, de modo que, quando ocorresse tal evento — supostamente uma vez em mil anos —, a classe superior, de nota aaa, tampouco receberia todo o dinheiro que lhe fora prometido. Em suma, as perdas seriam distribuídas ao longo de toda a pilha e não atingiriam apenas as classes inferiores. Há outra razão para explicar o comportamento tão ruim das agências de classi cação de risco: elas usavam os mesmos modelos de cientes usados pelos banqueiros de investimento. Supunham, por exemplo, que os preços das casas quase nunca baixariam e que seria praticamente impossível que baixassem ao mesmo tempo em muitas partes diferentes do país. Caso ocorressem falências, dizia o modelo, estas não estariam correlacionadas. Como já disse, a premissa da securitização era a diversi cação, mas a diversi cação só funciona se os empréstimos que compõem o pacote não estiverem correlacionados. O raciocínio vigente ignorou os elementos comuns, criando a bolha imobiliária e espalhando-a por toda a economia: taxas de juros baixas, regulações frouxas e um quase pleno emprego. A modi cação de qualquer desses fatores poderia afetar e de fato afetaria os mercados em toda a economia — e, na verdade, em todo o mundo. Ainda que os magos das nanças não o tenham compreendido, isso não passa de

bom-senso, e por isso mesmo havia um sério risco de que o estouro de uma bolha em uma parte do país desencadeasse uma reação em cadeia: muitos perceberiam que os preços estavam altos demais na Califórnia e na Flórida e isso poderia provocar questionamentos no Arizona ou em Detroit. Nem os bancos de investimento nem as agências de classi cação de risco, que os serviram tão bem, deram atenção a essa possibilidade e talvez isso não chegue a surpreender: não tinham incentivo para fazê-lo; assim como tinham incentivos para usar modelos falhos, mas não para questionar as questionáveis premissas em que se baseavam. Os modelos que empregavam eram falhos também em outros aspectos. Fatos que só ocorrem “uma vez na vida” aconteciam de dez em dez anos.26 De acordo com os modelos-padrão, o tipo de crise do mercado de ações ocorrido em 19 de outubro de 1987 só poderia ocorrer uma vez em 20 bilhões de anos, um tempo maior do que a própria existência do universo.27 E então outro fato que só ocorre uma vez na vida aconteceu dez anos depois, na crise nanceira de 1997-8, que causou a queda do Long-Term Capital Management, o fundo de hedge de mais de 1 trilhão de dólares fundado por Myron Scholes e Robert Merton, que tinham acabado de receber o prêmio Nobel por seu trabalho na área de avaliação de opções. Os modelos de uso amplo já se haviam mostrado essencialmente falhos — e em parte pela mesma razão.28 Evidentemente, os mercados nanceiros não aprendem e as pessoas que operam os modelos não conhecem o passado. Se o conhecessem, teriam visto que as bolhas estouram e que as crises acontecem com regularidade. O Japão foi a última grande economia a sofrer com uma crise imobiliária, e suportou mais de uma década de crescimento lento por causa disso. A Noruega, a Suécia e a Finlândia tiveram crises bancárias no nal da década de 1980 e início da década de 1990, criadas por problemas no mercado imobiliário. Na crise atual, assim como na crise do Extremo Oriente antes dela, havia gente demais — especialmente reguladores e investidores — transferindo as responsabilidades para as agências de classi cação de risco. A missão dos reguladores é avaliar, por exemplo, se os bancos ou fundos de pensão

correram riscos tão grandes a ponto de ameaçar os meios de cumprir suas obrigações. As pessoas que geram veículos de investimento têm uma responsabilidade duciária para com os que lhes dão seu dinheiro. Mas ambos os grupos permitiram que, na prática, as agências de classi cação de risco zessem julgamentos em seu lugar.   Mundo novo e dados velhos   Os defensores dos novos produtos nanceiros — todos os que ganhavam dinheiro com eles, desde os originadores das hipotecas, que produziam os papéis tóxicos, até os bancos de investimento, que os transformavam em outros títulos, e as agências de classi cação de risco, que certi cavam sua segurança — a rmavam que estavam procedendo a uma transformação fundamental da economia. Era uma maneira de justi car as altas somas que recebiam. Os produtos resultantes eram tão complexos que os analistas precisavam de modelos especiais de computador para avaliá-los. Mas, para fazê-lo benfeito, eles precisavam conhecer a probabilidade da ocorrência de uma queda de preços superior a 10%, por exemplo. Em outro exemplo das contradições intelectuais generalizadas desses modelos, os analistas tinham de se basear em dados do passado para fazer suas avaliações — o que mostra que apesar de a rmar que seus novos produtos estavam transformando o mercado, implicitamente supunham que nada havia mudado. Mas, agindo de maneira coerente com a sua miopia, eles não estudaram o passado em profundidade. Se o tivessem feito, teriam visto que os preços imobiliários caem e podem cair de forma simultânea em muitos pontos diferentes do país. Deveriam ter percebido que algo havia mudado, mas para pior — novas assimetrias de informação haviam sido criadas e nem os bancos de investimento nem as agências de classi cação de risco as levaram em conta em seus modelos. Deveriam ter percebido que as hipotecas que chamavam de “inovadoras” teriam uma taxa de inadimplência muito superior à das tradicionais.  

Renegociação   Como se não bastassem os problemas com a securitização, outro ainda mais importante surgiu com vigor nos últimos dois anos. Os bancos com relações duradouras com suas comunidades locais tinham um incentivo para tratar bem os tomadores de empréstimos em di culdades. Se houvesse uma boa chance de que os clientes recuperassem a capacidade de pagamento caso tivessem tempo para isso, o banco lhes daria esse tempo. Mas os novos detentores das hipotecas eram pessoas distantes que nada tinham a ver com a comunidade nem se preocupavam com sua reputação como emprestadores. O resultado é ilustrado em uma história do New York Times publicada na primeira página da seção Negócios, sobre um casal de Arkansas que tomou emprestados 10 milhões de dólares para ampliar a academia de ginástica de que eram donos.29 Quando atrasaram o pagamento das prestações, sua hipoteca foi revendida a um especulador por 34% do seu valor nominal. O especulador exigiu o pagamento total em dez dias ou então executaria a hipoteca. Os proprietários haviam oferecido 6 milhões de dólares e um adicional de 1 milhão assim que vendessem a academia. Mas o especulador não mostrou interesse: ele viu uma oportunidade de ter lucros ainda maiores com a cobrança executiva. Uma situação como essa é ruim para o emprestador, para o tomador do empréstimo e para a comunidade. O único que ganha é quem especula com a hipoteca. Mas a securitização também tornou mais difícil renegociar as hipotecas quando surgiam os problemas — o que acontecia com frequência, especialmente com os incentivos perversos que haviam levado a essas más práticas de empréstimos.30 Com as hipotecas sendo vendidas e revendidas e com o desaparecimento da sensibilidade do banqueiro local, a responsabilidade pela administração das hipotecas (o recebimento dos pagamentos e a distribuição do dinheiro entre os diferentes e longínquos detentores dos papéis) foi atribuída a um novo ator: o serviço hipotecário. Os detentores das hipotecas temiam que o serviço hipotecário pudesse ser

muito leniente com os tomadores de empréstimos. Em consequência, os investidores impuseram restrições que tornavam mais difícil a renegociação.31 O resultado foi um chocante desperdício de dinheiro e um desgaste desnecessário junto às comunidades. A propensão ao litígio da sociedade americana piorou ainda mais as coisas. Em qualquer renegociação, sempre alguém reclama. Quem quer que tenha conduzido a renegociação por certo será processado por não ter arrochado mais o pobre tomador do empréstimo. E o setor nanceiro dos Estados Unidos agravara esses problemas com a criação de novos con itos de interesses. Em geral, os proprietários de casas com dívidas altas tinham uma primeira hipoteca (digamos por 80% do valor da casa) e também uma segunda (digamos por mais 15% do valor da casa). Se houvesse apenas uma hipoteca por 95% do valor do imóvel e se os preços residenciais caíssem 20%, poderia ser conveniente adaptar a hipoteca para re etir a nova situação — dando ao tomador do empréstimo uma saída. Mas com duas hipotecas separadas, fazer isso signi caria quase sempre abandonar o detentor da segunda hipoteca. Para ele, poderia ser preferível recusar-se a reestruturar o empréstimo. Quem sabe houvesse uma chance, ainda que pequena, de que o mercado reagisse e ele recuperasse pelo menos parte do que emprestara. O interesse na reestruturação e os termos em que poderia ser feita diferiam marcadamente entre os detentores da primeira e da segunda hipoteca. O sistema nanceiro acrescentou mais uma complicação a essa barafunda: o serviço hipotecário — encarregado de qualquer reestruturação — era com frequência o detentor da segunda hipoteca, de modo que muitas vezes atribuía-se a responsabilidade pela renegociação a uma das partes interessadas. Mas isso signi cava ser praticamente inevitável a ocorrência de uma ação judicial. Como o tribunal era o único recurso para assegurar tratamento justo nesse emaranhado, não surpreende que as propostas de concessão de imunidade legal aos serviços hipotecários tenham encontrado resistência. Mesmo nesse produto nanceiro mais elementar — a hipoteca —, nossos magos das nanças criaram uma teia de tal modo emaranhada que não foi tarefa fácil esclarecê-la.

Como se tudo isso não fosse su ciente, em sua resposta à crise o governo deu incentivo aos bancos para não reestruturarem as hipotecas. A reestruturação teria forçado os bancos, por exemplo, a reconhecer perdas que a má contabilidade lhes permitira ignorar. Não é de estranhar que as precárias tentativas dos governos de Bush e Obama no sentido de reestruturar as hipotecas tenham tido tão pouco êxito.32     a ressurreição do mercado de hipotecas

  Uma vez que os problemas do setor nanceiro tiveram origem nas hipotecas, era de imaginar que as pessoas encarregadas de resolvê-los começassem também por elas. Não foi o que ocorreu, e com a persistência da crise no nal de 2008 e no início de 2009, o número de hipotecas que terminam abruptamente continuou a aumentar. O que antes parecia uma estimativa alta — a de que a quinta parte de todas as hipotecas residenciais estaria naufragando — revelou-se conservadora.33 A perda da hipoteca ocorre com dois grupos de prestamistas: os que não podem pagar e os que preferem não pagar. Nem sempre é fácil distinguir entre ambos os grupos. Algumas pessoas podem pagar, mas só com muito sofrimento nanceiro. Os economistas gostam de trabalhar com exemplos de indivíduos racionais. Para muitos americanos, a melhor opção quando a hipoteca caminha para o naufrágio é a inadimplência. Como na maioria dos casos as hipotecas americanas são irrecorríveis, o prestamista pode simplesmente entregar a chave para o credor, sem outras consequências. Se George Jones mora em uma casa de 300 mil dólares com uma hipoteca de 400 mil dólares pela qual paga 30 mil dólares por ano, ele pode mudar-se para outra casa de 300 mil dólares idêntica à dele e reduzir sua despesa em 25%. No meio da crise, ele não conseguiria uma hipoteca, mas poderia alugar uma casa. (Com a perda do valor líquido do seu imóvel, tudo leva a crer não poderia dar a entrada, de todo modo.) Em muitos lugares os aluguéis também caíram; e mesmo que ele tivesse como dar a entrada, a

opção de alugar podia fazer mais sentido até que o mercado se estabilizasse. Talvez ele hesitasse, pensando nas consequências que a entrega da casa teria sobre sua reputação creditícia. Mas como todo mundo estava indo à falência, o estigma talvez não fosse tão grande — pode-se pôr a culpa no banco, que não soube emprestar, e não no cliente. Em todo caso, cada um tem seu preço. Quando o sacrifício de fazer os pagamentos se torna grande demais, o proprietário ca inadimplente. Em fevereiro de 2009 o presidente Obama a nal ofereceu uma proposta para lidar com o problema das hipotecas perdidas. Foi um passo importante na direção certa, mas provavelmente não o su ciente para impedir a ocorrência de grande número de novas inadimplências. O plano propiciou uma pequena ajuda para a redução dos pagamentos, mas nada foi feito para reduzir o principal (o que a pessoa deve) das hipotecas em naufrágio junto aos bancos — e por boa razão.34 Se as hipotecas fossem reestruturadas, os bancos seriam obrigados a admitir ter feito maus empréstimos e a se empenhar em tapar o buraco nos seus balanços. (Os maiores detentores de hipotecas eram Fannie Mae e Freddie Mac, que foram nacionalizadas pelo governo Bush. Isso signi cava que qualquer redução do principal — ao contrário do que aconteceria com um simples alongamento do prazo dos pagamentos — teria que ocorrer às expensas do contribuinte.)35 Uma das complexidades da questão das hipotecas é a preocupação com o sentido de justiça. Os contribuintes que não haviam contraído empréstimos excessivos sentiam que não deviam ser obrigados a pagar pelos que o haviam feito. Essa é a razão pela qual muitos a rmavam que o peso dos ajustamentos deveria recair sobre os emprestadores. Como já assinalei, o empréstimo é uma transação voluntária entre um tomador e um emprestador. Quem empresta deve ser experiente em avaliação dos riscos nanceiros. Se não fez bem esse trabalho, pelo qual recebeu uma boa recompensa, deve arcar com as consequências, embora seja verdade que os proprietários, que viam desmanchar-se quase todo o investimento que

haviam feito na casa, poderiam estar pagando, em termos relativos, um preço ainda maior. Mas esse não foi o caminho escolhido. A in uência dos bancos dominou praticamente todas as decisões tomadas pelo Tesouro americano. Nesse caso, porém, o Tesouro e os bancos tinham um interesse comum: reduzir o principal de uma hipoteca signi caria que os bancos teriam que reconhecer uma perda. Por sua vez, fazer aparecer nos balanços dos bancos o desequilíbrio assim produzido os obrigaria a cobrir o buraco com mais dinheiro. Como os bancos teriam grande di culdade em fazer essa operação com o setor privado, ela requereria mais recursos públicos. Mas o governo não tinha esse dinheiro. E em função dos inumeráveis erros do programa de reestruturação bancária, seria difícil que o Congresso aprovasse mais gastos. Assim, apesar das palavras fortes de Obama no sentido de que era preciso enfrentar o problema das hipotecas, ele deu mais um chute na lata e a empurrou um pouco mais para a frente. Os relatórios sobre o programa não eram animadores: apenas 651 mil (20%) dos 3,2 milhões de empréstimos ameaçados haviam sido modi cados até o m de outubro de 2009, ainda que experimentalmente.36 Nem todos os empréstimos ameaçados podiam receber a assistência governamental e nem todos os empréstimos reestruturados evitariam o desenlace. Mesmo os números otimistas do governo Obama sobre o impacto da iniciativa caram aquém do que os peritos do setor imobiliário consideravam necessário para evitar um estresse forte no mercado de imóveis residenciais.37 Há muitas maneiras de tratar do problema das inadimplências, tais como resgatar os emprestadores e ao mesmo tempo reduzir o principal dos empréstimos. Se não fosse pelas restrições orçamentárias e pelas preocupações com o futuro risco moral, um programa assim contentaria a todos (menos o contribuinte comum). As pessoas poderiam permanecer nas suas casas e os emprestadores não comprometeriam seus balanços. O fato de que o governo removeria o risco dos balanços bancários ajudaria a aliviar o aperto creditício. O verdadeiro desa o era salvar as casas de centenas de

milhares de pessoas que, caso contrário, perderiam os imóveis sem salvar os bancos, que deveriam absorver as consequências dos seus erros de avaliação de riscos. Para acabar com a inundação de inadimplências, temos de aumentar a capacidade e a disposição das famílias no sentido de pagar as prestações das hipotecas. A chave dessa operação é a redução dos pagamentos, e existem quatro maneiras de fazer isso: ampliar o período de pagamento — aumentando a dívida futura das famílias; dar-lhes assistência para fazer os pagamentos; diminuir a taxa de juros que elas pagam; ou diminuir o montante devido. Os bancos gostam da primeira opção — reestruturar as hipotecas, estender o prazo de pagamento por um período maior e cobrar uma taxa extra pela reestruturação. Eles não precisam abrir mão de nada, e na verdade ainda cobram mais taxas e juros. Mas, para o país, essa é a pior opção, pois só faz adiar a hora da verdade. Foi o que os bancos quiseram fazer repetidamente com os países em desenvolvimento que deviam mais do que podiam pagar. O resultado foi uma nova crise de dívidas poucos anos depois. Evidentemente, para os bancos, e sobretudo para seus atuais dirigentes, um adiamento basta. Eles estão entre a vida e a morte, e mesmo um pequeno alívio vale muito.   O Capítulo 11* dos proprietários   A melhor opção para o país é a redução do principal. Ela modi ca os incentivos para inadimplência e signi ca a redução do número de hipotecas em naufrágio. Para os bancos, isso signi ca enfrentar a realidade de ter emprestado dinheiro com base em preços in acionados por uma bolha. Ela acaba com a cção de que os bancos receberão de volta tudo o que emprestaram. Do ponto de vista da sociedade, isso faz sentido. Os bancos zeram uma aposta: se não reestruturarem as hipotecas, há uma pequena — muito pequena — possibilidade de que os mercados imobiliários se recuperem. Se os mercados se recuperarem, os bancos

estarão em boa forma — ou, pelo menos, em melhor forma do que parece ser o caso agora. Mesmo se conseguirem aguentar um pouquinho mais, os lucros maiores decorrentes da diminuição da competição (com a morte prematura de muitos bancos) podem cobrir as perdas. Mas para a sociedade os custos são altos. O declínio dos preços é muitíssimo mais provável do que sua recuperação, o que aumenta as possibilidades de inadimplência. A inadimplência é custosa para todos: para os bancos, em termos de gastos, inclusive gastos legais, e também para as famílias e para a sociedade. A prática normal é despir a casa de tudo o que seja removível. Os que têm estima pela casa normalmente cam irritados, sobretudo quando se sentem saqueados. As casas vazias se deterioram rapidamente e desencadeiam uma espiral negativa na comunidade local. Por vezes, a casa é ocupada por marginais; não raro se transforma em local de atividades ilícitas. De toda maneira, os preços das casas nas redondezas caem. E com mais hipotecas em processo de naufrágio, mais inadimplências haverá. Em geral, a casa acaba sendo leiloada, o que possibilita a recuperação de apenas uma fração do valor já diminuído oferecido pelo mercado. É fácil compreender por que os bancos têm resistido a qualquer forma de redução do principal — qualquer programa governamental, qualquer programa voluntário, e, acima de tudo, qualquer programa judicial que envolva a bancarrota —, fazendo uso de todo o poder de que dispõem. Estranhamente, a forma que tomaram alguns resgates dados aos bancos os tornou ainda mais relutantes em aceitar a reestruturação das suas hipotecas ruins. O governo se tornou um segurador implícito (e explícito, no caso do Citibank) de grandes perdas. Isso signi ca que os contribuintes cam com as perdas enquanto os banqueiros cam com os ganhos. Se os bancos não reestruturarem as hipotecas e, por milagre, o mercado imobiliário se recuperar, eles cam com os ganhos; mas se o mercado não se recuperar e, em consequência, as perdas forem maiores, os contribuintes são os que cam com elas. Em essência, o governo de Obama deu aos bancos mais razão para apostar em uma ressurreição.

Mudanças contábeis feitas em março de 2009 tornaram as coisas ainda piores.38 Elas permitiram que os bancos conservassem em seu poder hipotecas “de cientes” (empréstimos em que os tomadores são “devedores omissos”) sem ter que desvalorizá-las (mesmo nos casos em que o mercado julgava haver alta probabilidade de que não fossem pagas), com base na cção de que elas se manteriam até o dia do vencimento e de que, se os prestamistas conseguissem superar esse período de di culdades, os bancos receberiam tudo o que lhes era devido.39 Como os bancos relutavam em reduzir o principal das hipotecas, talvez tivessem de ser induzidos a fazê-lo por meio de um “Capítulo 11 dos proprietários de casas” — uma reestruturação rápida de passivos de proprietários mais pobres, baseada no modelo de alívio proporcionado às empresas que não conseguem satisfazer suas obrigações. O Capítulo 11 tem como premissa a ideia de que manter uma empresa em funcionamento é crucial para seus empregados e outros interessados. A direção da empresa pode propor um remanejamento corporativo a ser referendado pelos tribunais. Se estes consideram o remanejamento aceitável, ocorre uma rápida anulação parcial ou total da dívida, e a empresa recobra a vida. O Capítulo 11 dos proprietários de casas tem como premissa a ideia de que devolver a sustentabilidade a uma família americana é tão importante quanto devolver a vida a uma empresa. Ninguém ganha quando uma família é forçada a perder sua casa. Os Estados Unidos modi caram sua lei de falências em abril de 2005 para tornar mais difícil aos proprietários de casas anular suas dívidas — na verdade, mais difícil do que anular outras dívidas, como a decorrente da compra de um barco de passeio. Como acontece com muitas leis aprovadas durante o governo Bush, o nome da lei assinala o que esta não é: foi chamada de Lei de Prevenção ao Abuso de Falência e Proteção ao Consumidor. Até 25% do salário do proprietário podia ser retido. Com os salários tão baixos como estão para tantos americanos, sobretudo os mais pobres, que sofrem a rapinagem dos bancos, isso signi cava que muitos podiam ser arrastados à pobreza.40

O governo Obama queria rever a dura lei de 2005, mas, logicamente, os bancos se opuseram e ganharam.41 Os banqueiros alegaram que leis de falência mais brandas provocariam mais inadimplência e taxas de juros mais altas, sem dar atenção aos fatos de que a inadimplência sofrera um grande aumento depois que a lei de 2005 entrara em vigor; e de que a grande maioria das dívidas não era fruto da vontade do proprietário,42 e sim consequência de algum problema na família — doença ou perda de emprego.43 Outro argumento usado pelos bancos contra a reforma era o de que esta representaria uma benesse para os que compraram casas para especular, visando a lucrar com um aumento de preços. A crítica é um pouco estranha, uma vez que havia no mercado especulação geral com o aumento dos preços dos imóveis. O governo, no entanto, tem sido benevolente na ajuda aos bancos. Há uma maneira fácil de contornar esse problema, que aproximaria mais o Capítulo 11 dos proprietários do Capítulo 11 das empresas. No caso de uma empresa, os detentores de valores (acionistas) perdem esse valor e os detentores de títulos (credores) se tornam seus donos. No caso de uma residência, o proprietário detém o “valor” e o banco detém o título do crédito. No caso do Capítulo 11 dos proprietários, a conversão da dívida implicaria reduzir o valor do que o proprietário devia, mas, em compensação, quando a casa fosse vendida, uma grande parcela do ganho de capital iria para o emprestador. Os que houvessem comprado a casa para especular com o ganho de capital não teriam interesse nessa solução. (Os economistas se referem a essa provisão como instrumento de autosseleção.) Com o Capítulo 11 dos proprietários, as pessoas não teriam que passar pelo papelório da falência para anular a totalidade das suas dívidas. A casa seria tratada como uma empresa à parte. Essa solução seria aplicável a famílias cuja renda casse abaixo de determinado limite (digamos, 150 mil dólares) e cujo patrimônio que não consistisse em imóveis ou planos de aposentadoria também casse abaixo de determinado limite (talvez em função da idade).44 A casa seria avaliada e a dívida do indivíduo, reduzida, por exemplo, ao nível de 90% dessa avaliação (o que re etiria o fato de que,

se o emprestador prosseguisse com uma ação de despejo, haveria custos substanciais de transação).45   Empréstimos com juros baixos   Com a hipoteca de 100%, a taxa variável, a taxa de sedução, o balão, a amortização negativa e os empréstimos mentirosos — todos os truques que descrevi neste capítulo —, muitos americanos acabaram pagando aos bancos 40% ou 50% da sua renda, ou ainda mais, a cada mês.46 Se incluirmos os juros sobre os cartões de crédito, esse total é ainda mais alto. Muitas famílias lutam para fazer os pagamentos, sacri cando tudo o mais. Mas, com grande frequência, qualquer outro problema — pequeno, como um conserto no carro, ou grande, como uma doença na família — é su ciente para fazê-las passar do limite do possível. O governo (por meio do Banco Central) vem emprestando dinheiro aos bancos a taxas de juros muito baixas. Por que não usar a capacidade que o governo tem de emprestar dinheiro a taxas de juros baixas para proporcionar um crédito menos oneroso aos proprietários pressionados? Vejamos o caso de alguém que tenha hipoteca de 300 mil dólares a uma taxa de juros de 6%. São 18 mil dólares de juros por ano (0,06 × 300 mil), ou 1,5 mil dólares por mês, sem contar o pagamento do principal. O governo pode emprestar dinheiro a uma taxa de juros essencialmente igual a zero. Se emprestar dinheiro a um proprietário residencial a juros de 2%, os pagamentos serão reduzidos a 6 mil dólares por ano — uma queda de dois terços. Para alguém que luta para sobreviver com uma renda de 30 mil dólares por ano, igual ao dobro do índice de pobreza, isso signi ca que o pagamento da casa cairia de 60% da renda para 20%. Quem não pode pagar 60% pode pagar 20%. E, descontados os custos com o envio dos papéis, o governo ainda tem um lucrozinho de 6 mil dólares por ano com o negócio. O proprietário paga os 6 mil dólares em vez de car inadimplente em 18 mil.

Além disso, como a casa não está sendo objeto de uma venda forçada, os preços residenciais permanecem rmes e a comunidade local também. Há vantagens para todos — menos para os bancos. O governo tem vantagens tanto porque a possibilidade de inadimplência cai praticamente a zero quanto porque ganha juros. Esses mesmos elementos zeram parte do arrazoado que levou aos programas governamentais de empréstimos a estudantes e às hipotecas governamentais. Contudo, os conservadores insistem em que o governo não deve dedicar-se a esse tipo de atividade nanceira — salvo para dar dinheiro aos banqueiros. Alegam que o governo não é bom para fazer avaliação de crédito. Essa linha de raciocínio tem pouco valor agora, uma vez que os bancos tiveram um desempenho tão ruim na avaliação de créditos e na articulação das hipotecas que acabaram pondo em risco toda a economia. Foram muito bons em práticas predatórias, mas isso não chega a ser uma base para recomendações. Os bancos têm resistido a essa iniciativa também, e de novo por razões óbvias: não querem sofrer a competição do governo. Mas isso traz outra vantagem importante: se os bancos não podem ganhar dinheiro “fácil” explorando os americanos pobres, poderiam voltar a interessar-se pelos negócios mais sérios, o que já deviam estar fazendo o tempo todo, e emprestar dinheiro para a criação de novas empresas e para a expansão das já existentes.   Mais iniciativas em favor da propriedade residencial   Os defensores das desatinadas hipotecas subprime a rmavam que essas inovações nanceiras permitiriam que um grande número de americanos se tornasse proprietário pela primeira vez. Eles de fato se tornaram proprietários, mas por um período muito curto e a um custo muito alto. A porcentagem de americanos proprietários será menor no nal desse episódio que no início.47 O objetivo de aumentar o número de casas próprias me parece louvável, mas o caminho do mercado claramente não funcionou bem — exceto para os corretores e originadores das hipotecas e

para os banqueiros de investimento que se aproveitaram da situação. No momento atual há uma argumentação em favor do apoio temporário a americanos de renda média e baixa em seus gastos imobiliários. A mais longo prazo, existe a questão de julgar se é apropriada a atual alocação de recursos para o setor imobiliário, que está distorcida em benefício dos proprietários mais ricos. Os Estados Unidos permitem que os juros sobre as hipotecas e os impostos prediais sejam objeto de dedução scal, e ao fazê-lo o governo paga uma grande fração dos custos de ser proprietário. Em Nova York, por exemplo, quase a metade dos custos com juros de hipotecas e impostos prediais dos contribuintes mais ricos é absorvida pelo governo. Ironicamente, no entanto, isso não ajuda os que mais precisam de auxílio. Um remédio simples converteria as atuais deduções scais aqui mencionadas em um crédito scal reembolsável. (Melhor ainda seria um crédito scal progressivo, com devoluções porcentuais maiores para os pobres do que para os ricos.) Um crédito scal uniforme ajuda a todos da mesma maneira. Suponhamos que o governo dê um crédito scal de 25% para o pagamento de juros sobre hipotecas. Isso signi ca que a família que descrevemos acima, que paga 6 mil dólares de juros hipotecários por ano, teria esse gasto reduzido em 1,5 mil dólares. Hoje, essa família provavelmente poderia obter uma dedução scal de cerca de novecentos dólares. Em contraste, uma família de renda alta receberia uma dedução scal de 30 mil dólares sobre sua mansão de 1 milhão de dólares: um presente do governo que é igual à totalidade da renda da família pobre. Com um crédito scal, o presente para o proprietário da mansão ainda seria grande (15 mil dólares), mas pelo menos seria reduzido à metade. A redução dos subsídios para os americanos ricos ajudaria a pagar os subsídios para os americanos pobres. Um crédito scal de 25% aumentaria as possibilidades imobiliárias de muitos cidadãos. Evidentemente, uma iniciativa como essa enfrentaria a oposição das famílias de classe alta e das empresas de construção que ganham dinheiro fazendo casas de 1 milhão de dólares. Até aqui, esses grupos têm prevalecido. Mas o sistema atual não é justo nem e ciente: faz que o preço

efetivo da moradia para as pessoas pobres seja mais alto do que para as pessoas ricas.   Novas hipotecas   Apesar de todas as suas alegadas inovações, o setor nanceiro não inovou de maneira a transferir o risco dos americanos pobres para os mais capacitados a enfrentá-lo. Com hipotecas de taxa variável, por exemplo, os americanos pobres, que lutam para sobreviver com a renda que têm, não sabem o montante que devem pagar de mês a mês. No entanto, mesmo essas hipotecas podem ter pagamentos xos se o prazo do pagamento puder variar. O mercado dinamarquês de hipotecas proporciona uma alternativa que tem funcionado bem para o país há mais de duzentos anos. O índice de inadimplência é baixo e os produtos padronizados asseguram uma forte competição, com taxas de juros baixas e custos de transação também baixos. Uma das razões do pequeno índice de inadimplência na Dinamarca são as regulações estritas: os clientes só podem tomar empréstimos de até 80% do valor da casa e o originador é quem sofre as primeiras perdas. O sistema americano dá lugar ao surgimento do valor líquido negativo e favorece a especulação. O sistema dinamarquês é concebido para evitar o valor líquido negativo e desestimular a especulação.48 Há um alto grau de transparência, de modo que os que compram os títulos hipotecários têm boas informações sobre a qualidade da avaliação do crédito por parte de cada originador das hipotecas. O governo dos Estados Unidos tem reiteradamente sido obrigado a tomar a iniciativa na inovação de produtos nanceiros que satisfaçam as necessidades dos cidadãos comuns. Quando essas inovações funcionam bem, o setor privado costuma incorporá- -las. A crise atual pode constituir uma nova situação em que o governo precisa tomar a iniciativa para tapar os buracos deixados pelo setor privado.

Devido aos colossais erros da política de empréstimos do setor privado, o governo pouco pode fazer para impedir o naufrágio de grande número de hipotecas, mas nem todas as propriedades mal hipotecadas chegarão à falência. Apesar de existirem incentivos para a inadimplência com relação a essas propriedades, os indivíduos tratam de preservar suas reputações. É por isso que os tipos de programas descritos nesta seção podem ajudar: se as pessoas puderem permanecer em suas casas e efetuar os pagamentos hipotecários, elas o farão. Há outras propostas que afetam os incentivos à inadimplência. Uma delas, promovida pelo antigo chefe do Conselho de Assessores Econômicos do presidente Reagan, Martin Feldstein, permitia a conversão de uma parte — digamos 20% — da hipoteca em um empréstimo governamental com taxas de juros baixas.49 Mas o empréstimo governamental não era irrecorrível e o tomador do empréstimo continuava obrigado a pagar o que devia ao governo. Mas, como não podia livrar-se do empréstimo governamental, ele tampouco abandonaria o empréstimo irrecorrível que tinha com o banco, e isso mantinha baixo o índice de inadimplência. Os emprestadores se saíam bem — a proposta lhes dava, na verdade, um belo presente, em parte às custas dos proprietários, que haviam sido induzidos a trocar seus empréstimos irrecorríveis por outros recorríveis. Como observei antes, ter um empréstimo irrecorrível equivale a ter uma opção: uma aposta unilateral, que sai ganhadora quando os preços das casas sobem, sem incorrer em riscos totais se os preços baixarem. Trocar um empréstimo irrecorrível por um recorrível representa abrir mão dessa opção. O mais provável é que os clientes nanceiramente menos experientes não cheguem a compreender o valor de mercado da opção que retinham e enxerguem apenas o pagamento menor. Em certo sentido, o governo estaria ajudando e encorajando duplamente os bancos, a menos que informasse os proprietários a respeito do valor da opção. Mas uma pequena modi cação dessa proposta reduziria a probabilidade da falência e ao mesmo tempo evitaria outro presente aos emprestadores. O governo poderia estimular os emprestadores a comprar de volta a opção, ao

preço justo do mercado (reduzindo, assim, a incerteza que eles próprios e os mercados hoje enfrentam), e estimular as famílias a usar o dinheiro resultante (ou a maior parte deste) para comprar o valor restante da hipoteca.50 Imaginemos uma casa de 300 mil dólares com uma hipoteca de 300 mil dólares em grave risco de naufragar. O banco converteria 60 mil dólares em uma hipoteca recorrível. Imaginemos que o valor da “opção” seja de 10 mil dólares. O proprietário usaria essa soma para pagar uma pequena parcela da sua hipoteca. Isso faria a casa car um pouco mais acessível — os juros se reduziriam em 50 dólares por mês. Para tornar o negócio mais interessante (tanto para o banco quanto para o cliente), o governo, reconhecendo os benefícios que decorreriam para todos de um índice mais baixo de inadimplência, poderia assumir a hipoteca recorrível de 60 mil dólares, cobrando juros de 2%. A combinação entre isso e um crédito scal de 25% signi ca que o custo para o proprietário baixaria de 18 mil para 11,25 mil dólares. Trata-se de uma situação favorável para todas as partes. Pagamentos menores representam menor índice de inadimplência. Uma das razões pelas quais os bancos foram chamados a limpar seus balanços é que isso reduziria a incerteza, o que lhes tornaria possível fazer novos empréstimos. Esse programa faria exatamente isso, deixando de transferir as perdas dos bancos para os contribuintes, e ajudando os proprietários das casas. Trata-se de um exemplo de economia por capilaridade, em que a ajuda aos cidadãos comuns acaba ajudando os bancos — ao contrário da economia por gravitação, que o governo vem tentando, em que o governo ajuda o nível superior — os bancos — na esperança de que com isso os proprietários de casas e o resto da economia acabem obtendo algum alívio. Descon o que, se o governo adotasse as propostas simples deste capítulo, o problema dos despejos estaria superado. Mas infelizmente o governo Obama seguiu o caminho do governo Bush e concentrou seus esforços no salvamento dos bancos. Mesmo com o derrame de dinheiro público nos bancos, os problemas do mercado hipotecário aumentaram — o que signi ca que os bancos continuarão a enfrentar problemas nos próximos

meses e anos. Mas, como veremos no próximo capítulo, a maneira pela qual o resgate dos bancos foi praticado paralisou a reestruturação das hipotecas, não conseguiu gerar a retomada dos créditos — que era o alegado objetivo dos resgates — e deixou o país com uma dívida nacional muito maior do que se houvéssemos seguido caminhos alternativos.

* Capítulo da lei de falência de 1978 que permite aos devedores reter o controle do seu empreendimento. Devedores e credores ganham exibilidade para elaborar um plano que mantenha o empreendimento vivo e lhe permita pagar sua dívida, total ou parcialmente. (N. T.)

. O grande roubo americano

5

Os economistas gostam de dizer que o sistema bancário é o coração da economia: faz o dinheiro circular e chegar aos lugares onde é mais necessário. Quando o sistema bancário cou à beira do colapso, no outono de 2008, a concessão de empréstimos se esgotou e o governo pronti cou-se a resgatar os bancos. Era um momento perfeito para que começássemos a pensar no desenvolvimento de um sistema nanceiro verdadeiramente e ciente, que envie o capital aonde seja necessário e aonde seja mais produtivo e e ciente, que ajude as famílias e as empresas a administrar o risco e que proporcione a base de um sistema de pagamentos rápido e barato. Em vez disso, dois governos sucessivos tomaram uma série de medidas de ajuda ao sistema nanceiro que dava pouca atenção ao tipo de sistema que seria melhor para o país quando ele saísse da crise. Essas medidas não resolveram os problemas estruturais do sistema bancário e algumas os agravaram. Em consequência, há poucas garantias de que o novo sistema que ressurgirá das cinzas venha a prestar à nação serviços melhores do que o anterior. Enquanto se dedicava a ajudar os bancos, o governo americano deveria ter pensado também a respeito das responsabilidades. Os banqueiros que levaram o país a esse estado de confusão deveriam ter pagado pelos seus erros. Em vez disso, receberam bilhões de dólares — e mais ainda, como se viu — graças à generosidade de Washington. Como sistema, o capitalismo pode tolerar um alto nível de desigualdade, e existe mesmo um argumento

sobre a razão de ser da desigualdade: é a maneira de dar motivação às pessoas. Dar recompensas compatíveis com a contribuição de cada um para a sociedade gera uma economia mais e ciente. Mas os que receberam recompensas tão boas durante a bolha imobiliária não zeram contribuições à sociedade nem a tornaram mais e ciente. Podem ter aumentado os lucros dos bancos por algum tempo, mas esses lucros eram uma miragem. Em última análise, eles impuseram um enorme custo aos indivíduos em todo o mundo. O capitalismo não pode funcionar se as recompensas privadas não tiverem relação com ganhos sociais. Mas foi o que aconteceu no nal do século xx e no início do século xxi, com o capitalismo nanceiro de estilo americano. Neste capítulo, detalharei como os dois governos lidaram com a crise nanceira, o que deveriam ter feito e quais são as consequências prováveis. Ainda não se pode conhecer a totalidade dessas consequências, mas é quase certo que os equívocos dos governos de Bush e Obama estarão entre os mais caros cometidos por qualquer governo democrático moderno em qualquer época.1 Nos Estados Unidos, a magnitude das garantias e dos resgates se aproximou de 80% do pib do país, ou seja, cerca de 12 trilhões de dólares.2 Nem todas essas garantias serão exigidas e, portanto, o custo total para o contribuinte será menor, mas além das ajudas anunciadas, centenas de bilhões de dólares estavam em gavetas ocultas. O Banco Central, por exemplo, estava recebendo colaterais de baixa qualidade e comprando hipotecas, em transações nanceiras que, quase seguramente, teriam altos custos para os contribuintes e, na melhor das hipóteses, os expunham a altos riscos. Os resgates tomaram também outras formas, através, por exemplo, do empréstimo de dinheiro aos bancos a taxas de juros próximas a zero, dinheiro que podem usar para continuar apostando ou para emprestar a outras rmas a juros muito mais altos. Muitas outras empresas (ou indivíduos) agradeceriam um empréstimo com juro zero — e gerariam lucros pelo menos tão polpudos quanto os dos bancos “bemsucedidos”. Trata-se de um enorme presente — e escondido dos contribuintes.3

Com a eclosão da crise nanceira, o governo Bush decidiu resgatar os banqueiros e seus acionistas — e não apenas os bancos. O dinheiro foi fornecido de maneiras não transparentes, talvez porque o governo não quisesse que o público tivesse pleno conhecimento dos presentes que estavam sendo dados, talvez porque muitos dos responsáveis eram exbanqueiros e a falta de transparência era sua maneira natural de fazer negócio.4 O governo decidiu não exercer nenhum controle sobre os que recebem enormes somas de dinheiro dos contribuintes, com base em que isso constituiria uma interferência nos mecanismos de uma economia de mercado — como se os resgates de 1 trilhão de dólares fossem coerentes com esses princípios. Essas decisões tiveram consequências previsíveis, que se revelariam nos meses seguintes. Os executivos dos bancos se comportaram da maneira que deles se pode esperar no sistema capitalista: seguindo o interesse próprio, o que signi ca ganhar o máximo de dinheiro possível para si e para os acionistas da sua empresa. Os governos de Bush e Obama cometeram um erro simples — indesculpável, tendo em vista o que acontecera antes da crise: acreditar que a busca do interesse próprio por parte dos bancos coincidia necessariamente com o interesse nacional. O clamor público contra os abusos cometidos com o dinheiro dos contribuintes tornou o prosseguimento da ajuda aos bancos cada vez mais difícil — e induziu formas cada vez menos transparentes e menos e cientes de resolver os problemas. Não chega a surpreender que o governo Obama não tenha trilhado um caminho de fato novo. Isso pode ter feito parte da estratégia como um todo: proporcionar con ança ao mercado por meio da calma e da continuidade. Mas tal estratégia tinha um custo. Desde o início, o governo não fez as perguntas certas a respeito do tipo de sistema nanceiro que o país queria e de que precisava, porque essas perguntas eram política e economicamente incômodas. Os banqueiros não queriam admitir que havia alguma coisa fundamentalmente errada e mal queriam admitir qualquer tipo de erro ou fracasso. Os desreguladores e os políticos que os apoiavam tampouco queriam admitir o fracasso das doutrinas econômicas que defendiam.

Queriam a volta do mundo ao que existia antes de 2007, antes da crise — com um retoquezinho aqui ou ali, pois eles não podiam dizer que tudo estava perfeito. Mas era preciso fazer mais do que isso. O sistema nanceiro não podia, e não devia, retornar ao que era. Reformas de verdade — e não apenas cosméticas — eram e ainda são necessárias. Por exemplo: o sistema nanceiro crescera desproporcionalmente e teria que ser diminuído. Mas algumas partes precisavam diminuir mais que outras. O governo Obama pode acabar chegando à resposta correta, que talvez esteja em execução antes mesmo da publicação deste livro. Mas o rumo incerto seguido até aqui impôs altos custos. O legado da dívida comprometerá os programas econômicos e sociais nos próximos anos. Com efeito, poucos meses depois dos resgates, o tamanho do dé cit estava sendo usado como desculpa para reduzir a escala da reforma do sistema de saúde pública. Nos bancos, os inimigos do dé cit tiraram férias a partir do m do verão de 2008. Quando os bancos disseram que precisavam de centenas de bilhões de dólares, todas as preocupações a respeito do dé cit foram varridas para debaixo do tapete. Mas, como eu e outros previmos, eles regressaram das férias assim que cou claro que não haveria mais dinheiro para eles. E então retomaram sua tradicional posição de opor-se aos gastos, por mais altas que fossem as recompensas. (Curiosamente, quando os resgates começaram a ser feitos, os banqueiros a rmaram que o governo obteria um grande lucro com o seu “investimento”, um tipo de argumento que haviam desprezado quando aplicado a outras formas de investimentos sociais, tecnológicos e infraestruturais antes da crise. Hoje já está claro que é muito pouco provável que os contribuintes venham a recuperar o que foi dado aos bancos e que não há nenhuma chance de que venham a receber compensação adequada pelos riscos que assumiram, como os bancos teriam exigido se houvessem passado seu dinheiro a qualquer outra pessoa.)     insuficiências do sistema americano

 

Em última análise, o êxito do setor nanceiro se mede pelo bem-estar que proporciona aos cidadãos comuns, em função de uma melhor alocação do capital ou de uma melhor administração do risco. Apesar de todo o orgulho com as inovações em um setor nanceiro inchado, não está claro que a maioria das inovações tenha efetivamente dado grandes contribuições para o êxito da economia dos Estados Unidos ou para o nível de vida da vasta maioria dos americanos. No último capítulo, por exemplo, discutimos a tarefa relativamente simples de repassar dinheiro às pessoas para ajudá-las a comprar casas. O setor nanceiro deveria ter usado sua inventividade para conceber produtos que ajudassem as pessoas a administrar os riscos de ser dono de uma propriedade residencial, tais como os que decorrem da variabilidade das taxas de juros. Os nancistas supostamente entendem de risco, e essa foi uma das razões de terem recebido remunerações tão generosas. É notável que nem eles nem os reguladores, que se orgulhavam de entender os mercados e o signi cado do risco e da e cácia, não o tenham feito. Eles deviam transferir o risco dos menos capazes de suportá-lo (os proprietários pobres) para outros. Mas, ao contrário, as “inovações” impuseram mais riscos aos proprietários pobres. Este livro está repleto de exemplos do que só pode ser descrito como “incoerência intelectual”: se os mercados eram e cientes, na média, os proprietários pouco teriam a ganhar com a troca de uma hipoteca de taxa xa por outra de taxa variável. A única diferença estaria em quem suporta o risco da variabilidade. E no entanto, como vimos, o presidente do Banco Central, Alan Greenspan, estimulou as pessoas a optar por hipotecas de taxa variável. Ele acreditava, ao mesmo tempo, que os mercados eram e cientes (parte das razões pelas quais a regulação não era necessária) e que os proprietários poderiam, na média, economizar dinheiro fazendo hipotecas de taxa variável. É compreensível que os proprietários pobres que não entendem de risco tenham optado por seguir esse mau conselho; mas que os chamados peritos em nanças o façam é mais difícil de compreender.

A julgar pelo desempenho — não através de medidas arti ciais de lucros e taxas, mas sim por meio de medidas mais relevantes que levem em conta as contribuições do setor para a economia e o bem-estar das famílias —, o setor nanceiro fracassou. (Na verdade, mesmo examinando-o da perspectiva da lucratividade a longo prazo — levando em conta as enormes perdas ocorridas quando a bolha estourou — o sistema nanceiro fracassou.) Não foi um toque de gênio que levou aos empréstimos mentirosos, às hipotecas de 100%, ou à disseminação dos produtos de taxa variável. Essas ideias eram ruins e muitos países as baniram. Eram o efeito do não entendimento dos fundamentos do mercado (inclusive os riscos da informação imperfeita e assimétrica e a própria natureza do risco do mercado). Eram o efeito do esquecimento ou rejeição das lições da teoria econômica e da experiência histórica. De modo mais geral, embora seja facílimo estabelecer um vínculo claro entre essas inovações e os fracassos econômicos, é difícil apontar a existência de um vínculo claro, por exemplo, entre as “inovações do setor nanceiro” e o aumento da produtividade. Uma pequena parte do sistema nanceiro, as empresas de fomento a novos empreendimentos — muitas das quais estavam na Costa Oeste dos Estados Unidos e não em Nova York — desempenharam um papel crucial no desenvolvimento econômico do país, dando capital (e assistência gerencial) a muitas novas companhias e empreendimentos. Outras partes do sistema nanceiro — bancos comunitários, uniões de crédito e bancos locais, que propiciam o nanciamento necessário aos consumidores e às pequenas e médias empresas — também zeram um bom trabalho. Os grandes bancos, que se orgulhavam de haver trocado o negócio de guarda-móveis (leia-se: empréstimo de dinheiro) pelo das mudanças (leiase: embalar papéis complexos e vendê-los a clientes incautos), tiveram um papel periférico com relação à criação de empregos. Estavam interessados nos negócios de megamultibilhões de dólares, de inventar empresas e depois, quando isso não desse mais certo, dissolvê-las. Se, por um lado, não tiveram um papel importante na criação de empregos e de empresas, por

outro, destacaram-se na destruição de postos de trabalho (dos outros) como parte dos seus característicos esforços de “cortar custos”. As inadequações do sistema nanceiro vão além dos fracassos na administração de riscos e nas alocações de capital que deram origem à crise. Os bancos não forneceram os serviços de que os pobres precisavam, tornando-os vítimas da exploração dos empréstimos mensais e dos serviços de compra de cheques; e não forneceram aos usuários um sistema de pagamento eletrônico de baixo custo do tipo que os Estados Unidos deveriam ter, graças aos avanços tecnológicos. Há múltiplas explicações para um desempenho tão ruim do sistema nanceiro, e é importante que as compreendamos para poder consertar as coisas. Os capítulos anteriores chamaram a atenção para cinco falhas. Em primeiro lugar, os incentivos são importantes, mas existe um desequilíbrio sistêmico entre os proveitos privados e os ganhos sociais. A menos que haja a devida correspondência entre eles, o sistema de mercado não pode funcionar bem. Isso ajuda a explicar por que tantas “inovações” que eram o orgulho do sistema nanceiro levaram a um caminho equivocado. Em segundo lugar, certas instituições se tornaram grandes demais para poder falir — e demasiado caras para salvar. Algumas se mostraram também grandes demais para serem administradas. Como disse Edward Liddy, que assumiu a gestão da aig depois do resgate do governo:   Quando eu atendi o telefone e recebi o pedido de ajuda e fui para a aig, em setembro de 2008, uma coisa logo cou clara: a estrutura global da companhia é demasiado complexa, demasiado difícil de dirigir e demasiado opaca para que as diferentes atividades que a compõem possam ser bem administradas como entidade única.5

  O terceiro ponto é que os grandes bancos passaram do estilo tradicional para a securitização. A securitização tem as suas virtudes, mas precisa ser administrada com muito cuidado — algo que nem os operadores do sistema nanceiro nem os desreguladores compreenderam.6

O quarto ponto é que os bancos comerciais tentaram reproduzir o jogo de alto risco e alto lucro das altas nanças, mas o ofício de banqueiro comercial deve ser aborrecido. Quem quiser apostar pode ir às corridas de cavalos, ou aos cassinos de Las Vegas ou Atlantic City. Nesses lugares, todos sabem que existe uma chance de que a gente não recupere o dinheiro que investiu. Mas quando depositamos dinheiro no banco, não queremos correr o risco de que ele não esteja mais lá quando a gente precisar. Muitos banqueiros comerciais parecem ter sofrido da “inveja dos fundos de hedge”. Mas os fundos de hedge não têm garantias governamentais e os bancos comerciais sim. São diferentes tipos de negócios, e muitos banqueiros comerciais se esqueceram disso. Em quinto lugar, muitos banqueiros esqueceram que eles também deveriam ser cidadãos responsáveis; e de que não deveriam explorar os mais pobres e os mais vulneráveis. Os americanos estavam certos de que essas pessoas, pilares da comunidade, tinham consciência moral. Na voragem de ganância que tomou conta da nação, os limites se perderam — até mesmo o de que não se deve explorar os mais fracos da sociedade.     o resgate que no existiu

  Como vimos nos capítulos anteriores, a falência é uma característica básica do capitalismo. As empresas por vezes não conseguem pagar o que devem aos credores. A reorganização nanceira se tornou um expediente frequente em muitas atividades. Os Estados Unidos têm a sorte de dispor de um mecanismo particularmente efetivo que possibilita um recomeço às rmas atingidas — o Capítulo 11 do código de falências, que tem sido utilizado seguidas vezes, por exemplo, pelas companhias de aviação civil. Os aviões continuam voando e os empregos e os ativos são preservados. Em geral, os acionistas perdem tudo e os credores se tornam os novos acionistas. Sob nova direção e livre da carga das dívidas, a companhia aérea pode continuar a funcionar. O governo tem um papel limitado nessas

reestruturações. As cortes de falência cuidam para que todos os credores sejam tratados com justiça e que os dirigentes não desviem os ativos da empresa em proveito próprio. Os bancos são diferentes em um aspecto: o governo está envolvido porque assegura os depósitos. Como vimos no último capítulo, a razão pela qual o governo assegura os depósitos é a preservação da estabilidade do sistema nanceiro, que é importante para preservar a estabilidade da economia. Mas, se um banco entra em di culdades, o procedimento básico deve ser o mesmo: os acionistas perdem tudo e os credores se tornam os novos acionistas.7 Muitas vezes, o valor dos títulos de dívida é su ciente para resolver o problema. À época do resgate, por exemplo, o Citibank, o maior banco dos Estados Unidos, com ativos de 2 trilhões de dólares, tinha cerca de 350 bilhões de dólares em títulos de longo prazo. Como não há pagamentos obrigatórios com ações, se houvesse uma conversão de débito em ações o banco não precisaria pagar os bilhões e bilhões de dólares de juros sobre esses títulos. O fato de não pagar bilhões de dólares de juros põe o banco em posição muito mais vantajosa. Nessa situação, o papel do governo é pouco diferente do papel de supervisor, que o próprio governo desempenha na falência de uma rma qualquer. Por vezes, contudo, o banco foi tão mal administrado que o valor devido aos depositantes era maior que seus próprios ativos. (Foi o caso de muitos bancos na derrocada do setor de poupança e crédito, no nal da década de 1980, e na crise atual.) Então o governo precisa entrar em cena para honrar seu compromisso com os depositantes. O governo se torna, com efeito, o dono (possivelmente em forma parcial), embora costume tentar vender o banco assim que possível, ou encontrar alguém que o assuma. Como o banco falido tem débitos maiores que seus ativos, o governo normalmente tem de pagar ao banco adquirente para que este o compre, com o que volta a equilibrar-se o balanço da organização. Esse processo se denomina, no direito americano, conservatorship,8 e assemelha-se a uma intervenção temporária. Normalmente a mudança de propriedade é tão sumária que os depositantes e outros clientes não chegam a saber que aconteceu algo, a

menos que o leiam na imprensa. Às vezes, quando não se encontra rapidamente um novo responsável, o governo opera o banco por algum tempo. (Os opositores da intervenção tentaram denegrir esse método tradicional chamando-o de nacionalização. Obama indicou que essa não era a maneira americana de agir,9 mas ele não tinha razão: a intervenção, inclusive a possibilidade da propriedade governamental temporária quando tudo o mais fracassa, é o método tradicional; os enormes presentes do governo aos bancos é que não tinham precedente.10 E como mesmo todos os bancos que foram objeto de intervenção por parte do governo acabaram sempre por ser vendidos, sugeriu-se que o nome do processo fosse “préprivatização”.) Uma longa experiência ensina que, quando os bancos entram em risco de falência, seus dirigentes se comportam de maneiras que põem ainda mais em risco o dinheiro dos contribuintes. Os bancos podem, por exemplo, fazer grandes apostas: se ganharem, cam com os lucros; se perderem — e daí? Não passaria de um fracasso. Por isso existem leis que dizem que, quando o capital de um banco é pequeno, este deve ser fechado, ou posto sob intervenção temporária. Os reguladores dos bancos não esperam até que o dinheiro acabe. Precisam ter a certeza de que, quando o depositante coloca o seu cartão de débito na máquina e esta diz “fundos insu cientes”, é porque a insu ciência está nos fundos da conta e não nos fundos do banco. Quando os reguladores veem que um banco tem muito pouco dinheiro, eles o advertem da necessidade de aportar mais capital, e se o banco não consegue fazê-lo, eles tomam o caminho que aqui foi descrito.11 Com a evolução da crise de 2008, o governo deveria ter atuado de acordo com as regras do capitalismo e forçado uma reorganização nanceira. As reorganizações nanceiras — o oferecimento de um recomeço — não são o m do mundo.12 Na verdade, podem representar o começo de um novo mundo, em que os incentivos estão mais bem alinhados e em que os empréstimos são retomados. Se o governo tivesse forçado a reestruturação nanceira dos bancos, da maneira como acaba de ser descrita, teria havido pouca necessidade de uso do dinheiro dos

contribuintes e mesmo de um maior envolvimento do governo. Essa conversão aumenta o valor global da empresa porque reduz a probabilidade da falência, economizando assim não só os altos custos transacionais de um processo falimentar, mas preservando o valor do empreendimento. Isso signi ca que os acionistas desaparecem e que os credores se transformam em novos “donos”; as perspectivas de longo prazo dos credores se tornam melhores do que se o banco permanecesse no limbo, em que não se sabia nem se sobreviveria nem quais seriam as dimensões e os termos da ação governamental.13     Os credores envolvidos em uma reestruturação receberiam um outro presente, pelo menos segundo a própria lógica dos bancos. Os banqueiros a rmaram que o mercado estava subestimando o valor real das hipotecas registradas em suas contas (e outros ativos dos bancos). Isso pode ter ocorrido — ou não. Se não foi esse o caso, é totalmente ilógico fazer que os contribuintes paguem pelos erros dos bancos, mas se os ativos valiam de fato o que os banqueiros diziam, então os credores estariam por cima. O governo Obama a rmou que os grandes bancos não só são grandes demais para falir, mas também grandes demais para serem reestruturados nanceiramente (ou, como direi depois, “grandes demais para serem reduzidos) e grandes demais para poder atuar de acordo com as regras normais do capitalismo. Ser grande demais para ser reestruturado nanceiramente signi ca que, se o banco estiver à beira da falência, só há uma fonte de recursos: o dinheiro dos contribuintes. E seguindo essa doutrina nova e não comprovada, centenas de bilhões de dólares foram derramados no sistema nanceiro. Se é verdade que os maiores bancos dos Estados Unidos são grandes demais para serem “reduzidos”, isso tem implicações profundas para o nosso sistema bancário — implicações que o governo até aqui tem se recusado a reconhecer. Se, por exemplo, os credores estão de fato garantidos porque essas organizações são grandes demais para serem reestruturadas nanceiramente, então a economia de

mercado não tem como exercer uma disciplina efetiva sobre os bancos. Eles têm acesso a um capital mais barato que o devido, porque os provedores desse capital sabem que os contribuintes arcarão com quaisquer perdas que ocorram. Se o governo está proporcionando uma garantia, seja explícita ou implícita, os bancos não estão arcando com todos os riscos associados às decisões que tomam: os riscos tomados pelos mercados (acionistas, credores) são menores que os assumidos pela sociedade como um todo e, portanto, os recursos irão para o destino errado. Como os bancos grandes demais para serem reestruturados têm acesso a fundos a taxas de juros menores do que deviam ser, todo o mercado de capitais ca distorcido. Eles crescem às expensas dos rivais menores, que não dispõem dessa garantia. Podem facilmente vir a dominar o sistema nanceiro, não por meio de capacidade e inventividade superiores, mas por causa do apoio tácito do governo. Que que claro: esses bancos grandes demais para serem reestruturados não podem operar como bancos comuns, baseados no mercado. Na verdade, creio que toda essa conversa sobre bancos grandes demais para serem reestruturados não passa de uma esperteza. Foi um estratagema que funcionou com base em uma campanha de medo. Assim como Bush utilizou o 11 de setembro e o medo do terrorismo para justi car muitas das coisas que fez, assim também o Tesouro, no tempo de Bush e no de Obama, utilizou o 15 de setembro — o dia do colapso de Lehman Brothers — e o medo de uma nova catástrofe como instrumentos para extrair o mais que podia em favor dos bancos e dos banqueiros que haviam levado o mundo à beira da ruína econômica. O argumento é que, se o Fed e o Tesouro houvessem resgatado Lehman Brothers, a crise como um todo teria sido evitada. O signi cado disso — aparentemente adotado pelo governo Obama — é que, em caso de dúvida, deve-se fazer o resgate — e de forma maciça. Não fazê-lo seria acertar no pequeno e errar no grande. Mas essa é a lição errada que se pode aprender com o episódio de Lehman Brothers.14 A noção de que se Lehman Brothers houvesse sido

resgatado tudo estaria bem é absurda. Lehman Brothers foi consequência e não causa: foi consequência das más práticas de empréstimos e da supervisão inadequada dos reguladores. Houvesse ou não ocorrido o resgate, a economia global enfrentaria di culdades. Antes da crise, como já assinalei, a economia global era sustentada pela bolha e pelos empréstimos excessivos. O jogo acabou — e já havia acabado bem antes do colapso de Lehman. É praticamente certo que o colapso acelerou o processo de desalavancagem. Ele trouxe à luz a infestação dos problemas e o fato de que os bancos não conheciam seu próprio valor líquido e que, portanto, não podiam conhecer o valor líquido de nenhuma outra empresa à qual pudessem emprestar dinheiro.15 Um processo mais ordenado teria causado menos custos no curto prazo, mas fazer história à revelia dos fatos é sempre problemático. Há os que creem que o melhor é tomar o remédio e aguentar a dor; que o lento desdobramento dos excessos duraria muito mais tempo, com custos ainda maiores. Mas quem sabe a recapitalização progressiva dos bancos tivesse ocorrido mais rapidamente do que o aparecimento das perdas. Dessa perspectiva, ocultar as perdas com uma contabilidade desonesta (como ocorreu nessa crise, assim como na derrocada da poupança na década de 1980) teria produzido outros resultados, além da simples remoção dos sintomas. Fazer baixar a febre pode ajudar a recuperação. Um terceiro ponto de vista sustenta que o colapso de Lehman Brothers na verdade salvou o próprio sistema nanceiro: sem ele, teria sido difícil estimular o apoio político requerido para resgatar os bancos. (Já foi muito difícil fazê-lo depois do colapso.) Mesmo que estejamos de acordo em que deixar Lehman Brothers entrar em colapso foi um erro, existem muitas escolhas entre o método do cheque em branco para salvar os bancos, adotado pelos governos de Bush e Obama depois do 15 de setembro, e o método de Henry Paulson, Ben Bernanke e Tim Geithner, de simplesmente deixar cair Lehman Brothers e rezar para que tudo se resolvesse no nal. O governo tinha o dever de salvar os depositantes, o que não signi cava oferecer dinheiro dos contribuintes para salvar também os credores e os

acionistas. Como já dissemos, os procedimentos normais recomendavam que a instituição fosse salva, que os acionistas sofressem as perdas e que os credores se tornassem os novos acionistas. Lehman Brothers não tinha depositantes segurados; era um banco de investimento. Mas tinha algo quase equivalente — tomava emprestado dinheiro de curto prazo no “mercado”, por meio de papéis comerciais detidos por fundos do mercado nanceiro que agiam de modo muito semelhante ao dos bancos. (Pode-se até mesmo emitir cheques com base nessas contas.) É por isso que a parte do sistema nanceiro que envolve os mercados de dinheiro e os bancos de investimento é muitas vezes chamada de sistema bancário alternativo. Ele surgiu, em parte, para contornar as regulações impostas ao sistema bancário real — para assegurar sua segurança e estabilidade. O colapso de Lehman Brothers induziu uma corrida ao sistema bancário alternativo, de maneira muito semelhante à das corridas que por vezes aconteciam ao sistema bancário real, antes da implantação do seguro de depósito. Para interromper a corrida, o governo estendeu o seguro ao sistema bancário alternativo. Os que se opõem à reestruturação (intervenção temporária) para os bancos que passam por di culdades dizem que, se os credores não estiverem totalmente protegidos, os credores restantes de determinado banco — os que aportam os fundos de curto prazo, sem garantias do governo — debandarão, caso percebam como iminente uma reestruturação. Mas essa conclusão desa a a lógica econômica. Se os credores forem seres racionais, perceberão que se bene ciam enormemente da maior estabilidade da empresa graças à intervenção e à conversão das dívidas em ações. Se antes estavam dispostos a manter seus fundos nesse banco, mais dispostos deveriam estar nas novas condições. E se o governo não tem con ança na racionalidade desses pretensos nancistas hábeis, eles próprios poderiam oferecer a garantia, ainda que cobrando um prêmio por isso. A nal, os governos de Bush e Obama não só resgataram os acionistas, mas proporcionaram garantias. As garantias efetivamente retiraram a base do

argumento em favor de um tratamento generoso para os acionistas e para os credores de longo prazo. Com a reestruturação nanceira há dois grandes perdedores. Os executivos dos bancos sem dúvida terão que ir embora, e não carão contentes. Os acionistas também carão infelizes porque terão perdido tudo. Mas essa é a natureza da tomada do risco no capitalismo: a única justi cativa para os lucros acima do normal que eles acumulam durante os bons tempos é o risco de uma perda.16     os esforços iniciais para salvar um sistema financeiro falho

  O governo dos Estados Unidos deveria ter atuado de acordo com as regras e “reestruturado” os bancos que necessitavam de resgate, em vez de fazer-lhes caridades injusti cadas. Isso é verdade ainda que alguns bancos consigam pagar o dinheiro que lhes foi dado. Mas tanto o governo Bush quanto o governo Obama decidiram pelo oposto. Quando a crise eclodiu no nal de 2007 e no início de 2008, o governo Bush e o Fed inicialmente foram indo de resgate em resgate, sem orientarse por um plano ou por princípios discerníveis, o que acrescentou incerteza política à incerteza econômica. Em alguns dos resgates (Bear Stearns), os acionistas conseguiram algo e os credores lograram proteção total. Em outros (Fannie Mae), os acionistas perderam tudo e os credores receberam proteção total. Em outros mais (Washington Mutual), acionistas e credores perderam quase tudo. No caso de Fannie Mae, considerações de caráter político (preocupações em não criar problemas com a China, importante detentor de títulos de Fannie Mae) aparentemente predominaram. Nunca apareceu outra justi cativa econômica razoável.17 Embora ocorressem frequentes referências ao “risco sistêmico” para explicar por que algumas instituições foram salvas e outras não, era claro que tanto o Fed quanto o Tesouro tinham uma avaliação insu ciente do signi cado de risco sistêmico

antes da crise, e sua compreensão permaneceu limitada a esse respeito mesmo com a evolução da crise. Alguns dos primeiros resgates foram feitos pelo do Banco Central, o que levou esse órgão a tomar medidas totalmente inimagináveis apenas alguns meses antes. O Fed é responsável principalmente perante os bancos comerciais, os quais regula, e o governo fornece o seguro dos depósitos. Antes da crise, dizia-se que os bancos de investimento não precisavam de acesso a fundos do Fed nem do mesmo tipo de regulação estrita, uma vez que não apresentam risco sistêmico. Operavam com o dinheiro de pessoas ricas e tinham condições de se proteger. Mas de repente, no ato mais generoso de toda a história da proteção às corporações, a rede de segurança do governo foi estendida aos bancos de investimento. Em seguida, ampliouse um pouco mais: à aig, uma empresa de seguros. A nal, em setembro de 2008, cou claro que era preciso fazer algo mais do que esses resgates “ocultos” realizados através do Fed, e o presidente Bush teve de apelar para o Congresso. A ideia original do secretário do Tesouro, Paulson, para passar dinheiro aos bancos foi comparada pelos críticos a “trocar dinheiro por lixo” (“cash for trash”). O governo compraria os ativos tóxicos, no escopo do Programa de Auxílio a Ativos Problemáticos (tarp), injetando liquidez e limpando o balanço dos bancos ao mesmo tempo. Evidentemente, os banqueiros não acreditavam que o governo tivesse uma vantagem comparativa no campo da coleta de lixo. A razão pela qual queriam passar os ativos tóxicos para o governo era a esperança de que o governo pagasse mais por eles, em uma recapitalização disfarçada dos bancos. A indicação mais clara de que as coisas não estavam tomando um bom rumo ocorreu quando Paulson foi ao Congresso e apresentou um projeto do tarp de três páginas que dava a ele próprio um cheque em branco de 700 bilhões de dólares sem nenhuma supervisão do Congresso nem controle judicial. Como economista-chefe do Banco Mundial, eu já havia visto manobras como essa. Se algo desse tipo acontecesse em uma república de bananas do Terceiro Mundo, nós saberíamos o que estava para

acontecer: uma maciça redistribuição do dinheiro dos contribuintes para os bancos e seus amigos. O Banco Mundial ameaçaria com o corte de toda e qualquer assistência. Não poderíamos tolerar esse tipo de emprego de recursos públicos, sem os controles e as limitações usuais. Na verdade, muitos comentaristas conservadores a rmaram que o que Paulson propunha era inconstitucional. Para eles, o Congresso não poderia simplesmente ignorar suas próprias responsabilidades na alocação desses fundos. Alguns investidores de Wall Street se queixaram de que a imprensa estava azedando os humores ao quali car a operação como um resgate. Preferiam palavras mais eufemísticas, como “programa de recuperação”, em vez de “resgate”. Paulson transformou os ativos tóxicos em uma expressão mais gentil: “ativos problemáticos”. Seu sucessor, Tim Geithner, depois a converteria em “ativos herdados” (“legacy assets”). Na primeira votação, em 29 de setembro de 2008, o projeto do tarp foi derrotado por 23 votos de diferença na Câmara dos Deputados. Após a derrota, o governo Bush fez um leilão: perguntou a cada deputado que votara contra quanto queria em presentes para as suas bases eleitorais para mudar seu voto. Trinta e dois democratas e 26 republicanos que haviam votado contra o projeto original mudaram de lado e apoiaram o tarp na versão revista, que foi aprovada em 3 de outubro de 2008. A mudança de voto dos congressistas foi causada em parte pelo medo de uma catástrofe econômica global e pela inclusão de dispositivos que permitiam uma melhor supervisão, mas, pelo menos para muitos dos congressistas que mudaram de voto, houve uma clara troca de favores: o projeto revisto continha 150 bilhões de dólares de dispositivos especiais para as suas jurisdições eleitorais.18 Ninguém disse que os membros do Congresso podiam ser facilmente comprados.19 Naturalmente, Wall Street estava encantada com o programa de compra dos ativos ruins. Quem não gostaria de descarregar seu próprio lixo em cima do governo e a preços in acionados? Os bancos poderiam ter vendido muitos desses papéis no mercado, mas não a preços que lhes agradassem. E

havia, é claro, outros ativos em que o setor privado nem sequer tocaria. Alguns desses chamados ativos eram, na verdade, passivos explosivos, que consumiram fundos governamentais como o Pacman. Em 15 de setembro de 2008, por exemplo, a aig disse que tinha um dé cit de 20 bilhões de dólares. No dia seguinte, suas perdas já estavam em 89 bilhões de dólares. Pouco depois, quando ninguém estava olhando, uma informação indicava que o total subira para 150 bilhões de dólares. Depois ainda, o número foi para 180 bilhões de dólares. Quando tomou a aig (uma cota acionária de pouco menos de 80%), o governo pode ter recebido alguns ativos, mas no meio havia passivos ainda maiores. Por m, a proposta original de Henry Paulson cou totalmente desacreditada, porque as di culdades em determinar o preço e efetuar a compra de milhares de papéis caram claras. As pressões exercidas pelos que não queriam pagar muito aos bancos levaram, ademais, à hipótese de determinar os preços dos ativos tóxicos por meio de um mecanismo transparente de leilões. Logo se viu, contudo, que leiloar milhares de ativos de diferentes categorias seria um pesadelo. Era essencial não perder tempo, e os leilões não poderiam ser feitos com rapidez. Além disso, se os leilões fossem justos, os preços talvez não fossem muito altos, o que deixaria os bancos com grandes buracos nos seus balanços. Depois de defender a proposta vigorosamente durante várias semanas como o melhor caminho a seguir, Paulson de repente a abandonou em meados de outubro de 2008 e passou a defender outro plano. A proposta seguinte foi uma “injeção de capital”. Havia uma série de razões pelas quais se pensava que era importante dar mais valor líquido aos bancos para recapitalizá-los. Uma delas era a esperança de que com isso eles voltassem a emprestar mais dinheiro. Outra era uma lição dos anos 1980: bancos descapitalizados são um perigo para a economia. Há três décadas, as associações de poupança e crédito enfrentaram um problema similar enfrentado hoje pelos bancos. Quando as taxas de juros subiram repentinamente, como parte da luta contra a in ação na década de 1970 e no começo da de 1980, o valor das hipotecas em posse dos bancos

de poupança e crédito caiu verticalmente. Os bancos haviam nanciado essas hipotecas com depósitos. Portanto, sua dívida com os depositantes permaneceu alta e o valor dos seus ativos diminuiu muito, o que signi cava que, para efeitos práticos, estavam falidos. Mas as regras da contabilidade lhes permitiam postergar o dia da verdade, já que não precisavam reduzir o valor das hipotecas de modo a re etir as novas realidades. Tinham, no entanto, que pagar aos depositantes juros mais altos do que os que recebiam pelas hipotecas, o que levou muitos a terem sérios problemas de uxo de caixa. Alguns tentaram resolver esse problema continuando a crescer — um tipo de pirâmide, em que os novos depósitos ajudavam a pagar o que se devia aos mais antigos. Enquanto ninguém reclamasse, tudo ia bem. O presidente Reagan os ajudou a ir em frente, ao suavizar ainda mais os padrões da contabilidade, permitindo-lhes contar como ativo a sua “boa vontade”, a mera perspectiva de lucros futuros, e afrouxando as regulações. As associações de poupança e crédito eram zumbis — bancos mortos que permaneciam entre os vivos. Tinham um incentivo para fazer o que, nas palavras de Ed Kane, professor do Boston College, era uma “aposta na ressurreição”.20 Se agissem com prudência, não haveria maneira de escapar do buraco onde se haviam metido, mas se assumissem grandes riscos e se as apostas funcionassem, poderiam nalmente reconquistar a solvência. Se as apostas não funcionassem, isso não seria um problema novo: não poderiam estar mais mortos do que já estavam.21 Permitir aos bancos zumbis que continuassem a operar e afrouxar as regulações para que pudessem assumir maiores riscos elevou, a nal, o custo da faxina necessária.22 (Existe uma fronteira sutil entre as “apostas”, ou riscos excessivos, e a fraude, de modo que a década de 1980 cou marcada por sucessivos escândalos bancários. Talvez não chegue a ser uma surpresa que na crise atual estejamos vendo acontecer as mesmas coisas.) Os defensores da proposta de injeção de capital (inclusive eu próprio) erraram ao imaginar que esta seria bem implementada, ou seja, que os contribuintes receberiam um valor justo pelos papéis e que os bancos

seriam submetidos aos controles apropriados. O dinheiro, sim, chegou, para protegê-los, e quando foi preciso dar-lhes mais, mais lhes foi dado. Como recompensa, os contribuintes receberam ações preferenciais e algumas garantias (direitos de compra de ações). Mas foram trapaceados. Se compararmos os termos do que os contribuintes americanos receberam com o que Warren Buffet recebeu praticamente ao mesmo tempo em uma negociação com Goldman Sachs,23 ou se os compararmos com os termos do que o governo britânico recebeu quando propiciou fundos aos seus bancos, ca claro que os contribuintes americanos levaram a pior. Se os que supostamente negociavam em nome do povo estivessem operando um entendimento similar a partir de Wall Street, teriam exigido termos muito superiores. O pior é que, mesmo quando os contribuintes se tornaram os novos “donos” de alguns bancos, o Tesouro, no tempo de Bush (e depois no tempo de Obama), se recusou a exercer qualquer controle.24 O contribuinte americano aportou centenas de bilhões de dólares e não teve sequer o direito de saber em que o dinheiro estava sendo gasto, para não falar do direito de exercer in uência sobre o que os bancos zeram com ele. Aí também houve uma diferença marcante com relação ao que aconteceu com o resgate dos bancos da Grã-Bretanha, onde houve pelo menos uma aparência de responsabilização: os dirigentes antigos foram despedidos, impuseram-se restrições sobre os dividendos e as recompensas e foram criados sistemas para estimular a retomada dos empréstimos.25 Nos Estados Unidos, ao contrário, os bancos continuaram a pagar dividendos e bônus e nem sequer ngiram que retomariam os empréstimos. “Fazer novos empréstimos?”, John C. Hope iii, presidente do Whitney National Bank em Nova Orleans, disse perante uma sala cheia de analistas de Wall Street no início de 2009. “Nós não vamos mudar nosso modelo de negócios e nossa política de créditos para acomodar as necessidades do setor público porque eles acham que nós temos que fazer mais empréstimos.”26

Wall Street continuou a lutar por termos cada vez melhores — o que tornava mais e mais difícil que os contribuintes recebessem compensação adequada pelo risco que estavam assumindo, mesmo que alguns bancos tivessem conseguido devolver o que haviam recebido. Um dos benefícios decorrentes da vigorosa exigência inicial de Paulson de que não houvesse supervisão nem exame judicial do seu cheque em branco de 700 bilhões de dólares para Wall Street foi que o Congresso estabeleceu um painel independente de supervisão, o qual demonstrou como os acordos de resgate para o contribuinte americano haviam sido inadequados. Na primeira rodada de resgates, na época, os contribuintes receberam de volta, em papéis, apenas 66% do que haviam dado aos bancos. Mas nos acordos posteriores, especialmente nos acordos com o Citibank e a aig, os termos foram ainda piores — 41% do dinheiro dado.27 Em março de 2009, o Escritório de Orçamento do Congresso (cbo), órgão bipartidário criado para dar avaliações independentes do custo dos programas governamentais, estimou que o custo líquido do uso integral dos 700 bilhões de dólares do tarp totalizaria 356 bilhões de dólares.28 O governo receberia de volta menos de 50% do que aportara. Não havia esperança de recompensa pelo risco assumido. Em junho de 2009, em um exame mais detido do gasto inicial de 369 bilhões de dólares do tarp, o cbo orçou a perda em mais de 159 bilhões de dólares.29 Houve um alto nível de hipocrisia em toda a movimentação em torno dos resgates. Os bancos (e os reguladores que haviam permitido que o problema surgisse) queriam ngir que a crise era apenas uma questão de con ança e de falta de liquidez. A falta de liquidez signi cava que ninguém queria emprestar-lhes dinheiro. Os bancos queriam acreditar que não haviam tomado más decisões, que na verdade estavam solventes e que o “verdadeiro” valor dos seus ativos excedia o valor do que deviam (seus passivos). Mas, ainda que acreditassem nisso a respeito de si próprios, não acreditavam na mesma coisa com relação aos outros bancos, o que se vê na sua relutância em emprestar dinheiro entre si.

O problema com os bancos dos Estados Unidos não era apenas a falta de liquidez.30 Sucessivos anos de conduta temerária, inclusive maus empréstimos e apostas com derivativos, haviam deixado alguns, talvez muitos, efetivamente falidos. Anos de contabilidade sem transparência e de produtos complexos destinados a iludir reguladores e investidores haviam causado danos. Em consequência, nem mesmo os próprios bancos conheciam o estado dos seus balanços. E, se não sabiam se estavam de fatos solventes, como poderiam saber da solvência de quaisquer outros a quem emprestassem dinheiro? Infelizmente, não é só com discursos que expressam con ança na economia americana que se consegue restaurar a con ança. Os repetidos pronunciamentos do governo Bush e dos bancos no sentido de que a situação da economia era rme e seus fundamentos eram sólidos, por exemplo, foram desmentidos pela recorrência de más notícias. O que eles diziam simplesmente não tinha credibilidade. O que importa são os atos, e os atos do Fed e do Tesouro minavam a con ança. Em outubro de 2009 o fmi informou que as perdas globais do setor bancário eram de 3,6 trilhões de dólares.31 Os bancos haviam admitido perdas muito menores. O restante era uma espécie de matéria escura: todos sabem que está dentro do sistema, mas ninguém sabe muito bem onde. Quando o plano de Paulson fracassou, tanto no propósito de reavivar os empréstimos quanto no de restaurar a con ança nos bancos, o governo Obama cou desorientado quanto ao que fazer para substituí-lo. Depois de semanas se debatendo, em março de 2009 o governo Obama anunciou um novo programa — o Programa de Investimento Público-Privado (ppip) — que usaria entre 75 e 100 bilhões de dólares do capital do tarp e mais capitais de investidores privados para comprar ativos tóxicos dos bancos.32 As palavras empregadas eram enganosas: o programa era descrito como uma parceria, mas não se tratava de uma parceria normal. O governo aportaria até 92% do dinheiro, mas receberia apenas a metade dos lucros e sofreria praticamente todas as perdas. O governo emprestaria ao setor privado (aos fundos de hedge, fundos de investimento e, ironicamente, aos

bancos — que poderiam comprar ativos uns dos outros)33 a maior parte do dinheiro que aportaria, com empréstimos irrecorríveis, assegurados apenas pelo que fosse comprado. Se as hipotecas ou outros papéis acabassem valendo menos do que o total emprestado, o tomador do empréstimo ia à falência, deixando nas mãos do governo, e não na dos investidores privados, a tarefa de absorver as perdas. Na verdade, a equipe de Obama havia a nal optado em favor de uma pequena variação da ideia original de “trocar dinheiro por lixo”. Era como se ele tivesse decidido contratar um serviço privado de coleta de lixo que compraria o lixo a granel, o separaria, recolheria o que tivesse valor e depositaria o que sobrasse no colo do contribuinte. E o programa foi concebido de modo a dar aos coletadores do lixo altos lucros — somente certos membros do clube de Wall Street poderiam “competir”, depois de uma cuidadosa seleção feita pelo Tesouro. Estava claro que esses nancistas, que haviam sido tão competentes em espremer dinheiro da economia, não executariam essas tarefas apenas por espírito público, grátis. O governo tentou fazer passar a ideia de que o ppip era necessário para proporcionar liquidez ao mercado, argumentando que a falta de liquidez deprimia os preços e afetava os balanços dos bancos de forma arti cial. Mas o problema maior não era a falta de liquidez. Se assim fosse, bastaria um programa muito mais simples, que propiciasse os fundos sem garantias de empréstimos. A verdadeira questão é que os bancos haviam feito maus empréstimos na vigência de uma bolha e com alta alavancagem. Haviam perdido seu capital e esse capital precisava ser reposto. O governo buscou dar a impressão de que o plano tinha por base que o mercado determinaria os preços dos “ativos tóxicos” dos bancos a serem comprados pela “Parceria” — inclusive os empréstimos residenciais pendentes e os papéis baseados nesses empréstimos. A magia do mercado estava sendo usada para chegar à “descoberta do preço”. A realidade, contudo, era que o mercado não estava preci cando os próprios ativos tóxicos, mas sim as opções sobre tais ativos — basicamente uma aposta unilateral. Os dois têm pouco a ver um com o outro. Os parceiros privados

conseguiram bons negócios com as hipotecas “boas”, mas, em essência, transferiram as perdas relativas às hipotecas ruins para o governo. Consideremos um ativo com 50% de probabilidade de valer zero e 50% de valer duzentos dólares no prazo de um ano. O “valor” médio do ativo é cem dólares. Sem juros, esse seria o preço pelo qual o papel seria vendido em um mercado competitivo. É o que o ativo “vale”. Suponhamos que uma das parcerias público-privadas que o Tesouro prometera criar deseje pagar 150 dólares pelo ativo. Esse preço é 50% maior do que o valor real e o banco estará mais do que feliz em vender. Então, o parceiro privado aporta doze dólares e o governo fornece os 92% que faltam para completar o custo — doze dólares em forma de “papel” e 126 dólares na forma de um empréstimo garantido. Se, no prazo de um ano, o verdadeiro valor do ativo se revelar igual a zero, o parceiro privado perde os doze dólares e o governo perde 138 dólares. Se o verdadeiro valor for duzentos dólares, o governo e o parceiro privado dividem os 74 dólares que sobram depois do pagamento do empréstimo de 126 dólares. Nesse cenário cor-de-rosa, o parceiro privado mais do que triplica seu investimento de doze dólares. Mas o contribuinte, que arriscou 138 dólares, ganha apenas 37 dólares. Para piorar, há amplas oportunidades para apostas. Suponhamos que o banco compre seu próprio ativo por trezentos dólares (o governo não proibiu que as parcerias incluíssem os bancos), aplicando 24 dólares. No cenário ruim, o banco perde os 24 dólares do seu investimento na “parceria”, mas ainda ca com os trezentos dólares. No cenário bom, o ativo ainda vale apenas duzentos dólares e, portanto, o governo absorve a perda, com exceção dos 24 dólares. O banco milagrosamente transformou um papel de risco cujo valor real era de cem dólares em um ativo seguro — para ele — com o valor líquido de 276 dólares. As perdas do governo cobrem a diferença, que é de 176 dólares na média. Com tanto dinheiro girando dessa maneira, há espaço su ciente para um entendimento. Podese até dar uma participação aos fundos de hedge. Não é preciso ser tão ambicioso.

Mas os cidadãos americanos podem perder ainda mais do que esses cálculos sugerem, por causa de um efeito chamado “seleção negativa”. Os bancos escolhem os empréstimos e os papéis que querem vender. Preferirão vender os piores ativos, sobretudo os que, na sua opinião, o mercado superestima (pelos quais, portanto, está disposto a pagar mais). É provável que o mercado perceba isso, o que reduzirá o preço que está disposto a pagar. Mas o fato de o governo absorver parte su ciente das perdas neutraliza o efeito dessa “seleção negativa”. Como o governo absorve as perdas, o mercado não precisa preocupar-se em saber se os bancos estão “trapaceando” com a venda dos seus piores ativos. Inicialmente, os bancos e os parceiros potenciais (fundos de hedge e outras companhias nanceiras) adoraram essa ideia. Os bancos só vendem os ativos que querem vender — jamais perdem. Os parceiros privados ganham um bom dinheiro, sobretudo se o governo cobrar pouco pelas garantias. Os políticos também adoraram a ideia: sempre seria possível que estivessem fora de Washington quando as contas vencessem. Mas aí está exatamente o problema com esse caminho: ninguém saberá, durante anos, o efeito que isso terá sobre o orçamento nacional. Com o tempo, muitos bancos e parceiros privados se desiludiram. Temeram que, se ganhassem dinheiro demais, os burocratas e o público não deixariam que as coisas cassem assim e encontrariam alguma maneira de recuperar os lucros. No mínimo, os participantes sabiam que estariam muito expostos ao Congresso — assim como aconteceu com os que receberam dinheiro do tarp. Quando as regulações de prestação de contas foram modi cadas para permitir que os bancos não reduzissem o valor dos seus ativos comprometidos — para fazer crer que as hipotecas tóxicas eram boas como o ouro —, o poder de atração diminuiu ainda mais: mesmo que ganhassem mais do que o valor real do ativo, eles teriam de reconhecer uma perda, o que requeria arranjar mais capital. E eles prefeririam postergar o dia da verdade. A proposta foi considerada por alguns membros do mercado nanceiro como uma vitória por 3 × 0. Na verdade, não era bem assim, era 2 × 1: os

bancos ganhavam e os investidores ganhavam, mas — se o programa funcionasse bem para os bancos — os contribuintes perdiam. O diretor de um fundo de hedge me escreveu o seguinte: “Esse é um péssimo acordo para os contribuintes, mas eu vou me empenhar para que meus clientes recebam todo o benefício”. Assim, com todas essas falhas, qual era a atração da estratégia do governo? O ppip era o tipo de invenção complicadora que Wall Street adora: brilhante, complexa e não transparente, permitindo enormes transferências de dinheiro para os mercados nanceiros. Poderia fazer que o governo não precisasse voltar a pedir dinheiro ao Congresso para ajudar os bancos e propiciava uma maneira de evitar a intervenção temporária. Nos muitos meses que se passaram desde que foi desdobrada, a proposta não funcionou como o governo esperava. Em poucos meses, esse programa destinado a assumir empréstimos “herdados” foi abandonado, como tantos outros, e o programa relativo às ações herdadas foi substancialmente enxugado. O cenário mais provável era o de que quaisquer benefícios decorrentes do restante do ppip para ações seriam limitados e teriam custos altos. Dinheiro que deveria ir para os bancos ia para os “parceiros” privados — preço alto a pagar por um serviço privado de coleta de lixo.34   Por que os planos de resgate estavam destinados ao fracasso   Os resgates incrivelmente caros fracassaram em um de seus principais objetivos — o de reativar os empréstimos.35 Alguns princípios econômicos elementares ajudam a compreender esse e outros fracassos. O primeiro é o da conservação da matéria. Quando o governo compra um ativo tóxico, as perdas não desaparecem. Tampouco desaparecem quando o governo assegura as perdas, digamos, do Citibank. Estas simplesmente se deslocam do balanço do Citibank para o balanço do governo. Isso quer dizer que a verdadeira batalha é sobre a distribuição: quem ca com as perdas? Elas serão transferidas do setor nanceiro para o público? Em um jogo de soma zero — em que os ganhos de um lado

ocorrem às custas do outro —, quanto melhor for o acordo para os acionistas e credores dos bancos, pior ele será para os contribuintes. Esse era o problema principal que envolvia os programas de compra dos ativos tóxicos dos bancos, seja individualmente, seja em grupo: caso se pague demais, o governo sofrerá perdas enormes; caso se pague de menos, o que parecerá enorme é o buraco no balanço dos bancos. A discussão dos ativos tóxicos cou ainda mais confusa com as metáforas usadas para descrevê-la. O governo tinha que “limpar” os balanços dos bancos, ajudando-os a livrar-se dos ativos tóxicos, sugerindo que a hipoteca tóxica fosse semelhante a uma maçã podre, no sentido de contaminar tudo o que está em volta. Mas os ativos tóxicos eram apenas ativos em que os bancos haviam sofrido perdas. Não estavam infectados por uma doença contagiosa. Um princípio proveniente da economia do meio ambiente, denominado quem polui paga, dá a orientação sobre quem deve pagar. Não se trata apenas de uma questão de justiça, mas também de e cácia. Os bancos americanos poluíram a economia global com lixo tóxico, e é questão de justiça e e cácia — e também de respeito às regras do jogo — que sejam forçados, agora ou depois, a pagar a conta da limpeza, talvez sob a forma de impostos. Essa não foi a primeira vez que os bancos americanos foram resgatados. Isso tem acontecido com frequência. A conclusão é que, com efeito, o resto da economia tem subsidiado fortemente esse setor. Cobrar impostos aos bancos (como acontece com relação a qualquer externalidade negativa) pode gerar rendimentos ao mesmo tempo que melhora a e ciência da economia. Faz muito mais sentido cobrar esses impostos do que taxar coisas positivas como a poupança e o trabalho. E não é algo particularmente difícil de se pôr em prática. Os bancos argumentam que a imposição desse tipo de custos inibe sua capacidade de atrair capital privado e a restauração da saúde do sistema nanceiro. Voltaram a usar a tática do medo: a simples discussão desse assunto já produz perdas. A questão é que o fato de esses custos não lhes serem impostos distorce a economia. Além disso, se o governo tiver que prover temporariamente

nanciamentos adicionais por causa da relutância do setor privado em fazêlo, essa não é a pior coisa do mundo, desde que receba os direitos apropriados (títulos ou ações) com relação ao valor futuro dos bancos. Os investidores do setor privado não zeram um trabalho propriamente exemplar no campo do “exercício da disciplina”. Além de tudo, em algum momento a economia se recuperará, e com a recuperação esses ativos devem render bons dividendos. A transferência de perdas entre setores da economia pode ser algo próximo a um jogo de soma zero, e se não for bem realizada, pode ser um jogo de soma negativa, com perdas maiores para os contribuintes do que benefícios para os acionistas dos bancos. Ressalto, mais uma vez, a importância dos incentivos. Os resgates distorcem, de modo inevitável, os incentivos. Os emprestadores, sabendo que poderão ser salvos, em vez de sofrer todas as consequências dos seus erros, não se empenham tanto na avaliação do crédito e fazem empréstimos de maior risco. Esse é o problema do risco moral a que também me tenho referido constantemente. O medo de que cada resgate possa aumentar a probabilidade de ter de fazer outros parece ter sido con rmado — já tivemos a “mãe de todos os resgates”. Mas o modo como o governo fez os resgates também aumentou as distorções — de um modo que também aumentou a intensidade da recessão. Um banco (como o Citibank) que tem perdas asseguradas pelo governo, por exemplo, tem pouco incentivo para renegociar hipotecas. Se retardar o tratamento do assunto, existe uma possibilidade — pequena, é verdade — de que o valor das hipotecas se recupere e que conserve todos os lucros. Se, em consequência do retardo, as perdas forem ainda maiores, o governo arcará com os custos. O fato de não se prestar atenção à questão dos incentivos também foi prejudicial em outro campo. Os bancos e seus funcionários tinham incentivos para usar o dinheiro do governo como pagamento do maior volume possível de dividendos e bônus. É claro que eles sabiam que o propósito do dinheiro era o de recapitalizar os bancos para que eles voltassem a fazer empréstimos. Eles não estavam sendo salvos por causa do

amor que os contribuintes têm pelos banqueiros. Sabiam também que, usando o dinheiro dessa maneira, estavam fazendo que os bancos cassem mais fracos e atraindo para si a ira do público. Mas, como reza o ditado, mais vale um pássaro na mão do que dois voando. Eles sabiam que a possibilidade de que seus bancos não chegassem a sobreviver não era tão pequena. Seus interesses não eram similares nem aos da economia como um todo nem aos de um “ nanciador” cada vez mais importante — o contribuinte americano. Mas os governos de Bush e Obama decidiram ignorar esse con ito de interesses e exerceram pouco controle sobre o modo como o dinheiro foi usado. Aqui está outro princípio básico da economia: bola para a frente, o que passou passou. Em vez de tentar salvar os bancos existentes, que haviam demonstrado cabalmente a sua incompetência, o governo poderia ter dado os 700 bilhões de dólares aos poucos bancos sadios e bem dirigidos; ou mesmo usá-los para estabelecer um conjunto de bancos novos. Com uma alavancagem modesta de 12-por-1, isso teria gerado novos créditos no valor de 8,4 trilhões de dólares — mais do que su ciente para as necessidades da economia. Mesmo que os dois governos não zessem algo tão drástico, poderiam ter usado parte do dinheiro para criar novas modalidades de crédito e outra parte para absorver algo da incerteza gerada por novos empréstimos, propiciando-lhes garantias parciais. Teria sido sensato moldar as garantias parciais às condições econômicas — aumentando a ajuda se a economia se mantivesse em recessão, algo pelo qual nenhuma empresa pode ser considerada culpada.36 Uma estratégia inovadora e voltada para o futuro teria gerado mais empréstimos a custos mais baixos para o público do que a utilizada, de comprar os ativos ruins ou dar mais dinheiro aos bancos que se tinham mostrado incompetentes na avaliação dos riscos e dos créditos — e car esperando que eles voltassem a fazer empréstimos e rezando para que trabalhassem melhor. Há ainda outro princípio, análogo ao que discutimos no capítulo 3, a respeito da concepção do incentivo: o dinheiro deveria ter um destino predeterminado: ir para onde estimulasse mais a economia. Se o governo não

tivesse nenhuma restrição orçamentária, poderia ter jogado dinheiro a rodo nas mãos dos banqueiros. Nesse caso, a tarefa de recapitalizar os bancos seria fácil. Mas, se os fundos são limitados, é preciso assegurar-se de que cada dólar seja bem gasto. Uma das razões de o tarp não ter levado a um aumento dos empréstimos como se esperava pode ter sido o fato de o governo ter dado dinheiro demais para os bancos grandes, os quais, em muitos casos, já se haviam afastado, anos antes, dos empréstimos às pequenas e médias empresas. Se o objetivo era estimular a criação de empregos — ou mesmo a preservação dos empregos existentes — teria de haver um aumento do crédito para essas empresas, que são a maior fonte de criação de postos de trabalho. Se de fato quiséssemos que as pequenas e médias empresas recebessem mais créditos, deveríamos canalizar o dinheiro para os bancos pequenos e para os que atendem às comunidades menores. Em vez disso, o governo jogou o dinheiro nas grandes instituições nanceiras, que tinham cometido os erros maiores — algumas das quais haviam emprestado pouco ou nada. O resgate da aig foi particularmente tolo. Havia o temor de que, se a aig não fosse resgatada, surgiriam problemas com algumas das rmas para as quais ela havia vendido seguros de crédito, que eram como apólices de seguro emitidas contra o desaparecimento de determinadas corporações. Mas jogar dinheiro na aig foi uma maneira pouco apta de fazer o dinheiro chegar aonde era necessário. Ambos os governos estavam usando uma variante da economia por gravitação: caso se jogue dinheiro su ciente na aig, uma parte deste escorrerá como água pela economia e chegará aonde é mais necessário. Talvez seja certo, mas trata-se de uma maneira caríssima de conseguir o objetivo. Quando os dados relativos aos percursos feitos pelo dinheiro dado à aig se tornaram públicos, cou claro que pouco foi o que se destinou a instituições sistemicamente signi cativas — embora esse tenha sido o argumento utilizado em sua defesa.37 Também havia a preocupação, por exemplo, de que, se o governo não salvasse todos os credores, algumas seguradoras e fundos de pensão sofreriam pesadas perdas.38 Eles estavam sendo apresentados como

demandantes “socialmente importantes”. Os fundos que poderiam irrigar as contas desses demandantes privados teriam melhor uso se fossem empregados para fortalecer o sistema de seguridade social e evitar cortes mais profundos em suas dotações. A quem deveríamos dar maior peso: àqueles com quem temos um contrato social ou aos que tomaram más decisões de investimento? Se é necessário resgatar fundos de pensão e companhias de seguro, deveríamos fazê-lo logo e mandar cada dólar do dinheiro público diretamente para o grupo que tem necessidade dele. Não há justi cativa para gastar vinte dólares no resgate de um investidor, de modo que um dólar possa ir para um fundo de pensão que poderia estar em di culdades. O princípio nal que deveria ter orientado os resgates também é similar ao que se aplica a um estímulo bem concebido: o resgate deve ajudar a reestruturar o sistema nanceiro para que possa cumprir melhor as funções a que se destina. Tenho observado constantemente que os resgates não zeram isso. O dinheiro se dirigiu, de maneira desproporcional, não às partes do sistema nanceiro que estavam, digamos, promovendo novas rmas ou expandindo pequenas e médias empresas. Também já observei que os resgates foram conduzidos de um modo que levava a maior concentração no setor nanceiro, o que agrava o problema das instituições grandes demais para falir ou grandes demais para ser liquidadas. Esses resgates, assim como os da década de 1980, da década de 1990 e do começo desta década, enviaram um forte sinal aos bancos no sentido de que não deveriam preocupar-se com os maus empréstimos, porque o governo colará os cacos. Os resgates produzem o efeito exatamente contrário ao que seria desejável: o de implementar uma disciplina apropriada aos bancos, recompensando os que foram prudentes e deixando falir os que se arriscaram demasiadamente. Os bancos que apresentaram a pior conduta em termos de administração de riscos foram os que receberam os maiores presentes do governo. O que o governo estava criando, em nome da preservação da economia de mercado, distava muito de um mercado de verdade. O governo Obama

evitou o caminho da intervenção temporária, mas o que fez foi muito pior que uma nacionalização: foi um arremedo de capitalismo — a privatização dos lucros e a socialização das perdas. O pressentimento, e o fato real, de que os pacotes de resgate foram “injustos” — injustamente generosos com os banqueiros e injustamente onerosos para os cidadãos comuns — tornou muito mais difícil a resolução da crise. Tornou-se lugar-comum dizer que o foco da crise é a falta de con ança no sistema nanceiro. Mas a ação do governo na condução dos resgates contribuiu para a perda de con ança no próprio governo. A reação do governo pôs a economia em um caminho de recuperação que será mais lento e mais difícil do que seria necessário. É claro que as coisas estão em muito melhor estado do que se houvessem seguido a tática oposta — não fazer nada. Esse caminho poderia levar a nação ao precipício de uma depressão. Se não acontecer nada mais desfavorável — e há muitos problemas espreitando no horizonte, como o dos imóveis comerciais —, os bancos gradualmente se recapitalizarão. Se o Fed mantiver suas taxas de juros próximas a zero e se a competição interbancária continuar tão limitada, os bancos poderão ter fortes lucros cobrando taxas de juros mais altas, mesmo mantendo os empréstimos ainda limitados. Isso con gurará uma situação de desestímulo para que as empresas se expandam e gerem novos empregos. O cenário otimista é que a recapitalização ocorra mais depressa que o agravamento dos problemas. Nesse caso, o enfoque conciliador terá dado certo.     o banco central

  A discussão sobre os resgates nanceiros não poderia estar completa sem uma menção ao Banco Central, o Fed. Este participou da grande maioria dos resgates que descrevi aqui. Para salvar os banqueiros e seus acionistas, assim como para estimular a economia, não só os Estados Unidos se

lançaram a uma enxurrada de gastos, como o Fed mais do que dobrou seu balanço (o que dá uma medida dos empréstimos que fez) no espaço de poucos meses, de 942 bilhões de dólares, no começo de setembro de 2008, para mais de 2 trilhões de dólares no começo de dezembro do mesmo ano.39 Com o desdobramento da crise, Alan Greenspan passou de herói — o homem que trouxe a “Grande Moderação”, o longo período de dezoito anos de crescimento praticamente estável — a vilão. A opinião pública tem sido mais gentil com seu sucessor, Ben Bernanke. Em agosto de 2009, o presidente Obama, ao anunciar que indicaria Bernanke para um segundo mandato como presidente do Fed, exaltou o papel deste por ter salvado o sistema nanceiro da beira da ruína. Ninguém estranhou que ele não tivesse mencionado o papel de Bernanke na condução do sistema àquela situação. Como observei no capítulo 1, Bernanke manteve o crescimento da bolha. O recado de Greenspan — que assegurou ao mercado que se algo de mal acontecesse o Fed salvaria a situação — foi substituído pelo recado de Bernanke. Esses recados contribuíram para o crescimento da bolha e para o excesso de riscos. E quando a bolha estourou, Bernanke manteve a promessa. Diante das primeiras manifestações dos problemas, no verão de 2007, o Fed e o Banco Central europeu proporcionaram grande quantidade de liquidez ao mercado: nas duas primeiras semanas de agosto, o Banco Central europeu injetou cerca de 274 bilhões de dólares e o Fed outros 38 bilhões de dólares.40 O Fed foi também um participante ativo nos resgates subsequentes. Ele estendeu sua faculdade de “emprestador de última instância” também aos bancos de investimento.41 Efetivamente, o Fed não zera nada para impedi-los de tomar riscos e evitar o incêndio geral, indicando que eles não representavam nenhum efeito sistêmico, mas quando o incêndio começou, não hesitou nem um pouco em pôr em risco bilhões de dólares dos contribuintes.42 (Se o Fed pensava que não tinha autoridade para regular os bancos de investimento e se eles eram sistemicamente importantes, deveria ter recorrido ao Congresso para pedir

a concessão dessa autoridade. Mas o fato de não ter pedido essa autoridade regulatória não é surpreendente, pois o Fed se havia somado à loso a desregulatória.) Tradicionalmente, o Fed compra e vende títulos do Tesouro, títulos de curto prazo do governo. Quando compra, injeta dinheiro na economia, o que costuma levar a uma baixa das taxas de juros. Quando vende, acontece o contrário. Não há risco de que os títulos percam valor — são tão seguros quanto o próprio governo americano. O Fed também empresta diretamente aos bancos e, ao dar-lhes dinheiro, permite que o emprestem a outros. Mas, quando o Fed empresta a um banco, normalmente lhe pede um colateral — títulos do Tesouro. O Fed, portanto, não é um banco no sentido usual da palavra. Não avalia a con abilidade do recebedor, embora, como regulador dos bancos, seja encarregado de fechar os que estejam a descoberto para pagar aos depositantes, ou de exigir-lhes que obtenham o capital necessário. O Fed é chamado emprestador de última instância porque por vezes bancos que são “solventes” carecem temporariamente de liquidez, quando não conseguem obter o dinheiro de que precisam. O Fed proporciona essa liquidez. Com o desdobramento da crise, o Fed inundou o mercado com liquidez. Ao fazê-lo, fez baixar as taxas de juros em direção a zero. Sua intenção era evitar que as coisas piorassem ainda mais e assegurar que o sistema nanceiro não entraria em colapso. Mas, como se podia prever, as taxas de juros mais baixas não reaqueceram a economia. As empresas não iam recomeçar a investir só porque podiam obter dinheiro mais barato. E surgiu outro problema: apesar de todo o dinheiro recebido, os bancos não passaram a emprestar mais, simplesmente caram com o dinheiro. Precisavam da liquidez, e o momento não era adequado para sair fazendo empréstimos.43 Com o congelamento dos empréstimos, o Fed assumiu um novo papel — passou de emprestador de última instância a emprestador de primeira instância. As grandes companhias obtêm boa parte dos seus fundos não dos bancos, mas tomando emprestado diretamente “do mercado”, na forma do

que se denomina papéis comerciais. Quando esse mercado também se congelou, veneráveis gigantes, como a ge, não conseguiam empréstimos. Em alguns casos, como o da ge, isso se deveu, em parte, ao fato de uma divisão da empresa ter se envolvido em maus empréstimos. Como o mercado não quis comprar esses papéis comerciais, o Fed os comprou. Mas, ao fazê-lo, transformou-se de “banqueiro dos banqueiros”, em “banqueiro da nação”. Não há indício de que o Fed entendesse algo a respeito de avaliação de riscos — esse era um tema totalmente diferente do que vinha fazendo ao longo dos 94 anos da sua história. Algumas das ações empreendidas pelo Fed para ajudar a ressuscitar os bancos podem ter sido contraproducentes em relação ao que deveria ter sido o principal objetivo da política monetária: reativar os empréstimos. Começou com o pagamento de juros sobre as reservas bancárias conservadas em depósito no Banco Central — uma bela maneira de dar um grande presente aos bancos sem que quase ninguém percebesse, mas que os encorajava a deixar o dinheiro lá mesmo, em vez de emprestá-lo (fato que o próprio Fed reconheceu quando disse, posteriormente, que aumentaria os juros pagos sobre as reservas se fosse necessário restringir os empréstimos no caso do surgimento de pressões in acionárias). Não surpreende que o Fed (com o apoio do Tesouro) também tenha estimulado o mercado de papéis por meio de diversos programas de garantias e compras de títulos mobiliários, como o Term Asset-Backed Securities Loan Facility (talf ). Mas o fez, contudo, sem prestar su ciente atenção ao problema subjacente: o mercado de papéis fracassou em parte porque os modelos em que a securitização se baseava eram demasiado falhos. Como muito pouco se fez para corrigir os modelos, era inquietante voltar a fazer funcionar o mesmo maquinismo.44   O risco de in ação   Com o forte aumento das dívidas dos Estados Unidos e dos gastos do seu Banco Central, existe hoje, em todo o mundo, o temor de um surto

in acionário no futuro. O primeiro-ministro da China expressou abertamente suas preocupações a respeito do valor real do 1,5 trilhão de dólares que seu país emprestou aos Estados Unidos. Nem ele nem seus compatriotas gostariam de que esses recursos conseguidos à custa de trabalho viessem a perder valor. Existe um incentivo óbvio para fazer a in ação diminuir o valor real daquilo que se deve, talvez não através de um episódio drástico de in ação galopante, mas sim de maneira mais geral, em um período de uns dez anos com in ação moderada de, digamos, 6% ao ano. Com isso, dois terços do valor da dívida seriam erodidos.45 Os Estados Unidos disseram que jamais farão algo assim e os dirigentes dos Bancos Centrais parecem ter uma mutação genética que os torna, na maior parte, ferrenhos inimigos da in ação. O Fed diz que orientará a economia com destreza, retirando liquidez à medida que isso for necessário para evitar a in ação. Quem quer que observe as atitudes tomadas pelo Fed nas últimas décadas não cará muito con ante. Enquanto o índice de desemprego permanecer alto, a ameaça da de ação será tão grande quanto a da in ação. A de ação é um risco sério porque, quando os salários e os preços caem, as famílias e as empresas não conseguem pagar suas dívidas. Ocorrem, então, inadimplências que enfraquecem os bancos e acionam uma nova espiral negativa. O Fed enfrenta um dilema: se retira liquidez com rapidez excessiva, antes de a recuperação se estabelecer com rmeza, a economia pode aprofundar sua desaceleração. Se o faz muito devagar, surge um risco real de in ação — especialmente diante da magnitude do excesso de liquidez no sistema. O equilíbrio é especialmente difícil de conseguir porque os efeitos da política monetária tardam meses para revelar-se por completo, razão por que os dirigentes costumam dizer que têm de agir antes de a in ação se manifestar. Mas isso signi ca que o Fed precisa prever em que estado a economia se encontrará com meses de antecipação, e o histórico das previsões do Fed nessa crise tem sido desalentador.46 Mas, mesmo que o seu histórico tivesse maior credibilidade, ninguém sabe ao certo qual será o padrão desta recuperação, uma vez que a crise é bem diferente, em muitos

aspectos, das outras de que temos memória recente. O Fed encheu seu balanço, por exemplo, com ativos de qualidade mais baixa do que no passado. A razão por que costuma trabalhar com títulos do Tesouro está em que o mercado de tais papéis é muito amplo. Pode-se comprar e vender bilhões de dólares com facilidade nesse mercado, com o que se injeta e se retira dinheiro da economia. Mas os mercados dos outros papéis que o Fed comprou são muito mais estreitos. Ele pode vendê-los (absorvendo dinheiro), mas se o zer demasiado rápido, os preços cairão, o que acarreta grandes perdas para os já combalidos contribuintes. Em meados de 2009, por exemplo, o Fed estava nanciando a vasta maioria das hipotecas. Isso fez as taxas de juros permanecerem baixas — segundo certos cálculos, algo como 0,7% abaixo do nível em que estariam se não fosse por esse fato. Foi importante para a sustentação do mercado imobiliário. Mas em setembro de 2009 o Fed anunciou que interromperia esse programa no nal de abril de 2010, e isso signi ca que a taxa de juros sobre as hipotecas deve subir e todos os emitentes de hipotecas com taxas xas quando estas estavam baixas sofrerão fortes perdas de capital. Prevendo essa situação, o setor privado evitou dar novas hipotecas, pois não queria incorrer em perdas. Com efeito, os nanciamentos do Banco Central estavam “esvaziando” o setor privado. Mesmo que o Fed não tentasse vender suas hipotecas, o valor de mercado desses instrumentos declinaria em função do aumento progressivo da taxa de juros de longo prazo provocado pelo m dessas medidas extraordinárias e a volta das taxas de juros de curto prazo a níveis mais normais.47 Há, no entanto, algumas formas de desestimular os empréstimos sem vender suas hipotecas e evitando reconhecer essas perdas (se o Fed assim quisesse proceder). O Fed propôs, por exemplo, pagar taxas de juros mais altas sobre os depósitos nele feitos, para encorajar os bancos a não emprestar — caso a recuperação possa levar a um superaquecimento da economia. Mas esse é um instrumento ainda pouco experimentado. Não há como prever com exatidão os efeitos de um aumento de, digamos, 2% nos juros pagos sobre as reservas. Além disso, isso traz custos adicionais para o

governo, e com o forte aumento do dé cit esses custos não podem ser ignorados. Se o Fed acertar bem a medida, poderá conduzir a economia sem in ação nem recessão. Mas eu não conto com isso. Suspeito que haja um risco maior de recessão que de in ação. Com o desenrolar da crise, o Fed se mostrou mais a nado com o pensamento de Wall Street do que com as preocupações do cidadão comum, como aconteceu com os resgates. É provável que esse padrão persista.48 Os mercados podem ajudar no ajustamento — mas não necessariamente de um modo que produza estabilidade. Quando os mercados se preocupam com a in ação, as taxas de juros de longo prazo aumentam, o que desacelera a economia, tanto de maneira direta — reduzindo a demanda de investimentos de longo prazo — quanto de maneira indireta — porque os bancos serão induzidos a car com títulos governamentais de longo prazo em vez de fazer empréstimos.49 Mas, como vimos, há poucas razões para acreditar que o mercado consiga calibrar adequadamente sua reação. Esse fator torna ainda mais difícil a calibragem da reação do Fed, pois este terá de prever não só os índices futuros da in ação e as reações do mercado às expectativas in acionárias, mas a maneira como o mercado reagirá às próprias ações que o Fed venha a desenvolver.50 Fazer inferências com base em comportamentos anteriores pode não produzir previsões con áveis. A escala dos problemas atuais não tem precedentes, e como os participantes do mercado sabem disso, suas reações ao que o governo pode fazer podem ser diferentes. Em certo sentido, alguns dos problemas do excesso de alavancagem passaram do setor privado para o governo (para o Fed e o Tesouro). Como medida de curto prazo, em resposta à crise, isso pode ter feito sentido, mas o problema de reduzir o nível global de alavancagem (o endividamento) persiste.   O Fed: suas ações e a governança  

O Fed desempenhou um papel crucial em todos os capítulos desse drama, desde a formação da crise, graças ao afrouxamento da regulação e da política monetária, até os fracassos no manejo efetivo das consequências do rompimento da bolha.51 Houve falhas de previsão e de opções políticas. Grande parte deste capítulo foi dedicada às consequências dos resgates mal concebidos que se seguiram à falência de Lehman Brothers. É natural que nos perguntemos, então, como explicar essas falhas persistentes. A resposta envolve, até certo ponto, um conjunto de ideias peculiares, que incluem e ultrapassam a simples convicção de que o mercado sempre funciona bem — e de que, como sempre funciona bem, há pouco o que regular e pouco o que temer com relação a bolhas. Por que essas ideias peculiares tiveram tanto impacto? A resposta tem a ver com a governança do Fed. A subida vertiginosa dos preços dos ativos signi cava que havia uma festa acontecendo em Wall Street. O bom senso convencional indica que o Fed deveria conter essas festas — sobretudo porque inevitavelmente são outros os que têm que pagar os custos da faxina na manhã seguinte. Mas os presidentes do Fed, Greenspan e Bernanke, não queriam ser desmanchaprazeres e tiveram então de inventar uma série de argumentos falaciosos para explicar por que tinham de car quietos e assistindo: as bolhas não existiam; se existissem, não poderiam ser identi cadas; o Fed não dispõe de instrumentos para desin ar bolhas; e, de toda maneira, seria melhor, para o Fed, fazer a faxina depois que a bolha estourasse. (No capítulo 9 explicarei os erros de cada uma dessas a rmações.) Uma das razões de o Fed não ter conseguido fazer passar sua maneira de agir provém do fato de não poder ser diretamente controlado ou responsabilizado nem pelo Congresso nem pelo governo. Não precisava da permissão do Congresso para pôr em risco centenas de bilhões de dólares dos contribuintes. Essa foi mesmo uma das razões de ambos os governos terem recorrido ao Fed: tentavam contornar os processos democráticos por saber que muitas das ações propostas tinham pouco apoio público.

Por todo o mundo, os presidentes de Bancos Centrais têm promulgado a doutrina de que as instituições que dirigem devem ser independentes do processo político. Muitos países em desenvolvimento de independência recente têm grandes di culdades com esse conceito. Todos ressaltam a importância da democracia, mas quando se trata da condução da política macroeconômica e da política monetária, as decisões que afetam mais cabalmente as vidas dos seus povos são consideradas importantes demais para ser deixadas ao critério dos processos democráticos normais. O argumento em favor da independência é o de que aumenta a “credibilidade” do Banco Central — de que este resistirá às exigências do populismo expansionista — e que assim haverá menos in ação e mais estabilidade. Nesse episódio recente, alguns dos banqueiros centrais independentes não se saíram melhor do que outros cuja responsabilidade política era mais direta, talvez pelo fato de estes se sentirem menos sujeitos ao jogo das forças do mercado. O Brasil e a Índia, cujos Bancos Centrais não são totalmente independentes, estão entre os que se saíram bem. O Banco Central Europeu e o Fed estão entre os que se saíram mal. A política econômica envolve trocas — vencedores e perdedores — e essas trocas não podem ser deixadas exclusivamente nas mãos dos tecnocratas. Eles podem decidir questões como o tipo de programa que se deve usar nos computadores, mas a política monetária envolve trocas entre in ação e desemprego, por exemplo. Os credores se preocupam com a in ação e os trabalhadores, com o emprego. Por algum tempo, os economistas a rmaram que, a longo prazo, não existe esse tipo de troca: um índice de desemprego muito baixo provoca in ação sempre crescente. Mas, mesmo que não houvesse trocas a longo prazo, há sempre o curto prazo, e no curto prazo reina a incerteza quanto ao nível exato em que a in ação se desencadeia (tecnicamente denominado nível de desemprego não acelerante) e isso signi ca, por sua vez, que as políticas afetam os que sofrem os riscos.

A despeito das opiniões sobre a questão de longo prazo da independência do Banco Central, há um assunto sobre o qual não pode haver muitas dúvidas: quando o Banco Central de um país se dedica a levar a termo um resgate de grandes proporções, pondo em risco o dinheiro público, está praticando ações que requerem responsabilidade política direta e que devem ser praticadas com transparência. Já descrevi aqui os presentes não transparentes e desnecessários que foram dados aos bancos como parte do tarp. Menos transparentes ainda foram os presentes dados por meio do Fed, inclusive os 13 bilhões de dólares que foram para Goldman Sachs e para bancos estrangeiros através do resgate feito pelo Fed para a aig — informação que o Fed só divulgou sob pressão do Congresso. Outros resgates do Banco Central (como o de Bear Stearns) foram igualmente não transparentes, sendo que os contribuintes ainda estão na incerteza quanto à extensão dos riscos que enfrentam.52 Por azar, a maior parte dos banqueiros centrais provém naturalmente da escola das instituições bancárias, que têm por base a premissa do segredo. Os que têm formação acadêmica mais extensa — como Mervyn King, do Reino Unido — têm exigido maior transparência. Existe mesmo o argumento de que a melhora das informações aumenta a e ciência dos mercados, causando menos surpresas. Ben Bernanke, com razão, advogou por maior transparência quando assumiu o cargo, mas justamente quando a necessidade de transparência cresceu, seu escopo diminuiu — e por razões que logo se tornaram compreensíveis. O passar do tempo parece revelar com nitidez crescente que a função do segredo é esconder más decisões. Com a prática do segredo, não pode haver uma responsabilização democrática efetiva.53 Por mais difíceis que sejam esses problemas de governança, os problemas do Banco Central de Nova York, que assumiu um papel particularmente importante nesse resgate, são ainda piores. Os integrantes do Fed são eleitos pela sua junta de governo, que por sua vez é composta por membros de bancos e empresas da área. Seis dentre nove diretores são eleitos pelos próprios bancos. Um dos diretores do Fed de Nova York, por exemplo, foi

presidente, secretário executivo e diretor-geral do JPMorgan Chase, que foi um dos bene ciários da generosa ajuda do Fed. O diretor-geral do Citibank, também bene ciado, era diretor quando Geithner foi eleito.54 Como vimos no capítulo 2, as tentativas de autorregulação feitas pelo Fed de Nova York foram, na melhor das hipóteses, dúbias, mas quando chegou a hora de formular os resgates — os programas que punham em risco o dinheiro dos contribuintes —, em que seu papel foi crucial, as dúvidas a respeito da sua capacidade de policiar a si próprio se tornaram profundas. Embora a Junta do Banco Central (Federal Reserve Board) em Washington goze de supervisão e responsabilização melhores, o papel que desempenhou nos resgates deve causar profunda inquietação. Foi o instrumento não transparente preferido pelos governos de Bush e Obama quando os resgates foram se tornando cada vez mais caros e o mau comportamento dos bancos, cada vez mais claro. Os custos reais dos resgates e programas de empréstimos feitos através do Fed — e os nomes dos bene ciários dos presentes tão generosos — continuam desconhecidos.     comentrios e concluses

  Uma das razões de todo o conjunto de esforços para salvar o sistema bancário ter sido tão atabalhoado e apresentado tantas falhas vem do fato de que os responsáveis pela balbúrdia — como os defensores da desregulação, os reguladores fracassados e os banqueiros de investimento — foram os encarregados de fazer os reparos. Não chega a surpreender que tenham usado para salvar o setor nanceiro a mesma lógica que o havia levado à situação em que se encontrava. O setor nanceiro praticara transações extremamente alavancadas e não transparentes, muitas das quais não apareciam nos balanços, e acreditara ser possível criar valor simplesmente movimentando papéis para lá e para cá e reempacotando-os. O método de tirar o país dessa confusão se baseava nos mesmos “princípios”. Os ativos tóxicos foram transferidos dos bancos para o governo,

o que não lhes retirou o caráter tóxico. Garantias não transparentes e fora dos balanços se tornaram prática corrente no Tesouro, na fdic e no Banco Central. A alta alavancagem (aberta e oculta) se tornou característica tanto das instituições públicas quanto das privadas. Piores ainda foram as implicações para a governança. A Constituição dá ao Congresso o poder de controlar os gastos. Mas o Banco Central estava praticando ações com pleno conhecimento de que, se o colateral que ele assumia se revelasse ruim, o contribuinte pagaria a conta. Ainda que essas ações fossem legais, o problema não está aí: eram uma tentativa deliberada de evitar a ação do Congresso porque o Fed sabia que o povo americano relutaria em aprovar tanto apoio para quem tinha causado tanto dano e se comportado tão mal. O governo dos Estados Unidos fez algo pior do que tentar recriar o sistema nanceiro do passado: reforçou os bancos grandes demais para falir; introduziu um novo conceito — grande demais para ser liquidado nanceiramente; agravou os problemas do risco moral; pôs nos ombros das gerações futuras a carga da dívida; trouxe o risco da in ação para o dólar; e reforçou as dúvidas de muitos americanos quanto ao caráter justo do sistema. Os banqueiros centrais, como todos os seres humanos, podem errar. Alguns observadores defendem maneiras simples de fazer política, com base em regras (como o monetarismo e as metas de in ação),55 porque estas reduzem o potencial das falhas humanas. A convicção de que os mercados podem cuidar de si mesmos e de que o governo, em consequência, não deve se meter resultou na maior intervenção no mercado feita por um governo na história do país; o resultado da adoção de regras excessivamente simples foi que o Fed teve de tomar medidas discricionárias que foram além das medidas tomadas por um Banco Central na história do país; o governo teve de tomar decisões de vida ou morte para cada banco sem sequer estar orientado por um conjunto claro de princípios.    

Diversos comentaristas56 se referiram aos resgates gigantescos e às intervenções governamentais na economia como socialismo ao estilo americano, algo similar à progressão da China no rumo de uma “economia de mercado com características chinesas”. Mas, como assinalou um amigo chinês, a descrição não é boa: o socialismo presume uma preocupação com o povo. O socialismo ao estilo americano não fez isso. Se o dinheiro tivesse sido gasto para ajudar os que estavam perdendo suas casas, a caracterização poderia estar correta. Mas o que de fato aconteceu foi apenas uma versão ampliada da Rede de Proteção Social das Corporações ao estilo americano. Na crise atual, o governo assumiu um novo papel — o de “portador de risco de última instância”. Quando os mercados privados estavam a ponto de se derreter, todo o risco foi transferido para o governo. A rede de proteção social deveria ser usada para proteger indivíduos, mas foi estendida às corporações, na premissa de que as consequências de não fazêlo seriam horríveis demais. Uma vez feita essa extensão, será difícil voltar atrás: as empresas saberão que, se forem grandes o bastante e se sua falência for ameaçadora o bastante para a economia — ou se elas tiverem bastante in uência política —, o governo arcará com os riscos. Por isso mesmo será essencial evitar que os bancos se tornem grandes demais. Existe ainda uma chance de que o sistema político americano recupere um nível razoável de con ança em sua atuação. Sim, Wall Street usou seu poder e seu dinheiro para comprar a desregulação, ao que se seguiu a mais generosa operação de salvamento da história da humanidade. Sim, o governo não reestruturou o sistema nanceiro de maneira a reduzir a probabilidade de uma crise similar e a fortalecer as partes do sistema que de fato fazem o que lhes corresponde fazer — administrar o risco e alocar o capital. Mas ainda há uma chance para rerregular; para corrigir os erros do passado. É imperativo que isso se faça com urgência, pois enquanto um dos lados da luta — o dos contribuintes comuns, que arcam com a maior parte dos custos do fracasso do sistema nanceiro — pode perder interesse na questão, à medida que a economia se recupera, o outro lado, o dos bancos, tem todos os incentivos para continuar a luta para garantir a maior

liberdade possível para produzir os maiores lucros possíveis. Como a estrutura do sistema nanceiro cou pior e como a maneira pela qual os resgates foram conduzidos agravou o problema do risco moral, a necessidade da rerregulação é ainda maior. No próximo capítulo descreverei a próxima batalha da guerra pela reforma do sistema nanceiro — a batalha da regulação.

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. A ganância triunfa sobre a prudência

A disposição dos bancos para os riscos excessivos, uma proliferação de con itos de interesses, e fraudes generalizadas são fenômenos repulsivos que têm vindo à tona seguidamente quando os bons momentos se tornam amargos. A crise atual não é uma exceção. Na esteira do último grande surto de crescimento, que levou à Grande Depressão, os artí ces do New Deal lutaram para corrigir esses problemas insidiosos através da instituição de uma nova estrutura regulatória.1 A memória é curta, no entanto, e meio século é um tempo muito longo. Na época em que Ronald Reagan assumiu a presidência, havia muito poucos veteranos da Grande Depressão ainda presentes para expor suas cautelas, e as lições dos livros de história não foram absorvidas. O mundo estava mudado, ou pelo menos os novos magos das nanças estavam convencidos disso. Eles se achavam muito mais sabidos e muito mais astutos tecnologicamente. Os progressos da “ciência” haviam permitido um melhor conhecimento do risco, o que, por sua vez, permitia a invenção de novos produtos para a administração do risco. Assim como o que ocorreu com a criação e a securitização das hipotecas não foi consequência de um único grande erro e sim de uma in nidade de problemas, também os bancos americanos padeciam de uma in nidade de problemas. Qualquer um deles podia ser su ciente para causar sérios danos, mas sua combinação era uma mistura explosiva. Por outro lado, ninguém soou o alarme — nem os investidores (que deveriam estar supervisionando o próprio dinheiro) nem os administradores nanceiros

(que deveriam estar supervisionando o dinheiro que lhes fora con ado) nem mesmo os reguladores (a quem con amos a supervisão do sistema nanceiro como um todo). O mantra do mercado livre signi cava não só acabar com as velhas regulações, mas também não fazer nada para enfrentar os novos desa os dos mercados do século xxi, inclusive os que foram criados pelos derivativos. O Tesouro e o Banco Central dos Estados Unidos não só não propuseram novas regulações como resistiram, com força — e por vezes quase com brutalidade —, a quaisquer iniciativas nesse sentido. Na década de 1990, o chefe da Commodities Future Trading Commission, Brooksley Born, pleiteara em favor dessa regulação — preocupação que ganhou sentido de urgência depois que o Banco Central de Nova York formulou, em 1998, o resgate do Long-Term Capital Management, um fundo de hedge cuja falência de mais de 1 trilhão de dólares ameaçava pôr abaixo todo o sistema nanceiro global. Mas o secretário do Tesouro, Robert Rubin, seu adjunto, Larry Summers, e Alan Greenspan foram intransigentes e tiveram êxito em sua oposição.2 E com o m de certi car-se de que os reguladores do futuro não teriam uma recaída, os integrantes dos mercados nanceiros trabalharam arduamente, e com sucesso, em favor de leis que não permitissem que esses derivativos viessem a ser regulados (Commodity Futures Modernization Act, do ano 2000). Nessa luta, eles empregaram a tática usada pelos bancos para conseguir seus megarresgates — a tática que fora usada para que Greenspan permanecesse no comando do Banco Central alguns anos antes,3 a tática do medo: se os derivativos fossem regulados, o capitalismo como o conhecemos cairia aos pedaços. Os mercados entrariam em uma agitação de magnitude nunca vista e o risco não poderia ser administrado com e ciência. Evidentemente, os que acreditam na força dos mercados de capital acreditavam também que esses mercados são muito frágeis — não sobreviveriam nem mesmo a um murmúrio a respeito de uma mudança nas regras.4

Quando este livro cou pronto, quase dois anos depois do começo da recessão, muito pouco havia sido feito para a reforma das regulações nanceiras. Algo será feito — mas é quase certo que será menos do que o necessário. Talvez o su ciente para que possamos continuar na trajetória da conciliação, mas não o su ciente para evitar uma outra crise. Ainda mais espantoso é o fato de que os esforços em favor da desregulação prosseguem: a lei Sarbanes-Oxley,5 aprovada na esteira do escândalo da Enron para permitir melhor governança corporativa e proteção aos investidores, foi extraordinariamente enfraquecida. As pessoas são espertas e sempre encontrarão as maneiras de contornar quaisquer novas regulações que lhes sejam impostas. É por isso que as regulações devem ser amplas e dinâmicas. O diabo mora nos detalhes. E quando as regulações mais complexas e as próprias autoridades regulatórias são “capturadas” pelos que devem ser regulados, existe o risco de que os detalhes sejam tais que deem aos bancos a possibilidade de continuar fazendo as mesmas coisas que faziam antes. É por isso que as regulações devem ser simples e transparentes e que a estrutura regulatória deve ser concebida de maneira a conter a in uência excessiva dos mercados nanceiros.     a necessidade da regulação

  A crise deixou claro que a autorregulação — que o ramo nanceiro promoveu e que eu vejo como uma contradição em termos — não funciona. Já vimos que os bancos não conseguiram avaliar seus próprios riscos. Quando Greenspan a nal admitiu que havia uma falha no seu enfoque sobre a regulação, disse que isso era consequência do péssimo trabalho dos bancos na proteção dos seus próprios interesses.6 Ele não podia acreditar que os bancos absorvessem riscos que pudessem pôr em jogo sua própria sobrevivência. Obviamente, ele não compreendeu a importância dos incentivos — que estimularam os riscos excessivos.

No entanto, mesmo que determinado banco estivesse avaliando bem os próprios riscos, isso não se relaciona com a avaliação dos riscos sistêmicos. O risco sistêmico pode existir mesmo que não haja nenhum banco sistemicamente importante, desde que todos se comportem de modo similar — como o zeram, com efeito, devido a sua mentalidade de rebanho. Esse ponto tem importância especial, porque grande parte da atual discussão se concentra na regulação de instituições grandes e sistemicamente importantes. Isso é necessário, mas não su ciente. Se todos os bancos usarem modelos similares, a existência de uma falha no modelo pode levar, por exemplo, a que todos façam maus empréstimos — dos quais depois tentam se livrar ao mesmo tempo. E foi exatamente isso o que aconteceu. Todos os bancos apostaram que não havia uma bolha imobiliária e que os preços dos imóveis não cairiam. Todos apostaram que a taxa de juros não subiria e que, se subisse, ainda assim os mutuários conseguiriam pagar os empréstimos. Essas apostas eram tolas, e quando as coisas se mostraram diferentes do que esperavam, todos caram em di culdades, para não falar do próprio sistema. Se um banco enfrenta di culdades e tem de liquidar seus ativos, não há maior problema. Quando muitos bancos enfrentam di culdades e todos têm de liquidar ativos similares, os preços desses ativos cairão. Os bancos receberão menos do que esperavam e os problemas se somarão exponencialmente. Esse tipo de “correlação” — a interdependência das ações de vários bancos — não estava contemplada nos modelos utilizados pelos bancos. Esse não é o tipo de coisa que a autorregulação revele. Mas é o tipo de coisa que um bom regulador certamente captaria. Em geral, a maior parte dos mercados funciona razoavelmente bem por conta própria. Mas isso não ocorre quando há externalidades, quando a ação de uma das partes afeta os demais. Os mercados nanceiros estão repletos de externalidades. Suas falhas têm custado muito caro à sociedade e à economia. A existência do seguro de depósitos põe em risco os contribuintes quando os bancos correm riscos excessivos e, portanto, os governos têm de garantir que eles ajam com prudência. O professor Gerald

Caprio, do Williams College, que trabalhou comigo no Banco Mundial, costumava dizer que há dois tipos de países: os que sabem que têm seguro de depósito e os que também têm mas não sabem. Em tempos de crise, os governos salvam os bancos, haja ou não seguro de depósitos. Esse é um truísmo que foi evidenciado pela crise atual. Mas se o governo, a nal, vai ter de colar os cacos, deve fazer tudo o que puder para evitar os acidentes. Ao longo deste livro, tenho dito que é preciso “ir descascando a cebola”, para saber o que há por baixo de cada camada, de cada erro cometido. Os mercados falharam, e a presença de grandes externalidades foi uma das causas. Mas há outras. Tenho comentado repetidamente também o desalinhamento dos incentivos. Os incentivos aos funcionários dos bancos não eram compatíveis com os objetivos dos demais atores relevantes e com os da sociedade em geral. Os compradores de ativos também têm informações incompletas. Uma das funções sociais dos mercados nanceiros é colher, avaliar e disseminar informações, mas eles também têm o poder de explorar os desinformados, e o zeram de maneira particularmente cruel. Antes da crise, Greenspan e outros defensores da regulação mínima pensavam que, para além da autorregulação das instituições nanceiras, o governo deveria concentrar-se em proteger apenas os pequenos investidores, e mesmo nesse caso havia uma crença cada vez mais rme no princípio da responsabilidade exclusiva do comprador.7 Mesmo quando os exemplos de empréstimos horrivelmente predatórios caram evidentes, a visão corrente era que os indivíduos tinham de se proteger por sua própria conta. Mas a maré mudou: os custos dessas teorias desregulatórias errôneas foram altos e se estenderam a toda a economia global. Os benefícios alegados — uma era de inovações — eram pura ilusão. Neste capítulo, discutirei por que o sistema nanceiro não funcionou tão bem quanto devia, assim como algumas das reformas essenciais para o setor — incentivos melhores, mais transparência, restrições aos riscos excessivos, redução das ameaças dos bancos grandes demais para falir e algo a ser feito

com relação a alguns dos produtos nanceiros mais problemáticos, inclusive os derivativos.     incentivos falhos

  Os banqueiros (na maioria dos casos) não nascem com mais ganância do que as outras pessoas, só que têm mais oportunidades e mais incentivos para fazer o mal às custas dos outros. Quando as recompensas privadas estão alinhadas com os objetivos sociais, as coisas funcionam bem. Quando isso não ocorre, as coisas podem se tornar arriscadas. Na economia de mercado, os incentivos costumam estar bem alinhados. Em um mercado competitivo, por exemplo, o ganho adicional de uma rma que produza uma tonelada a mais de aço é dado pelo preço do aço; e o valor de uma tonelada adicional de aço para os usuários se re ete nesse preço. Assim também o custo adicional da produção de mais uma tonelada de aço é o valor dos insumos adicionais (minério de ferro, carvão) usados na produção, que se re ete no custo desses insumos. Por isso, quando uma rma maximiza lucros, também maximiza, idealmente, o bem-estar social — a diferença entre o valor social do que é produzido e o valor dos recursos usados na produção. Nos mercados nanceiros, por outro lado, os incentivos estão distorcidos — e muitas vezes de maneira agrante. Um exemplo importante de distorção de incentivos está na maneira pela qual muitos executivos recebem sua remuneração: mediante opções por ações. No setor nanceiro, grande parcela das compensações é paga com base em bônus que se relacionam com a renda gerada (taxas). Os proponentes desses sistemas de compensação a rmam que eles proporcionam fortes incentivos para que os executivos trabalhem duro. Esse argumento é cínico, porque os executivos encontram maneiras de serem remunerados mesmo quando suas empresas tropeçam. A verdade é que há pouca relação entre pagamento e desempenho, fato que cou evidente quando executivos de companhias que sofriam perdas extraordinárias

receberam bônus multimilionários. Algumas empresas chegaram a mudar o nome do pagamento, de bônus de desempenho para bônus de retenção. A essência do problema, no entanto, está em que a remuneração deve ser alta quando o desempenho é bom e não quando é mau.8 Em muitos setores que o adotaram, o “pagamento por desempenho” foi abandonado há um bom tempo. Quando um trabalhador é pago com base na produção realizada e quando tem alguma possibilidade de escolha — o que quase sempre acontece —, ele elaborará o pior produto com condições de ser aceito. A nal de contas, ele recebe com base na quantidade e não na qualidade. Esse fenômeno ocorreu em toda a cadeia nanceira, de forma muito perceptível nesta crise, quando os corretores imobiliários produziram o maior número possível de empréstimos sem se importar se poderiam ser pagos ou não. Os bancos de investimento produziram o maior número possível de produtos complexos com base em hipotecas tóxicas, simplesmente porque isso era o que lhes pagavam para fazer. Os executivos pagos através de opção de ações tinham o incentivo de fazer tudo o que pudessem para valorizar o preço das ações da sua empresa — o que inclui a contabilidade criativa. Quanto mais alto o preço da ação, melhor o pagamento recebido. Eles sabiam que, quanto mais altos os rendimentos lançados, mais altos seriam os preços das ações, e também sabiam que é fácil iludir os mercados. Uma das maneiras mais fáceis de in ar o lançamento de lucros era a manipulação do balanço, retirando deste as perdas potenciais, com uma das mãos, e incluindo, com a outra, o lançamento das taxas mais lucrativas. Os investidores e reguladores haviam sido advertidos, mas evidentemente não haviam aprendido a lição: a contabilidade criativa estava por trás de muitos dos escândalos associados à bolha tecnológica (ponto-com) do nal da década passada.9 Nos esquemas de incentivo de “alto poder” da esfera nanceira, os banqueiros compartilhavam os lucros, mas não as perdas. Os bônus se baseavam no desempenho de curto prazo — e não no de longo prazo. Com efeito, o setor nanceiro tinha incentivos para assumir riscos que combinavam alta probabilidade de lucros acima do normal e baixa

probabilidade de desastres. Se as coisas pudessem ser arranjadas de maneira a tornar mais provável que o desastre só viesse a ocorrer em algum momento do futuro remoto, tanto melhor. O resultado nal poderia até ser negativo, mas ninguém saberia disso até que fosse tarde demais. A moderna engenharia nanceira proporcionou os instrumentos para a criação de produtos que se ajustam perfeitamente a essa descrição. Um exemplo pode ser ilustrativo. Suponhamos um investimento seguro com um lucro de 5%. Os magos das nanças desenvolvem, então, um produto que quase sempre rende 6% — digamos, 90% do tempo. Como se fosse mágica, eles parecem conseguir condições melhores que as do mercado — uma notável melhora de 20%. Mas nos restantes 10% do tempo, o cenário é de perda total. O lucro (médio) esperado é negativo (4,5%) e muito inferior aos 5% positivos do investimento seguro. O produto inovador apresentava maior risco e menor lucro médio que o investimento seguro. Mas, na média, como o resultado negativo ocorre apenas uma vez em cada dez anos, toda uma década pode transcorrer antes que o desastre sobrevenha: ou seja, um longo período durante o qual os magos das nanças podem colher amplos benefícios decorrentes da sua incrível capacidade de superar o mercado. O desastre resultante desses incentivos nanceiros falhos pode ser, em certo sentido, reconfortante para nós, economistas, uma vez que nossos modelos previam a ocorrência de riscos excessivos e comportamento míope, coisas que a realidade se encarregou de con rmar. Por outro lado, é difícil encontrar na “economia real” qualquer desempenho substancialmente superior à média que esteja de algum modo relacionado com essas inovações do mercado nanceiro. A nal, a teoria econômica foi vencedora. O desalinhamento entre os ganhos sociais e privados cou claro: os marqueteiros das nanças receberam amplas recompensas, mas dedicaramse a assumir riscos tão espantosos que, para a economia como um todo, eles criaram o risco sem recompensa.   Governança corporativa

  Os esquemas nanceiros que produziam incentivos desalinhados não serviram bem aos acionistas e não serviram bem ao mundo. O lucro líquido de muitos dos principais bancos no período de cinco anos entre 2004 e 2008 foi negativo.10 Um acionista que tivesse investido cem dólares no Citibank, em 2005, teria 13,90 dólares em ações ao nal de 2008. Os esquemas de incentivo, no entanto, serviram bem aos executivos dos bancos; e embora alguns possam ter cometido a tolice de reter boa parte de seus bens em ações bancárias, mesmo depois de se dar conta das “perdas” nos seus lucros com papéis, muito estão ricos, e alguns muito ricos. Os executivos conseguiram ganhar o jogo por causa da má qualidade da governança corporativa. As corporações americanas (assim como as de muitos outros países) são dirigidas apenas nominalmente por seus acionistas. Na prática, quase sempre são dirigidas por uma equipe e em seu próprio benefício.11 Em muitas corporações em que a propriedade é amplamente diversi cada entre diferentes acionistas, os dirigentes de fato indicam a maior parte dos integrantes da junta e, naturalmente, nomeiam pessoas que atenderão ao seus interesses. A junta decide sobre o pagamento aos dirigentes e a “companhia” proporciona boas recompensas para os membros da junta. É uma relação íntima. Na esteira do escândalo da Enron, com o objetivo de melhorar a governança corporativa, o Congresso aprovou uma nova lei, supostamente dura, a muito criticada Lei Sarbanes-Oxley, promulgada em julho de 2002. Os defensores do setor corporativo a rmam que ela criou entraves desnecessários que sufocam as rmas. Eu a critico por não ter ido além.12 Ela não resolveu adequadamente a questão dos incentivos perversos que deram lugar a todo o mau comportamento aqui descrito. Ela não exigiu que as companhias demonstrassem de maneira clara e transparente o que elas fazem com as opções por ações.13 As regras de contabilidade em vigor estimulam o uso de opções por ações porque essa é uma maneira que as companhias têm para dar altos pagamentos sem que os acionistas conheçam seu custo real. A lei da conservação da matéria diz que o aumento da

remuneração dos executivos sempre se dará às custas de alguém mais — no caso das opções por ações, a diluição dos direitos de propriedade dos demais acionistas. Não parece haver dúvida de que os executivos tinham o incentivo e os instrumentos para formular pacotes de compensação nanceira que os bene ciavam às custas de outros. O que continua sendo um mistério é a razão de os acionistas não terem identi cado essa manobra. Falhas na governança corporativa podem ter di cultado a ação de modi car diretamente o comportamento dos dirigentes, mas os investidores poderiam e deveriam ter “punido” as rmas que tinham más estruturas de incentivos com a baixa de preços das suas ações. Poderiam ter feito uma advertência para mudar esse comportamento, mas nada zeram.14   O que deve ser feito?   Reduzir as possibilidades dos con itos de interesses e do comportamento míope e excessivamente arriscado é um dos aspectos mais importantes de uma reforma por uma simples razão: se os banqueiros dispõem dos incentivos errados, eles se empenharão ao máximo para contornar qualquer outra regulação. Uma reforma simples — basear os pagamentos no desempenho de longo prazo e assegurar que os banqueiros compartilhem as perdas, e não só os ganhos — poderia fazer uma grande diferença. Caso as empresas usem “incentivos de pagamento”, estes devem ser realmente incentivos de pagamento: a empresa precisa mostrar que existe uma relação entre o pagamento e o desempenho de longo prazo.15 Para resolver os problemas das estruturas abusivas e distorcidas de incentivos, contudo, é necessário fazer a reforma da governança corporativa de modo a tornar os dirigentes mais responsáveis perante as pessoas que têm a propriedade das companhias.16 Os acionistas deveriam ter mais peso na determinação das compensações a administradores e altos executivos (o que se denomina “say in pay”) e a contabilidade empresarial deveria pelo menos deixar claro quanto está sendo pago em opções por ações e em outras formas ocultas de compensação. O estado sórdido da governança

corporativa encontra seu melhor exemplo no fato de que as companhias montaram uma campanha contra leis que requeriam que os acionistas tivessem direito a um voto não compulsório no tema das compensações aos executivos.17 Os acionistas podem ser os donos nominais das companhias, mas não têm sequer o direito de opinar sobre o pagamento dos que supostamente trabalham para eles.     falta de transparência

  As críticas aos mercados nanceiros sempre começam pela sua falta de transparência. Transparência é, na verdade, sinônimo de “informação”. Sempre ca óbvio, no rastro de uma crise, que houve falta de informação: ninguém aplicaria dinheiro em Wall Street se soubesse que os investimentos eram tão malfeitos. Há uma grande diferença, entretanto, entre uma informação que em retrospecto se percebe que teria sido bom ter antes e a verdadeira falta de transparência. Ninguém pode ter toda a informação que gostaria antes de tomar uma decisão. O trabalho dos mercados nanceiros é extrair as informações relevantes e, com base nesse conjunto limitado de dados, fazer o julgamento dos riscos e dos ganhos. Do meu ponto de vista, a questão da transparência se refere essencialmente a engano proposital. Os bancos americanos estavam ativamente empenhados em iludir: retiraram os riscos dos balanços para que ninguém pudesse avaliá-los corretamente. A magnitude dos engodos assim gerados foi assombrosa. Lehman Brothers pôde declarar que tivera um lucro líquido de cerca de 26 bilhões de dólares pouco antes da sua falência, quando o verdadeiro buraco no balanço se aproximava dos 200 bilhões de dólares.18 Se os mercados funcionassem bem, os bancos (e os países) que fossem mais transparentes teriam conseguido capital a custos menores. Deveria haver incentivos de mercado para esse tipo de transparência — um equilíbrio entre os custos e os benefícios da tarefa de reunir, analisar e

divulgar informações adicionais. Mas os mercados não parecem capazes de prover por conta própria o nível adequado de transparência, e é por isso que o governo precisa intervir e requerer que as informações sejam divulgadas.19 Sem boas informações, os mercados não podem funcionar de maneira adequada, e uma parte importante da tarefa de proporcionar boas informações é propiciada por bons sistemas de contabilidade, de modo que os participantes do mercado possam interpretar corretamente os dados fornecidos. Nenhum sistema de contabilidade é perfeito, razão por que essa área tem dado origem a tanta controvérsia nesta crise.20 Hoje, a principal controvérsia é sobre a “marcação a mercado”: o registro no balanço do valor dos ativos de uma rma aos preços correntes do mercado (quando há um mercado). Algumas pessoas do setor nanceiro atribuem todos os seus problemas à contabilidade de marcação a mercado. Se elas não precisassem registrar o fato de que as hipotecas que detinham provavelmente não seriam pagas, suas contas teriam aparência bem melhor e ninguém as contestaria. De repente, os defensores do fundamentalismo do mercado, que falavam das virtudes do “descobrimento dos preços” — os milagres do sistema de preci cação do mercado —, perderam a con ança. Com a queda vertiginosa dos preços das hipotecas e dos instrumentos complexos em que se baseavam, eles argumentaram que esses não eram os “preços verdadeiros”, pois não re etiam o valor real. Logicamente, eles nunca levantaram esse ponto durante a bolha, pois os preços altos signi cavam bônus altos e mais empréstimos. E, também logicamente, não ofereceram a devolução dos seus bônus quando os “lucros” que os justi cavam se revelaram falsos. Na realidade, os bancos comerciais não precisavam fazer a marcação a mercado para a maior parte dos ativos que detinham a longo prazo. Antes de março de 2009, só tiveram de reduzir as hipotecas que estavam “prejudicadas” — ou seja, que apresentavam forte probabilidade de não pagamento. Então, em outro movimento destinado a diminuir a

transparência, os bancos passaram a ter o arbítrio de não reduzir o valor de muitas dessas hipotecas.21 Passaram da marcação pelo mercado para a “marcação pela esperança”. Isso permitiu a alguns bancos declarar lucros muito maiores, mas, por outro lado, reduziu a con ança nos números que apresentavam e simplesmente adiou a tarefa de pôr os balanços em ordem. (Essa não foi a única manifestação do recurso de “pôr a culpa no carteiro” por trazer más notícias a respeito do estado lamentável dos balanços dos bancos. Com o desdobramento da crise, a outra exigência dos bancos — além de acabar com a contabilidade de marcação a mercado — foi a proibição da recompra na baixa. Por meio da recompra na baixa, o investidor aposta que as ações de uma companhia vão perder valor. Quando muitos investidores vendem as ações diante dessas circunstâncias, evidentemente os preços caem. A recompra na baixa proporciona importantes incentivos para que os participantes do mercado descubram fraudes e empréstimos temerários. Alguns creem mesmo que essa tática teve mais êxito em coibir o mau comportamento do que os reguladores do governo. Mas, como eu já disse, nesta crise, os bancos — normalmente crentes nas virtudes do mercado — perderam a fé. Queriam que os otimistas a respeito das perspectivas dos bancos pudessem “votar”, comprando ações, mas não queriam que os pessimistas as vendessem.) Inevitavelmente, os bancos foram excessivamente otimistas — e tinham bons incentivos para sê-lo. Com a evolução da crise, tinham a esperança de que tudo não passasse de um surto de “pessimismo irracional”. Se as pessoas tivessem con ança, os preços do mercado subiriam. Infelizmente, a economia dá pouco apoio a esse ponto de vista. A con ança é importante, mas as crenças, os sentimentos, desejos e aversões aí envolvidos fazem parte da realidade. E a realidade desta crise em particular é muito simples: zeram-se maus empréstimos, com base em uma bolha, a pessoas que não podiam pagá-los. Os preços de mercado são imperfeitos, mas bem ou mal ainda representam a melhor informação disponível a respeito do valor dos ativos. Por certo faz pouco sentido deixar a avaliação aos banqueiros. Eles têm todos os incentivos para distorcer a informação proporcionada,

especialmente quando a informação sugere que o banco está com pouco dinheiro. Com regulações mal formuladas, a contabilidade de marcação a mercado pode contribuir para ampliar as utuações cíclicas. Esta crise, como já disse, apesar de todos os novos produtos arti ciais, é muito similar a tantas outras já ocorridas: expansão excessiva do crédito, com base em colaterais imobiliários. Em tempos favoráveis, o valor dos ativos é alto, in ado por uma bolha. Como os tomadores de empréstimos parecem estar mais ricos, os bancos podem emprestar-lhes ainda mais. Nesses tempos, as inadimplências são poucas e os lucros dos bancos são altos, e assim estes têm ainda mais capacidade de emprestar. Quando os mercados fazem a “correção”, os preços caem, a inadimplência aumenta e os bancos já não podem nem querem continuar emprestando como antes. Quando os bancos cortam os empréstimos, a economia sofre. O resultado é que aparecem mais maus empréstimos e o valor dos ativos cai ainda mais. A contabilidade de marcação a mercado impõe mais disciplina aos bancos: quando o valor da carteira de empréstimos cai, porque o índice de inadimplência sobe, o banco tem de reconhecer que não é mais tão rico quanto antes, e isso signi ca que ele terá de escolher entre cortar empréstimos ou levantar mais capital. Mas em uma recessão, muitas vezes essa opção não existe. Assim, aparentemente, a contabilidade de marcação a mercado pode acentuar a utuação nos empréstimos. O problema, contudo, não está nesse tipo de contabilidade, mas sim na maneira como é usado. Os reguladores deveriam ter permitido menos empréstimos contra o valor do capital dos bancos nos tempos bons para reduzir a euforia e a bolha; e mais empréstimos nos tempos difíceis.22 Existem ainda outros problemas com a contabilidade de marcação a mercado, que são de fácil correção. Um deles é que seus defensores mais extremados a levaram longe demais e não souberam reconhecer suas limitações — inclusive os diferentes usos que se podem dar às informações contábeis. Na contabilidade de marcação a mercado, por exemplo, os bancos também marcam a mercado os seus passivos. Quando o mercado

julga que um banco está indo à falência, seus títulos de dívida perdem valor e os bancos podem registrar um ganho de capital. Isso é um absurdo — o banco parece estar obtendo um lucro simplesmente porque todos acham que irá à falência. No caso dos bancos que têm depósitos em conta corrente e imediatamente resgatáveis — quando os que emprestam dinheiro ao banco podem pedi-lo de volta a qualquer momento —, os ativos do banco devem ser estimados de maneira conservadora. É preciso que se saiba se o banco poderá cumprir suas obrigações. Se ele vendesse todos os seus ativos (o que só pode ser feito a preços de mercado), conseguiria dinheiro su ciente?23 No último capítulo, vimos como a má contabilidade permitiu o agravamento do problema dos bancos de poupança e crédito, o que aumentou o custo do salvamento. Na crise de 2008, com a suavização dos critérios de contabilidade, o governo nos conduziu pelo mesmo caminho. A esperança era que dessa vez a aposta na ressurreição daria certo. Talvez sim, porém mais provavelmente não.24 Na crise atual, o abandono da contabilidade de marcação a mercado teve um efeito particularmente adverso: desestimulou a reestruturação das hipotecas pelos bancos, o que adiou a reestruturação nanceira de que a economia tanto precisa.25 Se os bancos adiam a reestruturação, talvez os preços se recuperem e as hipotecas sejam pagas. Ao que tudo indica, não. Mas talvez, enquanto isso, possam arrecadar o su ciente cobrando taxas26 e graças ao enorme spread entre os juros que cobram pelos empréstimos e os que têm de pagar para obter o dinheiro que lhes permita administrar as perdas, quando, a nal, tiverem de fazê-lo.27   O que deve ser feito?   O afrouxamento dos padrões de contabilidade em abril de 2009 foi um movimento na direção errada: é preciso rea rmar o compromisso com a contabilidade de marcação a mercado, mas com regras mais cuidadosas e mais bem aplicadas. Se o banco quiser explicar por que está mais otimista

do que o mercado, está livre para fazê-lo, e se os investidores carem convencidos, tanto melhor. “Trabalhar” os livros para esconder dos investidores o que está acontecendo — exagerando os rendimentos — deveria ser tão ilegal quanto o é na hora em que pagamos nossos impostos registrando os rendimentos abaixo do seu valor. Nenhum desses truques “fora do balanço” praticados no passado deve ser permitido. Se o pagamento aos executivos em opções por ações não for inteiramente proibido, pelo menos os bancos que o fazem deveriam ser obrigados a ter mais capital e pagar taxas mais altas de seguro de depósitos. No mínimo, as opções por ações teriam de ser totalmente reveladas, sem nada da cção de que as compensações para os executivos caem do céu como maná e não saem do bolso dos acionistas. Finalmente, para que tenha signi cado, a transparência deve ser ampla. Caso se permita que alguns canais permaneçam na sombra, para aí irão todas as atividades nefandas. Vastas porções do capital global uem através de paraísos scais como as Ilhas Cayman — que não se tornou um centro nanceiro de 2 trilhões de dólares porque a temperatura lá seja particularmente favorável à atividade bancária.28 São “falhas” criadas de propósito no sistema regulatório global para facilitar a lavagem de dinheiro, a evasão scal, a evasão das regulações e outras atividades ilícitas. Depois do 11 de setembro, o governo americano conseguiu bloqueá-las por dar abrigo a fundos terroristas, mas fez muito pouco para reprimir seu emprego para outros ns ilegais.29   Complexidade — além da transparência   O fator complexidade teve um papel tão signi cativo quanto a falta de transparência nesta crise. Os mercados nanceiros criaram produtos tão complexos que, ainda que todos os seus detalhes fossem conhecidos, ninguém podia entender as implicações de risco. Os bancos tinham à sua disposição todas as informações e todos os dados relevantes, mas não podiam saber qual era a sua verdadeira posição nanceira.

A valoração dos produtos complexos não era feita pelos mercados e sim por computadores que trabalhavam com base em modelos que, por mais complexos que fossem, não podiam abranger todas as informações relevantes.30 Como a nal se viu, fatores muito importantes não estavam incluídos nos modelos. Inevitavelmente, os “resultados” obtidos por seu intermédio eram em função das premissas e dos dados que os alimentavam (veja o capítulo 4). Por exemplo: os modelos que não deram a devida atenção ao risco da queda de preços e ao risco correlato de inadimplência podiam gerar valorações muito disparatadas, o que, com o aumento das probabilidades de inadimplência, de fato provocou utuações pronunciadas. Nem sequer é evidente que esses novos instrumentos fossem necessários. O sistema nanceiro sempre teve produtos que distribuem e administram o risco. Quem desejasse um ativo particularmente seguro compraria títulos do Tesouro. Quem estivesse disposto a correr um pequeno risco, poderia comprar título de uma corporação. As ações apresentam um risco maior. Certos riscos podem ser cobertos — a morte de pessoas indispensáveis, ou um incêndio — através de uma companhia de seguros. É possível até proteger-se contra o aumento do preço do petróleo. O novo arsenal de produtos de risco foi chamado de “ajustes nos da administração do risco”. Em princípio, esses novos instrumentos podem melhorar a administração dos riscos e até diminuir os custos das transações. Na prática, no entanto, permitem que as pessoas assumam riscos cada vez maiores com capital cada vez menor. Uma parte da programação dos modelos de computador visava, por exemplo, a maximizar a parcela de hipotecas subprime ruins que pudessem receber uma avaliação de aaa, ou aa e assim por diante para maximizar o volume de dinheiro que pudesse ser ganho reagrupando e reempacotando as hipotecas que, se não fosse por essa alquimia, teriam recebido avaliação F. Isso se chamava “avaliação pela margem”, e a consequência era uma complexidade ainda maior.

Como já vimos, os bancos não gostavam da transparência. Um mercado totalmente transparente seria muito competitivo, e com uma competição intensa, as taxas e os lucros seriam mais baixos. Os mercados nanceiros criaram de propósito produtos complexos como maneira de reduzir a transparência sem contrariar diretamente as regras. A complexidade permitia a cobrança de taxas mais altas, com os bancos passando a viver em função do aumento dos custos das transações. Com produtos feitos sob medida, a comparação de preços cou mais difícil e a competição se reduziu. Isso funcionou por algum tempo, ainda que para gerar lucros maiores para os bancos. Mas a complexidade também foi a ruína do setor nanceiro. Ninguém pôde comprovar que o aumento da e ciência na tolerância ao risco, que dela resultou, tenha chegado sequer perto de compensar o dano causado à economia e ao contribuinte.     riscos desenfreados

  Em 12 de novembro de 1999, o Congresso aprovou a Lei Gramm-LeachBliley (ou Lei de Modernização dos Serviços Financeiros), que foi o clímax de anos de campanha e de lobby por parte dos bancos e das empresas de nanças em favor da redução das regulações do seu setor. Liderada no Congresso pelo senador Phil Gramm, a lei realizou um sonho havia longo tempo acalentado pelos grandes bancos — a revogação da lei Glass-Steagall. Na esteira da Grande Depressão, o governo se debruçou sobre as perguntas em torno do que havia causado a crise e como se poderia impedir a ocorrência de uma nova derrocada. A estrutura regulatória então adotada serviu bem ao país e ao mundo, conduzindo-o por um período de estabilidade e crescimento sem precedentes. A Lei Glass-Steagall de 1933 era uma pedra angular do edifício da regulação. Ela separou os bancos comerciais (que emprestam dinheiro) dos bancos de investimento (que organizam a venda de títulos e ações) de modo a evitar os claros con itos

de interesses que surgem quando um mesmo banco emite ações e empresta dinheiro. A lei Glass-Steagall tinha ainda um segundo propósito: assegurar que os responsáveis por cuidar do dinheiro alheio nos bancos comerciais não se dedicassem às atividades de risco típicas dos bancos de investimento — que visam primordialmente a maximizar os ganhos das pessoas ricas. Além disso, preservar a con ança no mecanismo de pagamentos era tão importante que, pela mesma lei, o governo propiciava o seguro de depósito aos que depositam seu dinheiro em bancos comerciais. Pondo em risco o Tesouro público, o governo sinalizava aos bancos comerciais que fossem conservadores. E essa não é a cultura dos bancos de investimento. As regulações da era da Depressão podem não ser apropriadas para o século xxi, mas o que precisava ter sido feito era adaptar o sistema regulatório existente — e não desmantelá-lo — às novas realidades, inclusive o risco adicional trazido pelos derivativos e pela securitização. Aos críticos que se preocupavam com os problemas surgidos em anos anteriores, que levaram à aprovação da lei, os proponentes disseram, na verdade: “Con em em nós”. Eles criaram muralhas da China — divisões insuperáveis entre os dois braços — para que os problemas decorrentes dos con itos de interesses não voltassem a ocorrer. Os escândalos contábeis que sucederam alguns anos depois demonstraram que as muralhas construídas eram demasiado baixas e podiam ser superadas com facilidade.31 A consequência mais importante da revogação da Lei Glass- -Steagall foi indireta. Quando a revogação reuniu os bancos comerciais e os de investimento, a cultura destes últimos veio a prevalecer. Havia uma demanda pelos lucros altos que só podem ser obtidos por meio de alta alavancagem e alto teor de risco. Houve também outra consequência: um sistema bancário menos competitivo e mais concentrado, dominado por bancos cada vez maiores. Nos anos que se seguiram à aprovação da Lei Gramm, a fatia do mercado detida pelos cinco maiores bancos passou de 8% em 1995 para 30% hoje.32 Um dos marcos do sistema bancário americano era o alto nível de competição, com uma in nidade de bancos

que serviam a pequenas comunidades e com diferentes nichos no mercado. Essa força foi se perdendo ao mesmo tempo que novos problemas iam surgindo. Em 2002, os grandes bancos de investimento tinham uma alavancagem de 29 para 1, o que signi ca que uma queda de 3% no valor dos ativos era su ciente para acabar com eles. A Comissão NorteAmericana de Títulos e Intercâmbios (sec), sem mexer uma palha, agia em função das virtudes da autorregulação — a noção peculiar de que os bancos podem ser sua própria polícia. Então, em uma controvertida decisão, em abril de 2004, a Comissão parece ter-lhes dado uma latitude ainda maior, pois alguns bancos de investimento aumentaram sua alavancagem a 40 para 1. Os reguladores, assim como os bancos de investimento, pareciam ter comprado a ideia de que com modelos melhores de competição o risco poderia ser mais bem domado.33   O que deve ser feito?   É fácil controlar o risco excessivo. Basta restringi-lo e criar junto aos bancos incentivos contra ele: não permitir que os bancos usem estruturas de incentivos que encorajam o risco excessivo e forçar a adoção de maior transparência já podem ajudar muito. O mesmo se pode dizer a respeito de exigir que os bancos que se dedicam a atividades de alto risco aportem muito mais capital e paguem maiores taxas de seguro de depósitos. Mas outras reformas são também necessárias: a alavancagem precisa ser muito mais limitada (e ajustada aos ciclos da economia) e novas restrições devem ser impostas a produtos de risco particularmente alto (como os seguros de crédito — cdss — discutidos abaixo). Dada a situação a que a economia se viu arrastada, é claro que o governo federal deve reinstituir uma versão revista da Lei Glass-Steagall. Não há escolha: qualquer instituição que tem os benefícios de um banco comercial — inclusive as redes de proteção governamentais — deve ter sua capacidade de correr riscos fortemente restringida.34 Existem con itos de interesses e problemas demais para que se possa permitir a fusão das

atividades dos bancos comerciais e dos bancos de investimento. Os ganhos prometidos com a revogação da Lei Glass-Steagall se mostraram ilusórios e os custos se mostraram maiores do que até mesmo os críticos da revogação haviam imaginado. Os problemas são especialmente agudos com os bancos que são grandes demais para falir. O imperativo de restabelecer rapidamente a Lei Glass-Steagall é evidenciado pelo comportamento recente de alguns bancos de investimento, para os quais o comércio mostrou ser de novo uma importante fonte de lucros. O entusiasmo com que todos os principais bancos de investimento decidiram tornar-se “bancos comerciais” no outono de 2008 foi alarmante — eles anteviram os presentes que chegariam do governo federal e perceberam, é óbvio, que o comportamento de assumir riscos não seria muito restringido. Passaram a ter acesso à janela do Fed e, portanto, a poder tomar empréstimos a taxas de juros de quase 0%; sabiam que estarão salvaguardados por uma nova rede de proteção; e também que poderiam continuar com a sua atividade de alto risco a pleno vapor. Isso deve ser visto como totalmente inaceitável.     grandes demais para falir

  Como já vimos, todos os grandes bancos dos Estados Unidos se tornaram grandes demais para falir. Pior: eles sabiam que eram grandes demais para falir e, em consequência, assumiram riscos exatamente como a teoria econômica havia previsto que fariam. Como discuti no capítulo 5, os governos de Bush e Obama introduziram um novo conceito: ponderaram que alguns bancos eram grandes demais para ser liquidados (ou reestruturados nanceiramente) — ou seja, grandes demais para que se pudessem empregar os procedimentos normais de forçar os acionistas a sofrer as perdas e converter os credores em acionistas. Em vez disso, o governo se apresentou e proporcionou um seguro (sem pagamento de prêmio) aos credores e aos acionistas, afetando, com isso, toda a disciplina do mercado.

Há uma solução óbvia para os bancos grandes demais para falir: dividilos. Se são grandes demais para falir, são também grandes demais para existir. A única justi cativa para permitir que essas enormes instituições continuem a operar seria a existência de economias signi cativas de escala ou de escopo que se perderiam se não fosse assim — ou seja, se essas instituições fossem tão mais e cientes que as de menor porte, que a imposição de limites ao seu tamanho implicaria custos elevados. Não vi nenhum elemento de comprovação nesse sentido. Com efeito, o que se vê é o contrário: essas instituições grandes demais para falir e grandes demais para ser liquidadas nanceiramente são também grandes demais para poder ser bem administradas. Sua vantagem competitiva deriva do seu poder monopolístico e dos subsídios governamentais implícitos que recebem. Esta não é uma ideia radical. Mervyn King, o presidente do Banco Central da Inglaterra, usou quase as mesmas palavras: “Se alguns bancos são considerados grandes demais para falir [...] É porque são simplesmente grandes demais”.35 Paul Volcker, ex- -presidente do Banco Central dos Estados Unidos, foi coautor de um relatório publicado em janeiro de 2009 que também apresentou a questão com clareza:   De modo quase inevitável, a complexidade de muitas atividades corporativas no mercado de capitais e a percepção de que essas atividades devem ser tratadas con dencialmente limitam a transparência tanto para os investidores quanto para os credores. [...] Na prática, qualquer enfoque que se dê deve reconhecer que a extensão desses riscos, a volatilidade potencial e os con itos de interesses serão difíceis de medir e controlar. A experiência demonstrou que, sob pressão, as fontes de capital e de crédito são desviadas para cobrir perdas, o que enfraquece a proteção dos interesses dos clientes. Os con itos de interesses entre clientes e investidores, complexos e inevitáveis, podem tornar-se agudos. Além disso, na medida em que essas atividades corporativas são praticadas por rmas supervisionadas pelo governo e protegidas contra a força bruta da perspectiva da falência, existe um forte elemento de competição injusta com as instituições independentes. [...] Com todas essas complexidades, esses riscos e con itos potenciais, será de fato possível que mesmo a mais dedicada das juntas de diretores e mecanismos decisórios das empresas consiga compreender e controlar uma combinação tão complexa e diversi cada de atividades?36

  Volcker ressalta uma das reformas cruciais para os bancos grandes e assegurados pelo governo: restringir o comércio “corporativo” — as apostas feitas por conta própria, mas sabendo que existe uma porta de saída dada pelo governo caso as coisas não saiam bem. Não há razão para que esses riscos quem amalgamados. Mas agora que os bancos grandes caram maiores ainda, existem outros problemas: alguns dispõem, efetivamente, de “informação privilegiada”, a partir da qual auferem lucros. Sabem, em particular, o que fazem muitos outros participantes do mercado e podem usar essa informação para levar vantagem às custas dos demais. Com o estabelecimento de um “campo de jogo desigual”, os bancos ao mesmo tempo distorcem o mercado e minam a con ança nele. Além disso, contam com uma vantagem injusta ao realizar seguros de crédito e operações com outros produtos que têm as características de um “seguro”. O fracasso da aig fez crescer a consciência da importância do “risco da contraparte”, a possibilidade de que os que fornecem o seguro se tornem inadimplentes. Mas isso propicia uma grande vantagem para os bancos maiores, pois todos sabem que eles estão de fato protegidos pelo governo. Pode não ser um fato acidental que a proporção de seguros de crédito praticados pelos grandes bancos seja tão alta. O resultado é uma dinâmica nociva: os grandes bancos têm uma vantagem competitiva sobre os demais, que não se baseia na força econômica real, mas sim nas distorções que derivam da garantia implícita do governo. Existe o risco de que, com o passar do tempo, o setor nanceiro que cada vez mais distorcido. Os grandes bancos não são responsáveis por nenhum dinamismo que possa haver na economia norte-americana. As alardeadas sinergias que decorreriam da junção das várias partes da atividade nanceira se revelaram um fantasma. Muito mais visíveis são as falhas de gestão e os con itos de interesses. Em suma, há pouco a perder — e muito a ganhar — se retalharmos esses mastodontes. As especialidades amalgamadas — companhias de seguros, bancos de investimento, tudo o que não for

absolutamente necessário para a função primordial dos bancos comerciais — precisam ser divididas. O processo de divisão pode ser vagaroso e pode provocar resistência política. Mesmo que haja um acordo para limitar o tamanho dos bancos, podem ocorrer lapsos na implementação. Por isso será necessário um ataque em três frentes: dividir as instituições grandes demais para falir; restringir fortemente as atividades de que possa tomar parte qualquer instituição grande que permaneça; e calibrar as restrições que afetam a adequação do capital e o seguro de depósito, a m de “equilibrar o campo de jogo”. Como essas instituições impõem riscos mais elevados à sociedade, deve- -se exigir que tenham mais capital e que paguem prêmios mais altos pelo seguro de depósito.37 Todas as regulações discutidas antes devem ser aplicadas de modo mais estrito a essas instituições. É especialmente importante que não disponham de estruturas de incentivos para os funcionários (sobretudo para os dirigentes) que estimulem os riscos excessivos e o comportamento míope.38 As restrições impostas às suas atividades podem resultar em lucros mais baixos para os grandes bancos — mas assim deve ser. Os lucros altos que tiveram no passado foram o resultado dos riscos assumidos às custas dos contribuintes americanos. Os bancos grandes demais para falir devem ser forçados a retornar à prática do aborrecido ofício dos bancos convencionais. Há muitas outras instituições — companhias menores e mais agressivas, instituições não depositárias que não são grandes demais para falir sem arrastar consigo toda a economia — que podem realizar os outros papéis de risco que os grandes bancos assumiram. Quando pediu pela primeira vez a adoção de legislação antitruste, em dezembro de 1901, Teddy Roosevelt tinha como motivação tanto as questões de poder político quanto as de distorção do mercado. Na verdade, há poucas indicações de que ele tenha entendido a análise comum dos economistas sobre como o poder monopolístico distorce a alocação de recursos. Mesmo que não tivessem o poder de aumentar os preços (que é a condição crítica na análise antitruste moderna), os bancos grandes demais

para falir deveriam ser divididos. A capacidade evidente dos grandes bancos de paralisar tantos aspectos das necessárias reformas regulatórias é, por si só, prova do poder que detêm, e ressalta a importância de agir nesse sentido. Uma das desculpas dadas a posteriori pelo Banco Central e pelo secretário do Tesouro Henry Paulson para o fato de haverem deixado falir Lehman Brothers foi a de que não tinham autoridade legal para agir de outra maneira. À época eles disseram que, como havia muito tempo era óbvio que Lehman Brothers corria tanto risco de falir, estavam convictos de que o mercado tivera tempo su ciente para precaver-se e proteger-se. Mas, seguindo o mesmo argumento, se não tinham a autoridade legal necessária, também tiveram tempo su ciente para solicitá-la ao Congresso. As atitudes sem precedentes que tomaram no caso da aig, apenas dois dias depois, sugerem que essa “falta de autoridade legal” não passou da melhor linha de defesa que lhes ocorreu depois do fracasso da primeira linha de defesa — que alegava que a falência de Lehman Brothers não apresentava nenhum risco sistêmico. Se bem que os rumores a respeito da queda de Lehman Brothers circulavam havia meses, o sistema, evidentemente, não havia se vacinado contra essa possibilidade; e o mais notável é que nem o Fed nem o Tesouro tenham percebido isso. De todo modo, uma das reformas necessárias é dar ao Fed e ao Tesouro uma autoridade mais clara para “liquidar” as instituições nanceiras cuja falência possa pôr a economia em risco. Mas, conquanto seja uma reforma necessária, em nada ajuda a resolver o problema subjacente — a própria existência dessas instituições grandes demais para ser liquidadas. E dar ao Fed e ao Tesouro a autoridade legal para fazer algo não resolve a questão do que deve ser feito. Se essas instituições nanceiras são grandes demais para ser liquidadas, ou se têm condição de persuadir um governo crédulo de que são grandes demais, terão posição dominante a despeito da autoridade legal do governo. A única “solução” é verter o dinheiro dos contribuintes para que possam continuar a existir.

Mas os problemas são ainda mais profundos. Não é apenas o tamanho que importa, mas também a inter-relação entre as instituições. Temia-se que mesmo a falência de uma instituição relativamente pequena (como Bear Stearns) pudesse gerar um efeito cascata em razão das profundas interconexões do sistema nanceiro. As instituições interligadas demais para ser liquidadas têm a mesma vantagem competitiva das instituições grandes demais para ser liquidadas. (Uma das inovações do sistema nanceiro que levou as instituições a tornar-se demasiado interligadas foi a dos derivativos. Veja abaixo.) O necessário não é apenas a autoridade para “liquidar”, mas sim a ação preventiva. O governo precisa ser capaz de impedir o surgimento dessas situações: grandes demais para falir, grandes demais para ser liquidadas, interligadas demais para ser liquidadas. O governo precisa ter uma escolha signi cativa — para que não “tenha” de fazer o que a rma ter precisado fazer nesse caso: dar quantidades ilimitadas de dinheiro aos bancos e proteger tanto os acionistas quanto os credores.39     inovações perigosas: derivativos

  Os mercados nanceiros foram inovadores, mas nem sempre de maneira a gerar uma economia mais estável e produtiva. Tinham incentivos para criar produtos complexos e não transparentes, como os instrumentos colateralizados de dívidas (cdos), reagrupando e reempacotando as hipotecas, transformando-as em títulos mobiliários e novamente reagrupando e reempacotando esses títulos para criar produtos cada vez mais complexos.40 Quando as apostas — a especulação — em torno de milho, ouro, petróleo ou banha de porco já não propiciavam oportunidades su cientes para os riscos, eles passaram a inventar produtos “sintéticos”, derivativos com base nesses produtos. Então, em um surto de engenhosidade metafísica, inventaram produtos sintéticos baseados nos produtos sintéticos. Raramente cava claro se esses produtos novos de fato

levavam a economia a administrar bem os riscos, mas era claro que geravam novas oportunidades para se correr riscos e para a cobrança de altas taxas. Esses derivativos estão entre as inovações de que os participantes do mercado nanceiro têm mais orgulho. O nome diz bastante a respeito da sua essência: o seu valor é derivado de um outro ativo. A aposta de que o preço de uma ação estará mais alto no dia seguinte é um derivativo. A aposta de que o valor de mercado de uma aposta estará mais alto no dia seguinte é um derivativo baseado em um derivativo. O número de produtos que podem ser inventados dessa maneira é in nito. Os derivativos são uma faca de dois gumes. Por um lado, podem ser usados para administrar os riscos. Se uma companhia aérea se preocupa com o aumento do preço dos combustíveis, pode assegurar-se contra o risco comprando o combustível no mercado de futuros, estabelecendo hoje o preço do querosene a ser entregue daqui a seis meses. Usando derivativos, a companhia aérea pode igualmente fazer uma “apólice de seguro” contra o risco de que o preço suba. Os custos de transação podem ser um pouco menores do que nas maneiras antigas de “cercar” as apostas, como comprar e vender o querosene no mercado de futuros. Por outro lado, como assinalou Warren Buffett, os derivativos também podem ser armas nanceiras de destruição em massa. Foi o que aconteceu com a aig, que acabou destruída por eles, levando junto boa parte da economia. A aig vendia “seguros” contra o colapso de outros bancos, o que é um tipo particular de derivativo denominado seguro de crédito. O seguro pode ser um negócio muito rentável, desde que o segurador não precise fazer pagamentos com demasiada frequência. Pode ser especialmente lucrativo no curto prazo: o segurador recebe o pagamento dos prêmios e, enquanto os eventos que foram objeto dos seguros não ocorrem, tudo parece muito bem. A aig pensava que estava nadando em dinheiro. Quais eram as chances de que rmas grandes como Bear Stearns e Lehman Brothers pudessem ir à falência? Mesmo que houvesse um potencial de que elas não administrassem bem os riscos, era lógico que o governo as resgataria.

As companhias de seguro de vida sabem como estimar seu risco com precisão. Não podem saber quanto tempo determinada pessoa viverá, mas em média os americanos vivem, digamos, 77 anos (estimativa atual da expectativa de vida ao nascer). Se a companhia de seguros trabalha com um número bem grande de americanos, pode car razoavelmente certa de que a idade média da morte será próxima a esse número. Além disso, as companhias podem obter dados relativos à expectativa de vida por ocupação, sexo, faixa de renda e assim por diante, e fazer previsões ainda melhores sobre a expectativa de vida da pessoa que quer fazer seguro.41 Ademais, com poucas exceções (como as guerras e as epidemias), os riscos são independentes entre si: a probabilidade de que uma pessoa morra não está relacionada à da morte de outra. Contudo, a tarefa de estimar o risco de que determinada companhia vá à falência não é como a de estimar a expectativa de vida. Esse é um fato não corriqueiro e, como já vimos, o risco que corre uma rma pode estar extremamente relacionado ao que correm outras.42 A aig pensava que entendia da administração de riscos. Não era verdade. Ela emitiu seguros de crédito (cdss) que requeriam dela enormes pagamentos, todos ao mesmo tempo — mais dinheiro do que possuía até mesmo a maior de todas as companhias do mundo. Como os compradores do “seguro” queriam estar certos de que o outro lado podia fazer os pagamentos, eles requereram que a companhia seguradora zesse os pagamentos colaterais, caso, por exemplo, o preço do título do segurado caísse — sugerindo assim que o mercado acreditava na existência de um risco maior de falência. Foram esses pagamentos colaterais, que a aig não pôde fazer, que acabaram por levá-la ao fracasso. Os seguros de crédito desempenharam um papel nefando na crise atual por diversas razões. Sem uma avaliação adequada da capacidade do vendedor de honrar o seguro feito, a operação não era simplesmente a compra de um seguro: era uma aposta. Algumas dessas apostas eram muito peculiares e deram lugar a incentivos perversos. Nos Estados Unidos e na maioria dos outros países, uma pessoa não pode comprar seguro sobre a

vida de outra, a menos que tenha algum interesse econômico (denominado interesse assegurável). A esposa pode comprar um seguro contra a morte do marido; uma companhia pode fazê-lo contra a morte de empregados cruciais. Mas se João faz um seguro contra a morte de José, com quem não tem relação alguma, cria-se um incentivo extremamente perverso: João tem interesse na morte prematura de José. Se uma instituição nanceira comprasse uma apólice de seguro relativa à falência de Lehman Brothers, ela teria, do mesmo modo, um incentivo para ver a morte rápida dessa rma.43 E havia muitas armas à disposição de qualquer participante ou grupo de participantes bem grande que desejasse manipular o mercado, um arsenal que crescia à medida que o mercado nanceiro se tornava mais complexo. O mercado de seguros de crédito era pequeno e seria, portanto, fácil fazer baixar os preços — o que sugeria uma alta probabilidade de falências. Isso poderia gerar toda uma série de consequências: o preço da ação provavelmente cairia. Quem tivesse uma posição de forçar a baixa na bolsa — apostando que o preço cairia —, teria lucro; e quem estivesse na posição oposta perderia. Talvez houvesse muitos contratos que exigissem que Lehman Brothers aportasse mais colaterais, o que poderia desencadear uma corrida ao banco por parte dos que tivessem depósitos não segurados (e, no caso de Lehman Brothers, todos os depósitos estavam nessa situação). O banco poderia sofrer, então, uma crise de liquidez. A probabilidade de falência já havia subido. O ataque à companhia por meio dos seguros de crédito foi, em certo sentido, uma profecia que está fadada a se cumprir. Os derivativos tiveram um papel importante na ampli cação da crise em outro aspecto relevante. Os grandes bancos não compensaram as posições dos derivativos. Vejamos um exemplo hipotético: o banco A aposta mil dólares com o banco B que o preço do petróleo subirá quinze dólares no prazo de um ano. Na semana seguinte, o banco A decide cancelar a aposta. A maneira simples de fazer isso seria pagar uma taxa e pôr m ao entendimento. Mas isso seria simples demais. Então, em vez disso, eles fazem outro acordo, pelo qual o banco B concorda em pagar mil dólares ao

banco A se o preço do petróleo subir quinze dólares no prazo de um ano. Se o preço de fato subir, nada acontece. É como se uma aposta cancelasse a outra, contanto que nenhum dos dois bancos vá à falência. Mas os apostadores não reconheceram a importância do risco da contraparte — o risco de que um dos dois possa ir à falência. Se o banco A for à falência, e se o preço do petróleo subir quinze dólares, o banco B continuará devendo ao A os mil dólares. Mas o banco A não deverá nada ao B — ou melhor, deverá o dinheiro, mas não poderá pagá-lo. Os acordos não se compensam necessariamente. Indagados sobre a razão de terem cancelado os acordos diretamente em vez de fazer essas transações que se contrabalançam — o que levou a uma exposição ao risco que chegou aos trilhões de dólares —, a resposta dos bancos foi: “Não podíamos imaginar as quebras”. No entanto, estavam intercambiando seguros de crédito com relação aos grandes bancos, os quais tinham como premissa a existência do risco de quebra. Esse é outro exemplo do tipo de incoerência intelectual que vinha permeando os mercados. Supunha-se que os bancos fossem bons administradores do risco, e entre esses riscos a serem administrados estava o da contraparte. Mas não foi o que pelo menos alguns deles zeram, e por isso a quebra da aig pôs em perigo todo o sistema nanceiro. Muitos bancos pensavam que haviam comprado seguro — da aig — contra diversos riscos do mercado, o que, por sua vez, permitia que assumissem riscos que de outro modo não poderiam fazer. O m da aig os deixaria altamente expostos. Os reguladores lhes haviam permitido correr mais riscos porque pensavam (erradamente) que seu per l global de risco era administrável. A compra do “seguro” os deixava em boa situação para assumir mais riscos. Sem o seguro da aig (e outros “seguros” similares fornecidos por outras instituições nanceiras), os reguladores teriam exigido que o banco mostrasse ter capital su ciente para enfrentar os riscos que assumia. Se não tivesse o capital, o banco teria de recuar dos empréstimos feitos, exacerbando assim a recessão econômica.

Quando você compra um seguro de vida, é preciso que tenha con ança de que a companhia seguradora estará viva quando você morrer. Nos Estados Unidos o seguro de vida é sujeito a forte regulação, mas o tipo de seguro que as instituições nanceiras estavam comprando para administrar o risco não é regulado. Os mercados nanceiros americanos opuseram resistências a isso, como já vimos.44 Depois da crise, zeram-se várias tentativas para acertar contas compensando ao menos algo dos trilhões de dólares de exposição ao risco, mas há muitos problemas para fazê-lo. Muitos dos derivativos são feitos “sob medida”, e cada um é diferente do outro. Em alguns casos, havia boas razões para isso — com uma parte desejando segurar-se contra riscos muito particulares. Em muitos casos, a verdadeira razão para a construção desses produtos sob medida parecia ser o desejo de cobrar mais taxas. A competição em torno de produtos padronizados pode ser intensa, o que signi ca que os lucros são pequenos. Se os bancos conseguissem persuadir seus clientes de que um produto feito sob medida era exatamente o que eles queriam, havia uma boa oportunidade para lucros maiores. Pouca atenção era reservada para as di culdades de “desenredar” esses produtos complexos. Ainda se discute sobre o que teria ocasionado os trilhões de dólares de derivativos. O argumento ostensivo era a “melhora da administração do risco”. Por exemplo, os que compravam títulos de corporações queriam neutralizar o risco de que a rma falisse. Esse argumento não é convincente como pode parecer. Se queremos comprar um título sem risco de crédito, devemos comprar um título do governo com maturidade comparável. Trata-se de uma coisa simples. Quem quer que compre um título de dez anos de uma companhia deve fazer, inevitavelmente, uma avaliação de crédito para julgar se a diferença com relação à taxa de juros do título do governo compensa o risco adicional.45 Existem algumas respostas possíveis para explicar o que estava acontecendo — mas nenhuma nos dá uma imagem positiva quanto à contribuição dos derivativos para melhorar o desempenho geral da

economia. Uma delas, como mencionado, são as taxas. A segunda é a arbitragem regulatória: ao descarregar o risco sobre outros ombros, os bancos, supostamente, podem absorver novos riscos. Os benefícios de descarregar o risco (sobretudo os benefícios regulatórios) eram maiores do que os custos aparentes. Será que os bancos eram tão estúpidos que não compreenderam o risco da contraparte? Talvez tenham entendido o risco, mas mantendo, ao mesmo tempo, a ideia de que os reguladores os haviam subestimado e que as oportunidades de lucro a curto prazo com base na arbitragem regulatória eram grandes demais para não aceitá-las ainda que a aposta pusesse em risco o futuro da rma. Há uma terceira explicação possível: Wall Street já foi descrita como um cassino para a gente rica. Está implícita no prêmio pago sobre um título corporativo uma avaliação a respeito da possibilidade de quebra. Se eu achar que sou mais esperto do que o mercado, posso fazer uma aposta sobre o valor dessa avaliação. Todos em Wall Street acreditavam que eram mais espertos do que todos os demais (ou pelo menos mais espertos do que a média). Os seguros de crédito abriram uma nova mesa de jogo de alto cacife no cassino. Em geral, os maiores de idade têm permissão de apostar — ainda que apoiados na premissa irracional de serem mais espertos que todos os demais. Mas essa permissão não engloba o ato de fazer apostas às custas de todos nós — e isso é o que acontece quando as apostas ocorrem dentro das instituições nanceiras, especialmente quando estas são grandes demais para falir.   O que deve ser feito?   Como os derivativos podem ser instrumentos úteis para a administração de riscos, não devem ser simplesmente banidos, e sim regulados para que sejam sempre usados de forma correta, com transparência total, competição efetiva e su ciente “margem” para que haja segurança de que os apostadores têm condições de cumprir sua parte do negócio. Os derivativos devem ser usados sobretudo de maneira a não pôr em risco todo o sistema

nanceiro. Para que esses objetivos sejam atingidos, diversas atitudes devem ser tomadas: os seguros de crédito e certos outros derivativos devem ser limitados a transações feitas em bolsas e a situações em que exista um “risco segurável”. A menos que haja transparência total — não só informações sobre grandes exposições, mas também dados sobre cada posição para que o mercado possa avaliar o risco da contraparte —, desastres como o da aig podem continuar a ocorrer. Mas insistir que os derivativos padronizados sejam vendidos em bolsas (ou em câmaras de compensação) não basta. As bolsas devem estar adequadamente capitalizadas; de outra forma, quando ocorrer um evento desfavorável — como o rompimento de uma bolha imobiliária —, o governo terá de recolher os destroços novamente. Contudo, alguns dos produtos são tão complexos e apresentam tanto risco que mesmo o mais bem-intencionado dos reguladores terá di culdade em determinar a existência de capital su ciente e haverá um risco real de que os reguladores do futuro sejam como os do passado — mais preocupados com o bem-estar dos mercados nanceiros do que com o da economia ou o do contribuinte. Existe um remédio simples: exigir a responsabilidade conjunta e especí ca de todos os participantes da bolsa de modo que todos os que a usam esgotem todo o seu dinheiro antes que os contribuintes desembolsem um centavo sequer. (Suspeito que um dispositivo assim possa causar o m desse mercado — o que provaria que sua existência se deve apenas à capacidade de usar o dinheiro público em seu favor.) Outro ponto de debate se refere a determinar quais produtos “sob medida” e “prontos para usar” devem ser permitidos. A sabedoria convencional de hoje sustenta que os bancos devem ser estimulados a trabalhar com produtos padronizados em bolsas, mas admite que os produtos sob medida ainda têm uma importante função a cumprir. Quando, porém, são utilizados produtos prontos para usar, eles devem ser apoiados por níveis de capital altos o bastante e pela transparência adequada. O medo está em que os reguladores venham a ser “capturados” e possam sucumbir às pressões em favor de uma menor transparência (o

“segredo do negócio” é uma linha básica). Se tiverem a possibilidade de escolher entre derivativos transparentes e negociados em bolsa e derivativos menos transparentes prontos para o uso, os bancos escolherão estes últimos, a menos que o capital requerido para nanciá-los seja muito alto. E os reguladores sucumbirão às pressões para que não sejam bastante altos. Em resumo, se tanto os derivativos negociados em bolsa quanto os prontos para o uso forem permitidos, arriscamo-nos a car em uma situação não muito diferente da que nos levou à situação atual.     empréstimos predatórios

  O sistema nanceiro mostrou que não é con ável para vender produtos adequados às necessidades dos que os compram. O risco é uma coisa complicada. Nem os bancos souberam administrá-lo bem. Como esperar que indivíduos comuns o façam? Em muitas áreas já reconhecemos que a presunção da responsabilidade exclusiva do comprador não é su ciente. A razão é simples: os compradores são pouco informados e as assimetrias de informação são importantes. Por essas mesmas razões, por exemplo, existem as regulações governamentais sobre segurança alimentar e para a venda de remédios.46 Os bancos e outras instituições nanceiras passaram para trás sobretudo os americanos menos instruídos e se aproveitaram deles de diversas maneiras, algumas das quais já descrevi, além de outras a que me referirei em breve. Era claro que isso estava acontecendo e os defensores dos consumidores tentaram repetidamente apoiar projetos de lei que impedissem essas práticas. Mas até aqui as instituições nanceiras predatórias têm conseguido evitá-los. O mais necessário é criar uma Comissão para a Segurança dos Produtos Financeiros.47 Uma das funções dessa comissão seria identi car que produtos nanceiros são seguros o bastante para que os cidadãos comuns possam comprá-los, e em que circunstâncias.  

  competição inadequada: supressão das inovações

  Os bancos passaram grande parte dos últimos vinte anos tratando de ganhar dinheiro nos mercados dos derivativos e gastaram uma boa dose de energia estimulando as tendências dos americanos a endividar-se. Vimos como os bancos atraíram os incautos com hipotecas que estavam além da sua capacidade de pagamento; mas as práticas enganosas relativas aos cartões de crédito, que aumentaram rapidamente a partir dos anos 1980, talvez tenham sido ainda mais sinistras.48 Os bancos inventaram uma in nidade de novas maneiras de aumentar seus lucros. Se alguém se atrasava nos pagamentos, não só havia uma taxa de mora como também a taxa de juros aumentava, e o banco começava a cobrar dos titulares dos cartões antes da data do vencimento. As taxas mais “espertas”, contudo, eram as “taxas de intercâmbio”, cobradas dos comerciantes que aceitavam esses cartões. Com a ampliação do uso dos cartões e com os oferecimentos de recompensas diversas feitos aos titulares para estimular seu uso, os donos das lojas se sentiram pressionados a aceitá-los, pois do contrário perderiam muitas vendas. Visa e MasterCard sabiam disso — e sabiam que com isso podiam explorar os comerciantes. Se os bancos cobrassem 2% ou 3% do custo de um produto, a maior parte dos comerciantes aceitaria os cartões para não perder vendas. O fato de que os computadores atuais tornaram os custos reais desprezíveis foi irrelevante. Simplesmente não havia nenhuma competição efetiva, e assim os bancos podiam continuar com essa prática. Para assegurar-se de que os mercados não funcionariam, eles insistiram que os comerciantes não informassem os clientes sobre o custo verdadeiro do uso do cartão nem lhes transferisse a cobrança da taxa pelo uso do cartão. Visa e MasterCard também exigiram que os comerciantes não “discriminassem” entre os cartões. Se um comerciante aceitasse um cartão Visa, teria de aceitar todos, mesmo que as taxas cobradas ao próprio comerciante fossem diferentes.49 Em suma, seu poder monopolístico era tão grande que eles podiam car

tranquilos em relação ao não funcionamento do sistema de preços. Se os comerciantes tivessem a possibilidade de repassar as taxas, os usuários dos cartões mais caros conheceriam os custos relativos e poderiam escolher o cartão melhor — aquele que oferecesse os benefícios mais compatíveis com a taxa cobrada.50 Mas Visa e MasterCard se encarregaram de pôr os mecanismos de preço em curto-circuito. Nada disso teria sido possível se as regulações de competição fossem de fato implementadas. A desregulação nanceira tornou mais atraentes essas práticas anticompetitivas no setor dos cartões de crédito. Costumava haver leis que limitavam as taxas de juros — as denominadas leis de usura. Essas restrições existem desde os tempos da Bíblia e são frequentes na maioria das religiões — desde a origem da história da exploração dos pobres pelos emprestadores de dinheiro, muitas vezes descritos como a segunda pro ssão mais antiga do mundo. Mas os Estados Unidos de hoje puseram de lado as lições dos perigos da usura. Com taxas de juros tão altas, fazer empréstimos se tornou altamente lucrativo, mesmo que certa parcela dos titulares dos cartões não pagasse o que devia. Era mais fácil dar cartões a qualquer pessoa viva do que se dedicar ao difícil trabalho de avaliar o crédito e julgar quem tem capacidade creditícia ou não. Como os bancos essencialmente são os donos dos dois sistemas principais de cartões de crédito/débito, Visa e MasterCard, e usufruem dos lucros adicionais propiciados pelo sistema, têm todo o interesse em as xiar o desenvolvimento de um mecanismo eletrônico de pagamentos que seja e ciente. E é isso que fazem. Pode-se imaginar como funciona um mecanismo e ciente. No ponto da compra, haveria uma veri cação imediata (como já existe) de que o cartão não foi roubado e de que há fundos su cientes na “conta” do titular para fazer o pagamento. Os fundos seriam então imediatamente transferidos da conta do titular do cartão para a do comerciante. Tudo isso custaria alguns centavos. Alguns titulares de cartões arranjariam linhas de crédito com o seu banco que lhes permitiriam fazer gastos adicionais sem problemas, até determinado limite e pagando taxas de juros competitivas. Outros poderiam preferir ser conservadores e

não usar a linha de crédito — conhecendo as taxas exorbitantes que os bancos cobrariam. O mecanismo de pagamentos funcionaria perfeitamente, com ou sem linhas de crédito. Esse mecanismo de pagamentos e ciente ligado a um sistema de crédito seria bom para todos — menos para os banqueiros, que teriam que cobrar taxas menores.51 O sistema nanceiro dos Estados Unidos foi hábil ao imaginar maneiras de explorar os americanos pobres, mas não soube imaginar maneiras de servi-los bem. Em Botswana, um dos países de maior êxito na África, eu vi como os bancos chegam às aldeias mais pobres para propiciar serviços nanceiros básicos a pessoas cuja renda é apenas uma fração da dos americanos mais pobres. (A renda per capita de Botswana é de apenas 13604 dólares.)52 Mas nos setores pobres dos Estados Unidos, as pessoas têm de recorrer a serviços de recebimento de cheques para trocá-los por dinheiro, pagando taxas de até 20% do valor do cheque.53 Trata- -se de uma atividade nanceira de vulto — outra maneira de explorar os pobres.54 A agrante ganância dos mercados nanceiros dos Estados Unidos é ainda mais evidente na pressão política exercida para a manutenção do programa de crédito para o estudante universitário. Esse é outro exemplo de parceria público-privada em que o governo ca com o risco e o setor privado, com o lucro. O governo assegura os empréstimos aos estudantes para que não haja riscos, mas os originadores dos empréstimos podem cobrar taxas de juros como se houvesse risco de inadimplência. Com efeito, o custo para o governo por usar o setor privado como parceiro em vez de fazer o empréstimo ele próprio é estimado em 80 bilhões de dólares para um período de dez anos: um magnânimo presente à indústria nanceira.55 Dar dinheiro dessa maneira é um convite à corrupção — e foi exatamente isso que aconteceu. O emprestador vai ao serviço de admissão da escola e o suborna para que ele dê preferência ao seu programa de empréstimo. Mesmo universidades prestigiosas, como a Columbia, não escaparam da corrupção.56 Mas a corrupção teve início no processo político que estabeleceu o programa e permite que ele prossiga.  

  fazer funcionar as regulaes

  O setor nanceiro precisa ser regulado, mas uma regulação efetiva requer reguladores que acreditem nela, e eles devem ser escolhidos dentre os que podem sofrer com a falta de regulação e não dentre os que se bene ciariam dela.57 Felizmente há um grande número de peritos nanceiros nos sindicatos, nas organizações não governamentais e nas universidades. Não é preciso ir a Wall Street para encontrar um perito. Vimos na discussão sobre derivativos que, ainda que os banqueiros estivessem vencendo as batalhas do momento, queriam ter a certeza de que guras como Brooksley Born nunca teriam in uência: tomaram para si a autoridade de regular. Temos que imaginar as pressões que um regulador sofre para não regular. Assim, podemos imaginar também o risco de escolher um outro Greenspan, que não acredita em regulação. Temos que “amarrar” bem o sistema com regulações transparentes, que não deem margem a que não sejam implementadas. Certo grau de reprodução chega a ser desejável, como por exemplo na área da competição.58 Os custos de um erro são milhares de vezes maiores do que o custo adicional da scalização. Também é claro que, para que tenhamos um sistema regulatório que funcione, necessitaremos de uma multiplicidade de reguladores: os que são peritos nos diversos mercados (mercado de seguros, mercado de títulos e ações, bancos); os que acompanham a estabilidade global do sistema nanceiro; e os que controlam a segurança dos produtos que o sistema vende. A formulação da futura estrutura regulatória é, obviamente, matéria controversa, embora o debate tenha sido dominado por guerras de posição. A proposta mais estranha feita pelo governo Obama foi a de dar ao Banco Central — que trabalhou tão mal no caminho que levou à crise — ainda mais poder. Mais um paliativo, com base na premissa da recompensa à incompetência: os bancos tiveram um “probleminha” — pois lhe daremos mais dinheiro para que possam fazer o que quiserem, ainda que não

tenham usado bem o dinheiro que tinham. O Fed teve um probleminha — pois lhe daremos mais poder, ainda que não tenha usado bem o poder que tinha.     alm das finanas e da regulao financeira

  Neste capítulo e no anterior, descrevi a in nidade de aspectos em que o sistema nanceiro errou, comportou-se mal e conseguiu prevalecer. Relatei a ladainha de problemas do sistema nanceiro, em parte por seu caráter tão amplo e intrigante. Mas os problemas da economia, assim como as falhas do sistema regulatório, vão além do setor nanceiro. Já mencionei as falhas na formulação e na implementação da política de competição e na governança das corporações, mas houve também outras falhas. Em 2005, o Congresso aprovou a Lei de Prevenção ao Abuso de Falência e Proteção ao Consumidor. Os bancos se haviam empenhado fortemente em favor da lei porque esta lhes dava novos poderes para extorquir dinheiro dos tomadores de empréstimos. Os bancos argumentavam em favor de salvamentos com fundos públicos para eles próprios, mas argumentavam contra qualquer alívio para os pobres. Desprezavam as preocupações a respeito do risco moral com relação a eles próprios, mas a rmavam que qualquer perdão para os indivíduos comuns que foram seduzidos a incorrer em dívidas seria um incentivo negativo. Sim, mas os efeitos se zeram sentir na má qualidade da avaliação de crédito feita pelos bancos. Cobertos pelas novas leis de falência, os bancos sentiram que podiam fazer empréstimos a qualquer um. Um banco famoso, que agora está na uti governamental, dizia na sua propaganda dirigida aos clientes potenciais: “Aprovado ao nascer”. Todos os adolescentes eram inundados com ofertas de cartões de crédito. Muitas famílias assumiram dívidas enormes e, em um ciclo que fazia lembrar a escravidão por dívida, trabalhavam para pagar o banco. Parcelas cada vez maiores das suas rendas iam para o pagamento de

taxas, de penalidades, de taxas de juros exorbitantes, de juros sobre as taxas de juros, praticamente sem chances de reabilitação. Os nancistas teriam gostado de voltar aos dias de Oliver Twist e ver os devedores na prisão, mas a lei de 2005 foi o melhor que conseguiram obter naquelas circunstâncias. A quarta parte do salário de uma pessoa podia ser retida para pagamentos. A nova lei também encorajava os emprestadores a aprovar hipotecas ainda piores, o que pode explicar em parte por que tantas hipotecas tóxicas foram assinadas depois da passagem da lei. Uma nova lei de falências que guardasse melhor proporção com os valores americanos tradicionais não só teria dispositivos que propiciassem a reabilitação das famílias pressionadas, como também aumentassem a e ciência do mercado e induzissem os bancos a melhorar os critérios de avaliação de crédito. Os bancos advertem que a revogação da lei de 2005 poderia causar o aumento das taxas de juros. Se assim for, tanto melhor. Os americanos tomaram demasiados empréstimos, com grandes custos para a sociedade e para o mundo inteiro. Um incentivo à poupança viria muito bem. O sistema de impostos também foi uma das causas da situação atual. Diz-se que os sistemas tributários re etem os valores de uma sociedade. Um dos aspectos estranhos do sistema tributário americano é o fato de tratar melhor especuladores e apostadores do que pessoas que dão duro para sobreviver. Os impostos sobre os lucros do capital são muito mais baixos que os incidentes sobre o trabalho. Não há nenhuma boa justi cativa econômica para isso. É certo que a sociedade pode querer estimular alguns tipos de investimentos de risco por causa dos benefícios amplos que podem trazer. Pode, por exemplo, tratar de encorajar inovações que abram novos caminhos, sobretudo em áreas de interesse público, como a mudança do clima ou a saúde. Nesses casos, o governo deve lançar impostos baixos sobre os resultados desses investimentos (de todo tipo — sejam acréscimos de capital, sejam lucros). Mas a especulação imobiliária certamente não é uma das categorias de investimento que a sociedade queira favorecer com um tratamento preferencial.

    inovaes

  Os críticos de um novo e mais duro regime regulatório dizem que este sufocaria as inovações. Mas, como se vê, grande parte das inovações do sistema nanceiro foi introduzida para contornar padrões de contabilidade destinados a assegurar a transparência do sistema nanceiro, ou regulações destinadas a garantir a estabilidade e a justiça do sistema nanceiro, ou ainda leis que buscam assegurar que todos os cidadãos paguem seus impostos e que estes sejam justos. Ao mesmo tempo, o sistema nanceiro não só não foi capaz de produzir inovações que ofereçam melhores condições para que o cidadão comum possa administrar os riscos que enfrentam, como ofereceu resistência às inovações que promovem o bemestar social. Quando eu fazia parte do Conselho de Assessores Econômicos do gabinete do presidente Clinton, insisti, por exemplo, na introdução de títulos indexados pela in ação. Os que estão poupando para sua aposentadoria dentro de trinta ou quarenta anos se preocupam com a in ação, e com razão. Agora a in ação é baixa, mas já houve períodos de in ação alta, e muita gente tem como certo um novo período assim. As pessoas gostariam de fazer um seguro contra esse risco, mas o mercado não oferece esse produto. O Conselho propôs que o governo vendesse títulos indexados à in ação, proporcionando assim um seguro de longo prazo contra a in ação. O governo tem a responsabilidade de manter a estabilidade dos preços em níveis razoáveis. Se não consegue realizar esse objetivo, deve sofrer pelas consequências. Alguns operadores de Wall Street se opuseram a essa iniciativa por achar que as pessoas que comprassem esses títulos indexados acabariam cando com eles até a aposentadoria. Eu pensava que isso era uma coisa boa: para que car gastando dinheiro com custos de transação associados a sucessivas compras e vendas? Mas não era bom para Wall Street, que se preocupa em

maximizar seus rendimentos inclusive maximizando os custos das transações. Em outro exemplo, a Argentina, depois da crise nanceira, não sabia quanto poderia oferecer em pagamento aos credores pelo que devia, e então propôs uma inovação interessante. Em vez de tentar pagar mais do que podia, o que levaria a uma nova crise em alguns anos, propôs um título indexado ao pib. O título pagaria mais se e quando a renda da Argentina aumentasse e o país recuperasse a capacidade de pagamento. Assim, os interesses dos credores estariam alinhados com os da Argentina e ambos os lados trabalhariam a favor do crescimento do país. Novamente Wall Street ofereceu resistência a esse título indexado ao pib.59 Um sistema nanceiro mais bem regulado seria mais inovador em aspectos que interessam — em que as energias criativas dos mercados nanceiros estariam dirigidas a fomentar a competição na invenção de produtos que promovem o bem-estar da maioria dos cidadãos. Poderia desenvolver o sistema de pagamentos eletrônicos e ciente que descrevi neste mesmo capítulo, ou o sistema melhorado de hipotecas, que descrevi no capítulo 4. Criar um sistema nanceiro que ajude a boa execução das tarefas que constituem a essência do que um sistema nanceiro deve produzir é um passo importante no processo de reestruturação da economia. Esta crise pode ser um ponto de in exão — e não só para o setor nanceiro, mas para todo o restante da economia. Até aqui, não zemos um bom trabalho quanto à reestruturação do sistema nanceiro e à reformulação da estrutura regulatória que preside à operação do sistema nanceiro. Nosso país não prosperará se regressarmos ao sistema nanceiro que existia antes da crise. Mas esse é apenas um dos múltiplos desa os que o país enfrenta no mundo pós-crise. O próximo capítulo discute o que precisa ser feito — e como a crise oferece muitas lições que podem nos ajudar a fazer o que precisa ser feito.

. A nova ordem capitalista

7

No outono de 2008, a economia global (ou pelo menos seus so sticados mercados nanceiros) estava à beira de uma catástrofe total. Entrara em queda livre. Tendo já visto tantas outras crises, eu estava seguro de que essa sensação de queda livre logo seria superada. Ela acontece em todas as crises. Mas e então? Não podemos nem devemos retornar ao mundo como era antes. Muitos empregos que se estavam perdendo não reapareceriam. A classe média americana estava passando por um mau pedaço antes da crise. O que lhe aconteceria depois dela? A crise desviou a atenção dos Estados Unidos e da maior parte do mundo dos problemas de mais longo prazo que terão de ser resolvidos. A lista é conhecida: sistema de saúde, energia e meio ambiente, especialmente alteração climática, educação, envelhecimento da população, declínio da indústria, disfunção do setor nanceiro, desequilíbrios globais, os dé cits comercial e scal dos Estados Unidos. Durante a luta da nação com a crise imediata, esses outros problemas não desapareceram. Alguns até pioraram. Mas os recursos necessários para resolvê-los podem ter se reduzido substancialmente em consequência dos erros que o governo cometeu ao enfrentar a crise — em particular pelo dinheiro desperdiçado com os resgates para salvar o sistema nanceiro. A relação dívida-pib dos Estados Unidos cresceu de 35% no ano 2000 para quase 60% em 2009. E como até mesmo as projeções otimistas do governo Obama preveem mais 9 trilhões

de dólares em dívidas na próxima década, essa relação subirá para 70% em 2019.1 A reestruturação da economia não acontecerá por si só. O governo terá de desempenhar um papel central. E esse é o segundo maior conjunto das mudanças que estão pela frente. A crise nanceira mostrou que os mercados nanceiros não funcionam automaticamente bem e não têm capacidade de se autocorrigir. Mas a lição é ainda mais ampla e vai além dos mercados nanceiros. Há um papel importante para o governo. A “revolução” de Reagan e atcher denegriu esse papel. O equivocado propósito de reduzir o papel do Estado resultou em que o governo precisou assumir um papel mais proeminente do que qualquer um poderia ter previsto, mesmo na época do New Deal. Teremos, agora, de reconstituir a sociedade com um melhor equilíbrio entre o papel do governo e o papel do mercado. Um maior equilíbrio pode levar a uma economia mais e ciente e mais estável. Neste capítulo, exponho esses programas de ação análogos e relacionados: o que precisa ser feito para restaurar o equilíbrio entre o governo e o mercado e para reestruturar a economia — inclusive o papel do governo nessa reestruturação. Para que tenhamos êxito em transformar os Estados Unidos, precisamos ter uma visão mais clara do lugar para onde queremos ir e uma visão mais clara do papel do Estado. Os problemas que o país enfrenta são similares aos que enfrentam muitas outras economias dos países industrialmente desenvolvidos. Muitos deles se saíram um pouco melhor na questão do salvamento dos seus bancos, mas também enfrentam um forte aumento na relação dívida-pib, derivada das tentativas (muitas vezes bem-sucedidas) de estimular suas economias. Para alguns desses países, os problemas associados ao envelhecimento populacional são mais graves. Para a maior parte, os problemas do sistema de saúde são menos graves. Já com relação à difícil tarefa de lutar com os problemas da alteração do clima, nenhum terá vida fácil. E praticamente todos enfrentarão grandes desa os na reestruturação das suas economias.  

  a necessidade de reestruturar a economia uma avaliação honesta das perspectivas

  Os Estados Unidos provavelmente continuarão a ser a maior economia do mundo nos anos vindouros, mas não é certo que o padrão de vida dos americanos continue a crescer como aconteceu, por exemplo, nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.2 Muitos americanos estavam vivendo no mundo da fantasia do crédito fácil, e esse mundo acabou. Não vai voltar e não deve voltar. Esses cidadãos e o país como um todo sofrerão uma queda no padrão de vida. Não era só o país que vinha vivendo acima das suas posses. Muitas famílias também o faziam. A bolha escondia o fato de que a situação da economia da nação não era tão boa como podia ou deveria ser. Concentrar o foco no pib traz desorientação — como explicarei no capítulo 10. Para muitos grupos, as perspectivas econômicas do futuro já são débeis: a mediana da renda dos homens adultos na faixa dos trinta anos de idade hoje é menor do que há três décadas.3 A maior parte dos americanos viu a estagnação da renda na última década. Nos primeiros anos deste decênio, muitos viram seus rendimentos estagnar-se ou declinar e, no entanto, continuaram a consumir como se zessem parte do sonho americano. Com a bolha imobiliária, eles puderam aumentar o consumo agora e fazer de conta que podiam ter con ança no futuro, com uma aposentadoria confortável e garantindo para as crianças a educação que lhes propiciaria uma prosperidade ainda maior. Mas com o rompimento da bolha, esses sonhos terminaram e, ao mesmo tempo, os americanos se viram enfrentando uma insegurança maior, quanto à renda e quanto à saúde (cerca de 15% não têm nenhum seguro de saúde4). Outros indicadores apontavam que as coisas não iam bem: em 2007 os Estados Unidos eram o país com a maior parcela da sua população nas prisões — dez vezes mais do que muitos países da Europa.5

Muitos outros problemas persistem. O aquecimento global requer o retroajustamento da economia, o que consumirá enormes investimentos. Agora a nação precisa compensar o tempo perdido nos anos de Bush. A infraestrutura decaiu — o que cou evidente com o colapso das represas em Nova Orleans e da ponte em Minnesota. E se por um lado os Estados Unidos têm um sistema universitário de primeira linha — o melhor do mundo —, o desempenho médio dos alunos dos ensinos fundamental e médio ca abaixo da média: os resultados obtidos pelos estudantes americanos em ciências e em matemática são mais baixos que a média dos principais países industrializados.6 A consequência é que muitos trabalhadores não estão bem preparados para enfrentar os desa os da competição global do século xxi. A economia dos Estados Unidos tem de ser reestruturada em muitos sentidos que ainda não estão totalmente claros. O que está claro é que isso consumirá recursos e gastos públicos. Alguns setores grandes demais (como os setores nanceiro e imobiliário) ou fracos demais (como a indústria manufatureira) terão de transferir recursos para outros que apresentam melhores perspectivas de crescimento sustentável.   Algo não está bem: mais do que uma crise nanceira   Como mostrei em outros capítulos, os americanos têm vivido às custas de sucessivas bolhas há anos. Além disso, ocorreram gigantescos desequilíbrios generalizados: o governo dos Estados Unidos tomou emprestada de outros países uma soma equivalente a 6% do pib, numa época em que deveria estar guardando dinheiro para o surto da aposentadoria da geração que nasceu após a guerra, que deve ocorrer nos próximos anos.7 O resto do mundo gostaria muito de seguir o exemplo americano, mas se conseguisse fazê-lo plenamente, o planeta não sobreviveria. O estilo de consumo não era sustentável do ponto de vista ambiental, contudo os americanos continuaram a comprar carros que consumiam cada vez mais

gasolina — e a lucratividade de toda a indústria automobilística se baseava na premissa de que os americanos continuariam a fazer isso para sempre. Grande parte do restante da economia, inclusive alguns dos seus setores mais bem-sucedidos, também estavam baseados em alicerces insustentáveis. Um dos setores mais lucrativos da economia era o da energia, carvão e petróleo, que lançava gases de efeito estufa na atmosfera, mesmo diante das provas incontestáveis de que isso estava causando uma gigantesca alteração climática.8 Parte fundamental da reestruturação da economia implica a transição de atividades manufatureiras para uma economia de serviços. No começo dos anos 1990, houve um debate sobre a qualidade dos empregos gerados pelo novo setor de serviços. O país estaria convertendo seus trabalhadores especializados da indústria manufatureira em viradores de hambúrguer? O exame atento dos dados revelava que grande parcela dos empregos do setor de serviços era de boa qualidade e pagava bons salários; e que muitos desses empregos bem-remunerados estavam no setor nanceiro — que se destinava a ser a nova base da economia americana. Mas isso nos levava à questão de saber como uma atividade que é um meio e não um m pode tornar-se a parte central de uma nova economia. Nós deveríamos ter re etido sobre o fato de que as proporções agigantadas do setor nanceiro — nos anos anteriores à crise, 40% dos lucros das corporações se localizavam nesse setor — indicavam que algo não ia bem.9   Os Estados Unidos no contexto global   Nossa visão a respeito do progresso futuro dos Estados Unidos deve estar articulada a uma visão global. Esta recessão global nos fez duramente conscientes das nossas interligações. O mundo atual se vê diante de pelo menos seis desa os econômicos cruciais, alguns dos quais também estão interligados. A profundidade e a persistência desses desa os é um anúncio das di culdades que nosso sistema econômico e político encontrará no encaminhamento dos problemas na escala global. O fato é que não

dispomos de instituições que efetivamente nos ajudem a identi car os problemas e formular as equações que levem à sua resolução. E menos ainda para tomar as medidas práticas necessárias. O problema mais drástico é o desequilíbrio entre a oferta e a procura no nível global. A capacidade produtiva do mundo está sendo subutilizada, ao mesmo tempo que persistem enormes necessidades que não estão sendo atendidas. O caso mais sério de subutilização é o dos recursos humanos — que se soma ao problema imediato dos 240 milhões de desempregados que a recessão espalhou pelo mundo. Bilhões de pessoas não têm a formação necessária para usar plenamente seu potencial humano — e quando a têm, não conseguem usar todos os seus recursos.10 Ter um trabalho decente é um aspecto importante da autoestima dos indivíduos e não tê-lo causa uma perda social bem maior do que a queda na produção. O maior desa o ambiental é, evidentemente, a mudança do clima. Recursos ambientais escassos são tratados como se fossem livremente disponíveis. Em consequência disso, todos os preços estão distorcidos, ou muito distorcidos. Em capítulos anteriores, vimos como a distorção dos preços imobiliários provocou uma distorção da economia. A crise revelou o efeito traumático da “correção” dos preços das residências — mais traumático ainda por causa do grande retardamento até que ocorresse de fato. A distorção dos preços na área do meio ambiente é de igual grandeza. Ela levou ao uso insustentável de recursos-chave. A correção é imperativa, e demorar a fazê-la a tornará ainda mais difícil. O que tem sido chamado de desequilíbrios globais também apresenta problemas para a estabilidade global. Uma parte do mundo vive bem além das suas posses; e a outra parte produz bem além da sua capacidade de consumir. As duas partes dançam um tango. O fato de alguns países consumirem mais, e outros menos, do que seus respectivos níveis de renda pode não ser particularmente preocupante: faz parte da economia de mercado. O preocupante, como já notamos no capítulo 1, é que, com o volume que os Estados Unidos vem tomando emprestado do resto do mundo — mais de 800 bilhões de dólares só em 2006 —, sua capacidade de

endividamento não é sustentável. Pode ocorrer um desenvolvimento desordenado desses desequilíbrios, com repercussões possivelmente grandes e avassaladoras sobre as taxas de câmbio.11 O que aconteceu nesta crise foi sem dúvida desordenado, e os desequilíbrios persistem. Especialmente problemático é o fato, já notado aqui, de que os Estados Unidos deveriam estar poupando para a aposentadoria da geração nascida depois da guerra, e não contraindo mais empréstimos. O G-20 propôs uma reação macroeconômica coordenada — os Estados Unidos aumentam a sua poupança e a China reduz a dela —, de modo que os desequilíbrios diminuam sem causar o enfraquecimento da economia global. É uma nobre aspiração, mas as políticas desses países provavelmente continuarão a ser ditadas por suas respectivas agendas internas. Para os Estados Unidos parece ser mais fácil diminuir o consumo rapidamente do que para a China aumentá-lo. É o que na verdade parece estar acontecendo, embora em 2009 o rápido aumento da poupança familiar tenha sido neutralizado por um aumento ainda mais rápido do endividamento público.12 Isso enfraqueceria a demanda global agregada — o que torna ainda mais difícil uma recuperação global sólida. A longo prazo, com tantos países fazendo tantos empréstimos para nanciar seus programas de recuperação, existe o risco de um aumento importante nas taxas de juros. Alguns países superendividados e com capacidade limitada de aumentar impostos podem enfrentar uma situação nanceira crítica. Mesmo os países que não enfrentem crises terão de fazer escolhas difíceis. Vejamos os Estados Unidos, cuja dívida nacional logo estará se aproximando dos 70% do pib. Mesmo com uma taxa de juros moderada, de 5% ao ano, o serviço dessa dívida consumirá 3,5% do pib, o que corresponde a cerca de 29% da receita do governo. Os impostos terão de ser aumentados e/ou os outros gastos terão de ser cortados. Em geral, o fator que mais sofre nessas situações é o investimento — o que leva a uma produção menor no futuro. Por outro lado, as taxas de juros mais altas ajudarão os países que têm poupança alta. Vejamos a China, que tem reservas hoje superiores a 2

trilhões de dólares. Com juros de 5%, só isso lhe gerará 100 bilhões de dólares de renda anual. Se considerarmos o uxo de pagamentos dos Estados Unidos para a China, com juros a 1%, os Estados Unidos transferem para a China apenas 15 bilhões de dólares por ano. Com juros de 5%, o país terá de mandar todo ano um cheque de 75 bilhões de dólares para Pequim, só para pagar os juros do 1,5 trilhão de bônus americanos que os chineses detêm. Com o colapso dos investimentos devido à crise, é natural pensar que ocorrerá um excesso de poupança. No conceito tradicional, a poupança é uma virtude, e eu creio que continue a sê-lo. É por isso que o encorajamento do G-20 ao consumo me parece mal orientado.13 É claro que esperamos que os cidadãos dos países em desenvolvimento possam aumentar seu padrão de vida e que isso provocará um aumento do consumo, mais serviços de saúde, mais educação e assim por diante. Mas o mundo enfrenta enormes necessidades econômicas: como comentei antes, a economia precisa ser reorganizada por causa dos desa os trazidos pelo aquecimento global. Cerca de 40% da população mundial ainda vive com menos de dois dólares por dia, e há uma necessidade imperiosa de investimentos para aumentar as oportunidades que lhe são abertas. O problema é de caráter nanceiro: reciclar a poupança para esses lugares onde é mais necessária. O quarto desa o é o que eu denomino dilema manufatureiro. A indústria manufatureira representou durante longo tempo o auge de um estágio particular de desenvolvimento, o modo pelo qual os países em desenvolvimento poderiam superar as sociedades agrárias tradicionais. Os salários nesse setor têm sido tradicionalmente mais altos e proporcionaram a espinha dorsal da formação das sociedades de classe média do século xx na Europa e na América do Norte. Nas últimas décadas, os êxitos do aumento da produtividade signi caram que, mesmo que o setor continue crescendo, o emprego diminui — e esse padrão deve permanecer. O quinto desa o é o da desigualdade. A globalização trouxe efeitos complexos sobre a distribuição da renda e da riqueza em todo o mundo. A

China e a Índia têm logrado diminuir as diferenças com os países industrialmente avançados. Por 25 anos, a desigualdade com a África vinha crescendo — mas recentemente, a demanda chinesa de produtos de base ajudou a África (e também a América Latina) a crescer a níveis inéditos de 7% ao ano. Esta crise pôs m a esse curto período de relativa prosperidade. E mesmo nesse curto período de relativa prosperidade a pobreza extrema continuou a ser um problema: o futuro dos mais pobres em todo o mundo é terrivelmente diferente do dos mais ricos em quase todos os sentidos que podemos imaginar. Eles são quase 1 bilhão de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia. A desigualdade cresce na maior parte dos países do mundo e a globalização é um dos fatores que favorecem esse padrão geral.14 Não se trata apenas de uma preocupação humanitária, já que foi um dos motivos da recessão econômica atual: a desigualdade crescente contribui para o problema da escassez da demanda global agregada — o dinheiro sai das mãos de quem o gasta para as de quem tem mais do que precisa. O último desa o é a estabilidade. A instabilidade nanceira crescente se tornou um problema cada vez maior. Apesar do suposto aperfeiçoamento das instituições nanceiras mundiais e de um conhecimento superior da gestão econômica, as crises da economia têm sido maiores e mais frequentes. Há fortes interações entre esses vários elementos — uns problemas exacerbam outros e as estratégias destinadas a resolver alguns podem ao mesmo tempo reduzir o impacto de programas destinados a resolver outros. Por exemplo, o crescente desemprego que resulta da crise nanceira exerce uma pressão negativa sobre os salários em todo o mundo, e os menos especializados são os com maior chance de perder seus postos de trabalho. Nos Estados Unidos, a riqueza da metade mais pobre consiste principalmente nas suas casas — e essa riqueza foi devastada. Uma das razões dos desequilíbrios globais é a alta demanda de reservas por parte de muitos países em desenvolvimento, em consequência da crise no Extremo Oriente. O impacto que essa crise impôs aos países em desenvolvimento foi

de tal ordem que estes provavelmente desejarão aumentar ainda mais suas reservas, exacerbando assim o problema dos desequilíbrios globais. Os dois fatores juntos — desigualdade crescente e maior demanda de reservas — podem aumentar o problema da insu ciência da demanda global agregada e enfraquecer a economia mundial. Uma visão mais ampla e de mais longo prazo — que possa concentrar o foco na situação dos pobres e no aquecimento global — permitirá que haja uma demanda mais do que su ciente para absorver toda a capacidade produtiva do mundo.15 O aumento do consumo dos pobres (inclusive na China) e um menor consumo dos ricos (especialmente nos Estados Unidos) reduzirão a escala dos desequilíbrios globais. Alcançar essa nova visão irá requerer um novo modelo econômico. A sustentabilidade irá requerer menos ênfase em bens materiais para os que consomem demais e uma mudança em direção a atividades inovadoras. No nível global, uma parcela exagerada das inovações se dirigiu à redução do emprego e uma parcela muito pequena focalizou a redução do uso dos recursos naturais e a proteção do meio ambiente — o que não é surpresa, uma vez que os preços não re etem a escassez desses recursos naturais. O aumento da produtividade através da redução dos empregos teve tanto êxito que o desemprego persistente se tornou um problema mundial. Mas o êxito dos esforços de redução da pressão sobre os recursos naturais foi tão exíguo que estamos enfrentando o risco do colapso ambiental.   Os desa os de longo prazo dos Estados Unidos   Os problemas que o mundo enfrenta também espreitam os americanos, mas nos Estados Unidos alguns são particularmente agudos: o país não só se vê diante do “dilema manufatureiro” geral — o problema causado pelo êxito do aumento da produtividade —, mas também diante do problema mais especí co da terceirização no exterior (offshoring) — o deslocamento da produção dos Estados Unidos para a China e outros países, que re ete a alteração das vantagens comparativas. O ajustamento a essas alterações

estruturais da economia não será fácil. Muitas vezes é mais fácil perder empregos em áreas em que perdemos a competitividade do que criar empregos em novas áreas, como acontece em tantos países em desenvolvimento que enfrentam os desa os da globalização. Sem um setor nanceiro sólido é especialmente difícil desenvolver o nanciamento das pequenas e médias empresas e de rmas novas — que são a principal fonte da criação de empregos. E hoje os Estados Unidos enfrentam uma di culdade adicional: a reestruturação irá requerer que as pessoas passem a residir em outros lugares. Mas muitos americanos perderam uma alta parcela do valor líquido das suas casas — e uma quantidade signi cativa deles perdeu tudo. Se venderem a casa que têm, não terão dinheiro nem para dar a entrada em uma casa nova que chegue sequer perto das dimensões da anterior. A mobilidade, uma das marcas do êxito da sociedade americana, está em processo de redução. Os Estados Unidos, como grande parte do resto do mundo, sofrem de uma crescente desigualdade de renda, que no nosso país alcançou níveis nunca vistos nos últimos 75 anos.16 O país também precisa adaptar-se ao problema do aquecimento global, mas até há pouco tempo ainda era o maior emissor de gases de efeito estufa, tanto em termos absolutos quanto per capita. Assim, a redução das emissões exigirá, para nós, ajustes mais profundos.17 Os Estados Unidos têm, além disso, dois outros desa os. O primeiro é causado pelo envelhecimento da população, o que signi ca que os americanos deveriam estar poupando para a aposentadoria em vez de car gastando além dos próprios meios. Os Estados Unidos também encaram uma série de problemas setoriais: grandes faixas de atividade manufatureira estão em ruínas. Um dos setores de maior êxito aparente, o nanceiro, sofria de inchaço e tinha por base premissas falsas. Boa parte de outro setor, o de energia, não é sustentável do ponto de vista ambiental. Mesmo quando esse setor entrou no mercado das energias renováveis, com o etanol, o fez de maneira tão distorcida pelo trabalho de lobby das corporações que não pôde competir com as pesquisas

de países de mercado emergente, como o Brasil. Para competir, o governo dos Estados Unidos combinou subsídios, que em alguns casos chegam a mais de um dólar por galão, com a aplicação de tarifas de mais de cinquenta centavos de dólar por galão sobre as exportações brasileiras de etanol à base de açúcar!18 A indústria de energia deveria manter o foco na conservação, em vez de fazer lobby para obter direitos de prospecção de petróleo submarino. O ine ciente setor de saúde pública dos Estados Unidos gasta mais para prestar serviços piores, em média, do que os sistemas de saúde de outros países industrialmente avançados. Em certos casos, a qualidade dos serviços de saúde nos Estados Unidos está no nível da de países do Terceiro Mundo — embora, para as classes altas, o país proporcione a melhor assistência de saúde do mundo.19 Os Estados Unidos têm um setor de educação ine ciente, cujo desempenho também se nivela ao de muitos países de mercado emergente — embora, também aqui, para os ricos, as universidades americanas não tenham rival.20 Ao pensarmos em uma visão de longo prazo para os Estados Unidos, é natural que um economista comece por se perguntar quais são as vantagens competitivas do país a longo prazo e como podem ser materializadas. Para mim, a vantagem competitiva do país a longo prazo está em suas instituições de ensino superior e nos avanços tecnológicos que derivam das vantagens propiciadas por essas instituições. Nenhum outro setor da economia pôde desenvolver uma participação global tão expressiva quanto o das universidades americanas na formação de líderes de todo o mundo e na atração que exerce sobre os melhores talentos do planeta, muitos dos quais preferem car no país e aqui residir. Nenhuma das principais universidades americanas — as que nos propiciam a vantagem competitiva — opera com ns lucrativos, o que sugere que a con ança que se deposita nas organizações que têm por objetivo o lucro pode estar fora de sintonia. Mas a educação superior por si só não pode resolver a questão da estratégia econômica do país. Temos de encontrar os meios de criar

empregos bem-remunerados para a classe média, que sempre foi a espinha dorsal do país e que agora está desaparecendo com o enfraquecimento da sua base industrial. Outros países, como a Alemanha, lograram criar um setor competitivo de alta tecnologia industrial e manufatureira, com base em um forte programa de treinamento. Talvez essa seja a direção em que os americanos deveriam estar pensando. As pessoas razoáveis podem divergir com relação às respostas a essas perguntas, mas no ambiente de pânico em que teve de reagir à crise, os Estados Unidos cometeram um erro. Antes de jogar tanto dinheiro em “políticas industriais” (políticas governamentais que dão forma à estrutura da economia), mais do que qualquer outro país já fez — como aconteceu com os salvamentos da indústria automobilística e do setor nanceiro —, essas perguntas deveriam ter sido formuladas e respondidas. A magnitude da tarefa que está pela frente é enorme: os setores que estão combalidos — ou que fazem os americanos car combalidos — e que precisam urgentemente de reestruturação ( nanças, manufaturas, energia, educação, saúde, transporte) representam mais de 50% da economia. O resto do país não pode simplesmente repousar sobre os louros do setor de alta tecnologia e da educação superior e dos estabelecimentos de pesquisa.   Maus começos   A maioria desses desa os já está nas agendas dos Estados Unidos e do mundo inteiro. Algumas das tentativas de resolvê-los — inclusive durante esta recessão — foram, contudo, mal concebidas. Já discutimos uma — em vez de reduzir as dimensões do setor nanceiro de modo a aumentar sua capacidade de atender às necessidades da sociedade, o governo deu dinheiro aos que causaram os problemas. O mercado nanceiro também tratou de persuadir o governo a adotar uma solução falsa para o problema dos idosos: a privatização da seguridade social. Além de já extrair para si 1% ao ano, ou mais, do dinheiro que administra, o mercado vê na privatização uma nova fonte de taxas e novas

oportunidades de enriquecimento às custas dos idosos. No Reino Unido, um estudo sobre o impacto da privatização parcial das pensões públicas no país revelou que as pensões perderiam 40% do valor em consequência dos custos das transações.21 O setor nanceiro quer maximizar esses custos de transações, e o bem-estar dos aposentados requer que sejam minimizados. Hoje, a maioria dos americanos dá graças a Deus por ter sido rejeitada a iniciativa do presidente Bush de fazer a privatização parcial da seguridade social. Caso contrário, o cenário para os americanos idosos seria ainda pior. Os Estados Unidos sempre pregaram o evangelho da globalização e da competição global. A análise econômica elementar explicava o sentido disso: os Estados Unidos tinham de especializar- -se em suas vantagens comparativas; nas áreas que re etem sua força relativa. Em muitas áreas, a China vem ganhando a competição com os Estados Unidos, e não só por causa dos salários baixos dos seus trabalhadores não especializados: há muitos outros países em que os salários dos trabalhadores não especializados são ainda mais baixos. A China combina poupança alta, uma força de trabalho cada vez mais instruída (o número de pessoas formadas em todos os níveis da educação superior na China multiplicou-se aproximadamente por quatro entre 2002 e 2008, enquanto o número total de estudantes multiplicou-se por cinco)22 e grandes investimentos em infraestrutura, com uma produção de custos baixos e logística moderna para garantir a entrega de quantidades gigantescas de bens materiais desejados pelos consumidores americanos. Por mais difícil que seja para maioria dos americanos, é preciso admitir que, em muitas áreas, inclusive áreas-chave da “velha” economia, como a indústria do aço e a indústria automobilística, os Estados Unidos já não são o líder tecnológico; já não são o produtor mais e ciente; já não são os que sabem fazer os melhores produtos. Os Estados Unidos já não têm a vantagem comparativa em muitas áreas da indústria manufatureira. As vantagens comparativas de um país podem mudar. O que importa é a vantagem comparativa dinâmica. Os países do Extremo Oriente compreenderam esse processo. Há quarenta anos, a vantagem comparativa da Coreia não estava na produção de chips

ou carros, mas sim na de arroz. O governo coreano decidiu investir em educação e tecnologia para transformar sua vantagem comparativa e aumentar o padrão de vida do seu povo. Teve êxito, e pôde assim transformar sua sociedade e sua economia. A experiência da Coreia e de outros países de êxito propicia lições e indagações aos Estados Unidos: qual deve ser a vantagem comparativa dinâmica de longo prazo do país e como fazer para aproveitá-la?     o papel do estado

  A grande questão da economia global do século xxi é: qual deve ser o papel do Estado? Alcançar a reestruturação descrita antes neste capítulo requer que o governo amplie seu papel. Essas mudanças não têm ocorrido espontaneamente e não é provável que venham a ocorrer assim no futuro. Mas os mecanismos do mercado podem cumprir papel central na execução; por exemplo, na formação de uma nova economia verde. Com efeito, uma mudança simples — garantir que os preços re itam corretamente a escassez de recursos ambientais de longo prazo — ajudaria muitíssimo. Por azar, sobretudo nos Estados Unidos, muitos estereótipos têm entravado o debate sobre o papel que o Estado deve ter. Um aforismo comum, originado em omas Paine, diz que “o melhor governo é o menor governo”. A opinião usual nas campanhas eleitorais do Partido Republicano é de que a redução dos impostos cura todos os males da economia: quanto menor o imposto, maior o crescimento. No entanto, a Suécia tem uma das rendas per capita mais altas do mundo, e nos índices amplos de aferição do bem-estar social (como o índice do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) o país ultrapassa os Estados Unidos por larga margem.23 A expectativa de vida é de 80,5 anos, em comparação com os 77 anos nos Estados Unidos. Um ex-ministro da Fazenda da Suécia me explicou a base do êxito: “Nossos impostos são altos”.

Obviamente não foi apenas o fato de os impostos serem altos que levou diretamente aos altos níveis de aumento do padrão de vida. Mas a Suécia compreendeu que um país tem de viver de acordo com os meios de que dispõe. Se quiser ter bons níveis de saúde, educação, estradas e proteção social, será preciso pagar por esses serviços públicos, e isso requer impostos altos. É claro que um país precisa saber gastar bem o seu dinheiro, e isso é verdade tanto para o setor privado quanto para o público. O setor público da Suécia consegue gastar bem o seu dinheiro. O setor nanceiro privado dos Estados Unidos não soube fazê-lo. Um país precisa dar atenção aos incentivos e, em determinado período, o nível de impostos na Suécia pode ter sido alto demais e o seu sistema de apoio social, generoso demais, o que levou ao reajuste de ambos. Mas a Suécia descobriu que um bom sistema de proteção social pode ajudar os indivíduos a ajustar-se à mudança — e torná-los, assim, mais propensos a aceitá-la, assim como aceitar as forças que a originam, como a globalização. Os suecos conseguiram ter proteção social sem protecionismo, e aproveitaram a abertura da sua economia e da sua sociedade. A proteção social aperfeiçoada, em combinação com a boa educação e o retreinamento dos trabalhadores, deu mais exibilidade à economia e lhe permitiu se ajustar mais rapidamente aos choques, mantendo níveis mais altos de emprego. A conjugação de mais empregos com melhor proteção social fez também que os indivíduos se mantivessem mais dispostos a assumir riscos. Um “Estado de bem-estar social” bem organizado pôde ser a base de uma “sociedade inovadora”. Não é simplesmente inevitável que as coisas sempre se desenvolvam assim. Um “Estado babá” pode corroer os incentivos, inclusive os incentivos aos riscos e à inovação. Encontrar o ponto correto de equilíbrio não é fácil. Uma das razões do êxito dos países escandinavos é o fato de não terem se deixado levar por certas suposições ideológicas, como a de que o mercado é sempre e ciente e o governo é sempre ine ciente. Esta derrocada nanceira, com os fabulosos erros de alocação de recursos cometidos pelo setor privado, deveria ter curado a todos contra esses preconceitos. Contudo, como vimos no capítulo 5, o medo à “nacionalização” dos bancos

falidos pôs travas a certas intervenções do governo que teriam sido oportunas e efetivas, tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido — o que custou bilhões de dólares aos contribuintes, desnecessariamente. Nos Estados Unidos, palavras como socialismo, privatização e nacionalização trazem consigo uma carga emocional que di culta a clareza do pensamento. Herbert Simon, que ganhou o prêmio Nobel em 1978 por seu trabalho pioneiro no estudo do modo de atuação das rmas modernas, assinalou que as diferenças entre o capitalismo moderno e as empresas governamentais foram objeto de grandes exageros. Em ambos os casos, as pessoas trabalham para alguém mais. As estruturas de incentivo que podem ser usadas para motivar os gerentes e os trabalhadores são as mesmas. Para ele,   Em sua maior parte, os produtores são empregados e não proprietários das rmas. [...] Vistos na ótica da teoria [econômica] clássica, eles não têm nenhuma razão para maximizar os lucros das rmas, a não ser que possam ser controlados pelos proprietários. [...] Além disso, não há diferença, neste ponto, entre rmas com ns lucrativos, organizações sem ns lucrativos e órgãos burocráticos. Todos têm exatamente o mesmo problema de induzir seus empregados a trabalhar em prol dos objetivos organizacionais. Não há nenhuma razão, a priori, para pensar que é mais fácil (ou mais difícil) gerar essa motivação em organizações que buscam maximizar o lucro ou em outras com diferentes objetivos. A conclusão de que as organizações motivadas pelo lucro são mais e cientes do que outras não decorre, em uma economia organizacional, das premissas neoclássicas. Se isso for empiricamente verdadeiro, será necessário introduzir outros axiomas para explicá-lo.24

  No capítulo 1, comentei que o modelo do capitalismo do século xix não se aplica ao século xxi. A maior parte das grandes empresas não tem um proprietário único. Tem múltiplos acionistas. Hoje, a principal distinção está em que os que são proprietários em última análise (os “acionistas”) são, em alguns casos, cidadãos que operam através de diferentes agências públicas e, em outros, cidadãos que operam através de diversos intermediários nanceiros, como fundos de pensão e fundos mútuos, sobre os quais costumam ter pouco controle.25 Em ambos os casos, ocorrem problemas signi cativos de “agenciamento”, que derivam da separação entre a

propriedade e o controle: os que tomam as decisões nem sofrem as consequências dos erros nem colhem os proveitos do êxito. Há exemplos de rmas e cientes e ine cientes tanto no setor público quanto no privado. As grandes usinas de aço da Coreia do Sul e de Taiwan, governamentais, são mais e cientes que as usinas americanas, privadas. Um dos setores em que os Estados Unidos ainda são os melhores é o da educação superior e, como já notei, todas as suas melhores universidades ou são estatais, ou não têm ns lucrativos.26 A crise atual fez o governo americano assumir papéis sem precedentes na economia. Muitos dos que tradicionalmente seriam os maiores críticos do ativismo governamental — e especialmente dos enormes empréstimos tomados pelo governo — caram silenciosos. Mas para outros, os gigantescos resgates de bancos feitos por Bush foram uma traição aos princípios do conservadorismo republicano. Para mim, pareceram apenas outra expansão (ainda que grande) do que já vinha acontecendo há mais de 25 anos: o estabelecimento de um Estado de bem-estar social destinado às corporações, que inclui a extensão e o fortalecimento da rede de proteção social às empresas, ao mesmo tempo que a proteção social para os indivíduos comuns, pelo menos em certas áreas, vai diminuindo. As tarifas (impostos sobre a importação de produtos) foram reduzidas nas últimas décadas, mas uma série de barreiras não tarifárias protegem as rmas dos Estados Unidos. Depois que os Estados Unidos prometeram reduzir os subsídios à agricultura, o presidente Bush os duplicou em 2002: a agricultura recebeu subsídios da ordem de bilhões de dólares a cada ano. Em 2006, 27 mil fazendeiros de algodão em boa situação econômica receberam um total de 2,4 bilhões de dólares através de um programa que violava o direito comercial internacional e que prejudicou milhões de fazendeiros pobres dos Estados da África, da América do Sul e da Índia.27 Outras atividades econômicas eram subsidiadas, algumas de forma limitada, outras maciçamente; algumas de maneira disfarçada, através do sistema de impostos, outras abertamente. Enquanto nós, nos Estados Unidos, tentávamos provar que não se deveria permitir que os países em

desenvolvimento subsidiassem suas indústrias nascentes, nossos próprios subsídios à indústria do etanol produzido a partir do milho, que existem desde 1978, eram justi cados com base no mesmo argumento da “indústria nascente” — apenas como ajuda temporária até que ela pudesse se tornar competitiva. Trata-se, contudo, de uma infância que parece não terminar nunca. Poderíamos pensar que a indústria petroleira, com os seus lucros aparentemente sem limites, não recorreria à ajuda do governo. Mas a ambição é que não tem limites, e o dinheiro compra in uência política, de modo que ela recebe grandes subsídios tributários. John McCain, o candidato republicano às eleições presidenciais de 2008, se referiu à primeira lei do governo Bush sobre energia como aquela que não deixou nenhum lobista para trás.28 A indústria de mineração também recebe bilhões de dólares em subsídios ocultos. As empresas extraem minérios de terras de propriedade governamental quase sem custo. Em 2008 e 2009, os setores automobilístico e nanceiro dos Estados Unidos se somaram à longa lista dos subsidiados. Muitas das entidades econômicas mais bem-sucedidas dos Estados Unidos também sentem a presença do governo. A Internet, onde está baseada boa parte da recente prosperidade, foi criada com nanciamento governamental — mesmo o navegador prototípico Mosaic foi nanciado pelo governo. O produto chegou ao mercado através da Netscape, mas a Microso usou seu poder monopolístico para esmagar a Netscape, em uma ação que tribunais de todas as partes do mundo consideraram um abuso agrante do poder monopolístico. Embora os subsídios dados ao longo dos anos para as corporações americanas estejam na faixa dos bilhões de dólares,29 esse total empalidece diante dos que foram dados recentemente ao setor nanceiro. Nos capítulos anteriores, discuti os grandes e repetidos resgates concedidos aos bancos, processo do qual a última onda é apenas a mais volumosa. Como previ quando os resgates tiveram início, isso se tornou uma das maiores

redistribuições de riqueza em um intervalo tão curto. (A privatização dos ativos governamentais da Rússia foi quase seguramente maior.) Adam Smith talvez não estivesse tão certo quando disse que o mercado, como se fosse uma mão invisível, nos leva pelo caminho do bem-estar da sociedade. Mas nenhum defensor de Adam Smith a rmaria que o simulacro de capitalismo em que se transformaram os Estados Unidos é e ciente, que é justo, ou que nos leva pelo caminho do bem-estar da sociedade.     então, o que é que o governo deveria estar fazendo?

  Nos últimos 35 anos, os economistas desenvolveram uma compreensão mais aguda das condições em que os mercados funcionam ou não funcionam bem. Um fator importante são os incentivos: quando o mercado propicia os incentivos certos? Quando as recompensas privadas cam em linha com o interesse público? E como o governo pode ajudar a alinhar esses dois elementos? Os primeiros seis capítulos deste livro contaram a história de como esses incentivos não tinham um bom alinhamento no que se refere ao mercado nanceiro. Os economistas elaboraram uma lista de situações em que os mercados falham — quando os incentivos sociais e os privados não estão bem alinhados — e que explicam grande parte dos insucessos mais importantes. A lista inclui monopólios, externalidades e imperfeições da informação. É irônico que no debate político atual a “esquerda” tenha tido de desenvolver um papel ativo no esforço de fazer que os mercados funcionem da maneira como se espera, através, por exemplo, da aprovação e implementação de legislação antitruste que assegure a competição; aprovação e implementação de legislação que assegure a divulgação de informações para que os participantes do mercado recebam pelo menos uma informação melhor; e aprovação e implementação de legislação sobre poluição e regulação do

setor nanceiro (do tipo discutido no capítulo 6), com o objetivo de limitar as consequências das externalidades. A “direita” a rma que a única coisa que precisa ser feita é garantir os direitos de propriedade e fazer valer os contratos. Ambas as coisas são necessárias, mas não su cientes — e provocam discussões sobre questões fundamentais, como, por exemplo, a de nição e o alcance apropriado que devem ter os direitos de propriedade. A propriedade não dá direitos absolutos para que o proprietário faça o que quiser. Ser dono de um pedaço de terra não me dá o direito de poluir o lençol de água subjacente, nem mesmo o de queimar folhas que podem poluir o ar.   Manter o pleno emprego e a economia estável   Fazer os mercados funcionarem é, portanto, uma das responsabilidades do Estado, e as manifestações mais óbvias da incapacidade do mercado de funcionar da maneira como se espera são os episódios periódicos de desemprego e subutilização da capacidade produtiva, as recessões e depressões que têm marcado o capitalismo. A Lei do Emprego, de 1946, reconheceu que a manutenção do pleno emprego na economia é um objetivo nacional, pelo qual o governo deve assumir a responsabilidade. A maneira de fazê-lo é questão controversa. Os conservadores tentam minimizar o mais possível o papel do governo. Tiveram que admitir a contragosto que os mercados não asseguram por si sós o pleno emprego, mas tentam reduzir o escopo das intervenções do governo. O monetarismo de Milton Friedman visava a restringir a atuação do Banco Central a um papel mecânico: o aumento da oferta monetária a uma taxa xa. E quando isso não funciona, os conservadores recorrem a outra regra simples: metas de in ação. A crise atual mostra, no entanto, que as falhas do mercado podem ser complexas e abrangentes e não são tão fáceis de corrigir. Com efeito, seguir apenas regras mecânicas pode agravar a situação. Entre os problemas que contribuíram para esta crise está a subvaloração do risco. Pode ser

impossível para os governos forçar os mercados a dar o preço correto ao risco, mas, como expliquei no capítulo 6, o governo pode formular regulações que limitem os danos que resultam da preci cação inadequada do mercado.30   Promover a inovação   Há bens com relação aos quais o mercado, por si só, gera escassez. Entre estes estão os bens públicos, cujos benefícios podem ser gozados por todos os membros da sociedade — entre os quais estão certas inovações cruciais. O terceiro presidente dos Estados Unidos, omas Jefferson, assinalou que o conhecimento é como uma vela: quando uma vela acende outra, sua própria luz não diminui. Decorre daí que é ine ciente restringir o uso do conhecimento.31 Os custos de tal restrição são particularmente altos no caso da ciência básica. Mas para que o conhecimento seja disseminado com liberdade, o governo tem de assumir a responsabilidade de nanciar sua criação. É por isso que o governo tem um papel crucial na promoção do conhecimento e da inovação. Alguns dos maiores êxitos dos Estados Unidos são consequência das pesquisas apoiadas pelo governo, em geral nas universidades públicas ou sem ns lucrativos — da Internet à moderna biotecnologia. No século xix, o governo teve um grande papel nos notáveis avanços da agricultura — assim como nas telecomunicações, quando estendeu, pela primeira vez, uma linha telegrá ca entre Baltimore e Washington. O papel do governo também foi importante nas inovações sociais — com os programas governamentais de apoio à propriedade de casas, sem as práticas de exploração que marcaram as recentes iniciativas privadas nesse sentido. É possível induzir inovações no setor privado restringindo o uso do sistema de patentes para que este não afete indevidamente o acesso ao conhecimento, o que aumenta os lucros, mas diminui o benefício social. Um sistema de patentes bem formulado trata de alcançar o equilíbrio justo, propiciando incentivos à inovação sem restringir indevidamente o uso do

conhecimento. Como explico mais adiante neste capítulo, existe ainda muito espaço para aperfeiçoar o regime de propriedade intelectual existente. No caso dos mercados nanceiros, contudo, o problema é a ausência de maneiras efetivas de proteger a propriedade intelectual. Qualquer indivíduo que desenvolva um novo produto bem-sucedido pode ser facilmente copiado. Trata-se de uma situação do tipo “com cara eu perco e com coroa você ganha”: se o novo produto não tem êxito, não será copiado e a empresa perde dinheiro; se tem êxito, então será copiado e os lucros logo irão para outro lugar. A consequência é que as pesquisas não se dirigem às inovações que promovem o bem-estar dos clientes ou a e ciência da economia, mas sim às que não podem ser facilmente copiadas, ou, mesmo que o sejam, continuem a gerar lucros. Assim, os empréstimos “mentirosos” e as taxas de usura sobre os cartões de crédito são inovações que foram rapidamente copiadas, mas que, não obstante, continuaram a gerar enormes lucros. Os derivativos e outros produtos nanceiros complexos, por outro lado, não podem ser imitados com facilidade — e quanto mais complexos, mais difícil é imitá-los. Um número relativamente pequeno de instituições emite grande porcentagem dos derivativos complexos prontos para o uso. A redução da competição trouxe lucros maiores. Em outras palavras, as forças do mercado foram uma das razões para a geração da complexidade que causou tantos danos ao bom funcionamento do mercado.   Proporcionar seguro e proteção social   O governo tem exercido um papel importante na proteção social — ao proporcionar seguros contra muitos dos principais riscos que os indivíduos enfrentam, como o desemprego e a incapacidade física. Em alguns casos, como o das anuidades, o setor privado acabou seguindo a linha do governo, mas ao fazê-lo gastou grandes somas de dinheiro na tentativa de identi car as iniciativas que apresentam menos riscos — gastos que podem não ser

vistos como socialmente produtivos. A sociedade pode achar que um indivíduo que teve a pouca sorte de nascer com uma lesão no coração deve ser ajudado (“poderia ser eu, se não fosse a graça de Deus”), até mesmo por meio de uma operação de peito aberto. Mas uma companhia privada de seguros quer estar certa de que não cará amarrada ao pagamento de contas, e fará todo o possível para identi car as pessoas que de fato representam risco.32 Essa é uma das razões pelas quais o governo continuará a ter um papel essencial nos mercados de seguros.   Prevenir a exploração   Mercados e cientes também podem produzir resultados socialmente inaceitáveis. Alguns indivíduos podem ter uma renda tão diminuta que não conseguem sobreviver. Nos mercados competitivos, os salários são determinados pela interseção da demanda com a oferta, e nada nos assegura que o salário de “equilíbrio” seja um salário razoável. É comum que os governos tentem “corrigir” a distribuição de renda efetuada pelos mercados. Além disso, não há nada na teoria dos mercados que garanta que estes sejam “humanos”, seja qual for o sentido que desejemos dar à palavra. Os participantes do mercado podem não hesitar em tirar vantagem da força que possam ter, ou da fraqueza de outros participantes, de todos os modos que lhes sejam possíveis. Durante um furacão, alguém que tem um carro pode ajudar outros a fugir, mas também pode cobrar para isso o “preço do mercado”. Os trabalhadores que estejam muito necessitados de emprego podem aceitar trabalhos com condições de segurança ou de saúde inadequadas. O governo não pode evitar todas as formas de exploração, mas pode combatê-las. Essa é a razão por que a maior parte dos governos dos países industrialmente avançados de todo o mundo adotou e põe em prática leis de usura (leis que limitam os juros que podem ser pagos), leis que estabelecem um salário mínimo e um número máximo de horas de

trabalho, condições básicas de saúde e segurança no trabalho, e leis que buscam conter os empréstimos predatórios. As empresas privadas, quando podem, tentam restringir a competição e também se esmeram em explorar padrões sistemáticos de irracionalidade e de “fraqueza” do consumidor. As companhias de tabaco venderam produtos que sabiam ser causadores de dependência e de câncer, além de uma série de outros males, ao mesmo tempo que negavam a existência de elementos de comprovação cientí ca de que isso fosse verdade. Sabiam que os fumantes receberiam bem a mensagem de que havia dúvida do ponto de vista da ciência. Os formuladores de hipotecas e as companhias de cartões de crédito exploraram o fato de que muitos indivíduos se atrasariam nos pagamentos, pelo menos uma vez, e sabiam que podiam atraí- -los com taxas iniciais bem baixas. Aumentar fortemente a taxa em consequência de um atraso no pagamento pode mais do que compensar a taxa inicial baixa. Os bancos estimulam os clientes a usar “cheques especiais”, com taxas altas, sabendo que muitas vezes eles não veri carão se têm ou não saldo su ciente na conta.33     mudanças no papel do governo

  O papel adequado do Estado varia de época para época e de país para país. O capitalismo do século xxi é diferente do capitalismo do século xix. A lição aprendida com o setor nanceiro é verdadeira para outros setores: pode ser que as regulações do New Deal não funcionem bem hoje, mas o necessário hoje não é uma desregulação geral, e sim maior em algumas áreas e menor em outras. A globalização e as novas tecnologias abriram a possibilidade de novos monopólios globais com uma riqueza e um poder muito superiores aos próprios sonhos que os barões do nal do século xix poderiam ter.34 Como foi observado no capítulo 1, os problemas de agenciamento criados com a separação entre o controle e a propriedade e

pelo fato de que a riqueza da maioria dos cidadãos comuns é administrada por outros, supostamente em seu nome e benefício, acentuaram a necessidade de uma melhor regulação da governança corporativa. Outras mudanças ocorridas na economia americana também parecem requerer um papel mais intenso por parte do governo. O fato de que muitas das economias industrialmente avançadas se tornaram economias de inovação tem profundas implicações para a natureza do mercado. Consideremos, por exemplo, a questão da competição, vital para o dinamismo de qualquer economia. Pode- -se determinar com facilidade se existe competição no mercado do aço, por exemplo, e, se não houver, há maneiras consolidadas de tratar o problema. Mas a produção de ideias é algo diferente da produção de aço. Mesmo quando os ganhos privados e sociais estão bem alinhados na produção de artigos convencionais, os ganhos sociais e privados com a inovação podem ser radicalmente diferentes. Há inovações cujos ganhos sociais são negativos — como cigarros que viciam. O setor privado se preocupa em saber que parte do valor de uma ideia pode ser apropriada por ele, e não em saber qual o ganho que a ideia traz para a sociedade. O resultado disso é que o mercado pode gastar dinheiro demais em certas áreas de pesquisa — desenvolvendo, por exemplo, um “medicamento de imitação” (me-too drugs), variações de remédios bemsucedidos com novas patentes— e demasiado pouco em outras áreas. Sem o apoio do governo, haveria pouca pesquisa básica e poucas pesquisas sobre as doenças que afetam os mais pobres. No sistema de patentes, o ganho privado é atribuído ao que chegou em primeiro lugar; e o ganho social está na aceleração com que o produto é oferecido ao mercado. A pesquisa genética sobre câncer da mama proporciona uma expressiva ilustração dessa diferença. Estava em curso um esforço sistemático e global para alcançar a decodi cação completa do genoma humano, mas a corrida se concentrava sobre os genes que podiam ter valor de mercado. Myriad, uma empresa americana, cou com a patente dos genes do câncer de mama. A informação cou disponível um pouco

antes do que teria ocorrido de qualquer maneira — mas como a empresa insiste em cobrar um preço alto pelos testes que detectam a enfermidade, nas jurisdições em que a patente é reconhecida, milhares de mulheres podem morrer sem justi cativa.35 Em síntese, na economia da inovação do século xxi, o governo pode ter que assumir um papel mais importante — para proporcionar a pesquisa básica que é o alicerce de toda a estrutura; para dar direção às pesquisas, por meio de prêmios e doações, por exemplo, que incentivem as pesquisas que atendam às necessidades nacionais; e para que o regime de propriedade intelectual seja mais equilibrado, de modo que a sociedade possa usufruir mais dos benefícios gerados pelos incentivos, sem os custos correlatos, inclusive o da monopolização.36 Ao nal do século passado, havia uma (falsa) esperança de que a necessidade da ação governamental em áreas especí cas estivesse diminuindo: alguns pensavam que na nova economia da inovação os ciclos econômicos já fossem coisas do passado. Como acontece com tantas ideias, havia algo de verdade na noção de uma Nova Economia sem ciclos negativos. As novas tecnologias da informação signi cavam que as companhias podiam controlar melhor seus estoques. Muitos dos ciclos negativos anteriores haviam sido causados por utuações de estoque. Além disso, a estrutura da economia tinha se deslocado da manufatura — em que os estoques são importantes — para os serviços, onde não o são. Como assinalei antes, o setor manufatureiro constitui hoje apenas 11,5% dos pib dos Estados Unidos.37 A recessão de 2001 mostrou, contudo, que podia ocorrer um investimento excessivo em bras ópticas e outras áreas correlatas, assim como a recessão atual mostrou que o mesmo pode ocorrer no setor imobiliário. As bolhas e as suas consequências estão tão presentes no século xxi quanto nos séculos xviii, xix e xx. Os mercados são imperfeitos, mas o governo também é. Alguns tiram daí, como conclusão inevitável, que é melhor desistir do governo. O mercado tem falhas, mas as falhas do governo (dizem eles) são piores. O mercado pode gerar desigualdades, mas as desigualdades geradas pelo

governo podem ser maiores. O mercado pode ser ine ciente, mas o governo pode ser ainda mais ine ciente. Essa linha de argumento é capciosa e propõe falsas escolhas. Não existem alternativas que dispensem alguma forma de ação coletiva. A última vez em que um país quis estabelecer a liberdade total (não regulada) na atividade bancária foi o Chile do ditador Pinochet, e o resultado foi um desastre. Como nos Estados Unidos, a bolha chilena estourou. Cerca de 30% dos empréstimos se tornaram inadimplentes e o país levou 25 anos para pagar as dívidas causadas pela experiência fracassada. Os Estados Unidos terão de ter regulações e o governo precisará gastar dinheiro em pesquisa, tecnologia, infraestrutura e em formas de proteção social. Os governos farão as políticas monetárias e cuidarão da defesa dos países, da cobertura policial, do combate aos incêndios e de outros serviços públicos essenciais. Quando os mercados falharem, é o governo que virá juntar os cacos. Sabendo que é assim, o governo tem de fazer tudo o que puder para prevenir a ocorrência de calamidades. As perguntas, então, são as seguintes: o que o governo deve fazer? Quanto deve fazer? Como deve fazer? Qualquer jogo tem regras e árbitros, e o jogo da economia não é exceção. Uma das funções essenciais do governo é estabelecer as regras e proporcionar os árbitros. As regras são as leis que controlam a economia de mercado. Os árbitros incluem os reguladores e os juízes que aplicam e interpretam as leis. As regras antigas, a despeito de seu valor no passado, não são as regras adequadas para o século xxi. A sociedade precisa ter con ança de que as regras sejam justas, assim como os árbitros. Nos Estados Unidos, foram estabelecidas regras demais pelos nancistas e para eles, e os árbitros eram parciais. Ninguém deve surpreender-se, então, que os resultados também tenham sido tendenciosos. Havia estratégias alternativas que tinham pelo menos as mesmas possibilidades de êxito, mas que expunham os contribuintes a riscos bem menores. Bastava que o governo seguisse as regras do jogo em

vez de mudar de estratégia no meio do caminho para dar presentes inauditos ao setor nanceiro. Em última análise, o único controle sobre esses abusos provém do sistema democrático. Mas as chances de que os processos democráticos prevaleçam depende de reformas nas contribuições de campanha e nos procedimentos eleitorais.38 Alguns estereótipos continuam a ser verdadeiros: escolhe a dança quem paga o músico. O setor nanceiro pagou os músicos dos dois partidos e escolheu a dança. Nós, cidadãos, podemos esperar ter regulações que desmontem os que são grandes demais para falir, grandes demais para ser liquidados e grandes demais para ser administrados, enquanto os bancos continuam a fazer contribuições de campanha grandes demais para ser ignoradas? Podemos esperar, ao menos, conter os bancos para que não se entreguem ao excesso de risco?39 Lidar com esta crise — e prevenir crises futuras — é matéria tanto de política quanto de economia. Se nós, como país, não zermos essas reformas, arriscamo-nos a sofrer de paralisia política, devido às incoerências existentes entre as exigências dos interesses especiais e as necessidades do país como um todo. E se conseguirmos evitar a paralisia política, isso pode ocorrer às custas do nosso futuro: tomando emprestado do futuro para pagar os resgates de hoje e/ou fazendo reformas mínimas hoje e deixando os problemas maiores para depois. O desa o de hoje é a criação de um Novo Capitalismo. Já vimos as falhas do capitalismo anterior. Mas, para criar esse Novo Capitalismo, será necessário uma relação de con ança — inclusive entre Wall Street e o resto da sociedade. Nossos mercados nanceiros nos deixaram mal, mas não podemos funcionar sem eles. Nosso governo nos deixou mal, mas não podemos viver sem ele. A agenda de desregulação de Reagan e Bush se baseava na descon ança com relação ao governo. As tentativas de Bush e Obama para nos resgatar do fracasso da desregulação se baseavam no medo. As desigualdades que se tornaram manifestas com a queda dos salários, o aumento do desemprego e os cortes na rede de proteção social, por um lado, e, por outro, os enormes aumentos dos bônus dos bancos e da

riqueza das corporações, além da expansão da sua própria rede de proteção, geram amargura e rancor. Um ambiente de amargura e rancor, de medo e descon ança, não é a melhor maneira de começar a longa e difícil tarefa da reconstrução. Mas não temos escolha: se queremos restaurar a prosperidade sustentável, necessitamos de um novo conjunto de contratos sociais baseados na con ança entre todos os elementos da nossa sociedade: entre os cidadãos e o governo e entre esta geração e o futuro.

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. Da recuperação à prosperidade global

Com a rápida expansão da crise econômica dos Estados Unidos para o resto do mundo, cou clara a necessidade de uma reação e de um plano de recuperação que sejam globais e coordenados. Mas, por outro lado, cada país pensou primeiro em seu próprio bem-estar. As instituições internacionais encarregadas de manter a estabilidade do sistema econômico global não lograram impedir a crise. E depois falharam de novo: não tiveram capacidade de concatenar a necessária reação coordenada. A globalização econômica tornou o mundo mais interdependente, aumentando as exigências de uma atuação conjunta e de um trabalho cooperativo, mas até aqui não surgiram meios efetivos de fazê-lo. As inadequações da globalização se revelaram no tamanho do estímulo econômico, na condução da política monetária, na formulação dos resgates e das garantias, no crescimento do protecionismo e na assistência dada aos países em desenvolvimento. Os problemas continuarão a se mostrar também nas di culdades com que o mundo se defronta no que diz respeito ao estabelecimento de um regime regulatório global. A crise atual oferece tanto riscos quanto oportunidades. Um dos riscos é o de que, se nada zermos para administrar melhor o sistema econômiconanceiro global, haverá crises maiores e possivelmente piores no futuro. E, à medida que os países procuram proteger-se de uma globalização desenfreada e descontrolada, tomarão medidas para reduzir sua exposição e sua abertura. A fragmentação resultante dos mercados nanceiros globais

pode neutralizar as vantagens que seriam obtidas com a integração global. Para muitos países, a maneira pela qual a globalização foi administrada — em particular a administração dos mercados nanceiros — traz a perspectiva de enormes riscos e poucas recompensas. Outro risco, correlato ao anterior, se refere ao con ito de ideias que hoje se desenvolve entre os economistas a respeito da e cácia dos mercados (a ser discutida com maior profundidade no próximo capítulo). Em muitas partes do mundo, esse debate não é apenas acadêmico, mas questão de sobrevivência. Existe hoje um intenso debate a respeito do tipo de sistema econômico que será melhor. Com certeza, o capitalismo de estilo americano demonstrou que pode enfrentar enormes problemas, mas os Estados Unidos têm como gerar os bilhões de dólares necessários para pagar as contas. Os países pobres, por outro lado, não têm. O que aconteceu dará forma ao debate nos próximos anos. Os Estados Unidos continuarão a ser a maior economia, mas a maneira como o mundo vê os Estados Unidos mudou, e a in uência da China aumentará. Mesmo antes da crise, o dólar já não era visto como bom repositório de valor, por mostrar-se volátil e declinante. Agora, com a explosão da dívida e do dé cit do país e com a incessante emissão de moeda pelo Fed, a con ança se desgastou mais ainda. Isso provocará um impacto de longo prazo sobre os Estados Unidos e seu status e já gerou a consciência da necessidade de uma nova ordem nanceira global. Se pudermos criar um novo sistema global de reserva e, de um modo mais amplo, novos esquemas de governança para o sistema econômico global, teremos um raro ponto de luz perpassando essa espessa nuvem. Desde o começo da crise, os países industrialmente avançados reconheceram que não podem enfrentar esse problema sozinhos. O G-8, o grupo de países desenvolvidos que se reúne todo ano para resolver os problemas do mundo, sempre me parece algo notável. Os chamados líderes do mundo pensavam que podiam resolver problemas de grande escala, como o aquecimento global e os desequilíbrios mundiais, sem convidar os dirigentes de outros países — que representam quase a metade do pib do

planeta e 80% da sua população — para participar das discussões. Na reunião do G-8 na Alemanha em 2007, os líderes de outros países foram convidados — para o almoço — depois de emitido o comunicado que resumia os pontos de vista dos países industrialmente avançados. Como se os pontos de vista dos outros países fossem um adendo, algo para ser visto como mostra de cortesia, mas não para serem verdadeiramente incorporados às decisões que importam. Com a irrupção da crise, cou claro que o velho clube já não poderia resolvê-la sozinho. Com a reunião do G-20 em Washington, que incluiu países emergentes como a China, a Índia e o Brasil, em novembro de 2008, cou evidente que as velhas instituições estavam morrendo.1 O aspecto do novo sistema de governança econômica global pode demorar ainda alguns anos para se de nir, mas, sobretudo devido à ação do primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown, que presidiu ao segundo encontro do G-20, em Londres, em abril de 2009, já está claro que os novos mercados emergentes têm lugar garantido à mesa em que serão tomadas todas as decisões globais importantes. Por si só, essa é uma mudança notável.     uma reação global fracassada

  Os países em desenvolvimento já vinham sendo o motor do crescimento mundial pelo menos desde o começo da década de 1990: foram responsáveis pela geração de dois terços do aumento do pib mundial.2 Mas os países em desenvolvimento foram atingidos de maneira particularmente dura pela crise. Com a notável exceção da China, a maioria não tinha os recursos necessários para executar resgates fabulosos ou concatenar enormes pacotes de incentivo. A comunidade internacional percebeu que os países do mundo inteiro estavam juntos na crise. Os Estados Unidos haviam afetado outros países, mas a fraqueza do resto do mundo ameaçava, por sua vez, a capacidade americana de recuperar-se.

Mesmo no mundo da globalização, a política se faz dentro de cada país. Cada nação pondera os custos e benefícios de suas ações de maneira independente dos efeitos que podem ser produzidos no resto do mundo. No caso dos gastos com medidas de incentivo, os benefícios são um maior número de empregos ou um pib mais alto, enquanto os custos são os aumentos da dívida e do dé cit. Para as economias pequenas, grande parte do aumento dos gastos decorrente do aumento da renda (por exemplo, em consequência de programas governamentais) ocorre fora das suas fronteiras, por meio de importações, mas mesmo para os países grandes uma parte do dinheiro gerado vai para o exterior.3 Em outras palavras, o “multiplicador global” — a proporção em que cresce a produção global em função do dinheiro gasto — é muito maior do que o “multiplicador nacional”. Como os benefícios globais superam os benefícios nacionais, a menos que os países coordenem suas reações à crise, o tamanho do incentivo posto em prática por cada país — e, portanto, do incentivo global — será insu ciente. Sobretudo os países menores, como a Irlanda, terão muito pouco estímulo para gastar dinheiro em incentivos e podem preferir “pegar carona” nos programas de incentivo de outros países.4 Pior ainda, cada país tem estímulo para formular seu incentivo de modo a capturar o máximo benefício para si próprio. Os países buscarão os tipos de gasto que “vazem” o menos possível para o exterior, estimulando a produção local de bens e serviços. O resultado será um incentivo global não só menor do que o desejável, mas também menos efetivo: cada dólar gasto gerará menos efeitos positivos e a recuperação será mais discreta do que o que aconteceria se os incentivos fossem coordenados globalmente. Ainda por cima muitos países recorrerão a medidas protecionistas com o m de encorajar os gastos em seus próprios territórios. Os Estados Unidos, por exemplo, colocaram um dispositivo do tipo “Buy American” na sua lei de incentivo, que obrigava a compra de produtos feitos nos próprios Estados Unidos, mas zeram uma quali cação — que pareceu razoável — no sentido de que isso não se aplicaria se existissem acordos internacionais que proibissem essa discriminação. Mas os Estados Unidos têm esse tipo de

acordo, em geral, para as compras governamentais feitas nos países desenvolvidos, o que signi ca que, na verdade, o dinheiro do incentivo pode ser usado para comprar bens dos países ricos, mas não dos países pobres, que são as vítimas inocentes desta crise “made in USA”.5 Uma das razões pelas quais as políticas de“arruíne seu vizinho”, que busca a obtenção de benefícios às custas de outros países, não funcionam é que provocam retaliações, o que, aliás, já está acontecendo, por exemplo, com a adoção, por parte de diversas cidades canadenses, de dispositivos do tipo “não compre produtos americanos”. Outros serão levados a imitar esse procedimento, de modo que os Estados Unidos já não são os únicos a adotar essas medidas protecionistas. Nos meses que se seguiram ao compromisso assumido pelos líderes do G-20 no sentido de não recorrer ao protecionismo, dezessete deles já o haviam feito.6 No mundo de hoje, essas medidas são contraproducentes ainda por outra razão: é difícil encontrar um produto que tenha sido feito estritamente nos Estados Unidos, e mais difícil ainda prová-lo. Assim, muitas empresas americanas não podem participar de concorrência em projetos se não puderem atestar que o aço e outros insumos que empregam são todos feitos nos Estados Unidos. E, com menos competição, os preços sobem. A formulação dos planos de incentivo não foi a única área em que a reação global foi inadequada. Já mencionei que a maioria dos países em desenvolvimento não tem os recursos para nanciar seus próprios incentivos. Na reunião de Londres, em fevereiro de 2009, o G-20 proporcionou fundos adicionais ao fmi, a instituição que tradicionalmente se responsabiliza pela ajuda aos países que querem reagir às crises. O G-20 encontrou diversas outras maneiras de aumentar a capacidade de nanciamento do fmi, como através da venda de ouro e de novas emissões de direitos especiais de saque (sdrs), uma espécie de dinheiro global, que discuto mais adiante neste capítulo. O anúncio, de cerca de 1 trilhão de dólares, causou impressão. Infelizmente, essas iniciativas, por mais bem-intencionadas que fossem, apresentavam problemas. Em primeiro lugar, só uma pequena parcela do

dinheiro passado ao fmi lograva efetivamente chegar aos países mais pobres. Na verdade, uma das razões do ímpeto dos governos da Europa Ocidental em prover os fundos era o seu desejo de que o fmi ajudasse a Europa Oriental, que passava por problemas avassaladores. A Europa Ocidental não conseguia chegar a um acordo sobre a melhor maneira de ajudar seus vizinhos e então transferiu a responsabilidade para o fmi. Em segundo lugar, muitos dos países pobres estavam acabando de sair de um enorme acúmulo de dívidas e naturalmente hesitavam em voltar à mesma situação. Os países ricos deveriam ter proporcionado o dinheiro através de doações, em vez de oferecer os empréstimos de curto prazo do fmi. Alguns países, como a Alemanha, zeram um gesto explícito nessa direção, dedicando parte do dinheiro reservado ao incentivo para a ajuda aos países pobres, mas essa foi a exceção e não a regra. A escolha do fmi como instituição encarregada de repassar o dinheiro foi em si mesma problemática. Não só o fmi zera pouco para prevenir a crise, mas havia favorecido a política da desregulação, inclusive a liberalização dos mercados nanceiros e de capital, que contribuiu para a formação da crise e para o seu rápido crescimento em todo o mundo.7 Além disso, essa política, assim como outras favorecidas pelo fmi — e, na verdade, seu próprio estilo de operação —, eram vistas como anátema por muitos dos países pobres que precisavam dos fundos e pelos países da Ásia e do Oriente Médio que tinham grandes quantidades de fundos líquidos que podiam ser utilizadas para ajudar os países mais pobres que necessitavam do dinheiro. O presidente do Banco Central de um país em desenvolvimento me expressou um ponto de vista que não era incomum: seu país só recorreria ao fmi se estivesse no leito de morte. Como observador privilegiado do fmi, pude entender a relutância de alguns países em lhe pedir dinheiro. No passado, o fmi só proporcionava dinheiro dentro de duras condicionalidades que, na realidade, acentuavam as di culdades dos países já a igidos por elas.8 Essas condições visavam mais a ajudar os credores ocidentais a recuperar seu dinheiro em melhores termos do que poderiam obter sozinhos que a ajudar o país atormentado a

manter sua saúde econômica. As estritas condicionalidades do fmi com frequência provocaram manifestações violentas por todo o mundo — sendo que as mais famosas ocorreram na Indonésia durante a crise do Extremo Oriente.9 A boa notícia foi que, com a indicação de Dominique Strauss- -Kahn para o cargo de diretor executivo e com a chegada da crise, o fmi se dedicou a reformar as suas políticas macroeconômicas e de empréstimos. Quando a Islândia recorreu à assistência do Fundo, por exemplo, foi-lhe permitida a imposição de controles de capital e a manutenção de dé cits orçamentários — pelo menos durante o primeiro ano do seu programa. O fmi nalmente reconheceu a necessidade de políticas keynesianas de macroincentivos. Seu diretor executivo falou explicitamente a respeito dos riscos de uma desativação prematura dos incentivos e deu prioridade à manutenção do emprego. Os países bons poderiam tomar empréstimos sem condições. Poderiam de fato “pré-quali car-se”. Mas certas perguntas persistiam: que países receberiam notas boas? Algum país da África subsaariana poderia pré-quali car-se? Embora em muitos países os programas do Fundo fossem bastante diferentes dos que eram feitos no passado, aparentemente fortes condicionalidades ainda estavam sendo impostas a alguns outros países — inclusive cortes orçamentários e taxas de juros altas, condições totalmente opostas às recomendadas pela economia keynesiana.10 O fmi era um clube muito tradicional dos países industriais ricos, que são os países credores, gerido pelos seus ministros da área nanceira e presidentes dos seus Bancos Centrais. Suas opiniões a respeito do que constituíam as boas políticas econômicas eram formuladas pelos nancistas — opiniões que, como expliquei e como a crise demonstrou amplamente, eram muitas vezes mal-orientadas. Os Estados Unidos tinham o poder de vetar unilateralmente qualquer decisão importante e sempre indicavam o segundo homem da linha de comando. A Europa sempre indicava o número um. O Fundo ponti cava em matéria de boa governança, mas não praticava o que pregava. Não atuava com o tipo de transparência que hoje

se espera das instituições públicas. Na reunião do G-20 de fevereiro de 2009, em Londres, formou-se um consenso em favor da reforma. Mas a velocidade glacial dessa reforma foi vista por alguns como presságio de que o mundo poderia atolar-se até os joelhos com a próxima crise antes que alguma mudança substantiva se produzisse. Mas houve pelo menos um grande avanço, que se fazia esperar fazia muito tempo: houve um acordo no sentido de que o chefe do fmi seria escolhido de maneira aberta e transparente e de que os países membros buscariam a pessoa mais quali cada independentemente da sua nacionalidade.11 A falta de generosidade dos Estados Unidos na ajuda aos países em desenvolvimento é notória e potencialmente custosa. Mesmo antes da crise, os Estados Unidos estavam entre os mais avarentos dentre os países industrialmente avançados em matéria de provimento de assistência: proporcionam, como porcentagem da renda nacional, menos da quarta parte do que fazem os países líderes da Europa.12 Mas esta era uma crise global originada nos Estados Unidos, que haviam apregoado incessantemente a necessidade de assumir as responsabilidades pelo que se faz. Nesse caso, no entanto, o país parecia assumir pouca responsabilidade por haver imposto ao mundo as regras que tanto facilitaram o contágio dos males americanos; por suas políticas protecionistas; e por haver criado a confusão global, em primeiro lugar.13   Regulação global   A desregulação teve uma função crucial na crise. Um novo conjunto de regulações será necessário para evitar a eclosão de outra crise e para restaurar a con ança nos bancos. Em alguns círculos, no estágio preparatório da segunda reunião do G-20, no início de 2009, havia um debate sobre o que seria mais importante — um incentivo coordenado globalmente, ou um regime regulatório coordenado globalmente. A resposta é óbvia: ambos são necessários. Sem uma regulação abrangente, haverá evasão regulatória: as nanças migrarão para o país menos regulado.

Outros, então, terão de agir com o objetivo de impedir que instituições malreguladas possam produzir efeitos de contágio. Em suma, o fato de que um país não regule adequadamente suas atividades provoca externalidades negativas sobre outros. Sem um sistema regulatório coordenado em nível global, existe risco de fragmentação e segmentação do sistema nanceiro global, com cada país procurando proteger-se dos erros dos demais. Cada país precisa estar persuadido de que os outros estão tomando as medidas adequadas para restringir os abusos. Como é natural, as ações aparentemente mais fortes do G-20 se destinaram aos países que não estavam na reunião — os chamados Estados que não cooperam, lugares como as Ilhas Cayman, que há anos são centros de evasão de impostos e regulações. Sua existência não é uma falha acidental. Europeus e americanos ricos — e os bancos que os representam — desejavam um paraíso scal, livre do tipo de controle que suas atividades receberiam nos seus próprios países, e os reguladores e legisladores o permitiram. As exigências que o G-20 fez a esses paraísos scais são um passo na direção certa, mas foram su cientemente leves para que a ocde retirasse todos eles da “lista negra”.14 Sem uma troca regular e completa de informações, as autoridades competentes de um país não sabem o que ou quem está fugindo da sua rede de detecção. Para os países em desenvolvimento, há uma questão ainda mais importante — a corrupção. Ditadores corruptos fogem com bilhões de dólares e levam o dinheiro não só para bancos dos paraísos scais, mas para alguns dos maiores centros nanceiros do mundo, inclusive Londres. Os países em desenvolvimento são condenados, muitas vezes com justiça, por não se empenhar mais contra a corrupção, mas também têm razão ao criticar os países industrialmente avançados por facilitar a corrupção ao propiciar paraísos scais para os funcionários corruptos e para as contas secretas em que depositam o dinheiro desviado. Se por alguma razão o dinheiro é localizado, muitas vezes é difícil recuperálo. Esse era, contudo, um problema dos países em desenvolvimento que não

estavam na reunião, portanto, naturalmente, o G-20 não fez nada, no seu encontro inicial, para modi car a situação.15 Nos capítulos anteriores, esbocei um programa de ação para um novo regime regulatório. Mas embora o G-20 tenha ao menos reconhecido a importância de algumas dessas questões (alavancagem, transparência), evitou, nas suas reuniões iniciais, alguns dos aspectos mais críticos: o que fazer com as instituições politicamente in uentes e grandes demais para falir, que estavam no cerne da crise, ou com a liberalização do mercado nanceiro e de capitais, que ajudou a sua propagação? Esses foram temas que alguns dos países-chave nada zeram para promover. A França, entre outros, levantou vigorosamente alguns tópicos — como os esquemas compensatórios excessivos que estimularam o comportamento míope e os riscos excessivos. A resposta do G-20 quanto à regulação foi decepcionante também em outro sentido: pediu orientação quanto ao caminho a seguir às próprias instituições que provocaram o fracasso. O Fórum de Estabilização Financeira reuniu autoridades nanceiras de cerca de doze dos países industrialmente avançados mais importantes para facilitar as discussões e o desenvolvimento da cooperação sobre a regulação, a supervisão e a vigilância das instituições nanceiras. Foi criado em consequência da crise da Extremo Oriente, como resultado dos encontros dos ministros da área nanceira e presidentes dos Bancos Centrais do G-7 para assegurar que outra crise como aquela não ocorreria mais. É evidente que não teve êxito, mas isso não pode ser visto como surpresa. O Fórum tinha o mesmo espírito desregulatório que já levara às crises anteriores e agora levou a esta. Mas o G-20 não se perguntou por que o Fórum de Estabilização fracassara. Em vez disso, mudou seu nome para Junta de Estabilização Financeira e ampliou ligeiramente sua composição. Quem sabe o novo nome permita um bom recomeço; quem sabe terá aprendido as lições. Suspeito que as opiniões sobre economia não se modi cam de maneira tão fácil e rápida.    

perda de confiança no capitalismo de estilo americano

  Nos Estados Unidos, chamar alguém de socialista pode não ser mais do que um xingamento à toa. Fanáticos da direita tentaram manchar a reputação de Obama com essa pecha, ao mesmo tempo que a esquerda o critica por uma moderação excessiva. Na maior parte do mundo, entretanto, a batalha entre o capitalismo e o socialismo — ou, pelo menos, algo que os americanos chamariam de socialismo — prossegue. Na maior parte do mundo, há consenso de que o governo deve ter um papel maior do que tem nos Estados Unidos. Embora a crise não tenha vencedores, há perdedores, e entre os maiores perdedores está o capitalismo de estilo americano, que perdeu muito apoio. As consequências que isso terá sobre a reformulação da economia global e sobre os debates políticos durarão ainda muito tempo. A queda do Muro de Berlim em 1989 marcou o m do comunismo como ideia viável. Os problemas do comunismo eram conhecidos fazia décadas, mas depois de 1989 cou muito mais difícil dizer algo em sua defesa. Por algum tempo pareceu que a derrota do comunismo signi cava a clara vitória do capitalismo, particularmente na sua forma americana. No começo da década de 1990, Francis Fukuyama chegou ao ponto de proclamar o “ m da história”, de nindo a democracia do capitalismo de mercado como o estágio nal do desenvolvimento da sociedade e declarando que toda a humanidade caminhava inevitavelmente nessa direção.16 Na verdade, os historiadores de nirão os vinte anos posteriores a 1989 como o curto período do triunfalismo americano. A data do colapso de Lehman Brothers, 15 de setembro de 2008, pode ser, para o fundamentalismo do mercado (a noção de que os mercados, se deixados livres para agir por conta própria, podem garantir a prosperidade e o crescimento), o que a queda do Muro de Berlim foi para o comunismo. Os problemas dessa ideologia também já eram conhecidos antes daquela data, mas a partir dela já ninguém podia defendê-lo. Com o colapso de grandes bancos e casas nanceiras, e com o decorrente tumulto econômico e as tentativas caóticas de resgate, o período do triunfalismo americano

terminou. E também terminou o debate sobre o “fundamentalismo do mercado”. Hoje, só os desavisados — o que inclui muitos conservadores americanos, mas muito menos gente no mundo em desenvolvimento — podem a rmar que os mercados se autocorrigem e que a sociedade pode acreditar que o interesse próprio dos participantes do mercado garante o funcionamento correto e honesto da economia — para não falar da extensão dos seus benefícios a todos. O debate econômico assume proporções particularmente intensas no mundo em desenvolvimento. Embora nós, no Ocidente, tenhamos a tendência a esquecer, há 190 anos quase 60% do pib mundial estava na Ásia. Mas logo depois, subitamente, a exploração colonial e acordos comerciais injustos, combinados com a revolução tecnológica na Europa e nos Estados Unidos, deixaram os países em desenvolvimento bem atrás, até o ponto em que, na década de 1950, as economias asiáticas constituíam menos de 18% do pib mundial.17 Em meados do século xix, o Reino Unido e a França chegaram a fazer uma guerra para garantir que a China permaneceria “aberta” ao comércio mundial. Foi a Guerra do Ópio, assim chamada por ter sido travada para impedir que a China fechasse as portas ao ópio oriundo do Ocidente. O Ocidente tinha pouco a vender à China que não fossem drogas, que desejava jogar no mercado chinês, causando o efeito colateral de espalhar o vício e a dependência pela população. Foi uma das primeiras tentativas do Ocidente no sentido de corrigir problemas de balanço de pagamentos. O colonialismo deixou uma herança ambígua no mundo em desenvolvimento, mas um resultado claro foi a sensação das populações locais de haverem sido cruelmente exploradas. Para muitos dos líderes que surgiam, a teoria marxista fornecia uma explicação da sua experiência e sugeria que a exploração era decorrência do sistema capitalista. A independência política que chegou para dezenas de colônias depois da Segunda Guerra Mundial não conseguiu pôr m ao colonialismo econômico. Em algumas regiões, como a África, a exploração — a extração dos recursos naturais e a devastação do meio ambiente, em troca de

miudezas — era óbvia. Em outros lugares, mais sutil. Em muitas partes do mundo, instituições globais como o fmi e o Banco Mundial caram conhecidas como instrumentos do controle pós-colonial. Essas instituições pregavam o fundamentalismo do mercado (“neoliberalismo”, como era chamado), noção idealizada pelos americanos como “mercados livres e desregulados”. E pressionavam em favor da desregulação do setor nanceiro, da privatização e da liberalização do comércio. O Banco Mundial e o fmi diziam que assim procediam para o benefício do mundo em desenvolvimento, e recebiam o apoio de equipes de economistas partidários do mercado livre, muitos provenientes da catedral da ciência econômica liberal — a Universidade de Chicago. A nal, os programas dos “Chicago boys” não produziram os resultados prometidos. As rendas estagnaram-se. Onde houve crescimento, este se concentrou entre os mais ricos. As crises econômicas nos países se tornaram cada vez mais frequentes: mais de cem apenas nos últimos trinta anos.18 Naturalmente, as pessoas nos países em desenvolvimento cavam cada vez menos convencidas de que a ajuda do Ocidente fosse motivada pelo altruísmo. Passaram a suspeitar que a retórica do mercado livre — o “consenso de Washington”, como ela é conhecida — era apenas um disfarce para os velhos interesses comerciais. A própria hipocrisia do Ocidente reforçou essas suspeitas. A Europa e os Estados Unidos não abriram seus próprios mercados à produção agrícola do Terceiro Mundo, que era, muitas vezes, o único que os países mais pobres podiam oferecer. E, além disso, forçaram os países em desenvolvimento a eliminar subsídios destinados à criação de novas atividades econômicas, ao mesmo tempo que proporcionavam subsídios maciços aos seus próprios fazendeiros.19 A ideologia do mercado livre se transformou em pretexto para novas formas de exploração. “Privatização” signi cava que os estrangeiros podiam comprar minas e campos produtores de petróleo por preços baixos naqueles países. Signi cava também que podiam obter grandes lucros com monopólios e quase monopólios, como os existentes nas telecomunicações. “Liberalização dos mercados nanceiros e de capitais” signi cava que os

bancos estrangeiros podiam ganhar altos rendimentos com os seus empréstimos — e que quando os empréstimos encontravam di culdades, o fmi forçaria a socialização das perdas, obrigando populações inteiras a pagar os bancos estrangeiros. Então, pelo menos no Extremo Oriente, depois da crise de 1997, alguns dos mesmos bancos estrangeiros alcançaram mais lucros nas liquidações que o fmi impôs aos países que tinham necessidade do seu dinheiro. “Liberalização do comércio” signi ca também que rmas estrangeiras podiam exterminar indústrias nascentes, reprimindo assim o desenvolvimento de talentos empresariais. O capital circulava livremente, mas a mão de obra não — exceto para os indivíduos mais quali cados, muitos dos quais encontravam bons empregos no mercado global.20 Evidentemente havia exceções. Na Ásia, sempre existiam os que resistiam ao consenso de Washington e impunham restrições ao uxo de capitais. Os gigantes asiáticos — a China e a Índia — administravam suas economias à sua própria maneira e produziam crescimento em níveis inéditos. Mas em outras partes, especialmente onde o Banco Mundial e o fmi mandavam, as coisas não iam bem. E o debate em torno das ideias continuava por toda parte. Mesmo em países que se saíram muito bem, há uma convicção, e não apenas entre o povo em geral, mas também entre os mais esclarecidos e mais in uentes, de que as regras do jogo não têm sido justas. Eles sentem que seu êxito ocorre apesar das regras injustas e se solidarizam com os amigos mais pobres do mundo em desenvolvimento que não se saíram tão bem. Para os críticos do capitalismo de estilo americano no Terceiro Mundo, a maneira como os Estados Unidos responderam à crise atual é um caso de dois pesos, duas medidas. Durante a crise do Extremo Oriente, há apenas uma década, os Estados Unidos e o fmi exigiam que os países atingidos reduzissem os dé cits governamentais cortando seus gastos — ainda que, como na Tailândia, isso resultasse em um recrudescimento da epidemia de aids, ou, como na Indonésia, signi casse a redução do auxílio alimentar para os famintos, ou ainda que, como no Paquistão, a escassez de escolas públicas tenha levado os pais a pôr os lhos em madrassas, onde seriam

educados pela doutrina do fundamentalismo islâmico. Os Estados Unidos e o fmi forçaram países a aumentar as taxas de juros, em alguns casos (como o da Indonésia), para mais de 50%. Deram lições à Indonésia sobre como endurecer com seus próprios bancos e exigiram que o governo não os salvasse. Que terrível precedente isso geraria, diziam eles, e que terrível intervenção no funcionamento harmonioso do mercado livre. O contraste entre o tratamento dado à crise do Extremo Oriente e à crise americana é forte e não cou esquecido. Para tirar os Estados Unidos do buraco, o governo aumentou drasticamente os gastos e os dé cits públicos e baixou as taxas de juros a zero. Os bancos foram resgatados com muita folga. Alguns dos funcionários que, em Washington, trataram da crise do Extremo Oriente são os mesmos que agora administram a reação à implosão americana. E as pessoas no Terceiro Mundo perguntam: por que os Estados Unidos tomam um remédio diferente na crise? Não se trata apenas de uma questão de dois pesos, duas medidas. Como os países desenvolvidos seguem sistematicamente políticas scais e monetárias anticíclicas (como nesta crise, por exemplo) e os países em desenvolvimento são forçados a seguir políticas pró-cíclicas (cortes de gastos, aumento de impostos e de taxas de juros), as utuações nesses países são maiores do que poderiam ser, enquanto as que ocorrem nos países desenvolvidos são menores. Isso aumenta o custo do capital para os países em desenvolvimento em comparação com o custo para os países desenvolvidos, o que aumenta a vantagem dos ricos sobre os pobres.21 No mundo em desenvolvimento, muitos sofrem com as intimidações recebidas durante tantos anos: ter de adotar instituições americanas, seguir políticas americanas, promover a desregulação, abrir o mercado aos bancos americanos para aprender as “boas práticas” e — não por coincidência — vender seus bancos e suas empresas para os americanos, especialmente a preços de liquidação durante as crises. Diziam a eles que o sofrimento causado por isso valia a pena e lhes prometiam um futuro melhor. Os Estados Unidos enviavam os secretários do Tesouro (de ambos os partidos) por todo o mundo para pregar esse evangelho. Aos olhos de muitos, nos

países em desenvolvimento, a porta giratória que permite aos dirigentes nanceiros americanos deslocar-se sem restrição entre Washington e Wall Street lhes deu credibilidade ainda maior, pois eles pareciam combinar o poder do dinheiro com o poder político. Os líderes nanceiros americanos tinham razão em acreditar que o que é bom para os Estados Unidos — ou para o mundo — é bom para os mercados nanceiros. Mas não tinham razão quanto ao pensamento inverso: o que é bom para Wall Street não é bom para os Estados Unidos — nem para o mundo. Não é tanto o prazer com a dor alheia o que motiva o intenso exame que os países em desenvolvimento fazem do sistema econômico dos Estados Unidos. É a necessidade real de compreender que tipo de sistema econômico pode funcionar para eles no caso de uma futura crise. Com efeito, esses países têm todo o interesse em que a economia americana se recupere o mais rápido possível. São os primeiros a saber que as consequências negativas da recessão dos Estados Unidos são enormes. E muitos estão cada vez mais convencidos de que o ideal americano de mercados livres e desregulados é algo de que eles devem fugir e não aproximar-se. Mesmo entre os defensores da economia de mercado livre há os que agora compreendem que a existência de algum grau de regulação é proveitosa. Mas o papel do governo vai além da regulação — como alguns países começam a entender. Em Trinidad e Tobago, por exemplo, está sendo levada a sério a lição de que o risco tem de ser administrado e de que o governo precisa ter um papel mais ativo em matéria de educação. Eles sabem que não podem reformar a economia mundial, mas podem ajudar seus próprios cidadãos a enfrentar os riscos que esta apresenta. Até mesmo as crianças do ensino fundamental estão aprendendo os princípios do risco, os elementos da propriedade residencial, os perigos dos empréstimos predatórios e os detalhes das hipotecas. No Brasil, a propriedade residencial é promovida por um órgão público, o que faz que os indivíduos contraiam hipotecas perfeitamente ao alcance da sua capacidade de pagamento.

A nal, por que nós, americanos, deveríamos car impressionados com o fato de o mundo se desiludir com o modelo americano de capitalismo? A ideologia que promovemos cou comprometida, é verdade, mas talvez seja bom que esteja comprometida irremediavelmente. Acaso não podemos sobreviver — e mesmo progredir — sem a adesão de todos ao estilo americano? É inevitável que a nossa in uência diminua, mas isso já estava acontecendo em múltiplos aspectos. Costumávamos estar no centro do jogo global do capitalismo porque os demais acreditavam que tínhamos um talento especial para a administração do risco e para a alocação dos recursos nanceiros. Ninguém mais acredita nisso. E a Ásia — onde se localiza a maior parte da poupança mundial nos dias de hoje — já está desenvolvendo seus próprios centros nanceiros. Já não somos a principal fonte de capital do mundo. Os três maiores bancos do mundo de hoje são chineses. O maior banco americano está em quinto lugar. Ao mesmo tempo, o custo de lidar com a crise está provocando outras transformações, e não apenas nos Estados Unidos, como já vimos, mas também no exterior. Nos anos recentes, os investimentos chineses em infraestrutura na África foram maiores do que a soma dos investimentos do Banco Mundial e do Banco Africano do Desenvolvimento e muito maiores que os dos Estados Unidos. Qualquer pessoa que visite a Etiópia e uma in nidade de outros países do continente pode ver com clareza as transformações, com novas estradas ligando cidades antes isoladas e criando uma nova geogra a econômica. O impacto da China não se faz sentir somente na infraestrutura, pois alcança muitas outras áreas do crescimento econômico, como o comércio, o desenvolvimento de recursos, a criação de empresas e a agricultura. Os países da África estão acorrendo a Pequim para buscar ajuda nesta crise, e não para Washington. E não é só na África que se sente a presença chinesa: na América Latina, na Ásia e na Austrália — onde quer que haja produtos ou recursos —, o rápido crescimento da China provoca um apetite insaciável. Antes da crise, a China já contribuía para o crescimento das exportações e dos preços dos

produtos exportados, o que levou ao crescimento sem precedentes na África e em outras regiões. Depois da crise, é provável que essa tendência continue. Na verdade, muitos países já estavam se bene ciando de novo do rápido crescimento da China em 2009. Tenho receio de que o mundo em desenvolvimento, à medida que veja com mais clareza as falhas do sistema econômico e social dos Estados Unidos, possa chegar a conclusões erradas a respeito do tipo de sistema que lhes pode servir melhor. Alguns aprenderão as lições corretas. Perceberão que o que conduz ao êxito é um regime em que o papel do mercado e o do governo se equilibram e em que um Estado forte deve administrar regulações e cazes. Perceberão também que a força dos interesses especiais precisa ser dominada. Mas para muitos outros países, as consequências políticas serão mais complicadas e talvez profundamente trágicas. Os antigos países comunistas em geral se voltaram para o capitalismo depois da queda deprimente do seu sistema de governo, mas alguns desenvolveram uma versão distorcida da economia de mercado. Substituíram Karl Marx por Milton Friedman como seu deus, e a nova religião não lhes fez bem. Muitos países podem concluir que não foi só o capitalismo sem controle, ao estilo americano, que fracassou, mas sim que o próprio conceito de economia de mercado é falho e, na verdade, inaplicável, em qualquer circunstância. O comunismo ao velho estilo não reaparecerá, mas variadas formas de intervenção excessiva no mercado voltarão à tona e fracassarão de novo. Os pobres sofreram com o fundamentalismo do mercado. A economia por gravitação não funcionou. Mas eles poderão sofrer novamente se os regimes futuros voltarem a errar na busca do equilíbrio, dessa vez com um excesso de intervenção nos mercados. Essa estratégia não produzirá crescimento, e sem crescimento não poderá haver redução sustentável da pobreza. Não há exemplo de economia que tenha tido êxito sem con ar basicamente nos mercados. As consequências para a estabilidade global e para a segurança dos Estados Unidos são óbvias.

Antes, havia a sensação de que os Estados Unidos e as elites mundiais, formadas ao estilo americano, compartilhavam valores, mas a crise econômica minou a credibilidade dessas elites, que apregoavam o capitalismo ao estilo americano. Os que se opunham à forma licenciosa de capitalismo adotada nos Estados Unidos têm agora ampla munição para pregar uma loso a antimercado. A con ança na democracia é outra vítima. No mundo em desenvolvimento, muitos olham para Washington e veem um sistema de governo que permitiu que Wall Street escrevesse as regras em seu próprio proveito, pondo em risco toda a economia global. E quando chegou o dia da verdade, Washington pediu aos mesmos senhores de Wall Street e seus parceiros que administrassem a recuperação — de modo que Wall Street recebeu quantidades de dinheiro que estavam além da imaginação mais fértil e desbragada dos maiores corruptos do mundo. Talvez considerem a corrupção ao estilo americano mais so sticada — sem que o dinheiro passe de uma mão para outra em malas entregues em cantos escuros —, porém igualmente nefanda. Veem a contínua distribuição de riqueza da base para o topo da pirâmide, claramente às custas dos cidadãos comuns. Veem que as instituições que presidiram ao crescimento da bolha, como o Federal Reserve, recebem mais poderes como recompensa pelos fracassos do passado. Veem, em suma, um problema fundamental de responsabilização política no sistema americano de democracia. Vendo tudo isso, só um pequeno passo nos separa da conclusão de que há algo profundamente errado com a democracia, e que isso talvez seja inevitável. A economia dos Estados Unidos acabará por recuperar-se e, assim também, até certo ponto, o status do país no exterior se recuperará. A despeito de critério ou opinião, as ações dos Estados Unidos são objeto de minuciosos exames. Seus êxitos são imitados. Mas seus fracassos — especialmente os que levaram à crise e se aproximam tanto da hipocrisia — são vistos com desprezo. A democracia e as forças do mercado são essenciais para um mundo justo e próspero. Mas a “vitória” da democracia liberal e de uma economia de mercado equilibrada não é inevitável. A crise

econômica, criada basicamente pelo (mau) comportamento americano, foi um golpe poderoso contra esses valores fundamentais e causou mais dano do que qualquer regime totalitário poderia causar, por palavras ou ações.     uma nova ordem econômica global: a china e os estados unidos

  A crise atual é tão profunda e perturbadora que as coisas mudarão, ainda que os líderes políticos não o desejem. As mudanças mais profundas podem ocorrer na relação por vezes difícil entre os Estados Unidos e a China. A China tem ainda muito o que avançar até chegar a superar o pib dos Estados Unidos — no critério da “paridade do poder de compra”, que re ete as diferenças entre os custos de vida, ela ainda está cerca de 50% abaixo dos Estados Unidos — e muito mais ainda até chegar perto do nível da renda per capita dos americanos — que é oito vezes maior.22 Mas, de todo modo, a China tem alcançado resultados impressionantes. No ano de 2009, provavelmente será o maior exportador mundial de mercadorias e o maior produtor de automóveis e de manufaturas em geral.23 Também alcançou a questionável distinção de ter suplantado os Estados Unidos como maior emissor de carbono, tornando-se o líder mundial nessa categoria.24 Seu crescimento, ainda que menor do que antes da crise, continua a ser claramente superior ao dos Estados Unidos, em sete pontos percentuais ao ano (em 2009 a diferença deve ter sido de uns 10%), e, a esse ritmo, a diferença entre os pibs cai à metade a cada dez anos. Além disso, em 25 anos a China deverá tornar-se a economia dominante na Ásia, e a economia asiática deverá ser maior que a dos Estados Unidos. Embora a economia chinesa ainda seja bem menor que a americana, os Estados Unidos importam muito mais da China do que exportam para esta, e esses fortes desequilíbrios comerciais têm gerado tensões, com o aumento do desemprego nos Estados Unidos. A relação pode ser de simbiose, porque a China ajuda a nanciar os enormes dé cits scais americanos, porque,

sem os produtos baratos da China, o nível de vida de muitos americanos poderia ser acentuadamente menor e porque nosso país fornece os mercados para uma oferta chinesa sempre crescente. Mas na Grande Recessão, o foco está na situação do emprego. A maioria dos americanos não compreende os princípios das vantagens comparativas, segundo os quais cada país produz os bens em que são relativamente melhores — e tem di culdade em entender que os Estados Unidos podem ter perdido sua vantagem comparativa em muitas áreas da produção de manufaturas. Eles creem que, se a China (ou qualquer outro país) está ganhando a competição com os Estados Unidos, tem de ser porque está fazendo alguma trapaça: seja a manipulação do câmbio, seja o uso de subsídios à produção, seja a venda por preços inferiores aos custos (o chamado “dumping”). Com efeito, a crise virou tudo de cabeça para baixo. Os Estados Unidos estão sendo acusados de praticar subsídios maciços e injustos (dados aos seus bancos e às companhias automobilísticas). Um empréstimo do Fed com juros próximos a zero a uma grande corporação, que teria de pagar juros bem altos no mercado aberto — se é que conseguisse obter o empréstimo —, também pode ser visto como um grande subsídio. A manutenção de taxas de juros baixas é uma das maneiras mais importantes de que um país dispõe para “administrar” sua taxa de câmbio (quando as taxas de juros são baixas, o capital sai do país e vai para os lugares onde pode obter maiores taxas), e muitos europeus acreditam que os Estados Unidos estão usando a taxa de câmbio depreciada que daí resulta para obter uma vantagem competitiva. Tanto os Estados Unidos quanto a China aplicaram medidas protecionistas, mas, até o momento da impressão deste livro, de alcance limitado. Os Estados Unidos o zeram, em parte, por pressão dos sindicatos; e a China, em parte como retaliação e em parte como elemento de sua estratégia de desenvolvimento. Mas, como já observei, sabe-se que algo precisa ser feito a respeito dos desequilíbrios globais, dentre os quais o desequilíbrio comercial Estados Unidos—China é o componente mais importante.

A curto prazo, a tarefa de ajustar-se parece mais fácil para os Estados Unidos do que para a China. A China necessita consumir mais, mas é difícil induzir as famílias a consumir mais quando têm diante de si altos níveis de incerteza. Os problemas da China provêm, contudo, menos de um nível alto de poupança doméstica que do fato de que a renda familiar corresponde, naquele país, a uma fração menor do pib do que em outros países. Salários baixos permitem lucros altos, e não há muita pressão em prol da distribuição dos lucros. O resultado é que as empresas (públicas e privadas) retêm uma alta porção da renda gerada por elas. Mas alterar a distribuição da renda é difícil em qualquer país do mundo. O modelo de crescimento da China tem sido impulsionado pela oferta. Os lucros são reinvestidos, o que provoca um aumento mais rápido da produção que do consumo, e a diferença é exportada. O modelo tem funcionado bem — criando empregos na China e mantendo os preços baixos no resto do mundo —, mas a crise ressaltou a existência de uma falha no modelo: nesta etapa de recessão, a China tem tido di culdades para exportar o excedente. A um prazo mais longo, à medida que aumentar sua participação no mercado de muitas manufaturas, será difícil manter sua taxa de crescimento — o que seria verdadeiro mesmo que não houvesse respostas protecionistas por parte de muitos dos seus parceiros comerciais. Há um limite para o número de aparelhos de televisão e outros bens de consumo que o Ocidente pode comprar. Mas, ainda por cima, como a China tem feito proezas não apenas na faixa dos produtos industriais mais baratos, mas também em uma ampla gama de outros produtos, a estridência protecionista tem aumentado. Muitos chineses percebem que será necessário mudar a estratégia de crescimento — dando mais apoio às pequenas e médias empresas, por exemplo, através da criação de mais bancos locais ou regionais. Na maior parte dos países, essas empresas são a base do crescimento dos empregos. Uma evolução assim levará a salários mais altos, o que por sua vez alterará a distribuição de renda, e provocará o aumento do consumo interno. Parte do aparente lucro corporativo decorre do fato de a China não cobrar o

devido pelo uso de recursos naturais (inclusive a terra). Com efeito, esses ativos foram dados às corporações, quando na verdade pertencem ao povo. Se por exemplo tais recursos tivessem sido leiloados, uma grande renda teria sido gerada, e se a China tivesse reservado essa renda para seu próprio povo, teria mais recursos para os nanciamentos a saúde, educação e aposentadorias. Isso reduziria a necessidade da poupança doméstica. Essa nova estratégia de crescimento pode parecer sensata, mas existem forças políticas poderosas alinhadas contra ela: as grandes empresas e seus funcionários, por exemplo, se bene ciam do sistema atual e esperam que este, de alguma maneira, se torne sustentável. Essas mesmas forças políticas também se oporão a uma valorização da moeda chinesa, pois isso reduziria a competitividade das exportações do país e aumentaria o salário real dos seus empregados. Aqueles no Ocidente que alegam que os grandes bancos e as grandes empresas são uma necessidade prestam um serviço a esses novos industrialistas. A China, dizem eles, também precisa de grandes empresas (por vezes chamadas “campeãs nacionais”) para competir globalmente. Ainda é muito cedo para sabermos como essa luta se desenvolverá. O pacote de incentivo da China — um dos maiores do mundo em relação ao tamanho do país25 — re etiu essas tensões na política econômica. Grande parte do dinheiro foi dirigido à infraestrutura e à formação de uma economia “verde”. Um novo sistema ferroviário de alta velocidade pode ter para a China um impacto semelhante ao da construção da ferrovia transcontinental nos Estados Unidos depois da Guerra Civil e pode ajudar a consolidar uma economia nacional mais forte, na qual a geogra a econômica muda sem parar. O pacote de incentivo também proporcionou um encorajamento explícito ao consumo, em especial no setor rural e sobretudo para a compra de produtos cujas vendas caíram acentuadamente no exterior. Também continha dispositivos para um rápido aumento dos gastos com educação e saúde nas zonas rurais. Ao mesmo tempo, houve esforços para fortalecer certos setores-chave, como o automobilístico e o siderúrgico. O governo alegou que estava simplesmente

tratando de “racionalizar” a produção — aumentar sua e ciência —, mas os críticos temem que esses esforços possam exacerbar os problemas de excesso de oferta e/ou reduzir a competição efetiva. Isso aumentaria os lucros das corporações e diminuiria os salários reais, agravando o problema do subconsumo. Incertezas similares também ocorrem com relação às respostas de longo prazo à crise nos Estados Unidos. Como deixei claro nos capítulos anteriores, os americanos têm de consumir menos ao longo do tempo, e como as famílias estão menos propensas a contrair empréstimos e estando sua riqueza tão afetada, o ajustamento dos Estados Unidos tem sido relativamente rápido. Mas, como notei no capítulo 7, enquanto as famílias têm poupado mais, o governo tem contraído mais empréstimos. A necessidade de nanciamento externo permanece alta. Os desequilíbrios globais — especialmente o enorme dé cit comercial americano e o menor, mas persistente, saldo comercial chinês — também permanecerão. Isso causará tensões, que no entanto poderão continuar abafadas pela consciência americana de sua dependência nanceira da China.26 Mas dentro da China há crescente relutância em aumentar os empréstimos ao governo dos Estados Unidos, com retornos baixos e riscos altos. Existem alternativas: a China pode investir em ativos reais nos Estados Unidos. Mas, quando tentou fazer isso, algumas vezes encontrou resistências (quando, por exemplo, tentou comprar a Unocal, uma companhia de petróleo relativamente pequena cujos ativos já estavam em grande parte na Ásia). Os Estados Unidos permitiram que a China comprasse seu automóvel que mais polui, o Hummer, assim como a divisão de computadores portáteis da ibm, que tomou o nome de Lenovo. Ao que parece, os Estados Unidos são abertos ao investimento em muitas áreas, mas têm mantido um critério amplo na classi cação dos setores considerados de importância crítica para a segurança nacional, que devem, por isso, ser protegidos contra esses investimentos externos. Isso pode afetar o desenvolvimento dos princípios da globalização, uma vez que os Estados

Unidos dizem aos países em desenvolvimento que estes devem abrir seus mercados à propriedade estrangeira, como parte das regras básicas do jogo. Se a China vender uma parte substancial dos dólares que tem em reserva, isso produzirá uma valorização ainda maior da sua própria moeda (o renminbi, ou iuane) com relação ao dólar, o que, por sua vez, melhorará a balança comercial bilateral com a China. O efeito, contudo, pode não ser tão grande quanto se poderia esperar, para o bem da redução do dé cit comercial global dos Estados Unidos, uma vez que o país simplesmente passará a comprar seus têxteis em algum outro país em desenvolvimento. Contudo, isso signi cará que a China sofrerá uma grande perda com a enorme soma de títulos do Tesouro americano e outros ativos em dólar que detém. Há quem pense que a China está entre a cruz e a espada. Se abandonar o dólar, sofrerá perdas notáveis em suas reservas e em suas exportações. Se permanecer com o dólar, adiará as perdas com relação às reservas, mas provavelmente terá de fazer ajustes de todo modo. A preocupação com a perda de vendas talvez seja exagerada: a China fornece, hoje, nanciamento como vendedora — ou seja, fornece o dinheiro para que comprem os seus produtos. Em vez de fazer empréstimos aos Estados Unidos com esse m, pode fazê-los a outros clientes em outras partes do mundo — como de fato já está fazendo — ou até para seus próprios cidadãos.     um novo sistema global de reservas

  Preocupado com os seus ativos em dólar, em março de 2009 o presidente do Banco Central da China concedeu apoio a uma antiga ideia: a criação de uma moeda global de reserva.27 Keynes apresentou essa ideia há 75 anos, como parte da sua conceitualização original para o que seria o fmi.28 A ideia recebeu agora o apoio adicional de um outro setor — uma comissão de

peritos da onu sobre a reestruturação do sistema nanceiro e econômico global, a que presidi.29 Os países em desenvolvimento, sobretudo a China, detêm hoje trilhões de dólares em reservas — dinheiro ao qual podem recorrer caso ocorra uma crise, como a Grande Recessão. No capítulo 1, ressaltei que esta crise expôs o problema de uma insu ciência global da demanda agregada. Infelizmente, até aqui, nem o governo americano nem o G-20 sequer começaram a discutir esse problema subjacente — para não falar da tomada de providências. Emissões anuais de uma nova moeda global de reserva signi cariam que os países já não precisariam separar uma parte dos seus ativos nanceiros como proteção contra a volatilidade global, e poderiam, em vez disso, separar o novo “dinheiro” recém-emitido — o que aumentaria a demanda global agregada e fortaleceria a economia mundial. Há duas outras razões importantes para essa iniciativa. A primeira está na instabilidade do sistema atual. No momento, os países retêm dólares para gerar con ança em suas moedas e na sua economia, como um tipo de seguro contra as vicissitudes dos mercados globais. À medida que aumenta o número de dólares retidos em reservas estrangeiras, sobe a ansiedade a respeito das crescentes dívidas internacionais dos Estados Unidos. Há outra razão pela qual o sistema atual favorece a instabilidade. Se alguns países insistem em gerar superávits comerciais (exportando mais do que importam) para aumentar suas reservas, outros terão de gerar dé cits, pois a soma dos superávits necessariamente é igual à soma dos dé cits. Mas os dé cits comerciais podem ser um problema. Os países que acumulam dé cits correm mais risco de enfrentar uma crise econômica e por isso lutam para livrar-se deles. Se um país consegue livrar-se do seu dé cit, o dé cit de algum outro país terá de subir (se o comportamento dos superavitários não mudar), de modo que os dé cits comerciais são como batatas quentes. Nos anos recentes, a maioria dos países aprendeu a livrarse dos dé cits, daí resultando que os Estados Unidos se tornaram o “de citário de última instância”. A longo prazo, a posição dos Estados Unidos é claramente insustentável. A criação de uma moeda global de

reserva com emissões anuais propiciaria uma proteção. Um país poderia gerar um dé cit comercial pequeno e continuar a aumentar suas reservas em virtude da alocação de determinado montante da moeda global de reserva que receberá. Os investidores, ao verem o aumento das reservas, ganhariam con ança. Os países pobres estão emprestando aos Estados Unidos centenas de bilhões de dólares, na verdade trilhões de dólares, a uma taxa de juros baixa (em 2009, próxima a zero). O fato de assim procederem mesmo quando existem muitos projetos de investimento com altos rendimentos em seus próprios países é um testemunho da importância das reservas e da magnitude da instabilidade mundial. Os custos de manutenção das reservas são altos, mas os benefícios que trazem são maiores. O valor da ajuda externa implícita que os Estados Unidos recebem, ao tomar empréstimos com taxas de juros mais baixas do que o normal, supera, segundo alguns cálculos, o valor total da ajuda externa que o país presta.30 Uma boa moeda de reserva precisa ser um bom depósito de valores — uma moeda estável —, mas o dólar tem estado extremamente volátil e deve permanecer assim. Muitos países menores já retiraram boa parte das suas reservas da área do dólar, e até a China parece ter já pelo menos a quarta parte das suas reservas em outras moedas. A questão não é saber se o mundo vai abandonar o sistema de reservas em dólares por completo, mas sim como o fará, com que cautela e com que habilidade. Sem um plano bom e claro, o sistema nanceiro global caria ainda mais instável. Alguns americanos oferecerão resistência ao movimento em prol da criação de um sistema global de reservas. Essas pessoas enxergam os benefícios de poder tomar empréstimos a custos baixos, mas não percebem que esses custos são enormes. Produzir e exportar títulos do Tesouro que serão mantidos em reservas estrangeiras não geram empregos, mas exportar mercadorias, sim, cria. O lado negativo da demanda de títulos do Tesouro americano e da manutenção do dinheiro em reservas é o dé cit comercial americano. E esse dé cit enfraquece a demanda agregada do país. Para contrabalançar esse problema, o governo incorre em um dé cit scal.31

Tudo isso faz parte de um “jogo de equilíbrio”: para nanciar o dé cit, o governo vende títulos do Tesouro no exterior (em outras palavras: toma empréstimos), e muitos desses títulos são postos em reservas. Com a nova moeda global de reserva, os países não precisariam comprar os títulos do Tesouro americano e mantê-los em suas reservas. Evidentemente, isso faria o valor do dólar baixar, as exportações americanas aumentarem, suas importações diminuírem, a demanda agregada se fortalecer, e haveria menos necessidade de o governo incorrer em grandes dé cits para manter a economia em pleno emprego. Sabendo que seria mais difícil tomar empréstimos, talvez a prodigalidade americana pudesse diminuir, o que bene ciaria a estabilidade global. Os Estados Unidos e o mundo ganhariam com esse novo sistema. Já existem iniciativas de criação de arranjos regionais de reservas. A Iniciativa Chiang Mai no Extremo Oriente permite que os países façam intercâmbio de suas reservas. Como reação à crise, eles ampliaram em 50% a dimensão do programa.32 O mundo pode evoluir para um sistema de duas (ou três) moedas, usando o dólar e o euro. Mas esse sistema poderia ser ainda mais instável que o atual. Para o mundo, poderia signi car que, diante de uma expectativa de que o euro se valorize diante do dólar, os países passariam a transferir seus ativos para o euro. Com isso, o euro se fortaleceria, o que con rmaria o acerto da decisão — até que algum evento, um distúrbio político33 ou econômico, provoque a reversão do processo. Para a Europa, o sistema traria um problema especial, uma vez que os países da União Europeia não têm a possibilidade plena de gerar dé cits scais para contrabalançar uma demanda fraca. O sistema global de reservas com base em dólares está cambaleando, mas os esforços para criar-lhe uma alternativa estão apenas começando. Os dirigentes dos Bancos Centrais por m aprenderam a lição básica da administração da riqueza — a diversi cação —, e já há alguns anos os países vêm diminuindo suas reservas em dólar. Em 2009, o G-20 decidiu por uma grande emissão (250 bilhões de dólares) de direitos especiais de saque (sdrs), que são um tipo de moeda global de reserva criado pelo fmi.

Mas os sdrs sofrem de fortes limitações, pois são alocados aos países com base em suas “cotas” no fmi (as ações que detêm) — e os Estados Unidos têm a maior cota. Mas os Estados Unidos obviamente não têm necessidade de manter reservas, pois podem simplesmente emitir dólares. O sistema funcionaria muito melhor se as emissões de reserva fossem alocadas aos países que buscassem expandir suas reservas. Alternativamente, novas emissões de reserva global poderiam dirigir-se a países pobres que necessitam de ajuda.34 Seria ainda melhor se o novo sistema fosse concebido para desencorajar superávits comerciais. Os Estados Unidos censuram a China por seu superávit, mas os arranjos atuais dão fortes incentivos para que os países mantenham reservas e gerem superávits para aumentá-las. Os países que tinham grandes reservas se saíram muito melhor desta crise do que os que não tinham reservas adequadas. Em um sistema global de reservas bem concebido, os países que geram superávits constantes receberiam menores alocações de moeda de reserva, e isso por sua vez os estimularia a manter um comércio mais equilibrado. Um sistema global de reservas bem concebido poderia avançar na estabilização da economia mundial, pois uma maior quantidade de emissões da moeda global de reserva durante períodos de baixo crescimento global estimularia o consumo e geraria concomitantemente mais crescimento e mais empregos.35 Com o apoio dos Estados Unidos, um novo sistema global de reservas pode ser rapidamente formado. A questão é saber se e quando o governo Obama entenderá o quanto os Estados Unidos e o mundo ganhariam com isso. O risco está na possibilidade de que os Estados Unidos enterrem a cabeça na areia, como um avestruz. O mundo abandonará o sistema de reservas com base em dólares. Sem um acordo sobre a criação de um novo sistema global de reservas, o provável é que o mundo saia do dólar em favor de um sistema de reserva de múltiplas moedas, produzindo assim uma instabilidade nanceira global a curto prazo e um regime mais instável do que o atual a longo prazo.

A crise provocará, é quase certo, uma mudança na ordem global, política e econômica. O poder e a in uência dos Estados Unidos serão menores; e os da China, maiores. Já antes da crise, um sistema global de reservas que depende da moeda de um único país parecia fora de sincronia com a globalização do século xxi. Mas isso se acentuou muito com as incertezas do dólar, assim como da política a da economia dos Estados Unidos.     rumo a um novo multilateralismo

  Depois dos desastres da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial surgiu uma nova ordem global e criou-se um novo conjunto de instituições. Essa estrutura funcionou bem por muitos anos, mas foi se tornando cada vez mais inadequada para o manejo da evolução do sistema econômico global. A crise atual pôs em forte evidência suas limitações. Mas assim como os Estados Unidos tentaram sair dessa de qualquer jeito na arena doméstica, tratando basicamente de recriar o mundo como era antes da crise, o mesmo aconteceu na arena internacional. Na esteira da última crise global, há dez anos, houve muitas discussões a respeito de uma reforma da “arquitetura nanceira global”. Suspeitava- -se que os que queriam conservar o status quo (inclusive aqueles, dos Estados Unidos e de outros mercados nanceiros do Ocidente, que se bene ciavam da maneira como as coisas funcionavam, assim como seus aliados no governo) empregavam linguagem grandiloquente para encobrir seu verdadeiro plano: as pessoas falariam e discutiriam sem parar, até que a crise passasse; e com o m da crise, ndaria também o propósito de fazer a reforma. Nos anos que se seguiram à crise de 1997-8, pouco se fez — obviamente pouco demais para evitar uma crise ainda maior. Será que acontecerá de novo a mesma coisa? Os Estados Unidos, em particular, deveriam fazer todo o possível para fortalecer o multilateralismo — o que signi ca democratizar, reformar e nanciar o fmi e o Banco Mundial, para que os países em desenvolvimento

tenham menos necessidade de recorrer a apoios bilaterais (seja da China, da Rússia ou da Europa) em tempos difíceis. Deveriam também abandonar o protecionismo e os acordos comerciais bilaterais da era Bush, que minam o sistema de comércio multilateral cuja criação custou tanto trabalho a tantas pessoas nos últimos sessenta anos. Os Estados Unidos deveriam ajudar a formular um novo sistema regulatório coordenado e global para as nanças internacionais, sem o qual os mercados nanceiros correm o risco de fragmentar-se, e apoiar o novo sistema global de reservas acima descrito. Sem esses esforços, os mercados nanceiros globais se arriscam a enfrentar uma nova era de instabilidade e o mundo se abre à possibilidade de um período continuado de debilidade econômica. Em uma visão mais ampla, os Estados Unidos precisam apoiar e fortalecer o respeito ao direito internacional — sem o que nada disso é possível. Durante os anos do triunfalismo americano, entre a queda do Muro de Berlim e a queda de Lehman Brothers, os Estados Unidos não usaram seu poder e sua in uência para dar à globalização uma forma que fosse justa, em especial para os países em desenvolvimento. Sua política econômica se baseava menos em princípios do que no interesse próprio — ou, mais precisamente, nos desejos e aversões dos grupos de interesse especial que tinham e continuam a ter um papel tão crucial na formulação da política econômica. A Europa não só tem sido mais eloquente na articulação dos anseios dos pobres nos países em desenvolvimento, como muitos dos países europeus têm posto seu próprio dinheiro nessa tarefa. Durante os anos de Bush, os Estados Unidos muitas vezes zeram todo o possível para solapar o multilateralismo. A hegemonia econômica americana já não é um fato consumado como antes. Se os Estados Unidos querem conservar o respeito dos demais e exercer a in uência que exerciam, terão de trabalhar para isso, não só com palavras, mas também com atos e com exemplos que devem ser dados internamente — inclusive no tratamento aos mais necessitados — e com as ações que devem ser praticadas no exterior.

O sistema econômico global não tem funcionado como se espera. A globalização gerou uma prosperidade sem precedentes para muitos, mas em 2008 serviu para transmitir a recessão dos Estados Unidos para os países do mundo inteiro — tanto para os que administravam bem seus sistemas nanceiros (bem melhor do que os próprios Estados Unidos) quanto para os que não souberam fazê-lo; tanto para os que ganharam os tubos com o mundo globalizado quanto para os que não puderam fazê-lo. Não surpreende que tenham sido os países mais abertos, os mais globalizados, os que mais sofreram. A ideologia do mercado livre está na base de muitas das instituições e acordos que tecem o arcabouço da globalização. Assim como essas ideias constituíram a base da desregulação que teve um papel tão importante na criação da presente crise, também dão a sustentação à liberalização dos mercados nanceiros e de capitais que teve um papel tão importante na rápida disseminação da crise em todo o mundo. Este capítulo mostrou como a crise provavelmente mudará a ordem econômica global, inclusive o equilíbrio de poder na economia mundial, e como certas reformas básicas, inclusive a criação de um novo sistema global de reservas, pode auxiliar a restaurar a prosperidade e a estabilidade globais. Mas a longo prazo o êxito na manutenção da prosperidade global depende de que compreendamos melhor o funcionamento da economia. E isso irá requerer não só a reforma da economia, mas também a da ciência econômica. Esse é o tema do próximo capítulo.

9

. Reforma da ciência econômica

São muitas as culpas a serem distribuídas nesta crise. Focalizamos os papéis dos reguladores e dos legisladores, do Banco Central e dos nancistas. Em suas ações, cada um deles a rmava que o que estava fazendo era certo e, na maior parte das vezes, os argumentos se baseavam em análises econômicas. Ao examinarmos as diferentes camadas do que “deu errado”, não podemos deixar de estudar a pro ssão de economista. É claro que nem todos aderiram à euforia da economia de mercado livre e que nem todos eram discípulos de Milton Friedman. Uma parcela surpreendente deles, no entanto, pendia para essa direção. Seu conselho pro ssional não só foi falho, como a falha ocorreu nas tarefas básicas da previsão e da projeção. Poucos viram a aproximação do desastre. Não foi por acidente, pois aqueles que advogavam em favor das regras que levaram à calamidade estavam tão cegos pela sua fé no mercado livre que não enxergavam os problemas que estavam sendo criados. Mais do que admitiam os economistas, a ciência econômica deixara de ser uma disciplina cientí ca para transformar-se na maior torcedora do capitalismo de mercado livre. Para que os Estados Unidos consigam reformar sua economia, talvez seja preciso primeiro reformar a ciência econômica.     a guerra das ideias

 

Durante a Grande Depressão, a pro ssão de economista, especialmente nos Estados Unidos, passou por um mau pedaço. O paradigma dominante, então como agora, sustentava que os mercados são e cientes e se autocorrigem. Quando a economia mergulhou na recessão e depois na depressão, muitos deram um conselho simples: não fazer nada. Basta esperar e a economia se recuperará rapidamente. Muitos também deram apoio a Andrew Mellon, o secretário do Tesouro do presidente Herbert Hoover, e à sua tentativa de restaurar o equilíbrio scal: a recessão causara uma queda na arrecadação de impostos mais acelerada que a dos gastos. Para restaurar a “con ança”, segundo acreditavam os conservadores scais de Wall Street, era necessário cortar os gastos, um após o outro. Franklin Roosevelt, que se tornou presidente em 1933, defendia outro caminho e obteve um apoio que veio do outro lado do Atlântico: John Maynard Keynes recomendou o aumento dos gastos para estimular a economia — e isso signi cava aumentar o dé cit. Para os que são céticos a respeito do governo, em primeiro lugar isso era anátema. Alguns viram aí o caminho que leva ao socialismo; outros disseram que já era o próprio socialismo, pura e simplesmente. Na verdade, Keynes estava tratando de salvar o capitalismo das suas próprias garras. Ele sabia que, se uma economia de mercado não consegue criar empregos, não pode sobreviver. Discípulos americanos de Keynes, como meu professor, Paul Samuelson, defendiam que, uma vez restaurado o pleno emprego na economia, poderíamos todos voltar às maravilhas do mercado livre. Na Grande Recessão de 2008, muitas vozes proclamaram que na verdade o New Deal de Roosevelt fora um fracasso e ajudara a piorar a situação.1 Segundo essa corrente de pensamento, foi a Segunda Guerra Mundial que, por m, tirou os Estados Unidos da Grande Depressão. Em parte isso é verdade — sobretudo porque o presidente Roosevelt não desenvolveu de forma coerente a política nacional de expansão dos gastos. Assim como agora, enquanto a federação aumentava os gastos, os estados federados os cortavam.2 Em 1937, as preocupações com o volume do dé cit levaram a um corte nos gastos governamentais.3 Mas os gastos com a guerra também

são gastos. Apenas não são gastos que melhorem a produtividade futura da economia nem, de forma direta, o bem- -estar dos cidadãos. Até mesmo os críticos de Roosevelt concordam que, se os gastos do New Deal não tiraram a economia da Depressão, os gastos militares o zeram. De todo modo, a Grande Depressão mostrou que a economia de mercado não se autocorrige — pelo menos em um intervalo de tempo apreciável.4 Em 1970, surgia um problema — a in ação — e uma nova geração de economistas. O problema da década de 1930 era a de ação, a queda dos preços. Para os jovens economistas que ainda frequentavam a universidade, isso era história antiga. A ocorrência de outra recessão profunda parecia inimaginável. O fato de a maioria das recessões do pós-guerra se associar a ações excessivas do Fed no controle do crédito con rmava o preconceito dos conservadores no sentido de que a responsabilidade por qualquer aberração que nos pudesse afastar da perfeição cabia a falhas do governo e não do mercado. Mas havia outras perspectivas. De acordo com o falecido e destacado historiador da economia Charles Kindleberger, as crises nanceiras têm ocorrido a intervalos de cerca de dez anos nos últimos quatrocentos anos.5 O intervalo entre 1945 e 1971 constituiu uma exceção, pois, embora tenha havido utuações, não ocorreram crises bancárias em nenhum lugar, exceto no Brasil, em 1962. Tanto antes quanto depois desse período, elas são uma característica regular da vida econômica. O professor Franklin Allen, da Wharton School da Universidade da Pensilvânia, e Douglas Gale, da Universidade de Nova York, oferecem uma interpretação convincente para essa ausência de crises nos primeiros 26 anos depois da Segunda Guerra Mundial: o reconhecimento universal da necessidade de regulações fortes.6 Essa maior estabilidade pode ter sido um dos fatores que favoreceram o alto índice de crescimento durante o período. A intervenção governamental pode ser a explicação para essa maior estabilidade econômica, assim como para o rápido crescimento e para a maior igualdade que caracterizam o período.

De modo surpreendente, na década de 1980 a visão de que o mercado é intrinsecamente e ciente e capaz de se autocorrigir voltou a predominar, e não só nos círculos políticos conservadores, mas também no pensamento econômico acadêmico dos Estados Unidos. A visão do mercado livre não estava de acordo nem com a realidade nem com os progressos da teoria econômica moderna, que também havia mostrado que, mesmo quando a economia estava próxima ao pleno emprego e os mercados eram competitivos, a alocação e ciente dos recursos continuava a ser algo difícil.   O enfoque do equilíbrio geral   Há mais de cem anos, a principal corrente da teoria econômica tem sido dominada pelo que se conhece como modelo de Walras, ou modelo do equilíbrio geral, em homenagem ao matemático e economista francês Léon Walras, que o articulou pela primeira vez em 1874.7 Ele descreveu a economia como um estado de equilíbrio — semelhante ao equilíbrio newtoniano na física — em que preços e quantidades são determinados pelo jogo entre oferta e demanda. Uma das grandes conquistas da ciência econômica moderna foi o uso desse modelo para avaliar a e cácia da economia de mercado. No mesmo ano em que os Estados Unidos declararam sua independência, Adam Smith publicou seu famoso tratado, A riqueza das nações, no qual a rmou que a busca do interesse próprio levaria ao bem-estar geral da sociedade. Cento e setenta e cinco anos depois, Kenneth Arrow e Gerard Debreu, usando o modelo de Walras, explicaram o que era necessário para que a percepção de Adam Smith fosse correta.8 A economia era e ciente — no sentido de que ninguém poderia estar melhor sem que alguém mais estivesse pior — apenas em condições muito estritas.9 Os mercados precisariam ser mais que competitivos: teria de haver todo um conjunto de mercados de seguro (deveria ser possível fazer seguro contra qualquer tipo de risco), os mercados de capitais teriam que ser perfeitos (seria possível tomar emprestado tudo o que se quisesse e pelo tempo que se desejasse, a taxas de juros competitivas e ajustadas ao risco) e

não poderia haver externalidades ou bens públicos. As circunstâncias em que os mercados não chegassem a produzir resultados e cientes eram chamadas, muito naturalmente, falhas do mercado. Como acontece tantas vezes na ciência, seu trabalho inspirou uma grande quantidade de pesquisas. As condições em que demonstraram que a economia era e ciente eram tão estritas que levavam a um debate sobre a real e ciência do mercado. Algumas falhas, ainda que importantes, requeriam apenas uma intervenção governamental limitada. Sim, o mercado por si só levaria a uma externalidade, como o excesso de poluição, mas o governo poderia combater a poluição ou taxar as empresas poluentes. Os mercados poderiam resolver, ainda, a maior parte dos problemas econômicos da sociedade. Outras falhas do mercado, como mercados de risco imperfeitos — em que as pessoas não conseguem fazer seguros contra muitos dos riscos mais importantes que correm —, constituíam um problema mais difícil. Os economistas se perguntavam se, mesmo com mercados de risco imperfeitos, os mercados em geral ainda eram e cientes em algum sentido da palavra. Muitas vezes, na ciência, certas premissas são tão consagradas e aceitas pelo pensamento comum que ninguém já as percebe como simples premissas. Quando Debreu listou as premissas utilizadas para comprovar a e ciência do mercado, não mencionou a premissa implícita de que todos possuíam informações perfeitas. Além disso, ele supôs que os bens e os produtos, sejam casas ou carros, eram uniformes, como uma espécie de ideal platônico.10 Como sabemos, o mundo real é mais confuso. As casas e os carros são diferentes entre si de maneiras que podem ser muito complexas. Do mesmo modo, Debreu tratou a mão de obra como qualquer outro produto. Todos os trabalhadores não especializados, por exemplo, eram idênticos. Os economistas tomavam como premissa que a informação fosse perfeita, mesmo sabendo que não era assim. Os teóricos tinham a esperança de que um mundo com informação imperfeita fosse muito semelhante a um mundo com informação perfeita — pelo menos enquanto as imperfeições

da informação não fossem grandes demais. Mas era apenas uma esperança. Além disso, o que caracteriza uma imperfeição de informação como grande? Os economistas não dispunham de um método rigoroso para determinar o tamanho das imperfeições da informação. Era óbvio que o mundo estava repleto de imperfeições da informação. Um trabalhador é diferente de outro e um produto é diferente de outro. Gastava-se grande quantidade de recursos para determinar que trabalhadores ou que produtos eram melhores que outros. As companhias de seguro hesitavam em dar cobertura quando não estavam seguras da extensão do risco, e do mesmo modo os emprestadores hesitavam em fazer empréstimos de dinheiro quando havia incerteza a respeito do seu pagamento. Um dos argumentos mais populares a favor de uma economia de mercado era o incentivo que ela oferecia à inovação. Contudo, Arrow e Debreu não haviam tomado a inovação como premissa. Se houvesse progresso tecnológico, seu ritmo não era afetado por nenhuma decisão tomada na economia. Evidentemente, esses economistas sabiam da importância das inovações. Mas, assim como seus instrumentos de trabalho tinham problemas para lidar com a questão da imperfeição da informação, o mesmo acontecia com relação à inovação. Os defensores do mercado podiam apenas ter a esperança de que as conclusões a que chegavam a respeito da e ciência do mercado permaneciam válidas em um mundo com inovações. Mas a própria premissa do modelo signi cava que este não era capaz de resolver questões como a de saber se o mercado alocava recursos su cientes para a inovação, ou se orientava corretamente os gastos com inovações. As respostas às dúvidas sobre a generalização dos resultados do modelo de Walras — sobre sua sensibilidade em relação às premissas da informação perfeita, os mercados de risco imperfeitos, a ausência da inovação e assim por diante — foram apresentadas com clareza em uma série de trabalhos que escrevi com diversos coautores, principalmente meu colega da Universidade Columbia Bruce Greenwald.11 Com efeito, demonstramos que Arrow e Debreu haviam estabelecido o único conjunto de condições

nas quais os mercados eram e cientes. Quando essas condições não eram satisfeitas, sempre havia algumas intervenções governamentais que podiam melhorar as coisas para todos. Nosso trabalho também demonstrou que mesmo pequenas imperfeições da informação (e sobretudo as assimetrias de informação — em que uma pessoa conhece informações de que outras não dispõem) afetam drasticamente a natureza do equilíbrio do mercado. Com mercados perfeitos (o que inclui informações perfeitas), sempre há pleno emprego; com informações imperfeitas, pode haver desemprego. O fato é que não era verdade que um mundo com informação quase perfeita fosse similar ao mundo da informação perfeita.12 Do mesmo modo, embora fosse certo que a competição pode fornecer incentivos à inovação, não era verdade que os mercados fossem e cientes na determinação da quantidade ideal dos gastos com inovações e da melhor orientação das pesquisas.   A reação   Esses novos resultados mostraram que não havia base cientí ca para a suposição de que os mercados fossem e cientes. Era certo que os mercados propiciam incentivos, mas as falhas do mercado apareciam em todas as partes e as diferenças entre os ganhos sociais e os privados eram persistentes. Em alguns setores — como saúde, seguros e nanças —, os problemas eram maiores do que em outros e, naturalmente, o governo concentrava a atenção nesses setores. O governo, é óbvio, também sofre com as imperfeições da informação. Por vezes tinha acesso a informações que o mercado desconhecia e, o que é ainda mais importante, tinha objetivos e instrumentos diferentes. O governo pode, por exemplo, desencorajar o fumo mesmo que a indústria dos cigarros seja lucrativa, por perceber que há outros custos sociais (como os gastos adicionais com a saúde) com os quais as companhias de cigarros não arcam. E pode fazê-lo tanto por meio da regulação da propaganda quanto da aplicação de impostos.

Os economistas acadêmicos da direita não receberam esses resultados com entusiasmo. Inicialmente buscaram identi car premissas ocultas, erros matemáticos ou formulações alternativas. É frequente a ocorrência desse tipo de erro de análise — como demonstrado pela própria análise da e ciência da economia de mercado. Todas as tentativas de refutação fracassaram. Vinte e cinco anos depois da publicação do nosso trabalho, os resultados permanecem válidos. Os economistas conservadores caram com uma alternativa: poderiam a rmar que as questões que levantamos, como as relativas às imperfeições da informação, eram preciosismos teóricos. Eles retornaram ao velho argumento de que, com informações perfeitas (e todas as demais premissas), os mercados são e cientes e simplesmente a rmaram que um mundo com um grau limitado de imperfeição de informação era quase perfeitamente e ciente. Ignoraram as análises que demonstravam que mesmo pequenas assimetrias de informação podiam provocar grandes efeitos. Também simplesmente ignoraram os múltiplos aspectos da economia real — inclusive os repetidos episódios de desemprego maciço — que não podiam ser explicados por modelos com informação perfeita. Em vez disso, concentraram-se em alguns fatos que eram compatíveis com os seus modelos. Apesar de tudo, não tinham como provar que o mercado era quase e ciente. Tratava-se de uma posição teológica, e logo cou claro que não havia nenhuma comprovação ou pesquisa teórica que pudesse demovêlos da sua crença. O segundo enfoque reconhecia a existência de problemas econômicos, mas se dirigia ao cenário político: sim, o mercado é ine ciente, mas o governo é pior. Era uma linha curiosa de pensamento. De repente os economistas haviam se tornado cientistas políticos. Seus modelos e suas análises econômicas eram falhos e os seus modelos e as suas análises políticas não se mostraram melhores. Em todos os países de êxito, inclusive os Estados Unidos, o governo desempenhou funções cruciais para seu sucesso. Nos capítulos precedentes descrevi algumas dessas funções: a

regulação dos bancos, o controle da poluição, a promoção da educação e até mesmo da pesquisa. O governo desempenhou um papel importantíssimo nas economias extremamente bem-sucedidas do Extremo Oriente. Os aumentos lá ocorridos na renda per capita nas últimas três ou quatro décadas não têm precedentes na história. Em quase todos esses países o governo teve um papel ativo na promoção do desenvolvimento através dos mecanismos de mercado. A China cresceu em média 9,7% ao ano por mais de trinta anos e conseguiu tirar centenas de milhões de pessoas da pobreza. O surto de desenvolvimento do Japão, também promovido pelo governo, foi anterior, mas Cingapura, Coreia, Malásia e vários outros países seguiram e adaptaram a estratégia japonesa e viram sua renda per capita se multiplicar por oito em 25 anos. É claro que os governos, assim como os mercados e as pessoas, são falíveis. Mas no Extremo Oriente e em outras partes, os êxitos superaram em muito os insucessos. A melhora no desempenho econômico requer bons mercados e também bom governo. Não há base para o argumento de que, como os governos às vezes falham, não deveriam intervir nos mercados quando os mercados falham — assim como não há base para o argumento oposto, o de que, como os mercados às vezes falham, deveriam ser abandonados.   O fracasso do modelo neoclássico   O modelo dos mercados perfeitos é por vezes chamado de modelo neoclássico.13 A ciência econômica é tida como uma ciência de previsões, mas muitas das previsões mais importantes da economia neoclássica podem ser rejeitadas com facilidade. A mais óbvia é a de que não há desemprego.14 Assim como o equilíbrio dos mercados implica que a demanda de maçãs se iguale à oferta, assim também (segundo essa teoria) a demanda de trabalho se iguala à oferta. No modelo neoclássico, qualquer desvio do equilíbrio é fugaz — de duração tão curta que não valeria a pena que o governo zesse

alguma coisa a respeito dele. Acreditem se quiser, mas há economistas ortodoxos — inclusive pelo menos um recente ganhador do prêmio Nobel de Economia — que creem que a crise atual não é grande coisa. Algumas pessoas estão simplesmente desfrutando de um pouco mais de descanso do que o normal. Essa não é a única conclusão estranha da ciência econômica neoclássica. Seus seguidores também argumentam que a escassez de crédito não existe. Qualquer pessoa pode tomar emprestado tudo o que quiser, pagando, é claro, uma taxa de juros que re ita apropriadamente o risco de inadimplência. Para esses economistas, a crise de liquidez que aconteceu em 15 de setembro de 2008 foi apenas um fantasma, uma criação da imaginação de alguém.15 Um terceiro exemplo do divórcio entre a ciência econômica ortodoxa e a realidade se relaciona com a estrutura nanceira das corporações: não importa se uma empresa se nancia com dívidas ou capitalização. Essa foi uma das principais contribuições de Franco Modigliani e de Merton Miller, que receberam o prêmio Nobel de Economia em 1985 e 1990, respectivamente.16 Como acontece com tantas ideias neoclássicas, há um pouco de verdade nisso — e pode-se aprender muito seguindo essa lógica. Eles alegam que o valor da empresa depende apenas do valor dos ganhos que esta gera e não importa muito se esses ganhos aparecem sobretudo sob a forma de dívidas (com um pagamento xo, a despeito do nível dos lucros), com um resíduo aparecendo como capitalização, ou se aparecem sobretudo como capitalização. É como dizer que o valor de um litro de leite integral é igual ao valor do leite desnatado mais a nata. Modigliani e Miller ignoraram a possibilidade da falência e dos custos a esta associados — assim como o fato de que, quanto mais a empresa tome emprestado, maior será a probabilidade da falência. Também ignoraram a informação que poderia ser transmitida pela decisão de um proprietário de vender ações: se um proprietário vende suas ações a um preço muito baixo, isso, quase com certeza, indica ao mercado algo sobre a visão que ele tem das perspectivas da rma.

Um quarto, e crucial, aspecto da ciência econômica neoclássica posto a nu pela crise atual foi a explicação que deu para o fator determinante das rendas e das desigualdades. Como explicar os salários relativos dos trabalhadores especializados e não especializados ou o pagamento dos executivos das corporações? A teoria neoclássica dava uma explicação para a desigualdade dizendo que cada trabalhador recebe um pagamento que re ete sua contribuição marginal para a sociedade. Os recursos são escassos, e os recursos mais escassos têm preços mais altos, o que assegura que sejam bem utilizados. Interferir no pagamento dos executivos, segundo esse ponto de vista, seria interferir na e ciência do mercado. Nos últimos 25 anos, têm havido dúvidas crescentes sobre a capacidade dessa teoria para explicar o extraordinário aumento das compensações dos principais executivos das empresas, que eram cerca de quarenta vezes maiores do que o pagamento de um trabalhador comum e passaram a ser centenas ou milhares de vezes maiores.17 Os altos executivos não se tornaram de repente cada vez mais produtivos, nem se tornaram de repente cada vez mais escassos. Tampouco se podia comprovar que o chefe supremo fosse muito mais capaz do que o número dois da empresa. A teoria neoclássica tampouco conseguia explicar por quê, em um mundo globalizado, com tecnologias similares disponíveis em diferentes países, essas disparidades de remuneração eram tão maiores nos Estados Unidos que em outros países. As dúvidas a respeito da teoria aumentaram quando os bônus dos executivos nanceiros continuaram altos mesmo quando era visível sua forte contribuição negativa, tanto para as rmas em que trabalhavam quanto para a sociedade como um todo. Sugeri antes uma explicação alternativa: os problemas na governança corporativa signi cavam que não existia uma relação estreita entre a remuneração e a contribuição social “marginal”. Se isso é verdade, há profundas implicações para as políticas que visam a melhorar a distribuição de renda de uma sociedade. O exemplo nal é o de que, na teoria neoclássica, não existe o que se chama discriminação.18 O argumento teórico era simples: se houvesse discriminação e uma pessoa qualquer da sociedade não discriminasse, esse

alguém contrataria pessoas da comunidade discriminada, pois seus salários seriam menores. Isso faria que esses salários aumentassem até chegar ao ponto em que qualquer diferença entre grupos étnicos desapareceria. Sou de Gary, Indiana, uma cidade da indústria do aço, na costa sul do lago Michigan. Na juventude, vi que havia um desemprego persistente, que aumentava à medida que a economia passava por sucessivas recessões. Percebia que, quando as pessoas da minha cidade enfrentavam tempos difíceis, não podiam ir ao banco e obter dinheiro para sobreviver. Via a discriminação racial. Quando comecei a estudar economia, nenhuma dessas conclusões da teoria neoclássica fazia sentido para mim. Isso me motivou a buscar alternativas. Como fazem os estudantes, eu e meus colegas discutíamos sobre qual das premissas da teoria (neo)clássica era relevante — qual era a responsável pelas conclusões “absurdas” da teoria.19 Era óbvio, por exemplo, que os mercados estavam longe de ser perfeitamente competitivos.20 Em um mercado perfeitamente competitivo, uma rma que abaixasse os preços, ainda que muito pouco, caria com o mercado inteiro para si. Um país pequeno nunca teria desemprego: com o simples ato de baixar a taxa de câmbio, poderia exportar o quanto quisesse dos seus produtos. A premissa da competição perfeita era essencial, mas me parecia que seu impacto principal em uma economia grande como a americana ocorria na distribuição da renda. Os que detinham um poder monopolístico podiam acumular para si uma parte maior da renda nacional — e, em razão do exercício desse poder sobre o mercado, a renda nacional poderia ser menor. Mas não havia razão para crer que uma economia cheia de monopólios se caracterizaria pelo desemprego, pela discriminação racial ou pela escassez de crédito. Quando me dediquei à minha pesquisa universitária, eu acreditava que havia dois tipos fundamentais de premissas — as relativas à informação e as relativas à natureza humana. A economia é uma ciência social. Trata de como os indivíduos interagem para produzir bens e serviços. Para dar resposta à questão de como eles interagem, é preciso descrever mais extensamente seu comportamento. Foram “racionais”? A crença na

racionalidade está profundamente impregnada na ciência econômica. A introspecção — e, mais ainda, uma olhada em meus companheiros — me convenceu de que isso era bobagem. Logo vi que meus colegas estavam irracionalmente entregues à premissa da racionalidade e que não seria fácil abalar sua convicção. Tomei, então, o caminho mais fácil: mantive a premissa da racionalidade, mas mostrei que mesmo as mudanças mais tênues nas premissas da informação modi cavam totalmente os resultados. Era fácil derivar teorias que pareciam muito mais de acordo com a realidade — inclusive novas teorias sobre desemprego, escassez de crédito e discriminação —, e era fácil entender por que a estrutura nanceira das corporações (a escolha entre nanciar-se através de empréstimos ou da emissão de ações) tinha grande importância.   Homo economicus   A maioria de nós tende a não se identi car com a visão do homem que permeia o modelo econômico vigente — a de um indivíduo calculador, racionalista, interessado em si mesmo e em seu próprio proveito. Não há lugar para a empatia, o espírito público ou o altruísmo. Um aspecto interessante da ciência econômica é que a descrição feita pelo modelo retrata melhor um economista do que os demais indivíduos, e quanto mais uma pessoa estuda economia, mais parecida ca com a gura do modelo.21 O signi cado que a ciência econômica atribui à racionalidade não é exatamente o utilizado pelas pessoas comuns. O sentido dado pelos economistas pode ser mais bem descrito como coerência. Se um indivíduo tem preferência por sorvete de chocolate e não de baunilha, sempre que ele tiver a escolha a preços iguais, tomará a mesma decisão. A racionalidade também envolve a coerência em situações de escolhas mais complexas: se um indivíduo tem preferência por sorvete de chocolate e não de baunilha e por sorvete de baunilha e não de morango, se tiver de escolher entre chocolate e morango, escolherá sempre chocolate.

Há ainda outros aspectos ligados a essa “racionalidade”. Um deles é o princípio básico que mencionei no capítulo 5: esquecer o passado. Os indivíduos devem sempre olhar para a frente. Um exemplo corriqueiro ilustra que a maior parte dos indivíduos não é racional nesse sentido. Suponhamos que você gosta de ver jogos de futebol, mas não gosta de car molhado. Se alguém lhe der uma entrada grátis para um jogo de futebol na chuva, você não aceitará. Suponhamos que você tenha comprado uma entrada para o mesmo jogo por cem dólares. Como a maioria dos indivíduos, você terá di culdade em jogar fora os cem dólares. Então, você vai ao jogo, embora com raiva de car molhado. Um economista diria que você é irracional. Infelizmente, os economistas levaram o modelo da racionalidade além do domínio que lhe é próprio. A gente aprende a saber do que gosta — o que nos dá prazer — através da repetição das experiências. A gente experimenta diferentes tipos de sorvete, ou diferentes qualidades de alface. Mas os economistas tentaram usar esse mesmo modelo para explicar as decisões que têm a ver com o tempo, como a de economizar para a aposentadoria. Deveria ser óbvio: não há maneira de saber se a gente deveria ter economizado mais ou menos até ser tarde demais. E, nesse momento, já não há como aprender com a experiência. No nal da sua vida, você poderá dizer: “Eu deveria ter economizado mais. Estes últimos anos têm sido difíceis e eu, de bom grado, teria deixado de passar as minhas férias na praia para ter um pouco mais de dinheiro agora”. Ou então você poderá dizer: “Eu deveria ter economizado menos. Poderia ter aproveitado o dinheiro muito mais quando era jovem”. Em ambas as hipóteses, não podemos recuar no tempo e reviver nossa vida. A menos que a reencarnação seja um fato, o que se aprendeu já não tem valor. Já não tem muito valor nem mesmo para nossos lhos e netos, porque o contexto econômico e social que prevalecerá nos anos vindouros será muito diferente do de hoje. Por conseguinte, não está claro o que os economistas querem obter quando tentam estender seu modelo de racionalidade, que se aplica a escolhas de tipos de sorvetes, às grandes decisões da vida, como quanto se

deve poupar, ou como se deve investir a poupança feita para os anos da aposentadoria. Além disso, para o economista, a racionalidade não signi ca que os indivíduos necessariamente agirão de maneiras condizentes em termos gerais com o que os faz felizes. Os americanos gostam de falar em trabalhar duro para a família. Mas alguns trabalham tão duro que cam sem tempo para estar com a família. Os psicólogos têm estudado a felicidade e muitas das escolhas que os indivíduos fazem — e muitas das mudanças na estrutura da nossa economia — talvez não produzam felicidade.22 As ligações com outras pessoas são importantes para a sensação de bem-estar, mas muitas das mudanças ocorridas na nossa sociedade têm erodido essas ligações, o que está muito bem retratado no livro clássico de Robert Putnam, Bowling alone.23 Tradicionalmente os economistas têm pouco a dizer sobre a relação entre o que os indivíduos fazem e o que lhes traz felicidade, ou uma sensação de bem-estar, e, assim, se concentram na noção muito mais estreita de coerência.24 As pesquisas dos últimos 25 anos revelam que os indivíduos de fato se comportam de modo coerente — mas com uma coerência marcadamente diferente da prevista pelo modelo-padrão da racionalidade. Nesse sentido, eles são previsivelmente irracionais.25 As teorias ortodoxas argumentam, por exemplo, que os indivíduos “racionais” devem se interessar apenas por salários e rendas reais, ajustadas à in ação. Se os salários caem 5%, mas os preços também caem 5%, eles não sofrem nenhum efeito. Contudo, existe ampla comprovação de que os trabalhadores não gostam de ver seus salários caírem. Um empregador que corta os salários quando os preços caem seria visto de maneira muito mais negativa do que um empregador que desse um aumento de 1% quando os preços sobem 5% — muito embora a perda salarial nesse caso seja maior. Muitos proprietários que tentam vender suas casas mostram uma irracionalidade similar. Recusam-se a vender a propriedade a menos que recebam uma soma igual ou maior do que a que pagaram por ela. Suponhamos que a casa custou 100 mil dólares e que, ao preço atual de

mercado, valha 90 mil. A in ação, no entanto, faz aumentar todos os preços ao ritmo de 5% ao ano. Muitos proprietários preferirão esperar dois anos — com grandes inconveniências no período — até que o preço da casa suba para o nível dos 100 mil dólares, embora, em termos reais, não adiante nada esperar. Nos capítulos anteriores, dei exemplos de comportamentos quase esquizofrênicos nos mercados nanceiros. Funcionários de bancos disseram que não ajustaram posições em seguros de crédito porque não havia risco de que a contraparte fosse à falência — quando os próprios seguros de crédito são apostas sobre a possibilidade de que a contraparte vá à falência. Emprestadores, tomadores de empréstimo e securitizadores, todos acreditavam que os preços das casas subiriam inde nidamente, apesar de os salários estarem baixando; e as estimativas de inadimplências futuras estavam baseadas em dados históricos que mostravam taxas baixas de inadimplência, como se a queda recente dos níveis de garantia não zesse diferença.26 Os modelos econômicos em voga supunham fantasiosamente que os indivíduos não só eram racionais, como super-racionais — que sabiam usar estatísticas so sticadas, empregando todos os dados acumulados, e fazer as melhores previsões possíveis sobre o futuro. A ironia está em que nem mesmo os economistas que acreditavam que os indivíduos comuns saberiam fazer essas previsões conseguiram fazê-las. Não enxergaram a bolha quando esta estava se formando; e mesmo depois que a bolha estourou não enxergaram as consequências que isso traria para a economia. Ignoraram, irracionalmente, dados cruciais e caram irracionalmente presos à ideia de que os mercados eram racionais, de que não havia bolha nenhuma e de que os mercados são e cientes e capazes de se autocorrigir. As próprias bolhas fornecem consideráveis informações sobre o comportamento e a teoria econômica. O modelo-padrão supõe que os mercados de futuros (em que se fazem transações de compra e venda hoje para entregas no futuro) existem, mas que também existem para todas as coisas: pode-se comprar e vender não só para fazer as entregas amanhã,

mas também para os dias seguintes e assim por diante, eternamente. O modelo-padrão também supõe que é possível fazer seguro contra todo tipo de risco imaginável. Essas premissas irrealistas têm implicações profundas. Se houvesse mercados para todos os bens e todos os riscos, que se estendessem in nitamente pelo tempo futuro e que cobrissem todos os riscos, é pouco provável que as bolhas pudessem existir. Os proprietários de casas fariam seguro contra o risco de um colapso nos preços. Com toda a probabilidade, o alto prêmio que teriam de pagar pelo seguro — se eles e os mercados fossem racionais — lhes teria dado um sinal de que o mercado não estava con ante em que os preços continuariam a subir, por mais que os corretores imobiliários dissessem o contrário.27 Contudo, normalmente as bolhas não são apenas fenômenos econômicos, mas também fenômenos sociais. Os economistas começam pela premissa de que as preferências (aquilo de que os indivíduos gostam ou não gostam) não passam de consequências genéticas, mas sabemos que isso não é verdade. Não há diferença genética entre franceses e americanos que possa explicar as diferenças em suas preferências alimentares. Não há diferença genética que explique por que os europeus gostam de passar mais tempo descansando e os americanos gostam de passar mais tempo trabalhando. Não há diferença genética entre os que nos anos 1960 gostavam de bambolê e os que hoje não gostam. Nossas convicções a respeito do mundo são igualmente afetadas pelas convicções dos que nos rodeiam. As convicções dos sindicalistas e as dos magnatas de Wall Street a respeito de vários tópicos são muito diferentes. Algumas dessas convicções decorrem de interesses diferentes. Cada um de nós tende a agir de acordo com convicções que re etem políticas que favorecem nosso próprio bem-estar. Mas as predisposições pessoais também diferem porque vivemos em comunidades diferentes, já que em cada uma as pessoas tendem a compartilhar certos pontos de vista. A maioria dos americanos se sentiu indignada porque Wall Street usou dinheiro dos contribuintes para pagar bônus superdimensionados apesar das enormes perdas das suas rmas. Mas a visão corrente em Wall Street era de

indignação porque o presidente Obama criticou esses bônus, o que, visto desse ângulo, cheirava a populismo e jogava as massas contra Wall Street. Os biólogos estudam o comportamento de rebanho — o movimento coletivo de grupos de animais, que por vezes parecem ignorar os interesses individuais. Os lemingues se lançam uns após os outros em precipícios. Os seres humanos às vezes também se comportam de maneiras que parecem tolas.28 Em seu livro Colapso, Jared Diamond descreve como os habitantes da ilha de Páscoa se dedicaram coletivamente a cortar árvores, ainda que isso levasse ao colapso da sua civilização.29 As bolhas têm características similares. Alguns são crédulos o su ciente para acreditar que os preços das casas subirão para sempre. Outros poderão ter algum grau de ceticismo, mas acham que são mais espertos que os demais e que saberão a hora certa de sair da bolha antes que ela estoure. É uma falha humana: como a maior parte dos meus alunos, todos creem que estão entre os mais inteligentes da turma. As pessoas conversam, e com isso suas convicções — como, por exemplo, a de que a bolha não vai estourar no futuro previsível — se consolidam. As autoridades também são in uenciadas e estimulam o processo: não há bolha — só uma pequena utuação; além disso, não é possível identi car uma bolha antes que ela estoure. Esse ciclo de a rmações torna difícil a prevalência dos que dizem não. Quando a bolha estoura, todos dizem: “Quem poderia imaginar?”. Eu estava no encontro de Davos em janeiro de 2008; a bolha já estourara em agosto de 2007, embora os otimistas ainda mantivessem a opinião de que as consequências seriam de pouca importância. Quando eu e mais uns dois colegas explicamos como a bolha se havia desenvolvido e qual era o signi cado do seu rompimento, um coro de presidentes de Bancos Centrais na primeira la entoou: “Ninguém previu isso”. Essa a rmação foi imediatamente contestada pelo mesmo grupinho que falava sobre a bolha havia vários anos. Mas, em certo sentido, os presidentes dos Bancos Centrais tinham razão: ninguém com credibilidade no seu círculo havia contestado a visão predominante. Mas aí havia uma tautologia porque

ninguém que contestasse a visão predominante teria credibilidade. Externar pontos de vista ajuda a pessoa a ser social e intelectualmente aceita.   Consequências   O fato de indivíduos agirem sistematicamente de maneira irracional tem diversas implicações. Firmas astutas descobrem oportunidades de lucro ao explorar irracionalidades. O setor nanceiro compreendeu que a maior parte dos indivíduos não lê ou não entende o que está escrito em letra miúda nos formulários de cartões de crédito. Uma vez que tenha um cartão de crédito, a pessoa o usará, e esse uso gerará grandes taxas. Apesar disso, a maior parte dos usuários não buscará um cartão mais conveniente — em parte por acreditar que seriam burlados da mesma maneira, ou talvez mais ainda. Sob esse ponto de vista, eles podem ser racionais. As pessoas do setor imobiliário sabiam que a maioria dos indivíduos entenderia o arsenal de taxas e custos de transação; que os corretores imobiliários e ainda mais os corretores hipotecários contariam com a “con ança” dos clientes. Sabiam também que a burla não seria notada até muito depois da concretização dos empréstimos. Mesmo que fosse descoberta, haveria poucas consequências e, em qualquer caso, o dinheiro estaria com eles enquanto isso não ocorresse. Essas irracionalidades sistêmicas também podem levar a utuações macroeconômicas. A exuberância irracional leva às bolhas e às altas súbitas. O pessimismo irracional leva às recessões. No período da exuberância irracional, os indivíduos subestimam os riscos. Já o zeram no passado e, quase com toda a certeza, quando a memória desta crise se desvanecer, voltarão a fazê-lo no futuro. Quando os preços dos ativos começam a subir, as pessoas tomam empréstimos contra os colaterais, desde que os bancos lhes permitam fazê-lo, e isso pode criar uma bolha de crédito. Como os problemas são previsíveis, o governo — por meio das políticas monetária, scal e regulatória — pode tomar medidas para estabilizar a economia.30 O governo tem um papel importante a desempenhar: não só deve tentar impedir a exploração das irracionalidades dos indivíduos como também

ajudá-los a tomar as melhores decisões. Consideremos a situação descrita antes em que a pessoa deve decidir quanto deve poupar para a aposentadoria. Uma das descobertas da moderna “economia do comportamento” (behavioral economics), o ramo da ciência econômica que estuda essas irracionalidades sistemáticas, é que o contexto em que as perguntas são formuladas e a maneira como são feitas podem afetar as escolhas dos indivíduos. Assim, se um empregador dá ao trabalhador a escolha entre três diferentes taxas de contribuição para a sua aposentadoria, digamos, de 5%, 10% ou 15%, a maneira como são apresentadas faz uma grande diferença. O empregador pode dizer, por exemplo: “Nós vamos descontar 10% do seu salário para a sua aposentadoria a menos que você nos instrua a fazer algo diferente: por favor, indique se você prefere 5% ou 15%”. Nesse caso, o trabalhador tenderá a agir de acordo com a sugestão do empregador. Isso se denomina “escolha preferencial automática” (default). A re exão sobre qual escolha preferencial faz mais sentido para o indivíduo em diferentes circunstâncias e a consequente seleção cuidadosa da escolha preferencial pode levar, em média, os indivíduos a tomarem as melhores decisões.31 É claramente importante que os que conduzem os indivíduos dessa maneira não atuem com outras intenções. Um empregador que administre seu próprio fundo de pensão pode ver nisso um incentivo para obter um endosso a taxas mais altas. À medida que estudam a maneira como os indivíduos tomam decisões, as empresas podem tentar — e tentam — tirar vantagens desse conhecimento. O governo dos Estados Unidos não começou ainda a usar o conhecimento da psicologia humana para coibir abusos, mas fez um esforço articulado, na primavera de 2008, com o m de usar esse conhecimento para ajudar o país a sair da recessão. Keynes disse que os investidores podem ser motivados por um espírito animal — “um impulso inato para a ação e não para a inação — e não o resultado de uma aferição meticulosa dos benefícios quantitativos médios, multiplicada pelas probabilidades quantitativas”.32 Se é assim, e se fosse possível mudar o espírito de uma

época, então seria possível tirar a economia de um estado mental de depressão e levá-la a um sentimento de esperança — e talvez até a um sentimento de euforia, pela crença de que o pior já teria passado. Talvez motivado por isso,33 cerca de dois meses após a posse de Barack Obama, o governo lançou a campanha dos “brotos verdes” para indicar que havia sinais de recuperação. E havia bases reais para a esperança: em muitas áreas o sentido de queda livre havia desaparecido; o índice do declínio diminuíra; ou, como diriam os que têm inclinação matemática, a segunda derivada se tornara positiva. Há muito tempo os economistas vinham ressaltando a importância do papel que as expectativas exercem sobre as ações: as convicções podem afetar a realidade. Com efeito, em muitas áreas os economistas haviam concebido modelos com equilíbrios múltiplos, cada qual com expectativas de satisfação independentes. Se os operadores do mercado acreditassem que haveria muitas falências, cobrariam taxas de juros mais altas para compensar as perdas; e com as taxas de juros mais altas, de fato haveria mais falências. Mas se estivessem certos de que haveria poucas falências, cobrariam taxas de juros baixas e com as taxas baixas, sem dúvida haveria menos falências.34 No caso apontado, o governo e o Banco Central esperavam que as crenças otimistas se tornassem contagiosas. Se muitos acreditassem que as coisas estavam melhorando, recomeçariam a consumir e a investir. E, se o número dos que acreditavam nisso fosse su ciente, as coisas efetivamente melhorariam. Mas as expectativas precisam ter base na realidade. As coisas melhorariam o su ciente para satisfazer suas convicções e expectativas? Se não fosse assim, o desapontamento voltaria a prevalecer mais adiante. E com o desapontamento, poderia haver mais contrações e o reforço da convicção original de que a nação estava destinada a passar por uma recessão prolongada. No caso em pauta, havia boas razões para preocupação. Mesmo que os bancos fossem reparados, mesmo que os americanos sentissem mais otimismo com relação ao futuro, a realidade era que a bolha e o otimismo irracional que sustentara o consumo antes de

2008 não existiam mais.35 Com o rompimento da bolha, muitas famílias e muitos bancos sofreram graves perdas. Mesmo quando terminasse o período da queda livre; mesmo quando retornasse o (pequeno) crescimento positivo, o desemprego continuaria alto e até cresceria ainda, por um tempo considerável. Os economistas poderiam se meter em querelas semânticas — alegando que, quando o crescimento se torna positivo, a recessão termina. Mas para a maioria dos americanos, como assinalei antes, a recessão só termina quando o pleno emprego retorna e quando os salários voltam a subir. O otimismo amparado apenas no m da queda livre e no m da recessão do ponto de vista técnico não seria sustentável — ainda que se diga repetidamente aos americanos que a situação melhorou. A disparidade entre suas expectativas e a realidade poderia acentuar o sentimento de depressão. Estimular a vivacidade com palavras só funciona até certo ponto. Pode elevar temporariamente o preço das ações. Pode até induzir temporariamente o aumento do consumo. Mas não é possível pôr m a uma recessão do porte da de 2008 só na base da palavra.     as batalhas macroeconômicas

  Dentro da catedral da ciência econômica ortodoxa, há muitas capelas dedicadas a problemas especializados. Cada uma tem seus próprios sacerdotes e o seu próprio catecismo. A guerra de ideias a que me referi se re ete em uma in nidade de batalhas e escaramuças em cada uma dessas subdisciplinas. Nesta seção e nas três outras que se seguem, descrevo quatro delas, ligadas a quatro temas desta derrocada: macroeconomia, política monetária, nanças e a economia da inovação. A macroeconomia estuda os movimentos da produção e do emprego e busca compreender por que a economia é marcada por utuações, com episódios intermitentes de desemprego alto e subutilização da capacidade produtiva. Em geral, as batalhas na arena das ideias econômicas são afetadas por um curioso jogo entre a evolução do pensamento dentro da

disciplina e os fatos. Como já vimos, na esteira da Grande Depressão se formou o consenso de que os mercados não são dotados de autocorreção — pelo menos em um período de tempo razoável. (É irrelevante que os mercados, se entregues à sua própria sorte, possam retornar ao pleno emprego em dez ou vinte anos.) Para a maioria dos economistas, o fato de que o desemprego pudesse subir até 25% (em 1933) era comprovação su ciente de que os mercados não eram e cientes. Nos últimos 25 anos, no entanto, os macroeconomistas se concentraram em modelos nos quais os mercados são considerados estáveis e e cientes. É de esperar que esta crise os induza a repensar a premissa. Já descrevi como os economistas abandonaram a ciência econômica keynesiana à medida que a atenção se deslocava do desemprego para a in ação e o crescimento. Mas havia outra base conceitual para a mudança. A microeconomia, que analisa o comportamento das rmas, e a macroeconomia, que analisa o comportamento da economia como um todo, se desenvolveram nos anos posteriores a Keynes, sob a forma de duas subdisciplinas separadas, que usavam modelos diferentes e chegavam a conclusões diferentes. Os modelos “micro” diziam que o desemprego não podia existir — mas o desemprego era a espinha dorsal do keynesianismo. A microeconomia ressaltava a e cácia dos mercados; e a macroeconomia se ocupava do enorme desperdício de recursos que ocorre nas recessões e depressões. Em meados da década de 1960, tanto os macroeconomistas quanto os microeconomistas perceberam que essa dicotomia no seio da ciência econômica era um estado de coisas insatisfatório.36 E ambos os lados queriam proporcionar um enfoque uni cado. Uma escola de pensamento — in uente na formulação das políticas de desregulação que tiveram papel signi cativo na crise atual — a rmava que o enfoque de equilíbrio competitivo da microeconomia oferecia os alicerces adequados para a macroeconomia. Essa escola, baseada no modelo neoclássico, era por vezes denominada “Nova Escola Clássica”, ou “Escola de Chicago”, porque alguns dos seus sumos sacerdotes eram professores da Universidade de Chicago.37 Como eles acreditavam que os mercados são

sempre e cientes, sustentavam que não era preciso incomodar-se com as utuações econômicas, como a recessão atual — que eram apenas os ajustes da e ciência da economia aos choques (como as mudanças de tecnologia) que vinham de fora. Era um enfoque com fortes prescrições de políticas, que reservavam um papel mínimo ao governo. Embora fossem baseadas nos modelos neoclássicos de Walras, suas análises continham mais uma simpli cação — a de que todos os indivíduos são idênticos. Era o chamado “modelo do agente representativo”. Mas se todos os indivíduos são idênticos, não pode haver nem emprestadores nem tomadores de empréstimos. Um empréstimo seria apenas como passar o dinheiro do bolso esquerdo para o direito. Não pode haver tampouco falências. Enquanto eu a rmava que os problemas da informação imperfeita são cruciais para o entendimento da ciência econômica moderna, em seus modelos não podiam ocorrer assimetrias de informação, situações em que alguém sabe algo que outra pessoa não sabe. Qualquer assimetria da informação constituiria esquizofrenia intensa, incompatível com suas outras premissas relativas à racionalidade total. Seus modelos não têm nada a dizer sobre as questões-chave que se desenvolvem na crise atual: que diferença faz que os banqueiros recebam 1 ou 2 trilhões de dólares a mais? De acordo com o modelo, os banqueiros e os trabalhadores são pessoas idênticas. Debates políticos cruciais são simplesmente desprezados por essa premissa. O modelo do agente representativo impede qualquer discussão sobre distribuição de renda. Em certo sentido, as visões a respeito dos valores (inclusive a visão de que a distribuição de renda não é importante) estão implícitas na própria formulação das suas análises. Muitas das conclusões (que parecem absurdas) das análises dessa escola decorrem dessas e de outras simpli cações extremas feitas pelos seus modelos. Referi-me a uma no capítulo 3: a de que os gastos do governo não estimulam a economia. A conclusão é o resultado de premissas ainda mais irrealistas do que a que diz que os mercados são perfeitos.38 (a) Supõe-se que o “agente representativo” sabe que no futuro haverá impostos a serem pagos pelos gastos de consumo e, portanto, reserva, desde já, o dinheiro

necessário para pagá-los. Isso signi ca que a diminuição do gasto de consumo contrabalança por completo o aumento do gasto governamental. (b) Além disso, supõe-se que o gasto governamental não traz nenhum benefício positivo direto. Por exemplo, a construção de uma estrada gera renda hoje, mas também pode induzir a expansão de alguma rma em consequência da diminuição do custo do transporte da produção.39 Em outro exemplo, eles argumentam que as compensações pelo desemprego não são necessárias, uma vez que os indivíduos nunca estão desempregados (estão apenas gozando de um descanso) e, de toda maneira, podem tomar empréstimos para satisfazer suas necessidades de consumo, se assim preferirem. Pior ainda: as compensações pelo desemprego são nocivas porque o problema não é uma escassez de postos de trabalho — sempre há postos de trabalho para quem os queira —, mas sim falta de empenho em buscá-los, e o seguro-desemprego apenas exacerba esse “risco moral”. A outra escola de pensamento, capitaneada pelos novos keynesianos (que se dividem em muitas subescolas), tomou um caminho diferente ao tentar conciliar macroeconomia com microeconomia. De acordo com o seu ponto de vista, o problema estava nos modelos microeconômicos simplistas e na in nidade de premissas irrealistas que já descrevi neste capítulo.40 O fato é que as pesquisas dos últimos trinta anos revelaram que o modelo neoclássico — no qual se apoiam as análises da escola de Chicago — não é bastante sólido. Desse ponto de vista, a Grande Depressão — e esta Grande Recessão — comprovam uma ine ciência tão grande que não pode passar despercebida. Mas em outros períodos houve muitas falhas de mercado mais difíceis de detectar, embora reais. As recessões seriam como a ponta de um iceberg — sinais de problemas muito mais profundos, que se ocultam sob a superfície. As provas de que isso tem fundamento são amplas. Como o verdadeiro ponto fraco da ciência econômica moderna não seria a macroeconomia keynesiana, mas sim a microeconomia-padrão, o desa o da pro ssão econômica é o desenvolvimento de uma microeconomia condizente com o comportamento da macroeconomia.

A ciência econômica, como já observei, é supostamente uma ciência de previsões. Nesse caso, o enfoque da escola de Chicago precisa ser reprovado, por não ter previsto a crise (como poderia tê-la previsto se coisas como bolhas e desemprego não existem?) e ter pouco a recomendar em matéria de linhas de ação, depois que a crise ocorreu (a não ser para chamar a atenção para o risco dos dé cits governamentais). Sua receita é simplória: deixar o governo de lado. Esta recessão econômica não só desacreditou a macroescola dos “mercados perfeitos”, mas também revigorou os debates no âmbito dos enfoques keynesianos. Há, por exemplo, duas linhas principais de pensamento neokeynesiano. A primeira expressa a maior parte das premissas neoclássicas, com uma importante exceção — supõe que salários e preços são rmes, ou seja, que não caem quando se produz um excesso na oferta de trabalho (desemprego). A implicação é clara: bastaria que os salários e os preços fossem mais exíveis para que a economia fosse e ciente e se comportasse de acordo com o modelo neoclássico-padrão.41 Essa linha tinha algumas preocupações comuns com a escola de Chicago a respeito da in ação, e deu pouca atenção à estrutura nanceira. A outra linha — pode-se a rmar que mais próxima das ideias do próprio Keynes — vê problemas bem mais profundos nos mercados. A queda dos salários na verdade exacerbaria a recessão, com a consequente redução dos gastos de consumo. A de ação — ou mesmo uma desaceleração da taxa de in ação, com relação à expectativa — pode levar rmas à falência, quando a queda das receitas impede o pagamento das dívidas. Desse ponto de vista, parte dos problemas tem origem nos mercados nanceiros, devido, por exemplo, ao fato de os contratos de dívidas não serem indexados aos níveis de preços. Parte do problema deriva também de que, quando a economia passa por um período de estabilidade, as rmas e as famílias são induzidas a aceitar mais riscos, especialmente por meio de um endividamento maior e, à medida que o fazem, a economia se torna mais frágil — mais vulnerável a um choque adverso. Como vimos, com alta alavancagem, mesmo um

pequeno declínio nos valores dos ativos pode resultar em um colapso geral.42 As prescrições de políticas que as diferentes escolas keynesianas oferecem variam muito. Uma delas a rma que as políticas destinadas à manutenção do nível dos salários são parte do problema; a outra diz que ajudam a estabilizar a economia. Uma se preocupa com a in ação; a outra a encoraja. Uma concentra a atenção na fragilidade nanceira — como a alavancagem dos bancos; a outra a ignora. Às vésperas desta crise, a escola de Chicago e a escola keynesiana da rigidez de salários e preços tinham um papel predominante em muitos círculos políticos. Os adeptos da escola de Chicago diziam não haver necessidade de ação governamental e acrescentavam que qualquer atitude do governo provavelmente seria ine caz, pois o setor privado a anularia; e se algum efeito ainda restasse, seria o efeito errado. Já se vê que eles apontavam exemplos de erros cometidos pelo governo e de ocasiões em que o setor privado conseguira neutralizar, ao menos em parte, a ação governamental, como quando o aumento da poupança neutraliza parcialmente o aumento dos gastos do governo. Mas sua conclusão genérica de que o governo é sempre ine caz se baseia em modelos falhos que têm relevância apenas limitada para o mundo real e não são compatíveis com os dados estatísticos e as experiências históricas. A escola keynesiana da rigidez de salários e preços reservava um papel mais ativo para o governo — embora em defesa de uma agenda conservadora. O necessário era dar mais exibilidade aos salários, enfraquecer os sindicatos e tomar outras medidas de redução da proteção aos trabalhadores. É mais um exemplo da estratégia de “culpar a vítima”: a culpa do desemprego é dos trabalhadores. Mas, ainda que seja verdade que em alguns países a proteção ao emprego pode ter ido longe demais, seu papel como fator de desemprego é, na melhor das hipóteses, mínimo. E nesta crise, se não fosse por tal proteção, as coisas poderiam ter sido muito piores.    

a batalha sobre a política monetária

  Talvez o pior tenha ocorrido quando a escola de Chicago e a escola da rigidez salário-preço se uniram para dar forma à política monetária, na sua luta contra a in ação.43 A consequência foi que os Bancos Centrais se concentraram nas ine ciências que surgem quando os preços se desalinham ligeiramente nas fases de in ação moderada — ao mesmo tempo que ignoraram por completo os problemas resultantes da fragilidade dos mercados nanceiros. As perdas provocadas pelas falências nos mercados nanceiros foram mil vezes maiores do que as que a in ação pode causar, desde que mantida em índices baixos ou moderados. Os presidentes de Bancos Centrais formam um clube suscetível a modas e modismos. Tendem a ser conservadores e, em geral, não são favoráveis à intervenção do governo no mercado. Há algo estranho nisso: sua tarefa precípua é o estabelecimento de um dos preços mais importantes da economia — a taxa de juros. A questão, portanto, não é se o governo intervirá, mas sim como e quando o fará. Para os adeptos da escola de Chicago, são as políticas do governo que causam a in ação. Os discípulos monetaristas de Milton Friedman se valeram de modelos simplistas para apoiar uma ofensiva ideológica em prol da limitação do papel do governo. Uma prescrição simples (chamada monetarismo, que entrou em moda na década de 1970 e começo dos anos 1980) deu a orientação: amarrar as mãos do governo, fazendo que ele se limite a aumentar o suprimento de dinheiro a uma taxa xa a cada ano. Com o governo sob controle, o mercado poderia, então, operar as suas maravilhas. O monetarismo se baseava na noção de que a melhor maneira de manter os preços estáveis (e a in ação baixa) é aumentar o suprimento de dinheiro a uma taxa xa, que é o índice de crescimento da produção real. Infelizmente, assim que essa ideia entrou em moda, apareceram fortes elementos contra ela. A hipótese empírica subjacente ao monetarismo é de que a relação entre o dinheiro e o pib (denominada velocidade de circulação) é constante. Na verdade, nos últimos trinta anos esta variou

fortemente, pelo menos em alguns países. O monetarismo fracassou e hoje praticamente nenhum governo o toma por base. As metas de in ação entraram em moda no nal dos anos 1990 e nesta década. Com a meta, o governo escolhe o nível da in ação — digamos 2%. Se a in ação superar a meta, o Banco Central aumenta a taxa de juros. Quanto mais a in ação superar a meta, tanto mais a taxa de juros subirá. A in ação era o mal supremo, e o principal trabalho do Banco Central é matar esse dragão. A justi cativa das metas de in ação era a ideia de que, se a economia entendesse que o Banco Central tomaria medidas duras contra uma in ação que superasse, digamos, 2%, haveria menos incentivos para que os sindicatos, ou qualquer outro agente, pleiteassem aumentos de salários que resultassem em uma in ação maior do que a meta xada. O foco sobre a in ação se baseia em quatro proposições, nenhuma das quais tem muito apoio empírico ou teórico. Em primeiro lugar, os dirigentes do Banco Central argumentavam que a in ação exercia um efeito adverso signi cativo sobre o crescimento. Ao contrário, desde que a in ação permaneça em níveis baixos ou moderados,44 não parece haver efeitos negativos discerníveis. Mas, por outro lado, tentativas excessivamente severas de combate à in ação de fato causaram redução do crescimento.45 Em segundo lugar, eles alegam que a in ação é particularmente dura com os pobres. Não é demais tomar uma atitude de cautela quando se veem banqueiros defendendo causas em favor dos pobres. O fato é que as pessoas que mais perdem são os credores, que veem o valor dos seus títulos erodirse. Nos Estados Unidos e na maioria dos outros países, a seguridade social (aposentadorias e pensões) aumenta com a in ação. Quando a in ação se torna persistente, até os contratos de trabalho passam a conter cláusulas de reajuste automático, de acordo com a elevação do custo de vida. Com isso, não estou dizendo que não haja muitos pobres que sofrem. A seguridade social pode não ser su ciente para manter o padrão de vida de muitas pessoas, a maioria das quais provavelmente não dispõe de títulos indexados contra a in ação (tips), destinados a propiciar proteção total contra a erosão do pagamento. E é verdade que tem havido períodos de in ação alta em

que os pobres sofrem — mas isso não ocorreu tanto por causa da in ação. O rápido aumento do preço do petróleo no nal da década de 1970 indicou que todos os americanos caram mais pobres, pois todos os consumidores sofriam os efeitos do aumento do preço dos combustíveis. Naturalmente, os trabalhadores também sofreram. O choque do preço do petróleo também levou a uma in ação alta. Algumas pessoas percebem o declínio do padrão de vida e o atribuem com erro à in ação, mas a verdade é que os dois fatores têm uma causa comum. O que mais importa para os trabalhadores é o emprego, e se as taxas de juros mais altas elevam o desemprego, os trabalhadores sofrem em dobro — pela falta de trabalho e pela pressão negativa sobre os salários. A terceira falácia era que a economia estava à beira de um precipício — e um pequeno desvio adicional na taxa de in ação empurraria a economia rápida e perigosamente montanha abaixo em um processo in acionário cada vez maior. Podemos usar outra metáfora: a luta contra a in ação se assemelha à luta contra o alcoolismo. Os que querem livrar-se do alcoolismo recebem a recomendação de nunca mais tomar nenhuma gota de álcool para não sofrer recaídas. Assim também, dizem os banqueiros, depois que um país experimenta o elixir da in ação, passa a car cada vez mais dependente. O que começa como uma in ação reduzida se acelera rapidamente. Também aqui os dados da realidade indicam o oposto: os países podem tomar e tomam iniciativas contra a in ação quando esta começa a crescer. A falácia nal sustenta que o custo de reversão da in ação é alto. Portanto, ela deve ser liquidada antes de começar. Novamente ao contrário, alguns países (por exemplo, Gana e Israel) lograram baixar a in ação de níveis muito altos a níveis baixos ou moderados com pouco custo. Em outros, os custos em termos de um desemprego mais alto, necessário para o combate à in ação, são compatíveis com os benefícios do desemprego mais baixo que caracteriza os períodos in acionários. Uma das críticas mais fortes à moda das metas de in ação é a de que esse método dá pouca atenção às causas do desequilíbrio. Se o processo é

consequência de um aumento violento dos preços de energia e alimentação, como aconteceu em 2006-7, um país pequeno que aumente sua taxa de juros pouco poderá fazer diante dessas forças globais. Sim, um país pode fazer baixar a taxa de in ação provocando um desemprego tão grande no resto da economia que provoque a diminuição geral dos salários e dos preços, mas nesse caso a cura será pior do que a doença. Os Estados Unidos evitam esse problema excluindo os preços da energia e da alimentação da aferição do nível in acionário com ns macroeconômicos. Mas, na maior parte dos países em desenvolvimento, isso excluiria 50% ou mais dos determinantes dos preços. Mesmo nos Estados Unidos, os preços de energia e alimentação são os que mais preocupam o povo, porque afetam sua expectativa quanto à in ação futura e quanto ao próprio poder aquisitivo. A crise atual marcará a morte do esquema simplista das metas de in ação por outra razão. Os dirigentes dos Bancos Centrais supuseram ingenuamente que a in ação baixa era necessária e quase su ciente para a prosperidade econômica. Assim, desde que a in ação fosse baixa, eles podiam desencadear uma inundação de liquidez e sentir-se con antes de que tudo permaneceria sob controle. Mas não era verdade. A inundação de liquidez estava criando bolhas de preços de ativos, cujo rompimento levou o sistema nanceiro e a economia à recessão. A in ação pode, é evidente, causar distorções. Os que se concentram exclusivamente na in ação (a escola de Chicago e os keynesianos da rigidez de salários e preços) estavam certos em dizer que, com a in ação, os preços não se alteram todos ao mesmo tempo, e que os preços relativos podem car um pouco desalinhados.46 Mas essas perdas são muito menores que as decorrentes da fragilidade do mercado nanceiro. A outra linha da economia neokeynesiana, que se concentra na fragilidade nanceira, parece ter ganhado a batalha. Hoje, felizmente, a maior parte dos Bancos Centrais compreende que devem prestar atenção nos mercados nanceiros e nas bolhas de preços de ativos, tanto quanto na in ação dos preços das mercadorias. E dispõem dos instrumentos para isso.47  

  a batalha das finanças

  A crença na racionalidade dos mercados impregnou a teoria dos mercados nanceiros talvez muito mais do que qualquer outra área do pensamento econômico. Acho que isso ocorreu devido ao contágio produzido pelos próprios participantes do mercado. A crença de que os mercados são e cientes e capazes de se autorregular era conveniente a muitos interesses especiais. E o fato de que não são era inconveniente. Muitos, inclusive os que operam no mercado nanceiro, viram oportunidades reais de lucro com a desregulação do mercado. A nal, as regulações são restrições. Quase necessariamente, os lucros em lugares onde as rmas sofrem restrições sobre o que podem fazer parecem menores do que se as restrições não existissem. Digo que os lucros parecem menores porque, ao agir dessa maneira, as rmas deixam de levar em conta a soma das consequências da remoção das restrições. O comportamento dos outros também muda. Na verdade, sabemos o que a teoria-padrão da economia diria, se estivesse correta nossa a rmação de que os mercados são e cientes e competitivos: em última análise, os lucros se reduziriam a zero. A remoção das restrições permitiria que a rma mais ágil colhesse a nova oportunidade e obtivesse um grande lucro, mas qualquer lucro obtido assim se dissiparia bem rápido. Algumas rmas perceberiam que a única maneira de obter lucros sustentados estaria em ser mais e ciente do que o competidor, ou em engendrar maneiras de fazer o mercado operar imperfeitamente. A batalha intelectual a respeito da e cácia dos mercados nanceiros tem numerosas linhas: os preços do mercado nanceiro re etem todas as informações disponíveis? Que papel desempenham na determinação das atividades de investimento? Como vimos, os mercados nanceiros que funcionam bem são peças fundamentais de uma economia de mercado bem-sucedida porque dirigem a alocação dos capitais escassos, que são um recurso vital e não abundante. O mecanismo do preço está no cerne do

processo pelo qual o mercado reúne, digere e transmite as informações. A versão extrema da “hipótese dos mercados e cientes” dizia que os preços re etem precisamente todas as informações disponíveis no mercado e propiciam todas as informações relevantes para que as rmas tomem as decisões — por exemplo, as concernentes aos investimentos. Desse ponto de vista, então, é essencial aprimorar o papel do mercado como “descobridor dos preços”. Os preços re etem algo do que acontece na economia, mas há também muitos ruídos externos, tanto assim que poucos empresários con ariam exclusivamente nas informações proporcionadas pelos preços do mercado. É claro que os preços das ações afetam as decisões — porque o mercado afeta o custo do capital para a empresa. Mas que empresa produtora de aço decidiria investir em uma nova unidade de produção simplesmente porque um clube de investimentos de médicos e dentistas de Peoria, Illinois, concluiu que o aço é o metal do futuro e eles e outros investidores elevam o preço das ações do setor siderúrgico? Que rma petroleira basearia suas decisões de investimento em exploração apenas no preço que o petróleo tem hoje, o qual é afetado por especulações de curto prazo? Se a hipótese dos mercados e cientes fosse correta e se os participantes do mercado fossem inteiramente racionais, todos saberiam que não poderiam “ganhar do mercado”. Só poderiam “comprar do mercado” — ou seja, alguém que possua 0,01% da riqueza da nação compraria 0,01% de cada ativo. Isso é exatamente o que fazem os fundos que operam de acordo com os índices da bolsa. Mas se, por um lado, os fundos indexados cresceram enormemente nas últimas três décadas, por outro, sempre há os que querem ganhar do mercado. O simples fato de que os participantes do mercado gastam bilhões e bilhões de dólares tratando de ser mais espertos do que o próprio mercado refuta a dupla hipótese de que os mercados são e cientes e de que seus participantes são racionais. O que deu credibilidade à teoria foi o fato de que na prática é difícil “ganhar do mercado”. Os preços de mercado costumam mostrar certa coerência: o preço da soja em grão se relaciona sistematicamente com o preço do farelo ou do óleo de soja. É fácil

testar a “e ciência” do mercado, nesse aspecto, a qualquer momento.48 Mas calculá-la em situações mais complexas é difícil. Se os mercados fossem e cientes, nunca haveria bolhas, mas elas têm ocorrido repetidamente. É certo que não foi fácil determinar que estávamos em uma bolha imobiliária — a maior parte dos investidores não a enxergou, apesar dos sinais reveladores. Mas outros enxergaram (como John Paulson, que ganhou bilhões de dólares para o seu fundo de hedge). Mas ganhar do mercado pode ser difícil por uma série de razões. O mercado pode ser totalmente e ciente, com os preços re etindo de modo preciso todas as informações disponíveis, ou o mercado pode não ser mais do que um cassino para os ricos, com os preços re etindo ao acaso as alterações do humor e das expectativas. Em ambos os casos, os preços futuros são “imprevisíveis”. Ao longo dos anos se têm acumulado provas contra a interpretação dos “mercados e cientes”. A crise atual reforçou uma conclusão baseada em inumeráveis episódios anteriores. No dia 19 de outubro de 1989, por exemplo, as bolsas de valores do mundo inteiro caíram vertiginosamente, perdendo 20%, ou mais. Nenhuma notícia e nenhum fato podiam explicar uma queda dessa magnitude no valor do capital mundial — uma devastação maior do que a pior das guerras poderia causar. Esse evento era imprevisível, mas tampouco se pode dizer que essa volatilidade do mercado fosse o resultado da sua competência em processar as informações pertinentes.49 Havia um curioso nexo entre as opiniões de muitos dos defensores dos mercados e cientes. Eles achavam que os mercados já eram totalmente e cientes. Ao mesmo tempo, orgulhavam-se das inovações do mercado nanceiro e a rmavam que os seus enormes lucros e bônus eram a recompensa justa pelos benefícios sociais trazidos por tais inovações. Nesses mercados totalmente e cientes, as vantagens das inovações eram, contudo, muito limitadas: apenas reduziam custos de transação, permitindo que indivíduos racionais administrassem a custos mais baixos riscos que podiam ser administrados de outras maneiras.

Pouca gente (fundos de hedge) parece conseguir ganhar regularmente do mercado. Há uma maneira de fazê-lo de um modo condizente com a hipótese dos mercados e cientes: dispor de informações privilegiadas. Fazer negócios com base em informações privilegiadas é ilegal. Se os participantes do mercado acreditarem que outros dispõem de uma vantagem informativa, já não desejarão transacionar. Uma das preocupações já apresentadas (no capítulo 6) é de que alguns grandes bancos, quase que em função do seu próprio tamanho e do alcance das suas transações, dispõem de uma vantagem informativa. Podem não estar violando nenhuma lei, mas o campo de jogo não é igualitário.50 Uma série de casos no outono de 2009 sugere que muitas pessoas que operavam fundos de hedge tiveram êxito com base em informação privilegiada.51   Mercados e cientes e mercados de informações   A escola de Chicago e seus discípulos queriam crer que o mercado de informações era igual a qualquer outro mercado: havia uma demanda e uma oferta de informações. Assim como os mercados eram e cientes na produção de aço, seriam também e cientes na produção e transmissão das informações. Infelizmente essa visão, assim como a noção de que os mercados que operam com informações imperfeitas se comportariam de maneira muito similar à dos mercados com informações perfeitas, não tinha base em nenhuma análise profunda, e quando os economistas consideraram essas questões, tanto do ponto de vista teórico quanto do empírico, tais noções se revelaram falsas. Os argumentos teóricos são complexos, mas o que se segue talvez dê uma ideia de alguns aspectos da crítica. Consideremos, por exemplo, o argumento de que os preços de mercado transmitem todas as informações relevantes. Então, alguém que simplesmente olhasse os preços do mercado estaria tão bem informado quanto quem gastasse muito dinheiro mandando fazer pesquisas e analisando dados. Nesse caso, não haveria incentivos para o trabalho de reunir as informações e os preços formados

pelo mercado não seriam muito informativos. Em certo sentido, haveria uma incoerência lógica entre a crença de que os mercados transmitem todas as informações relevantes e a de que os preços de mercado são muito informativos.52 O argumento-padrão não leva em conta as diferenças entre o valor público e o valor privado das informações. Saber com um pouco de antecedência que um campo de petróleo grande e novo foi descoberto pode gerar enormes lucros privados. Pode-se vender petróleo no mercado nanceiro (apostando que o preço cairá) e ganhar um bom dinheiro. Podem-se vender as ações de outras companhias petroleiras. Pode-se ganhar mais dinheiro ainda vendendo agora e recomprando na baixa as ações dessas companhias. Nesses casos, os ganhos de uns correspondem às perdas de outros. É uma questão de redistribuição de riqueza, e não de criação de riqueza. Dispor desse conhecimento alguns minutos antes de qualquer outra pessoa provavelmente não afetará nenhuma ação ligada à realidade econômica, e a posse desse conhecimento produzirá pouco ou nenhum benefício social.53 Assim também, alguns dos bancos de investimento que tiveram mais êxito ganharam grande parte do seu dinheiro em transações de mercado. Mas em cada transação há um outro lado: os ganhos de uns correspondem às perdas de outros. A partir dessa perspectiva, grande parte dos gastos com informação é um desperdício. Trata-se de uma corrida para chegar em primeiro lugar; para descobrir algo antes dos demais; para ter um lucro às custas deles. Em última análise, todos têm de gastar mais dinheiro para não car para trás. Eu tenho explicado o problema para os meus alunos de outra maneira. Suponhamos que enquanto você assiste à minha aula, uma nota de cem dólares cai ao lado de cada aluno da sala de aula. Os alunos podem continuar prestando atenção ao que eu digo e aprender princípios importantes da ciência econômica. Quando a aula terminar, cada um deles se abaixa e pega a nota de cem dólares que está ao seu lado. Essa é a solução e ciente. Mas não se trata de uma situação de equilíbrio de mercado. Um dos alunos, percebendo que os outros não estão se

abaixando, age rápido para pegar não só a nota que está ao seu lado, mas também a que está ao lado da carteira do vizinho. Quando os demais percebem o que esse aluno está fazendo, todos na mesma hora se abaixarão, cada um querendo apanhar o dinheiro antes dos outros. No nal da história, cada um pega uma nota de cem dólares, tal como aconteceria se todos tivessem esperado, mas a aula terá sido interrompida e o estudo da turma terá sido prejudicado.   A hipótese dos mercados e cientes e a política monetária fracassada   A crença generalizada na hipótese dos mercados e cientes teve um papel na falha do Banco Central. Se essa hipótese fosse verdadeira, as bolhas não existiriam. O Fed não chegou a a rmar isso, mas indicou que não era possível detectar uma bolha antes que esta estourasse: as bolhas eram, por assim dizer, imprevisíveis. O Fed tinha razão ao dizer que não se pode ter certeza da existência de uma bolha antes de seu rompimento, mas isso não impede que se emitam avaliações probabilísticas claras. Todas as decisões políticas são tomadas em um contexto de incerteza. E era bastante claro, sobretudo quando a economia entrou no ano de 2006, que devia se tratar de uma bolha. Quanto mais os preços subiam, mais as casas se tornavam inacessíveis e mais provável era a existência de uma bolha. O Fed manteve o foco nos preços dos bens e serviços e não nos preços dos ativos — e preocupava-se com o fato de que um aumento das taxas de juros poderia levar a uma recessão econômica. Nisso estava certo. Mas o Fed tinha outros instrumentos à sua disposição e preferiu não empregá-los. Esses mesmos argumentos falhos foram utilizados durante a bolha tecnológica. Então, o Fed poderia ter elevado os requisitos marginais (quanto dinheiro um indivíduo tem de aplicar para comprar ações). Em 1994, o Congresso dera autoridade adicional ao Fed para regular o mercado hipotecário, mas o presidente Alan Greenspan se recusou a usá-la. E ainda que o Fed não dispusesse de autoridade regulatória, ele poderia e deveria ter pedido ao Congresso os poderes necessários (assim como

deveria ter feito, como já assinalei, no caso dos bancos de investimento). Antes da eclosão da crise, o Fed deveria ter reduzido a relação máxima entre empréstimo e valor — uma vez que a probabilidade da bolha aumentava — em vez de deixá-la aumentar. Deveria ter diminuído a relação máxima permitida entre a renda e o pagamento da hipoteca, em vez de deixá- -la aumentar. Poderia ter imposto restrições às hipotecas de taxa variável. Em vez disso, Greenspan as promoveu. Poderia ter restringido a amortização negativa e os empréstimos (chamados mentirosos) baseados em documentação insu ciente. Havia amplos instrumentos para isso.54 Pode ser que não funcionassem com perfeição, mas não há dúvida de que poderiam ter desin ado ao menos parcialmente a bolha. Um dos motivos da desatenção do Fed em relação à bolha foi o seu endosso a outra ideia equivocada: a de que seria fácil resolver algum problema caso ocorresse. Um dos motivos por que achava que os problemas seriam facilmente resolvidos era a sua convicção no novo modelo de securitização: os riscos tinham se espalhado pelo mundo a tal ponto que o sistema econômico global poderia absorvê-los com facilidade. O que poderia acontecer se o mercado imobiliário da Flórida entrasse em colapso? Isso correspondia a uma parcela mínima da riqueza global. Aqui, o Fed cometeu dois erros: o primeiro foi ter subestimado — como os bancos de investimento e as agências de classi cação de risco — a extensão da correlação. Os mercados imobiliários dos Estados Unidos (e mesmo em boa parte do mundo) poderiam cair juntos, e por motivos óbvios. O segundo erro foi ter superestimado a extensão da diversi cação. O Fed não se deu conta da extensão do risco que os bancos haviam conservado nas próprias carteiras — tinha subestimado os incentivos dados aos riscos excessivos e superestimado a competência dos banqueiros em matéria de administração de riscos.55 Quando Greenspan disse que o governo poderia facilmente “consertar” a economia, não explicou que enfrentar o problema custaria centenas de bilhões de dólares aos contribuintes e custaria ainda mais para a própria economia. Era uma noção estranha: a ideia de que é mais fácil consertar o

carro depois do acidente do que prevenir o acidente. A economia já se tinha recuperado de recessões anteriores. As crises do Extremo Oriente e da América Latina não haviam atingido os Estados Unidos. Mas todas haviam causado danos: basta pensar nos que perdem o emprego, nos que perdem a casa e o conforto na aposentadoria. A partir de uma perspectiva macroeconômica, o custo de uma recessão, ainda que branda, é grande, mas o custo real e orçamentário desta Grande Recessão estará na casa dos trilhões de dólares. A verdade é que Greenspan e o Fed estavam errados. O Fed foi criado, inclusive, para prevenir acidentes desse tipo. Não foi criado apenas para recolher os destroços. Não fez caso da sua missão precípua.     a batalha sobre a economia da inovação

  A teoria econômica ortodoxa (o modelo neoclássico discutido antes neste capítulo) tem tido pouco o que dizer a respeito das inovações, muito embora a maior parte do aumento do padrão de vida nos Estados Unidos nos últimos cem anos tenha ocorrido em consequência do progresso técnico.56 Como mencionei antes, assim como a “informação” estava ausente dos velhos modelos, assim também estavam as inovações. À medida que os economistas ortodoxos apreendiam a importância da inovação, começaram a tentar desenvolver teorias que explicassem seu nível e sua direção.57 Ao fazê-lo, reexaminaram algumas ideias que haviam sido apresentadas por dois grandes economistas da primeira metade do século xx, Joseph Schumpeter e Friedrich Hayek, que por algum motivo haviam sido negligenciadas pela corrente principal. Schumpeter, um austríaco que realizou parte da sua obra mais signi cativa em Harvard, criticou o modelo competitivo- -padrão.58 Seu foco estava na competição pela inovação. Ele teorizou que cada mercado era temporariamente dominado por um poder monopolístico que logo era desalojado por outro inovador que se tornava, por sua vez, monopolista. A

competição se fazia pelos mercados, e não nos mercados; e se dava por meio da inovação. Evidentemente, havia boa dose de verdade na análise de Schumpeter. O foco na inovação era um grande progresso com relação à análise econômica ortodoxa (as teorias do equilíbrio geral de Walras, discutidas antes neste capítulo, que ignoravam a inovação). Mas Schumpeter não formulou as perguntas cruciais: os monopolistas não tomariam medidas para evitar a entrada de novos rivais? Os inovadores realmente concentrariam a atenção na tentativa de capturar a faixa do mercado da empresa dominante, em vez de desenvolver uma ideia realmente nova? Haveria alguma maneira de determinar que o processo inovador é e ciente? Experiências recentes mostram que as coisas não são assim tão simples e belas como os defensores do mercado postulam. A Microso, por exemplo, alavancou seu poder monopolístico no sistema operativo dos computadores individuais para desenvolver um papel dominante em aplicações como processamento de textos, programas de cálculos e buscadores. O esmagamento dos seus competidores potenciais teve um efeito paralisante sobre as inovações. Quem exerce o poder monopolístico pode tomar diversos cursos de ação para desencorajar a entrada no mercado e manter a posição monopolística. Algumas dessas ações podem ter um valor social positivo, como efetuar as inovações com maior rapidez do que os adversários. Mas outras medidas podem não ter nenhum valor social positivo. Logicamente, em uma economia dinâmica, toda empresa dominante acaba sendo desa ada. A Toyota desalojou a gm; a Google desa a a Microso em muitas esferas. Mas o fato de que a competição por vezes funciona não diz nada a respeito da e ciência global dos processos do mercado, ou da desejabilidade de uma atitude de não envolvimento, do tipo laissez-faire. Como Schumpeter, Hayek se afastou do enfoque equilibrista que dominou a economia ortodoxa. Ele escreveu em meio à confusão e às controvérsias apresentadas pelo comunismo, regime no qual o governo tem um controle dominante sobre a gestão da economia. Nesse sistema, as

decisões são “centralizadas” por uma equipe de planejamento. Algumas das pessoas que passaram pela Grande Depressão, e testemunharam as enormes falhas na alocação de recursos — e os enormes sofrimentos humanos — que a caracterizaram, acreditavam que o governo deveria tomar a liderança na tarefa de determinar a alocação dos recursos. Hayek não concordava com essa linha, e não só apontava a vantagem informacional de um sistema de preços descentralizado, mas defendia uma evolução descentralizada das próprias instituições. Ele tinha razão ao dizer que nenhum planejador consegue reunir e processar todas as informações pertinentes, mas isso não signi ca que um sistema de liberdade de preços por si só seja e ciente. Hayek foi in uenciado pela metáfora da evolução biológica (ao contrário de Walras, que tinha por inspiração as noções de “equilíbrio” da física newtoniana). Darwin falara da sobrevivência dos mais aptos, e o darwinismo social a rmava igualmente que a competição cruel, com a sobrevivência das mais aptas entre as rmas, indicava níveis crescentes de e ciência na economia. Hayek simplesmente tomou essas premissas como artigo de fé, mas a verdade é que os processos evolutivos não guiados podem levar, ou não, à e ciência econômica. Por azar, a seleção natural não escolhe necessariamente as rmas (ou instituições) mais adequadas para o longo prazo.59 Uma das maiores críticas que se podem fazer aos mercados nanceiros é que se tornaram cada vez mais míopes. Algumas mudanças institucionais (como a concentração do foco dos investidores nos ganhos trimestrais) di cultaram a tomada de decisões com perspectivas de longo prazo por parte das empresas. Nesta crise, algumas rmas alegaram que não desejavam fazer tanta alavancagem como zeram — pois perceberam o risco que aí havia —, mas que se não agissem assim não sobreviveriam. Seu valor em bolsa diminuiria, os participantes do mercado interpretariam erradamente a situação como consequência de falta de capacidade de inovação e de espírito empreendedor, e a sua saúde econômica desapareceria. Essas rmas se sentiram compelidas a seguir o rebanho — com efeitos desastrosos a longo prazo, tanto para seus acionistas quanto para economia como um todo.

É interessante notar que, embora Hayek se tenha tornado um deus para os conservadores, ele (como Adam Smith) entendia que o governo tinha um papel importante a desempenhar. Em suas palavras, “nada, provavelmente, terá causado mais dano” à causa dos defensores do mercado do que “a teimosa insistência [...] em certas regras empíricas, sobretudo o princípio do capitalismo de estilo laissez-faire”.60 Hayek argumentava que o governo tinha uma função a cumprir em diversas áreas, da regulação das horas de trabalho à política monetária e ao uxo adequado das informações.61 As teorias econômicas dos últimos 25 anos proporcionaram excelentes percepções sobre os motivos das frequentes falhas do mercado e sobre o que pode ser feito para que funcionem melhor. Os ideólogos da direita e os economistas que lhes dão cobertura — apoiados pelos interesses nanceiros dos que se aproveitavam do movimento pró-desregulação — decidiram ignorar esses avanços do conhecimento. Escolheram ngir que Adam Smith e Friedrich Hayek haviam concluído o debate sobre a e ciência do mercado — atualizando-os, talvez, com algum modelo matemático de fantasia, para corroborar os resultados — e ignoraram as advertências desses mesmos mestres a respeito da necessidade da intervenção governamental. O mercado das ideias não é mais perfeito do que o mercado dos produtos, do capital e do trabalho. Nem sempre as melhores ideias prevalecem, pelo menos no curto prazo. Mas a boa notícia é que, embora a bobagem dos mercados perfeitos tenha predominado em certos setores da ciência econômica, alguns professores continuaram a tentar entender como os mercados funcionam na realidade. Suas ideias estão aí para serem usadas pelos que querem conceber uma economia mais estável, próspera e equitativa.  

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. Rumo a uma nova sociedade

Dizem que uma experiência de proximidade com a morte força uma pessoa a reavaliar suas prioridades e seus valores. A economia global acaba de passar por esse tipo de experiência. A crise não só expôs falhas no modelo econômico prevalecente, mas também na nossa sociedade. Muitas pessoas estavam tirando vantagens das outros. Perdera-se o sentido de con ança. Quase todos os dias se revelam histórias relativas ao mau comportamento dos participantes do setor nanceiro — pirâmides, informação privilegiada, empréstimos predatórios e um conjunto de esquemas de cartões de crédito que eram destinados a extrair o mais possível dos infelizes usuários. Este livro não manteve o foco, no entanto, sobre os que violaram a lei e sim sobre as legiões daqueles que, dentro da lei, originaram, empacotaram, reempacotaram e venderam produtos tóxicos e entregaram-se a um comportamento de tal modo insensato e temerário que ameaçou fazer desabar por completo a estrutura do sistema econômico e nanceiro. O sistema foi salvo, mas a um custo que ainda é difícil de imaginar. A tese simples deste capítulo é de que devemos aproveitar este momento para uma análise e uma re exão; para pensar no tipo de sociedade que queremos ter e para nos perguntar se estamos criando uma economia que nos ajuda a alcançar as nossas aspirações. Avançamos muito por um caminho alternativo — criando uma sociedade em que o materialismo predomina sobre os compromissos morais; em que o

crescimento rápido que atingimos não é sustentável, nem do ponto de vista ambiental nem do social; em que não agimos em conjunto, como uma comunidade, para atender às nossas necessidades comuns, de certa forma porque o individualismo desabrido e o fundamentalismo do mercado erodiram qualquer sentido de comunidade e levaram a uma exploração selvagem de indivíduos inocentes e desprotegidos e a uma crescente divisão social. Ocorreu uma erosão da con ança — e não apenas nas nossas instituições nanceiras. Ainda há tempo para curar essas feridas.     como a ciência econômica conforma a sociedade e os indivíduos

  Uma das lições desta crise se refere à necessidade de uma ação coletiva. Há um papel para o governo, como tenho ressaltado repetidamente, mas há também outros aspectos: nós permitimos que os mercados conformassem cegamente nossa economia. E, ao fazê- -lo, estes também afetaram a nós próprios e a nossa sociedade. Trata- -se de uma oportunidade para que perguntemos se o caminho pelo qual os mercados estão nos levando é o que nós queremos.   Má alocação dos nossos recursos mais escassos: nosso talento humano   Já descrevi como os nossos mercados nanceiros alocaram mal o capital. Mas o custo real do nosso descontrolado setor nanceiro pode ter sido muito maior: levou à má alocação do nosso recurso mais escasso — nosso talento humano. Vi inúmeros dos nossos melhores alunos se orientarem para trabalhar no setor nanceiro. Não podiam resistir aos megadólares. Quando iniciei meus estudos universitários, os melhores alunos iam para as ciências exatas, ou para o ensino, as humanidades, a medicina. Eles queriam mudar o mundo com o cérebro. Lembro-me bem do conselho dos meus pais quando eu, como todos os adolescentes, pensava na pro ssão

que teria quando fosse adulto. Eles disseram: “O dinheiro não é importante: Não traz felicidade. [Estranho conselho para um economista.] Use a cabeça que Deus lhe deu e seja útil aos outros. Isso é o que vai lhe dar satisfação”. Se os ganhos sociais guardassem proporção com os ganhos privados, os megadólares que o setor nanceiro ganhou teriam re etido megaacréscimos na produtividade da sociedade. Às vezes isso acontece, mas muitas outras vezes, não — como neste percurso que levou ao desastre.   Como o mercado alterou nossa maneira de pensar e deformou nossos valores   A teoria econômica-padrão supõe que nascemos com nossas preferências já plenamente de nidas. Mas somos formados pelo que acontece à nossa volta — inclusive, o que é muito importante, na economia. Muitos acabaram acreditando na teoria de que os salários re etem as contribuições sociais dos que os recebem, e concluem que os que receberam tanto dinheiro devem ter dado as mais importantes contribuições sociais. Muitos acabaram valorizando o que o mercado valoriza. Os altos pagamentos recebidos pelos banqueiros re etiam a importância dos bancos. Uma boa ilustração de como o mercado alterou nossa maneira de pensar é nossa atitude em relação à remuneração por incentivo. Que tipo de sociedade é essa, em que um executivo-chefe diz: “Se vocês me pagarem só 5 milhões de dólares, eu lhes darei apenas uma parte do meu esforço. Para receber minha atenção completa, vocês têm que me dar uma porcentagem dos lucros”? Isso é exatamente o que os executivos-chefes estão dizendo ao a rmar que precisam ser incentivados com pagamentos que melhorem conforme o desempenho. Antes havia um contrato social a respeito de uma divisão razoável dos ganhos que decorrem de uma ação conjunta no terreno econômico. Nas corporações, o pagamento do chefe costumava ser quarenta vezes maior que o do trabalhador médio — número que parecia grande e era efetivamente maior que na Europa e no Japão. (Os executivos, na maior

parte dessas rmas, também são trabalhadores, no sentido de que não são os donos da rma. Mas são eles os que tomam as decisões, inclusive as que se referem à proporção da renda da rma que vai para os acionistas, para os trabalhadores e para eles próprios.) Mas algo aconteceu, há uns 25 anos, quando a era de Margaret atcher e Ronald Reagan teve início. A noção de justiça na remuneração foi substituída pela maximização do montante que os executivos podem reservar para si próprios. O que acontece nos mercados e na política diz muito a respeito do poder econômico e do poder político. E envia mensagens incisivas que a juventude responde, em um processo que vai conformando nossa sociedade. Quando cobramos alíquotas de impostos sobre as atividades de especulação que são muito mais baixas do que as incidentes sobre os que trabalham duro para ganhar a vida, não só estamos encorajando os jovens a procurar os setores especulativos, como também dizendo que atribuímos à especulação um valor mais alto.     crise moral

  Muito já se escreveu a respeito da tolice dos riscos que o setor nanceiro correu, da devastação que as instituições nanceiras trouxeram para a economia e dos dé cits scais que disso resultaram. Pouco se escreveu, no entanto, sobre o “dé cit moral” que toda essa experiência revelou: um dé cit que pode ser maior e ainda mais difícil de corrigir. A busca incessante do lucro e a elevação da promoção do interesse próprio podem não ter criado a prosperidade esperada, mas certamente favoreceram a criação do dé cit moral. É possível que a linha que separa a contabilidade criativa da contabilidade enganosa seja tênue — uma linha tênue que o setor nanceiro tem cruzado com muita frequência, inclusive, há poucos anos, nos escândalos da WorldCom e da Enron. Nem sempre é possível distinguir entre a incompetência e o engodo, mas não é provável que uma rma que

diz ter um valor líquido de mais de 100 bilhões de dólares de repente apareça em território negativo, sem saber que a sua contabilidade era ilusória. Não dá para acreditar que os originadores das hipotecas e os bancos de investimento não soubessem que os produtos que estavam criando, transacionando e reempacotando eram tóxicos e venenosos. Os banqueiros de investimentos gostariam de que acreditássemos que eles foram enganados pelos que lhes venderam as hipotecas. Mas isso não é verdade. Eles encorajaram os originadores das hipotecas a penetrar no arriscado mercado subprime porque só por meio de uma ampla oferta de hipotecas e da transformação dos ativos de risco em produtos novos eles poderiam receber as taxas e gerar os ganhos que, graças à alavancagem, os zeram parecer magos das nanças. Se eles foram enganados, é porque se deixaram enganar. É possível que alguns deles não soubessem o que estavam fazendo, mas nesse caso, são culpados de um outro crime, o da apresentação enganosa, ao alegar que entendiam de riscos quando, na verdade, não entendiam. Era de se esperar que algumas companhias apresentassem de forma exagerada os bens que possuem e propalassem ter uma competência que a realidade não mostrou, mas as proporções que esse processo atingiu foram realmente grandiosas — à altura dos egos dos seus executivos e dos salários que recebiam. (Como diz o velho princípio, caveat emptor — o risco é do comprador.) Mas é muito mais difícil de perdoar a depravação moral — a exploração dos pobres, e mesmo da classe média dos Estados Unidos, pelo setor nanceiro. Como já disse, as instituições nanceiras descobriram que havia dinheiro nos andares baixos do edifício e zeram tudo o que a lei permitia (e muitos foram além do que permite a lei) para lograr que esse dinheiro subisse até o terraço. Além de perguntar por que os reguladores não impediram essas manobras, deveríamos indagar o que aconteceu com os princípios morais dos que as praticaram. No capítulo 6, expliquei que o esquema piramidal de Bernie Madoff não era tão diferente dos esquemas de outros que zeram altas alavancagens. Os nancistas sabiam — ou deveriam saber — que os grandes ganhos a

curto prazo (com as altas taxas concomitantes) provavelmente seriam seguidos por grandes perdas — o que, de acordo com seus contratos, não afetaria seus bônus. Esses devotos dos mercados perfeitos deviam saber que a alavancagem não gera comida grátis — ganhos desproporcionais sem riscos desproporcionais. A alavancagem alta produziu ganhos altos nos anos bons; mas também expôs os bancos a grandes riscos. Quando ganhar dinheiro é o objetivo supremo da vida, não vigoram os limites de um comportamento aceitável. Como nas múltiplas crises bancárias que antecederam esta, cada episódio é marcado por situações morais que nos deviam cobrir de vergonha e levar algumas das personalidades mais egrégias à prisão (ainda que conservando nas suas contas centenas de milhões de dólares, mesmo depois de pagar multas altíssimas): Charles Keating e Michael Milken, nos anos 1980, e Kenneth Lay e Bernard Ebbers nos primeiros anos desta década. Madoff cruzou a linha entre o “exagero” e o “comportamento fraudulento”. Mas a cada dia que passa aumenta a lista dos nancistas “eticamente acusados”. Angelo Mozilo, executivo-chefe da Countrywide Financial, o maior originador de hipotecas subprime do país, é outro exemplo. Ele foi acusado pela Comissão Norte-Americana de Títulos e Intercâmbios (sec) por fraude com títulos mobiliários e uso de informações privilegiadas. Ele próprio, reservadamente, descreveu como tóxicas as hipotecas que estava originando, e chegou a dizer que a Countrywide fazia um “voo cego”, ao mesmo tempo que exaltava a força da sua companhia, dizendo que ostentava hipotecas de alta qualidade e que adotava altos padrões de garantia nanceira.1 Para muitos empresários, os ganhos maiores provêm da venda das suas empresas. O sonho de todos é encontrar algum idiota disposto a pagar um preço alto. Ele conseguiu: vendeu as ações da Countrywide com quase 140 milhões de dólares de lucro. De qualquer ponto de vista, nossos bancos e nossos banqueiros, antes e durante a crise, não estiveram à altura dos padrões morais que devíamos esperar, especialmente na exploração a que foram submetidos os prestamistas comuns. As hipotecas subprime são apenas mais um exemplo

da longa ladainha de práticas abusivas numa série de atividades, que incluem empréstimos para estudos universitários, empréstimos contra salários, centros de aluguel,2 e cartões de crédito e débito. Por vezes, as companhias nanceiras (e outras corporações) dizem que não lhes cabe decidir o que é certo ou errado: isso depende do governo. Desde que o governo não tenha proibido uma atividade, os bancos têm perante seus acionistas a obrigação de propiciar os fundos, caso essa atividade gere lucros. De acordo com essa lógica, não há problema em ajudar as companhias de cigarros, que produzem conscientemente produtos que geram dependência e matam.3 Os que acham que devem ter a liberdade de operar da maneira que lhes aprouver, desde que não contrariem a lei, desejam, na verdade, seguir um caminho fácil demais. A comunidade de negócios gasta rios de dinheiro tratando de obter leis que lhe permitam dedicar-se a essas práticas nefandas. O setor nanceiro se empenhou vivamente em evitar a aprovação de leis que impedissem os empréstimos predatórios, em liquidar as leis estaduais de proteção ao consumidor e em fazer que o governo federal — com os seus frouxos padrões de controle durante os anos de Bush — desautorizasse os reguladores estaduais. Pior ainda: muitas corporações lutaram ferozmente pela aprovação de leis que as protegessem contra os critérios comuns de responsabilidade. O sonho das companhias de tabaco é ter o tipo de regulação “leve” que não lhes impeça de fazer o que quiserem e lhes permita proteger-se contra a responsabilidade sobre as mortes que resultem das suas atividades, dizendo que se orientavam pela premissa de que tudo o que fazem está bem — porque tudo é legal e feito sob a supervisão do governo.   Assumir a responsabilidade   A ciência econômica deu respaldo involuntário a essa falta de responsabilidade moral.4 Uma leitura ingênua de Adam Smith poderia fazer crer que ele dispensara os participantes do mercado de ter de pensar

sobre questões de ética e moralidade. A nal, se a busca da realização do interesse próprio leva, como se fosse guiada por uma mão invisível, ao bemestar da sociedade, tudo o que o indivíduo precisa fazer — tudo o que um indivíduo deve fazer — é seguir seu próprio interesse. E isso foi o que aparentemente zeram os participantes do setor nanceiro. Mas, é claro, a busca do interesse próprio — a ambição — não levou ao bem-estar social, nem nesse episódio nem nos escândalos anteriores que envolveram a WorldCom e a Enron. A teoria da falha do mercado que apresentei nos capítulos precedentes ajuda a explicar por que as coisas saíram tão mal: por que os banqueiros, na busca dos seus interesses particulares, produziram consequências sociais tão desastrosas e por que a busca do interesse próprio dos banqueiros não levou ao bem-estar social — nem sequer ao bem-estar dos seus acionistas. Quando existem falhas de mercado, como as externalidades, as consequências (os custos e benefícios marginais) de uma ação não se re etem automaticamente nos preços (recebidos ou pagos). Expliquei como o mundo está repleto de externalidades. O fracasso de um banco produz efeitos de potencial desastroso sobre outros. O fracasso do sistema bancário — ou mesmo o seu fracasso potencial — já produziu um tremendo efeito sobre a economia, os contribuintes, os trabalhadores, as empresas e as casas de família. A inadimplência de uma hipoteca faz diminuir o valor de mercado das casas vizinhas e aumenta, assim, a probabilidade de novas inadimplências. O modelo destemperado do individualismo americano desabrido, encarnado com tanta pujança pelo presidente Bush, com suas botas de caubói e seu andar arrogante, exempli ca um mundo em que cada um é responsável por seu próprio êxito ou fracasso — cujas consequências nós mesmos colhemos. Mas, assim como no caso do homo economicus do capítulo 9 e no da rma típica do século xix, que era administrada pelo próprio dono, estamos no reino dos mitos. “Nenhum homem é uma ilha.”5 O que fazemos produz grandes efeitos sobre os outros; e somos o que somos, ao menos em parte, por causa das ações dos outros.

A ironia da maneira pela qual o modelo do individualismo americano funcionou na prática está em que as pessoas caram com os créditos nas vitórias, mas mostraram pouco senso de responsabilidade nos fracassos e nos custos impostos ao próximo. Quando ocorreram megalucros (declarados), os banqueiros caram com os créditos, a rmando que tudo se devia ao seu empenho; quando ocorreram megaperdas (reais), os resultados foram atribuídos a forças que não estavam sob seu controle. Essas atitudes se re etiam nos esquemas de remuneração dos executivos, que, apesar da ênfase nos incentivos, muitas vezes apresentavam baixa conexão entre pagamento e desempenho: o pagamento por incentivo é alto quando o desempenho é bom, mas quando ele é mau, a de ciência é compensada por outras formas de pagamento, com outros nomes, como “pagamento por continuidade” (“retention pay”). As pessoas do setor dizem que devem manter pagamentos altos para os trabalhadores mesmo quando o desempenho é ruim, para que outras empresas não os recrutem. Seria de esperar que os bancos preferissem se ver livres dessas pessoas. As pessoas do setor dizem que os lucros são baixos, não por causa de um desempenho inadequado, mas por causa de eventos que não estão sob o controle de ninguém. Mas então isso também é verdade quando os lucros são altos. Esse é um dos muitos exemplos de dissonância cognitiva — a capacidade dos participantes do mercado nanceiro de desenvolver uma argumentação razoavelmente boa para explicar um dos lados e esquecer as implicações relativas ao outro lado.6 Grande parte da discussão sobre contabilidade também parece apenas jogo de palavras: na sociedade japonesa, um executivo-chefe que tenha causado a destruição da sua rma, levando milhares de trabalhadores ao desemprego, pode fazer haraquiri. No Reino Unido, os dirigentes executivos renunciam quando a rma vai à falência. Nos Estados Unidos, eles lutam pelo tamanho dos bônus que vão receber. Nos mercados nanceiros de hoje, quase todos se dizem inocentes. Todos estavam apenas cumprindo seus papéis. E assim era. Mas os seus papéis muitas vezes implicavam explorar outras pessoas ou viver dos

resultados dessa exploração.7 Havia individualismo, sim, mas responsabilização individual, não. A longo prazo, a sociedade não pode funcionar bem se as pessoas não assumem a responsabilidade pelas consequências dos seus atos. “Eu estava só cumprindo o meu papel” não constitui uma linha de defesa. As externalidades e outras falhas do mercado não são exceções e sim a regra. Se isso tem fundamento, as implicações são profundas. A responsabilidade individual e a corporativa são essenciais. As rmas precisam fazer mais do que apenas maximizar seu valor de mercado. E os indivíduos que trabalham nas corporações precisam re etir mais sobre o que fazem e sobre o impacto que isso causa nos outros. Não é possível explicar tudo dizendo que estavam “apenas” maximizando suas rendas.     o que você mede é o que você vale — e vice-versa8

  Em uma sociedade que se orienta pelo desempenho, como a nossa, buscamos trabalhar bem — mas nosso trabalho depende das medições que fazemos. Na escola aprendemos diversas disciplinas e recebemos notas que medem o que aprendemos — mas não se dá tanta atenção ao desenvolvimento de capacidades cognitivas mais amplas. Do mesmo modo, políticos, técnicos e economistas buscam compreender os fatores que resultam em um melhor desempenho, tomando o PIB como medida. Mas, se o pib não for uma boa medida para o bem-estar da sociedade, estaremos buscando objetivos errados. Na verdade, o que fazemos pode ser mesmo contraproducente em função dos nossos verdadeiros objetivos. A medida do pib nos Estados Unidos efetivamente não dava uma boa percepção do que estava acontecendo antes que a bolha estourasse. O país pensava estar em situação melhor do que a real. Em outros países também sucedeu o mesmo. Preços distorcidos pela bolha in avam o valor dos investimentos imobiliários e dos lucros gerados. Muitos tratavam de imitar os Estados Unidos. Economistas faziam estudos so sticados relacionando o

êxito a diferentes políticas — mas como a medida que usavam para aferir o êxito era falha, as inferências que tiravam dos estudos muitas vezes também eram falhas.9 A crise mostrou como e quanto os preços de mercado podem ser distorcidos — e o resultado é que a medida que fazemos do desempenho é também muito distorcida. Mesmo sem a crise, os preços de todos os bens cam distorcidos porque nós tratamos a nossa atmosfera (e frequentemente também a água limpa) como se fosse grátis, quando é, de fato, um bem escasso. A extensão dessa distorção de preço com relação a qualquer bem especí co depende do teor de “carbono” contido na sua produção (inclusive na produção de todos os componentes do processo produtivo). Alguns dos debates referentes às escolhas que teríamos de fazer entre o meio ambiente e o crescimento econômico estão fora de foco: se as nossas medições fossem corretas, os resultados da produção teriam mais valor quando acompanhados de boas políticas ambientais — e o meio ambiente também estaria melhor. Perceberíamos que os lucros aparentes alimentados pelo consumo excessivo de petróleo são falsos: ocorrem às custas do bemestar social no futuro. Nosso crescimento econômico tem estado baseado em empréstimos contra o futuro: estamos vivendo além dos nossos meios. Parte do crescimento está baseada na dilapidação dos recursos naturais e na degradação do meio ambiente — que são um tipo mais traiçoeiro de empréstimo contra o futuro, porque as dívidas que contraímos não são óbvias.10 Em consequência, as gerações futuras serão mais pobres, mas nosso indicador do pib não re ete esse fato. Existem outros problemas com as medições que fazemos a respeito do nosso bem-estar. O pib per capita mede o que gastamos com a saúde, mas não o resultado disso — o estado real da nossa saúde, em termos de expectativa de vida, por exemplo. O resultado é que, enquanto nosso sistema de saúde se torna menos e ciente, o pib parece aumentar apesar da queda dos resultados na área da saúde. O pib per capita dos Estados Unidos parece maior que o da França ou do Reino Unido em parte porque

o nosso sistema de saúde é menos e ciente. Gastamos muito mais para obter resultados muito menores. Como exemplo nal (e há muitos mais)11 da natureza enganadora de algumas medidas de uso corrente, o pib per capita médio pode subir mesmo quando a maioria dos indivíduos não só sentem que não têm melhor padrão de vida, como efetivamente estão em situação pior. Isso acontece quando as sociedades se tornam mais desiguais (o que tem acontecido na maioria dos países do mundo). O fato de o bolo ser maior não signi ca que todos — ou mesmo a maioria — estejam comendo mais. Como notei no capítulo 1, em 2008 nos Estados Unidos, a mediana da renda familiar, ajustada de acordo com a in ação, era cerca de 4% mais baixa do que em 2000, embora o pib per capita (que determina a média) tenha crescido 10%.12 O objetivo da produção social é o aumento do bem-estar dos membros da sociedade, a despeito de como o de nimos. A medida que usamos normalmente não é boa e existem alternativas. Nenhuma medida pode, por si só, captar a complexidade do que acontece em uma sociedade moderna, mas a medida do pib é falha em aspectos cruciais. Precisamos de medidas que ponham em foco o estado de coisas que se apresenta para o indivíduo típico (as medidas da renda mediana são muito mais apropriadas que as medidas da renda média), a sustentabilidade (medidas que levem em conta, por exemplo, o esgotamento dos recursos e os danos ao meio ambiente, assim como o aumento das dívidas), a saúde e a educação. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (pnud) elaborou uma medida mais ampla que inclui a educação e a saúde além da renda. Segundo essa métrica, os países escandinavos aparecem muito melhor do que os Estados Unidos, que cam no décimo terceiro lugar.13 Mas, mesmo quando as medidas econômicas são ampliadas para incluir a saúde e a educação, muitos outros aspectos que afetam o nosso sentimento de bem-estar cam de fora. Robert Putnam ressaltou a importância da nossa interconectividade. Nos Estados Unidos, esse aspecto da vida social

está baixando, e a maneira pela qual organizamos a nossa economia pode ser um fator de causação.14 O reino budista do Butão, no Himalaia, tentou seguir um caminho diferente, através da criação de uma medida: a felicidade interna bruta ( b). A felicidade se relaciona apenas parcialmente com os bens materiais. Alguns aspectos, como os valores espirituais, não podem e provavelmente não devem ser quanti cados. Mas há outros aspectos que se prestam a isso (como a conectividade social). Mas mesmo sem uma quanti cação adequada, a concentração nesses valores iluminará os caminhos através dos quais poderemos reorientar a nossa economia e a nossa sociedade.   Segurança e direitos   Uma dimensão importante do bem-estar social é a segurança. O padrão de vida da maioria dos americanos, sua sensação de bem-estar, baixou mais do que as estatísticas da renda nacional (“renda familiar mediana”) parecem indicar, até certo ponto por causa do aumento da insegurança. Os americanos sentem-se menos seguros a respeito do trabalho, sabendo que, se perderem o emprego, perderão também o seguro de saúde. Com a forte subida dos custos educacionais, sentem-se menos seguros a respeito da capacidade de dar aos lhos uma educação compatível com as aspirações. Com a poupança para a aposentadoria minguando, sentem-se menos seguros de ter tranquilidade na velhice. Hoje, grande parcela dos americanos também teme não conseguir conservar suas casas. A proteção fornecida pelo valor líquido da casa, a diferença entre seu valor monetário e a hipoteca, desapareceu. Algo como 15 milhões de casas, que correspondem à terça parte de todas as hipotecas do país, estão hipotecadas por um valor que excede o valor real do imóvel.15 Ao longo desta recessão, 2,4 milhões de pessoas perderam seus seguros de saúde por terem perdido o emprego.16 Para esses americanos, é como viver à beira do precipício. Uma segurança maior pode mesmo exercer o efeito indireto de promover o crescimento: permite que os indivíduos assumam riscos mais altos,

sabendo que, se as coisas não evoluírem como esperam, haverá algum grau de proteção social. Programas que ajudam as pessoas a mudar de emprego fazem que um dos nossos recursos mais importantes — nosso talento humano — tenha bom uso. Esses tipos de proteção social têm também uma dimensão política: se os trabalhadores sentem-se mais seguros, haverá menos demandas de protecionismo. A proteção social sem protecionismo poderá concorrer para uma sociedade mais dinâmica. E uma sociedade — assim como uma economia — mais dinâmica, com o grau adequado de proteção social, pode oferecer maior satisfação para trabalhadores e consumidores. Evidentemente, poderá ocorrer uma proteção excessiva ao fator trabalho — sem que haja uma boa disciplina para combater o mau desempenho, o incentivo ao bom desempenho poderá ser ine caz. O curioso é que também aqui nos preocupamos mais com os efeitos que esses riscos e esses incentivos morais possam produzir sobre os indivíduos do que sobre as corporações. Esse fator provocou reações vastamente distorcidas à crise atual, como uma diminuição na disposição do governo Bush de agir em favor dos milhões de americanos que perdiam suas casas e seus empregos. O governo não quis parecer estar “recompensando” os que haviam se lançado a empréstimos irresponsáveis. E não quis aumentar o segurodesemprego porque isso diminuiria o incentivo à busca de trabalho. O governo deveria ter se preocupado menos com esses problemas e mais com os incentivos perversos da recém--estabelecida rede de proteção social das corporações.17 As corporações americanas ricas também falam da importância da segurança. Ressaltam a importância da segurança dos direitos de propriedade e dizem que sem essa segurança não farão investimentos. São, como o americano médio, “aversas ao risco”. As políticas públicas, especialmente entre as pessoas de direita, têm dado muita atenção a esses receios quanto à segurança da propriedade. Mas, paradoxalmente, muitos têm argumentado que a segurança individual deve ser diminuída, com cortes na previdência social e na segurança do trabalho das pessoas comuns.

É uma curiosa contradição, que tem a ver com as recentes discussões a respeito dos direitos humanos.18 Durante décadas, desde o começo da guerra fria, os Estados Unidos e a União Soviética se entregaram a uma batalha sobre os direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos enumera os direitos básicos, tanto políticos quanto econômicos.19 Os Estados Unidos só queriam saber dos direitos políticos e a União Soviética, dos econômicos. Muitos países do Terceiro Mundo, embora reconhecendo a importância dos direitos políticos, davam maior peso aos direitos econômicos: qual o benefício do direito de voto para quem está morrendo de fome? Questionavam também se alguém sem nenhuma instrução poderia exercer seu direito de voto de maneira signi cativa, quando há temas complexos em disputa. Por m, durante o governo Bush, os Estados Unidos começaram a reconhecer a importância dos direitos econômicos — mas foi um reconhecimento assimétrico: reconhecia-se o direito do capital a circular livremente entre os países — a liberalização do mercado de capitais. Os direitos de propriedade em geral e de propriedade intelectual em particular também estão entre os direitos econômicos priorizados. Mas por que esses direitos — que são direitos das corporações — devem ter precedência sobre os direitos econômicos mais básicos dos indivíduos, como o direito ao acesso à saúde pública, à habitação e à educação? Ou ainda o direito a um nível mínimo de segurança? São questões básicas que todas as sociedades devem enfrentar. A discussão integral dos temas escapa ao propósito deste breve livro. Devemos ter consciência, contudo, de que esses direitos não são um presente de Deus e sim construções sociais. Devem ser vistos como parte do contrato social que preside à nossa vida em comunidade.   Descanso, lazer e sustentabilidade   Há outros valores que não são bem captados pela nossa medida básica do pib: valorizamos o lazer, seja como tempo de relaxamento, ou como tempo

para a família, a cultura, ou o esporte. O lazer pode ter uma importância particular para os milhões de pessoas cujo trabalho provoca pouca satisfação imediata — os que trabalham para sobreviver. Há 75 anos, Keynes celebrava o fato de que a humanidade estava, pela primeira vez na história, a ponto de libertar-se do “problema econômico”.20 Ao longo da história, os seres humanos dedicaram a maior parte das suas energias a conseguir comida, habitação e vestuário. Mas os avanços da ciência e da tecnologia zeram que essas necessidades básicas possam ser satisfeitas com apenas algumas horas de trabalho por semana. Menos de 2% da força de trabalho dos Estados Unidos, por exemplo, produz todos os alimentos que mesmo uma sociedade caracterizada pelo consumo supér uo e a caminho da obesidade como a nossa pode deglutir — e com sobras su cientes para que nosso país seja um grande exportador de trigo, milho e soja. Keynes queria saber o que faríamos com os frutos desses avanços. Observar como as classes altas da Inglaterra passavam o tempo lhe dava bons motivos de preocupação. Ele não previu tudo o que aconteceu, sobretudo nas três últimas décadas. Os Estados Unidos e a Europa apresentaram reações aparentemente diferentes. Ao contrário das previsões de Keynes, os Estados Unidos como um todo não gozaram de mais lazer. O número de horas trabalhadas por unidade familiar na verdade aumentou (em cerca de 26% nos últimos trinta anos).21 Tornamo- -nos uma sociedade consumista e materialista: dois carros em cada garagem, iPods em todos os ouvidos e roupas sem limites. Compramos e jogamos fora.22 A Europa seguiu por outro caminho. A norma são férias de cinco semanas — os europeus tremem diante do nosso padrão de duas semanas de descanso. A produção por hora de trabalho na França é mais alta que nos Estados Unidos, mas o francês típico trabalha menos horas por ano e por isso tem uma renda menor. Essas diferenças não são genéticas — representam evoluções diferentes das nossas sociedades. A maioria dos franceses não gostaria de trocar de lugar com os americanos; e a maioria dos americanos não gostaria de trocar

de lugar com os franceses. A evolução, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, não foi premeditada. Deveríamos nos perguntar se realmente teríamos escolhido esses caminhos. E, como cientistas sociais, podemos tratar de explicar que razões levaram cada um a escolher seu próprio caminho. Não podemos dizer qual estilo de vida é melhor. Mas o estilo de vida dos Estados Unidos não é sustentável. Outros podem sê-lo. Se os habitantes dos países em desenvolvimento tentarem imitar o estilo de vida dos americanos, o planeta estará condenado. Não há recursos naturais su cientes e o impacto sobre o aquecimento global seria intolerável. Os Estados Unidos terão de mudar — e rápido.     comunidade e confiança

  O modelo do individualismo desabrido combinado com o fundamentalismo do mercado alterou não só a maneira como os indivíduos pensam sobre si mesmos e suas preferências, mas também como se relacionam. Em um mundo de individualismo arrebatado, há pouco lugar para a vida em comunidade e nenhum lugar para a con ança entre as pessoas. O governo é um estorvo: é o problema, não a solução. Mas se as externalidades e as falhas do mercado são ubíquas, existe a necessidade de uma ação coletiva, e os arranjos voluntários normalmente não bastarão (pelo simples fato de que não há “cobrança” para assegurar que as pessoas se comportem da maneira esperada).23 Pior: o individualismo exacerbado, combinado com o materialismo dominante, levou a um solapamento da con ança. Mesmo em uma economia de mercado, a con ança é o lubri cante que faz a sociedade funcionar. A sociedade pode, por vezes, funcionar sem um clima de con ança — recorrendo a procedimentos jurídicos, como, por exemplo, os contratos —, mas trata-se de uma alternativa claramente inferior. Na crise atual, os banqueiros perderam nossa con ança e perderam a con ança entre si. Os historiadores

econômicos destacam a importância do papel que a con ança teve no desenvolvimento do comércio e das nanças. A razão pela qual certas comunidades se tornaram comerciantes e agentes nanceiros globais foi a con ança existente entre seus próprios membros.24 A grande lição desta crise é que, apesar de todas as mudanças dos últimos séculos, nosso complexo setor nanceiro continuava a depender da con ança. Quando a con ança se perdeu, nosso sistema nanceiro se congelou. Mas nós criamos um sistema econômico que estimula o comportamento míope — tão míope que nunca leva em conta os custos da quebra da con ança. (Essa miopia explica, como já vimos, outros aspectos preocupantes do comportamento do setor nanceiro — e explica a pouca disposição da sociedade a reconhecer que os problemas ambientais não vão simplesmente desaparecer.) A crise nanceira trouxe e acelerou a erosão da con ança. Tínhamos a con ança como fato consumado, e o resultado foi sua fragilização. Se não efetuarmos mudanças fundamentais ao avançarmos, não poderemos recuperá-la. E, se for assim, isso alterará profundamente a maneira como tratamos uns aos outros, di cultará a relação entre nós e modi cará nossos ideias a nosso respeito e a respeito dos demais. Nossa noção de comunidade sofrerá nova erosão, e até a e ciência da nossa economia estará prejudicada. A securitização e os abusos feitos em seu nome ilustraram esse processo pelo qual os mercados debilitaram as relações pessoais e comunitárias. A relação “amistosa” entre o banqueiro e o tomador de um empréstimo, no seio de uma comunidade estável, na qual ambos se conheciam pessoalmente (de modo que se o devedor tivesse um problema legítimo o banqueiro saberia quando e como reestruturar o empréstimo), pode ter sido, em parte, um mito. Mas também havia nela um fundo de verdade. Era uma relação baseada na con ança, entre outros fatores. Com a securitização, a con ança já não tem nenhum papel a exercer e o banqueiro e o prestamista não têm nenhuma relação pessoal. Tudo é anônimo e as informações relativas às características da hipoteca transformam-se em dados estatísticos. Quando pessoas cujas vidas estão sendo destruídas são

descritas como simples dados numéricos, as únicas questões pertinentes na reestruturação das hipotecas são o que é legal — o que o serviço hipotecário pode fazer — e o que pode maximizar o ganho esperado pelos que detêm os papéis do negócio. A con ança, além de ter sido destruída na relação entre quem faz e quem toma o empréstimo, deixa de existir entre as diversas outras partes: quem detém os papéis, por exemplo, não acredita que o provedor do serviço aja de acordo com o seu interesse. Dada a falta de con ança, muitos contratos restringem o alcance de uma reestruturação.25 Envolvidos em tramas jurídicas, tanto quem empresta quanto quem toma emprestado sofrem. Só quem ganha são os advogados. Mas mesmo quando a reestruturação é possível, os mesmos incentivos que levaram o emprestador a tirar vantagem do tomador continuam a funcionar. Se alguma vez os banqueiros tiveram piedade de alguém, não terá sido nos tempos atuais. Eles estão preocupados com o dinheiro que esperam receber. Como não esperar, então, que os procedimentos que a aram tão bem para explorar as famílias comuns e aumentar seus próprios lucros não voltem a ser usados? A imprensa e o governo pareceram ter cado surpreendidos com a sucessão de relatos sobre a lentidão das reestruturações e sobre quanto podiam ser desvantajosas para tantos devedores. O que os emprestadores querem é uma reestruturação que se limite a ampliar o prazo dos pagamentos, aumentando as taxas pagas a curto prazo. E eles sabem que muitos devedores que não querem perder as casas em que moram nem seu senso de dignidade, embora tenham di culdade para pagar as mensalidades, se sentirão compelidos a fazer esse mau negócio. A securitização não vai desaparecer, já que faz parte da realidade de uma economia moderna. Mas implicitamente, através dos resgates, acabamos subsidiando a securitização. Deveríamos, ao menos, criar um campo de jogo neutro — e podemos, no futuro, preferir desestimulá-la.   Uma casa dividida  

A crise expôs ssuras na nossa sociedade, entre Wall Street e o americano comum e entre os americanos ricos e o resto da sociedade. Já mencionei que, enquanto os de renda alta têm se saído muito bem nos últimos trinta anos, a renda da maioria dos americanos estagnou, quando não caiu. As consequências foram varridas para baixo do tapete. Os de renda baixa — e mesmo os de renda mediana — foram orientados a continuar a consumir como se sua renda estivesse subindo; foram encorajados a viver além dos seus meios, tomando empréstimos; e a bolha tornou isso possível. As consequências da volta à realidade são simples: o padrão de vida terá de cair. Suspeito que essa percepção está por trás da intensidade do debate sobre os bônus bancários. O país como um todo tem vivido além dos seus meios, e algum ajuste terá de ocorrer. Alguém precisará pagar a conta dos resgates dos bancos. Mesmo que a solução do problema fosse compartilhada proporcionalmente, isso seria desastroso para a maior parte dos americanos. Como a renda familiar mediana já caiu 4% desde 2000, não há escolha: se quisermos preservar algum sentido de justiça, o grosso do ajuste terá de provir dos que têm renda alta, que ganharam tanto para si nas últimas três décadas, e pelo setor nanceiro, que impôs um custo tão alto ao resto da sociedade. Mas a política para isso não será fácil. O setor nanceiro reluta em reconhecer seus erros. Faz parte do comportamento moral e da responsabilidade individual aceitar a culpa quando for justa. Todos os seres humanos são falíveis — inclusive os banqueiros. Mas, como vimos, com frequência eles se empenham vivamente em passar a culpa adiante — até para suas próprias vítimas. Não somos os únicos a ter de passar por ajustes duros no futuro próximo. O sistema nanceiro do Reino Unido estava ainda mais inchado que o americano. O Royal Bank of Scotland, antes de entrar em colapso, era o maior banco da Europa e sofreu as maiores perdas entre todos os bancos do mundo em 2008. Assim como os Estados Unidos, também o Reino Unido teve uma bolha imobiliária que se rompeu. O ajuste à nova realidade pode requerer uma queda de até 10% no consumo.26

  Uma questão de visão   Os governos dos Estados Unidos não se dedicaram a um esforço consciente de pensar sobre a estruturação ou a reestruturação da economia — com uma exceção: a entrada e a saída de um regime de economia de guerra. No caso da Segunda Guerra Mundial, isso foi muito benfeito. Mas o fato de não termos agido conscientemente não signi ca que as políticas públicas não tenham dado forma à nossa sociedade. O programa das superrodovias de Eisenhower criou os modernos subúrbios ricos dos Estados Unidos — com todos os seus defeitos, em termos de custos de energia, emissões poluentes e tempo de deslocamento. Isso também levou à destruição de algumas das nossas cidades, com todos os problemas que daí decorreram. Como a rmei no capítulo 7, queiramos ou não, nossa sociedade moderna requer que o governo tenha um papel importante: do estabelecimento e cumprimento das regras à provisão de infraestrutura, ao nanciamento da pesquisa, à saúde e educação e a diversas formas de proteção social. Muitos desses gastos são de longo prazo e muitos produzem efeitos de longo prazo (o que é exempli cado pelo programa de superrodovias de Eisenhower). Para que esse dinheiro seja bem aplicado, é preciso re etir sobre o que queremos e para onde estamos indo. Ao longo deste livro, vimos várias mudanças que, em suas interações, alteraram a natureza do mercado e a nossa própria sociedade. Trata-se de um grande movimento que nos afasta de uma perspectiva mais equilibrada do indivíduo e da comunidade (inclusive o governo); de uma compreensão mais equilibrada das atividades econômicas e não econômicas; de um papel mais equilibrado do mercado e do Estado; e de uma evolução mais equilibrada das relações humanas mediadas pela justiça para as que são mediadas pelo mercado e cujo cumprimento depende de ações legais. Temos visto também o crescimento do curto-prazismo, por parte de indivíduos, rmas e governos. Como vimos, parte da razão dos problemas

recentes em muitos setores da economia americana, inclusive o setor nanceiro, está em uma concentração excessiva da nossa atenção no curto prazo (o que, por sua vez, é um dos aspectos do capitalismo gerencial). O êxito de longo prazo requer um pensamento de longo prazo — uma visão —, mas nós estruturamos o mercado nos nossos dias de maneiras que estimulam exatamente o contrário e nos desestimulam a preencher o vazio que se forma. A argumentação em favor de que o governo desenvolva um pensamento de longo prazo é ainda mais importante — apesar de os incentivos para o pensamento a curto prazo serem ainda mais fortes para os políticos do que para os dirigentes empresariais. Pensar a longo prazo signi ca ter uma visão. Gilles Michel, diretor-geral do Fundo Estratégico de Investimento da França, expressa muito bem a questão: “O Estado tem o direito de ter uma visão”. “Consideramos legítimo que a autoridade pública se preocupe com a natureza e a evolução do tecido industrial do nosso país.”27 A teoria econômica proporciona a razão de ser: a presença de externalidades (de volta a um tema reiterado neste livro). O desenvolvimento de uma nova linha de atividades ou de um novo produto pode causar efeitos que afetam produtos ou atividades já existentes — benefícios que os empresários podem não perceber, ou, mesmo tendo percebido, não podem captar. De certo modo, com o governo gastando tanto dinheiro, é difícil fazê-lo sem ter uma visão, no que concerne ao pequeno e ao grande: um país mais dependente de veículos devoradores de combustíveis, ou de transportes públicos; de transporte aéreo ou rodoviário; uma economia voltada para a pesquisa, a inovação e a educação, ou para a indústria de manufaturas? O pacote de incentivo aprovado em fevereiro de 2009 dá exemplos do que pode acontecer quando não se tem uma visão: a nação está construindo novas estradas numa época em que as comunidades são forçadas a despedir professores e as universidades sofrem grandes cortes orçamentários. As reduções de impostos estimulam o consumo quando o governo deveria estar promovendo os investimentos.  

Política, ciência econômica e sociedade — corrupção ao estilo americano   Há bastante tempo existe consciência a respeito dos problemas que discutimos, mas pouco progresso se fez para corrigi-los. Por que um país com tanta gente talentosa — um país capaz de mandar um homem à Lua — não consegue resolver esses problemas terrestres? O presidente Eisenhower advertiu quanto aos perigos do complexo industrial-militar.28 Mas nos últimos cinquenta anos esse complexo se alastrou: os grupos de interesse especial que dão forma à política econômica e social dos Estados Unidos incluem as nanças, a indústria farmacêutica, a do petróleo e a do carvão. Em alguns casos, os lobistas desempenham um papel compreensível na interpretação de complexos fenômenos econômicos e sociais — é evidente que com um interesse particular. Mas, em muitas das questões mais importantes, seus atos têm sido algo mais do que movimentos visando exclusivamente ganhar mais dinheiro — como ocorreu há pouco tempo, quando a indústria farmacêutica exigiu que o governo, que é o maior comprador de drogas, negocie com ela a respeito de preços. Mas o setor nanceiro, tanto antes quanto durante a crise, tem dado os piores exemplos. Será difícil para os Estados Unidos alcançar qualquer tipo de visão de longo prazo enquanto as contribuições de campanhas políticas, os lobistas e o sistema de portas giratórias continuarem a ofuscar nosso tirocínio. Talvez consigamos ir conciliando... Mas a que custo, para nós e para as gerações futuras? Esta crise deve ser um sinal de alerta: os custos podem ser altos e muito altos; superiores mesmo ao que o país mais rico do mundo pode suportar.     comentários e conclusões

  Escrevo este livro com os eventos em pleno uxo. A sensação de queda livre acabou. Quando o livro estiver à venda, talvez a sensação de crise

tenha acabado. Quem sabe a economia tenha voltado ao pleno emprego. Mas isso é improvável. Venho dizendo que os problemas que a nossa nação e o mundo enfrentam requerem mais do que um pequeno ajuste no sistema nanceiro. Alguns sustentam que tivemos apenas um pequeno problema hidráulico: o encanamento entupiu. Chamamos os mesmos bombeiros que haviam instalado a tubulação. Como foram eles os que criaram o problema, presumivelmente só eles saberiam como resolvê-lo. Paciência, se eles já haviam cobrado demasiado pela instalação. Paciência, se eles voltarem a cobrar demasiado pelo conserto. Devemos agradecer porque a rede hidráulica está funcionando de novo, pagar sem reclamar e rezar para que tenham feito um trabalho melhor desta vez. Mas não se trata apenas de uma questão de “bombeiros”. As falhas do nosso sistema nanceiro são emblemáticas de falhas mais amplas do nosso sistema econômico, e as falhas do nosso sistema econômico re etem problemas mais profundos da nossa sociedade. Demos início aos resgates sem uma noção clara do tipo de sistema nanceiro que queremos ter ao nal, e a obra de reparo é feita pelas mesmas forças políticas que nos causaram os problemas. Não mudamos nosso sistema político, de modo que não podemos nem nos surpreender muito com isso. Mas, apesar de tudo, havia esperança de que fosse possível mudar. Não só era possível — era necessário. Não há dúvida de que haverá mudanças em decorrência da crise. Não há como voltar ao mundo que existia antes da crise. Mas persistem as perguntas: até que ponto essas mudanças serão profundas e fundamentais? Será que ao menos ocorrerão na direção certa? A sensação de emergência acabou, mas o que aconteceu até aqui não é bom sinal para o futuro. Em algumas áreas, as regulações melhorarão. É quase certo que a alavancagem excessiva será combatida. Mas em outras áreas, no momento em que este livro vai para os trabalhos de impressão, o progresso tem sido notavelmente pequeno. Os bancos grandes demais para falir terão permissão para continuar como antes; os derivativos sob medida, que tanto

custaram aos contribuintes, continuarão quase sem restrições; e os executivos nanceiros continuarão a receber os seus bônus extraordinários. Em cada uma dessas áreas, algo cosmético será feito, mas cará muito aquém do necessário. Em outras áreas ainda, a desregulação continuará o seu caminho, por mais chocante que isso possa parecer: a menos que um clamor popular o impeça, certas proteções básicas aos investidores comuns serão prejudicadas com o enfraquecimento de pontos cruciais da Lei Sarbanes-Oxley — que foi aprovada, logo depois dos escândalos da Enron e outros, por um Congresso republicano e rati cada por um presidente republicano. Em diversas áreas críticas, em meio à crise, as coisas já pioraram. Alteramos não só nossas instituições — propiciando uma concentração cada vez maior no campo nanceiro —, mas as próprias regras do capitalismo. Anunciamos que, para instituições escolhidas, haverá pouca ou nenhuma disciplina de mercado. Criamos um simulacro de capitalismo com regras pouco claras, mas com um futuro previsível: crises futuras; riscos indevidos, às custas do povo, a despeito das promessas de um novo regime regulatório; e maior ine ciência. Demos lições ao exterior a respeito da importância da transparência, mas demos aos bancos maior amplitude de ação para manipular suas contas. Nas crises anteriores, havia preocupação com relação aos riscos morais e com os incentivos perversos gerados pelos resgates; mas a magnitude desta crise deu novo signi cado ao conceito. As regras do jogo mudaram também na perspectiva global. As políticas do consenso de Washington e a ideologia que o alimentava, o fundamentalismo do mercado, estão mortas. No passado pode ter havido um debate a respeito de o campo de jogo ser justo para o desenvolvimento das relações entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, mas agora esse debate já não pode ocorrer. Os países pobres simplesmente já não podem apoiar suas empresas da maneira como os países ricos o fazem, e isso muda o risco que podem assumir. Eles assistiram ao mau manejo dos riscos da globalização. Mas as esperadas reformas quanto ao manejo futuro da globalização ainda parecem estar no horizonte distante.

Hoje já é um lugar-comum dizer que o ideograma chinês para “crise” é a mescla de “perigo” e “oportunidade”. Já vimos o perigo e a pergunta é: aproveitaremos a oportunidade para restaurar nossa noção de equilíbrio entre o mercado e o Estado, entre o individualismo e a comunidade, entre o homem e a natureza, entre os meios e os ns? Temos agora a oportunidade de criar um novo sistema nanceiro que faça o que os seres humanos precisam que um sistema nanceiro faça; de criar um novo sistema econômico que gere empregos signi cativos e trabalho decente para todos os que o desejem; um sistema em que a separação entre os que têm e os que não têm se estreite, em vez de ampliar-se; e, acima de tudo, a oportunidade de criar uma nova sociedade em que cada indivíduo possa realizar suas aspirações e alcançar seu potencial; uma sociedade na qual criamos cidadãos que compartilham valores e ideais, na qual criamos uma comunidade que trata nosso planeta com o respeito que ele nos exige a longo prazo. Essas são as oportunidades. O perigo real que enfrentamos é o de não saber aproveitá-las.  

Posfácio

Nos oito meses que se seguiram à primeira edição americana de O mundo em queda livre, os eventos se desdobraram (infelizmente) da maneira prevista: o crescimento permaneceu baixo, anêmico o bastante para que o desemprego permanecesse teimosamente alto; a inadimplência das hipotecas manteve o seu ritmo; e se, por um lado, houve a retomada da outorga de boni cações — os bônus — e dos lucros, o mesmo não ocorreu com a oferta de crédito, ainda que a retomada do crédito tenha sido, supostamente, a razão das operações de salvamento dos bancos. E, como previsto, as consequências políticas decorrentes de tais fracassos indicam ser improvável que o Congresso americano venha a aprovar um novo, e necessário, pacote de estímulo. Em alguns casos — como a crise na Europa e a real dimensão das práticas fraudulentas e antiéticas dos bancos — as coisas revelaram-se piores do que se previa; e em outros casos — o volume das perdas nos resgates dos bancos — um pouco menos graves. As reformas na regulação do setor nanceiro foram mais profundas do que eu havia antecipado, o que devemos especialmente a Goldman Sachs, já que a revolta pública gerada pelo seu comportamento superou o poder do dinheiro e do lobby dos bancos. Contudo, os bancos lograram temperar as regulações o su ciente para que a perspectiva de uma nova crise no futuro próximo continue sendo real: o que conseguimos foi ganhar um pouco mais de tempo antes que ela ocorra

e talvez tenhamos logrado reduzir o custo provável que ela poderá causar à nossa economia e ao Tesouro. A maior notícia dos últimos oito meses foi a lenta, progressiva e resignada aceitação, por parte de economistas e membros do governo, de uma visão desalentadora do futuro próximo, a respeito da qual eu já alertara: uma nova “normalidade” para as economias industriais desenvolvidas, com altas taxas de desemprego, baixas taxas de crescimento e piora na qualidade dos serviços públicos. A prosperidade foi substituída por um mal-estar de estilo japonês, cujo m não se logra antever. Mas na “década perdida” do Japão, apesar do crescimento lento, pelo menos o desemprego continuou baixo e a coesão social continuou alta. Na Europa e nos Estados Unidos, ao contrário, alguns economistas estão falando de uma taxa persistente de desemprego, na faixa de 7,5%, bem acima dos 4,2% de que desfrutamos na década de 1990. A crise nanceira efetivamente terá causado danos de longo prazo à economia, dos quais nos recuperaremos apenas gradualmente.1 Não era apenas o setor privado que vivia em um castelo de sonhos sustentado por bolhas, como a hipotecária e a nanceira. O governo também compartilhava indiretamente desses sonhos, pois recebia uma parte da “renda fantasma” gerada pelas bolhas, sob a forma de pagamento de impostos. Com o surgimento da crise, os países que pensavam que haviam sido prudentes do ponto de vista scal, como a Espanha, e que haviam acumulado superávits antes da crise descobriram que passavam a enfrentar não só um dé cit temporário, em função da crise, mas sim um dé cit estrutural.2 Mesmo que a economia volte a ter pleno emprego, é provável que se mantenha um dé cit orçamentário crônico. Para os países imprudentes em matéria scal, como os Estados Unidos do presidente Bush e a Grécia do primeiro-ministro Kostas Karamanlis, as coisas se mostraram ainda mais desconfortáveis. Em 2009, o dé cit dos Estados Unidos chegara a 9,9% do pib e o da Grécia a 13,6%. Fazer com que esses dé cits voltem a zero não será apenas uma questão de car esperando pela recuperação, porque esses países já viviam em dé cit mesmo quando as suas economias

estavam bem próximas ao pleno emprego e os seus orçamentos engordavam com os impostos sobre os lucros gerados pelas bolhas. E agora eles terão que suportar substanciais aumentos de impostos ou cortes correspondentes de despesas. Mas aí está o problema: com a timidez da recuperação global, quaisquer cortes de gastos ou aumentos de impostos certamente levarão a um crescimento ainda menor, o que poderá empurrar algumas economias a uma recessão particularmente severa. Apesar desses prognósticos sombrios para a economia mundial, os clamores em favor da redução dos dé cits logo surgiram, a partir de Wall Street e dos mercados nanceiros. A sua miopia havia criado a crise e agora voltava a manifestar-se na exigência de políticas que levariam à persistência dela. Exigiam cortes no orçamento. Sem eles, alertavam os nancistas e as agências de classi cação de risco, as taxas de juros subiriam, o acesso ao crédito seria cortado e os países não teriam outro recurso se não o de cortar os gastos. Mas assim que a Espanha anunciou a sua redução de gastos, em maio, as agências de classi cação de risco e os mercados deram a sua resposta: disseram, o que a meu ver é correto, que os cortes diminuiriam o crescimento. Com o crescimento mais lento, a arrecadação de impostos baixaria, os gastos sociais (como o seguro-desemprego) aumentariam e os dé cits permaneceriam altos. A Fitch, uma das três principais agências de risco, rebaixou o status da dívida espanhola e as taxas de juros que o país devia pagar continuaram subindo. Era evidente que os países cariam mal se cortassem os gastos e mal também se não os cortassem. O único momento em que os mercados nanceiros pareceram mostrar alguma compreensão foi quando o dinheiro entrava diretamente para os seus cofres, como aconteceu com as grandes operações de salvamento. Esses fatos revelam-se ainda mais inquietantes quando se pensa que ocorrera um momento de unidade, nacional e internacional, no auge da crise, quando os países se uniram diante da calamidade global. Pela primeira vez, o G-20 reuniu os países desenvolvidos e os emergentes com o objetivo de resolver o problema global. Foi um momento em que todo o mundo era keynesiano e em que a infeliz ideia de que os mercados livres e

desregulados são estáveis e e cientes cara desacreditada. Havia a esperança de que ocorreria o surgimento de um capitalismo novo e mais amadurecido e uma ordem econômica global mais equilibrada, propiciando ao menos uma estabilidade maior a curto prazo e a possibilidade de resolver os problemas mais duradouros de que me ocupei no capítulo 7 (como a grande e crescente desigualdade entre ricos e pobres, a adaptação da nossa economia às ameaças do aquecimento global, a redução da dependência do petróleo e a reestruturação econômica necessária para que ela possa competir efetivamente com os países emergentes da Ásia). A esperança que inspirava aqueles primeiros meses da crise está se desfazendo rapidamente e em seu lugar surge uma nova atitude de desesperança: o caminho da recuperação pode ser ainda mais lento do que eu previra e as tensões sociais podem ser ainda maiores. Os executivos dos bancos levaram para casa bônus milionários e os cidadãos comuns enfrentam não só um desemprego prolongado, mas também uma rede de proteção contra o desemprego que não está à altura dos desa os colocados pela Grande Recessão. As divisões, econômicas e ideológicas, dentro dos países e entre eles, parecem estar ainda aumentando. Com o prosseguimento da derrocada econômica, prossegue também o imperativo de uma ação global e caz, mas essas mesmas divisões fazem com que seja cada vez mais difícil para os Estados Unidos dar uma resposta adequada e as esperanças de que cheguemos ao tipo de ação global integrada que seria desejável são menores a cada dia. Neste posfácio, volto a examinar — tanto do ponto de vista político quanto do econômico — os fatos principais que ocorreram desde a primeira publicação de O mundo em queda livre e a medida em que eles reforçam ou modi cam minhas conclusões anteriores. Esses fatos deram lugar a novas percepções e a novas indagações e dão novo ímpeto à busca de respostas para antigas perguntas. Os críticos a rmam, por exemplo, que a receita econômica keynesiana apenas adia o momento da verdade. Mas o meu argumento aqui vai no sentido contrário: a menos que voltemos aos

princípios básicos do receituário keynesiano, o mundo está condenado a uma recessão prolongada. A crise levou o mundo por caminhos desconhecidos, repletos de incertezas. Mas há uma coisa a respeito da qual podemos estar relativamente seguros: se os países industrialmente avançados persistirem no rumo que parecem haver tomado, a probabilidade de uma recuperação robusta no futuro próximo é sombria. A posição relativa que os Estados Unidos e a Europa hoje ocupam, do ponto de vista econômico e político, será, em consequência, fortemente abalada. E o mesmo acontecerá com a nossa capacidade de resolver as questões de longo prazo de que depende o nosso bem-estar no futuro.3     o rumo da economia

  Logo após as cerimônias de posse, o governo de Obama começou a promover a recuperação da economia, na esperança de que um clima positivo levaria os americanos de volta aos centros comerciais. Os supostos “brotos verdejantes” que os olhos de águia da sua assessoria apontaram em março de 2009 já estavam murchos no início do verão boreal, mas o crescimento recomeçou mais para o m do ano, de modo que o chefe do Conselho Econômico Nacional do governo, Larry Summers, pôde anunciar que a recessão terminara. E terminada estava — para os bancos que haviam criado a crise: como o governo lhes dava dinheiro a uma taxa de juros essencialmente igual a zero e lhes permitia retomar os negócios de alto risco e outras atividades especulativas, os lucros, ao menos, pareciam ir bem. Para o resto da economia, as coisas continuavam sombrias — e em nenhum outro lugar isso era tão claro quanto no mercado de trabalho, onde cada mês que passava trazia novos recordes no número de desempregados (e dos que estariam desempregados se não tivessem desistido de procurar trabalho).4 Eu já previra essa situação de desapontamento ao ver que não havia nada no horizonte que pudesse substituir a bolha imobiliária e o

impulso que ela dera à demanda agregada. A atividade produtiva dos Estados Unidos estava limitada pela demanda. O colapso da bolha imobiliária acabara com a expansão do consumo. Essas realidades, ao lado dos males de um setor nanceiro problemático, signi cavam que o nível dos investimentos era fraco. Os problemas dos Estados Unidos eram compartilhados pelos que compram nossos produtos em outros países, de modo que as exportações também estavam fracas. Apenas o governo estava tratando de evitar um desastre ainda maior.   O mercado de trabalho   Em meados de 2009, estava claro que o ritmo da eliminação de postos de trabalho que marcara fortemente o começo do ano — só em janeiro perderam-se 750 mil empregos — não permaneceria igual. Em alguns setores houve júbilo quando a maré nalmente pareceu reverter, no primeiro trimestre de 2010. Contudo, os 150 mil empregos que foram criados naquele trimestre eram apenas a metade do número de novos empregos que normalmente seriam necessários para atender aos jovens que pretendiam incorporar-se à atividade produtiva: na verdade, o dé cit de empregos continuava a aumentar. Por detrás do dado de que a taxa de desemprego permanecia estável (bem acima de 9%) havia um grande número de “trabalhadores desanimados”, que sabiam que não conseguiriam encontrar emprego. Só cerca de 1% dos desempregados encontrou trabalho no primeiro trimestre, e a terça parte desses empregos era para trabalhos temporários no recenseamento nacional. Um número cada vez maior de trabalhadores estava recorrendo às suas poupanças, ou enfrentando a temível perspectiva do término das indenizações de desemprego. A parcela dos que estavam desempregados há seis meses ou mais — quase a metade — alcançara níveis que nunca haviam ocorrido desde que essa estatística começou a ser feita, em 1948.5 Com o prolongamento da recessão, cada prorrogação das compensações revelava-se apenas como um paliativo temporário. E cada vez que os que se preocupavam com a situação dos que

se viam sem trabalho há muito tempo tentavam obter uma nova prorrogação, havia um congressista ou outro que colocava obstáculos à proposta. Isso voltou a acontecer em junho de 2010, de maneira que o Congresso americano entrou no seu tradicional recesso de 4 de julho sem aprovar a prorrogação, o que deixou mais de três milhões de pessoas sob o risco de perder as indenizações já no m do mês.6 Além disso, a perspectiva era de que se repetisse a experiência dos ciclos negativos anteriores de modo que os trabalhadores que passassem muito tempo sem emprego encontrariam di culdades cada vez maiores para voltar a trabalhar e, se chegassem a consegui-lo, teriam que receber salários muito mais baixos.7 Embora os dados divulgados no início de 2010 mostrassem o que tantos estavam esperando — a retomada do crescimento na segunda metade de 2009 —, a precariedade desse crescimento re etia-se na recusa do National Bureau of Economic Research (Escritório Nacional de Pesquisas Econômicas), a organização acadêmica independente responsável pelos dados referentes à recessão, a “proclamar” o m da recessão, até mesmo em meados de 2010. Diante do risco real de que a economia voltasse a deslizar para baixo, seria errado considerar esse novo declínio como outra recessão, pois ela seria apenas o prosseguimento da Grande Recessão de 2008.   A crise hipotecária   Havia muitas outras razões para preocupação a respeito do rumo da economia, além da contínua debilidade do mercado de trabalho. Uma delas decorria dos problemas persistentes do mercado imobiliário. Ele poderia ter-se “estabilizado”, mas os seus preços ainda estavam 30% abaixo dos níveis máximos e isso re etia a média dos casos, porque em muitos lugares do país os declínios chegavam a 50% ou mais. A quarta parte de todas as hipotecas continuava a padecer de problemas e as previsões indicavam que entre 2,5 e 3,5 milhões de pessoas perderiam suas casas em 2010, número maior do que os dos dois anos anteriores. Para colocar as coisas em sua dura perspectiva, em maio de 2010, as novas construções de residências

familiares correspondiam a menos de um terço do nível de maio de 2005 e a menos da metade do nível de quinze anos atrás, ou seja, maio de 1995.8 Como eu previra, as iniciativas governamentais com relação às hipotecas eram simplesmente inadequadas. Outras iniciativas destinadas a auxiliar o mercado imobiliário eram apenas paliativos de curto prazo. Em meados de 2010, com o m de algumas dessas medidas de auxílio, como o crédito scal para quem comprava sua primeira casa, o mercado parecia afundar ainda mais. Quando as hipotecas foram “reestruturadas”, com o objetivo de diminuir as mensalidades e torná-las mais acessíveis, a redução do pagamento traduzia-se simplesmente em uma ampliação do montante devido, especialmente com a cobrança pelos bancos de novas taxas de transação. Mais importante ainda: por um lado, as iniciativas do governo haviam ajudado uns poucos americanos que ainda conservavam os seus empregos e casas, embora já não conseguissem pagar suas hipotecas; por outro lado, pouco se fez a respeito das hipotecas em naufrágio, em que o prestamista devia mais do que o valor da casa. O descompasso total que ocorria nos Estados Unidos entre o que os proprietários deviam e o valor das suas casas era estimado em cerca de 700 a 900 bilhões de dólares e, portanto, não era difícil entender por que os bancos não queriam rever o valor das hipotecas: eles não queriam que as perdas aparecessem nos seus balanços. Mas, sem a reestruturação das hipotecas, era difícil acreditar que a economia americana pudesse voltar ao “normal” no futuro próximo. Diante do volume dessa dívida, os americanos provavelmente não voltariam a gastar em consumo da mesma maneira que faziam quando a taxa de poupança (familiar) era igual a zero — e mais ainda diante da debilidade do mercado de trabalho. No entanto, entre os que esperavam uma recuperação rápida havia ainda esperança. Eles examinavam os dados, buscando com a nco sinais de um “regresso dos consumidores”. Logicamente, depois de uma queda tão forte nos níveis de consumo nos primeiros meses que se seguiram ao desastre de Lehman Brothers, tinha que ocorrer um pequeno aumento nos gastos (assim como a excessiva liquidação de estoques pelos negociantes levara a

uma reposição). Mas as perspectivas de que esse aumento fosse sustentável eram pálidas. Com efeito, como eu ressaltara no livro, qualquer tipo de retorno aos níveis de euforia do período pré-crise deveria ser causa de preocupação e não de júbilo, pois esse consumo não seria e não poderia ser sustentável e uma recuperação que estivesse baseada nele teria vida curta.   O colapso imobiliário comercial   Outro problema ameaçava o setor comercial do mercado imobiliário, no qual os preços haviam caído tanto quanto no setor residencial, quando não mais ainda. Os proprietários residenciais passaram a conhecer os riscos dos “pagamentos-balões” — hipotecas que tinham de ser integralmente pagas em, digamos, cinco ou dez anos, normalmente por meio de uma nova hipoteca. A maior parte do setor imobiliário comercial é nanciada dessa maneira e, tipicamente, as hipotecas são re nanciadas a cada cinco ou dez anos. Isso quer dizer que as hipotecas assumidas no auge da bolha terão que ser re nanciadas nos próximos anos. Em fevereiro de 2010, o Grupo de Supervisão do Congresso americano (Congressional Oversight Panel) estimou que um total de 1,4 trilhão de dólares do setor imobiliário comercial terá que ser re nanciado no período 2011-2014 e que quase a metade das hipotecas desses imóveis estava em naufrágio.9 A escala dos problemas com que se confronta o setor imobiliário comercial cou clara com a falência bilionária do projeto Peter Stuyvesant, de Nova York, em janeiro de 2010. Além da magnitude da discrepância entre o que é devido e o valor atual da propriedade, três outros fatores tornam essas operações de re nanciamento particularmente problemáticas. Normalmente, os bancos tendem a seguir a política de “ ngir que não viu e renovar”: ngir que não há nada errado e re nanciar os papéis; e rezar para que no meio-tempo os preços se recuperem, tornando as perdas mais palatáveis. Mas os supervisores dos bancos, corretamente criticados por não haverem

cumprido o dever quando a crise se aproximava, estão, desta vez, adotando uma linha mais dura.10 Além disso, uma grande parcela dos empréstimos foi securitizada e os credores mais antigos podem querer o seu dinheiro de volta de uma vez, em vez de arriscar-se por mais cinco anos. Mais ainda, como já disse antes no livro, há o emaranhamento legal entre os detentores das primeiras e das segundas hipotecas residenciais.11 Mas essa questão é história para crianças em comparação com as que afetam o setor imobiliário comercial, onde pode haver um número muito maior de transações intermediárias12 e muitos con itos de interesse mais. O colapso dos mercados imobiliários é obviamente penoso para os que nele investiram grande parte do seu dinheiro. A casa é o bem mais valioso que possui a maioria das famílias americanas. Mas o colapso afeta também a economia como um todo. As famílias que veem como o seu bem mais importante perde valor dessa maneira têm menos propensão a gastar, pois têm de reconstruir o seu futuro, seja para nanciar a aposentadoria, seja para custear a educação dos lhos. Tanto os chefes de família quanto os negociantes que tomaram empréstimos usando as suas casas como colaterais terão agora mais di culdade em fazê-lo, o que trará novos apertos tanto para o consumo quanto para o investimento em todo o país. Nos anos anteriores à crise, a construção de casas e prédios representava de 30% a 40% do investimento total, mas, com os preços dos imóveis tão baixos, é mais barato comprar uma casa antiga do que construir uma nova. O excesso de construções no passado recente resultou em que o setor da indústria da construção tenha caído, como porcentagem do pib, aos níveis mais baixos desde a Segunda Guerra Mundial (quando o país evidentemente tinha outras prioridades). Anos e anos terão que passar até que a construção de moradias retorne aos níveis de antes da crise.13   A crise bancária  

Existe mais uma consequência do rompimento da bolha imobiliária e da recessão econômica: como são tantos os cidadãos que não conseguem ou não pretendem pagar os empréstimos que tomaram, os bancos têm enfrentado fortes inadimplências que afetam a sua capacidade de emprestar. Essa espiral provocou a crise nanceira, mas, infelizmente, a concentração do foco na crise dos bancos subtraiu a atenção que mereceriam ter os problemas econômicos mais amplos e básicos. Também infelizmente, certas de ciências nas respostas dos governos de Bush e Obama à própria crise bancária signi caram que nem mesmo esse problema cou resolvido. O presidente Obama deixou claro que a economia não se recuperaria até que a concessão de crédito fosse retomada. O argumento essencial em favor da entrega de dinheiro aos bancos era o de que isso era necessário, não porque amássemos os bancos, mas sim porque queríamos que eles retomassem os empréstimos. Mas, como expliquei no texto do livro, a maneira com a qual os governos de Bush e de Obama lidaram com a crise bancária não estava bem articulada com o objetivo da retomada do crédito. E não conseguiu alcançá-lo. Na verdade, no momento em que esta edição vai para o prelo, a concessão de empréstimos continua a diminuir. O volume de empréstimos ainda não pagos é hoje bem menor do que era antes da crise. Em maio de 2010, o total da concessão de empréstimos comerciais era, em termos nominais, quase 20% mais baixo do que cinco anos atrás.14 As pequenas e médias empresas que dependem dos bancos para conseguir crédito continuam a enfrentar a sua escassez. Os bancos podem tomar empréstimos do Fed a taxas de juros próximas a zero, mas os outros negócios do país — os que geram empregos — têm de pagar juros altos aos mesmos bancos que causaram a crise se quiserem obter qualquer tipo de crédito. Para os grandes bancos, isso é uma bonança. Para o resto do país, é um pesadelo. Como notei no texto principal, o governo concentrou os seus esforços no salvamento dos bancos grandes demais para poder falir, deixando os bancos menores ao relento. Estes bancos, no entanto, são o esteio principal do

crédito para as pequenas e médias empresas, as quais são, por sua vez, a fonte principal da criação de empregos. O número de bancos cuja falência é esperada em 2010 é maior do que os 140 que faliram em 2009. Enquanto isso, o fdic (que assegura os bancos) cou sem dinheiro e teve que recorrer ao auxílio do Tesouro.15 Os bancos falidos, contudo, são apenas a ponta do iceberg. Para cada um dos que já faliu, há muitos outros ameaçados de seguir o mesmo caminho, e a reação típica destes é reduzir os créditos. Os truques de contabilidade que permitem que as hipotecas ruins permaneçam nos balanços dos bancos como se fossem boas não enganam ninguém. Os bancos e os supervisores sabem que elas geram uma situação de risco. Mesmo os bancos mais sólidos têm problemas para conceder créditos. A maior parte das pequenas rmas toma empréstimos com base em colaterais (bens utilizados para garantir o pagamento dos empréstimos aos bancos). Esse colateral é, normalmente, um imóvel e, com a queda dos preços dos imóveis, o volume total do que eles podem levantar em créditos também diminuiu. Isso não signi ca apenas que essas pequenas rmas não conseguirão expandir-se: signi ca que elas carão ainda menores. E esse problema não parece estar em vias de ser resolvido no futuro visível.   A exportação como salvação dos Estados Unidos   No discurso sobre o estado da União feito em 27 de janeiro de 2010, o presidente Obama mencionou uma possível fonte de demanda agregada que poderia sustentar a recuperação: as exportações. Essa possibilidade derivava de três premissas: um dólar fraco, o que torna mais competitivos os produtos americanos; um poder de compra forte por parte dos principais parceiros comerciais, a Europa e o Canadá; e que os Estados Unidos produzam bens que os outros países queiram comprar. As três premissas são discutíveis. O resultado foi que, mesmo no primeiro quadrimestre de 2010, quando o dólar estava fraco, o valor em dólares dos bens exportados, uma

vez descontada a in ação, era algo como 5% mais baixo do que o nível de dois anos atrás.16 A desindustrialização dos Estados Unidos — causada, em parte, pela mesma ideologia que levou à desregulação — signi ca que o país produz menos bens que outros queiram comprar. As restrições às exportações de alta tecnologia para a China colocaram obstáculos a um mercado crescente que poderíamos aproveitar. E as restrições à concessão de vistos afetaram outras áreas potencialmente vantajosas nos setores de turismo e educação. Além disso, o crescimento dos nossos principais parceiros comerciais tem sido fraco. E a crise na Europa erodiu a única vantagem real dos Estados Unidos — a taxa de câmbio baixa. O prognóstico aqui não é melhor. A reação da Europa à crise provavelmente resultará em um crescimento ainda mais lento. O valor declinante do Euro   Na Grande Depressão, os países tentaram restaurar a saúde das suas economias repassando os problemas para os vizinhos: a imposição de tarifas deslocaria a demanda de importações para a produção doméstica e esperava-se que a demanda interna adicional assim gerada diminuísse o desemprego. Outra técnica popular era a das desvalorizações competitivas: fazer baixar a taxa de câmbio com relação aos competidores comerciais signi ca que os bens exportados cam mais baratos no outro país e que o contrário ocorre com os bens importados. Nenhuma dessas políticas funcionou na prática porque os parceiros comerciais retaliaram, como é natural, impondo tarifas e desvalorizando as suas próprias moedas com relação ao ouro, de modo que os preços relativos (entre dólares e libras, por exemplo) — que eram o que realmente importava — cavam inalterados. Talvez os Estados Unidos estivessem buscando uma estratégia similar em resposta à Grande Recessão, embora, desta vez, não o zessem por meio do protecionismo (apesar de que, como mencionei no capítulo 8, os Estados Unidos impuseram dispositivos de compra preferencial de produtos americanos no plano de estímulo) e sim através de desvalorizações

competitivas. Conquanto o Secretário do Tesouro continuasse a fazer discursos sobre as virtudes de um dólar forte, as taxas de juros persistentemente baixas e os dé cits crescentes, mesmo que não tivessem como m precípuo o enfraquecimento do dólar, certamente produziram esse efeito. Hoje em dia, as taxas de câmbio são como concursos de beleza ao contrário. Não se trata de saber qual país tem as melhores perspectivas econômicas, mas sim qual dentre eles tem as menos ruins. E os mercados são voláteis, focalizando ora um fator, ora outro. A Grande Recessão trouxe novas incertezas e novas oportunidades para que o mercado demonstre os seus caprichos e a sua falta de previsão. Os problemas da Grécia — e as aparentes oportunidades que esses problemas parecem ter gerado para os especuladores — deslocaram a atenção internacional dos problemas americanos para os europeus. Voltarei a discutir essas questões neste posfácio. Por enquanto, há só uma observação simples a fazer: à medida que os mercados focalizavam os problemas europeus, o valor do euro foi baixando, de um máximo de 1,60 com relação ao dólar, em agosto de 2009, para 1,20, em junho de 2010. A implicação para as exportações americanas e para a sua competitividade é clara: com uma queda de 25% no valor do euro, de repente os produtos europeus caram drasticamente mais baratos. As rmas americanas não conseguiram responder, pelo menos no curto prazo, com um aumento da e ciência ou com a redução dos salários. Na maior parte das atividades competitivas, quedas de preço muito menores do que essa podem facilmente levar à falência. A única esperança para as empresas americanas que competem com as europeias é, então, uma reversão nas expectativas dos mercados nanceiros. O dé cit dos Estados Unidos, que chegou a 9,9% do pib em 2009, era muito maior do que na zona do euro,17 onde era de 6,3%.18 E há ainda outros problemas nas nanças dos estados e das municipalidades dos Estados Unidos. Existem, por exemplo, grandes furos ocultos nos fundos de pensão locais e estaduais em todo o país. Talvez, dentro de alguns meses, quando os mercados nanceiros venham a perceber as consequências da

imobilidade de Washington — ou ainda se os Estados Unidos optarem por mal pensadas reduções do dé cit que levem a um maior enfraquecimento da economia — eles despertem com relação a esses problemas latentes. Então, o dólar baixará de valor e as exportações se recuperarão. O que parecia claro era que o futuro das exportações do país — e de sua economia, em um sentido mais amplo — não estava na dependência da sabedoria de mercados dotados de antevisão, capazes de atuar, de maneiras misteriosas, no sentido de dar rumo certo, calmo e seguro à complexa empreitada de alcançar uma prosperidade cada vez maior. Ao contrário, o que cou claro é que a nossa prosperidade futura estava atada aos caprichos de mercados míopes e voláteis, dedicados à tarefa de driblar eles próprios e o processo político. Parecia cada vez mais um jogo com poucos vencedores: os que escreviam as regras do jogo.   Gastos locais e estaduais   Com o setor privado tão enfraquecido, só o governo pode dar apoio à economia. Mas, infelizmente, os problemas que ocorrem nos estados e municípios dos Estados Unidos e que foram descritos no livro revelaram ser tão graves quanto eu previra. O erro da falta de provisão de apoio adicional aos estados federados na primeira lei de estímulo tornou-se evidente à medida que os estados demitiam professores e outros funcionários públicos. No início de 2010, 88% das instituições locais assinalaram que os seus problemas eram maiores em 2009 do que no ano anterior,19 por uma razão óbvia: muitas delas dependem da arrecadação do imposto territorial. O valor das propriedades é revisto gradualmente, o que signi ca que um número crescente de comunidades deparam com uma base impositiva menor. A arrecadação de impostos continuou a minguar em proporção ao pib. O estímulo possibilitou alguma ajuda para reduzir esse descompasso, mas essa assistência está chegando ao m. Os estados e municípios verão como fazer para reduzi-lo, seja cortando gastos, seja aumentando taxas e

impostos, mas ambas as possibilidades levarão a uma queda na demanda agregada, o que corresponde a um estímulo negativo.   A questão principal: a forma da recuperação   No início da crise, havia muitas discussões a respeito da forma da recuperação. Alguns esperavam uma volta rápida ao crescimento — uma recuperação em forma de V. Ninguém mais fala dessa possibilidade: com a persistência do desemprego alto, quase três anos depois do começo da recessão, essa ideia parece hoje pura fantasia. As perguntas agora são: quanto tempo será preciso para um retorno à normalidade? E será que essa nova “normalidade” signi cará a persistência do desemprego alto?     sonhos perdidos

  O governo de Obama esperava que os problemas do setor nanceiro fossem de curta duração, que a liberação de dinheiro para o setor bancário restabelecesse rapidamente a sua saúde (e que, com o retorno da lucratividade bancária, o resto da economia voltasse a crescer), que o governo funcionasse, enquanto isso, como fonte alternativa para contrabalançar a queda da demanda agregada e que o apoio governamental pudesse reduzir-se rapidamente com a recuperação do setor privado. De acordo com esse ponto de vista, o estímulo seria uma medida de curto prazo. Mas isso era uma aposta. Eu temia que um pacote de estímulo de menor volume e menor duração do que o necessário constituísse um risco no sentido de que a recuperação seria fraca e o próprio estímulo não despertaria a con ança necessária. (Na verdade, ele funcionou: se não fosse pelo estímulo, a taxa de desemprego poderia ter chegado a 12% em vez de 10%.) A consequência da percepção de que o estímulo fracassara reduziu as expectativas com relação a um segundo estímulo, sobretudo à medida que a magnitude dos dé cits e das dívidas cava mais clara. E esses temores

revelaram-se verdadeiros. Normalmente, mesmo que o desemprego fosse de 8%, haveria uma reivindicação em favor de uma ação por parte do governo. Com o desemprego acima de 9%, a única perspectiva de ação governamental que existe é a de um pequeno programa de “emprego” de quinze bilhões de dólares — convertido em lei com a assinatura do presidente Obama em março —, que di cilmente produzirá um impacto signi cativo sobre o mercado de trabalho.20 O m do estímulo enfraquecerá a demanda agregada e o crescimento será lento.   O custo dos pecados dos bancos   Enquanto isso, o Departamento do Tesouro tentava persuadir os americanos de que a sua generosidade para com os bancos não traria um custo elevado para a economia. O Tesouro assinalou que havia recuperado grande parte do dinheiro que gastara. Mas a admissão apenas parcial dos custos ampliou a percepção de que o Tesouro estava nas mãos do setor nanceiro, cuja desonestidade contábil fora um fator na criação da crise.21 Essa percepção foi reforçada pelas posições tomadas pelo Tesouro no campo da regulação nanceira, que descreverei em detalhe mais adiante. Ele falava repetidamente na necessidade de uma regulação mais estrita, mas vacilou nas questões importantes, colocando-se muitas vezes do lado dos bancos. Depois da primeira edição deste livro, o Tesouro nalmente decidiu apoiar certas restrições sobre as atividades bancárias (a regra de Volcker), mas em seguida deu apoio a uma suspensão das alterações por mais um ano, para que o tema pudesse ser melhor estudado — como se os anos transcorridos desde o início da crise não tivessem dado aos funcionários do Tesouro o tempo necessário para estudá-lo. Quando a senadora Blanche Lincoln, do Arkansas, que lutava pela sua sobrevivência política, ajudou a aprovação, pelo Senado, de um dispositivo que limitava a atuação dos bancos no campo dos derivativos de alto risco, o governo e o Fed combateram a reforma, tanto nos bastidores quanto publicamente.

Nada simboliza melhor os salvamentos equivocados — e os papéis ambíguos do Fed e do governo — do que o salvamento da aig por um valor superior a 180 bilhões de dólares. Com a divulgação de novos detalhes a respeito dessa operação, tornou-se cada vez mais claro por que os integrantes do governo e do Fed tentavam manter as coisas em segredo. Veri cou-se que o maior bene ciário do salvamento da aig era a Goldman Sachs (o único alto executivo de Wall Street presente na sala de reuniões durante a discussão nal do destino da aig era o presidente da Goldman Sachs).22 Cada vez que o Fed e o Tesouro tentavam explicar o que haviam feito, as suspeitas aumentavam. No texto principal, observei que quando do fechamento das posições dos derivativos de risco, os bancos receberam 100 centavos por dólar: foi como se uma companhia de seguros cancelasse uma apólice de seguro, mas ao fazê-lo, pagasse o cliente como se a casa tivesse pegado fogo. O Fed e o Tesouro disseram que não tinham escolha: a rmaram que a lei francesa requeria que os bancos franceses recebessem 100 centavos por dólar e que a Goldman Sachs não poderia receber um tratamento inferior ao dado aos bancos franceses tendo, por conseguinte, que receber 100 centavos por dólar. Mas isso era uma simulação: os bancos franceses pactuaram acordos com partes privadas por muito menos do que isso. Os funcionários do governo americano terão sido iludidos por essa tentativa de extrair a maior soma possível de dinheiro do governo? Terão sido tão crédulos assim? Ou será que eles quiseram ser iludidos? Ou pensaram que nós poderíamos ser iludidos tão facilmente? Essas perguntas estão até hoje sem resposta. A posição equívoca com relação à aig (e com relação aos bancos em geral) encontra uma boa ilustração em uma ação civil atualmente em curso entre a aig e o Internal Revenue Service, a Receita Federal americana, no valor de centenas de milhões de dólares.23 Com efeito, trata-se de uma ação entre o Tesouro americano (como proprietário da aig) e o próprio Tesouro americano (como responsável pela Receita Federal, que administra o imposto de renda), na qual os reais vencedores serão os advogados. A aig alega que a sua complicada fraude scal (que, ironicamente, pode ter-se

valido de produtos nanceiros complexos — o tipo de instrumento nanceiro que acabou sendo a sua própria ruína e que foi usado com êxito para ludibriar reguladores, investidores e cobradores de imposto) era legal.24 Se a aig ganhar, uma das mãos do Tesouro passará dinheiro para a outra. Assim, o Secretário do Tesouro, Tim Geithner, poderá dizer que o governo perdeu menos dinheiro na operação de salvamento. Mas o custo desse gesto de relações públicas é enorme — e vai muito além das grandes despesas jurídicas que crescem de ambos os lados (todas pagas, em última análise, pelos contribuintes americanos). Se a aig prevalecer, estará aberta uma brecha no sistema americano de imposto de renda para pessoas jurídicas: uma brecha tão grande que uma parcela substancial do total do imposto de renda que recai sobre as empresas poderá deixar de ser pago. Por que motivos uma pessoa — ainda mais o próprio Secretário do Tesouro, supostamente preocupado com o dé cit — abriria uma brecha como essa? Aqui há um padrão: ao salvar os bancos, tanto o governo de Bush quanto o de Obama não desejavam interferir nas operações dessas instituições nanceiras — mesmo que os seus dirigentes tivessem demonstrado incompetência e incorrido em práticas de risco excessivo, de crédito abusivo e de contabilidade enganadora. Quando o governo se torna proprietário, ainda que parcial, de uma rma privada, deve incentivar a responsabilidade social e corporativa. Isso signi ca, no mínimo, não contornar a lei nem no pagamento de impostos nem no tratamento dos clientes. Se o Tesouro americano, como proprietário da aig, prevalecer, isso signi cará evidentemente que a aig poderá “repagar” uma parcela maior do dinheiro do salvamento. Mas isso não chega a ser uma justi cativa para que o Tesouro dos Estados Unidos defenda o uso de esquemas impróprios no pagamento dos impostos devidos por uma rma cujo proprietário atual é o povo americano. Mesmo que todo o dinheiro fosse repago, as contas não deveriam ser aprovadas. A omissão mais agrante na contabilidade do Tesouro está nos custos que a crise gerou para a economia como um todo — os trilhões de dólares da capacidade produtiva instalada que cam ociosos e não chegam a fazer parte da produção efetiva da economia —

custos que são pagos pelos trabalhadores, pelos proprietários de imóveis e pelos aposentados. O custo de longo prazo para os contribuintes também foi omitido: a dívida nacional provavelmente será alguns trilhões de dólares maior do que se a crise não tivesse ocorrido. A maior parte do aumento dessa dívida (tanto nos Estados Unidos quanto na Europa) não se deve ao estímulo nem mesmo aos resgates dos bancos. A maior parte provém dos “estabilizadores automáticos” — do fato de que quando a economia entra em declínio, a arrecadação de impostos diminui e os gastos com o desemprego e com outros programas sociais aumentam.25 Na verdade, sem esses estabilizadores automáticos a economia dos Estados Unidos poderia ter entrado em uma depressão. Mas o enorme aumento dos dé cits e das dívidas nacionais, provenham eles dos estabilizadores automáticos ou dos programas de estímulo, pressionarão todo tipo de gastos governamentais, inclusive os programas sociais em favor dos pobres, os programas de aposentadoria para a classe média e os investimentos em tecnologia e educação, que são essenciais para o crescimento do país a longo prazo. A diminuição dos investimentos públicos levará à diminuição do crescimento futuro e provocará efeitos que serão sentidos durante anos. A contabilidade do governo de Obama equivoca-se também em outras áreas. Por exemplo, o acesso dos bancos ao dinheiro a taxas de juros próximas a zero, consequência das políticas do Fed, representa, na verdade, uma redistribuição de renda dos investidores comuns, inclusive os aposentados, para os bancos. A nalidade dessa iniciativa, assim como no caso das operações de salvamento dos bancos, era a de estimular a retomada dos empréstimos, mas como o Fed e o Tesouro não quiseram impor condições aos bancos, o dinheiro não foi utilizado com esse m. Como assinalei, o oferecimento de empréstimos continuou a contrair-se, ao contrário do que ocorreu com os bônus e os dividendos. O sentimento dos banqueiros parece ser o de que, mesmo que o resto do país continue a sofrer as consequências da sua insensatez, eles têm um direito inalienável a receber bônus exorbitantes.

A boa vontade do governo em permitir que os bancos recomprem suas ações preferenciais e seus títulos dá lugar a mais críticas. Em primeiro lugar, porque permite que os bancos retornem às suas velhas práticas, inclusive os seus indecorosos bônus. Em segundo lugar, porque, ao desfazer-se rapidamente dos investimentos assumidos, o governo recebeu menos do que se tivesse conservado esses mesmos investimentos por mais tempo. Em terceiro lugar, porque, como o capital dos bancos diminuiu com as recompras, os empréstimos podem ter cado ainda mais circunscritos — e a recuperação ainda mais difícil. Em quarto lugar, se a economia tiver que enfrentar-se com um dos seus muitos problemas potenciais, o setor nanceiro estará em posição mais precária. Houve certa falta de sinceridade na posição do governo. Os bancos, se estivessem no lugar do governo, jamais teriam aceitado os termos — e as obrigações contábeis — dos acordos. Nenhuma companhia petroleira poderia dizer que teve êxito porque alguns dos seus poços deram resultados. Os resultados dos poços bem- -sucedidos têm que ser su cientes para compensar os maus resultados dos demais — além do risco de que todos os poços fracassem. Assim também, quando Warren Buffett investiu em Goldman Sachs, exigiu uma recompensa para neutralizar o risco e o tempo em que o dinheiro ca imobilizado. Os bancos exigem o mesmo: em defesa das altas taxas de juros que cobram em operações com cartões de crédito, por exemplo, eles se referem constantemente aos clientes que não pagam. Logicamente, o governo não pode a rmar que cobrou um preço adequado se não receber a compensação adequada para o risco e o tempo de imobilização do dinheiro e se os pagamentos recebidos não superarem as perdas causadas pelas inadimplências. Como assinalado no texto do livro, os contribuintes foram enganados e nada do que aconteceu depois mudou esse quadro — mesmo que as perdas do Tesouro pareçam agora menores do que se pensava. A importância da falta de um tratamento melhor para os contribuintes deriva em parte do próprio sentido de justiça: os que se bene ciaram dos resgates foram os causadores dos problemas, para começo de conversa, e pertenciam ao grupo

dos americanos mais ricos dentre todos. Mas ela tem a ver também com a posição scal do país a longo prazo, que estaria muito melhor se o Tesouro e o Fed houvessem formulado um programa mais adequado. Hoje começamos a ver outra consequência dos mal concebidos resgates bancários: uma grande desilusão com o governo. Eu dissera, e com razão, que os resgates bancários tornariam mais difícil a obtenção de recursos para uma segunda rodada de estímulos, cuja necessidade era praticamente indiscutível. O que eu não previra integralmente foi o tamanho da desproporção: ao ver o seu próprio dinheiro ir para as mãos dos banqueiros, que continuam a gozar dos seus bônus, enquanto o resto do país permanece atolado em uma recessão causada pelos próprios banqueiros, os americanos passaram a revelar uma descon ança crescente com relação ao governo — da qual o movimento do Tea Party é emblemático. Os cidadãos comuns podem não entender das sutilezas da macroeconomia, podem não saber que os cortes orçamentários levarão a uma recessão ainda mais profunda e a uma maior redução dos postos de trabalho, mas sabem muito bem que os recursos colocados nas maiores operações de salvamento da história do planeta foram para as mãos dos banqueiros. O dinheiro não retornou para o uxo da economia, como fora prometido, e eles estão zangados.     problemas novos, receitas velhas

  Já se passaram quase três anos desde o início da recessão e quatro desde o rompimento da bolha e está claro que, embora a economia possa estar no caminho da recuperação, esse caminho está cheio de obstáculos não previstos. As mudanças na linha política e na atitude do público estão entre os fatores mais imprevisíveis que afetam a nossa visão do futuro.   A in ação é uma ameaça?  

Mesmo antes que a economia voltasse a um crescimento acima de zero, mesmo enquanto o país continuava atolado no desemprego alto, a atenção desviou-se, pelo menos em certos âmbitos, para a in ação e a dívida nacional. Neste momento, a in ação não é uma ameaça e é difícil que venha a sê-lo enquanto o desemprego permanecer alto. O fato de que continuem baixas as taxas de juros sobre os títulos de longo prazo e os que são indexados segundo a in ação, usados pelo governo para o pagamento das suas dívidas, parece indicar que o próprio “mercado” não está muito preocupado com a in ação, mesmo na perspectiva de um período futuro mais longo. Na verdade, com o prosseguimento do desemprego, a de ação continua a ser o perigo mais iminente (embora isso possa mudar rapidamente, se ocorrer uma in ação estimulada por um aumento de custos, se o crescimento da China continuar a provocar aumentos nos preços do aço e de outros produtos de base).26 A de ação pode constituir um problema porque, com a queda dos salários e dos preços, as pessoas físicas e as empresas têm menos capacidade de pagar suas dívidas. Disso resultam inadimplências que levam a novas inquietações em um sistema nanceiro já fragilizado e superalavancado.27 Para mim, os problemas verdadeiros — não agora, mas politicamente nos próximos anos — não são tanto a in ação e a dívida, mas sim as preocupações do mercado nanceiro com relação à in ação e à dívida. Se o mercado começar a antecipar-se à in ação, começará a cobrar taxas de juros mais altas para compensar o menor valor dos dólares que os bancos receberão como pagamento. O aumento das taxas de juros produzirá um aumento nos dé cits e nas dívidas do governo, o que se somará às preocupações com a in ação e criará novas pressões para a redução dos gastos públicos antes que a economia retome a sua solidez.   Uma solução keynesiana para um problema keynesiano   Hoje, assim como quando a primeira edição deste livro cou pronta, os problemas verdadeiros continuam a ser o desemprego e a fraqueza da

demanda agregada, que são precisamente os problemas enfrentados por John Maynard Keynes setenta e cinco anos atrás, durante a Grande Depressão. Então, como agora, a política monetária tinha chegado ao limite: novas quedas nas taxas de juros ou são impossíveis ou não surtirão efeito em termos de estimular a economia. Precisamos recorrer, então, à política scal para ajudar a recuperação da saúde econômica. No capítulo 3, eu expliquei — e neguei — os argumentos que alegam que a política scal pode não funcionar.28 Na ocasião, os fatos deixavam claríssimo que ela, sim, funcionaria na situação que os Estados Unidos e o mundo enfrentavam em 2008. Os fatos continuam a apoiar essa conclusão: a China pôs em marcha um dos maiores pacotes de estímulo de todo o mundo e teve uma das recuperações mais expressivas, apesar dos choques signi cativos recebidos pela sua economia.29 Na Europa e nos Estados Unidos, os pacotes de estímulo foram demasiado pequenos para neutralizar por completo o “choque” do setor nanceiro, mas, se não fosse por essas medidas, o índice de desemprego teria alcançado níveis muito mais altos. O ataque dos mercados nanceiros contra a Grécia (que será discutido com maior profundidade na próxima seção) revela que os dé cits não podem ser ignorados.30 Dé cits elevados podem levar a aumentos nas taxas de juros, o que amplia os problemas scais de um país. Os americanos costumam pensar que são imunes a essa “disciplina do mercado”. Mas não são: quarenta anos atrás, os mercados nanceiros perderam con ança no dólar e o sistema nanceiro global teve de ser reestruturado por causa disso. Mas a resposta ingênua — corte de gastos e/ou aumento de impostos — só fará com que a situação piore, o que cou dramaticamente demonstrado com a resposta do mercado à contenção do governo da Espanha. Existe uma metáfora que compara os governos às famílias; mas essa maneira de encarar as nanças públicas não só é errada, como até perigosa. As famílias que estão vivendo além das suas possibilidades — ou seja, gastando mais do que ganham — e não conseguem encontrar um banco que nancie os seus gastos não têm outra escolha que não seja a de diminuir as suas despesas.

Um corte de gastos su cientemente forte coloca as contas em ordem. Mas quando o governo corta seus gastos, o crescimento da economia diminui, o desemprego aumenta e a renda — assim como a arrecadação do imposto de renda — declina. O resultado nal das contas pode simplesmente não melhorar, ou melhorar muito pouco. Além disso, normalmente o governo americano consegue nanciar os seus gastos — agora mesmo pode tomar empréstimos a taxas de juros próximas a zero, apesar dos seus grandes dé cits. Há uma saída para esse dilema aparente. As preocupações a respeito do tamanho da dívida deveriam levar a uma mudança no padrão de gastos do governo, em favor de despesas que gerem resultados econômicos mais altos. Como expliquei no texto principal do livro, os mercados são míopes: antes da crise, eram míopes nos empréstimos que faziam; e agora voltam a sê-lo. Tomar empréstimos para nanciar investimentos (como, por exemplo, em tecnologia, infraestrutura e educação), com taxas de apenas 5% ou 6%, pode levar a uma diminuição da dívida nacional a longo prazo, na medida em que o desenvolvimento — no curto e no longo prazo — gera um aumento de arrecadação mais do que su ciente para pagar os juros devidos — sendo que no passado, esses investimentos públicos geraram ganhos muito mais altos ainda.31 Assim também, a estrutura dos impostos pode modi car-se e gerar maior crescimento e menores dé cits. Aumentar o imposto de renda das empresas que não fazem investimentos e diminuir o das que fazem (por meio de créditos scais ligados aos investimentos) é um exemplo. O aumento do investimento produz mais crescimento e o maior crescimento produz mais arrecadação de impostos. Aumentar os impostos das pessoas físicas de renda alta e diminuí-los para os que têm renda baixa é outro bom exemplo. Os governos podem fazer ainda mais para ajudar o crescimento do setor privado — se os velhos bancos não fazem empréstimos, criem-se novos bancos que os façam. Apenas com uma fração do que gastou por causa dos maus empréstimos dos velhos bancos, o governo poderia ter criado uma

série de instituições nanceiras novas que não arrastariam o peso das decisões mal tomadas anteriormente. Enquanto isso, o governo americano vem tentando repetidamente reforçar a con ança dos consumidores, na esperança de que, ao fazê-lo, o consumo e o investimento se recuperem. Não tem dado certo. Mas não porque os dé cits crescentes tenham erodido a con ança dos consumidores, como dizem os conservadores, e sim porque o governo tentou agir por meio dos mecanismos de irradiação da economia. A expectativa era a de que a entrega de dinheiro aos bancos sem restrições seria su ciente para provocar a retomada da concessão de empréstimos e de que isso também seria su ciente para restabelecer o crescimento. Os bancos podem ter sido bene ciados e os “brotos verdejantes” de março de 2009 podem ter sido um re exo disso, mas não ocorreu a criação de postos de trabalho e essa é a questão mais importante para a maioria dos americanos. A con ança na economia não foi restaurada e a con ança nos prognósticos econômicos do governo diminuiu.     perspectivas globais

  O fato de que a situação é ainda pior em outros países serve como pouco consolo. E o fato de que a crise trazia a marca “Made in usa” não chega a ajudar a credibilidade internacional do país. Com efeito, os esforços do Tesouro no sentido de contrapor-se à tentativa europeia de conter a ação dos fundos de hedge americanos, na primavera boreal de 2010, deu lugar apenas a um ressentimento e à visão de que o governo de Washington fora capturado pelas forças que causaram a própria crise. No início desta crise, havia a esperança de um descolamento — de que a Europa e a Ásia poderiam continuar crescendo mesmo que os Estados Unidos mergulhassem na recessão. Era uma falsa esperança. Mas, pelo menos até este momento, ocorreu um descolamento parcial. Desde o lançamento deste livro, o crescimento na Ásia tem sido impressionante. Em

2009, a China cresceu 8,7%; a Índia cresceu 5,7%; no primeiro trimestre de 2010 essas taxas anuais foram, respectivamente, de 11,9% e 8,6%. Esse forte crescimento elevou os preços dos produtos de base e bene ciou os exportadores desses produtos em todo o mundo. Os mercados emergentes foram a fonte de uma grande parcela do crescimento global na década precedente e agora eles parecem ser a fonte do crescimento.32 Mas não é provável que esse desenvolvimento por si só seja capaz de fazer reviver o crescimento da Europa e dos Estados Unidos. O consumo na China aumentou notavelmente,33 mas ele se deu com base em bens e serviços produzidos na própria China. No momento da saída desta nova edição, as previsões sugerem que a taxa de desemprego na Europa — que é comparável, agora, à dos Estados Unidos — permanecerá teimosamente alta. Isso acontece especialmente porque as pressões para que os governos europeus reduzam os seus gastos são ainda mais fortes do que nos Estados Unidos. A estrutura scal da Europa requer que os países limitem os seus dé cits a 3% do pib e as suas dívidas a 60% do pib. Durante a crise, ninguém conseguiu sequer aproximar-se dessas metas: o dé cit scal da Espanha em 2009 foi de 11,2%; no Reino Unido ele foi de 11,5%; na Itália, 5,3%; na Irlanda, 14,3%. (E se a dívida da Espanha era de apenas 60% do pib, as da Grécia e da Itália correspondiam a cerca de 115% e continuavam a subir.)34   A volta de Herbert Hoover e a queda de Keynes   Os dé cits e as dívidas não chegam a surpreender. O que preocupa, na verdade, são as rami cações políticas da reação dos mercados nanceiros a esses fatores. Como vimos, no início da crise, houve uma curta vitória para o pensamento keynesiano, quando todo o mundo parecia acreditar que os gastos governamentais não só eram e cazes mas também necessários e desejáveis. Há um século existe um con ito entre dois pontos de vista — a visão keynesiana e a visão “hooveriana”, que reza que, para restaurar o vigor econômico, é preciso restaurar a con ança; para restaurar a con ança é

preciso reduzir os dé cits; para reduzir os dé cits é preciso cortar gastos e aumentar impostos. Os programas do fmi na Ásia Oriental, na América Latina e na Rússia na década passada deveriam ter deixado convincentemente claro que a ótica hooveriana não funciona. Os cortes nas despesas erodem o vigor da economia; a economia assim enfraquecida erode a arrecadação de impostos, o que, por sua vez, afeta negativamente a redução dos dé cits; a con ança não se restabelece e o mesmo ocorre com o consumo e os investimentos. A “fada” da con ança tem uma propensão maior a aparecer no contexto das políticas keynesianas, que restabelecem o crescimento, do que no das medidas de austeridade, que o destroem.35 Apesar da sua completa lista de fracassos, os hooverianos estão de volta e, enquanto em alguns países — como o Reino Unido — desenvolve-se uma tremenda batalha intelectual nos nossos dias, em outros — como a Alemanha — os hooverianos parecem ter ganho a parada. Mas mesmo países comprometidos com a economia keynesiana, como a Grécia e a Espanha, parecem crer que não têm nenhuma alternativa ao corte dos seus dé cits. Se não o zerem voluntariamente, não poderão receber os fundos dos mercados nanceiros e terão, então, que fazê-lo à força.   O ataque contra a Grécia   A experiência da Grécia em 2010, quando o país foi atacado pelos mercados nanceiros, foi similar à de muitos países em desenvolvimento. A surpresa está em que desta vez ela ocorreu em um país industrialmente avançado. O setor nanceiro, que foi salvo pela ação dos governos em todo o mundo, inclusive na Grécia, voltou-se contra os que o haviam salvo. Nos Estados Unidos, existe ira contra os bancos que hoje criticam o governo por causa das dívidas que tanto se avolumaram justamente em razão do mau comportamento dos próprios bancos. Na Europa, os bancos decidiram morder a mão que os alimentou. Diante dos grandes dé cits e da correspondente necessidade, por parte dos governos, de fundos para

nanciá-los, alguns integrantes do setor nanceiro enxergaram aí novas oportunidades de fazer lucros. Percebendo que quando a Grécia recorreu ao mercado para re nanciar suas dívidas ou seus dé cits o governo poderia encontrar di culdade em levantar os fundos sem pagar uma taxa de juros alta, os bancos venderam os títulos que detinham para forçar a sua baixa.36 Valeram-se da nova arma nanceira de destruição em massa, o swap de crédito.37   A exposição da infestação de falhas   Quando o euro foi criado como moeda comum na União Europeia, eu, assim como outros, manifestei preocupação. Os países que compartilham uma moeda cam presos a uma taxa de câmbio xa, uns com os outros, e com isso abrem mão de um importante instrumento de ajustamento. Se a Grécia ou a Espanha pudessem desvalorizar a sua moeda, as suas economias teriam se reforçado com um aumento das exportações. Além disso, ao aderir ao euro, os dois países perderam outro instrumento útil na reação às recessões: a política monetária. Se não tivessem seguido esse curso, poderiam ter reagido à crise baixando as suas taxas de juros para estimular os investimentos (embora seja verdade que na severa recessão atual baixar as taxas de juros não teria dado resultado). Em vez disso, os países da zona do euro caram com as mãos atadas. Não ocorrendo um choque, o euro teria tido um bom desempenho. O teste viria quando um ou mais dos países da zona enfrentassem um declínio econômico. A recessão de 2008 proporcionou esse teste. E agora, quando esta edição vai para o prelo, a União Europeia parece estar sendo reprovada. Para compensar a perda desses instrumentos vitais de ajustamento, a zona do euro deveria ter criado um fundo que ajudasse os países atingidos por problemas. Os Estados Unidos constituem uma área de “moeda única”, mas se a Califórnia tiver um problema e a sua taxa de desemprego subir, grande parte dos custos será absorvida pelo governo federal. A Europa não dispõe de nenhuma maneira de ajudar os países que sofram problemas

sérios. A Espanha tem uma taxa de desemprego de 20% — e de 40% a 50% entre os jovens. Antes da crise, ela tinha um superávit scal; depois da crise, o seu dé cit superou 11% do pib. Mas, de acordo com as regras do jogo, agora a Espanha tem que cortar despesas, o que, quase certamente, aumentará o desemprego ainda mais. Com a piora da economia, o impacto positivo dessa medida sobre a sua posição scal poderá ser mínimo. A Espanha pode estar ingressando no tipo de espiral mortal que afetou a Argentina uma década atrás. Somente quando a Argentina desatrelou a sua moeda com relação ao dólar ela pôde começar a crescer e a reduzir o seu dé cit. Até o presente momento, a Espanha não foi atacada pelos especuladores, mas isso pode ser apenas uma questão de tempo. Talvez não seja uma surpresa que a Grécia tenha sido o primeiro país da União Europeia a ser atacado. Os especuladores gostam dos países menores, pois podem montar o ataque com menos dinheiro. E os problemas da Grécia eram, sob muitos aspectos, os mais sérios (embora a sua taxa de desemprego, de 10%, estivesse apenas na média do que ocorria na zona do euro, o seu dé cit, de 13,6% do pib, em 2009, era o segundo maior da Europa, depois do da Irlanda). Sua dívida era de 115% do pib. Tal como os Estados Unidos, a Grécia já tinha um dé cit antes da crise (5,1% do pib em 2007, pior do que o dos Estados Unidos, que era de 2,5%). Como muitos governos e muitas empresas do setor nanceiro, ela tinha praticado a contabilidade ilusória, com a ajuda e o encorajamento de empresas nanceiras. As empresas nanceiras americanas que haviam descoberto o emprego dessas técnicas contábeis e de produtos nanceiros (como os derivativos e a recuperação de posse) para enganar os acionistas e os governos, disseminaram esses ensinamentos entre governos que desejavam dissimular os seus dé cits. Em outubro de 2009, a Grécia elegeu um novo governo. O novo Primeiro Ministro, Georges Papandreu, fez campanha em favor de uma maior transparência. Uma vez eleito, ele cumpriu a promessa, o que não é frequente, e revelou os problemas existentes nas contas públicas. Quando um novo problema foi descoberto — o uso de um derivativo da Goldman

Sachs para produzir uma imagem mais favorável da posição scal do país, que lutava para satisfazer as condições de entrada na zona do euro — também ele foi revelado.38 Mas o mercado nanceiro optou por não corresponder a essa honestidade e, em vez disso, atacou a Grécia com espírito de vingança. Inicialmente havia alguma esperança de que a União Europeia aproveitaria a ocasião para remediar as de ciências institucionais presentes desde o nascimento do euro. Mas a Alemanha insistira em que não deveria haver resgates e relutava em vir em auxílio da Grécia. Para muitos observadores, dentro e fora da Grécia, a posição da União Europeia pareceu peculiar. Ela já dera ajuda aos grandes bancos.39 Salvá-los havia sido algo evidentemente aceitável, mas salvar um país de onze milhões de habitantes era tabu. E salvar um país, em certo sentido, não seria um resgate. Como no caso da assistência dada pelo fmi ao Brasil na década anterior, se a Grécia tivesse acesso aos fundos a uma taxa de juros razoável, ela teria condições de satisfazer as suas obrigações. Obviamente, se as taxas de juros subissem fortemente, ou se o país entrasse em uma recessão profunda, as di culdades se apresentariam, mas o mesmo aconteceria também com um país cuja dívida fosse muito menor, como a Espanha. Uma série de propostas vacilantes e de promessas vagas destinadas a acalmar os mercados fracassou — o que não constituiu surpresa. Por m, a União Europeia montou um programa de assistência junto com o fmi — um trilhão de dólares, soma superior até mesmo ao resgate dos bancos americanos. Era um programa de “choque e espanto”: com o anúncio de um programa tão grande, os membros da zona do euro esperavam convencer os mercados de que a União Europeia viria em auxílio de qualquer país que necessitasse de ajuda. Com o estabelecimento do programa, as taxas de juros cobradas a países como a Grécia (segundo se esperava) permaneceriam baixas. E por essa razão, os países não precisariam recorrer à União Europeia e ao fmi para receber ajuda. Tratava-se do conhecido “jogo da con ança”, que o fmi tentara usar durante a crise da Ásia Oriental na década anterior. Isso não funcionara então e não era de

modo algum seguro que pudesse funcionar agora. As reações dos mercados apontavam nesse sentido: as taxas de juros cobradas a alguns dos governos “problemáticos” baixaram dos níveis estratosféricos em que se encontravam, mas continuaram altas, o que indicava que os mercados não estavam plenamente convencidos. A Grécia é um país relativamente pequeno, cujas perspectivas econômicas de curto prazo são intimamente ligadas às do resto da Europa. Se a Alemanha tiver uma recuperação forte, os turistas alemães viajarão à Grécia e a economia da Grécia se fortalecerá. A arrecadação de impostos aumentará e os dé cits diminuirão. A União Europeia e o fmi impuseram condições para ajudar a Grécia, no sentido de que ela reduzisse rapidamente os seus dé cits por meio de cortes de despesas e fortes aumentos de impostos. Se a Grécia fosse o único país a empreender o caminho da austeridade sozinha, ela sofreria e a situação geral não se alteraria. Mas a preocupação está na perspectiva de que uma onda de austeridade se esteja formando na Europa (e de que ela possa, como já assinalei, atravessar o Atlântico e chegar à América). Se muitos países cortarem os seus gastos prematuramente, a demanda agregada global se enfraquecerá e o crescimento será lento — o que pode levar a uma recessão redobrada. Os Estados Unidos podem ter causado a recessão global, mas a Europa agora está retribuindo na mesma moeda.   O futuro do euro   Há outros riscos, inclusive quanto ao futuro do euro. O desastre da Islândia40 mostrara que a ideia europeia de que as instituições nanceiras deveriam poder operar livremente em qualquer lugar da Europa, desde que fossem reguladas por um “bom” governo, não fazia sentido. Mas a tragédia grega expôs uma falha mais profunda: a moeda única não pode funcionar sem uma cooperação maior (inclusive em termos de assistência scal) do que a que existe hoje.

Como observarei posteriormente, os Estados Unidos têm reclamado dos superávits de conta corrente (comerciais) da China,41 mas como fração do pib, o superávit da Alemanha é ainda maior. Tomando a Europa como um todo, o fato de que a Alemanha tem um superávit signi ca basicamente que o conjunto dos demais países terá dé cits. E o fato de que os outros países que não a Alemanha importam mais do que exportam contribui para a debilidade das suas economias. Os Estados Unidos também expressaram preocupação com a recusa chinesa a permitir que a sua moeda se valorize com relação ao dólar, mas o sistema do euro signi ca que a taxa de câmbio da Alemanha tampouco pode valorizar-se com relação às demais moedas da zona do euro. Se a taxa de câmbio aumentasse, a Alemanha teria maior di culdade para exportar, o seu dé cit desapareceria e o seu modelo econômico, baseado na exportação, enfrentaria uma situação nova. Alguns analistas na Alemanha (e representantes da linha dura em outros países) reagiram dizendo que não havia nada de errado com o esquema original do euro. O único problema era, segundo eles, um certo relaxamento na implementação das regras relativas à disciplina scal. Se a União Europeia tivesse sido mais dura, os países teriam sido forçados a cortar os seus dé cits e as suas dívidas. Em suma, eles apoiam uma adesão mais estreita ainda às políticas hooverianas. Na minha opinião, esse enfoque não faz nenhum sentido. A Espanha tinha um superávit antes da crise e se ela fosse forçada a cortar rapidamente o seu dé cit agora a sua taxa de desemprego subiria terrivelmente e os dé cits poderiam aumentar ainda mais. Os problemas da Espanha não eram causados por uma falta de implementação das regras orçamentárias antes da crise, mas sim seriam exacerbados pela implementação das regras depois da crise. Os problemas da Espanha foram causados pela ideologia do fundamentalismo do mercado, que recomenda aos governos assistir passivamente à formação das bolhas, mesmo daquelas que põem em risco a economia como um todo. A zona do euro precisa de uma cooperação econômica melhor — não apenas do tipo que simplesmente assegure o cumprimento das regras

orçamentárias, mas sim de uma cooperação que também mantenha o pleno emprego e assegure que quando algum país sofra choques fortes na sua economia, ele receba ajuda dos demais. A União Europeia criou um fundo de solidariedade para auxiliar a entrada dos novos membros, que eram em sua maioria mais pobres do que os membros mais antigos. Mas não criou um fundo de solidariedade para auxiliar os países da zona do euro que enfrentam di culdades. Sem um fundo como esse, as perspectivas futuras do euro são sombrias. A União Europeia aceitará as consequências do enfoque de linha dura protagonizado pela Alemanha e a sua insistência em que a Grécia e outros países cortem os seus dé cits? A Alemanha (como a China) vê a sua poupança alta e as suas proezas exportadoras como virtudes e não como defeitos. Mas para cada país que tem superávit, há outros que têm dé cits, e os países que têm dé cits comerciais muitas vezes têm de contrair dé cits scais para manter a demanda agregada.42 Sem os dé cits scais, eles teriam um desemprego ainda mais alto. As consequências econômicas e sociais são, e devem mesmo ser, inaceitáveis. Um modo imaginado para que a Espanha e outros países pratiquem o equivalente a uma desvalorização: uma queda uniforme dos salários. A meu ver, isso não é realizável na prática e as suas consequências distributivas são inaceitáveis. Na prática, o governo só pode forçar a redução dos salários dos funcionários públicos. Em alguns países, onde eles ganham demasiado bem, isso pode fazer sentido; mas em outros, onde a remuneração já é baixa, isso di cultaria ainda mais a contratação de pro ssionais talentosos para os serviços públicos essenciais. As tensões sociais seriam enormes. Mas mesmo as consequências econômicas poderiam ser negativas: com os salários e os preços em declínio, a capacidade das empresas e das famílias para pagar as suas dívidas seria afetada; o número de falências aumentaria, assim como aumentariam os problemas do setor nanceiro. A noção de que o corte dos salários seria uma solução para os problemas da Grécia, da Espanha e de outros países da zona do euro é uma fantasia.

Existe uma solução bem mais fácil: a saída da Alemanha da zona do euro, ou a divisão da zona em duas sub-regiões. O euro tem sido uma experiência interessante, mas, assim como o quase esquecido Mecanismo de Intercâmbio de Divisas (Exchange Rate Mechanism — erm),43 que o antecedeu e que se desmoronou quando os especuladores atacaram a libra esterlina em 1992, falta- -lhe o apoio institucional necessário para que ele possa funcionar. Naturalmente, seria preferível propiciar esse apoio agora. Se a União Europeia não conseguir encontrar um modo de fazer essas reformas institucionais, talvez seja melhor admitir o fracasso e tomar outro caminho do que cobrar um preço alto demais em termos de desemprego e sofrimentos, em nome de soluções institucionais falhas que não se mostraram à altura dos ideais dos seus criadores. Talvez o rumo mais provável seja o de deixar que a situação chegue aos seus limites extremos — com a União Europeia atuando em socorro dos países mais atingidos (aqueles que não conseguem nanciar seus dé cits e dívidas) apenas no último minuto e em termos muito onerosos. A austeridade assim imposta não só trará condições muito duras aos países mais afetados, como também enfraquecerá a economia europeia e esvaziará o apoio à integração europeia. E a política de só agir no último minuto implica ainda outro risco: o de que esperar demais ou impor termos demasiado onerosos leve a zona do euro a ter de enfrentar uma crise ainda muito maior do que a que experimentou até aqui. No curto prazo, a zona do euro pode ter encontrado uma saída parcial: a sua vitória temporária no concurso de beleza negativo levou ao enfraquecimento do euro e isso pode ajudar a retomada do crescimento europeu — embora seja quase certo que não o fará na proporção necessária para suplantar as medidas de austeridade já implantadas. O euro fraco oferece, na melhor das hipóteses, um paliativo temporário. Algum dia, num futuro não muito distante (talvez mesmo na ocasião em que esta edição for publicada), os mercados nanceiros transferirão o foco novamente para os problemas nanceiros e econômicos dos Estados Unidos e os Estados Unidos novamente vencerão o concurso de beleza negativo.

    desequilíbrios globais

  A Grécia apresentou o desa o mais difícil dentre os que surgiram com a crise global. Mas as relações entre os Estados Unidos e a China também sofreram e tomaram um rumo marcadamente negativo em consequência da crise, o que pode trazer complicadores potenciais a outras áreas em que a cooperação é necessária, como a contenção das ambições nucleares do Irã. A essência do problema está descrita no texto principal deste livro: os Estados Unidos importam da China muito mais do que exportam para ela. Os trabalhadores americanos se veem perdendo empregos para os chineses. Os políticos em geral ressaltam as virtudes da exportação na criação de empregos e veem negativamente as importações porque elas destroem postos de trabalho. O problema está em que exportação e importação estão inextricavelmente ligadas no terreno da política comercial. Quando a economia está em regime de pleno emprego, quem perde o posto de trabalho volta a encontrá-lo em outra área. Quando a economia está em recessão profunda, isso não acontece e dá lugar a pressões em favor do protecionismo, o qual, no entanto, tem estado basicamente adormecido até aqui. Eu ainda tenho medo de que essas pressões possam aumentar à medida que o desemprego persista e a capacidade de fazer reviver a economia por meio de medidas scais e monetárias revele os seus limites. As discussões populares muitas vezes se concentram nos temas relativos às relações comerciais entre os Estados Unidos e a China e em particular no fato de que as importações americanas da China são maiores em 226,9 bilhões de dólares do que as suas exportações para ela.44 Mas os economistas argumentam que devemos concentrar a atenção nos dé cits comerciais multilaterais (a diferença global entre as exportações e as importações) e não nos dé cits entre dois países quaisquer. Os Estados Unidos têm um dé cit comercial com a Arábia Saudita porque importa mais (petróleo) do que vende para ela (produtos de alta tecnologia, por

exemplo). Mas se a Arábia Saudita compra produtos da Europa e a Europa compra produtos dos Estados Unidos, não há base para queixas: um sistema e caz de comércio global deve permitir que cada país exporte de acordo com a sua vantagem comparativa e importe dos países que produzam os bens que seja do seu interesse comprar. Incorrer em um superávit multilateral — produzir mais do que consumir — pode, no entanto, representar um problema em um mundo com insu ciência de demanda global. Os países que o fazem veem o seu saldo como uma virtude, e não como um defeito, e em tempos normais isso é correto. Mas estes não são tempos normais. A China, naturalmente, não está sozinha: o Japão, a Alemanha e a Arábia Saudita também vêm apresentando superávits persistentes. Como porcentagem do pib, os superávits da Alemanha e da Arábia Saudita são maiores do que o da China. Mas o saldo chinês vem-se tornando cada vez mais o foco das preocupações dos Estados Unidos. Os Estados Unidos exigem que a China permita que a sua moeda se valorize. A China alega que se os Estados Unidos quisessem reverter a sua balança comercial bilateral deveriam suspender a proibição de exportar para ela produtos de alta tecnologia. A China tentou desesperadamente comprar helicópteros depois do terremoto de Sichuan em 2008, em que quase 70 mil pessoas perderam a vida, mas seus esforços foram em vão. (Na mesma ocasião, os Estados Unidos venderam helicópteros para Taiwan.) A valorização da sua moeda, o renminbi, ajudaria outros países em desenvolvimento, mas a China sabe que isso teria pouco valor para os Estados Unidos em termos de recuperar a sua balança comercial. Os Estados Unidos simplesmente passariam a importar têxteis e roupas de Bangladesh ou do Sri Lanka. De toda maneira, a China já vinha valorizando a sua moeda — em quase 20% a partir de 2005, o que corresponde a cerca de dois terços do que os peritos estimam ser necessário para um ajustamento completo.45 Os chineses também deixaram claro que retomariam o rumo da valorização quando a economia global se estabilizasse. Mas, do seu ponto de vista, não seria do interesse de

ninguém que a China desestabilizasse a sua própria economia, que tem sido um pilar de estabilidade em uma economia global muito volátil. Com o enfraquecimento do euro, a China passou a ter um argumento adicional para não valorizar o renminbi, pois ele já estava bem valorizado com relação ao euro. Ironicamente, mesmo a política comercial multilateral da China é, pelo menos em parte, uma consequência das próprias políticas desenvolvidas pelos Estados Unidos. Nas últimas três décadas, o comércio tem sido apontado como a melhor via para o desenvolvimento. Mas nos acordos comerciais da Rodada Uruguai, assinados em 1994, quando se criou a Organização Mundial do Comércio (omc), os países em desenvolvimento, inclusive a China (que ainda é considerada pelo fmi como país em desenvolvimento, apesar do tamanho da sua economia), sofreram restrições quanto ao emprego de políticas industriais (subsídios) para estimular o desenvolvimento das suas indústrias nascentes, ao mesmo tempo em que os subsídios agrícolas eram permitidos nos Estados Unidos e na Europa. Isso deixou para os países em desenvolvimento apenas um instrumento importante — as taxas de câmbio — para promover o seu crescimento. Uma taxa de câmbio baixa não só barateia as exportações como também ajuda os países a formar reservas monetárias que os protegem dos mercados nanceiros globais, cada vez mais voláteis. Ao mesmo tempo, inclusive por causa das políticas postas em prática pelos Estados Unidos durante a crise da Ásia Oriental e outras, pedir ajuda ao fmi tornou-se cada vez mais inaceitável.46   A nova distribuição do poder político global — as novas instituições globais   O êxito da China em combater a recessão, ao lado dos contínuos problemas da Europa e dos Estados Unidos, propiciou um novo sentimento de con ança entre os asiáticos, assim como um novo poder de in uência da sua parte sobre o resto do mundo. Os reguladores na Índia, e na Ásia em

geral, explicam, com justo orgulho, como evitaram os abusos que a igiram os Estados Unidos e a Europa. Ao mesmo tempo, a in uência da China cresceu, não só na África, mas também em todo o mundo. Em épocas do passado, as potências europeias empregavam a força militar para garantir as rotas comerciais e o acesso aos recursos. No nosso século, a China emprega o seu poder econômico. Ela tem reservas de 2,4 trilhões de dólares ao seu dispor. Em operações que os economistas poderiam denominar “intercâmbio mutuamente bené co”, a China pode oferecer uma parte desse dinheiro em troca de portos, minas, petróleo — o que quer que seja necessário para manter em funcionamento a sua economia industrial moderna. (Em 2008, a empresa chinesa Cosco Paci c assinou um acordo de quatro bilhões de dólares para administrar o porto de Pireu, na Grécia, por trinta e cinco anos.)47 Como os Estados Unidos estão tão absorvidos nas suas guerras infrutíferas no Afeganistão e no Iraque e nas sequelas da sua própria crise nanceira, a China tem grande parte do mundo ao seu dispor. Os Estados Unidos podem ter o exército mais poderoso do mundo, mas os 4,7 trilhões de dólares gastos com defesa na última década poderiam ter sido usados para criar uma economia mais forte e ampliar a in uência econômica do país.48 A economia é a ciência da escassez: os Estados Unidos gastaram o dinheiro de uma maneira; a China gastou-o de outra. Talvez seja cedo demais para passar julgamento, mas parece cada vez mais claro que os Estados Unidos cometeram um erro estratégico. Se, por um lado, a Grande Recessão pouco fez para resolver os desequilíbrios do comércio internacional, por outro lado, a crise leva a uma nova distribuição do poder geopolítico e geoeconômico no mundo. O G-8, por exemplo, encontra-se em um processo de morte rápida, substituído pelo G-20. Do ponto de vista dos seus críticos, o G-8 era pouco mais do que um espaço de debates acadêmicos. Havia a esperança de que o G-20, melhor equipado para a consideração substantiva dos problemas mundiais, devido à sua composição mais global, pudesse tornar-se algo mais do que isso. Assim pareceu que aconteceria em um determinado momento, com a

realização de um esforço concertado em torno das políticas expansionistas keynesianas. Contudo, com a persistência da recessão, a divisão entre os adeptos da austeridade hooveriana e os que ainda acreditam nas políticas econômicas keynesianas já não podia ser evitada. Desde o princípio houve desunião a respeito da reforma regulatória, com o governo de Obama tentando neutralizar o tom crescentemente estridente com que a Europa ressaltava a importância de domar o apetite pelos bônus e, depois do ataque à Grécia, tentando também controlar as atividades especulativas.     a reforma do setor financeiro

  Quando foi impressa a primeira edição deste livro, eu era pessimista com relação às perspectivas de que o Congresso americano viesse a aprovar reformas do setor nanceiro que fossem algo mais do que cosméticas. Como os interesses da comunidade nanceira estavam tão bem representados no governo de Obama, ninguém cou surpreso com o fato de que a reforma apresentada pelo governo fosse suave. E com todo o dinheiro que as empresas nanceiras jogavam no Congresso, parecia que os seus investimentos políticos novamente seriam recompensados. Mas, a nal, o resultado foi bem mais rigoroso do que eu havia antecipado. Isso, contudo, não é su ciente: a reforma é ainda demasiado fraca para impedir o recrudescimento da crise ou para assegurar que os mercados nanceiros voltem a desempenhar seus papéis essenciais na sociedade. Nesse contexto, Goldman Sachs merece uma nota de agradecimento pelo que foi obtido. O próprio comportamento da empresa conseguiu o que ninguém — nem os grupos de interesse público, nem os economistas, nem os editoriais da imprensa — conseguira. O respeito do público pelas nanças, que já estava em um nível baixo, mergulhou ainda mais fundo depois das revelações a respeito do comportamento da Goldman Sachs e de outros bancos de investimento e o que foi alegado em sua defesa pouco pôde fazer para restaurar a con ança.

  Novos abusos descobertos   Com as inumeráveis histórias de empréstimos predatórios e abusos na área dos cartões de crédito, e com o pagamento de bônus escandalosos ao mesmo tempo em que os bancos registravam perdas extraordinárias, parecia praticamente impossível que a reputação dos principais bancos americanos pudesse cair ainda mais. Mas, nos meses que se seguiram àquela primeira edição, ocorreram reiteradas revelações de mau comportamento que derrubaram ainda mais a con ança no sistema nanceiro americano. Quando o chefe da Goldman Sachs, Lloyd Blankfein a rmou que estava simplesmente “realizando o trabalho de Deus”,49 e quando outros executivos negaram que tivessem feito qualquer coisa de errado, parecia que os banqueiros estavam vivendo em um outro planeta. Na melhor das hipóteses, o compasso ético com que trabalhavam era notavelmente diferente. Descrevi no texto principal a forte discrepância existente, por exemplo, entre as contas de Lehman Brothers logo antes do colapso e logo depois. Em consequência da falência, foi possível pesquisar a contabilidade de Lehman Brothers e descobrir o que a companhia zera. Ela havia, efetivamente, praticado a contabilidade criativa que seria mais apropriadamente descrita como enganosa: o uso de uma transação denominada “repo 105”, por meio da qual certos ativos foram retirados do balanço — em troca de dinheiro — temporariamente, apenas quando já se sabia que os reguladores examinariam os livros da empresa, o que os levaria a pensar que ela estivesse menos alavancada do que na verdade estava.50 A demanda por recursos contábeis criativos como esse levou à criação de um grande número de novos “produtos nanceiros” que faziam basicamente o mesmo que as políticas tradicionais de empréstimos e seguros, mas que eram tratados de maneira distinta do ponto de vista regulatório e legal. Um derivativo pode ser semelhante a uma apólice de seguro, mas não requer a supervisão de um regulador, razão por que requer

menos dinheiro em depósito como reserva e permite que o assegurador assuma riscos excessivos. Uma operação com cláusula de recompra pode ser muito pouco diferente de um empréstimo colateralizado, mas pode ser tratado nos livros como se fosse uma venda — mesmo havendo o compromisso de recompra do colateral. E os nossos brilhantes engenheiros nancistas desenvolveram esquemas para contornar a maior parte dos requisitos legais. Eles desenvolviam produtos em que a outra parte não estava obrigada a comprar de volta, mas que continham incentivos tais que as partes se comportariam como se essa obrigação existisse. A transação pela qual a sec acusou formalmente a Goldman Sachs de cometer fraude — mas com relação à qual a empresa parecia crer que não havia cometido erro algum — envolvia a criação de um “produto sintético”, que não era nada mais do que uma aposta em torno do desempenho de um grande grupo de hipotecas subprime. Os defensores desses produtos alegam que eles ajudam os agentes econômicos a administrar o risco, mas era difícil compreender como uma transação que, em última análise, levava um fundo de hedge dirigido por John Paulson a ganhar bilhões de dólares e alguns bancos a perder a soma correspondente — grande parte da qual foi parar na conta dos contribuintes — pudesse melhorar a e ciência da economia em qualquer sentido. (Finalmente, em julho de 2010, a Goldman Sachs admitiu ter cometido um erro — embora não tenha admitido ter praticado fraude — e, na maior penalidade já aplicada a uma rma de Wall Street, pagou 550 milhões de dólares à sec. Também é praticamente certo que ela será acionada pelos que sofreram com o seu “erro”.) Apostar, como se sabe, não é ilegal nos Estados Unidos, mas também é claro que os bancos assegurados pelo governo não devem dedicar-se a fazer apostas. As apostas são reguladas pelos estados federais mas os grandes bancos que faziam essas mega- -apostas e que ganhavam bilhões de dólares cobrando taxas sobre as transações conseguiram que essas atividades não fossem reguladas — nem como apostas nem como seguros. A acusação contra a Goldman Sachs não foi a de operar uma casa de apostas, mas sim a de fraude. Paulson procurara a Goldman Sachs para pedir que o ajudasse a

preparar a operação. Ele ajudaria a Goldman Sachs a selecionar o pior das hipotecas subprime — as que tinham a maior probabilidade de baixar em valor quando a bolha estourasse — para criar um papel, que recebeu a denominação de Abacus 2007- -AC1, a ser vendido aos investidores. O papel era, na verdade, uma aposta sobre o que aconteceria com esse grupo de hipotecas cuidadosamente selecionado — escolhido para perder. Em seguida, Paulson apostaria contra, de maneira que se as hipotecas fracassassem ele receberia milhões de dólares.51 Ninguém podia examinar as hipotecas que compunham esses produtos complexos — elas eram muitíssimas — e ninguém tentou fazê-lo. Não só as hipotecas foram escolhidas por serem de má qualidade, como também a Goldman Sachs não revelou aos compradores do produto os critérios segundo os quais as hipotecas haviam sido escolhidas — com a ajuda do fundo de hedge que queria apostar contra elas. Os compradores con aram na Goldman Sachs, o que provavelmente não voltarão a fazer.52 Paulson, que já teria ganho muito dinheiro a partir de um conjunto aleatório de hipotecas subprime, ganhou ainda mais com um pacote escolhido para perder dinheiro. Isso naturalmente signi ca que os que estavam do outro lado da aposta também perderiam mais dinheiro — o que, por sua vez, signi ca que os contribuintes teriam, a nal, que desembolsar mais dinheiro ainda quando o governo decidisse que os bancos precisavam dos resgates para a salvação da economia. Tentar ganhar dinheiro de outros grandes bancos — ou de uma companhia de seguros como a aig, que pensava que entendia de riscos, mas não entendia — é uma coisa. Colocar toda a economia em risco é outra. O jogo duplo com a Grécia atraiu merecidamente a ira dos cidadãos de todo o mundo. O que aconteceu quando a situação nanceira da Grécia piorou não foi, contudo, apenas uma questão em que um especulador ganha às custas de outros. Quando os bancos forçaram a baixa dos títulos gregos (ou seja, apostaram em que o país teria de pagar juros mais altos em consequência de uma falta de con ança no seu governo), o valor dos títulos realmente caiu.53 Mas esses ataques especulativos têm consequências reais.

O que estava em jogo nesse caso não era somente uma transferência de dinheiro de um especulador rico para outro. O país viu-se obrigado a cortar gastos, despedir empregados, cancelar serviços e diminuir salários.   A reforma nanceira começa a delinear-se   Não foi por acidente que alguns países saíram melhor desta crise do que outros. Alguns países (como o Canadá e a Austrália) tinham melhores regulações nanceiras. Em algumas circunstâncias essas regulações conseguiram evitar a formação de bolhas. Mas mesmo nos casos como no da Espanha, em que elas não lograram evitar uma bolha imobiliária, o desempenho do setor nanceiro foi melhor do que se podia esperar. Dadas as proporções da bolha imobiliária espanhola (em 2006 deu-se início à construção de mais casas na Espanha do que na França, Alemanha, Itália e Reino Unido juntos) poderíamos esperar que o sistema bancário espanhol fosse à falência e que o número de inadimplências fosse até maior do que nos Estados Unidos.54 Mas os reguladores espanhóis trabalharam melhor na previsão das perdas e na proibição das hipotecas abusivas que inundaram os Estados Unidos.55 É notável, embora não seja uma surpresa, que tanto tempo depois do rompimento da bolha, tanto tempo depois do início da crise, a reforma do sistema nanceiro global ainda seja uma obra inconclusa. Nos Estados Unidos, no entanto, os contornos da reforma nanceira já estão claros, ainda que muitos detalhes tenham sido deixados ao encargo dos reguladores — e nesta como em tantas outras situações, o diabo mora nos detalhes.56 Com tantas responsabilidades sendo deixadas nas mãos dos reguladores — alguns dos quais são os mesmos que, antes da crise, não acreditavam em regulações — pouca certeza há de que as reformas terão força su ciente para proteger-nos contra uma repetição das calamidades dos últimos anos.57 A lei da reforma regulatória nos Estados Unidos, denominada o cialmente lei Dodd-Frank, devido aos nomes de Chris Dodd e Barney

Frank, chefes dos Comitês da Câmara e do Senado que são responsáveis pela regulação do setor nanceiro (aprovada como H.R. 4173 e assinada pelo presidente Obama em 21 de julho de 2010), tem cinco elementos fundamentais.58 Em certo sentido, cada um desses elementos reconhece um princípio importante. Mas, infelizmente, uma parte crucial da estratégia legislativa dos bancos foi a busca da obtenção de isenções, de modo que a força de qualquer regulação aprovada pode ser muito atenuada. O resultado é uma lei semelhante a um queijo suíço: aparentemente forte, mas com grandes furos. A lei contém o seguinte:   1. Uma comissão forte (assim esperamos) e independente, que zela pela segurança dos produtos nanceiros (com o novo nome de Escritório de Proteção Financeira do Consumidor) destinada a proteger o cidadão comum contra os agrantes abusos tão frequentes no ramo. O reconhecimento de que o setor nanceiro dedicara-se a práticas vergonhosas e abusivas e de que algo precisava ser feito a esse respeito — de que já não era possível car dizendo simplesmente “caveat emptor” (“o comprador que se acautele”) — foi uma grande vitória dos críticos do setor e uma grande derrota dos bancos. Mas o setor nanceiro conseguiu obter uma enorme isenção para a compra de automóveis. Não existe nenhuma razão para que um vendedor de carros possa explorar um consumidor pobre ou desinformado como também não existe razão para que um banqueiro possa fazê-lo. No entanto, sob pressão política, os empréstimos para a compra de automóveis — o segundo tipo mais importante de empréstimos, depois das hipotecas — receberam uma isenção. Os estados que constituem os Estados Unidos têm buscado ativamente controlar muitos abusos e o governo federal, com uma medida que pode ter sido um passo na direção errada, assumiu o direito de ignorar as regulações estaduais, com reguladores federais do tipo que tínhamos antes da crise, e é isso o que eles vão fazer — e os consumidores podem car com uma proteção ainda menor do que a que tem hoje.

Como observei no texto principal, a tecnologia moderna possibilita um mecanismo de pagamentos eletrônicos e ciente, ao qual o nosso setor nanceiro não competitivo tem oposto resistência. Na verdade, isso equivale à aplicação de uma taxa sobre todas as transações. A lei da reforma regulatória instrui o Banco Central a editar regras que assegurem que as taxas cobradas sobre os cartões de débito sejam razoáveis e proporcionais aos custos de processamento das transações. Desse modo, ela delega ao Banco Central — que no passado mostrou pouco interesse na proteção do consumidor — a responsabilidade de assegurar que os bancos não continuem a extorquir os negociantes em transações feitas com cartão de débito, mas deixa os bancos livres para fazê-lo no mercado muito mais amplo dos cartões de crédito.59 60   2. Um regulador sistêmico, que vê as coisas em seu conjunto. Esse regulador toma a forma de um conselho, mas a sua principal faculdade é a de fazer recomendações ao Fed, instituição que fracassou no contexto da crise e tem ligações íntimas com o sistema bancário, que re etem os seus interesses.   3. Controle do risco excessivo. Ninguém discute que os bancos tomaram riscos excessivos. A questão era a de saber qual a melhor maneira de prevenir que isso volte a acontecer. Os bancos precisavam de incentivos mais fortes, por exemplo, para os que tomam decisões de risco. Como apontei no texto principal, os bancos grandes demais para poder falir representavam um problema especialmente grande. Acostumados às situações do tipo “se der cara eu ganho e se der coroa você perde”, os bancos naturalmente passaram a tomar riscos excessivos. Nada parece ter sido feito com relação aos bancos grandes demais para poder falir e às estruturas de boni cações que dão incentivo à tomada de riscos excessivos (embora os reguladores já tenham o poder de fazer algo nesse sentido dentro das regras vigentes).

Mas tendo em vista os problemas bem conhecidos na área da governança corporativa, dar aos bancos incentivos não basta: o sistema de bônus e as estruturas de incentivo que induziram a tomada de risco excessivo, deveriam ter sido proibidos, juntamente com a miríade de práticas excessivamente arriscadas. Os países europeus colocaram as restrições aos bônus no centro das suas reformas regulatórias, mas os bancos americanos conseguiram resistir e esses esforços. Paul Volcker, com o apoio de Obama, argumentara em favor da imposição de restrições às operações especulativas dos bancos comerciais com o uso do seu próprio capital (denominadas “comércio corporativo”). Alguns viram nisso uma “minirrestauração” da Lei Glass-Steagall, que até 1999 mantivera separados os bancos comerciais e os bancos de investimentos e cuja revogação está intimamente associada aos problemas do nosso sistema nanceiro. Essa atividade dá lugar a con itos de interesses (nas vésperas da crise, os bancos, por vezes, zeram lucros em operações feitas por conta própria, às custas dos clientes). As informações privilegiadas decorrentes da manipulação das contas dos clientes propiciam uma vantagem unilateral aos bancos e, o que é mais importante, as perdas são efetivamente passadas aos contribuintes. A lei aprovada contém uma versão muito enfraquecida da regra de Volcker: é provável que os limites impostos ao comércio corporativo não sejam mandatórios para a maior parte dos bancos.   4. Controle dos derivativos. O resgate de 180 bilhões de dólares recebido pela aig (cujas perdas eram devidas aos negócios com derivativos) deveria ter colocado as restrições aos derivativos acima de qualquer dúvida. Existe um debate legítimo a respeito de se certos derivativos devem ser vistos como seguros ou como instrumentos para fazer apostas. Mas em ambos os casos o governo deveria regulá-los, em vez de encorajá-los ou subsidiá-los — como faz hoje.61 A lei de reforma faz algum progresso — na verdade, um pequeno progresso — no tratamento do problema. A razão é compreensível: como alguns grandes bancos ganham vinte bilhões de dólares por ano ou mais cobrando taxas, a sua resistência foi enorme.

Por um momento, pareceu que um forte dispositivo que limitava a emissão de derivativos por bancos assegurados pelo governo seria incluído na lei. A nal, os bancos foram autorizados a reter a parte principal (algo como 70%) das suas atividades com derivativos, mas os derivativos baseados em ações, produtos e certos swaps de crédito terão de ser colocados em uma subsidiária à parte, com requisito de capital mais alto. Espera-se com isso reduzir o risco de novos resgates.62 Houve também avanços signi cativos em matéria de transparência, passando a maior parte dos contratos a ser padronizados, autorizados e comercializados em plataformas eletrônicas.63 Mas há um furo colossal no controle: se um swap não for devidamente autorizado e comercializado segundo as normas, os reguladores não terão autoridade legal clara para impedir o negócio ilegal. 5. Autoridade resolutiva. O governo recebeu mais poderes para tratar das falências bancárias. Mas a legislação não tratou adequadamente do problema das instituições grandes demais para poder falir. Precisamos ser realistas. Na última crise, o governo vacilou, salvando acionistas e credores, quando não tinha que fazê-lo. Agiu assim pelo temor de que, se não o zesse, isso causaria um trauma econômico. Enquanto houver megabancos que são grandes demais para poder falir, o mais provável é que o governo vacile de novo. As instituições grandes demais para poder falir não só têm um incentivo para a prática de tomar riscos excessivos, como também têm uma vantagem competitiva — que não está baseada em uma e ciência maior, mas sim no subsídio implícito contido em um futuro salvamento pelo governo.     a história reescrita

  Embora a crise não tenha terminado, os seus protagonistas já se estão ocupando em reescrever a história. Com o contínuo aparecimento de lapsos e de ciências na atividade regulatória — sobretudo por parte da sec, do

Banco Central e de outras agências reguladoras — muitos reguladores têm repetido que zeram tudo o que podiam. Aqueles que, no Tesouro e no Banco Central, querem car com o crédito da “vitória” não mencionam os seus reiterados erros de diagnóstico (mesmo depois do rompimento da bolha o Fed argumentava que os seus efeitos estavam sob controle).64 Eles não dizem que haviam apoiado um sistema “regulatório” que tinha falhas essenciais, que era fortemente dependente, por exemplo, de uma “autorregulação”, algo que, por m, está sendo visto agora como o que realmente é — uma contradição em termos. Ao dizer que não tinham o poder de fazer mais, não dizem que, na verdade, detinham outros poderes para impedir o crescimento da bolha nem que se recusaram a apelar para o Congresso antes do desastre de Lehman Brothers, para solicitar os poderes que agora, nalmente, tardiamente, reconhecem como necessários. Eles e aqueles que os apoiam, preferem que esqueçamos as ferozes batalhas travadas em torno das regulações na década anterior à crise e a falta de implementação das regulações existentes. Com efeito, eles gostariam que nós os cumprimentássemos por haver salvado o capitalismo, por haver-nos resgatado da beira do abismo para onde nos haviam empurrado no outono boreal de 2008. Eles concordam em que tudo isso saiu caro e que foi desagradável dar tanto dinheiro àqueles que se haviam comportado tão mal. Mas, acrescentam, não havia escolha.     havia escolha

  Mas havia escolha. As escolhas que se faz em um determinado momento conduzem às escolhas seguintes. Os cortes de impostos feitos por Bush em 2001 e 2003 não produziram o crescimento sustentado que fora prometido, mas sim dé cits mais altos, que tornaram mais difícil enfrentar o rompimento da bolha imobiliária.65 Neste livro, eu explico como os reiterados resgates bancários feitos no mundo inteiro durante as duas décadas precedentes deram lugar a um risco moral que contribuiu para a

política de empréstimos insensatos. Explico também como a imposição, pelo Tesouro americano e pelo fmi, de condições duras e contraproducentes aos países em desenvolvimento — o que os levou a sofrer a maior parte das consequências das decisões creditícias equivocadas dos bancos — contribuiu para a formação de colossais reservas de divisas, as quais estão na raiz dos desequilíbrios global e das taxas de juros baixas em todo o mundo. Já nos meses que se seguiram às escolhas feitas pelos governos de Bush e Obama sobre a estratégia dos salvamentos bancários, as consequências políticas e econômicas tornaram-se claras. A crise ainda não terminou. Muito pelo contrário. O que está acontecendo parece um desastre de trens em câmara lenta: pode-se prever a grande destruição que ocorrerá devido ao excesso de velocidade com que o trem entra na curva. A esta altura, quando dizemos que os resgates funcionaram, o máximo de que podemos estar certos é que eles evitaram um desastre imediato, uma vez que a economia global saiu da beira do abismo em que fora colocada. O curso da história que se seguirá é, para dizer o mínimo, incerto. Tudo o que podemos dizer nove anos depois de que o Fed desenvolveu a sua política de criar uma bolha imobiliária como estratégia para promover a recuperação depois do rompimento da bolha tecnológica é que esta recuperação não tem alicerces sólidos e que o estado da economia mundial parece precário. Evidentemente, nunca poderemos estar totalmente seguros de que as alternativas em favor das quais argumentamos teriam funcionado melhor. Talvez, se tivéssemos exigido um acordo mais justo com os bancos, eles houvessem demorado mais a recobrar a saúde e, com certeza, acionistas e executivos não teriam se saído tão bem. Mas é difícil crer que os empréstimos teriam cado mais apertados do que o que de fato ocorreu. Em minha opinião, não há nenhuma dúvida de que poderíamos ter imposto condições para os salvamentos dos bancos que teriam levado ao aumento dos empréstimos, a uma recuperação econômica mais intensa e a uma posição scal melhor para os Estados Unidos. Poderíamos também ter

salvo os bancos de maneira a construir um sistema bancário mais competitivo e não menos competitivo. E um sistema bancário mais competitivo teria resultado em que as empresas pagariam taxas de juros menores, o que também signi caria uma recuperação mais robusta.66 As escolhas feitas pelo governo americano não foram, de modo algum, as piores possíveis, mas também caram longe de ser as melhores. Os fatos ocorridos desde a publicação da primeira edição americana do meu livro pouco zeram para desfazer as preocupações que expressei à época em que os pacotes de salvamento foram armados. Ao contrário, assim como a crise ofereceu ampla comprovação de que as “reformas” regulatórias pró-bancos dos anos 1990 e dos primeiros anos deste século foram erradas, assim também a vacilante recuperação dos dias atuais sugere que os resgates próbancos foram errados — ou, pelo menos, caram longe do ideal. A soma nal das consequências dessas escolhas só será conhecida dentro de alguns anos, mas os fatos ocorridos depois da publicação da primeira edição de O mundo em queda livre apenas reforçaram as conclusões colocadas no livro e as críticas aos resgates e ao programa de recuperação.     as perspectivas e o caminho pela frente

  Como ressaltei no capítulo 7, enquanto o mundo se defrontava com os problemas colocados pela crise global, as questões de longo prazo (o envelhecimento da população, a disfuncionalidade dos sistemas de saúde e de educação pública, o rápido declínio do setor industrial, o aquecimento global, a dependência excessiva do petróleo) continuaram a manifestar-se. Ao mesmo tempo, os recursos disponíveis para lidar com esses problemas tornaram-se muito menores. Fazer algo signi cativo a respeito do aquecimento global teria dado à economia um incentivo à sua recuperação, mas o fracasso da Conferência de Copenhague, em dezembro de 2009, que não logrou um acordo no sentido de obrigar as empresas a pagar o preço apropriado por suas emissões de carbono trouxe novas incertezas. Muitos

eram de opinião de que em algum momento elas terão que pagar, mas nunca cou claro quando e quanto. E a resposta a essa incerteza é, normalmente, o adiamento dos investimentos, até que a própria incerteza se resolva. A continuação da recessão propiciou uma desculpa para os que se opõem nos Estados Unidos e em outros países, a que se faça o que quer que seja a respeito do aquecimento global. A estratégia de “conciliação” produziu o previsível efeito de gerar apenas uma recuperação anêmica, o que signi ca que passará muito tempo ainda até que os Estados Unidos comecem a enfrentar efetivamente estas e outras questões de longo prazo. Muitos desses problemas, como o aquecimento global, afetam o mundo inteiro. E se os Estados Unidos não trabalharem bem no sentido de resolvê-las, o país terá grandes di culdades para exercer liderança na formulação das soluções para os desa os globais. Isso, por sua vez, signi ca que as questões provavelmente não serão resolvidas. Podemos fazer de conta que o aquecimento global desaparecerá, ou esperar que a tecnologia, em algum momento, nos tire da situação em que nos colocamos. Mas essa política de fazer de conta e postergar terá, para o aquecimento global, as mesmas consequências que teve para a recuperação econômica. Os temores que expressei mais de um ano atrás — de que as estratégias de Bush e de Obama para salvar os bancos não levariam a uma retomada rápida dos empréstimos bancários nem a uma recuperação econômica acelerada — concretizaram-se largamente. A estratégia da recapitalização por meio dos lucros auferidos pelos bancos, que emprestavam dinheiro a taxas de juros altas depois de captar recursos em fundos operados com taxas de juros baixas, não só não levou a uma recuperação rápida como pode até mesmo ter ampliado a duração da debilidade da economia. Os que nunca acreditaram que a economia passava por problemas profundos podem ter agido em função da crença de que tais remédios, destinados a remover os sintomas, poderiam funcionar. Os outros, no entanto, não eram tão crédulos.

Prevalece a sensação de que o momento “rooseveltiano” — um outro New Deal, a reformulação do capitalismo, um novo contrato social — cou para trás. Não regressaremos ao mundo como ele era antes da crise, mas tampouco zemos as reformas que poderiam impedir uma nova crise. Levando em conta as pressões a que o Congresso americano se vê submetido pelo lobby nanceiro, talvez devêssemos celebrar a lei que foi nalmente aprovada. Mas, a nal de contas, não é esse o teste mais importante. O que interessa é saber se a economia americana está protegida contra uma nova crise; se os cidadãos estão protegidos contra o ressurgimento dos abusos de que foram vítimas e se existe con ança em que o setor nanceiro desempenhará as funções sociais para cujo exercício ele é tão bem remunerado. O custo desses fracassos para os Estados Unidos será alto: não só persiste o risco de uma nova grande crise nos próximos quinze anos, não só a vasta gama de problemas carece ainda de um tratamento adequado, como também a divisão entre Wall Street e os cidadãos comuns (tanto os negociantes quanto os trabalhadores) tornou-se mais ampla e com essa crescente separação, o sentido de comunidade e a capacidade de resolver os problemas comuns enfraquece-se continuamente. Além de tudo, os Estados Unidos perderam a oportunidade de exercer uma liderança moral e intelectual. O novo equilíbrio mundial de poder que emerge agora signi ca que os Estados Unidos não poderão mais ditar os termos da nova ordem global. Se o país quiser liderar, terá de fazê-lo por meio da persuasão moral, do exemplo e da força dos argumentos. A questão de hoje, assim como no momento em que foi publicada a primeira edição de O mundo em queda livre, é saber se os Estados Unidos oferecerão esse tipo de liderança.67 Ou será que o partidarismo e a guerra intestina entre Wall Street e o resto do país o impedirá de fazê-lo? Se os Estados Unidos não conseguirem resolver os seus próprios problemas de uma maneira que o resto do mundo perceba como justa; se não puderem nem mesmo, com toda a sua riqueza, proporcionar um plano de saúde para a totalidade dos seus cidadãos; se não puderem, com toda a

sua riqueza, proporcionar educação de qualidade à sua juventude; se não puderem, com toda a sua riqueza, arranjar o dinheiro para montar os sistemas modernos de infraestrutura, energia e transporte requeridos pelo aquecimento global — como então poderá o país fazer recomendações aos demais a respeito das maneiras de resolver os seus problemas? A primeira década do século xxi já está sendo descrita como uma década perdida. Para a maior parte dos americanos, a renda auferida ao nal da década é menor do que era ao seu início. A Europa começou a década com uma experiência nova e corajosa, o euro — mas essa experiência pode estar agora fraquejando. Em ambos os lados do Atlântico, o otimismo do início da década foi substituído por um novo desencanto. À medida que as semanas de recessão — a nova doença — tornam-se meses e os meses tornam- -se anos, vai-se de nindo uma nova sombra, pálida e plúmbea. Quando da publicação da primeira edição, eu disse que a “conciliação” não funcionaria e que ainda havia tempo para tomar um caminho alternativo. Continuamos na linha da conciliação. Em certas áreas, como a reforma regulatória, as coisas evoluíram melhor do que eu temia, mas pior do que esperava. Em outras, como a criação de uma nova visão, meus temores se con rmaram integralmente. Ainda há tempo. Mas a janela de oportunidade pode fechar-se rapidamente.            

Notas

prefácio

  1 . Sharon LaFraniere, “China puts joblessness for migrants at 20 million”, New York Times, 2 de fevereiro de 2009, p. A10. O Departamento de Economia e Temas Sociais do Secretariado das Nações Unidas estima que entre 73 e 103 milhões de pessoas permanecerão pobres ou cairão na pobreza em comparação com a situação que existiria se o crescimento anterior à crise houvesse continuado. United Nations, “World Economic Situation and Prospects 2009”, maio de 2009, disponível em http://www.un.org/esa/policy/wess/wesp2009 les/wesp09update.pdf. A Organização Internacional do Trabalho (oit/ilo) estima que o desemprego global pode aumentar em mais de 50 milhões até o m de 2009 e que cerca de 200 milhões de trabalhadores podem ser arrastados à pobreza extrema. Veja-se o Relatório do Diretor-Geral, “Tackling the global job crisis: Recovery through decent work policies”, apresentado à Conferência Internacional do Trabalho, junho de 2009, disponível em http://www.ilo.org/global/What_we_do/Officialmeetings/ilc/ILCSessions/9 8thSession/ReportssubmittedtotheConference/lang--en/docName-CMS_106162/index.htm. 2 . Alan Schwartz, que dirigia o Bear Stearns, o primeiro dos grandes bancos de investimentos a fracassar — mas que continua a custar bilhões de dólares aos contribuintes —, respondeu perante o Comitê Bancário do Senado dos Estados Unidos se acreditava que tivesse cometido algum erro: “Garanto-lhes que esse é um tema sobre o qual pensei muito. Olho para trás, com a vantagem de saber o que aconteceu, e pergunto: ‘Se eu

conhecesse exatamente as forças que estavam surgindo, que medidas poderíamos ter tomado antecipadamente para evitar esta situação?’. E ainda não consegui propor nada [...] que pudesse ter marcado uma diferença com relação à situação que enfrentamos”. Declaração perante o Comitê do Senado dos Estados Unidos sobre Bancos, Habitação e Assuntos Urbanos; audiência sobre “Turmoil in U.S. Credit Markets: Examining the recent actions of Federal Financial Regulators”, Washington, dc, 3 de abril de 2008. 3. Luc Laeven e Fabian Valencis, “Systemic banking crises: A new database”, International Monetary Fund Working Paper, wp/08/224, Washington, dc, novembro de 2008. 4. George W. Bush sugeriu em uma entrevista que “a economia está fraca porque construímos casas demais”. Entrevista com Ann Curry, em Today Show, nbc, 18 de fevereiro de 2008. 5. Bob Woodward, Maestro: Greenspan’s federal and the American boom (Nova York: Simon and Schuster, 2000). 6 . Há outra explicação para as diferenças das políticas: os Estados Unidos e a Europa agiram do modo que corresponde aos interesses dos seus eleitorados — as políticas impostas ao Extremo Oriente seriam inaceitáveis para os americanos e europeus. Do mesmo modo, no Extremo Oriente, o Fundo Monetário Internacional (fmi) e o Tesouro americano estavam, pelo menos em parte, respondendo aos interesses dos seus “eleitores” — os que emprestam dinheiro nos mercados nanceiros e que se concentravam em receber o que os países atingidos lhes deviam — ainda que essa conduta implicasse a socialização de obrigações privadas. Para uma discussão mais extensa desses episódios, veja Joseph E. Stiglitz, Globalization and its discontents (Nova York: W. W. Norton, 2002). 7. U. S. Departament of Labor, Bureau of Labor Statistics, Consumer Price Index, All Urban Consumers, All Items, disponível em p://p.bls.gov/pub/special.request/cpi/cpiai.txt. 8. Veja Susan S. Silbey, “Rotten apples or a rotting barrel: Unchallengeable ortodoxies in science”, documento apresentado à Arizona State University Law School, 19-20 de março de 2009. A proporção dos que contribuíram para a crise, passaram dos limites e se comportaram de maneira ilegal é pequena: seus advogados os orientavam bem a respeito de como evitar a

prisão e seus lobistas trabalharam intensamente para assegurar que as leis lhes propiciassem grande amplitude de manobra. De todo modo, a lista dos que estão sujeitos a condenação está aumentando. Allen Stanford pode receber uma sentença de 375 anos de cadeia se for condenado nas 21 acusações de fraudes no valor de vários bilhões de dólares, lavagem de dinheiro e obstrução à Justiça. Stanford foi ajudado por seu principal assessor nanceiro, James Davis, que se declarou culpado em três casos de fraude postal, conspiração para cometer fraude e conspiração para obstruir uma investigação. Dois corretores do Crédit Suisse foram acusados de mentir a seus clientes — causando prejuízos de 900 milhões de dólares; um foi condenado e o outro se declarou culpado. 9. Há uma resposta óbvia: as circunstâncias são diferentes. Se esses países desenvolvessem políticas scais expansionistas, os efeitos teriam sido contraproducentes (assim diz o argumento). Vale notar que os países do Extremo Oriente que seguiram a receita keynesiana tradicional (Malásia e China) se saíram muito melhor do que os forçados a seguir os preceitos do fmi. Para manter as taxas de juros baixas, a Malásia teve de impor restrições temporárias aos uxos de capital. Mas a queda de atividade no país foi mais curta e menos profunda do que a ocorrida em outras partes da região e, ao nal, a Malásia cou menos endividada. Veja Ethan Kaplan e Dani Rodrik, “Did the Malaysian capital controls work?”, em S. Edwards e J. Frankel (orgs.), Preventing currency crises in emerging markets (Boston: nber, 2002). 10. À lista de resgates internacionais devemos acrescentar os “domésticos” (dentro do próprio país), em que os governos tiveram de resgatar seus próprios bancos sem pedir ajuda a outros. Nessa longa lista, deveríamos incluir a derrocada dos mecanismos de poupança e crédito nos Estados Unidos na década de 1980 e os colapsos bancários na Escandinávia nos anos 1980 e 1990. 11 . A íntima cooperação entre o governo e o setor privado na Malásia levou ao uso da referência “Malásia, Inc.”. Com a crise, as discussões sobre a cooperação entre o governo e o setor privado foram chamadas “capitalismo de amigo” (crony capitalism). 12 . Veja Nicholas Lardy, China’s un nished economic revolution (Washington, dc: Brookings Institution Press, 1998), para a interpretação usual. A ironia de que foram os bancos dos Estados Unidos, e não os da

China, que entraram em colapso não deixou de ser notada em ambos os lados do Pací co. 13. O produto nacional caiu mais 10,9% em 2002 (com relação a 2001), além da queda acumulada de 8,4% a partir do melhor ano anterior (1998), o que dá uma perda total de 18,4% no produto e uma queda de mais de 23% na renda per capita. A crise também elevou o desemprego a 26%, na esteira da enorme contração do consumo, do investimento e da produção. Veja Hector E. Maletta, “A catastrophe foretold: Economic reform, crisis, recovery and employment in Argentina”, setembro de 2007, disponível em http://ssrn.com/abstract=903124. 14. Em um estudo sobre oito economias europeias e norte-americanas (Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha Ocidental, Canadá, Noruega, Dinamarca, Suécia e Finlândia), os Estados Unidos apresentavam a menor mobilidade intergeracional de renda. A correlação intergeracional parcial (que mede a imobilidade) dos Estados Unidos é duas vezes maior que a dos países nórdicos. Só o Reino Unido chega perto dessa taxa de imobilidade. O estudo conclui que “a ideia dos Estados Unidos como ‘terra de oportunidade’ persiste mas parece claramente fora de lugar”. Veja Jo Blanden, Paul Gregg e Stephen Machin, “Intergenerational mobility in Europe and North America”, London School of Economics Centre for Economic Performance, abril de 2005, disponível em http://www.suttontrust.com/reports/IntergenerationalMobility.pdf. A mobilidade na França também supera a dos Estados Unidos. Veja Arnaud Lefranc e Alain Trannoy, “Intergenerational earnings mobility in France: Is France more mobile than the us?”, Annales de’Économie et de Statistique, no 78 (abril-junho de 2005), pp. 57-77. 15. O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Program for International Student Assessmens — pisa) é um sistema de avaliação internacional que mede o desempenho de alunos de quinze anos de idade em termos de capacidade de leitura e conhecimento cientí co a cada três anos. Em média, os estudantes dos Estados Unidos caram abaixo da média da ocde (a mediana dos trinta países da Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento) na combinação das escalas de conhecimento cientí co (science literacy) (489 versus 500) e de conhecimento matemático (mathematics literacy) (474 versus 498). Em

ciências, os estudantes dos Estados Unidos caram atrás de dezesseis dos outros 29 países da Organização. Em matemática, caram atrás de 23 países da ocde. Veja S. Baldi, Y. Jin, M. Skemer, P. J. Green e D. Herget, Highlights from PISA 2006: Performance of U. S. 15-year-old students in Science and Mathematics literacy in an international context (nces 2008-016) (U. S. Departament of Education, Washington, dc: National Center for Education Statistics, dezembro de 2007).     agradecimentos

  1 . A lista dos membros da Comissão está disponível em http://www.un.org/ga/president/63/PDFs/reportofexperts. pdf.     1. a formao da crise

  Veja Milton Friedman e Anna Schwartz, A monetary history of the United States, 1867-1960 (Princeton: Princeton University Press, 1971), e Barry Eichengreen, Golden Fetters: e Gold Standard and the Great Depression, 1919-1939 (Oxford: Oxford University Press, 1995). 2 . De 2000 a 2008, a média real da renda familiar (levando em conta a in ação) decresceu quase 4%. Ao nal da última expansão, em 2007, a renda ainda estava cerca de 0,6% abaixo do nível alcançado antes do m da expansão anterior, em 2000. Veja U. S. Census Bureau, “Income, poverty, and health insurance coverage in the United States: 2008”, Current Population Reports, setembro de 2009, disponível em http://www.census.gov/prod/2009pubs/p60-236.pdf. 3. James Kennedy, “Estimates of mortgage originations calculated from data on loans outstanding and repayments” (sem ajustes trimestrais), novembro de 2008, disponível em http://www.wealthscribe.com/wpcontent/uploads/2008/11/equity-extraction-data-2008-q2.pdf. Estimativas atualizadas de Alan Greenspan e James Kennedy, “Estimates of home mortgage originations, repayments, and debt on one-to-four-family 1.

residences”, Finance and Economics Discussion Series, Division of Research and Statistics and Monetary Affairs, Federal Reserve Board, Working Paper 2005-41, setembro de 2005. 4. A bolha tecnológica é, na verdade, uma outra história, contada em maior detalhe em Joseph Stiglitz, Roaring Nineties: A new history of the world’s most prosperous decade (Nova York: W. W. Norton, 2003). 5. O índice composto nasdaq (usado em geral como medida do desempenho das ações tecnológicas) fechou, no ponto mais alto, com 5046,86 pontos, em 9 de março de 2000. Em 9 de outubro de 2002 ele fechou, no ponto mais baixo, com 1114,11 pontos. Google Finance, nasdaq Composite Historical Prices, disponível em http://www.google.com/ nance/historical?q=INDEXNASDAQ:COMPX. 6 . U. S. Energy Information Administration, base de dados “Petroleum Navigator”, U. S. Imports of Crude Oil (ousand Barrels per Day) [acessada em 28 de agosto de 2009] e Weekly All Countries Spot Price fob Weighted by Estimated Export Volume (Dollars per Barrel) [acessada em 2 de setembro de 2009], disponível em http://www.tonto.eia.doe.gov/dnav/pet/pet_pri_top.asp. 7. Muitas vezes se credita a Alan Greenspan a era de in ação baixa, mas muitos outros países de todo o mundo tiveram in ação baixa, de modo que não se tratou de um fenômeno caracteristicamente americano. As exportações chinesas de produtos industriais a preços baixos e declinantes para todo o mundo foram um dos fatores relevantes para essa situação geral. 8. Como isso pôde acontecer é matéria de intensos debates. Parte do problema estava em que, como qualquer rma comercial, os bancos tinham “estoques”. Outra parte do problema estava em que os complicados pacotes que criaram podem tê-los levado a iludir-se com os próprios cálculos. Eles retiveram alguns papéis e absorveram alguns riscos. Alguns desses riscos não apareciam nos balanços — os bancos registravam as taxas que recebiam com os pacotes sem registrar os riscos associados às partes que não haviam sido vendidas. Os incentivos que levaram os bancos a desenvolver essas atividades que cavam fora dos balanços são discutidos nos capítulos posteriores.

Veja Bureau of Economic Analysis, National Income and Product Accounts Table, “Table 6.16D. Corporate Pro ts by Industry”, disponível em http://www.bea.gov/National/nipaweb/SelectTable.asp. 10. Um dos argumentos convencionais para explicar por que o mercado deu um preço tão irrisório ao risco é que, como as taxas de juros sobre os ativos seguros eram tão baixas, os mercados clamavam por ativos que oferecessem remuneração (yields) um pouco mais alta, o que aumentou o preço dos ativos e diminuiu os lucros. Algumas pessoas em Wall Street desenvolvem um argumento paralelo: quando a diferença entre a “taxa longa” e a “taxa curta” se reduziu assim que o Banco Central começou a elevar as taxas de juros, em junho de 2004, muitos disseram que “tinham” de assumir maiores riscos para manter os ganhos nos níveis de antes. Isso equivale à argumentação de um ladrão, de que teve que recorrer à via do crime quando não tinha maneiras honestas de ganhar a vida. A despeito das taxas de juros, os investidores deveriam ter insistido em uma compensação adequada ao risco assumido. (O Fed [Federal Reserve — Banco Central] elevou a taxa de juros dezessete vezes, em 25 pontos de base, entre junho de 2004 e junho de 2006, o que elevou o índice-alvo dos fundos federais (intended federal funds rate) de 1,25% para 5,25% no período. Federal Reserve, “Intended federal funds rate, change and level, 1990 to present”, 16 de dezembro de 2008, disponível em http://www.federalreserve.gov/fomc/fundsrate.htm. Nesse período, a taxa para os bônus de dez anos do Tesouro dos Estados Unidos caiu de 4,7%, em junho de 2004, para 3,9% em junho de 2005, antes de voltar a subir para 5,1%, em junho de 2006. Veja 10-year Treasury Note, tnx, em nance.yahoo.com. Assim, a curva de rendimentos [yield] se achatou signi cativamente e na verdade se inverteu em junho de 2006.) 11 . Alan Greenspan, “Understanding household debt obligations”, comentários em Credit Union National Association 2004 Governmental Affairs Conference, Washington dc, 23 de fevereiro de 2004, disponível em http://www.federalreserve.gov/boarddocs/speeches/2004/20040223/defaut. htm. Veja também a discussão do capítulo 4. 12 . Alan Greenspan, “e Fed didn’t cause the housing bubble”, Wall Street Journal, 11 de março de 2009, p. A15. 9.

. O Fed costuma concentrar a atenção nas taxas de juros de curto prazo do governo e deixa que o mercado determine as taxas de juros de longo prazo. Mas essa é uma limitação autoimposta: durante a crise, o Fed demonstrou capacidade e desejo de determinar outras taxas de juros. 14. O desempenho dos empréstimos do cra (Community Reinvestment Act/ Lei de Reinvestimento Comunitário) é comparável ao de outros empréstimos subprime. Na verdade, os empréstimos originados em NeighborWorks America, um programa típico do cra, tinham uma taxa de inadimplência inferior à dos empréstimos subprime. Veja Glenn Canner e Neil Bhutta, “Staff analysis of the relationship between the cra and the subprime crisis”, memorando, Board of Governors of the Federal Reserve System, Division of Research and Statistics, 21 de novembro de 2008, disponível em http://www.federalreserve.gov/newsevents/speech/20081203_analysis.pdf, e Randall S. Kroszner, “e Community Reinvestment Act and the recent mortgage crisis”, discurso no evento Confronting Concentrated Poverty Policy Forum, 3 de dezembro de 2008, disponível em http://www.federalreserve.gov/newsevents/speech/kroszner20081203a.htm . 15. Freddie Mac comprou um total de 158 bilhões de dólares, ou seja, 13% de todos os papéis subprime e Alt-A criados em 2006 e 2007, e Fannie Mae comprou mais 5%. Entre os maiores fornecedores de papéis para ambas estavam Countrywide Financial Corp., de Calabasas, Califórnia, assim como New Century Financial Corp., baseado em Irvine, Califórnia, e Ameriquest Mortgage Co., que faliram ou foram obrigadas à liquidação. Fannie Mae e Freddie Mac foram os maiores compradores de empréstimos da Countrywide, segundo a companhia. Veja Jody Shenn, “Fannie, Freddie subprime spree may add to bailout”, Bloomberg.com, 22 de setembro de 2009. 16 . Entre outras razões, o setor nanceiro pode não ter conseguido exercer suas funções sociais cruciais porque as pessoas do setor não compreenderam seus papéis. Mas, em uma economia de mercado que funcione bem, os mercados devem propiciar os incentivos que levem os indivíduos a fazer coisas que sejam do interesse da sociedade, mesmo que os próprios indivíduos não tenham consciência da sua função. 13

. Adolf Berle e Gardiner Jeans ressaltaram a separação entre propriedade e controle no seu livro clássico e modern corporation and private property (Nova York: Harcourt, Brace and World, 1932), há 78 anos, mas desde então a situação cou muito pior, com uma parte muito importante da poupança sendo gerada pelos fundos de pensão. Em geral, os dirigentes desses fundos nem sequer tentam exercer algum controle sobre o comportamento das rmas. John Maynard Keynes se preocupou muitíssimo com a questão do comportamento míope dos investidores, e comparou-o ao dos juízes de concursos de beleza, que não tentam julgar quem é a pessoa mais bonita, mas sim quem os outros pensam que é (capítulo 12 de General theory of employment, interest and money [Cambridge, Reino Unido: Macmillan Cambridge University Press, 1936]). Também aqui quase certamente a situação se tornou pior depois que ele escreveu o livro. Minhas próprias pesquisas ajudaram a pôr a teoria de Berle e Means em bases teóricas mais sólidas. Veja J. E. Stiglitz, “Credit markets and the control of capital”, Journal of Money, Banking, and Credit, vol. 17, no 2 (maio de 1985), pp. 133-52, e A. Edlin e J. E. Stiglitz, “Discouraging rivals: Managerial rent-seeking and economic inefficiencies”, American Economic Review, vol. 85, no 5 (dezembro de 1995), pp. 1301-2. 18. A taxa ajustada trimestralmente do “total de desempregados mais todos os trabalhadores marginalmente vinculados mais o total dos empregados em tempo parcial por razões econômicas como proporção de toda a força de trabalho mais todos os trabalhadores marginalmente vinculados” era de 17,5% em outubro de 2009. Bureau of Labor Statistics, “Current population survey: Labor force statistics, table U-6”, disponível em http://www.bls.gov/news.release/empsit.t12.htm. 19. Pronunciamento de Ben S. Bernanke, presidente da Junta Diretora do Federal Reserve System, perante o Comitê Conjunto para a Economia, Congresso dos Estados Unidos, Washington, dc, 28 de março de 2007. 20. Os compradores e os vendedores de hipotecas não lograram reconhecer que, se as taxas de juros aumentassem, ou se a economia entrasse em recessão, a bolha habitacional poderia estourar e que, em consequência, todos teriam problemas. Foi exatamente o que aconteceu. Como eu observo abaixo, a securitização também criou problemas de assimetrias de informação, o que prejudicou o cenário para boas avaliações 17

de crédito. Veja J. E. Stiglitz, “Banks versus markets as mechanisms for allocating and coordinating investment”, em J. Roumasset e S. Barr (orgs.), e economics of cooperation (Boulder, Colorado: Westview Press, 1992). 21 . Nos anos imediatamente anteriores à crise, como assinalado antes, a demanda interna dos Estados Unidos também se enfraqueceu devido ao alto preço do petróleo. Os problemas do preço elevado do petróleo e da desigualdade crescente — que reduzem a demanda interna agregada — afetam muitos outros países. A desigualdade de renda aumentou em mais de 75% dos países da ocde da metade da década de 1980 até a metade da década de 2000, e nos últimos cinco anos, a pobreza e a desigualdade aumentaram em dois terços dos países da ocde. Veja Organization for Economic Co-operation and Development (oecd), Growing unequal? Income distribution and poverty in OECD countries, Paris, outubro de 2008. 22 . Em Globalization and its discontents (op. cit.), eu explico mais detalhadamente as razões desses constrangimentos: as políticas do fmi (muitas vezes baseadas no errôneo fundamentalismo de mercado que discuti neste capítulo) transformaram desacelerações em recessões e recessões em depressões e impuseram macropolíticas e políticas estruturais intragáveis (e muitas vezes desnecessárias) que reduziram o crescimento e favoreceram a pobreza e a desigualdade. 23. Daniel O. Beltran, Laurie Pounder e Charles P. omas, “Foreign exposure to asset-backed securities of U. S. Origin”, Board of Governors of the Federal Reserve System, International Finance Discussion Paper 939, 1o de agosto de 2008. Ao mesmo tempo, as compras internacionais de hipotecas americanas e de produtos baseados em hipotecas zeram crescer a bolha. 24. Como explicarei depois, a questão é mais complexa, uma vez que o suprimento de fundos estrangeiros também pode ter in ado a bolha. 25. É justo dizer que alguns outros países (como o Reino Unido sob Margaret atcher) se apoiaram na loso a desreguladora por sua própria iniciativa. Na vigência de alguns governos posteriores do Reino Unido, a “regulação leve” foi usada como instrumento competitivo para atrair rmas nanceiras. Em última análise, o país certamente perdeu mais do que ganhou. 26 . “An astonishing rebound”, Economist, 13 de agosto de 2009.

. Apesar dos esforços, a concessão de empréstimos no Reino Unido permaneceu restrita. Não é fácil determinar exatamente o que signi ca “valor justo”, mas o conceito implica o recebimento de um número su ciente de ações (certi cados sobre a renda futura dos bancos) para compensar o governo pelo dinheiro proporcionado e pelo risco assumido. Posteriormente comentarei que um estudo cuidadoso dos resgates nos Estados Unidos revela que o contribuinte americano não recebeu o valor justo. 28. Veja Joseph E. Stiglitz, “Monetary and exchange rate policy in small open economies: e case of Iceland”, Central Bank of Iceland, Working Paper 15, novembro de 2001, disponível em http://www.sedlabanki.is/uploads/ les/wp-15.pdf. 29. Willem H. Buiter e Anne Sibert, “e Icelandic banking crisis and what to do about it: e lender of the last resort theory of optimal currency areas”, Centre for Economic Policy Research (cepr) Policy Insight 26, outubro de 2008, disponível em http://www.cepr.org/pubs/PolicyInsights/PolicyInsighs26.pdf. 30. A Grã-Bretanha pediu ajuda ao fmi em 1976. 31 . O total combinado dos débitos externos dos bancos islandeses ultrapassava 100 bilhões de dólares, em um país cujo pib era de 14 bilhões de dólares. “Iceland agrees emergency legislation”, Times Online (UK), 6 de outubro de 2008, disponível em http://www.timesonline.co.uk/tol/news/world/europe/article4889832.ece. O Parlamento islandês aprovou legislação, no nal de agosto de 2009, para devolver ao Reino Unido e à Holanda cerca de 6 bilhões de dólares que os governos desses países deram aos depositantes que haviam perdido dinheiro nas contas de poupança islandesas durante a crise nanceira. Veja Matthew Saltmarsh, “Iceland to repay nations for failed banks’ deposits”, New York Times, 29 de agosto de 2009, p. B2. Contudo, o Reino Unido e a Holanda objetaram os termos da lei que estabeleciam que a garantia da devolução terminaria em 2024. A Islândia concordou com um novo entendimento em outubro de 2009 que estabeleceu que, se o dinheiro não fosse devolvido até 2024, a garantia seria estendida em blocos de cinco anos. A entrega de fundos do fmi para a Islândia havia sido sustada por 27

causa do desacordo com relação à devolução. Veja “Iceland presents amended icesave bill, eyes imf aid”, Reuters, 20 de outubro de 2009. 32 . A liberalização do mercado de capitais signi cava permitir que o dinheiro de curto prazo uísse livremente para dentro e para fora da economia do país. Não se podem construir fábricas e escolas com esse dinheiro volátil; mas esse dinheiro volátil pode trazer o caos a uma economia. A liberalização do mercado nanceiro leva à abertura da economia nacional às instituições nanceiras estrangeiras. Os dados mostram com crescente nitidez que os bancos estrangeiros emprestam menos dinheiro a pequenas e médias empresas e, em alguns casos, reagem com mais força aos choques globais (como a crise atual), procedimento com o qual geram mais volatilidade. Também é possível comprovar que a integração dos mercados de capital não induziu a redução da volatilidade nem a aceleração do crescimento como se esperava. Veja Eswar S. Prasad, Kenneth Rogoff, Shang-Jin Wei e M. Ayhan Kose, “Effects of nancial globalisation on developing countries: Some empirical evidence”, Economic and Political Weekly, vol. 38, no 41 (outubro de 2003), pp. 4319-30; M. Ayhan Kose, Eswar S. Prasad e Marco E. Terrones, “Financial integration and macroeconomic volatility”, IMF Staff Papers, vol. 50 (Special Issue, 2003), pp. 119-42; Hamidur Rashid, “Evidence of nancial disintermediation in low income countries: Role of foreign banks”, dissertação de doutorado, Universidade Columbia, Nova York, 2005; e Enrica Detragiache, ierry Tressel e Poonam Gupta, “Foreign banks in poor countries: eory and evidence”, International Monetary Fund Working Paper 06/18, Washington, dc, 2006.     2. a queda livre e suas consequncias

  1 . Há uma história apócrifa segundo a qual alguém perguntou a John Kenneth Galbraith — um dos maiores economistas do século xx e autor do clássico e great crash (Nova York: Houghton Mifflin, 1955) — quando ocorreria a próxima Depressão, ao que ele respondeu, profeticamente: quinze anos depois do nascimento do primeiro presidente nascido depois da Grande Depressão.

. Veja Richard Wolf, “Bush mixes concern, optimism on economy”, USA Today, 23 de março de 2008, p. 7A. 3. Em pesquisa destinada a determinar o que os contribuintes fariam com a redução de impostos, só 20% dos consultados responderam que a redução os levaria a aumentar os gastos. A maior parte disse que usaria a redução seja para poupar, seja para pagar dívidas. As estimativas da pesquisa indicaram que apenas de 30% a 40% da redução se destinou ao consumo adicional. Veja Matthew D. Shapiro e Joel Slemrod, “Did the 2008 tax rebates stimulate spending?”, American Economic Review, vol. 99, no 2 (maio de 2009), pp. 374-9. 4. No mesmo momento, Bear Stearns disse que seu valor contábil era de mais de oitenta dólares por ação. Um ano antes, em março de 2007, cada ação de Bear Stearns valia 150 dólares. Veja Robin Sidel, Dennis K. Berman e Kate Kelly, “J. P. Morgan buys Bear in re sale, as Fed widens credit to avert crisis”, Wall Street Journal, 17 de março de 2008, p. A1. 5. O Citibank recebeu uma injeção de 25 bilhões de dólares em outubro de 2008 (juntamente com oito outros bancos, dentro do programa tarp), foi resgatado outra vez com mais 20 bilhões de dólares em dinheiro e garantias para um total de 306 bilhões de dólares de ativos tóxicos em novembro de 2008 e recebeu ajuda uma terceira vez, quando o governo converteu 25 bilhões de dólares de suas ações preferenciais em ações comuns em fevereiro de 2009. A aig também recebeu três resgates, o que inclui uma linha de crédito de 60 bilhões de dólares, um investimento de 70 bilhões de dólares e 52,5 bilhões de dólares para comprar ativos ligados a hipotecas de propriedade da aig ou apoiadas por ela. 6 . A lei de estímulo que foi aprovada em fevereiro de 2009, o American Recovery and Reinvestment Act (Lei de Recuperação e Reinvestimento dos Estados Unidos), incluía mais de 60 bilhões de dólares de investimentos na área da energia limpa: 11 bilhões para uma rede elétrica maior, melhor e mais ágil que transporte energia produzida a partir de fontes renováveis das áreas rurais, onde ela é gerada, para as áreas urbanas, onde é consumida principalmente, assim como para 40 milhões de medidores elétricos e cientes a serem distribuídos aos lares americanos; 5 bilhões de dólares para projetos de ambientalização para lares de renda baixa; 4,5 bilhões para tornar “verdes” os prédios federais e reduzir a conta de energia do governo; 2

6,3 bilhões para projetos estaduais e municipais de energia renovável e e ciência energética; 600 milhões para programas de treinamento “verdes”; e 2 bilhões para desenvolver a próxima geração de baterias para armazenar energia. 7. Barack Obama, “Renewing the American economy”, discurso na Cooper Union, Nova York, 27 de março de 2008. 8. Estatísticas Comerciais do Ministério das Finanças do Japão, Estatísticas Comerciais Gerais, Dados Anuais e Mensais para o Valor Total das Exportações e Importações, setembro de 2009, disponível em http://www.customs.go.jp/toukei/srch/indexe.htm?M=27&P=0 e Escritório de Estatísticas da Alemanha Federal, “German exports in June 2009: -22,3% on June, 2008”, nota de imprensa no 290, 7 de agosto de 2009, disponível em http://www.destatis.de/jetspeed/portal/cms/Sites/destatis/Internet/EN/pres s/pr/2009/0/PE09_290_51,templateId=renderPrins.psml. 9. Os preços das casas começaram a cair em julho de 2006 e continuaram caindo até abril de 2009, mas mesmo quando se estabilizaram, não se sabia ao certo até que ponto isso era consequência de programas temporários do governo — as heterodoxas intervenções do Fed para fazer baixar as taxas das hipotecas e o programa de auxílio aos compradores da primeira casa. Quarenta e oito estados enfrentavam dé cits orçamentários, em um total de 26% dos orçamentos estaduais, o que forçou 42 estados a despedir trabalhadores e 41 a cortar a prestação de serviços. Veja Standard & Poor’s, “e pace of home price declines moderate in April according to the S&P/Case-Shiller Home Price Indices”, nota de imprensa, Nova York, 30 de junho de 2009, e Elizabeth McNichol e Nicholas Johnson, “Recession continues to batter state budgets; State responses could slow recovery”, Center for Budget and Policy Priorities, 20 de outubro de 2009, disponível em http://www.cbpp.org/ les9-8-08sfp.pdf. 10. Depois do teste de estresse, vários bancos foram obrigados a aumentar o capital, e conseguiram fazê-lo. É notável que, mesmo com um teste de estresse pouco estressante, tenha sido possível restaurar certo grau de con ança ao mercado. 11 . Bureau of Economic Analysis, National Income and Product Accounts, “Table 2.1. Personal income and its disposition (Seasonally adjusted at

annual rates)”, disponível em http://www.bea.gov/national/nipaweb/TableView.asp? SelectedTable=58&Freq=QTR&FirstYear=2007&LastYear=2009. 12 . Em Chrystia Freeland, “ ‘First, do no harm’ prescription issued for Wall Street”, Financial Times, 29 de abril de 2009, p. 4. 13. “New Citi chair: Bankers aren’t ‘villains’ ”, CBS News.com, 7 de abril de 2009. 14. Anônimo, “Confessions of a tarp wife”, Conde Nast Portfolio, maio de 2009, disponível em http://www.portfolio.com/executives/2009/04/21/Confessions-of-aResgate-CEO-Wife/. 15. Os resgates nos países em desenvolvimento tendem a levar a uma apreciação da taxa de câmbio com relação ao nível em que estaria sem o resgate. Um dos modos de se recuperar a economia é aumentar as exportações, mas as taxas de câmbio altas prejudicam as exportações e, por conseguinte, a recuperação. O resgate do México em 1994, pode ter sido de pouca relevância para a recuperação do país e pode mesmo tê-la prejudicado. Veja D. Lederman, A. M. Menéndez G. Perry e J. E. Stiglitz, “Mexican investment aer the Tequila Crisis: Basic economics, ‘con dence’ effects or market imperfections?”, Journal of International Money and Finance, vol. 22 (2003), pp.131-51. 16 . Elizabeth Mcquerry, “e banking sector rescue in Mexico”, Federal Reserve Bank of Atlanta Economic Review, terceiro trimestre, 1999. 17. Muitos outros fatores também contribuíram para o mau desempenho do México na década seguinte. Veja Lederman, Menéndez, Perry e Stiglitz, “Mexican investment aer the Tequila Crisis”, op. cit., e capítulo 3, “Making trade fair”, em Joseph E. Stiglitz, Making globalization work (Nova York: W. W. Norton, 2006). 18. Robert Weissman e James Donahue, “Sold out: How Wall Street and Washington betrayed America”, Consumer Education Foundation, março de 2009, disponível em http://wallstreetwatch.org/reports/sold_out.pdf. 19. Em 1953, Charlie Wilson, presidente da gm, proferiu a famosa frase: “Há anos eu creio que o que é bom para o país é bom para a General Motors e vice- -versa”. U. S. Departament of Defense, bio of Charles E.

Wilson, disponível em http://www.defenselink.mil/specials/secdef_histories/bios/wilson.htm. 20. O mercado nanceiro havia feito exatamente isso depois da crise nanceira global de 1997-8. Na época, falava-se muito na reforma da arquitetura nanceira global. As conversas continuaram até que a crise terminou e o interesse a favor das reformas se diluiu. Em vez de pôr em vigor novas regulações, o governo continuou a desregular. É óbvio que pouco foi feito — muito pouco — para evitar novas crises. 21 . Ben Bernanke tomou posse em fevereiro de 2006 e a intensidade dos empréstimos subprime (os empréstimos subprime se originaram como um percentual de todos os empréstimos originados) continuou a aumentar nos meses seguintes, chegando ao auge em meados de 2006. Major Coleman iv, Michael LaCour-Little e Kerry D. Vandell, “Subprime lending and the housing bubble: Tail wags dog?”, Journal of Housing Economics, vol. 17, no 4 (dezembro de 2008), pp. 272-90. 22 . “Há algumas coisas que sugerem, no mínimo, que há uma pequena marola neste mercado”, disse Greenspan. Embora “não percebamos a existência de uma bolha nacional”, ele admitiu que “é difícil não enxergar a existência de um bom número de bolhas locais”. Edmund L. Andrews, “Greenspan is concerned about ‘froth’ in housing”, New York Times, 21 de maio de 2005, p. A1. 23. Citigroup, Suplemento Trimestral de Dados Financeiros, 16 de outubro de 2008, disponível em http://www.citibank.com/citi/ n/data/qer083s.pdf. 24. Editorial, “Mr. Obama’s economic advisers”, New York Times, 25 de novembro de 2008, p. A30. 25. Veja Joe Hagan, “Tenacious G”, New York Magazine, 3 de agosto de 2009, p. 28. Veja também Gretchen Morgenson, “Time to unravel the knot of credit- -default swaps”, New York Times, 24 de janeiro de 2009, p. A1. 26 . Vale a pena observar que Mervyn King, presidente do Banco da Inglaterra, expressara apoio à ideia de que, se os bancos são grandes demais para falir, são grandes demais para existir — ou, pelo menos, devem sofrer fortes restrições em sua capacidade de ação. Discurso feito no banquete dado pelo prefeito de Londres aos banqueiros e comerciantes da cidade, na Mansion House, em 17 de junho de 2009, disponível em

http://www.bankofengland.co.uk/publications/speeches/2009/speech394.p df, e discurso feito para organizações empresariais escocesas, Edinburgh, 20 de outubro de 2009, disponível em http://www.bankofengland.co.uk/publications/speeches/2009/speech406.p df. 27. Bancos americanos que receberam 163 bilhões de dólares em operações de resgate planejavam pagar mais de 80 bilhões de dólares em dividendos nos três anos seguintes, com a permissão do governo. Alguns bancos pagaram mais em dividendos do que receberam em ajuda governamental. Binyamin Appelbaum, “Banks to continue paying dividends”, Washington Post, 30 de outubro de 2008, p. A1. Nove bancos que receberam ajuda do governo pagaram mais de 33 bilhões de dólares em bônus, inclusive mais de 1 milhão de dólares por pessoa para cerca de 5 mil funcionários. Susanne Craig e Deborah Solomon, “Bank bonus tab: $33 billion”, Wall Street Journal, 31 de julho de 2009, p. A1. 28. Havia razões mais que su cientes para a inquietação quanto a um colapso econômico, e como a economia trafegava por rotas desconhecidas, ninguém podia estar seguro quanto às consequências de qualquer ação que o governo tomasse. Os bancos, é claro, queriam grandes cheques do governo e alegavam que qualquer coisa menor que isso poderia ser traumática. Mas, como eu explico mais detalhadamente no texto, o raciocínio utilizado para justi car o uso do “cheque em branco” não era persuasivo, sobretudo porque o governo, a nal, dava garantias a qualquer um que pudesse apresentar uma reação negativa (por exemplo, supridores de fundos de curto prazo). Os credores de longo prazo podiam car descontentes, mas, por de nição, não podiam retirar seu dinheiro. A equipe de Obama temia que, se os supridores de capital para os bancos não fossem tratados com cautela e delicadeza, os nanciamentos poderiam faltar no futuro. Essa conclusão era particularmente absurda: o capital vai para onde estão os lucros. E, se o setor privado não os produzisse, o governo já havia mais do que mostrado sua capacidade de fazê-lo. O setor privado havia demonstrado sua incompetência na gestão do risco e do capital; o governo não poderia fazer pior — e provavelmente teria feito melhor. O governo não trabalharia com incentivos perversos e seu raio de manobra estaria

tolhido pelas regras de responsabilidade scal, que o impediriam de dedicar-se a práticas predatórias. Havia risco de litígios — riscos que existiriam em qualquer hipótese. O risco de litígio pode ter sido especialmente importante para explicar o manejo dos seguros de crédito, apesar de ser quase certo que o Congresso o teria contido. 29. Um juiz distrital dos Estados Unidos deu ao Federal Reserve o prazo de cinco dias para apresentar os registros que identi cavam as companhias que haviam recebido dinheiro através dos seus programas de empréstimos de emergência. Mark Pittman, “Court orders Fed to disclose emergency bank loans”, Bloomberg.com, 25 de agosto de 2009, disponível em http://www.bloomberg.com/apps/news? pid=20601087&sid=a7CC61ZsieV4. Em 30 de setembro de 2009, o Fed noticiou que apelaria da decisão do juiz. Veja Mark Pittman, “Federal Reserve appeals court order to disclose loans”, Bloomberg.com, 30 de setembro de 2009, disponível em http://www.bloomberg.com/apps/news? pid=20601087&sid=aSab0xkcV8jc. 30. Não foi a primeira tentativa de contornar a ação do Congresso com o m de favorecer Wall Street. Depois que o Congresso se recusou a atender ao pedido do governo Clinton no sentido de nanciar os investidores de Wall Street que compraram títulos mexicanos (o que acabou sendo conhecido como resgate mexicano), Robert Rubin recorreu ao Fundo de Estabilização de Intercâmbios (Exchange Stabilization Fund), criado em 1934 para um propósito bem diferente. O Congresso criara o Fundo para estabilizar o valor do dólar durante um período de incertezas nas nanças internacionais, quando a Grã-Bretanha se retirara do padrão-ouro e estava depreciando a libra para ganhar uma vantagem competitiva no comércio internacional. Veja J. Lawrence Broz, “Congressional politics of international nancial rescues”, American Journal of Political Science, vol. 49, no 3 (julho de 2005), pp. 479-96, e Anna J. Schwartz, “From obscurity to notoriety: A biography of the Exchange Stabilization Fund”, Journal of Money, Credit and Banking, vol. 29 (maio de 1997), pp.135-53. 31 . A análise do crescimento de 3,5% do terceiro trimestre de 2009, que marcou o m da recessão, revela os problemas: 1,6%, pouco menos da metade desse crescimento, se devia ao já expirado programa de troca de

automóveis (“cash for clunker”) (veja o capítulo 3); metade do remanescente 1,9% era consequência da reposição de estoques. 32 . Veja Economic Report of the President (Washington, dc: U. S. Government Printing Office, 1996). 33. Com base em pesquisa feita pela consultora Johnson Associates. Espera- -se que os bônus dos operadores aumentem em 60% e que os dos banqueiros de investimento subam apenas de 15% a 20%. Nas sete companhias que receberam apoio governamental extraordinário, contudo, os pagamentos serão limitados. Veja Eric Dash, “Some Wall Street year-end bonuses could hit pre-downturn highs”, Nova York Times, 5 de novembro de 2009, p. B3.     3. uma resposta falha

  1 . Alguns economistas argumentam que os multiplicadores podem ser ainda maiores do que esses números sugerem, porque o aumento dos gastos faz crescer a con ança dos consumidores (um “multiplicador de con ança”). Se os gastos com o incentivo fazem diminuir o desemprego, e se a redução do desemprego faz diminuir a ansiedade dos trabalhadores, estes podem ser induzidos a gastar mais, e o efeito global sobre a economia será ainda maior. Esse é um dos argumentos a favor de uma escolha cuidadosa da oportunidade e do destino exato das medidas de incentivo: se forem menos efetivas do que o prometido, pode ocorrer um “multiplicador de con ança negativo”. Embora os nancistas deem grande realce à “con ança”, os modelos econômicos usuais não o fazem e põem a ênfase nas “variáveis reais”, como o desemprego e os salários reais. Além disso, a e cácia do incentivo scal é maior quando a taxa de juros se aproxima do seu limite mínimo (zero), como nos Estados Unidos na recente crise, e o multiplicador scal de curto prazo pode ser substancialmente mais alto que 1,6. Veja, por exemplo, L. Christiano, M. Eichenbaum e Sergio Rebelo, “When is the government spending multiplier large?”, nber Working Paper 15394, outubro de 2009, disponível em http://www.nber.org/papers/w15394.

. Algumas estimativas calculam o multiplicador de uma ampliação dos benefícios do seguro-desemprego em 1,6. Veja Martin Schindler, Antonio Spilimbergo e Steve Symansky, “Fiscal multipliers”, International Monetary Fund Staff Position Note, spn/09/11, 20 de maio de 2009. 3. De 1999 a 2006, o último ano anterior ao estouro da bolha, a renda média dos 5% dos americanos mais ricos aumentou 4,6%, enquanto a renda média da população como um todo caiu 1%. U. S. Census Bureau, Historical Income Tables, Tabelas H-3 e H-6, 2008, disponível em http://www.census.gov/hhes/www/income/histinc/inchhtoc.html. 4. As desigualdades associadas aos resgates bancários que protegeram os credores são especialmente grandes porque as ações e os títulos de dívida dos bancos passaram a ser vistos como de alto risco — risco demasiado para que esses papéis pudessem ser comprados por fundos de pensão e outros investidores que buscam segurança — e muitos foram comprados por fundos de hedge e outros especuladores. 5. Christina Romer e Jared Bernstein, “e job impact of the American recovery and reinvestment plan”, Council of Economic Advisers, 9 de janeiro de 2009, disponível em http://otrans.3cdn.net/ee40602f9a7d8172b8_ozm6bt5oi.pdf. 6 . Bureau of Labor Statistics, “Employment level (seasonally adjusted)”, Labor Force Statistics, Current Population Survey, novembro de 2009, disponível em http://data.bls.gov/cgi-bin/surveymost?ln. Pouco mais de seis meses após o início do programa, o governo a rmou que os programas de gastos haviam criado a modesta soma de 640 mil empregos. Elizabeth Williamson e Louise Radnofsky, “Stimulus created 640,000 jobs, White House says”, Wall Street Journal, 31 de outubro de 2009, p. A5. 7. Veja também Paul Krugman, “Averting the worse”, New York Times, 10 de agosto de 2009, p. A17. Como observo abaixo, esse número subestima a escala do problema, por causa do grande número de pessoas que se viram forçadas a aceitar trabalhos de tempo parcial em razão de não haver disponibilidade de empregos em tempo integral. 8. Federal Reserve Bank of Philadelphia, “Forecasters see the expansion continuing”, quarto trimestre de 2009, Survey of Professional Forecasters, 16 de novembro de 2009, disponível em http://www.phil.frb.org/research2

and-data/real-time-center/survey-of-professionalforecasters/2009/survq409.cfm. 9. O cialmente, a medida ampla do desemprego teve início em 1994, mas o New York Times, em trabalho conjunto com o Departamento do Trabalho, estendeu a série, retrocedendo a 1970. A taxa de outubro de 2009 foi a mais alta “pelo menos desde 1970 e muito provavelmente desde a Grande Depressão”. David Leonhardt, “Jobless rate hits 10.2%, with more underemployed”, New York Times, 7 de novembro de 2009, p. A1. Em outubro de 2009, a proporção de pessoas em idade de trabalhar que estavam empregadas ou buscavam trabalho ativamente era de 65%, a mais baixa em 22 anos. Bureau of Labor Statistics, Current Population Survey, “Table U-6. Total Unemployed, Plus All Marginally Attached Workers, Plus Total Employed Part Time for Economic Reasons, as a Percent of the Civilian Labor Force Plus All Marginally Attached Workers”, setembro de 2009, disponível em http://www.bls.gov/news.release/empsit.t12.htm. 10. Current Population Survey, Unemployment Statistics, Table A2, Bureau of Labor Statistics, 6 de novembro de 2009, disponível em http://www.bls.gov/news.release/pdf/empsit.pdf, e Table 3, Civilian Labor Force and Unemployment by State and Selected Area (seasonally adjusted). Regional and State Employment and Unemployment, Labor Force Data, Bureau of Labor Statistics, 20 de novembro de 2009, disponível em http://www.bls.gov/news.release/pdf/empsit.pdf. 11 . Veja Conor Dougherty, “e long slog: Out of work, out of hope”, Wall Street Journal, 23 de setembro de 2009, p. A1. 12 . Em outubro de 2009, 35% dos desempregados estavam sem trabalho havia pelo menos 27 semanas, o nível mais alto desde a Segunda Guerra Mundial. Junho de 2009 foi também o primeiro mês desde 1948, quando o governo começou a registrar esses dados, em que mais da metade dos desempregados estava sem trabalho havia pelo menos quinze semanas. Bureau of Labor Statistics, “Table A-12. Unemployed Persons by Duration of Employment, seasonally adjusted”, outubro de 2009, disponível em http://www.bls.gov/web/cpseea12.pdf. Veja também Floyd Norris, “In the unemployment line, and stuck there”, New York Times, 11 de julho de 2009, p. B3.

. Bureau of Economic Analysis, Industry Economic Accounts, gdp by Industry Accounts, “Value added by industry as a percentage of gdp”, 28 de abril de 2009. 14. Bureau of Labor Statistics, Job Openings and Labor Turnover Survey, disponível em http://data.bls.gov/cgi-bin/surveymost?jt, e Labor Force Statistics Current Population Survey, disponível em http://data.bls.gov/cgibin/surveymost?ln. 15. Bureau of Labor Statistics, Current Employment Statistics Survey, “Employment, hours, and earnings: Average weekly hours of production workers”, disponível em http://data.bls.gov/cgi-bin/surveymost?ce. 16 . Para os trabalhadores privados, a participação em programas de contribuição de nida chegou de 36% em 1999 a 43% em 2009, enquanto a participação em programas de benefício de nido permaneceu estável em torno dos 20%. A participação geral em qualquer tipo de plano de aposentadoria subiu de 48% em 1999 para 51% em 2009 (observe que alguns trabalhadores participam de ambos os tipos de programa). Bureau of Labor Statistics, National Compensation Survey of Employee Bene ts, “Table 2. Retirement bene ts: Access, participation, and take-up rates, private industry workers, national compensation survey”, março de 2009, disponível em http://www.bls.gov/ncs/ebs/bene ts/ 2009/ownership/private/table02a.pdf. 17. Uma pesquisa revelou que quase 40% dos trabalhadores com mais de 62 anos de idade retardaram sua aposentadoria por causa da recessão. Entre os trabalhadores na faixa de cinquenta a 61 anos de idade, 63% admitiram que poderão retardar a data da aposentadoria em razão das condições econômicas vigentes. Pew Research Center, “America’s changing workforce: Recession turns a graying office grayer”, Social and Demographic Trends Project, Washington, dc, 3 de setembro de 2009. 18. Eu propus um incentivo muito maior, como fez, segundo se informa, Christina Romer, presidente do Conselho de Assessores Econômicos de Obama (que sugeriu mais de 1,2 trilhão de dólares). O presidente foi confrontado pela sua equipe econômica com duas escolhas apenas: o pacote de 890 bilhões de dólares, ou outro um pouco menor, de 550 bilhões. Veja Ryan Lizza, “Inside the crisis”, e New Yorker, 12 de outubro de 2009, 13

disponível em http://www.newyorker.com/reporting/2009/10/12/091012fa_fact_lizza. 19. Elizabeth McNichol e Iris J. Lav, “New scal year brings no relief from unprecedented state budget problems”, Center on Budget and Policy Priorities, Washington, dc, 3 de setembro de 2009, disponível em http://www.cbpp.org/ les/9-8- 08sfp.pdf. 20. Jordan Rau e Evan Halper, “New state budget gap is forecast”, Los Angeles Times, 14 de março de 2009, p. A1. 21 . e White House, Office of the Press Secretary, “New recipient reports con rm recovery act has created saved over one million jobs nationwide”, nota de imprensa, 30 de outubro de 2009, disponível em http://www.whitehouse.gov/thepress-office/new-recipient-reports-con rmrecovery-act-has-created-saved-over-one-million-jobs-. 22 . Bureau of Labor Statistics, “All employees (Sector: Government), employment, hours, and earnings from the current employment statistics survey (National)”, 10 de novembro de 2009, disponível em http://data.bls.gov/PDQ/outside.jsp?survey=ce. 23. Com essas medidas excepcionais, somadas ao benefício básico, no nível estadual, de 26 semanas, o total dos benefícios de desemprego alcançou a faixa de sessenta a 99 semanas, ao nal de 2009, dependendo do índice de desemprego no nível estadual. Veja National Employment Law Project, “Senate extends jobless bene ts 14-20 Weeks”, Washington, dc, 4 de novembro de 2009, disponível em http//www.nelp.org/page/-/ui/pr.SenateExtensionVote.pdf ?nocdn=1. 24. Apesar das extensões de prazo dadas pelo Congresso, se a lei (American Recovery and Reinvestment Act) não for objeto de nova autorização em dezembro de 2009, 1 milhão de desempregados perderão os benefícios em janeiro de 2010 e 3 milhões carão sem benefícios federais entre janeiro e março de 2010. National Employment Law Project, “nelp analysis: 1 million workers will lose jobless bene ts in January if Congress fails to reauthorize arra”, Washington, dc, 18 de novembro de 2009, disponível em http://nelp.3cdn.net/596480c76efd6ef8e3_pjm6bhepv.pdf. 25. O governo Obama tentou formular a redução de impostos de maneira a incentivar o consumo. Em vez de dar um desconto uma só vez, rebaixou a taxa de pagamento antecipado do imposto de renda, na esperança de que

as famílias, dispondo de um pouco mais de dinheiro, seriam levadas a gastar mais. Os gastos aumentaram um pouco, mas menos do que os autores da medida esperavam. Veja também John Cogan, John B. Taylor e Volker Weiland, “e stimulus didn’t work”, Wall Street Journal, 17 de setembro de 2009, disponível em: http://online.wsj.com/article/SB10001424052970204731 804574385233867030644.html. 26 . Veja, por exemplo, Amity Shlaes, e forgotten man: A new history of the Great Depression (Nova York: HarperCollins, 2007), e Jim Powell, FDR’s folly: How Roosevelt and his New Deal prolonged the Great Depression (Nova York: Crown Forum, 2003). 27. O pensamento econômico keynesiano tem sido repetidamente testado e tem se mostrado correto. Os testes mais expressivos foram conduzidos pelo Fundo Monetário Internacional (fmi) no Extremo Oriente e em outros lugares, onde, em vez de responder às crises através de políticas monetárias e scais expansionistas, o fmi zera exatamente o oposto. As profundas contrações ocorridas na economia foram exatamente aquelas previstas pelo keynesianismo. 28. Os ativos do Federal Reserve (que incluem hipotecas, títulos do Tesouro e outros) aumentaram de 900 bilhões de dólares em agosto de 2008 para mais de 2,2 trilhões de dólares em dezembro de 2008. Normalmente, o Fed compra apenas títulos do Tesouro (dívida governamental de curto prazo). Quando o Fed buscou afetar os índices de longo prazo e as taxas das hipotecas, passou a comprar um amplo espectro de produtos, no que por vezes foi chamado de facilitação quantitativa. 29. Como agora se pode ver, os mercados nem sempre são tão ágeis. Muita gente dos mercados nanceiros parece olhar apenas para o lado do passivo do balanço do governo e nunca para o lado do ativo. 30. Veja o capítulo 8 para uma discussão mais extensa do sistema global de reservas e como precisa ser reformado.     4. a fraude das hipotecas

 

. Mais de 4 milhões de pessoas se tornaram proprietárias de casas durante a corrida imobiliária — mas já no terceiro trimestre de 2009, a porcentagem dos proprietários de casas (67,6%) era praticamente igual à do ano 2000 (67,4%). U. S. Census Bureau, Housing and Household Economic Statistics Division, “Housing vacancies and homeownership: Table 14, terceiro trimestre de 2009”, disponível em http://www.census.gov/hhes/www/housing/hvs/historic/index.html. 2 . De 2001 a 2007, o número de casas sob encargos nanceiros severos (gastos de mais de 50% da renda com a compra da casa) aumentou em mais de 4 milhões. Joint Center for Housing Studies of Harvard University, e state of the nation’s housing 2009, 22 de junho de 2009, disponível em http://www.jchs.harvard.edu/son/index.htm. 3. Joe Weisenthal, “Dick Parsons: Don’t just blame the bankers”, Business Insider, 7 de abril de 2009, disponível em http://www.businessinsider.com/dick-parsons-dont-just-blame-thebankers-2009-4. 4. Abby Aguirre, “e neediest cases: Aer a nightmare of re nancing, hope”, New York Times, 8 de novembro de 2008, p. A47. 5. Peter J. Boyer, “Eviction; e day they came for Addie Polk’s house”, e New Yorker, 24 de novembro de 2008, p. 48. 6 . RealtyTrac, “us foreclosure activity increases 75 percent in 2007”, nota de imprensa, 29 de janeiro de 2008, e “Foreclosure activity increases 81 percent in 2008”, nota de imprensa, 15 de janeiro de 2009, disponível em http://www.realtytrac.com/contentmanagement/. 7. Sonia Garrison, Sam Rogers e Mary L. Moore, “Continued decay and shaky repairs: e state of subprime loans today”, Center for Responsible Lending, Washington, dc, janeiro de 2009, disponível em http://www.responsiblelending.org/mortgage-lending/researchanalysis/continued_decay_and_shaky_repairs.pdf; editorial, “Holding up the housing recovery”, New York Times, 24 de abril de 2009, p. A26; e Credit Suisse, “Foreclosure update: Over 8 million foreclosures expected”, Fixed Income Research, 4 de dezembro de 2008, disponível em http://www.chapa.org/pdf/ForeclosureUpdateCreditSuisse.pdf. Em março de 2009, 5,4 milhões de proprietários americanos detentores de hipotecas, quase 12%, estavam em atraso de pelo menos um mês nos pagamentos, ou 1

em cobrança executiva ao nal de 2008, segundo a Mortgage Bankers Association. i, 2008 Mortgage fraud report, “Year in Review”, disponível em http://www.i.gov/publications/fraud/mortage_fraud08.htm, pp. 11-2. 8. Matt Apuzzo, “Banks torpedoed rules that could have saved them”, Associated Press, 1o de dezembro de 2008. Outros também viram o que estava acontecendo e não puderam evitá-lo, mas eram uma pequena minoria. 9. Esses dados só caram disponíveis por causa dos esforços do procurador- -geral de Nova York, Andrew Cuomo. Não foram revelados pelo Tesouro dos Estados Unidos, o responsável pelo resgate. Susanne Craig e Deborah Solomon, “Bank bonus tab: $33 billion”, Wall Street Journal, 31 de julho de 2009, disponível em online.wsj.com/article/SB124896815094085.html. 10. Com efeito, Alan Greenspan bloqueou uma proposta destinada a ampliar a scalização dos autores dos empréstimos subprime, tema sobre o qual o Fed tem ampla autoridade. Greg Ip, “Did Greenspan add to subprime woes?”, Wall Street Journal, 9 de junho de 2007, p. B1. 11 . Esta lista dos propósitos da regulação não é exaustiva: as regulações também se destinam a assegurar o acesso ao nanciamento, a prevenir a discriminação, a promover a macroestabilidade e a reforçar a concorrência. Algumas dessas outras regulações permaneceram vigentes. 12 . Nem todas as hipotecas americanas são irrecorríveis, mas, na prática, a vasta maioria é. 13. Os críticos do seguro de depósito erram, no entanto, ao acreditar que sem o seguro de depósito tudo estaria bem, uma vez que os depositantes têm um incentivo para exigir que os bancos usem bem os seus fundos. Já ocorreram falências bancárias em países que têm e que não têm seguros de depósitos. Na verdade, como poderiam os depositantes avaliar o risco de um banco importante, como o Citibank, quando até mesmo seus dirigentes e reguladores emitiam opiniões marcadamente diferentes de um dia para o outro? 14. Se o tomador do empréstimo percebesse que o corretor da hipoteca havia falseado o dado da sua renda e levantasse objeções, seria rapidamente silenciado — era uma mera formalidade.

. U. S. Census Bureau, Current Population Survey, Historical Income Tables,Table H-6, http://www.census.gov/hhes/www/income/histinc/inchhtoc.html. 16 . Robert J. Shiller, Irrational exuberance, 2 a ed. (Princeton: Princeton University Press, 2005). 17. e Federal Housing Finance Board Monthly Interest Rate Survey, Table 36, disponível em http://www.fa.gov/Default.aspx?Page=252. 18. Alan Greenspan, discurso na Conferência Governamental de 2004 da Credit Union National Association 2004, Washington, dc, 23 de fevereiro de 2004. Na sua linguagem usualmente tortuosa (por vezes denominada “Fedspeak”), ele se protegeu contra críticas futuras: “Os cálculos feitos por analistas do mercado a respeito do ‘spread ajustado para opções’ sugerem que o custo desses benefícios oferecidos por hipotecas de taxas xas pode variar entre 0,5% e 1,2%, o que aumenta em vários milhares de dólares por ano os pagamentos anuais dos proprietários de casas depois de pagos os impostos”. Ele assinalou, contudo, que essa poupança não ocorreria “se as taxas de juros tendessem a subir fortemente”. 19. Veja, por exemplo, James R. Hagerty e Michael Corkery, “How hidden incentives distort home prices”, Wall Street Journal Online, 20 de dezembro de 2007. 20. Veja também Aubrey Cohen, “Rules set to cut off mortgage originators from appraisers this week”, Seattle Post-Intelligencer Online, 29 de abril de 2009, disponível em http://www.seattlepi.com/local/405528_appraisal25.html. (A Wells Fargo não era a única.) 21 . Com o aumento dos empréstimos subprime, um estudo feito com quinhentos avaliadores em 44 estados americanos revelou que 55% deles se sentiam pressionados a superestimar os valores das propriedades e que 25% haviam sofrido pressões em pelo menos metade das avaliações que lhes foram atribuídas. David Callahan, “Home insecurity: How widespread appraisal fraud puts homeowners at risk”, Borrowing to make ends meet brie ng paper #4, março de 2005, disponível em http://www.cheatingculture.com/home_insecurity_v3.pdf. O i monitora fraudes hipotecárias, o que inclui as avaliações, e relatou um aumento de 36% no número de casos desse tipo de fraude em 2008 nos principais 15

estados, inclusive os que apresentam os maiores números de falências e inadimplências hipotecárias. i, 2008 mortgage fraud report, op. cit. É provável que ocorra uma torrente de litígios exempli cados pela ação jurídica coletiva em favor dos compradores dos Títulos Apoiados em Ativos (Asset-Backed Securities), de Bear Stearns, alegando, por exemplo, declarações falsas e/ou omissões relativas às avaliações de propriedades que afetam os empréstimos hipotecários. “Cohen Milstein e Coughlin Stoia announce pendency of class action suits...”, Market Watch, 11 de setembro de 2009, disponível em http://www.marketwatch.com/story/cohenmilstein-and-coughlin-stoia-announce-pendency-of-class-actionsuitsinvolving-mortgage-pass-through-certi cates-of-structured-assetmortgageinvestments-ii-inc-and-bear-stearns-asset-backed-2009-09–11. 22 . Keith Ernst, Debbie Bocian e Wei Li, “Steered wrong: Brokers, borrowers, and subprime loans”, Center for Responsible Lending, 8 de abril de 2008, disponível em http://www.responsiblelending.org/mortgagelending/research-analysis/steered-wrong-brokers-borrowers-and-subprimeloans.pdf. 23. Como um aumento das taxas de juros traria problemas para todo o país, os riscos de inadimplência também apresentariam uma alta correlação em todo o país. Para uma análise mais completa dos problemas relativos à securitização, veja, por exemplo, Stiglitz, “Banks versus markets as mechanisms for allocating and coordinating investment”, op. cit. 24. Alguns argumentam, ao contrário, que, como a demanda externa pelas hipotecas americanas favoreceu a formação da bolha, apenas piorou a situação. O que me parece claro é que havia su ciente demanda interna para as hipotecas ruins e su cientes erros de avaliação de risco, de modo que os Estados Unidos teriam a bolha mesmo sem a demanda externa. Não se pode pôr a culpa nos estrangeiros, como querem alguns. Sem a demanda externa, o prêmio de risco dos produtos de risco teriam sido mais altos, o que teria atraído mais compras nos Estados Unidos. 25. Essa é a razão por que uma das “reformas” defendidas por alguns apologistas do mercado livre — o aumento do número de agências de classi cação de risco e, por conseguinte, o aumento da competição entre elas — poderia fazer a situação piorar ainda mais, a menos que houvesse outras reformas.

Os modelos usados pelos bancos de investimento e pelas agências de classi cação de risco assumiam em geral o que se denomina “distribuição lognormal”, que é uma variante da familiar curva do sino. Na verdade, eles deveriam usar o que se denomina “distribuição de pontas altas” (fat-tailed distribution), na qual eventos relativamente raros ocorrem com maior frequência que na distribuição lognormal. 27. Mark Rubinstein, “Comments on the 1987 stock market crash: Eleven years later”, em Risks in accumulation products (Schaumburg, il: Society of Actuaries, 2000). 28. Esses modelos usavam, por exemplo, distribuições de probabilidade que subestimavam a ocorrência de eventos “raros”. Não só essas premissas técnicas eram falsas, mas a teoria econômica subjacente também o era. Os modelos ignoravam a possibilidade dos tipos de crises de liquidez que têm sido uma característica dos mercados nanceiros ao longo da história. Essas crises se relacionam com problemas de informação imperfeita e assimétrica — o que esses modelos ignoravam. 29. Eric Lipton, “Aer the bank failure comes the debt collector”, New York Times, 17 de abril de 2009, p. B1. 30. A securitização tornou mais difícil renegociar hipotecas e esse é outro exemplo de algo que os participantes do mercado e os reguladores tinham de ter percebido. A securitização havia tornado muito mais difícil a renegociação na crise da Ásia Oriental do m dos anos 1990 do que na crise latino-americana do começo dos anos 1980. Neste caso, era possível colocar os credores principais à volta de uma mesma mesa. No outro caso, não havia sala que comportasse todos os interessados. 31 . Veja a declaração de Sheila C. Bair, presidente da fdic, “Possible responses to rising mortgage foreclosures”, Comitê de Serviços Financeiros, Câmara de Deputados dos Estados Unidos, Washington, dc, 17 de abril de 2007. 32 . No capítulo 5, eu explico como a maneira pela qual o governo Obama formulou os resgates dos bancos extirpou incentivos para uma reestruturação maior das hipotecas. 33. Mais de 15,2 milhões de hipotecas americanas, quase um terço de todas as propriedades hipotecadas, estavam naufragando em 30 de junho de 2009. First American CoreLogic, “Negative Equity Report, Q2 2009”, 13 26.

de agosto de 2009, disponível em http://www.facorelogic.com/uploadedFiles/Newsroom/RES_in_the_News/F ACL%20Negative%20Equity_ nal_081309.pdf. 34. O plano dava tanto dinheiro para os serviços hipotecários e investidores quanto para os tomadores dos empréstimos. Para “modi cações bem-sucedidas” em que o tomador do empréstimo permanecia ativo por cinco anos, pagava ao emprestador 50% do custo da redução de pagamentos de 38% para 31% da renda do cliente e dava 4 mil dólares ao serviço hipotecário e 5 mil dólares ao cliente. O banco teria de arcar com a totalidade do custo da redução de pagamentos até os 38%. (Consideremos, por exemplo, um indivíduo que tenha uma hipoteca de 400 mil dólares e pague um pouco mais de 38% de sua renda pela hipoteca. Em cinco anos, o emprestador ganharia mais de 11 mil dólares — mais do que o provedor do serviço e o cliente juntos.) Basicamente o plano não propiciava ajuda aos desempregados. Poucos estados, como a Pensilvânia, concordaram em lhes propiciar empréstimos. 35. As ações diretas do Fed zeram baixar as taxas de juros das hipotecas e facilitaram em muito as modi cações que efetivamente ocorreram. Os pagamentos também foram rebaixados por meio da extensão dos termos da hipoteca para quarenta anos a partir da data da modi cação e da conversão das hipotecas em hipotecas apenas de juros — o que levou à formação de uma grande “barriga” na linha dos pagamentos. Essa “barriga” contribuiu fortemente para a crise e permitiu que os problemas potenciais fossem transferidos para o futuro. 36. Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, “Making Home Affordable Program: Servicer Performance Report through October 2009”, novembro de 2009, disponível em http://www. nancialstability.gov/docs/MHA%20Public%20111009%20FIN AL.PDF. 37. Veja Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, “Making Home Affordable Program: Servicer Performance Report through July 2009”, agosto de 2009, disponível em http://www.treas.gov/press/releases/docs/MHA_public_report.pdf. 38. Financial Accounting Standards Board, “Determining fair value when the volume and level of activity for the Asset or liability have signi cantly

decreased and identifying transactions that are not orderly”, fsp fas 157-4, 9 de abril de 2009, disponível em: http://www.fasb.org/cs/BlobServer? blobcol=urldata&blobtable=MungoBlobs&blobkey=id&blobwhere=117581 8748755&blobheader=application%2Fpdf. 39. Os bancos a rmavam que o percalço para muitas das hipotecas era apenas temporário, justi cando assim a recusa a reduzir o valor das hipotecas. Mas, do ponto de vista estatístico, isso não fazia sentido: a probabilidade de que qualquer hipoteca prejudicada, mesmo aquelas consideradas apenas temporariamente prejudicadas, não fosse paga era bem maior que a das hipotecas sadias, e uma contabilidade adequada tinha que re etir isso. Isso era particularmente verdadeiro nesta recessão profunda, e mais ainda para hipotecas que estavam naufragando. 40. Quando os salários são retidos (para pagar uma dívida), o empregador entrega o dinheiro direto ao credor. 41 . Um lobista que trabalha para diversas associações de crédito comercial disse ao New York Times que os republicanos conseguirão que os “lobistas e doadores pro ssionais os olhem de maneira diferente” se lhes demonstrarem que são de fato capazes de in uenciar a política. Editorial, “Holding up the housing recovery”, New York Times, 24 de abril de 2009, p. A26. 42 . O índice de cancelamentos (porcentagem anualizada de empréstimos e aluguéis retirados dos balanços dos bancos e deduzidos das reservas) de empréstimos imobiliários residenciais aumentou de 0,08, antes de abril de 2005, quando foi aprovada a Lei de Prevenção ao Abuso de Falência e de Proteção ao Consumidor, para 2,34 no segundo trimestre de 2009. Veja Federal Reserve, “Charge-Off Rates: All Banks, sa”, Federal Reserve Statistical Release, disponível em http://www.federalreserve.gov/releases/chargeoff/chgallsa.htm. 43. David U. Himmelstein, Elizabeth Warren, Deborah orne e Steffie Woolhandler, “Illness and injury as contributors to bankruptcy”, Health Affairs, vol. 24 (janeiro-junho de 2005), p. 63. 44. Poderia haver outros critérios para quali car que casas receberão socorro, como por exemplo a relação entre o pagamento da hipoteca e a renda.

. Há outras maneiras de socorrer as famílias. Qualquer estratégia deve alocar as perdas entre os bancos, os proprietários e o governo. Se o governo tivesse reduzido o valor das hipotecas, criado uma “taxa” que captasse uma grande parte do ganho de capital do valor reduzido e utilizasse o rendimento para ajudar os bancos a restaurar-se, propiciando-lhes dinheiro na ocasião, o resultado teria sido mais ou menos o mesmo. Os princípios básicos são: (i) É importante permitir que os proprietários permaneçam nas suas casas, desde que tenham condições de fazê-lo com um valor reduzido e com uma pequena assistência — os despejos são caros tanto para as famílias quanto para as comunidades e exacerbam as pressões negativas sobre os preços; e (ii) a maior parte do custo dos maus empréstimos deve ser arcada pelos bancos e outros emprestadores. 46 . Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, “Homeowner affordability and stability plan fact sheet”, nota de imprensa, 18 de fevereiro de 2009, disponível em http://www.ustreas.gov/press/releases/20092181117388144.htm. 47. Como observado na nota 1, p. 436, no terceiro trimestre de 2009, o índice de propriedade de casas era aproximadamente o mesmo do ano 2000, mas como a quarta parte dos hipotecados estava naufragando em meados de 2009, era provável que muitos perdessem a casa nos meses e anos subsequentes. (Veja, por exemplo, Ruth Simon e James R. Hagerty, “One in four borrowers is underwater”, Wall Street Journal, 24 de novembro de 2009, p. A1.) 48. No sistema dinamarquês, sempre que uma hipoteca é emitida por seu originador, cria-se um título hipotecário e o proprietário pode pagar o empréstimo (com uma correspondente redução no título hipotecário). No sistema americano, quando as taxas de juros sobem, com o risco concomitante de que os preços das casas caiam, há grande risco de que se forme um valor líquido negativo (como já se viu). No sistema dinamarquês, quando os preços das casas caem, o valor do título hipotecário também cai simultaneamente, de modo que o proprietário pode pagar o que deve com mais facilidade. Isso evita a liquidez negativa. Com efeito, o título hipotecário dinamarquês estimula o re nanciamento quando as taxas de juros sobem. Os americanos só o fazem quando as taxas de juros caem. 45

. Martin Feldstein, “How to stop the mortgage crisis”, Wall Street Journal, 7 de março de 2008, p. A15. 50. Os emprestadores que participassem desse programa de recompra teriam de abrir mão de qualquer pagamento antecipado de multas.     49

5. o grande roubo americano

  1 . Talvez o único erro de dimensões comparáveis em termos de suas consequências econômicas tenha sido a decisão dos Estados Unidos de fazer guerra ao Iraque. Veja Joseph E. Stiglitz, e three trillion dollar war: e true costs of the Iraq con ict (Nova York: W. W. Norton, 2007). 2. Mark Pittman e Bob Ivry, “Fed’s strategy reduces U. S. resgate to $11.6 trillion”, Bloomberg News, 25 de setembro de 2009. 3. Quando se empresta a uma taxa de juros igual a zero, todo tipo de maravilhas pode acontecer. Um Banco Central pode, por exemplo, propiciar a recapitalização dos bancos. O Banco Central empresta dinheiro ao banco A, que empresta dinheiro ao fundo Alfa, que investe o dinheiro em ações do banco A: rapidamente teríamos um banco bem capitalizado e poderíamos celebrar as maravilhas do mercado. Essa seria uma esperteza demasiado óbvia. Mas o banco A pode emprestar para o fundo Alfa, que investe no banco B e o banco B empresta o dinheiro ao fundo Beta, que investe no banco A. O efeito é basicamente o mesmo, sem os con itos de interesse mais visíveis. Com efeito, a recapitalização dos bancos (por exemplo, por meio dos fundos de pensão) pode simplesmente basear-se na exuberância, racional ou irracional — a crença em que as ações dos bancos estão subvalorizadas. De toda maneira, a provisão de liquidez aparecerá no sistema. Se não for pelo empréstimo, será em algum outro lugar. Pode, por exemplo, alimentar um novo conjunto de bolhas nanceiras. 4. A política também teve uma função. Como já disse, a maneira pela qual os resgates foram feitos — e o próprio comportamento dos bancos — acabou tornando praticamente impossível voltar ao Congresso para pedir mais dinheiro. Robert Johnson e Tom Ferguson argumentam que subsídios ocultos através de diversas agências governamentais constituíam uma parte fundamental da tentativa do governo Bush de encobrir o problema (e os

subsídios) nos meses que antecederam as eleições, na esperança de que isso pudesse evitar que a crise verdadeira eclodisse antes de novembro. A tentativa quase deu certo. Veja Robert Johnson e Tom Ferguson, “Too big to bail: e ‘Paulson Put,’ presidential politics, and the global nancial meltdown, Part i: From shadow banking system to shadow resgate”, International Journal of Political Economy, vol. 38, no 1 (2009), pp. 3-34, e Robert Johnson e omas Ferguson, “Too big to bail: e ‘Paulson Put’. Presidential politics and the global nancial meltdown, Part ii: Fatal reversal — Single payer and back”, International Journal of Political Economy, vol. 38, no 2 (verão de 2009), pp. 5-45. 5. Edward M. Liddy, “Our mission at aig: Repairs, and repayment”, Washington Post, 18 de março de 2009, p. A13. 6 . Como já assinalei, há quase vinte anos, no início da era da securitização, previ que havia uma boa possibilidade de que ela terminasse em um desastre, pois os investidores subestimavam os problemas causados pelas assimetrias de informação, pelos riscos de quedas de preços e pela intensidade da correlação entre esses riscos. 7. Os bancos têm estruturas legais complexas, o que se soma à complexidade da reestruturação. Algum deles são propriedade de companhias de holding. No presente, o governo tem o poder de pôr o banco sob intervenção temporária, mas apenas uma capacidade limitada de lidar com a companhia de holding. As limitações desse poder de “resolver” foram apresentadas como desculpa pela incapacidade de manejar melhor algumas instituições problemáticas (Lehman Brothers, Bear Stearns). Existe amplo consenso no sentido de que uma das reformas necessárias é o fortalecimento dos poderes do governo nessa área. 8. Por vezes, o ativo nanceiro do banco é menor do que sua dívida com os depositantes, mas um banco novo, por exemplo, pode estar disposto a pagar por sua base de clientes. O banco pode ter valor como organização em evolução — mesmo que não tenha feito um trabalho primoroso de avaliação de créditos. 9. Em entrevista dada ao programa da televisão abc News Nightline, Obama a rmou que a nacionalização dos bancos não era uma boa opção para os Estados Unidos, embora tivesse funcionado bem na Suécia, em parte porque “temos tradições diferentes neste país”. Entrevista de Terry

Moran com o presidente Obama, Nightline, abc News, transcrição, 10 de fevereiro de 2009. 10. Os bancos passam por esse processo quase todas as semanas, praticamente sem repercussão. Ao nal de novembro de 2009, 124 bancos haviam entrado em regime de falência só no transcurso daquele ano. Veja a “Failed Banks List” (“Lista de Bancos Falidos”) da fdic, publicada em 20 de novembro de 2009, disponível em http://www.fdic.gov/bank/individual/failed/banklist.html. Mesmo bancos grandes podem falir. Em 1984, o Continental Illinois, então o sexto maior banco dos Estados Unidos, foi posto sob intervenção temporária (“nacionalizado”) de maneira bem ordenada. Alguns anos depois foi reprivatizado. 11 . Existe uma questão crucial sobre a maneira de avaliar os ativos e os passivos de um banco. Os princípios são claros, mas a prática é complexa, porque pode ser particularmente difícil avaliar ativos em tempos de crise. 12 . Como o governo sofre pressões por tanto dinheiro, tem de exercer um papel ativo no desenvolvimento da reestruturação. Mesmo no caso da falência de companhias aéreas, os tribunais normalmente apontam um supervisor para o processo de reestruturação com o m de assegurar-se de que os interesses dos demandantes sejam considerados. Em geral, o processo ocorre tranquilamente. 13. As taxas e impostos geram alguns efeitos complicadores. E, é claro, quando os credores se tornam acionistas, assumem mais riscos. Mas, se não quiserem assumir tantos riscos, podem trocar as ações por ativos mais seguros. 14. Os defensores dessa nova noção de que há bancos “grandes demais para ser liquidados” argumentam que deixar cair mais uma instituição grande pode criar um distúrbio similar. O problema estava, no entanto, na maneira desordenada pela qual o caso de Lehman Brothers foi administrado. A primeira desculpa para esse fracasso foi que o mercado tivera muito tempo para tomar as medidas apropriadas. A nal de contas, o colapso de Lehman Brothers havia sido amplamente previsto, pelo menos desde a primavera. A velha fé no mercado voltou a predominar — mesmo quando era evidente que os mercados não estavam funcionando da maneira como o governo esperava. Depois, a desculpa foi que não tinha

autoridade legal para fazer nada — desculpa totalmente esvaziada pelas fortes medidas tomadas poucos dias depois no sentido de nacionalizar e resgatar a aig, a maior seguradora dos Estados Unidos. Nesse caso, a competência foi claramente esticada, pois, supostamente, o Banco Central tinha poderes sobre os bancos comerciais, mas não sobre as companhias de seguros. Mas a crítica mais reveladora é a de que o Fed e o Tesouro tiveram tempo su ciente para conceber o mandato de que precisavam. Se não tinham a autoridade legal para proteger a estabilidade nanceira da economia dos Estados Unidos, e da economia mundial, tinham, então, a responsabilidade de requerer essa autoridade ao Congresso. É interessante notar que se, por um lado, o Tesouro pareceu extrair a lição errada da experiência com Lehman Brothers, por outro, pareceu não ter dado atenção a uma experiência anterior, na Indonésia, na qual, agindo em conjunto com o fmi, ajudou a derrubar a economia daquele país. Depois de fechar dezesseis bancos, anunciou que ainda haveria novos fechamentos e que as garantias de depósitos seriam, na melhor das hipóteses, limitadas. Evidentemente o pânico prevaleceu e os fundos migraram dos bancos privados para os públicos. A previsão de que outros bancos também sofreriam se cumpriu por si só. As similaridades entre o fechamento dos bancos na Indonésia e o caso de Lehman Brothers são notáveis. Em ambos os casos, por exemplo, houve falta de transparência — ninguém sabia quais seriam as rmas a serem resgatadas (Bear Stearns foi salva, embora fosse menor que Lehman Brothers) e quais seriam entregues à própria sorte. Em ambos os casos, as consequências econômicas desses erros nanceiros foram enormes. Os distúrbios nanceiros que se seguiram ao colapso de Lehman Brothers foram, em parte, resultado da crescente incerteza quanto à abrangência da garantia do governo. O problema básico — que tantos bancos estavam realmente em grande perigo — cara oculto pela ampla adoção da premissa de que os resgates do governo iriam acontecer. (Algumas pessoas, como John Cochrane e Luigi Zingales, argumentaram que foi o tarp que “assustou” o mercado. Vendo o tamanho dos resgates feitos pelo governo, os participantes do mercado concluíram que os problemas eram enormes. Em apoio a esse ponto de vista, citam as datas em que ocorreram os aumentos dos spreads das taxas de juros. Veja John H. Cochrane e Luigi Zingales, “Lehman and the nancial crisis”, Wall Street Journal, 15 de setembro de

2009, p. A21.) Mas tanto o tarp quanto o aumento dos spreads eram consequências do problema central: a deterioração dos balanços dos bancos e as incertezas vigentes. O exame de outros indicadores de crédito revela a verdadeira extensão do congelamento do mercado assim que cou claro que não haveria resgates automáticos por parte do governo. Veja omas Ferguson e Robert Johnson, “e god that failed: Free market fundamentalism and the Lehman bankruptcy”, Economists’ voice (a ser publicado). 15. O público em geral talvez não estivesse a par dos problemas (em parte, possivelmente por causa das ações de Paulson com o propósito de ocultálos, a que faço referência), mas, com efeito, havia uma crise em desenvolvimento no setor nanceiro desde o início de 2007. Os primeiros tremores públicos aconteceram em agosto de 2007, em seguida ao colapso de alguns fundos grandes. À medida que os investidores percebiam os problemas com os papéis baseados em hipotecas, os mercados começaram a ter di culdades; e a repercussão desses problemas sobre os próprios bancos era apenas uma questão de tempo. A economia já estava em recessão ao nal de 2007, nove meses antes do colapso de Lehman Brothers. 16 . A reestruturação nanceira pode ser associada a um adoçante: dar aos acionistas garantias que lhes permitissem aproveitar algo do potencial positivo decorrente de uma possível recuperação do banco. 17. Fannie Mae começou como um empreendimento patrocinado pelo governo, mas foi privatizada em 1968. Nunca houve garantia governamental para seus títulos. Se existissem, os títulos renderiam menos em comparação com os bônus do Tesouro americano. 18. David Herszenhorn, “Resgate plan wins approval; Democrats vow tighter rules”, New York Times, 3 de outubro de 2008, p. A1. 19. Entre os subsídios incluídos no projeto de lei aprovado estava a isenção de uma taxa de 39 centavos que incidia sobre echas de madeira para crianças (apresentada por senadores de Oregon e que representava um ganho de 200 mil dólares para um fabricante de echas daquele estado); um período de sete anos para recuperação de custos para pistas de corridas de automóveis nascar — menos da metade do que o sistema de impostos dos Estados Unidos (irs) julgava apropriado (no valor de 109 milhões de dólares); a alteração de um dispositivo referente a taxas sobre o rum em

Porto Rico e nas ilhas Virgens (no valor de 192 milhões de dólares); incentivos para a realização de lmagens nos Estados Unidos, inclusive para lmes impróprios para menores (no valor de 478 milhões de dólares em dez anos); e um aumento de fundos para o Wool Research Trust Fund (fundo de pesquisas sobre a lã), que faz doações para produtores de lã e fazendeiros que criam carneiros. Veja “Spoonful of pork may help bitter economic pill go down”, CNN.com, 4 de outubro de 2008, e Paul Waldie, “Bill larded with ‘goodies’ for all”, Globe and Mail, 3 de outubro de 2008, p. B1. 20. Veja Edward J. Kane, e S&L insurance mess: How did it happen? (Washington, dc: Urban Institute Press, 1989) e Edward J. Kane, “Dangers of capital forbearance: e case of the fslic and ‘Zombie’ S&Ls”, Contemporary Economic Policy, Western Economic Association International, vol. 5, no 1 (1987), pp. 77-83. 21 . Veja George Akerlof e Paul M. Romer, “Looting: e economic underworld of bankruptcy for pro t”, Brookings papers on economic activity, vol. 2 (1993), pp. 1-73. 22 . À época, o custo da derrocada do setor de poupança e crédito foi estimado em 160 bilhões de dólares (o que então parecia ser uma soma inacreditável e que equivale hoje a cerca de 313 bilhões de dólares). A nal, o governo conseguiu recuperar um montante substancial, em razão da retomada econômica de 1993, mas os valores usualmente relatados não mantêm correspondência adequada e total com o custo de oportunidade dos fundos. Federal Deposit Insurance Corporation, “An examination of the banking crises of the 1980s and early 1990s”, Washington, dc, 1997, disponível em http://www.fdic.gov/bank/historical/history/. 23. Buffet aportou 5 bilhões de dólares e, em contrapartida, recebeu 5 bilhões de dólares em ações preferenciais perpétuas com um rendimento de 10%, mais garantias para comprar 5 bilhões de dólares de ações ordinárias de Goldman Sachs a 115 dólares por ação, 8% abaixo do preço do mercado. Em novembro de 2009, com as ações de Goldman Sachs cotadas a 170 dólares, Buffet ganhara um alto rendimento sobre o dinheiro que dera à rma pouco mais de um ano antes — incomparavelmente maior que o rendimento obtido pelo governo dos Estados Unidos.

. O setor nanceiro usou o “medo” para persuadir o governo a não impor controles, assim como usara o medo para engendrar os esquemas de proteção aos acionistas e credores. O argumento era que, se essas medidas fossem tomadas, os bancos não conseguiriam obter dinheiro de fontes privadas — como se o dinheiro “privado”, de alto custo, fosse um tipo especial de dinheiro que asseguraria o bom funcionamento dos mercados nanceiros. Mas a recusa do governo a impor os controles resultou em maior fragilidade dos bancos — com tanto capital sendo alienado em bônus e dividendos —, o que os tornou mais precários e menos atraentes. Um dos argumentos, já assinalado, para que se requeresse que os bancos estivessem adequadamente capitalizados é de que isso melhora os incentivos: com maior valor líquido, eles têm mais a perder se assumirem riscos excessivos. Mas, ao que parece, os governos de Bush e Obama cometeram um erro fundamental: os donos privados dos bancos podiam não ter preocupação em causar prejuízos ao Estado. Não era o dinheiro deles que estava em risco. Assim, sem que o governo dispusesse de mecanismos de controle, era previsível que agissem de maneira incauta, como o zeram — gastando o dinheiro em dividendos e bônus, mesmo estando em situação nanceira precária. 25. Embora, devido à severidade dos problemas que o Reino Unido enfrentava, os empréstimos tenham permanecido fracos no país. 26 . Mike McIntire, “Bailout is a windfall to banks, if not to borrowers”, New York Times, 18 de janeiro de 2009, p. A1. 27. Congressional Oversight Panel, “Valuing Treasury’s Acquisitions”, February Oversight Report, 6 de fevereiro de 2009, disponível em http://cop.senate.gov/documents/cop-020609-report.pdf. 28. Congressional Budget Office, “A preliminary analysis of the president’s budget and an update of cbo’s budget and economic outlook”, março de 2009, disponível em http://www.cbo.gov/pdocs/100xx/doc10014/03-20PresidentBudget.pdf. 29. Congressional Budget Office, “e Troubled Asset Relief Program: Report on Transactions through June 17, 2009”, junho de 2009, disponível em http://www.cbo.gov/pdocs/100xx/doc10056/06-29-TARP.pdf. 30. Um banco (ou qualquer outra rma) é “solvente” mas “sem liquidez” se os seus ativos excederem o passivo mas ele não tiver acesso a fundos. 24

Evidentemente, se estivesse de fato claro que os ativos eram superiores ao passivo, o banco, normalmente, não teria di culdade em aceder aos fundos. Os bancos acreditavam que eram solventes porque queriam acreditar que os seus ativos (em particular as hipotecas) valiam mais do que o que o “mercado” dizia. O problema com os bancos é que a maior parte do que devem tem a forma de depósitos em conta-corrente, que têm liquidez imediata: o dinheiro precisa ser devolvido no momento em que é solicitado. Os bancos usam esse dinheiro em investimentos de longo prazo (como as hipotecas), na premissa de que quase nunca ocorre que um grande número de depositantes peça a devolução do seu dinheiro ao mesmo tempo. Se todos assim zessem, o banco teria de vender seus ativos rapidamente, e nessas condições talvez não lograsse obter por eles o seu “valor integral”. Nesse sentido, o banco seria solvente se tivesse o tempo necessário para fazer as vendas e não o seria se tivesse de fazer as vendas imediatamente. Supõe-se que o Banco Central atue nesses casos e julgue se o banco de fato pode vender os seus ativos pelo preço almejado se dispuser de um pouco mais de tempo. Se (e somente se) o Fed determinar que a resposta a essa pergunta é positiva, ele proverá a liquidez de que o banco necessita. 31 . International Monetary Fund, “Global Financial Stability Report”, Washington, dc, outubro de 2009. 32. Veja U. S. Treasury, “Treasury Department Releases Details on Public Private Partnership Investment Program”, 23 de março de 2009, disponível em http://www.treas.gov/press/releases/tg65.htm. 33. O argumento em favor do programa era de que ele se destinava a “limpar” o balanço dos bancos. Mas, se um banco comprasse ativos de outro, isso implicaria que este último banco caria “sujo” à medida que o outro casse “limpo”. Isso sugere que a verdadeira razão para o Programa de Investimento Público-Privado (ppip) pode ter sido a transferência oculta de dinheiro para os bancos. 34. O ppip apresentava ainda algumas outras vantagens: podia, por exemplo, imunizar diretamente o governo contra acusações de que estivesse pagando em excesso por algum ativo e ao mesmo tempo estivesse dando dinheiro aos bancos sem nenhum controle governamental (objetivo curioso, mas ao que parece crucial na concepção de Obama). O programa, no

entanto, tinha outras desvantagens, que foram exacerbadas com o prosseguimento da luta do governo e do Banco Central para manter a economia em crescimento. Taxas de juros mais baixas para as hipotecas destinadas a estabilizar o mercado hipotecário tiveram o efeito indireto de aumentar o problema da “seleção negativa”: as hipotecas antigas que permaneciam por ser compradas para o ppip incluíam uma proporção cada vez maior de hipotecas tóxicas, que não podiam ser nanciadas. 35. Obviamente, o dinheiro que chegava aos bancos e saía imediatamente sob a forma de dividendos e bônus não levava os bancos a emprestar mais. Mas os fundos que permaneciam podem ter ajudado. Embora os empréstimos não se tenham expandido, poderiam, na verdade, ter se contraído ainda mais. Programas mais bem concebidos teriam produzido impacto muito superior para cada dólar aplicado. 36 . É visível que as pessoas que estruturaram esses programas de resgate não pensaram com profundidade (pelo menos não com a profundidade necessária) a respeito dos determinantes dos uxos de crédito. Na verdade, essas preocupações deveriam estar no centro de qualquer teoria monetária. Outros fatores também afetam os empréstimos — entre os quais está o risco, que só fez aumentar com o aprofundamento dos problemas da economia. Esse é um dos temas principais do meu livro anterior: B. Greenwald e J. E. Stiglitz, Towards a new paradigm in monetary economics (Cambridge, Reino Unido: Cambridge University Press, 2003). 37. Veja Mary Williams Marsh, “aig lists rms to which it paid taxpayer money”, New York Times, 16 de março de 2009, p. A1. Ficou claro por que o governo relutava tanto em revelar para onde fora o dinheiro da aig. O maior bene ciário americano era Goldman Sachs — que declarou (de maneira talvez um tanto cínica) que podia sobreviver sozinha e que não havia risco sistêmico, embora estivesse, naturalmente, com a maior disposição de receber um presente de 13 bilhões de dólares do governo. Muitos dos outros grandes bene ciários eram bancos estrangeiros. Se a falência desses bancos representasse um problema sistêmico, seus governos presumivelmente os teriam resgatado. Estávamos, na verdade, dando ajuda externa a outros países ricos (França, Alemanha), em vez de dá-la a países pobres, muito mais necessitados. E a magnitude dessa ajuda foi, com efeito, maior do que toda a ajuda que demos à África. (O total da Assistência

O cial para o Desenvolvimento dada pelos Estados Unidos à África no ano scal de 2008 foi de 6,5 bilhões de dólares, que é a metade do que foi dado a uma única rma, a Goldman Sachs, por meio do resgate da aig. Veja U. S. Department of State, “e us Commitment to Development”, Fact Sheet, Bureau of Economic, Energy and Business Affairs, 7 de julho de 2009, disponível em http://www.state.gov/e/eeb/rls/fs/2009/113995.htm.) 38. Como as ações e títulos dos bancos estão sendo constantemente comprados e vendidos, os verdadeiros vencedores dos resgates são os que detêm esses papéis no momento em que o resgate é anunciado (ou passa a ser esperado por todos). Os fundos de pensão que venderam os títulos por ocasião do colapso dos preços das ações, por representarem estes demasiado risco, não se bene ciaram. 39. Federal Reserve Bank, Table H.4.1, “Factors Affecting Reserve Balances”, Washington, dc, disponível em http://www.federalreserve.gov/releases/h41/. 40. Veja European Central Bank, Monthly Bulletin, setembro de 2007, p. 33, disponível em http://www.ecb.int/pub/pdf/mobu/mb200709en.pdf, e Federal Reserve Bank, Table H.4.1, “Factors Affecting Reserve Balances”, Washington, dc, 16 de agosto de 2007, disponível em: http://www.federalreserve.gov/releases/h41/20070816/. 41. O fato de o Banco Central ter ampliado sua faculdade de atuar como emprestador de última instância logo após ter deixado cair o Bear Stearns foi objeto de críticas. Se essa faculdade tivesse sido ampliada dois dias antes, talvez a empresa tivesse sido salva. 42 . Tecnicamente, o Fed é uma instituição independente. Mas a con ança no Fed não provém da sua equidade e sim do fato de que todos sabem que o governo dos Estados Unidos está por trás da instituição. Todos os lucros do Fed vão para o Tesouro, e é evidente que quaisquer perdas seriam também cobertas pelo Tesouro. 43. Há 75 anos Keynes discutira um fenômeno similar, que denominou “armadilha de liquidez”. A política de inundar a economia com dinheiro não funcionou porque as famílias simplesmente retiveram o dinheiro. Agora, o dinheiro foi dado aos bancos e eles zeram a mesma coisa. 44. O Fed conseguiu, contudo, en ar muitas das hipotecas problemáticas do país no seu balanço. Além de grande parte do risco creditício car nas

mãos do governo (as hipotecas re nanciadas com a queda das taxas de juros foram subscritas pela Federal Housing Administration — Administração Federal das Moradias — Fannie Mae e Freddie Mac), o Fed assumiu o risco da taxa de juros. Como explicarei mais abaixo, todo o custo, a nal, é assumido pelos contribuintes. 45. Na verdade, não é tão fácil fazer a in ação acabar com boa parte da dívida governamental: a maior parte dos empréstimos tomados pelo governo é de curto prazo, e com o aumento das preocupações com a in ação, aumentam também os juros que o governo tem de pagar. Há o risco de que as taxas de juros aumentem com base em temores in acionários e que a in ação propriamente dita não se materialize. Nesse caso, estaríamos pagando pela in ação sem usufruir dos seus benefícios em termos da redução da dívida. A dívida só faria aumentar em razão do aumento dos juros. 46 . O Fed previa, por exemplo, que a economia estava no rumo da recuperação na primavera de 2008, meses apenas antes do colapso. Um ano antes, ele dissera que os problemas das hipotecas subprime estavam inteiramente controlados. 47. O Fed poderá argumentar que ao reter as hipotecas até o vencimento terá evitado perdas (exceto quanto às hipotecas que quem inadimplentes). Mas está recebendo juros baixos por esses ativos — o que constitui um custo de oportunidade. Os juros baixos são a razão por que os investidores privados pagarão menos por esses ativos. Se o Fed tivesse de usar a contabilidade de marcação a mercado, precisaria reconhecer essa perda. Mas não tem de fazê-lo e a renda que se perde em função do custo de oportunidade passará basicamente despercebida. Mas todos os lucros do Fed passam para o Tesouro. Se seus lucros são menores, ou a arrecadação terá de aumentar ou a dívida nacional futura será maior. 48. Há um argumento contrário: o de que o Fed, reconhecendo o seu papel crucial na geração da crise, não queira ser visto como promotor de uma nova recessão justamente quando a economia estiver se recuperando. 49. Parte da razão por que os bancos conservam títulos governamentais de longo prazo são as falhas das regulações e da contabilidade bancária. As regulações consideram esses títulos seguros, mesmo com a existência de um risco de queda de valor — por exemplo, se as taxas de juros aumentarem

em consequência do aumento das expectativas in acionárias. Os bancos podem registrar a taxa de juros de longo prazo como “renda”, sem fazer nenhuma provisão para o risco de perda associado a uma queda no preço do título. (Se os mercados funcionam bem, então a diferença entre a taxa de curto prazo e a de longo prazo corresponde à expectativa de uma queda de preço.) Veja Stiglitz, Roaring Nineties, op. cit. 50. O que importa, naturalmente, é como o investimento das rmas reage, o que dependerá tanto das suas expectativas com relação às taxas de juros reais (por exemplo, um aumento das taxas de juros importará menos se acreditarem, ao mesmo tempo, que a in ação subirá) quanto de um aperto do crédito. É fácil ver como o processo descrito no texto leva a utuações. O mercado reage às expectativas in acionárias levando as taxas de juros de longo prazo a subir, e a economia entra então em desaceleração. Se o Fed afrouxar, as expectativas in acionárias recrudescerão. Os participantes dos mercados nanceiros de hoje não estão muito certos de que o Fed conseguirá administrar esse processo com suavidade, mas na imprensa nanceira e em Wall Street parece haver mais medo de uma reação insu ciente do Fed — um surto de in ação — que de uma reação excessiva (embora, no momento em que este livro vai para o prelo, as expectativas in acionárias reveladas pelos preços dos papéis tips permaneçam baixas). 51 . Para uma descrição detalhada e excelente e uma avaliação das ações do Fed, veja David Wessel, In Fed we trust: Ben Bernanke’s war on the great panic (Nova York: Crown Business, 2009). 52 . O salvamento de Bear Stearns foi particularmente complexo, com o Fed emprestando dinheiro (em um empréstimo em grande medida irrecorrível, com colateral de valor incerto) para que JPMorgan Chase comprasse Bear Stearns. Tudo leva a crer que o Fed sofrerá perdas signi cativas com o colateral. Em 4 de novembro de 2009, o Fed já havia registrado uma perda de quase 10%. Veja Federal Reserve Statistical Release H.4.1., Factors Affecting Reserve Balances, disponível em http://www.federalreserve.gov/releases/h41/Current/. 53. Como assinalei antes, o Fed alegou que estava fora do âmbito da Lei da Liberdade de Informação. Em 26 de fevereiro de 2009, Ron Paul apresentou um projeto de lei ao Congresso exigindo mais transparência nas

operações do Fed. Veja Declan McCullagh, “Bernanke ghts house bill to audit the Fed”, CBS News.com, 28 de julho de 2009. Desde então, o apoio a essa auditoria tem crescido. Em 19 de novembro de 2009, o Comitê de Serviços Financeiros da Câmara dos Deputados votou a favor da auditoria por maioria esmagadora. 54. JPMorgan Chase tirou proveito do salvamento de Bear Stearns. Em outro exemplo de governança questionável, Stephen Friedman se tornou presidente do Banco Central de Nova York em janeiro de 2008, quando era simultaneamente membro da junta de Goldman Sachs e detinha vastos interesses em suas ações. Ele renunciou em maio de 2009, depois da controvérsia sobre esses óbvios con itos de interesses (inclusive compras de ações que lhe renderam 3 milhões de dólares). Veja Hagan, “Tenacious G”, op. cit., e Kate Kelly e Jon Hilsenrath, “New York Fed chairman’s ties to Goldman raise questions”, Wall Street Journal, 4 de maio de 2009, p. A1. 55. O monetarismo sustentava que o suprimento de moeda devia ser aumentado a uma taxa xa; os defensores das metas de in ação recomendavam que os Bancos Centrais aumentassem as taxas de juros sempre que o índice de in ação superasse a meta. 56 . Veja, em particular, Wessel, In Fed we trust, op. cit.    

6. a ganncia triunfa sobre a prudncia

  1 . A Comissão Pecora foi estabelecida pelo Comitê do Senado para os Bancos e a Moeda em 4 de março de 1932, com o m de determinar as causas do desastre da bolsa de valores em 1929. A Comissão descobriu uma ampla gama de práticas abusivas por parte dos bancos e seus a liados e, em consequência dessas conclusões, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei Glass-Steagall de 1933, a Lei dos Valores Mobiliários (Securities Act) de 1933 (que estabeleceu sanções contra o fornecimento de informações falsas a respeito de oferecimentos de ações), e a Lei de Intercâmbio de Valores (Security Exchange Act) de 1934 (que formou a Comissão NorteAmericana de Valores e Intercâmbios — U. S. Securities and Exchange Commission, ou sec —, para regular as trocas de ações). Seguindo esse exemplo, em maio de 2009 o Congresso estabeleceu a Comissão de Inquérito sobre a Crise Financeira, com o m de investigar a crise atual. 2. Veja Manuel Roig-Franzia, “Credit crisis Cassandra”, Washington Post, 26 de maio de 2009, p. C1. 3. Muita gente cou surpresa com a recondução de Alan Greenspan, cuja loso a econômica parecia tão diferente da de Bill Clinton, à presidência do Banco Central. Os que o defendiam no seio do governo Clinton (ele ainda era visto com reverência por muitos) usaram o medo de que a agitação do mercado pudesse estorvar a recuperação da economia e enfraquecer o apoio ao presidente diante da oposição encontrada no seio da equipe econômica. 4. Quando eu era presidente do Conselho de Assessores Econômicos no governo Clinton, trabalhei em um comitê com todos os principais reguladores nanceiros federais, grupo que incluía Greenspan e o secretário do Tesouro Robert Rubin. Mesmo aí havia consciência de que os derivativos representavam um perigo. Contudo, apesar desse risco, os desreguladores encarregados do sistema nanceiro — inclusive o Fed — decidiram não fazer nada, devido ao grande temor de que qualquer ação pudesse atrapalhar as “inovações” do sistema nanceiro. Eles pareciam pensar que seria melhor simplesmente fazer uma faxina depois que o problema se

veri casse do que “sufocar” a economia naquele momento. Foi o mesmo argumento usado contra o combate à bolha imobiliária. 5. Em 4 de novembro de 2009, o Comitê de Serviços Financeiros da Câmara dos Deputados aprovou emenda à Lei de Proteção ao Investidor para isentar as pequenas e médias empresas (com capitalização abaixo de 75 milhões de dólares) da Seção 404 da Lei Sarbanes-Oxley. A Seção 404 requeria que as rmas informassem a respeito da efetividade dos seus controles nanceiros internos, o que é essencial para a con ança dos investidores. Arthur Levitt, ex-presidente da Comissão Norte-Americana de Valores e Intercâmbios (U. S. Securities and Exchange Commission, ou sec), quali cou esse dispositivo como o “Santo Graal” da proteção ao investidor. Depois da votação, Levitt disse que “toda e qualquer pessoa que vote a favor disso sofrerá, como Caim, a maldição dos investidores”. Veja Floyd Norris, “Goodbye to reforms of 2002”, New York Times, 5 de novembro de 2009, p. B1. 6 . Em audiência perante o Comitê dos Câmara dos Deputados sobre Supervisão e Reforma do Governo, relativo à “Crise Financeira e o Papel dos Reguladores Federais”, em 23 de outubro de 2008. Alan Greenspan disse: “Cometi um erro ao presumir que o interesse próprio das organizações, especialmente os bancos e outros, as tornava as mais capazes de proteger seus próprios acionistas e os interesses destes nas empresas”. 7. Greenspan nem ao menos via necessidade de leis antifraude. Brooksley Born, ex-presidente da Commodity Futures Trading Commission, relata que Greenspan argumentou que “não havia necessidade de uma lei contra a fraude porque, se um operador cometesse alguma fraude, o cliente perceberia e deixaria de fazer negócios com ele”. Citado em Roig-Franzia, “Credit crisis Cassandra”, op. cit. 8. O recebimento de pagamentos a despeito do desempenho cou exempli cado com os bônus dados pelos bancos em 2008, ano caracterizado por perdas sem precedentes e por bônus quase sem precedentes — algo como 33 bilhões de dólares. (Seis bancos entre nove pagaram mais em bônus do que receberam como lucro.) Veja Craig e Solomon, “Bank bonus tab: $33 billion”, op. cit. 9. Os executivos que defenderam as práticas enganosas de contabilidade a rmaram que os acionistas também se bene ciavam com as declarações de

lucros dos bancos. Mas se alguns acionistas ganharam, outros perderam, em particular os que con aram nos números divulgados e conservaram suas ações com base em informações falsas. Em algum momento a verdade apareceria, e quando isso acontecesse os preços das ações cairiam, por vezes (como no caso do Citibank), de forma drástica. 10. No caso dos nove maiores bancos, os lucros, do início de 2004 até meados de 2007, totalizaram 305 bilhões de dólares. Mas a partir de julho de 2007 esses bancos reduziram suas avaliações de empréstimos e outros ativos por uma soma ligeiramente superior. Veja Louise Story e Eric Dash, “Banks are likely to hold tight to bailout money”, New York Times, 16 de outubro de 2008, p. A1. 11 . Há limites aos abusos que podem ser cometidos pelas diretorias, propiciados por batalhas jurídicas e mudanças na sua própria composição, mas existe ampla literatura sobre assuntos econômicos que explica por que esses mecanismos têm e cácia limitada. 12 . Veja Stiglitz, Roaring Nineties, op. cit. 13. O respeitado ex-presidente da sec, Arthur Levitt, chegou à conclusão de que a falta de providências no caso das opções por ações (na Lei Sarbanes-Oxley) foi um dos seus erros cruciais. Veja Arthur Levitt, Take on the street: How to ght for your nancial future (Nova York: Random House, 2002). 14. Talvez os investidores não tenham feito advertências, em parte porque muitos também foram apanhados pela mesma “mentalidade da bolha” que tomou conta de Wall Street. Além disso, não há prioritariamente razões para acreditar-se que a maioria dos investidores compreenda melhor o risco do que os chamados peritos de Wall Street. Eles con avam em Wall Street. Será interessante observar quanto tempo tomará a restauração dessa con ança. 15. Uma das consequências não desejadas de um dispositivo de 1993 que impôs novo tributo sobre os pagamentos elevados que não estão relacionados ao desempenho pode ter sido a de fomentar a hipocrisia do pagamento por desempenho. O dispositivo não estabeleceu padrões adequados para avaliar se a remuneração efetivamente vinculava-se ao desempenho.

. O con ito sobre as declarações de opções por ações oferece um exemplo da disparidade dos interesses. Os acionistas gostariam de saber até que ponto o valor das suas ações é diluído pela emissão de opções por ações. Mas as corporações (ou seja, seus representantes) resistiram fortemente ao aperfeiçoamento dos requisitos das declarações — tornar as emissões mais transparentes — porque imaginaram que, se os acionistas entendessem a extensão da diluição do valor das suas ações, haveria resistências ao porte das recompensas. 17. A lei sobre o voto do acionista nas compensações executivas (Shareholder Vote on Executive Compensation Act) foi aprovada na Câmara dos Deputados e levada ao Senado em abril de 2007. Lá foi protelada e nunca se transformou em lei. Veja Tomoeh Murakami Tse, “ ‘Say-on-pay’ movement loses steam”, Washington Post, 6 de maio de 2008, p. D1. 18. Veja Jonathan Weil, “Lehman’s greatest value lies in lessons learned”, Bloomberg.com, 11 de junho de 2008, e Jeffrey McCracken e Alex Frangos, “Lehman considers spinoff of remnants”, Wall Street Journal, 14 de maio de 2009, p. C1. 19. O que importa são os incentivos dos dirigentes dos bancos, que, como vimos, não são alinhados com os interesses dos acionistas. Há fortes incentivos gerenciais em favor da falta de transparência. Veja Edlin e Stiglitz, “Discouraging rivals: Managerial rent-seeking and economic inefficiencies”, op. cit. 20. Há quinze anos, quei desapontado quando membros do governo Clinton (inclusive Robert Rubin) e do Congresso americano (inclusive o senador Joseph Lieberman) exerceram pressão política sobre a dita independente Junta de Padrões de Contabilidade Financeira (Financial Accounting Standards Board, fasb) para que não forçassem as rmas a relatar corretamente suas opções por ações. Mas o que aconteceu na crise atual é ainda mais espantoso, pois membros do Congresso ameaçaram vetar o parecer da fasb a menos que esta concordasse com a exigência dos bancos em favor da degradação dos padrões de contabilidade. 21 . A fasb votou a favor da aprovação da modi cação em 2 de abril de 2009. Veja Floyd Norris, “Banks get new leeway in valuing their assets”, 16

Financial Accounting Standards Board, Summary of Board Decisions, 2 de abril de 2009, disponível em http://www.fasb.org/action/sbd040209.shtml. 22 . A permissão de emprestar menos contra o valor do capital dos bancos durante os bons tempos e de emprestar mais durante os tempos difíceis se chama padrão anticíclico de adequação de capital. Por vezes, essas regulações são denominadas macroprudenciais. 23. A contabilidade de marcação a mercado poderia, nesta circunstância, dar uma ideia do retorno (médio) esperado para os acionistas, reconhecendo que, em média, eles estarão pagando aos credores menos do que haviam prometido. 24. Outros problemas de contabilidade podem distorcer o comportamento. Depois da crise da poupança e crédito, exigiu-se, naturalmente, que os bancos passassem a reter mais capital (algo que está sucedendo de novo), mas como os títulos governamentais de longo prazo eram considerados seguros, exigia-se menos capital se os bancos tivessem esses títulos. Na época, esses títulos de longo prazo produziram um retorno bem mais alto do que a taxa de depósito ou os títulos governamentais de curto prazo, e os bancos podiam registrar esses retornos mais altos como lucro, ainda que tais retornos re etissem uma expectativa de queda nos preços dos títulos (uma perda de capital). Essa contabilidade favorável induziu uma mudança nas aplicações dos bancos em favor dos títulos governamentais de longo prazo e em detrimento dos empréstimos, o que contribuiu para a desaceleração de 1991. Veja Stiglitz, Roaring Nineties, op. cit. 25. Na verdade, os padrões mais antigos (antes de abril de 2009) não eram tão duros. Não forçavam os bancos a fazer a marcação a mercado de todos os ativos, mas sim, como observamos, apenas de alguns ativos “prejudicados”, empréstimos que estavam em juízo. Isso fazia sentido — muito mais do que dar aos bancos total liberdade para pensar que, se os retivessem por tempo su ciente, os ativos realmente se recuperariam. A verdade essencial era que tudo indicava que mais hipotecas iriam passar por di culdades — a menos que houvesse um resgate gigantesco. O programa de hipotecas do governo ajudou, mas não o su ciente para justi car o novo sistema de marcação pela esperança.

. Os serviços hipotecários, responsáveis pela administração da reestruturação, distorceram especialmente os incentivos. Ao adiar a cobrança judicial, podem acumular para si mesmos algumas taxas, dinheiro que, em última análise, corre por conta do detentor da primeira hipoteca. Veja a discussão no capítulo 4. 27. Há outros problemas: o não uso da contabilidade de marcação a mercado expõe a economia a riscos inauditos. A falta de marcação a mercado constitui um incentivo para que todos os bancos façam apostas. Suponhamos que um banco possa manter registros de ativos aos preços de compra até que os venda, quando então o registro passaria a ser o do preço da venda. O banco teria um incentivo para comprar ativos de alto risco, cujos preços subiriam em alguns casos e baixariam em outros. Seria fácil, então, distorcer arti cialmente o valor aparente do seu ativo, vendendo os que subiram de preço e conservando o mais possível os que baixaram. Se o banco recebe a instrução de que tem de marcar a mercado apenas os ativos que são mais transacionados, então tem um incentivo para comprar ativos menos transacionados, o que lhe permite mais arbítrio para fazer uma contabilidade não transparente. Não se trata apenas de que o próprio valor registrado seja uma medida distorcida do valor real, mas sim que, em consequência disso, os sistemas falhos de contabilidade distorcem os empréstimos e os investimentos, encorajando a tomada de riscos excessivos e a compra de ativos de difícil valoração. 28. U. S. Government Accountability Office (gao), “Cayman Islands: Business and tax advantages attract us persons and enforcement challenges exist”, Report to the Chairman and Ranking Member, Committee on Finance, U. S. Senate, gao-08-778, julho de 2008. 29. Tem havido progressos na contenção do segredo bancário em centros bancários “offshore”, e as reuniões mais recentes do G-20 sugerem que pode haver novos avanços. Em uma questão crucial — o intercâmbio automático de informações —, muito pouco se fez. O foco tem se concentrado na evasão scal, e pouca atenção tem sido dada a outros usos funestos do segredo bancário (como paraísos scais para dinheiro roubado por ditadores corruptos). Além disso, embora o foco do segredo bancário esteja nas ilhas do exterior, o recente índice do segredo bancário elaborado pela Tax Justice Network (Rede de Justiça Fiscal) assinala que os Estados 26

Unidos, a Grã-Bretanha e Cingapura estão entre os principais violadores. Veja Michael Peel, “Leading economies blamed for scal secrecy”, Financial Times online, 30 de outubro de 2009, e Tax Justice Network, “Financial Secrecy Index”, 2009, disponível em http://www. nancialsecrecyindex.com. 30. A impossibilidade de que o encarregado do planejamento central realize esses cálculos foi um dos principais temas do meu livro Whither socialism (Cambridge, ma: mit Press, 1994), escrito na época do colapso do sistema soviético. 31 . Como presidente do Conselho de Assessores Econômicos de 1995 a 1997, opus-me vigorosamente à revogação da Lei Glass-Steagall. Como economista, eu certamente tinha um alto grau de con ança — con ança no poder dos incentivos econômicos. Assinalei que, se os defensores da revogação realmente construíssem uma Muralha da China, a maior parte das “economias de escopo”, ou seja, os alegados benefícios propiciados pela sinergia entre os bancos comerciais e os de investimento, se perderiam. 32 . Federal Deposit Insurance Corporation, Summary of Deposits, 15 de outubro de 2009, disponível em http://www2.fdic.gov/sod/sodSummary.asp?barItem=3. 33. Alguns, como o ex-funcionário da sec Lee Pickard, colocam a modi cação feita em 2004 na regra de 1975 no centro da derrocada. A sec argumentou que sua nova regra “reforçava a supervisão”. Retrospectivamente, dados os problemas ocorridos em tantos bancos de investimento, o argumento não parece persuasivo. Veja Julie Satow, “Ex-sec official blames agency for blow-up of broker-dealers”, New York Sun online, 18 de setembro de 2008. Para a posição oposta, veja o discurso de Erik R. Sirri, diretor da divisão da sec para o Comércio e os Mercados (Division of Trading and Markets), em 9 de abril de 2009, disponível em http://www.sec.gov/news/speech/2009/spch040909ers.htm. 34. Alguns defendem uma visão radical a esse respeito, denominada “estreitamento” (“narrow banking”), segundo a qual as instituições depositárias só deveriam ser autorizadas a investir, digamos, em títulos do Tesouro. As funções dos bancos comerciais normais — como emprestar para pequenas e médias empresas — são essenciais para o bom funcionamento de uma economia de mercado. Acredito que existam sinergias naturais que

decorrem da combinação desses empréstimos com o sistema de pagamentos. 35. Discurso de 17 de junho de 2009, op. cit. 36 . Grupo dos 30, Financial reform: A framework for nancial stability, 15 de janeiro de 2009, disponível em http://www.group30.org/pubs/recommendations.pdf. 37. Não faz sentido forçar os bancos que vêm cumprindo bem seu papel a pagar os custos das perdas dos bancos grandes demais para falir. Não é justo e não é e ciente. Com títulos garantidos pela Federal Deposit Insurance Corporation (fdic), todos os depositantes, inclusive os que puseram seu dinheiro em bancos bons, se veem forçados, com efeito, a arcar, no mínimo, com alguns dos custos dos erros dos bancos que se dedicaram a tomar riscos excessivos. Os bancos grandes demais para falir devem arcar com esses custos, por exemplo, sob a forma de um imposto especial sobre os lucros, a distribuição de dividendos, os bônus e o pagamento de juros sobre os títulos. (Se pudermos nos comprometer, com su ciente credibilidade, a não resgatar os credores, estes deveriam car isentos. Dada a situação atual, isso não deveria acontecer.) No momento da impressão deste livro, os grandes bancos resistem à imposição de novos encargos. Alegam que se comportarão bem, que não precisarão pedir mais ajuda ao governo e que não seria justo fazê-los pagar pelos erros de quem não administra bem os riscos. Uma proposta é impor encargos aos bancos que precisam ser resgatados. Mas a questão é que, em geral, no momento em que ocorrem os resgates, o governo tem de fazer aportes de dinheiro. É difícil que haja algum dinheiro sobrando para que o governo possa tomá-lo. Isso se vê com as perdas que o governo sofrerá com os resgates atuais. Como já vimos, o governo tem tido de socorrer os bancos repetidamente, e até que imponha regulações fortes o bastante para que as falências não se repitam, é preciso que haja encargos contra os bancos grandes demais para falir. Isso é, evidentemente, parte do custo de gerir um sistema nanceiro. A justiça e a e ciência requerem que os bancos — e não o contribuinte comum — arquem com os custos. 38. A ninguém deve ser permitido ter alguma atividade fora do balanço. Mais adiante neste capítulo, descrevo um produto particularmente arriscado — os seguros de crédito — e como devem ser regulados.

Propostas de “testamento em vida”, planos concretos sobre como as transações devem desenredar-se e como os bancos devem ser fechados, são movimentos na direção correta, mas é pouco provável que sejam su cientes: a situação pode mudar radicalmente em poucas horas e um plano que parecia bom antes da crise, pode deixar de ser durante a crise. 40. Este livro não pode entrar nos detalhes de todos os complexos instrumentos que o setor nanceiro criou — e sobre o que deu errado com eles. Um produto nanceiro que tem recebido atenção considerável são os papéis arbitrados em leilão (auction-rated securities), nos quais a taxa de juros a ser paga sobre os papéis é determinada por leilão a cada semana. Mas no começo de 2008, os leilões pararam de funcionar e o mercado, que era de 330 bilhões de dólares, congelou. Embora exista ampla comprovação de práticas mal-intencionadas por parte das rmas de Wall Street que os venderam, a obtenção de reparação através do sistema jurídico, especialmente no caso de ações coletivas, é, na melhor das hipóteses, lenta e cara, o que deixa as perdas nas costas dos investidores individuais. Veja Gretchen Morgenson, “A way out of the deep freeze”, New York Times, 8 de novembro de 2009, p. B1. 41 . Como já assinalei, isso não é válido para a execução de dívidas hipotecárias. As companhias de seguro com frequência excluem esses tipos de riscos correlatos. 42 . Existe outra diferença fundamental entre a compra de um seguro com cobertura para morte de uma pessoa e um seguro com cobertura para morte de uma empresa: a proporção da assimetria das informações. No caso do seguro de vida pessoal, tanto a companhia seguradora quanto o segurado têm acesso às mesmas informações sobre a expectativa de vida. A pessoa pode ter uma ligeira vantagem informativa por conhecer, talvez, se tem hábitos que representam riscos que podem diminuir a expectativa de vida. No caso da morte de uma rma, esta provavelmente terá informações muito melhores sobre as perspectivas dos seus negócios do que a companhia de seguros e, portanto, não comprará uma apólice cujo custo re ita uma estimativa exagerada do risco de falência. Esse é o problema da seleção negativa. 43. Como em tantas outras coisas que os mercados nanceiros zeram, suas tentativas de administrar o risco não só fracassaram como foram, por 39.

vezes, contraproducentes. Com efeito, ao criar uma rede de con itos de interesses e de emaranhamentos legais, aumentaram os riscos. Quando o governo dava dinheiro para que um banco comprasse outro, na verdade podia estar salvando tanto o primeiro banco quanto o segundo, se o primeiro banco tivesse de fazer grandes pagamentos a terceiros caso o segundo banco falisse. 44. Os mercados nanceiros — e os reguladores do governo — deveriam ter consciência dos riscos, que eram manifestos na crise do Extremo Oriente da década passada. Os bancos coreanos pensavam que tinham administrado boa parte dos riscos que enfrentavam, por exemplo, no tema das mudanças nas taxas de câmbio. Pensavam haver conseguido uma cobertura, como se diz, contra esses riscos, através de uma rma em Hong Kong. Mas a companhia da qual eles haviam comprado o seguro faliu e os riscos voltaram a cair sobre eles. 45. Pode-se avaliar o risco de uma inadimplência implicitamente, a partir do preço no mercado de títulos de dívidas. Se os mercados de capital fossem tão e cientes quanto dizem seus defensores, pouca necessidade haveria para seguros de crédito e seria difícil encontrar justi cativa para os bilhões de dólares que os seus emissores ganharam cobrando taxas. O que o mercado dos seguros de crédito faz é permitir que os que querem se concentrar na avaliação dos riscos possam fazê-lo, sem estar premidos pela necessidade de providenciar os fundos. Isso é potencialmente importante por si só, mas, como vimos, vem acompanhado de riscos consideráveis, especialmente por provocar a especulação sobre as diferenças na avaliação dos riscos. 46 . Os americanos desenvolveram tal descon ança com relação à carne produzida no país depois da publicação das graves acusações de Upton Sinclair contra os currais de gado dos Estados Unidos na sua obra clássica de 1906, e jungle, que os produtores imploraram ao governo que zesse inspeções para avaliar a qualidade da carne. As pessoas não acreditavam nos certi cados emitidos por entidades privadas. Assim também é impossível para um cidadão comum avaliar a situação nanceira de um banco e saber se este é seguro o su ciente para nele depositar seu dinheiro. E ele tem boas razões para não acreditar em nenhuma rma do setor privado que dê notas aos bancos em função da sua situação nanceira —

sobretudo quando se trata de rmas pagas pelos próprios bancos, como é o caso das agências de classi cação de risco. Esse tipo de informação é o que os economistas denominam um bem público, o que ressalta a importância da ação governamental. 47. O governo Obama propôs a criação de uma comissão para os produtos nanceiros. Na ocasião em que este livro foi para a impressão, o Congresso ainda não a havia aprovado, mas a Comissão de Serviços Financeiros da Câmara já havia cortado dispositivos cruciais e isentado a vasta maioria dos bancos. 48. Em 1980, 56% dos adultos americanos tinham pelo menos um cartão de crédito. Em 2001, esse número havia subido para 76%. “Debt nation”, News Hour with Jim Lehrer, pbs, 18 de abril de 2001, disponível em http://www.pbs.org/newshour/extra/features/janjune01/credit_debt.html. 49. Visa e MasterCard são diferentes de outros cartões de crédito (como American Express e Diners Club) por pertencerem efetivamente a bancos. Seu uso é tão amplo que as lojas hesitam em não aceitá-los, para não perder clientes. 50. Evidentemente, os comerciantes podem transferir o custo aos clientes e é isso o que fazem. Mas esse custo é pago por todos os clientes, qualquer que seja o meio de pagamento empregado — dinheiro vivo, cheque, cartão de débito, cartão de crédito comum ou cartão de crédito especial. O mercado de mecanismos de pagamento (a escolha entre as alternativas) está totalmente distorcido. 51. A ideia-chave por trás de um sistema de pagamentos e ciente é de que a e cácia requer a separação entre a função de pagamento e a função de crédito, para que os indivíduos paguem separadamente por cada uma delas. Os que desejam fazer uma transação com custos mais baixos devem dispor dessa opção, assim como deveria haver uma maneira e ciente e barata de “agregar” a opção do crédito. O custo de uma transação de puro “débito” (que combine os custos do consumidor e os do comerciante) seria apenas uma fração do que lhes é cobrado hoje. A Austrália fez recentemente uma reforma modesta que permitiu aos comerciantes impor uma taxa que re ete o custo que o cartão representa para eles e restringe a aplicação das taxas que exploram os comerciantes. Os benefícios foram substancialmente iguais aos esperados. Veja Reserve Bank

of Australia, nota de imprensa, “Reform of credit card schemes in Australia”, 27 de agosto de 2002, disponível em http://www.rba.gov.au/MediaReleases/2002/mr_02_15.html. Para um exame dos benefícios, veja Reserve Bank of Australia, “Reform of Australia’s Payments System: Conclusions of the 2007/2008 Review”, Sydney, Austrália, setembro de 2008. 52. World Bank, World Development Indicators 2008, gpd per capita, Purchasing Power Parity (valores ajustados em função das diferenças de custo de vida), edição revista, Washington, dc, 16 de abril de 2008. 53. Apenas 24 países estabeleceram um limite máximo para as taxas em trocas de cheques por dinheiro. Veja Matt Fellowes e Mia Mabanta, “Banking on wealth: America’s new retail banking infrastructure and its wealth-building potential”, Metropolitan Policy Program at Brookings Institute, Washington, dc, janeiro de 2008. 54. Para forçar os bancos a fazer empréstimos nessas áreas malservidas, o Congresso teve de aprovar a Lei do Reinvestimento Comunitário (Community Reinvestment Act). Uma vez forçados a emprestar, os bancos viram que isso podia ser lucrativo — com índices de inadimplência comparáveis — como observado no capítulo 1 — aos que ocorrem em outras áreas em que fazem empréstimos. 55. Veja Congressional Budget Office, “Cost Estimate: H.R. 3221 Student Aid and Fiscal Responsibility Act of 2009”, 24 de julho de 2009, disponível em http://www.http://www.cbo.gov/pdocs/104xx/doc10479/hr3221.pdf. 56. Karen W. Arenson, “Columbia to pay $1.1 million to state fund in loan scandal”, New York Times, 1o de junho de 2007, p. B1. 57. Há ampla literatura, na ciência política e na econômica, que descreve como os reguladores são frequentemente “capturados” pelos que devem regular. No caso da autorregulação, a captura é óbvia e, como vimos no capítulo anterior, a regulação do Banco Central de Nova York se aproxima muito da autorregulação. Mas o problema tem uma dimensão relativa à atitude mental que é tão importante quanto qualquer outra (“captura cognitiva”). O que se espera dos reguladores é que eles pensem de maneira diferente dos que são regulados por eles. O que se espera é que pensem no que pode dar errado. O que se espera é que comecem a agir quando as coisas começam a perder o rumo — especialmente porque deveriam saber

que são outros (sobretudo os contribuintes) que terão que pagar pelos pratos quebrados. 58. A implementação pode ser assegurada tanto por meios privados (através de ações civis) quanto por meios públicos, através de ações nos níveis federal e estadual. No nível federal, a implementação cabe ao Departamento da Justiça e à Comissão Federal de Comércio (Federal Trade Commission). 59. Os mercados nanceiros dispõem de muitas outras maneiras de resistir: poucos anos antes, alguns economistas apresentaram uma maneira melhor de vender títulos do Tesouro: através de leilões, que baixariam os custos das transações, tornariam as vendas mais transparentes e permitiriam que o governo obtivesse melhores resultados na venda dos seus títulos. Mas Wall Street resistiu novamente e a razão era óbvia: Wall Street não queria maximizar o rendimento do governo, mas sim seu próprio rendimento — o que podia fazer melhor com o velho sistema não transparente.     7. a nova ordem capitalista

  Esses números re etem a relação entre a dívida pública e o pib. Os cenários mais realistas fornecidos pelo departamento do Congresso encarregado do Orçamento indicam que a estimativa de evolução da relação dívida-pib é de que esta alcance 87% até 2019. Caso se considere a dívida como um todo (e não apenas a dívida pública), o cenário otimista do governo Obama prevê que a relação dívida-pib em 2019 supere os 100%. Veja Office of Management and Budget, “Budget of the us Government, Fiscal Year 2010, Updated Summary Tables, maio de 2009”; Budget of the United States Government: Historical Tables Fiscal Year 2010, “Table 7.1— Federal Debt at the End of Year: 1940-2014”, Washington, dc, disponível em http://www.gpoaccess.gov/USbudget/fy10/index.html; e Congressional Budget Office, “e Long-Term Budget Outlook”, junho de 2009, disponível em http://www.cbo.gov/pdocs/102xx/doc10297/06-25LTBO.pdf. 2. De 1950 a 1973, a renda per capita média aumentou 59% e a renda per capita mediana — o nível de renda que separa a população do país em 1.

metades — aumentou 41%. U. S. Census Bureau, Historical Income TablesPeople, “Table P-4. Race and Hispanic Origin of People (Both Sexes Combined) by Median and Mean Income: 1947 to 2007”, disponível em http://www.census.gov/hhes/www/income/histinc/p04.html. 3. Veja Julia B. Isaacs, “Economic mobility of men and women”, em R. Haskins, J. Isaacs e I. Sawhill (orgs.), Getting ahead or losing ground: Economic mobility in America (Washington, dc: Brookings Institution, 2008). 4. Carmen DeNavas-Walt, Bernadette D. Proctor e Jessica C. Smith, “Income, poverty, and health insurance coverage in the United States: 2008”, U. S. Census Bureau, setembro de 2009, disponível em http://www.census.gov/prod/2009pubs/p60-236.pdf. 5. Roy Walmsley, “World Prison Population List. 7th edition”, International Centre for Prison Studies, School of Law, King’s College London, 2007. 6. Os estudantes de quinze anos de idade nos Estados Unidos obtiveram índices menores do que a média dos membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (ocde) na escala de conhecimento cientí co (22 dos 57 países apresentaram índices melhores) e na escala de conhecimentos matemáticos (31 países apresentaram índices melhores e apenas vinte apresentaram índices menores). Os Estados Unidos apresentaram porcentagens mais altas de estudantes cujos índices estavam abaixo do nível mínimo (nível 1) ou no nível mínimo do que a média da ocde em conhecimento cientí co. Baldi, Jin, Skewer, Green e Herget, Highlights from PISA 2006, op. cit. 7. A geração do baby boom consiste em 79 milhões de americanos que nasceram entre 1946 e 1964. O número de pessoas nos Estados Unidos com idade igual ou superior a 65 anos deve aumentar mais de 50% até 2030, passando de 13% da população em 2010 para 20% em 2030 e mantendo-se acima dos 20% pelo menos por várias décadas mais. Depois de 2010, o envelhecimento da geração do baby boom provocará um aumento drástico nos gastos do governo: a taxa anual de crescimento do gasto com a Seguridade Social (Social Security) deve subir de 5,1% em 2008 para 6,4% em 2018. O gasto com os programas de saúde Medicare e Medicaid aumentará ainda mais rapidamente, na faixa de 7% a 8% ao ano.

O gasto total com Medicare e Medicaid deve aumentar mais de 100% entre 2009 e 2018, enquanto o pib deve aumentar com a metade da rapidez. U. S. Census Bureau, Population Division, “National Population Projections — Projections of the Population by Selected Age Groups and Sex for the United States: 2010 to 2050”, 14 de agosto de 2008, e Peter Orszag, “e Budget and Economic Outlook: Fiscal Years 2008 to 2018”, discurso perante o Comitê do Orçamento, Senado dos Estados Unidos, Washington, dc, 24 de janeiro de 2008. 8. Os gastos com energia eram de 8,8% do pib em 2006. Veja Energy Information Agency, “Annual Energy Review 2008, Table 1.5: Energy Consumption, Expenditures, and Emissions Indicators, 1949-2008”, 26 de junho de 2009, disponível em http://www.eia.doe.gov/emeu/aer/overview.html. Entre as maiores empresas dos Estados Unidos estão ExxonMobil (no 1), Chevron (3), Conoco- -Phillips (4) e Valero Energy (10). “Fortune 500”, Fortune Magazine online, 2009, disponível em http://money.cnn.com/magazines/fortune/fortune500/. 9. Veja Bureau of Economic Analysis, National Income and Product Accounts Table, “Table 6.16D. Corporate Pro ts by Industry”, disponível em http://www.bea.gov/National/nipaweb/SelectTable.asp. Além desses lucros altos, uma soma altíssima foi paga em bônus (no caso de alguns bancos, as somas são quase iguais). 10. International Labour Organization, “Global Employment Trends Update, May, 2009”, International Labour Office, Genebra, Suíça. 2009, disponível em http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/--dcomm/documents/publication/wcms_106504.pdf. 11. O dé cit atual em conta-corrente foi de 804 bilhões de dólares em 2006. Desde então baixou ligeiramente, para 727 e 706 bilhões de dólares em 2007 e 2008, respectivamente. Bureau of Economic Analysis, U. S. International Transactions Accounts Data, Table 1, 14 de setembro de 2009, disponível em http://www.bea.gov/international/xls/table1.xls. 12. As unidades familiares passaram de dívidas líquidas com empréstimos de mais de 1 trilhão de dólares em 2006 para uma poupança de 279 bilhões de dólares no último trimestre de 2008. Enquanto isso, no mesmo período, os empréstimos governamentais subiram de 335 bilhões de dólares para

perto de 2,2 trilhões de dólares. Federal Reserve, Flow of Funds Accounts of the United States, Table F.1, Washington, dc, 12 de março de 2009, disponível em http://www.federalreserve.gov/releases/z1/Current/data.htm. 13. Tratar de fazer a China consumir mais é um erro de orientação também em um outro sentido: mesmo que a China aumentasse seu padrão de consumo, isso provavelmente teria pouca repercussão sobre suas importações provenientes dos Estados Unidos. A prioridade maior deveria ser atribuída aos serviços domésticos, como educação e saúde. A falácia de pensar que o aumento do consumo na China resolveria com facilidade o enorme dé cit comercial dos Estados Unidos equivale a pensar que a valorização da sua moeda teria o mesmo efeito. Os Estados Unidos não iriam começar a produzir têxteis e roupas — simplesmente iriam transferir as compras da China para outros países em desenvolvimento. O problema dos desequilíbrios globais poderia agravar-se: enquanto a China reempresta seu saldo comercial para os Estados Unidos, outros países em desenvolvimento talvez preferissem não fazê-lo. 14. Os efeitos nos países desenvolvidos são claros: os trabalhadores não especializados precisam competir com os salários baixos do resto do mundo. Veja Stiglitz, Making globalization work, op. cit. 15. Por exemplo, um compromisso internacional em favor da imposição de um preço alto para as emissões de carbono (digamos, de oitenta dólares por tonelada), agora e no futuro, traria grandes incentivos para que empresas e famílias façam os investimentos necessários ao aumento da qualidade dos gastos com energia. 16. Os níveis da renda salarial do 1% mais rico e dos 5% mais ricos da população já haviam superado os recordes do nal da década de 1980 e alcançaram novas marcas absolutas em 1998. omas Piketty e Emmanuel Saez, “Income inequality in the United States, 1913-1998”, Quarterly Journal of Economics, vol. 118, no 1 (fevereiro de 2003), pp. 1-39, gura ix. 17. Em 2006, a China ultrapassou os Estados Unidos como maior emissor. Veja Elisabeth Rosenthal, “China increases lead as biggest carbon dioxide emitter”, New York Times, 14 de junho de 2008, p. A5. 18. Veja Wallace E. Tyner, “e us ethanol and biofuels boom: Its origins, current status, and future prospects”, BioScience, vol. 58, no 7 (julho/agosto

de 2008), pp. 646-53. Há amplo consenso sobre que o etanol com base em milho traz pouco ou nenhum benefício ambiental. Os críticos assinalam também que o subsídio ao preço do etanol pode provocar aumento dos preços dos grãos alimentares. 19. Cuba reduziu sua taxa de mortalidade infantil, que já era baixa, para 7,2 mortes por cada mil nascimentos vivos, o que é igual à média dos Estados Unidos e metade da taxa vigente em Washington, dc. Molly Moore, “e hemorrhaging of Cuba’s health care; doctors without data, patients without drugs: U. S. embargo, economic crisis cripple a showcase system”, Washington Post, 23 de fevereiro de 1998, p. A12. 20. Os melhores estudantes de quinze anos de idade da Coreia, por exemplo, se saíram bem melhor do que a média da ocde no teste pisa daquela organização, enquanto os estudantes americanos desse mesmo nível caram abaixo da média da ocde. Organisation for Economic Cooperation and Development, “oecd brie ng note for the United States”, PISA 2006: Science competencies for tomorrow’s world, 4 de dezembro de 2007, disponível em http://www.pisa.oecd.org/dataoecd/16/28/39722597.pdf. Veja também a nota 6 deste capítulo. 21. Veja Mamta Murthi, J. Michael Orszag e Peter R. Orszag, “e charge ratio on individual accounts: Lessons from the U. K. experience”, Birkbeck College Working Paper 99-2, University of London, março de 1999. 22. Veja Yao Li, John Whalley, Shunming Zhang e Xiliang Zhao, “e higher educational transformation of China and its global implications”, National Bureau of Economic Research Working Paper 13849, Cambridge, ma, março de 2008, disponível em http://www.nber.org/papers/w13849. 23. O “Índice de Desenvolvimento Humano” (idh) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento combina o nível da renda per capita com os de educação e saúde. De acordo com o Relatório sobre Desenvolvimento Humano de 2009, a Suécia cou em sétimo lugar em termos de idh e os Estados Unidos, em décimo terceiro. 24. Herbert Simon, “Organizations and markets”, Journal of Economic Perspectives, vol. 5, no 2 (1991), p. 28. 25. Em ambas as formas de organização, a direção da rma pode ser vista como um bem público, no sentido de que todos os acionistas se bene ciam

se a rma for bem dirigida. Em ambas as formas de organização, existe o risco causado pela falta de vigilância sobre esse bem público. Talvez porque o problema seja mais óbvio com relação às empresas geridas pelo governo, em muitos casos se criaram arranjos institucionais para lidar com o problema, o que muitas vezes previne a ocorrência dos abusos piores. 26. As escolas com ns lucrativos, que se concentram no treinamento vocacional, têm se distinguido em práticas enganosas. Os estudantes que se formam nessas escolas estão muito desapontados e têm evitado pagar os empréstimos educacionais que tomaram. O governo Clinton tentou desquali car escolas que apresentam índices altos de inadimplência no pagamento desses empréstimos, mas as escolas privadas zeram lobby contra essa iniciativa. Sabem que, sem acesso aos empréstimos, que são garantidos pelo governo, não têm como se manter. 27. Veja Environmental Working Group, “Farm Subsidy Database”, disponível em http://farm.ewg.org/farm/progdetail.php? ps=00000&yr=2006&progcode=cotton&page=conc. Em agosto de 2009, um painel de apelação da Organização Mundial do Comércio decidiu que o Brasil podia impor barreiras comerciais retaliatórias no valor de 800 milhões de dólares contra os Estados Unidos por suas violações. Veja World Trade Organization, “wto Issues Arbitration Reports in us-Brazil Cotton Dispute”, 31 de agosto de 2009, disponível em http://www.wto.org/english/news_e/news09_e/267arb_e.htm. 28. “Statement of Senator McCain on the Energy Bill”, 19 de novembro de 2003, http://mccain.senate.gov/public/index.cfm? FuseAction=PressOffice.Speeches&ContentRecord_id=9259EB94-5344435F-B4D8-37F7BF6DAA77. 29. Quando eu era membro e presidente do Conselho de Assessores Econômicos, compilamos uma lista de programas de bem-estar social para as corporações e a comparamos com outras compilações, inclusive feitas por instituições conservadoras. É interessante observar que a assistência aos bancos através do fmi, que tem um papel importante no salvamento de bancos, estava no topo ou no alto de muitas listas. Já era assim mesmo antes de o fmi proporcionar os grandes resgates bancários na Ásia, na Rússia e na América Latina.

. Se a razão da subvalorização dos preços do risco tem a ver com incentivos distorcidos, o governo pode tratar de afetar a estrutura dos incentivos, com o que pode afetar, indiretamente, a preci cação do risco. 31 . É por isso que tentar fazer que o conhecimento seja produzido pelo mercado pode ser muito ine caz. Em alguns casos é possível obter resultados (por exemplo, através do sistema de patentes), mas os custos do uso dos mecanismos de mercado podem ser altos para a sociedade. 32 . Os economistas dedicaram grande atenção ao problema da inexistência de alguns importantes mercados de seguros. Isso tem muito a ver com problemas de informação (sobretudo assimetrias de informação). Veja M. Rothschild e J. E. Stiglitz, “Equilibrium in competitive insurance markets: An essay on the economics of imperfect information”, Quarterly Journal of Economics, vol. 90, no 4 (novembro de 1976), pp. 629-49. 33. É longa a lista de comportamentos de exploração por parte das corporações. Uma companhia de seguros vendeu apólices de seguro de vida contra doenças temíveis. Sabia que seus vendedores, ao descrever a situação de viúvas que caram desprotegidas pela morte dos maridos nessas circunstâncias, conseguiam vender apólices baratas — mesmo quando o risco era desprezível. O ex-diretor da Food and Drug Administration do governo dos Estados Unidos, David Kessler, dá exemplos relativos à indústria de alimentos e bebidas. Veja David Kessler, e end of overeating: Taking control of the insatiable North American appetite (Emmaus, pa: Rodale, 2009) e A question of intent: A great American battle with a deadly industry (Nova York: PublicAffairs, 2001). 34. Adam Smith reconhecia os perigos, e as modernas leis antitruste são formuladas com o objetivo de manter um mercado competitivo e impedir práticas anticompetitivas e abusivas. 35. Claude Henry, Patent fever in developed countries and its fallout on the developing world, Prisme No 6 (Paris: Centre Cournot for Economic Studies, May 2005) e Andrew Pollack, “Patent on test for cancer is revoked by Europe”, New York Times, 19 de maio de 2004, p. C3. 36. O sistema de patentes pode até afetar negativamente o ritmo das inovações. Provoca, por exemplo, o aumento do preço do insumo mais importante das pesquisas (o conhecimento) e pode criar um emaranhamento de patentes em que todos os inovadores se sentem 30

paralisados pelas patentes alheias. Veja o capítulo 4 de Stiglitz, Making globalization work, op. cit. 37. Bureau of Economic Analysis, Industry Economic Accounts, gpd by Industry Accounts, “Value Added by Industry as a Percentage of gpd”, 28 de abril de 2009, disponível em http://www.bea.gov/industry/xls/GDPbyInd_VA_NAICS_1998-2008.xls. 38. Se o governo requeresse que as emissoras de rádio e televisão concedessem horários gratuitos para os candidatos, as necessidades de nanciamento de campanha seriam reduzidas. O sistema australiano de voto obrigatório reduz os gastos com o estímulo ao comparecimento do eleitor. 39. Dados da Comissão Eleitoral Federal, compilados pelo Center for Responsive Politics, revelaram que comitês de ação política e empregados de rmas de investimento e bolsa doaram 156 milhões de dólares em contribuições políticas no ano eleitoral de 2008. Goldman Sachs, Citigroup, JP Morgan Chase, Bank of America e Credit Suisse doaram 22,7 milhões de dólares e gastaram mais de 25 milhões de dólares em conjunto em trabalhos de lobby naquele período. Center for Responsive Politics, “Lobbying Database”, disponível em http:// www.opensecrets.org/lobby/index.php e “HeavyHitters”, disponível em http://www.opensecrets.org/orgs/list.php?order=A. O deputado Collin C. Peterson, presidente do Comitê de Agricultura da Câmara, que normalmente supervisiona os mercados de futuros (porque os mercados de futuros se originaram no comércio de produtos agrícolas), diz com franqueza: “Os bancos mandam aqui. Vou dizer qual é o problema — eles doam três vezes mais dinheiro do que o segundo maior grupo”. Gretchen Morgenson e Don Van Natta Jr., “Even in crisis, banks dig in for battle against regulation”, New York Times, 1o de junho de 2009, p. A1.     8. da recuperao prosperidade global

 

A ideia de realizar o encontro do G-20 foi do presidente Nicolas Sarkozy, da França, que esperava que a reunião se desse em Nova York, sob os auspícios da onu. O presidente George W. Bush, pelo jeito percebendo 1.

que se não agisse depressa a Europa caria com a iniciativa, convocou o encontro para Washington, dc. 2. International Monetary Fund, World economic outlook, Washington, dc, abril de 2008, p. 24. 3. Estes são exemplos de externalidades que abrangem os diversos países. Como tenho assinalado reiteradamente, as externalidades são importantes e ubíquas, e quando são ubíquas, os mercados não funcionam bem por si sós. 4. O ministro da Defesa da Irlanda disse simplesmente o seguinte: “Do ponto de vista da Irlanda, o melhor tipo de incentivo scal é o que está sendo posto em prática pelos nossos parceiros comerciais. Em última análise, os estímulos aumentarão a demanda pelas nossas exportações sem custos para nós. O que devemos fazer é assegurar que estejamos bem posicionados para aproveitar as oportunidades que resultarão das ações dos nossos parceiros comerciais”. Willie O’Dea, ministro da Defesa, “Why our response to crisis isn’t wrong”, Sunday Independent (Irlanda), 4 de janeiro de 2009. 5. Para uma discussão geral sobre esses dispositivos, assim como sobre o efeito potencialmente distorsivo sobre o comércio, causado pela assistência dada aos bancos e a outras empresas durante a crise, veja Trade Policy Review Body, “Overview of Developments in the International Trading Environment—Annual Report by the Director-General”, World Trade Organization, wt/tpr/ov/12, 18 de novembro de 2009, disponível em http://www.wto.org/english/thewto_e/minist_e/min09_e/official_doc_e.ht m. 6. Elisa Gamberoni e Richard Newfarmer, “Trade protection: Incipient but worrisome trends”, Trade Notes no 37, International Trade Department, World Bank, Washington, dc, 2 de março de 2009. 7. A liberalização do mercado de capitais permitiu que o dinheiro errante (“hot money”) que podia entrar rapidamente em um país também pudesse deixá- -lo com igual rapidez, causando a devastação com esses movimentos, e foi um favorecedor da crise do Extremo Oriente de 1997-8. Eu fora particularmente crítico da liberalização do mercado de capitais porque, enquanto os custos — os riscos enormes — eram claros, não havia benefícios aparentes. Não se podem construir fábricas com dinheiro que

pode entrar e sair da noite para o dia. Com o passar do tempo, o fmi acabou revertendo sua posição quando seu economista- -chefe, Ken Rogoff, reconheceu que, pelo menos em muitos casos, havia poucos sinais de que a liberalização do mercado de capitais tivesse levado a um maior crescimento, mas havia algum indício de que provocara maior instabilidade em certos países. Veja Prasad, Rogoff, Wei e Kose, “Effects of nancial globalization on developing countries”, op. cit. Um dos principais argumentos favoráveis à liberalização do mercado nanceiro, para permitir que os bancos estrangeiros operassem livremente dentro das fronteiras de um país, era de que os bancos americanos poderiam “ensinar” aos países em desenvolvimento as boas práticas bancárias, produzindo mais crescimento e mais estabilidade. Não foi isso o que ocorreu. Ironicamente, até a chegada da era da liberalização, os Estados Unidos haviam resistido à própria noção de ter bancos nacionais que se estendessem por todo o país. Havia o temor de que os grandes bancos de Nova York e outros centros nanceiros absorvessem toda a poupança do interior sem reinvestir o dinheiro nos mesmos locais. O ofício de emprestar se relaciona com a informação: o banqueiro tem de conhecer seus clientes e, se os banqueiros estão em Nova York, é mais provável que emprestem o dinheiro às rmas de lá, de maneira não exclusiva, mas desproporcional. As restrições produziram uma característica singular do sistema nanceiro americano, marcado por grande número de bancos pequenos e comunitários. Ainda hoje há mais de 7 mil deles. Esses bancos não só fazem empréstimos para as pequenas e médias empresas como são uma das fontes do dinamismo norte-americano. 8. Como condição para liberar o dinheiro, o fmi insiste que o país bene ciário faça certas coisas. Todos os bancos impõem condições aos tomadores de empréstimos para aumentar a probabilidade de o empréstimo ser pago, mas as condições que o fmi impõe por vezes reduzem essa probabilidade e com frequência têm uma conexão apenas tênue com o próprio empréstimo. Podem ser “macrocondições” (por exemplo, o requisito de que o Banco Central aumente sua taxa de juros ou de que haja uma redução dos dé cits); condições estruturais (por exemplo, o requisito de que o governo privatize os seus bancos); ou condições políticas (por exemplo, o requisito de que o governo dê independência total ao Banco

Central). Em seu conjunto, as condições reduzem o espaço para a prática de uma política independente por parte do país. Muitos países em desenvolvimento veem as condições como algo que afeta a sua soberania econômica. 9. Protestos e agitações contra as políticas do fmi também ocorreram na Argentina, no Brasil, na Colômbia, na Coreia do Sul, no Quênia e no Zimbábue. Veja Mark Ellis-Jones, “States of unrest ii: Resistance to imf and World Bank policies in poor countries”, World Development Movement Report, Londres, abril de 2002, disponível em http://web.archive.org/web/20050130125648/www.wdm.org.uk/cambriefs/ debt/Unrest2.pdf. 10. Por exemplo, o fmi pressionou o Paquistão para elevar as taxas de juros e os impostos (veja James Melik, “Pakistan business ghting on all fronts”, bbc News, 22 de maio de 2009). O fmi também estabeleceu uma meta para o dé cit orçamentário do Paquistão, que estava em risco de ser ultrapassada (veja Khaleeq Ahmed e Khalid Qayum, “Pakistan’s budget de cit may exceed imf target, Tarin says”, Bloomberg.com, 10 de junho de 2009). O fmi empregou suas táticas usuais para forçar cortes orçamentários na Letônia, com a ameaça de atrasar a remessa da parcela seguinte do empréstimo, o que podia levar o país à falência (veja Aaron Eglitis, “Latvia faces bankruptcy by June if imf loan delayed”, Bloomberg.com, 9 de março de 2009). Com relação a cada um desses casos, há um debate sobre a adequação das políticas do Fundo: o país tem condições de praticar uma política mais expansionista sem o programa do fmi? O fmi está equilibrando as interrelações econômicas, como, por exemplo, entre in ação e desemprego de maneira apropriada? De toda maneira, o debate é hoje muito diferente do que há dez anos. 11. Eu pleiteei por essa e muitas outras reformas em meu livro anterior Globalization and its discontents, op. cit. 12. A assistência governamental dos Estados Unidos é de apenas 0,18% do pib, o que é menos do que a quarta parte da contribuição da Dinamarca (0,82%), da Holanda (0,80%), da Noruega (0,88%) e da Suécia (0,99%). Organisation for Economic Co-operation and Development, OECD.Stat, “oda by Donor”, 30 de março de 2009, e “Gross Domestic Product”, disponível em http://stats.oecd.org.

Os Estados Unidos estavam relutantes em acompanhar até mesmo o apoio expresso pela Europa e pelo Japão ao fmi. Sua reação inicial foi generosamente oferecer que o Fundo convidasse a China, a Arábia Saudita e outros países a lhe emprestar mais dinheiro, de modo que pudesse emprestar esse dinheiro para os países mais pobres. Depois, o governo Obama tomou o compromisso de emprestar 100 bilhões de dólares ao fmi — o que é pouco em comparação com a oferta japonesa, levando-se em conta o tamanho dos Estados Unidos e o que o governo americano já dera para os seus próprios bancos. E é especialmente pouco com relação à sua culpabilidade por ter causado a crise e a dor sentida por esses países. (E, ao contrário da maior parte do dinheiro dado aos bancos, este era um empréstimo que deveria ser pago.) Mas o Congresso recusou mesmo essa soma e o governo Obama, é justo que se diga, despendeu consideráveis esforços para fazer a coisa certa e obter a aprovação da lei. 14. O G-20 pediu que a ocde publicasse listas que contenham os nomes dos países cujas autoridades eram consideradas totalmente comprometidas com os padrões internacionais de troca de informações. A ocde pôs quatro países (Uruguai, Costa Rica, Malásia e Filipinas) em uma lista negra, mais de trinta em uma lista cinza e cerca de quarenta em uma lista branca. Todos os quatro países da lista negra passaram, em uma semana, para a lista cinza. Veja Organisation for Economic Co-operation and Development, “Four more countries commit to oecd tax standards”, nota de imprensa da oecd, 7 de abril de 2009, disponível em http://www.oecd.org/document/0/0,3343,en_2649_33745_42521280_1_1_ 1_1,00.html. 15. O tema da corrupção foi posto na agenda da reunião de Pittsburgh do G-20. 16. Francis Fukuyama, e end of history and the last man (Nova York: Free Press, 1992). [Ed. brasileira O m da história e o último homem, Rio de Janeiro, Rocco, 1992.] 17. Angus Maddison, e world economy: A millennial perspective (Paris: Organisation for Economic Co-operation and Development, 2007). 18. Luc Laeven e Fabian Valencia, “Systemic banking crises: A new database”, op. cit. 13.

Os representantes dos países industrialmente avançados (sobretudo dos Estados Unidos) elaboraram justi cativas para esse comportamento aparentemente hipócrita. Em primeiro lugar, diziam eles, os Estados Unidos são ricos o bastante para desperdiçar seus recursos com a rede de proteção social das corporações — e os países pobres não o são. Funcionários do governo poderiam concordar, em privado, que esse foi um erro, mas acrescentariam que não havia escolha, pois vivemos em uma democracia e as nossas instituições políticas o exigiam. Seria difícil para eles rebater a noção de que as democracias do mundo em desenvolvimento podem pensar de maneira idêntica — e de que, na verdade, a óbvia hipocrisia apenas ajudava os que se opõem a esses acordos internacionais. 20. Esses indivíduos talentosos têm um papel crucial nos países industrialmente avançados — por exemplo, no êxito do Vale do Silício. O Serviço de Saúde Pública do Reino Unido é composto em grande parte por médicos e enfermeiros treinados no exterior. Os grandes movimentos de pro ssionais da saúde dos países em desenvolvimento para o Reino Unido, os Estados Unidos e outros países industrialmente avançados favorecem a qualidade da atenção médica nesses países, mas retira dos sistemas de saúde dos países em desenvolvimento o pessoal quali cado essencial. Evidentemente, outros fatores (como a falta de nanciamentos) contribuem para os problemas do setor de saúde nos países em desenvolvimento. Veja Tikki Pang, Mary Ann Lan-sang e Andy Haines, “Brain drain and health professionals”, British Medical Journal, vol. 324 (2 de março de 2002), pp. 499-500, disponível em http://www.bmj.com/cgi/content/full/324/7336/499. 21. Veja também George Soros, e new paradigm for nancial markets: e credit crisis of 2008 and what it means (Nova York: PublicAffairs, 2008). 22. Segundo as taxas de câmbio vigentes, o pib da China é de 7916 bilhões de dólares e o dos Estados Unidos é de 14462 bilhões de dólares. O pib per capita da China, de 5962 dólares, é a oitava parte do americano, de 46859 dólares. International Monetary Fund, World Economic Outlook database, abril de 2009, disponível em http://www.imf.org/external/pubs//weo/2009/01/weodata/index.aspx. 19.

Veja Peter Marsh, “China to overtake us as largest manufacturer”, Financial Times online, 10 de agosto de 2008, disponível em http://www..com/cms/s/0/2aa7a12e-6709-11dd-808f-0000779fd18c.html, e “China to surpass Japan in auto production in ’09”, iSuppli Corp, nota de imprensa, 26 de março de 2009. 24. Veja Rosenthal, “China increases lead as biggest carbon dioxide emitter”, op. cit. 25. Em novembro de 2008, a China anunciou um pacote de estímulo de 586 bilhões de dólares por dois anos, correspondentes a cerca de 14% do pib chinês. Comparativamente, isso equivale a um incentivo de 2 trilhões nos Estados Unidos. Veja Xinhua News Agency, “China’s 4 trillion yuan stimulus to boost economy, domestic demand”, 9 de novembro de 2008, disponível em http://news.xinhuanet.com/english/2008— 1/09/content_10331324.htm. 26. Dois senadores americanos, Charles Schumer, de Nova York, e Lindsey Graham, da Carolina do Sul, planejavam apresentar um projeto de lei que imporia altas tarifas (27,5%) sobre importações provenientes da China, a menos que esta permitisse a valorização da sua moeda, mas, em março de 2009, decidiram não mais fazê-lo. A interdependência entre os Estados Unidos e a China se re ete na oposição da Associação Nacional dos Industriais, que estima que a quarta parte de todos os bens manufaturados que provêm da China é produzida por subsidiárias de empresas americanas. Edmund L. Andrews, “Trade truce with China in the Senate”, New York Times, 29 de março de 2006. A imposição de tarifas contra pneumáticos chineses de baixa qualidade, em setembro de 2009, é um exemplo das maneiras curiosas como se desenvolvem as tensões comerciais. A questão foi apresentada pelos trabalhadores da indústria do aço (United Steel Workers) mas não foi aprofundada pelos industriais, que fazia muito tempo haviam deixado de produzir esse tipo de pneus. A China, como outros recém-chegados à Organização Mundial do Comércio, teve de concordar, para possibilitar sua adesão, com uma série de exigências que vão muito além das que foram negociadas com os membros mais antigos — prática que Oxfam denominou “extorsão na porteira”. A China concordou que, por um determinado número de anos após sua adesão, os Estados Unidos poderiam proteger suas indústrias contra um surto de exportações chinesas, 23.

ainda que estivesse atuando de acordo com as regras do jogo da economia de mercado. As vendas chinesas haviam aumentado, mas principalmente às custas das vendas de outros produtores de baixo custo desses pneus de baixa qualidade. Não se tratava de perdas para os produtores americanos, que já não trabalhavam com esse tipo de pneus. O sofrimento dos americanos com o aumento do preço dos pneus seria muito maior do que qualquer benefício que os produtores pudessem receber. 27. Veja o discurso de Zhou Xiaochuan, presidente do Banco do Povo da China, “Reform the international monetary system”, 23 de março de 2009, disponível em http://www.pbc.gov.cn/english/detail.asp?col=6500&id=178. 28. Para uma descrição, veja John Williamson, “Keynes and the postwar international economic order”, em Harold L. Wattel (org.), e policy consequences of John Maynard Keynes (Armonk, ny: M. E. Sharpe, 1985). 29. Report of the Commission of Experts of the United Nations President of the General Assembly on Reforms of the International Monetary and Financial System, setembro de 2009, disponível em http://www.un.org/ga/president/63/PDFs/reportofexpters.pdf. 30. Veja Dani Rodrik, “e social cost of foreign exchange reserves”, International Economic Journal, vol. 20, no 3 (setembro de 2006), pp. 25366, e Stiglitz, Making globalization work, op. cit. 31. O governo normalmente neutraliza o dé cit comercial por meio do dé cit scal, exceto em períodos em que ocorre a exuberância irracional do investidor — como durante a bolha tecnológica do nal da década de 1990. 32. Em maio de 2008, os ministros das Finanças da asean + 3 (Associação das Nações do Sudeste Asiático mais três convidados) concordaram em formar um fundo comum de reservas no valor de 80 bilhões de dólares. Em dezembro de 2008, propuseram ampliar o fundo para 120 bilhões de dólares. A proposta foi con rmada em maio de 2009. Veja C. R. Henning, “e future of the Chiang Mai initiative: An Asian monetary fund?”, Peterson Institute for International Economics Policy Brief 09-5, Washington, dc, fevereiro de 2009, e “Asian nations unveil $120 billion liquidity fund”, Wall Street Journal, 4 de maio de 2009, p. A10. 33. Um exemplo de fato político que talvez revertesse o fortalecimento do euro poderia ocorrer no caso de algum movimento eleitoral contra a União

Europeia em um dos seus países principais, ou mesmo em um dos países menores. 34. Existe uma solução natural: os países industrialmente avançados transfeririam as alocações de seus direitos especiais de saque que não precisassem utilizar para os países em desenvolvimento que precisassem delas. O abuso do fundo de equalização de trocas por parte do secretário Robert Rubin para facilitar o resgate do México — evitando o Congresso — irritou tanto os parlamentares que cou muito mais difícil fazer esse tipo de transferências. Veja J. Lawrence Broz, “Congressional politics of international nancial rescues”, American Journal of Political Science, vol. 49, no 3 (julho de 2005), pp. 479-96. 35. Para uma discussão mais extensa sobre maneiras alternativas para a formulação do sistema de moeda de reserva global e para a transição do sistema atual para o novo, veja Report of the Commission of Experts of the United Nations President of the General Assembly on Reforms of the International Monetary and Financial System, op. cit.     9. reforma da cincia econmica

  1 . Essas opiniões de que o New Deal de Franklin Roosevelt fez a economia piorar são, em sua maioria, jornalismo conservador, como o livro de Amity Schlaes e forgotten man: A new history of the Great Depression (Nova York: HarperCollins, 2007). Mas alguns economistas acadêmicos lhes deram apoio. Com a fermentação da crise atual, o Council on Foreign Relations realizou uma conferência em 30 de março de 2009 para celebrar o fracasso da ciência econômica keynesiana, intitulada “A second look at the Great Depression and New Deal”. 2. Veja E. Cary Brown, “Fiscal policy in the irties: A reappraisal”, American Economic Review, vol. 46, no 5 (dezembro de 1956), pp. 857-79, e Peter Temin, Lessons from the Great Depression (Lionel Robbins Lecture) (Cambridge, ma: mit Press, 1989). 3. Em 1936, o total do gasto orçamentário foi de 10,5% do pib, porcentual que caiu para 8,6% em 1937 e 7,7% em 1938. No mesmo período, o dé cit orçamentário foi de 5,5%, 2,5%, e 0,1% do pib, respectivamente. Office of

Management and Budget, Budget of the United States Government: Historical Tables Fiscal Year 2010, “Table 1.2: Summary of Receipts, Outlays, and Surpluses or De cits (-) as Percentages of gdp: 1930-2014”, disponível em http://www.gpoaccess.gov/USbudget/fy10/sheets/hist01z2.xls. 4. Como disse Keynes, com ênfase: “O longo prazo é um guia enganoso para os assuntos correntes. No longo prazo, todos estaremos mortos. Os economistas se estarão limitando a tratar apenas das questões fáceis e fúteis se, quando chega a tempestade, só conseguem dizer que quando ela passar o mar cará novamente tranquilo”. Do livro de John Maynard Keynes e theory of money and the foreign exchanges, capítulo 3, em A tract on monetary reform (Nova York: Macmillan, 1923). 5. Charles Kindleberger, Manias, panics, and crashes: A history of nancial crises (Nova York: Basic Books, 1978), e Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff, is time is different: Eight centuries of nancial folly (Princeton, nj: Princeton University Press, 2009). 6. Franklin Allen e Douglas Gale, Understanding nancial crises (Oxford: Oxford University Press, 2007). 7. Léon Walras, Éléments d’économie politique pure, ou théorie de la richesse sociale, 1874. [Ed. brasileira Compêndio dos elementos da economia política pura, São Paulo, Abril Cultural, 1983.] 8. Kenneth J. Arrow, “An extension of the basic theorems of classical welfare economics”, em J. Neyman (org.), Proceedings of the Second Berkeley Symposium on Mathematical Statistics and Probability (Berkeley: University of California Press, 1951), pp. 507-32, e Gerard Debreu, “Valuation equilibrium and Pareto Optimum”, Proceedings of the National Academy of Sciences, vol. 40, no 7 (1954), pp. 588-92, e e theory of value: An axiomatic analysis of economic equilibrium (New Haven: Yale University Press, 1959). 9. Esta noção de e ciência é conhecida como e ciência de Pareto, em referência a Vilfredo Pareto, economista italiano que foi o primeiro a articular esse ponto de vista, no seu livro Manual of political economy, em 1906. 10. Debreu, e theory of value, op. cit.

Veja, em particular, Bruce Greenwald e Joseph E. Stiglitz, “Externalities in economies with imperfect information and incomplete markets”, Quarterly Journal of Economics, vol. 101 (1986), pp. 229-64. 12. Essas circunstâncias, em que pequenas modi cações — nos valores dos parâmetros, por exemplo — podem gerar grandes mudanças nos resultados, ocorrem com frequência nas ciências físicas. Os economistas simplesmente supuseram que não era esse o caso (como disse Alfred Marshall, um dos grandes economistas do nal do século xix e do começo do século xx, “Natura non facit saltum”, ou “a natureza não dá saltos”). Veja Principles of economics (Londres: Macmillan, 1920). Isso é verdade dentro de certas premissas matemáticas, mas essas premissas normalmente não se cumprem quando se trata de análises de mercados com informação ou inovação endógenas. Com efeito, mesmo pequenas imperfeições na informação podem afetar as conclusões relativas à existência de um equilíbrio. Veja Michael Rothschild e Joseph E. Stiglitz, “Equilibrium in competitive insurance markets: An essay on the economics of imperfect information”, Quarterly Journal of Economics, vol. 90, no 4 (novembro de 1976), pp. 629-49. 13. A expressão ciência econômica neoclássica é usada para distingui-la da ciência econômica clássica, associada a David Ricardo e Adam Smith. Enfatiza as avaliações marginais que os indivíduos dão a diferentes mercadorias. 14. Um dos problemas que enfrentei como presidente do Conselho de Assessores Econômicos foi a contratação de um macroeconomista. A macroeconomia se ocupa dos grandes movimentos da produção e do emprego. Como explicarei depois, os modelos prevalecentes, que são ensinados na maioria das faculdades, se baseiam na economia neoclássica. Na época, eu me perguntava como o presidente, que havia sido eleito com a plataforma de “Empregos! Empregos! Empregos!” responderia a um dos nossos mais brilhantes economistas jovens quando ele ou ela lhe explicasse que o desemprego não existe. 15. A premissa de que os indivíduos podem facilmente contrair empréstimos signi ca, evidentemente, que a dor causada pelo desemprego é menor. 11.

O trabalho clássico de Franco Modigliani e Merton Miller era “e cost of capital, corporation nance and the theory of investment”, American Economic Review, vol. 48, no 3 (1958), pp. 261-97. Eles também a rmavam que não fazia diferença se as empresas pagassem dividendos ou retivessem ações. Sua análise original ignorava o impacto dos impostos, mas estudos posteriores revelaram o “paradoxo dos dividendos”. Segundo a teoria de Modigliani-Miller, as rmas podiam reduzir os impostos das corporações e dos indivíduos comprando ações em vez de pagar dividendos. É como se elas houvessem pagado voluntariamente centenas de bilhões de dólares em impostos além do que lhes era requerido. Veja Joseph E. Stiglitz, “Taxation, corporate nancial policy and the cost of capital”, Journal of Public Economics, vol. 2 (1973), pp. 1-34. Esse paradoxo dos dividendos gerou uma profusão de livros. Nenhuma das explicações baseadas em modelos de racionalidade me convenceu. 17. Na S&P 500, executivos-chefes receberam em média 10,5 milhões de dólares no ano passado, 344 vezes mais do que o pagamento recebido por um trabalhador americano típico. Os níveis das compensações para os gestores dos fundos privados de investimentos aumentaram de maneira ainda mais estratosférica. No ano passado, os gestores dos cinquenta principais fundos de hedge e fundos privados de ativos receberam em média 588 milhões de dólares cada um, pagamento mais de 19 mil vezes superior ao de um trabalhador americano típico. Sarah Anderson et al., “Executive excess 2007: How average taxpayers subsidize runaway pay”, 15th Annual ceo Compensation Survey, Institute for Policy Studies and United for a Fair Economy, Washington, dc, e Boston, ma, 25 de agosto de 2008, disponível em http://www.faireconomy.org/ les/executive_excess_2008.pdf. 18. Veja, por exemplo, Gary Becker, e economics of discrimination (Chicago: University of Chicago Press, 1957). Becker recebeu o prêmio Nobel em 1992. Outros ganhadores do prêmio, Kenneth Arrow, Edmund Phelps e eu, zemos fortes críticas à teoria de Becker. Veja, por exemplo, Joseph E. Stiglitz, “Approaches to the economics of discrimination”, American Economic Review, vol. 63, no 2 (1973), pp. 287-95, e “eories of discrimination and economic policy”, em George M. von Furstenberg, Bennett Harrison e Anne R. Horowitz (orgs.), Patterns of racial discrimination, vol. ii: Employment and income (Lexington, ma: Lexington 16.

Books, 1974), pp. 5-26; Edmund S. Phelps, “e statistical theory of racism and sexism”, American Economic Review, vol. 62, no 4 (1972), pp. 659-61; e Kenneth Arrow, “e theory of discrimination”, em Orley Ashenfelter e Albert Rees (orgs.), Discrimination in labor markets (Princeton: Princeton University Press, 1973). 19. Exerceram in uência particular sobre mim as conversas que mantive com George Akerlof, que compartilhou o prêmio Nobel Memorial comigo em 2001. 20. Um dos principais desenvolvimentos da ciência econômica moderna é a teoria dos jogos, que analisa interações estratégicas, sobretudo entre pequenos grupos de “jogadores”. A teoria dos jogos foi especialmente útil na análise de mercados não competitivos. Mas também tem sido útil para a explicação da persistência da discriminação. Mesmo os que não têm nenhum preconceito racial podem sofrer punições por parte de outras pessoas caso se desviem da norma discriminatória; e os que preferem não punir também podem ser punidos. Tais modelos podem ser utilizados para explicar a persistência das políticas segregacionistas de Jim Crow e outras formas de discriminação. Veja Dilip Abreu, “On the theory of in nitely repeated games with discounting”, Econometrica, vol. 56, no 2 (março de 1988), pp. 383-96, e George A. Akerlof, “Discriminatory, status- -based wages among tradition-oriented, stochastically trading coconut producers”, Journal of Political Economy, vol. 93, no 2 (abril de 1985), pp. 265-76. 21. Veja, por exemplo, Robert H. Frank, omas Gilovich e Dennis T. Regan, “Does studying economics inhibit cooperation?”, Journal of Economic Perspectives, vol. 7, no 2 (primavera de 1993), pp. 159-71. É interessante lembrar que Adam Smith, em seu outro grande livro, e theory of moral sentiments (1759), discutiu todas essas características humanas. 22. Veja Report by the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress, disponível em http://www.stiglitz-sentoussi.fr, assim como “Overview”, de Jean-Paul Fitoussi, Amartya Sen e Joseph E. Stiglitz. A comissão foi indicada pelo presidente Nicolas Sarkozy, da França. Eu atuei como presidente e Amartya Sen, como assessor principal.

Desde a publicação de Bowling alone: e collapse and revival of American community (Nova York: Simon and Schuster, 2000), Robert Putnam deu início a uma iniciativa denominada Saguaro Seminar: Civic Engagement in America, com o objetivo de desenvolver ideias para aumentar a conectividade dos americanos entre si e com instituições comunitárias. Os trinta participantes vêm da academia, das artes, do clero, do mundo dos negócios, e incluem políticos dos dois principais partidos americanos. O livro que daí resultou, Better together, e o site de Internet, www.bettertogether.org, recomendam estratégias para reengajar civicamente os americanos. Veja Lewis M. Feldstein, Don Cohen e Robert Putnam, Better together: Restoring the American community (Nova York: Simon and Schuster, 2003). 24. Há, contudo, uma literatura grande e crescente sobre o tema. Veja, por exemplo, Richard Layard, Happiness: Lessons from a new science (Londres: Penguin, 2005), e Report by the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress, op. cit. 25. Veja Dan Ariely, Predictably irrational (Nova York: HarperCollins, 2008). 26. Veja, por exemplo, Shiller, Irrational exuberance, op. cit., e Robert J. Shiller, e subprime solution: How today’s global nancial crisis happened, and what to do about it (Princeton: Princeton University Press, 2008). 27. Caso se pudesse saber que uma bolha estouraria em, digamos, vinte anos, então esta nunca se formaria: ninguém estaria disposto a ter esses ativos no momento anterior ao colapso. Mas isso signi ca que o colapso ocorreria, então, naquele momento. É fácil ver como uma bolha se desenvolve. É interessante observar que, ao contrário da crença geral, as expectativas racionais não são su cientes para excluir a possibilidade da formação de bolhas. Elas podem coexistir com as expectativas racionais desde que pessoas diferentes tenham informações diferentes (o que é, obviamente, o caso). Quando os fundamentalistas do mercado do Banco Central supuseram que com mercados inteligentes não haveria bolhas, eles estavam indo muito além do estabelecido pela teoria econômica. Veja por exemplo, Markus K. Brunnermeier, “Bubbles”, em Steven N. Durlauf e Lawrence E. Blume (orgs.), e New Palgrave Dictionary of Economics, 2a ed. (Nova York: Palgrave Macmillan, 2008); Dilip Abreu e Markus K. 23.

Brunnermeier, “Bubbles and crashes”, Econometrica, vol. 71, no 1 (janeiro de 2003), pp. 173-204; e Roger Guesnerie, Assessing rational expectations: Sunspot multiplicity and economic uctuations, vol. 1 (Cambridge: mit Press, 2001). 28. Mas também podem existir modelos de rebanhos “racionais”, nos quais os indivíduos fazem inferências a partir do comportamento dos demais. Veja, por exemplo, Andrea Devenow e Ivo Welch, “Rational herding in nancial economics”, European Economic Review, vol. 40, nos 3-5 (1996), pp. 603-16. 29. Jared Diamond, Collapse: How societies choose to fail or succeed (Nova York: Viking Books, 2005). [Ed. brasileira Colapso: Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso, Rio de Janeiro, Record, 2005.] 30. O argumento a favor da intervenção governamental foi fortalecido por pesquisas que mostram que os indivíduos subestimam de maneira sistemática certas possibilidades de baixo risco. A maioria dos indivíduos encontra di culdades em fazer julgamentos a respeito de eventos incertos, especialmente os de baixa probabilidade. Eles tendem a fazer seguros — o que demonstra altos níveis de aversão ao risco — e, ao mesmo tempo, a apostar — o que demonstra que, de algum modo, creem que têm uma chance de ganhar. 31. Questões losó cas complexas estão relacionadas com a avaliação do signi cado da palavra “melhores” nesses contextos. No mínimo, espera-se que se disponha de políticas de poupança e investimento que tenham alta probabilidade de não forçar reduções pronunciadas nos níveis de consumo e de padrão de vida no futuro. Veja Richard H. aler e Cass R. Sunstein, Nudge: Improving decisions about health, wealth, and happiness (New Haven: Yale University Press, 2008). 32. John Maynard Keynes, e general theory of employment, interest, and money (Londres: Macmillan, 1936). [Ed. brasileira Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, São Paulo, Atlas, 1982.] 33. O governo Obama também pode ter sido motivado por um livro in uente de George A. Akerlof e Robert J. Shiller, publicado naquele momento: Animal spirits: How human psychology drives the economy, and why it matters for global capitalism (Princeton: Princeton University Press, 2009).

. Veja, por exemplo, Greenwald e Stiglitz, Towards a new paradigm of monetary economics, op. cit. 35. George Soros, na sua teoria da re exividade, ressaltou a dependência do comportamento e das expectativas com relação às expectativas e crenças de outros. Mas essa interdependência não signi ca que seja possível passar de um equilíbrio para outro simplesmente anunciando o surgimento de “brotos verdes”. Veja Soros, e new paradigm for nancial markets, op. cit. 36 . Paul Samuelson foi um dos maiores economistas do século xx. Teve um papel capital na difusão das ideias de Keynes nos Estados Unidos, sobretudo com o seu compêndio Economics: An introductory analysis, que era a bíblia dos estudantes de economia nas décadas que se seguiram a 1948, ano da sua publicação. Ele tentou conciliar os enfoques microeconômicos e macroeconômicos por meio do que denominou síntese neoclássica: há dois regimes — um regime de desemprego e um regime de pleno emprego. Uma vez que o governo consiga restaurar o pleno emprego na economia, aplicam-se os resultados ortodoxos a respeito da e ciência dos mercados. A síntese neoclássica de Samuelson foi tomada como artigo de fé durante anos, mas não tinha bases teóricas de nidas. Veja as discussões posteriores para uma crítica desse ponto de vista. 37. Muitos economistas da Universidade de Chicago não subscrevem alguns aspectos da doutrina da “Escola de Chicago”. Como qualquer outra escola de pensamento econômico, ela tem muitas variantes. Uma das mais in uentes é a teoria do “ciclo dos negócios reais”, assim chamada porque busca explicar os altos e baixos da economia não em termos de política monetária, mas em consequência de choques econômicos “reais” como os associados ao desenvolvimento de novas tecnologias. 38. A premissa dos mercados perfeitos desempenhou, no entanto, um papel importante em muitas das conclusões. Signi ca que não existe escassez de crédito nem desemprego. A premissa do agente representativo (que vive eternamente) signi ca que não é possível analisar as consequências de uma redistribuição de renda dos jovens para os velhos, ou dos ricos para os pobres. Também signi ca que as pessoas que hoje recebem os benefícios dos gastos governamentais são as mesmas que terão de pagar os impostos amanhã. 34

Os críticos do gasto público para estimular a economia concentram o foco sobre os efeitos do lado da oferta — no sentido de que os impostos induzem menor poupança e menos trabalho. Mas, a curto prazo, a menor poupança signi ca mais consumo e é, na verdade, uma coisa positiva; enquanto, se os trabalhadores não conseguem encontrar emprego, a menor oferta de trabalho não tem consequências negativas. O argumento de que os impostos futuros desestimulam o trabalho e diminuem a qualidade de vida da sociedade é outro exemplo das incoerências intelectuais que marcam a escola de Chicago: se todos fossem iguais, então o governo aplicaria impostos iguais para todos (impostos que não dependeriam da renda ou de nenhuma outra ação por parte dos trabalhadores). Esses impostos seriam totalmente não distorsivos e o trabalho seria, na verdade, estimulado. 40. Veja, em particular, Bruce Greenwald e Joseph E. Stiglitz, “Keynesian, New Keynesian and New Classical Economics”, Oxford Economic Papers, vol. 39 (março de 1987), pp. 119-33. 41. Esse ponto de vista, cujas origens remontam a John Hicks, economista de Oxford (um dos meus predecessores na cátedra Drummond de Economia Política no All Souls College), que recebeu o prêmio Nobel em 1972, tem sido, de fato, a visão predominante na maior parte da segunda metade do século xx. 42. O padrinho intelectual dessa segunda linha é Irving Fisher, com o artigo clássico de 1933 intitulado “e debt de ation theory of great depressions” (Econometrica, vol. 1, pp. 337-57), que, mais modernamente, foi desenvolvido por Hyman Minsky (John Maynard Keynes [Nova York: Columbia University Press, 1975], Can it happen again? [Armonk, ny: M. E. Sharpe, 1982], Stabilizing an unstable economy [New Haven: Yale University Press, 1986]), e por Bruce Greenwald e por mim, em uma série de trabalhos que começaram no início da década de 1980 e incluem “Financial market imperfections and business cycles”, Quarterly Journal of Economics, vol. 108, no 1 (fevereiro de 1993), pp. 77-114, e culminam com Towards a new paradigm of monetary economics, op. cit. 43. O ponto de vista era o de que existe um índice “natural” de desemprego e que, portanto, as tentativas de diminuir o desemprego reduzindo as taxas de juros estavam destinadas ao fracasso e levariam 39.

apenas a uma in ação sempre ascendente. Há um fundo de verdade na teoria: as expectativas das pessoas a respeito da in ação futura podem depender das suas experiências, e essas expectativas podem afetar as disputas salariais e o índice de in ação no futuro. Mas a determinação de uma correlação estável entre as mudanças dos índices de in ação e os de desemprego continua sendo algo controverso. Há incerteza, inclusive, quanto ao nível de desemprego abaixo do qual a in ação começa a crescer, como já observamos. Veja, por exemplo, J. E. Stiglitz, “Re ections on the natural rate hypothesis”, Journal of Economic Perspectives, vol. 11, no 1 (inverno de 1997), pp. 3-10. 44. O nível exato da in ação no qual os problemas começam a aumentar é matéria de debate e pode mudar com o tempo. Há um consenso amplo de que os índices de in ação inferiores a 8% ou 10% não têm efeitos adversos signi cativos; e alguns países, como a Turquia, conseguiram manter o crescimento com índices muito mais altos. Ao mesmo tempo, por causa da resistência dos preços a baixar, quando o índice de in ação é baixo demais podem ocorrer problemas de ajuste. Veja George A. Akerlof, William R. Dickens e George L. Perry, “e macroeconomics of low in ation”, Brookings Papers on Economic Activity, vol. 27, no 1 (1996), pp. 1-76. 45. Eu brinquei, dizendo que o Fed estava determinado a mostrar a existência desse efeito adverso signi cativo da in ação baixa ou moderada sobre o crescimento econômico, mas apesar de contar com um grande quadro de excelentes econometristas, ninguém de lá conseguiu obter as recompensas óbvias que se ofereciam a quem quer que pudesse demonstrálo. 46. Há ainda outra crítica à in ação: por causa dela, as pessoas conservam menos dinheiro do que seria “e ciente”; menos do que fariam em um mundo com preços estáveis. Ainda que possa ter tido alguma relevância no passado, no mundo moderno, em que a maior parte do dinheiro gera juros bancários, essa preocupação já não tem validade. Com o aumento da in ação, aumentam também os juros (nominais) que lhe são pagos. Concentrar o foco nos efeitos negativos que mesmo níveis baixos de in ação acarretariam sobre a e ciência econômica, ao induzir as pessoas a andar com menos dinheiro do que fariam em outras circunstâncias — e ignorar como uma bolha de preços de ativos pode abalar toda a economia

—, ilustra o grau a que chegou a perda de contato entre algumas linhas de pensamento da ciência econômica acadêmica e o mundo real. 47. Quando se concentra a atenção num aspecto, corre-se o risco de deixar outros de lado. Com efeito, há uma proposição geral: a estabilização dos preços leva à instabilidade nas quantidades e vice-versa. O foco na in ação não só não assegurou a estabilidade real como prejudicou o crescimento a longo prazo — ao contrário do que apregoam os defensores das metas de in ação. A experiência da maior parte dos países em crises é de que quase nunca se recupera o tempo perdido. Com o tempo, o crescimento retorna, mas mesmo quinze anos depois, a produção será menor do que teria sido se não houvesse a crise. 48. Um exemplo ainda mais simples, muitas vezes citado, é o de que o preço de um frasco de um litro de refrigerante, em um mercado totalmente e ciente, é o dobro do preço de um frasco de meio litro. Existem custos de transação (engarrafamento e transporte) que fazem que, na realidade, o frasco de um litro muitas vezes custe menos do que o dobro do preço do frasco de meio litro. 49. Segundo a teoria dos mercados e cientes, o valor de uma ação supostamente equivale ao valor que se espera no presente para os dividendos futuros. Assim, um decréscimo de 20% no valor de mercado implicaria que, de algum modo, as expectativas de dividendos futuros tivessem de repente caído nessa proporção. O fato é que não existem informações que possam explicar “racionalmente” essa mudança das expectativas. Para uma excelente discussão acessível da ideia de que ninguém pode ganhar do mercado, veja Burton G. Malkiel, A random walk down Wall Street: e best and latest investment advice money can buy (Nova York: W. W. Norton, 2003). Para uma forte argumentação contra a hipótese dos mercados e cientes, veja Shiller, Irrational exuberance, op. cit. 50. Os bilhões de dólares que alguns bancos de investimentos e fundos de hedge ganharam por ter acesso a informações antecipadas sobre o uxo das ordens de compra e venda (“ ash trading”) é outro exemplo. Logicamente, se os perdedores fossem racionais, teriam percebido que se trata de um jogo sujo e teriam pulado fora. Uma parte dos lucros desses bancos de investimentos ocorre às custas desses participantes irracionais do mercado que querem acreditar que eles também estão entre os melhores da turma.

Mas outra parte dos lucros pode ocorrer às custas dos governos quando estes intervêm no mercado, por exemplo para tentar estabilizar taxas de câmbio em uma crise de divisas, como observei em Globalization and its discontents, op. cit. 51 . Há uma outra maneira de parecer que se ganha do mercado: correr mais riscos, de maneiras não totalmente transparentes. Veja a discussão apresentada no capítulo 6. 52. Veja Sanford Grossman e Joseph E. Stiglitz, “On the impossibility of informationally efficient markets”, American Economic Review, vol. 70, no 3 (junho de 1980), pp. 393-408. Mostramos também que os mercados não poderiam agregar de maneira perfeita as informações desconexas dos diferentes participantes do mercado. Veja Grossman e Stiglitz, “Information and competitive price systems”, American Economic Review, vol. 66, no 2 (maio de 1976), pp. 246-53. 53. Essa distinção entre os benefícios sociais e privados das informações foi articulada claramente por Jack Hirshleifer em “e private and social value of information and the reward to inventive activity”, American Economic Review, vol. 61, no 4 (setembro de 1971), pp. 561-74, e por Joseph E. Stiglitz, “e theory of screening, education and the distribution of income”, American Economic Review, vol. 65, no 3 (junho de 1975), pp. 283-300. 54. A razão pela qual o Banco Central alegou dubiamente não ter os instrumentos para desin ar uma bolha — e nem mesmo para detectá-la — talvez seja a de que não queria fazer nada, pois via essa ação como uma interferência no mercado. Mas, como vimos, a determinação das taxas de juros já é uma óbvia intervenção no mercado. 55. Alan Greenspan o admitiu no seu famoso mea-culpa perante o Comitê de Supervisão da Câmara, che ado por Henry Waxman, em 23 de outubro de 2008. Veja a discussão em texto anterior. 56. De acordo com algumas estimativas, mais de 80% do aumento da renda per capita se deveu à inovação, e não à acumulação de capital, ou à melhora da capacidade técnica dos trabalhadores. Outras estimativas dão importância algo maior à acumulação de capital. Veja Robert M. Solow, “Technical change and the aggregate production function”, Review of Economics and Statistics, vol. 39, no 3 (1957), pp. 312-20.

Essas teorias eram chamadas “endógenas” porque as explicações relativas às inovações estavam dentro da própria teoria, ao contrário do que acontece com as teorias ditas “exógenas”. A teoria endógena do crescimento remonta à obra de Hirofumi Uzawa, Ken Arrow, Nicholas Kaldor e Richard Nelson, juntamente com uma série de alunos seus (inclusive William Nordhaus, Karl Shell e eu próprio), no m da década de 1950 e nos anos 1960. Veja, por exemplo, Hirofumi Uzawa, ‘‘Optimum technical change in an aggregate model of economic growth”, International Economic Review, vol. 6, no 1 (1965), pp. 18-31; Kenneth J. Arrow, “e economic implications of learning by doing”, Review of Economic Studies, vol. 29 (1962), pp. 155-73; Nicholas Kaldor, “A model of economic growth”, Economic Journal, vol. 67 (1957), pp. 591-624; e Richard R. Nelson e Edmond S. Phelps, “Investment in humans, technological diffusion and economic growth”, American Economic Review, vol. 56, no 1/2 (março-maio de 1966), pp. 69-75. Em colaboração com Sir Partha Dasgupta, de Cambridge, ampliei esse trabalho e integrei-o com a teoria moderna de organização industrial, no m da década de 1970. Veja, por exemplo, Partha Dasgupta e Joseph E. Stiglitz, “Industrial structure and the nature of innovative activity”, Economic Journal, Royal Economic Society, vol. 90, no 358 (junho de 1980), pp. 266-93. Em anos mais recentes, Paul Romer continuou a explorar essas ideias: Paul Romer, “Increasing returns and long-run growth”, Journal of Political Economy, vol. 94, no 5 (1986), pp. 1002-37. 58. Joseph A. Schumpeter, Capitalism, socialism and democracy (Nova York: Harper and Brothers, 1942). 59. A seleção natural não funciona bem, especialmente quando os mercados de capital são imperfeitos — o que acontece sempre. Veja J. E. Stiglitz, “Information and economic analysis”, em J. M. Parkin e A. R. Nobay (orgs.), Current economic problems: e Proceedings of the Association of University Teachers of Economics, Manchester, 1974 (Cambridge: Cambridge University Press, 1975), pp. 27-52. 60. Friedrich Hayek, Constitution of liberty (Chicago: University of Chicago Press, 1960), pp. 502-3. 61 .Embora em seus últimos trabalhos ele pareça ter desenvolvido dúvidas a respeito do papel dos Bancos Centrais. 57.

    10. rumo a uma nova sociedade

 

Se Angelo Mozilo tivesse guardado os segredos para si, poderia ter escapado. A autoilusão não é crime; persuadir outras pessoas a compartilhar essa autoilusão tampouco. Em 2002, diversos analistas de investimentos foram apanhados em uma ilusão semelhante: o crime não estava em que tivessem recebido mais pela sua capacidade de recrutar novos parceiros do que pela precisão das suas análises; tampouco foram punidos porque suas avaliações estavam tão desviadas que quase todas as ações recebiam a recomendação “compre”. Eles foram apanhados em um raro momento de honestidade, ao enviar e-mails que descreviam as ações que publicamente estavam recomendando como “ruim” (“dog”), “vinagre” (“toast”) e “lixo” (“junk”). A lição para os futuros nancistas é clara: nunca expresse suas dúvidas mais profundas. Veja a nota de imprensa da sec: “sec charges former countrywide executives with fraud”, 4 de junho de 2009; Deborah Lohse, “Probe nds analysts pushing stocks they privately bad-mouthed”, San Jose Mercury News, 12 de abril de 2002; e Stiglitz, Roaring Nineties, op. cit. 2. Com o m de evitar mesmo as pequenas limitações aos juros e taxas, as companhias da central de aluguéis vendem móveis de acordo com “planos de pagamento a prazo”. Mas, do ponto de vista contratual, apresentam-se como locadoras dos móveis, até que estes sejam totalmente pagos. Somando-se as taxas de mora e os encargos ocultos, as somas pagas pelos clientes são muitas vezes múltiplos do preço original. Em um caso que eu vi, um sofá de 150 dólares ainda não estava quitado apesar de o cliente já ter dado à companhia 2 mil dólares no prazo de alguns anos. Muitos estados federados proibiram esse tipo de rmas, mas elas tentam se valer das leis federais para neutralizar as regulações estaduais. Para ajudar no seu afã, a mais conhecida dessas rmas chegou a pôr um ex-congressista de grande renome no seu Conselho. 3. Assim como não há nada errado com o ato de nanciar a escravidão, desde que ela seja legal (como zeram os antecessores de J. P. Morgan — “JP Morgan admits us slavery links”, bbc News, 21 de janeiro de 2005), ou 1.

o de prestar apoio ao regime do apartheid na África do Sul (como fez o Citibank-Barnaby J. Feder, “Citibank is leaving South Africa; Foes of apartheid see major Gain”, New York Times, 17 de junho de 1987, p. A1). 4. Pode-se argumentar que os economistas devem ater-se ao seu tema — e uma discussão sobre aspectos morais os desvia da sua área de competência. Lembremo-nos de que Adam Smith era professor de loso a moral. A ciência econômica se dedica a estudar como se tomam decisões a respeito do uso dos recursos — e a respeito de como essas decisões afetam outras pessoas. Qualquer investigação sobre atos que afetam terceiras pessoas rapidamente nos leva ao terreno moral. 5. John Donne, “Meditation xvii”, em Devotions upon emergent occasions, 1624. 6. Outro exemplo de dissonância cognitiva é a reação visceral contra a marcação a mercado, à qual, como observei no capítulo 6, muitas pessoas do setor nanceiro atribuem a responsabilidade por grande parte dos problemas do setor. Durante anos, eles louvaram a importância da função dos mercados de “descobrir os preços” (veja o capítulo 9). Mas agora, quando os preços imobiliários estão mais baixos do que gostariam, eles perderam, temporariamente, a con ança nos preços do mercado. Dizem que há um “pessimismo irracional”. Mas o pessimismo irracional é apenas a imagem espelhada da “exuberância irracional” dos anos anteriores ao rompimento da bolha. Se os preços estão errados, isso signi ca que os bônus que eles receberam, com base em uma falsa leitura dos ganhos, eram excessivos. Se os banqueiros estivessem agindo de maneira intelectuamente coerente, deveriam estar oferecendo devolver parte desses bônus, como demonstração de que de fato não acreditam, em boa-fé, na marcação a mercado. Mas até hoje não vi um único crítico da contabilidade de marcação a mercado fazer esse gesto, coerente com a lógica da sua crítica. 7. Como assinalei antes, há muitos heróis que, ao perceber o que estavam fazendo, disseram que não podiam prosseguir. Eles assumiram a responsabilidade pelos seus atos. Muitos outros não o zeram. 8. Esta seção se baseia em grande parte no Report by the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress, op. cit. Veja também Layard, Happiness, op. cit.

Não é a primeira vez que ocorrem problemas com o emprego do pib como medida do bem-estar. No m da década de 1990, a Argentina, segundo os indicadores do pib, parecia estar indo maravilhosamente bem. O fmi elogiou o país e levou o seu presidente, Carlos Menem, que logo estaria desacreditado, à reunião anual de Washington, exibindo-o como exemplo para outros países. Mas o desempenho da Argentina, como o dos Estados Unidos, era um castelo de cartas. As similaridades são muitas: ambos tinham por base um surto de consumo alimentado por dívidas externas colossais. Uma boa medição teria mostrado que essa dívida crescente era uma clara indicação de que o crescimento futuro estava em risco. 10. Os Estados Unidos não são os únicos a ter problemas com o uso do pib para medir o bem-estar. Em países com grande dependência em relação à mineração, ao petróleo, à exploração da madeira ou outros recursos naturais, grande parte do consumo de hoje se faz às custas do bem-estar das gerações futuras. O resultado é que o padrão de vida vigente pode não ser sustentável. O Reino Unido, por exemplo, dilapidou seu tesouro petroleiro do mar do Norte e permitiu, ao mesmo tempo, que sua base industrial se enfraquecesse, apostando seu futuro em um sistema nanceiro vibrante. Alguns pouco países, como o Chile e a Noruega, reconheceram esse problema e criaram fundos de longo prazo. À medida que a riqueza do subsolo diminui, eles usam os ganhos para aumentar a riqueza acima do solo. 11. Se nossa sociedade se tornar mais disfuncional — com maiores gastos em prisões —, nosso pib aumentará, o que estará longe de ser um sinal de êxito. Esse gasto é arrolado entre os “gastos de defesa”. Veja, por exemplo, William D. Nordhaus e James Tobin, “Is growth obsolete?”, Economic research: Retrospect and prospect, vol. 5: Economic Growth (Nova York: Columbia University Press, para o National Bureau of Economic Research, 1972). 12. Bureau of Economic Analysis, National Income and Product Acccounts Table, “Table 7.1. Selected Per capita Product and Income Series in Current and Chained Dollars”, 27 de agosto de 2009, nota de imprensa, disponível em http://www.bea.gov/national/nipaweb/TableView.asp? SelectedTable=264&Freq=Qtr&FirstYear=2007&LastYear=2009, e U. S. 9.

Census Bureau, Current Population Survey, “Table P-7. Regions—People (Both Sexes Combined) by Median and Mean Income”, disponível em http://www.census.gov/hhes/www/income/histinc/incpertoc.html. 13. United Nations Development Programme, Human Development Index, 2008. A Islândia cou com o número um em 2008 — antes da crise nanceira — e a Noruega, com o número dois. A Suécia cou com o número sete e a Finlândia, com o número doze. 14. Putnam, Bowling alone, op. cit. 15. O número de casas em que o valor da hipoteca excede o valor do imóvel pode aumentar ainda mais se os preços continuarem a cair. Há considerável incerteza a respeito de quanto mais os preços baixarão, mas uma estimativa sugere que a porcentagem de hipotecas em naufrágio aumentará para 48%, ou seja, 25 milhões de lares, se os preços continuarem a cair até o primeiro trimestre de 2011. Jody Shenn, “‘Underwater’ mortgages to hit 48 percent, Deutsche Bank says”, Bloomberg.com, 5 de agosto de 2009. 16. Nayla Kazzi, “More Americans are losing health insurance every day: An analysis of health coverage losses during the recession”, Center for American Progress, 4 de maio de 2009, disponível em http://www.americanprogress.org/issues/2009/05/pdf/healthinsurancelosse s.pdf. 17. Já argumentei neste livro que a maioria dos americanos deseja trabalhar; o problema não era que eles fossem preguiçosos, mas sim que os empregos eram poucos. A maioria dos americanos fará todo o possível para não perder as suas casas; o problema estava em que as hipotecas que lhes foram oferecidas estavam além da sua capacidade de pagá-las. Eles aprenderam a lição — com grandes perdas para eles próprios — e a maioria deles não está disposta a repetir o erro. 18. Sou grato ao professor David Kennedy, da Universidade Harvard, nas discussões relativas a “direitos”. 19. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada na Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. 20. “Economic possibilities for our grandchildren (1930)”, em John Maynard Keynes, Essays in persuasion (Harcourt, Brace and Company, 1932), pp. 358-73. Um livro recente, Revisiting Keynes: Economic

possibilities for our grandchildren, organizado por Lorenzo Pecchi e Gustavo Piga (Cambridge, ma: mit Press, 2008), propicia uma discussão de interpretações alternativas das razões pelas quais as previsões de Keynes não se concretizaram. Veja, em particular, meu capítulo “Toward a general eory of consumerism: Re ections on Keynes’s economic possibilities for our grandchildren” (pp. 41-87). [O ensaio “As possibilidades econômicas de nossos netos” está publicado em português em Tamás Szmrecsányi (org.), Keynes, coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1983.] 21. Olivier Blanchard, “e economic future of Europe”, National Bureau of Economic Research Working Paper 10310, fevereiro de 2004, disponível em http://www.nber.org/papers/w10310. 22. Os americanos sabem que deveriam estar poupando mais — para a educação dos lhos, contra os riscos de desemprego, em caso de emergências médicas —, mas a “necessidade” imediata de bens é compulsiva. Em uma sociedade materialista, as pessoas se julgam por meio de comparações com os bens possuídos e consumidos por seus vizinhos e amigos. É uma guerra constante entre amigos. Para manter o status é preciso ter mais renda. Nesse ambiente, as escolhas são claras. Essa é outra área em que o modelo-padrão “neoclássico” pode ser falho, já que supõe que o sentido de bem-estar de cada indivíduo depende apenas do próprio consumo e não do consumo alheio. Há, no entanto, consideráveis elementos de comprovação de que os indivíduos se interessam efetivamente pela sua posição relativa. Veja, por exemplo, Robert H. Frank e Cass R. Sunstein, “Cost-bene t analysis and relative position”, University of Chicago Law Review, vol. 68, no 2 (2001), pp. 323-74, e Erzo F. P. Luttmer, “Neighbors as negatives: Relative earnings and well-being”, Quarterly Journal of Economics, vol. 120, no 3 (agosto de 2005), pp. 963-1002. 23. O cientista político Elinor Ostrom, que ganhou o prêmio Nobel Memorial em 2009, estudou como as sanções socioeconômicas em pequenas comunidades podem ser um importante instrumento de controle social. 24. Veja Avner Greif, “Contract enforceability and economic institutions in early trade: e Maghribi traders’ coalition”, American Economic Review, vol. 83, no 3 (junho de 1993), pp. 525-48, e Avner Greif, Paul Milgrom e Barry Weingast, “Coordination, commitment, and enforcement: e case of

the merchant guild”, Journal of Political Economy, vol. 102, no 4 (agosto de 1994), pp. 745-76. 25. Há boas razões para a falta de con ança: há claros con itos de interesses, que são mais graves quando a prestação de serviços é feita pelo detentor da segunda hipoteca. Nesse caso, as diferentes maneiras de reestruturar a dívida exercem diferentes efeitos sobre os detentores de ambas as hipotecas. É incrível como tantas pessoas do setor nanceiro parecem não ter consciência desses potenciais con itos de interesses. 26. Dieter Helm, “Britain must save and rebuild to prosper”, Financial Times, 4 de junho de 2009, p. 9. 27. Citado em Peggy Hollinger, “Dirigisme de rigueur”, Financial Times, 4 de junho de 2009, p. 7. 28. No “Discurso de despedida à nação” de Dwight Eisenhower, em 17 de janeiro de 1961, ele a rma: “Essa convergência entre uma imensa estrutura militar e uma grande indústria de armamentos é nova na experiência americana. Sua in uência total — econômica, política e mesmo espiritual — faz-se sentir em cada cidade, em cada Assembleia estadual, em cada repartição do governo federal. Reconhecemos a necessidade imperativa desse desenvolvimento. Mas não podemos deixar de compreender suas graves implicações. Nossos esforços, nossos recursos e nossas vidas estão envolvidos; assim como a própria estrutura da nossa sociedade”.     posfácio

  1 . No capítulo 3, explico por que os problemas do mercado hipotecário, por exemplo, podem estender-se pela economia e prejudicar o funcionamento harmonioso do mercado de trabalho. Por exemplo, as pessoas podem encontrar maiores di culdades para mudar-se, com o m de trabalhar em um novo emprego. Outra razão pela qual as taxas de crescimento podem ser menores nos próximos anos relaciona-se com os cortes de gastos na área de pesquisa e desenvolvimento. 2. Um dé cit estrutural persiste mesmo quando a economia retoma o regime de pleno emprego, enquanto um dé cit cíclico surge apenas quando a economia está em recessão.

Veja os capítulos 7 a 10 para a discussão destas questões. 4. Lembre-se de que, como vimos no capítulo 3, os indivíduos somente são considerados desempregados quando buscam trabalho ativamente. Os que deixam de buscar trabalho por sentirem-se desanimados pelas perspectivas ou que aceitaram um emprego parcial por não terem encontrado outro integral, não são considerados desempregados. 5. Veja http://www.bls.gov/opub/ils/pdf/opbils82.pdf. 6 . Veja http://www.nelp.org/page/-UI/2010/july.2010.exhaustions.pdf. 7. A título de exemplo, uma análise do impacto das demissões durante a recessão de 1982 descobriu que os trabalhadores sofreram uma perda imediata de 30% no rendimento anual. Mesmo depois de quinze a vinte anos seus rendimentos ainda eram 20% menores do que os das pessoas que não haviam perdido o seu emprego.Veja Till von Wachter, Jae Song e Joyce Manchester, “Long-Term earnings losses due to mass layoffs during the 1982 recession: An analysis using U.S. administrative data from 1974 to 2004”, Working Paper, Columbia University, April 2009, disponível em http://www.columbia.edu/~vw2112/papers/mass_layoffs_1982.pdf. 8. Veja os dados do censo dos Estados Unidos em “New privately owned houses started”, disponível em http://www.census.gov/const/startssa.pdf. 9. Congressional Oversight Panel, “Commercial real estate losses and the risk to nancial stability”, 10 de fevereiro de 2010. 10. O contraste entre a “tolerância” com relação às regras contábeis e essa atitude estrita dos supervisores pode parecer estranho. Mas, sem regras frouxas de contabilidade, os bancos teriam que ter mais dinheiro para apresentar na hora. (Regras mais rmes de contabilidade revelariam que os bancos sofreram perdas maiores do que as que desejavam admitir cando, por conseguinte, com capital insu ciente para satisfazer as regulações bancárias. Quando isso acontece, se os bancos não conseguem melhorar a sua “adequação de capital” levantando novos fundos, por exemplo, são obrigados a fechar.) Os bancos têm-se valido da sua musculatura política para evitar essa situação. Em contraste, a supervisão estrita tem por signi cado que os bancos não podem fazer empréstimos arriscados (ou, se quiserem fazê-lo, terão que ter muito mais capital). Os supervisores consideram os empréstimos para pequenas empresas com colateral insu ciente como de alto risco. Em 3.

grande medida, o custo dessa supervisão dura é pago, portanto, pelas pequenas e médias empresas, que cam, assim, privadas de acesso ao crédito. 11. Veja o capítulo 4. 12. No mercado residencial, havia tipicamente apenas dois litigantes: os detentores da primeira e da segunda hipotecas. No mercado comercial pode haver muitos mais e com “antiguidades” – e, em consequência, precedências – diferentes (e por vezes ambíguas). Os litigantes mais antigos recebem tudo a que têm direito antes de que os menos antigos recebam o que quer que seja. 13. Evidentemente, sempre haverá alguma demanda por casas novas, uma vez que certas partes do país se expandem enquanto outras se contraem. 14. Com base em comparações entre boletins de estatísticas do Banco Central (Federal Reserve Statistical Releases) de 2005 (http://www.federalreserve.gov/releases/e2/200504/default.htm) e 2010 (http://www.federalreserve.gov/releases/e2/200504/default.htm). 15. Em 20 de julho de 2010, noventa e seis bancos tinham ido à falência. Veja FDIC, Failed Bank List, disponível em http://www.fdic.gov/bank/individual/failed/banklist.html. 16. Em 2009 como um todo, o saldo da exportação de bens e serviços aumentou expressivamente, mas isso se deveu a que as importações caíram quase 25%: As exportações, por seu lado, caíram 15% (em termos nominais). Veja www.census.gov/foreigntrade/statistics/highlights/annual.html. 17. Dezesseis países da União Europeia compartilham uma moeda comum, o euro, mas diversos países da União, inclusive o Reino Unido e a Suécia, decidiram não participar, por algumas razões discutidas aqui. Emprego o termo zona do euro com referência aos países da União Europeia que adotaram o euro. 18. Eurostat, News Release, Euro Indicators, 22 de abril de 2010, disponível em http://epp.eurostat.ec.europa.eu/cache/ITY_PUBLIC/222042010-BP/EN/2-22042010-BP-EN.PDF. 19. U.S. Government Accountability Office (gao), Report to the Congress, “Recovery act: One year later, states’ and localities’ uses of funds and opportunities to strengthen accountability”, março de 2010, disponível em

http://www.gao.gov/new.items/d10437.pdf. 20. A nova lei do emprego inclui dispositivos que isentam os empregadores de pagar taxas de seguridade social sobre novas contratações de pessoas desempregadas há mais de dois meses e um crédito scal de mil dólares para cada novo contratado que permaneça no emprego por mais de um ano. Ela também estimula o investimento por parte das pequenas empresas por meio de um desconto para investimentos de até 250 mil dólares. A lei é tão modesta que o número total de empregos que se espera sejam criados é, segundo algumas estimativas, de apenas duzentos mil. Veja Timothy Bartik, Economic Policy Institute, http://www.epi.org/analysis_and_opinion/entry/not_all_job_creation_tax_c redits_are_created_equal/ e Carl Huse, “Senate approves $15 billion jobs bill”, New York Times, 24 de fevereiro de 2010, disponível em http://www.nytimes.com/2010/02/25/us/politics/25jobs.html. 21. Alguns dos melhores jornalistas nanceiros perceberam isso rapidamente. Veja, por exemplo, Gretchen Morgenson, “is bailout is a bargain? ink again”, New York Times, 18 de abril de 2010, p. BU1, disponível em http://www.nytimes.com/2010/04/18/business/economy/18gret.html. Alguns analistas nanceiros preferiram repetir a interpretação do governo. Veja, por exemplo, Andrew Ross Sorkin, “Imagine the bailouts are working”, New York Times, 13 de abril de 2010, p. B1, disponível em http://www.nytimes.com/2010/04/13/business/13sorkin.html. 22. Veja Gretchen Morgenson, “Behind insurer’s crisis, blind eye to a web of risk”, New York Times, 27 de setembro de 2008, p. A1, disponível em http://www.nytimes.com/2008/09/28/business/28melt.html? scp=2&sq=Gretchen%20Morgenstern%20goldman%20sachs%202008&st=c se. Para os nossos propósitos, o importante não é saber se determinadas instituições incorreram nas práticas abusivas de que são acusadas, mas sim determinar os modelos de comportamento e de indução ao erro e a consequente perda de con ança. 23. Lynnley Browning, “A.I.G. sues U.S. for return of $306 million in tax payments”, New York Times, 19 de março de 2009, disponível em http://www.nytimes.com/2009/03/20/business/20aig.html?em. Essa não é a única ação judicial que envolve a aig, uma vez que ela foi acionada, entre

outros, pelo procurador geral de Ohio com alegações de práticas de indução ao erro. Em um acordo extrajudicial, a aig concordou, em julho de 2010, em pagar, a esse estado apenas, mais de meio bilhão de dólares — o que gerou novas dúvidas sobre se o governo dos Estados Unidos algum dia receberá o seu dinheiro de volta. 24. O exemplo mais notório do uso de derivativos como instrumento de engano orçamentário envolve a Goldman Sachs, a maior bene ciária do resgate da aig. Essa empresa é acusada de usar derivativos para esconder a verdadeira posição scal da Grécia, com o m de satisfazer as condições de adesão à União Europeia. Por essa razão, um dispositivo da lei de reforma nanceira destinado a reduzir o uso abusivo dos derivativos foi chamado de dispositivo da “fraude grega”. Os detalhes referentes às maneiras pelas quais os derivativos atuam nesse contexto não nos interessam aqui. A ideia fundamental, no entanto, é simples: um derivativo pode ser estruturado como pagamento feito por uma parte a outra (“a compra de uma aposta”) em troca de um pagamento posterior na circunstância do advento de certas contingências. Se o risco for baixo (e ele pode ser até desprezível), o derivativo não é mais do que um empréstimo, no qual o juro pago é caracterizado como o prêmio de um seguro. 25. Para uma análise do papel dos estabilizadores automáticos no aumento da dívida, veja Mark Horton, Manmohan Kumar e Paolo Mauro, “e state of public nances: A cross-country scal monitor”, IMF Staff Position Note, 09/21, Washington, DC, International Monetary Fund, 30 de julho de 2009, disponível em http://www.imf.org/external/pubs//spn/2009/spn0921.pdf. 26. O Fed normalmente estabelece apenas a taxa de juros de curto prazo e o “mercado” determina as outras taxas de juros. No meio da crise, o Fed interveio com o objetivo de frear as taxas de juros de longo prazo, mas em seguida abandonou esses programas. No momento em que preparo esta edição, as preocupações do mercado a respeito da in ação futura foram superadas por outras, como as concernentes à Europa, que discutiremos posteriormente neste posfácio. Existe uma outra preocupação no sentido de que as cautelas quanto à in ação poderiam fruti car antes de que a economia entre com rmeza na rota da recuperação, uma vez que os cortes de gastos e os aumentos nas

taxas de juros que poderiam seguir-se reduziriam a demanda agregada e enfraqueceriam a economia. 27. A de ação aumenta a “taxa de juros real”, ou seja, a taxa ajustada ao regime de acionário. Essa é uma ilustração de como as economias não se ajustam automaticamente. Uma vez que as taxas de juros cheguem a zero, se o desemprego persistir, as pressões negativas sobre os salários e depois sobre os preços levam a um aumento das taxas de juros reais, o que enfraquece ainda mais a economia. 28. Um dos argumentos correntes que os críticos conservadores aplicam ao programa de estímulo é o de que os gastos do governo causariam uma diminuição dos investimentos do setor privado. O mecanismo através do qual isso ocorreria é o de que as taxas de juros aumentam (por causa da competição entre a demanda de recursos nanceiros pelo governo e idêntica demanda por parte do setor privado). É incrível que esses conservadores continuem a esposar tais ideias, quando as taxas de juros (tanto as de curto prazo quanto as de longo prazo) permanecem em níveis que nunca foram tão baixos e não há nenhuma possibilidade de que possa ocorrer um desincentivo ao investimento privado. 29. O crescimento da China em 2009 foi de 8,7% e estima-se que atinja 10% em 2010. 30. Isso é particularmente verdadeiro para os países pequenos, como a Grécia, que enfrentam um problema diferente dos que afetam os Estados Unidos: as di culdades em lograr e nanciar os seus dé cits. Em um mundo em turbulência, os Estados Unidos sentem-se relativamente seguros. Mas mesmo os Estados Unidos podem ter problemas. 31. Veja a discussão no capítulo 3. 32. Em 2010, estima-se que a China e a Índia representem cerca de 40% do crescimento do PIB mundial, que está projetado em 4,2%. Mesmo em 2009, quando o PIB mundial caiu 0,9%, o crescimento da China e da Índia elevaram essa taxa em 1,4%. 33. O consumo contribuiu signi cativamente para a expansão anual de 11,9% na China, medida do primeiro trimestre de 2010, e prevê-se que ele cresça 9,5% no decurso do ano. Veja World Bank, “China quarterly update — junho de 2010”, disponível em

http://siteresources.worldbank.org/CHINAEXTN/Resources/ 3189491268688634523/Quarterly_June_2010.pdf. 34. Comissão Europeia, Eurostat, Estatísticas Financeiras Governamentais, Finanças Públicas (tsieb080), abril de 2010, disponível em http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/government_ nance_st atistics/data/main_tables. 35. A modelagem econômica não conseguiu dar apoio substantivo ao enfoque “hooveriano”. Em quase todos os modelos, os cortes de gastos destinados a reduzir dé cits geram menos crescimento. Uma das poucas instâncias em que os gastos governamentais não levaram à restauração do crescimento refere-se ao Japão da década de 1990, mas as políticas empregadas não eram consistentes. Houve, por exemplo, um aumento de impostos em 1997, o que debilitou uma frágil recuperação. 36. Vender um título para provocar a baixa (short selling) implica, com efeito, a promessa de recomprar o título, digamos, em três meses, tendo recebido por ele o preço corrente. Se o preço cair, por exemplo, de cem para oitenta dólares, a pessoa que o vendeu pode comprá-lo de volta por oitenta dólares e embolsar os vinte dólares da diferença. Quanto maior for a queda do preço, maior será o lucro. 37. Em certo sentido, o ataque foi similar à famosa “jogada dupla” de Hong Kong, durante a crise da Ásia Oriental, quando os especuladores montaram um ataque concertado contra a moeda de Hong Kong e a bolsa de valores. Com o ataque à moeda, os especuladores imaginaram que Hong Kong tentaria salvá-la. A maneira convencional de fazê-lo é o aumento das taxas de juros, o que deprime os preços das ações cotadas na bolsa. Por conseguinte, eles venderam as ações que detinham, apostando que os seus preços cairiam. Se o governo aumentasse as taxas de juros, eles ganhariam dinheiro na bolsa de valores. Se o governo não o zesse, e a moeda se desvalorizasse, eles ganhariam dinheiro no mercado de câmbio. De qualquer maneira, teriam um lucro garantido. Ao menos, assim pensavam eles. Mas os governos não são impotentes, mesmo diante da força do mercado nanceiro. O governo de Hong Kong aumentou as taxas de juros e interveio na bolsa de valores, comprando ações. Os especuladores perderam nas duas instâncias. Os mercados caram furiosos. Até mesmo funcionários do Tesouro americano, re etindo as objeções de Wall Street,

expressaram insatisfação. Não é assim que os governos devem responder a um ataque, disseram eles. Devem distribuir dinheiro, mas não contraatacar. Hong Kong violara os princípios básicos do capitalismo! Mas Hong Kong não só estabilizou a sua economia, como também teve um belo lucro com a iniciativa. Na situação atual, os especuladores estavam atacando tanto a Grécia quanto o euro, talvez raciocinando que, qualquer que fosse a reação da União Europeia, a con ança no euro sofreria desgaste. E tinham razão. Sobretudo porque a reação europeia não inspirou con ança. 38. Para uma descrição da maneira utilizada para esconder a dívida grega, veja Louise Story, Landon omas, Jr. e Nelson D. Schwartz, “Wall St. helped to mask debt fueling Europe’s crisis”, New York Times, 13 de fevereiro de 2010, página A1, disponível em http://www.nytimes.com/2010/02/14/business/global/14debt.html. 39. É preciso pôr em perspectiva o tamanho daquilo de que a Grécia necessitava. As suas necessidades nanceiras para 2010 eram, por exemplo, apenas uma fração (menor do que a terça parte) da soma que foi dada a uma única corporação nanceira (a aig). 40. A crise da Islândia é descrita em grande detalhe no capítulo 1. Eventos subsequentes tornaram clara a inadequação da reação europeia. O Reino Unido e os Países Baixos haviam adiantado dinheiro aos depositantes e queriam que a Islândia o restituísse. A Islândia não se sentia legalmente obrigada a fazê-lo, mas desejava uma solução que fosse justa e equitativa para todos. O Reino Unido, no entanto, queria cobrar da Islândia uma taxa de juros consideravelmente mais elevada do que a taxa pela qual ela própria obtinha créditos, ou seja, queria ter um lucro com o negócio. Isso não era aceitável para o povo islandês, que teria de levar uma geração inteira para pagar essas dívidas, que eram consequência não só do fracasso dos bancos do país, mas também dos reguladores britânicos e holandeses. Não houve surpresa, portanto, quando os islandeses rejeitaram essa solução com mais de 90% dos votos. 41. O saldo, ou superávit, comercial é o excesso das exportações sobre as importações. O saldo em conta corrente envolve outras coisas mais, como as exportações de “invisíveis”, por exemplo, os gastos de estrangeiros com turismo, educação e saúde no país. 42. Isto é explicado com maior detalhe no capítulo 8.

O Mecanismo Europeu de Intercâmbio de Divisas (European Exchange Rate Mechanism — erm) foi um sistema criado em 1979 com o objetivo de reduzir a volatilidade das diversas moedas europeias e criar um sistema monetário estável. O erm estabeleceu margens xas dentro das quais as moedas nacionais podiam operar. 44. O dado se refere a 2009. Os dados anteriores podem ser vistos em http://www.census.gov/foreign-trade/balance/c5700.html#2009. 45. Há, contudo, considerável desacordo a respeito da extensão do “desalinhamento” da taxa de câmbio da China — desde os que creem que não existe nenhum desalinhamento até os que os que entendem que a China deve valorizar sua moeda em algo como 30%. Parte do problema está em que as taxas de câmbio “equilibradas” são afetadas por uma série de políticas. Se, por exemplo, a China permitisse aos cidadãos chineses investir livremente nos Estados Unidos, é possível que o uxo dos fundos provenientes da China pudesse levar até a uma depreciação da moeda. Os in uxos poderiam ser desestimulados por meio de taxas sobre os ganhos de capital, especialmente os ganhos de capitais de curto prazo associados à especulação — e essas taxas também poderiam levar a uma depreciação da moeda. Alguns críticos argumentam ainda que os Estados Unidos têm mantido a sua taxa de câmbio arti cialmente baixa por meio de políticas anormais relativas à taxa de juros. 46. Os enormes subsídios agrícolas dos Estados Unidos e da União Europeia complicam o cenário da valorização da moeda chinesa. Eles deprimem os preços da produção dos camponeses pobres da China e conspiram contra os esforços daquele país no sentido de reduzir a pobreza rural. Gastar dinheiro para contrabalançar esses efeitos por meio de políticas agrícolas distorsivas signi ca usar fundos escassos que poderiam ser melhor empregados no aperfeiçoamento da saúde pública e na promoção do crescimento econômico. Veja o capítulo 8 e Stiglitz, Making Globalization Work, op. cit. 47. Reuters, “Piraeus port sees return to full-year pro t”, 3 de dezembro de 2008. Empresas chinesas continuaram a investir na Grécia após a chegada da crise. Veja Reuters, “China, Greece sign deals, want stronger business ties”, 15 de junho de 2010. 43.

O gasto nominal com a defesa nacional de 2000 a 2009 foi de 4,7 trilhões de dólares. Veja Office of Management and Budget, “Table 3.2 — Outlays by function and subfunction: 1962-2015”, Tabelas históricas e proposta orçamentária do presidente disponíveis em http://www.whitehouse.gov/omb/budget/historicals/. 49. John Arlidge, “I’m doing ‘God’s work’. Meet Mr goldman Sachs”, Sunday Times, 8 de novembro de 2009, disponível em http://www.timesonline.co.uk/tol/news/world/us_and_americas/article690 7681.ece. 50. Um “repo” não é nada mais do que a venda de um ativo (um título) com a promessa de recompra (“repurchase”). Nesse sentido, pouco difere de um empréstimo colateralizado. Isso permitiu a Lehman Brothers ngir que dispunha de mais dinheiro e menos papéis nos seus balanços. As somas envolvidas eram grandes: “Lehman fez transações de repo 105 no valor de 38,6 bilhões de dólares, 49,1 bilhões de dólares e 50,38 bilhões de dólares respectivamente no quarto trimestre de 2007 e no primeiro e segundo trimestres de 2008”, de acordo com o Relatório do Examinador nos procedimentos do capítulo 11 para Lehman Brothers Holding Inc, disponível em http://lehmanreport.jenner.com/VOLUME%203.pdf. 51 . A ação da sec contra a Goldman arguiu que John Paulson “teve um papel in uente na seleção dos dados de referência” ao mesmo tempo em que rebaixava esses dados por meio de swaps de crédito. A alegação da sec está disponível em http://www.sec.gov/litigation/complaints/2010/comppr2010-59.pdf. Em 15 de julho, a Goldman Sachs nalmente concordou que havia cometido um “erro” e pagou uma multa sem precedentes para uma empresa de Wall Street. Veja a revelação da sec em http://www.sec.gov/news/press/2010/2010-123.htm. 52. A Goldman Sachs alegou com estrépito que os investidores eram so sticados, que eles sabiam que havia alguém mais do outro lado da transação fazendo a aposta contrária e que, como de praxe, a empresa nunca revela o nome de quem ocupa o lado oposto. Mas tudo isso é enganoso. O que tem a relevância crucial é que as hipotecas não haviam sido escolhidas ao acaso e sim levando em conta a possibilidade de perder dinheiro se a bolha estourasse. 48.

Os especuladores aproveitaram-se também de uma matéria publicada em um importante jornal de nanças no sentido de que a Grécia procurara a China para pedir ajuda. Altos funcionários governamentais disseram-me que a notícia não era verdadeira. Embora um dos seus assessores nanceiros em Wall Street houvesse recomendado essa linha de ação, a Grécia rejeitou a ideia. A con ança na integridade dos mercados nanceiros foi novamente erodida por rumores de que a notícia havia sido plantada por alguns dos que estavam especulando contra a Grécia e que ganhariam dinheiro se o valor dos seus títulos caísse. 54. Uri Dadush e outros, “Paradigm lost: e euro in crisis”, Carnegie Endowment for International Peace, Washington, DC, 2010, disponível em http://carnegieendowment.org/ les/Paradigm_Lost.pdf. 55. Apesar disso, alguns dos seus bancos precisaram ser resgatados e outros aparentam fragilidade. 56. É digno de nota que, apesar de duas mil páginas de texto, uma parte tão grande da reforma nanceira tenha sido deixada ao alvitre dos reguladores. Como assinalou o New York Times: “Ela é notavelmente lacônica em termos especí cos e dá, assim, aos reguladores um poder signi cativo para determinar o seu impacto e aos litigantes de ambos os lados uma segunda oportunidade para in uir sobre os resultados”. Veja também Binyamin Appelbaum, “On nance bill, lobbying shis to regulations”, New York Times, 26 de junho de 2010, disponível em http://www.nytimes.com/2010/06/27/business/27regulate.html. 57. O papel do governo de Obama em todas essas questões tem sido confuso e ambíguo. Se, por um lado, ele acabou por apoiar ações destinadas a reduzir alguns dos con itos de interesse que se haviam tornado lugarescomuns desde a revogação da lei Glass-Steagall, por outro lado, dava, por vezes, a impressão de fazê-lo com relutância. Aparentemente, ele se opôs a dispositivos cruciais que tinham o objetivo de encorajar os bancos a voltar a concentrar-se na realização de empréstimos — e a desencorajá-los a prosseguir com a prática dos swaps de crédito, nos quais os contribuintes, na verdade, assumem uma parte do risco. 58. Pode ser encontrado aqui: http://frwebgate.access.gpo.gov/cgibin/getdoc.cgi?dbname=111_cong_bills&docid=f:h4173enr.txt.pdf. 53.

. Em particular, as regras dos cartões de crédito que obrigam qualquer negociante que aceite, digamos, um cartão Visa ou MasterCard a honrar todos os cartões sem cobrar do usuário. Isso signi ca que as piores práticas persistirão: os cartões especiais dão recompensas pelas quais os comerciantes têm de pagar altas taxas. Os custos dessas taxas são pagos diretamente por eles e parcialmente repassados aos consumidores, inclusive os que não usam cartões especiais (e que, em geral, têm renda mais baixa). 60. Outro dispositivo importante destinado a proteger os cidadãos comuns dá à sec o direito — depois de seis meses de estudos adicionais — de impor uma responsabilidade duciária aos intermediários que prestam consultoria a respeito de investimentos. (Impor a responsabilidade duciária signi ca que os consultores tem de agir em consonância com os melhores interesses daqueles que supostamente são por eles representados: ou seja, que os consultores não podem simplesmente roubá-los com desfaçatez.) 61 . A lei de falências efetivamente encoraja os derivativos, os quais têm prioridade sobre outros elementos da estrutura do capital quando uma empresa vai à falência. Quando os derivativos são emitidos por bancos assegurados pelo governo, os contribuintes são efetivamente corresponsabilizados, o que é uma forma oculta de subsídio. Os compradores de derivativos queixam-se por vezes de que a eliminação do subsídio (aumentando o requisito de capital para as operações, tal como acontece com outras formas de seguro) aumentará os custos, mas é exatamente assim que deve ser. Não existe argumento válido para que os contribuintes subsidiem essa forma particular de seguro (se é que eles dão alguma segurança) e menos ainda para que se subsidie essa forma particular de aposta (se é que essa é a verdadeira natureza dos derivativos). 62 . O Fed opôs-se a esse dispositivo, sugerindo que é importante que os bancos e os tomadores de empréstimos possam distribuir os seus riscos para proteger-se deles. O argumento era falso: o dispositivo proporcionado nem sequer afetava a capacidade que tem um banco de oferecer a um cliente comercial um swap ligado à construção de um empréstimo. Apenas dizia que esse “seguro” não deveria ser efetivamente subsidiado pelos contribuintes. Quando um banco faz um empréstimo por uma casa, por exemplo, ele muitas vezes exige — e facilita — a compra de um seguro por 59

parte do tomador. Mas isso não signi ca que o banco tenha que participar do ramo dos seguros contra incêndio. A oposição do Fed e do Tesouro à imposição de limites aos derivativos tornou-se um símbolo da posição que tomaram com relação à reforma regulatória. 63. Como acontece no caso de tantos outros dispositivos, devemos dizer “provavelmente”, ou “se Deus quiser”, visto que tantos aspectos foram deixados nas mãos dos reguladores. 64. O capítulo 1 documenta as previsões persistentemente otimistas dos funcionários americanos nos primeiros estágios da crise. O governo referiase reiteradamente aos “brotos verdes” na primavera boreal de 2009. Mas também o Banco Central manteve persistentemente um otimismo excessivo, assim como já vinha fazendo no período imediatamente anterior à crise. Ele não podia, contudo, ignorar totalmente o que acontecia: as projeções do próprio Banco Central americano a respeito das taxas de desemprego para 2010 e 2011 se elevavam a cada reunião celebrada no primeiro semestre de 2009, o que indicava que os problemas econômicos estavam sendo reiteradamente subestimados. Mesmo assim, em maio de 2009, Ben Bernanke disse: “Não acreditamos que [o desemprego] chegue a 10%” quando já em outubro esse nível era atingido, mantendo-se assim por três meses. Uma coisa é que um presidente pouco versado em matérias econômicas demonstre con ança excessiva na economia — o que, em certo sentido, faz parte do seu trabalho —, mas quando o próprio Banco Central erra grosseiramente no diagnóstico da situação econômica, isso exerce um efeito duradouro sobre a sua credibilidade, sobretudo quando outros agentes estão apresentando, no mesmo momento, uma interpretação muito mais precisa dos dados. 65. Com efeito, essa foi uma das teses importantes do meu livro anterior, escrito com Linda Bilmes, The three trillion dollar war: The true cost of the Iraq conflict, op. cit. 66 . Há um exemplo especí co de reescritura da história do qual eu próprio participei. Em abril de 2009, o presidente Obama convidou para um jantar na Casa Branca um grupo de economistas (inclusive eu próprio) que tinham feito críticas a certos aspectos dos seus programas, como a adequação dos estímulos e a concepção dos resgates dos bancos. O jantar foi descrito como o início de um diálogo, mas na verdade parece ter sido

um evento único e isolado. E por causa da sua singularidade recebeu atenção excessiva da imprensa. Alguns relatos publicados dizem que os membros do Tesouro e do poder executivo a rmaram que os críticos tiveram a oportunidade de defender a nacionalização dos bancos e que o presidente não se deixara persuadir nesse sentido. Na verdade, as decisões cruciais a respeito do que fazer com os bancos em estado crítico já haviam sido tomadas e a questão não se referia à nacionalização dos bancos, mas sim à necessidade de seguir as regras estabelecidas, que requerem que os bancos que têm capital inadequado sejam colocados em concordata (ou postos sob o controle do governo), que é o nome que se dá à falência no caso dos bancos americanos. A maior parte dos que compareceram ao jantar concordou com a visão expressa neste livro de que não seguir essas regras fora um erro. Mas ninguém instou o presidente a reverter a sua decisão. Era tarde demais. No entanto, diversos participantes argumentaram com vigor que se os bancos voltassem a precisar de capital, as regras clássicas do capitalismo deveriam ser aplicadas. Felizmente para os bancos grandes demais para poder falir não foi necessário o aporte de capital adicional por parte do governo, mas no caso dos bancos menores os procedimentos ortodoxos foram aplicados. Além disso, eu e outros argumentamos que uma segunda rodada de estímulos seria necessária. Parece claro agora que esse ponto de vista estava correto. 67. Este livro focaliza a liderança econômica. Há outras questões que são igualmente importantes. O fato de que os Estados Unidos ampliaram uma guerra impopular na Afeganistão, apoiando um governo fortemente criticado por sua corrupção, não ajudou. O não fechamento de Guantánamo serve como um constante sinal de alerta com relação aos abusos cometidos pelos Estados Unidos em matéria de direitos humanos e da violação da Convenção de Genebra e da Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura. Mas houve também desenvolvimentos positivos, inclusive o acordo para a redução dos arsenais nucleares assinado pela Rússia e pelos Estados Unidos em abril de 2010.

Copyright © 2010 by Joseph E. Stiglitz   Gra a atualizada segundo o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.   Título original Freefall — America, free markets, and the sinking of the world economy   Capa João Baptista da Costa Aguiar   Preparação Leny Cordeiro   Revisão Carmen S. da Costa Marise S. Leal   ISBN 978-85-8086-272-0   Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz ltda. Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32 04532-002 — São Paulo — sp Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br