Nietzsche Em Suas Obras [Primeira edição] 8511120637

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Nietzsche Em Suas Obras [Primeira edição]
 8511120637

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Table of contents :
Folha de Rosto
Ficha Técnica
Sumário
Apresentação à edição brasileira
Prefácio
Sua Essência
Suas Metamorfoses
O "Sistema Nietzsche"
Apêndices

Citation preview

LOU

ANDREAS-SALOMEÉ

NIETZSCHE

EM OBRAS

Tradução: JoséCarlosMartinsBarbosa

editora

brasiliense

SUAS

Copyright O by Insel VerleagFrankfurtam Main, 1983 Título original: FriedrichNietzschein seinenWerken

ISBN: 85-11-12063-7 Primeira edição,1992

Preparaçãode originais: Maria Amélia Dalsenter Revisão:Ana Maria M. Barbosae Irati Antonio Capa: Qu4tro Arquitetos/ClaudioFerlauto

brasiliense Av. Marquêsde São Vicente,1771 01139- SãoPaulo- SP Fone(011) 67-9171- Fax826-8708 Telex(11) 33271DBLM BR TMPRESSO NOBRASIL

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Apresentação

à edição

brasileira

Roma, abril de 1882. Numa manhã de primavera, Louise von Salomé conhece Friedrich Nietzsche; são apresentados por um amigo comum, Paul Rée, num passeio à Basílica de São Pedro. Lou viajava pela Itália em companhia da mãe. Com vinte e um anos, gozava de uma independência de espírito e liberdade de comportamento desconcertantes para a época embora usuais na Rússia, sua terra natal. Começava a fregiientar os meios intelectuais e decidira dedicar-se à literatura. Nietzsche, aos trinta e sete anos, definia-se como um “espírito livre”. Formado em filologia clássica em Leipzig, cedo foi nomeado professor na Basiléia. Entre 1869 e 1876, ministrou cursos e publicou vários livros. Crises de saúde obrigaram-no a abandonar suas atividades acadêmicas; desde 1879 abraçara uma vida errante. : Em Nietzsche, a “jovem russa” julga encontrar um homem brilhante que poderia auxiliá-la a aprimorar sua formação.-Em Lou, o filósofo espera ter “uma discípula”, “uma herdeira” que continue seu pensamento. Encontros e desencontros marcam essa relação profunda — e efêmera. | Graças à sua inteligência e personalidade, Lou fará amigos cêlebres. Manterá uma relação ambígua com Nietzsche, apaixonada com Rilke, fecunda com Freud. Em 1894, publicará u biogralfia do filósofo: Friedrich Nietzsche em suas obras; em 1927, a do poeta: Rainer Maria Rilke; em 1931, a do

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APRESENTAÇÃO

psicanalista: Minha gratidão a Freud. Escreverá ainda romances e poemas. Dada à fragilidade de sua saúde e os recursos exíguos de que dispõe, Nietzsche mergulhará cada vez mais na solidão. Abandonado, não terá leitores nem discípulos —e até mesmo os mais próximos o desertarão.: Marcado pelo sofrimento e pela dor, produzirá a parte mais importante de sua obra, construirá sua própria filosofia. . Em 1882, Nietzsche sente-se atraído pela presença de espírito e capacidade de escuta de Lou Salomé. Está seduzido por seu ardor intelectual e desejo de vida. Nesse ano, a “jovem russa” planeja redigir uma biografia do filósofo. Quer descrever esse espírito peculiar para compreender o seu pensamento. Longos passeios, animadas conversas. À Nietzsche, Lou confia o seu projeto; com ele, discute a primeira parte e trechos da segunda, que irão compor o seu livro. (Mas só elaborará a terceira, quando já estiverem afastados). Então, o filósofo parTeceentusiasmar-se com o trabalho. “Sua idéia de reduzir os sistemas filosóficos à vida pessoal de seus autores”, diz ele na carta de 16 de setembro de 1882, “provém diretamente de uma “alma-irmã'; nesse sentido, eu mesmo ensinei a história da filosofia antiga, na Basiléia, e gostava de dizer a meus ouvintes: “tal sistema está refutado e morto — mas a pessoa que se acha por trás dele é irrefutável, é impossível matá-la' ” Em 1894, atentaà repercussão do pensamento de Nletzsche e sensível às distorções por que passam as suas idéias, Lou Salomé decide publicar Friedrich Nietzsche em suas obras. À esta biografia outras se seguirão: a de Meta von Salis, Filósofo e aristocrata. Contribuição para caracterizar Friedrich Nietzsche (Philosoph und Edelmensch. Ein Beitrag zur Characteristik Friedrich Nietzsche) em 1897; a de Paul Deussen, Lembranças de Friedrich Nietzsche (Erinnerungen an Friedrich Nietzsche) em 1901; a de Elizabeth Fôrster-Nietzsche, A vida de Friedrich Nietzsche (Das Leben Friedrich Nietzsche) em 1904. Em seu livro, Lou Salomé opta por uma abordagem psicológica dos textos do filósofo; procura entender as possíveis contradições, neles presentes, como mamfextaçao de conflitos

APRESENTAÇÃO

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pessoais. O propósito é esclarecer o pensador através do hoiném; o pressuposto é o de que, em Nietzsche, obra e biografia comeidem. Por isso, não se propõe inscrevê-lo na história da lilosolia nem aprofundar os seus conceitós. Guiada pela idéia de que “o instinto religioso sempre governou sua essência e seu pensamento”, acaba por fazer uma leitura bastante peculiar de alguns dos temas centrais presentes em sua reflexão. À morte de Deus transforma-se assim em “desejo de endeusamento de si mesmo”; o além-do-homem converte-se em “representação de uma pura ilusão divina”; o eterno retorno torna-se parte integrante de uma “mística”. Todas as suas doutrinas, enfim, nasceriam — segundo a autora — de uma concepção básica: “a monstruosa divinização do filósofo-criador”. Amparando-se na estreita convivência que teve com Nietzsche durante o ano de 1882, Lou Salomé elucida passagens relevantes da vida do filósofo. Esclarece as relações que ele estabeleceu com Wagner e Paul Rée, as transformações por que passou devido à solidão e à doença. Ressalta, ainda, a atração que sentiu pelo positivismo, os estudos que consagrou às ciências da natureza e à importância que atribuiu à teoria do conhecimento. Estes, aliás, são aspectos de sua atividade intelectual que os comentadores negligenciarão por muito tempo. Friedrich Nietzsche em suas obras é o testemunho de alguém que partilhou momentos marcantes com um dos pensadores mais controvertidos de nosso tempo. Se não fornece ao leitor as chaves para compreender em profundidade a filosofia nietzschiana, com certeza lhe dá subsídios para descobrir Nietzsche enquanto ser humano. São Paulo, agosto de 1991 Scarlett Marton*

* Professora do Departamentc;)Í deFilosofiadaUSP. PublicouNietzsche, dasforçascósmicasaos valoreshumanos(Brasiliense,1990).

Lou von Salomé tinha 21 anos quando, em abril de 1882, em Roma, conheceu Friedrich Nietzsche, quase 17 anos mais velho, amigo de Paul Rée, 5 anos mais jovem que ele, e escreveu o livro Friedrich Nietzsche em suas obras com 33, em Berlim, como Lou Andreas-Salomé, pouco antes de partir em sua primeira viagem a Paris como escritora independente. O título “Friedrich Nietzsche em suas obras” deve elucidar que não consideremos o livro uma mera interpretação da obra e que a relação pessoal da autora com Nietzsche, a junção de documentos variados e a citação de trechos de cartas de Nietzsche a ela e a Paul Rée devem igualmente servir aum único fim: revelar o curso evolutivo e cognitivo de Nietzsche, oculto, por assim dizer, em suas obras. — Tais indicações não permitem supor que o encontro de Nietzsche e Lou von Salomé, pré-requisito para a elaboração do livro, só possa ser entendido como o entrecruzamento dos caminhos de suas vidas e de seus pensamentos num momento bem definido, e que sua redação só foi possível num dado 1momento da vida de Lou Andreas-Salomé. Duas coisas, porém, i resistência de Nietzsche a um mero entrecruzamento de duas vidas e a convicção de Lou von Salomé de que sua convivência amigável com Paul Rée duraria a vida inteira, conduviram tanto no caso de Nietzsche como no seu à uma contingência de vida que, por sua vez, possibilitou a ambos

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a consumação das tarefas a eles destinadas: a de Nietzsche como filósofo, a de Lou Andreas-Salomé como conhecedora do homem. Pois sem passar pela solidão das solidões, Nietzsche não chegaria a seus conceitos revolucionários, e sem fracassar na tentativa de basear seu casamento com F. C. Andreas na confiança de Paul Rée manter continuamente atuante a antiga relação que tinham em Deus, ela não se tornaria a Lou Andreas-Salomé que conhecemos. Essas considerações deveriam ser feitas antes de nos ocuparmos documentalmente da relação de Lou von Salomé com ambos, Nietzsche e Paul Rée. Nietzsche que, em vez de ir para Roma, viajara de Gênova para Messina, como um novo Colombo, obteve uma impressão altamente elucidativa de Lou von Salomé através das seguintes palavras de uma carta de Paul Rée que revelam também sua própria perplexidade diante da jovem (20.04.1882): “Com esse passo você causou sobretudo pasmo e aflição a essajovem russa'. Estava tão ansiosa por vê-lo, por falar-lhe, que desejou para tal retornar à Suíça via Gênova, ficando muito furiosa ao sabê-lo tão afastado. É um ser enérgico e incrivelmente inteligente, com atributos muito femininos e mesmo pueris”. Porém, numa carta de Berlim, na noite do ano novo de 1883, com uma retrospectiva sobre o ano que finda, Lou von Salomé dá a entender seu rompimento com Nietzsche e a continuação de seu relacionamento com Rée, então com 34 anos e em temporada na Prússia Ocidental, sua terra de origem: “Foi nos primeiros dias de janeiro quando, cansada e doente, cheguei ao sol da Itália para levar comigo sol e vida para o ano inteiro”, Paul Rée sabe que essas palavras o incluem desde que, em março, em Roma, Lou von Salomé o conquistara para o 1 De famíliaalemã,Lou von Saloménasceuem SãoPauloPetersburgo (Rússia).(N.T.).

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risco.de uma vida emcomum: “Quanto desse sol pairava sobre nossas caminhadas romanas , quanto sobre o idílio de Orta com seus passeios de barco e seu monte Sacro com seus rouxinóis , quanto sobre aquela viagem suíça através do São Gotardo, quanto sobre os dias de Lucerna”. “E quando me separei de mamãe e quis dar forma à vida recuperada, entramos naquela singular relação de amizade da qual depende até hoje a configuração de toda a nossa existência. Relação que, nessa intimidade e reserva, talvez não mais exista igual...” Surpreende que o nome de Nietzsche não seja mencionado nessa carta. Mas podemos vislumbrar o relacionamento dos dois, avivando ou completando as lacunas com dados autênticos. Sobre o Idílio de Orta: “Naqueles dias em Orta , determinei-me revelar a você?, em primeiro lugar, toda a minha filosofia” (esboço de uma carta do início de dezembro de 1882). E reforça: “Naquela ocasião em Orta, projetei conduzi-la passo a passo até as últimas conseqiiências de minha filosofia, você como a primeira pessoa que julguei apta para isso”. “Entrementes, paramos em Orta, nos lagos da Itália do Norte, onde o vizinho monte Sacro pareceu nos ter fascinado. No mínimo, ofendi involuntariamente à minha mãe por nos demorando demais, Nietzsche e eu, no monte Sacro não termos nos reunido a ela em tempo; Paul Rée, que permanecera em sua companhia, também ficou contrariado” (Retrospectiva de vida*, Lou Andreas-Salomé). Segundo o diário de Lou von Salomé em Tautenburg (Lembrança de nosso tempo na Itália), Nietzsche disse ? NictzschetrataLou von Saloméusandoo pronomede tratamento linmualSíc, equivalentea “senhora';optamospelouso de “você'.(N. T.) como títuloMinha Vida(Brasiliense,1985). + Publicadoem português (N )

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“baixo, enquanto subíamos o estreito atalho: “Monte Sacro o sonho mais maravilhoso de minha vida, eu o devo a você” ”. Sobre os Dias de Lucerna: Em maio de 1882, Nietzsche se dirigiu a Lou von Salomé “em pessoa, no Lówengarten de Lucerna, pois agora a intercessão romana de Rée já lhe parecia insuficiente”, “AÃomesmo tempo, porém, Nietzsche providenciou uma fotografia de nós três, apesar da veemente oposição de Rée que, durante toda a vida, guardou aversão doentia à reprodução do próprio rosto”(Retrospectiva de vida). — Partindo de Lucerna, Nietzsche e Lou von Salomé visitaram Tribschen, “o local onde ele vivera com Wagner tempos inesquecíveis” (ver adiante p. 93). O nome Tautenburg (Turíngia), que assinala o auge do intercâmbio intelectual de Nietzsche e Lou von Salomé, não consta da carta à Paul Rée, mas, em seu diário, Lou von Salomé explica para Rée o elo que a liga a Nietzsche nos seguintes termos: “A base religiosa de nossas naturezas é o que temos em comum e justamente irrompeu em nós com tanta força por sermos espíritos livres no sentido mais extremo”. E de Leipzig escreve Nietzsche em meados de setembro a Franz Overbeck: “...porém, o que de mais proveitoso fiz neste verão, foram minhas conversas com Lou. Nossas inteligências e nossos gostos são profundamente afins, e, por outro lado, há tantos contrastes entre nós que somos ao mesmo tempo os sujeitos e objetos mais instrutivos de mútua observação. Ainda não conheci ninguém que soubesse extrair das próprias experiências tamanha quantidade de deduções objetivas, ninguém que soubesse tirar tanto de tudo o que foi aprendido. ... Tautenburg deu a Lou um objetivo”. Quando lemos essa carta, não podemos presumir o que Nietzsche então via diante de si ainda por vencer. E menos ainda o que o aguardava em incidentes, previsões e imprevisões, e que, de reação em reação, o impeliu até as raias do suportável. Em 25 de dezembro, portanto, poucos dias antes da citada carta de Lou von Salomé a Paul Rée, Nietzsche escreve a

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Ovetrbeek; “Ounteminterrompi também a correspondência com minha mae. Já não era sustentável, e melhor fora não a ter sustentado tanto tempo”. “Minha relação com Lou está nos últimos e mais dolorosos munmentos.Pelo menos assim o creio hoje. Mais tarde — se hover um mais tarde — quero dizer uma palavra a respeito. Compaixão, meu caro amigo, é uma espécie de inferno, digam o que quiserem os adeptos de Schopenhauer”. Comparando essa declaração de Nietzsche com a carta de Lou von Salomé a Paul Rée, quase simultânea, fica de todo esclarecido o cruzamento das vidas de Nietzsche e de Lou von Salomé; ele teria se consumado independente da participação de Rée no processo; talvez mais fácil de passar despercebido, ou talvez, de outro modo, mais duro para Nietzsche e provavelmente também para Lou von Salomé. Se agora perguntarmos a nós mesmos que pressupostos guiaram a formação do livro de Lou Andreas-Salomé sobre Nietzsche tal como se apresenta diante de nós, responderemos que, primeiro, a obra intelectual deve ter parecido concluída, e, segundo, a “relação de amizade” entre Lou von Salomé e Paul Rée deve ter caído no esquecimento. (Que o estritamente pessoal se tornasse puro artigo de recordação, depreende-se da natureza do trabalho). Contudo, o processo trágico contido nesse segundo pressuposto só se revela completamente quando consideramos que a mudança do nome significou para Lou von Salomé algo distinto de um processo social natural que, possivelmente, não precisaria excluir a amizade com Rée. Entretanto, é diferente para Lou von Salomé como para Rée — totalmente diferente de como Lou Andreas-Salomé lenta expor em sua Retrospectiva de vida o enigma de seu vasamento. Correta é apenas a frase: “...a coerção sob a qual dei o passo irrevogável não me separou .dele , mas de mum mesma”, Significativamente, o documento biográfico mais importante do espólio de Lou Andreas-Salomé, folhas esparsas de

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31 de outubro de 1888, escritas portanto no segundo ano de vida em comum, deixa claro que não só Hendrik Gillot?, o “homem-deus”, trazia em si o sinal original da essência do filho de Deus perdido e por isso devia ser evitado como homem, mas que também Friedrich Carl Andreas, ainda que de outra forma, trazia omesmo sinal: ou seja, “casado” com ela porque “Dois ... ajoelham juntos”. A cerimônia realizada por Gillot (!) acontecera em junho ' de 1888. Nas penosas lutas dos anos seguintes se perdeu o conhecimento, mantido nas notas do diário, sobre o retorno da tentação; ficou apenas (junto a forte simpatia por Andreas que também inclui o físico) a experiência do impossível. À conclusão da luta, uma espécie de compensação melancólica, está descrita por Lou Andreas-Salomé na frase: “Por fora nada mudou, por dentro tudo” (Retrospectiva de vida). Portanto, podemos afirmar que o espaço, por assim dizer, livre do destino, onde, após a vivência Gillot, Lou von Salomé se sentia abrigada pela pura amizade com Paul Rée, perdeu sua fronteira protetora graças à persistência da mesma força à qual Lou von Salomé acreditava ter escapado. Lou von Salomé não sabia quão profundo era seu desejo de ter (de novo) a seu lado, e Paul Rée, com maior razão, não podia suspeitar quem o defrontava como F. C. Andreas. Ele entrou em solidão. Mas nos antecipamos. O plano de uma vida em comum com Rée que Lou von Salomé lhe descrevera como para sempre na noite do ano novo de 1883, pareceu se cumprir; cerca de 4 anos viveram ambos num círculo de jovens cientistas em Berlim. Foram, na opinião de Lou Andreas-Salomé, os anos mais felizes de sua vida, anos de calma do destino e de recuperação de sua juventude. “Mesmo em nosso círculo ... nem todos conheciam de perto aquele cujas “coletâneas de aforismos' deveriam dar à 3 Pastorda embaixadaholandesaem São Petersburgo e tutorde Lou v. Salomé,25anosmaisvelho;constaqueele fezum pedidodecasamento a Lou. (N. T.)

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tendeénciapsicologizante sua fama mundial: Friedrich Nietzsche. Apesar disso, ele pairava, o perfil coberto, como uma forma invisível, entre nós” (Retrospectiva de vida). No tempo da mais profunda melancolia pela partida de Ree (“o irreparável” como ainda o chamava na velhice) e da luta incipiente pelo esclarecimento de seu problema matrimonial, o trabalho não pôde começar. Sua hora chegou apenas com a compensação encontrada. Pelo visto, Lou Andreas-Salomé lembrou-se então de que, provavelmente logo após seu casamento, escrevera um artigo com declarações sobre a filosofia de Nietzsche. O artigo, um “estudo” intitulado Em memória de um filósofo, destinava-se ao metafísico Ludwig Haller, um dos primeiros do círculo de amigos de Paul Rée e Lou von Salomé, e que, na primavera de 1885, lhes expusera suas múltiplas concepções filosóficas. Haller concluíra a primeira parte de sua obra concebida em dois volumes, Tudo em tudo e Metalógica, metafísica, metapsíquica, e, na madrugada de 1º de outubro de 1887, de bordo de um navio no mar do Norte, deu um salto para a morte “misticamente fundamentado” (Retrospectiva de vida, Vivência de amigos). Esse artigo que, por anos, ficou sem ser impresso, foi pedido de volta à redação da revista Deutsche Rundschau em 1º de março de 1891 “a fim de promover na parte final alguns pequenos melhoramentos, induzidos pelo estudo aprofundado que venho fazendo desde há pouco sobre a filosofia de Nietzsche”. Esses “pequenos melhoramentos” se ampliaram de tal modo que, numa confrontação com as teorias de Haller, Lou Andreas-Salomé desenvolveu as idéias essenciais da filosofia de Nietzsche. (Com essa ampliação o estudo também não foi mmpresso;só há pouco está conosco). As comparações caracterizantes se encontram no 3º capítulo (final) do artigo: “lEnquanto Haller pensa conquistar a verdade através da espirilualização e volatização de todas as coisas até o abstra-

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to-supremo, Nietzsche busca explorar a verdade justamente no total aprofundamento e interiorização das coisas; enquanto Haller aspira à dominar por inteiro, Nietzsche deseja descobrir por partes. Enquanto Haller festeja o triunfo do pensamento, elevando-se acima da Terra e de seu enigma humano (quanto mais alto e mais distante, tanto mais poderoso e mais dominador), Nietzsche satisfaz a tendência ao poder e a busca do domínio próprias do cognoscente*, se enterrando e se revolvendo nesta Terra e em seu enigma humano, incansável até atingir todas as suas profundezas, túmulos e tesouros, até seu todo mais secreto e oculto”. Sempre num crescendo, esta comparação termina assim: “O mais impressionante nesse permanente contraste entre os dois filósofos se expressa na teoria nietzschiana do eterno retorno, na repetição de todas as coisas no ciclo do ser, ou como o próprio Nietzsche expressa drasticamente: que o filósofo não lhes diga apenas “Sim!”, mas que também lhes grite “Da capo!'. Enquanto, para Haller, a visão do condicionamento total do ser leva diretamente à dissolução do indivíduo no infínito, do real na abstração absoluta, vemos em Nietzsche a mesma visão apontar para algo que poderíamos chamar de uma infinitização do finito, uma eternização do real”. “A idéia do eterno retorno, na qual a total fusão do filósofo com a quintessência da vida se mostra pela primeira vez definitiva, se tornou cada vez mais, nos últimos anos, o centro místico do qual o pensamento de Nietzsche, girando como num círculo encantado, cada vez mais se acercava. Então emudeceu. Não lhe terá sobrevindo algo como uma legítima vingança da Terra contra o espírito de fogo que pretendeu atravessá-la até aquela profundeza que não quer se revelar a ninguém? A Terra o tomou prisioneiro como se o enterrasse vivo, à força sufocando-lhe e reprimindo-lhe a voz sob seu peso terrestre”.

— 4 Nooriginalder Erkennende:o que adquireouobtémconhecimento. Optou-sepeloneologismoo cognoscente. (N. T.).

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“Ninguém poderia dizer a que altura seus pensamentos Hleriam se paralisado em definitivo. A mente nietzschiana tinha uma necessidade de mudança e troca que contrastava acirradamente com a rígida e sistemática uniformidade do pensamento de Haller. A filosofia de Haller constrói um círculo perfeitamente fechado que, sem princípio nem fim, reflui para si mesmo em toda parte; na filosofia de Nietzsche há desvios ocultos, sendase linhas secretasentrecruzantes,onde só nos orientamos por permanecerem sempre suaspróprias pegadas, pois estamos sempre seguindo a mesma personalidade intelectual”. “A identificação de seu espírito com o conteúdo do conhecimento é explicado por seu posicionamento frente a ele, por sua fusão com ele, por sua auto-afirmação nele, de tal modo que praticamente o confunde com si mesmo”. A seguir reproduzimos uma declaração de Lou AndreasSalomé sobre o motivo que a levou a escrever sobre Nietzsche. Não se pode concluir que tenha sido induzida a tal só “porque, graças à sua efetiva celebridade, um número excessivo de jovens literatos dele se apoderaria equivocadamente”. Certo é que escrito “o livro ainda cheia de imparcialidade” e que, para ela, só depois de se relacionar pessoalmente com NietzSche, “a imagem de seu espírito se ofereceu propriamente em suas obras” (Retrospectiva de vida). Numa relação encantadora com isso, consta na página 21 do livro de Lou Andreas-Salomé: “...li e discuti com Nietzsche, em outubro de 1882 , o projeto de sua Caracterização”. E ela acrescenta ainda: “O trabalho continha em esboço a primeira parte do presente livro e alguns trechos da segunda; o conteúdo da terceira, o “Sistema Nietzsche' como tal, ainda não havia nascido”. Nessa “caracterização” pode-se ver o gérmen (e, portanto, noutro sentido, o motivo) de seu futuro livro. A seguir a jovem Lou foi tão imparcial, tão convincenteMmenteingênua em relação a Nietzsche que este, como se se Tratasse de uma obra impessoal, soube aceitá-la, e Lou foi tão teceptiva que sua “caracterização” se mostrou duradoura. (As

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linhas seguintes a essa comunicação insinuam também o contexto intelectual em que Lou von Salomé viveu com as idéias | cambiantes de Nietzsche até a redação de seu livro). O livro Friedrich Nietzsche em suas obras está dedicado a Paul Rée na forma de “A um anônimo, em fiel memória”, Sua sombra havia acompanhado o trabalho. Em tempestuosa criatividade, como um passo adiante rumo a si mesma, Lou Andreas-Salomé escreveu o relato Ruth imediatamente antes da viagem a Paris, em março de 1895. (Ele ainda devia seressentir da “pia pré-história, dos restos secretosda identidade entrerelação com Deus e conduta amorosa” — Retrospectiva de vida). Faltam dados mais acurados sobre o prosseguimento do trabalho. Segundo as anotações mantidas, Lou Andreas-Salomé lê em novembro de 1893 “correções tipográficas do Nietzsche”. Na noite de 20 de fevereiro seu marido “põe no correio da estação” as últimas correções. O livro Friedrich Nietzsche em suas obras aparece em Viena ainda em 1894. Desde que Lou Andreas-Salomé, conforme observa em sua Retrospectiva da vida, pouco se ateve “à hostilidade da família Nietzsche e, de modo geral, à literatura nietzschiana após sua morte””, também calaremos arespeito. (O filósofo berlinense Georg Simmel em vão a incitou a uma resposta retificadora). Da pesquisa sobre Nietzsche devemos, porém, citar o que Karl Lówith, no apêndice de seu livro A filosofia de Nietzsche do eterno retorno do mesmo, escreve sobre o livro de Lou Andreas-Salomé: “Essa exposição apareceu em 1894, portanto antes ainda da publicação do auto-retrato de Nietzsche em Ecce Homo. Por isso tanto mais nos surpreende pela prudência e pela maturidade. Nos cinqiienta anos subseqiientes não apareceu nenhuma obra mais centralizada, mas também nenhuma que seja agora tão pouco notada”. Esta nova impressão do livro, portanto, nada significa além de um reaparecimento. Não pretende inserir-se no contexto 5 A partirde 1889atésuamorteem 1900, Nietzscheé considerado mentalmente perturbado.(N. T.).

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das: pesquisas. sobre Nietzsche nem comparar-se com obras posterimies., Quer apenas ser lida como é: a única exposição movida duetamente pela presença pessoal e intelectual de Nietzsehie, vivenciada por v'a mulher que demonstra com isso ser tomo Nictzsche à reconheceu um dia. Não distingamos se léimos o livro por causa de Nietzsche ou do encanto das idéias a que a própria Lou Andreas-Salomé sucumbiu.' O que vem a seguir pode interessar ao leitor, mas não toca a peculiaridade do livro. Em seguida a uma conversa sobre o capítulo Vivência de amigos de suas memórias, Lou Andreas-Salomé emite a reflexão de que poderia tirar Nietzsche de sua vida pelo pensamento. Isso se torna compreensível quando consideramos a carga de destino que, comparados com Nietzsche, lhe granjearam os nomes (em cada caso, através do fundo divino) de Hendrik Gillot, Paul Rée, F. C. Andreas e, em seguida (liberando-a), Rainer Maria Rilke e Sigmund Freud. O significado que o espírito de Nietzsche teve continuamente para Lou v. Salomé já está provado apenas neste livro. Tavez a anotação seguinte nos permita avaliar a que nível descritivo Lou Andreas-Salomé chegou em seu livro. Numa folha de diário, em resposta a uma carta do sociólogo Ferdinand Tônnies, com quem se relacionou intimamente no tempo de Rée, ela assinala: “Tónnies a respeito de Nietzsche: se é maior seu amor à verdade, seu desejo de fama ou seu gosto de destruição. Nada disso, mas sim uma confusão, de ordem demoníaca, de si mesmo com isso antes de se ajoelhar duradouramente. É sempre isso que, mesmo na opção mais destrutiva pela verdade, constrói alturas em torno dele e rasga o sinistro precipício em sua natureza. Essa mistura de ímpeto à verdade e desejo de lima, entusiasmo e vaidade, se volta com fúria destrutiva contra ludo o que se encontra fora desse círculo demoníaco”. "Mas, sem dúvida, Nietzsche é um dos homens mais ricos, tuus sinistros emais ocultos que jamais viveram. Inesperadamente, apindo da escuridão, de modo a quase sentirmos a ne-

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cessidade de seu espírito junto com sua obra espreitar mais uma vez o mundo exterior, mesmo que da escuridão da cela do alienado, ainda que num gigantesco esgar”. (Essa nota poderia ser datada do tempo da clínica de Nietzsche em Iena, em 1890). Todas as declarações posteriores de Lou Andreas-Salomé sobre Nietzsche estão anexas às notas de nosso livro. Ernst Pfeiffer

Divisade Nietzsche: “Increscuntanimi,virescitvolnerevirtus.* (FuriusAntias,em Gellius)

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“Por maisque o homemse expanda com seuconhecimento e por maisobjetivo que pareça,do finalnadalevarádisso a não ser a própriabiografia” (Humano,demasiadohumano,L, 513).

“Mihi ipst scripsi!” exclama Nietzsche repetidamente em suas cartas após a conclusão de uma obra. E por certo é significativo que o maior estilista da época diga isso de si mesmo, ele que, como nenhum outro, conseguiu achar cada uma de suas idéias, emesmo para seus matizes mais sutis, a expressão exaustiva. São palavras reveladoras para quem sabe ler os escritos de Nietzsche: insinuam o segredo em que estão todos os seus pensamentos, o invólucro vivo que os reveste de muitãs formas; insinuam que, no fundo, ele só pensava e escrevia para si próprio e convertia seu próprio eu em pensamentos. Se é tarefa do biógrafo esclarecer o pensador através do homem, isso vale sobremaneira para Nietzsche, pois em nenhum outro autor a obra intelectual exterior e a biografia interior coincidem numa unidade tão plena. Muito particularmente correspondem-lhe as palavras que exprime sobre os filósofos em geral na carta acima: que se devem provar os sistemas nos atos pessoais de seus autores. Mais tarde expressou a mesma opinião deste modo: “Aos poucos, evidenciou-se para mim o que toda grande filosofia foi até hoje, ou seja, a confissão ' pessoal de seu autor e uma espécie involuntária e despercebida ' de memórias” (Para além de bem e mal, 6). Pois esse também foi o pensamento diretor em meu projeto

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ele em outubro de 1882. O trabalho continha, em esboço, a primeira parte do presente livro e alguns trechos da segunda; o conteúdo da terceira, o “Sistema Nietzsche” como tal, ainda não havia nascido. No decorrer dos anos, em conseqiiência das obras que se seguiam rapidamente, aquela caracterização ampliou-se ainda mais, e partes dela já foram publicadas em artigos especiais.' Para mim, a questão exclusiva era descrever os traços principais do espírito peculiar de Nietzsche, porque só esse conhecimento permite compreender sua filosofia e seu respectivo desenvolvimento. Para esse fim limitei-me voluntariamente tanto nas considerações puramente teóricas quanto . na biografia estritamente pessoal; ambas não poderiam ter um tratamento muito extenso se o traçado das linhas básicas de sua essência devesse ressaltar nitidamente. Quem quisesse testar Nietzsche em seu significado como teórico, ou seja, naquilo que, porventura, ele pudesse ensinar à filosofia corporativa, desistiria frustrado sem avançar até o cerne de seu significado. Pois o valor de suas idéias não repousa em sua originalidade teórica nem naquilo que pode ser dialeticamente fundamentado ou refutado, mas, ao contrário, na força íntima através da qual uma personalidade fala a outra personalidade, naquilo que, segundo sua própria expressão, pode ser refutado, mas “não pode ser morto”. Quem, por outro lado, quisesse partir da vivência exterior de Nietzsche a fim de apreender seu interior, igualmente reteria nas mãos uma casca vazia da qual seu espírito teria escapado. Pois de Nietzsche se pode dizer que, na verdade, nada vivenciou exteriormente:? Toda a sua vivência foi tão profundamente interior que só se comunicava no diálogo, de boca a boca e nos pensamentos de suas obras. À soma de monólogos em que, no fundo, consistem os muitos volumes de suas coletâneas de aforismos forma uma grande e única obra memorialística em cuja base repousa à imagem de seu espírito. É essa imagem que procuro traçar aqui: a vivência das idéias em seu significado para a essência do espírito de Nietzsche, à autoconfissão em sua filosofia. Embora, desde há alguns anos, seu nome seja mencionado mais fregilentemente que o de qualquer outro pensador; embora

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mimuilas penas dele se ocupem, em parte para angariar-lhe disvipulos, em parte para contestá-lo, permanece Nietzsche, nos lraços de sua individualidade espiritual, quase um desconhevido. Pois desde que o pequeno e esparso grupo de leitores que sempre possuiu — e que, de fato, sabia lê-lo — se transformou num grupo numeroso de adeptos; desde que vastos círculos dele se apoderaram, sucedeu-lhe o destino que ameaça todo aforista: algumas de suas idéias, fora do contexto e por isso interpretáveis a bel-prazer, foram transformadas em motes e chavões de correntes inteiras, ressoando na luta de opiniões e na disputa entre partidos, das quais ele mesmo se manteve completamente afastado. Provavelmente, deve a essa circunstância sua rápida fama, o súbito rumor em torno de seu nome silencioso; mas o que tem de melhor e de absolutamenteespecial e incomparável a oferecer passou, talvez por isso, despercebido e assim permaneceu; terá mesmo recuado para uma obscuridade ainda mais profunda. Sem dúvida, muitos ainda o festejam ruidosamente com toda a ingenuidade e credulidade dos espíritos desafeitos a crítica, mas não justamente estes que nos lembram, involuntariamente, suas palavras amargas: “(fala o desiludido): “Escutei o eco e só ouvi elogios' ” (Para além de bem e mal, 99). Nem sequer um deles o terá seguido verdadeiramente, longe dos outros e de suas disputas diárias, na comoção de seu interior; nem sequer um deles terá seguido esse espírito solitário, quase insondável, familiar e estranho ao mesmo tempo, e que delirava trazer em si o monstruoso e que desabou num delírio monstruoso. Assim, é como se estivesse entre aqueles que mais o pre7am, como um forasteiro e eremita cujo passo só se fez perder cm seu meio e de cuja figura encoberta ninguém ergueu o manto; sim, é como se ele lá estivesse com a queixa de seu / uratustra” nos lábios: “VTodoseles falam de mim quando à noite sentam em volta e logo, mas ninguém pensa em mim! Esse é o novo silêncio que aAprendi:o ruído das pessoas à minha volta estende um 16 em tomo de meus pensamentos”.

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Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, único filho de um pastor, em Rócken, perto de Liitzen, de onde mais tarde seu pai foi transferido para Naumburg. Recebeu suas instrução escolar na vizinha Escola de Pforta e foi então, como estudante de filologia clássica, para a Universidade de Bonn, onde na época era professor o afamado Ritschl. Estudou quase exclusivamente com Ritschl e com ele também teve um relacionamento pessoal intenso, seguindo-o no outono de 1865 para Leipzig. Em seu período de estudos em Leipzig ocorreu o primeiro contato pessoal com Wagner, que veio a conhecer na casa da irmã deste, a esposa do prof. Brockhaus, depois de já se ter familiarizado previamente com suas obras. Antes ainda de sua licenciatura, em 1869, a Universidade de Basiléia convidou Nietzsche, com 24 anos, para a cátedra do filólogo Kiessling, que de lá partiu para oJohanneum em Hamburgo. Nietzsche recebeu primeiro o cargo de professor adjunto, mas logo depois o de titular de filologia clássica, e a Universidade de Leipzig conferiu-lhe o doutorado sem a prévia Jlicenciatura. Junto ao corpo docente universitário, Nietzsche assumiu o curso de grego na terceira (e mais elevada) série do Paedagogium de Basiléia —um instituto intermediário entre o secundário e a universidade —, onde ensinavam outros professores universitários, como o historiador da cultura Jacob Burckhardt e o filólogo Mãâhly. Nietzsche conquistou aí grande influência sobre seus alunos; seu raro talento de cativar jovens espíritos e de agir sobre eles, desenvolvendo-os e estimulando-os, desabrochou totalmente. Burckhardt disse então que Basiléia nunca possuíra um professor como tal. Burckhardt pertencia ao círculo de amigos mais íntimos de Nietzsche, que contava ainda com o historiador eclesiástico Franz Overbeck e com o filósofo kantiano Heinrich Romundt. Com os dois últimos Nietzsche morou em uma casa que, após a publicação de Considerações extemporâneas, recebeu na sociedade de Basiléia o cognome de Gifthútte (choça venenosa). Ao fim de sua permanência em Basiléia, Nietzsche viveu por algum tempo com sua única irmã, Elisabeth, que mais tarde se casou com | Fórster, amigo de juventude doirmão,

indo o casal

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para o Paraguai. Em 1870 Nietzsche participa da guerra fran« prussiana como enfermeiro voluntário; não muito tempo depois aparecem os primeiros sintomas ameaçadores de uma docnça encefálica, que se manifesta em dores e náuseas violentas e periodicamente recorrentes. Se dermos crédito às próprias declarações verbais de Nietzsche, esse mal seria de origem hereditária, e seu pai teria sucumbido a ele. No ano de 1876 já se sentia tão doente da cabeça e dos olhos que teve de se fazer substituir no Paedagogium, e a partir de então seu estado piorou de tal modo que várias vezes esteve perto da morte. “Algumas vezes escapei das portas da morte, mas terrivelmente torturado. Assim vivo dia após dia, e cada dia tem sua história de doença.” Com essas palavras Nietzsche descreve, em carta aum amigo, os sofrimentos que o acompanharam por aproximadamente quinze anos. Foi-lhe inútil passar o inverno de 1876-77 no clima ameno de Sorrento, onde ficou em companhia de amigos: de Roma lhe viera sua amiga Malwida von Meysenbug (autora das conhecidas Memórias de uma idealista e discípula de Wagner); da Prússia Ocidental, o dr. Paul Rée, a quem já se ligava por amizade e identidade de propósitos. A esse pequeno ambiente doméstico se associara ainda um jovem da Basiléia, tuberculoso, de nome Brenner, que, porém, morreu logo depois. Como a estada no Sul também não teve efeito favorável sobre seu estado de saúde, Nietzsche, em 1878, abandonou definitivamente sua docência no Paedagogium e, em 1879, sua cadeira 11 universidade. Desde então levou apenas uma vida de eremita, parte na Itália (sobretudo em Gênova), parte nas montanhas suíças, no vilarejo de Sils-Maria, no vale do Engadina, próximo ao desfiladeiro Maloja. se, por um lado, sua vida exterior nos parece com isso emennada e finda, por outro, só agora desponta efetivamente sua vida de pensador, de modo que o filósofo Nietzsche de que vamos tratar só nos aparece nitidamente no desfecho desses i ontecimentos. Não obstante, voltaremos a tratar minuciosamente de todas as voltas do destino e de todas as vivências,

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aqui brevemente delineadas, ao analisarmos os diversos períodos da evolução de seu espírito. Sua vida e sua criação decompõem-se fundamentalmente em três períodos que se interpenetram e abrangem um decênio cada um. Dez anos, de 1869 a 1879, durou sua docência em Basiléia. Essa atividade filológica coincide, no tempo, quase integralmente com a década em que foi discípulo de Wagner e com a publicação daquelas obras influenciadas pela metafísica de Schopenhauer. Seu wagnerismo se estende de 1868 a 1878, ano em que, indicando mudança em sua orientação filosófica, remete a Wagner sua primeira obra positivista, Humano, demasiado humano. Do início dos anos 1870 até o outono de 1882 Nietzsche esteve ligado a Paul Rée; a ruptura se deu com a conclusão de A gaia ciência, última das obras de Nietzsche que repousam ainda em bases positivistas. Nesse mesmo outono Nietzsche tomou a resolução de se abster de toda atividade literária por dez anos. Nesse tempo do mais profundo silêncio queria provar a exatidão de sua nova filosofia voltada para o místico e só em 1892 surgir como seu arauto. Não concretizou esse propósito, mas justamente nos anos 1880 exibiu uma atividade quase ininterrupta e então, antes ainda do fim da década por ele aprazada, emudeceu: em 1889 uma violenta erupção de sua doença põe fim a toda à sua criação. Porém, o período entre a renúncia a sua cátedra em Basiléia e a cessação de toda atividade em geral compreende mais uma década que vai de 1879 a 1889. A partir de então Nietzsche, enfermo, vive em Naumburg com a mãe, após uma curta temporada no instituto do professor Binswanger em lena. Os dois retratos anexados a este livro mostram-no durante esses dez últimos anos de sofrimento. Sem dúvida foi esse o tempo em que sua fisionomia e todo o seu exterior apareceram mais caracteristicamente marcados, tempo em que a expressão total de sua essência, já completamente impregnada por sua fervilhante vida interior, revelava até mesmo o que ele retinha e ocultava. Eu diria que algo oculto, o pressentimento de uma

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solidão silêenciosa, era a primeira impressão mais forte que 1m calivava na aparência de Nietzsche. Ao observador superfi inl ela nada oferecia de incomum: esse homem de estatura imediina, em suas roupas extremamente modestas, mas também exstiemamente bem-cuidadas, com traços calmos e o cabelo « astanho puxado para trás com simplicidade, podia facilmente pussar despercebido. As linhas da boca, finas e muito expressivas, eram quase completamente cobertas por um grande bipode, penteado para a frente; tinha um sorriso leve, um jeito de falar calmo e um andar cuidadoso e reflexivo, em que inclinava um pouco os ombros. Dificilmente se poderia imaginar essa figura em meio a uma multidão humana; ela trazia o cunho do isolamento e da solidão. Incomparavelmente belas e nobremente formadas, de modo que involuntariamente atraíam o olhar para si, eram as mãos de Nietzsche, e ele próprio acreditava que lhe revelassem o espírito. Uma nota a respeito se acha em Para além de bem e mal (288): “Há homens corí-N denados a ter espírito; podem virar e revirar quanto queiram | e manter as mãos diante dos olhos traidores (como se as pró- ; prias mãos não fossem também traidoras!).º — * E A expressão dos olhos, sim, era verdadeiramente traidora. Semicerrados, não possuíam, contudo, nada do olhar espreitador, pestanejante, indiscreto, que rejeitamos em muitos míopes; pareciam, antes, guardiães e protetores de tesouros próprios, de segredos calados, que nenhum olhar sem permissão deveria sequer roçar. A visão deficiente dava a seus traços uma qualidade toda especial de encanto, pois, em vez de refletir impressões exteriores cambiantes, reproduzia apenas o que se pussava em seu interior. Eram olhos que olhavam para o interior e, no mesmo tempo, por sobre os objetos mais próximos, para n distante, ou melhor, para o distante como se estivesse pró*imo, Pois, no fundo, toda a sua investigação de pensador não e1a senão a investigação da alma humana em busca de “suas pmssibilidades ainda não esgotadas” (Para além de bem e mal, 15), possibilidades que ele, incansavelmente, criava a recriava páia si Quando revelava seu ser no curso de uma excitante tenversa à dois, um esplendor passageiro talvez cintilasse em

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seus olhos; porém, se estivesse de humor sombrio, eles expressariam uma solidão lúgubre e quase ameaçadora, que parecia brotar de profundezas inquietantes — daquelas profundezas onde sempre permaneceu sozinho, que não pôde repartir com ninguém, e diante das quais o horror às vezes o arrebatava — e nas quais, por fim, seu espírito naufragou. O comportamento de Nietzsche causava também semelhante impressão do calado e do oculto. No dia-a-dia era de grande polidez e de uma suavidade quase feminina, de uma serenidade constante e benévola; gostava das maneiras elegantes nas relações e lhes atribuía grande importância. Nisso, porém, sempre existiu um gosto pelo disfarce: manto e máscara de uma vida interior quase nunca desnudada. Lembro-me de que, ao falar com Nietzsche pela primeira vez (era um dia de primavera na igreja de São Pedro, em Roma), sua formalidade rebuscada me impressionou e me iludiu durante os primeiros minutos. Porém, a formalidade não enganava por muito tempo nesse solitário, que usava sua máscara tão inabilmente quanto alguém que, oriundo do deserto ou da montanha, usa o casaco dos mundanos. Logo surgiu a questão que ele resumiu nestas palavras: “Em tudo o que um homem deixa ficar visível, pode-se perguntar: o que estará escondendo? do que estará desviando nosso olhar? que preconceitos estará provocando? E ainda: até onde vai a sutileza de seu fingimento? E nisso, onde se engana?” Esse traço representa apenas o reverso da solidão, a partir da qual devemos compreender a vida interior de Nietzsche, ou seja, a partir de um isolamento e de um relacionamento consigo mesmo sempre crescentes. À medida que crescem, todo o seu ser voltado para o exterior se torna aparência, simples véu ilusório que a profunda solidão tece à sua volta apenas para simular temporariamente uma superfície reconhecível ao olho humano. “Homens profundamente pensantes sentem-se cômicos no trato com outros, porque, a fim de serem compreendidos, devem primeiro simular uma superfície” (Humano, demasiado humano, UI, 232). Sim, podemos considerar os próprios pensamentos de Nietz-

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—Nelie, mesmo quando expressos teoricamente, como tais superlícies, sob as quais repousa, insondavelmente profunda e muda, à vivência interior que os originou. Parecem uma “pele que revela alguma coisa, mas que esconde ainda mais” (Para além de bem emal, 32). “Pois — diz Nietzsche — ou ocultamos hossas opiniões ou nos ocultamos sob elas” (Humano, dematado humano, , 338). Encontra para si uma bela denominação quando, nesse sentido, fala dos “ocultos sob os mantos da luz” (Para além de bem e mal, 44), daqueles que se encobrem na celareza de seus próprios pensamentos. Portanto, em cada período da evolução de seu espírito, encontramos Nietzsche em alguma espécie e forma de mascaramento, e é sempre a máscara que efetivamente caracteriza seu estágio evolutivo. “Tudo quanto é profundo ama a máscara ...]. Todo espírito profundo precisa de máscara, e mais ainda, em torno de todo espírito profundo se forma constantemente uma máscara” (Para além de bem e mal, 40). “ — Andarilho, quem és tu? [...] Descansa aqui [...] recupera-te [...]. O que servirá a teu descanso? [...] — ÀAmeu descanso? Ó curioso, o que dizes aí? Mas dá-me, eu te peço ).) — O quê? o quê? fala! — Outra máscara! Uma segunda máscara! [...]” (Para além de bem e mal, 278) E, sem dúvida, somos forçados a pensar que, à medida que seu isolamento e seu relacionamento pensativo consigo mesmo se tornam mais exclusivos, também se aprofunda o Rsignificado de seu disfarce; e que a verdadeira essência por detrás de sua manifestação e o verdadeiro ser por detrás da hparência recuam, mergulhando numa obscuridade maior. Já em O andarilho e sua sombra (175) Nietzsche se refere à "mediocridade como máscara”: “A mediocridade é a mais feliz ds máscaras que o espírito superior pode usar, porque não deixa a grande massa, ou seja, os medíocres, pensar num masearumento [...] e, contudo, ele a põe justamente por causa dela, pParanão irritá-la emesmo, não raramente, por piedade e compaixão”. Partindo dessa máscara do inofensivo, Nietzsche as Vai trocando até chegar à do horrendo, que oculta atrás de si Goilsasninda mais horrendas: “[...] às vezes, a própria loucura

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é a máscara de um saber funesto e seguro demais” (Para além de bem e mal, 270), e, finalmente, alcança a imagem do divino ridente, que se esforça por transfigurar a dor em beleza. Assim, em sua mística filosófica final, aos poucos Nietzsche imerge naquela solidão definitiva, em cujo silêncio já não podemos segui-lo e que só nos deixa, como símbolos e signos, a interpretação de suas ridentes máscaras de idéias, enquanto que, para nós, ele já se tornou “o para sempre extraviado”, conforme se subscreveu numa carta de 8 de julho de 1881, de Sils-Maria. Esse isolamento interior, essa solidão, é em todas as metamorfoses de Nietzsche a moldura invariável de onde sua imagem nos contempla. Por mais que se tenha transvestido, sempre traz consigo “o deserto e o santuário impenetrável aonde quer que vá” (O andarilho e sua sombra, 337). E por isso, quando escreve a um amigo em 31 de outubro de 1880, da Itália, expressa simplesmente a necessidade de sua existência exterior corresponder à sua solidão interior: “A solidão, e por certo a absoluta, aparece cada vez mais nitidamente como minha receita e paixão natural — e devemos ser capazes de produzir o estado em que podemos criar o melhor de nós mesmos, e, para isso, de render muitos sacrifícios”. Porém, o ensejo de transformar seu isolamento interior tão completamente quanto possível num isolamento exterior só lhe foi dado por seu sofrimento corporal, que o afastou dos homens e que só lhe permitiu relações com grandes interrupções, mesmo com alguns de seus amigos — sempre relações raras, a dois. Sofrimento e solidão são, portanto, os dois grandes traços fatais na evolução de Nietzsche, tanto mais pronunciados quanto mais próximo o fim. E trazem até o fim aquela estranha dupla face, exibida exteriormente como uma fatalidade da vida e desejada interiormente como uma necessidade puramente psíquica. Seu sofrimento psíquico, não menos que seu recolhimento e sua solidão, refletia e simbolizava algo de profundamente íntimo, e isso tão diretamente que Nietzsche o acolheu em sua vida como a um amigo e companheiro a ele predesti-

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mdo Assim é que, certa vez, por ocasião de uma mensagem adlepêsames (fim de agosto de 1881, de Sils-Maria), escreve: “ITastimo sempre saber que você esteja sofrendo, que alguma veisa esteja lhe faltando, que você tenha perdido alguém; ao passo que em mim sofrimento e solidão fazem parte da essência, e não, como em você, do supérfluo e do absurdo da existência”. A isso também se referem alguns aforismos, dispersos em sua obra, sobre o valor do sofrimento para o conhecimento. Nietzsche descreve a influência que os humores do doente e do convalescente exercem sobre o pensamento; acompanha as mais sutis transições desses humores até as raias do intelectual. Uma doença periodicamente reincidente como à sua interrompe continuamente uma fase qualquer da vida, sepaTando-a com isso da fase precedente e fornecendo ao indivíduo as experiências e a consciência de duas naturezas. Faz as coisas se tornarem continuamente novas para o espírito — “saber a novo”, diz Nietzsche certa vez com extrema justeza — e lança um olhar totalmente novo mesmo sobre o mais comum e mais Ccotidiano. Cada coisa recebe algo do frescor e do luminoso orvalho da beleza da manhã, porque uma noite a separou do dia anterior. Assim, cada convalescença se torna para ele uma palingenesia de si mesmo e, simultaneamente, da vida à sua volta, e continuamente a dor é “tragada pela vitória”, Se o próprio Nietzsche insinua que a natureza de seu sofrimento se reflete de certo modo em seus pensamentos e obras, a estreita conexão entre o pensar e o sofrer sobressai ainda Mmaisacentuadamente ao considerarmos sua criação e a respectiva evolução como um todo. Não estamos diante daquelas praduais alterações da vida do espírito, sofridas por todo aquele «que cresce até atingir sua grandeza natural, nem das metamorJoses do crescimento, mas sim diante de mudanças e transfornmuaçõesrepentinas, de um oscilar quase rítmico de estados de expírito, que, em última instância, não parecem provir senão de um adoecer em pensamentos e de um convalescer em penNamentos,

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É a mais interna necessidade de sua natureza, o mais penoso desejo de cura, que lhe abre novos conhecimentos. Porém, mal os penetra, mal repousa sobre eles e os assimila à sua própria força, de novo já o arrebata uma nova espécie de febre, um excesso de energia interior que o agita e o impele e que, por fim, o aferroa e o faz adoecer de si mesmo. “A única prova de força é o excesso de força” — diz Nietzsche no prefácio de Crepúsculo dos ídolos; nesse excesso sua força se fere, se desafoga em lutas sofredoras, se estimula até os tormentos e comoções que fertilizarão seu espírito.? Com a arrogante afirmação: “O que não me mata me faz mais forte!” (Crepúsculo dos ídolos, “Máximas e flechas”, 8), Nietzsche flagela-se, não para se aniquilar ou morrer, mas para atingir as febres e ferimentos de que precisa. Essa exigência de dor percorre toda a história de Nietzsche e representa a vérdadeira fonte de seu espírito; ele aexprime com o máximo acerto nas seguintes palavras: “Espírito é a vida que corta a própria vida; no próprio tormento se multiplica o próprio saber — já sabíeis disso? E a felicidade do espírito é ser ungido e consagrado como vítima através de lágrimas — já sabíeis disso? [...] Vós conheceis apenas a centelha do espírito, mas não vedes a bigorna que ele é nem a crueldade de seu martelo!” (Assim falou “Dos famosos sábios”, II, 33). “Aquela tensão Zaratustra, d'alma na infelicidade [...] seu frêmito ao ver o grande colapso, seu engenho e bravura no suportar, no perseverar, no interpretar, no utilizar a infelicidade, e tudo quanto lhe foi dado em profundidade, mistério, máscara, espírito, ardil e grandeza não lhe terá sido dado em meio a sofrimentos, em meio à —— disciplina do grande sofrimento?” (Para além de bem e mal, 225). E cada vez mais se acentuam duas coisas distintas nesse processo: primeiro, a estreita conexão em sua existência entre a vida das idéias e a vida psíquica, a dependência de seu espírito em relação às necessidades e às emoções de seu interior. Segundo, porém, a particularidade que, de tão estreita afinidade, deve sempre resultar novos sofrimentos; é preciso um intenso fervor d'alma toda vez que se deva chegar à suprema clareza,

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á luz Inilhante do conhecimento — mas nunca pode esse fervor diiadiar se em calores benfazejos: deve ferir com fogos abrasadorés é chamas vivas. Aqui também, como exprime na carta acima: “[...j o sofrimento [...] parte da essência”. Assim como o sofrimento físico de Nietzsche se tornou o inmotivode seu isolamento exterior, deve-se também buscar em “seu sofrimento psíquico uma das causas mais profundas de “eu aguçado individualismo, da grande ênfase no “isolado” e 1n “solitário”, no sentido peculiar de Nietzsche. À história lesse ser único é do princípio ao fim uma história de sofrimento e não se compara a qualquer individualismo genérico; seu conteúdo revela menos “auto-suficiência” do que “autotolerância”. lixaminar os altos e baixos dolorosos das metamorfoses de seu espírito é ler a história de outras tantas auto-agressões. Quando Nietzsche aplica estasousadas palavras à sua filosofia: “lisse pensador, não precisa de ninguém que o refute; para lanto ele se basta a si mesmo!” (O andarilho e sua sombra, 249), oculta a longa e penosa luta heróica consigo mesmo. Sua extraordinária capacidade de se habituar continuamente ao mais severo autodomínio, de se aclimatar a cada novo conhecimento conquistado, parece existir somente para tornar cada vez mais comovente sua separação do recém-conquistado. “Estou indo! Levanta acampamento e vem a meu encontro!” ordena-lhe o espírito, e Nietzsche, com altivez, abandona seu teto e busca de novo a escuridão, a aventura e o deserto, com a queixa nos lábios: “Devo levar mais longe meus pés, esses pés cansados e feridos, e porque devo, muitas vezes volto um olhar furioso para as coisas mais belas que não me souberam deter, [...] porque não me souberam deter!” (A gaia riência, 309)., Tão logo se sinta firme numa idéia, numa visão, «umprem-se nele suas próprias palavras: “Quem alcança seu ideal, justamente com isso o ultrapassa” (Para além de bem f /ml[, 73)“ A mudança de opinião e o Ímpeto à metamorfose se entálzim, pois, no coração da filosofia de Nietzsche, determinaudo inteiramente o tipo de conhecimento que adquire. Não é à loa que se nomeia no canto final de Para além de bem e

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mal um “lutador que venceu a si mesmo muitas vezes, / Que dominou muitas vezes a própria força / Que se feriu e se reprimiu através da vitória contra si mesmo”. Nessa disposição heróica de renunciar às próprias convicções, esse impulso toma o lugar da lealdade às convicções.ó Em O andarilho e sua sombra (333) lemos: “Não nos deixaríamos queimar por nossas opiniões; delas não estamos tão seguros. Mas talvez para ter o direito a ter opiniões e amudá-las”. Em Aurora (370) essa idéia se exprime nestas belas palavras: “Nunca reter nem calar para Ti algo que possa ser pensado contra Teus pensamentos. Promete isso aTi mesmo! Isso é parte fundamental da retidão do pensamento. Todo dia deves conduzir Tua campanha contra Ti mesmo. Uma vitória ou uma trincheira conquistada já não dizem respeito a Ti, mas sim à verdade. Mas tampouco Tua derrota diz respeito a Ti”. O título desse aforismo é “Em que medida o pensador ama seu inimigo”. Esse amor, porém, deriva do pressentimento obscuro de que, no inimigo, possa estar oculto um futuro companheiro e de que só ao derrotado aguardam novas vitórias; deriva do pressentimento de que, para Nietzsche, o sempre igual e doloroso processo psíquico de autotransformação é condição indispensável a toda força criativa. “É o espírito que nos salva de ser consumidos por inteiro e reduzidos a cinzas. [...] Livres do fogo, caminhamos, então impelidos pelo espírito, de opinião em opinião, [...] como nobres traidores de todas as coisas” (Humano, demasiado humano, 1, 637). “[...] Devemos ser traidores, praticaf a deslealdade, renunciar constantemente a nossos ideais” (Humano, dêemasiado humano, L, 629). Esse solitário devia, por assim dizer, multiplicar-se a si mesmo, decompor-se numa pluralidade de pensadores à medida que se fechava em si mesmo; só assim lograva dar vida a seu espírito. Oimpulso à auto-agressão era apenas outra modalidade de seu impulso de autoconservação; só se lançando a — novos sofrimentos, escapava a seu sofrimento. “Invulnerável sou apenas em meu calcanhar! [...] E só onde há sepulturas, háressurreições! [...] Assim cantou Zaratustra” (II, 46). Ele,

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a quem a vida “confiou este segredo: — Vê — disse ela ou aquilo que deve sempre se superar a si mesmo” (II, 49).' Com certeza, esse enigma de sua vida foi o ponto sobre o qual Nietzsche refletiu com mais freqiência e profundidade r, portanto, é o ponto sobre o qual suas obras nos informam mais amplamente; no fundo, para ele, todos os enigmas do conhecimento se reduziam a isso.!Quanto mais profundo seu 1econhecimento de si mesmo, tanto mais patente a transformação de toda a sua filosofia num monstruoso reflexo de sua uauto-imagem e tanto mais ingênua sua atitude de nela apoiar 4 imagem do universo. Do mesmo modo como os filósofos sistemáticos generalizaram seus próprios conceitos em leis universais, Nietzsche generaliza sua alma em uma alma universal. Mas para traçar sua imagem não é preciso reduzir previamente o conjunto de suas obras a ele mesmo, o que faremos mais adiante. Aqui, onde Nietzsche será apenas considerado com respeito à estrutura de seu espírito, já se pode ter alguma compreensão para tal procedimento. A riqueza de seu espírito é por demais variada para que se possa manter numa ordem definida: a vi(talidade e a vontade de potência de cada talento e de cada impulso do espírito em Nietzsche levam necessariamente a uma rivalidade entre eles que nunca se abranda. Nele viviam em constante discórdia, lado a lado e tiranizando-se reciprocamente, um músico altamente dotado, um pensador de orientução livre, um gênio religioso e um poeta nato. O próprio Nietzsche tentou, a partir disso, explicar a unicidade de seu espírito e com fregiiência conversava sobre isso detalhadamente, ; Distinguia dois grandes grupos principais de caráter: aquele «ujas diversas emoções e impulsos estão em harmonia entre 1, e aquele cujos impulsos e emoções se reprimem e se hosilizam mutuamente. Comparava os membros do primeiro grupm com o estado da humanidade ao tempo do gregarismo, antesde qualquer articúlação estatal; assim como lá o indivíduo “ó detinha sua individualidade e sentimento de potência no tudlo fechado do rebanho, aqui também os diversos impulsos

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só subsistem no todo da personalidade fechada cujo conteúdo é formado por elas. As naturezas do segundo grupo vivem como se estivessem numa guerra de todos contra todos; a própria personalidade se dissolve de certo modo em um grande número de personalidades impulsivas e arbitrárias, numa pluralidade de sujeitos. Esse estado só é dominado quando se cria, de fora para dentro, um poder superior, uma autoridade mais forte, que saiba governar todos: como uma lei de organização estatal para a qual só há forças submetidas. Pois o que, no primeiro grupo, acontece de modo totalmente instintivo, ou seja, a ordenação de cada indivíduo no conjunto, no segundo deve ser conquistado à força das ânsias tirânicas de cada indivíduo, tal como uma hierarquia dos impulsos inexoravelmente rígida.º Vemos que esse é o ponto onde se abriu para Nietzsche a possibilidade de uma auto-afirmação como um todo através do sofrimento de todas as partes. Aqui reside, como que encerrado num botão de flor, o gérmen de sua teoria da decadência, que será lançada mais tarde com esta idéia básica: existe a possibilidade de uma suprema capacidade de criação através de uma constante auto-agressão e de um constante padecimento. Em suma, aqui Nietzsche descobre o significado do heroísmo como ideal. Sua própria imperfeição torturante levou-o ao encontro desse ideal tirânico: “Nossos defeitos são os olhos com os quais vemos o ideal” (Humano, demasiado humano, II, 86). —“O que nos torna heróicos? — Ir ao mesmo tempo ao encontro de nosso maior sofrimento e de nossas maiores esperanças”, -diz Nietzsche (A gaia ciência, 268). E acrescento a isso ainda três aforismos que certa vez ele anotou para mim e que me parecem esclarecer sua concepção com especial nitidez: “A antítése do ideal heróico é o ideal da evolução harmônica do todo — uma bela antítese e muito desejada! Mas apenas um ideal para o homem basicamente bom (Goethe, por exemplo)” ?

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O segundo: “Heroísmo — essa é a atitude de um homem que aspira a um objetivo, comparado com o qual ele já não fem a mínima importância. O heroísmo é a disposição à aulodestruição absoluta”. E o terceiro: “O homem que ambiciona a grandeza é em geral um homem mau; é a única forma de se suportar a si mesmo”, A palavra “mau”, assim como a palavra “bom” acima, não deve ser tomada na acepção de um juízo de valor, de uso corrente ou não, mas apenas como denominação de um estado que sempre indica para Nietzsche a “guerra interna” na alma humana, o mesmo que mais tarde chamaria de “anarquia dos instintos”. Em seu último período criativo, seguindo o curso de uma evolução intelectual definida, Nietzsche estende a imagem desse estado d'alma até a imagem da civilização humana, para a qual valem as seguintes senhas: guerra interna = decadência, e vitória = autodestruição da humanidade para a criação de uma além-de-humanidade. Originalmente, porém, trata-se para ele da imagem de sua própria alma. Com efeito, distingue o temperamento harmônico ou unitário e o heróico ou multifário como os dois tipos de homem: o ativo (handelnd) e o cognoscente (erkennende);, em outras palavras: o tipo contrário à sua própria essência e seu próprio tipo. + Para Nietzsche, ohomem ativo provém dó homem-instinto, não-dividido e não-decomposto, da: natureza de senhor (Herrennatur). Quando segue seu desenvolvimento normal, deve lornar-se cada vez mais firme e seguro de si, e sua força contida deve desencadear atos sadios. Os obstáculos que o mundo exterior possivelmente lhe contrapõe são, ao mesmo tempo, estí1mulo e desafio, pois nada é mais natural do que a luta intrépida vontra o exterior; em nada sua saúde íntegra se mostra tanto quanto em sua belicosidade. Grande ou pequeno,.seu intelecto está sempre à serviço dessa energia vital sadia e detudo quanto jnw lnça bem e Ihe seja necessário; em suas metas, não a combate, não a decompõe, não segue caminhos próprios. 'Totalmente diverso é o cognoscente. Em vez de conduzir “eus mpulsos para uma união sólida que'os proteja emantenha,

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deixa-as divergir tanto quanto possível; quanto mais amplo o domínio que possam abranger, tanto melhor; quanto maior o número de coisas a que estendam suas antenas e que toquem, vejam, ouçam e cheirem, tanto mais essas coisas lhe valerão em seus desígnios de obter conhecimento. Pois doravante “a vida é um meio para o conhecimento” (A gaia ciência, 324), e Nietzsche clama a seus companheiros (A gaia ciência, 319): “Queremos ser nós mesmos [...] nossas experiências e nossas cobaias!” E assim, voluntariamente, renuncia a si próprio como unidade, pois quanto mais polifônico for seu sujeito, tanto mais agradável lhe será: Ásperoe suave,grosseiroe fino, Íntimo e estranho,impuroe puro, Encontrode tolo e sábio, 4) Tudo isso sou e queroser Ao mesmotempo:pomba,serpentee suíno. (A gaia ciência,“Brincadeira,ardile vingança”,11) Pois nós, cognoscentes, devemos ser gratos “a Deus, ao diabo, ao cordeiro e ao verme que habitam em nós [...] com almas anteriores e posteriores, cujos propósitos últimos ninguém vê facilmente, com primeiros e segundos planos que ninguém poderia percorrer até o fim [...] nós, os amigos natos, jurados e enciumados da solidão [...]” (Para além de bem e mal, 44). A alma do cognoscente é a “que tem a escada mais longa e que pode descer mais fundo [...] a alma mais abrangente e capaz de correr, errar e vagar em si mais vastamente; a alma mais sábia, à qual a loucura fala mais docemente [] a que mais se ama a si mesma, e na qual todas as coisas têm Sua corrente e contracorrente, seu fluxo e refluxo [...]” (Assim Jalou Zaratustra, “De velhas e novas tábuas” III, 82). Com alma semelhante, tornamo-nos um ser de “mil pés e mil tentáculos” (Para além de bem e mal, 205), sempre a ponto de escapar de si mesmo para se estender até outro ser exterior: “Uma vez nos tenhamos encontrado, devemos saber nos perder de quando em quando e então de novo nos encontrar, sob o pressuposto de que sejamos pensadores. Pois ao pcnsadorÉ

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/ é prejudicial estar sempre ligado a uma única pessoa”/(O andarilho e sua sombra, 306). AÀmesma coisa expressam os versos seguintes Já me é odiosoconduzir-mea mim mesmo! Amo, comoos animaisde florestae do mar, Perder-mepor um bom tempo, Agachar-mepensativoem fagueiroextravio E, de longe,por fim, chamar-mede volta, Seduzira mim mesmo. (A gaia ciência,“Brincadeira,ardil e vingança,33): O título desses versinhos é “O solitário”, ou seja, aquele queestá omais completamente possível afastado das exigências elutas do mundo exterior. Pois ohomem com essa vida interior setorna menos belicoso exteriormente à medida que se perturba eseabala com as guerras, vitórias, derrotas e conquistas dentro do mundo de seus próprios impulsos. Sozinho, concentrado na expansão de seu espírito, procura, antes, um invólucro pro-: letor contra os eventos ruidosos e agressores da vida exterior; “contudo, mesmo sem eles, já se encontra em meio a lutas e ferimentos; vale, portanto, para esse cognoscente a seguinte “descrição: “[...] éum homem que sempre vivencia, vê, ouve, suspeita, espera, sonha coisas extraordinárias; que é atingido -por seus próprios pensamentos como se viessem de fora [...] e por raios e eventos peculiares à sua natureza” (Para além de bem e mal, 292). Pois no cognoscente a belicosidade de um impulso frente “os outros não é suprimida, mas, antes, acentuada: “Quem, porém, examinasse os impulsos fundamentais do homem para “ver atéque ponto puderam levar seujogo de gênios inspiradores tou demônios ou duendes) [...] acharia que cada um deles Eostaria de se apresentar como a finalidade última da existência e como senhora legítima de todos os demais. Pois todo impulso “ ávido de domínio e, como tal, procura filosofar” (Para além ale bem e mal, 6). lustamente por isso o conhecimento do cognoscente dá um

Clestemunhodecisivo de quem ele é, ou seja, da hierarquia

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em que estão posicionados os mais profundos impulsos de sua natureza” (ibidem). Apesar disso, o conhecimento transforma essa guerra interna, dando-lhe um novo significado de redenção e libertação: o conhecimento dá um objetivo comum a todos os impulsos, uma direção para a qual todos se encaminhem, como se desejassem conquistar a mesma coisa. Com isso se anulam a fragmentação dos gostos e.a tirania da arbitrariedade. Os impulsos mantêm sua pluralidade de sujeitos, mas a colocam sob as ordens de um poder superior que os comanda como se fossem servos e instrumentos; os impulsos permanecem selvagens e belicosos, mas, em seu objetivo de guerra, despercebidamente, se tornam iguais a heróis chamados a lutar e a sangrar; o ideal heróico se erige em meio ao egoísmo dos impulsos, mostrando-lhes o único caminho possível até a grandeza. O perigo da anarquia é assim afastado em favor de uma segura “organização coletiva dos impulsos e afetos”. Lembro-me de uma observação de Nietzsche que expressa mui significativamente essa alegria do cognoscente pela abrangente vastidão e profundidade de sua natureza, a alegria de poder doravante perceber a vida como uma “experiência do cognoscente” (A gaia ciência, 324): “Pareço uma velha cidadela resistente às intempéries, com muitos porões e abrigos ocultos; ainda não desci, rastejante, às minhas passagens ocultas mais escondidas; ainda não cheguei às minhas câmaras subterrâneas. Não deveriam elas alicerçar o conjunto todo? Não deveria eu poder subir desde minhas profundezas a toda a superfície da Terra? Não deveríamos retornar a nós mesmos em cada uma dessas passagens escuras?”. Esse mesmo sentimento é também reproduzido pelo aforismo 249 em A gaia ciência, intitulado “O suspiro do cognoscente”: “Ó minha ganância! Nesta alma não há despren—dimento algum, mas, ao contrário, um eu que tudo cobiça, que, por meio de muitos indivíduos, gostaria de ver como se fosse com seus próprios olhos, gostaria de agarrar como se fosse com suas próprias mãos; um eu que vai em busca de todo o passado, que não quer perder nada que possa enfim

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The pertencer! Ó chama de minha ganância! Oh, que eu renasça numa centena de seres!”. Desse modo, o abarcante e o enredado das naturezas sem harmonia e sem “estilo” transformam-se numa poderosa prerrogativa: “Quiséssemos e ousássemos uma arquitetura segundo a natureza de nossa alma, [...] então deveria ser o labirinto nosso modelo!” (Aurora, 169). Mas não um labirinto em que a alma se perca, e sim um de cuja confusão ela avance até o conhecimento. “É preciso ter o caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela que dance” — essaspalavras de Zaratustra (1, 15) se aplicam à alma nascida para a existência de estrela, para a luz, como se fosse a essência de seu gênio, nascida para a mais íntima transfiguração.)| Nietzsche descreveu isso sob o título de “Uma espécie de sombra luminosa” (O andaFilho e sua sombra, 258): “Bem ao lado de homens inteiramente noturnos acha-se quase regularmente, como ligada a eles, uma alma de luz. Ela é, por assim dizer, a sombra negativa que eles projetam”. Essa alma de luz é tanto mais radiante quanto mais poderosa e noturna e, portanto, quanto mais tirânica e perigosa a natureza humana que, por assim dizer, se deixa. queimar nela, que lança todos seus pendores como combustível nessa incandescência sagrada. À forma como isso acontece varia “com o ponto de vista que o cognoscente tenha do conhecimento; as concepções de Nietzsche sobre aquilo que seja o “conhecimento” são distintas em cada um dos períodos da evolução de seu espírito, e, com isso, se modifica também aquilo que elechama de “hierarquia interna dos impulsos” na luta flutuante de sua rica natureza de gênio. Pode-se dizer que, no fundo, sua história se compõe das imagens cambiantes de tais modificações; que, até seu último período criativo, toda a sua vida interior se reflete em teorias filosóficas e que, por fim, a alma de trevas e a alma de luz se convertem para ele em representantes do humano e do além-do-humano. Contudo, o processo psíquico descrito permanece o mesmo em seus traços básicos ao longo de todas as metamorfoses: "Quando se tem caráter, tem-se também sua vivência típica

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que sempre retorna” — diz Nietzsche (Para além de bem e mal, 70). Ora, essa é a vivência típica de Nietzsche, a que sempre retornava, na qual ele repetidamente se erguia, se ele-Vava acima de si mesmo e na qual, por fim, soçobrou e pereceu. Por certo era nela que devia perecer. Pois, nesse processo que sempre lhe assegurou cura e exaltação, já estava oculto o elemento patológico de seu desenvolvimento psíquico. À primeira vista, esse elemento não é evidente. Deveríamos, antes, pensar que uma força que saiba se curar a si mesma contenha, no mínimo, tanta saúde quanto forças harmônicas que se desdobram pacificamente. Sim, e conteria mesmo muito mais saúde, pois tem condições de se fortificar e de se manifestar mesmo naquilo que lhe abre feridas e lhe produz febre; essa força está em condições de converter a doença e a luta em estimulante para a vida e o conhecimento em esporão e clarividência para seus desígnios; intacta, ela abrange, portanto, luta e doença. Foi assim que, no final de sua vida, sobretudo quando estava mais doente, Nietzsche quis ver compreendida a história de seu sofrimento, ou seja, como uma história de convalescença. De fato, sua natureza poderosa soube, em mciog a dores e conflitos, curar-se e concentrar-se em seu ideal de conhecimento. Porém, após alcançar a cura, precisa novamente dos sofrimentos e das lutas, da febre e das feridas. Essa natureza, que havia se curado, ressuscita todos esses fatores, voltando-se contra si mesma, como se transbordasse para desaguar em novos estados patológicos. E sobre cada conhecimento alcançado, sobre a felicidade de cada convalescença, pairam as palavras: “Quem alcança seu ideal, justamente com isso o ultrapassa” pois “sua superfelicidade se tornou sua desgraça” (A gaia ciência, “Brincadeira, ardil e vingança”, 47), e ele se sente “ferido pela própria felicidade”!º (Assim falou Zaratustra, “O menino com o espelho”, II, 2). “Causar sofrimentos a si mesmo. A falta de consideração do pensar é fregiientemente sinal de uma disposição interior discordante, que anseia atur- dir-se” (Humano, demasiado humano, 1, 581). A saúde em Nietzsche não é, portanto, o elemento superior e dominante que transforma a doença, como algo secundário,

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num instrumento para si; ao contrário, nele, ambas se condicionam ou mesmo se contêm reciprocamente; de fato, ambas representam a divisão peculiar de um único e mesmo espírito. Uma divisão interna como tal está, pois, subjacente a todo o processo psíquico que descrevemos. Aparentemente, a multiplicidade, a pluralidade de sujeitos desarmônicos existentes em Nietzsche deveria ser substituída-por uma unidade superior, por um objetivo orientador. Porém, esse fenômeno se processa dentro de um alma multifária, de tal modo que um único impulso subordina todos os demais; em outras palavras, a multiplicidade é reduzida a uma duplicidade igualmente profunda. Da mesma forma como a saúde de Nietzsche não logra dominar a doença, assim também o impulso dominante não logra abranger a totalidade de sua vida interior ao colocá-la a serviço do conhecimento: o cognoscente se contempia com os olhos do espírito como um segundo ser, mas permanece preso a seu próprio ser; só está em condição de dividi-lo, mas não de transcendê-lo. O poder do conhecimento, portanto, longe de ser unificador, é divisor — mas a divisão é tão profunda que se tem a ilusão de que o alvo de todas as emoções esteja fora delas. Em conseqiiência dessa ilusão, todas as forças afluem com paixão para o conhecimento, como se pudessem assim fugir de si mesmas e de sua dualidade. Sem dúvida, deveríamos acreditar que o indivíduo alcance, ao menos, uma espécie de fusão de todas as partes de sua vida, porque, de um lado, a vida impulsiva é elevada sob os auspícios do conhecimento a uma consciência suprema, e, de outro, o pensamento é imensamente estimulado pelo mundo dos humores e impulsos. Mas o resultado é justamente o inverso, pois o pensamento anula a manifestação de todas as emoções interiores, e, em contrapartida, as agitações interiores afrouxam permanentemente o rigor e o controle do pensamento. Assim, de forma global, a divisão do todo atinge cada uma das pártes. Então, o que faz brotar, de tão evidente ilusão, satisfação tão plena e, por assim dizer, redentora? O que permite que uma ilusão arrebate e transfigure todo um ser, mesmo às custas

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de doenças e ferimentos? Com essa questão ficamos diante do verdadeiro problema de Nietzsche; só ela nos mostra a secreta conexão entre saúde e doença em sua vida. Enquanto a pluralidade das tendências, individualizadas e desligadas umas das outras, se divide em dois grupos, por assim dizer, opostos, dos quais um domina e o outro se submete, o homem pode experimentar em si mesmo não apenas outro ser, mas também um ser superior. Sacrificando a si mesmo uma parte de seu ser, aproxima-se de uma exaltação religiosa. Nas comoções de seu espírito, nas quais imagina concretizar o ideal heróico de sua própria renúncia e entrega, faz irromper em si mesmo uma paixão religiosa. De todas as grandes tendências do espírito de Nietzsche, não existe nenhuma mais profunda e inexoravelmente ligada à totalidade de seu organismo psíquico que seu gênio religioso. Tendência que, em outra época, em outro período da civilização, certamente não teria permitido que esse filho de pastor se tornasse filósofo! Porém, influenciado por nossa época, seu espírito religioso se orientou para o conhecimento e permitiu satisfazer aquilo por que ele ansiava instintiva e urgentemente, tal como a expressão natural de sua saúde, apenas de uma forma doentia; em outras palavras, ele só obteve essa satisfação dobrando-se sobre si mesmo em vez de se apoiar em uma força externa que o abrangesse em sua vida. E assim alcançou Justamente o oposto do que desejava: não uma unificação, mas uma bipartição de sua essência; não a unificação de todas as emoções e tendências num indivíduo homogêneo, mas a cisão expressa no “divíduo”. Em todo caso, Nietzsche obteve uma espécie de saúde, mas por meio da doença; conseguiu afirmar-se e elevar-se, mas por meio da auto-agressão. Por isso, na poderosa emoção religiosa de Nietzsche, da qual emerge todo conhecimento, se enredam indissoluvelmente seu próprio sacrifício e sua própria apoteose, o horror à sua própria destruição e a volúpia de sua própria divinização, o sofrimento da doença e a vitória da cura, o êxtase ardente e a inteligência fria. Sentimos em Nietzsche o estreito enlace de opostos que se condicionam mutuamente sem cessar; sen-

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timos forças sumamente exaltadas e tensas transbordarem e se precipitarem voluntariamente no caótico, no escuro, no pavuroso, para depois emergirem em direção à luz, à sensibilidade - o emergir impetuoso de uma vontade que se “[...] libera da necessidade de abundância e superabundância, do sofrimento dos opostos comprimidos dentro dele””* — um caos que deseja — que deve — dar à luz um deus. “No homem estão unidos criador e criatura: no homem está a matéria, o fragmentário, o supérfluo, a argila, a lama, o absurdo, o caos; mas no homem está também o criador, o escultor, a dureza do martelo, o espectador divino e o sétimo dia [...]” (Para além de bem e mal, 225). E aqui verificamos que o sofrimento e a autodivinização constantes se condicionam mutuamente, cada um reproduzindo seu contrário. Isso foi expresso por Nietzsche na história do rei Vigvamitra “que, graças a mil anos de automartírio, adquiriu tamanho sentimento de poder e de autoconfiança que se dispôs a construir um novo céu [...). Aquele que, em qualquer tempo, tenha construído um “novo céu' só achou força para tal em seupróprio inferno [...)” (Genealogia da moral, III, 10). Outra passagem em que recorda essa lenda está em Aurora e segue imediatamente a descrição daqueles sofredores, sedentos de poder, que se elegeram como o objeto mais digno de seu desejo de violação. “O triunfo do asceta sobre si mesmo está em seu olhar voltado para dentro, vendo o homem dividido em sofredor e espectador e não mais espreitando o mundo exterior senão para nele recolher lenha para a própria fogueira, essa última tragédia do impulso à distinção, na qual existe apenas uma única pessoa que se carboniza em si mesma [...]” (113). Esse trecho que descreve todas as asceses possíveis e seus motivos termina com a seguinte observação: “L..] terá de fato o ciclo da aspiração a se distinguir chegado a seu fim derradeiro com o ascetae se fechado sobre si mesmo? Não poderia esse círculo ser mais uma vez percorrido desde O início com a disposição básica do asceta unida à de um deus compassivo?”, Em Humano, demasiado humano (1, 137) diz Nietzsche a respeito: “Existe um desafio a si mesmo a cujas expressões

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mais sublimes pertencem algumas formas de ascese. Certos homens têm, com efeito, uma necessidade tão grande de exercer seu poder e seu despotismo que [...], por fim, recorrem à tiranização de certas partes de seu próprio ser [...] Essa destruição de si mesmo, esse escárnio de sua própria natureza, esse “spernere se sperni' a que as religiões deram tanta importância, é realmente um grau muito elevado de vaidade [...) O homem tem verdadeira volúpia de se violentar através de exigências excessivas e, em seguida, endeusar em sua alma esse algo que manda tiranicamente”, e (138): “[...] Realmente, portanto, só lhe importa a descarga de sua emoção; então, para aliviar excitação, reúne as lanças dos inimigos e as enterra no próprio peito”. Em ainda (142): “[...] ele flagela seu auto-endeusamento com o autodesprezo e a crueldade, se compraz com o despertar selvagem de seus apetites [...] sabe armar ciladas à sua paixão, por exemplo, à paixão pelo mais extremo despotismo, de modo que ela se transforme na mais extrema humilhação e sua alma excitada seja dilacerada por esse contraste; [...] o que, no fundo, busca é uma espécie rara de volúpia, talvez aquela volúpia na qual todas as outras estão atadas como num nó, Novalis, uma das autoridades em questão de santidade, por experiência e por instinto, expressou certa vêz esse mistério com ingênua alegria: “É bastante estranho que, por muito tempo, a associação de volúpia, religião e crueldade não tenha chamado a atenção dos homens sobre seu íntimo parentesco e sua tendência comum' ”, — . De fato, um estudo correto de Nietzsche é, em seu fundamento, um estudo psicológico da religião, e só será lançada luz sobre o significado de seu ser, seu sofrimento e sua autoglorificação naquilo em que o campo da psicologia dareligião já estiver esclarecido. Toda a sua evolução, de certo modo, se originou da perda da fé e, portanto, da “emoção pela morte de Deus” — essa emoção monstruosa que ressoa ainda em “sua última obra, composta já no limiar da loucura: a quarta parte de seu Assim falou Zaratustra. A possibilidade de encontrar, entre as mais variadas formas de auto-endeusamento, um substituto”? “para o Deus perdido” forma a história de seu

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espírito, de sua obra, de sua doença. É a história do “resquício da tendência religiosa no pensador”, que permaneceu poderoso mesmo após se despedaçar o deus a quem ele se referia, o deus a quem se podem aplicar estas palavras de Humano, demasiado humano (1, 223): “O sol já se pôs, mas ainda ilumina e aquece o céu de nossa vida, mesmo que não mais o vejamos”. Leia-se também o comovente do “louco” em AÀgaia ciência: $ [ (125): “Para onde foi Deus? — gritou.ele — eu vos direi! Nós o matamos! Vós e eu! Somos todos seus assassinos! [...] Nada ouvimos ainda do ruído dos coveiros que enterram Deus? Nada sentimos ainda do cheiro da decomposição divina? Os deuses também se decompõem! Deus está morto! Deus permanece morto! E nós o matamos! Como nos consolaremos, assassinos dos assassinos? O que o mundo possuiu até agora de mais sagrado e poderoso perdeu todo o sangue sob nossas facas. Quem nos limpará desse sangue? Com que água poderíamos nos purificar? [...] Não é a dimensão desse ato grande demais para nós? Não devemos nós mesmos nos tornar deuses para só assim parecer dignos dele? Nunca houve ato maior, e quem quer que nasça depois de nós pertence, por força desse ato, a uma história mais elevada do que o foi toda a história até hoje!”. Como resposta a essa explosão de tormento e angústia, Nietzsche deu a si mesmo estaspalavras de Zaratustra (1, final): “Mortos estão todos os deuses: agora queremos que viva o além-do-homem!”, exprimindo assim o motivo mais interior de sua filosofia. O torturante anseio por Deus torna-se um ímpeto à criação de Deus, ímpeto que necessariamente devia manifestar-se no endeusamento de si mesmo. Com perspicácia, Nietzsche reconheceu no fenômeno religioso à suprema satisfação das exigências individuais, a vontade da suprema beatitude. Esse individualismo, que aparece no cerne de todas as religiões, esse “sublime egoísmo” que flui livre e ingenuamente em toda religião, crendo dirigir-se a um poder vital ou divino exterior, loi em Nietzsche, nesse “cognoscente”, lançado de volta à vripem. Assim lhe foi possível associar interiormente o ateís-

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mo, que lhe foi imposto pela razão, a esta ousada conciusão: “Se houvesse deuses, como suportaria eu não ser um deles? Portanto, não há deuses”. Essas palavras aparecem na segunda parte de Assim falou Zaratustra (“Nas ilhas bem-aventuradas”, 6). A elas se podem associar outras (“Dos seres sublimes”, 5): “E haverá adoração mesmo em Tua vaidade!”. Nelas se expressa todo o perigo que paira sobre o “solitário” e “isolado”, que se deve dividir e duplicar. “Um à minha volta é sempre demais. [...] Sempre uma vez um — isso com o tempo dá dois” (Assim falou Zaratustra, “Do amigo”, 1, 76). O modo como Nietzsche se colocou frente a essa dualidade, como se defendeu contra ela ou como a ela se rendeu, o lugar onde a buscou a cada vez — tudo isso condiciona amudança de seu conhecimento e a particularidade de seus diversos períodos intelectuais, até que, por fim, a dualidade se torna para ele uma alucinação, uma entidade personificada que obscurece seu espírito e sufoca sua razão. Ele não pôde por mais tempo se defender contra si mesmo; esse foi, no próprio Nietzsche, o drama dionisíaco do “Destino da Alma” (Genealogia da moral, prefácio XID. A solidão de sua vida interior, na qual o espírito quer ir além de si mesmo, não é em época alguma mais profunda e mais dolorosa do que no final de sua vida. Poderíamos dizer que a muralha mais forte nesse auto-emparedamento fatal é uma aparência delicada, brilhante e divina que volteja a seu redor, uma miragem que lhe confunde e lhe oculta as próprias fronteiras. Cada movimento para escapar o reconduz continuamente às profundezas de seu eu que, por fim, se deve transformar em Deus e mundo, em céu e inferno; cada movimento o conduz um passo adiante em sua última profundeza e em seu extermínio. Esses traços básicos da natureza peculiar de Nietzsche explicam ao mesmo tempo o refinado e o exaltado que se misturam ao grande e ao significativo de sua filosofia, como num condimento ardente. Provavelmente saberão mais picantes às línguas não corrompidas de espíritos jovens e sãos ou também àquele que, abrigado na calma paz de opiniões acreditadas, nunca experimentou na própria carne toda a luta e todo o fogo

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terrível de um espírito livre com dom religioso. Mas foi isso também que permitiu a Nietzsche se tornar, em tão alto grau, o filósofo de nossa época. Pois nele ganhou típica aquilo que ela move em sua profundeza: aquela “anarquia dos instintos” de forças criativas e religiosas que desejam ser satisfeitas com demasiada violência para se contentarem com as migalhas que lhes caem da mesa do conhecimento moderno. Que elas não possam se contentar com essas migalhas, mas que tampouco renunciem ao conhecimento — tão insaciáveis na paixão quan- “ to na indigência e na privação — esse é o grande traço comovente na imagem da filosofia de Nietzsche. É também o que ela exprime em torneios sempre novos: uma série de tentativas enérgicas de resolver esse problema da tragédia moderna, o enigma da esfinge moderna e derrubá-la no abismo. Mas é justamente por isso que devemos dirigir nosso olhar ao homem e não ao teórico para nos orientar nas obras de Nietzsche, e por isso também o lucro, o resultado de nossas reflexões não consistirá em que, para nós, desponte uma nova imagem do mundo em sua verdade, mas sim a de uma alma humana em sua composição de grandeza e morbidez. De início, o significado filosófico nas metamorfoses de Nietzsche parece enfraquecer-se porque a cada vez se dá exatamente o mesmo processo interno. Mas esse significado se aprofunda e se exacerba porque as mudanças de opinião continuamente se alastram para seu ser. Não apenas mudam a cada vez os contornos de uma teoria, mas também toda a atmosfera, o ar e a luz se transformam. Enquanto ouvimos pensamentos se refutarem mutuamente, vemos mundos soçobrarem e novos mundos emergirem. Justamente nisso repousa a verdadeira originalidade do espírito nietzschiano; por meio de sua natureza, que 5relacionatudo a si mesma e às suas necessidades mais Íntimas, mas que, fervorosa, se perde em tudo, abrem-se-lhe aquelas vivências e produtos de mundos intelectuais, que nós, com nossa razão, só fazemos roçar sem jamais esgotá-los em sua profundidade e, por isso, sem nada criar a partir deles. Considerado teoricamente, Nietzsche se apóia com freqiência em modelos

e mestres estrangeiros, mas aquilo em que têm sua

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maturidade e o auge de sua produção torna-se para ele apenas motivo de estímulo à própria produtividade.? Omenor contato mantido por seu espírito bastava para nele desatar uma abundância de vida interior, de vivências intelectuais. Certa vez disse Nietzsche: “Há duas espécies de gênio: uma que gera e quer gerar, e outra que se deixa fecundar e que dá à luz” (Para além de bem e mal, 248). Sem dúvida, ele pertencia a essa última espécie. Na natureza de seu espírito havia, em alto grau, algo de feminino,"* mas nisso era gênio em tal medida que parece quase irrelevante saber de onde recebe seu primeiro estímulo. Quando recolhemos tudo quanto fecundou seu solo, temos diante de nós algumas simples sementes; mas quando penetramos sua filosofia, somos cercados por um bosque farfalhante de árvores umbrosas, somos abraçados por uma vegetação luxuriante, grandiosa e selvagem. Sua superioridade consistiu em ter oferecido a cada semente depositada em seu interior aquilo que ele próprio cita como distintivo do verdadeiro gênio: “a terra fecunda e nova, com a força inexplorada da floresta virgem” (O andarilho e sua sombra, 118).

NOTAS 1. Uma caracterização resumidade Nietzsche,na qual pelaprimeira vez estãodistinguidose precisamente caracterizados os trêsperíodosda evoluçãode seu espírito,apareceuno suplementodominicaldo Vossische Zeitung,de1891,nºs2, 3e 4. Alémdisso,aFreie Biihnnetrouxeexplicações detalhadas de algunspontossob o título“Para um retratode Nietzsche”, anoUl(1891), cadernos3,4 e 5, anoIII (1892),cadernos3,4 e5;a Magazin SfirLiteratur,outubrode 1892,“Um apocalíptico”,e o Zeitgeist,1893,nº 20, “ITdeal e ascese”, 2. “No que se refereà vida — às ditas“vivências!— quem de nós temseriedadebastante paraelas?Ou tempobastante? Em talassunto,temo eu, nuncaestivemosdiretamente “dentrodo assunto';paraelasnão temos porcertoo coração,nemsequerosouvidos!”(Genealogiadamoral,prefácio ). 3.Significadosemelhante atribuíaàssuasorelhas,pequenas e finamente modeladas,dasquaisdizia seremasverdadeiras“orelhasparao inaudito” (Zaratustra,“O prólogo de Zaratustra”,9, 1, 25). 4. “Nãohaverá[...] umapredisposição parao duro,o horrível, omau, o problemático da existência, disposição provenientedobem-estar, dasaúde

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da própriaabundância?[...] Não haverátalvez— uma pertransbordante, guntaparaos alienistas— neuróticosda saúde?”(Tentativade uma autocrítica”paraa novaediçãodeO nascimento da tragédiaa partir do espírito da música,IV e ). nossoobjetivo 5.Cf. tambémA gaiaciência(253):“Um diaalcançamos e indicamosentãocom orgulhoa longaviagemquefizemosatélá. Mas se chegamostão longefoi porque,em cada ponto,imaginávamosestar em casa”. 6. Por isso ele chamaas convicçõesde inimigosda verdade:“Convicçõessão inimigosda verdademaisperigososque mentiras”(Humano, demasiadohumano,1, 483). 7. Com esseimpulso,eleevoluiumaisdo queele mesmoquisadmitir quedescreve comoverdadeiro,ou sejaatéum “Don Juando conhecimento” daseguintemaneira(Aurora,327):“Ele temespíritoe sentevolúpiaeprazer na caçae nasintrigasdo conhecimento — atéchegaràs suasmais altase distantes estrelas,atéque,por fim, nadalhe sobreparacaçar,a não sero absolutamente dolorosodo conhecimento, igualao bebedorque acababebendoabsintoe água-forte.Assim,no final, desejao inferno:é o último conhecimento queo seduz.Talvezeletambémo desiludacomotudoo que é conhecido!E entãoelesedeveimobilizarparatodaa eternidade, cravado à desilusãoe transformado elemesmoem hóspedepétreo,aspirandoa uma ceiado conhecimento dequenuncamaisparticipará!— pois omundotodo dascoisasnão temnem maisum bocadoa oferecera essefaminto”. 8. “Ter de combaterosinstintos— essaé a fórmulaparaa décadence: enquantoa vida estáem ascensão,a felicidadeé igualao instinto”,diz ele (Crepúsculodos fdolos,“O problemade Sócrates”,11), e distingueassim o decadente daqueleque nasceucom a naturezade senhor. 9. Aqui, como observaçãoà parte,NietzschecompreendeGoethetotalmentediversode comoo compreenderá anosmaistarde(em Crepúsculo dosídolos).Aqui aindao vê comoantípodade suapróprianaturezadesarmônica;maistarde,ao contrário,comoum espíritoprofundamente aparentadoa si mesmo,que não era harmônico,mas que se transformouem harmônicopelo aperfeiçoamento e entregade si mesmo. 10. Cf. tambémPara alémdebeme mal (224): “Nós [...] só sentimos nossafelicidadequandoestamosemperigo”. 11. “Tentativade uma autocrítica”,na nova ediçãode O nascimento da tragédiaa partir do espíritoda música. 12. Ver em À gaia ciência(“Brincadeira,ardil e vingança”,38)sobre * determinação humanacumpridana criaçãode Deuspelo homem: Diz o homempio: — Deusnos amaporquenoscriou: — O homemcriou Deus! — dizeisvós, os sutis. E não deviaamaro que criou? Devia negá-loporqueo criou? Issoclaudica,isso trazo cascodo demônio.

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13. Mesmoque não se leve em consideração aquelespensadores que definiramdiretamente as diversasfasesda evoluçãode Nietzsche,muitas de suasidéiasjá sedeixamprovarem filósofosanteriores.Recentemente, um ou outro pessoasem cujasmãoso acasojogou, purae simplesmente, livro defilosofiachamarama atenção,coma maiorceleuma,pareessefato totalmente supérfluoparao verdadeirosignificadodeNietzsche.Nestelivro, intencionalmente, não sefaz nenhumareferênciaà suaposiçãona história da filosofia,pois isso teriacomo pressuposto um examesistemático e detalhadode suasteoriasisoladasde seu valor objetivo, o que deve ficar reservadoparaum trabalhoespecial. 14. Às vezes,quandosentiaissodemodoespecial,inclinava-sea tomar o gênio femininocomo o verdadeirogênio. “Os animaistêm uma idéia sobreas fêmeasdiferenteda doshomens;paraeles,a fêmeavale como o serprodutivo.[...] AÀgravideztornaasfêmeasmaissuaves,maiscautelosas, mais tementes, maiscontentes com a submissão;e iguaimentea gravidez intelectualproduzo caráterdos contemplativos,que é aparentado ao caráterfeminino:sãoas mãesmasculinas”(A gaia ciência,72).

Suas Metamorfoses .

“A cobraque não podemudarde pele morre.Igualmente,os espíritosque impedimosde mudarde opiniãodeixamde serespíritos”(Aurora,573).

A primeira metamorfose que Nietzsche realizou em sua vida situa-se no crepúsculo de sua infância ou, pelo menos, de sua puberdade. É o rompimento com a fé da Igreja cristã. Em suas obras, raramente se menciona essa ruptura. Não obstante, ela pode ser considerada o ponto de partida de suas metamorfoses, porque, com ela, já se esclarece a característica peculiar de sua evolução. Suas declarações sobre o assunto, que ambos discutimos de forma especialmente detalhada, diziam respeito sobretudo às causas que produziram o rompimento de sua fé. Aliás, a maioria dos homens de inclinação religiosa só é impelida por motivos intelectuais, e em conflitos dolorosos, a renegar seus conceitos sobre a fé. Mas, em casos raros, onde o primeiro alheamento parte da própria vida emocional, o processo é pacífico e indolor: a razão apenas decompõe o que já estava previamente morto —um cadáver. No caso de Nietzsche ocorreu um cruzamento singular dessas duas modalidades: não foram apenas os motivos intelectuais que, originalmente, o libertaram dos conceitos inculcados, tampouco deixara a velha fé de corresponder às necessidades de sua índole. Pelo contrário, Nietzsche repetidamente acentuava que o cristianismo da paróquia paterna se assentava à sua essência interior “liso e suave como uma pele sã”, e que, para ele, o cumprimento de todos os seus mandamentos se tornara tão fácil como a

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observância de uma tendência própria. Considerava esse “talento”, por assim dizer, nato e inalienável, para qualquer religião, uma das causas da simpatia que lhe dispensavam cristãos sérios, mesmo quando já estava deles separado por um profundo abismo espiritual. O instinto obscuro que, pela primeira vez, o expulsou dos Círculos de idéias que encarecia e amava, despertou Justamente nesse sentimento de bem-estar, desse cálido “estar em Ccasa”, pelo qual sua essência se sentia envolvida. Para chegar a si mesmo, numa evolução plena, seu espírito precisava de lutas Psíquicas, dores e abalos; era preciso que seu gênio se separasse desse tranqiilo estado de paz, pois sua força criativa era dependente da emoção e da exaltação de seu interior. Aqui, pela primeira vez, nos defrontamos na vida de Nietzsche cem o fenômeno da exigência de dor na “natureza decadente”. “Em circunstâncias pacíficas, o guerreiro agride a si mesmo” (Para além de bem e mal, 76) e exila-se num país de idéias estrangeiras onde, doravante, está fadado a um eterno vagar, sem descanso. Doravante, em seu desassossego, Nietzsche abriga uma ânsia insaciável que aspira pelo paraíso perdido, enquanto a evolução de seu espírito o força, o tempo todo, a dele se afastar em linha reta. No diálogo sobre as metamorfoses que deixara para trás, Nietzsche certa vez expressou um pouco jocosamente o seguinte: Sim, dessemodo começaagoraa marchae dessemodo prossegue; mas atéonde? Se tudojá estápercorrido,para ondese correnesse caso?Se estivessemesgotadas todasas possibilidades de combinação, o que sucederiaentão?de que modo?não deveríamosretornarà fé? talveza uma fé católica?. E o pensamento secreto oculto nessa declaração revelou-se nestas palavras, acrescentadas com gravidade: Em todocaso, o cfrculoseria maisprovável quea paralisação. Um movimento que retrocede sobre si mesmo, que nunca pára — eis, na verdade, o distintivo de toda a mentalidade de Nietzsche. As possibilidades de combinação não são de modo

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algum infinitas; são, ao contrário, muito limitadas, pois o ímpeto que o leva para a frente, que o faz ferir-se a si próprio e que não deixa os pensamentos repousarem, brota integralmente de sua singular personalidade interna: por mais distante que os pensamentos pareçam divagar, permanecem, contudo, sempre ligados aos mesmos processos psíquicos que continuamente os forçam a voltar ao domínio de suas necessidades predominantes. Veremos até que ponto a filosofia nietzschiana descreve, com efeito, um círculo, e como, por fim, o adulto, em algumas de suas vivências mais íntimas e secretas, se reaproxima do menino, de modo que, para o andamento de sua filosofia, valem suas próprias palavras: “vejam um rio que, depois meandros, flui de volta à nascente” (Assim falou Zaratustra, “Da virtude amesquinhadora”, 1, III, 23). Não é por acaso que, em seu último período criativo, Nietzsche tenha chegado à sua mística doutrina de um eterno retorno: à imagem do círculo, de uma eterna mudança numa eterna repetição, figura como um símbolo maravilhoso e como um sinal secreto sobre a porta de entrada às suas obras. Nietzsche chama de seu primeiro “brinquedo literário” (Genealogia da moral, prefácio VI) um ensaio de sua puberdade, “Sobre a origem do mal”, no qual, “como é justo”, fez de Deus “o pai do mal”. Em conversas também mencionava esse ensaio como prova de que já se entregava a ruminações filosóficas num tempo em que ainda se achava submetido ao ensino filológico obrigatório da Escola Pforta. Seguindo Nietzsche desde sua infância até seus anos escolares e, depois, até o longo período de sua atividade filológica, reconhecemos claramente que, desde o princípio, sua evolução, mesmo a puramente exterior, se processa sob o influxo de certa auto-repressão. A rigorosa instrução filológica já devia conter em si tal repressão para esse jovem espírito fogoso, cujas ricas forças criativas dela emergiram sem terem sido utilizadas. Isso vale sobretudo para a orientação de seu professor Ritschl. Justamente com ele, em relação tanto aos métodos quanto aos problemas em si, a atenção principal era dirigida para as relações formais e as conexões externas, em

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detrimento do significado interno das obras literárias. Mais tarde, Nietzsche se caracterizou de modo relevante por extrair seus problemas unicamente do mundo interior, inclinando-se a subordinar o lógico ao psicológico. E, contudo, foi precisamente aqui, nessa severa disciplina e nesse solo pedregoso, que seu espírito amadureceu prematuramente e realizou coisas notáveis. Uma série de excelentes pesquisas filológicas' indica o trajeto de seus anos de estudo até sua cátedra em Basiléia. Não é improvável que uma liberação demasiado precoce de toda a riqueza do espírito de Nietzsche, através do estudo da filosofia ou das artes, o tivesse arrastado àquele desenfreamento de que se aproximam algumas de suas últimas obras. Desse modo, porém, o frio rigor da ciência filológica deu temporariamente às suas “tendências multifárias” um vínculo unificador e sustentador, mas também serviu de grilhões para muita coisa que nele dormitava. Contudo, enquanto prosseguia seus estudos, sentia, não menos do que se fora um profundo sofrimento, que seus talentos inaproveitados o atormentavam e o incomodavam. Foi sobretudo seu ímpeto musical que não pôde repelir, e muitas vezes era obrigado a escutar sons quando queria escutar pensamentos. À música o acompanhou como um lamento sonoro durante anos, até que sua cefaléia lhe tornou impossível qualquer exercício musical. Porém, por maior que seja a oposição entre sua atividade filológica inícial e a filosófica posterior, não faltam numerosos traços intermediários que levam de um período ao outro. Justamente a orientação de Ritschl, que parece aumentar esse contraste, veio, na verdade, ao encontro da mentalidade de Nietzsche, em particular reforçando e aperfeiçoando ainda mais seu pendor para a produção. Ritschl pretendia certo arremate artístico formal e certo tratamento virtuosístico das questões científicas, possibilitados pela rigorosa limitação que lhes impunha e pela concentração em um determinado ponto. Ora, em Nietzsche, à necessidade de levar a cabo uma tarefa de modo puramente artístico, através da restrição voluntária e concentrada dessa mesma tarefa, tinha estreita ligação com a

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tendência básica de sua natureza, ou seja, a de sempre ultrapassar a própria obra, de repeli-la como definitivamente passada e liquidada. Essa renovação de tarefas e problemas é inerente ao filólogo; a expressão típica de Nietzsche em Para além de bem e mal (80): “Uma coisa que se esclareceu deixa de nos interessar [...]”, poderia ter sido formulada por um filólogo, pois, para este, um ponto obscuro, depois de esclarecido, torna-se de fato uma coisa completamente liquidada, que não mais precisa ocupá-lo. Mas são motivos profundamente distintos que condicionam as freqiientes mudanças das idéias em Nietzsche, e por isso é muito interessante notar como os contrastes ente a atividade filológica e a filosófica parecem tocar-se, ecomo Nietzsche fez prevalecer seu eu nesse disfarce que lhe era o mais estranho — o do filólogo sóbrio —, nessa extrema auto-subordinação intelectual. Um filólogo nunca aborda um problema com seus sentimentos pessoais, com seu sujeito interior; não o assimila a si de modo algum e, portanto, só é retido pelo problema durante o tempo necessário para sua solução. Para Nietzsche, ao contrário, ocupar-se de um problema significava, antes de tudo, conhecer, deixar-se abalar; e convencer-se de uma verdade significava ser dominado por uma vivência, “ser derrubado ao chão”, conforme ele mesmo dizia. Acolhia um pensamento como acolhemos um destino, que nos arrebata por inteiro e nos mantém encantados; vivia o pensamento muito mais do que c pensava, mas o fazia com fervor tão passional, com dedicação tão desmedida, que nele se esgotava, e, igual aum destino que é vivido até o fim, o pensamento tornava a abandoná-lo. Só com a desilusão que naturalmente devia seguir-se * cada uma dessas fases exaltadas é que deixava o conhecimento dominado influenciá-lo de modo puramente racional; só então o perseguia com o intelecto calmo, claro, examinador. Seu notável ímpeto à metamorfose no domínio do conhecimento filosófico estava condicionado pelo gigantesco ímpeto de se deixar levar por emoções sempre novas, do tipo intelectual, e por isso a perfeita clareza nunca foi para ele senão 1m tenômeno concomitante à saciedade e ao esgotamento.

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Porém, mesmo nesse esgotamento, seus problemas não o abandonam; a saciedade só diz respeito às suas soluções que, momentaneamente, soterravam a fonte de seus abalos. Por isso, encontrar a solução foi sempre para Nietzsche o sinal de mudança em sua maneira de pensar, pois só assim o problema se deixava fixar e a solução podia ser novamente experimentada. Em seguida, perseguia com verdadeiro ódio tudo quanto o impelira até ela, tudo quanto o ajudara a encontrá-la. Pois, como “uma coisa que se esclareceu deixa de nos interessar”, Nietzsche no fundo não queria saber do esclarecimento definitivo de um problema, e essas palavras, que, aparentemente, expressam a plena satisfação de um pensamento bem-sucedido, indicavam o trágico de sua vida: não queria que os problemas por ele explorados deixassem de lhe interessar; queria que continuassem a revolvê-lo no mais fundo de sua alma e por isso se afligia, de certo modo, com a solução que lhe roubaria seu problema; assim, sempre se dedicava a ela com toda a finura e sutileza de seu ceticismo e, numa espécie de satisfação maligna — satisfação de seu próprio sofrimento e dos estragos que com isso causava a si mesmo! —, forçava-lhe a restituição de seus problemas. Portanto, a partir disso temos certo direito de dizer a respeito de Nietzsche: aquilo que, dentro de um modo de pensar ou de ver, há de reter duradouramente esse espírito apaixonado, aquilo que deve impossibilitar uma nova e precisa transformação deve permanecer pare ele fundamentalmente inexplicável, deve resistir à força de todas as tentativas de solução, deve aniquilar sua razão em enigmas mortais. Quando, finalmente, nesse caminho a comoção de seu interior se tornou efetivamente mais forte que o poder da razão, violentamente esporeada por essa mesma comoção, não houve então pare ele nenhuma escapatória, nenhuma fuga. Inevitavelmente, o fim também se perdeu na escuridão, na dor e no mistério: numa obsessão de pensamentos causada pela exaltação do sentimento que os cobria como um mar tempestuoso. Quem segue até o fim os caminhos sinuosos de Nietzsche se aproxima daquele ponto onde, horrorizado diante da derra-

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leira explicação e solução de seu problema, se precipita detinitivamente nos eternos enigmas da mística. Porém, o talento de seu espírito distinguia-se ainda por “duas características que vieram a servir tanto ao filólogo quanto, mais tarde, ao filósofo. A primeira era seu talento para sutilezas, sua genialidade no trato das coisas mais delicadas que devem ser tocadas por mão suave e firme para não se upagarem ou se deformarem. É o mesmo talento que, em minha opinião, o faz mostrar-se mais tarde como psicólogo, antes sutil que propriamente grande, ou melhor: o maior na apreensão e na formação de sutilezas. Assim, é altamente significativa a expressão que Nietzsche usou certa vez (O caso Waener, 3) a respeito das coisas tal como se apresentam ao olhar do cognoscente: “A filigrana das coisas”. Relacionado a esse traço encontramos o pendor para investigar o oculto e o secreto, para trazer à luz o escondido; o olhar voltado para o obscuro e, onde restarem lacunas no conhecimento, à intuição e a compreensão instintivamente complementares. Grande parte da genialidade de Nietzsche repousa nessas características, intimamente relacionadas com seu elevado dote artístico, onde o olhar para a sutileza e para o pormenor se amplia, de forma maravilhosa, numa grandiosa e livre contemplação do contexto, da imagem global. Exerceu esse talento a serviço da rigorosa crítica filológica a fim de vonscientemente extrair dos textos que lia o esmaecido e o olvidado,? mas nesse esforço foi, ao mesmo tempo, levado quara além de seus estudos puramente eruditos. Omodo como 185S0aconteceu nos leva a seu trabalho filológico mais imporHtante,ao ensaio sobre As fontes de Diógenes Laércio. Pois o envolvimento com essa obra motivou sua investipução sobre a vida dos antigos filósofos gregos e sua relação vom a vida dos gregos como um todo. Em suas obras postet101res volta a falar a respeito disso (Humano, demasiado humano, 1, 261). Aqui vemos como Nietzsche deve ter meditado “sobre os escombros da tradição, recriando as formas perdidas e picenchendo as lacunas e as partes deformadas com invenções literárias, passeando encantado “por entre figuras do tipo mais

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puro e imponente”. Dirige o olhar para o crepúsculo daqueles tempos “como numa oficina de esculturas daqueles tipos humanos”, E sente-se arrebatado ao imaginar que lá possam ter estado os primórdios de um tipo ainda mais elevado de filosofia, que talvez Platão, “livre do encantamento socrático”, houvesse descoberto. Tudo isso, porém, é muito mais que uma simples transição do filólogo ao filósofo. Enquanto era ainda obrigado a exercer a árida crítica filológica, seus pensamentos nostálgicos já revelavam o ápice de sua ambição; não foi por acaso que Nietzsche, em vez de escolher a especialização filosófica abstrata, entrou na filosofia através de uma profunda concepção da vida filosófica em seu significado mais íntimo. E se quiséssemos assinalar o alvo a que se dirigiam, através de todas as metamorfoses, as lutas desse espírito insaciável, não poderíamos encontrar expressão mais característica que a do almejado descobrimento “de uma nova possibilidade de vida filosófica ainda por descobrir” (Humano, demasiado humano, L, 261). Assim, esse ensaio puramente filológico situa-se bem próximo da série de obras posteriores e é comparável a uma portinhola semi-oculta na parede frontal de um edifício espaçoso. Quando a abrimos, nosso olhar já se espraia pela longa série de câmaras internas até chegar à última, à mais escura. E o observador que permanecer no umbral não poderá se lembrar sem espanto da força colossal que edificou, pedra por pedra, esse todo: uma força que prodigamente decorou cada unidade, construíndo ludicamente numerosos corredores e esconderijos secretos, como se planejasse um labirinto, e que, no entanto, continuou a produção de sua obra com férreo rigor e sempre em bases retilíneas. Os estudos gregos não apenas fizeram desabrochar em Nietzsche o pressentimento de sua ambição íntima e a primeira visão panorâmica do alvo de sua secreta ânsia, mas também lhe indicaram o meio como poderia aproximar-se desse alvo. Pois foram eles que lhe mostraram a imagem global da civilização do antigo helenismo e expuseram ante seus olhos aquelas imagens de uma arte e religião submersas em cuja con-

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templação bebeu, em goles sedentos, “uma vida plena e nova”. Assim coloca a serviço da pesquisa histórico-cultural, estética, e histórico-filosófica sua sabedoria filológica, superando o respectivo formalismo. Com isso, vê transformado e aprofundado o significado da filologia “que, na verdade, não é nenhuma Musa, nenhuma Graça, mas uma das mensageiras dos deuses e, tal como as Musas, que desciam:até os tristes e atormentados camponeses da Beócia, chega aum mundo cheio de cores e imagens sombrias, cheio das dores mais profundas e incuráveis e que, consoladora, fala das claras formas divinas de um distante país encantado, azul e feliz”. Essas palavras foram tiradas da preleção inaugural de Nietzsche na Universidade de Basiléia, “Homero e a filologia clássica” (24) que só foi impressa para amigos (Basiléia, 1869). Dois anos mais tarde apareceu também em Basiléia outro pequeno estudo com a mesma orientação intelectual, “Sócrates e a tragédia grega”, que foi incorporado na íntegra, à exceção de algumas alterações no encadeamento das idéias, ao primeiro grande trabalho filosófico de Nietzsche, publicado em 1872, O nascimento da tragédia a partir do espírito da música (Leip7ig, E. W. Fritsch, atualmente C. G. Naumann).*º Nesse dois trabalhos, Nietzsche construiu, ainda em bases rigorosamente filológicas, suas exposições sobre a filosofia da civilização, e cles contribuíram para difundir seu nome no meio filológico. Já indicam, conítudo, o caminho percorrido desde sua especialização anterior, passando pela arte e pela história, até penetrar finalmente a fechada concepção de mundo de uma filosofia bem definida. Era a concepção de mundo de Richard Wagner, * associação de sua aspiração artística com a metafísica de Schopenhauer. Ao abrirmos essa obra, achamo-nos em meio à esfera de influência do mestre de Bayreuth. Por meio de Wagner se processa, pela primeira vez, a total fusão das atividades filológica e filosófica de Nietzsche; só então se torna verdadeira a frase que conclui o ensaio “Homero e a filologia clássica” invertendo um dito de Sêneca: 'philosophia facta est quae philologia fuit” — “com isso se

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quer exprimir que toda e qualquer atividade filológica deve estar cingida e circundada por uma concepção de mundo filosófica, na qual as coisas isoladas e singulares se evaporam como algo reprovável, e só o completo e o uniforme permanecem”, O fascínio que, durante anos, fez de Nietzsche discípulo de Wagner explica-se sobretudo pelo desejo de Wagner de, dentro do mundo germânico, concretizar o mesmo ideal de civilização artística que despontara como ideal para Nietzsche dentro do mundo grego. Em última análise, a metafísica de Schopenhauer não forneceu nada além de uma elevação desse ideal em direção ao místico, ao transcendente insondável por assim dizer, um acento que recebeu a mais devido à interpretação metafísica de toda vivência e todo conhecimento artísticos. Percebemos esse acento mais claramente quando comparamos “Sócrates e a tragédia grega” com o complemento e ampliação que recebeu na obra principal, O nascimento da tragédia a partir do espírito da música. Nesse livro, Nietzsche busca reduzir todo o desenvolvimento artístico à ação dos dois “impulsos artísticos da natureza”, antagônicos e designados como o dionisíaco e o apolíneo, de acordo com as duas divindades artísticas dos gregos. No primeiro entende o elemento orgiástico, que vivia em deleitoso arrebatamento, na mistura de dor e prazer, de alegria e horror, na enlevada embriaguez das festas dionisíacas. Nelas são destruídas as barreiras e os limites usuais da existência; o indivíduo parece fundir-se novamente com a natureza como num todo; é quebrado o “principium individuationis”; “fica aberto o caminho até as origens do ser, até o cerne mais íntimo das coisas” (86). Obtemos uma melhor compreensão da natureza desse impulso através do fenômeno fisiológico da embriaguez. A arte que lhe corresponde é a música. A tendência contrária é moldada pelo instinto criador de formas, incorporado por Apolo, o deus de todas as formas esculturais. Nela se reúnem a restrição come.dida, a libertação em relação a todas as emoções mais selvagens, a quietude plena de sabedoria. Deve ser considerada a expressão sublime, “a divinização do principium individuatio-

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nis” (16), “cuja lei é o indivíduo, ou seja, a observância de seus limites, amoderação no sentido helênico” (17). O poder da tendência simbolizada por Apolo manifesta-se fisiologicamente na bela ilusão do mundo dos sonhos. Sua arte é a arte plástica do escultor. No congraçamento e na aliança desses dois impulsos, de início antagônicos, Nietzsche reconhece a origem e a essência da tragédia ática, que, sendo fruto dessas duas divindades arlísticas conflitantes, é arte tanto dionisíaca quanto apolínea. Nascida do coro ditirâmbico, que festajava os sofrimentos de Dioniso, essa tragédia é na origem apenas coro, cujos cantores eram de tal forma transformados e enfeitiçados pela exaltação dionisíaca que se sentiam os próprios servos do deus, os sátiros, e como tal consideravam a seu senhor e mestre Dioniso. Com essa visão que o coro produz de si mesmo, seu estado alcança a perfeição apolínea. Odrama como “materialização apolínea de noções e efeitos dionisíacos” está completo. Aquelas partes corais, com que a tragédia é entrançada, são portanto a matriz do drama propriamente dito” (41); são o elemento dionísico, enquanto o diálogo forma o componente apolíneo. Nesse cenário os heróis do drama falam sob a forma de aparições apolíneas, nas quais se objetiva o herói trágico primitivo, Dionisíaco; mas são puras máscaras sob as quais se oculta a divindade. Na conclusão de nosso livro, veremos de que modo peculiar Nietzsche, por fim, recorreu mais uma vez a essa idéia, procurando assim representar seus diversos períodos evolutivos, não como se houvessem sido expressões imediatas de seu espírito, mas sim, de certo modo, apenas máscaras exibidas arbitrariamente, “simulacros apolíneos”, sob os quais seu eu dionisífaco, divinamente superior, teria permanecido eternamente v mesmo. Conheceremos no final as causas dessa ilusão. A importância que Nietzsche atribui ao elemento dionisíaco é varacterística de seu tipo mental: como filólogo buscou, com “uu Iinterpretação da cultura dionisfaca, um novo acesso ao mundo dos antigos; como filósofo fez dessa interpretação o tfuimdamento de sua primeira concepção unitária do mundo; e,

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transpondo todas as suas metamorfoses posteriores, essa interpretação reaparece ainda em seu último período criativo, sem dúvida transformada, na medida em que sua ligação com a metafísica de Schopenhauer e Wagner está rompida, mas fiel a si mesma naquilo que, já então, as emoções ocultas de sua alma buscavam exprimir. Transformada, ela aparece em imagens e símbolos de sua última vivência, a mais solitária e a mais interior. A razão disso é que, no êxtase dionisíaco, Nietzsche pressentia algo semelhante à sua própria natureza: essa misteriosa essência e unidade do ser, de dor e prazer, de automartírio e auto-endeusamento, esse excesso de intensa vida afetiva em que todos os opostos se condicionam e se enredam uns aos outros. À isso voltaremos repetidamente. O contraste mais agudo com o dionisífaco e com a civilização artística dele originária é formado pela orientação intelectual do teórico, alheio a toda intuição, batizado pelo nome de Sócrates. Em O nascimento da tragédia, Nietzsche procura esboçar o desenvolvimento dessa orientação intelectual a partir de Sócrates, e através da filosofia e da ciência de todos os séculos, até os nossos dias. Com Sócrates, cuja doutrina racional se voltou contra os instintos helênicos primitivos a fim de refreá-los, “o gosto grego transforma-se em favor da dialética”, e começa aquela marcha triunfal do teórico, que julga poder explorar e corrigir as bases mais profundas do ser através da compreensão racional. Só pôs fim a esse otimismo a crítica de Kant, que apontou para as limitações do saber teórico & como Nietzsche mais tarde observou espirituosamente, reduziu a filosofia a uma “doutrina de abstinência que não sabe absolutamente ultrapassar o umbral e que meticulosamente se nega o direito de entrar” (Para além de bem e mal, 204). Segundo Nietzsche, foi assim que a crítica de Kant abriu caminho para aregeneração da filosofia através de Schopenhauer, Y que, por fim, teria aberto um acesso ao ser inexplorado e à sua reorganização por meio do conhecimento intuitivo. Entre 1873 e 1876, com o espírito de sua obra precedente, Nietzsche publicou quatro pequenos ensaios sob o título geral de Considerações extemporâneas, destinados a agir “contra a

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ffão)

época atual e, assim, sobre a época atual e, esperemos, a favor de uma época vindoura”. O primeiro desses ensaios levava o lítulo de “David Strauss, o sectário e o escritor” e consistia numa arrasadora crítica ao livro À velha e a nova fé, então festejado em toda parte, enuma enérgica hostilidade contra o intelectualismo unilateral da educação moderna. O segundo ensaio, extremamente valioso, conservou seu interesse: “Da utilidade e da desvantagem da história para avida”. Nas últimas vbras de Nietzsche sua idéia básica retorna modificada, mas nem por isso menos nítida que sua concepção do dionisíaco. A palavra “história” aqui indica a noção de vida das idéias, tomada, de modo bem genérico, em oposição à vida dos instintos; oconhecimento do passado, das coisas acontecidas, em voposiçãoà plena força vital do presente e do porvir. Esse texto trata da questão: “Como se pode submeter o saber à vida?” e determina o ponto de vista do autor nesta frase: “Sirvamos à história apenas na medida em que ela sirva à vida”. A história, porém, só serve à vida contanto que, diante das influências corrosivas, comprometedoras e destrutivas do intelectual, a função psíquica, a mais importante no homem, tenha permanecido intacta. —“[...] a força plástica de um homem, de um povo, de uma civilização, [...] quero dizer: aquela força para crescer à partir de si mesmo de modo peculiar, para reformar e incorporar coisas passadas e alheias, para curar feridas, para substituir o perdido, para reproduzir coisas despedaçadas a parlir de si mesmo” (10). Caso contrário, produz-se em nós um vaos de riquezas estranhas, que simplesmente afluem até nós, mas que não estamos em condição de dominar, de assimilar, c cuja diversidade põe em grave perigo a unidade e a organicidade de nossa personalidade. Tornamo-nos então palco de lutas agitadas, onde os mais diversos pensamentos, humores e julgamentos se hostilizam entre si sem parar; sofremos tanto «om à vitória de uns quanto com a derrota de outros, sem termos condição de dominá-los. Aqui se acha, pela primeira vez, o tão discutido conceito nirlzschiano de decadência, que, em suas obras posteriores, desempenha papel relevante. Não é por acaso que essa primeira

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descrição do perigo da decadência nos recorda a descrição que fizemos de seu próprio estado d'alma — aqui já podemos reconhecer claramente sua origem: foi o tormento secreto que fez esse espírito apaixonado suportar o constante afluxo de torrentes avassaladoras de conhecimentos e pensamentos —, a violência com que todo o seu saber e pensar agia sobre suaº vida interior, de modo que as abundantes e conflitivas vivências Íntimas ameaçavam fazer explodir os limites fechados de sua personalidade. No prefácio desse ensaio, o próprio Nietzsche diz: “Tampouco se deve [...] negar que as experiências que provacaram em mim essas sensações torturantes foram extraídas, na maioria dos casos, de mim mesmo e, só por comparação, de outros”.º O que encontrava em si mesmo tornou-se para ele o perigo geral de toda a era e, mais tarde, cresceu até se transformar num perigo mortal para toda a humanidade, que acabou por proclamá-lo redentor e salvador. Porém, a consequência disso é uma ambigiidade peculiar que percorre todo esse ensaio e que logo chama a atenção de um leitor versado em Nietzsche: como aquilo que suscita suas dúvidas nessa época é algo essencialmente distinto de seu problema psíquico, Nietzsche se volta igualmente contra duas coisas totalmente diversas: primeiro, contra a atrofia de uma vida psíquica, rica e plena, sob a influência glacial e paralisante de uma formação racional unilateral. “No fim das contas, o homem moderno arrasta consigo por toda parte uma enorme quantidade de pedras, as indigestas pedras do conhecimento, que, ocasionalmente, estrondeiam dentro do corpo, como é dito no conto” (36). “Sente então nas entranhas sensação semelhante à da cobra que engoliu coelhos inteiros e que, em seguida, se deita serena ao sol, evitando qualquer movimento, a não ser os necessários. [...] Quem passa, só formula o desejo de que tal “formação' não pereça de indigestão” (37). Em segundo lugar, porém, se volta contra a influência violenta e provocante do intelectual sobre a vida psíquica, justamente contra a luta, decorrente disso, entre forças impulsivas, selvagens e desconexas. É como a diferença entre a apatia e a insanidade da alma. No próprio Nietzsche, os pensamentos mais abstratos costu-

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Imavam se transformar em forças psíquicas que o arrebatavam vom uma violência imediata e incalculável. Assim, na imagem que traçou de nossa época deviam, pois, misturar-se as duas ações opostas do intelecto, e, em relação a uma delas — o desencadeamento caótico da vida psíquica —, de modo semelhante fundiram-se para ele duas causas distintas. Não se Irata apenas das influências puramente intelectuais e do perigo que o racional oferece ao instintivo, mas também das influências de épocas remotas, que herdamos e que se incorporaram 1 nós; que, outrora brotadas de uma fonte intelectual, agora vivem em nós apenas sob a forma de impulsos e avaliações afetivas. Não só o perigo que vem de fora ameaça a personalidade fechada, mas também o que ela traz em si, o que nasceu com cla, ou seja, aquela “contradição dos instintos”, herança de todo temporão, pois temporões são híbridos. Superior a desvantagem que, nesse sentido, a história, aprendida ou vivenciada, pode trazer, exige que nos voltemos ao não-histórico. Como não-histórico Nietzsche entende o retomo ao inconsciente, ao desejo de ignorar, ao fechamento dos horizontes, sem o que não há vida. “Tudo quanto é vivo só pode se tornar sadio, forte e fértil dentro de um horizonte” (11D). “O não-histórico é semelhante a uma atmosfera envolvente na qual a vida se produz por si só.” “É verdade: só quando o homem restringe esse elemento não-histórico, pensando, refletindo, comparando, separando, reunindo; só quando dentro daquela nuvem de vapor se forma um clarão límpido e relampejante; portanto, só à força de usar o passado para a vida e de fazer de novo história através do acontecido, é que o homem se torna homem; porém, num excesso de história, o homem cessa novamente de existir” (12). Sua força mede-se na quantidade do histórico que ele suporta e vence, na força do não-histórico que nele existe: “Quanto mais fortes as raízes que a natureza interior de um homem possuir, tanto mais ele se apropriará ou dominará o passado; à natureza mais poderosa e pipantesca que pudéssemos imaginar seria reconhecível naquela para a qual não haveria absolutamente nenhum limite

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do sentido histórico, dentro do qual ela pudesse agir de modo sufocante e nocivo; atrairia e incorporaria em si todo o passado, seu próprio passado e o mais alheio possível, e, por assim dizer, o transformaria em sangue. Aquilo que tal natureza não conquista, ela sabe esquecer: deixa de existir; o horizonte se fecha e se completa, e nada consegue lembrar-lhe que, do outro lado, ainda existem homens, paixões, doutrinas e desígnios” (11). Um espírito como esse exerce a história das três maneiras pelas quais ela pode ser exercida, sem cair em poder de nenhuma das três: considera-a como uma história monumental, deixando seu olhar repousar sobre os grandes vultos do passado, relacionando-os à sua obra e ao seu desejo pessoal, sem contudo perder-se neles, como precursores e companheiros entusiasmados. Mergulha na história tradicionalista, percorrendo todo o passado como os lugares de seu próprio passado, como alguém que trilha os lugares de sua própria infância, onde as coisas mais insignificantes lhe parecem valiosas e significativas: “[...] ele compreende a muralha, o portão flanqueado por torres, o decreto do Conseiho, a festa popular, como um diário colorido de sua juventude e, em tudo isso, reencontra a si mesmo, sua força, seu zelo, seu prazer, seu juízo, sua loucura, sua rudeza. Aqui se podia viver, diz para si mesmo, pois viver se pode; aqui se poderá viver, pois nós somos teimosos e não seremos dobrados numa noite. Assim, com esse “nós', eleva seu olhar sobre a vida individual, passageira e estranha, e sente-se como o espírito do lar, da raça, da cidade” (28). Finalmente, em terceiro lugar, considera a história também criticamente a fim de derrubar o passado em favor da construção do futuro e, para isso, precisa da maior vitalidade, pois mais perigoso do que se tornar visionário ou colecionador é continuar contestador. “É sempre um processo perigoso, peTigoso para a própria vida: [...] Pois como somos o resultado de gerações passadas, [...] não é possível nos livrarmos totalmente dessa corrente. [...] Na melhor das hipóteses, logramos um conflito entre a natureza ancestral herdada e nosso conhecimento, [...] plantamos um novo hábito, um novo instinto, uma segunda natureza, de modo que a primeira definha. É,

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por assim dizer, uma tentativa a posteriori de se dar a si mesmo um passado do qual se gostaria de provir em oposição àquele de que se descende [...] Mas, de vez em quando, a tentativa é vitoriosa, e [...] há um consolo notável, ou seja, saber que também essa primeira natureza foi uma vez, não importa quando, uma segunda natureza, e que cada segunda natureza vitoriosa se tornará primeira” (33). — Em certo sentido, podem-se aplicar esses trêsêmodos de considerar a história aos três períodos do próprio desenvolvimento de Nietzsche, começando com o tradicionalista, que convém à filologia; em seguida, a concepção monumental que o estimula a se sentar, como discípulo, aos pés de grandes mestres, e, por fim, indicando seu último período positivista, o crítico. Porém, depois que Nietzsche também vencera essa última fase, fundiram-se para ele esses três pontos de vista num só, no qual, como será mostrado, deveriam voltar de modo secreto e comovente as idéias contidas nesse ensaio, na agudeza extrema e paradoxal da frase: Que o histórico se submeta à vida individual, cuja condição permanente é o não-histórico/ O caráter forte que Nietzsche deScreve ao mesmo tempo como histórico e não-histórico é, com isso, herdeiro de todo o passado e, por isso, monstruoso na abundância de vivências; mas um herdeiro que sabe tornar verdadeiramente fértil sua riqueza, porque a possui verdadeiramente, a comanda — não é possuído nem comandado por ela. Tal herdeiro e temporão é então, ao mesmo tempo, o primogênito de uma nova civilização e, como portador do passado, um formador do futuro: a riqueza que dissemina ainda dará Írutos nos tempos vindouros. Ele é um dos grandes “extemporâneos”, que imergem no passado mais longínquo, que aponlam para o futuro mais longínquo, mas que permanecem em seu tempo sempre como forasteiros, embora neles o presente reúna e distribua suas forças mais elevadas. Aqui está o primeiro sinal dos pensamentos do último petíodo criativo de Nietzsche, o ser único dos gênios de toda a humanidade capaz de sozinho interpretar opassado como um lodo a partir do presente e, com isso, também de definir como Mm todo o futuro, em seu objetivo e sentido, até a eternidade.

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De um ponto de vista puramente exterior, as raízes dessa concepção descem ao nível dos estudos filológicos de Nietzsche, que o levaram a se apoderar cognitivamente de antigas civilizações. Saber e ser foram sempre uma unidade para seu espírito singular; para ele, ser filólogo clássico significava tanto quanto ser grego. Sem dúvidas, isso devia fortalecer ainda mais a contradição de instintos que o atormentava — e que, para ele, se acentuava no contraste entre o antigo e omoderno —, mas, ao mesmo tempo, continha os meios para combatê-la, ou seja, por intermédio do passado, superior ao presente, construir o futuro; a partir de um homem contemporâneo, transformar-se num temporão de uma civilização mais antiga e num primogênito de uma nova civilização.” A dois de tais indivíduos “extemporâneos” — o que se relaciona ao passado e o que se relaciona ao futuro — estão dedicadas as duas últimas Considerações extemporâneas de Nietzsche: “Schopenhauer como educador” e “Richard Wagner em Bayreuth”. Nesses dois monumentos de gênio, erigidos com entusiasmo transbordante, fica especialmente claro até que grau a aspirada civilização do extemporâneo culmina num culto ao gênio. No gênio, a humanidade possui não apenas seu educador, seu guia, seu arauto, mas também sua finalidade real e exclusiva. O conceito segundo o qual todos os “produtos fabricados pela natureza” só existem em função dos “indivíduos elevados” é uma daquelas idéias básicas de Schopenhauer que nunca mais abandonaram Nietzsche.;Algo de muito profundo em seu espírito ansiava insaciavelmente pela exaltação do egoísmo na idealização do eu e igualmente pelo reverso obscuro desse supremo destino humano, pelo “solitário” e pelo “heróico”. Aparentemente, em seu período criativo intermediário, Nietzsche se havia afastado dessa concepção original do gênio, porque ela perdera seu fundo metafísico, do qual só o grande “isolado” pode se destacar com importância alémde-humana — como figura de um mundo superior e real. Mas a idéia do culto ao gênio continha um esboço daquilo que, ao final de seu desenvolvimento, num golpe de loucura genial, Nietzsche novamente formou a partir dela. Pois, substituindo

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à interpretação metafísica, o valor de vida positivo do gênio superou para ele a concepção de Schopenhauer, de tal forma que esta só oferece uma pálida correspondência à sua. Enquanto permaneceu um culto ao metafísico na natureza do homem, o culto ao gênio estendia-se a uma série contínua, uma corrente de tais “indivíduos isolados”, que, em essência, eram iguais em nascimento e valor. Não são considerados componentes de uma linha evolutiva do humano; “[...] não continuam, por exemplo, um processo, mas sim vivem, como contemporâneos, fora do tempo”, constroem “uma espécie de ponte sobre o desordenado fluxo do devir”; “[...] um gigante clama por outro através dos intervalos desertos do tempo e, sem se deixar perturbar pelos anões travessos e barulhentos, que deles se afastam rastejantes, prossegue a elevada conversa entre seus espíritos” (“Da utilidade e da desvantagem da história para a vida”, 91). Como é esse “bando de anões” que define a história da evolução como um todo, tanto em suas ocorrências quanto em suas leis, uma coisa é certa: “O alvo da humanidade não pode estar no fim, mas sim apenas em seus exemplares mais elevados” (loc. cit.). Mas, como esses exemplares mais elevados só exprimem aquilo que repousa nas profundezas do humano, como se fosse seu fundamento metafísico, distinguem-se da massa dos homens menos por uma diferença do que por uma revelação da essência, por uma nudez divina — enquanto o homem do povo veste mil camadas por cima de sua verdadeira natureza, todas superficiais e que, às vezes, endurecem até se tornarem impenetráveis. “Quando o grande pensador despreza os homens, despreza sua preguiça, pois, por causa dela, parecem àrtefatos. |..] Ao homem que não queira fazer parte da massa, basta deixar de ser comodista” (“Schopenhauer como educador”, 4). Por isso, educação afetuosa e solicitude para com todos são à conseqgiiênciadesse modo de ver, que, em seu sentido mais profundo, equipara todos, porque respeita o ceme metafísico em cada casca, afastando-se, assim, mais do que tudo, das exigências de escravidão e tirania feitas por Nietzsche posteuormente. :

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Sendo, contudo, esse fundo metafísico destruído na filosofia posterior de Nietzsche, dissolvendo-se o ser transcendental no devir interminável do real, o indivíduo isolado só pode erguer-se acima da massa por uma diferença de essência que equivale a uma diferença de grau; porque, respresentando à quintessência desse processo do devir, ele o abrangerá tanto quanto possível em sua totalidade, enquanto o homem da massa só sabe vivê-lo e representá-lo em si de modo cego e fragmentado. Até certo ponto, esse indivíduo isolado seria o único capaz de dar sentido a esse longo desenvolvimento que se chama história; não seria constituído de matéria supra-sensível tal como o homem schopenhaueriano, mas, ao contrário, seria um total criador e, como tal, capaz de restituir ao mundo aquele significado das coisas no qual acredita o metafísico. Ao invés de um conjunto de indivíduos isolados e de mesma aptidão, elevando-se como uma cadeia de montanhas de mesma altura sobre a engrenagem humana, há, portanto, na derradeira filosofia de Nietzsche, apenas o grande solitário, que se apresenta como o ápice de tudo; para cima, ele sente-se muito mais solitário que os outros, pois, como fim da evolução, é o exemplar mais elevado da espécie; mas, para baixo, é muito mais duro e senhorial que eles, pois a massa de homens e a vida nada significam em si ou metafisicamente; precisa antes conferir-lhes uma hierarquia definida até seu cume. É facilmente compreensível que, em Nietzsche, o culto ao gênio cresça monstruosamente, pois, na falta de uma interpretação metafísica, na qual o homem schopenhaueriano se eleva desde o início até uma ordem superior das coisas, Nietzsche só pode ccenvencer através do recurso ao monstruoso. As quatro idéias do primeiro período filosófico de Nietzsche, com as quais se ocupou até o fim, mesmo que em concepções sempre alteradas, são as seguintes: o dionisíaco, a decadência, o extemporâneo e o culto ao gênio. Assim como, repetidamente, encontramos o próprio Nietzsche em suas obras, também encontramos essas idéias; e, na mesma medida em que ele se exprime de forma cada vez mais pessoal em sua filosofia, também as modela de forma cada vez mais caracte-

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rística. Quando os consideramos em suas modificações e diversidade, seus pensamentos parecem quase ilimitados e demasiado complexos; quando, ao contrário, procuramos retirar deles aquilo que, na mudança, permanece sempre igual, então nos surpreendemos com a simplicidade e a constância de seus problemas. “Sou sempre outro e sempre o mesmo!” — pôde Nietzsche dizer de si mesmo. O profundo significado que a concepção de mundo wagner-schopenhaueriana ganhou para Nietzsche e o fato de ele, mais tarde, após todas as lutas e a partir de orientações totalmente opostas de seu espírito, ter se reaproximado de suas idéias básicas, mostram o quanto essa concepção vinha ao encontro da totalidade de sua natureza e o quanto ela exprimia o que nele dormitava. Elevado de sua atividade filológica até a filosófica, sentia-se, sem dúvida, como um prisioneiro de quem caem as correntes. Antes estavam atadas suas melhores forças; agora podia respirar, agora tudo nele estava liberto. Seus instintos artísticos se regalavam nas revelações da música wagneriana; seu acentuado talento para as exaltações religiosas e metafísicas desfrutava, na explicação metafísica dessa arte, de uma possibilidade de elevação. Seu saber profundo e abrangente servia à nova concepção de mundo, que se refletia em sua concepção do helenismo. Como, na pessoa de Wagner, o gênio artístico se tornara um fato; como nele surgira, por assim dizer, o “redentor”, cabia a Nietzsche a posição do cognoscente, do intermediário científico; com isso, permaneceu na função de filósofo. Mas o conhecimento obtido, em si, criou apenas a aportunidade para o pleno desdobramento de sua individualidade artística e religiosa, e justamente isso indica seu valor para o espírito de Nietzsche. Aquilo que ardentemente desejava, Já durante seus estudos filológicos, quando investigava a vida dos grandes filósofos, se tornara aqui realidade: o pensamento, uma vivência; o conhecimento, uma colaboração e uma coautoria na nova civilização; no pensamento podiam cooperar ludas as forças psíquicas; ele exigia ohomem como um todo. Nictzsche só expressa o arrebatamento libertador que desfrutou

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na época quando, na conclusão de “Sócrates e a filologia clássica”, irrompe com as seguintes palavras: “Ah, o encanto dessas lutas é que o observador também deve lutar!”. E, como seus diversos talentos puderam então viver e se desenvolver mais livremente, esse período da vida de Nietzsche também satisfez totalmente aquela necessidade profunda e quase feminina de ser adorado como pessoa, de ver olhos erguidos para sua figura, algo que, mais tarde, teve de satisfazer dolorosamente por si mesmo. Embora profunda a felicidade que lhe proporcionava a filosofia wagner-schopenhaueriana, Nietzsche achava que o mais valioso era sua relação pessoal com Wagner, era sua admiração incondicional por ele. Seu entusiasmo inflamou-se por uma personalidade exterior a ele e na qual, por assim dizer, acreditava ver corporificado seu próprio ideal. A felicidade dessa crença estende sobre as idéias dos primeiros escritos filosóficos de Nietzsche algo de sadio, de quase ingênuo, e que contrasta nitidamente com a particularidade de suas obras posteriores. É como se o víssemos se compreendendo e se percebendo pela primeira vez na imagem de seu mestre Wagner e do filósofo deste, Schopenhauer. Pois, com certo medo instintivo, rejeita ainda aquela arte de transformar seu próprio eu, conscientemente, em “objeto e experimento do cognoscente”, arte em que, mais tarde, deveria se tornar tão grande e tão doente. “Como pode um homem se conhecer? Ele é uma coisa obscura e oculta; e se a lebre tem sete peles, ohomem pode se esfolar sete vezes setenta e, contudo, ainda não poderá dizer: “isto sou eu realmente; não é mais pele'. Além disso, é um começo perigoso e tormentoso cavar-se a si mesmo desse modo e descer à força o poço de sua natureza pelo caminho mais curto. Nisso ele se machuca tão facilmente que nenhum médico pode curá-lo” (“Schopenhauer como educador”, 7). Por isso clama à juventude ansiosa de inspecionar o próprio eu: “o que absorveu tua alma, o que a governa e, ao mesmo tempo, a faz feliz? Organiza à tua frente a série desses objetos que veneras e talvez eles te ofereçam [...] uma lei, uma lei básica de teu ser real. Compara esses objetos, vê [...] como formam uma hierarquia na qual,

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até agora, escalaste até ti mesmo; pois teu verdadeiro ser não está oculto em tuas profundezas, mas sim imensuravelmente acima de ti [...]” (loc. cit.). Com uma franqueza, mais tarde perdida durante a fase da mais penosa auto-análise, Nietzsche revela o motivo que, desde o princípio, o faz desejar ardentemente esse discipulado — a “um guia e ao mesmo tempo mestre” superior (“Schopenhauer como educador”, 14): “[...] possa eu me deter um pouco numa imagem que, em minha juventude, foi mais freqiiente e urgente como praticamente nenhuma outra. Quando, outrora, a meu bel-prazer, desvairava em desejos, pensava que o destino me aliviaria do terrível esforço e obrigação de me educar, contanto que, no tempo certo, eu encontrasse para educador um filósofo, um verdadeiro filósofo, aquem se pudesse obedecer sem maior reflexão, porque nele se confiaria mais do que em si mesmo” (“Schopenhauer como educador”, 8). É interessante observar como, para esse fim, procura descobrir por trás do pensador Schopenhauer o homem ideal Schopenhauer º e como, diante de Wagner, parte de uma profunda afinidade entre suas respectivas naturezas. De fato, surpreende a concordância entre as disposições naturais e intelectuais de Wagner, por ele descritas, e a “polifonia” de suas próprias disposições, tal como expõe na primeira parte desse livro. Assim diz Nietzsche em “Richard Wagner em Bayreuth” (13): “Cada um de seus im“pulsos ambicionava o desmedido, todos os seus vívidos talentos queriam libertar-se individuaimente; quanto maior sua abundância, tanto maior o tumulto, tanto maior a hostilidade de seu cruzamento”. Depois, no início de virilidade “espiritual e moral” de Wagner, essa multiplicidade se torna uma unidade, mas, ao mesmo tempo, uma singular “dissociação”. “Sua natureza aparecetremendamente simplificada, cindida entre duas tendências ou esferas. Por baixo, numa corrente impetuosa, se agita um “desejo violento que, por assim dizer, quer vir à tona por todos os caminhos, cavernas e abismos e que anseia pelo poder” (10). “A corrente como um todo se precipitava ora nesse, ora naquele vale, perfurando os mais escuros abismos; [...] na noite

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dessa agitação meio subterrânea surgiu no alto, por cima dela, uma estrela [...]” (12). “Lançamos o olhar à outra esfera de Wagner. É a experiência primitiva mais pessoal que Wagner vivencia em si mesmo e que venera como um mistério religioso: [...] essa experiência e esse conhecimento maravilhoso de que uma esfera permaneceu fiel à outra, [...] a esfera criativa, inocente, luminosa à escura, indomável, tirânica” (13). “No equilíbrio recíproco entre essas duas forças profundas, na dedicação de uma à outra, residia aquela grande necessidade através da qual ele pôde permanecer inteiro e fiel asi mesmo” (13). Ao final desse ensaio Nietzsche busca também compreender a música de Wagner a partir dessa particularidade tão aparentada a ele próprio, percebendo o gênio musical de Wagner como uma espécie de reflexo dos estados psíquicos do mestre: “[...] omodo como sua música se sujeita, com certa crueldade de propósito, à marcha do drama, que é inexorável como o destino, enquanto a alma fogosa dessa arte anseia vaguear sem rédeas nos espaços ermos e livres” (82). “Acima de todos os indivíduos sonoros e da luta de suas paixões, acima de todo o redemoinho de contrastes, paira [...] uma razão sinfônica muito poderosa que, a partir da guerra, gera ininterruptamente a concórdia” (79). “Wagner é mais Wagner quando se decuplicam as dificuldades e ele pode reinar, em condições grandiosas, com o prazer do legislador. Domar massas impetuosas e obstinadas em ritmos simples, realizar uma única vontade através da diversidade perturbadora de pretensões e desejos” (80). Mas justamente essa afinidade entre as naturezas de ambos deveria por fim levar Nietzsche a continuar a evolução de seu espírito por caminhos solitários; deveria, a qualquer momento, arrancá-lo de Wagner. Assim que Nietzsche alcança o auge desse período, já está também prenunciado o primeiro passo que, inevitavelmente, deveria conduzi-lo para baixo. Parece uma total inversão dos fatos quando, mais tarde, em seu injusto opúsculo O caso Wagner, Nietzsche afirma: “Minha vivência

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maior foi uma cura. Wagner faz parte apenas de minhas doenças” (Prefácio). Contudo, sua evolução só atinge o doentio muito depois de sua ruptura com Wagner; em certo sentido, pode-se mesmo dizer que seu período com Wagner tenha feito parte de seus estados de saúde conquistados. Apesar disso, não se pode deixar de perceber a verdade em sua afirmação, ou seja, que ainda não atingira seu auge, por mais saudável e feliz que tenha sido naquele tempo. Só teria podido conservar essa saúde ao preço da grandeza. Para transformar-se de discípulo em mestre, devia primeiro entrar no próprio eu; mas, como sua natureza exigia, com urgente necessidade, um discipulado no sentido religioso, só lhe restou a possibilidade única de unir em si mesmo discípulo e mestre, ainda que fosse para sofrer com isso, ainda que fosse para perecer numa fusão doentia de ambos. Para seu caminho rumo à grandeza valem as palavras de Zaratustra: “Cume e abismo — estão agora contidos num só!”. Deu-se à deserção de Nietzsche em relação a Wagner interpretações dos mais diversos tipos; procurou-se explicá-la a partir de motivos puramente ideais — ânsia irresistível de verdade — e também a partir dos motivos do “humano-demasiado humano”. Na realidade, porêm, ambos o8 motivos se cruzaram de modo semelhante ao da primeira metamorfose de Nietzsche, em seu afastamento da fé: justamente a circunstância de que achava plena satisfação, paz psíquica e uma pátria espirítual, de que a concepção de mundo de Wagner lhe assentava de modo liso e suave como uma “pele sã”, deu-lhe o ensejo de se desfazer dela, fez sua “superfelicidade parecer desventuri”, fez com que “se ferisse com a própria felicidade”. É nesse modo de formar sua orientação livre-pensante que encontra aplicação sua “Conjetura sobre a origem do espírito livre” (Hm mano, demasiado humano, 1, 232), que seria gerado pela su prema felicidade de seus sentimentos nesta concepção: de mundo: “Da mesma forma como aumentam às geleiras quando, 1as regiões equatoriais, o sol queima os mares com mais ardor doeque antes, assim também um espitito livre muito forte e

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abrangente pode ser testemunho de que, em algum ponto, o ardor do sentimento cresceu de modo extraordinário”. Só os tormentos que desejava e que buscava para si fizeram surgir-lhe no espírito a rija armadura guerreira com que partiu para a guerra contra seus antigos ideais. Por certo, sentiu a remoção dessa última dependência como uma libertação e, ao mesmo tempo, uma abdicação ao belo e ao solene; essa autoliberação representou um ato de resignação, com ela sofreu como sofremos com feridas, mesmo quando produzidas por nós mesmos. A ruptura se produziu de modo definitivo e, para Wagner, inesperado, justamente quando, com seu poema sobre Parsifal, chegava a tendências catolicizantes, num momento em que o desenvolvimento do espírito de Nietzsche, numa metamorfose repentina, se voltava para a filosofia positivista dos ingleses e franceses. Para Nietzsche, abandonar Wagner não significou apenas uma separação de espíritos, mas também o rompimento de uma relação em que ambos estiveram tão próximos como só o pai está do filho, o irmão do irmão. Esquecer e resignar-se de todo, provavelmente nenhum dos dois conseguiu. Ainda no outono de 1882, meio ano antes da morte de Wagner, durante o Festival de Bayreuth — estréia de Parsifal —, fez-se a tentativa de mencionar o nome de Nietzsche diante do mestre. Nietzsche encontrava-se então nas proximidadês, no vilarejo turíngio de Tautenburg bei Domnburg, e sua velha amiga, a srta. Von Meysenbug, era de opinião, embora equivocada, que, em caso de sucesso, Nietzsche poderia ser persuadido a vir a Bayreuth e reconciliar-se com Wagner. No entanto, a tentativa falhou; Wagner deixou o aposento em grande excitação, proibindo que o nome de Nietzsche fosse outra vez pronunciado diante dele. Aproximadamente da mesma época data a seguinte carta de Nietzsche (reproduzida em fac-símile) que descreve com eloqiiência sua posição quanto à ruptura com Wagner:

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Quando leio essa curta descrição, é como se o visse diante de mim naquela viagem que fizemos através da Suíça, quando visitamos Tribschen, perto de Lucerna, o local onde ele vivera com Wagner tempos inesquecíveis. Durante muito, muito tempo, ficou sentado à beira do lago, mergulhado em graves recordações; depois, desenhando com a bengala na areia úmida, falou com voz baixa daqueles tempos passados. Quando olhou para cima, vi que chorava. O mais severo sofrimento físico de Nietzsche coincide com sua separação interna e externa do wagnerismo e da filosofia de Schopenhauer. Vivia então, tanto física quanto espiritualmente, em meio a tormentos e dores que o aproximavam da “morte tanto física quanto espiritual”. Sua doença irrompera nos anos da mais elevada produtividade, de seu múltiplo e exaustivo envolvimento com investigações científicas, problemas filosóficos, movimentos intelectuais contemporâneos, a arte wagneriana e a própria música. Certamente não é por acaso que a última e fatal erupção de sua cefaléia, no final dos anos 1880, tenha seguido igualmente um período de monstruosa produtividade e dinamismo intelectual. Era quando se sentia mais saudável e robusto, na pujança de sua capacidade, que se aproximava da doença, e eram os períodos de lazer e descanso involuntários que repetidamente lhe traziam a cura e ainda retardavam a catástrofe. Esse processo reflete, em nível puramente físico, algo daquele singular traço patológico do “excedente de saúde” de sua vida intelectual, que costumava transbordar em estados doentios justamente após ter alcançado o auge. Porém, com a tenacidade de sua natureza monstruosa, Nietzsche transpunha todos os obstáculos desses estados até recuperar a saúde. Enquanto pôde vencer as dores e sentir em si a plena força do trabalho, o sofrimento não conseguiu abalar sua resistência e auto-afirmação. Ainda em 12 de maio de 1878, escreve numa carta de Basiléia, num tom de confiante malícia: “A saúde oscilante e perigosa, mas por pouco não digo: “que me importa minha saúde!* ”,

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Mas, em 23 de abril de 1879, segue a alusão à demissão, provavelmente necessária, da cátedra: “Meu estado é uma crueldade e um limbo, não posso negar. Provavelmente acabará com minha atividade acadêmica e talvez com minha atividade em geral, possivelmente com [...]” etc. E logo a amarga queixa: “Parece que nada mais ajuda; as dores são absolutamente furiosas. [...] Mas estão sempre dizendo: “Suporta! Renuncia!”. Ah, o homem acaba se fartando da paciência. Precisamos de paciência para a paciência...”. Finalmente, num tom de silente resignação, uma carta de Gênova, de 15 de maio de 1879: “Não vou bem, mas sou um velho perito em suportar sofrimentos e continuarei arrastando minha carga (mas não por muito tempo, assim o espero)”. Logo depois se demitiu de sua cátedra e para sempre a solidão o abraçou. A renúncia à sua atividade pedagógica lhe foi penosa, pois era no fundo a renúncia a todo trabalho estritamente científico. Cabeça e olhos (ele se autodenomina um “doente que agora é, infelizmente, sete-oitavos cego e já não pode ler, a não ser com dores e por um pequeno quarto de hora” — carta a Rée) doravante lhe estorvam permanentemente uma ampliação material de suas idéias através de estudos extensos. A grande variedade de suas preleções na Universidade e no Paedagogium de Basiléia mostra quão avultadas e múltiplas eram as pesquisas que havia projetado. De fato, na época, limitava-se ainda à pesquisa sobre o helenismo, permanecendo filosoficamente vinculado a determinado sistema metafísico. Em outras condições de saúde, porém, sua posterior libertação das limitações desse sistema teria agido mais favoravelmente. A imagem cultural da vida grega, na qual pensava ler então, com os olhos do metafísico, os traços básicos mais profundos da concepção do mundo e da vida humana, teria sido aos poucos expandida, através de trabalhos científicos contínuos, até se tornar para ele uma imagem global do desenvolvimento do mundo. AÀgenialidade de sua sutil sensibilidade e de seu poder de criação artística o predestinaram diretamente a produções histórico-filosóficas em larga escala. Seu ímpeto à produção teria sido, assim, impedido de

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se perder demasiadamente no subjetivo; não sentiu Nietzsche muitas vezes que, quanto mais alados, mais impetuosos e mais apaixonados são os pensamentos, tanto mais extensa e rígida deve ser a matéria à qual estão ligados, pela qual são dominados? Por isso encontramos em suas obras, até o fim, o empenho repetidamente renovado, mas infrutífero, de se expandir exteriormente e de firmar seu pensamento cientificamente; há nisso algo do vão ruflar de asas de uma águia cativa. Por motivos de saúde foi Nietzsche obngado a tomar a si mesmo como matéria para seus pensamentos, a submeter seu pióprio eu à sua concepção filosófica de mundo e a desenvolvê-la a partir de seu próprio interior. Em outras circunstâncias não teria produzido algo tão singular e portanto tão original. Apesar disso, não podemos lembrar, sem o mais profundo pesar, essa reversão no destino de Nietzsche — essa compulsão para o auto-isolamento e para o auto-endeusamento; não podemos nos esquivar da sensação de que Nietzsche aqui passa ao largo de uma grandeza que lhe estava reservada. Nesse ponto se fez noite ao redor de Nietzsche. Seus ideais, sua saúde, sua força de trabalho, seu raio de ação — tudo quanto até agora dera luz, brilho e calor à sua vida sumiram-lhe sucessivamente. Foi um desabar monstruoso, sob cujos escombros ficou como que soterrado. Começaram seus “tempos obscuros” (ver O andarilho e sua sombra, 191). Os escritos que agora se seguem já não são extraídos de uma plenitude que estava acumulada e pronta nele, nem compostos a partir de um alvo que acreditava ter alcançado; descrevem, antes, o modo como se orienta em sua noite e como avança tateando lentamente; são os passos dolorosos, conflituosos e por fim vitoriosos, rumo a um alvo obscuro. “Quando retomei sozinho meu caminho — confessa muitos anos mais tarde (prefácio ao 2º tomo de Humano, demasiado humano) a respeito dessa época —, eu tremia. Não muito tempo depois caí doente, mais que doente, cansado da inevitável desilusão com tudo o que nos restava, homens modernos, de entusiasmo [...]”. Mas não é como queixoso que o vemos abrir caminho por entre os escombros e, com razão, assinala isso

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como o encanto desse ensaio: “que aqui fala um sofredor e um necessitado como se não fosse nem sofredor nem necessitado” (ibidem). Continuamente se torna Nietzsche um criador e um descobridor do novo. Nas profundezas desse mundo de escombros penetra, escava e revira ainda seus últimos fundamentos e, com olhaosacostumados à noite, espreita os tesouros e segredos ocultos no interior da Terra. Como um segundo Trofônio, que imerge e emerge astuciosamente, sabe, mesmo a partir das profundezas, dar informação sobre o mundo cá de cima e interpretar seu enigma. Assim o vemos: “um ser subterrâneo que perfura, que escava, que solapa [...] e avança lento, prudente, suave, inexorável, sem denunciar em demasia as penúrias que toda longa privação de ar e de luz traz consigo”. Então nos surge aquela serena pergunta que o fazia lembrar-se daqueles anos e que deve responder à nossa reflexão sobre o rumo tomado por sua evolução: “[...] Não parece, talvez, querer ele manter sua longa escuridão, seu incompreensível, seu oculto, seu enigmático, porque sabe que assim também manterá sua própria manhã, sua própria redenção, sua própria aurora? [L...]” (Prefácio ànova

edição de Aurora).

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Com tais sentimentos de autocompaixão e auto-admiração, Nietzsche lança um olhar retrospectivo sobre o período de vida diante do qual nos achamos agora. Desde o princípio, vemos que sua característica são as lutas e ferimentos que sofreu para se apropriar dessa nova concepção de mundo; é o profundo adoecimento por ela, a partir do qual recriou a seguir sua nova saúde. De início, portanto, sua originalidade deve ter se expressado muito menos nos conceitos e teorias propriamente ditos, que então se lhe abriam, do que na força com que se libertava do velho ideal a fim de apreendê-los. Não alcançou, como a maioria, a consciência de uma maior autonomia e de uma atividade de espírito mais pessoal com base num desenvolvimento intelectual, que nos soa indiferente ou frio em relação aos pensamentos menos maduros abandonados pelo caminho. Só alcançou esse estado através de uma violenta revolta contra o passado, na qual as bases intelectuais condicionaram menos do que acompanharam a mudança de opinião. Assim, de início, sempre vemos Nietzsche aceitando os novos pensamentos com certa falta de personalidade, tais como justamente os encontra; vemos que, de início, os recebe de maneira não crítica, pois, entrementes, toda a sua energia estácompletamente tomada pelas vivências internas, e as novas lcorias — para usar uma das expressões favoritas de Nietzsche —formam apenas uma “filosofia de fachada” provisória, ao passo que, nos bastidores ocultos, nas lutas da vida psíquica, eletua-se realmente o processo decisivo. Quanto mais firmemente estiver ligado ao antigo, quanto muaisviolentamente o salto para o novo exigir um completo desarraigamento do solo nativo de seu espírito, tanto mais prolundo será o significado interno da metamorfose. Assim, em certo sentido, podemos dizer que a aparente falta de independência com que Nietzsche se entrega a um modo de pensar desconhecido garante uma força da mais heróica independência. Enquanto os mais caros pensamentos o atraem, ele se entrega sem defesa a esferas de pensamentos diante dos quais ainda se sente estranho emesmo secretamente adversário, 1noentanto, com aquelas belas palavras no coração: “Uma vi-

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tória ou uma trincheira conquistada já não dizem respeito a ti, mas sim à verdade. Mas tampouco tua derrota diz respeito a ti” (Aurora, “Em que medida o pensador ama seu inimigo”, 370). Devemos ter isso em mente se quisermos fazer justiça à súbita mudança de opinião de Nietzsche e compreender a formação de sua primeira obra positivista, obra que brotou tão surpreendente e inesperadamente de seu espírito. Só no ano de 1876 apareceu a última das Considerações extemporâneas, o pequeno livro “Richard Wagner em Bayreuth”, e já no inverno de 1876/1877 foi produzida a primeira coletânea de seus aforismos: Humano, demasiado humano — Um livro para espíritos livres (dedicado à memória de Voltaire, na cerimônia comemorativa de centenário de sua morte em 30 de maio de 1778), acompanhado de um apêndice: Miscelânea de opiniões e sentenças (Edição de Emst Schmeitzner, Chemnitz, 1878). A nenhum outro livro se aplicam com maior justeza as palavras que sobrescreveu às obras desse período: “Meus escritos só falam de minhas conquistas: neles eu estou com tudo o que me foi adverso. [...] Doravante solitário [...] tomei partido contra mim e afavor de tudo quanto me machucou e me penalizou” (Prefácio à nova edição de Humano, demasiado humano). Essa obra reflete tão nitidamente seu estado de espírito na época que parece conter dois elementos totalmente distintos um do outro: de um lado, o Nietzsche positivista, ainda não independente, e que, nas teorias recém-assumidas, não nos dá quase nada de próprio, mas nos orienta sobre o ponto onde agora se encontra, sobre a nova “pele” que vestiu quase passivamente; por outro, ocombatente e o sofredor Nietzsche, que, decidido, se liberta dos antigos ideais e nos revela uma comovente plenitude da mais original vida intelectiva nessa luta apaixonada com que se defende contra seu próprio eu de outrora e com que se agride a si mesmo. Assim também se explicam o ardor e a crueldade dos ataques que dirige a Wagner e às suas concepções. Ninguém é menos capaz de uma justiça tranqiiila e ponderada do que aquele que estájustamente mudando as próprias convicções, e isso não apenas em seus fundamentos

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intelectuais, mas também nas profundezas do “humano-demasiado humano” de sua própria natureza. Nenhum pensamento arremessamos tão violentamente para longe de nós como aquele do qual acabamos de nos separar em meio a dolorosos conflitos e diante do qual nos quedamos ainda magoados e abalados, cheios de feridas secretas que nosso orgulho oculta: há nisso ódio sob a forma de um eco do amor inesquecível. O que caracteriza essa súbita metamorfose interior de Nietzsche é que, também dessa vez, ela parte de uma relação “pessoal. Assim como o ferrão mais acerbo na luta contra o velho ideal de conhecimento foi a quebra de uma amizade, o novo tipo de conhecimento também se incorpora numa personalidade. Quanto maiores as dores e a solidão em que se viulançado pelo rompimento com Wagner, tanto maior o fervor de sua relação com Paul Rée, pois “para um tal solitário, “o . amigo' é o pensamento mais precioso de todos”, conforme escreve certa vez a Rée (31 deoutubro de 1880, da Itália). Enquanto a relação com Wagner fora caracterizada pelo exclusivismo com que Nietzsche a ele se dedicava e o admirava, ou seja, por seu discipulado, o laço de amizade com Rée, antes, forma uma camaradagem espiritual, que não foi afetada por viverem os amigos longe um do outro e por Rée só poder deixar temporariamente sua casa na Prússia Ocidental para se encontrar com Nietzsche em lugares diversos. Já em 19 de novembro de 1877, de Basiléia, onde vivia ainda num círculo de correligionários, Nietzsche se queixa dessa distância que, em virtude de uma doença de Rée, o manteve separado do amigo por longo tempo. Que vocêpossalogo, meuamigo,me informarque os mausespíritos da doençaseafastaram completamente de você; então,paraseunovo ano de vida, só me restariadesejarque você permaneçao que é e, paramim,o quefoi no anopassado.[...] Devo lhedizer,contudo,que, em minha vida, não tive tantosprazeresda amizadequantoos que você me deu esteano, semfalar absolutamente daquiloque apreridi de você.Quandoleio a respeitodeseusestudos,me dá águanaboca, a idéiadeconvivercomvocê;somosfeitosparanoscompreender bem; creioquesemprenos encontramos na metadedo caminho,comobons vizinhosque sempretêm ao mesmotempoa idéia de se visitarmutuamente e de ir ao encontrodo outrono limite de suaspropriedades.

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LOU ANDREAS-SALOMÉ Talvezestejaum poucomaisem seupoderqueno meuvencer[...] a grandedistância;aesserespeitopossoteresperanças para oAno Novo? Minhagrandeinfelicidadee fragilidadenãome impedemde fazerum pedidoao melhor amigo que há: uma boa conversaentrenós dois sobrecoisashumanas,umaconversapessoal,nãoepistolar,paraa qual me tornocadavez mais imprestável.

Quanto mais o sofrimento de Nietzsche o força à solidão, quanto mais isolado e distante de todos os homens lhe é preciso viver a fim de suportar esse sofrimento, tanto mais nostalgicamente anseia pelo amigo que deveria transformar sua solidão numa “união de dois”: “Dez vezes ao dia desejo estar a seu lado, com você” (carta de Basiléia, 14 de dezembro de 1878). “Em meu espírito, sempre ligo meu futuro ao seu” (de Genebra, maio de 1879). “Tive de abandonar muitos desejos, mas nunca o de viver com você — meu “jardim de Epicuro* ” (de Naumburg, 31 de outubro de 1879). As dores violentas e os ataques que Nietzsche sofria despertavam nele pensamentos de morte que, por sua vez, davam a cada reencontro um significado especialmente profundo. “Quanta alegria você me deu, meu querido, meu extraordinariamente querido amigo!”, exclama após um de tais encontros. “Vi você mais uma vez e o achei igual à lembrança que meu coração guardara; esses seis dias foram de uma embriaguez permanentemente agradável. Confesso-lhe que não mais espero revê-lo; o abalo de minha saúde é profundo demais, meu tormento ininterrupto; de que me servem o autodomínio e a paciência? Sim, quando estava em Sorrento, ainda havia o que esperar, mas esse tempo passou. Por isso prezo tê-lo tido comigo, meu amigo amado do coração!” Naqueles anos, os dois amigos chegaram a conceitos cada vez mais concordantes e seus estudos eram muitas vezes comuns. Rée proporcionava a Nietzsche os livros de que precisava, lia para lhe poupar o sofrimento da vista e viveu com ele numa constante relação e intercâmbio de idéias, em parte epistolar, em parte pessoal. Meuamadoamigo— escreveNietzscheapósumascparaçãoumpouco maislonga—, prepareimuitacoisadentrodemimparanossoencontro, se eu aindapuderviver essafelicidade.Há uma pequenacaixacom

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livrosprontaparaessemomentointitulada Réealia;nelahá boascoisas, coisasqueo alegrarão.Seráquevocêpoderiaenviar-meum livro instrutivo;sepossível,de origeminglesa, mastraduzidoparao alemão e com caracteresgrandese fáceisde ler? Estouvivendo totalmente sem livros e sete-oitavos cego,mas de bom gradoaceitoessefruto proibidode suasmãos. Viva a consciência,pois agoraela teráuma históriae, graçasa ela,meuamigotornou-sehistoriador.Sortee felicidadeem seucaminho!Próximo a seucoração, Seu FriedrichNietzsche. É sempre assim que escreve ao amigo, usando contudo fórmulas diversas. “Em tudo de bom que você faz e projeta, a mesa também estará posta para mim, e meu apetite pelo Réealismo é muito grande, você sabe disso”. O Réealismo tornou-se, assim, a forma iniícial na qual Nietzsche assimilou o realismo filosófico e enterrou o velho idealismo. A pequena obra estreante de Rée, publicada anonimamente — Observações psicológicas, aforismos no estilo e no espírito de La Rochefoucauld (Berlim, Carl Duncker, 1875) — não foi apenas estimada por Nietzsche, mas superestimada por ele, conforme diz numa carta ao autor, conservada atéhoje. Agora, os autores prediletos de Rée tornam-se também os seus; os aforistas franceses, La Rochefoucauld, La Bruyêre, Vauvenargnes, Chamfort, influenciaram extraordinariamente o estilo e opensamento de Nietzsche nessa época. Entre os escritores filosóficos da França, preferia, como Rée, Pascal e Voltaire; entre os novelistas, Stendhal eMérimée. A segunda obra de Rée — À origem dos sentimentos morais (Chemnitz, Ernst Schmeitzner, 1877)º — teve, porém, importância muito maior para Nietzsche e, de certo modo, moldou sua profissão de fé para os anos seguintes. Dessa maneira foi conduzido aos positivistas ingleses, aos quais Rée havia se ligado e que também Nictzsche logo preferiu a todos os autores alemães similares. A principal atração que o positivismo exercia sobre ele residia n resposta que dava à questão tratada por Rée em seu livro, a questão sobre a formação do fenômeno moral. Para Rée, essa questão coincidia com a dos fundamentos da sanção de

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sentimentos altruísticos; suas investigações se dirigiam sobretudo contra o sistema ético da metafísica em voga. E como a ética de Wagner e de Schopenhauer se assenta no altruísmo e no respectivo valor sentimental metafísico, Nietzsche encontrou justamente no livro de Rée as armas mais apropriadas em sua luta contra a concepção de mundo que abandonara. AÀ origem dos sentimentos morais tornou-se o verdadeiro objeto de sua pesquisa, e podemos indicar sua primeira obra dessa fase como a tentativa de compreender plenamente a nulidade de seus antigos ideais, examinando a história de sua formação. Desse modo, toda a sua filosofia se transforma numa análise e numa história dos preconceitos e dos equívocos humanos; o metafísico torna-se psicólogo e historiador e assenta-se no terreno de um positivismo sóbrio e conseqiiente. Nietzsche ligou-se intimamente à escola positivista inglesa em sua conhecida redução das apreciações e dos fenômenos morais à utilidade, ao hábito e ao esquecimento das bases utilitárias de que se originaram; portanto não é preciso nenhum esclarecimento especial de suas teorias: basta indicar a corrente da qual as tirou. Comparem-se passagens como as seguintes em Humano, demasiado humano: “A história dos [...] sentimentos morais se processa nas seguintes fases principais: primeiro chamamos ações isoladas de boas ou más sem qualquer consideração de seus motivos, mas apenas devido às consegiiências úteis ou prejudiciais que tenham. Mas logo esquecemos à origem dessas designações e julgamos que a qualidade de “bom' ou de “mav' é inerente às ações em si, sem consideração por suas consegiiências” (1, 39). “Sem o esquecimento o mundo pareceria muito pouco moral. Um poeta poderia dizer que Deus colocou o esquêcimento como guardião no umbral do templo da dignidade humana” (1, 92). O modo pelo qual nasceu a assim chamada moralidade das ações pode ser indicado nestes termos: “[L...] atualmente pelo hábito, hereditariedade e educação; originalmente porque [...] é mais útil emais honroso (IL, 26). Mais adiante em O andarilho e sua sombra (40): “A significação do esquecimento no sentimento moral: as mesmas

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ações que, numa sociedade primitiva, eram inspiradas pelo propósito da utilidade, foram mais tarde praticadas por outras gerações por motivos diversos: por medo ou respeito àqueles que as exigiam ou recomendavam, ou por hábito, porque, desde a infância, as viram praticadas à sua volta, ou por benevolência, porque sua prática criava em toda parte prazer e aprovação, ou por vaidade, porque eram louvadas. Tais ações, cujo motivo básico, o da utilidade, foi esquecido, chamam-se então de morais”. “O conteúdo de nossa consciência é tudo quanto, nos anos de nossa infância, nos engzram regulannente sem razão” o modo 1nd1cad0 é transmitido a cada mdmduo como uma soma de noções de dever sancionadas pela religião e rigorosamente definidas. “Os costumes representam a experiência de homens primitivos acerca do que consideravam útil ou prejudicial, mas o sentimento dos costumes (moralidade) não se refere àquela experiência como tal, mas sim à idade, à santidade c à indiscutibilidade dos costumes” (Aurora, 19). Assim percorre toda essa obra aquilo que já o título indica de maneira significativa: o trabalho intelectual de destruição, o desnudamento cruel do “demasiado humano” daquilo que, até agora, era chamado de santo, eterno, além-de-humano. Para vermos com que brusca parcialidade e extremismo Nietzsche se voltou contra si mesmo nesse ponto, vale a pena examinarmos suas novas concepções sobre os quatro temas que, em seu perfodo filosófico precedente, tiveram interpretação oposta: o significado do “dionisíaco”, do “conceito de decadência”, do “extemporâneo” e do “culto ao gênio”. No lugar de Dioniso encontramos agora, como protetor e guardião do novo templo da Verdade, o antes tão injuriado Sócrates. “Se tudo for bem, virá o tempo em que, para nos aperfeiçoarmos moral e racionalmente, teremos nas mãos, em vez da Bíblia, as memórias de Sócrates, eMontaigne e Horácio serão usados como precursores e como guias à compreensão do mais simples e eterno sábio e mediador, Sócrates. A ele levam os caminhos dos mais diversos modos de vida filosófica, que, no fundo, são os modos de vida dos diversos temperamentos, fixados pela razão e pelo

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hábito, e todos com seus vértices dirigidos ao prazer pela vida e pelo próprio eu [...]” (O andarilho e sua sombra, 86). Essa vitória do socrático, da razão e da sábia frieza sobre o dionisíaco, sobre a exaltação das paixões e o êxtase de viver, culmina na frase: “o homem de ciência é o desenvolvimento ulterior do artista” (Humano, demasiado humano, 1, 222), e tudo quanto se refere a este repousa no êxtase e não na razão, pois “em si [...] o artista já éum ser ultrapassado” (Humano, demasiado humano, 1, 159). Por isso o aparecimento do espírito socrático significou para a Grécia um progresso enorme. “Tomar emprestado formas estrangeiras, não criar, mas transformar na mais bela aparência — isso é grego: imitar, não com fins utilitários, mas para a ilusão artística [...] ordenar, embelezar, aplainar [...] assim é desde Homero até os sofistas do terceiro e quarto séculos da Era Cristã, que são apenas exterior, palavras pomposas, gestos arrebatados e que se dirigem a almas ocas, ávidas de brilho, tons e efeitos. [...] E agora dignifiquemos a grandeza daqueles gregos excepcionais que criaram, eles sim, a ciência. Contar sua história é contar a história mais heróica do espírito humano!” (Humano, demasiado humano, II, 221; compare-se também Aurora, 544, a respeito do “júbilo que causa a nova descoberta do pensamento racional”.) A origem de todos os sentimentos nos conceitos e nas conclusões primitivas torna-se, portanto, uma teoria oposta àquela que fala em favor da vida afetiva como a mais elevada”. — Os sentimentos não são o elemento último e original; por trás dos sentimentos estão os juízos e as apreciações de valor que herdamos sob a forma de sentimentos [...]. A inspiração nascida do sentimento é neta de um juízo — e freqiientemente de um JjJuízofalso! — e, em todo caso, não de teu próprio juízo! Confiar no sentimento significa obedecer mais a seu avô e à sua avó e aos respectivos avós do que aos deuses que nos habitam: a nossa razão e a nossa experiência” (Aurora, 35). Os “nobres fanáticos”, que procuram impedir a subordinação do sentimento ao pensamento racional, levam assim à uma “depravação do intelecto” (Aurora, 35). “A esses bêbados fanáticos deve o mundo muita coisa ruim: [...] além disso, pro-

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pagam, com toda a sua força, a crença na embriaguez como a crença na vida por excelência: uma crença terrível. Assim como os selvagens são agora rapidamente corrompidos pela 'aguardente' e perecem, também a humanidade foi lenta e radicalmente corrompida pelas aguardentes espirituais de sentimentos embriagadores [...]” (Aurora, 50). “[...] não pensam que o conhecimento da realidade, mesmo o da mais feia realidade, seja belo. Já a felicidade do cognoscente aumenta a beleza do mundo [...]: dois homens tão basicamente diferentes como Platão e Aristóteles eram unânimes quanto à fonte da suprema felicidade [...]: acharam-na no conhecimento, na atividade de uma razão bem treinada em descobrir e inventar (e não, por exemplo, na “intuição' [...] ou nas visões [...] ou na criação [...]) [...]!” (Aurora, 550). Com isso, o culto ao gênio cai em declínio:? “Ah, a glória fácil do “gênio”! Com que rapidez seu trono é erigido e sua adoração se torna hábito! Ainda nos ajoelhamos diante da força — segundo o velho costume dos escravos — e, contudo, quando se quer constatar o grau de venerabilidade merecida, só o grau de razão na Jorça é decisivo” (Aurora, S48). Despontou o tempo dos espíritos simples e rigorosos; a exagerada glorificação da genialidade artística opõe-se à “progressiva virilização da humanidade” (Humano, demasiado humano, 1, 147). Aparentemente, o gênio luta “pela dignidade e importância supremas do homem”; na realidade, “não quer absolutamente que lhe tomem as interpretações brilhantes da vida, de sentido profundo, e defende-se contra métodos e resultados simples e sóbrios” em vez de recuar diante da superior “entrega científica à verdade sob qualquer forma, por mais simples que esta seja” (Humano, demasiado humano, 1, 146). Quando investigamos a assim chamada “inspiração”, vemos que não é tanto o milagre de uma imaginação produtiva que gera a obra de arte, mas sim o “juízo” que percebe, ordena e seleciona; “assim vemos hoje nas anotações de Beethoven que ele aos poucos reuniu as mais esplêndidas e, de certo modo, as escolheu dentre múltiplos rudimentos. [...] aimprovisação artística estáem um nível muito inferior em comparação com o pensamento ma ta I5 canpincsi maaa ohartístico selecionado séria

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e penosamente” (Humano, demasiado humano, 1, 155). Portanto, a genialidade é passível de ser aprendida num grau muito mais elevado do que geralmente se aceita. “Só não me falem de dons e talentos natos! Podemos nomear grandes homens de todas as espécies que foram pouco dotados. Adquiriram, porém, grandeza, tornaram-se gênios. [...] todos tiveram aquela sólida seriedade do artesão que, primeiro, aprende a construir perfeitamente as partes antes de ousar fazer um grande todo; dedicaram-se a isso porque tinham mais prazer em fazer o pequeno e o secundário do que em extrair efeitos de um todo deslumbrante” (Humano, demasiado humano, 1, 163). Quando trata do milagre de Wagner, o ímpeto de Nietzsche em explicar e reduzir o milagre da genialidade é tão forte quanto, posteriormente, o de defender o gênio — dessa vez, seu próprio gênio — e de glorificá-lo ao extremo. Aqui, porém, toda verdadeira grandeza lhe parece uma fatalidade, porque procura “reprimir muitas forças e gérmens mais fracos”, ao passo que é apenas justo e desejável que vivam não somente alguns grandes, mas que também “luz e ar sejam concedidos às naturezas mais fracas e delicadas” (Humano, demasiado humano, 1, 158). “O preconceito em favor da grandeza: Os homens visivelmente superestimam tudo quanto é grande e relevante. [...] As naturezas extremas chamam demais a atenção, mas é também necessário uma cultura inferior paraáse deixar atrair por elas” (Humano, demasiado humano, 1, 260). Nietzsche não encontra palavras bastantes para flagelar aqueles que se pensam excluídos da generalidade humana: “é uma quimera crer que nós mesmos estamos uma milha à frente e que toda a humanidade segue nosso caminho. [...] Não devemos tão facilmente defender a causa do isolamento orgulhoso” (Humano, demasiado humano, 1, 375). Pois essa quimera geralmente repousa numa fútil ilusão quanto aos motivos de nossas ações e renúncias; o verdadeiro pensador sabe que uma ênfase tão forte nas diferenças hierárquicas entre os homens é infundada e que o humano, mesmo em suas manifestações mais nobres e elevadas, permanece algo “demasiado humano”. Se tiver essacompreensão, estará em condições de

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se colocar no mesmo nível de todos os demais e, justamente por isso, de se elevar em pensamentos acima do seu próprio eu insuficiente. “Haverá talvez um futuro em que essa coragem de pensamento estará tão desenvolvida que se sentirá com orgulho acima dos homens e das coisas; em que o sábio, sendo o mais corajoso, verá a si mesmo e à existência em geral abaixo de si? (Aurora, 551). Por isso o sábio tem a tendência de examinar as ações humanas quanto à sua qualidade de “demasiado humano”: “Raramente se erra quando se reduzem as ações extremas à vaidade, as medíocres ao costume e as insignificantes ao medo” (Humano, demasiado humano, 1, 74). A importância da vaidade, como uma das principais motivações humanas, é repetidamente enfatizada — assim como no livro de Rée, em que lhe foi dedicado um capítulo especial: “Quem nega possuir vaidade geralmente a possui de forma tão brutal que instintivamente fecha os olhos sobre ela para não ter de se desprezar” (Humano, demasiado humano, II, 38). “Como seria pobre o espírito humano sem a vaidade!” (Humano, demasiado humano, 1, 79). AÀvaidade, a “coisa humana em si” (Humano, demasiado humano, II, 46). “A pior das pestes não poderia prejudicar tanto a humanidade quanto a extinção da vaidade na Terra” (O andarilho e sua sombra, 285). Pois mesmo aquilo que nos acostumamos a tomar por sentimento de força e consciência de poder do mais alto valor intrínseco é, na maioria dos casos, apenas produto da vaidade de nos destacarmos. O homem quer valer mais do que realmente pode segundo suas próprias forças. “Ele cedo percebe que não é aquilo que é mas sim aquilo que vale que o sustenta ou diminui: eis a origem da vaidade” (O andarilho e sua sombra, 181). “A vaidade como a grande utilidade”, porque, segundo Nietzsche, iguala o poderoso ao vaidoso, ao astuto, ao inteligente, que esconde o próprio temor e indefensabilidade fazendo-se respeitar. Essas declarações opõem-se drasticamente à sua posterior concepção da natureza de escravo (Sklavennatur) e a de senhor (Herrennatur), assim como à da comunidade primitiva (cf. também o aforismo “Vaidade como fruto de uma condição anti-social” em O andarilho e sua sombra, 31). AÀvaidade

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diminui à medida que o homem superior se conscientiza da igualdade, ou pelo menos da semelhança, dos motivos humanos e se reconhece no “demasiado humano” de suas tendências que o iguala a todos os outros. A única diferença que permite valorar os homens reside no modo e no grau de sua faculdade intelectual; assim, enobrecer um homem significa apenas dar-lhe compreensão. Mesmo aquilo que, do ponto de vista maral, é designado como mau, mostra-se na maioria dos casos condicionado pela atrofia e pelo embrutecimento intelectuais. “Muitas ações são chamadas de más e não passam de tolas, porque o grau de inteligência que optou por elas era muito baixo” (Humano, demasiado humano, L, 107). É a incapacidade de avaliar corretamente o dano ou a desgraça infligida ao outro que faz o assim chamado criminoso, aquele que se atrasou na evolução de seu espírito, parecer especialmente cruel e desalmado. “Se o indivíduo trava a luta pela vida de maneira que o chamem de bom ou de mau é uma questão decidida pelo nível e pela natureza de seu intelecto” (Humano, demasiado humano, 1, 104). “Os homens que são cruéis atualmente devem nos valer como degraus de civilizações anteriores. [...] São homens atrasados cujos cérebros, devido a todos os possíveis acasos no curso da hereditariedade, não foi aperfeiçoado de forma tão múltipla e delicada” (Humano, demasiado humano, 1, 43). São homens do declínio. Porém, quanto mais avançado um homem, tanto maisse refina, se abranda e tanto mais se dilui de certo modo a força instintiva das paixões primitivas das quais ainda brotam as ações daquele que ficou para trás. “Boas ações são más ações sublimadas; más ações são boas ações embrutecidas, estupidificadas. [...] Os graus do discernimento decidem em que direção alguém se deixará arrastar [...]. Sim, em certo sentido, ainda hoje todas as ações ainda são estúpidas, pois o grau mais elevado da inteligência humana [...] certamente ainda será superado; então [...] se fará a primeira tentativa para saber se a humanidade, de moral que é, pode se transformar em sábia” (Humano, demasiado humano, 1, 107). O distintivo dessa transformação será que nos homens “o instinto violento se

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debilitará”, “a equidade em todos crescerá”, cessarão “violência e escravidão” (Humano, demasiado humano, 1, 452). Invejáveis são aqueles a quem uma adaptação ao longo das gerações legou uma disposição para a brandura, acompaixão e o amor: “A linhagem de antepassados constitui agenuína nobreza de berço; uma única interrupção nessa cadeia, um único ante“passado mau, portanto, anula essa nobreza. Devemos perguntar a todo aquele que fala de sua própria nobreza: “Não tens entre teus antepassados nenhum homem violento, ávido, extravagante, mau, cruel? Se, em plena consciência, puder res“ponder a essa pergunta com um não, então pleiteemos sua amizade” (Humano, demasiado humano, 1, 456). “O melhor meio de começar bem cada dia é, ao acordar, pensar se, nesse dia, não podemos dar prazer pelo menos a uma pessoa. Se “pudesse substituir o hábito religioso, essa mudança seria proVeitosa para os homens.” Esse elogio das emoções delicadas e compassivas em detrimento não só da rudeza brutal, mas também da exaltada paixão do êxtase artístico ou religioso, .tenmna com a bela fundamentação da irreligiosidade: “Não há no mundo bastante amor e bondade para que possamos Ffazer doações a seres imaginários” (Humano, demasiado humano, L, 129).º Mais tardê veremos a força com que a última filosofia de Nietzsche se volta contra essa concepção da moral compassiva e da atenuação da vida instintiva; para ele só se chamará de homem superior àquele que abrigue em si a total plenitude dos impulsos e instintos apaixonados, portanto, um homem “mav”. Mas, por enquanto, à exceção da bondade e do altruísTmo, outro valor humano é impensável, porque apenas eles representam a superação do passado animalesco. Por.isso, só deveríamos chamar de bom o sábio, não porque seja moldado diferentemente do tolo, mas porque sua qualidade humana primitiva foi espiritualizada e, com isso, atenuou-se a“selvageria de sua inclinação” (Humano, demasiado humano, 1,56). “A plena determinação do pensamento e da investigação, Oou seja, a liberdade de espírito convertida em qualidade do Caráter, torna o agir moderado, pois enfraquece a avidez” (Hu-

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mano, demasiado humano, 1, 464). “Com isso desaparece progressivamente [...] a excessiva irritabilidade da índole. Ele (o sábio) acaba por passear entre os homens como um naturalista entre as plantas e por se perceber a si mesmo como um fenômeno que estimula intensamente apenas seu impulso ao conhecimento” (Humano, demasiado humano, 1, 254). Toda a grandeza humana repousa num refinamento do instintivo; o homem superior forma-se através do despojamento do que é animal ou, em termos puramente negativos, como um “ser não-mais-animal”; como “ser dialético e racional” é o alémde-animal" (Humano, demasiado humano, 1, 40), no qual “um novo hábito, o de compreender, de não amar, de não odiar, de avistar”, pode se implantar paulatinamente (ibidem, 107). Por outro lado, o além-do-homem como um ser de qualidades positivas, novas e superiores era, na época, para Nietzsche, uma perfeita quimera, e sua descoberta, a prova efetiva da vaidade humana. “Deveria haver criaturas com mais espírito que o homem, só para se deleitarem com o humor que reside no fato de o homem se considerar o fim de toda existência no mundo e de a humanidade só se dar por satisfeita com a perspectiva de uma missão mundial” (O andarilho e sua sombra, 14). “Outrora se buscava alcançar o sentimento de magnificência do homem apontando-se para sua origem divina; isso tornou-se hoje um caminho proibido, pois, às suas portas, se acha o macaco, junto de outros animais horríveis, que arreganha os dentes como para dizer: “Não avance nesta direção!” Agora, então, se experimenta a direção oposta: o caminho pelo qual segue a humanidade deve servir como prova de sua magnificência [...]. Ah, aqui também não dá em nada! [...] Por mais que a evolução eleve a humanidade — e talvez, no fim, ela estará mais embaixo do que no início —, não há para ela nenhuma transição para uma ordem superior, assim como a formiga e a lacrainha, ao fim de sua “carreira terrestre, sobem muito pouco para alcançar a intimidade de Deus e a eternidade. O devir arrasta atrás de si o passado; por que deveria haver uma exceção [...] para esse eterno espetáculo? Fora tais sentimentalismos!” (Aurora, 49). Se um homem pudesse conhecer

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a vida em seu todo, então deveria “desesperar do valor da vida; se conseguisse captar e sentir em si a consciência total da humanidade, desmoronaria amaldiçoando a existência, pois, no todo, a humanidade não tem alvo algum, consegiientemente o homem nela não pode [...] achar seu consolo nem seu amparo, mas seu desespero” (Humano, demasiado humano, 1, 33). Daí reza “o primeiro princípio da nova vida: deve-se organizar a vida sobre o mais seguro, o mais demonstrável, e não, como até agora, sobre o mais distante, o mais indefinido, o mais “nebuloso horizonte” (O andarilho e sua sombra, 310). Deve“mos novamente nos transformar em “bons vizinhos das coisas “próximas” (O andarilho e sua sombra, 16) e, em vez de nos Tegalar com o “extemporâneo”, com o mais distante passado ou futuro, devemos incorporar a nós as mais elevadas idéias do conhecimento de nossa época. Pois doravante devemos pôr diante da humanidade, em lugar de todos aqueles alvos fantasiosos, “o conhecimento da verdade como único e gigantesco alvo” (Aurora, 45). “Rumo à luz, teu último movimento; um clamor de conhecimento, teu último grito” (Humano, demasiado humano, 1, 292). É possível que intelectualismo tão maciço prejudique a felicidade e a vitalidade do homem; que seja, portanto, em certo sentido, um “sintoma de decadência”, mas aqui a noção de decadência coincide com a da mais nobre Bgrandeza: “Talvez mesmo a humanidade pereça nessa paixão pelo conhecimento! [...] Não são irmãos o amor e à morte? L..] Preferimos o extermínio da humanidade ao retrocesso do conhecimento!” (Aurora, 429). Esse “desfecho trágico do conhecimento” (Aurora, 45) seria justificado, pois nenhum sacrifício pelo conhecimento é grande demais: “Fiat veritas, pereat vita!l”. Essas palavras resumiram na época o ideal de conhecimento de Nietzsche; as mesmas palavras que, pouco antes, havia combatido com amargura, e que, novamente, apenas alguns anos mais tarde, deveria combater com a mesma violência, de modo que a frase invertida serve de quintessência tanto de sua doutrina inicial quanto de sua doutrina posterior. O querer-viver a qualquer preço, mesmo que ao preço do conhecimento da vida — eis a “nova doutrina” que, mais tarde,

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Nietzsche opôs àquele cansaço da vida, cujo sentido culmina na inutilidade de qualquer criação: “Na maturidade da vida e da razão sobrevém ao homem o sentimento de que seu pai não tinha razão em gerá-lo” (Humano, demasiado humano, L, 386), pois “toda crença no valor e na dignidade da vida repousa num falso raciocínio” (Humano, demasiado humano, 1, 33). Seguindo os pensamentos de Nietzsche nesse conjunto de obras, podemos sentir claramente a coerção interna que o fazia levá-las a conseqgiiências cada vez mais severas, e o grau de autodomínio que conquistava a cada vez. Mas justamente a oposição entre a orientação de seu conhecimento e suas necessidades e desejos mais íntimos fez que o conhecimento da verdade se tornasse para ele um ideal, adquirindo o significado de um poder mais elevado, diferente dele mesmo e, por assim dizer, superior a ele. Acoerção à qual se submeteu capacitou-o, frente a esse poder, auma conduta entusiástica, quase religiosa, possibilitando-lhe aquela autodivisão religiosamente motivada, pela qual o cognoscente pode baixar os olhos sobre o próprio ser e as respectivas emoções e tendências, como se fora um segundo ser. Desse modo, sacrificando-se, por assim dizer, à verdade como a um poder ideal, atingiu uma descarga afetiva de espécie religiosa que deve ter produzido nele um ardor mais intenso, que jamais teria acontecido na morna satisfação de seus desejos e inclinações interiores. Assim, surge nesse período — bastante paradoxalmente — toda a sua luta contra a embriaguez, toda a sua glorificação da frieza, apenas como uma tentativa de se embriagar com essa autoviolação. Por isso, consumou sua metamorfose com extremo radicalismo; pode-se mesmo dizer que a energia com que se ergue para exprimir um alto e incondicional “sim!” à sua nova maneira de pensar representa apenas a violência de um “não!”, com o qual se esforça por subjugar sua própria natureza e suas necessidades mais profundas. Aquela “calma e frieza sem preconceitos do cognoscente”, seu ideal nessa fase de seu espírito, em si significavam para ele uma espécie de autotortura, e a suportava apenas porque nela compreendia o sofrimento ticaco “doenças em que de sua vida psíquica como uma daquelas

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são necessárias aplicações de gelo” (Humano, demasiado humano, 1, 38), que também fazem bem, pois “o frio extremo é um meio estimulante tão eficaz quanto um elevado grau de calor”. Por isso, em nenhum ponto sua concordância com Rée se revela tão completa quanto na obra de estréia, Humano, demasiado humano, ou seja, numa época em que mais duramente sofria com à separação de Wagner e de sua metafísica. Eis por que, em seu exagerado intelectualismo, deixou-se muitas vezes conduzir pela particularidade pessoal de Rée. Baseando-se nela, formou para si um ideal bem definido, que lhe serviu de fio de prumo: a superioridade do pensador sobre o homem, a falta de respeito para com todas as avaliações que brotam da vida afetiva, a dedicação franca e incondicional à pesquisa científica, surgiram diante dele como um tipo novo e mais elevado do homem cognoscente, emprestando à sua filosofia seu cunho peculiar. Necessitando imaginar encarnados em forma humana os pensamentos puramente científicos que tomou do positivismo, Nietzsche enredou-se na imagem de uma personalidade única, bem definida, que lhe era totalmente oposta, e martirizou-se em acentuar ainda mais os traços dessa imagem. O fato de precisar repetidamente de dores voluntárias para desenvolver sua autonegação e para elevar seu espírito explica também a aparente contradição de se colocar de novo sob influência alheia e de procurar abandonar seu próprio eu, a fim de consolidar sua independência do círculo de influência de Wagner e da metafísica. Pois nem no caráter da orientação filosófica nem na relação pessoal com Rée havia razão para isso; os motivos eram e continuaram sendo de natureza puramente interna. Só eles o incitavam a uma estreita ligação com outro e seus pensamentos; impeliam-no, por assim dizer, a pensar e a criar a partir de um “espírito coletivo” (Humano, demasiado humano, 1, 180). Nesse sentido, pôde escrever ao amigo por Ocasião da remessa de seu Humano, demasiado humano: “Pertence a você; a outros é presenteado”. E logo a seguir acrescenta: “Agora fodos os meus amigos são unânimes em que

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meu livro foi escrito por você e que se originou de você: eis por que o felicito por essa nova autoria [...]. Viva o Réealismo!”, Entre os dois amigos se criou uma espécie singular de complementação, totalmente diversa da existente entre Nietzsche e Wagner. Para Wagner, gênio da arte, Nietzsche deveria ser o pensador e o cognoscente, o agente científico da nova cultura artística. Já agora o teórico era Rée, e Nietzsche o completava, extraindo as consegiiências práticas de suas teorias e buscando comprovar seu significado intrínseco para a cultura e para a vida. Nesse ponto, na questão de valor, a individualidade dos dois amigos os separava, pois um 'deles acabava onde o outro começava. Rée, pensador de brusca parcialidade, não se deixava influenciar por tais questões; não compartilhava a riqueza artística, filosófica e religiosa do espírito de Nietzsche; ao contrário, dos dois era quem tinha o raciocínio mais agudo. Via, com espanto e interesse, os fios de seus pensamentos tramados com rigor e nitidez se transformarem nas mãos mágicas de Nietzsche em gavinhas vivas e florescentes. É característico da obra de Nietzsche que até seus erros e equívocos contenham uma abundância de sugestões, que exaltam seu significado geral, mesmo onde reduzem seu valor científico. Ao contrário, os escritos de Rée caracterizam-se por possuir mais deficiências que erros, o que o autor, por certo, exprime mais claramente na frase final de seu curto prefácio em À origem dos sentimentos morais: “Neste escrito há lacunas, mas lacunas são melhores que substitutos”. Por outro lado, a genial multiformidade de Nietzsche lança olhares novos exatamente a campos onde falta a chave da lógica, onde a lógica se vê obrigada a deixar suas lacunas ao saber. Enquanto Nietzsche se caracterizava pela fusão passional entre a vida intelectual e o conteúdo total da vida interior, um traço fundamental de Rée consistia na separação brusca e extremada entre o pensamento e o sentimento. A genialidade de Nietzsche brotava do fogo vital por trás de seus pensamentos, fogo que os fazia irradiar luz tão magnífica como não teriam podido adquirir apenas pela via dacompreensão lógica; a força

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do espírito de Rée repousava na fria independência do lógico em relação ao psíquico, na agudeza e no claro rigor de seu pensamento científico. Seu perigo estava na unilateralidade e no isolamento desse pensamento, na falta daquele faro amplo esutil que exige mais intuição que razão; o perigo de Nietzsche rTesidia justamente em sua ilimitada capacidade de sentir e na dependência de sua compreensão racional em relação a todas as emoções e exaltações de sua índole. Mesmo onde seu modo de pensar parecesse momentaneamente entrar em desacordo com os desejos e impulsos de seu coração, extraía sua mais elevada força de conhecimento na luta e no conflito selvagem com tais desejos e impulsos. Ao contrário, amentalidade de Rée parecia excluir qualquer participação da vida sensível em Qquestõesdo conhecimento, mesmo quando o resultado do conhecimento correspondesse a seu sentimento pessoal. Pois o pensador que havia nele, com estranheza e superioridade, olhava do alto para o homem que havia nele, absorvendo assim uma parte da energia deste e, com a energia, o egoísmo. Em :lugar do egoísmo, havia nesse caráter uma bondade do ser, profunda, pura e ilimitada, cujas manifestações formavam um Contraste interessante ecomovente com a fria sobriedade e o Tigor de seu pensamento. Nietzsche, porém, possuía aquele amor-próprio altaneiro, que se transfere para seu ideal de conhecimento por tanto tempo até se fundir com ele e se apresentar ao mundo com o entusiasmo do apóstolo e do missionário. Assim, oculta por trás de todas as concordâncias teóricas entre os dois amigos, sob o invólucro do pensamento, havia uma profunda diferença no sentir. Aquilo que expressava totalmente a individualidade do espírito de um, negava totalmente a do outro; mas justamente por isso era para ambos o mesmo ideal. Nietzsche estimava e superestimava Rée naquilo que achava para si o mais difícil, pois, justamente para ele, o significado interno de sua metamorfose residia nessa auto-imposição. “Meu querido amigo e aperfeiçoador” — diz-lhe numa carta —, “como poderia eu suportar a vida sem ver, de tempos em tempos, minha própria natureza como que num metal purificado e numa forma mais elevada — eu próprio que não passo de um fragmento [...] e que, em raros, raros “bons mo-

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mentos', espreito uma terra melhor ondé vagueiam naturezas completas e intactas!” Porém, esse empenho de se abstrair de si mesmo é apenas o modo de lutar por um novo eu dentro de uma nova concepção de mundo; é apenas a condição sofredora em que transforma e aprimora a semente que recolheu num espírito alheio para seu próprio espírito, original e cheio de vida. São como as dores do parto que acompanham cada nova criação, garantindo-lhe que nela terá o gozo da vida e se renovará com todo o seu ser e todas as suas forças. Portanto, a história de como Nietzsche se desenvolve nessa metamorfose e de como novamente a abandona é, em essência, uma história de sua vivência interior, de suas lutas psíquicas. Nas obras pertencentes a essa fase, desde seu filho primogênito e inspirador de cuidados, Humano, demasiado humano, até o humor alegre e comovido de A gaia ciência — de certo modo já pertencente à fase seguinte de seu espírito —, essa evolução se estende à nossa frente. Em todas essas obras quis erigir, numa série de coletâneas de aforismos, “a imagem e o ideal do espírito livre”, do espírito livre em seus pensamentos sobre todos os domínios do saber e da vida e sobretudo na plenitude de suas vivências mentais. A atmosfera fundamental de onde brotou cada um desses livros já se manifesta caracteristicamente no próprio título. Nunca os títulos de Nietzsche são casualmente extraídos de matéria indiferente ou abstrata; são terminantemente imagens de processos internos, terminantemente símbolos. Reuniu, desse modo, o conteúdo de sua existência como pensador solitário em poucas palavras quando, no fim dos anos 1870, escreveu no frontispício da segunda obra dessa fase: O andarilho e sua sombra (Chemnitz, 1880, Ernst Schmeitzner). Saindo do calor das primeiras lutas apaixonadas, ingressa aqui na solidão do próprio ser; de guerreiro se faz andarilho que, em vez de desferir ataques hostis contra a pátria intelectual abandonada, doravante explora o país de seu desterro voluntário para ver se o solo pedregoso se deixa cultivar e se igualmente possui, onde quer que seja, seu torrão fértil. A ruidosa disputa com o oponente resolveu-se na calma

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de um solilóquio: o solitário escuta seus próprios pensamentos como se fosse uma conversação a várias vozes, vive em asSociação com esses pensamentos como sob suas sombras que o acompanham por toda parte. Ainda lhe parecem escuros, monótonos e espectrais, emesmo ameaçadoramente ampliados, como apenas o são as sombras ao pôr-do-sol. Mas não por muito tempo, pois, à força de freqiuentá-los, os despoja de todo o seu caráter de sombra: o que antes era pensamento e teoria sem cor ganha som e aparência, forma e vida. É assim, pois, o processo interno de sua apropriação e transformação do novo e do insólito: insuflar-lhe vida, proporcionar-lhe total plenitude de vida. Poderíamos dizer que Nietzsche escolhe as mais escuras sombras de pensamentos para nutri-las com seu próprio sangue, para vê-las transformadas, por fim, em seu próprio ser vivo, em seu duplo eu, ainda que sob ferimentos e perdas. À medida que os pensamentos de que se cerca recolhem toda a riqueza de seu ser, à medida que se saciam lentamente com toda a maravilhosa força e ardor de seu ser, a atmosfera se torna mais animada e confiante. Sentimos como Nietzsche, aqui, percorre passo a passo o caminho até si mesmo, comecando a se ambientar em sua nova “pele”, começando a viver “plenamente em sua peculiaridade; sente-se como um andarilho “que, após grande fadiga, finalmente chega a casa. Já não quer alcançar o mesmo objetivo intelectual do companheiro Rée; quer o próprio objetivo; parece-nos mesmo já perceber isso nas cartas em que ainda admira seu amigo teórico: “Cada vez mais admira-me quão bem armada está sua exposição segundo o aspecto lógico. Ora, sou incapaz de tanto; no máximo, posso “Ssuspirarou cantar um pouquinho, mas provar de tal modo que se fique bem de cabeça é capacidade sua, e isso é de muito maior importância”. Nesse “suspirar e cantar”, a própria genialidade de Nietzsche se impôs à sua consciência como talento para os mais esplêndidos lamentos e hinos de vitória que jamais acompanharam uma batalha do pensamento, como talento criativo para converter em música interior até mesmo os mais insípidos e

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os mais feios pensamentos. Portanto, omúsico dentro de Nietzsche já não vivia às próprias custas; cresceu de um som isolado até a grande e nova melodia do todo. E, de fato, isso dá às suas obras e pensamentos da época um significado ainda todo especial: a nova unidade obtida por seu ser, porquanto todas as suas tendências e talentos aos poucos se põem a serviço de um único e grande objetivo de conhecimento. O artista, o poeta e omúsico Nietzsche, a princípio violentamente reprimido e subjugado, começa :de novo a se fazer ouvir, mas submisso ao pensador e a seus objetivos; foi isso que o capacitou a “cantar e suspirar” suas novas verdades de maneira a se elevar ao nível de primeiro estilista contemporâneo.” Portanto, examinar seu estilo quanto a causas e efeitos é mais que investigar a mera forma de expressão de seus pensamentos; significà espreitá-lo em sua essência mais íntima. Pois o estilo dessas obras resultou do esbanjamento abnegado e entusiasta de grandes talentos artísticos em prol do conhecimento — do empenho em só exprimir esse conhecimento rigoroso e nada mais, não numa generalidade abstrata, mas sim na mais individualizada matização, tal como se reflete em todas as emoções de uma alma comovida. Já nas obras de seu primeiro período intelectual, Nietzsche soubera moldar de forma perfeita a mais viva interioridade e plenitude, mas só agora aprendeu a uni-las com a agudeza e a frieza de um pensamento sóbrio; como um anel de ouro, esse pensamento abarca em cada um de seus aforismos a plenitude de vida e lhes empresta, desse modo, sua magia peculiar. Assim, sob certo aspecto, Nietzsche criou um novo estilo na filosofia, que até então só ouvira o tom do cientista ou o discurso literário do entusiasta; criou o estilo do característico, que exprime o pensamento não só como tal, mas também com toda a riqueza de suas ressonâncias psíquicas, com todas as relações emocionais secretas e sutis despertadas por uma palavra, por um pensamento. Com essa particularidade, Nietzsche não só domina a língua, mas, ao mesmo tempo, a eleva acima dos limites da deficiência lingiística, fazendo ressoar através da emoção aquilo que, de outro modo, permaneceria mudo na palavra.

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Em nenhum -outro espírito, porém, pôde o simples pensamento se transformar tão completamente em algo deveras vivenciado, pois a vida de nenhum outro esteve tão envolvida, com todo o seu interior, pela transformação do homem num criador através do pensamento. Seus pensamentos não se distinguiam, como acontece habitualmente, da vida real e de seus eventos; formavam, antes, o único e real evento de vida desse solitário. Em face disso, até mesmo a mais vívida expressão para esses pensamentos lhe parecia sem cor e sem vida: “Ah, quem sois vós afinal, pensamentos meus, escritos e pintados?” — protesta ele no belo aforismo final de Para além de bem e mal (296). “Não faz muito éreis ainda tão coloridos, jovens e maliciosos, cheios de espinhos e de aromas secretos, que me fazíeis rir e espirrar e agora? [...] Que coisas, pois, escrevemos e pintamos, nós, mandarins do pincel chinês, nós, perpetuadores das coisas que se deixam escrever, que só nós podemos reproduzir? Ah, sempre e apenas aquilo que vai murchar e que começa a perder a fragrância! Ah, sempre e apenas tormentas que se afastam esgotadas e tardios sentimentos amarelos! Ah, somente pássaros que, cansados, voam e perdem o rumo e agora se deixam apanhar com a mão com nossa mão! [...] E só para vossa tarde, oh, pensamentos meus, escritos e pintados, só para ele tenho cores, talvez muitas cores, muitas ternuras coloridas e cingiienta amarelos e marrons e verdes e vermelhos — mas, com isso, ninguém desvenda como é para mim vosso aspecto em vossa manhã, vós, súbitas faíscas e prodígios de minha solidão, vós, meus velhos, amados [...] e maus pensamentos!” É inerente a isso imaginarmos Nietzsche, em suas caminhadas silenciosas e solitárias, carregando consigo aforismos como resultado de longos emudos monólogos, e não curvado sobre a escrivaninha, não com a pena na mão: “Não escrevo apenas com a mão: O pé também quer sempre participar”, canta ele em À gaia ciência (“Brincadeira, ardil e vingança”, 52). Montanha e mar o cercam na transformação de seus pensamentos, formando um pano de fundo impressionante para a

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figura desse solitário. No porto de Gênova, sonhou seus sonhos, viu um novo mundo alvorecer na aurora de um horizonte encoberto e encontrou as palavras de Zaratustra (II, 5): “L..] é belo olhar da abundância para mares distantes”. Nas montanhas do Engadina, porém, se reconheceu como num reflexo de frio e de calor, de cuja mistura haviam brotado todas as suas lutas e metamorfoses. “Em certos recantos da natureza nos redescobrimos com agradável horror; é a mais bela forma de ter um sósia” — diz em O andarilho e sua sombra (338). “L...] no caráter [...] gera! [...] desse planalto, que se assentou sem medo ao lado dos horrores das neves eternas, aqui onde Itália e Finlândia chegaram a um pacto e onde parece ser a pátria de todos os matizes prateados da natureza [...]” Sobre esse lugar, com seus “lagos pequenos e isolados”, de onde “a própria solidão parecia olhar” para ele, diz também numa carta: “Sua natureza é afim da minha; não nos admiramos mutuamente, mas estamos fielmente ligados um ao outro”. De um ponto de vista externo, a doença de sua cabeça e seus olhos o forçou por certo a trabalhar de modo puramente aforístico, mas era também cada vez mais de seu feitio deixar de ver seus pensamentos numa série contínua, que se fixa no papel ao trabalharmos sistematicamente, para ouvi-los como numa conversa a dois, num diálogo continuamente interrompido e continuamente retomado, brotando de detalhes isolados, e perceptível às suas “orelhas para o inaudito” (Assim falou Zaratustra, “O prólogo de Zaratustra”, 9, I, 25), como se fossem palavras realmente ditas. “[...] escrever não posso, embora quisesse fazê-lo de coração”, escreve num dé seus cartõespostais (novembro de 1881, da Itália). “Ah, meus olhos! Já não posso de modo algum servir-me deles; àforça, mantêm-me afastado da ciência — e o que tenho além deles? Ora, os ouvidos! poder-se-ia dizer.” Levava muito a sério esse escutar e ouvir, e não há frase em seus livros à qual não se aplique O que certa vez escreveu numa carta: “Agora estou sempre muito ocupado com coisas muito sutis da língua falada; a decisão final sobre um texto força ao mais escrupuloso “ouvir”

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de palavras e frases. Os escultores chamam esse trabalho final de ad unguem.” Quando, no ano de 1881, Nietzsche completou sua terceira obra em bases positivistas, Aurora (Chemnitz, 1881, Ernst Schmeitzner), nele já se concluíra totalmente o processo de animação e individualização das teorias recolhidas. Essa obra e, em mesmo grau, a posterior, parecem-me, portanto, as mais importantes e substanciosas de seu período intelectual intermediário. Pois nelas logrou superar de modo prático o exagerado intelectualismo a que, sob forma de automartírio voluntário, facilmente se submetera em Humano, demasiado humano; logrou completá-las interna e individualmente e aprofundá-las humanamente, sem perder a base científica sobre a qual se colocara, sem afrouxar o rigor do método cognitivo com que perseguia seus problemas. A própria natureza de Nietzsche o ajudara a refutar a parcialidade e a rigidez de sua filosofia prática e, através das lutas intelectuais dos últimos anos, a aperfeiçoar um tipo mais vivaz do cognoscente. Pois como vimos, a subordinação da vida afetiva ao pensamento se processou em Nietzsche graças a uma entrega interior tão violenta a um ideal de verdade que, exatamente por isso, a importância da vida afetiva para o pensamento deveria crescer. Com isso, imperceptivelmente, o acento principal de sua filosofia deslocou-se do processo puramente intelectual para o poder do sentimento, capaz de servir até mesmo às verdades mais insossas e repulsivas, só porque são verdades. Assim, em lugar da força da razão, a força psíquica torna a ser o que define a categoria do pensador enquanto homem. E é fácil ver que, por esse caminho, Nietzsche paulatinamente chegaria ao valor de um modo de pensar inteiramente novo, a uma filosofia em geral hostil a tudo o que seja racional. Em Aurora, como em nenhum outro de seus livros, se revelam as sutis transições e as associações de pensamento que levam de seu período intelectual positivista ao seguinte, uma filosofia mística da vontade. Como em Humano, demasiado humano, é passagem do velho para o novo que dá a esse livro seu alto valor e atração. Porém, de modo totalmente

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antagônico àquele, onde defrontávamos teoricamente o fato consumado de uma mudança doutrinária, com a qual o sentimento sofredor busca aos poucos se familiarizar. Aqui, ao contrário, toda possibilidade de mudança teórica é rejeitada com veemência como “tentações do homem de ciência”, enquanto a alma ávida estende continuamente suas antenas tateando à procura do proibido, por mais que a razão lho proíba. Assim, pressentidamente, extraímos o futuro de expressões de um leve vacilar, de erupções isoladas de uma vida psíquica profundamente exaltada, porque, nesse estado mental, elas possuem uma naturalidade e uma espontaneidade que, em outras ocasiões, faltam a Nietzsche por completo. Aqui, conferindo e criticando o ensejo de cada “tentação”, Nietzsche se revela continuamente, sem suspeitar; desnuda o secreto e o oculto de sua vida interior de modo que acreditamos ver, por trás de uma filosofia racional aparentemente intocada, seu eu passado e seu eu futuro trocando confissões de esperanças e desejos íntimos. Revoltado contra essas esperanças e desejos íntimos, clama para si mesmo no aforismo “Não fazer da paixão o argumento da verdade” (Aurora, 543): “Oh, nobres fanáticos, eu vos conheço! [...] Chegais até o ódio contra a crítica, contra a ciência, contra a razão! [...] Imagens coloridas onde seriam necessários argumentos racionais! Fervor e poder expressivo! [...] Sabeis como iluminar e escurecer, e escurecer com a luz! [...] Como ansiais por encontrar [...] homens nesse estado o da depravação do intelecto — e acender vossas chamas em seu fogo! [...]”. Só na derradeira filosofia de Nietzsche compreendemos o quanto é a si mesmo que dirige a advertência: “Nada seria mais equivocado do que esperar o que a ciência um dia estabelecerá definitivamente sobre as primeiras e últimas coisas. [...] Avontade de ter apenas certezas nesse campo é um resquício da tendência religiosa, nada melhor [...]” (O andarilho e sua sombra, 16). Porém, em meio a inúmeras revoltas dessa espécie contra si mesmo, desponta também o desgosto causado pela severa abnegação do conhecimento racional e pela “tirania do verdadeiro”: “Não sei por que seriam desejáveis a autocracia e a

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onipotência do verdadeiro; [...] devemos ser capazes, vêz por outra, de nos recuperar dela no não-verdadeiro, ou ela nos entediará” (Aurora, 507). E, nostalgicamente, conclama os artistas por ele insultados: “Oh, quisessem os poetas tornar a ser o que devem ter sido outrora: visionários que nos contam [...] Quisessem nos fazer presalguma coisa do possível virtudes! Ou das virtudes futuras das coisa sentir alguma possam estar em alguma embora que nunca existirão na Terra, parte do mundo, das constelações em brasa púrpura e de todas as vias lácteas do belo! Onde estais, astrônomos do ideal?” (Aurora, 551). Assim, vemos em Aurora não apenas como Nietzsche luta contra os desejos que nele crescem secretamente, mas também como já se vai deixando vencer por eles na busca nostálgica e fervorosa de algo novo, no pressentimento de uma meta de conhecimento que nele cresce. Ambos os movimentos estão caracteristicamente misturados na medida em que o supremo ardor da alma por um ideal de conhecimento sempre anuncia em Nietzsche o declínio já em curso desse mesmo ideal a que, no momento da mais firme convicção de sua verdade e necessidade, só se havia sujeitado com relutância. É a “órbita solar de uma idéia”, descrita com base na própria experiência: “Quando uma idéia começa a despontar no horizonte, a temperatura da alma é geralmente ainda muito baixa. Só aos poucos a idéia desenvolve seu calor, que atinge o auge quando a crença na idéia já está de novo em declínio” (O andarilho e sua sombra, 207). À si mesmo se caracteriza nesse livro (331) nos seguintes termos: “Aquelas pessoas que começam com lentidão e que têm dificuldade de se familiarizar com um assunto, por vezes têm, a seguir, a propriedade da acelaração constante, de modo que, por fim, ninguém sabe para onde a corrente as pode arrastar”, O poder de uma interioridade que se inflama lenta e penosamente e, portanto, tanto mais fatal e irresistivelmente, essa plenitude transbordante, deveria por fim afastá-lo do positivismo e conduzi-lo a novas longitudes do pensamento. Contrastando com a antes glorificada “ausência de paixão”, já vê seu

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ideal na afirmação de que o cognoscente é “o homem de um único elevado sentimento, a encarnação de um único grande estado d'alma”; para ele deve ser “o estado habitual justamente aquilo que, até agora, penetrava nossa alma ocasionalmente, na forma de uma exceção sentida com horror: um contínuo movimento de altos e baixos e a sensação dos altos e baixos, de escadas e, ao mesmo tempo, do repouso sobre nuvens” (A gaia ciência, 288). Frente a tal cognoscente, o que antes era perigo surge agora sedução: “Por uma vez deixar o chão! Planar! Errar! Ser louco!” (A gaia ciência, 46). E em Aurora (271) se lê sob o título “Disposição de festa”: “Justamente para aqueles homens que mais ardentemente ambicionam o poder é indiscritivelmente agradável sentir-se subjugado! Mergulhar súbita e profundamente num sentimento como num turbilhão! Deixar-se arrancar das mãos as rédeas e assistir aum movimento que só Deus sabe para onde!”. Nessa disposição de festa, de excesso e de abundância, lentamente extraída e acumulada a partir dos mais sóbrios conhecimentos; nessa magia do relaxamento e da recuperação após longa jornada de trabalho, Nietzsche desliza para omundo do místico. Nessa auto-superação, a própria vitória derrota o vencedor. O que busca nisso é a “felicidade da antítese”, da - antítese à frieza, à racionalidade do pensamento positivista: é o conhecimento de novo fundamentado nas mais entusiasmadas inspirações do sentimento, da vida afetiva, e feito súdito do Ímpeto criativo da vontade. Essa “aurora” já não é uma iluminação pálida e fria, voltada para o passado; atrás dela já se ergue um sol que aquece e vivifica, e, enquanto o próprio Nietzsche se encontra ainda no lusco-fusco cinzento dessa alvorada, seus olhos já estão nostalgicamente voltados para esse brilho claro e promissor no horizonte. “Há tantas auroras que ainda não luziram!”, reproduz as palavras do Rigveda como divisa no frontispício, sem se . atrever a pensar que ele mesmo seja convocado a acender essa luz no céu do conhecimento. O livro contém “pensamentos sobre os preconceitos morais”, termo acrescentado ao próprio título, e com isso parece ainda querer pertencer ao espírito

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destrutivo e negador das obras precedentes; porém, acima dessas páginas, já paira um espírito sonhador e esperançoso, que, sem dúvida, só encontra total expressão ocasionalmente, mas que medita em silêncio sobre como seria possível atingir novos Juízos de valor a partir de todos os pré-juízos; sobre como seria possível tornar-se criador de novos valores. “Quando, por fim, estiverem destruídos todos os hábitos e costumes sobre o qual se apóia o poder dos deuses, dos padres e dos salvadores; quando, portanto, estiver morta a moral no sentido antigo, então virá... sim, o que virá então?” (Aurora, 96). A queda, a demolição do velho já não é um fim; é, ao contrário, um começo e uma convocação ao melhor de todas as forças do espírito. “Virá ainda alguma coisa — o mais importante ainda virá!” — promete a aurora e torna-se mais clara e rubra. Um ano após a publicação desse livro, pela primeira vez Nietzsche torna a escrever sobre novas esperanças e futuros projetos filosóficos: Ora, caríssimaamiga,você temsempreumaboa palavraprontapara mim; dá-megrandealegriaagradá-la.A terrívelexistênciaderenúncia que devo levar, e que é tão duraquantoqualquerrestriçãoascética, temaindaalgunsmeiosdeconsoloquemefazemavidamaisestimável queo não-ser.Minhasmaispossantes fontesdevida sãoalgumasgrandesperspectivas dohorizonteintelectual e moral.Estoumuitocontente de que justamentenessesolo cresçamas raízes e as esperanças de nossaamizade.Ninguémpodeter o coraçãomais alegrepor tudoo quevocê faz e planeja! Seu amigosincero F. N. E pouco depois exclama ao final de outra carta: “Agora também tenho auroras em torno de mim e não são impressas! Aquilo em que já não acreditava [...] surge-me agora como possível, como a dourada possibilidade no horizonte de toda a minha vida futura”. Esse estado de espírito que, de um longínquo horizonte, conjurou um novo mundo com a força de uma saudade, oferecendo um substitutivo a tudo quanto a dúvida e a crítica destruíram, revela-se mais nitidamente nas palavras finais de

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Aurora, quando Nietzsche procura compreender sua própria mentalidade crítica enegadora como um guia para novos ideais: “Mas por que justamente nessa direção para a qual, até hoje, todos os sóis da humanidade seguiram para o declínio? Dirão talvez, um dia, que também nós, rumando para o Ocidente, esperávamos alcançar uma Índia [...] mas que nosso destino era naufragar no infinito? Ou então, meus irmãos? Ou então...?” (Aurora, conclusão). Quando, no ano de 1882, Nietzsche concluiu AÀgaia ciência, sua Índia já se tornara para ele uma certeza; acreditava ter aportado no litoral de um mundo estranho, ainda anônimo e monstruoso, do qual nada é conhecido exceto que deve estar situado além de tudo quanto pode ser atacado e destruído pelos pensamentos. Um vasto mar, aparentemente ilimitado, entre ele e qualquer possibilidade de renovada crítica conceitual pensava ele ter alcançado terra firme para além de toda crítica. O júbilo arrogante dessa certeza ressoa nos versos que, em princípio de novembro de 1882, escreveu como dedicatória em meu exemplar de AÀgaia ciência: Amiga— disseColomboNão confiemaisem genovêsalgum! Tem sempreo olharfixo no azul, O maisdistanteo atraiem demasia, A quemama,gostade atrair Paralongeno tempoe no espaço. Sobrenós brilhamestrelasao ladode estrelas, Em tornode nós bramea etemidade.

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Mas enganou-se quanto a essa terra: nem era nova nem se situava no além. Foi o erro inverso ao de Colombo que, procurando o velho, encontrou o novo. Pois, de fato, sem perceber, Nietzsche, depois de velejar ao redor do mundo, retornara pelo lado oposto às costas daquela mesma terra de onde , partira originalmente e que pensava ter deixado para trás em definitivo quando se desviara da metafísica. Em todas as suas obras da fase final reconhecemos o quanto elas tornaram a brotar daquele solo antigo, embora influenciadas pelo próprio

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crescimento e pela peculiaridade das experiências de Nietzsche dos últimos anos. Para ele, o valor principal do modo de pensar positivista residia indiscutivelmente na liberdade de movimentos que pudera lhe oferecer, ao menos dentro de limites precisos, retendo-o, com isso, durante certo tempo. O positivismo não o acorrentou como necessariamente o fizera a metafísica, mas apenas lhe mostrou um trajeto; não lhe impôs um sistema de conhecimento, mas, em essência, lhe colocou nas mãos apenas um novo método de conhecimento. Por isso, não se emancipou dele tão violenta e repentinamente como de Wagner; em vez de um romper de correntes, sua emancipação foi um paulatino evaporar-se, um paulatino dispersar-se “todo o meu vagar e escalar de montanhas foi tão-somente a necessidade e o expediente de um desajeitado: tudo quanto minha vontade quer é voar!” (Assim Falou Zaratustra, “Antes que o sol desponte”, IM, 19). “Aprendi a andar; desde então me ponho a correr!” (“Do ler e escrever”, 54) Mas essa emancipação por certo não se processou de modo tão irresístivel e irrevogável como à metamorfose anterior. Pois, uma vez mais e a qualquer momento, Nietzsche teria de superar o modo puramente empírico de ver seus problemas, a limitação de princípios no campo da experiência. A envergadura de seu espírito não poderia recusar permanentemente uma filosofia das “coisas últimas e supremas”, em qualquer forma que fosse. No fundo, a questão era apenas saber por que atalho silencioso rastejaria de volta para lá onde habitam os deuses e os além-dos-homens. Certa vez Nietzsche escreveu a Rée: Abh,caríssimoe bomamigo,é como maisdolorosopesarqueleio [...) a notíciade seu adoecimento.O que seráde nós se definhamostão em nossos“melhoresanos*?[...] Será que o destino miseravelmente nos reservauma bela velhice,já que [...] nossomodode pensarse ajustaa ela comoumapele sã, do modomaisnaturalpossível?Mas nãoteremosdeesperardemais?O perigoseriaperdermosa paciência. Perdeu-a completamente. “Já se enruga e se solta minha pele!l” — canta logo depois num versinho ruim de AÀgaia ciência e sob a “pele senil”” do “cognoscente sem paixões” Imovia-se o forte Ímpeto ao rejuvenescimento, a partir do qual,

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mesmo em seu declínio, Nietzsche escreveu uma apoteose da vida, da vida eterna. O destino não precisou lhe reservar nenhuma velhice. Mas então, como base da nova doutrina que desejava anunciar, como o único fundamento confiável sobre o qual pudesse erguê-la, Nietzsche imaginou ainda uma motivação científica. Justamente nessa época de transição, o vemos, portanto, tomado pelo mais vivo desejo de poder se dedicar a grandes pesquisas às quais precisara renunciar vários anos atrás. Com incansável interesse acompanhou os estudos que Rée empreendera desde 1878 a fim de com eles ampliar e corroborar os pensamentos básicos de seu primeiro livro de filosofia moral. Quando, em 1881, comunicou a Nietzsche que esperava completar sua nova obra ainda antes do término do ano, Rée recebeu uma resposta feliz: “E esse mesmo ano [...] deverá também trazer à luz uma obra em cuja imagem de conjunto e de áureo encadeamento poderei esquecer minha pobre filosofia fragmentária! Magnífico esse ano de 1881!”, O escrito de Rée em questão, O nascimento da consciência (Berlim, 1885), porém, só ficou pronto quatro anos mais tarde, muito depois de Nietzsche ter removido de si os últimos resquícios de seu “espírito livre” e de ter queimado, com a costumeira energia, a pele removida. Mas, devido à participação ativa que, por tanto tempo, tomara nos estudos preliminares de Rée, esse livro exerceu importante influência em sua vida intelectual. Todavia, Nietzsche não se apóia em O nascimento da consciência no mesmo sentido como outrora se apoiara em A origem dos sentimentos morais ao escrever Humano,demasiado humano. Nisso, aliás, repousa a diferença entre a última fase de Nietzsche e a fase positivista precedente, ou seja, já não se limita a exprimir algumas teorias isoladas intrinsecamente importantes, mas entrega-se ao mais ousado desenvolvimento de um sistema próprio; esforça-se por escapar ao aforístico e ao desmembrado. Se a inclinação do espírito livre o levara a interiorizar seus conhecimentos nas mais profundas vivências e sensações, agora, por seu turno, a violência pas-

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sional dessa vivência interior impeliu-o a buscar alívio em pensamentos e teorias determinadas, que aspiravam a se transformar em novas concepções fechadas de mundo. No verão de 1882, Nietzsche tomou, portanto, a decisão de se dedicar durante alguns anos ao estudo que lhe parecia indispensável à construção sistemática de sua “filosofia do futuro”, ou seja, ao estudo das ciências naturais. Desejava então renunciar à sua vida no Sul da Europa a fim de assistir a preleções em Paris, Viena e Munique. Durante dez anos toda a atividade literária deveria ser suspensa até que seus novos conceitos estivessem não só totalmente amadurecidos, mas também comprovados pela via científica. Um pouco mais tarde que Nietzsche, Rée sentiu também a necessidade de se inteirar das ciências naturais, que, até então, permaneciam estranhas a ambos. Contudo, não as desejava como matéria para a construção de hipóteses filosóficas próprias, mas, concluído seu livro, visava apenas a deixar novas idéias agirem livremente sobre sua mente, abandonando de todo seu estreito campo de especialista. Voltou-se, pois, para a medicina, refez seus estudos e prestou seu exame oficial de médico praticante com o intuito de se dedicar por algum tempo à psiquiatria e, indiretamente, retornar às humanidades. Nunca os dois amigos ficaram tão distantes como naquela época em que, aparentemente, pareciam aspirar mais uma vez à mesma coisa: tinham alcançado pólos opostos de suas respectivas naturezas.? Isso se expressa de modo significativo no fato de que os dez anos de silêncio que Nietzsche planejara tornaram-se justamente os de sua maior produtividade, enquanto Rée ainda não alcançara o ponto em que sua obra anterior e seus novos conhecimentos se fundissem e o animassem a uma nova e mais elevada atividade. | Devido à sua cefaléia, Nietzsche foi impedido de executar seu projeto; já no começo do inverno de 1882, achava-se novamente em sua ermida em Gênova. Porém, mesmo com uma suúde melhor, seu intento não se teria concretizado. Pois Nietzsehe já não se achava naquele estado expectante, no qual o espírito pode recolher o estranho e submeter-se voluntaria-

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mente a noções perturbadoras. Já estava demasiadamente excitado a produzir para ainda ser tocado por qualquer coisa que pudesse detê-lo em seu ímpeto criativo. Enquanto, para liberação de sua força criativa, necessitava de uma fecundação inicial do exterior, mesmo que realizada com dores e sacrifícios; enquanto se comportava com abnegação diante desse conhecimento estranho e abandonava seu eu no fervor de sua união com ele, uma vez fecundado, Nietzsche parece tanto mais inacessível e ininfluenciável. Está totalmente tomado por sua situação particular e por aquilo que a vida quer alcançar nele. Porém, se sua atenção se volta para o exterior, isso só ocorre para criar, a qualquer preço, espaço para a vida que deve nascer dele, mas de forma alguma para provar e questionar mais uma vez as condições de sua própria existência. A renúncia a esses estudos científicos abrangentes pela segunda vez, devido à sua condição física, produziu resultado oposto ao da época de seu rompimento com Wagner e de sua fase positivista. No passado, essa renúncia fora motivo para que Nietzsche, em vez de fundar novas teorias, procurasse esgotar interiormente as recolhidas de outros e estabelecer seus efeitos psíquicos. Agora, ao contrário, é de certo modo induzido a suprir as bases teóricas que lhe faltam com a invenção literária. Nisto exatamente repousa um traço básico da derradeira filosofia de Nietzsche: a necessidade de se expandir sistematicamente como se a questão fosse retirar dos mais diversos?. campos do saber a prova da exatidão de seu pensamento criativo; na verdade, porém, tratava-se apenas de lutar por espaços para seu pensamento; um desfrutar tão soberano de sua interioridade, que pensa que toda a concepção de mundo se transforma involuntariamente em berço de sua criação. Por isso, doravante, todas as suas doutrinas ganham por mais paradoxal que possa soar — um caráter tanto mais pessoal quanto mais abrangentes e gerais parecem, quanto mais reivindicam um sentido universal. Seu verdadeiro núcleo acaba por se ocultar sob tantos invólucros, seu mistério mais íntimo sob tantas máscaras, que as teorias em que se expressa são quase unicamente imagens e símbolos da vivência interior.

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Por fim, falta-lhe qualquer desejo de concordância e entendimento com os outros: “Meu julgamento é meu julgamento; dificilmente, outros teriam direito a sê-lo” (Para além de bem e mal, 43), e, contudo, esse julgamento é, ao mesmo tempo, decretado lei universal, uma ordem para toda a humanidade. Pois, ao final, se fundem tão completamente em Nietzsche inspiração interior e revelação exterior que imagina abarcar o mundo todo em sua vida interna e seu espírito crê conter e engendrar misticamente a quintessência do ser: “Para mim, como existiria um fora-de-mim? Não existe nenhum exterior!” (Assim falou Zaratustra, “O convalescente”, 2, III, 95). Confirmando a circunstância de que seu último período Ccriativo consiste totalmente na interpretação filosófica de sua própria vida psíquica, em uma de suas cartas chama AÀgaia ciência, obra introdutora desse período, de “o mais pessoal de todos os meus livros”, e em outra, pouco antes da impressão do livro, se queixa: “O manuscrito revela-se estranhamente “impublicável'. Isso se deve ao princípio do mihi ipsi scribo!”. De fato, jamais escreveu para si próprio tão completamente quanto naquela época em que estava a ponto de construir toda a concepção de mundo sobre o próprio eu, de esclarecer tudo apartir de seu próprio eu. Assim, por certo, aqui já estápresente amística de suas novas doutrinas básicas, embora ainda oculta no elemento puramente pessoal de onde surgiu. Por isso, os aforismos desse livro formam monólogos mais intencionais “que qualquer outra coisa em sua obra, como se fossem digressÕes a meia voz, ou mesmo como se tivessem sido pensados como mímica silenciosa do espírito que deve esconder mais “que revelar. As idéias da “filosofia do futuro” já despontam, mas ainda nos envolvem como vultos velados, cujo olhar cai sobre nós de modo obscuro e enigmático, não porque, como em Aurora, só exprimam pressentimentos e careçam de traços firmes e contornos seguros, mas sim porque intencionalmente lançou-se sobre eles um véu e se lhes ordenou silêncio. Aqui Nietzsche parece estar diante de nós com o dedo nos lábios, é daf concluímos que deseja nos confessar muita coisa, todas dAh COISAS,

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Mas torna-se-lhe difícil falar sem reservas, pois também nesse caso sua confissão é ao mesmo tempo outra confissão de dor. Num sentido muito mais profundo e muito mais doloroso, a filosofia de Nietzsche nos leva agora ao sofrimento e ao tormento mais íntimos de sua vivência, de sorte que, em comparação, mesmo as duras lutas e renúncias de sua fase positivista se nos afiguram inofensivas e sem perigo. À primeira vista isso parece contraditório, pois a derradeira filosofia de Nietzsche emergiu justamente do ímpeto de substituir as teorias positivistas que recusava por uma visão de mundo que correspondesse inteiramente a seu mais íntimo anseio. Até esse ponto inicia de fato sua derradeira metamorfose com júbilo e alegria. Mas não se pode esquecer que esse drástico retorno a si mesmo, essa tentativa de construir uma visão de mundo a partir de sua própria imagem, revela o sofrimento de Nietzsche consigo mesmo, sofrimento que compõe a base mais profunda de sua essência. Em suas metamorfoses anteriores, procurava escapar a esse sofrimento, atormentando e tiranizando uma parte de seu eu com a outra, mas, em todas as metamorfoses do homem teórico, o homem prático permaneceu fixo e eternamente igual a si mesmo, com suas necessidades internas. Só agora quando Nietzsche não mais se força e não mais se mortifica, só agora quando dá livre curso à sua ânsia, entendemos o tormento em que vivia, ouvimos por fim o clamor uma liberação de si mesmo, por uma essência oposta à sua, por uma mudança permanente e definitiva, não só de conceitos isolados, mas de todo o homem, de todo o seu âmago. Vemos aqui formalmente como, desesperado, sai de si e agarra o exterior, em busca de um ideal libertador que procura formar a partir de tudo quanto se opõe à sua essência. Por isso podemos prever que, tão logo Nietzsche tenha recriado livremente seu próprio conteúdo psíquico como se fora o universal, tão logo tenha retirado de sua vivência mais íntima as leis universais, sua filosofia se viu forçada a traçar uma concepção trágica do mundo. Segundo Nietzsche, ahumanidade deve ser concebida como um gênero híbrido que sofre consigo mesmo, que adoece

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“desesperadamente com a própria evolução, e cuja justificativa existencial não está absolutamente nela, mas simplesmente em outro gênero mais elevado, o dos além-dos-homens, para os quais deve servir de ponte. O alvo final da humanidade deve Ssero extermínio e o auto-sacrifício em favor desse ideal que he é oposto. Só nos preâmbulos da derradeira filosofia de Nietzsche se torna, pois, totalmente claro até que ponto foi o instinto relifgioso que sempre governou sua essência e seu pensamento. “Suas diversas filosofias não são mais do que substitutivos de “Deus, que devem ajudá-lo a passar sem um ideal divino além de si mesmo. Suas últimas doutrinas contêm a confissão de que não foi capaz disso. Justamente por isso, em suas últimas obras, nos deparamos de novo com um combate passional contra a religião, contra a crença em Deus, contra a necessidade de redenção, porque delas se aproximava perigosamente. Aqui exprime um ódio ao medo e ao amor, querendo com isso se Cconvencer de sua própria força divina e se dissuadir de seu desamparo humano. Pois veremos por força de que auto-ilusão e secreta astúcia Nietzsche resolve por fim o trágico conflito de sua vida, o conflito de precisar de Deus e, no entanto, ter de negá-lo. Primeiro forma, com uma imaginação ébria de nostalgia, em sonhos e arroubos, como um visionário, o ideal místico do além-do-homem, e depois, para escapar de si mesmo, procura com um salto monstruoso identificar-se com esse ideal. Por fim, torna-se uma forma ambígua: de um lado um homem doente e sofredor, de outro um além-do-homem liberto e sorridente. Em um é criatura, em outro é criador; em um é realidade, em outro é hiper-realidade misticamente pensada. “Muitas vezes, porém, quando ouvimos seus discursos, sentimos com terror que Nietzsche adora aquilo que, na verdade, nem para ele existe, enos lembramos de suas palavras: “[...] quem sube se até agora, em todos os grandes casos, não se deu vxatamente o mesmo: a multidão adorava um Deus e o “Deus' vm apenas uma pobre vítima para o sacrifício!” (Para além ade bem e mal, 269).

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“A vítima como se fora Deus” é, na verdade, o título que poderia pairar acima da derradeira filosofia de Nietzsche, revelando mais nitidamente a contradição nela existente: aquela exaltação de sofrimento e glória na qual ambos se misturam indistintamente. Anteriormente vimos como existiu uma disposição de festa, para a qual Nietzsche deslizou na metamorfose anterior de seu espírito — uma disposição festiva de embriaguez e fartura sonhadoras; vemos agora o ponto onde a violência da excitação interior desmorona no sofrimento. Durante todo esse tempo, mesmo na vida de todos os dias, preencheu-o uma sensação da mais extrema opressão psíquica, na qual se é capaz até de exuberâncias, mas só porque todos Os nervos tremem; na qual facilmente se chega ao gracejo e ao riso, mas só com lábios trêmulos. Nietzsche sempre precisou desse entrelaçamento de dor e prazer, de entusiasmo e sofrimento, a fim de renascer intelectualmente. Sua felicidade, primeiro, tinha de se converter em “superfelicidade” para, nesse excesso, tornar-se sua oponente e inimiga; sentimentos de paz e tranqiilidade, pelos quais lutava dentro de um campo de conhecimento conquistado, deviam primeiro estimulá-lo ao autoferimento e à auto-repulsa, de modo que seu espírito pudesse regalar-se em si mesmo e se aliviar em novas criações. Isso explica que, no júbilo de seu coração, tenha chamado sua obra, A gaia ciência, a boa nova, colocando, porém, acima do último aforismo as sombrias e enigmáticas palavras: “Incipit tragoedia!”, Essa fusão de profundo desalento e lúdica petulância, de tragédia e alegria, característica de todo o conjunto de suas últimas obras, explica também o fato de A gaia ciência possuir, no mais agudo constraste ao obscuro mistério das palavras finais, um prólogo em versos, “Brincadeira, ardil e vingança”. Aqui, pela primeira vez, encontramos versos nos escritos de Nietzsche, que se multiplicam à medida que acredita se aproximar de seu declínio pessoal. Seu espírito se extingue em cantos. Os versos são surpreendentemente variados quanto ao valor; em parte, perfeitos — pensamentos que, em sua beleza e plenitude, se transformam em poemas —; em parte, de uma

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imperfeição singular, como só uma caprichosa malícia provocaria. Mas, acima de todos eles, repousa algo estranhamente comovente: são flores que o solitário espalha pela via-crúcis que o aguarda, para dar a ilusão de que é o caminho da felicidade. Parecem rosas recém-colhidas, sobre as quais seus pés vão pisar, enquanto trança, com seus mais dolorosos conhecimentos, uma coroa de espinhos para sua fronte. Soam como um prelúdio para o mais consternador espetáculo de sua mais alta ascensão e de seu naufrágio. Tampouco a filosofia de Nietzsche ergue por completo a cortina desse espetáculo. O que nos mostra é apenas, como se fosse uma imagem sobre essa cortina, um ramalhete colorido de cujo centro brilham meio ocultas as grandes e tristes palavras: “Incipit tragoedia!”

NOTAS 1. Os trabalhosfilológicosde Nietzschesão: Históriada coleçãode provérbiosde Teógnis(Das RheinischeMuseum,vol. 22); Contribuiçõesà críticadoslíricosgregos,L. AqueixadeDânaedeSimônides(DasRheinische Museum,vol. 23); De LaertiiDiogenisFontibus(Das RheinischeMuseum, dasfontese à crítica de vols. 23 e 24); Contribuiçãoao conhecimento do Paedagogiumde Basiléia DiógenesLaércio— Escritocongratulatório (Basiléia,1870); CertamenquoddiciturHomeriet Hesiodie codiceFlodenuoedF. N. (ActasocietatisphilologaeLiprentinopostH. Stephanum siensis,ed.Fr. Ritschl,vol. 1); alémdisso,o tratadoflorentinosobreHomero seugêneroe suacompetição(Das RheinischeMuseum,vols. 25 e Hestfodo, e28).Tambémé deleo “Índice”dosprimeiros24volumesdeDasRheinische Museum(1842-1869),que compôssegundoas disposiçõesde Ritschl. 2. Fez essaseleçãoconformeele mesmodefine“ler bem: [...] isso intenções,com comsegundas significalerlenta,profundae cautelosamente, as portasabertase com dedose olhos delicados[...]” (Prefácioà nova ediçãode Aurora II). 3. Com suapublicação,esselivro suscitoua mais viva hostilidadedo suaexposiçãonão só na meiofilológico;tinhao autorousadofundamentar arcomotambémnasconcepções doutrinado ridicularizadoSchopenhauer tísticasdo entãoigualmenteinsultado“músicodo futuro”RichardWagner. atualmenUmjovemfilólogoexaltado,Ulrichvon Wilamoxitz-Môóllendorff, dafilologiaclássicanaAlemanha, representantes teumdosmaisdestacados de maneiranão muito feliz e elegante,se fez porta-vozda parcialidade

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fazerjustiçaà originalidadedo livro de corporativa.Sem absolutamente e com um pontode vistafilologicamente Nietzsche,ataca-oviolentamente limitado,na brochuraFilologia dofuturo! — umaréplicaao “Nascimento da tragédia'deF. N. (Berlim, 1872).Em defesado atacadosemanifestaram dirigido,RichardWagner,o aquelesa quemo livro foraprimordialmente artista,numacartaabertaa Nietzsche,publicadaem 23 dejunho de 1872 no Norddeutsche AllgemeineZeitung, eErwin Rohde, que já entãodera provasválidasde seu profundoconhecimentoda Antigúidadegrega.No — Circular de umfilóescrito,Pseudofilologia panfletoexcepcionalmente logoa RichardWagner(Leipzig, 1872),colocou-seno mesmocampoesco-. feitaspor e as acusações lhido pelo adversárioe repudiouos argumentos este,ao que Wilamowitzaindarespondeucom uma tréplica,Filologia do futuro! — Segundaparte, uma réplicaàs tentativasde salvaçãode “O Nascimentoda tragédia'de F. N. (Berlim, 1873). 4, Compare-se o prefácioànovaediçãodosegundovolumedeHumano, demasiadohumano,ondese 1ê: “[...] oque eu dissecontraa “doençada história',disse-ocomoalguémque aprendeua se curardelalentae penosamente[...]”. 5. PrefácioV: “Também[...] não se deve omitir [...] que, na medida em que sou discípulodos temposantigos,sobretudodos gregos,chego, comofilho dostemposatuais,a experiências tãoextemporâneas”. 6. Cf. “Schopanhauer comoeducador”(19): “[...] pressentia terencon-. tradoneleaqueleeducadore filósofoqueprocureipor tantotempo.Entre-! tanto,só em seuslivros,e issoeramuitopouco.Por issome esforçavapor ver atravésdos livros e imaginarvivo o homem,cujo grandetestamento . eu tinhade ler e que prometiafazerseusherdeirossó aosque quisessem e pudessem sermaisdoquemerosleitores,ou seja,seusfilhose discípulos”. 7. Na épocaNietzschetinhaviva admiraçãopeloseruditose filósofos ingleses,admiração quemaistardesetornarepulsa.Em Humano,demasiado humano,aindaoschamade“naturezas íntegras e plenasquenospreenchem”, e, em cartaa Rée,chamaos filósofosinglesesda atualidadede “as únicas | boascompanhiasfilosóficasque existemagora”.Concordante com isso, a | únicacoisaque, nesseperíodo,aindaestimaem seu antigomestreSchopenhaueré “seurigorososensodos fatos,sua disposiçãoparaa clarezae para a razãoque muitasvezeso fazemparecer[...] tãoinglés”(A gaia ciência,99). 8. Mencionadapor Nietzscheem Humano,demasiadohumano,1, 37.. 9. Compareem Humano,demasiadohumano: os aforismossobreo “culto ao gêniopor vaidade”(162) e “os perigose as vantagensdo culto ao gênio”(164). 10. Essapossede “amore bondade”comoaservasmedicinaise forçasmais curativasno tratocom os homens(Humano,demasiadohumano,L, 48)é maisvaliosaaindaquea louvadagrandezado sacrifíciopessoal;contribuindo“maispoderosamente paraa civilização”,temaquelabenevolência afávele duradouraque cria o “bem-estar”do viver (Humano,demasiado " humano,1, 49).

'SUASMETAMORFOSES

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|1. Comparem-seos seguintesaforismosque Nietzscheme escreveu um dia: Para a Teoria do Estilo 1. Àprimeira coisanecessáriaé vida: o estilodeveestarvivo. 2. O estilodeve ser apropriadoa ti em vista de outra pessoabem definida com a qual quereste comunicar(lei da duplarelação). 3. Antesde escrever,deveríamossaberexatamente comodiríamose exporíamoso assunto.Escreverdeveser imitação. | 4.Por faltaramao escritormuitosdosrecursosdo expositor,deveem geral ter como modeloum modo de exposiçãomuitomais expressivo:a cópia, o escrito,necessariamente resultarámuitomaispálido. 5. Àriquezade vidarevela-sena riquezadegestos.Devemosaprender a sentirtudo— comprimentoe concisãodasfrases,pontuação,escolha das palavras,pausas,seqiiênciados argumentos — comogestos. 6. Cuidadocomo período!Sódevemusá-loaquelesque,aofalar, têm uma longarespiração.Com os demais,o período é afetação. 7. O estilodeveprovar que acreditamosem nossosPpensamentos, que não só os pensamos,mastambémos sentimos. 8. Quantomaisabstrataa verdadequequeremosensinar,tantomais devemosatrair para ela os sentidos. 9.O tatodo bomprosadorna escolhadeseusmeiosconsisteemchegar bem pertoda poesia,masnuncatransferir-se para ela. , 10.Não é polido nemprudenteanteciparao leitor as objeçõesmais leves.É muitopolidoe muitoprudentedeixarao critériodo leitorexpressar ele mesmoa últimaquintessência de nossaverdade. 12. Ver em À gaia ciência(279) sob o título “Amizadeestelar”as ªbelaspalavras com que Nietzscheentãose despediudessaassociaçãode «espírztos

O

“Sistema

Nietzsche”

“Quereisaindacriar omundodiantedo qualpossaisajoelhar-vos”(Assimfalou Zaratustra,“De superara si mesmo”,II, 47).

Espírito?Quemeimportao espírito?Quemeimportao conhecimento? À nadadouvalora nãoseràspulsões,e poderiajurarquenissotemos algoemcomum.Examineestafaseemquetenhovivido há anos.Olhe paratrás!Não sedeixeiludir comigo.Não creiaque o “livreespírito” sejameuideal! Eu sou... Perdão,queridíssimaLou [...] F. N. É dessa forma misteriosa que Nietzsche interrompe a carta precedente, que me escreveu entre a publicação de À gaia ciência e a de seu poema místico Assim falou Zaratustra. Nessas poucas linhas já estão indicados os traços essenciais da derradeira filosofia de Nietzsche: no campo da lógica, o abandono categórico de seu ideal cognitivo, até então puramente lógico, do rigor teórico de sua doutrina racional do “livre espírito”; no campo da ética, em lugar da crítica negadora das obras anteriores, a transferência dos fundamentos da verdade para o mundo das pulsões psíquicas, tomadas como fonte de uma nova apreciação e avaliação de todas as coisas; mais adiante, uma espécie de retorno à sua primeira fase filosófica, anterior à sua doutrina do livre espírito, ou seja, àmetafísica da estética wagner-schopenhaueriana e à respectiva teoria do gênio aléêm-de-humano. É aqui onde, por fim, se assenta, como o cerne da filosofia do futuro, o mistério de uma monstruosa apoteose do próprio eu, que ainda teme se exprimir nas hesitantes palavras “Eu sou”.

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O último período intelectual de Nietzsche compreende cinco obras: opoema em quatro volumes, Assim falou Zaratustra 1884, Chemnitz, Ernst Schmeitzner; IV, 1891, (LeI, 1883; , além de bem e mal —Prelúdio Naumann);Para G. C. Leipzig, de uma filosofia do futuro (1886, Leipzig, C. G. Naumann, 2º edição, 1891); Genealogia da moral — um escrito polêmico (1887, Leipzig, C. G. Naumann); O caso Wagner — um problema de músicos (1888, Leipzig, C. G. Naumann); e, finalmente, a pequena coletânea de aforismos, Crepúsculo dos ídolos ou Como se filosofa com o martelo (1889, Leipzig, C. G. Naumann). Contudo, aqui não podemos seguir passo a passo o curso de seu pensamento filosófico, baseando-nos nessas obras, pois, ao contrário das obras do período anterior, elas não apresentam tantas etapas do desenvolvimento de seu espírito; mas, pela primeira vez, estão destinadas à exposição de um sistema, mesmo que este repouse mais em seu estado de espírito global do que na clara unidade de deduções mentais. O caráter aforístico, também conservado pelos livros dessa fase, surge, portanto, no caso, como inegável deficiência na forma de sua exposição e não é, como antes, uma qualidade peculiar. Aquilo que Nietzsche alcançou no estilo aforístico graças à sua perfeita mestria, ou seja, esgotar completamente o sentido psíquico de cada um de seus pensamentos e reproduzir todas as suas sutis relações internas, não basta para a fundamentação sistemática de suas próprias teorias, mas as dissolve aqui e ali num jogo espirituoso de hipóteses deslumbrantes. Sua doença ocular bem como seu hábito ao pensamento descontínuo forçaram-no, de modo geral, amanter sua velha maneira de escrever; mas ele tenta repetidamente tanto em Para além de bem e mal como em Genealogia da moral — superar o estilo puramente aforístico, ordenar e apresentar seus pensamentos sistematicamente, pois o que tem em sua mente se converteu num todo uniforme. Por isso, encontramos, pela primeira vez, nessa fase de Nietzsche, uma espécie de teoria do conhecimento, uma disposição para se inteirar dos problemas correlatos a essa teoria, após ter até então se desviado deles, em geral preferindo evitar

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todo problema que só pudesse ser abordado pelo método abstrato. Só que agora já não fica, sem mais nem menos, detido pela filosofia prática, mas considera necessário indicar os meios com que rompeu as portas da teoria do conhecimento, que o fizeram chegar às suas hipóteses. Sobre isso se encontram dispersas, em vários pontos de sua obra, observações minuciosas. Mas parece bastante característico que elas apareçam só agora, quando ele se declara hostil ao mundo da lógica abstrata e se decide a cortar, com um golpe de espada, todos os nós conceituais com que possa deparar; ocupa-se com a teoria do conhecimento só para destruí-la. No tempo de seu wagnerismo, Nietzsche, como discípulo de Schopenhauer, seguira esse seu mestre na conhecida interpretação e modificação de Kant, segundo as quais as questões sobre as coisas últimas e supremas encontram resposta, não, por certo, através da razão, mas sim através da suprema inspiração e revelação da vida volitiva. Mais tarde, em violento protesto contra essa hipótese da metafísica schopenhaueriana, Nietzsche aderiu à rigorosa abnegação das ciências empíricas, que se contentam com o conhecimento racional que lhes é acessível. Mas só conservou sua adesão enquanto, com o auxílio de um intelectualismo fanático, pôde transformar o modesto saber racional num ideal de verdade que o entusiasmou e ao qual se entregou cegamente, de corpo e alma. Tão logo se esgota seu fanatismo, tão logo seu entusiasmo deixa de ver os valores e os fins intelectuais nessa iluminação tão exaltada, se enfastia e anseia por novos ideais. Nesse anseio surgiu-lhe do positivismo um conceito que até então não considerara, ou seja, o conceito da relatividade de todo pensamento, a redução de todo o conhecimento racional às bases puramente práticas da vida instintiva do homem, da qual brota esse conhecimento e à qual está sujeito permanentemente. Com sua habitual exaltação, só precisou seguir esse caminho, que já lhe fora indicado por seus companheiros na filologia, para finalmente retornar à sua primitiva valorização das paixões. Pois o que, para os outros, foi apenas uma conseqiiência natural que a teoria do conhecimento provoca e que,

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em absoluto, afeta os métodos e resultados da ciência empírica como tais, foi para Nietzsche impulso para uma completa mudança de opinião. O mesmo exagero extremado e o mesmo fanatismo que o fizeram adorar, como supremo ideal de verdade, o pensamento rigorosamente abstrato, agora lhe servem para ridicularizá-lo, como algo mesquinho e vil, comparado aos impulsos que, na verdade, o governam. Entrementes, o que mudou foi apenas seu estado de espírito, sua compreensão sensitiva do estado das coisas, mas Justamente isso significa tudo para Nietzsche: impele-o a conseqgiiênciassempre mais amplas, tornando-se por fim o ponto de partida para uma nova concepção de mundo. Esse percurso é típico da formação de todas as idéias básicas em sua “filosofia do futuro”; vamos encontrá-lo tanto em sua teoria do conhecimento como em sua doutrina moral, tanto em sua estética como em seu derradeiro misticismo, e vamos sempre observar as mesmas três fases evolutivas: primeiro, a referência a algumas das últimas consegilências da ciência experimental; depois, uma mudança em sua própria disposição para entender esses dados científicos, intensificando-os e exagerando-os ao extremo; e, por fim, suas próprias teorias novas, que daí fluem. Com respeito a essas teorias, porém, devem-se distinguir dois aspectos: de um lado, seu conteúdo filosófico efetivo; de outro, o reflexo puramente psíquico de Nietzsche nelas, porquanto ele cria em seus pensamentos a expressão de seu eu profundo. Esse auto-reflexo nos reconduz à imagem de Nietzsche, delineada na primeira parte deste livro. Mas o conteúdo intelectual das novas doutrinas mostra-se como uma engenhosa união das duas fases filosóficas do desenvolvimento de seu espírito, como uma amostra de dois tecidos distintos entrançados por mãos geniais: a doutrina da vontade de Schopenhauer e a doutrina do desenvolvimento dos positivistas. Para a teoria do conhecimento de Nietzsche, a qual combateo significado do lógico e o réduz, por assim dizer, ao ilógico, é de suprema importância seu livro Para além de bem e mal, . que, em certas partes, bem poderia chamar-se Para além de -

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verdadeiro e falso. Pois aqui discute minuciosamente a impropriedade da oposição entre os valores “verdadeiro e não Vverdadeiro”, que, considerada sua origem, se tornam tão infundados como a oposição entre os valores “bom e mau”. “O problema do valor da verdade surgiu diante de nós [...] Oque em nós deseja realmente alcançar “a verdade”? Supondo que queiramos a verdade: por que não, antes, a não verdade? [...]” (1). “Aliás, o que nos obriga a supor que exista um contraste essencial entre o “verdadeiro' e o “falso”? Não basta supor níveis de aparência?” (34). “Em que estranha simplificação e falsificação vive o homem! [...] assim pôde a ciência erguer-se apenas sobre essa base doravante firme e granítica da ignorância; e a vontade de saber, sobre a base de uma vontade muito mais poderosa, a vontade do não-saber, do indeterminado, do não verdadeiro! Não como sua oposição, mas sim como seu aprimoramento!”(24). “A “consciência' nunca é oposta, de modo decisivo, ao instinto; a maior parte do pensamento consciente de um filósofo é secretamente conduzida por seus instintos e forçada a seguir determinadas vias”(3). Toda lógica, em última instância, não é outra coisa senão mera “convenção de signos” (Crepúsculo dos ídolos, III, 3); todo pensamento, uma espécie de “linguagem simbólica das paixões”, pois “não podemos alcançar nenhuma outra “realidade' acima ou abaixo de nós, a não ser a realidade de nossos impulsos, pois o pensamento é apenas a relação desses impulsos entre si” (Para além de bem e mal, 36). E disso se conclui: “[...] quanto mais expressarmos paixão por uma coisa, quanto mais soubermos dirigir olhos, olhos distintos a essa coisa, tanto mais completa será nossa “noção' dessa coisa, nossa “objetividade'. Porém, eliminar por completo a vontade, expor sem exceção as paixões, supondo que pudéssemos fazê-lo: como? não seria a castração do intelecto?...” (Genealogia da moral, , 12). Eis o ponto onde, subitamente, a compreensão de Nietzsche se desvia de suas concepções anteriores e o leva a concepções Oopostas.Se antes advertira contra a confiança em qualquer tipo de emoção, porque a emoção seria apenas a “neta” de

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antigas conclusões de juízo esquecidas e provavelmente errô-. neas, agora evoca as bases emocionais arcaicas de que se originaram todas as conclusões de juízo, e as degrada até a condição de “netas” do sentimento, do qual são dependentes. Encontra o fundamento dessas duas concepções ainda na visão positivista de mundo, mas aquilo que nela se manifesta sem conflito, a relatividade do pensamento e da vida afetiva, divide-se para ele em antíteses irreconciliáveis: de um lado, o intelectualismo extremado, ao qual até aqui se dedicou e através do qual quis submeter toda vida ao pensamento, todo sentimento à razão; de outro, uma exaltação emocional igualmente levada ao extremo, que se vinga da longa opressão e que, em sua exuberância de vida, só pode se satisfazer com um fanático : “fiat vita, pereat veritas!”. Por isso se lê adiante: “A falsidade de um juízo ainda não é, para nós, nenhuma objeção a este juízo [...]. A questão é saber em que medida este juízo estimula a vida, mantém a vida; [...] renunciar a falsos juízos seria renunciar à vida, negar a vida” (Para além de bem e mal, 4). “Com todo o valor que possa caber ao verdadeiro, ao verídico, [...] seria possível que se atribuísse à aparência, à vontade de iludir [...] e à cobiça um valor mais elevado e mais fundamental para toda a vida. Seria mesmo possível que aquilo que perfaz o valor daquelas coisas boas e estimadas consistisse exatamente em serem, de modo insidioso, aparentadas, relacionadas, entrançadas e talvez idênticas àquelas coisas ruins e aparentemente opostas” (Para além de bem e mal, 2). “[...] estamos radicalmente, desde a Antigiiidade, acostumados à mentira. Ou para expressá-lo de modo mais virtuoso e mais hipócrita, em suma, de modo mais agradável: somos mais artistas do que pensamos ser” (ibidem, 192). E o que mais mantém a vida é aquilo que põe o artista acima do cientista e de sua busca da verdade. “[...] a arte, onde justamente a mentira se santifica e a vontade de iludir tem a boa consciência a seu favor” (Genealogia da moral, III, 25) é também aquilo onde, subitamente, os antes tão desprezados metafísicos surgem muito mais distintos e apreciáveis

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que os “filosofastros da realidade” com sua sobriedade e sua “farraparia” (Para além de bem e mal, 10). Nessa renovada glorificação da arte emesmo da metafísica, percebemos até que ponto Nietzsche já alcançou um tipo de cognoscente novo .e oposto ao anterior e até que ponto já se afastou dos “filosofastros da realidade” da escola positivista. Pois o que estes últimos consideram suplemento inevitável do pensamento cognitivo e que procuram reduzir tanto quanto possível no ato do conhecimento, ou seja, a dependência do intelecto em relação à vida impulsiva, é o que, segundo Nietzsche, precisa ser elevado ao máximo. A percepção da relatividade de todo pensamento, dos limites estreitos que são traçados ao conhecimento da verdade, serve-lhe exclusivamente para proclamar ao conhecimento uma nova falta de limites que lhe restituirá o caráter absoluto. Como Nietzsche precisava desse ideal absoluto a fim de adorá-lo e de nele poder esgotar sua devoção, buscou, tão logo seu ideal de verdade se atrofiou, um remédio em seu oposto, no descomedimento de uma vida efetiva exaltada. Se antes pretendera libertar a busca da verdade de uma última ilusão, percebendo-a como relativa, abre-se-lhe agora um novo acesso a novas ilusões, transferindo o domínio do conhecimento para o campo das emoções e das inspirações da vontade. Com isso são derrubados todos os diques retentores, limitadores, e, sem reservas, a vida afetiva pode fluir. A certeza em parte alguma ou a certeza em toda parte, isso ou aquilo dá quase no mesmo; onde o pensamento perdeu todo direito ao conhecimento autônomo, deve vagar como joguete e instrumento dos impulsos ocultos que o regem até as mais distantes distâncias, até as mais profundas profundezas. Se, anteriormente, Nietzsche, saindo do jardim encantado da metafísica, misterioso e reluzente, penetra o sóbrio mundo racional da investigação empírica, agora se perde no labirinto de uma terra selvagem, que, escura e impenetrável, rodeia esse mundo da razão. Justamente a circunstância de que, nessa terra selvagem, ainda não está aberto nenhum caminho, de que ao pensamento ainda não está indicada direção alguma, de que tudo nela ainda está sem dono e sem lei, e de que o poder da

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vontade tem espaço para toda criação, justamente esse perigo e essa aventura são para ele a garantia do caminho certo, pois parece estar na direção que leva ao centro da vida interior, ao centro de suas forças primitivas. “Ébrios de enigmas, apreciadores da penumbra” — assim chama Zaratustra a seus discípulos — “cujas almas são atraídas por flautas a abismos labirínticos; pois não quereis, com mão covarde, seguir apalpando um fio e, onde podeis adivinhar, odiais deduzir "(Assim Jalou Zaratustra, “Da visão e do enigma”, 1II, 6). “Também no conhecimento, sinto apenas o prazer de minha vontade na língua e no devir” (ibidem, “Nas ilhas bem-aventuradas”, II, 8). “Instrumentos e brinquedos são sentido e espírito!” (ibidem, “Dos desprezadores do corpo”, 1, 43), pois a vida diz: “Também tu, cognoscente, és apenas um caminho e um passo de minha vontade: deveras, minha vontade de poder caminha também sobre os pés de tua vontade de verdade!” (ibidem,'“Do superar a si mesmo”, II, 50). Nietzsche, que, durante muito tempo, usara um modo de pensar frio e sóbrio a fim de acalmar e refrear seu interior e sua vida emocional profundamente agitados, experimenta agora em si mesmo o que, certa vez, descreve, em Humano, demasiado humano, (II, 275), como premonição e advertência: “Se empregamos nosso espírito para dominar o descomedimento das paixões, podemos talvez obter um desagradável resultado de transferir o descomedimento e doravante desregrar o pensamento e a vontade de conhecer”.' Nesse desejo de selvagem desregramento, cria para si um novo lema: “Nada é verdadeiro. Tudo é permitido!” (Genealogia da moral, UI, 24) e louva o valor da ilusão, da ficção arbitrária, do ilógico e do “não verdadeiro” como os poderes que, no fundo, estimulam a vida e intensificam a vontade. Regala-se com a idéia de que na imagem global do universo, do modo como a criamos à nossa volta, surgimos, com nossas qualidades psíquicas, como criadores, e de que nosso saber, em última instância, não é senão uma “humanização das coisas”, até que o universo se volatiza para ele numa visão de sonho, arbitrariamente imaginada. “Por que o mundo, que nos diz respeito, não poderia ser uma fic-

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ção?” —pergunta a si mesmo (Para além de bem e mal, 34), com uma segunda intenção: e portanto não poderia ser recriado por um ato de violência? Há uma relação entre isso eum capítulo curto e interessante em Crepúsculo dos ídolos (TV), cujo propósito só é totalmente compreendido em conexão com outras observações dispersas de Nietzsche sobre omesmo tema. É intitulado: “Como o mundo verdadeiro se tornou por fim uma fábula. A história de um equívoco”, e contém um esboço da marcha do desenvolvimento filosófico desde os antigos até nós. A filosofia já compreendia, ainda que de maneira ingênua, a identidade do cognoscente e de sua imagem de mundo, da pessoa e de sua verdade: culmina com esta frase: “eu, Platão, sou a verdade”. “O mundo verdadeiro, em contraste com o mundo não verdadeiro, aparente, mundo onde vivem os tolos, é “acessível ao sábio — ele vive nesse mundo, ele próprio é esse mundo”. No cristianismo, a idéia do “mundo verdadeiro” separa-se progressivamente da personalidade, pairando desumanizada e sublimada sobre os seres humanos, como prenúncio do futuro, como promessa. Por fim, atravessando uma série de sistemas metafísicos, essa idéia empalidece em Kant, torna-se sombra pura, que não se alcança, não se demonstra, não se promete, até que, separando-se em definitivo da metafísica, se dissolve completamente no nada: “Manhã cinzenta. Primeiro bocejo da razão. O canto do galo do positivismo”. Com isso, o mundo, até então censurado como aparente e irreal, cresce em valor, pois é o único que sobrou: “Dia claro; desjejum; retorno do bom senso e da alegria; rubor de vergonha de Platão; ruído endiabrado de todos os espíritos livres”. Mas, conhecendo a origem da fábula do “mundo verdadeiro”, examinamos, ao mesmo tempo, o modo como se originou à imagem do mundo de nosso saber. Agora que a crença num “modo verdadeiro” místico por detrás do aparente, nascido da ilusão e do equívoco, já não nos conforta, o que nos resta? “Com o mundo verdadeiro, abolimos também o mundo aparente”, que, de fato, só era possível como seyu oposto. De novo, o homem é lançado como o próprio criador de todas as coisas. De novo, a antiga versão: “Eu, Platão, sou

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o mundo” torna-se possível e posa como última sabedoria no começo de toda filosofia, mas não mais na identificação ingênua, ainda inabalada, entre pessoa e verdade, entre sujeito e objeto, mas sim como ato criativo consciente e voluntário daquele que se reconhece como o sustentáculo do mundo. “Eu, Nietzsche-Zaratustra, sou o mundo; o mundo existe porque eu existo; o mundo existe porque eu quero”. Essa conclusão é insinuada apenas nas misteriosas palavras finais: “Meio-dia; momento da sombra mais curta; fim do equívoco mais longo. Auge da humanidade. Incipit Zaratustra”. Aqui já se pode ver claramente como os novos pensamentos de Nietzsche, que se voltam para o místico, se misturam e se ligam a elementos que ainda toma da moderna teoria do conhecimento. Com isso já se alcança o ponto a partir do qual sua nova doutrina se constrói e no qual já não se trata de simples exagero emocional de certos conceitos universais, Pois, para ele, o novo tipo de filósofo forma-se, imperceptivelmente, do fato da limitação e da relatividadé de todo o conhecimento humano e da prioridade da vida impulsiva do homem sobre esse conhecimento: a imagem super-ampliada de um solitário, cuja vontade impetuosa decide o que é verdadeiro e não verdadeiro, e em cujas mãos o conhecimento racional do homem é apenas um brinquedo. Poderíamos dizer: aquilo que força o espírito a severa abnegação, que o influi e o condiciona sob todos os aspectos, personifica-se para Nietzsche na imagem de uma desenfreada onipotência, que ele atribui aum indivíduo além-do-humano. Sim, esse indivíduo deve ter todos os impulsos e forças liberadas e intensificadas de tal modo que a quintessência da vida, a essência das forças do todo, nele se torne, por assim dizer, personificada, de modo que ele também esteja em condição de converter c deslocar as normas do conhecimento. Contudo, isso não ocorre num ato de contemplação, mas sim num feito criador, como uma ação e uma ordem que são enviadas ao mundo. “Porém, os verdadeiros filósofos são autoritários e legisladores; dizem: — assim deve ser —; definem primeiro o “para onde?' e o “para quê?º do homem L...], [...] estendem a mão criadora para o futuro [...]. Seu “co-

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nhecer' é criar, seu criar é uma legislação, sua vontade de verdade é— vontade de potência” (Para além de bem e mal, 211). Sua filosofia “sempre cria omundo segundo sua própria imagem, não pode fazer diferente; a filosofia é esse impulso tirânico mesmo, a mais espiritual vontade de poder, de “criar o mundo”, de ser causa prima” (ibidem, 9). Os “cesáreos criadores e homens de poder de civilização” (ibidem, 207): é com seu esclarecimento e descrição que se ocupa toda a filosofia do futuro de Nietzsche; na imagem dessa filosofia está todo o conteúdo desses homens. Em sua teoria do conhecimento apenas lhes é preparado o solo; na ética e na estética de Nietzsche, esses homens crescem cada vez mais até atingirem uma mística religiosa na qual Deus, o mundo e o ser humano se fundem num único ser monstruoso. É fácil ver o quanto Nietzsche, com essa imagem do filósofo-criador, se aproxima de suas concepções metafísicas anteriores, mas, como, ao mesmo tempo, procura modificá-las por meio de suas teorias científicas posteriores. Não retoma as verdades “ideais” da metafísica, com suas interpretações solenes e consoladoras do enigma do mundo, mas, liquidando de todo a possibilidade de uma “verdade”, introduzindo o ceticismo no campo do conhecimento e colocando-se no ponto de vista de que “tudo é não verdadeiro”, abre espaço para a criação de um substituto daquelas verdades e consolações ideais perdidas. Por meio de uma palavra de ordem, por meio de um ato da vontade, introduz-se nas coisas um significado que elas em si mesmas não têm; o descobridor da verdade, como até aqui funcionara o filósofo, tornou-se de certo modo o inventor da verdade, um ser “riquíssimo de vontade” (Para além de bem e mal, 212), que, sem dúvida, expressa não-verdades e ilusões, mas cuja vontade criadora sabe transformá-las em verdadeiras, ou seja, em realidades convincentes. “Quem não sabe colocar sua vontade nas coisas, introduza nelas, ao menos, um sentido” (Crepúsculo dos ídolos, “Máximas e flechas”, 18). Com isso, volta-se contra os metafísicos, mas, igual a eles, arroga-se o direito de reinterpretar e recriar as coisas com base

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nas inspirações afetivas que sobrepujam a simples força da razão. Nessa opinião pessoal sobre a superioridade da vida passional em relação à vida racional — superioridade em que, por fim, o conteúdo de verdade de um conhecimento é considerado secundário em face do conteúdo de vontade e de sentimento — reflete-se abertamente a mentalidade de Nietzsche, sua essência e sua aspiração mais íntimas. Depois da longa compulsão a serviço do rígido conhecimento da verdade, essa foi uma reação cuja bem-aventurança o arrastou a uma vertigem de misticismo. Nietzsche dá à própria alma essa qualidade de filósofo-criador, de tamanho maior que o natural, no qual a abundância e a superabundância da vida se acumulam, desejando aliviar-se através de pensamentos criadores —é o homem “trópico”, ao qual se assentam as palavras que, já no primeiro capítulo deste livro, dirigimos à vida interior profundamente agitada de Nietzsche: “a alma mais abrangente e capaz de correr, errar e vagar em si mais vastamente; [...] que se alcança a si mesma no círculo mais amplo; a alma mais sábia, à qual a loucura fala mais docemente: [...] aque mais se ama a si mesma, e na qual todas as coisas têm corrente e contracorrente, fluxo e refluxo [...]” (Assim falou Zaratustra, “De velhas e novas tábuas”, 19, III, 82). Mas essa reação arbitrária e violenta contra o período anterior de seu espírito vai mais além, e a forma inconsciente de auto-reflexo nas teorias vai até o mais fundo sentimento pessoal de Nietzsche. Pois nisso encontramos aquele traço misterioso de sua vida psíquica, pelo qual só satisfazia a si mesmo e à própria exaltação na autoviolação e no auto-sacrifício. Se antes havia se forçado à submissão sob as exigências de um severo intelectualismo, agora, por outro lado, submete a razão, o impulso ao conhecimento puramente intelectual, à vontade poderosa das paixões. Se antes havia constrangido seu ser psíquico, agora constrange o ser cognitivo que o habita. Não descansa enquanto o triunfo da desencadeada vontade de viver não se transforme num auto-escárnio da razão: de modo estranho, o mais elevado conhecimento resulta, por fim, numa re-

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núncia de toda à compreensão lógica; o pensador é “furtivamente atraído pela sua própria brutalidade e impelido por aquele perigoso calafrio da brutalidade dirigida contra ele mesmo”; deve exercer a função de “artista e transfigurador da brutalidade” (Para além de bem e mal, 229). O espírito humano imerge, por fim, voluntariamente, na própria aniquilação, pois só assim recebe a revelação suprema; mergulha no ilimitado, no desmedido, que se fecham sobre ele, pois só assim cumpre seu objetivo. Na última filosofia de Nietzsche, tanto na ética quanto na estética, tornaremos a encontrar, do princípio ao fim, a idéia básica de que o declínio através do excesso É a condição para uma criação nova mais elevada, e, portanto, a teoria do conhecimento de Nietzsche também desemboca numa espécie de mística pessoal horripilante, na qual as noções de loucura e de verdade se enlaçam indissoluvelmente, e o “alémdo-humano” surge assim como um raio, que atinge e mata o espírito, como um delírio a ser inoculado em seu juízo: “Quisera eu que tivessem um delírio pelo qual perecessem! [...] Realmente quisera que seu delírio se chamasse verdade! [...] E a felicidade do espírito é ser ungido e consagrado como vítima através de lágrimas — já sabíeis disso? E a cegueira do cego e seu andar às apalpadelas deve testemunhar o poder do sol para o qual olhou — já sabíeis disso?” (Assim falou Zaratustra, “Dos famosos sábios”, II, 33) Mas esse último mistério, assim como a imagem global do filósofo-criador, só pode ter total clareza para nós à medida que avança na ética e na estética de Nietzsche, ganhando a partir de linhas básicas abstratas traços sempre mais concretos, até surgir finalmente diante de nós como uma transfiguração mística de Nietzsche em sua própria forma pessoal. Que só a ética dá à teoria do conhecimento esclarecimento e bases verdadeiras é o que se conclui do caráter do cognoscente, ou seja, do real portador da vontade de viver, o cognoscente como homem de ação e criação. Assim, vale sobremaneira para a filosofia de Nietzsche o que ele declara sobre os sistemas dos filósofos de modo geral: “que os objetivos [...] morais formaram o verdadeiro gérmen de vida, do qual

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sempre cresceu a planta inteira” (Para além de bem e mal, 6). Essa estreita relação do filósofo com a vida como tal e com seus desígnios mais humanos e pessoais deve separá-lo decisivamente de todos aqueles que hostilizam a vida ou a encaram com' pessimismo. Ele deve ser o apologista nato da vida e sua filosofia eo ipso, uma apoteose da vida, pois a si mesma a vida só pode dizer sempre “sim”. Na realidade, porém, quase sempre tem ocorrido o contrário. “Em todos os tempos, os mais sábios tiveram o mesmo julgamento sobre a vida: não vale nada... Sempre e por toda a parte, ouvimos de suas bocas o mesmo som, um som cheio de dúvida, de melancolia, de cansaço pela vida, cheio de resistência à vida” (Crepúsculo dos ídolos, II, 1). Essa enfraquecida vontade de viver era consegiiência do refinamento e da sublimação da essência humana-animal desses sábios, era a característica intelectual e contemplativa de sua natureza; até certo ponto, era também, de acordo com as concepções anteriores de Nietzsche, o sinal de sua nobreza, que os distinguia dos homens espiritualmente rudes, da plebe, lhes dando o direito ao papel de guiá-la. Agora a noção se modifica de forma que a ênfase já não é colocada na espiritualização, mas sim no enfraquecimento da vida. Os homens de espírito doravante aparecem como os doentes e os extenuados, como os tipos de declínio de uma época. O filósofo tão amado e louvado por Nietzsche, que, para os gregos, representava a doutrina do domínio da razão sobre os instintos naturais, Sócrates, se transforma com isso, novamente, no tentador perigoso e difamado, como foi para Nietzsche em seu período schopenhaueriano. Sócrates, feio e disforme entre gregos distintos ebem formados, surgiu entre eles como o primeiro grande decadente, corrompendo e castrando a vida instintiva dos gregos primitivos, ao submetê-los à doutrina racional (Cf. y Crepúsculo dos ídolos, II, “O problema de Sócrates”). Nisso é o arquétipo de todos os pensadores que querem dominar a vida através do pensamento, mas, igual a todos eles, não demonstra assim nada contra a vida, mas algo contra o pensamento. Pois mesmo que todos o filósofos até hoje tenham contribuído para o desprezo pela existência, para o afrouxa-

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mento dos instintos vitais, não se expressa nisso a verdade da depreciação da vida, mas apenas a contradição em que caíram consigo mesmos, sintoma característico de uma condição doentia. Ensina que os homens de inteiecto dominante se afastaram da fonte de vida, que leva alimento também a seu intelecto; que são decrépitos, cansados, temporões de uma civilização em declínio; que já não possuem em si a força vitoriosa, curativa, transformadora, que triunfa sobre os danos e as falhas da existência e que leva aum desenvolvimento superior. Para eles, portanto, vale a pergunta desconfiada: “Porventura já não estava nenhum deles seguro sobre as próprias pernas? eram tardios? vacilantes? decadentes? Porventura surge a sabedoria na Terra como um corvo que se entusiasma por um leve cheiro de carniça?...” (Crepúsculo dos ídolos, II, 1). Mas não só para eles vale essa questão, pois representam apenas o ópice de toda a evolução da humanidade. Arrancado da uniformidade obtusa e indistinta de sua primitiva consciência animal, o homem, através do aperfeiçoamento de suas capacidades espirituais, é levado ao conflito com a natureza, na qual se enraíza sua força. Com isso se torna uma meia medida, uma coisa híbrida, que, visivelmente, não pode extrair de si mesma sua explicação e seu direito à existência; é a passagem personificada para algo que ainda não está descoberto, que ainda não está criado, e, como tal passagem, o homem é o ser mais doentio, “o animal ainda não determinado” (Para além de bem e mal, 62). Assim, o caráter da decadência fica ligado à humanidade como tal, e não apenas a uma forma individual, aum domínio isolado. Por conseguinte, já achamos os primeiros indícios da decadência, do declínio da vida Íntegra, na origem de toda a civilização, quando a besta selvagem do homem, a “fera humana”, se sente restringida em sua liberdade desenfreada devido às primeiras obrigações sociais. “Os terríveis baluartes com que a organização estatal se protegia contra os velhos instintos de liberdade [...] fizeram com que todos os instintos do homem selvagem, livre e errante retrocedessem, se dirigissem contra o próprio homem”. “Todos os instintos que não

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se descarregam no exterior, voltam-se para o interior; isso é o que chamo de a interiorização do homem: somente com isso, cresce no homem aquilo que, mais tarde, chamamos de sua “alma”. Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que apertado entre duas peles, [...] ganhou profundidade, largura e altura, quando a descarga do homem foi inibida exteriormente”. “O homem, que, por falta de inimigos e resistências exteriores, comprimido numa estreiteza opressora e numa regularidade de costumes, impacientemente se dilacerava, se perseguia, se roía, se enxotava, se maltratava; esse animal que se debate e se fere contra as barras de sua jaula [...]. Com ele, porém, se introduzia a maior e mais temível enfermidade, da qual, até hoje, ahumanidade não está curada, o sofrimento do homem [...] consigo mesmo, como consegiiência de uma separação violenta do passado animal [...] de uma declaração de guerra aos velhos instintos, sobre os quais, até agora, repousavam sua força, seu prazer, sua temerosidade” (Genealogia da moral, 1, 16). Se, de acordo com isso, o patológico do homem é, de certo modo, sua condição normal, sua natureza especificamente humana, e se os conceitos de adoecimento e evolução devem ser entendidos quase como idênticos, devemos naturalmente reencontrar também, ao fim de um longo desenvolvimento cultural, amesma decadência como resultado. Ela apenas mudou de aparência. São de uma longa adaptação pacífica os tempos em que ela surge em sua nova forma; tempos em que a coesão rigorosa, a disciplina severa e a submissão do indivíduo já não aparecem como necessárias, mas em que existem com fartura os meios para tirar partido de uma vida plena e despreocupada. A rígida uniformidade a que todos foram levados por meio de uma educação secular começa a se dissolver e ceder lugar ao jogo do indivíduo. “A variação, seja na forma de desvio (para algo mais elevado, mais fino, mais raro), seja na forma de degeneração e monstruosidade, entra subitamente em cena na maior plenitude e esplendor; o indivíduo se atreve a ser único e a se realçar.” “Finalidades puramente novas, meios puraménte novos, mais nenhuma fórmula comum, o mal-

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entendido e o desrespeito unidos um ao outro, a decadência, a corrupção e os mais altos desejos terrivelmente atados, o gênio da raça transbordando de todas as cornucópias do bom e do mau, uma fatal simultaneidade de primavera e outono” (Para além de bem e mal, 262). Se, na forma de decadência original, descrita em primeiro lugar, as paixões do homem se voltam contra ele mesmo, ameaçando-o e dilacerando-o, porque ele não pode liberá-las exteriormente, porque não se pode defender, agora, pelas razões opostas, elas entram numa guerra intestina, umas contra as outras, porque não há mais situações contra as quais ohomem, teria de se defender e não há nada que possa trazer para fora sua força bélica. Na paz doméstica da vida ordenada, ohomem, então fortemente interiorizado, só tem a si mesmo como campo de batalha de seus impulsos rebeldes. Tão logo esses impulsos se fazem sentir, o homem começa de novo a sofrer por si mesmo, “devido aos egoísmos selvagens que se voltam e, por assim dizer, explodem uns contra os outros”, contidos em seu ser — que se tornou extremamente complicado —, e, através dos quais, aos poucos se perde novamente toda a coesão da personalidade. Nesse estágio, ohomem forma o elo terminal de uma única e extraordinariamente longa cadeia evolutiva, cujos anéis estão a ele incorporados como a soma de toda a sua “humanidade” espiritual, moral e social, aos poucos cultivada, juntamente com todas as vívidas memórias instintivas da remota animalidade. Mas se essas duas formas de decadência nascem por imposição da natureza huminanae são as fases de transição inevitáveis de seu aperfeiçoamento rumo a algo superior, existe, ao mesmo tempo, uma terceira forma de decadência, que ameaça tornar incuráveis os estados patológicos descritos e impedir a possibilidade de um restabelecimento. Essa é a falsa concepção de mundo, a errônea concepção de vida, produzida através de todos os sofrimentos e doenças. É a exortação à ascese, não importa sob que forma, ao afastamento da vida e de suas dores, à entrega ao cansaço que surge como conseqiência da perpétua “guerra que é o homem”. Tal ascetismo

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não é pregado apenas por todas as religiões e morais, mas também por todo intelectualismo que sustenta o pensamento às custas da vida e que opõe o ideal da “verdade” ao ideal de uma possível intensificação da vida. O remédio certo contra essa abrangente corrupção consistiria justamente na total adesão à vida, de modo que, da caótica riqueza de opostos conflitantes, nascesse uma saúde nova e superior. “O homem só é fecundo ao preço de ser rico em antíteses” (Crepúsculo dos ídolos, V, 3), com o pressuposto de que haja ainda força bastante para carregá-las e sustentá-las. Então, a aparente dissolução e decadência, toda a assim chamada corrupção, é “apenas um apelido do período outonal”, ou seja, do tempo das folhas que caem, mas também das frutas maduras. Nisso, decadência e progresso podem ter um único e idêntico significado: o progresso rumo ao fim necessário. “Nada ajuda: o homem deve avançar, isto é, passo a passo rumo à décadence. [...] Podemos obstruir esse desenvolvimento e, através dessa obstrução, estancar, congestionar, tornar essa própria degeneração mais veemente e mais súbita: mais não se pode fazer” (Crepúsculo dos ídolos, IX, 43). Um fim semelhante, uma trágica combinação de avanço e declínio, é explicado pelo fato de o homem não achar em si sua realização, mas, para além de si mesmo, buscar algo mais elevado. É do “fato de essa alma animal, voltada contra si mesma, ser na Terra algo tão novo, tão profundo, [...] tão contraditório e cheio de futuro”, que se extrai a certeza de que um possível tipo superior de humano seja criado. Assim, é como se “alguma coisa se anunciasse, alguma coisa se preparasse, como se o homem não fosse uma meta, mas apenas um caminho, um incidente, uma ponte, uma grande promessa” (Genealogia da moral, II, 16). “O homem é uma corda atada entre o animal e o além-do-homem, uma corda sobre um abismo. [...] O que é grande no homem é sua condição de ser ponte e não meta: o que se pode amar no homem é o fato de ser uma passagem e um declínio” (Assim falou Zaratustra, “O prólogo de Zaratustra”, 4, 1, 12). Por isso, os fenômenos da decadência, na época do declínio que irrompe e do renascimento que se anuncia, não

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podem ser poupados à hum anidade assim como “as repugnâncias e extravagâncias da gravidez à mulher grávida: é preciso esquecê-las a fim de se alegrar com o nascimento da criança”. A percepção do caráter “demasiado humano” dos impulsos, que Nietzsche havia antes enfatizado com insistência, aqui também não é abandonada, mas, ao contrário, é reforçada ao máximo e é tomada como ponto de partida de sua nova teoria da humanidade. De uma percepção fria e racional elevou-se ao nível de paixão emocional e, como tal, ganha para ele significado tão gigantesco que revolve todas as forças de sua alma e de seu pensamento, até que, na cólera, no desgosto e no pavor, lhe cresçam “asas e forças pressagas das fontes” (Assim falou Zaratustra, “Do espírito da gravidade”, 14, III, 77), com que se destaca desses estados. Da ênfase que põe em suas percepções antigas, das consegiiências extremas que delas extrai, brotou-lhe uma ânsia irresistível por suas novas teorias, pela idéia de um auto-sacrifício do demasiado humano em favor do além-do-humano. Assim como nas partes da teoria do conhecimento da nova doutrina de Nietzsche se espelha a dependência do lógico em relação ao psíquico, da vida intelectual em relação à passional, também se nos apresenta nessa imagem da humanidade, de uma abundância doentia, a explicação de sua própria essência com vistas a um renascimento: o auto-sacrifício de impulsos conflitantes para a liberação de uma força criativa mais elevada. Sua doutrina da decadência nasceu do sentimento profundo e sempre presente de seu próprio estado patológico, de seu próprio sofrimento. Vale para ela o mesmo que para todas as lcorias de sua última fase filosófica: os dolorosos processos psíquicos que eram, para eie, até então, a causa e à conseqiiência dos diversos processos de conhecimento, tornam-se doravante o próprio conteúdo do conhecimento. É com a idéia de uma humanidade que se tornou excessivamente rica e que se sacrifica que Nietzsche, em retrospectiva, entende todo o processo da evolução da humanidade. Para isso foi preciso aquela longa e penosa domesticação do estandoanimal primitivo, embora ela tenha transformado o ho-

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mem num decadente, e ele, por fim, se liberte dela novamente. Seu sentido foi enriquecê-lo com a total plenitude de sua própria interioridade para depois transformá-lo em senhor dessa riqueza e de si mesmo. Isso só pôde ocorrer mediante longa e severa coerção, na qual sua vontade, como a de um menor, foi, por assim dizer, elevada à maioridade a golpes e punições. Desse modo aprendeu o homem a-teruma vontade mais extensa e mais profunda que a do animal, desatenta, dominada pelo momento e subjugada pelos instintos. Aprendeu a ser responsável pelo ato de querer; tornou-se “o animal capaz de prometer”. Toda a educação da humanidade é, no fundo, uma espécie de mnemotécnica: ela resolve o problema de como incorporar a memória a uma vontade imprevisível. “Poder falar por si e com orgulho, e portanto também poder falar de si a si mesmo, eis [...] um fruto tardio; por quanto tempo teve de permanecer na árvore esse fruto amargo?![...] Coloquemonos [...] no fim desse gigantesco processo, lá onde a árvore por fim amadurece seus frutos, lá onde a sociedade e a moralidade deseus costumes revelam, por fim, para quê serviam apenas de meio: assim, encontramos como o fruto mais maduro L..] o indivíduo soberano, apenas igual a si mesmo [...], em suma, o homem da vontade própria, duradoura e independente, capaz de prometer” (Genealogia da moral, II, 1). À essa autoconfirmação do homem liberto e senhor de si mesmo corresponde uma nova forma de consciência, segundo a qual o homem se emancipou das noções de moral e dos conceitos de ideal dos costumes, seus austeros e doravante supérfluos educadores, e, como isso, à antiga consciência nele perdeu suas raízes e justificativas. A teoria da vontade de Nietzsche apresenta também uma fusão de suas concepções metafísicas anteriores com o determinismo científico. Como discípulo de Schopenhauer, Nietzsche distinguia, como ele, a misteriosa vontade “em si”, que forma a base da metafísica schopenhaueriana, da vontade que se manifesta em nossa percepção humana. Chamou-a, portanto, de livre, pelo fato de que as razões extremas de sua essência se situam além de todo o nosso mundo empírico, além da lei

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da causalidade, que vale para este mundo; de dependente, pelo fato de que os fenômenos volitivos só são perceptíveis por nós dentro da rede ilacerável do contexto causal do universo. Depois de ter abraçado durante vários anos um determinismo estrito, Nietzsche ainda mantém a opinião de que a “vontade” sob a tutela das influências que a definem merece, por assim dizer, seu nome. Mas aquilo que nega, como determinista, em relação à origem misteriosa da vontade, procura, em compensação, colocar no objetivo e no final do desenvolvimento da vontade. Se é verdade que, em conseqiiência do longo processo de gestação, através de recalques e influências externas, por ele descrito, aos poucos se criou uma vontade madura, consciente, duradoura e que governa a vida, com isso também ela ficou livre num sentido que não faz jus aos deterministas, pois agora suas ações já não se deixam deduzir a partir de um tempo e de um ambiente definidos; agora já não é definida por nada a não ser por si mesma, ou seja, por sua força que cresceu violentamente e que explode irreverentemente; ela é pura consciência de poder, liberta do tempo. Com efeito, seu caráter já não é de natureza metafísica, pois se transformou, é o resultado de uma série evolutiva, e a liberdade que obteve é filha da necessidade e do severo condicionamento que lhe impuseram. Mas existe algo místico em torno dessa liberdade, pois doravante ele se volta, como um poder incondicional, jJustamente contra as condições naturais de que brotou, a fim de transformá-las e recriá-las. Em sua fase positivista, Nietzsche aprendera a estimar o mundo real como o mais valioso, em seu desenvolvimento único, a nós acessível e compreensível, e voltara-se contra os metafísicos discordantes com as seguintes palavras: “Todas as coisas que estão prontas e completas são admiradas; todas as que estão se fazendo são subestimadas” (Humano, demasiado humano, 1, 162), só porque as causas que motivaram as primeiras já não podem ser examinadas nem descobertas. Nietzsche chega agora à mesma admiração com aquilo que ficou pronto e está aparentemente completo, e tudo quanto está se fazendo lhe parece estimável apenas na medida em que é um caminho para a compleição.

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Agora, a determinação de todas as coisas é também admitida por ele, mas só porque, com ela, em algum tempo, se deve manifestar um significado místico de todas as coisas que ultrapassam toda determinação e experiência. Esse significado depende do poder da vontade liberada, pois é por meio dela que ele se introduz nas coisas; por isso Nietzsche quer ver colocado em lugar da vontade “livre” e “dependente” dos deterministas a expressão “vontade forte ou fraca” (Para além de bem e mal, 21) e quer entender toda a psicologia como “morfologia e evolucionismo da vontade de potência” (ibidem, 23). Portanto, aquele que tem vontade de potência é, aqualquer tempo, o “extemporâneo” no mais alto grau; é aquele em quem se transformou em gênio o que, durante longo tempo, fermentou na humanidade. No gênio escoa livremente o que foi aprendido pela humanidade no cativeiro e na servidão. Os gênios são como “matérias explosivas nas quais está acumulada uma foiça monstruosa; seu pressuposto é sempre que, histórica e fisiologicamente, durante longo tempo, se tenha juntado, amontoado, poupado e guardado com vistas a eles, [...] o tempo em que aparecem é fortuito; que quase sempre se tornem senhores dele depende apenas de que sejam mais fortes, mais antigos, que durante um tempo mais longo se tenha acumulado com vistas a eles; [...] o tempo é relativamente sempre mais jovem, mais tênue, de menor idade, mais inseguro, mais infantil”. “O grande homem é um final. [...] O gênio — em sua obra, em ação — é necessariamente um esbanjador: o fato de se esgotar constitui sua grandeza [...]. O instinto de autoconservação fica, por assim dizer, suspenso; a pressão avassaladora das forças escoantes lhe proíbem qualquer cuidado e precaução desse tipo” (Crepúsculo dos ídolos, IX, 44). Por isso aflora no gênio, pelo menos em uma certa direção, em grau extremo aquilo que deve habilitar ohomem a progredir desde sua espécie até uma espécie superior, um autodesperdício em favor de uma nova criação, uma riqueza dissipadora em cujos dotes se depositou todo o passado e na qual ele se tornou completa fecundidade — fecundação do futuro. Imaginemos

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um gênio que não detém, igual a outros gênios, sua genialidade apenas em um ou em alguns campos, mas a relaciona a toda a consciência humana, de modo que nele escoa de modo vivo e operante aquilo que viveu e operou na humanidade: um gênio como tal seria a imagem do homem do qual nasceria o alémdo-homem. Esse gênio abrangeria e resumiria em si todo o passado e conteria mesmo “a linhagem completa do homem até ele mesmo”, e portanto nele deveriam se manifestar de súbito o meio e o fim do futuro da humanidade. Pela primeira vez, mediante a vontade de potência de semelhante revelador, o desenvolvimento da humanidade obteria orientação, finalidade e futuro, e todas as coisas ganhariam significação interna definitiva; numa palavra: pela primeira vez nasceria o filósofo como o criador, segundo Nietzsche o imagina: na forma daquele que tem vontade de potência, na forma do gênio da humanidade, daquele que compreende a vida em si eem quem se evidencia a opinião de Nietzsche sobre o pensamento em geral: pensar é, “de fato, muito menos descobrir que reconhecer, recordar, regressar e retornar àquela distante e antiquíssima economia doméstica da alma, da qual outrora nasceram esses conceitos: [...] Nesse aspecto, filosofar é uma espécie de atavismo do mais elevado grau” (Para além de bem e mal, 20). Tudo quanto é mais elevado é uma espécie de atavismo — nisso repousa o caráter estranhamente reacionário de toda a derradeira filosofia de Nietzsche, caráter que mais nitidamente a distingue de seu período anterior. Éuma tentativa de substituir a glorificação metafísica de certas coisas e conceitos pela glorificação de sua idade e de sua origem remota. Por isso, não toma o “recordar” e o “reconhecer” no sentido platônico, porque julga que ambos podem ser compreendidos de modo significativo e além-do-humano graças ao espaço de tempo extremamente longo da existência de todo pensamento. Por isso, entre todos os mais respeitados, cabe apenas ao mais velho a definição do futuro,º e o valor e à nobreza das coisas estão exclusivamente ligados à idade: só quando chegam ao linal é que as coisas revelam seu tesouro e se mostram como poder, como liberdade e como força autônoma. “Quem tem

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(as boas coisas) é diferente de quem as adquire. Tudo quanto é bom é herança; o que não é herdado, é imperfeito, écomeço L...]” (Crepúsculo dos ídolos, IX, 47); nobre é “aquilo que não se deixa improvisar”. Nada é, portanto, mais desprezível, mais plebeu, que as coisas em formação, que o portador dessas coisas e do novo: o homem moderno e o espírito moderno, que estão totalmente condicionados pelo tempo e são, por isso, espíritos servis. Ohomem só pode se tornar um espírito soberano após ter incorporado séculos e milênios e de ter assim se tornado um “extemporâneo”, uma “genialidade independente do tempo”. “A democracia foi, em todas as épocas, a forma de declínio da força organizadora: [...] para que haja instituições, é preciso haver [...] vontade, instinto e imperativo, antiliberais até amaldade: uma vontade de tradição, de autoridade, de responsabilidade para com adiante, de solidariedade entre cadeias de gerações passadas e futuras in infinitum” (Crepúsculo dos ídolos, IX, 39). É interessante ver, através da comparação com trechos análogos de obras anteriores de Nietzsche, que transformação na concepção de uma teoria pode nele provocar a simples mudança de sentimento e, com isso, quão implacavelmente as antíteses logo se aguçam.* Agora Nietzsche fustiga a “desprezível mania de uniformização” de todos os homens e as condições de paz em que já não pode surgir nenhuma força bruta de bárbaros que transmitiriam ao presente extenuado e enfraquecido a força sadia dos tempos antigos. Bárbaros são “os homens mais completos, (o que, em qualquer nível, significa tanto quanto “os animais mais completos*)” (Para além de bem e mal, 257). Esses homens ou animais mais completos aparecem em nossa sociedade como maus e perigosos; são qualificados de criminosos e tratados segundo esse critério; sim, graças aos seus impulsos naturais mais fortes, são os cri. minosos e infratores natos da ordem existente. “O tipo do criminoso é o tipo do homem forte sob condições desfavoráveis, L...]. Faltam-lhe a selva, uma natureza e uma forma de existência mais livre e mais perigosa, onde seja legal tudo quanto for arma e defesa no instinto do homem forte. Suas virtudes

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são proscritas pela sociedade” (Crepúsculo dos fdolos, IX, 45). O ideal de liberdade segundo o qual a cada um cabe certa dose de liberdade, e que, portanto, permite também aos mais fracos e vis liberdade de movimento, se opõe a seu ideal: seu irreverente desfrute da vida exige sempre a opressão de outros; sua força exprime-se involuntária e necessariamente no esmagamento de todas as fraquezas à sua volta. Porém, a causa dessa força dos instintos que nele irrompe é que ele provém, por assim dizer, de um grau de civilização mais antigo e representa uma porção mais antiga da humanidade; numa palavra, tal como o gênio, é, no mais alto grau, atavicamente dotado. Por mais que esse poder instintivo que nele habita desde tempos imemoriais seja em si de uma natureza grosseira, ele volta a ser nobre porquanto representa uma brecha para a plenitude acumulada por muito tempo, uma matéria fortemente explosiva, com a qual o passado fecunda o futuro. Onde o criminoso é muito forte, onde ele é, portanto, ao mesmo tempo um gênio de sua espécie e um ser de livre-arbítrio, aí consegue por vezes dirigir a orientação dominante de sua época de acordo com sua particularidade atávica e dobrar sob sua vontade tirânica a época que se lhe contrapõe. Um exemplo disso é Napoleão, que Nietzsche compreende com a mesma visão de Taine. Também lhe parece da maior significação que Napoleão seja descendente da genialidade tirânica do que, transplantada para a Córsega, pôde conservar intacta, na selvageria e na primitividade dos costumes locais, a herança de seus antepassados, para, finalmente, com a violência desta, subjugar a Europa moderna, que lhe oferecia um espaço para descarregar sua força totalmente distinto daquele que a Itália outrora fornecera a seus avós. A admiração de Nietzsche pelo grande corso faz parte da última fase de seu espírito, embora, previamente, tenha compreendido ó Renascimento italiano de maneira essencialmente diversa.º : Com o vigor primitivo de sua impetuosa força instintiva e de seu egoísmo ilimitado, Napoleão torna-se agora para Nietzsche a imagem ideal da natureza senhorial inata tal como cla deve ser e tal como, ainda hoje, dela precisamos para ex-

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tirpar tudo quanto foi criado de considerações moralistas e emoções insípidas pela natureza escrava do homem moderno. Com isso chegamos à diferença, largamente discutida e freqientemente superestimada, que Nietzsche faz entre a moral dos senhores e a moral dos escravos. No princípio, aqui também, partiu Nietzsche de sugestões positivistas. Como já men-. cionado, a obra então em formação, A origem da consciência, deu ensejo a Rée de discutir com o amigo todo o material de que este precisava para seus próprios desígnios, sobretudo o contexto etimológico e histórico dos conceitos nobre-forte-bom e vil-fraco-mau, na antiga moral ou na etapa cultural, por assim dizer, pré-moral. Omodo como essas conversas e estudos em comum foram mais uma vez tomados pelos dois amigos foi característico da relação que Nietzsche agora mantinha com os conceitos positivistas: mais uma vez ouviu pacientemente as idéias do amigo, retirando delas aqui e ali sugestões ou material para o próprio pensamento, mas nisso já se voltava com hostilidade contra seus companheiros do passado. Na obra de Rée, a modificação histórica dos juízos em favor de sentimentos benevolentes e igualitários foi considerada como transição natural e gradual para formas sociais mais desenvolvidas: a glorificação inicial da força e do egoísmo predadores progressivamente cede lugar a costumes e leis mais suaves até que, na moral cristã, aparecem a compaixão e a caridade como o supremo mandamento, religiosamente sancionado. Contudo, em sua avaliação pessoal do fenômeno moral, Rée estava muito longe de se colocar ao lado dos utilitaristas ingleses, dos quais, aliás, se aproximava em suas concepções científicas. Para Nietzsche, ao contrário, em conseqiência da transformação de suas concepções pessoais sobre a moral, aguçou-se a diferença dada historicamente entre as duas avaliações distintas daquilo que se chama de “bom”, até o nível de dois antagonismos irreconciliáveis: até o nível de uma luta entre a moral dos senhores e a moral dos escravos, que chega até nossos dias irreconciliável. O significado extremamente importante que o poder da vontade e a força do instinto adquiriram para ele, induziu-o a vê-las como a única

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fonte possível de toda moral saudável e, ao contrário, a ver na sanção de todos os sentimentos benevolentes um mal fatal, do qual toda a humanidade até hoje está enferma. Sua costumeira redução de todo juízo de valor moral à utilidade, ao hábito e ao esquecimento do fundamento utilitário primitivo lhe pareceu doravante inexata; semelhante formação poderia no máximo convir à moral dos escravos; para a moral dos senhores deveria ser encontrada procedência mais nobre. Pois é nobre chamar uma coisa de boa ou má sem considerar sua utilidade, e assim procede a natureza dos senhores: tais pessoas, em sua essência e em todas as suas emoções, sentem-se “boas” e, com desprezo involuntário e meio inconsciente, olham como “mau” aquilo que não corresponde a esse seu estado, ou seja, tudo quanto é fraco, dependente e pusilânime. Totalmente distinta é aformação moral de escravos desses desprezados, desses “maus”: ela não brota espontaneamente de si mesma, do solo do ressentimento, como um ato de vingança; chama de “mav” e odioso o que pertence à classe dominante e, só a partir disso, como numa derivação, descobre seu sentido de “bom” para todas as qualidades contrárias, ou seja, para o fraco, o oprimido e o sofredor. De um lado, portanto, está a “fera sem consciência de culpa”, o “monstro exultante” que realiza mesmo as piores ações com arrogância e equilíbrio psíquico, como se fosse “uma farra de estudantes” (Genealogia da moral, 1, 11); do outro, o oprimido, o sedento de ódio, cuja alma impotente anseia por vingança, ao mesmo tempo em que parece pregar à moral do sofrimento e do amor ao próximo. Este último tipo foi aperfeiçoado num tipo ideal pelo cristianismo, que Nietzsche simplesmente compreende como um imenso ato de vingança do judaísmo contra o soberano mundo antigo. À real sutileza desse plano de vingança foi que os judeus crucificaram o fundador do cristianismo e renegaram sua religião de modo que, sem receio, outros povos “mordessem a isca”.º Mas não é préciso seguir Nietzsche em todas as suas explicações e em sua, às vezes, ousada interpretação histórica, porque a verdadeira significação de sua concepção filosófica está em lugar distinto daquele onde, geralmente, a procuramos.

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Necessitando fundamentar cientificamente e generalizar tudo quanto possível, Nietzsche tentou desenvolver algo, cujo significado residia para ele num problema psíquico oculto, a partir da história da humanidade, colocando-o dentro dela. É, por jsso, lamentável que o característico na concatenação de idéias de Nietzsche seja apagado, enquanto se enfatiza em demasia seu aspecto errôneo: o da cientificidade. Também para essas hipóteses de Nietzsche, e mui especialmente para elas, convém não serem consideradas teoricamente, se delas quisermos ex-. trair a essência original. A questão básica de Nietzsche não era saber o que seja a história psíquica da humanidade, mas sim como compreender sua própria história psíquica como a da humanidade inteira. Contrastando agudamente com a exatidão filológica, com a qual, no início e, em essência, em sua fase anterior, ele interpretara a história e a filosofia, a pesquisa científica exata já não se destaca ao lado de suas idéias geniais —— e já não poderia mesmo se destacar, pois Nietzsche estava impedido de trabalhar cientificamente. Para todos os estudos que ainda quer abordar, valem, portanto, suas palavras em À gaia ciência (166) permanecemos — “Sempre em nossa companhia”, mesmo quando cremos acolher coisas alheias. “Tudo quanto é de minha espécie, na natureza e na história, me fala, me louva, me empurra para a frente, me consola — todo o resto não ouço ou logo esqueço.” “Limites de nossa audição: só ouvimos as questões para as quais estamos em condição de encontrar resposta” (ibidem, 196). “Por maior que seja a avidez de meu conhecimento, não posso tirar das coisas nada além do que já me pertence; a propriedade dos outros permanece nas coisas” (ibidem, 242). Tratando tão arbitrariamente o material em favor de suas hipóteses filosóficas, Nietzsche afastou-se ainda muito mais da observação e da argumentação objetivas, tornou-se muito mais subjetivo em suas conclusões e deduções do que nos anos em que, conscientemente, se limitava ainda às vivências interiores. Agora, a partir dos significados de seu interior, forma-se o elemento definidor e legislador das coisas externas, e o próprio Nietzsche torna-se o “grande déspota”, o “diabo

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manhoso que, com seu favor e desfavor, força e coage todo o passado até que este se torne ponte e presságio e arauto e canto de galo” (Assim falou Zaratustra, “De velhas e novas tábuas”, 11, UI, 74). Desde o princípio, portanto, o problema psíquico de Nietzsche trata menos de fixar historicamente a oposição entre a moral dos senhores e a moral dos escravos do que comprovar o fato de todo homem, pelo modo como se elevou até hoje, trazer em si ambos os opostos, sendo o resultado sofredor dessa contradição de instintos, dessa incorporação de valores duplos. Quando revemos a descrição que Nietzsche faz da decadência, af encontramos o homem nascendo com a natureza senhorial, ou seja, com força e selvageria originalmente indômitas, mas oprimido e transformado em escravo obediente pela pressão social, pela própria civilização que desponta. Para Nietzsche, toda civilização como tal repousa nesse adoecimento e nessa escravização do homem, e ele observa formalmente que, sem esse processo, sem ser dirigida violentamente contra si mesma, a alma humana teria permanecido “pouco profunda” e “fraca”. A primitiva natureza senhorial não é mais do que um magnífico exemplar de animal e só está apta à evolução progressiva graças às feridas causadas à sua força, pois, nos tormentos dessas feridas, deve aprender a se dilacerar a si mesma, a se vingar em si mesma, a desafogar sua impotência em paixões voltadas para o interior, tudo isso unicamente com base no ressentimento servil. “O essencial [...] é, segundo parece, diga-se mais uma vez, obedecer durante muito tempo e num único sentido; com isso sempre surge [...] com o tempo algo por que valha a pena viver na Terra” (Para além de bem e mal, 188). Ora, com efeito, Nietzsche considera esse estado de decadência não só superável, mas também o pressuposto necessário para que o homem cultive a vontade duradoura, as emoções fortes e a autoconfiança, mas atentemos bem: a fim de ser um fim em si mesmo, esse homem consumado, com sua natureza senhorial, aprofundada e individualizada, não deve de modo algum viver para seu egoísmo ingênuo, nem se desfazer dos preconceitos e grilhões de escravo, mas sim trans-

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formar-se no rebento de um gênero humano superior, sacrificando-se para o nascimento desse tipo, pois, como vimos, para Nietzsche, o ápice da evolução representava o declínio da humanidade, no que esta é apenas passagem para algo mais elevado, uma ponte, um meio. Portanto, quanto maior, quanto mais gênio, quanto mais ápice for um homem, tanto mais será também um fim, um auto-esbanjamento, um escoamento das últimas forças — “pronto a destruir na vitória!” (Assim falou Zaratustra, “De velhas e novas tábuas”, 30, II, 91). Só deve se transformar em “algo perfeito, em algo acabado, feliz, poderoso, triunfante” a fim de estar “pronto para o novo, para o mais difícil, para o mais distinto”, “como um arco que a necessidade torna cada vez mais tenso” (Genealogia da moral, I, 12), um arco cuja flecha aponta para o além-do-homem. Torna-se, assim, campo de batalha de impulsos opostos e combatentes entre si, a partir de cujas plenitudes dolorosas, exclusivamente, provém toda a evolução; de novo, nele se manifesta aquela mistura de desejo de dominar e dever de servir, um oprimindo o outro, mistura da qual, outrora, se formou toda a civilização e da qual, agora, deve se formar uma supercivilização como criação última e mais elevada. Não é um ser cheio de paz nem autocomplacente, mas um lutador e representa seu próprio declínio. Repete, portanto, em si mesmo e com base em sua personalidade completamente individualizada e seu espírito livre, exatamente omesmo que, outrora, através da opressão, agiu de fora para dentro sobre a humanidade como meio de educação imposto; nele reencontramos “essa secreta autoviolação, essa crueldade de artista, esse prazer de dar a si mesmo uma forma como se fosse a uma matéria difícil, relutante, pesada, esse prazer de marcar à fogo uma vontade, uma crítica, uma contradição, um desdém, um não, essa tarefa sinistra e terrivelmente prazerosa de uma alma deliberadamente discordante de si mesma e que se faz sofrer pelo prazer de fazer sofrer” (Genealogia da moral, II, 18). Pois é exatamente a alma mais perfeita e mais abrangente aquela que deve expressar em si mesma, de modo mais claro e irrevogável, a lei básica da vida que reza: “Sou aquilo que deve sempre se su-

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perar a si mesmo” (Assim falou Zaratustra, “Do superior a si mesmo”, II, 49). Não se deve ignorar o quanto Nietzsche apóia essas teorias na própria condição de sua alma, nem a força com que nelas espelha seu próprio ser, nem, por fim, como retira de suas mais profundas necessidades a lei básica da própria vida. Sua dolorosa “multiplicidade d'alma”, a violenta “cisão” de sua essência numa parte que se sacrifica e adora e noutra que domina e deifica, fundamentam a imagem global que Nietzsche faz da evolução da humanidade. Onde quer que fale da natureza dos senhores e dos escravos, precisamos ter em mente que fala de si mesmo, movido pela ânsia de uma natureza sofredora e desarmônica em busca de sua essência oposta e pelo desejo de poder erguer os olhos para esse contrário como se fosse para seu próprio deus. Descreve seu próprio eu ao falar que “o espírito do escravo ama os esconderijos, os desvios, as escapatórias, tudo quanto é oculto lhe parece seu mundo, sua segurança, seu bálsamo” (Genealogia da moral, 1, 10), e descreve seu reverso na natureza do senhor, altiva, alegre, instintivamente segura, despreocupada, ou seja, no homem ativo primitivo. Mas, ao fazer com que um seja o pressuposto do outro, ao tornar a humanidade como tal o palco onde esses dois opostos sempre se reencontram para se superar reciprocamente, ele os entende como graus de evolução dentro do mesmo ser que, historicamente enfocados, permanecem como opostos, mas, psicologicamente enfocados, mostram-se no indivíduo como uma cisão na essência do homem suscetível de desenvolvimento. Sua concepção da luta histórica entre a natureza de senhor e a de escravos não é, portanto, em sentido amplo, nada mais que uma ilustração grosseira daquilo que acontece no indivíduo superior: o cruel processo psíquico pelo qual deve se cindir em deus'sacrificador e vítima sacrificada. Só agora se pode fixar o significado real da noção de Nietzsche sobre a “transvaloração de todos os valores”, de todas as concepções usuais de moral e ideal, e como essa transvaloração se relaciona ao ideal ascético, que, para Nietzsche, resume todos os ideais religiosos e morais. Essa trans-

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valoração de valores começa, de fato, declarando guerra a toda ascese, começa com uma canonização de tudo quanto é “demasiado humano” no homem, que, até então, foi difamado e reprimido, porque o natural e o sensível estorvavam o supranatural e o supra-sensível, nos quais se acreditava como num fato dado e irrevogável. A filosofia do futuro de Nietzsche, porém, já não crê que exista uma além-de-humanidade dada; primeiro é preciso que ela seja criada pelo próprio homem, e para isso ele não dispõe de nenhum outro material além da força vital elementar da natureza, tal como ela é. Assim, já não se tratade volatizar este nosso mundo o mais integralmente possível, transformando-o num mundo-do-além mais elevado, mas sim de produzir a total plenitude desse mundo-do-além, de riquezas e esplendores jamais imaginados, a partir do âmago deste nosso mundo.é Por isso Nietzsche devolve aos impulsos desprezados, têmidos e maltratados, às paixões do homem “natural”, ainda não polido por moral alguma, seu direito de vida. Convicto de que não se trata de uma separação de forças boas e más, mas sim de um fortalecimento e de um aumento extremado da força vital em si, de modo que a vida possa realizar seu intento mais elevado a partir de si mesma, admite “que o pior que existe no homem é necessário ao que de melhor existe nele, e o que tem de pior é sua melhor força, e que a pedra mais dura cabe ao maior escultor, e que o homem deve se tornar ao mesmo tempo melhor e pior” (Assim falou Zaratustra, “O convalescente”, 2, III, 97). Como defensor da vida deve o homem esgotar-se, abandonar-se, dissipar-se em sua virtude; mas, ao chamar seu próprio eu de sua virtude, deve intensificá-la em si até uma plenitude de poder, que por fim o rompa como à um vaso apertado: ele só deve possuí-la a fim de ser possuído por ela. Àmedida que cresce para se tornar uma fonte descomedida de poder, essa plenitude por fim devora a ele e à sua vontade individual no ardor e na sensação do todo; ele a vê transformar-se na ponte por onde avança rumo ao próprio declínio: “O homem é algo a ser superado, e, por isso, deves amar tuas virtudes, pois perecerás por elas” (Assim falou Zaratustra, “Das alegrias

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e das paixões”, 1, 47). “Amo aquele cuja alma esteja repleta de forma que se esqueça de si mesmo e que todas as coisas estejam dentro dele; assim, todas as coisas se transformam em seu declínio” (Assim falou Zaratustra, “O prólogo de Zaratustra”, 4, 1, 14). Aqui, por mais sinônimas que, à primeira vista, possam parecer a enérgica vivência egoística e a virtude, permanecem, na verdade, profundamente distintas uma da outra. O certo é que a diferença de valor entre as forças e qualidades humanas, que toda moral compreende qualitativamente, está no fundo totalmente transferida para o quantitativo, mas a devoção voluntária e apaixonada a esse aumento de forças destruidoras do eu encerra em si mesmo nada menos que uma diferença de valor da mentalidade. Nietzsche acentua o que é reprovável nas mentalidades, ou seja: o mal não é o maior inimigo do homem, mas sim “[...] quão ínfimo é o que ele tem de pior! Ah! Quão ínfimo é o que ele tem de melhor!” (Assim falou Zaratustra, “O convalescente”, 2, ITI, 97). O descomedimento é o caminho para o além-do-humano, que é, por isso, precedido pelo clamor: “Onde está o raio que os lamberá com sua língua? Onde está a loucura pela qual devereis ser inoculados? Vede, ensino a vós o além-do-homem, que é este raio, esta loucura!” (Assim falou Zaratustra, “O prólogo de Zaratustra”, 3,1 1D. Por isso, não devemos confundir o caminho escolhido por Nietzsche para alcançar sua meta ideal com a própria meta; considera o domínio dos “instintos temíveis” apenas um meio de que precisa para sua finalidade suprema. Injusta e equivocadamente, acusaram-no de dotar seu “além-do-homem” com os traços, não de um Jesus, mas de um Cesare Borgia, ou ainda com os de um além-do-homem depravado. O “inumano”, na verdade, não é nenhum modelo do “além-do-homem”, mas . apenas pedestal; representa, por assim dizer, o tosço bloco de granito necessário para aí erguermos a estátua de um deus. E essa divina estátua do ideal do além-do-homem, em essência, não é apenas distinta do inumano, mas diretamente oposta a ele. Com isso, o contraste é sentido tão aguda e profundamente

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como não ocorre na moral ascética. Toda moral se esforça apenas por melhorar e embelezar o humano, enquanto Nietzsche parte do princípio de que uma espécie inteiramente nova, uma super-espécie, deve ser criada. O que, até agora, se considerava transição do inferior para o superior, conservando-se O caracteristicamente humano no modelo ideal, é entendido por Nietzsche como ruptura completa, como luta de forças hostis; o que, até então, era apenas uma diferença de grau entre o homem. “natural” e o “moral” dentro de uma humanidade comum a ambos, torna-se em Nietzsche, de modo absoluto, uma oposição de essências entre o homem natural eo além-do-homem. Pode-se dizer, portanto: quando analisamos o caminho moral seguido por Nietzsche, vemos que, para ele, indica o rumo antiascético, não se assemelhando à trilha Íngreme e pedregosa da auto-renúncia, mas sim conduzindo ao âmago de selvas tropicais da auto-indulgência sem preocupações. Se, por outro lado, examinarmos mais acuradamente o objetivo moral de Nietzsche, veremos que se manifesta como uma natureza completamente ascética, almejando não só elevar ohomem, mas também excedê-lo completamente; não só purificá-lo, mas também extingui-lo completamente. Assim, por um lado, Nietzsche combate a moral corriqueira por seu caráter básico de ascetismo, por seu menosprezo e condenação dos apetites subumanos, aos quais atribui valor tão alto por considerá-los fontes de poder; mas, por outro lado, combate a moral vigente com não menos veemência no que ela não lhe parece suficientemente ascética. Fundamentalmente se dirige contra sua crença otimista, segundo a qual, por meio de determinadas purificações, o homem pode se aproximar de um objetivo ideal; pois, na opinião de Nietzsche, o homem não é capaz de atingir esse ponto, e, portanto, todo o assim chamado enobrecimento repousa tão-somente sobre um puro enfraquecimento das forças vitais elementares. “Outrora vi ambos nus, o maior e o menor dos homens: demasiado iguais um e outro, demasiado humano mesmo o maior deles!” (Assim falou Zaratustra, “O convalescente”, 2, III, 98). A tentativa de toda moral em equiparar a essência humana a um ideal produz apenas uma falsificação irreal às custas de suas forças

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reais, e toda transformação moral é, portanto, apenas uma espécie de camuflagem estética da essência humana debilitada, mas, de outro modo, completamente inalterada., “Como? Um grande homem? Sempre vejo apenas o ator de seu próprio ideal” (Para além de bem e mal, 97). “Busquei grandes homens; sempre achei apenas os macacos imitadores de seu ideal” (Crepúsculo dos ídolos, 1, 39). Dessa concepção pessimista do humano brota o caráter extremamente ascético contido na meta ideal da filosofia de Nietzsche, que só é acessível no conceito do declínio do homem. E esse caráter, daqui em diante, mostra-se tanto mais extremado quanto mais radical for o empenho de Nietzsche em negar e eliminar todo ascetismo. Quanto maior a exclusividade com que exija, no começo, a intensificação da força egoísta, tanto mais monstruosa surge, ao final do desenvolvimento, a exigência de renunciar ao próprio eu, de modo a criar espaço para o além-do-homem. Se, no começo, se diz: “O homem é algo que se deve tornar mau, selvagem e cruel”, no final se dirá: “O homem é algo que deve ser superado”, enfim, toda a crueldade e selvageria alcançadas só existem para que se dirijam contra o homem e para que o eliminem. Assim, em duas partes inconciliáveis se divide a ética de Nietzsche, que ele resume num mandamento, na primeira e única lei moral gravada em sua tábua de valores: “Tornai-vos duros!” (Assim falou Zaratustra, “De velhas e novas tábuas”, 29, III, 90 e Crepúsculo dos ídolos, final). Nessas palavras se vê a dupla face da moral nietzschiana, com seus traços cheios de crueldade tirânica e de renúncia ascética. Pois “tornar-se duro” significa, às vezes, resistir a todas as manifestações brandas e benevolentes, significa petrificar-se no egoísmo da auto-satisfação. Em suma: dureza contra os outros, disposição para exercer o poder autoritário. Outras vezes, porém, significa dureza do homem contra si mesmo, como se fosse contra o que declina, que deve ser triturado. Ou significa ainda: “a dureza vos enobrece do mesmo modo que enobrece a pedra a partir da qual o artista quer fabricar uma sublime obra de arte. Tudo podeis, exceto uma coisa: descer, desmoronar du-

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rante vosso trabalho, senão toda a vossa humanidade, por mais alta que seja aos olhos da velha moral, serve apenas para o monte de lixo que se deita fora; é detrito e material estragado”. Tal determinação rejeita, acima de tudo, a moleza tímida, o escrúpulo hesitante frente ao terrível, ao decisivo. Pois, assim canta Zaratustra, o criador do fuíuro: “[...] rumo ao homem continuamente me impele minha apaixonada vontade de criar; assim é impelido o martelo para a pedra. Ah, homens, para mim, uma imagem dorme na pedra, a imagem de minhas imagens. Ah, que tenha de dormir na pedra mais dura, mais feia! Agora meu martelo se enfurece cruelmente contra sua prisão. A pedra se pulveriza. Que tenho a ver com isso?” (Assim falou Zaratustra, “Nas ilhas bem-aventuradas”, II, 8) Com isso, estamos diante do enigma e do mistério na doutrina de Nietzsche, diante da questão: Como é possível o surgimento do além-do-humano a partir do inumano, se ambos devem ser pensados como opostos irreconciliáveis? A resposta a essa questão faz lembrar involuntariamente uma velha prescrição moral que diz aproximadamente o seguinte: “Para se livrar de uma falta, ohomem deve render-se a ela e exagerá-la tanto que, devido a seu exagero e a seu excesso, ela produza um efeito desanimador”. A prescrição moral que Nietzsche escreveu para a humanidade, pois não conhecia para si mesmo outra mais segura, possui certa semelhança com isso. Queria, de fato, mediante o desencadeamento de todos os impulsos mais selvagens, levar ohomem a um estado, onde, exagerando a auto-satisfação egoística, esta se transformasse num sofrimento do homem em si mesmo. AÀtortura de tal sofrimento deveria então fazer crescer uma ânsia ilimitada e irresistível por sua própria condição contrária — a ânsia do forte, do imoderado, do impetuoso, pelo delicado, pelo moderado, pelo suave; a ânsia da fealdade e dos apetites sombrios pela beleza e pureza clara; a ânsia do homem atormentado e tomado por seus impulsos selvagens por seu deus. Nietzsche considerava possível que, a partir dessa disposição de espírito, o respectivo estado contrário poderia, efetivamente, irromper através da exacerbação de uma emoção. Assim, o generoso lhe aparece “como

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um homem cheio de extrema sede de vingança, que vê uma possível satisfação bem perto de si e que, já na imaginação, a esgota tão fartamente, tão profundamente e até a última gota, que a essa rápida extravagância se segue um fastio extraordinariamente mais rápido; doravante, ele se eleva “acima de si mesmo', como se diz, e perdoa seu inimigo e chega mesmo a abençoá-lo e honrá-lo. Com essa violação de si mesmo, com esse escárnio de seu instinto de vingança ainda tão potente, ele só faz ceder a esse novo impulso” (A gaia ciência, 49). Porém, a condição básica para semeihante representação de um além-do-humano aparente, através do próprio eu, é que este conserve a força selvagem de seus terríveis excessos, que não a enfraqueça, não a refreie, não a modere, não a “purifique”, a fim de capturar os antagonismos de sua tensão dolorosa. Quanto mais alto quiser se elevar rumo às mais delicadas florescências do belo e do divino, tanto mais profundamente deverá fincar na terra escura, em seu inumano e subumano, as raízes de sua força. Desse modo, sem dúvida, o além-do-homem gerado pelo homem se torna a representação de uma pura ilusão divina, por assim dizer, de um instantâneo, e não de sua essência real — mas só dessa forma ele é enfim realizável. Desde que nenhuma evolução gradual, nenhuma transição aproxime os opostos, desde-que estes se produzam e se condicionem justamente graças a seu antagonismo, persistirá eternamente entre eles um abismo insuperável: de um lado, a realidade das pulsões humanas elevadas até o terrível e revolvidas até o caótico; de outro, uma pura ilusão, um sutil reflexo, por assim dizer uma máscara divina, que não possui nenhuma realidade independente. E portanto, contra essa teoria de Nietzsche, se pode lançar ostensivamente a mesma censura que ele faz à concepção moral corriqueira, ou seja, que basta ao homem assemelhar-se a um modelo ideal proposto: a censura de que se obtém apenas um disfarce estético, enão uma transformação radical; de que, portanto, o homem se degrada como mero “ator de seu próprio ideal”. Encontramos aqui exatamente o mesmo fenômeno que nos surpreendeu na atitude de Nietzsche diante do ascetismo; o que Nietzsche em princípio parece com-

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bater acaba, por fim, incorporado fundamentalmente às suas próprias teorias — mas só nas conseqgiiências últimas e nos sentidos extremos. Aquilo que, a seu modo, rejeita mais firmemente como meio de alcançar um objetivo, incorpora então à sua finalidade, a seu objetivo. Sim, podemos com segurança admitir que, onde quer que Nietzsche, com ódio especial, persiga e degrade alguma coisa, esta se encontra profundamente arraigada em sua própria filosofia ou vida. Isso vale tanto para pessoas quanto para teorias. Nesses casos, na maioria das vezes, o próprio Nietzsche confessa que o objeto por ele combatido teve uma espécie de valor como elemento de desenvolvimento de sua nova concepção. No caso precedente, declara que o homem paulatinamente adquiriu sua capacidade de representar o além-do-homem graças ao próprio desenvolvimento dentro da moral, da arte e da religião vigentes. Só por lhe ter permitido acreditar na possibilidade de enobrecer sua essência, a religião lhe ensinou a “se tornar [...] arte, superfície e jogo de cores [...] tão bem que seu aspecto já não faz sofrer” (Para além de bem e mal, 59); ela “nos ensinou a avaliação do herói oculto em todo homem ordinário e a arte de como nos considerarmos heróis a partir da distância e, por assim dizer, de modo simplificado e transfigurado; a arte de nos “pormos em cena' diante de nós mesmos. Só assim passamos por cima de algumas particularidades mesquinhas em nós mesmos” (A gaia ciência, 78). Assim, a diferença entre o homem comum e aquele ambicionado por Nietzsche consiste em que o último não se abandona à crença de ter a essência modificada com o desenvolvimento de seus traços morais, artísticos e religiosos; permanece ciente de que só pode fazer surgir o ideal se, por assim dizer,.criar como poeta ou ator. Mas só chega a esse vislumbre após ter alcançado a medida de força pressuposta por Nietzsche, após ter se tornado “forte o bastante, duro o bastante, artista o bastante”. De outro modo, não suportaria a verdade de que sua essência é inalterável, de que seu ideal além-do-humano não passa de uma miragem, de que sua elevada obra moral é apenas uma obra de arte.

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Assim devemos entender Nietzsche quando diz: “[...] poderíamos incluir os homines religiosi entre os artistas, como sua categoria mais elevada” (Para além de bem e mal, 59). Pois, é do princípio artístico que fluem as vívidas e elevadas distinções de valor éticas e religiosas, e o Para além de bem e mal de Nietzsche, tanto quanto seu “Para além de verdadeiro e falso”, pára diante do “para além de belo e feio”, não avançando nesse campo. O além-do-homem só é possível ecompreensível como obra-de-arte do homem. E, se quisermos ter uma imagem dessa obra-de-arte, talvez não exista nenhuma melhor do que a usada por Nietzsche em seu Nascimento da tragédia a partir do espírito da música, onde fala da relação dionisíaca e apolínea na criação artística. Nesse livro, compara as visões dionisíacas, que se originam da vitalidade orgiástica do dionisíaco, àquele conhecido fenômeno ótico, no qual, ao fixarmos plenamente o globo incandescente do sol, se produzem diante de nossos olhos ofuscados manchas de cor escura, como se fossem um bálsamo, usando, contudo, um aspecto inverso deste fenômeno, ou seja: se mergulhamos na dolorosa escuridão dos excessos desenfreados, nas forças primitivas que se devoram, surge diante de nós, como efeito curativo, uma delicada e radiosa do além-do-humano. E tal como na tragédia grega, à qual Nietzsche aplica sua alegoria, onde as projeções apolíneas, ou seja, as formas heróicas do teatro grego, eram no fundo apenas máscaras do único deus Dioniso, também essa imagem do além-do-homem, produzida pelos excessos do ímpeto criativo, no fundo corporifica apenas uma ilusão divina, um símbolo artístico. Por trás, abissalmente profundo e em “trevas “púrpuras”, repousa o próprio ser dionisíaco, o poder elementar da vida, da qual carece continuamente para sua própria criação. Vemos assim que, na filosofia de Nietzsche, a ética desemboca imperceptivelmente na estética, numa espécie de estética religiosa, e que a doutrina do bem é possibilitada pela divindade do belo. A sutil fronteira onde a aparência deve se casar com a realidade a fim de criar o ideal torna o mundo do belo e sua ilusão o “autêntico seio materno dos acontecimentos ideais e imaginários”, que são mais fortemente impul-

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sionados por permanecerem eternamente irrealizáveis e por não poder o desejo lhes emprestar nenhuma verdade e realidade substancial. É omesmo estado descrito por Nietzsche ao falar de uma artista que ganha mais “com sua incapacidade do que com sua abundante força. [...] em sua alma restou uma lascívia enorme por essa visão, e daí retira sua igualmente enorme eloqiiência do desejo e da fome” (A gaia ciência, 79). Devemos, portanto, conceber a formação da aparência alémda-humana, do mistério da auto-renúncia e da auto-extinção repentinas, desse fundamento ascético onde desemboca a ética de Nietzsche, como um fenômeno estético, como um mergulho tão profundo nos tormentos dos excessos que desse mergulho, como uma visão contemplada e modelada, brota a ânsia pelo contrário. “[...] de ninguém quero beleza tanto quanto justamente de ti, 6 poderoso”, é dito sobre o homem forte e carregado de poderosas emoções, “mas justamente para o herói, de todas as coisas, a beleza é mais difícil. [...] E este o mistério da alma: só quando o herói a abandona, dela se aproxima, em sonho — o além-do-herói” (além-dohomem) (Assim falou Zaratustra, “Dos seres sublimes”, , 54). Então, em seu sonho ditoso, ela balbucia: “[...] uma sombra veio a mim — a mais silenciosa e a mais elevada das coisas veio a mim! A beleza do além-do-homem veio a mim como uma sombra!” (Assim falou Zaratustra, “Nas ilhas bem-aventuradas”, II, 8). Pois “tudo quanto é divino corre com pés delicados!” — “O que seria, pois, belo se, antes, essa contradição não houvesse ganho consciência de si mesma, se o feio não houvesse dito a si mesmo: — sou feio —?” Na fealdade desse excesso caótico, no limite do qual ohomem deve desatar suas forças mais selvagens, ele por fim condena a si mesmo, como se q fizesse ao essencialmente feio. “Aqui se evidencia um ódio: [...] Ele odeia com o mais profundo instinto da espécie; nesse ódio existe arrepio, precaução, profundidade, visão panorâmica — é o ódio mais profundo que existe. Por causa dele é a arte profunda [...]” (Crepúsculo dos ídolos, IX, 20). E profunda porque, através desse ódio, ensina ao homem a ânsia ilimitada pela beleza e assim torna possível a produção da ilusão estética a partir do desencadeamento dos excessos

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do ser real; é profunda porque desperta um ímpeto enorme de idealização e estimula, através da visão da beleza, a vontade do homem para a “reprodução”, de modo que, num entusiasmo apaixonado, ele se une ao oposto de sua própria essência. Assim, a força desenfreada se intensifica até o excesso para transbordar num estado de embriaguez, condição para criação do belo. “O essencial na embriaguez é sentir a intensificação da força e da plenitude. A partir desse sentimento, cedemos às coisas, as forçamos a receber de nós, as violentamos; chamamos esse processo de idealização” (Crepúsculo dos ídolos, IX, 8). “Nesse estado enriquecemos tudo com nossa própria abundância; aquilo que vemos, aquilo que queremos, vemos inchado, apinhado, robusto, carregado de força. Nesse estado, o homem transforma as coisas até que lhe reflitam seu próprio poder. [...] Esse dever de transformar na coisa perfeita é [...] arte” (ibidem, IX, 9). Se a ética de Nietzsche traz um caráter predominantemente estetizante, no sentido que a transformação para o perfeito produz apenas uma bela aparência, sua estética, em compensação, se aproxima intensamente do simbolismo religioso, uma vez que se origina do ímpeto de divinizar os homens e as coisas, de dissolvê-los no divino a fim de suportá-los. Sobre esse processo psíquico, Nietzsche não só elaborou uma teoria, insinuando-a em aforismos dispersos, mas fez também a tentativa de criar a obra pioneira e fundamental, onde, pela primeira vez, se consuma o sublime ato criativo do homem: a criação do além-do-homem. Essa obra é seu poema Assim falou Zaratustra. Àpersonagem Zaratustra, como autotransfiguração de Nietzsche, como reflexo e transformação da plenitude de sua essência numa imagem divina, deve prover uma analogia perfeita à origem por ele sonhada do além-do-homem a partir do humano. Zaratustra é, por assim dizer, o além-do-homem de Nietzsche, é o “além-de-Nietzsche”. Em conseqiiência, essa obra apresenta um ilusório duplo caráter; é, por um lado, um poema no sentido puramente estético e, como tal, pode ser julgado e compreendido de um ponto de vista puramente estético; por outro, porém, pretende ser apenas um poema no sen-

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tido místico, no sentido de um ato de criação religiosa, no qual a suprema pretensão da ética nietzschiana pela primeira vez se cumpre plenamente. Assim se explica por que a obra de Zaratustra permaneceu a mais incompreendida entre os livros de Nietzsche, ainda mais por, em geral, considerarem-na uma popularização em forma poética daquilo que os demais escritos de Nietzsche apresentam numa forma rigorosamente filosófica. Na verdade, porém, é entre suas obras a menos dirigida ao público; pois, se jamais houve em Nietzsche uma filosofia “esotérica”, que a ninguém devesse ser totalmente acessível, aqui a encontramos, e, diante de Zaratustra, tudo o mais que escreveu se enquadra na parte mais exotérica de sua doutrina. Por conseguinte, a mais profunda compreensão do Zaratustra se infere menos da filosofia de Nietzsche do que de sua psicologia, ao investigarmos os móveis psíquicos ocultos que condicionam os conceitos éticos e religiosos de Nietzsche e fundamentam seu estranho misticismo. Percebemos, então, que todas as teorias de Nietzsche afluíram da necessidade de sua própria auto-redenção, do anseio de prover sua agitada e sofredora vida interior com aquele amparo que o crente encontra junto a Deus. Esse poderoso desejo e exigência foi por fim satisfeito: criou Deus ou um super-ser divino, no qual a imagem reversa de seu próprio ser foi trivializada e transfigurada. Com isso, a forma dupla que Nietzsche deu a si mesmo e na qual se via como um “duplo” está encarnada em seu Zaratustra; aí caminha, por assim dizer, com os próprios pés. Em algumas passagens do poema, vislumbra-se, de modo singular, a confissão secreta de que o próprio Zaratustra não tem essência real, de que é apenas criação poética, ou mesmo poeta ou fingidor: “[...] o que te disse outrora Zaratustra? Que os poetas mentem demais? Ora, o próprio Zaratustra é poeta” (Assim falou Zaratustra, “Dos poetas”, II, 68). Contudo, na concepção nietzschiana do ideal supremo, já encontramos que a aparência tem direito a se manifestar como ser e realidade, emesmo que toda verdade suprema consiste no efeito ilusório sobre as demais. Na transformação mística de sua essência, busca o homem transformar-se totalmente numa miragem que seduza,

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que desperte anseios e que eduque, e à qual nada denatureza elevada possa resistir. Para ele valem as palavras: “Quem é radicalmente professor só leva a sério as coisas em relação a seus alunos, mesmo sua própria pessoa” (Para além de bem e mal, 63). Com isso, se dá conscientemente uma justificativa à “sagrada ilusão”, e não é em vão que o problema da pia fraus foi o que Nietzsche mais demorada e profundamente perseguiu. Também a honestidade, como virtude relativamente tardia do homem moderno, deve o grande “extemporâneo”, que dispõe livremente das virtudes de todas as culturas, superar em si mesmo, em defesa de seus objetivos, que não suportam uma débil consciência. Em ÀAgaia ciência já se lê de modo significativo: “Com fregiiência, a honestidade impõe remorsos à consciência daquele que é agora inflexível, pois a inflexibilidade é virtude de época diversa da época da honestidade” (159). Mas o corcunda inteligente, que ouve Zaratustra e lê seus pensamentos, lhe diz: “[...] por que fala Zaratustra a seus discípulos de modo diferente do que fala a si mesmo?” (“Da redenção”, H, 91). E o próprio Zaratustra lhes grita:-“Na verdade, eu vos aconselho: afastai-vos de mim e defendei-vos de Zaratustra! Ou melhor ainda: envergonhai-vos dele! Talvez ele vos tenha enganado. [...] Vós me venerais, e se um dia vossa veneração desmoronar? Cuidai para que uma estátua não vos fulmine!” (“Da virtude dadivosa”, 3, 1, ID. Contudo, quanto mais completamente a verdade e a realidade desapareciam nessa direção, quanto mais conscientemente o ideal se lhe afigurava ilusório, tanto maior era o desejo de Nietzsche de conceder a esse ideal uma verdade no sentido religioso, de transformá-lo numa autodeificação mística. E vemos aqui como seu pensamento descreve um estranho círculo aoredor de si mesmo: a fim de escapar à autodestruição ascética de toda moral, Nietzsche reduz o fenômeno moral a um fenômeno estético, no qual a natureza básica do homem perdura inalterada ao lado de sua luminosidade estética; porém, a fim de emprestar um significado positivo a essa luminosidade, eleVva-a aos planos místico e religioso, e, então, a fim de pôr em

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cena esse contraste luminoso, é forçado a pintar a verdadeira natureza humana com as tintas mais escuras e sofridas possíveis. Para que essa supercriatura redentora se tornasse fidedigna, os contrastes deveriam ser reforçados o mais intensamente possível, e essa supercriatura deveria ser tanto quanto possível diferenciada do ser humano natural. Toda transição conciliadora teria destruído a ilusão mística e devolvido o homem à sua própria condição; a supercriatura teria então se tornado apenas uma evolução de si mesma. Numdos lados — o humano —, as sombras deveriam ser aprofundadas na mesma medida que no outro — o além-dó-humano — a luz deveria ser destacçada,de modo que se reforçasse a crença de que ambos são de naturezas distintas. Assim nasceu a doutrina segundo a qual, para a criação do além-do-humano, é necessário o inumano e que, aperas do excesso dos apetites mais selvagens, nasce o vil anseio por seu próprio oposto. Contra essa teogonia mística é possível dirigir amesma censura que Nietzsche fez à teogonia cristã e ascética;, nela, seria da vontade do homem “erigir um ideal [...] a fim de, na presença desse ideal, se conscientizar palpavelmente de sua própria absoluta indignidade”. Diz em seguida: “Tudo isso é interessante até demais, mas também de uma tristeza sombria, escura, enervante [...] Não há dúvida de que encontramos aqui uma doença, a mais terrível que já arrasou a humanidade: — e quem é ainda capaz de ouvir [...] que nessa noite de tortura e contra-senso soou o grito do amor, o grito do mais sequioso arrebatamento, da redenção no amor, se desvia tomado por um horror invencível. [...] No homem há tanto de horrendo!...” (Genealogia da moral, , 22). Esse traço de ascetismo e misticismo, que, em meio à luta contra o ascético e o místico, prova ser tão forte quanto o fundamento secreto da filosofia de Nietzsche, mostra o mais nitidamente possível o retorno à sua primeira concepção de mundo filosófica: a metafísica de Schopenhauer e Wagner. Mas, por princípio, opondo-se a toda mística e toda ascese contemporâneas, Nietzsche cede, não menos , à influência que o empirismo e a teoria positivista exerceram sobre ele — e

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assim aqui também se destacam claramente as duas linhas básicas de sua última filosofia. O sentido místico e ascético conferido ao estético em seu sistema não é menor do que no sistema de Schopenhauer; em ambos, esse sentido coincide com a vivência ética e religiosa mais profunda, e não é por acaso que, a fim de esclarecê-lo, Nietzsche retoma idéias e imagens de seu O nascimento da tragédia. Em Schopenhauer, porém, a contemplação estética é entendida como uma visão mística que penetra o fundo metafísico das coisas, que penetra a essência das “coisas em si”, e por isso pressupõe o apaziguamento de toda a vida psíquica, por assim dizer, o desprendimento de tudo quanto é mundano. Ao contrário, na filosofia de Nietzsche, onde falta o fundo metafísico e para a qual a questão é criar, em troca, um sucedâneo em meio à superabundância das forças vitais humanas, o pressuposto psíquico é justamente o oposto: o belo deve estimular ao máximo a vida volitiva, deve desencadear todas as forças, “tornar o homem ardente e atraí-lo para a geração”, pois não se trata da revelação metafísica de algo de existência eterna, mas sim da criação mística de algo não existente; assim, o “místico” em Nietzsche é sempre uma força vital elevada que penetra o monstruoso e, em conseqiiência, o além-do-humano. Mas, exatamente como em Schopenhauer o supramundano resulta do aniquilamento ascético do mundano, em Nietzsche o transbordamento de vida místico só é possível como conseqiiência da ruína de tudo quanto é humano através do descomedimento. E aqui encontramos o principal ponto de contato das duas concepções: ambas penetram a beatitude de suas místicas através do trágico. “O nascimento da tragédia a partir do espírito da música”” transformou-se nc nascimento da tragédia a partir do espírito da vida. A vida, como “aquilo que deve sempre se superar a si mesmo”, exige continuamente a destruição como condição básica para criações sempre mais elevadas. O que parece trágico do ponto de vista daquele que está destinado a tal destruição é sentido como a bem-aventurança de uma plenitude vital inesgotável do ponto de vista da própria vida ou

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daquele que se identifica com ela, que vence a si mesmo à medida que a eleva em si mesmo até o descomedimento. Essa concepção alterada do trágico se mostra de modo característico em Crepúsculo dos ídolos, onde, mais uma vez, Nietzsche discute seu velho problema do “nascimento da tragédia”, o significado dos mistérios dionisíacos e do sentimento trágico dos gregos. Originalmente, as orgias dionisífacas simbolizavam para ele o meio de liberar as emoções, através do qual se produzia a paz interior necessária à contemplação das imagens apolíneas; agora, representam o ato criador da própria vida, que precisa da fúria e da dor para formar o luminoso e o divino.º Originalmente, representavam para ele um testemunho da natureza — na acepção de Schopenhauer — profundamente pessimista dos gregos, pois, no orgiástico, os elementos mais interiores da vida se revelavam como a escuridão, a dor e o caos; agora lhe parecem o instinto sedento de vida dos gregos que só no excesso poderia bastar-se e que se regozijava, contudo, na morte e no caos da inesgotabilidade triunfante da vida: “L...] nos mistérios dionisíacos [...] se expressa o fator básico do instinto helênico: sua “vontade de vida'. O que os helenos garantiam para si com esses mistérios? A vida eterna, o eterno retorno da vida; o futuro prometido e consagrado no passado; o sim triunfante à vida superando a morte e à mudança; [...] na doutrina dos mistérios fala-se da dor como sagrada: as “dores da parturiente* santificam a dor como tal e Para que exista o eterno prazer de criar, para que a vontade de vida se afirme eternamente, é preciso também que existam eternamente o “tormento da parturiente'[...]. Tudo isso significa a palavra Dioniso [...]” (Crepúsculo dos ídolos, X, 4). “Que toda beleza estimula a reprodução” — esse é o elemento religioso na arte, pois a arte nos ensina a criar o perfeito. A arte mais 'elevada, Ou seja, a mais religiosa, é a trágica, pois nela o artista cria o horror a partir do belo. “O que o artista trágico comunica de si mesmo? Não será justamente o estado sem medo diante do horroroso e duvidoso? [...] A bravura e a liberdade do sentimento diante de um poderoso inimigo, diante

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de uma desventura sublime, diante de um problema que produz horror — esse estado vitorioso é aquele que o artista trágico escolhe, aquele que glorifica. Diante da tragédia, o belicoso em nossa alma festeja suas saturnais; quem está habituado ao sofrimento, quem procura o sofrimento, o homem heróico, exalta sua existência com a tragédia — somente a ele oferece o artista trágico a bebida dessa crueldade dulcíssima” (IX, 24). “A psicologia do orgiástico como um sentimento transbordante de vida e de força, dentro do qual a própria dor atua como estimulante, deu-me a chave para o conceito do sentimento trágico [...]. O conformar-se à vida, mesmo em seus problemas mais estranhos e mais duros; a vontade de vida, regozijando-se de sua própria inesgotabilidade no sacrifício de seus tipos mais elevados — isso chamei de dionisíaco, nisso adivinhei a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para nos livrarmos do espanto e da compaixão, [...] mas sim para, além do espanto e da compaixão, sermos nós mesmos o eterno prazer do devir — aquele prazer que também encerra em si o prazer na destruição [...]” (X, 5). Essa concepção do trágico e do sentimento de vida condicionado por esse mesmo trágico possibilitou a Nietzsche, por ocasião de seu retorno à filosofia schopenhaueriana do pessimismo e da ascese, criar sua doutrina mais alegre — a do eterno retorno das coisas. O sistema de Nietzsche, filosófica e psicologicamente, exigia tanto uma base ascética quanto seu contrário, a apoteose de vida, pois, na falta de uma crença metafísica, nada havia que pudesse ser glorificado e endeusado a não ser a própria vida sofredora e dolorosa. A doutrina de Nietzsche sobre o etemo retorno nunca foi suficientemente acentuada e apreciada, embora, de certo modo, em sua construção intelectual, ela constituísse tanto a base quanto a corToação; além de ser a idéia da qual partiu para conceber sua filosofia do futuro e com a qual a concluiu. Se somente aqui ela aparece pela primeira vez, é porque não é compreensível senão no contexto global e porque, de fato, a lógica, a ética ea estética de Nietzsche devem valer como elementos construtivos da doutrina do retorno. Essa idéia sobre um possível

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regresso das coisas no eterno ciclo do ser já fora expressa por Nietzsche conjeturalmente no penúltimo aforismo de À gaia ciência (341), “O maior de todos os pesos”: “E se, um dia ou uma noite, um demônio te seguisse às ocultas até a mais solitária de tuas solidões e te dissesse: “Esta vida tal como a vives agora e tal como a tens vivido deverás ainda viver uma vêz mais e ainda incontáveis vezes; e nela não haverá nada de novo; ao contrário, toda dor e todo prazer, todo pensamento e todo suspiro, toda indizível pequenez e grandeza de tua vida, deverão tornar a ti, e tudo na mesma ordem e com a mesma conseqiiência; e igualmente essa aranha e essa lua entre as árvores, e igualmente este instante e eu mesmo. A eterna ampulheta da existência será continuamente invertida e tu junto com ela, pozinho do pó!º. Não te atirarias ao chão, rangendo os dentes de raiva e maldizendo o demônio que assim falasse? Ou terás já vivido um momento grandioso em que lhe responderia: “És um deus e nunca ouvi coisa mais divina!º. Se tal pensamento ganhasse poder sobre t1, te transformaria a ti como és, e talvez reduzisse a pó; em tudo, a pergunta “queres isto ainda uma vez e incontáveis vezes? pesaria sobre tuas ações como o maior de todos os pesos! Ou quanto terias de te amar a ti mesmo e à vida para nada mais desejar a não ser essa derradeira e eterna confirmação e ratificação?”. Aqui sobressai nitidamente o pensamento básico, quase mais nítida e cruamente que em qualquer outra obra posterior, pois Nietzsche não suportou calar totalmente aquilo que preenchia e agitava seu espírito. Falar, porém, dessa nova descoberta comovia tanto a Nietzsche que ele insinuou sua idéia do eterno retorno de modo bastante dissimulado, como se fosse um incidente inofensivo entre outros incidentes, de modo que, quando se lê por alto, não se percebe a conexão com a séria consideração final “Incipit tragoedia” — “tão secretamente que o mundo inteiro não a ouça, que o mundo inteiro não nos ouça!” (Prefácio introdutório à nova edição de Aurora, 5). Assim paira essa idéia no meio das demais, como à mais velada entre as veladas, e, apesar de todas as profundas agitações psíquicas, era com o jogo astutode disfarces, de ocultar alguma

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coisa o melhor possível de modo que à vejamos nua e cruamente, que se comprazia o espírito de Nietzsche, tão rico em mistérios e tão animado por eles. De fato, já então, Nietzsche contemplava essa idéia como uma fatalidade inevitável que queria “transformá-lo e triturálo”; lutou para conseguir a coragem de confessá-la a si mesmo e aos homens como uma verdade irrefutável em todo o seu alcance. É inesquecível omomento em que ele a revelou para mim pela primeira vez como um segredo, como algo cuja confirmação lhe reservava um horror indizível; só falava dela em voz baixa e com todos os sinais do mais profundo terror. E, de fato, sofria tão profundamente com a própria vida que a certeza do eterno retorno da vida deveria ter para ele um quê de medonho. A quintessência da doutrina do eterno retorno, a radiante apoteose da vida, posteriormente estabelecida por Nietzsche, é tão profundamente antagônico o seu sentimento torturante da vida que nos parece uma máscara sinistra. Tornar-se arauto de uma doutrina que só é suportável na medida em que prevalece o amor pela vida, que só age de modo sublime quando o pensamento do lomem se eleva até uma divinização da vida, deveria na verdade formar um contraste terrível com seu sentimento interior, contraste que por fim o esmagou. Tudo quanto Nietzsche pensou, sentiu e viveu desde a origem da idéia do eterno retorno, brota desse último dilema Íntimo, oscila entre “o maldizer, rangendo os dentes de raiva, o demônio da eternidade da vida” e a expectativa daquele “momento grandioso” que daria força às palavras: “és um deus e nunca ouvi coisa 'mais divina”. Quanto mais Nietzsche se elevou como filósofo à plena exaltação da vida, tanto mais profundamente sofreu como homem com a própria doutrina da vida. Essa luta psíquica, verdadeira fonte de toda a sua filosofia final e que seus livros e palavras só deixam adivinhar imperfeitamente, se distingue talvez de modo mais comovente na música que compôs para meu “Hino à vida”, no verão de 1882, quando estivemos juntos na Turíngia, perto de Dornburg. No meio de seu trabalho de composição, foi interrompido por um de seus ataques patoló-

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gicos, e, continuamente, “deus” se tornava para ele “demônio”, o entusiasmo pela vida o tormento da vida. “De cama. Ataque violentíssimo. Desprezo a vida.” Assim foi uma das notas que me mandou quando esteve preso ao leito. E amesma disposição de espírito se expressa numa carta que escreveu logo após a conclusão da composição: MinhaqueridaLou, Tudo quantovocême comunicame fazmuitobem. Aliás,precisode algumacoisade benfazejo. Meu críticode artede Venezaescreveu-meuma cartasobreminha músicaparaseupoema;a cartasegueanexa.Você terásuasreservas a aceitara vida.Tenho paracomela.Sempreme custamuitodecidir-me coisasdemaisà minhafrente,sobremim, atrásde mim [...] Avante[...] e paracima! REAA Como foi dito, a idéia do eterno retorno ainda não se tornara na época uma convicção para Nietzsche, mas apenas um receio. Tencionava subordinar a divulgação de sua doutrina à condição de poder fundamentá-la cientificamente. Trocamos uma série de cartas sobre esse assunto, e, das declarações de Nietzsche, sempre emergia a opinião errônea de que fosse possível obter para ela uma base científica sólida nos estudos da física e da teoria atômica. Foi então que decidiu estudar exclusivamente ciências naturais durante dez anos na universidade de Viena ou Paris. Só após dez anos de absoluto silêncio, e no caso de um êxito temido, tencionava surgir entre os homens como o mestre do eterno retorno. Como se sabe, as coisas se deram de modo diferente. RazõÕesinternas e externas impossibilitaram a Nietzsche o trabalho planejado, impelindo-o de volta ao Sul e à solidão. Porém, essa década de planejado silêncio tornou-se o período mais eloqiiente e fecundo de toda a sua vida. Um estudo superficial logo lhe mostrou que a fundamentação científica da doutrina do retorno não poderia ser feita com base na teoria atomística; portanto, seu temor de que a idéia fatal do eterno retorno pudesse ser provada como irrefutavelmente certa não se confirmou, e com isso Nietzsche pareceu livrar-se da tarefa de proclamar esse destino aguardado com horror. Mas então sucedeu algo singular: longe de se sentir livre com esse novo conhe-

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cimento, Nietzsche comportou-se justamente do modo contrário; a partir do instante em que a temida fatalidade pareceu dele se afastar, ele a assumiu e publicamente revelou sua doutrina; ao mesmo tempo que sua tímida suposição se mostra indemonstrável e insustentável, como que por magia nele se confirma como uma convicção incontestável. O que deveria ser uma verdade cientificamente manifesta assume o caráter de revelação mística, e doravante, como fundamento definitivo, Nietzsche dá à sua filosofia, não a ciência, mas sua inspiração interior, sua própria inspiração pessoal. O que foi que, apesar do horror obstinado, de um lado, e das provas insuficientes, de outro, exerceu sobre ele influência tão transformadora? Somente a solução desse enigma nos permite examinar a face mais oculta da vida intelectual de Nietzsche, a causa primeira que motivou suas teorias. Uma significação nova e mais profunda das coisas, uma nova busca e um novo questionamento sobre os problemas últimos e supremos — tudo isso, que Nietzsche conhecera como metafísico, mas cuja falta sentira dolorosamente enquanto empirista, introduziu-o na mística de sua doutrina do retorno. Mesmo que essa doutrina significasse para ele novas torturas psíquicas, mesmo que o esmagasse, preferiu assumir o sofrimento da vida a teimar numdesendeusamento e numa desespiritualização da vida. À exceção desse sofrimento, poderia suportar todos os outros; na verdade, não só os suportava, mas também sabia com eles estimular e aguilhoar seu espírito na medida em que o ensinavam a buscar e a pesquisar continuamente um sentido, o sentido secreto e profundo da vida. “Quando temos o por quê de nossa vida, temos então resolvido quase todo como?”, diz Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos (1, 12). Mas seu por quê?, como anseio básico de sua vida, exigia uma resposta substancial e não tolerava nenhuma auto-renúncia. Assim é que o filósofo Nietzsche tampouco aspirava aqui a ser salvo da tortura de uma doutrina temida, mas sim a tornar-se fecundo por meio dela, a tornar-se um sábio e um vidente, e desejava isso tão ardentemente que, mesmo ao se lornarem inválidas as provas científicas, essa razão interior

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tinha força suficiente para transformar uma hipótese incerta numa convicção exaltada. Por isso, os contornos teóricos da idéia do eterno retorno nunca são traçados claramente; permanecem pálidos e confusos, ocultando-se por completo por trás das conclusões práticas e das consegiiências éticas e religiosas que Nietzsche parece ter desenvolvido a partir deles, ao passo que, na verdade, tais conclusões e conseqgiiências formam os pressupostos da doutrina. Numa de suas primeiras obras, a segunda das Considerações extemporâneas, “Da utilidade e da desvantagem da história para a vida”, Nietzsche menciona (23), de passagem, a filosofia do regresso dos pitagóricos como meio adequado de transformar “todo fato particular e único” num eterno significado, acrescentando, porém, que tal doutrina não poderá reivindicar espaço em nosso pensamento antes que a astronomia volte a ser astrologia. Certamente, as dificuldades teóricas de um moderno renascimento dessas antigas idéias não lhe pareceram, em sua maturidade, menores que as da época de sua crença na metafísica de Schopenhauer. Porém, essa mesma metafísica lhe explicava as coisas da vida de modo solene, tornando assim supérflua qualquer reflexão mística. O ser eterno oculto no grandioso processo de devir do mundo dos fenômenos e que se objetiva em cada uma das configurações desse mundo, transluzindo, por assim dizer, em cada uma delas como seu sentido mais elevado, impede o desejo de atribuir a esse devir, repetindo-o eternamente na circulação do ser, um significado que transcenda o efêmero. Só mais tarde, quando Nietzsche abandonou a explicação metafísica do mundo e involuntariamente procurou uma explicação substituta, aquela idéia se impôs novamente. Parece indubitável que tal idéia em nada diminua o pessimismo da concepção positivista da vida; ao contrário, parece reforçá-lo; pois o absurdo de uma linha de devir que se desenrola até o infinito parece, graças às inúmeras e ocultas possibilidades de futuro, menos opressor que uma repetição eterna do absurdo em si mesmo. Mas, de modo bem característico, é daqui que brota a nova filosofia redentora

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de Nietzsche. Justamente a exacerbação da opressão e do desconsolo, que existem no modo de contemplar a vida sóbria e friamente, e a obrigação de ter sempre de retornar a essa vida, estimulam o espírito humano a realizar seu ato supremo: açoitado, por assim dizer, pelo desgosto e pelo horror, o homem, dotado de uma vontade poderosa, deve dar a essa vida absurda um sentido, a esse processo global do devir um objetivo, e, “com isso, criar a partir de si mesmo valores de vida efetivamente não existentes. Assim, podemos dizer que, em vez de se desviar do pessimismo de seu “espírito livre” e retomar uma metafísica mais consoladora, Nietzsche intensifica esse pessimismo até o extremo — mas o faz apenas para usar o extremo desgosto e a extrema dor da vida como trampolim, do qual quer se precipitar mnasprofundezas de sua mística. De fato, a idéia do retorno parecia especialmente adequada para exercer tal efeito, na medida em que se refere à vida real de cada indivíduo e se dirige não tanto ao pensamento filosófico quanto à vontade criativa. Posicionar-se em pensamento diante da vida como um todo absurdo e fortuito é algo distinto de terde repeti-la eternamente na vida individual sem jamais poder escapar-lhe: nesse último caso, omodo de ver puramente abstrato volta-se para o pessoal, e a teoria filosófica penetra a Carne viva e sensível como um esporão doloroso, que impele acriar, aqualquer preço, uma nova esperança, um novo sentido de vida, um novo objetivo de vida. Com relação a esse otimismo, a filosofia final de Nietzsche é uma réplica exata de sua primeira concepção filosófica do mundo, da metafísica schopenhaueriana com sua glorificação do ideal budista da ascese, da negação da vontade e do abandono da vida. A velha doutrina hindu de um eterno renascimento na transmigração das almas, como maldição a que está Sujeito todo aquele que não avançou até a negação de si mesmo, foi, por assim dizer, invertida por Nietzsche. O alvo da suprema aspiração moral não é libertar-se da obrigação do eterno retomo, mas sim converter-se a ele com alegria; o nome do ideal mais elevado não é nirvana, mas sansara. Essa correção

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do pessimismo em otimismo é a verdadeira diferença entre o pensamento original e o pensamento tardio de Nietzsche, e representa na evolução desse sofredor solitário uma vitória heróica do autodomínio. Filosoficamente, porém, foi preparada por sua fase positivista intermediária, na qual, antes de tudo, aprendeu a considerar a existência de maneira pessimista, mas, ao mesmo tempo, a limitar-se à realidade da vida e a renunciar a todas as suas interpretações metafísicas secundárias. Pois, como doutrina filosófica de vida, seu otimismo resulta da ênfase e da eternização do próprio fato vital como sendo o princípio supremo; com a ênfase violenta e elevada até o místico que Nietzsche deu ao fato vital, produziu-se o endeusamento. Inexoravelmente enredados na circulação da vida, eternamente ligados a ela, devemos aprender a dizer “sim” a todas as suas configurações a fim de suportá-la; só com a força e a alegria desse “sim”, reconciliamo-nos com a vida, identificando-nos com ela. Então nos sentimos como uma porção criativa de sua essência, ou mesmo como sua essência, em sua força e plenitude insaciáveis e transbordantes. Oamor pela vida baseado irrestritamente na força vital é, portanto, a única lei moral sagrada do novo legislador; a exaltação da vida levada até o êxtase toma o lugar da elevação religiosa e mesmo o de um culto divino. Sobre essa mudança de pessimismo em otimismo e sobre o novo ideal de afirmação do mundo, Nietzsche se expressa em Para além de bem e mal (56) do seguinte modo: “Quem, igual a mim, se esforçou muito tempo, com alguma ânsia enigmática, em pensar a fundo o pessimismo e a libertá-lo da estreiteza e da simplicidade meio cristã, meio alemã, com que ele pela última vez se reproduziu neste século, ou seja, na forma da filosofia schopenhaueriana; quem, de fato, alguma vez [...] examinou o modo de pensar mais negativo entre todos [...], talvez tenha com isso, involuntariamente, aberto os próprios olhos para o ideal inverso; para o ideal do homem mais arrogante, mais vivaz, mais afirmativo de todos, o homem que aprendeu a suportar e se conformar não só com aquilo que foi e que é, mas que também quer tê-lo de novo

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tal como foi e é, por toda a eternidade, gritando insaciavelmente “da capo' não só a si, mas a toda a peça e espetáculo, e não só a um espetáculo, mas, no fundo, àquele que justamente necessitadesse espetáculo— e o faz necessário: porque necessita de si continuamente — e se faz necessário — Como? E isso não seria — circulus vitiosus deus?” Nessas palavras não apenas se insinua quão inteiramente o otimismo de Nietzsche brotou de uma intensificação e de um exagero do pessimismo, mas também quão profundamente um caráter de elevação religiosa é típico de sua nova filosofia. Por um lado, o homem se sente misticamente ampliado até a totalidade do mundo, até a totalidade da vida, de modo que seu próprio declínio, assim como a tragédia de sua própria vida, não estão mais disponíveis para ele — e, por outro, empresta de novo a essa totalidade de vida, casual e absurda, uma personificação e uma espiritualização, através da qual ela é elevada até a divindade. Omundo, Deus e o “eu” fundem-se num conceito único, do qual deriva para o indivíduo, como de qualquer outra metafísica, ética ou religião, uma norma de conduta e uma suprema adoração. Mas o pano de fundo de toda essa representação é construído pela idéia de que a totalidade do mundo seja uma ficção criada pelo homem e que, em sua divindade, ou seja, em sua consubstancialidade com a plenitude de vida, sabidamente depende do homem e de sua vontade criativa e crítica. Assim se explicam as misteriosas palavras em Para além de bem e mal (150): “Em torno do herói tudo se transforma em tragédia” (ou seja, ohomem como tal se encontra justamente em seu auge de decadente e sacrificado); “em torno do semideus tudo se transforma em peça satírica” (ou seja, em sua plena dedicação à totalidade da vida, ele sorri como um ser que eleva sobre seu próprio destino); “e em torno de Deus tudo se transforma — como? — talvez em “mundo*?” (ou seja, graças à perfeita identificação do homem com a vida, não apenas é recebido, reconciliado na totalidade da vida, mas também esse absoluto é nele introduzido, de modo que ele se transforma em Deus, que de si mesmo libera omundo e, na criação do mundo, expressa sua essência).

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E aqui nos deparamos de novo com a idéia básica na filosofia de Nietzsche que nele faz nascer a doutrina do eterno retorno, assim como todas as suas teorias: amonstruosa divinização do filósofo-criador. Nele repousam o princípio e o fim dessa filosofia, epodemos dizer que mesmo o traço mais abstrato do sistema é uma tentativa de delinear sua figura poderosa de além-do-homem. Vimos que, tanto dentro da lógica como da ética, o filósofo-criador é elevado à síntese da vida como um todo, como se fosse o supergênio que traz tudo em si. Vimos, a seguir, como a ética nietzschiana intensificou o significado místico-religioso de modo que ele se diferenciasse do simplesmente humano e, como essência divina, abrangesse a essência humana. Mas só então, com base na doutrina do eterno retorno, tudo cresce: em conjunto até uma única forma gigantesca, pois somente a circunstância de não ser infinito o curso do mundo, mas sim, dentro de limites, permanentemente repetitivo, possibilita a construção dessa supercriatura, na qual repousa e se desenvolve todo o curso do mundo. Só por meio de tal criatura omundo ganha sentido e objetivo e se orienta para a criação redentora do além-do-homem; só assim essa criação se torna mais do que uma hipótese, se torna um fato. Daí, vemos também que Nietzsche, por assim dizer, não expõe sua doutrina mais fundamental e, ao mesmo tempo, mais mística, em seu próprio nome, mas no de Zaratustra; não é O pensador nem o homem que ela deve expor, mas sim aquele agraciado com o poder de transformá-la numa sublime redenção.º Mas se Nietzsche, em seus aforismos, menciona por alto a idéia do eterno retorno, em seguida se cala com um gesto de espanto e veneração: “[...] Mas de que estou falando? Basta! Nesse ponto só uma coisa me convém: calar. Senão, estou violando algo que só é permitido a alguém mais jovem, com mais futuro e com mais força do que eu; algo que só é permitido a Zaratustra, à Zaratustra, o ímpio [...)”"(Genealogia da moral, 25). E só aqui fica totalmente claro o significado íntimo da figura de Zaratustra para a essência de Nietzsche, aqui onde surge como portador da doutrina do eterno retorno. Nietzsche

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acreditava contê-lo em si como uma essência mística, mas distinta da forma que adotara em sua existência natural e humana. Em sua fortuita manifestação temporal, condicionada física e espiritualmente pelas circunstâncias e vicissitudes de “sua vida transitória, Nietzsche se considerava um “decadente”, igual aos outros, apenas digno e, com isso, destinado a perecer. Mas, por outro lado, via-se também como o médium com dons necessariamente patológicos, através do qual a eternidade se conscientiza de si mesma e de seu sentido; via a si mesmo como a encarnação do gênio da humanidade, no qual o passado Jibera ao presente o enigma de todo o futuro. Acreditava assim personificar aquilo que descrevera como o maior indício da forma humana da decadência: sentia-se doente com as dores do parto de uma essência além-da-humana; sentia-se como um ser que declina e se destroça em favor de uma nova e suprema Ccriação, que deveria redimir o mundo: “Para que o criador seja a própria criatura que vai renascer, deve querer ser também a parturiente e as dores da parturiente” (Assim falou Zaratustra, “Nas ilhas bem-aventuradas”, II, 7). Zaratustra é, portanto, o filho e, ao mesmo tempo, o deus de Nietzsche, assim como é o ato ou criação artística de um indivíduo e também a síntese desse homem único com toda a linhagem humana, com o próprio sentido da humanidade. ªE “criatura e criador”, “aquele que tem mais força e mais futuro”, e que domina o fenômeno humano e sofredor de Nietzsche; é o “além-de-Nietzsche”. Em sua voz, portanto, falam não apenas a experiência e a compreensão de um indivíduo, mas a própria consciência da humanidade desde suas origens mais remotas; daí suas palavras: “Não sou daqueles a quem é permitido indagar por seu por quê. Será de ontem minha “vivência? Faz muito que vivenciei a razão de minhas opiniões. Não teria eu de ser um barril de memórias se quisesse ter comigo também minhas razões?” (Assim falou Zaratustra, “Dos poetas”, II, 68). Assim nasce um estranho jogo intelectual em que Nietzsche e seu Zaratustra parecem ininterruptamente se transformar um no outro e de novo se desprender um do outro. Isso é perfei-

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tamente compreensível para quem sabe quantos pequenos traços puramente pessoais Nietzsche pôs secretamente em seu Zaratustra e como todo esse mistério nele se acentuou até alcançar um êxtase visionário. Assim também se explica a inaudita autoconsciência com que fala de seu livro e que certa vez o faz irromper nas seguintes palavras: “um livro tão profundo, tão exótico, que o fato de se ter entendido, ou seja, de se ter vivenciado seis de suas frases elevaria auma ordem superior dos mortais”. Se, para Nietzsche, opoema de Zaratustra era a obra através da qual o além-do-humano se engendrava a partir do humano, deve ter pensado sua obra principal, A vontade de potência, inédita e apenas com a primeira parte concluída, de certo modo como uma criação de Zaratustra, ou seja, de um ser eterno e livre, único “capaz de uma transvaloração de todos os valores”, porque se situa fora do tempo e de toda influência, pura e simplesmente um ser independente, que compreende e abrange em si todas as coisas. Só assim se deve compreender esta afirmação de Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos (IX, 51): “Dei à humanidade o livro mais profundo que ela possui, meu Zaratustra; dentro em pouco lhe darei o mais independente”. No primeiro caso, o além-do-homem emerge das profundezas da natureza humana de Nietzsche; no segundo, paira sobre ela já como um criador liberto. Se, por um lado, a compreensão dessa figura de Zaratustra é, em sua significação universal, misticamente misteriosa, por outro, numa lógica estrita, ela se une às explicações nietzschianas sobre a essência do gênio, da criatura de livre-arbítrio e atávica, que determina o futuro. O exame dessas teorias mostrou que todas elas apontam para a possível criação de um super-ser, e é interessante observar quão prematuramente se manifestaram em Nietzsche idéias afins, que, mais tarde, extraídas de seu primeiro período filosófico, foram elaboradas em sua concepção positivista, para finalmente, em sua última filosofia, despertar para uma nova vida. Jáem Schopenhauer, o gênio da ética e da estética abrange o sentido e o fundamento da essência do mundo e da humanidade e faz disso, outra vez,

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uma equivalência em qualquer gênio como tal; mas, para Schopenhauer, sentido e fundamento significam o resplandecente ser eterno, a coisa metafísica em si, totalmente desligada da efetiva evolução do mundo e da humanidade. Nietzsche, porém, que se abstrai desses conceitos metafísicos, exige o aparecimento do gênio num super-ser isolado e único, que exclui a maioria de seus iguais e que compreende em si os fenômenos reais do mundo e da humanidade. Em Humano, demasiado humano (II, 185), diz Nietzsche, considerando as idéias schopenhauerianas, que modifica pelos moldes positivistas: “Se, de acordo com as observações de Schopenhauer, a genialidade consiste na lembrança coerente e viva do que foi vivenciado pelo gênio, poderíamos então reconhecer na aspiração pelo conhecimento da evolução histórica global uma aspiração à genialidade. A história pensada por completo seria a consciência cósmica”. Confrontemos com isso as seguintes palavras em AÀgaia ciência (34) no aforismo “História abscôndita”: “Todo grande homem tem uma força retroativa; por causa dela, toda a história é de novo posta na balança, e mil segredos do passado rastejam para fora de seus esconderijos em busca de seu sol”. Mais adiante (337): “[...] quem sabe sentir toda a história do homem como sua própria história sênte como uma generalização monstruosa toda a aflição do doente que pensa na saúde, do velho que sonha com a juventude, do amante que é privado da amada, do mártir cujo ideal sucumbe, do herói na noite da batalha que nada decidiu e que, no entanto, lhe trouxe as feridas e a perda do amigo; mas levar essa enorme soma de aflição, poder levá-la e, contudo, ser ainda o herói que, no início de um segundo dia de luta, saúda a aurora e sua felicidade, como um homem que tem diante e atrás de si um horizonte de milênios, como o herdeiro de toda fidalguia, de todo o espírito do passado, como o herdeiro comprometido, como o mais nobre de todos os velhos nobres e, ao mesmo tempo, o primeiro de toda uma nova nobreza, que nenhuma época viu ou sonhou igual; tomar tudo isso em sua alma, o mais velho, o mais novo, o perdido, as esperanças, as conquistas, as vitórias da humanidade; ter por fim tudo isso numa

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única alma e resumi-lo num único sentimento; isso deveria produzir uma felicidade que até hoje ohomem não conheceu: a felicidade de um deus cheio de poder e de amor, cheio de lágrimas e de sorrisos, uma felicidade que, tal como o sol à tarde, continua oferecendo sua inesgotável riqueza e a despeja no mar, e que só experimentaria sua maior riqueza quando o mais pobre pescador remasse com remos de ouro! Esse sentimento divino se chamaria então humanidade!”, Mas, para Nietzsche, em grau cada vez menor, a genialidade humana se resgata através do conhecimento ou da empatia adquirida pelo feito histórico, pois a plenitude do passado repousa no próprio homem e pode ser buscada e trazida à consciência através de uma profunda imersão em si mesmo. Já em Humano, demasiado humano (LI,14) Nietzsche chama a atenção para a virtude que as emoções possuem de retroativamente despertar em nós o adormecido, que faz parte de situações passadas. “Todas as disposições de espírito mais fortes trazem consigo sensações e sentimentos afins; por assim dizer, revolvem a memória.” Mas não apenas com respeito ao passado individual com suas emoções, mas também e ao mesmo tempo com respeito ao que se depositou em pensamentos e sentimentos no curso da evolução da humanidade — pois o indivíduo é uma testemunha dessa evolução e segue contendo em si suas diversas fases. Em A gaia ciência (54) se faz alusão a isso no aforismo “A consciência da aparência”: “Que sentimento maravilhoso e novo e, ao mesmo tempo, horripilante e irônico tenho com meu conhecimento em relação a toda a existência. Descobri para mim mesmo que a velha humanidade e a velha animalidade e mesmo os tempos primitivos e o passado de todo ser sensível continuam criando, amando, odiando, concluindo em mim; de repente, desperto no meio desse sonho, mas apenas para ganhar consciência de que estou sonhando e de que preciso continuar sonhando para não perecer. O que significa para mim agora a “aparência”? Decerto, não o contrário de uma essência qualquer; que posso enunciar sobre uma essência qualquer senão os atributos de sua aparência?! Decerto, não uma máscara sem vida que se poderia colocar e

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retirar a um desconhecido! Para mim, a aparência é a coisa ativa e a coisa viva, que, no escárnio de si mesmas, chegam a me fazer sentir que há aparência e fogo-fátuo e dança de espíritos aqui e nada mais; que, entre todos esses sonhadores, também eu, “cognoscente', danço minha dança; que o cognoscente é um meio de prolongar essa dança terrestre e que, por isso, é um dos mestres-de-cerimônia da vida, e que a sublime conseqiiência e a união de todos os conhecimentos talvez seja e será o meio supremo de conservar a generalidade dos sonhos e a total compreensibilidade de todos esses sonhadores entre si, e, justamente com isso, a duração do sonho”. Nessa altura, Nietzsche já faz a mudança de rumo que o leva à transição para sua mística final, onde o mundo para ele se transforma numa ficção do cognoscente que, ao despertar para a consciência dessa ficção, como se fosse do sonho de um sonâmbulo, pode se sentir senhor e criador, definindo categoricamente o sentido dessa aparência, desse sonho. Modificada pela concepção mística, segundo a qual o despertar do sonho da vida é simultaneamente um ato criador e redentor do mundo, essa idéia retorna mais tarde numa maravilhosa figuração poética, na canção do “velho sino Bltumm” (Assim falou Zaratustra, “O outro canto de dança”, 3, III, 110), que anunciava com doze badaladas, à meia-noite, o início do dia daquele que desperta:| Uma! "Oh homem!prestaatenção! Duas! -O que estádizendoa profundameia-noite? Três! Eu estavadormindo,eu estavadormindo—, “Quatro! “De um profundosonhoacordei:“Cinco: - O mundoé profundo. “Seis! E mais profundodo quepensouo dia. “Sete! — Profundaé suador —, Oito! O prazer— maisprofundoaindaqueo pesar.

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LOU ANDREAS-SALOMÉ Novet! Fala a dor: — Passa! Dez! Mas todoprazerquer a eternidade—, Onze! Quer a profunda,profundaeternidade! Doze!

A forma final desses conceitos contém de novo fortes ressonâncias do período schopenhaeuriano de Nietzsche e da filosofia hindu, contudo sempre com a modificação característica de que o fim último, bem como o caminho que leva até ele, deve ser buscado não numa extinção, mas sim numa intensificação da vida. Apesar disso, por mais que essas duas concepções sensíveis do problema existencial se aproximem uma da outra, daí não resulta de modo algum que, segundo interpretação mais recente, a própria renúncia à vida do hinduísmo, essa extrema expressão de uma filosofia que nega o mundo, não aspire de fato a uma libertação da vida, mais sim a uma libertação da obrigação contínua de morrer, consegiiência da metempsicose. Trata-se enfim de outra forma do medo à morte, que, nas demais religiões, produziu a crença na imortalidade; é um medo cuja atenuação pode ser alcançada tanto pelo aniquilamento da eternidade da vida, com total identificação do indivíduo com a força e a plenitude da totalidade da vida, quanto por uma dispersão e volatização de todos os impulsos vitais, aos quais inexoravelmente estão ligadas a morte, a extinção e a dissolução.'"º Mas, para Nietzsche, o atrativo que uma interpretação mística de estados oníricos e o conceito de consciência universal como consciência onírica possuíam tinha ainda uma razão pessoal. Para ele, de fato, tratava-se mais do que simplesmente uma alegoria ou analogia, pois estava convencido de que, sobretudo nos estados de êxtase e de sonho, poderia ser despertada para o presente do homem a pienitude do passado. Os sonhos sempre tiveram um papel importante em sua vida e em seu pensamento, e, nos últimos anos, deles extraiu com freqiiência, como da solução de um enigma, o conteúdo de sua doutrina. Desse modo, usa, por exemplo, em Assim falou

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Zaratustra, “O adivinho” (II, 80), o sonho que teve em Leipzig no outono de 1882; não se cansava de discutir suas interpretações. Uma interpretação engenhosa ou venturosamente apropriada ao sentimento do sonhador poderia então torná-lo feliz e formalmente libertá-lo. Assim se explica que, desde cedo, Nietzsche tenha se ocupado com esse assunto, mas, por enquanto, rejeitava ainda interpretações ousadas, que, mais tarde, veio a privilegiar. Mencionou-o em diversas passagens de Humano, demasiado humano (comparem-se, por exemplo, os aforismos 1, 12 “Sonho e civilização”, e 1, 13, “A lógica do sonho”). Aí considera ainda que a confusão e a desordem das idéias no sonho, a falta de clareza, de lógica e de uma relação causal apropriada, que, durante o sono, caracterizam nossa maneira de julgar e de concluir, lembram as condições de mais primitiva humanidade, procedimento que tanto os selvagens de hoje exibem na vigília com nós no sonho. Em Aurora, ao contrário, já não fala de semelhante analogia, mas sim da possível reprodução no sonho de um pedaço do passado. E em A gaia ciência, frequentemente, eleva o sonho a uma imagem positiva da vida e do passado do mundo, na mente do indivíduo. Daqui só estava a um passo para uma terceira idéia que resume as duas anteriores, ou seja: a primeira de que, no sonho, se reproduz o passado, e a segunda de que a totalidade do mundo e o desenvolvimento da vida são filosoficamente comparáveis a uma ficção onírica; dessa união resulta então que o sonho, em certas condições, é a reanimação de toda a vida passada — a vida em sua essência mais profunda, um sonho, cujo sentido e significado cabe a nós, os que despertamos, definir. O mesmo vale para todos os estados afins do sonho, todos os estados capazes de levar às profundezas caóticas, escuras e insondáveis dos subterrâneos da vida, não apenas da humanidade primitiva, mas também, abaixo dela, àquilo que a originou. Pois o pacífico sonho não bastaria para isso; seria preciso uma vivência muito mais real e mesmo mais terrível: o caos de paixões arrebatadoras e da orgia dionisíaca — e mesmo da própria loucura, como um mergulho no emaranhado de todos os sentimentos e idéias — parecia a Nietzsche o último ca-

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minho até as profundas camadas de uma humanidade passada, que repousam dentro de nós. Muito cedo ainda, Nietzsche refletiu sobre o significado da loucura como uma possível fonte de conhecimento e também sobre seu possível conteúdo para que os antigos a considerassem um sinal eletivo. Em relação a isso, lê-se em À gaia ciência: “Só quem assusta, comanda”, e em Aurora (312) encontram-se as seguintes palavras estranhas que evocam seu posterior conceito de um gênio do futuro personificando todo o passado da humanidade: “Nos ímpetos da paixão e nas fantasias dos sonhos e da loucura, ohomem redescobre sua préhistória e a da humanidade [...]; sua memória retrocede para um passado assaz distante, enquanto sua condição de civilizado se desenvolve a partir do esquecimento dessas experiências primitivas, e portanto a partir do enfraquecimento dessa memória. Quem para sempre permaneceu muito distante de tudo isso, como um esquecido da mais alta espécie, não compreende os homens”. Naquela época, porém, o próprio Nietzsche queria ser um desses “esquecidos”, pois ainda buscava a grandeza humana no “cognoscente sem paixões” e naquilo que “nasceu da razão”. Chamava de uma horrenda confusão ao fato de a loucura parecer então, frequentemente, inseparável dos novos e grandes conhecimentos: “[...] se, contudo, idéias novas e divergentes, avaliações e impulsos irromperam continuamente, isso se deu sob uma escolta horripilante: quase em toda parte foi a loucura que abriu caminho à idéia nova, que desfez a influência de um costume e de uma superstição respeitada. Compreendeis por que teve de ser a loucura? Algo cuja voz e cujo gesto fossem horríveis e imponderáveis [...]? Algo que trouxesse o visível sinal da total involuntariedade?[...] que parecesse caracterizar o alienado como máscara e porta-voz de uma divindade? [...] Avancemos ainda um passo: a todos aqueles homens superiores, irresistivelmente levados a romper com o jugo de uma moralidade qualquer e a lançar novas leis, se não fossem realmente loucos, nada lhes restaria fazer a não ser se fazer ou se fingir de loucos [...] “Como se fazer de louco quando não se é?' Quase todos os homens importantes da antiga civilização entregaram-se a essa terrível ordem de

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idéias. [...] Quem ousa lançar olhos ao ermo das mais amargas e supérfluas angústias em que, provavelmente, os homens mais fecundos de todos os tempos penaram? Quem ousa ouvir os suspiros dos solitários e dos perturbados: “Ah, dai-me, pois, a loucura, oh ser divino! Loucura para que eu, enfim, acredite em mim mesmo! Dai-me delírios e convulsões, luzes e trevas repentinas; espantai-me com calafrios e ardores que nenhum mortal jamais sentiu; com estrondos e formas que me cerquem; deixai-me uivar e gemer e, como os animais, rastejar, só para que eu encontre fé em mim mesmo! A dúvida me devora; destruí a lei, a lei me assusta como um cadáver assusta os vivos; se não sou mais do que a lei, então sou o mais vil de todos os seres* [...]” (Aurora, 14). Tal como em Aurora, onde justamente idéias que já haviam começado a agir secretamente sobre Nietzsche foram amiúde aclaradas ou refutadas, também essa descrição mostra de que modo estados de embriaguez lhe valeram mais tarde como prova de uma escolha especial. Ele partiu do desespero e do horror de tudo quanto existe, de uma imagem distorcida da realidade, que nele surgira da caricatura do positivismo, e desejou em seu lugar criar algo novo e magnífico. Mas, como tal criação se assentava exclusivamente sobre ele, oscilava junto com sua própria confiança, não sendo de modo algum existente por si mesma. Portanto, devem ter assumido milhares de formas as dúvidas que o torturavam, tão logo seu estado de espírito tombasse, mesmo que por um instante; o inexorável desejo de separar sua humanidade vacilante e duvidosa de um ser seguro de si e ciente de sua eternidade, separar Nietzsche de Zaratustra. Então, não importava que, para aquele, coubesse a sorte mais horrível; para este seria apenas um sinal de eleição e exaltação; não importava que aquele devesse descer até o caos terrível de sua bestialidade; para este seria apenas a expressão de uma universalidade que acolhesse em si mesma as coisas mais baixas e mais profundas. Nesse sentido, lemos em Crepúsculo dos ídolos (I, 3) que o filósofo da mais alta categoria seria uma espécie de união entre animal e deus. Idéia análoga também se encontra no aforismo sobre o filósofo-criador (Para além de bem e mal, 101): “Hoje um filósofo facil-

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mente se sentiria uma bestialização de Deus”. Sim, essa máscara do mais inferior poderia ser, diante dos homens, a representação mais adequada do ente supremo, pois, com ela, o filósofo não os envergonha e oculta seu brilho de modo eficaz: “Não seria a antítese o correto disfarce em que caminharia o pudor de um deus?” (Para além de bem e mal, 40). Aqui deparamos a última tentativa de Nietzsche de se ocultar, a última vez em que expressa seu desejo de máscara. Aparentemente, a máscara deve envolver um deus numa vestimenta demasiado humana, enquanto que, na verdade, abaixo está a comovente necessidade de transformar em divino o terrível destino que ameaçava seu espírito, a fim de suportá-lo. No aforismo “Aqui a vista é livre” (Crepúsculo dos ídolos, IX, 46), Nietzsche insinua que a grandeza da alma seria ir sem medo ao encontro da “máxima indignidade”: “Uma mulher que ama sacrifica sua honra; um filósofo que “ama' sacrifica talvez sua humanidade; um deus que amou se fez judeu...”. Vemos assim o auto-sacrifício e a autoviolação em Nietzsche, a ânsia pelos tormentos da dualidade não apenas elevados até o ápice da espiritualidade, mas também cravados em sua personalidade íntima. Cada vez mais se aguça a ordem das idéias para, através de um ato autodestrutivo, em ações e sofrimentos pessoais, consumar-se a redenção. Seguindo de perto a vida interior de Nietzsche, expressa filosoficamente em sua doutrina do futuro, chegamos ao ponto onde sua filosofia volta a ser a mais pessoal das experiências, conforme as palavras seguintes: “reabsorvo as chamas que saem de mim” (Assim falou Zaratustra, “O canto noturno”, II, 35). E se os traços básicos de seu pensamento eram apenas linhas que se uniam para esboçar, não um sistema abstrato, mas sim os contornos monstruosos de uma forma divina, de uma apoteose mística de si mesmo, agora a ventura desse auto-endeusamento se transforma numa tragédia puramente humana. A ação redentora de Zaratustra é ao mesmo tempo o declínio de Nietzsche; o direito divino de Zaratustra de interpretar a vida e transvalorar todos os valores só é obtido com à condição de penetrar o fundamento da vida, que, na existência humana de Nietzsche, é representado pelas escuras profundezas da loucura. “Quem

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é, porém, de minha espécie — diz Zaratustra — não escapa de hora semelhante, da hora que lhe diz: “Só agora percorres teu caminho de grandeza. Cume e abismo — os dois agora encerrados numa coisa só!” (“O viandante”, III, 2). Portanto, o pavor de Zaratustra diante desse mergulho insondável, diante dessa “idéia de abismo” é, ao mesmo tempo, o pavor de Nietzsche diante de seu destino como pessoa; ambos se fundem indistintamente no poema que, na verdade, não é nada senão a descrição da vida transfigurada de Nietzsche, do além-denietzschianismo. “Assim me gritaram todas as coisas por sinais: “Já é tempo!? Mas nada ouvi até que, por fim, meu abismo se moveu e meu pensamento me mordeu. Ah, pensamento abissal, tu que és meu pensamento! Quando encontrarei forças para te ouvir cavar e não mais tremer? Até o pescoço me sobem as batidas do coração quando te ouço cavar. Teu silêncio me quer ainda estrangular, tu abissalmente silencioso! Nunca ousei chamar-te para cima; já é bastante que eu tenha te trazido comigo!” (Assim falou Zaratustra, “Da bem aventurança a contragosto”, III, 16). Devemos nos lembrar dessas palavras comoventes quando lemos na poesia de Nietzsche a dêscrição da “hora mais silenciosa”, na qual a própria vida lhe ordena que vivencie e anuncie seu pensamento — a vida sorridente e venturosa, a vida que sorri do sofrimento do indivíduo, porque, em sua plenitude, ela é a própria ventura: Até os dedosdos pésele se assustaporqueo chãocedesobseuspés e o sonhocomeça.Issovos digocomoparábola,Ontem,na horamais silenciosa,o solo cedeusobmeuspés: o sonhocomeçou.O ponteiro movia-se,tomavaalentoo relógiode minha vida; nuncaouvira tal silêncioa meu redor, de modo que meu coraçãose assustoue me falou,então,semvoz: “Tusabes,Zaratustra?'.E eu griteide espanto ao ouvir essesussurro,e o sanguefugiu-medo rosto[...] Entãohouve um riso à minhavolta.Aí, comoesseriso me despedaçou asentranhas e me rasgouo coração![...] E de novo riram e fugiram;tudoentão ficou calmoà minhavolta comose fosseum silêncioduplicado.Eu, contudo,permanecino chão,e o suorme escorriados membros[...] (Assimfalou Zaratustra,“À horamais silenciosa”,H, 97). Aqui se conclui o capítulo “O convalescente” (III, 92):

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LOU ANDREAS-SALOMÉ saltoudo leitocomoum louco,%ritoucom Certamanhã[...] Zaratustra voz terrívele gesticuloucomo se houvesseainda alguém| no leito porém,disseestaspalavras: quenãoquisesseselevantar[...] Zaratustra, abissal,sai deminhasprofundezas:sou teugalo Levanta,pensamento e teu alvorecer,6vermeadormecido:Levanta!Levanta!O cantode minhavoz acordar-te-á! Desataos grilhõesde teusouvidos: escuta!Pois eu quero te ouvir. para queatéos támulos Levanta!Levanta!Aqui há estrondobastante aprendama ouvir! E tira o sono de teusolhos, todaa estupideze cegueira!Ouve-me tambémcom teusolhos: minhavoz é um remédioparaos cegosde nascença. acordado.Não é de mcug devespermanecer E assimparadespertares, feitioarrancardosonobisavósparalhesdizerquecontinuemadormir. * Levanta!Levanta!Semestertores estertoras? Mexes-te,espreguiças-te, o ímpio, techama! — o que devesé me falar!Zaratustra, o defensordavida,o defensordo sofrimento,o defensor Eu, Zaratustra, abissal. do círculo— é a ti que chamo,meupensamento Salve! Estásvindo — já te ouço. Meu abismoestáfalando.Trouxe de voltaà luz minhaprofundezamaisprofunda! Salve!Vem! Dá-mea mão [...] Ai, larga!Ai, ai, que nojo, quenojo! L...] Ai de mim!

A imagem da loucura aparece ao final da filosofia de Nietzsche como uma ilustração ofuscante e terrível dos argumentos que formam a teoria do conhecimento e dos quais ele partiu para a filosofia do futuro. Pois o ponto de partida se formou com a dissolução de todo o intelectualismo e com o domínio dos instintos de natureza caótica; mas a teoria do conhecimento de Nietzsche prossegue com o extermínio do pensador em prol de uma revelação suprema da vida, com a idéia de que todo conhecimento racional “deva ser inoculado pela loucura”. O pressentimento de um destino trágico à sua frente e a concepção mística da vida espiritual e seu sentido juntam-se de modo comovente nestas palavras de Zaratustra (“Dos famosos sábios”, , 33): “Espírito é a vida que corta a própria vida; no próprio tormento se multiplica o próprio saber — já sabíeis disso? E a ventura do espírito é ser ungido e consagrado com lágrimas como vítima, já sabíeis disso? E a cegueira do cego e sua busca tateante devem ser testemunhas do poder do sol para o qual ele olhou, já sabíeis disso?”.

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Assim, a loucura deveria também ser testemunha do poder da verdade desta vida, cujo esplendor cegou o espírito humano. Porque razão alguma nos leva até as profundezas da vida; nelas não se pode baixar degrau após degrau, idéia após idéia. “E se doravante te faltarem todas as escadas, deverás então saber como subir sobre tua própria cabeça; como poderias continuar subindo de outro modo? [...] Mas tu, ó Zaratustra, querias ver o que está no fundo e por trás de todas as coisas; assim deves subir acima de ti mesmo — para cima até que tuas estrelas estejam abaixo de ti!” (Assim falou Zaratustra, “O viandante”, UII, 2). Com isso, o fim parece ter sido atingido e a evolução de Nietzsche parece estar necessariamente concluída: a paixão insaciável que impulsionava seu espírito o consumiu por fim e se reabsorveu a si mesma. Doravante, para nós, observadores, uma total escuridão o encobre, e ele penetra um mundo de vivências interiores e individuais, diante do qual devem se deter os pensamentos que o acompanham: sobre ele se estende um silêncio profundo e comovente. Mas além de já não podermos seguir seu espírito em sua última metamorfose alcançada com o próprio sacrifício, também já não devemos segui-lo; aqui justamente se encontra a demonstração de sua verdade, fundida por completo a todos os mistérios e segredos de sua vida interior. Em sua derradeira solidão, Nietzsche se afastou de nós, fechando a porta atrás de si. Mas, sobre a entrada, lemos as fulgurantes palavras: “[...] agora em teu último refúgio se transforma aquilo que até então foi teu derradeiro perigo! [...] deves agora reconhecer, como sua máxima coragem, que, atrás de ti, não há mais nenhum caminho. [...] aqui ninguém te deve seguir furtivamente! Teus próprios pés apagaram o caminho atrás de ti e sobre ele está escrito: Impossibilidade” (Assim falou Zaratustra, “O viandante”, , 2). E à única mensagem de que, atrás dessa porta, existe ainda um mundo inacessível das metamorfoses do espírito escapa neste sussurrante lamento: “Ai, devo escalar o mais duro de meus caminhos. Ai, comecei a mais solitária de minhas caminhadas! [...] Justamenteagora começa minha derradeira so-

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lidão. Ai, esse negro e triste mar sob meus pés! Ai, esse grávido enfado noturno! Ai, destino e mar! Devo agora descer em vossa direção! [...] descer para a dor mais fundo do que jamais desci, até penetrar sua torrente mais negra. Assim quer meu destino. Pois bem, estou pronto. Donde vêm as mais altas montanhas? — perguntei outrora. Soube então que vêm do mar. O testemunho está escrito em suas rochas e nas escarpas de seu pico. Para atingir sua altura, o mais alto deve vir do mais profundo” (Assim falou Zaratustra, “O viandante”, III, 2). Assim se entrelaçam profundidade e altura, o abismo da loucura e o cume da verdade: “Estou diante de minha montanha mais alta [...] por isso devo descer mais fundo do que jamais desci” (III, 2). E assim, a suprema autodeificação festeja sua primeira vitória mística sobre a mais profunda destruição e aniquilamento do pensador. Dos dois animais simbólicos que cercam Zaratustra, a serpente do conhecimento e a águia da ambição e do orgulho reais, só o segundo lhe permanece fiel: “Fosse eu mais inteligente! Fosse eu radicalmente inteligente, igual à minha serpente! Mas estou pedindo o impossível. Peço então a meu orgulho que sempre caminhe ao lado de minha inteligência, e, se ela algum dia me abandonar [...] possa ainda meu orgulho voar junto com minha loucura!” “Assim começou o declínio de Zaratustra.” (Assim falou Zaratustra, “O prólogo de Zaratustra”, final, 1, 26). Assim, o espírito de Nietzsche se desvanece diante de nós num mistério de declínio e ascenção, numa escuridão em que revoam águias. Existe nisso algo de comovente como no retorno de uma criança cansada à pátria de sua fé primitiva, onde não é preciso nenhuma inteligência para receber as bênçãos e revelações supremas. Após ter percorrido todos os círculos e ter esgotado todas as possibilidades sem achar satisfação, seu espírito a conquista por fim com o mais alto dos sacrifícios, o sacrifício de si mesmo. Recordemos as palavras citadas no segundo capítulo deste livro (p. 64): “[...] Se tudo já está percorrido, para onde se corre nesse caso? [...] de que modo? [...] não deve-

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ríamos retornar à fé? Talvez a uma fé católica? Em todo caso, o círculo seria mais provável que a paralisação”. Na verdade, na repetição de si mesmo, Nietzsche descreve um círculo. E é interessante ver que, à medida que se aproxima de seu ponto de partida original e a razão como tal parece insignificante diante de um além-de-ser místico em busca de uma crença, sua filosofia assume um caráter sempre mais absoluto e reacionário, e Nietzsche opõe a seu individualismo anterior a restauração de uma tradição predominante e conduz sua autodeificação a um absolutismo religioso. Ou seja, é interessante porque, apesar de seus pressupostos patológicos, essa evolução é típica, filosoficamente falando: forçada pelo pensamento livre a se expressar de modo estritamente individual, se o impulso religioso em Nietzsche se transforma em algo divino, adquire com isso poderes mais absolutos e reacionários que jamais couberam a nenhum deus concebido objetivamente — até destituir a própria razão, cujo impulso cognitivo o orientara inicialmente, privando-lhe de qualquer tipo de reivindicação posterior. Deus deve surgir do homem, mesmo que, para viabilizá-lo, o homem deva voltar à infância e à menoridade. Só nessa divisão, que consuma em si a qualquer preço, Nietzsche festeja a sua redenção e união com a fé: [...] Foi em tornodo meio-diaquandoUm se transformouem Dois... Agora,certosde uma vitóriaconjunta,festejamos A festadasfestas: Chegouo amigoZaratustra,ohóspededos hóspedes! Agorari o mundo,a telacinzentaserasgou, Chegaramasbodasdasluzescom as trevas... é o que lemos ao final de Para além de bem e mal, no maravilhoso canto do epílogo, “Dos altos montes”. O destino pessoal de Nietzsche se insere como pedra fundamental nesse edifício intelectual, de tal modo que não se pode duvidar da influência exercida por seus turvos pressentimentos sobre a formação de sua filosofia do futuro. Com mão poderosa forçou aquilo que o aguardava a integrar seu plano geral e a servir como sentido secreto em sua última

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filosofia. Desse ponto, olhando retrospectivamente, vê pela primeira vez sua vida e seu pensamento na alternância de suas metamorfoses e posteriormente atribui à evolução de seu eu um sentido de unidade e um significado místico, exatamente como age o filósofo-criador em relação à totalidade da vida humana. Nietzsche assim se transformou num deus que interpreta e que, mesmo à custa de alguma violência, orienta todas as coisas passadas para um aperfeiçoamento, para um objetivo mais elevado. Agora seu lema é fazer “do passado uma interpretação do futuro” e, portanto, o contrário e exato daquilo que, antes, em meio a suas metamorfoses, ambicionava, ou seja: o afastamento rápido do passado tão completamente quanto possível de um futuro sempre novo. Nisso também se baseia a forte influência de seus pontos de vista anteriores sobre as idéias de sua filosofia do futuro. Antes via a prova de sua independência intelectual na capacidade de sempre se desprender das verdades arrebatadas e lhe parecia, portanto, irrelevante que, ao capturá-las, tivesse sido um imitador. Agora sua independência global reclama que, em todos os pensamentos passados e refutados, perseveraram seu ser e seus significados, mas que, por isso, doravante ela só pode ser incitada por seu ser e não por influência de outros. Por isso, diante das últimas obras de Nietzsche, onde ele parece instituir seu próprio sistema da maneira mais independente possível, tem-se muitas vezes a sensação de que volta o olhar para trás e de que se reaproxima dos postos abandonados de suas antigas metamorfoses, ao mesmo tempo em que, graças à autonomia de suas novas hipóteses individualistas, deles se afasta amplamente. A solução dessa contradição reside em que Nietzsche retira de suas antigas convicções apenas aquilo em que se expressam seu ser individual e sua vontade oculta; aquilo que, para seu espírito apaixonado, em todas as teorias tomadas a outros pensadores, serviram no fundo apenas como pretexto inconsciente, como motivo ocasional e involuntário para seu desenvolvimento interior. Chegando ao fim desse desenvolvimento, Nietzsche se concentra na idéia de uma unidade em sua vida interior, examinando-a e dominando-a,

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e enfatiza agora a unidade subjacente a todas as metamorfoses tão energicamente quanto outrora enfatizara, de modo exclusivo, sua capacidade de mudança. Como alguém pronto para partir de viagem, para a qual já não há retorno, quer se despedir e para tal reúne à sua volta o que outrora foi seu, agora vemos Nietzsche reunir o que é seu das diversas fases que percorreu com seu espírito. Empreende uma “avaliação do que desejava e do que alcancou, uma recapitulação da vida” (Crepúsculo dos ídolos, IX, 36) com a consciência de que “ele só faz retornar, ele volta enfim para casa: meu próprio ser e tudo quanto era dele e esteve por muito tempo em terras estranhas e foi disperso entre todas as coisas e acontecimentos” (Assim falou Zaratustra, “O viandante”, II, 1). Isso fez com que Nietzsche se tornasse injusto para com seus companheiros e suas convicções de outrora; quis esquecer as tantas vezes que definiram o rumo de seus próprios pensamentos. “Devem-se retirar os andaimes quando a casa fica pronta” (O andarilho e sua sombra, 335). Essa é a “moral dos construtores”, assim pensava Nietzsche, ignorando que jamais precisara dos andaimes para sua construção. Essa injustiça é, portanto, justamente oposta àquela passada, que nascia de sua apaixonada mudança de idéias, à energia com que, continuamente, retirava e exterminava a pele intelectual que vestira. Agora já não quer acreditar que, alguma vez, uma pele alheia o tenha envolvido. Essa injustiça se expressa de modo especial contra o positivismo no prefácio de seu livro Genealogia da moral, assim como em passagens dispersas de obras posteriores, e contra Wagner no opúsculo “O caso Wagner”. Esse trabalho traz à luz interessante comparação entre omodo como Wagner é combatido aqui e em Humano, demasiado humano, entre o ódio com que outrora se desvencilhara do wagnerismo e o ódio com que agora se reaproxima dele para ir em busca de suas propriedades intelectuais, sem renunciar | à sua autonomia. Por fim, seu desejo de ser considerado, desde o princípio, como autônomo e coerente apoderou-se dele de tal modo que, no prefácio (de setembro de 1886) à segunda edição do segundo

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volume de Humano, demasiado humano, esclareceu que todos OSseus escritos anteriores deveriam ser “antedatados”, que só se referiam àquilo que, na época de sua redação, ele já havia superado, àquilo que já estava atrás dele; o autor, que se encontrava numa posição superior à sua obra, teria se mostrado com um disfarce proposital. Assim, a quarta Consideração extemporânea, “Richard Wagner em Bayreuth”, deve ter sido, em sua glorificação a Wagner, apenas “uma homenagem e uma gratidão a uma porção do passado” e também os escritos positivistas, em sua concordância com as intuições de Rée, devem apenas fornecer a representação posterior de algo a que Nietzsche sobrevivera. À sua tentativa de inverter o sentido de suas obras, de, por assim dizer, apor-lhes uma data nova, se aplicam suas próprias palavras (prefácio da primavera de 1886 à segunda edição do primeiro volume de Humano, demasiado humano): “Talvez, com respeito a esse ponto, possam me imputar muitas “artes' e muitas sutis falsificações”. Isso faz parte também dos muitos disfarces desse ermitão que, por fim, se atribuiu uma máscara que nunca usou. Mas é compreensível e perdoável que também aqui, em seu coração, se imaginasse a si mesmo com tal máscara, ou seja, imaginasse o homem Nietzsche, em oposição a Zaratustra, como o místico além-de-Nietzsche. Obviamente, o ser humano Nietzsche não podia saber nada a respeito de seu caráter mascarado em cada uma de suas sucessivas metamorfoses; disso só era capaz o além-de-Nietzsche, que Nietzsche, desde o princípio, quis sentir e pressentir em si mesmo. Por conseguinte, o além-de-Nietzsche nada seria do que uma interpretação mística da essência e do desejo mais íntimo de Nietzsche, daquela “vontade básica” oculta, que, permanecendo-lhe totalmente inconsciente, como vimos, talhava as teorias alheias para finalmente impor-se a elas com plena força. No outono de 1888, após a conclusão do primeiro livro de Transvaloração de todos os valores (vontade de potência), ainda não publicado, acreditou Nietzsche, ao menos provisoriamente, ter concluído sua obra. Pois Crepúsculo dos ídolos, cujo prefácio data de 30 de setembro de 1888, foi visivelmente

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escrito numa atmosfera de conclusão e de espera pelo fim. Caracteristicamente, seu primeiro título era Ociosidade de um psicólogo, e, no prefácio, Nietzsche o denomina “um relaxamento”. É, contudo, uma ociosidade sumamente interessante, porque é daqueles livros de Nietzsche onde ele mais fregiientemente se revela e conversa sobre o segredo de sua alma. Nesse aspecto, assemelha-se, embora substancialmente menos importante, a Humano, demasiado humano e Aurora. Se, na primeira dessas obras, Nietzsche coloca algo de sua vida interior apenas no modo como se contenta psiquicamente com uma metamorfose súbita, mas definitivamente consumada, e se, no segundo, nos desvenda seu interior no modo como analisa e combate desejos e idéias emergentes antes de se deixar arrastar por elas a uma nova filosofia, em Crepúsculo dos ídolos é traído por uma disposição mental totalmente distinta: a paixão que vibra após uma realização monstruosa e um esgotamento, ao qual se mistura a expectativa do vindouro.'* Nessa comoção o vemos deslizar de um “crepúsculo dos ídolós” para um, por assim dizer, crepúsculo de seu próprio espírito. Esse mesmo estado de ânimo caracteriza também a quarta e última parte do poema de Zaratustra, concluída em 1885, mas só publicada em 1891. De suas páginas ressoa o riso do além-do-homem, mas já é um riso às vezes estridente e com estranhas dissonâncias. Esses últimos discursos de Zaratustra são, de um ponto de vista estritamente pessoal, talvez o mais comovente escrito de Nietzsche, porque o mostram como um náufrago que esconde seu naufrágio por detrás de um riso. Só nesse desfecho vemos claramente em toda a sua grandeza a implacável contradição existente no fato de ter Nietzsche apresentado sua filosofia do futuro como uma “gaia ciência”, um alegre saber, de tê-la denominado uma boa-nova, destinada a justificar para sempre a vida em toda a sua força, plenitude e eternidade, e de ter estabelecido como sua idéia mais elevada a do eterno retorno da vida. Só agora entendemos perfeitamente o triunfal otimismo que repousa sobre suas últimas obras, como o sorriso emocionante de uma criança, que mostra, porém, no reverso o rosto de um herói que esconde suas feições

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deformadas pelo terror. “Não será todo choro uma queixa? E toda queixa uma acusação?: Assim falas a ti mesma e, por isso, preferes, óminh'alma, sorrir a desabafar teu sofrimento” — canta Zaratustra (Assim falou Zaratustra,“Do grande anseio”, III, 104) e, portanto, segue adiante como “o príncipe escarlate de toda insolência” (Ditirambos de Dioniso, 7). “Essa coroa do que ri, essa coroa de rosas: eu mesmo a coloquei sobre minha cabeça, eu mesmo santifiquei minha risada” (Assim falou Zaratustra, “Do homem superior”, 18, IV, 87). Sua grandeza é que ele sabia que naufragava e, contudo, se despediu com a boca sorridente, “coroado de rosas”, perdoando, justificando e transfigurando a vida. Nos ditirambos dionisíacos extinguiu-se a vida de seu espírito, e aquilo que deveria abafar em seu júbilo era um grito de dor. Foi a última violência de Nietzsche feita por intermédio de Zaratustra. Certo dia proferiu Nietzsche o seguinte paradoxo: “Rir significa ser malicioso, mas com uma boa consciência” (A gaia ciência, 200). Essa malícia superior, que é capaz de se alegrar com as próprias penas e mesmo de causá-las a si própria, atravessa toda a vida e o sofrimento de Nietzsche como uma contradição heróica e como um riso heróico. Porém, na imensa força psíquica, pela qual pôde se situar acima de si mesmo, repousava para ele, do ponto de vista psicológico, uma justificativa interna: a de se considerar um duplo ser místico; e repousa para nós o sentido e o valor mais profundos de suas obras. Pois também nós ouvimos uma dupla ressonância comovente em seu riso: a risada de um louco e o sorriso de um vencedor.

NOTAS 1. Comparem-se a issoasseguintes declarações de Nietzschena obras de seuperíodoanterior: “Entre as verdadesdiligentemente exploradase semelhantes coisas “pressentidas' permaneceo abismoinsuperável e que aquelassejamdevidas ao intelectoe essasà necessidade.[...] temosapenaso desejoíntimo de

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quepossaser assime de que, portanto,aquiloque faz feliz tambémseja verdadeiro.Essedesejonosinduzacomprarrazõesmásporboas”(Humano, demasiadohumano,1, 131). Deixar-seinduzir por isso ou não — houve épocaem que isso definiupara Nietzschea hierarquiaentreos homens. “Que me importam[...] sutilezae gêniose ohomem[...] toleraem si sentimentosfrouxosna fé e no julgamento,se o anseiode certezanão é seu mais profunda,— como aquiloque desejomais íntimo e suanecessidade distingueohomemsuperiordo inferior!” (A gaia ciência,2). EemAurora (497)enaltececomoo sinalde verdadeiragrandezado pensador,em opo“o olhar puro e purificante,que não siçãoà genialidadetemperamental, e caráter”,massim que, não sendo parecetervindo de seutemperamento influenciadopor eles,refleteascoisas.“Senão tivessehavidoem todosos a disciplinade suacabeça de homensque sentissem temposum excedente — como seuorgulho,seudevere suavirtude;que —sua “racionalidade' ou ofendidoscom todafantasiae desvariodo sesentissemenvergonhados Sobreelapai[...] ahumanidadeestariahá muitoexterminada. pensamento rava e continuapairandoa loucuraprestesa irrompercomo o maior de o irromperdoprazerno sentir,ver e ouvir, seusperigos,ou seja,justamente o gozo na indisciplinado corpo, a alegriapelainsensatezdo homem. À antítesedo mundo dos loucosnão são a verdadee a certeza,mas sim a de uma crença,em suma,o não universalidadee a totalobrigatoriedade sentirprazernojulgar.E o maiortrabalhodoshomensatéagorafoi concordar entresi acercademuitascoisaseimporàsimesmosumaleideconcordância artistas [...], já o ritmolentoqueela(a crençacomum)exige[...] transforma sãoaquelesemque — essesespíritosimpacientes e poetasem desertores: irrompeum verdadeiroprazerpelaloucura,porquea loucuratemum ritmo Nietzschese voltacontra tãofeliz!” (A gaia ciência,76). E, acreditamos, seupróprioeu, maistarde,quandocensuraaosartistase àsmulheresaquele caráternão científicodo espírito,que se entregaà fantasiacom qualquer do sedutor,do vivificador,do hipótese,que“dá a impressãodo engenhoso, Igual a eles, amaioria“quer ser violentamentearrebatada Ffortalecedor”. para,dessemodo, obterum acréscimodeforça”, só poucos“têm aquele interesseobjetivoqueprescindedasvantagenspessoaise da vantagemdo acréscimodeforçamencionado.A primeiraclasse,delongepreponderante, é reconhecidaem todaparteonde o pensadorse comportae se designa como gênio,portantoum sersuperiorquedecidea quemcompetea autoridade.Na medidaem que o gênio dessaespéciesustenteo fervor das convicçõese despertea suspeitacontrao sentidoprudentee modestoda ciência,ele é um inimigo da verdade,mesmoque se tenhatomadocomo (Humano,demasiadohumano,1, 635). seupretendente” com isso, em Humano,demasiadohumano(1, 147), 2. Confronte-se o protestodeNietzschecontra“a artecomoevocadoradosmortos”,porque dopassado: atravésdocírculoderepresentação elaquerinfluenciaro presente de váriosséculose faz seusespíritosre“Ela tece[...] um laçoem tormno tornarem.Em verdade,é apenasumavida aparente,como sobretúmulos, o quedissonasce”,porémtemo mesmoefeitonocivoe regressivo,“Aqueles

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quedespertam e evocamosmortos”sãoconsiderados porNietzsche“homens vaidosos”,pois “apreciammaisum fragmentodo passadoa partirdo momentoem quepodemterempatiacomele” (Aurora, 159).Devemos,assim pensava,o maisquepossamos,agircontrao excessosentimental quepaulatinamente nos acometeunas mais diversasformasde todaa civilização passada:“[...] todaa cargade nossacivilizaçãose tornoutão grandeque uma superexcitação dosnervose dasforçasintelectuais é um perigogeneralizado, emesmoas classescultasdospaíseseuropeussãoquasesempre neuróticase em quasetodasas grandesfamíliashá um membropróximo da loucura.[...] contudo,faz-senecessáriauma diminuiçãodessatensão, dessefardoopressorda civilização, [...] devemosconjuraro espíritoda ciênciaquenostornamaisfriose céticos[...]” (Humano,demasiadohumano, 1, 244).“Se essaexigênciada civilizaçãosuperiornão for satisfeita, então, com todaa certeza,pode-seprevero cursoque tomaráa evoluçãohumana: o interessepelaverdadecessaráà medidaqueelanosofereçamenosprazer; a ilusão,o erroe a fantasiarecuperarão [...] o territórioqueantespossuíam: a ruínadaciênciae a recaídana barbárieserãoasconsegiênciasimediatas” (Humano,demasiadohumano,1, 251). 3. Ver, por exemplo,em O andarilhoe sua sombra:“As instituições democráticas são áreasde quarentena contraa velha pestedos desejostirânicos”(289).“É impossíveldoravante queosférteiscamposdacivilização sejamdenovo destruídosem umanoitepelasselvagense insensatas águas da montanha.Diques e muralhasprotetorascontraos bárbaros,contraas epidemias,contrao servilismofísico e intelectual!”(275). Antes,em Humano,demasiadohumano:“[...] as forçasmais selvagensabremcaminho [...] paraquedepoisumacivilidademaissuaveseestabeleça. Essasenergias terríveis— quechamamosdemal— sãoosarquitetos e pioneirosciclópicos da humanidade”(1, 246) atéque “as boastendênciasúteis,os hábitosdo caráternobrese tenhamtornadotão segurose universaisque já [...] não sejaprecisonenhumadurezanemviolênciacomo os laçosmaispoderosos entrehomeme homem,povo e povo” (I, 245).ParaNietzsche,ohomem violentofoi, como sempre,um seratrasadoe atávico,masjustamentepor issoum resíduoa ser extirpado,não um líder rumo ao futuro.“O caráter desagradável que [...] é violentoe irascívelcontraas opiniõesdivergentes, demonstra pertencera um estágioanteriorda civilizaçãoe é, portanto,um sobrevivente:pois o modo como trataos homensseriabom e adequado paraas condiçõesde uma épocaondeo direitoera o do maisforte; éum homematrasado.O outrocaráterqueé rico em simpatia,queganhaamigos por todaparte,que sentecomafetotudoquantocrescee setransforma[...] não reclamaa prerrogativade conhecersozinhoa verdade,masestácheio de umamodestadesconfiança;éum homemque se antecipa,quelutapor uma civilizaçãode homenssuperiores.O caráterdesagradável derivados temposem que os rudimentares fundamentos das relaçõeshumanasainda estavamporselançar;o outrovive nosandaressuperioresdessasrelações, o maisafastadopossíveldo animalselvagemque, presonos subterrâneos, nos subsolosda civilização,esbravejae uiva” (1, 614).

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4. Assim diz Nietzscheem Humano,demasiadohumano(1, 237):“O italianoocultavaem si todasasforçaspositivasquedevemos Renascimento à civilizaçãomoderna,ou seja: aemancipaçãodo pensamento,o desprezo daautoridade,a vitóriadaculturasobreapresunçãodoberço,o entusiasmo pela ciência”. era suaconcepçãodo gênioe da ambiçãode Igualmentecontrastante Napoleão,comonos mostraoutrotrechoda mesmaobra(1, 164): “[...] É, em todocaso,um sintomaperigosoquandoo homemé assaltadopor esse temorde si mesmo,quersetratedo famosotemordoscésaresou do temor do gênio;[...] demodoquecomeçaa vacilare a seconsideraralém-do-humano. [...] Em algunscasosraros,essaporçãode loucurapode ter sido em todasas natureza,transbordante tambémo medopelo qualsemelhante direções,semanteveintacta.Mesmona vidadosindivíduos,asalucinações têmcom freqiiênciao valor de remédiosque,pot si mesmos,sãovenenos; porém,em todo“gênio'queacreditaem suadivindade,o venenoacabapor por exemplo, semostrarà medidaqueo “gênio*envelhece;lembremo-nos, setransformou,graçasa essacrençaem de Napoleão,cujo sercertamente si mesmoe em sua estrelae ao desprezodoshomens,produzidopor ela, numaunidadepoderosaqueo distinguede todosos homensmodernos,até que, por fim, essamesmacrençase tornouum fanatismoquasedemente, da rapideze agudezade suavisãoe se tornoua causade sua despojando-o ' mínª,,. Em Aurora (549),Nietzschereduzo egoísmobrutalda ambiçãode Napoleãoà suadisposiçãoepilépticae não,comofarámaistarde,à erupção de um “excedentede saúde”daqueleque temno corpo todosos instintos violentosde umacivilizaçãopassada. por Nietzschepelo manifestado 5. Frenteao desprezoposteriormente caráterjudeu,leia-seemAurora(205)o aforismo“Sobreo povo deIsrael”: “[...] Paraondefluiráessaabundânciade grandesimpressõesacumuladas [...] essaabundânciade paixões,de virtude,de virtudes,de.decisões,de renúncias,de lutas,devitóriasde todotipo— paraondefluirásenão,por fim, para os grandeshomense grandesobras!Então, quandoos judeus paraessaspedraspreciosase essesvasosde ouro, quesãoobras apontarem suas,e que os povoseuropeusde experiênciamais brevee muitomenos profundanão podemproduzir [...] entãoretornaráo sétimodia no qual o antigodeusjudaico [...] poderáse alegrarde sua criaçãoe de seupovo eleitoe todosqueiramosnos alegrarcom ele!”, 6. Paraessasituaçãode livre gozoda individualidade,Nietzsche,em seu poemade Zaratustra,que poderfamoschamarde o supremohino do modernoindividualismo,encontrouasmaisbelaspalavras.Entreas mais características poderíamoscitar: “Quandofordesum homemde Uma vontadee essamudançadetoda se chamarparavós de indispensável:eis a origemde vossa necessidade virtude. Na verdade,ela é um novo beme um novo mal. Na verdade,é um novo e profundosussurroe a voz de umanovafonte! [...]

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L..]

LOU ANDREAS-SALOMÉ Permaneceifiéisà Terra,meusirmãos,com o poderdevossavirtude!

Não deixeisque vossavirtudefuja dascoisasterrestres e batacom as asascontraas paredeseternas.Ah, semprehouvetantavirtudeque se volatizou. Conduzi,como eu, a virtudeextraviadade volta à Terra— sim, de voltaaocorpoe à vida,paraquedê à Terraseusentido,umsentidohumano. Há mil trilhasque nuncaforampisadas,mil formasde saúdee mil ilhasocultasdavida. Inesgotáveis e desconhecidos permanecem os homens e a Terradoshomens”([“Da virtudedadivosa”,1 e 2), 1, 109). “[...] Queresbuscaro caminhoparati mesmo?[...] Entãomostra-me teudireitoe tuaforçaparatal! Chamas-te delivre? Queroouvir teupensamento dominantee não que escapaste de um jugo. [...] ' Livre de quê?Que importaisso a Zaratustra? Mas com clarezadeve teuolharme informar:livre para quê? Podesdara ti mesmoteubeme teumale suspendertuavontadeacima de ti mesmocomouma lei? [...]” (“Do caminhodo criador”,1, 87). “[...] Que vossoeu estejana açãoassimcomo a mãeestáno filho: queparamim sejaestavossapalavrade virtude!” (“Dos virtuosos”,1, 21). vossoeu mais querido,vossavirtude!” (“Dos virtuosos”,II, 18). “[...] radicalmente só seamao filhoe a obra,e ondeexisteum grande amorporsimesmo,eisum sinaldegestáção; issoé o quetenhoencontrado” (“Da bem-aventurança a contragosto”, III, 14). “Meu irmão,quandotensumavirtudee essavirtudeé tua,entãonão a tensem comumcom ninguém.f[...] Falae gaguejaassim: “[...) Não o quero como lei de Deus, não o quero como uma norma ou necessidade doshomens:[...) Mas essepássaroconstruiuem mim seuninho; por issoeu o amo e acaricio;ele agorachocaem mim seusovos dourados.'[...] Outroratinhaspaixõese as chamavasde más. Agora,porém,só tens virtudes:elasnasceramde tuaspaixões. Pusesteteuobjetivosupremono coraçãodessaspaixões:entãoelasse tornaramtuasvirtudese alegrias. E sefosteda estirpedoscoléricosou dosvoluptuososou dosfanáticos religiososou dosvingativos: No fim, todasas tuaspaixõesse converteramem virtudese todosos teusdemôniosem anjos” ([“Das alegriase daspaixões”],1, 45). 7. Schopenhauer compreende à músicacomoo reflexosonorodascoisas em si, 8. Uma idéia afim ressoaemA gaia ciência(84),quandoNietzsche vê o efeitodo culto orgiásticono aplacaros homense no libertá-losde suaspaixões,pois “elevandoao máximoo delírio e a animaçãode suas paixões,transformava-se o raivosoem frenéticoe o vingativoem bêbado de vingança:[...] todosos cultosorgiásticosqueremdescarregar de uma

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numa orgia de modo vez a ferocidadede uma divindadee transformá-la que,em seguida,essadivindadese sintamais livre emaistrangúila”. 9, Em relaçãoa essaidéia, leia-sea descriçãodo eternoretornoem Assimfalou Zaratustra,“Da visãoe do enigma”: “Olhaesseportal![...] eletemduascaras.Doiscaminhosseencontram aqui: ninguémaindao percorreuatéo fim. e a outralongarua Essalargarua paratrás:eladurauma eternidade; paraa frente:é outraeternidade. Eles se confrontam,essescaminhos;chocam-sejustamentede frente e aqui,nesseportal, éondeconvergem.O nomedo portalestáinscritoem cima: “*Instante”. Mas se alguémseguisseum deles,avançandosempremais,crêsque essescaminhosse oporiameternamente? Tudo quantopodecorrer,nãodeveráterpercorridouma vez essarua? Tudo quantopode ocorrer,nãodeveráterocorrido,tersidofeito,tertranscorridouma vez aqui? E se tudojá existiuaqui, o que pensas[...] desseinstante?Não terá esseportaltambémexistidoaqui? E não estãotodasas coisasenlaçadasde tal modo que esseinstante arrastaatrásde si todasas coisasvindouras?E portantoarrastaatéa si mesmo? Pois tudoquantopodecorrerdevetambémcorrerpor essalargarua paracima,maisuma vez! E essalentaaranhaque searrastaà luz da lua, e a próprialuz da lua, sobrecoisaseternas nesseportal,segredando e eu e tu, juntossegredando — não deveremostodosjá terestadoaqui? [...] e retornare corrernaquelaoutrarua,paraa frente,diantedenós, por essalongarua horripilante— e não deveremosvoltareternamente? Assim falavaeu e cadavez mais baixo, porqueme assustavacom meusprópriospensamentos e suassegundasintenções.[...]” Nissoacabaa narrativadocãouivantequepedesocorropara ohomem, O homem,um jovem pastor,tinhaumaserpenteaferradaà suagarganta. “Minhamãoarrancavaa serpente, arrancava:[...] em vão! Ela nãosaía da garganta.Entãosaiu de mim um grito: “Morde!Morde! Arranca-lhea cabeça!Morde! — assimera o gritoque saíade mim, meu horror,meu ódio, meuasco,minhacompaixão,todasasminhascoisasboase másgritavamem mim comoum só grito.[...] O pastor,porém,mordeucomo lhemandarameu grito; deuumaboa mordidae cuspiuparalongea cabeçada serpentee saltouparao ar. Não eramaishomemnempastor,masum sertransformado, iluminado e que ria! Nuncana Terraum homemriu comoele. meusimãos, ouvi um riso quenão erarisode homem[...]) eagora me devorauma sede,uma ânsiaquenuncaserásaciada.” | A serpentedo eternoretorno,que correem círculos,é aquelade que TZaratustra libertaos homens,arrancando-lhe a cabeça,suprimindoo que

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ela tem de absurdoe de terrível,e tornandoos homensseu senhor —o além-do-homem transformado, iluminadoe ridente: “Assim,resolve-meo enigmado que vi então,explica-mea visão do maissolitário! Pois foi uma visão e umaprevisão:que símbolovi então?e quemé aqueleque aindadevechegar?”. Cf. (“O convalescente”, 2, TII, 96): “[...] comoaquelemonstrorastejou paradentrode minhagarganta e me estrangulou! Maseu lhemordia cabeça e à cuspiparalongede mim!”, 10. O acasoquisque,provavelmente, umadasúltimasobrascientíficas com que Nietzscheseocupoua fundofosseum livro de observânciaestritamenteschopenhaueriana sobrea filosofiahindu, o queo aproximoumais umavez do círculode idéiasde suasprimeirasconcepçõesdemundo.É o excelentelivro de Paul Deussen,O sistemavedantasegundoos BrahmaSutrasdo Badarayanae o Comentáriodo CÇankara a respeito(Leipzig, Brockhaus,1883),no qualo autorapresenta e interpreta objetivamente seu tema,ao mesmotempoem que o julga de seuprópriopontode vista. É impossívelnegara influênciadesselivro nos escritosde Nietzschea partir de 1883,especialmente no que se refereà divinizaçãodo filósofo-criador e sua identificaçãocom o universale supremoprincípio da vida, assim comoaidéiadequeestecontémasecessão dosfatospassados, quecoexistem dentrodaalma,numametempsicose espaciale não temporal.Muitasvezes, ao confrontarmos as observações dispersas de Nietzschesobrea significação místicade algunsestadosd'alma,somostentados a escrever à margem,como explicação, aspalavras“Atman”e “Brâhman”. 11. Nietzsche-Zaratustra. 12. Os túmulosde tudoquantopassou,de tudoquantofoi. 13. Em oposiçãoà simplespesquisae ao conhecimento intelectualdo passadoatravésda ciênciaque nadapodelibertar. 14. Esseestadod'almaserefletemaisdiretamente nosDitirambosde Dioniso, surgidosna mesmaépoca(outonode 1888)e impressos apósa quartapartede Assimfalou Zaratustra. Especialmente característicos sãoos versosseguintes (5): Agora sozinhocontigo, divididoem teupróprio saber, entrecemespelhos, falso diantede ti mesmo, entrecem lembranças inseguro, cansadode todaferida, esfriadopor todogelo, sufocadona própriacorda, conhecedorde ti mesmo! carrascode ti mesmo!

O “SISTEMANIETZSCHE"” Agoraum enfermo, que adoeceupelo venenoda cobra; agoraum prisioneiro, que atraiua sortemais dura, no própriopoço trabalhando encurvado, embutidoem ti mesmo, enterrandoa ti mesmo, sempoder ser ajudado, teso, um cadáver—, À espreita, de cócoras, alguémquejá não ficaereto! Por mim, serássoldadoa teutúmulo, espírito deformado!...

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Apêndice

Este livro surgiu em Viena no ano de 1894, pela editora Carl Konegen. Em 1899 apareceuuma traduçãodinamarquesa:Friedrich Nietzschei hans Voerker, Santidem.Em 1911 saiu a 2º edição alemã, sem alterações.Na contracapase lia: “Não querendo discutir nem as obras póstumasde Nietzsche, publicadasnessemeio tempo, nem outras opiniões sobre ele, permito que este livro seja republicado sem alterações”. Em 1924 apareceua última ediçãoalemã,pela editoraCarl Reissner,de Dresden. A ortografiaestavamodernizada,faltavaa epígrafe no frontispício. Em 1974 surgiu uma traduçãojaponesa, pela editora Ibun Sha, de Tóquio. Possivelmentenão foi o objetivo de Lou Andreas-Salomé fornecer uma descriçãode Nietzschebaseadanuma exatidãofilológica. O profundo conhecimentoque tinha da pessoae do pensamentode Nietzsche beirou os limites do literal e levou, entre outras, a uma relação livre com suascitaçõesque são muitas vezes puras citações de memória. Assim, a referênciaa divergênciasnão pode ser entendida como crítica. Ela se apóia tantoquanto possível na Edição Crítica das Obras (KGW) ou da Correspondência(KGB) Completa de Nietzsche, publicadaspor Giorgio Colli eMazzino Montinari, pela editora Walter de Gruyter & Co., Berlim, 1967.Todas ascitaçõessãodadassegundo essaedição. Só nos referimos a divergênciasquando elasultrapassam

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a pontuaçãofidedigna. Os trechosdas cartasforam comparados com os originais. Com isso, os números citadospor último se referem às páginas; VI, 2, 27 significa, portanto: Obras de Nietzsche, parte VI, volume 2, página 27. As citaçõesde cartasestão assinaladaspela nota adicional (KGB). As cartasainda não contidasna KGB (que chega até o ano de 1884) são citadasde acordo com Friedrich Nietzsche/Paul RéelLou von Salomé. Os Documentosde seu encontro*. Publicação de Ernst Pfeiffer, Editora Insel, Frankfurt am Main, 1970 (Doc.). No textode Nietzsche, aspalavrassublinhadasde modo simples, ou impressasespaçadamente,vêm em itálico, assublinhadasde vários modos, em negrito. Cordiais agradecimentospela múltipla ajuda na compilação das notas vão para o sr. Mazzino Montinari, de Florença.

Do retratoà esquerdado frontispício: fotografia do ano de 1882.

A carta de Nietzsche, em fac-símile, que antecedeo frontispício: Minha querida Lou, sua idéia de reduzir os sistemasfilosóficos a atospessoaisde seus autores émesmo idéia de uma “alma-irmã”; eu mesmo lecionei história da filosofia antiga, em Basiléia, com essesentido,e com prazer dizia ameus ouvintes: “Esse sistemaestá refutadoe morto, mas apessoa por detrásdele é irrefutável;a pessoa não pode absolutamenteser morta” — por exemplo, Platão. Nessemeio tempo, o prof. Riedel, presidentelocal da Sociedade Musical Alemã, seinflamou por minha“música heróica”, querodizer, por sua Oração à vida; quer tê-la a todo custo, e é possível que eu faça o arranjo para seu magnífico coral chamado de “A Sociedade de Riedel”, um dos primeiros da Alemanha. Esse seriaum pequeno caminho pelo qual nós dois chegaríamosjuntos à posteridadeoutros caminhos à parte. No que toca à sua “caracterizaçãode minha pessoa”, é certo o que você escreve; assim é que me ocorreram meus versinhos de À gaia ciência, 10, intitulados Pedido”. Adivinhe, minha cara Lou, * FriedrichNietzsche/Paul Rée/Louvon Salomé.Die Dokumenteihrer Begegnung.

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o que peço? Ontem à tarde eu estavafeliz; o céu estava azul, o ar cálido e límpido; encontrava-meno Rosenthal, para onde me levara a música de Carmen. Lá fiquei sentadopor três horas, tomei o segundo conhaque deste ano em lembrança ao primeiro (ah, como tinha um gosto ruim!) e pensei com toda a inocência e malícia se não teria qualquer predisposiçãopara a loucura. Por fim disse amim mesmo que não. Então começou à música de Carmen, e por meia hora submergi em lágrimas e palpitações.— Mas, quando você ler isto, dirá finalmente — sim! — e colocará uma nota em minha caracteTrização. Mas venha logo para Leipzig! Por que só em 2 de outubro? Adeus, minha cara Lou! Seu F. N. Nietzsche escreve esta carta de Leipzig, provavelmente em 16 de setembrode 1882,para Lou von Saloméque passavaférias como hóspede da família Rée, em sua fazenda Stibbe bei Titz, Prússia Ocidental. III, 1, 259 (KGB). O “pedido” em À gaia ciência a que se referea cartase expressa assim: Conheçoo espíritode maisde um homem E não sei quemsou eu mesmo. Meu olharestádemasiadopróximode mim. Não sou o que vejo e vi. Ser-me-iamaisútil Pudesseestarmaislongede mim mesmo. Por certonão tãolongequantomeu inimigo! Longe demaisjá está oamigomaispróximo. Porém, entreele e mim: no meio. Adivinhais o que estoupedindo? (“Brincadeira,ardile vingança”,25) Em 27 de março de 1882 escreveMalwida von Meysenbug, de Roma, a Nietzsche, em Gênova: “Uma jovem muito notável (creio que Rée já lhe escreveu a respeito dela) que, entre muitas outras, devo a meu livro; parece-meque, no pensamentofilosófico, ela tenha chegadoaos mesmos resultadosque você até agora, [...]” III, 2, 247 (KGB). Paul Rée, que conheceraLou von Saloména casade Malwida von Meysenbug, em 15 de março, realmente escreve a Nietzsche sobre ela. A carta não foi guardada, mas a respostade Nietzsche foi, redigida na máquina de escreverrecebidapouco antes,por meio de Rée, em Gênova, em 21 de março. Ela contém.as frases: “Cum-

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primente essa russapor mim se isso tiver algum sentido: sou ávido por esse tipo de alma. Sim, em breve vou à sua cata — [...]” III, 1, 185 (KGB: FE,em setembrode 1882,Nietzscheescrevede Leipzig a Franz Overbeck, na Basiléia: “Porém, o que de mais proveitoso fiz nesteverão foram minhas conversascom Lou. Nossasinteligências e nossos gostos são profundamenteafins — [...]” III, 1, 255 (KGB). Mais ou menos dois meses mais tarde ao mesmo Overbeck: “Para mim, pessoalmente,Lou é um verdadeiro achado da sorte; ela preencheutodasas minhas expectativas.É raro que duas pessoas possam ser tão afins quanto nós o somos”. III, 1, 276 (KGB). Mesmo em agosto de 1883, portanto, muito tempo após sua separaçãodefinitiva de Lou von Salomé e de Paul Rée, em meio ao período das querelas e embaraçospor ela provocados, escreve a Ida Overbeck, a mulher de seu antigo colega de Basiléia: “E agorauma palavra sobre a srta. S. [...] nunca achei ninguém tão livre de preconceitos,tão sensatoe tão preparado para meu tipo de problemas. Desde então, para mim, é como se eu estivessecondenado ao silêncio ou à hipocrisia humana na relação com todos os homens”. III, 1, 423 (KGB). (Somos lembrados do $ 232 de Humano, demasiado humano, volume 2: “Homens profundamente pensantessentem-secômicos no trato com os outros, porque, a fim de serem compreendidos, devem primeiro simular uma superfície” [IV, 3, 1217). Na já citada carta de setembro de 1882 escreve Nietzsche a Franz Overbeck: “Tautenburg deu a Lou um objetivo. — Ela me deixou um emocionantepoema “Oraçãoà vida* ” III, 1, 256 (KGB). Lou Andreas-Salomé escreve a respeito em sua Retrospectiva de vida*: “A forma poética mais característicanesse sentido, que surgiu na Suíça, após a partida da terra natal russa [setembro de 1880] e por mim chamada “Oração à vida' [...]” (Retrospectivade vida. Edição de Emst Pfeiffer. Editora Insel, Frankfurt am Main, 3º ed., 1977, p. 40). Diz o poema: Tão certo quanto o amigo ama o amigo, Também te amo, vida-enigma Mesmo que em ti tenha exultadoou chorado, Mesmo que me tenhas dado prazer ou dor. Eu te amo junto com teus pesares, E mesmo que me devas destruir, * Lebensriickblick

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“Desprender-me-ei de teus braços "Como o amigo se desprendedo peito amigo. Com toda a força te abraço! Deixa tuas chamasme inflamarem, Deixa-me ainda no ardor da luta Sondar mais fundo teu enigma. Ser! pensar milênios! Fecha-me em teus braços: Se já não tens felicidade a me dar Vamos, ainda tens tua dor. Lou Andreas-Saloméacrescenta:“(Depois que, em certaocasião, a escrevi de memória para Nietzschee ele lhe colocou música, fluía mais solenemente,sobrepés um pouco mais prolongados.)” (Retrospectiva de vida, p. 41). Esta versão está impressa em KGW III, [, 249. O editor completa: “Lou dizia sobre o final do “bombástico poema', que para ela expressavaseu desejo de ainda abraçartotalmente a vida “despojada'pela perda de Deus; para Nietzsche o final fora uma expressão de seu amor fati” (Retrospectiva de Vida, p. 225). O aludido interessedo prof. Riedel provocou já em setembro de 1882 uma modificação da composição de Nietzsche (a melodia provinha de uma época anterior) paraum coro a quatro vozes. (Doc. 233). Como “Hino” foi publicado em 1887: “ “O hino à vida”, a única das composições que Nietzsche publicou, forma igualmente uma conclusão. De certo modo, ela é o extrato do “Hino à amizade' de 1873/74. O prelúdio e os dois interlúdios de então são abandonados,e só resta o núcleo sólido, as estrofestrês vezes descontínuas do hino. Não só à mãe, mas em primeiro lugar a ela, escreve Nietzsche sobre essa peça musical: “A única de minhas composições que deverá aparecer, de modo que, em algum tempo, se tenha algo que possa ser cantado em minha memória'. [...] A partitura só apareceuno final de outubro”. (Curt Paul Janz, Friedrich Nietzsche,volume 2. Editora Carl Hanser, Munique, 1978, p. 540). O próprio texto,a predileçãode Nietzschepor ele e seusesforços contínuos de ter o hino impresso e apresentado,levaram sempre à suposiçãode que era de sua autoria.Assim, sentiu a necessidadede escrever em 1888, em Ecce homo: “Do mesmo modo pertence a

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esse intervalo aquele Hino à vida [...] O texto, digamo-lo expressamente, porque há um mal-entendido a respeito, não é meu: é a assombrosa inspiração de uma jovem russa, de quem fui amigo na época, da srta. Lou von Salomé” (VI, 3, 334). Versinhos: Ver página 231 acima. Rosenthal: Um parque em Leipzig. Num pós-escritode uma carta a Peter Gast de 16 de setembro de 1882 escreve Nietzsche: “A notícia mais recente: no dia 2 de outubro Lou vem para cá; algumas semanasmais tarde viajaremos — para Paris, e lá ficaremos, talvez um ano. — Minha proposta”. , 1, 263 (KGB). Página 27 Epígrafe: O título do aforismo 513 diz: “A vida como produto da vida” (TV, 2, 335). Página 29 “Mihi ipsi scripsi!”": Eu escrevi para mim mesmo. Como na carta a Paul Rée, de cerca de 10 de junho de 1882. III, 1, 202 (KGB) (sem ponto de exclamação). “Aos poucos evidenciou-se...”: VI, 2, 13. Página 30 [...] em outubro de 1882: Em princípio de outubro de 1882 chegam Lou von Salomé e Paul Rée a Leipzig. Ficam até 5 de novembro. Foi o último encontro de Nietzsche, Rée e Lou von Salomé. Nota 1: O ensaio em três partesno suplemento dominical do VossischeZeitung tinha o título: Friedrich Nietzsche. Apareceu nos dias 11, 18 e 25 de janeiro de 1891. Os cademos 3, 4 e 5 do ano T da Freie Biihne apareceramnos dias 21 e 28 de janeiro e em fevereiro de 1891, respectivamente. Os cadernos3 e 5 do ano III apareceramem março e maio de 1892, respectivamente.O ensaio “Um apocalíptico” (A teoria do eterno retomo de Friedrich Nietzsche juntamente com trechos de cartasnão publicadas) apareceuna Magazin fiir Literatur, ano 61, nº 47, de 19 de novembro, e nº 48, de 26 de novembro de 1892. “Ideal e ascese”apareceu no Suplementodo Berliner Tageblatt: o Zeitgeist,nº 20 de 15 de maio de 1893.

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Todos esses quatro trabalhos influenciaram o conteúdo e, em grandeparte,a formulaçãodo presentelivro, no qual as idéias básicas foram, graças também ao acréscimo de citações de Nietzsche, desenvolvidas mais amplamente. Nota 2: A citaçãoprovém do prefácio I (VI, 2, 259). Ela começa: “Aliás, no que diz respeitoà vida, às ditas...” Dois pontos depois de “ “dentrodo assunto””, Página 31 “Fala o desiludido. [...]” (VI, 2, 91). A queixa de seu “Zaratustra” (VI, 1, 208): “Eles todos falam de mim quando à noite sentamem volta do fogo, — eles falam de mim, mas ninguém pensa — em mim! [...] um manto sobre meus pensamentos. Página 32 [...] único filho [...]: Nietzsche teve um irmão, Joseph. Nasceu em 1848 e morreu em 1850. [...] seguindo-o [...]: Isso não deve ser entendido como uma causa absoluta; em 25 de maio de 1865 escreve Nietzsche a seu amigo Carl von Gersdorff: “Assim que me escreve para dizer que quer ir para Leipzig, também me decido firmemente [...] Depois de ter tomado essa decisão, ouço falar também da partida de Ritschl, o que me reforçou em minha decisão”. 1, 2, 56 (KGB). sua mãe ele escreveem 29 de maio: “Eu tenciono mesmo ir para Leipzig [...] que o nosso Ritschl irá para Leipzig; essaé a causa principal”. 1, 2, 58 (KGB). [...] irmã Elisabeth [...]: Nasceu em 10 dejulho de 1846 (morreu em 8 de novembro de 1935) e se casou com dr. Berhard Fôrster em 22 de maio (aniversário de Wagner) de 1885. Nietzsche nunca fora seu amigo e nunca foi, Só o conheceu depois do casamento, por ocasião de uma festa em família em seu aniversário, em 15 de outubro de 1885, em Naumburg. Nesse mesmo dia escreve ele de Leipzig a Heinrich von Stein (pós-escrito): (“Em uma hora parto para Naumburg; lá verei finalmentepelaprimeira vez o dr. Fôrster”.) (Doc. 363). (O dr. Fôrster, que ele conheceradez anos atrás,era o dr. Paul Fôrster, irmão do futuro cunhado. Também não chegou a ser amigo dele: “Certo dr. Fôrster de Berlim veio me conhecer. Causei uma impressão repugnantegraças à minha franca expressão”. [a Overbeck, 14 de julho de 1875] TI, 5, 79 KGB).

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Página 33 “Algumas vezes [...]”": De uma cartaa Paul Rée em Nassau, de St. Moritz, fim de julho de 1879. II, 5, 430 (KGB). Malwida von Meysenbug: Malwida Freiin von Meysenbug, nascida em 1816 em Kassel, morta em 1903 em Roma. Depois de ter rompido com as idéias de sua família, tornou-se uma das figuras eminentes na luta pela emancipação da mulher, sobretudopelo direito à educação.Freqiientouem Hamburgo a Escola Superior para Mulheres, dirigida por Karl Frôbel, fechada sob a pressãodos reacionários. Expulsa de Berlim pela polícia, refugiou-se em Londres. Tornou-se mãe adotiva das três filhas de Alexander Herzen, o escritor revolucionário russo, que igualmentevivia exilado em Londres (desde 1852). Traduziu as memórias de Herzen para o alemão. Em 1855 encontrou-secom Wagner, com quem se corresponderadurante anos, enquantoestivera em Londres. Em 1862 foi para a Itália com Olga Herzen. Foi madrinha do casamentode Wagner com Cosima von Biillow em 1870, em Tribschen, às margens do lago dos Quatro Cantões. As citadasMemórias de uma idealista apareceramem 1869 (1* parte) anonimamente,em Basiléia e Genebra: Mémoires d'une idéaliste (entre deux révolutions 1830-48). A continuaçãoem três volumes foi publicada em 1876, em Stuttgart,eem 1898 apareceucomo complemento o Crepúsculo da vida de uma idealista. Aqui ela descreve também a chamada estadaem Sorrento. Malwida von Meysenbug conheceu Nietzsche no lançamento da pedra fundamental do Teatro dos Festivais em Bayreuth, em 22 de maio de 1872. Desde 1877 ela viveu em Roma. Em sua casa se conheceramLou von Salomé e Paul Rée, em meados de março de 1882; Nietzsche aí chegou no final de abril. Dr. Paul Rée: Nasceu em 21 de novembro de 1849, em Bartelshagen,Pomerânia. De início, segundo a vontade paterna, estudou direito. Após a guerra de 1870/71, seguindo a própria inclinação, estudoufilosofia. Em 1875doutorou-seem Leipzig. No mesmo ano apareceuseu livro Observaçõespsicológicas; em 1877, A origem dos sentimentosmorais; em 1885, O nascimento da consciência. Estudou medicina no final dos anos 1880 em Berlim e depois em Munique, prestou seu exame em 1890 e viveu nos dez anos

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seguintes como médico dos pobres na Prússia Ocidental. Em 1900, tendoseu irmão deixado a propriedadede Stibbe,foi para oEngadina como médico da populaçãomontanhesa.Em 28 de outubro de 1901 precipitou-senuma queda mortal. Quando seu amigo Heinrich Romundt tornou-se livre-docente de filosofia em Basiléia, no semestredo verão de 1873, Rée seguiu-o para lá onde veio à conhecer Nietzsche. Também assistiu a suas preleções. [...] de nome Brenner [...]: Albert Brenner nasceu em 1856 em Basiléia e lá morreu em 1878. Primeiro foi aluno de Nietzsche no Paedagogium, depois seu ouvinte na universidade, onde estudoudireito como disciplina principal. Página 35 “Há homens[...]”: VI, 2, 243. Nota 3: VI, 1, 21. Aí se lê: “[...]; e quem ainda tem orelhas para o inaudito [...)”. “Suas possibilidades ainda inesgotadas”:VI, 2, 63. Aí se lê: “[...] toda a história da alma até agora e suas possibilidades ainda inesgotadas:isso é para um psicólogo nato e amigo da “grande caçada” o lugar de caça predestinado”. Página 36 [...] ao falar com Nietzsche pela primeira vez [...]: Em sua Retrospectiva de vida ela escreve a respeito (p. 80): “Já me recordo dessasolenidadedesdenosso primeiro encontro,que ocorreu na igreja de São Pedro, onde Paul Rée, num confessionário orientado de modo especialmentefavorável para a luz, se dedicava às suasnotas de trabalho com ardor e devoção, e onde por isso Nietzsche havia sido citado. Sua primeira saudaçãoa mim foram as palavras: “De que estrelascaímos nós aqui, um em frente ao outro?* ” Em adição a isso, Malwida von Meysenbug escreve, supostamente em 26 de abril de 1882, à sua filha adotiva Olga MonodHerzen: “[...] adivinha com quem estivealgumashoras ontem à tarde na Villa Mattei equem espero hoje à noite? Nietzsche” (Doc. 420). Provavelmente Nietzsche, nessa primeira tarde, indagou a respeito de Lou von Salomé e Rée, e talvez o mencionado encontro tenha acontecido já em 25 de abril. “Em tudo [...]”:; V, 1, 305. O título do aforismo é “Questões : o : posteriores”.

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“Homens profundamentepensantes[...]”: IV, 3, 121. O título do aforismo é “O profundo”. Página 37 “pele que [...]”: VI, 2, 47. Aí se lê: “[...] Hoje quando, pelo menos entrenós, imoralistas,reina a suspeita de que o valor decisivo de um ato reside justamentenaquilo que tem de não-intencional e de que toda a sua intencionalidade,tudo quanto se pode ver, saber e “comprovar' dele pertence ainda à sua superfície ou pele, que, como qualquer pele, revela alguma coisa, mas que esconde ainda muito mais?” “Pois — diz Nietzsche — ou [...]”: IV, 3, 153. O aforismo “Opinião definitiva sobre asopiniões” começa assim: “Ou ocultamos nossas opiniões, [...]”. “Ocultos sob [...]”: VI, 2, 58. Aí se lê: “[...] em muitas paragens do espírito, como em casa, [...], com planos anteriorese posteriores que nenhum pé poderia percorreraté o fim, ocultos sob os mantos da luz [...]”. “Tudo quanto é profundo [...]”: VI, 2, 53-54. “Andarilho, quem és tu? [...]”: VI, 2, 239. “Mediocridade como [...]”: IV, 3, 265. ; “[...] às vezes, a própria loucura [...]”: VI, 2, 236. O itálico é de Lou Andreas-Salomé. Página 38 “O para sempre [...]”: III, 1, 102 (KGB). Carta de 8 de julho de 1881, de Sils-Maria, para Rée, em Stibbe. “O deserto [...]”: IV, 3, 37. O aforismo “O heróico” termina assim: “O herói traz sempre consigo o deserto e o santuárioimpenetrável aonde quer que vá”. “A solidão, e por certo [...]”: III, 1, 44 (KGB). Carta de Stresa a Rée em Stibbe. Página 39 “Lastimo [...]”: III, 1, 124 (KGB). A cartaé dirigida aPaul Rée em Stibbe. “saber a novo”: VI, 3, 79 “tragadapela vitória”: 1 Coríntios, 15. !ªãgina 40 “[...] o excesso de força”: VI, 3, 51.

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Nota 4: III, 1, 6. Diz o original: “Não haverá um pessimismo da “força? Uma predisposiçãointelectualpara o duro, o horrível, omau, o problemático da existência, disposição proveniente do bem-estar, da saúdetransbordante,daplenitude da existência?Não haverá talvez um padecimento na própria abundância?” A última frase está em UI, 1, 10; em Nietzsche, em itálico apenas saúde. “O que não me [...]”: VI, 3, 54. O título do aforismo 8 é “Da escola bélica da vida”. “Espírito é a vida [...]”": VI, 1, 130. “Aquela tensão [...]”: VI, 2, 167. Página 41 “Esse pensador [...]”: IV, 3, 300. O aforismo 249 tem por título ' “Positivo e negativo”. “Estou indo [...]”: Provavelmente não é citação de Nietzsche. Devo levar mais longe meus pés [...]”": V, 2,226. “porque” em itálico. “Quem alcança seu ideal,...”": VI, 2, 86 Nota 5: V, 2, 194. Depois de “lá” faltauma frase: “Na verdade, não percebemosque viajávamos”. Página 42 “Lutador que venceu a si mesmo [...]”: VI, 2, 253. No canto final “Do alto dos montes” se Jlê: “Tornei-me outro? E estranho amim mesmo? De mim mesmo fugido? " Um lutador que vencera a si mesmo muitas vezes? [...]” Nota 6: IV, 2, 329 | “Não nos deixaríamos [...]”: IV, 3, 336. O aforismo 333 tem por título “Morrer pela “verdade*”. “Nunca reter [...]”: V, 1, 246. Ponto de exclamação depois de “pensamentos”, Minúsculas para “ti”, “teu”, “tua”. Nada em itálico em Nietzsche. “É o espírito que [...]”: IV, 2, 374. O aforismo 637 termina com as seguintespalavras: “[...] como nobres traidores de todas as coisasque podem ser traídasem suma e, no entanto,sem sentimento de culpa”. “[...] Devemos ser [...]”: IV, 2, 367. “Invulnerável [...]”": VI, 1, 141.

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APÊNDICE de “que” até “mesmo” em itálico.

Página 43 “confiou este segredo [...]”": VI, 1, 144; Nota 7: V, 1, 234. O aforismo 327 tem por título “Uma fábula”, KGW: “[...], mas ele tem espírito, [...)”. Página 44 Nota 8: VI, 3, 67. “Nossos defeitos[...]”: IV, 3, 46-7. O aforismo 86tempor título “Com que vemos nosso ideal”, | “O que nos toma [...]”: V, 2, 197. A pergunta é o título do aforismo 268, portanto: “Ir ao mesmo tempo [...]” “L...] trêsaforismos [...] anotou”: Em agostode 1882, em Tautenburg, III, 1, 243 (KGB). Nota 9: VI, 3, 145. Página 45 “anarquia [...]”: VI, 3, 63. Página 46 “a vida [...]”: V, 2,233. “A [...] ”: a frase inteira no texto está entre aspase em itálico. “Queremos [...]”: V, 2, 231. KGW: Cobaias. “Áspero e suave [...]”: V, 2, 27. (Título: Provérbio); não há aspas. “a Deus, ...”: VI, 2, 58-9. O contextoé: “Que há de maravilhoso se nós, “espíritoslivres', não somosjustamente os mais comunicativos? [...]Em muitas paragensdo espírito, como em casa, [...] gratos a Deus,. L.ea]%: “que tem a escada [...]”: VI, 1, 257. O contexto é: “Qual éa espécie de ser mais elevada e qual a mais baixa? O parasita é a espéciemais paixa; porém, o da espéciemais elevada é aquele que alimenta mais parasitas. A alma que tem a escadamais longa e capaz de descer mais fundo: como não há de abrigar em si omaior número de parasitas? [...] a alma mais abrangente[...]”.

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Página 47 “mil pés [...]”": VI, 2, 136. A transição“Com alma semelhante [...]” não é correta. No aforismo citado se lê: “Os perigos para o desenvolvimento do filósofo são hoje em dia, na verdade, tão múltiplos que podemos duvidar que esse fruto se tome enfim maduro. L...] Justamentea finura de sua consciência intelecíual o faz talvez titubeara caminho e se atrasar;ele temeas seduçõespara o diletante, para o ser de mil pés e mil tentáculos,[...]”. “Uma vez [...]”": IV, 3, 327. O aforismo 306 tem por título “Perder-sea si mesmo”; “perder” em itálico, “para sempre” em vez de “sempre”. “Já me é odioso [...]”": V, 2, 32. Os quatro primeiros versos foram omitidos. “L...] é um homem [...)”: VI, 2, 245. O aforismo começa com as palavras: “Um filósofo é um homem [...]” Apenas “sua” em itálico. Ponto-e-vírgula depois de “natureza”. “Quem, porém, [...]”: VI, 2, 14. “inspiradores” em itálico. Dois pontos depois de “domínio”. Depois de “filosofar” ponto e travessão. ô “testemunhodecisivo [...]”: O final do aforismo 6 trata nãodo conhecimento do cognoscente,mas sim da moral do filósofo: “Ao contrário, não há no filósofo absolutamentenada de impessoal; e, particularmente,sua moral dá um testemunhodecisivo de quem ele é — [...]”. Ponto depois de “natureza”. Página 48

Ú

“organização coletiva dos impulsos e afetos”: VI, 2, 21. Lê-se: “[...] e conceitos como [...] “alma como organização coletiva dos impulsos e paixões' terão doravante direitos civis na ciência”. “experiência [...]”: V, 2, 232. O aforismo 324 tem por título “In media vita”. “Pareço [...]”: Essa alocução direta de Nietzsche foi anotadade memória. No diário de Tautenburg,em 18 deagosto,Lou von Salomé toma a seguintenota: “Em suaessência,tal como uma velha cidadela, tem Nietzsche muitos calabouços escurose celas ocultas que, num conhecimento superficial, não sobressaeme que, contudo, podem conter o que ele tem de mais verdadeiro”. (Doc. 185). “O suspiro [...]”: V, 2, 193,

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Página 49 “Quiséssemos e [...]”: V, 1, 152. “É preciso [...]”: VI, 1, 13. A frase começa assim: “Eu vos digo: é preciso [...]”. — “Uma espécie de [...]”: IV, 3, 302: itálico “Quando se tem [...]”: VI, 2, 86. Página 50 "“Quem alcança seu [...]”": VI, 2, 86. “sua superfelicidade[...]”: V, 2, 35. “ferido pela [...]”: VI, 1, 102. Aí se lê: “Ferido estoupor minha i felicidade: [...]”. “Causar sofrimentos [...]”: IV, 2, 348. Nota 10: VI, 2, 166. Página 53 “[...] libera da necessidade[...]”: III, 1, 11. O contextoé: “De fato, o livro inteiro só conheceum [...] Deus-artista,[...] que, criando mundos, se libera da necessidadede abundância e superabundância, do sofrimentodos opostos comprimidos dentro dele”. “No homem [...]”: VI, 2, 167. Dois pontos depois de “dia”. “rei Viçvamitra”: filósofo ascéticodos Vedas. ““que, graçasa mil anos [...]”: VI, 2, 378. “O triunfo [...]”: V, 1, 101. ““carboniza” não está em itálico. “[...] teráde fato [...]”: V, 1, 102. O aforismo 113 (“A aspiração a distinguir-se”) não termina com essa frase. Humano... 1, 137”: IV, 2, 130-1. Aspas antes de “Existe”. Página 54 M “certas [...] ser” não está em itálico.—|“spernerese sperni': desprezarpara ser desprezado. (Bernhard von Clairvaux). Citação de Goetheem À viagem italiana, que pode ter sido a fonte de Nietzsche. (Cf. Edição de Hamburgo, 5* ed., volumé XI, p. 466). “um [...] vaidade” não está em itálico. “O homem”: KGW: “[...]: ohomem [...)” “endeusar... tiranicamente” não estáem itálico.

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“E...] Realmente, [...]”: TV, 2, 132. “[...] ele flagela [...]”: IV, 2, 138. o que, no fundo: KGW: [...], assim, o que, no fundo [...]. Citação de Novalis: Escritos de Novalis, Sociedade Científica do Livro, Darmstadt 1968, vol. 3, p. 568: “É curioso que, por muito tempo, a associaçãode volúpia, religião e crueldadenão tenha chamado a atençãodas pessoassobre seu íntimo parentescoe tendência comum”. (O texto na edição Schlegel/Tieckschen(3) de 1815, vol. 2, p. 250, coincide com o texto de Nietzsche). “emoção [...]”": Formulação de Lou Andreas-Salomé. Sobre o limiar da loucura: a quarta parte do Zaratustra é essencialmente mais agressiva e polêmica que as três primeiras partes. Isso levou a uma demora da edição. “substituto “para* [...]”: refere-se certamentea V, 2, 158: “O homem louco”. — “[...] Eu busco a Deus! [...] Terá Ele se extraviado?” " N Nota 12: V, 2, 33 Página 55 “Diz o homem pio” é o título: em itálico e ponto depois de pio”. “Deus [...] criou”: sem aspas, travessãono final. Travessão depois de “[...] Deus!” “resquício da tendênciareligiosa [...]”: IV, 3, 188. Aí se lê: “A Vvontadede ter apenas certezasnesse campo é um resquício do impulso religioso [...]” (O discurso é das “primeiras e últimas caixas”). “O sol já [...]”": IV, 2, 188. KGW: “[...]; o sol [...] já [...]”. “Para onde foi Deus?”: V, 2, 158-9. “Não [...] dele”: não está em itálico. “Mortos [...]”: VI, 1, 98. A fraseinteiraem itálico. Pontodepois de além-do-homem. Página 56 “Se houvesse deuses [...]”": VI, 1, 106. KGW: [...]: se [...]. “E haverá adoração [...]”": VI, 1, 148. KGW: [...]; ehaverá adoração [...] tua [...]. Nada em itálico. “Um à minha volta [...]”: VI, 1, 67. Aspas depois de “demais” e antes de “sempre” (ambas as frasesestão em discurso direto).

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“Destino [...]”: VI, 2, 267. O contexto é: “Porém, no dia em que, de pleno coração,dissermos: “avante!tambémnossavelha moral pertence à comédia!* teremos descobertopara o drama dionisíaco do “destinoda alma* um novo enredo e uma nova possibilidade E Página 57 “anarquia [...)”: VI, 3, 63. Página 58 “Há duas espécies [...]”: VI, 2, 199. Nota 14: “Os animais têm uma idéia [...]”: V, 2, 106; caráter dos contemplativos: KGW: “der”. “a terrafecunda[...]”: IV,3,240. O aforismo 118 começaassim: “Herder. — Herder não é nada daquilo de que se fazia crer (nem mesmo daquilo que desejava imaginar): nem um grandepensador e inventor, nem a terra fecunda e nova, com a força inexplorada da florestavirgem”, Página 61 “A cobra [...]”: V, 1, 334. Página 63 “liso e suave como uma pele sã”: numa carta de Basiléia para Rée em Stibbe (20 de outubro de 1878): “Será que o destino nos reserva uma bela velhice, já que talvez nosso modo de pensar se ajuste a ela como uma pele sã, do modo mais natural possível?” , 5, 356 (KGB). Página 64 “Em circunstâncias[...]”": VI, 2, 87. Página 65 “vejam um [...]”: VI, 1, 207. “brinquedo literário”: VI, 2, 261. O contexto diz: “De fato, já com treze anos, eu era perseguidopelo problema da origem do mal: numa idade em que, “em parte os brinquedos, em parte Deus preenchem o coração', dediquei a ele esse meu primeiro brinquedo

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literário, minhas primeiras garatujasfilosóficas— e no que se refere à “solução* que dei na época ao problema, honrei a Deus, como é justo, fazendo-o o pai do mal. Página 66 Nota 1: O resumo sobre os trabalhosfilológicos publicados por Nietzsche não está completo. Página 67 “Uma coisa [...]”: VI, 2, 88; que se esclareceudeixa [...]: KGW: que se esclarecedeixa [...] “ser derrubadoao chão”: VI, 3,23. Isto é: “[...), seupatosderruba ao chão qualquer gosto, qualquer oposição”. — Provavelmente há uma referência à seguinte frase da carta de 27 a 28 de junho de 1882: “Fui, defato, [...] derrubado ao chão — [..]” 213).

(KGB III, 1,

Página 69 “A filigrana [...]”: VI, 3, 8. Aí se lê: : S | Já se notou que a música torna livre o espírito?que dá asasao pensamento?que quanto mais nos tornamos filósofos, tanto mais nos tornamos músicos? O céu cinzento da abstraçãocomo que sacudido por relâmpagos;a luz forte demais para toda filigrana das.coisas [...]”. Nota 2: V, 1, 9. O contexto diz: “A filologia é aquela arte respeitável, [...] ela não leva a cabo qualquer coisa facilmente, ela ensina a ler bem, isso significa ler lenta,profunda e cautelosamente, com segundasintenções [...)”. “por entre figuras [...]”: IV, 2, 221. Página 70 o “como numa [...]”: IV, 2, 220. “livre do encantamento[...]”: IV, 2, 220. “de uma nova possibilidade [...]”: IV, 2, 221. Aí se lê: “E, contudo, mal existe uma perda mais penosa que a de um tipo, que a de uma nova e mais elevadapossibilidade de vida filosófica ainda por descobrir”.

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Página 71 “que, na verdade, não é [...]”: o referido texto não consta da KGW até o presentemomento. Da edição Hanser, em trêsvolumes, publicada por Karl Schlechta (8* ed., 1977), consta a citação no volume 3, p. 173-4: “[...] das clarasformas divinas [...]”. Schlechta: “[...] das belas e claras [...)”. “Sócratese a tragédiagrega”: esse texto também apareceuem 1871, como edição particular. “E. W. Fritsch": o correto é Fritzsch. Nota 3: Filologia do Futuro [...]: O título exatoé: “FILOLOGIA DO FUTURO! uma réplica ao nascimentoda tragédiade Friedrich Nietzsche professorcatedráticode filologia clássica em Basiléia, de Ulrich von Wilamowitz-Móllendorff, doutor em filosofia”. Pseudofilologia [...]: O título exato é: “PSEUDOFILOLOGIA. Para elucidação do panfleto Filologia do Futuro Circular de um filólogo aRICHARD WAGNER publicado pelo doutor em filosofia Ulrich von Wilamowitz-Môllendorff”. Tentativasde Salvação de “O Nascimento[...] de F.N', trata-se de Tentativasde Salvação de “O Nascimento [...] de Fr. Nietzsche'. “philosophia facta est [...]”: (A filosofia emergiu da filologia), Schlechta, 3, 174. Aí se lê: “[...] fuit.” Com isso [...]. Página 72 “fica aberto [...]”: III, 1, 99. Aí se lê: “[...]: enquanto sob o místico gritodejúbilo de Dioniso serompeo encantoda individuação e fica aberto o caminho até as origens do ser, até o ceme mais íntimo das coisas”, “a divinização [...]”: III, 1, 35. Página 73 “cuja lei [...]”: III, 1, 36. O contextodiz: “Quando a imaginamos imperativa e regulamentadora,essadivinização da individuação só conhece uma única lei, o indivíduo, isto é, aobservância dos limites do indivíduo, a moderação no sentidohelênico”. “materializaçãoapolínea [...]”: UI, 1, 58. “Aquelas partes corais [...]”: III, 1, 58; “[...] matriz do drama propriamentedito”. KGW: “[...] matriz de todo o assim chamado diálogo, isto é, de todo o mundo cênico, do drama propriamente dito”,

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Página 74 “O gosto grego transforma-se[...]”: VI, 3, 63. Crepúsculo dos ídolos, “O problema de Sócrates”,5, começa assim: “Com Sócrates o gosto grego transforma-seem favor da dialética: [...]”. “doutrina de abstinência[...]”: VI, 2, 135-6. Nietzsche aqui não fala de Kant, mas sim de Diihring e Hartmann: “No cômputo geral, sobretudo o humano, demasiado humano, em suma, a miséria dos novos filósofos, pode ter sido aquilo que mais fundamentalmente prejudicou o respeitoà filosofia e que abriu as portas aos instintos plebeus [...] — na Alemanha, por exemplo, os dois leões de Berlim, o anarquistaEugen Diihring e o amalgamistaEduard von Hartmann — [...]”. E continua: “Filosofia reduzida à “teoriado conhecimento', de fato nada mais do que um tímido registrode época e uma doutrina de abstinência:uma filosofia que não sabeabsolutamenteultrapassar o umbral e que meticulosamentese nega o direito de entrar— [...]”. “[...] regeneração da filosofia através de Schopenhauer [...)”. No trechocitado,204,Nietzschevê, por outro lado, em Schopenhauer o pioneiro da filosofia ou ciência por ele atacada. “contra a época [...]”: IM, 1, 243. O contextodiz: “[...): pois eu não sabia que sentido teria a filologia clássica em nosso tempo, senão aquele de nele agir extemporaneamente— isto é, contra o tempo”. Página 75 “Como se pode [...]”: formulação de Lou Andreas-Salomé. “Sirvamos à [...]”: III, 1, 241. “[...] a força plástica [...]”": II, 1, 247. Página 76 “Tampouco se deve [...]”: III, 1, 242-3. Nota 4: IV, 3, 4. “No fim das contas [...]”: III, 1, 268; em vez de “[...] ocasionalmente,estrondeiam[...]”: “[...] ocasionalmente também estrondeiam [...)”. “Sente então [...]”: II, 1, 269; “formação” sem aspas.(Na frase omitida, “formação” apareceentre aspas).

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Página 77 “contradição dos instintos”: VI, 3, 47; (370). “Tudo quanto é vivo [...]”: , 1, 247. KGW: “[...]: tudo [...]”. “O não-histórico [...]”: III, 1, 248-9;vírgula (sem aspas)depois de “só”. “Quanto mais fortes [...]”": II, 1, 247; “mais interior” em vez de “interior”. Página 78 “em que ela pudesse [...]”. KGW: “em que ele pudesse [:..]”. “[...] ele compreende a muralha [...]”: UM,1, 261. “É sempreum processo [...]”: III, 1, 266. Página 80 “Nota 5: III, 1, 242-3. “produtos fabricados [...]”: formulação de Schopenhauer,mais ou menos assim: Arthur Schopenhauer, Obras completas, 2º ed., F.A. Brockhaus:àWiesbaglçnà1949,7' vol. 2, p. 220; vol. 3, p. 487. Página 81 “[...] não continuam, por exemplo [...]”: IMI, 1, 313. " “O alvo da humanidade [...]”: IM, 1, 313. A frasecomeçaassim: “Não, o alvo da [...)”. “Quando o grande pensador [...]”: III, 1, 334. Página 83 “Sou sempreoutro [...]”. Poderiareferir-sea: “Tornei-me outro? E estranho amim mesmo?” (VI, 2, 253). “[...] na pessoade Wagner [...] o“redentor' [...]”: Provavelmente formulaçãode Lou Andreas-Salomé.Em seu artigo “Friedrich Nietzsche” no suplementodominical do VossischeZeitung se encontrao conceito sem aspas. Ver tambémKGW VI, 3, 35: “No enterro de Wagner ocorreu que a primeira SociedadeWagneriana Alemã, a de Munique, depositou em seu túmulo uma coroa cuja inscrição logo se tornou famosa. “Redenção ao Redentor!? — dizia ela”.

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Página 84 “Sócratese a filologia clássica”: Esse escritonão existe. Provavelmentetrata-sede uma confusão ou seja de uma mistura de duas conferências:“Homero e a filologia clássica” (preleção inaugural de Nietzsche em Basiléia, em 1869) e “Sócrates e a tragédia” (Basiléia, 1870). A última, com poucas alterações,foi incorporadaa O nascimentoda tragédia(capítulos8-15), de modo que a conclusãocitada é o final do capítulo 15: III, 1, 98. “objeto e experimento [...]”: No aforismo 324 (“In media vita”) de A gaia ciência se 1lê:“[...] — daquele dia em diante, quando veio a mim a grande libertadora,aquela idéia de que a vida poderia ser um experimento do cognoscente— [...]” (V, 2, 232). “Como pode um [...]”: III, 1, 336. “O que absorveu [...]”: III, 1, 336-7. Página 85 “um guia e [...]”: III, 1, 342. “[...] possa eu me [...]”: XII, 1, 337-8. Nota 6: III, 1, 346. “Cada um de seus impulsos [...]”: IV, 1, 11. “virilidade “espiritual [...]”: Lê-se: “Tão logo acontece sua vi- ' rilidade espiritual e moral, [...]”": IV, 1, 8. “Sua natureza [...]”: IV, 1, 9. “A corrente como um todo [...]”": IV, 1, 10. KGW: “[..]—a corrente [...])”. Página 86 “Lançamos [...]”: não é citação, que só começa com “É a experiência [...]”: IV, 1, 11. “No equilíbrio [...]”: em Nietzsche não há nada em itálico. “[...] omodo como sua música [...]”": IV, 1, 68. “Acima de todos [...]”: IV, 1, 65-6. “Wagner é mais Wagner [...]": IV, 1, 66. “Minha vivência [...]”: VI, 3, 4. Página 87 “Cume e abismo [...]”: VI, 1, 190. “pele sã”: ver nota na p. 63.

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“[...] superfelicidadeparecerdesventura”: V, 2, 35. Lê-se: “Sua superfelicidadetornou-se-lhedesventura”. “se ferissecom a própria felicidade”: VI, 1, 102. Lê-se: “Ferido estou com minha felicidade: [...)”. “Conjetura sobre [...]”: Título do aforismo seguinte(“Da mesma forma [...]”) (TV, 2, 198). Página 88 “outono de 1882”: A primeira exibição de Parsifal aconteceu em 26 de julho de 1882. Elisabeth Nietzsche e Lou von Salomé assistiramà segunda exibição em 28 de julho. Página 89 (Carta de Nietzsche em fac-símile) ——Poisbem, minha querida amiga, até agora tudo bem, e sábado, ãaquna oito dias, nos veremos de novo. Não teráminha última cartachegadoàs suasmãos? Escrevi-lhe no domingo, duas semanas atrás.Ficaria com muita pena; nela lhe descrevi um momento muito feliz: várias coisas boas me sucederam de uma vez, e a “melhor” de todas foi sua carta com a resposta afirmativa. Tenho pensado muito em você e tenho em espírito dividido com você tantas coisas alegres, solenes e comoventes, que sinto minha vida ligada à da veneradaamiga. Se você soubessecomo isso me parecenovo e estranho, a mim, velho ermitão! — Quantasvezes tive de rir de mim mesmo! No tocantea Bayreuth, estousatisfeitode não ter ido lá; contudo, se pudesseestara seu lado, mesmo como um fantasma,murmurando isso ou aquilo em seu ouvido, a própria música de Parsifal me seria tolerável (de outra forma, me é intolerável). Eu gostariaque você lesseantecipadamentemeu pequenoensaio “Richard Wagner em Bayreuth”; nosso amigo Rée certamenteo possui. ICom relação,a esse homem, já sofri muito; foi uma paixão . longa e completa; não encontro outra palavra para descreverminha experiência. A renúncia que issu me exigiu, o reencontro comigo mesmo que, por fim, se tormounece3sário,estãoentreas coisasmais durase melancólicasde meu destino.As últimas palavrasque Wagner me escreveuestãonum belo exemplarde Parsifal, como dedicatória:

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“A meu caro amigo Friedrich Nietzsche. Richard Wagner, conselheiro superior da Igreja”. Ao mesmo tempo, eu lhe enviava meu Jlivro Humano, demasiado humano, com o qual tudo ficou claro, mas também encerrado. Quantas vezes, em todasas coisas possíveis, não vivenciei exatamente isso: “tudo claro, mas encerrado”. Mas como estou feliz, minha cara Lou, de poder agora pensar em relaçãoa nós dois: “Tudo no começo, mas tudo claro!” Acredite em mim! Acredite em nós! Com os votos mais cordiais para sua viagem. Seu amigo Nietzsche. Tautenburg bei Dorburg. Essa carta foi escrita por Nietzsche em julho de 1882 de Tautenburg para Lou von Salomé em Stibbe. III, 1, 228 (KGB). Página 93 “L...] naquela viagem que fizemos [...)”: Nietzsche visitou Lou von Salomé e Rée, de 13 a 16 de maio de 1882, em Lucemna.Nesseperíodo se deu a excursão a Tribschen. “morte tanto física quanto espiritual”: formulação oral ou de Lou Andreas-Salomé? “excedentede saúde”: Provavelmente formulação de Lou Andreas-Salomé. Em VI, 3, 335, Nietzsche fala da grande saúde; em VI, 3, 434, da saúde superior (ver também as frases seguintes). “A saúde [...]”: II, 5, 326 (KGB). “Meu estado [...]” Essas frasesconstamde um cartão-postalde Basiléia aRée em Stibbe; carimbo postal de 23 de abril de 1879; II, 5, 410 (KGB). Página 94 “Parece que [...]”: de Sorrento a Rée emStibbe, 7 de maio de 1877; II, 5, 233 (KGB). “Mas estãosempre [...]”: Esse trechoconstade um cartão-postal de Basiléia, com a data citada (carimbo postal), de novo a Rée em Stibbe; II, 5, 370 (KGB). “Não vou bem [...]”: II, 5, 408 (KGB). Essa frase se encontra num cartão datado de 15 de abril de 1879, de Gênova a Rée em

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Stibbe. O carimbo postal é de 15 de maio. Nietzsche esteve em tratamentoem Gênova de 21 de março a 21 de abril. “Logo depois [...]”: A partir de 19 de março de 1879, Nietzsche não dá mais aulas; no dia 2 de maio pede sua demissão, que é deferida em 14 de junho. “doente que agora é [...]”: II, 5, 440 (KGB). (carta de St. Moritz, primeira quinzena de setembrode 1879). Página 95 “tempos obscuros”: IV, 3, 276 (em itálico); (título do parágrafo 191). “Quando retomei sozinho [...]”: IV, 3, 6. Ponto-e-vírguladepois de “tremia”. Página 96 “que aqui fala [...]”: IV, 3, 8. “um ser subterrâneo [...]”: V, 1, 3. “subterrâneo” entre aspas; “aurora” em itálico. Página 97 (Carta de Nietzsche em fac-símile): Minha querida amiga, Agora está claro o céu acima de mim! Ontem ao meio-dia, o ambiente em casa era como o de um aniversário: você me enviou sua respostaafirmativa — o mais belo presenteque alguémpoderia ter-me feito —, minha irmã mandou cerejas, Teubner mandou as três primeiras provas de À gaia ciência; além disso, justamente a última partedo manuscrito ficara pronta e, com isso, o trabalho de seis anos (1876-1882), toda a minha doutrina do “espírito livre”! Oh, que anos! Que tormentosde toda a espécie, que isolamentose que tédios pela vida! E contra tudo isso, por assim dizer, contra a vida e contra a morte, preparei para mim esse medicamento,esses meus pensamentoscom sua pequena, pequena nesga de céu limpo sobre eles: — oh, querida amiga, cadavez que penso em tudo, fico abalado e comovido, e não sei como pôde dar certo; autocompaixãoe sentimento de vitória me preenchem por completo. É uma vitória e uma vitória total, pois mesmo a saúde de meu corpo, não sei de onde, reapareceu,e todos me dizem que pareço mais jovem do que

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antes. O céu me poupe contra tolices! Mas, doravante, no que você me aconselhar,estareibem aconselhado,e não precisarei ter medo. Quanto ao inverno, pensei séria e exclusivamenteem Viena; os planos de minha irmã são totalmentesindependentedos meus, sobre isso não tenho nada a temer. O Sul da Europa agora saiu de meu pensamento.Não quero mais estarsó, quero reaprendera ser gente. Ah, nessecampo tenho ainda quase tudo a aprender. Aceite meus agradecimentos,querida amiga! Tudo ficará bem, como você disse. A nosso Rée, cordiais saudações. Inteiramente seu F, N. Tautenburg bei Dornburg, Turíngia. Nietzsche escreveuessacartaem 3 de julho de 1882 a Lou von Salomé em Stibbe. UI, 1, 216 (KGB). ' Página 101 | “filosofia de fachada”: VI, 2, 244. Lê-se: “Aquela filosofia é uma filosofia de primeiro plano ET “Uma vitória [...)”: V, 1, 246. Página 102 “Miscelânea de opiniões [...]": O apêndiceMiscelânea de opiniões e sentençassó apareceuem 1879. Junto com O andarilho e sua sombra (1880), constituía na edição de 1886 a segundaparte de Humano, demasiado humano. “Meus escritos [...]”: IV, 3, 3; “neles eu estou [...)”: “eu” entre aspas. “Doravante [...]”: IV, 3, 7. Página 103 “Para um solitário [...]”: III, 1, 44 (KGB) Cartão de Nietzsche de Stresapara Rée em Stibbe. “Que você possa logo, [...]”: II, 5, 290 (KGB). Página 104 :

“Dez vezes ao dia [...]”": , em Stibbe).

5, 370 (KGB). (Cartão-postala Rée

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“Em meu espírito, sempre ligo [...]": II, 5, 409 (KGB). Esse cartãoescrito de Gênova para Rée em Stibbe em 15 de abril tem o carimbo postal de maio (Ver p. 94). “Tive de abandonar [...]”: II, 5, 460 (KGB). (Carta aRée em Stibbe). “Quanta alegria [...]”: II, 1, 7 (KGB). (Carta de Naumburg a Rée em Stibbe, final de janeiro de 1880). “Meu amado [...]”: II, 5,430(KGB). Essa carta,escritano final de julho de 1879 de St. Moritz a Rée em Nassau, termina assim: “Próximo de seu coraçãoe desejandoo melhor de tudo para sua saúde.Friedrich Nietzsche,outrora professor,agorafugitivus errans. Diga-me uma palavra sobre os planos de inverno. Endereço: St. Moritz, Graubiinden Schweiz, posta-restante”. Página 105 Nota 7: “naturezas íntegras [...]”: IV, 3, 96. “as únicas boas [...]”: , 5, 265 (KGB). Em 3 ou 4 de agosto de 1877 escreve Nietzsche de Rosenlaui a Rée em Stibbe: “Entre os ingleses que residem aqui comigo há um que me é muito simpático,o professorde filosofia no London University College, Robertson, editor da melhor revista inglesa sobre filosofia, Mind, a quarterly review [...]. DurantesuaspalestrassobreDarwin Bagehotetc., ocorreu-menovamenteo quantoeu gostariaque vocêentrassenessarelação,a única boa relaçãofilosóficaexistenteagora”.(Depoisde Darwin deveriahaver uma vírgula; no original saltou-seum espaçamento). —““seu rigoroso [...]”: V,2,129. itálico. em está não ““inglês” final de julho de 1878, a Rée em Stibbe). Nota 8: IV, 2, 59, lê-se: “Qual é afinal o princípio a que chegou um dos pensadoresmais ousadose frios, o autor do livro Sobre a origem dos sentimentosmorais, graçasà sua análise incisiva e penetranteda conduta humana? “O homem moral — diz ele — não está mais próximo do mundo inteligível (metafísico) que ohomem físico” ”, Página 106 “A história [...]”: IV, 2, 60.

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“Sem o esquecimento[...]”: IV, 2, 88. “[...] atualmentepelo hábito [...]”: IV, 3, 26. A fraseda referência diz: “Por que o homem prefere, então, o verdadeiro ao falso, [...]”. E a frase citadadeveria dizer: “[...], originalmente,porque o verdadeiro — [...] — é mais útil emais honroso [...)”. “A significação [...]”: IV, 3, 208. “A [...] moral” é o título do parágrafo40 e, portanto,em itálico. Ponto e travessãoem seguida. Dois pontos depois de morais.

Página 107 “O conteúdo [...]”: IV, 3, 214. “Os costumes [...]”: V, 1, 28. “Se tudo [...]”": IV, 3, 229. Página 108 “o homem de ciência [...]”: IV, 2, 188. O aforismo 222 termina com a frase: “O homem de ciência é a continuaçãodo artista”, “em si [...]”: IV, 2, 151. “Tomar emprestado[...]”: IV, 3, 110. Ponto-de-exclamaçãodepois de ciência. “júbilo que [...]”": V, 1, 318. “[...] Os sentimentos [...]”: V, 1, 39-40. KGW: “ — Mas os sentimentos[...]”. Em Nietzsche apenas“nos” em itálico. “nobres fanáticos”: V, 1, 317-8. O contextodiz: “Oh, vós, bons e mesmo nobres fanáticos, eu vos conheço! [...] Vós ansiais por encontrarhomens de vossa crençanesseestado— o da depravação do intelecto— e acendervossa chama em seu fogo!” “A essesbêbados [...]”: V, 1, S1; só “espirituais” em itálico. Página 109 “[...] não pensam que [...]”": V, 1, 324-5; “conhecimento” não está em itálico. Nota 9: IV, 2, 153; IV, 2, 156. “Ah, a glória [...] ”: V, 1, 322; “velhos costumesdos escravos” não está em itálico. “progressiva virilização [...]”: IV, 2, 144. “virilização” em itálico.

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O contexto diz: “Ora devemos [...] perdoar ao próprio artista que ele não estejanas primeiras filas do Iluminismo e da progressiva virilização da humanidade: [...)”. “pela dignidade [...]”: IV, 2, 144. Também aqui fala Nietzsche do artista:“Aparentementeele lutapela [...]”. Esse aforismo termina assim: “[...]: portanto,ele considera a persistênciade seu gênero de criação mais importanteque a entregacientífica [...]” “assim vemos hoje [...]”: IV, 2, 148-9. Página 110 “Só não me falem [...]”: IV, 2, 154-5. “reprimir muitas forças [...]”: IV, 2, 150. Não está em itálico. “O preconceito em [...]”: TV, 2, 218. O até grandeza, como título, em itálico e ponto e travessãoem seguida. “As naturezasextremas [...]”": KGW: Também dentro das artes as naturezasextremaschamam [...) “é uma quimera [...]”: IV, 2, 268. Página 111 “Haverá talvez [...]”: V, 1, 325; apenas “acima” em itálico. “Raramente se erra [...]”": IV, 2, 81. “Quem nega [...]”": IV, 3, 34. “Como seria pobre [...]”: IV, 2, 82. “coisa humana [...]”: IV, 3, 36. O aforismo 46 diz: “A humana “coisa em si””"!— “A coisa mais vulnerável e contudo a mais invencível é a vaidade humana: [...)”. “A pior das pestes [...]”: IV, 3, 318. KGW: “[...]: a pior [...]”. “Ele cedo percebe [...]”: IV, 3, 267-8. A até utilidade, como título, em itálico. “Vaidade como [...]”: IV, 3, 201. Como título, em itálico. Página 112 “Muitas ações [...]”": IV, 2, 102; “muitas” com minúscula. “Se o [...]”": IV, 2, 100. O contextoé: “Sem prazer não há vida; a luta pelo prazer é a luta pela vida. Se o indivíduo luta essa luta L..]”. intelectoem itálico. “Os homens [...]”: IV, 2, 64; atrasadosnão está em itálico. “Boas ações [...]”": ITV, 2, 102-3.

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“o instinto [...]”": IV, 2, 303-4.O contextodiz: “Todo o passado da civilização antigaestáconstruídosobreviolência, escravidão, embuste, erro: [...] Não precisamos de uma nova difusão da violência, mas sim de transformaçõesgradativasda mente,a equidadeem todos crescerá,o instinto violento se debilitará”. Página 113 “A linhagem [...]”": IV, 2, 305-6. Nada em itálico. “O melhor meio [...]”: IV, 2, 350. “[...] substituir o hábito religioso [...]”. KGW: “[...] substituiro hábitoreligioso da oração [...]”; “nossos semelhantes”em vez de “os homens”. “Não há no mundo [...]”: IV, 2, 123. Nota 10: “amor e bondade”: IV, 2, 67. Aí se lê: “A bondade e o amor como as ervas medicinais e forças mais curativas no trato com os homens [...)”. “mais poderosamente[...]”: IV, 2, 67 O contexto diz: “Entre as coisas pequenas, mas infinitamente frequentese portanto muito eficientes [...], deve-se incluir também a benevolência; refiro-me àquelasexpressõesde disposiçõesamigáveis nos relacionamentos, àquele sorrir dos olhos, àqueles apertos de mão, àquele bem-estar,de que costumam estar cercados quase todos os atos humanos. [...] A cordialidade, a amizade, a civilidade do coraçãosão emanaçõesque semprebrotam das tendênciasaltruísticase contribuíram mais poderosamentepara a civilização do que suas manifestações muito mais afamadasque se chamam de compaixão, misericórdia e sacrifício”. “a selvageria”: IV, 2, 73. Aí se lê: “[...]: porém, seu único objetivo, que o domina completamente,de conhecer a todo tempo tudo quanto possível, o tornará frio e adoçará toda a selvageria de sua inclinação”. “A plena determinação[...)”: IV, 2, 310. “Com isso desaparece[...]”: IV, 2, 215; (o sábio): deveria ser: (o homem); “um ser não-mais-animal” (Lou Andreas-Salomé). Página 114 “ser dialético e racional”: V, 1, 319. “além-de-animal”: IV, 2, 62. “um novo hábito [...]”: IV, 2, 103. “Deveria haver criaturas [...]”: IV, 3, 186.

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“Outrora se buscava [...]”": V, 1, 49-50. Página 115 “desesperardo valor [...]”: IV, 2, 49. Em Nietzsche se l]ê: “A grande falta de imaginação de que ele (o homem ordinário — [...] —) sofre faz com que não possa empatizar com outros serese por isso participe o mínimo possível em sua sorte e padecimentos. Quem, ao contrário, deles pudesse realmente participar, deveria desesperar do valor da vida; [...]”. “o primeiro princípio [...)”: IV, 3, 329. O aforismo 310 começa assim: “Os dois princípios da nova vida. — Primeiro princípio: é preciso [...]” “bons vizinhos [...]”: IV, 3, 189. KGW: “Precisamosnovamente nos tornar bons vizinhos das coisas próximas [...]”. “o conhecimento [...]”: V, 1, 48. “Rumo à luz [...]”: IV, 2, 241. “sintoma de decadência”: VI, 3, 263; VI, 3, 309, “Talvez mesmo [...]”: V, 1, 48. “desfecho trágico [...]”: V, 1, 48. O aforismo 45 tem o título: “Um desfecho trágico do conhecimento” “Fiat veritas, pereat vita”: ITI, 1, 268 (“Haja verdade, pereça a vida” — N. T.). Página 116 “Na maturidade [...)”: IV, 2, 274. “toda crença [...]”": IV, 2, 48. “calma e frieza [...]”: (Lou Andreas-Salomé?). “doençasem que [...]”: TV, 2, 60. O contextoé: “Quem, porém, ao sopro de tal modo de ver, sentir um frio hibernal, terá talvez muito pouco fogo em si mesmo: todavia, que ele olhe à sua volta e perceberádoençasem que são necessáriasaplicaçõesde gelo [...]”. Página 117 “o frio extremo [...]”: IV, 2, 168. Lá está: “pois o frio extremo é tão bom estimulante, quanto uma elevada temperatura”. “espírito coletivo”: IV, 2, 164. Como título, em itálico. “Pertence a você, [...]”": II, 5, 324 (KGB). (Carta a Rée em Stibbe, de Naumburg, em 24 de abril de 1878.)

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“Agora todos os meus [...]”: II, 5, 346 (KGB). (Cartão a Rée em Stibbe, de Grindelwald, 10 de agostode 1878.) Numa carta de junho de 1877, Nietzsche se refere a À origem dos sentimentosmorais: “A paternidade,que me atribui sua dedicatória por demais generosa [...]” (II, 5, 246 — KGB). O exemplar continha a seguinte dedicatória manuscrita: “Ao pai deste escrito muito agradece a mãe”. Página 119 “Meu querido amigo [...]”: UI, 1, 124 (KGB). (Carta a Rée em Stibbe, de Sils-Maria, final de agosto de 1881.) Página 120 “a imagem e o ideal do espírito livre”: provavelmente uma for" mulação de Lou Andreas-Salomé. Página 121 “Cada vez mais admira-me [...]”": IIl, 5, 246 (KGB). (Carta de Rosenlaui, 2º quinzena de junho de 1877, a Rée em lena). Página 122 Nota 11: [...] me escreveu: durante as férias em comum em Tautenburg, em agostode 1882. Para uma teoria do estilo: III, 1, 243 (KGB). Página 123 “Ah, quem sois [...]”: VI, 2, 249-50. . “Não escrevo apenas [...]”: V, 2, 37. Página 124 “[...] é belo olhar [...]”: VI, 1, 105. “Em certos recantos [...]”: IV, 3, 337., Lê-se: “[...] no caráter geral graciosamentesevero, composto por colinas, lagos e florestas El “lagos pequenose [...]”: TV,3,37; “parece”em vez de “parecia”, “Sua naturezaé [...]”: II, 5, 430(KGB). (Carta a Rée em Nassau, de St. Moritz, final de julho de 1879). (Só nesta carta Nietzsche se refere a St. Moritz, não na citação anterior).

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“orelhas para o inaudito”: VI, 1, 21. AÍ se lê: “[...]|: e aquem ainda tiver orelhas para o inaudito tornarei o coração pesado com minha felicidade”, “[...] escrever não posso [...]”: II, 1, 142 (KGB). “Agora estou sempre [...]”: III, 1, 213 (KGB). (Nietzsche a Lou von Salomé em Stibbe; Tautenburg,provavelmente 27 de junho de 1882). Página 126 “tentaçõesdo homem de ciência”: poderia se referir a IV, 3, 29: No deserto da ciência. — Em suas peregrinaçõesdiscretas e laboriosas,que mui freqiientementesão por força viagensno deserto, aparecemao homem de ciência aqueles brilhantesmeteoros que se chamam '“sistemasfilosóficos': [...]”. “Não fazer da paixão [...]”: V, 1, 317-18. “Nada seria mais [...]”": IV, 3, 188. “tirania [...]”: V, 1, 301. O aforismo 507 se intitula: “Contra a tirania do verdadeiro”. Página 127 “Oh, quisessem [...]”: V, 1, 325-6. “órbita solar [...]”: IV, 3, 280. Como título, em itálico. “Aquelas pessoas [...]”: IV, 3, 335. Página 128 “o homem de um elevado [...]”: V, 2, 209. “Por uma vez [...]”: V, 2, 86. “Disposição de festa”: V, 1, 214. KGW: A disposição defesta. “felicidade da antítese”: V, 1, 215. “Há tantas[...]”: V, 1, 1. Ponto em vez de ponto-de-exclamação. “Pensamentossobre [...]”": V, 1, 1. Página 129 “Quando, por fim, [...]”": V, 1, 83. “Virá ainda [...]”: provavelmentenão é citação de Nietzsche. “Ora, caríssima [...]”": III, 1, 204 (KGB). (Carta de Nietzsche de Naumburg a Lou Von Salomé em Hamburgo, provavelmentede 12 de junho de 1882).

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“Agora também [...)”: I, 1, 201 (KGB). (Esta carta tem data anterior; Nietzschea escreveuem 7 dejunho de 1882, de Naumburg, a Lou von Salomé em Hamburgo). Página 130 “Mas por que [...]”: V, 1, 335. “Amiga — [...]”: III, 1, 271 (KGB). Opoema está numafolha que certamentefoi anexadaao exemplar dedicado. Página 131 “todo o meu vagar [...]”: VI, 1, 204. “Aprendi a [...]”: VI, 1, 45. , M “coisasúltimase supremas”:certamenteuma formulação de Lou Andreas-Salomé apoiando-sena primeira parte de Humano, demasiado humano, 1: “Das primeiras e últimas coisas”. Na p. 181 ela escreve: “um questionamentosobreos problemasúltimos e supremos — (semaspas!). “Ah, caríssimo [...]”: , 5, 356 (KGB). (Carta de Basiléia, 20 de outubro de 1878, a Rée em Stibbe). “Já se enruga [...]”: V, 2, 26. Vírgula depois de “pele”. “pele senil”: certamentede autoriade Lou Andreas-Salomé;reporta-seà frase anterior. | “cognoscentesem paixões”: certamente,formulação de Lou Andreas-Salomé(ver p. 101). Página 132 “E essemesmo ano[]'; IÍI, T, 1:24(KC";B) %('Ndíetzscyfle aRée em Stibbe; Sils-Maria, final de agostode 1881). Página 133 “filosofia do futuro”: Para além de bem e mal (1886) traz o subtítulo: Prelúdio de uma fitosofia do futuro. Nota 12: V, 2, 203. “Amizade estelar”. O aforismo se refere a Wagner, não aRée. Página 135 “Meu julgamento [...]”: VI, 2, 56. “Para mim [...])”":VI, 1, 268.

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“o mais pessoal[...]”: III, 1, 247 (KGB). (Carta a Rée em Stibbe, de Naumburg, próximo ao final de agostode 1882). “O manuscrito [...]”: III, 1, 199 (KGB). (Nietzsche a Rée em Stibbe; Naumburg, 29 de maio de 1882). Página 137 “[...] quem sabe [...]”: VI, 2, 233. Página 138 “superfelicidade”: V, 2, 35. “Incipit tragoedia” (A tragédiacomeça): V, 2, 251. Ponto em vez de ponto-de-exclamação. (A primeira edição de A gaia ciência, de 1882, continha apenas quatro livros, de forma que o aforismo 342 constituía seu final. Só a segunda edição de 1887 foi ampliada para cinco livros, e tinha como apêndice a “Canção do Príncipe Vogelfrei”). Página 143 Epígrafe: VI, 1, 142. Página 145 “Espírito? Que [...]”": II, 1, 282 (KGB). (Carta de Nietzsche a Lou von Salomé, provavelmente para Berlim, não antesde 23 de novembro de 1882, de Santa Margherita Ligure). Página 146 “Assimfalou Zaratustra”, IV, só apareceu em 1892. “O caso Wagner — um [...]”": Wagner. Um [...). Página 149 “O problema[...]”: VI, 2,9.“O problema [...]”: estafraseaparece depois das duas seguintes. “O que em nós [...]”: “O que” em itálico. “Aliás, o que nos obriga [...]”: VI, 2, 49. “Em que [...]”: VI, 2, 37; “ciência [...] se”: as reticênciassubstituem “até aqui”.

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“A “consciência”[...]”: VI, 2, 11. A frase começa assim: “[...]: também não é a “consciência' de modo algum [...]”. “convenção de signos”: VI, 3, 70. “linguagem simbólica das paixões”: VI, 2; 109; em itálico. “não podemos [...]”: VI, 2, 50. “[...] quanto mais expressarmos [...]”": VI, 2, 383; depois de “intelecto?” aspas. “neta”: V, 1, 40. Página 150 “fiat vita, pereat veritas!”: provavelmente uma formulação de Lou Andreas-Salomé;na p. 100 refere-sea ela como a inversão de: “fiat veritas, pereat vita”. “A falsidade [...]”: VI, 2, 12. “Com todo o valor [...]”": VI, 2, 10-11. “[...] estamosradicalmente[...]”: VI, 2, 116. “L...] a arte [...]”: VI, 2, 420. Página 151 “filosofastrosda realidade”: VI, 2, 17. Página 152 “Ébrios de enigmas [...]”": VI, 1, 193. No capítulo “Da visão e do enigma” se l1ê:“[...] — a vós, os ébrios de enigmas, apreciadores da penumbra [...] — só a vós conto o enigma, [...]”. Em itálico só adivinhar, deduzir. Depois de “deduzir” travessão. “Também no conhecimento, [...]”: VI, 1, 107. “[...] na língua e no devir”. KGW: [...] na criação e no devir;": em 25 de fevereiro de 1884 escreveNietzschea Gast: “Aborrecem-metantoos erros tipográficos [...] justamenteaqui mais um! Página8, linha 5, leia-secriação(Zeuge) em vez de língua (Zungue).” (KGB, II, I, 481)! “Instrumentose brinquedos [...]”: VI, 1, 35. “Também tu [...]”: VI, 1, 144. KGW: “E também tu [...]”. “Se empregamos[...]”: IV, 3, 131. Nota 1: “Entre as [...]”: IV, 2, 124-5 “Que me importam [...]”: V, 2, 47. “O olhar [...)”: V, 1, 297.

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“Se não tivesse [...]”: V, 2, 107-8. | “dá a impressão [...]”: IV, 2, 373. “[...] se tenha tomado como seu pretendente”;KGW: “[...] se tenhaacreditadoseu pretendente”. “Nada é verdadeiro, tudo [...]”: VI, 2, 417. Sem ponto-de-exclamação no final da frase. “humanização das coisas”: V, 2, 151. “Por que o mundo [...]”: VI, 2, 50. SA OCNNCEIO Página 153 “O mundo verdadeiro [...]” é o começo. As reticênciasdepois de “sábio” substituem“os piedosos, virtuosos”. Isso tudo antesde: “eu, Platão, [...]”. A referênciaa Kant não consta em Nietzsche. “Com o mundo verdadeiro [...]”": Leia-se: “Mas não! com o mundo verdadeiro [...]”; de com até aparente em itálico. Ponto-deexclamação ao final. Página 154 “Eu, Nietzsche-Zaratustra[...]”": Éuma formulação de Lou Andreas-Salomé. “Meio-dia; [...]”: nada em itálico. “Incipit Zaratustra”em caixa alta. “Porém, os verdadeiros [...]”: VI, 2, 149. Sem travessãoantes de porém. — c o Página 155 “sempre cria [...]”: VI, 2, 16. “cesáreos[...]”: VI, 2, 140. “riquíssimos [...]”: VI, 2, 151. O textodiz: “maior será aquele, [...] o riquíssimo de vontade;”. “Quem não [...]”: VI, 3, 55-6. Página 156 “trópico”: VI, 2, 119. “a alma mais [...]”: VI, 1, 257. Página 157 “furtivamenteatraído [...]”: VI, 2, 172-3.

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“Quisera eu [...]”: VI, 1, 43. Sem ponto-de-exclamaçãodepois de verdade. Fim da citação. “E a felicidade do espírito [...]”: Começo de nova citação: VI, 1, 130. “que os objetivos [...]”: VI, 2, 13-14. Página 158 “Em todos os tempos L...]”: VI, 3, 61.

“Porventura já [...]”: VI, 3, 61. “o animal [...]”: VI, 2, 79. “Os terríveis [...]”": VI, 2, 338-9. “Todos os instintos [...]”: VI, 2, 338; “inibida exteriormente”: apenas inibida em itálico. Página 160

h

“O homem [...]”: VI, 2, 339; “sofrimento do homem [...]”. As Teticências substituem:com o homem. “A variação [...)”: VI, 2, 225-6. “Finalidades puramentenovas [...]”: VI, 2, 226. Página 161 “devido aos egoísmos [...]”: VI, 2,226. “guerraque é ohomem”: VI, 2, 122. Aí se lê: “[...] que a guerra que ele é um dia tenha fim [...)”. Página 162 “O homem só [...]”: VI, 3, 78. “apenas um apelido [...]”: V, 2, 72. Aí se lê: “Corrupção é apenas uma palavra insultuosa para o outono de um povo”. “Nada ajuda: [...]”": VT, 3, 138. “fato de [...]”: VI, 2, 339, “alguma coisa se anunciasse [...]”: VI, 2, 340; depois de “promessa” reticências. “O homem é [...]”: VI, 1, 10-11.

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Página 163 “as repugnâncias [...]”: VI, 2, 361. “asas e [...]”": VI, 1, 253. (As forças não crescemna cólera, no desgostoe no pavor, mas é o nojo que as cria). Ponto-de-exclamação após “fontes”. Página 164 “o animal [...]”: VI, 2, 307. O contextodiz: “Criar um animal capaz de prometer — não serájustamente aquela tarefaparadoxal que a natureza se impôs com respeitoaos homens?” “Poder falar por si [...]”: VI, 2, 310-11./“Coloquemo-nos [...]”: 309. Página 165 “Todas as coisas [...]”: IV, 2, 154. “Todas” com minúscula. Página 166 “vontadeforte ou fraca”: VI, 2, 30. Aí se lê: “O “livre-arbítrio” é mitologia: na vida real se trataapenasda vontadeforte ou fraca”. “morfologia [...]”: VI, 2, 32. “matérias explosivas [...]": VI, 3, 139-40; “antigos” não está em itálico. Página 167 “a linhagem completa [...]”: VI, 3, 126. Aí se lê: “O indivíduo [...], — ele é a Única linhagem completado homem até ele mesmo Ex E% “de fato [...]”: VI, 2, 28. Nota 2: “a arte[...]”: IV, 2, 144. KGW: “A arte como evocadora dos mortos. —". “Ela tece [...]”: “ela” com minúscula. nocivo e regressivo: interpretaçãoalgo exagerada de Lou Andreas-Salomé. “homens vaidosos [...]”: VI, 1, 145: o aforismo 159 leva o título de “Aqueles que despertamos mortos”. — “vaidosos” com maiúscula. “[L...]todaa carga [...]”: IV,2,208. [...] cargade nossacivilização L...]: KGW: [...] carga da civilização [...]

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“[...] contudo, faz-se necessária uma diminuição [...]” KGW: “mas principalmentepermanecea necessidadede uma diminuição [...]”; “que nos tornamais frios [...]” KGW: “que, no todo, nos torna algo mais frios [...]”; “[...] então,com todaa certeza,pode-seprever o curso que tomará a evolução humana: [...]” KGW: “[...] então, o cursoulterior da evolução humanapode ser previsto com quasetoda a certeza: [...)”. “Quem tem [...]”": VI, 3, 143. AÍ se lê: “As coisas boas são sobremaneiracustosas: e sempre prevalece a lei de que quem as tem é diferentede quem as adquire”. Página 168 “aquilo que não se deixa improvisar.”: V, 2, 82. Aí se lê: “O homem mais comum senteque a nobreza não se pode improvisar ee “democracia [...]”: VI, 3, 134-5. Nota 3: “As instituições[...]”: IV, 3, 321. Dois pontos depois de “tirânicos” (e aspas). É impossível [...]: IV, 3, 310; aspasantesde “é”. “[...] as forças mais selvagens[...]”: TV, 2, 209. “as boas tendênciasúteis [...]”: IV, 2, 209. “O caráterdesagradável[...]”: IV, 2, 360. “L...] sentecom afeto [...]”: não está em itálico. “[...] andaressuperiores [...]”: não estáem itálico.—À “desprezível mania de uniformização”: no capítulo “Do homem superior” (Zaratustra, IV) se lê: “Mas a populaça plsca “nós somos todos iguais”” (VI, 1, 352). “os homens mais [...]”": VI, 2, 216. “O tipo do criminoso [...]”: VI, 3, 140. Página 169 Nota 4: “O Renascimento[...]”: IV, 2, 203. Depois de ciência: reticências.Em Nietzschenada em itálico. “[...] É, em todo caso [...]”: IV, 2, 156-8. Depois de “temor do gênio;” falta:“quando o odor do sacrifícioque justamentese oferece a apenas um Deus penetra o cérebro de modo que [...]”. Aurora (549): V, 1, 323. “excedentede saúde”: ver nota na p. 93.

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Página 171 “fera sem consciência de culpa”: VI, 2, 289. Aí se lê: “L...], recuam para a inculpabilidadeda consciênciada fera, como monstro exultante, [...]”. “uma farra de estudantes”KGW: “[...], como se fizesse apenas uma farra de estudantes,[...]”. “mordessem a isca”: VI, 2, 283. Nota 5: “[...] Para onde [...]”: V, 1, 182-3. KGW: “E para onde | ESA M6 Página 172 c “Sempre em [...]”: V, 2, 176. “Limites [...]”: V, 2, 183; depoisde “audição” ponto e travessão. ““Por maior [...]”: V, 2, 192. “grande déspota”: VI, 1, 250. Aí se lê: “Poderia vir um grande déspota, um diabo manhoso que [...]”. Página 173 “O essencial [...]”: VI, 2, 110-11. Página 174 “pronto a [...]”: VI, 1, 265. “algo perfeito [...]”: VI, 2, 292. "““[...]essatarefa sinistra [...]”: VI, 2, 342. “Sou aquilo [...]”: VI, 1, 144. KGW: “[...], sou aquilo [...)”. Página 175 “multiplicidade d'alma”; “cisão”: formulaçªãªes de Lou AndreasSalomé. “o espírito do escravo [...]”": VI, 2, 286. “transvaloraçãode todos os valores”: O frontispício original de O anticristo trazia o subtítulo Primeiro livro da transvaloração de todos os valores (VI, 3, 164). Página 176 Nota 6: “Quando fordes [...]”": VI, 1, 95-6. “L...] Queres buscar [...]”: VI, 1, 76-7. “[L...] Que vosso eu [...]”: VI, 1, 119.

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“É vosso [...]”: VI, 1, 117. “[...] radicalmente [...]”: VI, 1, 200. “Meu irmão, [...]”: VI, 1, 38-9. “que o pior [...]”: VI, 1, 270. “O homem é [...]”: VI, 1, 40. Página 177 “Amo aquele [...]”: VI, 1, 12. “o fato de que [...]”: VI, 1, 270. “Onde está [...]”": VI, 1, 10. Sem travessãoantes de “Vede”; “instintostemíveis”: por certouma formulaçãode Lou AndreasSalomé, “O “inumano”, na verdade, não é nenhum modelo do “além-dohomem', mas apenas pedestal”: em Genealogia da moral (VL, 2, 302) diz Nietzsche “Napoleão, essa síntesede inumano e além-dohumano [...)”. Página 178 “Outrora vi ambos nus [...]”: VI, 1, 270. Página 179 “Como? Um [...]”: VI, 2, 90. c — “Busquei grandes [...]”: VI, 3, 59 “O homem é algo [...]”: VI, 1, 40; dois pontos depois de “superado”. — —“Tornai-vos duros”: VI, 1, 264/ VI, 3, 157; KGW, em itálico. Página 180 “[...] rumo ao [...]”: VI, 1, 107. Página 181 “como um homem [...]”: V, 2, &9. “ator de seu próprio ideal”: ver p. 179. Página 182 “se tornar [s:]* V

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“nos ensinou [...]”: V, 2, 110. O contextoé: “Foram os artistas, e principalmente os do teatro [...] que primeiro nos ensinaram a avaliação [...]”. “forte o bastante[...]”: VI, 2, 76. Página 183 “[ .] poderíamosincluir [...]”: VI, 2, 76. “trevas púrpuras”: O termo tem história e pré-história. Aparece na primeira resenhade Erwin Rohde de O nascimentoda tragédia, em fins de janeiro de 1872, Rohde era colaborador independenteda LitterarischesCentralblattfiir Deutschland (Leipzig) (Folha Literária para a Alemanha), editadapor Friedrich Zarncke, e quis aí publicar sua resenha.Ela foi recusada.Então ele escreveuuma segunda num tom um pouco mais objetivo do qual as “trevas púrpuras” se tornaram vítimas. Ela apareceuem 26 de maio de 1872 no NorddeutscheAllgemeine Zeitung. Quanto à pré-história: em 17 de julho de 1871 escreve Rohde a Nietzsche: “É para mim um sentimento de felicidadepoder em tua mão ao menos mergulharnessaescuridão púrpura. —” (KGB, II, 2, 404). Na respostade Nietzsche, de 4 de agostose lê a respeito:“Muito dessa “escuridãopúrpura' ainda será mais esclarecido quando todo o escrito estiver relacionado [...]. Por isso, como expressão, a “escuridão púrpura? me agradou indescritivelmente. — (KGB I, 1, 215-6). “autêntico seio materno [...]”: VI, 2, 342. Aí se lê: “[...], toda essa“máconsciência' ativapor fim trouxeà luz [...], como o autêntico seio materno de acontecimentosideais e imaginativos, uma abundância de beleza e afirmação novas e estranhas[...]”. | Página 184 “com sua incapacidade [...]”: V, 2, 110. “[...] de ninguém [...]”: VI, 1, 148. “mas justamente [...]” (fica antesde “[...] de ninguém [...]”). “mas” com maiúscula. “nos sonhos” não está em itálico. “[...] uma sombra [...]”: VI, 1, 108. Aí se lê: “[...] uma sombra outrora veio a mim [...)”. “tudo quanto é divino [...]”: VI, 3, 7. “tudo” com minúscula. sem ponto-de-exclamação. “O que seria, pois, belo [...]”: VI, 2, 342; “belo” entre aspas; “sou feio” entre aspas.

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“Aqui se evidencia [...]”: VI, 3, 118. Página 185 “reprodução”: Refere-se com certeza a Crepúsculo dos ídolos, “Passatemposintelectuais”, aforismo 22: “Nenhuma autoridademenor que o divino Platão (assim o chama o próprio Schopenhauer) sustentaoutra tese: que toda beleza estimula à reprodução [...]” (VI, 3, 120). “O essencial [...]”: VI, 3, 110. Página 186 “[...] o que te disse [...]”": VI, 1, 159. Página 187 “Quem é radicalmente[...]”: VI, 2, 85. “sagrada ilusão”, “pia fraus”: VI, 3, 96. “Com freqiiência [...]”": V, 2, 175. “[...] por que fala Zaratustra[...]”: VI, 1, 178. “Na verdade, eu vos aconselho [...]”: VI, 1, 97. “Talvez [...]”: nada em itálico.ºPágina 188 “erigir um ideal [...)”: VI, 2, 348. “Tudo isso [...]”: VI, 2, 349. Página 189 “tornar o homem ardente [...]”": VI, 3, 120 (?). Há por certo referência ao citado na p. 185: “[...] que toda beleza estimula à reprodução [...)”. “aquilo que deve [...]”: VI, 1, 144. Página 190 Nota 8: “elevando ao máximo [...]”: V, 2, 117. “L...] nos mistérios dionisíacos [...]”: VI, 3, 153. “[...] Para que exista o eterno [...]” (falta em KGW a palavra “eterno”, mas sua inclusão parece correta).

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“Que toda beleza [...]”": VI, 3, 120 (ver p. 185 e 189). (Que esseseja o elementoreligioso na arteé uma interpretaçãopuramente independente). “O que o artista trágico comunica |...)”: VT, 3, 121-2. Página 191 “A psicologia [...]": VI, 3, 154. Página 192 “E, se [...]”": V, 2, 250. “Incipit tragoedia”: V,2,251 (Começa a tragédia). “tão secretamenteque [...]”: V, 1, 9. | Página 193 “Hino à vida”: ver “Apêndice” p. 234. Página 194 “De cama [...]”: UII, 1, 245 (KGB). (Tautenburg, 25 de agosto de 1882). “Minha querida Lou [...]”: OI, 1, 251 (KGB). Crítico de artede Veneza: Heinrich Kôselitz (PeterGast) (18541918). Estudou música em Leipzig de 1872 a 1874 e, como wagneriano, ficou tão entusiasmadopor O nascimento da tragédia que, em 1875,foi aBasiléia ouvir suaspreleçõese conhecê-lo.Por vontade própria, em fins de abril de 1876, copiou o fragmentode Nietzsche sobre Wagner e fez a propostade enviá-lo aWagner como presente de aniversário(22 de maio). Essa cópiafoi então ampliadapor Nietzscheque a fez publicar por ocasiãodo primeiro Festival de Bayreuth (agosto de 1876) como Consideraçõesextemporâneas,quarta parte, “Richard Wagner em Bayreuth”. Assim começou a carreira de Heinrich Kôselitz (mais tarde Nietzschelhedeu o pseudônimode PeterGast) como copistae revisor de Nietzsche.Essa situaçãopermaneceuaté o colapso de Nietzsche. Depois Gast atuou, por diversas vezes, como editor de obras de Nietzsche, sobretudo cartas. (Cartade Naumburg, 8 de setembrode 1882, a Lou von Salomé em Stibbe).

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Página 195 “Quando temos []"

VI, 3354-5.

Página 196 “todo fato [...]”: II,

1, 257.

Página 198 “Quem, igual a mim [...]”: VI, 2, 72-3. “insaciavelmente [...)” não está em itálico. Página 199 do herói [...]”: VI, 2, 99. “Em tormno Página 200 Nota 9: “Olha esse L...]”: VI, 1, 195-8; “crês que [...]” lê-se: i “crês, Anão, que [...]”; “o que pensas [...]” lê-se: “o que pensas, Anão [...]”; aspas depois de “[...] e não deveremos voltar eternamente?”; ponto e aspasdepois de “[...] segundasintenções”. “Assim, rTesolve-me[...])” está antesde: O pastor, porém [...). “E...] como aquele monstro [...]”: VI, 1, 269. “[...] Mas de que estou [...]”: VI, 2, 353. Página 201 “Para que o criador [...]”: VI, 1, 107. “criatura e criador”: VI, 2, 167. “aquele que tem mais [.. ]”: VI, 2, 353. AÍ se lê: “[...] eu me apropriei de algo que está reservado para alguém mais jovem, para aquele que tem mais força e “mais futuro [...]”. “Não sou daqueles [...]”: VI, 1, 159. Página 202 “um livro tão profundo [...]”: VI, 3, 297. Aí se lê: “Quando, certa vez, o doutor Heinrich von Stein se queixou honestamentede não entenderuma palavra de meu Zaratustra, eu lhe disse que era “procedente:ter entendido, ou seja ter vivenciado seis de suasfrases elevaria a uma ordem superior dos mortais [...]” (Ecce homo, de onde provém essapassagem,só apareceuem 1908, editadopor Raoul

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Richter. Já antes Peter Gast, em diversos prefácios a edições de Nietzsche, a fracionara. Daí a origem da citação de Lou AndreasSalomé. Em seu ensaio “Para um retrato de Nietzsche”, II, maio de 1892 (Freie Biúhne, ano 3, cademo 5, p. 494), ela também cita a passagem, acrescentando: “num manuscrito ainda não impresso [...]”) “A vontade de potência” “Transvaloraçãode todosos valores”: Na contracapada primeira edição de Para além de bem e mal (1886)constavao seguinte: “Em preparação:A vontadede potência. Tentativade uma transvaloração de todos os valores. Em quatro livros”. E abaixo do prefácio a Crepúsculo dos ídolos (1889) se lia: Turim, em 30 de setembrode 1888, no dia em que o primeiro livro da Transvaloração de todos os valores foi concluído. Nisso fundamentou-sea declaraçãode Lou Andreas-Salomé. O frontispício de O anticristo o denominava o Primeiro livro da transvaloração de todos os valores. O título definitivo teve inicialmenteo subtítuloTransvaloração de todosos valores. Foi riscado por Nietzsche que o substituiupor Maldição ao cristianismo. “Dei à humanidade [...]”: VI, 3, 147. Apenas “Zaratustra”em itálico. SEA cis auãis Página 203 “Se, de acordo com [...])”: IV, 3, 96-7. “Todo grande homem [...)”: V, 2, 78. “[...] quem sabe sentir [...]”: V, 2, 245. Página 204 “Todas as disposições [...]”: IV, 2, 31. “Que sentimento [...]”: V, 2, 90-1. “[...] colocar e retirar aum desconhecido! [...]” KGW: “[...] colocar e retirar aum desconhecido X [l”

Página 205 “Uma! [...]”: VI, 1, 281. “Presta atenção!” em vez de “presta atenção!”

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Página 206 Nota 10: Nietzsche era amigo do autor, Paul Deussen, desde seu tempo de escola. Escreve-lhe em 16 de março de 1883: “[...] leio página por páginacom perfeita“malícia' [...]”: III, 1, 342(KGB). “Assimfalou Zaratustra (OI, 80)”: VI, 1, 169. Página 207 “Sonho e civilização”: IV, 2, 27. “A lógica do sonho”: IV, 2, 28. “Aurora”: por certo se refere ao aforismo 312 (V, 1, 228) (ver abaixo). Página 208 “Só quem assusta,comanda”: V, 2, 32. AÍ se lê: “E só quem causa sustospode comandar outros!” “Nos ímpetos [...]”: V, 1, 228. “retrocedepara [...]”: nada em itálico. “cognoscente sem paixão”: por certo uma formulação de Lou Andreas-Salomé (ver p. 101). “nasceu da razão”: V, 1, 228. “[...] se, contudo, [...]”: V, 1, 22-4.depoisde “vivos” dois pontos. Página 209 “Crepúsculo dos ídolos (I, 3)”: VI, 3, 53. “Hoje um filósofo [...]”": VI, 2, 91. Página 210 “Não seria [...]”: VI, 2, 53. “Uma mulher [...]”: VI, 3, 142. “reabsorvo [...]": VI, 1, 132. “Quem é, porém [...]”: VI, 1, 190. Página 211 “Assim me gritaram [...]”: VI, 1, 201. “Até os dedos [...]”": VI, 1, 183-6.

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Página 212 “Certa manhã [...]”: VI, 1, 266-7; “ainda alguém”: não está em itálico; “para que até os túmulos [...]”: não está em itálico. “deva ser inoculado [...]”": VI, 1, 10. AÍ se lê: “Onde está a loucura com a qual deveis ser inoculados?” “Espírito é a vida [...]”": VI, 1, 130. “E a cegueira [...]”: nada em itálico. Página 213 “E se doravante te [...]”: VI, 1, 190. “como subir sobre [...]”: nada em itálico. “[...] agoraem teu último [...]”: VI, 1, 190; “derradeiro perigo”: não está em itálico. “Ai, devo escalar [...]”: VI, 1, 189-91. “Para atingir sua [...)”: nada em itálico. o o Página 214 “Estou diantede [...]”: VI, 1, 191; dois pontosdepois de“desci”. “Fosse eu mais [...]”: VI, 1, 21-2. Página 215 “Foi em torno do meio-dia [...]”: VI, 2, 255. Página 216 “do passadouma interpretaçãodo futuro”: por certo uma formulação de Lou Andreas-Salomé; em VI, 3, 153 fala Nietzsche do “futuro no passado” (citado na p. 190; ver também p. 80). Página 217 “avaliação do que desejava [...]”: VI, 3, 129. “ele só faz [...]”": VI, 1, 189. “Devem-se retirar [...]”: IV, 3, 336. Página 218 “antedatados”: IV, 3, 3. AÍ se lê: “Até aqui todos os meus escritos,com uma exceção única e sem dúvida essencial,devem ser antedatados— eles falam sempre de alguém “Atrás-de-mim' —: | ) sa

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APÊNDICE “uma homenagem [...])”: IV, 3, 4. “Talvez, com respeito [...]”: IV, 2, 8. “A transvaloração [...]”": Ver “Apêndice” p. 275. Página 219

“Ociosidade de um psicólogo”: VI, 3, 52. Nota 14: Os Ditirambos de Dioniso (originalmenteCanções de Zaratustra) surgiram antes. Agora [...]: VI, 3, 388-9. Depois de “Carrasco de ti mesmo” faltamseisversos; “embutido em ti [...]”: nadaem itálico. “Por mim, serás [...]”: só “deformado” em itálico. “só publicada em 1891”: A quarta partede Zaratustra só apareceu na Páscoa de 1892. Página 220

"

“Não será todo choro [...)”": VI, 1, 276. “o príncipe escarlate[...]”: VI, 3, 390.Ponto-de-exclamaçãodepois de “insolência”, “Essa coroa [...]”": VI, 1, 362. “Rir significa [...]”: V, 2, 184. Página 231 O “pedido”: V, 2, 30. Há apenasdois textosposterioresde Lou Andreas-Salomésobre Nietzsche. O primeiro, uma anotação em seu diário, “A fórmula de Nietzsche” (1911); o outro, uma passagemem Almanaque, 1927, Editora PsicoanalíticaInternacional, Viena: “Em 6 de maio de 1926” (70º aniversário de Freud), p. 9. Conforme indicado, ambos estão anexados ao apêndice. A fórmula de Nietzsche (1911) Em muito, Nietzscheé como uma fórmula bem pessoalpara os últimos trinta anos de vida filosófica. Primeiro, aindana metafísica,depoisnum empirismo que estava totalmenteimerso numa dedicação idealista à “verdade”, como só o período anterior poderia ter-lhe inculcado tão despojadamente,e que era desproporcionalao propósltosempiristas. Em seguida, a incipiente e mais tímida auto-limitação dessa “verdade”, na medida em que os métodosde investigaçãocientífica

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se tornarammais rigorosos e puros; por fim, à necessidadede complementaçãodessesmétodos,pelo menos na prática, na estéticaetc. Depois disso irrompe de novo o idealismo e, com ele, a força do impulso; o lema é: “o impulso ao pensamentoé um impulso à vida”. : Isso foi expressopor Nietzsche, do modo mais belo e extravagante, a partir do Demasiado humano atéA gaia ciência (como são significativos essestítulos!) — essasreaçõesdo impulso de se compreender idealistamentedentro de um pensamentoque permaneceu frio e exato. Sinto que são suas obras mais belas e notáveis, onde ele foi subjugado por uma teoria científica que por certo não lhe convinha, Do passo seguinte,no qual sua ascesepeculiar teria sido superada, e em que se deveria ler: “o impulso à vida é também um : impulso ao espírito”, elejá não tomouparte;nessepontoele naufraga: não podemosdeixar de dizer: em certasuperficialidadeteoricamente filosófica que lhe sugeriu ao invés inserir a idéia da evolução no religioso, no ético, no além-do-humano. Assim, o “impulso à vida” se desenvolveunum sentido mais ou menos místico: e o angustiante e o perturbador é que ele [Nietzsche], não querendo (desde seu estágio de crente durante a infância e de sua devoção a WagnerSchopenhauer em seus dias de discípulo) nada senão adorar, se tenha enganadode objeto. Almanaque “L..]) tambémo impulso aãopensamentoé um impulso à vida”. Aqui se inicia o período criativo intermediáriode Nietzsche: foi ele [o impulso] que, para a assim chamada“verdade” de Humano, demasiado humano, encontrou em seus aforismos aquela pujante expressãoque seelevou acima das almasresignadasdos devotos,como uma primeira Aurora, e de novo transformoutodo o pensamento,a despeito da sobriedade adquirida, numa Gaia ciência. À cada vez isso revelou o poder específico de seu gênio em emprestarvivência ao sempre teórico, em sobrepujá-lo através de uma ardentemente vivenciada transformaçãoem palavra. Em Nietzsche, essatendência para a vida não se deixava submeterdemais à discrição objetiva dos teoremas,aosquais ela se tinhapermitido ligar; partindodessedireito à vida individual, super-enfatizado,ela se transformou na ofuscante grandiosidadede uma embriaguez do pensamento, que evanesceu

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na além-de-humanidade,assimque a teoriada evolução selhe impôs como base — ela que, sem resistências,sempre aceita todas as superações. Toda a trajetória de Nietzsche até essa última culminância o conduziu por domínios de descobertaspsíquicasdo tipo mais patente — com freqiiência se poderia dizer: do tipo psicanalítico. A esterilidade da psicologia clássicafoi assim derruída por uma riqueza de 'naterial, em que a alma humana, livre de todos os preconceitos, começou a se revelar com inaudita profundidade e ousadia. Quem o vivenciou pôde certamenteperceber:aqui — aqui nestelugar cabe um empenho mental: audaz epacientemente; aqui cabe exercitar, ao invés de apressadasmudançasde opinião numa renovada teorética, uma longa permanênciasob o sofrimento do rigor da pesquisa, penosamente obtido. Obviamente, um problema logo devia se apresentar: como se aproximar desse material, o mais cheio de vida, com alavancase parafusoscientificamenteseguros, sem feri-lo precisamente em sua vitalidade? Este é o enigma cuja solução Freud nos trouxe. Em 6 demaio de 1926 Alman