Nicolau Maquiavel - Nos Tempos da Política 9788580632910

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Nicolau Maquiavel - Nos Tempos da Política
 9788580632910

Table of contents :
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Prefácio
I. O secretário florentino
1. Um período obscuro: a primeira metade de sua vida
2. A relação com Savonarola
3. A atividade na chancelaria
4. A correspondência com os funcionários do domínio
5. A atividade diplomática
6. A experiência das primeiras missões diplomáticas
7. Mudanças da fortuna e Ghiribizzi al Soderino
8. A Ordenança florentina
9. A derrota veneziana e a reconquista de Pisa
10. O fim da República e o retorno dos Médici
II. eLivros na pátria
1. O confinamento em Sant’Andrea
2.“Escrevi um opúsculo, O Príncipe...”
3. O “mito” de O príncipe
4. Frequentando os Orti Oricellari
5. Um comentário original sobre Tito Lívio
6. A arte da guerra
III. “Nicolau Maquiavel, historiador, comediógrafo e tragediógrafo”
1. Uma nova fase na vida de Maquiavel
1. Retorno aos negócios
3. “Anais ou as histórias de Florença”
4.“As coisas feitas dentro e fora pelo povo florentino”
5. A amizade com Guicciardini
6. Clízia e os madrigais em música
7. Último ato
Apêndice
Notas em torno do termo “Estado” em Maquiavel
Índice de nomes

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Esta obra foi originalmente publicada em italiano sob o título Niccolò Machiavelli – I tempi della politica © 2008, Donzelli Editore, Roma © 2016, Martins Editora Livraria Ltda., São Paulo, para a presente edição 1a edição 2016 a 1 edição eletrônica 2016 Publisher Evandro Mendonça Martins Fontes Coordenação editorial Vanessa Faleck Produção editorial Susana Leal Tradução Sergio Maduro Capa e ePUB Douglas Yoshida Imagem de capa Basílica de Santa Maria del Fiore em Florença, Itália – ©thinkstock Preparação Paula Piva Revisão Paula Passarelli Lucas Torrisi Julio de Mattos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Vivanti, Corrado Nicolau Maquiavel [livro eletrônico]: nos tempos da política / Corrado Vivanti; tradução Sergio Maduro. – São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2016. 1 Mb; ePUB Título original: Niccolò Machiavelli: i tempi della politica. ISBN 978-85-8063-291-0 1. Florença (Itália) - Política e governo - 14211737 2. Florença (Itália) - Vida intelectual Século 16 3. Intelectuais - Itália - Florença Biografia 4. Machiavelli, Niccoló, 1469-1527 I. Título. 16-05431 CDD-320.01 Índices para catálogo sistemático: 1. Maquiavel: Filosofia política 320.01 Todos os direitos desta edição reservados à Martins Editora Livraria Ltda. Av. Dr. Arnaldo, 2076 01255-000 São Paulo SP Brasil Tel.: (11) 3116.0000 [email protected] www.emartinsfontes.com.br

Prefácio O espaço de tempo que abrange a vida de Maquiavel (1469-1527) apresenta-se como uma época de profundas transformações que afetaram a própria visão de mundo até então dominante. As grandes navegações e as viagens de descobrimento descortinavam nessa época horizontes desconhecidos sobre oceanos nunca antes navegados, e novas terras e novos povos tornam-se de conhecimento comum. Por outro lado, no período entre os séculos XV e XVI, via-se a Itália e a Europa passarem por acontecimentos que mudariam as fronteiras e as estruturas de seus Estados, alterando o próprio equilíbrio internacional. A França, superado o secular conflito com os ingleses, restabeleceu o seu poderio; os reinos espanhóis se uniram sob uma única coroa que, graças aos impérios conquistados do lado de lá do Atlântico e aos seus tesouros, pôde impor a sua hegemonia à Europa; os Estados italianos, agitados pelas campanhas do rei da França, Carlos VIII, foram oprimidos por guerras que fizeram quase todos perderem sua autonomia. Em 1517, estoura na Alemanha a revolução religiosa protestante, que logo se espalha por vários países, trazendo à luz as profundas transformações nas crenças e sentimentos populares, mas as suas consequências mais dramáticas – as guerras religiosas e a ofensiva da Contrarreforma católica – só se farão sentir nos anos que se seguiram ao terceiro decênio do século XVI. Maquiavel estava ciente das transformações que mudavam o cenário mundial e advertia sobre a exigência de adequar as instituições e as normas da vida política. Suas funções na chancelaria florentina o levaram a desenvolver uma atividade que lhe permitiu conhecer os problemas e os mecanismos do Estado italiano, e, simultaneamente, o introduziram nas grandes questões da vida europeia. Assim, as funções que exerceu na política e na administração da república desenvolveram a sua reflexão e deram a ela

concretude e precisão, enquanto que a atividade diplomática que desempenhou junto às potências transalpinas lhe permitiu compreender as novas correlações de forças e a necessidade de introduzir, na vida italiana, princípios e leis compatíveis com a nova realidade. Compreender a ligação entre sua atividade e suas obras, que logo se tornaram fundamentais para compreender as vicissitudes dos homens reunidos em sociedades políticas, é a razão de fundo deste livro, que pretende examinar as vicissitudes da biografia de Maquiavel e, ao mesmo tempo, apresentar uma recensão de seus escritos mais famosos, desde O Príncipe até A mandrágora, desde os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio até A arte da guerra, até a História de Florença. Como ele mesmo afirma, sua obra, fundamentada na lição das coisas antigas e na experiência das coisas modernas, se propõe a “desenvolver [...] as coisas que eu acredito resultarem em benefício comum”1, ou seja, uma melhor compreensão dos tempos e do mundo. Que estava ciente do risco a que se expunha com seus escritos, ele mesmo o disse, estabelecendo uma comparação em harmonia com seu tempo, tão rico de histórias de navegação e de viagens de descobertas: “a natureza invejosa dos homens” – escreve na abertura dos Discursos – torna “tão perigoso encontrar meios e métodos novos” quanto se lançar à procura de “mares e terras desconhecidas”. Mas as aventuras do espírito o atraíam imperativamente, e sentia que enfrentar os problemas da vida política propostos pelas vicissitudes e agitações de então respondia a uma exigência moral da crise italiana, por ele vivida com uma paixão intensa e dolorosa. A sua busca também se insere, assim, na “descoberta do mundo exterior e do homem”, que Jacob Burckhardt, ao estudar a civilização do Renascimento, teria definido como 2 característica essencial da cultura daquela época . São anos em que mudam, com as maneiras de viver e pensar, as instituições políticas e religiosas e os próprios costumes da

vida cotidiana. A época das grandes descobertas geográficas também é a época de uma busca contínua de horizontes cada vez mais amplos em todos os campos. Os obstáculos, que se acreditava terem sido impostos pela natureza ao saber humano, tinham sido ultrapassados, e o homem perseguia “virtude3 e conhecimento”, como incitara o Ulisses de Dante, poeta muito estimado por Maquiavel. Caía a barreira das Colunas de Hércules, como anunciara outro poeta de sua estima, Luigi Pulci, que havia afirmado a existência de povos e de cidades antípodas, no mínimo quinze anos antes que Colombo e Vasco da Gama empreendessem suas expedições ultramarinas4. As grandes navegações rompiam com a visão de uma esfera terrestre vedada a viagens e tráfegos pelo calor tórrido que impediria não só a morada, mas também a travessia da faixa central do globo, como sustentava uma arraigada doutrina5, e Ariosto, amigo de Maquiavel, havia cantado os novos “Argonautas e Tífis”, que “hão de abrir caminhos ignorados no presente”6. O abrir-se de novas terras e de novos firmamentos, graças aos novos conhecimentos geográficos, era um fenômeno que, cada vez com mais frequência, remexia doutrinas estabelecidas, enquanto a presença de povos no continente recém-descoberto do outro lado do oceano colocava em crise a fé na universalidade da mensagem de Cristo e dos apóstolos que, com o Pentecostes, ter-se-ia espalhado por toda a terra habitada, segundo a afirmação da Carta aos Romanos (10,18): “In omnem terram exibit sonus eorum” [“Por toda a terra correu a sua voz”]. Não sem uma sutil ironia, Guicciardini se lembra disso na Storia d’Italia [História da Itália]7. Se, por uma nova concepção do universo, bem como da esfera terrestre e do ecúmeno, seria necessário esperar pela publicação, em 1543, do De revolutionibus orbium caelestium [Sobre os movimentos dos orbes celestes], de Copérnico, não podemos, no entanto, furtar-nos ao fascínio da indicação que o mesmo autor deu no prefácio da obra, revelando que esta “estava escondida” dentro de si “não

apenas há nove anos”, mas “há quatro vezes nove anos”8: até a concepção heliocêntrica do cosmo, destinada a derrubar, apesar da oposição das igrejas cristãs, a teoria ptolomaica, seria logo apresentada já no princípio do século XVI, que, no mínimo metaforicamente, pode parecer, segundo os vaticínios do século precedente, a idade das “grandes conjunções”. Assim, nos anos em que uma nova visão de mundo se vai esboçando e se abrindo à consciência dos europeus, destruindo vetustos esquemas teóricos9, Maquiavel elabora uma reflexão política inovadora. Foi estimulado a fazê-la pelo surgimento de grandes monarquias que estavam prevalecendo sobre velhas fragmentações territoriais, e colocavam em crise a Itália, talvez então o país mais desenvolvido da Europa, mas governado por soberanos incapazes de olhar além dos interesses mesquinhos: eram parecidos – dizia o rei Fernando de Nápoles – com “certos pássaros menores de rapina, nos quais é tanto o desejo com que a natureza os impele a conquistar sua presa, que não percebem um outro pássaro maior que paira sobre eles para matá-los”10. A obra do secretário florentino encontra espaço no esgotamento de concessões e de preclusões que haviam, até então, regulado a vida da respublica christiana, idealmente contemplada como projeção terrena da Cidade celestial, onde ética religiosa, política e economia se confundiam numa única lei dominante. Mas seus escritos contrastam, não raro, com a própria reflexão humanística, cujas referências obrigatórias, até certo ponto convencionais, no final das contas, eram as doutrinas cristãs e os princípios platônicos ou aristotélicos. Maquiavel leva em consideração apenas a realidade, e, em seus escritos, nunca encontramos uma evocação das “autoridades”: assim, quando Vettori cita para ele a Política, de Aristóteles, a fim de sustentar que os suíços, em razão de seu governo confederativo, não se podem transformar em uma potência conquistadora, responde ironicamente não saber “o que

Aristóteles diz das repúblicas desunidas”, mas lembra a diferença entre a realidade do tempo presente e aquela em que escrevia o antigo filósofo11. Os eventos contingentes ou, em suas palavras, “as coisas humanas” em constante movimento, que “não podendo mais cair, convêm que se elevem ou que se abaixem”12, se impõem à sua atenção e o levam a examinar os problemas da política no desenvolvimento da dura realidade, sem qualquer proteção doutrinária13. O único princípio que regula o seu juízo, juntando a sua experiência de secretário florentino à reflexão mais tardia d’O Príncipe e dos Discursos, é a necessidade de se adequar às épocas, segundo as exigências e os diversos comportamentos da natureza humana. Por tal motivo, os acontecimentos de sua existência se misturam continuamente com a formulação de seu pensamento, e, para entendê-lo, é necessário conhecer os fatos de sua vida. “Da mente de Maquiavel”, escreveu um grande historiador do século XIX, Francesco de Sanctis, “sai o mundo moderno do Estado”14, e seus escritos, considerados à luz das profundas transformações ocorridas nos conhecimentos que caracterizam sua época, se mostram não apenas como propostas ditadas pela realidade italiana de então, mas, em geral, como um ensinamento aberto ao futuro. Um autor marcadamente controverso em razão de seu realismo cru estava naturalmente fadado a chocar-se com os defensores das doutrinas por ele questionadas. Depois do grande período das inovações e das descobertas que descortinou perspectivas desconhecidas ao pensamento, a reação religiosa da Contrarreforma golpeou duramente obras que, nas mais variadas áreas, minaram os então considerados valores irrenunciáveis da fé. As novidades do saber humanístico, assim como as afirmações da revolução científica, foram igualmente atingidas por duras condenações, que não deixaram de castigar também seus

seguidores, se ainda vivos. Assim, o Index Librorum Prohibitorum [Índice dos Livros Proibidos] pode ser lido, desde a sua primeira edição, por Paulo IV, como a relação dos textos que contribuíram para a abertura do pensamento europeu no limiar da era moderna15. Os primeiros sinais chegaram claramente de Veneza, o maior centro editorial italiano naquela época. Giovambattista Busini, em carta ao historiador Benedetto Varchi, informava em 1549: “Aqui vetou-se e proibiu-se a venda de todas as obras de nosso Maquiavel, e querem excomungar quem as tiver em casa”. E, previdentemente, acrescentava: “Deus ajude Boccaccio, Dante, e Morgante e Burchiello”16. Lucrécio correu o risco de ter igual sorte, Erasmo logo foi atingido, e, em 1557, salvaram-se, a custo, de uma condenação Ariosto, Boiardo e Folengo. Quanto a Maquiavel, é de se notar que, na história do pensamento político, não encontramos outro exemplo de uma corrente de ideias definida pela hostilidade a um autor, exatamente como é o caso do antimaquiavelismo, que, por mais de dois séculos, teve adeptos em toda a Europa, tampouco de um autor cuja obra tenha sido falsificada a ponto de ser transformada em um sistema de princípios contrários, em muitos aspectos, às suas intenções originais17. Basta lembrar que, na Idade das Luzes, o árduo trabalho exegético levado a cabo para superar a declarada hostilidade a ele levou a inventar uma interpretação de O Príncipe como uma “armadilha” ligada aos Médici para envolvê-los em um empreendimento tão ambicioso a ponto de ser um prenúncio de sua ruína, ou como uma denúncia consciente dos rios de lágrimas e de sangue que vertem do cetro dos soberanos18. Por outro lado, podemos considerar uma herança de intenções voltadas a enobrecer o pensamento do secretário florentino as recentes interpretações historiográficas que submetem os escritos de Maquiavel a uma leitura de certa maneira forçada. Muitas vezes se quis inserir o seu pensamento em um modelo interpretativo particular: em outras palavras, enquadrá-lo

em uma ideologia. Apenas para lembrar uma escola crítica de nosso tempo de notável prestígio, que pode ser caracterizada pela obra de Pocock19, o secretário florentino foi apontado como o precursor de uma corrente de pensamento em que se exprimem as convicções e reflexões inspiradas por um modelo republicano, capaz de se impor ao longo dos séculos, em terras de ambas as margens do Atlântico20. A propósito de tal interpretação, podemos notar como influiu nessa leitura de Maquiavel a construção crítica elaborada a partir de 1928 por Hans Baron21, que definiu o movimento florentino de ideias formado nos estertores do século XIV, durante a luta contra João Galeácio Visconti, e desenvolvido no século seguinte como “humanismo civil”, justamente para a defesa da libertas da comuna contra a tirania do duque de Milão. Ignorando o juízo polêmico que o autor da História de Florença fez de Leonardo Bruni, político e pensador considerado por Baron um dos expoentes máximos daquela tendência intelectual, e sobretudo a declarada aversão expressa ao regime oligárquico então instaurado em Florença e dominado pelos Albizzi, a ideia republicana muitas vezes tornou-se uma chave interpretativa para a obra de Maquiavel. Mas não há dúvida de que bem vivos fossem seus sentimentos republicanos, o que fica claro em várias passagens de seus escritos. Basta recordar a afirmação de que “Uma república tem vida mais longa e mais duradoura boa fortuna do que um principado, porque pode acomodarse melhor à diversidade de tormentas” (Discursos, III, 9). Forçando, em alguma medida, seu significado, pode-se interpretar “república” como “livre viver”, e, assim, vê-la exaltada em tons apaixonados, quando afirma que “todas as terras e províncias que vivem livres em toda parte [...] extraem disso enormes proveitos” (ibid., II, 2). Todavia, sua preferência se exprime em termos empíricos, sem jamais propor em afirmações absolutas de que a república é o governo preferível. Seu espírito realista, sua aversão aos

modelos abstratos, sua sensibilidade em diferenciar “a maneira como se vive da maneira como se deveria viver” (O Príncipe, cap. XV) o levam a olhar com distanciamento o mundo em que age e a compreender a variedade das exigências dos homens e das diversas sociedades. Sabe bem que “um povo acostumado a viver sob um príncipe, se, por qualquer acidente, torna-se livre, dificilmente mantém a liberdade”, como sabe também que “um povo corrupto, vindo a ser livre, muito dificilmente se pode manter livre” (Discursos, I, 16 e 17). Seria errado, portanto, propor um só tipo de governo para todas as situações. Por tais razões, explica (ibid., 55) como, naquelas províncias onde existem “gentis-homens” que “de castelos comandam e têm súditos que lhes obecedem”, seja necessária, para organizá-las, “uma mão régia”. Em suma, quem afirmava que, em política, é “mais conveniente ir direto à verdade efetiva da coisa do que à sua imaginação”, e zombava de quem tinha pensado “repúblicas e principados que jamais foram vistos nem conhecidos como verdade real” (O príncipe, cap. XV), obviamente não estava propenso a estabelecer abstratamente a preferência por um regime político sobre outro. Até porque esse Estado “perfeito” teria naturalmente entrado em contradição com a mudança contínua das coisas e com a necessidade política de modificar-se e adaptar-se à variação dos tempos e das circunstâncias. São princípios ilustrados em O Príncipe e nos Discursos, tanto que se quis explicar a composição de O Príncipe com a maturação do convencimento de que, em uma “sociedade corrupta”, como a Itália do seu tempo, era indispensável um poder forte para saná-la. Mas, desde 1506, em Ghiribizzi al Soderino22, observou que percebia que “com vários governos conseguir uma mesma coisa e, agindo diversamente, ter um mesmo fim”, concluindo que “os tempos são vários, e as ordens das coisas são diversas”: por isso “a eles sucedem segundo suas escolhas e seus desejos, e feliz é aquele que adapta seu modo de agir a seu tempo”. Essa é uma ideia-

matriz de sua reflexão, que é repetida e desenvolvida nas grandes obras da maturidade. Assim, em O Príncipe (cap. XXV), lemos que se notam resultados diversos da mesma ação, “o que não nasce senão da qualidade dos tempos que estão de acordo ou não com a sua maneira de proceder”, e nos Discursos (III, 8) se adverte que “os homens, em seu proceder, e sobretudo nas grandes ações, devem considerar os tempos e se adaptar a eles”. Nos contrastes entre as ações dos homens e a variação dos tempos, abre-se um espaço no qual a fortuna pode agir com toda a sua potência, derrubando reinos e repúblicas e colocando tudo de cabeça para baixo como “um desses rios ruinosos que, quando se enfurecem, alagam as planícies, derrubam as árvores e os edifícios, levam terras de um lado para outro; todos fogem diante deles, todos cedem ao seu ímpeto”. Mas se os homens são capazes de se preparar para o tempo “com refúgios e barragens”, ou seja, são dotados de “virtude”, seu “livre-arbítrio” pode prevalecer (O Príncipe, cap. XXV). Isso faltara à Itália, porque os seus príncipes acharam que se podiam continuar comportando como no decorrer do século XV, quando os Estados transalpinos foram tragados por suas vicissitudes e não intervinham nos negócios da península: aqueles potentados não tinham compreendido a novidade constituída pela invasão de Carlos VIII, que havia remexido completamente a situação da península, justamente pela inadequação de sua organização e pela insensatez de seus governantes. Mas “os quinze anos que estou estudando a arte do Estado” – escreve a Vettori, em 10 de setembro de 1513 – o levaram a meditar sobre a possibilidade de superar aquela crise. Não mais capaz de agir na vida política, da qual havia sido exonerado, esforçava-se para indicar uma saída, por sua reflexão, nutrida pelos frutos de sua experiência e de seu conhecimento do passado. Maquiavel jamais perdeu a esperança de encontrar um remédio para os males que afligem a Itália: poderia ser o advento de um personagem fora do comum, como aquele

acalentado em O Príncipe, ou então uma longa obra de educação, que, tirando lições de modelos da Roma dos primeiros séculos, se voltaria para a construção de um povo “virtuoso”. Ele ilustraria isso para os jovens amigos dos Orti Oricellari, e será encorajado por eles a escrever “quanto aprendi de uma longa prática e de um ensinamento contínuo das coisas do mundo”. Numa e noutra obra os elementos de que são compostos “todos os Estados, todos os domínios” são atentamente ponderados, mas, como podemos notar, sobretudo nos Discursos (I, 18), suas indicações se impõem exatamente por seu relativismo: na sua vida política não pode vigorar uma norma absoluta por causa da mudança contínua das condições, que devem ser examinadas para estabelecer um governo capaz de manter unidos os ordenamentos do Estado. Justamente por essa ausência de apelo a valores superiores e intangíveis, feriu profundamente os espíritos dogmáticos, prontos a condenar sua obra. Por outro lado, a tenacidade com que persegue a ideia que deve prevalecer sobre tudo, disposto a tudo sacrificar por ela – curar a corrupção italiana com uma obra profundamente reformadora, capaz de assegurar o bem da pátria – revela-se para nós como o aspecto mais dramático de sua personalidade. Sua inteligência o fazia entender quão desamparado era o objetivo a que se propunha; seu espírito irônico o levava a rir do material à sua disposição, e, todavia, o ímpeto apaixonado que o fazia implorar a Guicciardini até o último instante para que libertasse a Itália da longa tribulação (“Liberate diuturna cura Italiam” [Livrai a Itália do longo cuidado]) continuava a atormentá-lo, na esperança de encontrar uma “abertura [...] para sua redenção”, até ganhar os traços de uma religião civil. Agradeço a Chantal Desjonquères por ter-me feito a proposta de reelaborar e ampliar para a sua editora as introduções aos volumes das Opere, de Maquiavel, publicadas pela Pléiade Einaudi, levando-me, assim, a

compor este volume, que agora sai em italiano, por iniciativa de um amigo de longa data, que foi meu aluno em Turim, Carmine Donzelli. A ele, da mesma forma, manifesto minha gratidão. Turim, julho de 2008

C.V.

I. O secretário florentino 1. Um período obscuro: a primeira metade de sua vida Pode parecer curioso que, de Maquiavel, saibamos muito pouco, até 15 de junho de 1498, quando, aos 29 anos, tornou-se secretário da chancelaria florentina. Chega a parecer que sua vida começou somente ao ingressar no serviço da cidade natal. É verdade que estava ligado profundamente a Florença, a ponto de declarar, em carta dos últimos meses de sua vida: “Eu amo minha pátria mais do que a alma”23. As poucas notícias que temos de sua juventude chegaram a nós graças ao Libro di ricordi [Livro de recordações], de seu pai Bernardo24. Este era doutor em Direito e pertencia a uma família que, em séculos anteriores, constava dos “populares de casas notáveis”, muitas vezes chamada a ocupar cargos públicos de relevo na comuna, mas que depois entrou em decadência, sobretudo com a ascensão dos Médici25 ao poder. Pelo diário de Bernardo, sabemos que as suas condições não eram das melhores, e o ambiente em que seu filho cresceu foi bastante modesto. Ele próprio declarou: “Nasci pobre e aprendi antes a lutar do que a desfrutar”26. Aos sete anos, começou a estudar latim, e, aos doze, a escrever naquela língua. Se não tivesse recebido uma refinada instrução humanística27, não deveríamos levar a sério a informação do historiador Paolo Giovio, que afirma que Maquiavel não tinha “qualquer conhecimento de letras latinas ou, se o tivesse, era medíocre”28. É bem pouco crível que – na época mais gloriosa do humanismo florentino – fosse chamado a ocupar o cargo de secretário da segunda chancelaria, que cuidava não apenas das questões internas, mas também da guerra e, portanto, das relações com outros

Estados, um jovem quase desconhecido que ignorasse a língua corrente nos atos públicos e nas relações internacionais29. Na verdade, a afirmação de Giovio seria interpretada como uma avaliação dos conhecimentos de Maquiavel como insuficientes para compor obras naquela língua, então se deve notar que o seu encontro com Maquiavel ocorreu quando este estava escrevendo a História de Florença: sua opção por escrevê-las em italiano, nos anos em que se havia iniciado um vivo debate sobre a língua vulgar, poderia ter suscitado um certo desprezo em Giovio, que se proclamava historiador e redigia suas obras sempre em latim. Não parece, contudo, que Maquiavel tenha aprendido a língua grega, embora Florença fosse, naquele tempo, o maior centro da nova cultura helenística na Europa, onde, por exemplo, completou sua educação o humanista que, pode-se dizer, introduziu o novo saber na França, Guilherme Budé. Justamente sobre desconhecimento se fantasia longamente para tentar explicar como pôde ter acesso ao sexto livro de Políbio, do qual ainda não existia uma tradução latina impressa quando o usou nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio30. Pelo Libro di ricordi notamos que Bernardo Maquiavel era um leitor curioso, seja de obras recentes, como a Italia illustrata [Itália ilustrada] ou as Decades de história de Flávio Biondo, seja de textos antigos, de Cícero a Plínio e a Ptolomeu31. Assim, no dia 22 de setembro de 1475, registrou ter pactuado com o tipógrafo Niccolò Alamanno a redação do índice dos nomes geográficos contidos nas Décadas de Tito Lívio, e, no dia 5 de julho de 1476, ter guardado “como prêmio pelos meus esforços” as folhas impressas da obra32. Bem cedo, o jovem Maquiavel teve oportunidade de ler Lívio, e, mais, sabemos pelo pai que, aos 17 anos, ele mesmo levou a obra para ser encadernada em tiras de couro. Talvez muitas discussões e hipóteses a respeito dos Discursos poderiam ser esclarecidas se tal volume tivesse chegado até nós, ou, pelo menos, se conhecêssemos qual edição estava na posse de Bernardo.

Sobre a terceira década de sua existência, um período por certo decisivo para sua formação intelectual, temos apenas alguns vislumbres33. Transcrito pelas mãos de Maquiavel, provavelmente naquele período, foi encontrado, na Biblioteca Vaticana, um códice com o De rerum natura [Sobre a natureza], de Lucrécio, o poema que havia sido redescoberto no início do século em um convento de São Galo34. É lícito supor que um trabalho de tanto empenho não tenha sido empreendido sem um interesse real por tal texto de altíssima poesia e, ao mesmo tempo, essencial para o conhecimento de uma corrente da filosofia grega, que sem dúvida lhe era congenial, como percebemos pelos numerosos ecos que encontramos daquele pensamento em suas obras. De todo modo, seus estudos da juventude deviam estar voltados principalmente para os historiadores e pensadores políticos da Idade Clássica recorrentes em suas obras: precisamente Tito Lívio, Tácito e Salústio e, entre os gregos, Plutarco, Políbio e Xenofonte. São os autores aos quais é lícito supor a que se referia em 1513, na famosa carta ao amigo Francesco Vettori, informando-lhe a composição de O Príncipe: Chegada a noite, volto para casa e entro em meu escritório; e, à porta, eu me dispo de minhas vestes cotidianas, cheias de pó e lama, e ponho vestes reais e nobres; e assim, apropriadamente vestido, entro nas antigas cortes dos antigos homens, onde, por eles recebido amavelmente, como do alimento que é somente meu, e para o qual nasci; e não me envergonho de falar-lhes e perguntar-lhes dos motivos de suas ações; e, por sua humanidade, me respondem; e, por quatro horas, não me entedio, esqueço toda angústia, não temo a pobreza, não sou assolado pela morte: a eles me entrego inteiramente35.

Por outro lado, os textos de direito de seu pai certamente não causaram estranheza às suas reflexões: a atenta leitura de seus escritos ecoa em algumas páginas36. Apesar de, em seu tempo, não serem mais exigidos estudos notariais para ser nomeado na chancelaria florentina, a preparação jurídica fez parte da educação de Maquiavel.

2. A relação com Savonarola Quando Maquiavel ingressou na chancelaria da república, a vida política florentina atravessava um período agitado de transição. Haviam-se passado apenas quatro anos desde que Pedro, filho de Lourenço, o Magnífico, depois de sessenta anos de poderio dos Médici, fora expulso, em 1494, por seu comportamento “tirânico” e por ter entregado ao rei da França algumas fortalezas, assim que o governo republicano foi restaurado. Logo em seguida, se impôs a figura austera do frade dominicano Girolamo Savonarola, que, com sua rigidez religiosa e moral, parecia encarnar a severidade da “florentina libertas” [“liberdade florentina”], restaurada após anos de velado regime senhoril. Mas os excessos na imposição de uma dura disciplina dos costumes e o choque com a Roma papal, à qual as finanças de Florença estavam ligadas por muitos canais, levaram à queda do frade. Condenado à morte, em 23 de maio de 1498, em conformidade com a excomunhão pelo papa Alexandre VI, foi enforcado e queimado na Piazza della Signoria. Naquele momento, pareceu prevalecer a parte aristocrática, mas o “governo extendido”, instituído por Savonarola, não foi modificado, e o Grande Conselho (Consiglio maggiore), que era o órgão principal, ficou no poder. O ingresso de Maquiavel na chancelaria, poucos dias após o suplício de Savonarola, coloca algumas perguntas. Sua tentativa precedente de assumir aquelas funções, em fevereiro daquele ano, não teve sucesso, mas então, embora enfraquecidos, ainda estavam no comando os grupos de poder partidários de Savonarola. A postura de Maquiavel em relação ao frade dominicano é geralmente vista como francamente hostil, e, no século xix, chegou-se a colocar os dois personagens em polos opostos, um a representar emblematicamente a continuação da Idade Média, e o outro, a nova era do Renascimento, ou, como também foi designado, a Idade da Fé e a Idade da Ciência.

Para tal conclusão, baseou-se principalmente na carta que, poucos meses antes da queda de Savonarola, Maquiavel escreveu a Ricciardo Becchi, embaixador florentino em Roma, que lhe havia pedido notícias “das coisas daqui sobre o frade”. O quadro pintado por Maquiavel é decididamente negativo, e, no fim, depois de ter ilustrado os últimos sermões feitos na igreja de San Marco, conclui: “e assim, segundo o meu juízo, ele continua agindo em conformidade com seu tempo e dando cores às suas mentiras”37. Sem dúvida, naquele momento, quando Savonarola ainda tinha poder, a opinião de Maquiavel era claramente contrária; mas seria errado julgar em termos absolutos tal entendimento. É verdade que o frade, com uma visão estranha e contrária às ideias de Maquiavel, concebia a sociedade civil e a própria República a serviço da religião, mas o seu apoio à criação de um “governo extendido”, ou seja, extensivo a um número de cidadãos bastante elevado, foi visto com bons olhos por Maquiavel, e, nos Discursos, afirma que os escritos de Savonarola “mostram a doutrina, a prudência e a virtude de sua índole”38. Todavia, no verão de 1497, Maquiavel veio a se opor às ações de Savonarola, uma vez que este havia violado uma lei que ele próprio havia apoiado para impedir que cinco cidadãos acusados de conspiração escapassem à pena capital. O episódio é mencionado no primeiro Decennale [Decenal] (v. 153), crônica em versos acerca dos acontecimentos italianos entre 1494 e 1504, e ainda é lembrado nos Discursos, precisamente em seguida à passagem que mostra uma admiração geral pelos escritos do frade. Evidentemente, mesmo depois de tantos anos, permanecia na memória de Maquiavel como uma grave falta política de Savonarola: de fato, escreve que tinha, “entre outras normas voltadas à segurança dos cidadãos, criado uma lei para que se pudesse apelar ao povo das sentenças que, por razões de Estado, os Oito e a Signoria dessem [...] Ocorre que, pouco depois de sua confirmação, em nome do Estado, a Signoria condenou à morte cinco cidadãos, e, desejando eles apelar,

não se consentiu e não se observou a lei”39. A deliberada transgressão de uma lei por interesses partidários causava aversão a Maquiavel, que, de mais a mais, desaprovava o fervor religioso que levava o frade a praticar uma política de divisão entre os cidadãos. Como explica na carta a Becchi, com seu discurso Savonarola “constituiu dois grupos, um que militava sob Deus, e nesse estavam ele e seus seguidores, e outro sob o diabo, que eram os adversários”40. Não sabemos se Maquiavel já havia amadurecido a ideia, mais tarde desenvolvida nos Discursos, de que os conflitos internos de uma cidade podem ser vantajosos para a vida política se, ao final, gerarem uma reconciliação, criando novos ordenamentos e novas leis. De todo modo, sua tendência a alcançar a união entre os cidadãos se manifesta desde os primeiros anos de sua atividade política, por exemplo, na tentativa, então frustrada, de reaproximar ao gonfaloneiro41 Pier Soderini, o maior expoente do grupo dos ottimati42, Alamanno Salviati. São essas as razões que explicam como, depois do suplício de Savonarola, os homens do governo florentino podiam considerar as opiniões de Maquiavel distantes das dos piagnoni, os seguidores de Savonarola, e escolhê-lo como secretário da segunda chancelaria, com vantagem sobre outros candidatos de maior destaque político.

3. A atividade na chancelaria O problema que pairava sobre Florença, na época em que Maquiavel ingressou na chancelaria, era a guerra de Pisa. A antiga república marítima, conquistada em 1406 pelos florentinos, reivindicou a liberdade quando Carlos viii entrou na cidade em 1494, e o soberano francês a concedeu43. Florença buscou inutilmente reaver a cidade do rei, e seguidas vezes tentou reocupá-la à força; mas Pisa havia resistido, e encontrou proteção sob Veneza, que, depois de lhe ter enviado uma guarnição, fez guerra a Florença, conseguindo penetrar em seu território. O perigo era grande

para Florença, tanto mais que, por trás do exército veneziano, estava Pedro de Médici, que ainda podia contar com partidários na cidade da qual tinha sido senhor. Assim Florença, que, para combater os habitantes de Pisa, já tinha contratado um renomado condottiere44, Paolo Vitelli, e o havia enviado para enfrentar os venezianos, conseguindo deter-lhes a marcha. A guerra ameaçava debilitar as forças no campo e os venezianos, que entretanto haviam feito uma aliança com o rei da França, Luís XII, desejoso de se apossar do ducado de Milão, aceitaram, em 1499, a oferta do duque de Ferrara, mediador no conflito entre as duas repúblicas, e retiraram suas tropas. Florença pôde então concentrar seus esforços contra Pisa, mas nem por isso a solução foi rápida: a guerra duraria ainda dez anos, contribuindo notavelmente para enfraquecer a República, seja no plano interno, seja em âmbito internacional. Em agosto de 1499, Vitelli promoveu um ataque contra a cidade rebelde que foi um desastroso fracasso: quando as milícias florentinas já haviam aberto uma grande fenda no muro da cidade, o condottiere não soube ou não quis tirar proveito da confusão que havia feito as defesas inimigas caírem por terra e determinou a retirada das tropas. Os habitantes de Pisa puderam, assim, reorganizar-se e rechaçar os florentinos, que, suspeitando da traição de Vitelli, prenderam e decapitaram-no. Não à toa o primeiro escrito político de Maquiavel dizia respeito justamente a Pisa e à necessidade de “usar a força” para trazê-la de volta para o domínio de Florença, e uma de suas primeiras cartas é a firme réplica endereçada a um chanceler de Lucca, que havia acusado os florentinos de terem assassinado seu condottiere para não pagá-lo 45. As funções de Maquiavel não eram bem definidas, ou melhor, não era bem definida a divisão do trabalho entre a primeira e a segunda chancelaria. Em linhas gerais, pode-se dizer que, enquanto a primeira chancelaria se ocupava dos negócios externos, a segunda estava sobretudo encarregada dos negócios internos e da condução da

guerra46. Mas sabemos que Maquiavel logo desempenhou também missões diplomáticas. Seguramente mais importante era o titular da primeira chancelaria, Marcello Virgilio di Adriano Berti, que recebera o título de chanceler e agrevava a esse ofício o ensino no Studio fiorentino47. Mas aquele que ficaria conhecido como “o secretário florentino” teve grande liberdade de ação, justamente pela imprecisão das funções, tanto que quase imediatamente também foi nomeado secretário da magistratura, responsável pelos negócios exteriores, o Dez da Liberdade e da Paz. Se os chanceleres não eram mais os prestigiados literatos e estudiosos que se sucederam naquelas funções, tais como Coluccio Salutati, Leonardo Bruni e Poggio Bracciolini48, naquele ambiente de trabalho a tradição humanística ainda era habitualmente intensa, tanto que é possível afirmar que de lá Maquiavel trouxe influências culturais comparáveis àquelas mais tarde recebidas, quando frequentou os jovens amigos da casa Rucellai49. É certo que sua atividade na chancelaria contribuiu, em alguma medida difícil de mensurar adequadamente, para seu amadurecimento intelectual. O secretário florentino teve de fato a oportunidade de mostrar não apenas o seu engenho político, mas também seus dotes e gostos literários em geral. O estudo dos antigos evidentemente não foi uma atividade iniciada na solidão em que ele foi obrigado a viver depois da queda da República, em 1512; prova disso, por exemplo, é a carta de 21 de outubro de 1502, em que o seu mais próximo colaborador, Biagio Buonaccorsi, informa-lhe a dificuldade de atender, em Florença, a seu pedido por uma cópia das Vidas, de Plutarco, e o tom impaciente com que se exprime faz supor que não era a primeira vez que havia sido encarregado de procurar livros difíceis de encontrar50. Por outro lado, a perda da comédia Le Maschere [As Máscaras], composta naqueles anos por Maquiavel a pedido, parece, do próprio Marcello Virgilio, não nos permite aquilatar a precocidade de sua vis comica e o assíduo desempenho de suas funções; as várias missões que o

levaram para fora de Florença não o impediram de escrever o primeiro Decennale e os Capitoli [Capítulos], que têm sido comparados às Sátiras, de Ariosto, de cunho horaciano. Além disso, justamente o fato de que o primeiro trabalho publicado por Maquiavel tenha sido o primeiro Decennale, e que as suas primeiras reflexões de caráter moral e político expressaram-se nos Capitoli leva a pensar que, naqueles anos, ainda não tivesse certeza de que fosse possível enfrentar em um escrito em prosa vulgar questões como as expostas nas composições em verso. Aliás, quando, no soneto escrito no cárcere, “Eu tenho, Giuliano, um par de grilhões em minhas pernas”, protesta: “assim se tratam os poetas!”, a sua maior produção intelectual conhecida era justamente em versos, e sem dúvida estava convencido de que a ela deveria confiar a própria reputação; ainda o pensava em 1517, quando escreveu a Lodovico Alamanni para lamentar que Ariosto não o tivesse incluído no “santo aônio coro”, que festivamente acolhe o cantor de Orlando no final do poema. É de se notar, porém, como, à atividade cotidiana na chancelaria, podemos atribuir uma função maiêutica nas relações do prosador: na execução do seu ofício, vinha, de fato, amadurecendo o hábito de tratar dos problemas corriqueiros da república florentina por cartas de governo, correspondências diplomáticas e vários escritos políticos de ocasião, nos quais muitas vezes desenvolvia considerações de caráter geral, formulando expressões e argumentos que mais tarde voltaremos a encontrar nas grandes obras políticas. Com certeza, dada a sua prática intelectual, uma reflexão de grande fôlego era julgada possível apenas se exposta em um estilo capaz de suportar o confronto com a tradição dos clássicos. “Considerando portanto o respeito que se atribui à antiguidade”, observaria, no início dos Discursos, não lhe devia parecer adequado, nos primeiros anos, redigir na língua vulgar textos capazes de falar da realidade presente com a profundidade de argumentação e de perspectiva que se tinha em vista. Se hoje podemos dirigir o olhar para análises

políticas em determinados registros de crônicas e de diários de época51, os autênticos modelos são raros: Alberti e Palmieri, para as reflexões sobre a família e sobre a vida civil, haviam lançado mão do diálogo na língua vulgar, depois adotado por Maquiavel em A arte da guerra, mas “arrazoar sobre as repúblicas” e o “discurso” sobre os principados eram legados em língua latina ainda com Poggio e Pontano. Mais tarde, dirá a Fabrizio Colonna que “ninguém sem invenção já foi grande homem em seu ofício”52, e “grande homem” Maquiavel também se tornou inventando os próprios modelos estilísticos pelos exemplos dos autores do passado. Mas, nos seus primeiros anos, foi difícil realizar a reflexão conceitual e traduzi-la em um texto em prosa, enquanto a poesia oferecia uma forma expressiva de vasta e respeitável tradição. Se é verdade que os paralelos com os cantari53 ou outras composições rimadas, adotados como modelos para o primeiro Decennale, foram colocados em discussão, deve-se, no entanto, reconhecer que existia uma língua para narrações em verso “de motivo popularesco” – como sugeriu Ridolfi54 – enquanto que, para um discurso político, não. Na correspondência particular que chegou até nós, lateja o clima cordial e brincalhão que vemos prevalecer nas relações com os seus colaboradores Biagio Buonaccorsi, Agostino Vespúcio, primo do grande navegador, e Andrea di Romolo. Desde os primeiros dias de seu ofício de secretário, aquelas pessoas lhe manifestaram a sua afeição, o que mostra como ele havia organizado o trabalho de maneira a transformar seus subordinados em amigos: têm liberdade de brincar com ele e, quando está longe de Florença, enviam-lhe cartas com notícias e questões da chancelaria, temperadas muitas vezes com brincadeiras até pesadas, e não raramente grosseiras, e sempre se repetem os pedidos de cartas e de breve retorno. Assim, Biagio Buonaccorsi, lamentando, em 22 de agosto de 1500, o prolongado silêncio de seu superior em viagem à França, revela sua calorosa afeição, manifestando: “Meu Maquiavel, que mil

pústulas o cubram, por nos fazer viver em grande ansiedade”55. E, no final de outubro daquele ano, Agostino Vespúcio, que se assina “tuus, tuissimus56 na chancelaria”57, escreve o quanto aprecia o recebimento de suas cartas, mas que espera poder revê-lo em breve em Florença, porque parece que assim decidiu a Signoria. Todos na chancelaria, acrescenta, têm saudades do “iucundus [...] sermo tuus urbanus et suavis”58[“tua conversa jucunda, urbana e suave”] que acalma e alegra o seu trabalho, e, por isso, deplora “animus iste tuus equitandi, evagandi ac cursitandi tam avidus”59[“esse teu espírito tão ávido por cavalgadas, errâncias e viagens”]. Evidentemente, as missões que o levavam a percorrer as estradas da Itália e dos países transalpinos deviam atrair Maquiavel, desejoso de conhecer novos horizontes, novos costumes e homens de todo o mundo. Em suma, essa correspondência também evidencia a índole cordial e aberta que conhecemos, por exemplo, pela famosa carta a Francesco Vettori, de 10 de dezembro de 1513, em que fala de sua relação com o lenhador, dos diálogos com os transeuntes diante da hospedaria para saber “das novas de seus países”, curioso para aprender “novos gostos e diferentes devaneios dos homens”, ou então das tardes em que “me rebaixo por todo o dia jogando baralho ou gamão com o hospedeiro, o açougueiro, o moleiro e dois forneiros”60. As amistosas trivialidades dessa correspondência revelam um clima de íntima cumplicidade e de alegria familiar que, apesar da diligente secretaria de Maquiavel, deveria ser uma de suas características. “Vossas cartas”, escreve em 23 de outubro de 1502 um outro colaborador da secretaria, “deixam a todos gratos, e os ditos e gracejos usados nelas levam cada um a rebentar de rir e causam grande prazer”61. Não menos festivas deveriam ser as acolhidas dos amigos quando Maquiavel voltava de suas missões diplomáticas. Da cidade de Blois, Roberto Acciaiuoli, que o substituiu como embaixador na corte da França, se diz invejoso dos amigos que o haviam acolhido em Florença: “Parece que vejo Casa

[Filippo Casavecchia] e Francesco [Del Nero] e Luigi [Guicciardini]”, escreve em 7 de outubro de 1510, “irem tirá-lo de casa tão logo chegue, e levá-lo a um solário [em um lugar aberto] ou em Santa Maria del Fiore para incensálo e ouvir todas as coisas daqui”62. Seria obviamente importante compreender melhor o que unia esse círculo de funcionários, em torno dos quais se pretendia formar – segundo uma corrente da qual encontramos os traços na chancelaria florentina desde o século anterior – um conjunto de pessoas movidas pelo propósito de sustentar as novas estruturas da república florentina. Tratava-se de cidadãos que deviam ser unidos por inclinações políticas, mas também por interesses econômicos e culturais, capazes de substituir a vasta clientela criada anteriormente pelos Médici63. Pode-se admitir, todavia, que, não apenas por seu temperamento, Maquiavel poderia ser levado a se portar de modo familiar com seus colaboradores, mas justamente porque chamava a atenção para a necessidade de um bom político criar no palácio um grupo de pessoas empenhadas em promover o consenso em torno do gonfaloneiro. A solidariedade que os colaboradores exprimem para com Maquiavel e as apreensões e os sobressaltos, que volta e meia ressoam em suas missivas por conta da hostilidade partidária provocada pela atividade e pelas funções desenvolvidas por quem se havia tornado um estreito colaborador de Soderini, certamente devem ser consideradas como uma prova de amizade, mas também como um inequívoco sinal de união daquele grupo de funcionários. Portanto, são páginas que devem ser lidas como um vestígio da difícil operação política que se estava tentando montar em torno do gonfaloneiro vitalício. Infelizmente, a maior parte das cartas particulares escritas por Maquiavel nesses anos se perdeu, senão talvez também pudéssemos extrair delas suas intenções. No que tange, então, à natureza e, portanto, ao tom de tal correspondência, é lícito supor que não se diferenciassem

muito daquela travada mais tarde com Vettori, ao qual escreveria, em janeiro de 1515: Quem visse nossas cartas [...] e visse a diversidade delas, ficaria bastante admirado, porque lhe pareceria então que nós somos homens graves, completamente dedicados a grandes coisas [...]. Mas, depois, virando as páginas, teria a impressão de que nós mesmos somos leves, inconstantes, lascivos, dedicados a coisas vãs64.

E concluía, com um típico traço de seu pensamento: Este modo de agir, se a alguém parecer vituperioso, a mim parece louvável, porque nós imitamos a natureza, que é variada, e quem a imita não pode ser repreendido.

São características de Maquiavel que encontramos constantemente no conjunto de sua correspondência. Se, em uma carta a Luigi Guicciardini de 8 de dezembro de 1509, a narração de uma terrível aventura erótica tem um tom novelesco65, até mesmo nas cartas trocadas uma década mais tarde com seu irmão, Francesco Guicciardini, notamos, ao lado de graves reflexões, a vivacidade de cenas que sugerem um paralelo com aquelas de sua peça mais famosa, A mandrágora. E alguma coisa desse humor permanece até mesmo na correspondência oficial.

4. A correspondência com os funcionários do domínio Necessariamente, a correspondência “pública” tem caráter e estilo diferentes da correspondência privada, e, no entanto, mesmo naquela encontramos tons pessoais, que mostram como muitas comunicações oficiais não são a simples transmissão de ordens e preceitos de governo. A amplitude desse material (se pensarmos que, somente dos primeiros quatro anos, de 1498 a 1501, encontram-se preservados 2.500 manuscritos de Maquiavel) fez com que,

diferentemente da correspondência diplomática, as cartas governamentais não tenham sido publicadas senão recentemente, e apenas em parte66. Seu interesse consiste em permitir acompanhar sua atividade diária na chancelaria e observar a relação intensa estabelecida com o pessoal local e com funcionários que desenvolvem diversas funções; além disso, oferece informação minuciosa sobre os vários locais de domínio florentino e sobre as necessidades de seus habitantes. São elementos que nos fazem compreender a maneira pela qual Maquiavel se apropriou dos problemas da vida interna da República; assim, quando tivesse de trabalhar para implementar a Ordenança que previa o alistamento de súditos do domínio, saberia agir com competência e compreensão sobre as diversas situações particulares. Desde as primeiras cartas, fica clara a capacidade de se desembaraçar nas diversas questões, e impressiona a autoridade do tom. “Você deve ter recebido a carta que determina a esses besteiros obedecer”, escreve ao comissário de Pescia “[...] Deverão ter obedecido; se não o fizeram, obrigue-os”67. Mas ele também se ocupa do sustento deles, e dispõe que os hospedeiros forneçam o pão e o vinho necessários, garantindo o pagamento. Quando, em uma pequena aldeia não distante da zona de guerra com Pisa, explodem tumultos provocados pelas tropas acantonadas, recomenda atitude na medida adequada, lembrando ao comissário do lugar “que são soldados, e que todos os soldados estão mais prontamente voltados a fazer o mal do que outra coisa, de modo que é necessário [...] usar grandíssima prudência”. Se é oportuno em “muitas coisas dissimular”, também é necessário “mui asperamente castigar”, comportando-se “segundo o que o tempo, o modo e o lugar requerem”68; alguns anos depois, escreveria que sucede “encontrar seu modo de agir com o tempo”69, um princípio – como veremos – que marca sua obra política. Pode também recorrer a fórmulas quase convencionais, por exemplo, quando ao podestade de Empoli, que, por razões

pessoais, deixou suas funções, dirige uma áspera “repreensão” em nome de “todos aqueles que, como bons cidadãos, preferem o bem de sua pátria à sua própria comodidade, e daqueles que, para salvar a República, não se importam de se submeter a qualquer perigo, ainda que gravíssimo”70. Mas a enérgica determinação de retornar imediatamente à sua função revela o pulso de quem, nos trabalhos maiores, sinalizará repetidamente a exigência de saber decidir sem tergiversar. É uma postura que vemos quase teorizada em uma carta ao vigário de Pescia, o qual, sem prévia autorização, não tinha tido a coragem de punir alguns proprietários de terras que haviam descumprido a proibição de exportar grãos, colocando em risco o abastecimento de Pisa sitiada. “E são muitas as coisas que se desejaria mais prontamente executadas, em vez de dar opinião ou pedir conselho”, censura-lhe. Como poderia ele duvidar “de ser impedido por nós, que lhe escrevemos muitas vezes e tão cordialmente”? Agora, deveria agir prontamente, “sem qualquer respeito [...] sem que isso tenha qualquer relação com a condição do delinquente”71. Mas, em outros casos, fica evidente, nas relações com o correspondente, o seu espírito zombeteiro, como em maio de 1501, quando Valentino está atravessando o domínio florentino, e responde ao vigário de Scarperia, uma aldeia do Apenino, que o vigário havia “escrito tantas cartas repletas de exclamações e de preocupações que levariam a pensar que as tropas estavam cercando o local e ameaçando-o”. Explica-lhe a situação e o tranquiliza, com ironia: “E ainda bem que não vieram para conquistar uma terra como esta tais tropas em formação, com artilharias e outros instrumentos. E se mesmo assim tivessem vindo, artilharias não voam, têm de atravessar as montanhas, e, por certo, haveríamos de saber, e ao saber, tomaríamos providências, de modo que não é necessário colocar nossos súditos em polvorosa dessa maneira”72. Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas o que importa frisar é como, por meio de uma prática diária tornada

efetiva desde os primeiros meses de chancelaria florentina, Maquiavel vai aprendendo os mecanismos da República. Aliás, ele mesmo disse isso quando falou dos “quinze anos que estudo a arte do Estado”73. É uma expressão que nos pode levar a pensar naquela usada por Burckhardt, quando, em Civilização do Renascimento na Itália, ao falar dos tiranos daquela época, observa que construíram seu Estado como uma obra de arte. Na verdade, o significado da frase de Maquiavel é totalmente diverso. Em uma carta a Vettori, de 9 de abril de 1513, escreve: “A fortuna fez com que, não sabendo eu refletir nem sobre a arte da seda nem sobre a arte da lã, nem sobre perdas e ganhos, me fosse conveniente refletir sobre o Estado, e foi necessário que eu ficasse quieto, ou refletisse sobre essas coisas”74. Portanto, está claro que o termo “arte” não tem nada a ver com a criação individual, relacionada de algum modo aos critérios estéticos, como nas páginas de Burckhardt, mas significa ofício, atividade artesanal, exatamente como as artes da lã e da seda: em suma, é uma prática diuturna, cumprida dia após dia, como aquelas que podemos acompanhar nos documentos da chancelaria. Esses nos mostram o homem de governo, que poderia escapar à nossa percepção se nos detivéssemos apenas sobre o teórico político ou sobre o representante junto a príncipes e papas. Sua experiência na chancelaria também é a responsável por seu realismo prático, que, no capítulo XV de O príncipe, o leva a zombar daqueles que “imaginaram repúblicas e principados jamais vistos nem sabidos verdadeiros”75. Pelo estudo dessa correspondência, surge a realidade vívida e complexa do território florentino, e podemos avistar como se governa um conjunto heterogêneo de cidades, burgos e vilas, sujeitos a uma grande comuna, com estatutos muitas vezes diferentes. Percebemos também como tal administração se vai modificando nos primórdios da era moderna. Ao mesmo tempo, entendemos como o secretário florentino consegue diretamente tomar conhecimento dos humores dos habitantes e entender as

relações que se cruzam nos vários lugares. Ele se valerá de tal experiência para estabelecer a Ordenança florentina, a organização do serviço militar da república, avaliando as diferentes possibilidades de alistar os habitantes, justamente porque as suas tarefas o haviam levado a visitar e a inspecionar as várias localidades. Assim, no relatório elaborado para ilustrar “a causa da Ordenança”, explica ter escolhido começar pelos habitantes das áreas rurais próximas a Florença, e não alistar os habitantes do “distrito”, ou seja, dos territórios do domínio, considerando tal decisão imprudente, sobretudo quando se trata de localidade onde existem “grandes ninhos”, vale dizer, centros urbanos como Arezzo, Cortona, Volterra, Pistoia etc.76. Nos Discursos (ii, 2), escreverá que “de todas as duras servidões, a mais dura é a que o submete a uma república [...] porque o fim da república é enervar e enfraquecer para acrescentar ao seu corpo todos os outros corpos”77. Com efeito, se em termos gerais as mais importantes comunidades submetidas conservavam o direito à autoadministração, o poder dominante conseguia controlar sua organização fiscal, as normas de racionamento, a servidão do mercado, as prescrições sobre circulação e estradas, e, sobretudo, aquela que era a prerrogativa por excelência da soberania, a administração da justiça78. Assim, os vários “distritos” do domínio por vezes ficavam desenfreados e particularmente no início de seu secretariado, Maquiavel testemunhou, depois de Pisa, a revolta de Pistoia, e, sobretudo, de Arezzo e de toda a região ao redor do Val di Chiana. Não por acaso, o escrito desses anos que mais claramente prenuncia a maneira de raciocinar do Maquiavel maduro é Del modo di trattar i popoli della Valdichiana ribellati [Do modo de tratar os povos rebelados do Val di Chiana], que também parece antecipar os Discursos ao partir de uma citação de Tito Lívio para propor a Florença, quanto ao seu domínio, um comportamento capaz de “imitar aqueles que são donos do mundo”79.

5. A atividade diplomática Até as cartas enviadas durante as missões diplomáticas revelam frequentemente tal vigor expressivo a ponto de permitir comparações com a correspondência privada ou com as obras seguintes. Isso vale, em geral, para a argumentação em torno das várias situações lucidamente apresentadas e para as hipóteses aventadas, mas, sobretudo, para a vívida representação dos personagens encontrados. Vale como exemplo o retrato de César Bórgia, na carta de 26 de junho de 150280. O filho do papa Alexandre vi havia então dominado as cidades da Romanha, ocupando-as nominalmente sob a autoridade da Igreja, e, em 21 de junho, havia conquistado também o ducado de Urbino, expulsando Guidobaldo de Montefeltro. A Signoria florentina, incomodada pela presença, em suas fronteiras, desse ambicioso potentado, que tinha entre os seus condottieri Vitellozzo Vitelli, a quem atribuía a revolta de Arezzo e do Val di Chiana, lhe enviou como embaixador Francisco Soderini, então bispo de Volterra, acompanhado de Maquiavel. O primeiro colóquio com César Bórgia foi bastante tumultuado, uma vez que este pretendia nada menos do que trocar o governo dos florentinos. Maquiavel narra o dramático embate, citando as próprias palavras do duque que, “sem muitos rodeios”, declarou: “Esse governo [de Florença] não me agrada, e não posso confiar nele; é necessário que o mudem”. Depois, ao fim da carta, traça um destacado retrato do personagem, sem esconder-lhe as qualidades: Este Senhor é muito esplêndido e magnífico, e nas armas é tão animado que não existe grande coisa que não lhe pareça pequena; e pela glória e para conquistar Estados jamais descansa, nem conhece fadiga ou perigo. Ele chega aos lugares antes, a fim de que possa entender onde o jogo acontece; torna-se benquisto por seus soldados; remunerou [a soldo] os melhores homens da Itália: tais coisas o fazem vitorioso e formidável, unido a uma perpétua fortuna.

Uma característica que confere particular vivacidade às cartas enviadas das missões diplomáticas é o uso do discurso direto para narrar os colóquios com os mais importantes personagens. Essa é, sem dúvida, uma peculiaridade de seu estilo, que revela argúcia política, capaz de comunicar imediatamente as situações. Ao mesmo tempo, nota-se como, no final das missões, faz uso de um instrumento de informação que Veneza tornará obrigatório para seus próprios embaixadores: o relatório final, em que, concluída a missão, o enviado ilustra o estado do país, as suas maiores instituições, os seus recursos econômicos etc. Por sua conta, Maquiavel compreende a utilidade de redigir relatórios desse tipo sobre as coisas da França e da Alemanha. Poderia ser de algum interesse ler seus escritos em paralelo àqueles redigidos nos mesmos anos pelos embaixadores venezianos, reputados tesouros inesgotáveis para conhecer países e situações daquela época, naturalmente levando em consideração a diferença entre as funções e as possibilidades de um enviado extraordinário e as dos representantes residentes. Nesses anos, deve-se lembrar, as relações diplomáticas entre os Estados da Europa conhecem inovações importantes: a organização e a própria concepção de Estado então se articulavam em modos e formas cada vez mais complexos81, e, justamente por isso, os embaixadores devem saber penetrar com instrumentos idôneos a realidade do país para onde são enviados. Assim, as tradicionais embaixadas, encarregadas de missões extraordinárias em momentos particulares e com funções delimitadas, começam a ser substituídas por embaixadores estáveis e com encargos mais duradouros e bem mais amplos82. O fato de que dessas novas funções se tenham os primeiros sinais evidentes no pessoal a serviço de dois grandes centros comerciais como Veneza e Florença, em

uma época em que estão amadurecendo novas formas de capitalismo mercantil, nos faz lembrar que os homens de negócio sempre precisaram de notícias de lugares de seu interesse, sempre precisaram de informações das regiões das quais provinham os produtos que negociavam, sempre tiveram necessidade de agentes que cuidassem de seus interesses em vários lugares. Pode-se pensar que os antigos costumes fossem vinculados a obrigações então atribuídas aos enviados das potências políticas, e, de algum modo, encontramos a confirmação disso no quadro que Hans Holbein pintou em 1533, Os Embaixadores, que integra o acervo da National Gallery de Londres. Aparecem ali, de fato, alguns objetos capazes de simbolizar a atividade dos representantes diplomáticos, então em pleno desenvolvimento: eles ganham uma importância cada vez maior, desde que as relações entre os Estados e a própria ideia de política assumiram novos aspectos, novos conteúdos e novas dimensões83. Notamos, assim, instrumentos que podem parecer estranhos aos hábitos de vida dos dois personagens retratados, um cavaleiro da ordem de São Miguel e um alto prelado: vemos em primeiro plano um grande globo celeste, um globo terrestre, um quadrante solar, um astrolábio, compassos, bem como um livro de cálculos de comerciante. São objetos que indicam funções essenciais para quem viaja o mundo e vive em terras estrangeiras, e, para o desenvolvimento de sua função, deve conhecer a natureza dos lugares, as características do território, seus recursos e a economia do país. Se Maquiavel adverte nos Discursos “que um comandante deve ser conhecedor dos lugares”, e apresenta como exemplo Ciro, que, segundo Xenofonte, praticava a caça justamente para aprender sobre os países84, com mais razão ainda um embaixador, na época das grandes viagens e das descobertas geográficas, deveria ser capaz de ter uma visão ampla e atualizada do mundo. Em sintonia com esse comportamento, sem dúvida, estão os conselhos que dá no Memoriale a Raffaello Girolami85 [Memorial a Raffaello

Girolami], enviado à Espanha em 1522, mas suas cartas também mostram como suas informações são sempre precisas e minuciosas, e, não raro, sugerem os tratados da época86, fazem referência a verdades até desagradáveis para a Signoria, oferecendo o panorama mais vasto e completo possível daquilo que sabe.

6. A experiência das primeiras missões diplomáticas A primeira missão diplomática importante, pela possibilidade que ofereceu a Maquiavel de conhecer diretamente uma grande potência europeia, foi-lhe confiada em bem pouco tempo. Em julho de 1500, juntamente com Francesco della Casa, foi encarregado de se dirigir à corte da França “para inteirar aquela Majestade sobre todos os progressos do campo [sob Pisa]”. O secretário já havia desempenhado algumas missões secundárias junto ao senhor de Piombino, Iacopo d’Appiano, e junto a Catarina Sforza Riario, senhora de Forlì, para garantir a Florença forças para avançar contra a cidade rebelde. Foi então enviado a Luís XII, por ter estado pessoalmente no campo florentino quando a tentativa de assalto a Pisa, empreendida naquele ano com a ajuda das forças francesas, havia fracassado por causa do motim das tropas abastecidas de modo inadequado por Florença. Devia, portanto, dar explicações do ocorrido e convencer o rei a manter sua ajuda, sem exigir, porém, o pagamento imediato das despesas já feitas. A missão estava longe de ser fácil. No entanto, a partir das cartas enviadas por Maquiavel, notamos a sua capacidade de agir diplomaticamente, bem como o seu atrevimento em saber enfrentar o poderoso ministro Georges d’Amboise, arcebispo de Rouen. Recorda, em O Príncipe: Dizendo-me o cardeal de Rouen que os italianos não entendiam de guerra, eu lhe respondi que os franceses não entendiam de Estado, porque, se

entendessem, não deixariam a Igreja alcançar tal grandeza.87

Na origem do conflito estava o empreendimento do Valentino88 que, sob o estandarte papal, impunha seu próprio domínio sobre boa parte da Itália central: mesmo sem considerar as catástrofes que, em 1512, a Igreja, sob Júlio II, havia causado a Luís XII (e, por sua vez, a Florença), a pungente resposta de Maquiavel era, sem dúvida, visionária, porque naqueles anos a Igreja se estava tornando particularmente poderosa na Itália89. Assim, em O Príncipe, indicaria quais erros de Luís XII teriam “cansado os menos poderosos” e “feito somar poder a um poderoso na Itália”, ou seja, ao papa90. Todavia, o valor daquela missão na formação de Maquiavel é sobretudo o fato de ter sido o seu primeiro contato com a França e a conclusão a que logo chegou de sua força, devido à coesão do Estado e à sua organização. É um princípio que permanecerá sólido na sua orientação política, e que o levará a apontar sempre para a aliança francesa, seja nos anos da república soderiniana, seja em um momento posterior, quando, em dezembro de 1514, por meio de Vettori, será interpelado pelo próprio papa Leão X sobre a possibilidade de a França tentar algo na Itália, como aconteceria no ano seguinte com Francisco I, seja na última fase de sua vida, quando, perdendo enfim as esperanças sobre a liberdade da Itália, teme o predomínio espanhol e procura evitá-lo de qualquer jeito. Ainda antes daqueles escritos especificamente dedicados àquele reino, a começar por De natura gallorum [Sobre a natureza dos gauleses], temos testemunhos de seu convencimento em Discursus de pace inter imperatorem et regem [Discurso sobre a paz entre o imperador e o rei], de 150191, em que, pela primeira vez, intervém em grandes questões de política internacional. Embora exprima a sua admiração pela Alemanha e pelas cidades alemãs, reconhecendo sua liberdade e retidão, o seu juízo sobre o poder imperial é, desde então, negativo, observando a

fragilidade e a divisão interna, crônicas sobretudo devido a seus príncipes. Ao contrário, “enganar-se-ia grandemente” quem quisesse aproveitar-se de discórdias internas, pensando que “as províncias e os barões da França estivessem prestes a se rebelar”. Antes, o rei lhe parece “insuperável pela organização de seu reino”. Mais tarde, depois de outras missões que o levaram àqueles países, em Ritracto di cose di Francia [Retrato de coisas da França] e em Ritracto delle cose della Magna92 [Retrato das coisas da Alemanha], desenvolverá essas reflexões e indicará mais precisamente as razões que o levaram a fazer tais juízos. “A coroa e os reis da França estão hoje mais fortes, ricos e poderosos do que nunca”, observa, resoluto, na abertura de Ritracto di cose di Francia, e destaca a supremacia enfim conquistada pelos soberanos sobre os “barões”, não mais capazes de neutralizar, como antes, a sua política ou os acordos com potentados estrangeiros. Além disso, a organização do reino, no que diz respeito à força militar, ou à riqueza do país e à administração das finanças, ou, no geral, quanto às leis que regem a monarquia (sobre o que voltará em O Príncipe e nos Discursos), parece-lhe sólida o bastante a ponto de fazê-lo negligenciar a personalidade do soberano, diferentemente da análise reservada à Alemanha. A estrutura política francesa, de fato, não está sujeita a contingências variáveis, à natureza volátil dos príncipes reinantes. Por outro lado, não obstante a abundância “de homens, de riquezas e de armas”, a fraqueza do Sacro Império Romano-Germânico lhe parece manifesta nas divisões internas, no egoísmo e prepotência dos príncipes, no desejo das cidades de preservar sua liberdade e na hostilidade entre os príncipes e as cidades. Ademais, tudo fica ainda mais crítico pela natureza de Maximiliano, de quem um homem de sua corte havia destacado o caráter oscilante: O imperador não pede conselho a ninguém, e é aconselhado por qualquer um; quer fazer tudo por si mesmo, e nada faz a seu modo, pois, não obstante

jamais revele os seus segredos espontaneamente, como os vestígios os revelam, ele retira sua primeira ordem por causa daqueles que tem à sua volta; e estas duas partes, a liberalidade e a maleabilidade, que nele muitos louvam, são o que o arruínam.93

Em suma, as divisões internas e, portanto, a fragilidade política da Alemanha parecem a Maquiavel um fator primário, tão enraizado que até mesmo a eleição de um soberano como Carlos V para o Império, em 1519, por domínios espalhados por tantas partes do mundo não parece mudar sua opinião. Pouco tempo depois da missão diplomática na França, uma outra oportunidade para amadurecer sua reflexão política lhe foi oferecida, como citado: o encontro com o Valentino, filho do papa Alexandre VI. Desde a primeira missão de junho de 1502, embora bastante breve, havia ficado vivamente impressionado por sua personalidade e não havia escondido sua admiração no retrato traçado em uma carta à Signoria. Na segunda, teve a possibilidade de conhecê-lo mais a fundo, permanecendo com ele de outubro de 1502 a janeiro de 1503, e esteve, portanto, presente nas fases dramáticas do conflito com seus condottieri infiéis. Maquiavel – que já tivera a oportunidade de manifestar sua crítica à política hesitante de Florença, o seu constante procrastinar e a sua constante busca do “caminho do meio” –, continua interessando-se por esse personagem resoluto e enérgico. Quando, em O Príncipe, descrevesse seu itinerário para oferecer um modelo de “príncipe novo”, mostraria como a agilidade nas ações o levou ao sucesso, e, ao mesmo tempo, não deixaria de notar o bom governo que o havia tornado querido pelos súditos da Romanha. Por outro lado, a ação contra seus lugares-tenentes rebeldes foi decisiva para lhe assegurar a estabilidade do poder, e sobre tal evento redigiu um relatório à Signoria que, na sua secura dramática, antecipava o escrito Il modo che tenne il duca Valentino per amazar Vitellozzo Vitelli, Oliverotto da Fermo, il signor Pagolo et il duca di Gravina Orsini in Senigallia94 [O

modo de o duque Valentino matar Vitellozzo Vitelli, Oliverotto da Fermo, o senhor Pagolo e o duque de Gravina Orsini em Senigália]. A virtude, constituída dos dotes viris da energia e sagacidade, parecia-lhe o dote principal desse extraordinário personagem, e, ainda em 1515, escreveria a Francesco Vettori que, se fosse um príncipe novo, sempre o tomaria como exemplo de modo de agir95. A precariedade das vicissitudes humanas deveria, na vida política, dar impulso a quem desejasse conseguir aproveitar a ocasião favorável, mas se deveria também saber criá-la, se necessário. E foi isso o que César Bórgia fez quando seus condottieri conspiraram contra ele. Os vários tiranetes da Itália central a seu soldo – João Paulo Baglioni, de Perúgia; Vitellozzo Vitelli, de Città di Castello; Oliverotto, de Fermo; e os Orsini, de Roma –, sentindo-se pessoalmente ameaçados em suas possessões depois de o Valentino se apoderar da Romanha e do ducado de Urbino, reuniram-se entre o fim de setembro e o início de outubro de 1502, no Castelo della Magione, próximo a Perúgia, com os representantes de Pandolfo Petrucci, de Siena, e de João Bentivoglio, de Bolonha, e entraram em acordo “pela salvação de todos e para não serem um a um devorados pelo dragão”96. Assim escreveu Baglioni à podestade de Florença, esperando atrair também essa cidade para a campanha contra o Valentino. Em vez disso, Florença se recusou a se unir aos rebelados, e enviou Maquiavel ao Valentino para ratificar a amizade da República e avaliar a situação. Em seu relatório final, Maquiavel escreveria ter então encontrado César Bórgia “cheio de medo em Ímola”, mas “com o ânimo recuperado pela oferta dos florentinos”. Na verdade, nas cartas enviadas depois daquele primeiro encontro não se nota tal impressão; também é fato, todavia, que o enviado de Florença, contrariamente aos costumes, tão logo chegou foi imediatamente recebido, tanto que teve de se apresentar “assim, em trajes cavaleirescos”97. Maquiavel permaneceu quase três meses na comitiva do

duque, e, apesar dos rumores espalhados para apaziguar os conspiradores, intuiu o plano para dividi-los e destruir seu complô. Mesmo assim, ainda na noite de 26 de dezembro, escreveu à Signoria noticiando que não estava claro o que César Bórgia pretendia fazer. Cinco dias depois, em poucas e apressadas linhas, comunicou à Signoria: Esta manhã, em boa hora partiu Sua Excelência, o duque, com todo o exército, e vieram para cá, em Senigália, onde estavam todos os Orsini e os Vitellozo [...] Eles se encontraram à sua chegada, e assim que o duque e sua escolta adentraram a terra, voltou-se para a sua guarda e determinou a prisão deles, e assim os fez todos prisioneiros e o lugar foi saqueado98.

No dia seguinte informou que foi chamado tarde da noite pelo Valentino, que “com a maior serenidade do mundo se alegrou comigo desse sucesso”. No capítulo VII de O Príncipe, os acontecimentos de Senigália retornam ao quadro geral da política de César Bórgia e ganham destaque, mas o relatório para a Signoria e Il modo che tenne..., redigidos em sequência, evidenciam dramaticamente não apenas a virtude do Valentino, mas também a falta da dos conspirados. De fato, ele pintou um esquálido quadro na carta à Signoria: Não vieram todos juntos, mas um após o outro; do que se presume que estivessem indo não por uma decisão conjunta, mas ao acaso, obrigados pela necessidade e pela vergonha, ou antes pela boa fortuna dos outros e por sua própria má fortuna. Vitellozo veio montado em uma pequena mula, desarmado, com um casaco apertado, preto e puído, e um sobretudo preto forrado de verde; e quem o visse jamais pensaria que fosse o mesmo que, por duas vezes naquele ano, havia tentado expulsar da Itália o rei da França. Seu rosto estava pálido e atônito [...] 99

Também se poderia dizer– como de João Paulo Baglioni, envolvido no mesmo complô, mas que escapou do massacre por ter sido alcançado, em 1520, pela justiça do papa Leão

X – que não souberam ser “honrosamente maus” (Discursos, I, 27). Por outro lado, Maquiavel demonstrou admirar em César Bórgia também a capacidade de criar um Estado, e escreve, em O Príncipe: Exterminando assim tais líderes, e reduzindo seus partidários a seus amigos, o duque lançou fundamentos bastante bons para o seu poder, conquistando toda a Romanha e o ducado de Urbino, parecendo-lhe conquistar especialmente a amizade da Romanha e ganhar aqueles povos por terem começado a desfrutar de bem-estar.100

Com efeito, soube transformar em país ordenado “aquela província repleta de latrocínios, brigas e tantas outras causas de insolência”. Poucos meses depois, porém, quando já parecia que o Valentino se tornaria senhor de boa parte da Itália, seu destino sofreu uma reviravolta: o papa, seu pai, morreu inesperadamente, e, bem naqueles dias, ele próprio adoeceu gravemente, não conseguindo controlar a situação. Não conseguiu nem mesmo tirar vantagem do brevíssimo pontificado de Pio III, e a subida ao trono pontifício de Júlio II marcou o seu fim político: mantido prisioneiro no Vaticano, viu ocupados todos os seus domínios. Essa não foi a única repentina mudança da situação italiana: outra reviravolta na fortuna atingiu os franceses, que, derrotados pelos espanhóis no Garigliano, perderam o reino de Nápoles. Em poucas semanas, toda a estrutura política da península foi modificada. Quem se afirmava então era o novo papa, com a sua nova e impetuosa maneira de agir, que o favorecia na reconquista das terras em poder do Estado da Igreja.

7. Mudanças da fortuna e Ghiribizzi al Soderino Nesse instável precipitar de eventos, a reflexão de Maquiavel traça uma relação mais complexa entre fortuna e

virtude. Em setembro de 1506, foi enviado pela Signoria “a encontrar sua Santidade, o papa”, em Roma “ou no lugar em que entender que se encontrem”101: Júlio II de fato empreendera uma expedição contra João Paulo Baglioni em Perúgia, e pretendia continuá-la contra os Bentivoglio, de Bolonha; e o secretário se colocou em sua comitiva. Além dos paramentos pontificais, naqueles dias o papa apareceu trajando armadura, com a qual irromperia em Mirandola por uma fenda aberta por canhão. Erasmo, que em novembro o veria marchar triunfante sobre Bolonha, lamentaria o espetáculo dado por este Júlio, que mais lhe parecia “um outro Júlio [César]”, um escudeiro, não um sacerdote de Cristo. De sua parte, Maquiavel ficou impressionado por esses acontecimentos, de seu agrado justamente pela impetuosidade temerária que permitia ao papa, quase sem armas, conquistar Perúgia. Porém, ele também ficou enojado pela “vileza de João Paulo” que, certamente não “por bondade ou por consciência que tivesse” – tendo em vista sua natureza criminosa –, “não soube, ou, melhor dizendo, não ousou, tendo boa oportunidade para tanto, praticar um ato pelo qual todo mundo admiraria a sua coragem”, fazendo prisioneiro, como poderia fazer, seu inimigo102. São acontecimentos que, na metade de setembro de 1506, lhe sugeriam os Ghiribizzi al Soderino, uma carta da qual chegou até nós apenas a minuta. Em 1969, o redescobrimento do manuscrito permitiu datar com precisão o escrito que, seja pela errônea leitura do destinatário, seja pela maturidade dos conceitos, acreditava-se escrito no tempo de O Príncipe, sendo que havia sido redigido sete anos antes, justamente no período da viagem no séquito de Júlio II103. De todo modo, é clara a harmonia entre esse texto, que “delineia a mais completa teorização” formulada por Maquiavel durante o seu secretariado104, e as suas maiores obras políticas. O núcleo da reflexão é o contraste entre as ações dos homens e a variação dos tempos. Sobre o turbilhão dos acontecimentos mundanos, a fortuna se

sobressai dominadora, e as transformações nas coisas terrenas não permitem obter sempre bom êxito nas empresas. Mas talvez a vontade, ou melhor, a sabedoria do homem seja capaz de dominar, se não a fortuna, a influência que os astros exercem sobre o destino: Ptolomeu já havia afirmado: “sapiens dominabitur astris”105. Podemonos surpreender com tal hipótese de caráter sobrenatural, análoga, aliás, àquela que encontramos nos Discursos, onde se supõe que, “sendo estes ares, como quer certo filósofo, cheios de inteligências”, e, “tendo compaixão dos homens, a fim de que se prepararem para a defesa, avisaram-lhes com semelhantes sinais”106. Como Lucien Febvre observou, na ótica dos homens do século XVI há uma constante relação entre o natural e o sobrenatural, e o seu mundo é povoado de poderes invisíveis, de forças e de influxos que circundam os homens de todo lado e determinam sua sorte107. Claro, opiniões desse tipo raramente se repetem nos textos de Maquiavel; todavia, em 1504, ele havia escrito ao filho de um notário da chancelaria, Bartolomeu Vespúcio, que estudava astrologia na Universidade de Pádua, precisamente nos anos em que Nicolau Copérnico frequentava aquela academia, para lhe pedir a confirmação da sententia de Ptolomeu: “o sábio comandará as estrelas”. Vespúcio respondeu que sua posição era “verdadeiríssima”, e que, com efeito, os antigos sustentavam “ser o sábio capaz de mudar as influências dos astros”. Especifica, todavia, que os astros não mudam sua influência, “porque, nas coisas eternas, nenhuma mudança pode intervir”, mas o sábio, graças à sua doutrina e experiência, compreende quando é necessário mudar o próprio comportamento e suas ações, apoiando, assim, a variação dos influxos celestes108. Os acontecimentos que se sucederam nos últimos tempos mostravam claramente a rápida mudança nas sinas dos homens, e quem não soubesse se adequar era afetado. Escreve Maquiavel, nos Ghiribizzi: “Ao ver-se com vários governos conseguir uma mesma coisa, e, agindo de modo

diferente, ter um mesmo fim”, é preciso entender “a razão pela qual as diversas ações algumas vezes igualmente funcionam ou igualmente prejudicam”. E explica: “Eu creio que assim como a natureza fez um rosto diferente para cada homem, assim também deu a cada qual engenho diverso e diversa fantasia”. Todavia “os tempos são vários e diversas são as ordens das coisas”, tanto que “àquele sucedem ad votum os seus desejos, e feliz é quem, em conformidade com o tempo, encontra seu modo de agir”. Consequentemente, “porque os tempos e as coisas universalmente e particularmente mudam com frequência, e os homens não mudam nem suas fantasias nem suas maneiras de agir, sucede que o homem ora tem boa e ora tem má fortuna”. Concluindo, “quem for tão sábio a ponto de conhecer os tempos e a ordem das coisas e se adaptar a elas, terá sempre boa fortuna, e sempre estará protegido contra a má”, e então será verdade que “o sábio comanda as estrelas e os fatos”. Mas “desses sábios não se encontra”; portanto, “a fortuna varia e comanda os homens, e os tem sob o seu jugo”109. A observação é repetida quase com as mesmas palavras em O Príncipe (cap. XXV): “Creio ainda que seja feliz quem adapta seu modo de agir às características dos tempos [...]”, e nos Discursos (III, 9): “considero muitas vezes que a razão para a triste e a boa fortuna dos homens seja o confrontar seu modo de proceder com os tempos”. A capacidade de se adequar à variação da fortuna é o dom mais precioso do sábio: tal convicção é então formulada por Maquiavel, e nele ficará enraizada como premissa de toda a sua reflexão política. Nesse sentido, a fortuna pode ser condicionada pela virtude, e esta é capaz de agir segundo os tempos: depende da natureza dos homens saber adequar-se. Todavia, a fortuna é a força determinante: “Seu poder natural sobrecarrega qualquer homem”, escreve no capítulo em versos Di Fortuna [Da Fortuna], sempre dedicado a Giovan Battista Soderini, em que retoma e desenvolve as considerações dos Ghiribizzi. E quando, em A arte da

guerra, critica os príncipes italianos, observa que, “por terem pouca virtude, a fortuna tudo governa”110. Mas, em um comentário à margem dos Ghiribizzi, anota: “Tentar a fortuna, que é amiga dos jovens”. Mais amplamente, retomaria essa observação no cap. XXV de O Príncipe: Julgo bem isto, que é melhor ser impetuoso que prudente: porque a fortuna é mulher, e, desejando submetê-la, é necessário surrá-la e contrariá-la. E vê-se que ela se deixa vencer mais por estes que por aqueles que friamente agem: e, no entanto, sempre, como mulher, é amiga dos jovens, porque são menos respeitadores, mais impetuosos e com mais audácia a comandam.

O novo príncipe, portanto, para ter êxito na sua ação libertadora, deve comportar-se como os jovens. É de se pensar que Maquiavel tenha assim cogitado porque ele próprio estava insuflado de um espírito do gênero, que o sustentava nos momentos mais tenebrosos, e o induzia a não se conformar, a não ceder, a lutar contra a fortuna. A sua “natureza”, ou, se quisermos, o otimismo de sua vontade o induzia a tentar forçar as coisas para conseguir efeitos positivos a todo custo. Antes de tudo, para remediar a fragilidade da República de Florença, que se revelava clamorosamente na incapacidade de dominar a revolta de Pisa.

8. A Ordenança florentina De fato, a guerra contra Pisa continuava a se arrastar, e a mudança dos capitães contratados certamente não havia facilitado uma solução. Em 1504, o gonfaloneiro tentaria executar um projeto gigantesco, no qual talvez tenha colaborado Leonardo111, desviando o curso do Arno para impedir o abastecimento de Pisa pelo mar. A empreitada, que chegou a ser começada e dilapidou bem uns sete mil ducados, se revelou demasiadamente difícil, e teve de ser abandonada. Em tal estado de coisas, Maquiavel meditava havia algum tempo sobre a necessidade de reintroduzir uma

organização militar, parecida com a existente nos primeiros tempos da comuna, depois extinta devido a diversos acontecimentos. Tratava-se de munir a República com “armas próprias”, ou seja, de organizar milícias alistadas em seus domínios. A ideia já havia circulado no tempo de Savonarola, e provavelmente foi retomada por Maquiavel na época da missão diplomática a Roma, no final de 1503, quando Florença, empenhada na batalha contra Pisa, mostrara-se incapaz de conter o avanço de Veneza sobre a Romanha, em terras já antes submetidas ao Valentino. O próprio Valentino havia armado seus súditos da Romanha, e é provável que a memória de tal experiência tenha insinuado a nomeação de um famoso lugar-tenente de César Bórgia, dom Micheletto Corella, o capitão da nova milícia florentina112. No curso da missão em Roma, Maquiavel deve ter falado sobre isso com o irmão do gonfaloneiro, o cardeal Francisco Soderini, ao qual era ligado também por relações de compadrio: prova disso é a carta de 29 de maio de 1504, endereçada a ele pelo prelado, que o encorajava a empreender a ordenança, ou seja, a promover as determinações que permitiriam instituir a milícia florentina. Esse projeto, porém, foi logo contestado pelos ottimati, que temiam que “armas próprias” fossem usadas pelo gonfaloneiro para tomar o poder, e Maquiavel deve ter temido que Soderini tivesse “arrefecido”, enquanto o cardeal, no fim de outubro, o consolava, sugerindo que o irmão dera aquela impressão apenas “para afastar a chance de quem quer dizer e fazer mal”113. Maquiavel se empenhou nesse projeto com paixão. Não só o vemos dedicado à sua realização no exercício da chancelaria, mas lhe dedicou também seus esforços literários. Data desse período o seu primeiro escrito destinado à publicação: o primeiro Decennale, um pequeno poema em terza rima114, em que narra eventos italianos de 1494 a 1504. Composição definitivamente insólita, de um homem de governo, fez um crítico perspicaz notar que, “se, por uma hipótese absurda, um secretário veneziano

divulgasse algo parecido, certamente não teria tempo e meios de dar outras notícias de si ao mundo”115. De fato, é uma história da Itália, com uma crítica áspera aos incapazes príncipes italianos, mas também criticando Florença, da qual não deixou de divulgar as fraquezas e os erros, e assim desempenhou uma precisa função política. “As itálicas fainas/ já passadas nos dois passados lustros” mostravam a gravidade da situação italiana e a necessidade de Florença recorrer a um instrumento capaz de sanar a mais grave das “chagas mortais” que a afligiam, a guerra de Pisa. E a esse objetivo deveria servir a Ordenança, como é indicado no final aos florentinos: “O caminho seria fácil e curto/ se a Marte o templo reabrisse”, ou seja, se se decidisse armar. Ao mesmo tempo, a referência às “chagas mortais” possibilitou a Maquiavel inserir um caloroso elogio ao líder dos ottimati, Alamanno Salviati, que, em grande parte, as havia curado. De fato, Maquiavel atribui a ele o mérito de ter pacificado Pistoia e de ter dominado a revolta de Arezzo e do Val di Chiana, mas, sobretudo, atribuiu-lhe o mérito de ter lançado as bases para a reforma constitucional que reforçaria o governo da República, colocando à sua frente um gonfaloneiro vitalício, a exemplo do doge de Veneza. Exceto que, no projeto de Salviati e dos outros ottimati, havia também o propósito de instituir um senado formado por aristocratas, que, como o veneziano, teria a função de decidir as questões mais importantes. Pier Soderini, eleito gonfaloneiro, percebeu que tal organismo lhe tiraria grande parte do poder, e não apenas se protegeu bem contra sua constituição, como também se apoiou principalmente em assembleias populares, rompendo com o grupo dos nobres. Maquiavel quis dedicar o poema justamente a Alamanno Salviati, com a intenção de reaproximá-lo da política de Soderini, mas a tentativa fracassou: Salviati recusou a homenagem, e resistiu ferozmente à Ordenança, que considerava uma ameaça à liberdade florentina. Assim, o Decennale foi publicado apenas em 1506, com uma dedicatória genérica aos cidadãos de Florença.

Todavia, a reforma militar de Maquiavel alcançou bom termo. O secretário se dedicou ativamente à sua realização, e Giovan Battista Soderini, que o conhecia bem, justamente na carta da qual os Ghiribizzi são a resposta, previa que, no seu retorno da missão junto a Júlio II “terei de vocês inesperadamente o estrondo e o clarão”, ou seja, o trovão e o relâmpago, tão certo estava que o amigo saberia apressar as decisões. Como escreve Guicciardini, nas Storie fiorentine, começou ser visível “certo sábio” nas novas milícias, promovendo, como na Romanha [florentina], em Casentino, em Mugello e nos lugares mais armados para o combate, a “conscrição por condado dos que pareciam mais aptos a esse exercício, e os colocou sob um comando, e, nos feriados, começou-se a treiná-los e a colocá-los em formação”116. O teste foi bom e contou com apoio popular: em 15 de fevereiro de 1506, lê-se, no diário de um florentino daquela época117, “achou-se a mais bela coisa que já se organizou pela cidade de Florença”, sobre a primeira revista da nova milícia. O sucesso obtido permitiu a aprovação do provimento da Ordenança, e, como escreveu a Maquiavel o cardeal Soderini, em 15 de dezembro de 1506: Parece-nos mesmo que essa Ordenança sit a Deo, porque cada dia cresce, não obstante a maldade [...] Nós não vemos que esta cidade de um tempo para cá tenha feito algo tão honrado e certo quanto isto, e sendo de bom uso: que os bons usem de todo o seu conhecimento e não se deixem conduzir por quem, movido por outros desígnios, não ame o bem desta cidade tanto quanto condiz com sua nova liberdade.

A crítica a quem não queria o bem da cidade era dirigida aos ottimati, que continuavam a se opor à nova instituição, temendo-a a ponto de Bernardo Rucellai julgar prudente abandonar Florença junto com seus dois filhos, com medo de que Soderini se fizesse príncipe. Maquiavel, por outro lado, triunfava e, em janeiro, seria nomeado chanceler da magistratura que supervisionava os trabalhos da milícia, os Nove Oficiais da Ordenança.

Com o novo arranjo, a República certamente se fortaleceria, tal como propunham os que a haviam concebido. Ao explicar La cagione dell’Ordinanza [A causa da Ordenança]118, Maquiavel evocou os dois elementos essenciais da soberania que, segundo a constituição de Justiniano, Imperatoriam maiestatem [a majestade do império], deveria ser “armis decorata” [“ornada pelas armas”] e “legibus armata” [“armada pelas leis”], ornada de armas e armada de leis. De fato, inicia seu escrito observando: Todos sabem que quem diz império, reino, principado, república, quem diz homens que comandam, começando pelo primeiro grau e descendo ao infinito, ao capitão de bergantim, diz justiça e armas.

Tais prerrogativas eram tão pouco presentes e operantes na realidade italiana, a ponto de levá-lo a ressaltar a sua indispensabilidade, seja em O Príncipe (cap. XII), seja nos Discursos (III, 31). A advertência que, em La cagione dell’Ordinanza, dirigia com surpreendente franqueza aos governantes de Florença (“Da justiça não terão muita, das armas, coisa alguma”) poderia ser estendida a todos os Estados italianos da época, se justamente aquela fragilidade havia originado – como teria mais tarde observado em A arte da guerra – “os grandes espantos, as fugas repentinas e as perdas miraculosas”119. Mas a relação entre o ordenamento dos Estados e a sua defesa, ou, como também disse, entre as boas leis e as boas armas, deveria estar particularmente presente em uma república erguida com base na comuna urbana, onde existia uma disparidade profunda entre os habitantes. Em um Estado desse tipo, era bastante restrito o círculo de cidadãos com plenos direitos, aptos a desempenhar funções oficiais e a participar do governo: naqueles anos, que, apesar de tudo, testemunharam a instituição do mais “amplo” governo que Florença jamais vira, eles não chegavam a quatro mil. Todos os outros, que viviam na própria cidade ou nos campos ao

redor, nos condados, eram excluídos da vida política ativa. Ainda pior era a situação das cidades submetidas, que perdiam, junto com sua liberdade, também o direito ao autogoverno: da organização fiscal às leis de racionamento, das normas de circulação e de mercados à administração da justiça, o poder dominante era capaz de lhes impor regras frequentemente desvantajosas. Levando em consideração precisamente esse estado de coisas, Maquiavel, como dito, distingue três áreas diversas na Ordenança para o recrutamento da milícia: cidade, condado e distrito. Naquele momento, a cidade estava excluída do recrutamento, porque, em um exército, há “homens que comandam e que obedecem”, há “homens que militam a pé e que militam a cavalo”: Florença deveria conservar a própria supremacia e, a “começar pela parte mais fácil”, era necessário alistar, antes de mais nada, quem obedece e quem milita a pé; portanto, não os cidadãos. Deveriam também ser excluídos os habitantes do “distrito”, ou seja, das cidades dominadas: armá-las colocaria em perigo a segurança da República, “porque os humores da Toscana eram tais que, uma vez que as pessoas experimentassem viver por si mesmas, não aceitariam mais um senhorio”. Naquele momento, a opção era razoável, mas se a República tivesse vida mais longa, viria à tona a contradição de um exército formado por súditos e não por cidadãos. Não sem razão Guicciardini, nas Storie fiorentine, observou que teria sido necessário “que se premiasse de alguma forma tais alistados, para que com mais boa vontade se exercitassem e mais fielmente servissem”120. Aliás, se Maquiavel tomou como modelo para essa “milícia própria” o exército da Roma antiga, constituído por cidadãos postos em armas sob o comando dos cônsules (magistrados supremos da república), é de se pensar – conforme alguns indícios – que cogitasse “premiá-los”, concedendo aos membros dessas milícias algum tipo de cidadania. Pelas cartas de governo de Maquiavel e de suas missões em várias localidades do domínio, vemos que o secretário

florentino dedicou-se intensamente a essa atividade, e os resultados, na verdade, foram notáveis, não pela repercussão favorável junto à população, mas, principalmente, pelo bom resultado que os soldados apresentaram na última fase da guerra de Pisa. As cartas que Maquiavel enviou aos Dez também comprovam isso, como a de 7 de março de 1509, em que fala do apego dos soldados da infantaria “a essa campanha de Pisa”, da qual “esperam algum mérito”, recomendando que aquele grupo fosse mantido em serviço “porque é uma bela e boa companhia”121. Se depois, em 1512, o conflito de Prato e o saque da cidade acabaram ofuscando a reputação das milícias, não se pode deixar de considerar que, naquela ocasião, elas estavam enfrentando o exército espanhol, aquele que, além dos suíços, constituía a força militar mais aguerrida de então. Entretanto, o adversário mais obstinado com que o artífice da milícia florentina e, naturalmente, Pier Soderini se depararam foi o grupo dos ottimati. Estes procuravam então diversas vias para chegar a uma crise que expulsasse do poder o gonfaloneiro, ainda que à custa de graves rupturas, e a ocasião pareceu-lhes se apresentar em 1507. Foi então que chegou a notícia de que Maximiliano I de Habsburgo decidira vir à Itália para fazer-se coroar imperador pelo papa, e, para tal fim, obtivera ajuda financeira da dieta reunida em Constança. Depois da derrota no Garigliano e da perda do reino de Nápoles, a França parecia menos poderosa do que pensava, e, em Florença, nos círculos de oposição a Soderini, pensou-se que um alinhamento da cidade ao Império a jogaria contra a velha aliada, enfraquecendo o gonfaloneiro, e, talvez, provocasse sua queda. Uma vez que, no caso da chegada de Maximiliano à Itália, Florença teria de lhe antecipar uma grande contribuição, decidiu-se enviar um embaixador para saber precisamente quais as intenções e posses do imperador. O candidato de Soderini seria Maquiavel, mas os ottimati conseguiram que

seu nome fosse rejeitado. O secretário ficou amargurado com o súbito revés, e temos testemunho de seu ressentimento, seja por cartas de consolo enviadas por alguns amigos122, seja pelos primeiros versos do capítulo Dell’Ingratitudine [Da ingratidão], com a alusão “àquela dor das adversidades/ que atrás de minha alma furiosa corre”123. Porém, mesmo uma embaixada composta por Alamanno Salviati e Piero Guicciardini foi barrada, à espera de que a situação internacional se definisse e se visse qual o caminho que França e Veneza tomariam em relação a Maximiliano. Em vez disso, decidiu-se pela partida de Francesco Vettori: o nobre florentino, então com 33 anos, deveria informar-se com precisão sobre as pretensões do imperador quanto à contribuição de Florença; ao mesmo tempo, deveria apurar a composição do exército imperial para compreender as reais possibilidades de que chegasse à Itália. De fato, sabiase que a dieta de Constança estava disposta a destinar importantes forças militares a essa empresa, mas o imperador, escreve Guicciardini, “desejava realizar a expedição por si, para que os ganhos fossem todos seus, e tendo certamente partido do pressuposto de que o papa, os venezianos e os suíços o seguiriam, e parecendo-lhe não ter necessidade de muito auxílio da dieta, opôs-se firmemente e impediu tal deliberação” 124. Vettori enviou ofícios a Florença que não deixam dúvidas acerca dos preparativos de Maximiliano. Num primeiro momento, fala de 50 mil homens prontos para descer à Itália; depois, esse número se reduz a 30 mil. De todo modo, não põe em dúvida a expedição, e, por isso, iniciou tratativas para o pagamento da contribuição requisitada. O tamanho da soma, porém, suscitava forte hesitação nos ambientes florentinos, mesmo entre os pró-império, e se decidiu pelo envio de um encarregado que levasse instruções precisas ao embaixador. Para essa missão, que supostamente seria apenas uma transmissão de ordens, encarregam Maquiavel, e, em 21 de dezembro de 1507, Vettori foi informado de que o secretário havia partido “pelo

caminho de Genebra”, levando-lhe as novas diretrizes. Seria de se esperar uma reação negativa por parte do embaixador ao se dar conta de que o novo enviado não se limitaria a lhe passar as instruções da Signoria, mas permaneceria com ele e quase tentaria controlá-lo. Em vez disso, Vettori aceitou de bom grado a sua colaboração, e logo a relação entre os dois se tornou uma amizade que duraria toda a vida. Maquiavel tampouco escondia a sua opinião sobre o imperador, totalmente oposta àquela até então expressa pelo embaixador. Este, por sua vez, não pode ser acusado de ingenuidade: o embaixador veneziano Vincenzo Quirini também depositava confiança nos propósitos de Maximiliano. Contrastando com isso, surgia a sagacidade de Maquiavel, que chegaria a calcular os obstáculos para uma expedição na Itália. Antes de mais nada, percebia que as forças militares não tinham consistência: dadas as precárias condições das finanças imperiais, os soldados que chegavam ao acampamento logo partiam. A única possibilidade de Maximiliano – advertiu não sem sarcasmo – está nas condições dos Estados italianos: O que lhe dá mais esperança são duas condições que existem na Itália, as quais deram infinitas honras a quem quer que tomasse de assalto, que são: estar inteiramente exposta a rebeliões e mutações, e ter sofríveis exércitos; daí nasceram as conquistas milagrosas e as milagrosas perdas.125

Com efeito, a expedição imperial naufragou miseravelmente. Maquiavel estava certo, como estava certo quando, no relatório elaborado ao final da missão, descreveu um império dividido por ódios e contrastes que anulavam seu virtual poderio. Ele o redigiu a tempo de entregá-lo no dia seguinte a seu retorno a Florença, em 17 de junho de 1508, fornecendo aos ottimati florentinos material sobre o qual refletir126. Seria difícil para eles levantar a suspeita de que as observações daquele a quem tanto tinham se oposto não correspondiam à realidade: a dura lição das coisas demonstrava isso. Maximiliano, que

supunha ter o apoio dos venezianos para a expedição, recebeu sua recusa em permitir que passasse por seu território, e, quando tentou forçar passagem, foi repelido militarmente de maneira humilhante. Alguns dias antes da chegada de Maquiavel a Florença, foi obrigado a assinar uma trégua com Veneza e com a França, renunciando, naquele momento, a qualquer ambição de expedicionar na Itália.

9. A derrota veneziana e a reconquista de Pisa A debilidade imperial fora revelada há pouco. O final de 1508 assistiu à constituição da Liga de Cambrai: o papa Luís XII, Maximiliano e o rei católico fizeram uma aliança contra Veneza, o único Estado italiano que se mostrou capaz de ampliar seu próprio território naqueles anos turbulentos. Em 14 de maio de 1509, uma infeliz manobra das forças venezianas levou à sua derrota em Agnadello, próximo a Cremona127, por obra do exército comandado pelo rei da França. Seguiu-se a isso a perda imediata e total dos domínios venezianos continentais. Não surpreende que a República de São Marcos128 tenha submergido sob as maiores potências da Europa: surpreende a súbita desagregação desse domínio. Maquiavel meditou longamente acerca da má organização veneziana, principalmente militar, que confiava exclusivamente em tropas mercenárias. Agnadello parece demonstrar a necessidade da Ordenança florentina. O que se confirmou, poucos dias após o revés veneziano, com a tão aguardada queda de Pisa. No curso das operações que a precederam, vemos Maquiavel, particularmente ativo, agir em diversas ocasiões com muita liberdade, chegando a provocar queixas do comissário geral Nicolau Capponi. Também tomou a iniciativa de ir a Lucca protestar pela ajuda que aquela República não prestara à

cidade assediada, mas, nesse caso, o governo de Florença aprovou a sua iniciativa: “Sua ida a Lucca”, escrevem-lhe os Dez, “nos agradou, e ainda mais os termos que você usou: cremos que tenha ajudado em algo”129. Quando, então, Pisa procurou negociar, propondo como intermediário o senhor de Piombino, enviaram Maquiavel, que, chegando ao local, recusou qualquer tratativa. Com a sua destemida pretensão de dividir a delegação composta de representantes da cidade e do campo, de modo convincente conseguiu seu intento. Após garantir a vida e os bens dos pisanos, uma vez que o governo florentino desejava apenas ter “Pisa em mãos, livre, com todo o território e jurisdição, como estava antes da rebelião”, voltou-se aos representantes dos camponeses e os ridicularizou por sua “simplicidade”. Quando os cidadãos de Pisa obtiveram o que lhes convinha, advertiu-os de que “não os queriam como companheiros, mas como servos, e que voltassem a lavrar”130. Nas últimas semanas do cerco, inspecionou constantemente os batalhões da Ordenança, espalhados em três acampamentos diferentes, tanto que os soldados acabaram por reconhecer mais a sua autoridade do que a dos comissários, provocando reações iradas de sua parte. Talvez também por isso os Dez pediram a Maquiavel que não abusasse demais correndo pelos diversos acampamentos do cerco, fixando-se em uma localidade, Cascina, próxima de Pisa. Mas o secretário recusou-se: sabia que “tal lugar seria menos perigoso e menos cansativo, mas se não quisesse nem perigo nem fadiga, não teria saído de Florença”. Queria, portanto, continuar a “baixar aos acampamentos e empenhar-se junto aos comissários”. Se assim não fizesse, concluiu, “eu não prestaria para nada e morreria desesperado”131. Finalmente, em 20 de maio, uma delegação de Pisa pediu para negociar a rendição. Em Florença e Pisa, as conversações avançaram por alguns dias, e Maquiavel esteve sempre presente. Assim, no ato final, a Submissio Civitatis Pisarum [Sujeição da Cidade de Pisa], firmado em 4

de junho, apareceu o nome de Maquiavel logo depois do nome do chanceler florentino Marcello Virgilio. Depois de quinze anos de guerra, a cidade rebelde abriu as portas, e as milícias da Ordenança adentraram vitoriosas. Agostino Vespúcio descreveu a Maquiavel o júbilo dos florentinos, e parafraseou o conhecido verso de Ênio sobre Fábio Máximo132, o Protelador: “Se não temesse que montasse em demasiada soberba, ousaria dizer que você, com seus batalhões, fez obra tão boa que, não protelando, mas acelerando, restauraria a República florentina”133. As extensas operações de guerra devastaram os campos de Pisa, que com muita dificuldade voltariam a se recuperar. Todavia, em condições ainda mais trágicas, Maquiavel veria as terras arrancadas de Veneza pelos franceses e pelas forças do Império. Os vencedores se depararam com a hostilidade das populações, que quase por toda parte se insurgiam contra os invasores. Maximiliano, após ocupar Pádua e Treviso, foi imediatamente perseguido pelas populações amotinadas, e, sem rodeios, foi obrigado a abandonar o cerco de Pádua. As restrições financeiras em que se encontrava colocavam em perigo o seu exército, e, por isso, pediu ajuda a Florença, que não lhe pôde negar a soma de quarenta mil ducados, pactuada dois anos antes. Maquiavel foi encarregado da negociação. Em novembro de 1509, partiu para Mântua, onde encontraria Isabella d’Este, que exercia o marquesado no lugar do marido, Gian Francesco Gonzaga, prisioneiro dos venezianos. Dali se transferiu para o acampamento militar do imperador em Verona, de onde enviou à Signoria informações impressionantes sobre a destruição da região rural, cujos responsáveis são “esses alemães [...] e se veem e se ouvem coisas lamentáveis sem igual”134. Também por isso a situação do imperador ficou tão crítica que não parecia capaz de vencer a resistência. Para dizer a verdade, surpreende que, por sua antipatia à Veneza, Maquiavel não tenha sido levado a refletir sobre o significado do apego das

populações à República de São Marcos, embora ele próprio nos informe sobre as revoltas que estouraram por isso: No espírito desses cidadãos [escreve de Verona, em 26 de novembro de 1509] penetrou um desejo de morrer e de se vingar, a ponto de se tornarem mais determinados e furiosos contra os inimigos dos venezianos do que os judeus contra os romanos; e todo dia acontece de um deles ser capturado e se deixar matar para não renegar o nome veneziano [...], de modo que, considerando isso, é impossível que estes reis [Maximiliano e Luís XII] conquistem estas terras com estes habitantes vivos.135

Tudo ao redor não era senão desolação, pelo que – escreveu no capítulo Dell’Ambizione [Da ambição], redigido no fim de 1509, enquanto em missão junto a Maximiliano136 – a Itália “agora vive, se é que é vida viver aos prantos”, e lá só se via “gente atônita e perdida” que chorava “sua fortuna destroçada e dispersa”. Um novo elemento agregouse à sua reflexão: “a educação”, entendida no sentido mais amplo, como formação civil e militar de um povo. Maquiavel concluiu que “a Itália já floresceu/ e ocupou o mundo de ponta a ponta”, mas “o ócio” a levou à ruína. A visão das terras nas mãos dos exércitos estrangeiros o fez meditar sobre forças determinantes na vida política: a variação da fortuna na mudança dos tempos também poderia ser atribuída ao fato de que a natureza humana, por causa da ambição, é incapaz de se lhe adequar. E a ambição seria tão mais perigosa quanto mais forte se manifestasse no interior de um Estado, por causa das ambições egoístas dos indivíduos. Assim, em suas considerações sobre a crise veneziana, se insinua a preocupação pelo destino de Florença, onde os ottimati constituem ainda uma ameaça constante à vida da República. Por isso se esforçou para costurar sua relação com seu expoente mais influente. Nos últimos meses da guerra contra Pisa, enviado em missão à frente de batalha, teve a oportunidade de se reaproximar de Alamanno Salviati, um dos três comissários do exército. Soube tirar proveito do relacionamento nascido daquela dramática experiência para

reatar uma relação cordial, e a correspondência entre ambos mostra a duradoura retomada de seus laços de amizade. Em fins de setembro, Maquiavel escreveria ao representante dos ottimati uma carta em que informava sobre o cerco imperial a Pádua, e se deteve longamente em uma análise da situação, concluindo com a afirmação de que não há o que temer quanto ao imperador. O tom respeitoso não escondia o apelo tácito a Salviati para não se iludir de que uma vitória da Liga contra Veneza daria lugar a uma reafirmação imperial capaz de modificar a cena internacional. Em uma situação instável como aquela de crise nas relações entre os que haviam vencido Veneza, Maquiavel parecia muito mais sugerir que até os ottimati poderiam colaborar para fortalecer a república florentina. Em sua resposta de 4 de outubro, Salviati demonstrou ter gostado da carta recebida, pensando em mostrá-la “a esses senhores condottieri e senhores cônsules [...] e por todos foi bastante enaltecida”. Afirmou não ser capaz de dar um parecer sobre o que Maquiavel lhe escrevera porque pouco sabia sobre os acontecimentos; todavia, mostrando-se confiante na missão que o secretário iria realizar, parecia seguir seus conselhos. Ao final, encerra a carta em tom jocoso: declara-se “monástico”, ou seja, adepto de Savonarola, e, por isso, pensava em “recorrer a Deus”, rogando pela sorte de Florença, mas brinca com seu correspondente, que imaginava não ficar muito satisfeito com essa sua atitude: “não que eu não creia que lhe falte fé, mas tenho certeza de que não sobra muita”137. Essa brincadeira também revela a relação cordial que voltou a se estabelecer entre os dois, e a possibilidade de o governo do gonfaloneiro não precisar continuar a bater de frente com um personagem poderoso. Infelizmente, em março de 1510, a malária apanhará Salviati, e, mal chegado aos cinquenta anos, ele morreria em Pisa, onde foi nomeado capitão. Nenhum dos outros ottimati tinha a sua autoridade e a sua inteligência.

Justificam-se, assim, os versos com que Maquiavel, depois de ter lembrado as desgraças da guerra em terras conquistadas pelos venezianos, conclui o capítulo Dell’Ambizione: Lapso, que enquanto na alheia dor tenho ora o engenho envolto e a palavra, sou afligido por maior temor. Sinto a Ambição, com o grupo, que no começo do mundo o Céu reparte, sobre as montanhas da Toscana voa e tantas faíscas já semeou entre pessoas prenhes de inveja que queimará suas terras e suas vilas, se graça ou melhor ordem não apagar138.

Em verdade, este último verso do capítulo parece obedecer mais a uma fórmula de costume do que a um real convencimento. Desde então, até 1512, aquelas “tantas faíscas”, em vez de apagadas, tornariam a ser acesas e dispersas pela rápida deterioração da situação internacional.

10. O fim da República e o retorno dos Médici Maquiavel percebeu que, à medida que continuava a guerra no Vêneto, as relações entre o imperador e o rei da França se estavam deteriorando. Apesar do sigilo em torno da política de Maximiliano, que jamais deixava vazar informações, a inquietação do secretário transparecia tanto na correspondência oficial como nas missivas privadas. Em Verona, começou-se “da parte dos imperialistas, a falar bem mal dos franceses, dizendo-se que o imperador entraria em acordo com os venezianos e os expulsaria da Itália”139. Se, por essa época, os acontecimentos não chegaram a esse ponto, existia, no entanto, uma mudança de posição radical de Júlio II, que, ao dominar Veneza, voltou-se à sua

costumeira violência contra a França. Mesmo buscando a aliança do rei da Espanha e do imperador, lançou a sua campanha de guerra aos gritos de “fora os bárbaros!”. A potência francesa parecia-lhe então obstáculo a qualquer ampliação do Estado da Igreja: com a conquista do ducado de Milão, o domínio sobre Gênova e a sólida aliança com o ducado de Ferrara e com Florença, Luís XII não tinha quem o enfrentasse na Itália setentrional, porque a fragilidade de Maximiliano ficava óbvia com as dificuldades que encontrou na tentativa de ocupar as cidades continentais do Vêneto. Júlio II, “instrumento fatal dos males da Itália”, escreveria Guicciardini140, não hesitava em fazer as pazes com Veneza, e, para obter a ajuda de Fernando de Aragão, reconheceu sua conquista do reino de Nápoles, que lhe foi cedido como feudo. Além disso, teve êxito ao se ligar aos suíços por uma aliança quinquenal, conseguindo que lhe fornecessem um exército de seis mil homens e que não permitissem que outras potências convocassem soldados da Confederação. A França ficou, assim, despojada daquela que, até então, tinha sido a sua maior força de infantaria. Florença percebeu o perigo que a rondava com a ruptura entre a França e o papa. Por isso, em junho de 1510, Soderini enviou Maquiavel a Luís XII para persuadi-lo que, para assegurar sua situação na Itália, duas condições eram primordiais: “uma é manter contente o imperador, a outra é manter preocupados os venezianos”. Dessa forma, é importante “fazer qualquer coisa para não romper com o papa, porque”, observou com muito bom senso o gonfaloneiro “se um papa amigo não vale muito, um inimigo prejudica muito”141. Para Florença era impensável uma ruptura com a França devido aos muitos interesses que a ligavam àquele reino, mas um choque com o papa também seria inconcebível, além de mais perigoso. Mesmo dirigindo muitas objeções e protestos ao enviado florentino, Luís XII parece disposto a negociar, e propõe que Florença se ofereça como mediadora em um acordo com o papa. Mas Júlio II se revelou intratável. Queria conquistar Ferrara,

tirando-a dos Este, aliados da França, e queria acabar com a dominação francesa sobre Gênova. Júlio II ficou, mais que tudo, furioso por causa do projeto de Luís XII de convocar um concílio142: à proposta de paz dos embaixadores florentinos, o papa explodiu em ameaças contra a sua cidade. Quando um enviado do duque de Savoia chegou a Roma com propostas de paz parecidas, o pontífice – informaram os Dez a Maquiavel em 2 de setembro – “os fez prender e deixou-os livres para proporem o que quisessem”. Maquiavel achava a situação bem grave porque, enquanto o papa caminhava resoluto rumo ao enfrentamento, Luís XII se mostrava inseguro e desleixado quanto aos negócios de Estado. A morte do cardeal de Rouen, o enérgico ministro que havia dado um grande impulso à política francesa, abriu um buraco que nenhum conselheiro parecia capaz de preencher. Se o era, era um jogo estranho entre as partes: enquanto o rei se dedicava à preparação do concílio gaulês de Tours, que deveria preparar o concílio geral, e ficou até mesmo a tergiversar sobre teologia, Júlio II voltou a se armar e se preparar para ações de guerra, para atacar Ferrara e, por mar, Gênova. À frente de seu exército, conquistou Módena e atacou Mirandola, onde entrou armado, passando por um buraco aberto na muralha a tiro de canhão. De volta da França, Maquiavel se dedicou ativamente à preparação militar de Florença. Com esse objetivo, procurou organizar a cavalaria e, no fim de 1510, transferiu-se para Val di Chiana para preparar as primeiras levas de cavaleiros. A Signoria também o encarregou de fiscalizar a construção da fortaleza de Pisa, sob a responsabilidade do arquiteto Giuliano da Sangallo, que se especializara em fortificações depois de ter acompanhado Carlo VIII na França. Mas ocupou-se sobretudo com o rearmamento florentino, e, naqueles meses, redigiu um Discorso sulla milizia a cavallo [Discurso sobre a milícia a cavalo] que começou a organizar; em 27 de abril de 1511, conseguiu passar em primeira revista cem cavaleiros em Florença.

Por um momento pareceu que a situação da aventura de Júlio II mudou para o pior. A intervenção francesa em auxílio do duque de Ferrara foi coroada de sucesso: Bolonha foi arrancada do papa, e o exército de Luís XII, sob o comando de Gian Jacopo Trivulzio, poderia invadir os domínios papais. Mas, inexplicavelmente, o rei ordenou ao seu capitão que retornasse a Milão, e, ostentando respeito pelo pontífice, declarou que não desejava invadir seus Estados; ao mesmo tempo, porém, não desistiu do propósito de convocar um concílio, e, em janeiro de 1511, solicitou a cidade de Pisa a Florença para, em setembro, reunir a assembleia eclesiástica, da qual também parecia querer participar Maximiliano. Júlio II respondeu, em 18 de julho, anunciando a convocação de um concílio em Latrão, na Páscoa de 1512 (11 de abril). Enquanto tal agitação de propostas conciliares suscitava debates e ideias de reforma religiosa na França, insuflada por um humanismo cristão rico de fermentos inovadores143, na cidade de Savonarola e na Itália em geral, não se notava particular interesse por tais projetos, que igualmente poderiam trazer novidades importantes para a Igreja. O governo florentino buscava de todas as maneiras evitar que o concílio se realizasse em Pisa, alegando a difícil situação da cidade depois dos longos anos de guerra com Florença. Esperava que prevalecesse o interesse do imperador de convocá-lo em uma cidade onde poderia participar pessoalmente (são indicadas Trento e Verona), mas os franceses não se afastam da ideia de realizá-lo na cidade toscana. Em agosto, a notícia de que Júlio II ficou gravemente doente levou o cardeal Soderini, irmão do gonfaloneiro florentino, a sentir-se certo da vitória do “partido francês”: por isso, enviou a Milão um representante próprio para comunicar aos prelados, convocados para o concílio, a decisão florentina de ceder Pisa. Mas, inesperadamente, nos primeiros dias de setembro, o papa melhorou e, recuperado,

atirou-se furiosamente contra Florença, ameaçando-a de interdição e de represálias contra a importante colônia florentina de Roma. Maquiavel, que até então havia desempenhado algumas missões sem grande importância, recebeu um novo encargo: a meio caminho entre Milão e Pisa, ele devia interceptar os prelados rebelados contra o papa, detê-los e convencê-los a desistir de prosseguir; em seguida, deveria rumar a Milão para explicar ao governador francês a difícil situação de Florença após as ameaças do papa, agravadas depois que Fernando, o Católico, mostrouse disposto a intervir em seu apoio. Por fim, deveria ir até a corte da França, então em Blois, para negociar com Luís XII. O melhor resultado seria, segundo as instruções recebidas, “desviar o rei desta ideia de concílio e incliná-lo à paz”; em caso negativo, deveria procurar fazer com que o concílio se desse em outro lugar, mas se também isso fosse impossível, que ao menos se adiasse em alguns meses, para permitir que Florença reforçasse suas defesas, na esperança de que “nesse meio tempo, algo de bom aconteça”. Com efeito, esta era a única concessão que Maquiavel obteria de Luís XII: o concílio se reuniria em novembro. Mas, em 22 de outubro, Júlio II interditou Florença. Em seu retorno dessa missão, Maquiavel mal teve tempo de pôr os pés em Florença, e, em 2 de novembro, a Signoria o enviaria imediatamente a Pisa, para convencer os clérigos lá reunidos a transferir para outro lugar sua reunião. O concílio se revelava meio falido: apenas doze prelados, entre arcebispos e bispos, estavam presentes, e quatro deles, com título de cardeais, foram rebaixados pelo papa. O clero regular não estava representado senão por oito abades, e, além disso, estvam lá uma dúzia de teólogos e especialistas em direito canônico. Em Pisa, o clero local se mostrava fiel a Roma, e resistia como podia, com aquilo que seria chamado depreciativamente um “conciliábulo”. Até pela evidente hostilidade da população, Maquiavel conseguiu obter a transferência do concílio, que decidiu – depois de realizada uma primeira sessão, em 5 de

novembro, e uma outra, em 7 do mesmo mês – transferir-se para Milão. Mas, enfim, nada podia acalmar Júlio II, que desde outubro integrava a liga com a Espanha e com Veneza contra a França, e decidiu arruinar sua aliada na Itália: Florença. Então a confusão encontrou seu ponto máximo, alimentada pelo medo e pelas divisões internas, devido à postura das famílias nobres, cada vez mais hostis ao governo de Soderini. A escolha entre a fidelidade à antiga aliada ou a adesão aos pedidos da Liga, que pedia aos florentinos que entrassem e fizessem parte dela, ficava constantemente em suspenso, e, em muitas partes, invocou-se a neutralidade como melhor solução: uns porque esperavam evitar os riscos de um conflito entre Estados tão poderosos, outros porque não tomar o partido da França significaria a renúncia do gonfaloneiro. É provável que justamente tais comportamentos tenham ditado as amargas considerações de Maquiavel nos Discursos: “Ademais, não são menos nocivas as decisões lentas e tardias do que as ambíguas, sobretudo as que devem decidir em favor de algum amigo”144. As duas tendências que exerciam sua ação em Florença naqueles meses entre 1511 e 1512, embora se referissem a outra circunstância no texto, estavam, sem dúvida, relacionadas àquela situação, e vinham carimbadas com palavras depreciativas; decisões parecidas “procedem ou da fraqueza de espírito e de força, ou da maldade dos que devem decidir, os quais, movidos pela própria paixão de querer arruinar o Estado ou satisfazer algum outro desejo seu, não deixam a decisão prosseguir, mas a impedem e a frustram”. Nem mesmo a vitória francesa em Ravena, em 11 de abril de 1512, fez os hesitantes decidirem-se, ainda mais que o sucesso não foi aproveitado pelo exército de Luís XII, até pela incompetência dos comandantes que sucederam Gaston de Foix, que havia caído naquela batalha. Até o imperador e os suíços aderiram então à Liga capitaneada pelo papa: no ano seguinte, seriam justamente os soldados

da Confederação que conquistariam o ducado de Milão, após a batalha de Novara (6 de junho de 1513). Nesse ínterim, porém, a República florentina já teria caído. Em uma assembleia da Liga, reunida em junho, em Mântua, ficou decidida a restauração dos Sforza em Milão e dos Médici em Florença. O vice-rei de Nápoles, Raimundo de Cardona, foi encarregado de capitanear o exército que deveria deslocar-se em direção à Toscana. Nos primeiros seis meses de 1512, Maquiavel dedicou-se quase que exclusivamente à organização das milícias, sobretudo da cavalaria ligeira, mas os seus batalhões pouco podiam frente às aguerridas forças inimigas, em direção às quais, aliás, se movimentavam apenas quando já entravam em território florentino. A queda da República seria narrada pelo próprio Maquiavel em uma “carta a uma gentil-dona” sem o nome revelado, mas que se pensa que seja a marquesa de Mântua, Isabella d’Este145. “Estando já as gentes inimigas próximas de nossas fronteiras, a um dia de jornada, toda a cidade foi subitamente colocada em polvorosa pelo repentino e quase inesperado assalto”. Na tentativa de desviar Cardona do assalto a Florença, tropas foram enviadas para a Romanha florentina com o objetivo de ameaçá-lo pelas costas, “mas o vice-rei, cuja intenção era não atacar as cidades, mas vir a Florença para mudar o governo, esperando com os partidários [dos Médici] poder fazê-lo facilmente”, continuou seu avanço. Antes de tomar de assalto a cidade de Prato, o vice-rei enviou embaixadores a Florença para declarar à Signoria que “não vinham a esta província como inimigos, nem desejavam alterar a liberdade da cidade”: queriam apenas que a República aderisse à Liga, contra a França, mas, sabendo que Soderini era “partidário dos franceses”, pediam que renunciasse ao cargo de gonfaloneiro, e “que o povo de Florença escolhesse outro, como melhor lhe parecesse”. A proposta foi rejeitada, mas Cardona, tendo encontrado forte resistência no Prato, enviou outra embaixada pedindo a Florença uma grande soma de

dinheiro, e, no que tangia ao retorno dos Médici, “que se entregasse sua causa à Majestade Católica”. Florença, como de costume, em vez de dar uma resposta, começou a tergiversar e, àquela altura, os espanhóis se deslocaram para o assalto de Prato, tomaram a cidade e a saquearam violentamente. “Esta história causou grandes transtornos para a cidade” e mesmo assim Soderini tentou fazer com que Cardona, em troca de uma grande soma, se retirasse sem impor o retorno dos Médici. Rejeitada essa proposta, “todos começaram a temer o saque por causa da vileza que se havia observado nos nossos soldados em Prato; o temor começou a crescer pois toda a nobreza deseja mudar o governo”. Nessa atmosfera de desalento e confusão, o Palácio ficou “nu de guardas”, e a Signoria foi obrigada a libertar muitos partidários dos Médici que estiveram “vários dias detidos no palácio”. Em 31 de agosto, esses, “juntamente com muitos outros cidadãos dos mais nobres”, “vieram armados ao Palácio e ocuparam todos os lugares para forçar a saída do gonfaloneiro, conduzidos por algum cidadão convencido a não praticar qualquer violência, mas a deixá-lo partir em paz”. Assim, Soderini abandonou a cidade, e os Médici, com a concordância do vice-rei espanhol, nela entraram. O governo formado, fortemente influenciado pelos ottimati, não satisfez Cardona, que declarou “necessário reduzir este Estado à maneira como era quando vivia Lorenzo, o Magnífico”. Enquanto os maiorais florentinos discutiam acerca do novo regime a ser instaurado, os partidários dos Médici, com a ajuda dos soldados que invadiram a cidade, provocavam tumulto, tomavam o Palácio e impunham um governo autoritário, quer dizer, dotado de poderes excepcionais, o que liquidou os resíduos republicanos, a começar pelo Grande Conselho, pela promulgação de uma lei “pela qual foram esses magníficos Médici reintegrados em todas as honras e posições de seus antepassados”.

Na medida do possível, vemos Maquiavel permanecer fiel às suas ideias neste novo estado de coisas. Assim, remetia aos representantes dos Médici uma mensagem escrita para tentar fazer com que eles aceitassem a colaboração dos que apoiaram Soderini, para neutralizar as ambições da nobreza. Parece que o documento foi redigido nos primeiros dias de novembro, quando, por alguns dias, a situação florentina parecia incerta, dada a hostilidade manifesta de Júlio II contra o cardeal João de Médici, que era o verdadeiro soberano da cidade. O papa o acusava de se ter ligado a Fernando, o Católico, em vez de seguir suas ordens e, finalmente, quando o exército espanhol se achou distante, pensou-se que pudesse favorecer um governo dos ottimati. O cardeal conseguiu, porém, nivelar os contrastes, e certamente não levou em consideração os conselhos de Maquiavel. A intenção de seu escrito era mostrar como os Médici não deveriam confiar nos ottimati, que se opuseram a Soderini, e que agora lançavam acusações contra ele, não para “fazer bem a este Estado, mas sim para dar a si próprios uma boa reputação” e “para perseguir seus próprios objetivos”. O interesse dos Médici, no entanto, deveria ser ligar-se ao povo, e, portanto, ficar contra aqueles que agora “se prostituem entre o povo e os Médici”, e que “bem têm por inimigo Piero [Soderini] e desejam descobri-lo cruel para lhe usurparem o lugar que tem entre o povo”, ou seja, Maquiavel acusava os ottimati de terem privado o povo da liberdade146. O raciocínio lembra o das páginas de O Príncipe e dos Discursos em que se afirma que apenas um governo apoiado no povo é sólido. Neste caso, porém, ficou sem efeito, até porque o cardeal dos Médici se serviu apenas dos ottimati nos quais podia confiar. Quando depois, em março de 1513, fosse eleito papa, abriria aos florentinos novas possibilidades de se afirmar, distribuindo empregos na Cúria Pontifícia e benefícios eclesiásticos. Dessa maneira, Florença se transformaria em uma espécie de protetorado romano.

II. eLivros na pátria 1. O confinamento em Sant’Andrea Em 7 de novembro de 1512, a nova Signoria dos Médici removeu de suas funções o secretário Maquiavel, proibindolhe o acesso ao Palácio. Entre aquele triste fim de ano e a primavera de 1513, não foram só humilhações, amarguras e preocupações que ele conheceu, mas também a prisão e a tortura pela suposta participação em uma conspiração contra os Médici. No início de março, “saído da prisão em meio ao júbilo universal” dos florentinos pela eleição de João de Médici ao papado, que tomou o nome de Leão X147, foi encarcerado em Sant’Andrea, em Percussina, um burgo na área rural de Florença, onde possuía uma pequena propriedade familiar. As cartas de Francesco Vettori o tiraram da solidão e da tristeza daqueles dias, quando ainda no corpo, e não apenas no espírito, ressentia as dores de seu encarceramento. O patrício florentino, então embaixador na corte papal, teve o mérito de recordar-se mesmo nesse momento da antiga amizade. É certo que, não obstante o ar afetado de proteção, não saberia proporcionar a Maquiavel qualquer benefício concreto, e ele mesmo o teria admitido: “Não sou um homem que soube ajudar os amigos”148. Todavia, é preciso reconhecer que soube encorajá-lo com sua assídua correspondência, e que, por outro lado, não era nada fácil deixar o antigo secretário em boas relações com os Médici. As palavras do amigo reconfortaram Maquiavel, que se apressou em responder-lhe: Sua carta tão amável me fez esquecer todas as aflições passadas, e, embora já estivesse mais do que certo da afeição que me devota, esta carta me agradou muitíssimo149.

Mas depois, atendendo ao conselho de enfrentar “com coragem essa perseguição”, respondeu com grande dignidade: E quanto a voltar o olhar para a Fortuna, quero que tenha das minhas aflições esta satisfação, porque as tenho levado com tanta franqueza que eu mesmo me admiro, e parece-me que sou mais do que pensei.

Acrescentou que ficaria feliz de retomar seu trabalho, mesmo percebendo as dificuldades para isso: E se parecer conveniente a esses nossos soberanos [os Médici] não me deixar jogado, está bem, e acredito que me portarei de uma maneira que ainda terão razões para considerar isso bom; se assim a eles não parecer conveniente, sobreviverei tal como cheguei, porque nasci pobre e bem cedo aprendi mais a penar do que a fruir.

Na verdade, ele esperava encontrar uma maneira – como havia escrito a Vettori já no dia seguinte à sua libertação – para que Leão X “começasse a me usar”150. Assim, em 9 de abril, perguntava a Vettori se não seria o caso de pedir ao cardeal Soderini, que aparentemente voltara a cair nas graças dos Médici, que recomendasse seu nome ao papa, quando não fazer que o próprio Vettori fizesse o prelado florentino se interessar pelo seu caso. E provavelmente naqueles dias, para mostrar sua boa disposição de espírito, compunha o canto carnavalesco Degli Spiriti beati [Dos espíritos abençoados], em harmonia com as expectativas pela eleição do novo pontífice. O acontecimento havia sido comemorado em Florença, celebrando a paz que Leão X havia favorecido com uma política que contrastava com a gesta belicosa de seu predecessor. E Maquiavel ainda abriu a sua composição com este tema: “Abençoados sejam os espíritos/ que dos estrados celestes/ venham a mostrar aqui na Terra”, para revelar aos homens “como a nosso Senhor bem apraz/ que se deponham armas e estejam em paz”. Também existe a habitual referência ao Turco151, em cujos

confrontos era necessário ser cauteloso, porque ele “aponta as armas e tudo parece ficar em chamas/ para inundar seus doces campos”152. A tentativa de Maquiavel fracassou, embora ainda em 16 de abril, em outra carta, mostrasse sonhar com o que poderia acontecer consigo, se fosse “o meu caso tratado com alguma destreza”. Era precisamente o que Vettori não conseguia fazer, hesitante que estava sobre a possibilidade de influenciar o cardeal Soderini e sobre a possibilidade de que o próprio cardeal quisesse influenciar o papa. Desse modo, talvez com o propósito de distraí-lo, Vettori começou a falar das relações entre Espanha e França, e Maquiavel, percebendo as dificuldades, aceitou as regras do jogo. O próprio tom da correspondência revela o quanto tinha necessidade de se abrir e de desabafar com os amigos para romper a clausura imposta e voltar a seus verdadeiros interesses. Ele entrevia, portanto, uma chance de “pensar sobre o Estado”, e enfrentava a questão da trégua determinada por Fernando, o Católico, com o rei da França. É difícil escapar ao fascínio dessa correspondência, ainda mais sentindo o eco de determinadas ideias em O Príncipe153. Vettori lhe escreveu que o rei de Espanha, entrando em acordo com Luís XII, não se mostrava à altura de sua fama de astuto e sábio, “ou seja, que existe algo de suspeito”: em outras palavras, pensava que existissem razões obscuras, “e que Espanha, França e o imperador projetam dividir entre si esta mísera Itália”. Em uma carta posterior, explicava de modo mais detalhado o seu espanto com o comportamento de Fernando, que, firmando a trégua, reabriu a possibilidade de a França intervir na Itália. Se era esse o seu intento, melhor seria então lhe outorgar diretamente o ducado de Milão, “e a França teria recebido isso como um favor”, ficando em débito com ele. Assim, entre outras hipóteses, repetia estar convencido de “que existe algo aqui que não se entende”. Maquiavel não concordou. Mesmo protestando por “não saber o que acontece ao redor”, e, por isso, por ter de “falar

às escuras”, não achava “que esteja escondido algo grande que, por ora, nem vocês nem outros possam compreender”. Hoje se diria que ele se recusava a fazer “teoria da conspiração”. De fato, mesmo estando “no escuro”, apresentou uma explicação. Para começar, definiu Fernando como “mais astuto e afortunado que sábio”, e, reexaminando os acontecimentos dos dois anos antecedentes, observava como, desde então, aquele rei “colocava em perigo, sem necessidade, todos os seus Estados, o que sempre foi uma prática temerária para qualquer homem”. Ele relembrou as ações da liga antifrancesa até a batalha de Ravena, quando o rei católico arriscou-se a perder também o reino de Nápoles, “e o Estado de Castela tremia sob si”, sequer podendo prever a ajuda decisiva que lhe viria dos suíços, e repetiu: De modo que, se se considerar todas as manobras nessas coisas, verá na Espanha astúcia e boa fortuna, muito mais que saber ou prudência; e, como se vê em tal grande erro, pode-se presumir que tenha cometido mil iguais a esse.

Ele destacou a debilidade financeira da Espanha, atribuída ao atraso de seus ordenamentos em comparação aos da França. Dessa maneira, em toda sua análise da política espanhola, ele usou de um método parecido com o que usaria no terceiro capítulo de O Príncipe, em que critica os atos de Luís XII, acrescentando aqui algumas considerações sobre o “príncipe novo” que nos soam como um prenúncio de seu futuro trabalho.

2.“Escrevi um opúsculo, O Príncipe...” Retomou esses problemas em toda a correspondência que manteve com Vettori até agosto, e a grande política europeia foi sondada e debatida apaixonadamente. Várias operações estavam em curso: Veneza, que se aliara a Luís XII, está novamente em dificuldades, enquanto os

franceses, na tentativa de reconquistar Milão, foram derrotados pelos suíços em Novara e atacados em seu território pelos ingleses, vencedores na batalha de Guinegatte. Todavia, na península existia uma situação quase sem solução, com todos os desenlaces em aberto. O panorama que Maquiavel traçou na carta de 26 de agosto, antes da interrupção de três meses na correspondência com Vettori, nos dá o quadro da situação daquele momento: E quanto ao estado das coisas do mundo, eu chego a esta conclusão: que nós somos governados por príncipes tão completos que têm, ou por natureza, ou por acidente, estas qualidades: nós temos um papa sábio, e por isso grave e competente [cauteloso]; um imperador instável e inconstante; um rei da França depreciador e medroso; um rei da Espanha tacanho e avaro [ávido dos bens alheios]; um rei da Inglaterra rico, cruel e com ambição de glória; e suíços bestiais, vitoriosos e insolentes; nós da Itália, pobres, ambiciosos e vis.

Via, portanto, uma situação aberta a várias soluções, mas temia que a derrota da França e o predomínio que os suíços exerciam naquele momento sobre o ducado de Milão colocassem em risco toda a situação italiana. Por isso, concluia que “a Itália ficará em débito com o papa Júlio e aqueles que não nos protegem, se proteção agora houver”. Isso leva a pensar no 12º capítulo do primeiro livro dos Discursos, no qual se atribui a divisão da Itália à política da Igreja. Mas, naquele clima de incerteza, é possível explicar que o quondam secretário, habituado a refletir sobre os problemas da vida política e, consequentemente, a tomar as atitudes devidas, se tenha sentido impelido a reordenar seus pensamentos para redigir uma obra estreitamente ligada à realidade italiana. A experiência das “coisas presentes”, fundindo-se à “lição das coisas passadas”, sobre a qual geralmente reflete nas suas leituras à noite, lhe sugeria “um opúsculo”, graças ao qual restabeleceria a confiança de começar a voltar à sua vida anterior. Como escreveu a Vettori, na carta de 10 de dezembro de 1513, na qual lhe anunciava ter escrito O Príncipe, queria deixá-lo ao

alcance de Juliano de Médici, “porque eu me arruíno, e muito tempo não posso estar assim que não fique desprezado pela pobreza”, e acrescentou, para fazer entender quanto sentia a necessidade de voltar ao trabalho: “além de do meu desejo, faria com que esses senhores Médici se servissem de mim, mesmo que fosse preciso começar por me fazer rolar uma pedra”. Sobre a possibilidade de voltar à atividade política, pensava, portanto, em Juliano, o membro da família dominante com quem tinha uma relação, comprovada por dois sonetos escritos quando ainda estava preso154 e pela 155 correspondência com Vettori ; mas também provavelmente porque, relembrando a experiência do Valentino, criador de um vasto Estado graças ao apoio do papa, pensava que aquele “clarão [...] por sua [da Itália] redenção”156, que reluzira havia cerca de uma década, poderia agora resplandecer com novo vigor, graças ao apoio da única potência remanescente na Itália, a Santa Sé. Como César Bórgia tivera liberdade de agir, podendo contar com a proteção do papa Alexandre VI, agora que no trono papal quem se senta é Leão X, um membro da casa Médici teria possibilidades semelhantes. E justamente por Juliano sabemos que o papa, seu irmão, queria dotá-lo de um Estado na Itália. Provavelmente, esta era a ocasião; mas O Príncipe, por certo, não foi uma obra oportunista. Seu autor parecia bem ciente da vasta tratadística política produzida pela cultura humanista, de certo modo continuadora, embora com outros princípios ideais, do gênero literário inaugurado pelos Specula principis [Espelhos de príncipe] medievais157. Aquela produção, porém, pareceu-lhe distante da realidade, e, na abertura do capítulo XV, sublinha a diferença entre os muitos que “sobre isso escreveram” e a sua intenção de “ir atrás da verdade efetiva da coisa”, muito mais do que “da imaginação sobre ela”. E, para ser claro, acrescentou sarcasticamente: “muitos imaginaram para si repúblicas e principados que jamais foram vistos ou conhecidos de

verdade”, chegando a debater não sobre “como se vive”, mas sobre “como se deveria viver”. Por isso, a pesquisa sobre antecedentes e precursores de O Príncipe corre o risco de ser um mero exercício erudito, justamente porque a obra deve sua força inovadora em saber fundir a experiência política de seu tempo com a reflexão sobre textos clássicos, frequentemente adotados de forma implícita158. Até as comparações textuais, às quais frequentemente recorria nas anotações, servem para identificar as leituras de Maquiavel, mais que para mostrar fontes e “autoridade”. Na carta de 29 de abril de 1513, encontramos uma frase que, mesmo retirada de seu contexto específico, pode-nos fazer entender a maneira de pensar e de raciocinar de seu autor: “Eu não bebo a fama [ou seja, não bebo vinho confiando mais na fama da origem do que no sabor], nem quero nessas coisas que me influencie nenhuma autoridade senão a razão”159. Sobre a cultura de Maquiavel foram levantadas algumas dúvidas, a meu ver, pouco convincentes. Muitas vezes não se leva em consideração os obstáculos existentes naquela época à circulação de livros, um objeto então ainda raro e precioso, de difícil acesso a pessoas de poucas posses. De fato, esse dado pode explicar várias inexatidões encontradas nas passagens citadas, talvez devidas a referências tomadas de memória ou a partir de anotações apressadas e imprecisas, ou, como já foi dito, tiradas de florilégios, cuja difusão acontecia também porque serviam para substituir publicações dispendiosas160. Por outro lado, a distinção, sobre a qual se insistiu para indicar uma presumida ruptura na produção literária entre o período do secretariado e o de seus infortúnios, depois de 1512, baseia-se no espaço entre a literatura de tradição florentina, de caráter popular, sem dúvida apreciada por Maquiavel, e a que havia sido introduzida com o patrocínio dos Médici, pela refinada produção de Ficino e de Poliziano, a filosofia de Platão e as contribuições mais originais da filologia. Ora, tal diversidade, tender para um lado não implica,

necessariamente, a ignorar o outro. Com efeito, não se pode deixar de lado o fato de que aquelas experiências já eram datadas, e, em alguma medida, superadas pelo novo sentimento que se havia difundido depois da restauração da república, em 1494161. É certo que, se Maquiavel “não foi”, como observou Dionisotti162 “um humanista no verdadeiro sentido da palavra, foi, em contrapartida, um homem que recebeu uma educação humanista na Florença de Poliziano e de sua escola, como demonstra seu destino na secretaria”. De fato, já em Ghiribizzi al Soderino, demonstrava seu conhecimento dos textos clássicos e o compartilhamento de certas inquietações do pensamento humanista, sugeridas pela ciência de Ptolomeu. Não se deve esquecer que dois estudiosos como Roberto Ridolfi e Gennaro Sasso consideraram que a obra do secretário florentino possuía a essência de um bom conhecimento da cultura clássica, embora absorvida pela produção literária do século XV163. É certo que a presença dos “antigos” não vem sempre explicitamente declarada. Não encontramos em seus escritos indicações como aquelas da carta de Vettori, de 23 de novembro de 1513, em que, ao descrever a sua própria jornada romana, comunica-lhe as suas leituras: À noite, volto para casa e peço para ter bastantes histórias, acima de tudo dos romanos, quer dizer, de Lívio, com o epítome de Lúcio Floro, Salústio, Plutarco, Apiano de Alexandria, Cornélio Tácito, Suetônio, Lamprídio e Espartiano, e os outros que escreveram sobre imperadores, Herodiano, Amiano Marcelino e Procópio, e com eles me entretenho164.

A seleção de autores de que dispunha o patrício florentino era, sem dúvida, notável. Mas não é que Vettori quisesse ostentar seu saber: conhecendo os interesses do amigo, acrescentava de alguma maneira um incentivo à frase carinhosa: “Meu Nicolau, convido-lhe a esta vida”. Maquiavel responderia com a famosa carta de 10 de dezembro de 1513165, na qual, por sua vez, relataria sua jornada “na vila”. Durante o dia, ocupava-se de diversas

maneiras que o colocavam em contato com as pessoas do lugar, e, se lia, distraía-se com poesia: Partindo do bosque, vou a uma fonte, e daqui ao lugar das aves. Levo comigo um livro, ou Dante ou Petrarca, ou um desses poetas menores como Tibulo, Ovídio e que tais: leio sobre suas amorosas paixões e seus amores, lembrando-me dos meus, e saboreio um tanto esse pensamento.

Da hora de “comer” ao que restava do dia, acrescenta, “me afundo na vagabundagem” com os clientes da hospedaria, e, assim, “envolvido com essa piolheira, afasto o cérebro do mofo e desabafo o revés deste meu destino, estando contente de que ele me tenha direcionado por este caminho, para ver se isso lhe causa vergonha”. Só à noite se dedicava a leituras elevadas: Chegada a noite, volto para casa e entro em meu escritório, e, à porta, eu me dispo de minhas vestes cotidianas, cheias de pó e lama, e ponho vestes reais e nobres; e assim, apropriadamente vestido, entro nas antigas cortes dos antigos homens, onde, por eles recebido amavelmente, como do alimento que é somente meu, e para o qual nasci; e não me envergonho de falar-lhes e perguntar-lhes dos motivos de suas ações; e, por sua humanidade, me respondem; e, por quatro horas, não me entedio, esqueço toda angústia, não temo a pobreza, não sou assolado pela morte: a eles me entrego inteiramente.

Podemos lamentar que não nos revele quem são aqueles “antigos”, cujos nomes, aliás, devemos exumar a partir de uma análise atenta de suas obras. A propósito de suas leituras, pode ser de algum interesse examinar as diferenças entre as referências de O príncipe e dos Discursos. Para citar apenas um exemplo, podemos notar como, no “opúsculo”, não há nenhuma referência ao VI livro de Políbio, utilizado nos Discursos, sobre o que rios de tinta foram derramados para explicar como Maquiavel pôde tomar conhecimento, mesmo sem saber grego, uma vez que apenas os primeiros cinco livros haviam sido traduzidos e publicados em latim. Talvez esse silêncio pudesse permitir alguma ilação sobre as épocas de

elaboração de uma e outra obra, mas o terreno sobre o qual geralmente se caminha para tal propósito é escorregadio e cheio de obstáculos. Podemos apenas recordar que, segundo uma tese, os Discursos teriam sido iniciados já à saída da prisão, antes de O Príncipe, e Maquiavel, ao abordar o tema dos capítulos 16, 17 e 18 do primeiro livro, em que trata da relação entre liberdade e principado, teve a intuição do “opúsculo”. Por isso, suspendeu a redação da obra na qual estava mergulhado até então para se dedicar ao novo escrito. O engano de tal hipótese não é apenas o de apontar, de modo mecanicista, a relação entre as duas obras: uma vez que havia afirmado que, para corrigir um povo corrupto, seria necessário recorrer a um poder forte, teria resolvido interromper os Discursos e iniciar O Príncipe. Deve-se considerar que, de tal maneira, seria concedido ao autor um lapso temporal bastante limitado: em nove meses, teria escrito um complexo e laborioso conjunto de capítulos dos Discursos, além de O Príncipe. Segundo outra hipótese, supõe-se que, dado que o segundo capítulo desta obra se inicia por “Eu deixarei para trás o pensamento sobre as repúblicas porque, em outra oportunidade, refleti sobre isso longamente”, Maquiavel já tivesse criado anteriormente um “tratado sobre as repúblicas”, que mais tarde teria sido reincorporado à primeira parte dos Discursos. Esse tratado implicaria, precisamente, o conhecimento do VI livro de Políbio, já antes da composição de O Príncipe, uma vez que o ciclo das transformações dos governos, sugerido pelo historiador grego, é o tema central do segundo capítulo do primeiro livro dos Discursos. Parece estranho que, quando no capítulo IX, de O Príncipe, Maquiavel alude a três formas de governo que regem as cidades, limita-se a indicar “o principado ou a liberdade ou a licença”, evitando qualquer referência à variedade de governos indicada por Políbio. Naturalmente, este não é um argumento que possa excluir a primazia na redação dos Discursos, todavia, é um detalhe que não deve ser negligenciado.

A discussão sobre a composição de O Príncipe conheceu o enfrentamento de teses bem diferentes. Já em 1927, em um ensaio que marcou época, Federico Chabod sustenta que a redação do “opúsculo” havia ocorrido de um só jato, entre o verão e o outono de 1513, contestando a tese de seu mestre, Friedrich Meinecke166. Este sustentara que, quando Maquiavel havia enviado a Vettori a sua carta de 10 de dezembro de 1513, anunciando ter composto O Príncipe, tinha, na verdade, escrito – atendo-nos às indicações que dá na carta – apenas os primeiros onze capítulos. Recentemente, essa tese foi retomada por outros estudiosos, mas Gennaro Sasso sustentou convincentemente que, ainda que eventualmente, em dezembro de 1513, apenas os primeiros onze capítulos estivessem terminados, o restante foi finalizado no espaço de poucos meses, antes do verão de 1514167. Com efeito, uma obra como O Príncipe parece ter aplicação imediata a uma situação particular, e parece pouco crível que Maquiavel, em seu realismo, tenha retornado, em momentos diferentes, àquilo que já havia escrito, quando a relação de forças que condicionavam o panorama político italiano havia mudado profundamente. De todo modo, na ausência de informações e de dados precisos, parece preferível nos restringirmos àquilo que sabemos de certo: em dezembro de 1513, Maquiavel noticiou a Vettori que escrevera “um opúsculo, O Príncipe”; por diferentes fontes, sabemos que, entre 1517 e 1518, foi escrita a versão dos Discursos que chegou até nós. Sabiamente, Ridolfi concluiu que era inútil “sair fantasiando sobre obras perdidas”, uma vez que fazer ilações em torno da cronologia de obras ou de partes delas, sem embasamento em documentação precisa, parece muitas vezes pouco construtivo.

3. O “mito” de O príncipe

“Melhor ser impetuoso do que respeitoso”, lemos no capítulo XXV de O Príncipe: palavras que poderiam ser pinçadas como um lema da obra, convertida em marco fundamental da reflexão política, ainda que composta num impulso, em razão de uma circunstância específica. Podemos ainda repetir a observação de Antonio Gramsci, na abertura de suas “breves notas” sobre Maquiavel: “O caráter fundamental de O Príncipe é o de não ser um tratado sistemático, mas um livro ‘animado’, em que a ideologia política e a ciência política se fundem na forma dramática do ‘mito’”168, que tanto parece definir a idealização exemplar do personagem designado “ad capessendam Italiam” [“para salvaguardar a Itália”] para tomar uma atitude em benefício da Itália, como também um termo mais apropriado do que a palavra “utopia”. Com esta, de fato, corre-se o risco de atribuir caráter de teoria à margem da história ao esforço de fantasia que o político, como o artista, deve fazer no âmbito de uma práxis racional, a fim de encontrar soluções para uma realidade magmática e obscura. Em vez disso, de história é tecida toda a reflexão de Maquiavel. Uma história tipicamente humanística, porque os exemplos adotados para ilustrar os temas e os personagens evocados ou são recentes, e em geral contemporâneos a Maquiavel, ou então antigos, pertencentes aos tempos da Grécia e de Roma. Os séculos que se passam durante aquela que foi chamada então Media Aetas, a Idade Média, não existem, a não ser excepcionalmente, como nos Discursos (I, 12), remetendo à ação da Igreja para manter a Itália dividida. Sabemos que Maquiavel conhecia as Décadas, de Flávio Biondo, em que se narra a história “ab inclinato Imperio Romano” [“da decadência do Império Romano”], não obstante tais acontecimentos não lhe sugiram nenhum exemplo. Demonstrava, assim, compartilhar a maneira de pensar dos literatos de seu tempo: os séculos dominados pelos “bárbaros” não mereciam ser levados em consideração. Prestaria atenção

neles somente mais tarde, estudando a história de Florença, porque vislumbraria nas vicissitudes de então a origem das taras e dos males destinados a pesar sobre a vida italiana. Da Idade Média não haveria nenhuma herança positiva. Se o início da obra pode dar uma impressão de tratado, a partir do terceiro capítulo, sobre “os principados mistos”, começa a densa trama entre o passado mais recente, ou seja, os acontecimentos do reino de Luís XII, e o comportamento dos romanos tomado como modelo. A impiedosa análise da política francesa é conduzida com uma frieza que – se já não se houvesse abusado tanto do termo – poderíamos chamar de científica, enquanto logra sufocar a paixão que anima quem a formula, consciente das trágicas consequências de tais erros também para a Itália e para Florença. A partir dessas páginas nota-se a irrupção da vida europeia na reflexão sobre os problemas italianos. Com a invasão de Carlos VIII, em 1494, iniciou-se uma nova história para a Itália. Ao longo de todo o século XV, a maioria dos governos da península havia-se mantido a salvo das intervenções de além Alpes, por causa das instabilidades que agitavam os países vizinhos. A monarquia francesa estava empenhada na mais do que secular guerra contra os ingleses (1339-1453) e em lutas intestinas, como as de Luís XI contra os grandes feudatários reunidos na Liga do Bem Público. Os imperadores da casa de Luxemburgo e dos primeiros Habsburgo foram atraídos pelo leste europeu, com vistas a conquistar as coroas da Boêmia, da Hungria e da Polônia. Os reinos ibéricos estavam mergulhados em enfrentamentos internos, e apenas a casa de Aragão, que já possuía a Sicília e a Sardenha, havia participado das lutas pela sucessão no reino de Nápoles, mantendo, porém, as duas monarquias separadas. Assistia-se, então, à expansão de alguns Estados italianos, sobretudo do ducado de Milão, da República de Veneza e do Estado papal, mas a ampliação dos domínios geralmente não era acompanhada de uma organização de poder mais estável, capaz de superar

particularidades locais dos feudos ou das cidades169. Justamente a precariedade dos poderes centrais e o temor de possíveis revoltas dos súditos haviam levado os governantes a recorrer, por iniciativa própria e para se defender, às milícias mercenárias, que revelariam toda a sua inadequação àquele momento das guerras da Itália. Vislumbramos assim uma estreita ligação, implícita no exame de Maquiavel, entre os acontecimentos italianos e as medidas tomadas pelas potências que, do outro lado dos Alpes, para se afirmar, estavam desenvolvendo novos instrumentos de poder, baseados, no entanto, em ordenamentos enraizados na vida política e civil. Isso já é uma novidade em relação às anteriores tratativas humanistas ou medievais, que geralmente se referem a uma respublica christiana de forma tão vaga quanto inconsistente. Maquiavel, precisamente por querer mostrar aquilo que torna frágil a Itália em relação aos países que a rodeiam, propõe-se a apontar as diferentes peculiaridades do mundo em que vive. Se, no capítulo IV de O Príncipe, fala de Dario e dos imperadores orientais, é para estabelecer uma diferença de fundo entre as antigas monarquias e os novos reinos que se estão formando na Europa; mas logo abandona o passado distante para buscar uma relação com seu tempo. Assim, pela primeira vez, é formulada uma distinção destinada a se expandir no debate político por mais de dois séculos: aquela entre “o Turco e o rei da França”, entre o domínio de um déspota sobre súditos uniformemente submetidos, e um Estado articulado em classes e ordens, dotado de instituições que tornam seus habitantes, segundo a sua condição, homens munidos de direitos e poderes170. Encontramos aqui, em embrião, a primeira enunciação daquilo que dá força e raízes a uma formação política: aquela que, mais tarde, no século XVIII, seria definida como “sociedade civil”. Prosseguindo na análise da obra, encontramos um esboço sobre as várias formas para chegar ao domínio dos “Estados que se adquirem”, segundo o modelo de Esparta ou de

Roma (cap. V). Esparta se revelou incapaz de manter ligadas a si as cidades conquistadas: Roma, pelo contrário, soube criar um império. Em conexão com tal problema, é abordada a relação a ser estabelecida com as populações acostumadas a viver livres, além de informações sobre sua vitalidade. São reflexões que Maquiavel já havia elaborado no escrito de 1503 a propósito da revolta do Val di Chiana; a ela voltaria posteriormente, de forma ampliada, nos Discursos, revelando uma sequência em seu pensamento. O tom sobe ainda mais ao tratar “dos principados completamente novos” (cap. VI), em que se observa notas emocionadas que nos fazem pensar na exortação do capítulo final, o que nos permite entender quanto o problema é caro ao autor, que se pôs a escrever precisamente para apresentar as extraordinárias possibilidades de um príncipe novo. Com tal objetivo traz exemplos daqueles “que, por virtude própria, e não por fortuna, se tornaram príncipes”, e cita os nomes de Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu. Se o primeiro é deixado de lado, “tendo sido um mero executor das coisas que lhe eram ordenadas por Deus”, na realidade o procedimento serve para mostrar que as “ações e ordens” dos outros fundadores de Estados não foram “discrepantes daquelas de Moisés, que teve um preceptor tão importante”. A virtude deles os eleva ao nível do profeta, e, assim, a sua figura é dessacralizada e tornada passível de uma análise política. Com esses personagens, o príncipe novo se deve ombrear em virtude, de modo a ser capaz, por sua vez, de aproveitar a oportunidade, porque, “sem essa oportunidade, a virtude de seu ânimo se teria apagado, e, sem essa virtude, a oportunidade teria vindo em vão”. Além da relação entre fortuna e virtude, já abordada em Ghiribizzi al Soderino, então se coloca o problema da força, declarado, de mais a mais, como fundamental desde os primeiros escritos políticos, as Parole da dirle sopra la provisione del danaio [Palavras a serem ditas sobre a disposição do dinheiro] e La cagione dell’Ordinanza [A razão

da Ordenança]. O problema é apresentado de forma dramática na reflexão sobre os “profetas armados” e “desarmados”: uns podem “fazer com que eles [os povos] observem longamente suas constituições”, porque dotados de força, os outros “têm grande dificuldade para se conduzir”, e podem cair como Savonarola; mas se conseguem superar os perigos, graças à sua virtude, “e são venerados [...] permanecem poderosos, seguros, honrados e felizes”. Entrevemos, assim, o que, nos Discursos, será mais claramente apontada como a força do consenso, a mais sólida base de qualquer poder. Precisamente essa força havia permitido ao Valentino fincar raízes profundas no seu novo Estado. No capítulo VII, Maquiavel analisa sua maneira de agir, “porque eu não saberia quais os melhores preceitos para passar a um príncipe novo que não fossem o exemplo de suas ações”. Assim ele ilustra a política seguida para criar um Estado na Romanha. Transformado em senhor, desejando se fortalecer e estender as suas posses, tomou a iniciativa de criar uma força militar própria que o liberasse das amarras da proteção francesa e, ao mesmo tempo, das armas mercenárias. Desse modo, conseguiu tirar os aliados e partidários dos Orsini e dos Colonna, e os trouxe para o seu lado. Em seguida, reagindo contra a conspiração tramada por seus condottieri, conseguiu eliminá-los no massacre de Senigália. A essa altura, “o duque havia lançado fundamentos bastante sólidos de seu poder, dominando toda a Romanha com o ducado de Urbino”, mas sobretudo porque havia “feito a Romanha amiga e ganhado aqueles povos por ter começado a prezar seu bem-estar”. Até então, tinham sido governados por “senhores impotentes, os quais haviam sido mais rápidos em espoliar seus súditos do que em corrigi-los”, mas então viviam em condições de ordem e de união. Certamente, a isso se chegou com procedimentos sumários: para varrer “latrocínios, desentendimentos e qualquer outro motivo de insolência”, o Valentino colocou no governo da Romanha um “homem cruel e expedito”, que,

“em pouco tempo, a pacificou e a uniu”. Logo em seguida, porém, “para purgar os ânimos daqueles povos e conquistálos completamente”, mandou subitamente que se matasse o poderoso ministro, e “preferiu instituir um tribunal civil no meio da província, com um excelentíssimo presidente”. Embora o Valentino estivesse distante da Romanha, e em crescente dificuldade, quando da morte de Alexandre VI, seu ducado permaneceu-lhe fiel por longo tempo, e se constatou que havia conquistado o afeto de seus súditos. Para sua infelicidade, todavia, a morte do pai ocorreu não apenas antes que tivesse levado a termo o seu plano de se assenhorar da Toscana, mas também enquanto esteve gravemente doente. “E ele me disse, nos dias em que Júlio II foi nomeado, que havia pensado no que poderia acontecer morrendo o pai, e havia encontrado remédio para tudo, exceto em algo em que jamais havia pensado, a sua própria morte, em estar ele próprio prestes a morrer”. Esse elogio ao príncipe italiano mais vituperado não poderia deixar de causar escândalo. Quase a aumentá-lo, o capítulo seguinte é dedicado a “aqueles que por má índole conquistaram principados”, como para sublinhar as diferenças em relação à virtude do Valentino. O que, de fato, é abominável é se elevar a principado reduzindo a pátria, que livremente se entregou a ele, à escravidão. Dessa maneira, na Antiguidade, Agátocles, alcançando o comando do exército siracusano, “reuniu uma manhã todo o povo e o senado de Siracusa, como se fosse deliberar sobre assuntos da república”, e ordenou que seus soldados massacrassem “todos os senadores e os mais ricos do povo”, logo se apoderando da cidade. Em tempos menos remotos, Liverotto tomou o poder em Fermo, depois de ordenar, assim como a das pessoas mais influentes do lugar, até a morte do tio que o havia criado. Esse comportamento o diferencia do Valentino, porque “não se pode [...] denominar virtude a matança de cidadãos, a traição dos amigos, a ausência de fé, de piedade, de religião, modos pelos quais se pode adquirir um império, mas não a glória”.

Certamente, a crueldade às vezes pode ser necessária, mas existem crueldades “mal usadas ou bem usadas”. E, assim, precisa: Pode-se dizer que são bem usadas – se do mal é lícito dizer bem – aquelas que são realizadas de uma vez, dada a necessidade de se garantir para depois não se insistir nelas, mas resultam na maior utilidade possível para os súditos. Mal usadas são aquelas que, embora poucas a princípio, com o tempo acabam muito mais aumentando em vez de se extinguir171.

Nos Discursos (I, 27), observa que até na perfídia pode existir grandeza: a política verte lágrimas e sangue, e, na História de Florença (VII, 6), refere-se a como Cosme de Médici costumava dizer “que os Estados não se mantinham com o pai-nosso em mãos”172. Por isso, prossegue, em O Príncipe: [...] ao tomar um Estado, deve o seu ocupante soltar todas as ofensas que julgue necessárias, e todas de uma vez, para não ter de renová-las a cada dia, e, não as renovando, poder dar garantias aos homens e conquistá-los com benefícios.

São estratégias cujo planejamento é indispensável para chegar ao “principado civil” (cap. IX): para tal objetivo não é necessário ter “ou completa virtude ou completa fortuna, senão, e muito mais, uma astúcia afortunada”. Ao principado se chega “ou com o favor do povo, ou com o dos poderosos”. O antagonismo entre “essas duas diferentes disposições de espírito” é constante. Daí a hostilidade nas relações entre os poderosos, nutrida por Maquiavel em sua atividade política, no tempo de Soderini, e a preferência pela parte popular, repetidamente manifestada nos Discursos, e explicada com argumentos que, na verdade, remetem à debilidade do poder nos Estados italianos, minados por particularismos. Em Ritracto di cose di Francia [Retrato de coisas da França], observou que, também naquele reino, “no passado [...] os poderosos barões” ousavam rebelar-se contra o rei, mas “hoje são

todos muito obsequiosos”173: na Itália, pelo contrário, não existia um soberano com autoridade bastante, e os “poderosos” ameaçavam a atuação do príncipe, considerando-se “iguais a ele”. Por isso, é mais prudente apoiar-se no povo, em que “nenhum ou pouquíssimos não estão preparados para obedecer”. Sobretudo, é mais fácil satisfazê-lo, “porque o do povo é um fim mais honesto que o dos poderosos, querendo estes oprimir, e aqueles não serem oprimidos”. Nos embates entre poderosos, pode-se levar em consideração se são fiéis e não “vorazes”, e tal trecho é de ser notado, porque o mesmo princípio será de algum modo ainda repetido entre 1520 e 1522, nos escritos então elaborados pela reforma do Estado de Florença174. Em sentido inverso, o príncipe deve desconfiar dos demais poderosos “como se fossem inimigos descobertos, porque, na adversidade, sempre ajudarão a arruiná-lo” para satisfazer suas ambições pessoais. Era um ensinamento tirado desde os anos do enfrentamento entre os ottimati e Soderini, e que havia sido confirmado em 1512, no momento do ataque espanhol à República, quando os aristocratas florentinos contribuíram para a derrubada do gonfaloneiro. O Estado bem sólido é, portanto, aquele apoiado pelo povo. “E que não haja quem afaste essa minha opinião”, acrescenta “com aquele surrado provérbio que diz que quem tem base no povo, tem base na lama”, porque os exemplos que normalmente são dados para sustentar tal ditado se referem a cidadãos particulares, que esperam serem socorridos pelo povo quando estiverem correndo o risco de serem derrotados na luta política175. Em vez disso, aqui se trata de um príncipe dotado de poder e de autoridade, que “seja homem de coragem, e não se abata nas adversidades”, saiba governar com retidão e “mantenha a todos animados com seu ânimo e suas ordens”: então “jamais será enganado, e parecerá ter-se erigido sobre boas bases”.

O problema da defesa contra os inimigos externos é tratado no capítulo X, em que são examinadas as forças sobre as quais se baseiam todos os principados. Estão certos os que podem “governar-se por si mesmos [...] ou pela abundância de homens ou de dinheiro” e que são capazes de manter um exército. Os demais farão bem em fortificar a capital e estar prontos para abandonar o resto do país. O exemplo deriva da sua experiência da missão diplomática na Alemanha: As cidades da Alemanha são bem livres, têm poucos condados e obedecem ao imperador quando têm vontade, e não temem nem a ele nem qualquer outro poderoso que tenham ao seu redor. Porque estão de tal modo fortificadas que todos pensam que as conquistar deva ser cansativo e difícil, porque todas têm fossos e muralhas como convêm; têm suficiente artilharia; têm sempre o que comer e beber e o necessário para o fogo por um ano nos armazéns públicos, e, além disso, para manter a plebe alimentada e sem perda de público, normalmente têm sempre trabalho para dar durante um ano aos que trabalham em ofícios que representam o nervo e a vida da cidade e das indústrias, com as quais a plebe se alimenta.176Todavia, a condição essencial para que um príncipe se possa comportar assim é que os seus súditos estejam unidos em torno dele, e que ele possa contar com o favor de seu povo.

Por outro lado, quem não tem preocupações de defesa são os príncipes eclesiásticos (cap. XI), levados em consideração evidentemente não por lições tiradas de seu governo: Esses são os únicos que têm Estados e não os defendem; têm súditos e não os governam. E os Estados, mesmo indefesos, não são deles tolhidos; e os súditos, mesmo não governados, não se importam nem pensam nem se podem separar deles.

Seria possível dizer que são os únicos que se sentem “seguros e felizes”, se a ironia não transparecesse sob a aparente homenagem a esses Estados, “regidos por razões superiores, as quais a mente humana não alcança”. O que interessava a Maquiavel era compreender como se chegou a tal estado de coisas, e, por isso, volta a lembrar a

situação do Estado da Igreja até a chegada de Carlos VIII à Itália, quando a península ainda estava “sob o império do papa, dos venezianos, do rei de Nápoles, do duque de Milão e dos florentinos”. As convulsões causadas pela chegada dos franceses e pelas guerras na Itália permitiram ao papa Alexandre VI – “embora sua intenção não fosse tornar grande a Igreja, mas o duque [Valentino]” – promover a “grandeza da Igreja”, cujos domínios foram ainda mais ampliados por Júlio II. Em outros escritos, esses fatores seriam considerados negativos, e, nos Discursos (I, 12), não economizaria acusações ácidas contra a Igreja, que “manteve e mantém esta província dividida”; mas aqui as considerações são diferentes, tanto assim que a obra, escrita durante o reinado de Leão X, lembrado ao final desse capítulo, deveria ser destinada a um Médici. Segundo alguns estudiosos, quando, em dezembro de 1513, Maquiavel escreveu a Vettori ter “composto um opúsculo, O Príncipe”, teria chegado somente a esse ponto. Com efeito, o final desse capítulo e o início do seguinte podem dar a impressão, senão de uma autêntica interrupção, ao menos de uma censura, uma vez que o início do capítulo XII se desenvolve como se fosse uma continuação: “Tendo tratado particularmente de todas as qualidades dos príncipes, dos quais, no princípio, me propus a tratar, e considerado em alguma medida [...] e mostrado os modos [...] me resta agora discorrer [...]”. Parece, então, verossímil a hipótese de Sasso, que rechaça claramente a ideia de uma elaboração e de uma conclusão da obra muito mais tardia, supondo sua finalização lá pelo final da primavera de 1514177, mesmo admitindo que O Príncipe pudesse não estar ainda concluído em dezembro de 1513, e que as indicações dadas na carta a Vettori se referiam apenas aos onze primeiros capítulos. Assim, nos capítulos seguintes, o tom pode parecer outro. São esclarecidos os “bons fundamentos” de um Estado, lembrando que os principais são “as boas leis e as boas armas”, o binômio que está na base de toda soberania, o que já havia sido

lembrado em La cagione dell’Ordinanza, de 1506. Nesse capítulo XII, explica que “não podem existir boas leis onde não existam boas armas, e onde existem boas armas convém que haja boas leis”178. Por essa via se retoma a dura polêmica contrária às armas mercenárias, que são “desunidas, ambiciosas, sem disciplina, infiéis, vigorosas entre os amigos e vis entre os inimigos”. Com efeito, “quando chegou o forasteiro, mostraram-lhe o que eram: por isso foi permitido a Carlos, rei da França, conquistar a Itália com giz”. É a expressão usada por Alexandre VI, também reproduzida por Commynes: “Os franceses avançaram com esporas de madeira, e o giz dos furriéis em mãos para demarcar os alojamentos”179. Toda forma de combate dos exércitos mercenários é contrária a qualquer norma da arte da guerra, a começar pelo fato de que os condottieri, “para conquistar fama para eles mesmos”, retiraram a “fama da infantaria”. Ainda nos dois capítulos seguintes se insiste na necessidade de armar um Estado, porque, sem armas próprias, nenhum príncipe está seguro. Além disso, o príncipe deve cuidar pessoalmente do exército e colocar-se à sua frente. Afirma-se, portanto, o indissolúvel nexo entre ação de governo e ação militar – “leis e armas” – que deve ser visto como um ponto forte do pensamento de Maquiavel: a sua polêmica contra os exércitos mercenários não pode ser considerada dissociada de sua reflexão política. Foi justamente notado: “O mercenário se torna o símbolo do século XV italiano, quer dizer, da prevalência geral dos poderes oligárquicos ou de particularismos feudais sobre tendências aglutinadoras das cidades-Estado, assim como do reino meridional: símbolo e, ao mesmo tempo, expressão de um sistema político destinado à ruína”180. Do capítulo XV em diante, estão no centro das atenções os comportamentos e as qualidades do príncipe: não em abstrato, mas, como já se notou, segundo “a verdade efetiva da coisa”. E, precisamente nessas páginas, encontramos os fragmentos mais contraditórios, em que

claramente se nota a autonomia da política: “da política”, escreveu Croce em um famoso trecho181, “que está além, ou melhor, aquém do bem e do mal moral, que tem suas leis, contra as quais é inútil rebelar-se”. Certo é que convém recordar que as indicações do autor de O Príncipe querem adaptar-se a uma situação “corrompida”, e Croce sempre destacou “o acre amargor com o qual Maquiavel acompanha essa afirmação sobre a política e sua necessidade inerente”. O príncipe é invocado para remediar uma situação de crise e de ruína geral, e, por isso, deve prescindir de qualquer consideração ética, justamente como havia feito o Valentino na Romanha. Sem dúvida, no momento da conquista, sua ação foi impiedosa, e, portanto, “César Bórgia era considerado cruel: a despeito de sua crueldade, havia remendado a Romanha, unindo-a em torno da paz e da fidelidade”. Até Guicciardini – com fama de cético, mas não de pérfido e ímpio – nota que o novo ducado havia sido conduzido de modo que todos tirassem vantagem de servir, unidos sob um príncipe, mais do que sob os vários pequenos senhores que o Valentino havia deposto182. Assim, Maquiavel escreve que “entre todos os príncipes, o príncipe novo não pode fugir do epíteto de cruel, por estarem os novos Estados repletos de perigos” (cap. XVII). Em todo caso, o príncipe deve “fazer-se temer, de modo que, se não conquista o amor, que evite o ódio”. E aqui topamos com uma das observações que mais tem suscitado o desprezo das almas timoratas. Com efeito, escreve Maquiavel que o príncipe chegue até mesmo, se indispensável, a “agir contra o sangue de alguém”, mas que “se abstenha das riquezas de seus cidadãos e de seus súditos [...] porque os homens se esquecem mais rapidamente da morte do pai do que da perda do patrimônio”. Por outro lado, já havia observado (cap. XV) que ao príncipe “é necessário ser muito prudente para saber escapar da infâmia daqueles vícios que lhe privariam do poder, e proteger-se daqueles que não lhe privariam”, acrescentando: “se possível”. No entanto, “que não se

preocupe em incorrer em infâmia de vícios sem os quais dificilmente possa salvar o Estado”183. Posto que o príncipe deve saber combater com as leis e com a força (cap. XVIII), aquelas próprias dos homens, e estas dos animais, a ele se aplica o exemplo do centauro, “meio animal, meio homem”, que os antigos fizeram preceptor de Aquiles. Para “saber usar bem do animal”, ele deve imitar a raposa e o leão, “porque o leão não se defende das armadilhas, e a raposa não se defende dos lobos”. É preciso, portanto, ser “raposa para conhecer as armadilhas, e leão para afugentar os lobos”. É a inversão de uma advertência de Cícero, o qual, com efeito, não está entre os autores mais apreciados por Maquiavel: precisamente aqueles dois animais aparecem em De officiis [Sobre os deveres] (I, 41) como símbolo da injustiça cometida com violência e fraude. De fato, explicava-se que “a fraude é vulpina, e a violência, própria do leão”, e detalhava: “ambas são completamente contrárias à natureza humana, mas a fraude merece maior aversão”. Certamente não renegava o exemplo da “raposa” de dois príncipes como o Valentino e Fernando, o Católico: este último, em particular (embora Maquiavel evite nomeá-lo abertamente), “não faz mais do que predicar paz e fidelidade, e é bem inimigo tanto de uma quanto de outra, e uma como outra, se praticadas, teriam-lhe tirado mais de uma vez não apenas a reputação, mas também o Estado”184. A dissimulação não é, evidentemente, uma criação da era barroca. No entanto, Maquiavel concorda com Cícero ao afirmar que uma norma essencial da política é a manutenção do Estado, seguindo o lema: “Salus populi suprema lex esto” [“seja a suprema lei a salvação do povo”] (De legibus [Sobre as leis], III, 8). De fato, escreveu: “Assim, se um príncipe consegue vencer e manter o Estado, os meios serão sempre considerados honrados e por todos serão louvados”. Nos Discursos, em uma perspectiva mais aberta, de longo prazo, condena os “modos muito cruéis e inimigos de todo viver,

não apenas cristão, mas humano” (I, 26), mas adverte, com profunda paixão: Onde se delibera completamente sobre a saúde da pátria, não há que se cair em nenhuma consideração nem do justo nem do injusto, nem da piedade nem da crueldade, nem do louvável nem do ignominioso; antes, deixando de lado qualquer outro respeito, deve-se seguir por completo a determinação que lhe salve a vida e a mantenha em liberdade (III, 41).

Em O Príncipe, escrito para uma situação de urgência dramática, o objetivo é colocado de modo imediato, tendo em vista a crítica situação que se desejava sanar. O quadro que é pintado é sombrio: “deve-se tomar o vulgo tal como parece e segundo os acontecimentos, e”, conclui amargamente, “no mundo não se é senão vulgo”. Também Rômulo, um dos modelos de O Príncipe, que nos Discursos é considerado como “um fundador da vida civil” (I, 9), teve de agir impiedosamente, e até Moisés, “que teve tão importante preceptor”, foi “forçado a querer que suas leis e suas ordens fossem seguidas de matar uma infinidade de homens” (III, 30). Como moral da história, no capítulo XVII de O Príncipe, são citadas as palavras que Virgílio coloca na boca de Dido, nos dias em que está fundando seu novo reino: “Res nova et regni novitas me talia cogunt moliri” (“Recente o Estado, ao rigor me constrange”)185. Um grande historiador observou que essas páginas de Maquiavel “guardarão para sempre, em seu frio realismo político, palavras de escândalo para quem não tenha ao menos experiência de leituras vastas e precisas sobre acontecimentos e situações históricas”, e que “tal escândalo se tornou mais irritante pelo poder evocatório e icástico do escritor”186. Pode-se observar também que muitas páginas de Erasmo, não menos ácidas e provocativas – ao menos para os conformistas –, por causa da polêmica revolta contra príncipes e prelados, ou contra as normas e práticas devocionais difundidas em sua época, estavam igualmente destinadas a suscitar escândalo e condenações. Por isso, deve-se notar como os ambientes

em que as novas ideias estavam mais presentes e nos quais se sentia fortemente a aspiração a um sentimento religioso mais simples e direto, mostravam-se particularmente receptivos às obras seja de Maquiavel, seja de Erasmo, ambos capazes de suscitar interesse pelos impulsos culturais mais inovadores187. E, significativamente, a obra do humanista flamengo, a par dos escritos de Maquiavel, logo foi lançada no Index da Igreja na Contrarreforma. O novo espírito que estava emergindo nos primeiros lustros do século XVI estava prenhe de renovações e subversões capazes de liberar energias e de impor soluções até então inimagináveis, tornando intoleráveis antigas convenções e velhos conformismos impostos por uma sociedade em muitos aspectos revolucionada e por uma ética quase vazia de significado, também porque era contestada, antes de mais nada, por quem deveria respeitá-la. Por outro lado, para Maquiavel, a interpretação da mensagem cristã que oferecia o mundo “como presa aos homens cruéis” (Discursos, II, 2) impedia – segundo aqueles preceitos – a criação de uma sociedade vigorosa e estável. Estava-se formando então uma nova consciência de sociedade organizada, e se afirmava uma nova religiosidade. Se, em Maquiavel, por um lado, a crise religiosa de seu tempo é indicada apenas fugazmente com uma alusão ao escândalo das indulgências, que motivou o protesto de Lutero188; por outro, as suas páginas exprimem claramente uma nova fé civil, que alimentava com extraordinário vigor a sua visão política. A sua reflexão nos parece, portanto, influenciada pela mais alta tradição do humanismo, justamente porque “foi verdadeiramente renovada a confiança no homem e em suas possibilidades, e a compreensão para suas atividades em qualquer direção”189. Maquiavel colocava como objetivo a constituição de um Estado ordenado por instituições e por leis que o regem de forma estável, livre da corrupção e das misérias em que a vida italiana se havia afundado; justamente a visão de tal degradação suscitava o seu desprezo a

governantes ineptos, incapazes de prever o desenrolar da situação política, e os repreendia duramente no segundo Decennale, contemporâneo de O Príncipe: Vocês, que cetros e coroas têm, e do futuro nenhuma verdade sabem!190

Em O Príncipe, zomba com amargura dos príncipes despossuídos: “Esses nossos príncipes, os quais permaneceram muitos anos em seu principado, por tê-lo depois perdido, não acusem a fortuna, mas sua própria indolência”191. Sua consciência civil se alimentara da experiência comunal e republicana, ainda viva na chancelaria florentina, apesar de próxima do fim em sua própria cidade. Estava bem ciente disso ao criticar as fraquezas e os defeitos dos ordenamentos florentinos e as lacerações internas que bloquearam o desenvolvimento da sociedade e o seu potencial de crescimento. Na verdade, toda a experiência política italiana, fundada principalmente na sociedade urbana, estava em seu ocaso, e agora o pássaro de Minerva já levantava voo, o que indicava um novo horizonte para o estudo das relações da vida social entre os homens. Em tal situação, não surpreende que o capítulo final de O Príncipe tenha a cadência de um fragmento profético.

4. Frequentando os Orti Oricellari É possível pensar que foram justamente essas novidades que impediram que os primeiros leitores de O Príncipe compreendessem sua grandeza. De fato, a dedicatória da obra a Juliano de Médici não aconteceu, apesar das tentativas – não muito convincentes, aliás – de Francesco Vettori. Pior ainda: fracassou por completo a esperança de que os Médici “comecem a se servir” de Maquiavel. Lendo a correspondência com Vettori, vemos as desilusões se sucederem, até a dolorosa frase da carta de 10 de junho de

1514: “Ficarei então assim, entre meus piolhos, sem encontrar ninguém que se lembre de meus serviços ou que acredite que possa servir para algo”192. Maquiavel foi levado a pensar que suas difíceis condições o obrigavam a ter de se virar como “tutor ou a trabalhar como chanceler de um condestável, [...] ou me deixar ficar em algum lugar deserto para ensinar as crianças a ler”. Até as tentativas de Paolo Vettori de lhe confiar algum encargo falham, depois que, de Roma, o secretário do papa advertiu ao mesmo Juliano para que “não se frequente Nicolau”193. Apesar de, nas cartas a Vettori, admirarmos o bom ânimo com que mostrava tomar coragem e entregar-se a “pensamentos vãos”, sabemos que, nesse período, quase para distrair-se, se dedicava – por vingança ou desespero – à composição de um poema satírico em terza rima, L’Asino [O asno]194. A amargura do momento se refletia no espírito profundamente pessimista que impregnou aqueles versos. Pensou-se que o início poderia ser interpretado como uma velada alusão aos Médici, porque fala da presença, em Florença, de “um certo jovenzinho”, atingido por um estranho mal que lhe obriga sempre a correr. Seu pai o entrega a “certo médico charlatão”, que lhe garante a cura, e o autor comenta: “sempre se crê/ em quem promete o bem, do que resulta/ que tanta fé aos médicos se dê”195. A profissão parece indicar, na verdade, o nome da família dominante em Florença196, sobre a qual, portanto, recairia a acusação de que “muitas vezes neles crendo o homem se priva/ do bem”. A entonação autobiográfica do relato que abre o poema é bastante clara: o ânimo do autor, ávido de correr o mundo, como o repreendeu Agostino Vespúcio, ou seja, a sua febril atividade nos tempos de secretariado, se manifesta no mal que afeta o “jovenzinho” de L’Asino. Mas, como já se cogitou, a ânsia de correr pode também ser uma alusão à sua vontade de fazer troça, de satirizar, como ele mesmo declarou: “E eu, já tendo a mente voltada/ a morder isto e aquilo”: uma vontade que havia encontrado expressão, pelo

pouco que se sabe, na comédia Le Maschere, na qual atingiu e maltratou vários cidadãos ainda vivos, em 1504197. Certamente, seu espírito zombeteiro poderia levá-lo a cometer imprudências, e assim soa a referência na carta a Vettori, escrita no dia seguinte à saída da prisão, em que prometia ser mais “cauto” no futuro198. “Mas o tempo presente rancoroso e cruel” impelia a ver muito mais o mal do que o bem, “pelo que, se agora eu espalhar um tanto de veneno”, é porque tal estado de coisas leva a isso, explica no primeiro capítulo de L’Asino199. O poemeto teria sido inspirado em O asno de ouro, romance do escritor latino Apuleio, que viveu no século II, no qual um jovem se transforma em asno num passe de mágica. Todavia, no capítulo VIII (além do qual não prosseguiu Maquiavel, deixando a composição incompleta), a transformação em asno ainda não havia ocorrido. Pelo contrário, ao dirigir-se a um “gordo leitão”, isolado de outros animais, que antes haviam sido homens, o herói diz ter recebido dos deuses “tamanha graça”, suficiente para “tirálo das aflições em que se encontra”200: parecia, portanto, estar a salvo da transformação num asno, título do poema. O leitão, entretanto, revela a ele suas reflexões, que celebram a renúncia ao drama da vida humana; naquela altura, é possível supor que Maquiavel tenha pensado que aquilo que teria dito, caso fosse transformado em asno, já havia sido exposto por aquele seu interlocutor. Havia chegado a um beco sem saída, e, talvez insatisfeito com a obra, abandonou a composição. Ainda mais porque, justamente naquela época, mostraria em A mandrágora, comédia escrita para o carnaval de 1518, a animalidade dos homens em uma realidade bem concreta: “sua Florença”, como diz, de fato, no prólogo201. Sem dúvida, na obra-prima teatral, ele conseguiu expressar seu pensamento com extremo vigor, resolvendo, na comédia, pelo jogo de interpretação, a contradição, surgida no capítulo V do poema, entre a reflexão política, cujo profundo pessimismo se revela sensível aos problemas da sociedade organizada,

e o exasperado individualismo, expresso pelo leitão no seu elogio aos animais. Pelo menos desde 1516, Maquiavel havia começado a frequentar um círculo de jovens que, retomando o hábito iniciado nos primeiríssimos anos do século por Bernardo Rucellai202, encontravam-se, depois da morte deste, ao redor de seu neto Cosimo, nos jardins de seu palácio, chamados, latinizadamente, Orti Oricellari. Eram reuniões que remontavam a uma nobre tradição humanista de conversações e de debates literários e filosóficos, mas agora, com Cosimo, frequentemente as questões políticas se impunham, animadas por um espírito antitirânico, que se inspirava na lembrança da antiga Roma republicana, tal qual transmitida pelos grandes historiadores do passado: Lívio e Tácito, Plutarco e Políbio. Em tal ambiente, Maquiavel leu ou expôs alguns trechos de seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, e discutiu temas mais tarde retomados em A arte da guerra. Nas dedicatórias e em algumas páginas dessas duas obras, percebemos ainda a relação de amizade que, apesar da diferença de idade, unia Maquiavel àqueles jovens. Ele, bem mais velho, e também por sua experiência durante a República de Soderini, era visto como um mestre, o que levava os jovens a o convencerem a dar forma literária às suas reflexões. Assim, no início dos Discursos, ele se dirige “a vocês, que me obrigaram a escrever o que eu jamais, por mim mesmo, teria escrito” e a expor “tudo o que sei e tudo o que aprendi de uma longa prática e de uma contínua lição das coisas do mundo”: a eles dedica a obra, contra “o costume usual dos que escrevem, os quais têm por hábito destinar suas obras sempre a algum príncipe”. Desse modo, ele elegia “não os que são príncipes, mas os que, por suas infinitas e boas contribuições, mereceriam sê-lo”. Palavras que soam como uma autocrítica à infeliz dedicatória de O Príncipe, feita a Lorenço de Médici. Alimentado por uma sofrida tensão quanto ao futuro, sentia-se ligado aos jovens por um elevado sentido de

responsabilidade, com os quais comentava os clássicos antigos e discutia os problemas de seu presente, nos jardins da casa Rucellai: Porque é o ofício do homem bom ensinar a outro o bem que pela adversidade dos tempos e pela fortuna não tenhas podido praticar, para que, tornando muitos aptos, algum deles mais bem-visto pelo céu possa praticá-lo.203

O velho condottiere Fabrizio Colonna dirigiria pensamentos análogos aos jovens interlocutores em A arte da guerra – o diálogo sempre ambientado “na mais secreta e sombria parte” do jardim Rucellai –, partilhando com eles suas reflexões amadurecidas na experiência: E eu me queixo da natureza que, ou bem não teria de me ter feito conhecedor disso, ou bem teria de me ter dado a faculdade de poder executá-lo. Neste momento, sendo velho, já não penso poder ter alguma outra oportunidade; e, por isso, comportei-me convosco de forma liberal, porque, sendo jovens e qualificados, podereis, no devido tempo, se assim lhes aprouverem as coisas que lhes disse, converter em ajudas e conselhos em favor de vossos príncipes.204

Nas misérias de seu presente, o tesouro do conhecimento, que alimentava as esperanças de renovação e de liberdade, não se deveria perder, mas ser aplicado na última possibilidade que restava, o futuro representado pelas jovens gerações.

5. Um comentário original sobre Tito Lívio Não sabemos em que ponto se encontrava a redação (ou um eventual primeiro esboço) dos Discursos quando Maquiavel começou a frequentar os Orti Oricellari. Já se acenou a hipótese das épocas de sua composição, e, além das dúvidas referentes ao momento em que foi iniciada, deve-se notar que talvez a obra não tenha sido escrita na ordem dos capítulos que conhecemos hoje. Como já foi lembrado, a citação inicial do terceiro capítulo do segundo

livro, que é retomada na conclusão, leva a pensar que foi um início tosco do comentário. Não se deve excluir a possibilidade de que Maquiavel, durante um largo período, acumulasse notas, reflexões, apontamentos e, talvez, até trechos mais tarde inseridos nos Discursos. Sabemos, de fato, que, entre 1516 e 1517, trabalhou na obra assiduamente, reordenando e reelaborando a fundo as partes que a compõem. Sob o aspecto modesto de um comentário a Tito Lívio, exposto em uma série aparentemente desorganizada de ensaios mais ou menos longos, foi-se articulando uma visão de mundo coerente, que afastava qualquer posição doutrinal derivada de especulações filosóficas ou religiosas. Já se notou que podemos entrever um antecedente desse tipo de composição nos Miscellanea [Vários Escritos], obra de Poliziano publicada em 1489205. Rompendo com a tradicional glosa, até tipograficamente subordinada ao texto, aquela obra inovadora desenvolveu, na forma de um comentário autônomo, uma interpretação histórico-filológica capaz de esclarecer questões de caráter geral. Provavelmente esse é o único precedente possível conhecido da singular criação literária que são os Discursos. Todavia, se, por um lado, até à época de Poliziano, esse tipo de comentário não havia sido aplicado a textos literários, por outro, já havia sido introduzido nas obras de especialistas em leis e médicos, sendo lícito supor que, ao escrever, Maquiavel tivesse presente algumas das publicações jurídicas que tinham passado pelas mãos de seu pai. Com efeito, no proêmio do primeiro livro dos Discursos, ele evoca precisamente as “sentenças dadas pelos antigos jurisconsultos”, como também as “experiências feitas pelos antigos médicos”, convencido de que se deveriam seguir procedimentos semelhantes na vida política, quando se tem um “verdadeiro conhecimento da história”206. Dos Miscellanea, de Poliziano, parece fácil passar aos Adágios de Erasmo, com sua variada temática filológica,

mas também histórica e moral. Mais distante dessas obras, aparecem os Discursos, de Maquiavel, que partem de um terreno cultural diferente, e que, provavelmente, não tiraram do que existia anteriormente – qualquer que fosse o meio de transmissão – mais do que algumas sugestões formais. Com tais obras tão diferentes, é de se perguntar, então, se o que assistimos não era o nascimento de um gênero literário com novos meios expressivos, mais idôneos para refletir sobre as coisas do mundo naquele momento de crise, de distanciamento e de ruptura a cargo do novo conhecimento relacionado às formas acabadas e sistemáticas do pensamento tradicional. Assim, a escrita propositalmente fragmentada dos Discursos pode ser comparada à dos ensaios de Montaigne e de Francis Bacon. Abrindo novos horizontes e ampliando a reflexão sobre os maiores problemas da existência humana, os pesados tratados e as summae metódicas pareciam instrumentos inadequados, já em desuso. Os breves ensaios se apresentavam como um teclado enciclopédico que permitia discutir suavemente novos conceitos interpretativos. Fala-se despreocupadamente de fragmentação e incompletude: é muito mais apropriado lembrar como Italo Calvino enfrentou a categoria da “multiplicidade”, em suas Lezioni Americane: Diferentemente da literatura medieval, que tendia para obras que expressavam a integração do saber humano, em uma ordem e de uma forma de estável compacidade, como na Divina Comédia, para onde convergem uma multiforme riqueza linguística e a aplicação de um pensamento sistemático e unitário, os livros modernos que mais amamos nascem da confluência e do enfrentamento de uma multiplicidade de métodos interpretativos, de formas de pensar, de estilos de expressão.207

Nos Discursos, propõe-se reiteradamente a relação entre natureza e sociedade. Entre esses dois princípios aparece como mediadora a história, que, por diferentes formas de agir do homem, revela as potencialidades, os condicionamentos, a circunstância oportuna dos tempos. Embora convencido da imutabilidade das leis que governam

a natureza e os homens, Maquiavel vislumbrava, sob a tempestuosa sucessão de acontecimentos, grandes fases históricas: os fenômenos que, no curso dos milênios, levam à variação das religiões, as catástrofes capazes de destruir quase completamente o “corpo misto da raça humana” e até suas lembranças (II, 5), ou “o círculo no qual, ao girar, todas as repúblicas são governadas e se governam” (I, 2). Se, por um lado, para os grandes desastres naturais podem ser lembrados os versos de Lucrécio que evocam cataclismos, em razão dos quais populações inteiras foram aniquiladas sob o ardor do fogo ou a fúria das águas (V, 338-342), Políbio, por outro, oferece uma visão da história universal com a teoria dos ciclos, que se desdobram por um encadeamento natural dos acontecimentos, ao qual é estranha qualquer concepção escatológica. É de se notar como o risco de um determinismo que a sucessão das diversas formas de governo poderia comportar é superado pela correção que Maquiavel introduz no fatal retorno ao início do ciclo pela possibilidade de alterações devidas à intervenção de fatores históricos. Justamente para permitir a intervenção da vontade humana no curso dos acontecimentos, o político, o legislador, o fundador de repúblicas, ou – no caso excepcional de Roma – a “prudência” e a “virtude” daquele povo, devem ser capazes de aproveitar as tensões naturais e os mecanismos dinâmicos da sociedade. Há desordens e desequilíbrios internos que deixam um espaço para a atuação consciente dos homens quando sabem aproveitar as ocasiões oferecidas pela natureza e pela sucessão de diferentes acontecimentos. Partindo do pressuposto de que os homens tendem a “usar a maldade de seu ânimo, cada vez que encontrem livre ocasião para tanto” (I, 3), e sabendo que “a natureza criou os homens de modo a poderem desejar tudo, mas sem poder conseguir tudo” (I 37), é possível submeter essa necessidade natural pelas instituições políticas e leis voltadas ao bem comum. São tais contradições internas que fizeram com que se falasse de

Roma como de uma “república tumultuária”, quando não se entendeu que justamente aquelas lutas e desordens foram as bases sobre as quais se desenvolveram leis e instituições em benefício do bem público, e que aqueles tumultos “foram a primeira razão para manter Roma livre”208. A Roma de Maquiavel, portanto, não é o modelo estático de uma época, por assim dizer, tomada em bloco, fora do curso do tempo, mas cresce, se expande, civil e territorialmente, até a inexorável degeneração das lutas civis nos tempos de Mário e Sula. De igual modo, os acontecimentos dos homens de seu tempo são vistos, sim, segundo o princípio da repetitividade do passado, mas como passíveis de profundas transformações, conforme as circunstâncias e as ações empreendidas. A história “magistra vitae” [“mestra da vida”] é, em suma, história como um fazer, como transformação e, em última análise, como aperfeiçoamento das coisas humanas. Entretanto, deve-se realçar que não devemos buscar em Maquiavel algo análogo à ideia iluminista de progresso: se, na sua maneira de enxergar a história, exclui-se qualquer providencialismo, também lhe é estranha qualquer concepção teleológica. Nos Discursos, recorre mais de uma vez à palavra “civilidade”, e ali encontramos traçado um quadro das origens da sociedade humana, em que está implícita a ideia de desenvolvimento e de crescimento civil: os homens, “no princípio do mundo”, viveram “à semelhança dos animais”, e somente com o tempo, crescendo em número e reunindose em comunidades, chegaram “ao conhecimento das coisas honestas e boas, distintas das perniciosas e más”, e, portanto, ao “conhecimento da justiça”209. Em consequência, organizaram-se escolhendo um chefe: primeiro, o mais forte; depois, o mais sábio e mais justo, e a vida política tornou-se uma vida civil. Mas esse processo não é irreversível. Não somente porque a história humana se move por uma sucessão de fases que, ao final do ciclo, podem reconduzir a situações anteriormente existentes, mas porque ocorrem eventos que

podem provocar regressões. Assim, o exemplo dos samnitas mostra como um povo, com a perda da liberdade, pode decair a ponto de, depois de ser capaz de se opor aos romanos por anos e anos, derrotando exércitos consulares inteiros, ao fim “não podiam sequer defender-se de uma pequena legião romana que estava em Nola”210. Isso acontece quando, juntamente com o povo, o país todo está em ruínas, e “onde havia tantas cidades e tantos homens” não resta senão um território “quase desabitado”211. Por isso, ao lado da contraposição entre civil e incivil, afirma-se a relação entre civilidade e liberdade, exaltada em termos – podemos dizer – absolutos: “Todas as terras e as províncias que vivem livres em qualquer parte [...] alcançam enormes benefícios”. Com efeito, vislumbramos que “os povos maiores, por estarem em alianças mais livres, são mais desejados pelos homens”, porque a liberdade dá segurança e “cada um procria de bom grado os filhos que crê poder alimentar, não tendo dúvidas se o patrimônio lhes será tirado, e sabem não somente que nascem livres e não escravos, mas que podem, por meio de sua virtude, tornarem-se príncipes”. Assim: [...] vê-se as riquezas se multiplicarem em maior número, as que se originam da cultura e as que se originam das artes. Porque cada um, de bom grado, multiplica tais coisas e busca conquistar os bens que, uma vez adquiridos, crê poder desfrutar. De onde vem que os homens competem pensando em vantagens públicas e privadas, e umas e outras vêm a crescer maravilhosamente.

Se a liberdade dá impulso à civilidade, a corrupção – no sentido amplo que Maquiavel dá ao termo, como degeneração não só dos costumes, mas também das instituições e das leis – é a negação da liberdade. “Uma cidade corrompida que vive submetida a um príncipe”, mesmo que viesse a morrer e a dinastia a se extinguir, “jamais se poderia tornar livre” (I, 17). A corrupção é o principal fator de decadência e de regressão. Entre os três termos – liberdade, civilidade, corrupção – o nexo é

apontado quase como um paradoxo: “quem quisesse, no tempo presente, constituir uma república, mais facilidade encontraria entre os montanheses, em meio aos quais não existe qualquer civilidade, do que entre os que estão acostumados a viver nas cidades, onde a civilidade está corrompida”212. Aliás, “nas cidades corrompidas” é quase impossível não apenas criar, mas também “manter uma república”. De fato, “assim como os bons costumes, para serem mantidos, necessitam de leis; assim, as leis, para serem observadas, necessitam de bons costumes” (I, 18). A ditadura pode ser instaurada por razões de saúde pública, mas não para sanar uma situação corrompida, e a figura do “bom tirano” não pode ser excluída, mas é vista com muito ceticismo: E porque o reordenamento de uma cidade ao viver político pressupõe um homem bom, e, pela violência, tornar-se príncipe de uma república pressupõe um homem mau, por isso se dará que raríssimas vezes sucede que alguém bom, por caminhos maus, ainda que o fim seja bom, queira tornar-se um príncipe, e que um mau, feito príncipe, queira agir bem, e que jamais lhe ocorra na alma usar bem aquela autoridade que pelo mal conquistou.213

Na contradição histórica entre liberdade e corrupção, situa-se na base do “viver político” a “igualdade civil” que, violada, leva à degradação e à perversão da vida associada e à destruição da própria civilidade (I, 2). Se não está claramente definido em que consiste tal igualdade entre os cidadãos, sem dúvida se corteja uma república de costumes austeros, pela tradicional interpretação historiográfica que quer o luxo e as “delícias” como causa da decadência e da ruína de Roma. A Alemanha, pelo contrário, é apontada como o país onde ainda subsiste a antiga bondade, onde “muitas repúblicas ali vivem livres, e observam suas leis de tal modo que ninguém de fora nem de dentro ousa ocupálas”214. Um princípio está fixado: “as repúblicas bem ordenadas devem manter rico o que é público e pobres os seus cidadãos”215. No entanto, se a igualdade pode ser assim desejada no âmbito econômico, deve ser assegurada

principalmente no campo político. De fato, mesmo repetindo que “a coisa mais útil que se possa ordenar em uma vida livre é que se mantenham os cidadãos pobres”216, revela-se como em Roma se podia sentir desprezo ou indiferença pela riqueza, enquanto “se ia atrás da virtude em qualquer casa que ela habitasse”. A primeira década de Tito Lívio permitia a Maquiavel seguir – pelas lutas entre patrícios e plebeus, em nome de direitos civis e políticos, ainda mais que por razões econômicas – a formação exemplar de um Estado, com instrumentos e argumentos próprios da política. Para assegurar a simplicidade dos costumes e a moralidade pública, a força determinante é a religião, entendida como sentimento não limitado à fé cristã; pelo contrário, a religião dos antigos era mais idônea do que o cristianismo para educar para as virtudes civis: em Roma, a religião “motivou boa ordem, e boa ordem faz boa fortuna, e da boa fortuna nasceram os felizes sucessos de suas empresas” (Discursos, I, 12). Por outro lado, o cristianismo é considerado como a primeira causa da fraqueza em que se encontravam então os homens, porque “a nossa religião glorificou mais os homens humildes e contemplativos do que os ativos”. Tendo “depositado o bem maior na humildade, na degradação e no desprezo das coisas humanas [...] fez o mundo fraco e o entregou como presa aos homens maus” (II, 2). A religião dos antigos, pelo contrário, depositava o bem maior “na grandeza de espírito, na fortaleza do corpo e em todas as outras coisas capazes de produzir homens muito fortes”217. Ademais, a Igreja, “pelos exemplos dessa corte [romana]”, é culpada de ter feito a “nós, italianos, [...] sem religião e maldosos” (I, 12). Claramente, a religião que Maquiavel vê como fundamento do Estado bem ordenado não é tanto uma doutrina, quanto um sentimento capaz de suscitar solidariedade entre os homens e de criar uma sólida ligação entre eles218. A religião, portanto, não é entendida como um sentimento individual: a sua essência mais profunda consiste na capacidade de refletir um universo de valores e de relações que encontra

uma forma de expressão na vida social. Por isso, a distinção entre política e moral, que seria estabelecida pela lição de Maquiavel, não é vista como um recurso a práticas amorais, mas como a afirmação de uma moral social mais coerente e elevada219. A igualdade e, consequentemente, a vida livre são completamente incompatíveis com a presença de “gentishomens” que, “ociosos, vivem lautamente das rendas de suas posses, sem preocupação alguma de cultivar ou de outra lida necessária para viver”, sobretudo se, “além das já mencionadas fortunas, comandam castelos e têm súditos sob suas ordens”220. Tratam-se de “gerações de homens [...] absolutamente inimigos de qualquer civilidade”, e, nos países que dominam – em particular no “reino de Nápoles, em terras de Roma, Romanha e Lombardia” – “a matéria corrompida é tanta que as leis não conseguem detê-la”. Civilidade e liberdade são termos complementares, ao mesmo tempo que se contrapõem à corrupção da vida política. Tanto é que, para reformar uma cidade afetada pela corrupção, “é necessário ordenar [...] maior força, que seja uma mão régia que, com poder absoluto e excessivo, ponha freio às excessivas ambições e corruptelas dos poderosos”. Os ordenamentos são adaptados às situações particulares, e é necessário adequá-las às possibilidades e à variação dos assuntos humanos. É um fundamento da política já enunciado em Ghiribizzi al Soderino: os homens devem saber agir em harmonia com a sua época. Esse princípio aponta também a superioridade da república sobre a monarquia. “Uma república tem vida mais longa e mais duradoura boa fortuna do que um principado, porque pode acomodar-se melhor à diversidade de tormentas pela variedade de cidadãos que nela estão”221. Nos Discursos, todavia, não é expresso um juízo preferencial absoluto sobre o melhor regime político, senão a afirmação da superioridade de um governo livre sobre um tirânico: até o fato de não indicar modelos abstratos é uma maneira de “ir atrás da verdade efetiva dos fatos”. A

república pode ter existência mais longa, mas, onde existir a corrupção na vida política, a monarquia é a única saída. É o que se mostra em O Príncipe, em um momento que poderia parecer favorável a uma solução rápida e resoluta dos problemas italianos. Nos Discursos, pelo modelo romano, propõe-se um objetivo mais remoto e mais árduo: a “vida livre”, o “estado popular”. Não é, no entanto, um remédio imediato, e o relato de Tito Lívio, que se desenrola por um largo arco temporal, pode, dessa forma, oferecer um exemplo imitável. Se tais reflexões puderam desenvolver-se em diferentes épocas, desde quando Maquiavel tivera a possibilidade de começar a ler as Décadas, de Tito Lívio, em um volume de propriedade de seu pai, os encontros nos Orti Oricellari foram dando frutos particularmente estimulantes, até porque aconteciam perante jovens que, mais adiante, poderiam ter uma relação melhor com a fortuna. Depois que dois Estados-chave na península, o ducado de Milão e o reino de Nápoles, tornaram-se posse um da França, outro da Espanha, não havia mais que esperar que “fosse possível, com a virtude itálica, defender-se dos estrangeiros”, como havia dito no capítulo XXVI de O Príncipe. Um certo equilíbrio parecia ter-se estabelecido entre os soberanos que há pouco governavam as duas maiores monarquias da Europa, o vintenário Francisco I e Carlos de Habsburgo, de apenas 16 anos; além disso, depois que Maximiliano da Áustria se retirou da parte continental de Veneza, as perspectivas de paz na Itália pareciam maiores. Em suma, a animada exortação final de O Príncipe não se coaduna com a situação posterior aos encontros de Maquiavel nos Orti Oricellari. A crise italiana continuava ainda mais grave, visto que profundamente enraizada na vida do país, mas, se, em 1515, antes da batalha de Marignano, vencida por Francisco I em meados de setembro, O Príncipe ainda podia ser dedicado ao jovem Lourenço, já havia passado o tempo em que a ilusão de um descendente da casa dos Médici fosse capaz de resolver a situação complicada: não se podia mais

confiar na “virtude” e na “fortuna” de uma personalidade fora do comum. Era necessário pensar em uma organização de maior fôlego, o processo de formação de um povo transformando-se em Estado. Por isso, atribui-se à obra de Maquiavel uma função pedagógica, não muito diferente daquela que, com outro sentido, Erasmo redigiu em 1516: a Institutio principis christiani [A formação do príncipe cristão]. Com efeito, podemos ler os Discursos como uma institutio populi [formação do povo], sob a ótica de uma proposta de formação de um novo protagonista, pela primeira vez elevado ao palco da reflexão política, trazendo a força da experiência dos romanos que haviam sido “povo”, no verdadeiro significado do termo, inclusive no sentido institucional. Muitas vezes aconteceu de se achar o modelo invocado por Maquiavel oposto ao assim chamado realismo de Guicciardini, que, em Ricordo [Recordação], 110, escreveu: “Quanto estão enganados aqueles que a cada palavra fazem referência aos romanos!”. Mas, seguindo a leitura um pouco mais adiante, notamos que sua observação é ditada pela consciência da desproporção: seria como “querer que um asno corresse como um cavalo”. Ora, é certo que Maquiavel sabia que entre os italianos do seu tempo e os antigos romanos havia uma diferença abismal. A leitura das histórias antigas tem para ele também a função de o ajudar a entender, contrastivamente, os males do presente. Maquiavel não era, todavia, um observador frio: escrevia para esclarecer as desventuras presentes, mas também para analisar possíveis soluções. Aliás, o mesmo círculo de jovens amigos que o havia incentivado a escrever os Discursos era movido pelo desejo de conhecer para encontrar a força e a capacidade de agir. Não raro a obra de Maquiavel foi objeto de críticas que distorceram seu significado. Em particular provocou grandes equívocos a continuidade que se pretendeu estabelecer entre o seu pensamento e o dos teóricos da razão de

Estado, colocando no mesmo plano duas maneiras completamente opostas de se fazer política. Se, em vez de considerarmos essa teoria de modo absoluto, para indicar sua “essência”222, confrontássemos os textos constitutivos dessa reação original do catolicismo à “verdadeira pedra no sapato da Igreja da Contrarreforma” representada pelo pensamento de Maquiavel223, entenderíamos a profunda diferença entre ambas. Antes de tudo, um dos maiores expoentes daquela teoria, Giovanni Botero, tomava como fundamento o princípio da “conservação do Estado”224. Maquiavel, longe de aceitar e de defender o que existe, partia de uma crítica radical das condições em que se encontrava a Itália e propunha uma profunda transformação: seria possível falar em uma subversão “da ordem e da lei” vigentes. Quanto às relações entre política e religião, Botero sujeitava qualquer “deliberação no conselho de Estado” ao parecer preventivo dos “doutores em teologia e em direito canônico”; ao mesmo tempo, requeria a condenação “daqueles que introduzirem novidades nas coisas divinas”, não apenas pelos bons serviços à verdadeira fé, “mas porque os que alteram a religião estimulam muitos a alterarem as coisas, do que se originam conspirações, sedições e conciliábulos”. Em suma, desejavase criar uma estreita relação entre a ação conservadora do príncipe e o trabalho de repressão da Igreja egressa do Concílio de Trento. É uma visão que, no plano ideal, reúne os políticos da Contrarreforma aos teóricos contrarrevolucionários da época da Restauração. Parece realmente curioso colocar o ímpio Maquiavel em semelhante companhia! A doutrina da razão de Estado teria mostrado quais serviços a religião poderia prestar ao poder, reduzindo assim a fé à sua “serva”, precisamente porque não poderia aceitar a moral laica de Maquiavel. Recentemente, um estudioso observou: “Maquiavel traçou uma religião da virtude, capaz de corrigir a má educação religiosa da Igreja católica [...]. Quis substituir uma religião que predicava a

docilidade e tornava os homens fracos por uma religião que ensinaria o amor à liberdade e à virtude [...]. Aspirava a uma religião que dissesse aos homens que seu primeiro dever em relação a Deus, e única salvação, é serem cidadãos fortes”225. Bem diferente das teorias da razão de Estado, a dos Discursos era uma grande lição de liberdade: ia bem além da libertas tradicional, e não era, certamente, indicada para ser espalhada na Florença dominada pelo jovem rebento da família Médici, destinatário da dedicatória de O Príncipe, de quem se dizia preferir receber como presente um casal de cães “ao opúsculo”226. Talvez Maquiavel estivesse ciente disso quando, terminada – ou quase terminada – a obra, resguardou-se muito bem de publicá-la, dando-a a conhecer somente a amigos de confiança, como Francesco Guicciardini.

6. A arte da guerra Preferiu publicar outro trabalho, igualmente gestado nos ambientes da casa Rucellai: A arte da guerra. A obra, escrita entre 1517 e 1520, dedicada à memória do jovem amigo Cosimo, morto em 1519, tem como ponto de partida a visita que o condottiere Fabrizio Colonna lhe havia feito em setembro de 1516, e se desenvolve em forma de diálogo entre este e alguns frequentadores dos Orti Oricellari. A invasão da Itália por Carlos VIII havia revelado a debilidade militar dos Estados italianos frente a um exército como o francês, superior em organização, em armamento, em tática e técnica militar. Temos vários testemunhos disso a partir de escritores da época, mas a originalidade de Maquiavel consiste em esclarecer a estreita ligação entre tais questões e a vida política em geral. Na sua concepção, os Estados são organismos a serem estudados como se fossem o corpo humano, a fim de entender seu desenvolvimento e

crescimento, como também sua corrupção e seu declínio; a guerra é, assim, a maneira pela qual os Estados se afirmam e manifestam sua vitalidade. Em O Príncipe e nos Discursos, o problema das armas é enfrentado como elemento complementar dos tratados políticos; mas, como tema principal, a base necessária para compreender a necessidade de uma organização militar é a política. Esse princípio é afirmado de modo polêmico desde as primeiras linhas do proêmio, contestando aquela tida como a opinião de muitos: “que não existe nenhuma coisa menos compatível a outra, nem tão desigual, quanto a vida civil à militar”227. Nesse sentido, A arte da guerra completa a trilogia das grandes obras políticas, examinando sob um ângulo particular as graves falhas dos Estados italianos como um todo. Se essa obra, única entre os seus escritos (à parte os especificamente literários), foi publicada em 1521 pelo autor, foi provavelmente porque ela desenvolvia um argumento mais veladamente político, e, portanto, mais facilmente aceito pelos Médici e pelos governantes florentinos do momento, e também pela reconhecida competência do autor nessa matéria. Isso é comprovado pela carta que, um mês após a publicação, o cardeal Giovanni Salviati, sobrinho do papa, lhe enviou: Vi com interesse vosso livro que, quanto mais considero, mais me apraz, parecendo-me que ao perfeito modo de guerrear antigo acrescentou tudo o que há de bom no guerrear moderno, e concebeu uma composição de exército invencível.228

Com efeito, Maquiavel havia ganhado a fama de especialista em assuntos militares, e quando, na Florença dos Médici, pensou-se em restabelecer a Ordenança, achouse oportuno consultá-lo, e, mesmo após alguns anos da publicação, ainda lhe seria confiado um outro gabinete de governo, qual seja, o de chanceler da magistratura, que supervisionava a defesa de Florença. Em seguida, e por longo período, gozou de tal fama entre os teóricos, como

também entre os capitães. Na França das guerras religiosas, François de La Noue e, mais tarde, Henri de Rohan, o defensor de La Rochelle, o admirariam como teórico militar, não obstante a má reputação do secretário florentino, o qual era acusado de ser o oculto inspirador da noite de São Bartolomeu. Foi justamente essa reputação no campo militar entre seus contemporâneos que tornou possível não se considerar tanto as críticas seguidamente realizadas a A arte da guerra envolvendo questões técnicas. Assim, a propósito da renovada polêmica contra as armas mercenárias, observouse que inclusive outras monarquias da época recorriam a elas, a começar pela França; deve-se lembrar, porém, que, na Itália, os condottieri gozavam de uma liberdade de ação desconhecida em qualquer outro lugar. Mesmo o que se considerou uma subvalorização da artilharia deveria ser pensado considerando-se as especiais condições dos primeiríssimos decênios do século XVI, em que o uso e a própria fabricação de armas pesadas estavam em um momento difícil de transição, e o desenvolvimento de tal instrumento bélico não viria a acontecer antes da década de 1530. Nos sete livros que compõem A arte da guerra, o motivo central é dado pela necessidade de “devolver-lhe alguma forma da virtude passada”229. As questões são eminentemente técnicas: do recrutamento de soldados para o armamento da infantaria e da cavalaria, do ordenamento do exército em batalha, dos alojamentos, da disciplina, das fortificações. Mas o problema político aparece constantemente, e está na base do discurso de Fabrizio Colonna: desde os primeiros comentários, ele afirma que “uma cidade bem ordenada deve querer que o estudo da guerra se dê nos tempos de paz por exercício, e, nos tempos de guerra, por necessidade e glória; e o público só deve praticá-la por ofício”230. Em conclusão, afirma que “não basta na Itália saber governar um exército pronto, mas, primeiro, é necessário saber criá-lo, e, depois, saber

comandá-lo”. Os exércitos mercenários que ali se encontram são indisciplinados, intolerantes às fadigas, insolentes e viciosos. Os italianos, “por não terem tido príncipes sábios, não assumiram nenhuma boa ordem [...] de modo que continuam a vergonha do mundo”231. Encontramos, assim, a bem conhecida reprimenda aos potentados italianos, nos anos que antecederam as guerras da Itália: Nossos príncipes italianos, antes de terem provado os golpes das guerras ultramontanas, acreditavam que em seu escritório bastava a um príncipe saber pensar uma resposta aguçada, escrever uma bonita carta, mostrar, em ditos e palavras, argúcia e presteza, e saber como tramar uma farsa.

Viviam no luxo e na dissolução, tratavam com arrogância os seus súditos e concediam favores a servis cortesãos, mesmo quando se tratava de escolher capitães para seus exércitos: Nem perceberam os mesquinhos que se preparavam para serem presa de qualquer um que os assaltasse. Daí nasceram, depois, em 1494, os grandes temores, as fugas inesperadas e as perdas milagrosas [...]. Mas o que é pior, é que aqueles que restam estão no mesmo erro, e vivem na mesma desordem.

Apesar de tudo, alguma centelha de esperança cintila nas palavras finais do condottiere: “Qualquer um, entre aqueles que hoje tiverem um Estado na Itália, seguirá esse caminho [de reforma militar e política], e se converterá, antes de qualquer outro, em senhor desta província”. Será como Felipe da Macedônia, que organizou um exército capaz de submeter toda a Grécia, deixando depois a seu filho “fundamentos tais que poderia fazer-se príncipe de todo o mundo”232. Da mesma análise feita no diálogo emerge a contradição dramática entre a possibilidade de organizar “milícias próprias” e a impossibilidade de implantar tal força militar sem uma profunda transformação dos arranjos políticos italianos. Por isso, Fabrizio Colonna se abre com

seus jovens ouvintes, que, em tempos mais felizes, poderiam vislumbrar uma situação mais favorável para reformas tão profundas. “Pelo que não quero que se alarmem ou desconfiem, porque esta província parece nascida para ressuscitar as coisas mortas, como se viu na poesia, na pintura e na escultura”. A esperança que havia animado a última página de O Príncipe está ainda viva anos depois, animada – nesse amigo de Ariosto, Leonardo e Michelangelo – pela confiança nas obras do espírito italiano.

III. “Nicolau Maquiavel, historiador, comediógrafo e tragediógrafo” 1. Uma nova fase na vida de Maquiavel Nas cartas de 1517 ao sobrinho Giovanni Vernacci, comerciante em Pera, subúrbio de Istambul onde viviam europeus, Maquiavel recordava as adversidades e os “infinitos martírios” dos últimos anos, usando palavras de profundo desânimo, chegando a escrever: “Tornei-me inútil para mim mesmo, para minha família e para meus amigos, porque assim quis minha dolorosa sorte”233. Já no ano seguinte, porém, entreveem-se novas possibilidades: uma atmosfera menos hostil se vai criando ao seu redor, em Florença, e, pela primeira vez depois de sua expulsão do Palácio, recebeu de um grupo mercantil a missão de ir a Gênova para tentar recuperar ao menos parte do dinheiro devido por um falido comerciante de lãs. Não é exatamente uma missão de prestígio, ainda que o próprio governador genovês, Ottaviano Fregoso, seja um dos interessados, no entanto, como se escreveu, “para ganhar alguns florins, mas sobretudo para se movimentar, ‘para parecer vivo’, o antigo secretário voltou a cavalgar”234. Um sinal de que as coisas melhoraram parece ser o fato de que, interrompida a composição de O asno, escreveu para o carnaval de 1518 aquela que é considerada a sua obra-prima teatral, e, sem dúvida, uma das maiores criações cômicas da literatura italiana, A mandrágora235. Sua inclinação para essas formas de expressão parece remontar aos tempos de juventude, quando se dedicou a copiar, junto com De rerum natura [Sobre a natureza], de Lucrécio, também Eunuchus [O eunuco], de Terêncio, já considerada pelos antigos a obra mais bem-sucedida do comediógrafo latino. Depois, nos anos de secretaria, sabemos, pelo neto Giuliano de Ricci, que, encorajado pelo chanceler Marcello

Virgilio, havia escrito uma comédia “imitando As nuvens e outras comédias de Aristófanes”, intitulada Le Maschere [As máscaras], mais tarde perdida236. A relação entre “coisas grandes” e “coisas fúteis” que, segundo o próprio Maquiavel, caracterizava a sua correspondência com Vettori237, entrelaçava-se igualmente em toda a sua multiforme atividade literária, e, aliás, um crítico insigne notou a afinidade estilística, por expressões, termos, formas sintáticas e semânticas entre as que chamamos as “obras maiores” e os escritos jocosos ou as cartas trocistas238. O primeiro trabalho teatral que nos chegou é a tradução de outra comédia de Terêncio, Andria [A moça de Andros], e chegou em duas versões: uma de 1517, produzida de maneira mais apressada, talvez composta para responder aos pedidos para que fosse encenada; e outra de 1520, revisada e notavelmente modificada. Se esse trabalho era desprovido de originalidade na escolha linguística e em alguns ajustes cênicos, o ponto mais alto do gênio cômico de Maquiavel se encontra em A mandrágora, que mostra como o teatro lhe era uma forma de arte congenial. A comédia está impregnada de significado moral e acentuadamente político pela representação de uma humanidade simuladora, em que o engano é o próprio motor da ação. Nos Discursos (I, 30) havia afirmado que “os homens não sabem ser nem completamente maus nem completamente bons”, e precisamente essa ambiguidade envolve os personagens da comédia, projetando sobre eles, em intervalos mais ou menos longos, rajadas de uma luz sinistra. De fato, até aquele que deveria ser o herói positivo, Calímaco, para ser bem-sucedido em seu intento de conquistar o amor da bela mulher do Messer Nícia – de quem ouvira falar quando ainda vivia em Paris –, fica nas mãos de um velhaco como Ligúrio, e, num momento de desespero, declara-se disposto a “tomar algum partido bestial, cruel, nefando” (I, III). Mas, no fundo, essa mesma mandrágora, a raiz milagrosa que dá título à comédia, tem uma virtude ambígua: favorece a fertilidade da mulher, mas

também é mortal para o primeiro homem que se deitar com ela239. Assim, ao menos, é o que quer uma difundida crença referida por Calímaco, apresentado como um grande médico de Paris pelo patife Ligúrio a Nícia, ansioso por ter um filho com sua mulher, Lucrécia. Nícia é convencido a administrar a poção, e, para evitar o risco de tornar-se vítima, fará “com que durma imediatamente com ela outra pessoa que, estando junto a ela uma noite, atraia para si todo o veneno da mandrágora” (II, VI). Sequer frei Timóteo, apesar de disposto a servir de mediador, por seu cinismo e sua venalidade, parece “um completo malvado”: embora seja ele a fazer com que Lucrécia se deite com outro, antes de com seu marido, seus argumentos, recheados de sofismas casuísticos (III, XI), se inspiram – como já se observou – em um conhecido comentário a textos de direito canônico240. Enfim, Messer Nícia, que, em sua credulidade, está disposto a desfilar aos gritos de “São Cuco”, depois que lhe explicam tratar-se do “mais reverenciado santo que há na França” (IV, IX), não pensa duas vezes antes de levar à morte “o primeiro rapazola” que topar pelo caminho, e que ele próprio providenciará tudo para que tal se deite com sua mulher, chegando a se certificar, pelo “toque das mãos”, de que os dois estejam em conjunção. Assim, ele é enganado porque está pronto a enganar até às últimas consequências. A trama que envolve toda a comédia é densamente tecida de ardis e se revolve na noite de amor entre os dois protagonistas; ao final, diante da “astúcia” de Calímaco, da “burrice” de seu marido, da “simplicidade” de sua mãe e da “maldade” de seu confessor, Lucrécia aceita de bom grado algo que lhe parece o fruto de “uma vontade dos céus, que assim o desejaram” (V, IV). Por isso, solenemente, profere uma declaração que a une para toda a vida a seu amante. Dessa forma, o desenvolvimento final chega a superar a ironia amarga da burla, que é a razão de existir de A mandrágora. Com efeito, essas tensões e o lado obscuro de algum personagem induziram a questionar se, mais além da brincadeira, a comédia também não embutia o trágico. O

riso de Maquiavel, que é tudo menos irresponsável, tende a jogar luz sobre a miséria humana. Apenas o amor tem a força de tornar “doce [...] qualquer gosto amargo”, e a conclusão tem o valor de uma catarse: o amor entre Calímaco e Lucrécia é também eivado de culpa, mas a sua força o torna superior. Sua potência, celebrada também em outros versos apaixonados, acaba triunfando, e, na canção do final do terceiro ato, louvam-se as vitórias do amor: “Vence, só com seus santos conselhos,/ pedras, venenos, encantamentos”. No Prólogo, o autor admite que talvez “esta matéria não seja digna/ [...] de um homem que quer parecer sábio e sério”, mas se desculpa explicando “que se esforça/ com esses pensamentos vãos/ para tornar mais suave seu triste tempo”. Por outro lado, “foi-lhe proibido/ mostrar com outras empresas outra virtude”. Quase como uma nova provação, enquanto a dedicatória de O Príncipe não havia surtido qualquer efeito positivo, a encenação de A mandrágora suscitou o interesse do papa Leão X, que quis que a peça fosse representada em Roma241. Somente então, finalmente, acabou o ostracismo imposto a ele pelos Médici, colocando um ponto final em sua longa e sofrida quarentena. Talvez esse descerrar de horizontes lhe infundisse também a inspiração de colocar por escrito a única narrativa sua que chegou até nós242. Que ele possuía o talento dos narradores, é de conhecimento de qualquer um que conheça suas cartas, em que a aventura erótica veronense, relatada a Luigi Guicciardini em 8 de dezembro de 1509, ou então a brincadeira pesada que Giuliano Brancacci fez com um amigo, relatada a Vettori em 25 de fevereiro de 1514, seguem o ritmo dos relatos libertinos. Não foi à toa que um famoso narrador amigo seu, Matteo Bandello, elogiará Maquiavel por seus dotes de narrador e pelo espírito com que sabia entreter prazerosamente os amigos243. A narrativa intitulada Favola [Fábula], algumas vezes chamada Novella del demonio che pigliò moglie [Relato do demônio que tomou esposa], outras Belfagor

arcidiavolo [Belfagor arquidiabo], desenvolve um tema misógino, provavelmente bem antigo, de origem oriental, mas que foi retomado em latim na Idade Média e difundido em francês no fim do século XV por Jehan Le Febvre, nas Lamentations de Mathéolus. É possível que Maquiavel o tivesse conhecido durante uma de suas viagens à França. Com certeza pode-se observar que, justamente nessas obras, em geral consideradas cômicas, Maquiavel retrata a humanidade em seus aspectos mais infelizes e mesquinhos, ou seja, dramáticos. O que leva a pensar no oitavo canto de L’Asino, em que, nos últimos versos escritos antes de interromper a composição, havia mostrado, pelas palavras do “leitão gordo”, que se recusa a abandonar a sua condição animalesca, a infelicidade e a crueldade dos homens: Um porco não provoca dor em outro porco, Nem um cervo a outro: somente o homem a outro homem mata, crucifica, espolia.244

A Favola narra as desventuras de um arquidiabo, enviado por Plutão à Terra para entender a razão pela qual “todas, ou a maior parte [das almas que iam para o inferno], não se lamentavam senão por se ter casado, por se ter deixado arrastar por tanta infelicidade”245. Belfagor tem de assumir, portanto, o aspecto de um nobre cavaleiro, atendendo pelo nome de Rodrigo de Castela, e se casar, começando a sua aventura terrena em Florença, escolhida “como a que lhe parecia mais apta a suportar quem, com artes usurárias, especulasse com seu dinheiro”. Talvez o pecado da usura, assim difundido naquela cidade, permitisse observar outras causas de perdição: os conflitos sociais e as tensões econômicas podiam provocar outras quedas no pecado e diminuir os riscos para quem se casava. O cálculo se revela, contudo, equivocado: com suas próprias pretensões, a esposa escolhida e sua família conseguem dilapidar o patrimônio de que dispõe Belfagor, que deve fugir, perseguido pelos credores. A vis comica da Favola nasce

justamente da inversão de valores: o inferno parece preferível à vida terrena; a mulher, dona Honesta, é capaz de provocar até a perdição do diabo; o camponês que salva Belfagor em sua fuga “sabia mais do que o diabo”, conseguindo, por fim, enganá-lo. Foi assim que Belfagor, por temer ser encontrado pela mulher, se jogou no inferno e “deu fé dos males que a mulher levava a uma casa”. O que é possível concluir é que não poderia haver nenhuma referência autobiográfica nessas considerações: pelo que se sabe, a mulher de Maquiavel, Marietta Corsini, era uma mulher paciente e afetuosa, que havia criado seis filhos e tolerava as frequentes aventuras do marido. No máximo, pedia-lhe de presente “uma peça de tecido curtido”246.

1. Retorno aos negócios Entretanto, a posição de Maquiavel melhorava. Depois da morte do jovem Lourenço de Médici, em maio de 1519, o cardeal Júlio de Médici, que havia auxiliado Florença a manter o governo sob controle, parece ter a intenção de restaurar em parte as instituições republicanas. Com tal objetivo consultava várias pessoas, e, entre elas, Maquiavel. Para isso, havia obtido uma permissão do papa, como se sabe por uma carta que um dos frequentadores da casa Rucellai, Battista della Palla, então em Roma, enviou a Maquiavel: Falei do vosso caso especialmente ao papa [escreve-lhe em 26 de abril de 1520], e, em verdade, ao que parece, eu o achei muito bem disposto em sua relação [...]. Assumi a responsabilidade de dizer ao cardeal Médici, da parte de Sua Santidade, quando ali estiver, que lhe seria muito grato que a boa vontade que Sua Excelência Revma tem de agradá-lo seja efetivada.247

Na realidade, desde 10 de março, o cardeal queria encontrar Maquiavel, que lhe havia sido apresentado por Lorenzo Strozzi, a quem, por gratidão, seria dedicada A arte

da guerra. “A boa vontade de Sua Excelência Revma” se manifestaria em duas missões importantes: uma foi o pedido de um parecer sobre a possibilidade de reformar o Estado florentino; a outra, o encargo de redigir a história de Florença. O escrito sobre a reforma de Florença lhe foi encomendado no contexto de consultas que o cardeal promoveu nos ambientes florentinos, depois de desaparecidos todos os descendentes diretos de Cosme de Médici capazes de exercer o governo. Existiam, na verdade, dois filhos naturais: um atribuído a Juliano, o futuro cardeal Hipólito, e outro atribuído a Lourenço, o futuro duque Alexandre; na realidade, parece que os dois são filhos do cardeal Júlio, futuro papa Clemente VII, mas ambos ainda eram crianças. Nesse momento, para o governo de Florença, não eram levados em consideração os membros do ramo secundário, que teriam um representante apto no condottiere que ficou conhecido como João das Bandas Negras248, e que somente em 1537, com Cosme, seu filho, teria a hereditariedade da família. Assim, para dar seguimento ao pedido do cardeal, entre o final de 1520 e o início de 1521, Maquiavel redigiria o Discursus florentinarum rerum post mortem iunioris Laurentii Medicis [Discurso dos assuntos florentinos após a morte de Lourenço de Médici, o jovem], um escrito breve, dirigido a Leão X, que reconhecia a elaboração ideal dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Muito embora tenha começado a se relacionar com a família dominante havia pouco tempo, Maquiavel não hesitava em expressar, desde o princípio, um juízo bem pouco lisonjeiro sobre o “sistema” dos Médici. As contínuas mudanças de governo de Florença seriam causadas pelo fato de que “nela jamais existiu nem república nem principado que tenham tido suas devidas qualidades”. Mas, em 1382, depois da repressão à revolta dos Ciompi, com “a república dos Albizzi” e sob a hegemonia dessa família, Florença começou a ser governada pelos ottimati e assim foi

por cerca de quarenta anos, “e teria durado menos se não tivessem vindo as guerras dos Visconti, as quais a mantiveram unida”. Mas também “o Estado de Cosme” que se seguiu – mesmo gozando, diferentemente do anterior, da vantagem de “ser formado com o favor do povo” e de “ser governado pela prudência de dois homens, quais sejam Cosme e Lourenço, seu neto” – deu a si próprio instituições tão pouco estáveis que constantemente foi necessário recorrer a medidas extraordinárias e, “com o acidente da chegada do rei Carlos, se perdeu”. Não podemos esperar encontrar, em um texto a ser submetido aos Médici, um juízo positivo sobre a república de Soderini, mas, de todo modo, deve-se notar que a crítica àquele regime está centrada, por sua vez, no fato de que também ele esteve “distante de uma verdadeira república”, por causa do caráter ambíguo do cargo do gonfaloneiro vitalício. Este, se fosse “sábio e mau”, poderia fazer-se príncipe, e, se “bom e frágil, poderia facilmente ter sido expulso”. Pela primeira vez Maquiavel fez uma avaliação tão sincera, não sobre Pier Soderini, mas sobre o governo perpétuo do gonfaloneiro, ainda que em algumas passagens dos Discursos possamos entrever certas reservas à magistratura que, sendo vitalícia, não se podia adaptar à mudança dos tempos (III, 9). Aliás, esse cargo era o propósito dos ottimati, desejosos de instaurar uma república semelhante à veneziana, e, desde o início do Discursus, a prepotência deles é apontada como uma das causas da instabilidade florentina. As várias reformas introduzidas no governo de Florença sempre estiveram condicionadas a interesses particulares, e jamais se concebeu um projeto capaz de elevar-se acima das facções e de ser útil a todos os cidadãos. A razão pela qual todos esses governos foram defeituosos é que as reformas que se fizeram o foram não para satisfazer o bem comum, mas para corroborar a segurança dos partidos.249

Talvez a excepcionalidade do momento possa finalmente oferecer a ocasião para instaurar uma verdadeira república. A “opinião de muitos”, que queriam restaurar o governo fundado por Cosme, ou seja, uma forma mascarada de signoria, foi combatida com determinação. “Um Estado assim formado é perigoso” porque é frágil, declarava sem cerimônia250. No tempo de Cosme, poderia manter-se, embora com dificuldade, porque a situação interna era diferente: então aquele governo “tinha todos como amigos”, agora “todos” são seus “inimigos”. Não sem atrevimento, Maquiavel afirma que, depois da experiência da República de Soderini, os florentinos não tolerariam um governo menos livre: “Aqueles cidadãos jamais tiveram em Florença um Estado que parecesse mais universal do que aquele, e encontraram um que lhes parece mais civilizado e com o qual ficam mais contentes”. Além disso, a situação italiana mudou profundamente: no tempo de Cosme, os florentinos eram capazes de se defender dos inimigos, porque só podiam estar entre os outros Estados da península; agora, “apresentando-se Espanha e França”, é preciso tratar também com aquelas duas potências, e é impensável uma liberdade completa de ação. O “quondam secretário” estava bem ciente de quais eram as ligações entre política externa e política interna, e isso precisava ser levado em consideração ao dar forma ao novo Estado. Depois – acrescentava –, perdeu-se o costume de se impor os pesados “ônus” que um Estado como o de Cosme teria imposto: a administração de Soderini havia sanado as finanças florentinas, enquanto a restauração dos Médici havia rapidamente colocado o erário em dificuldades. Além disso, Cosme se comportava com muita “familiaridade” em sua época: agora, os Médici “tornaram-se algo tão grande que, ultrapassando qualquer civilidade, não podem mais ser domesticados”. Conclui-se que Maquiavel procura destruir as ilusões nostálgicas:

Não creiam que seja verdade que os homens voltem a antigos costumes e modos de viver, porque isso se verifica quando o viver antigo agrada mais do que o novo, mas quando agrada menos, a ele não se volta a não ser por força, e com ele se convive enquanto agir essa força.

Enfrenta em seguida outro tema difícil: a pessoa do “chefe”, sem dúvida indispensável. Caso se tivesse de pensar em um “chefe privado”, sem dúvida a preferência recairia sobre alguém da casa dos Médici; mas, tratando-se de um “chefe público”, este sempre terá preferência a um “privado”. E volta ao ponto diferenciador da clara opção entre república e principado. Não pode Vossa Santidade, se deseja formar em Florença um Estado estável para sua glória e bem-estar de seus amigos, organizar senão um verdadeiro principado ou uma república que mantenha unidas as suas partes. Todas as outras coisas são inúteis e de vida muito breve.

Com efeito, a república é a escolha apontada como obrigatória, e, portanto, o Discursus se detêm em normas constitucionais consideradas necessárias para que ela seja sólida em seus fundamentos, indicando ao mesmo tempo as garantias que teria de oferecer à casa dos Médici. Para o principado, entretanto, “desapareceu o instrumento” logo depois da morte de Lourenço “junior”, sem que houvesse outras personalidades capazes de levar adiante a hereditariedade. Além do mais, em Florença há também outro obstáculo à criação de um principado: como observou nos Discursos (I, 55), repetia que “onde há grande igualdade entre os cidadãos, não se pode organizar um principado, a não ser com máxima dificuldade”, porque “seria necessário primeiro organizar a desigualdade, e criar muitos nobres de castelos e vilas, que, com o príncipe, mantivessem a cidade e toda a província sufocadas com armas e seguidores”. Se, como é fácil entender, o Discursus não teve em geral bom acolhimento nos ambientes dominados pelos Médici, as últimas sugestões, no entanto, foram ouvidas. Com efeito, medidas contra a “igualdade” foram sugeridas aos Médici

desde seu retorno a Florença, em 1512, justamente por obra de pessoas que mantinham relações com o secretário florentino. Em um conselho a Lourenço “junior”, escrito em 1516, “para manter o Estado de Florença na devoção aos Médici”, um amigo de Maquiavel, Lodovico Alamanni, reconhecia que os florentinos “se acostumam mais rápido às burrices que à liberdade”, e que, por meio desta, eram estimulados a resistir aos costumes cortesãos. Por isso, indicava um remédio: não há dúvida de que “essa fantasia jamais desapareceria do pensamento dos anciãos”; felizmente, porém, “são sábios, e dos sábios não há nada a temer, porque jamais trazem novidades”; em contrapartida, “os jovens facilmente perderiam os hábitos dessa civilização”, e bastaria que Lourenço os tomasse a seu serviço, atribuindo a uns encargos militares, e a outros, “literários”, funções de “secretários, mantadários, comissários e embaixadores”. Todos eles “vestirão a capa e deixarão o capuz”, ou seja, abandonarão as vestimentas simples dos cidadãos para assumir hábitos da corte, e, ao mudar de hábito, “será como se fossem frades, porque renunciarão à república e professarão sua própria ordem [a de Lourenço]”251. Diferentemente do irmão Luigi, assíduo frequentador dos Orti Oricellari, que participou alguns anos mais tarde da conspiração contra o cardeal Júlio, Lodovico Alamanni era partidário dos Médici, e se preocupava com o destino político deles. Por outro lado, mantinha laços de amizade com Maquiavel, como ficamos sabendo por uma carta de 17 de dezembro de 1517252, e podemos conjecturar que fosse ele mesmo quem estava na origem das ideias que ora expunha. Da mesma maneira, um nobre florentino, por sua vez amigo de Maquiavel, Filippo Strozzi – destinado a ser lembrado pela luta política contra os Médici em seus últimos anos e, depois de ter sido feito prisioneiro em 1537 pelo duque Cosme I, pelo trágico final que ainda lhe valeria uma auréola de mártir republicano durante o Ressurgimento – expressou ideias similares. Depois do segundo retorno dos

Médici, em 1530, quando ainda era partidário do regime restaurado, havia sugerido a Clemente VII que destruísse aquela “igualdade civil” que tinha dado vigor à República florentina, renascida em 1527, logo após o saque de Roma. Para dar estabilidade ao poderio dos Médici, então alçados ao principado com o duque Alexandre, era necessário apagar qualquer sombra de liberdade do passado. Em vista disso, escreveu: E porque o nervo e a firmeza do Estado parecem consistir em formar um partido que não tenha amparo no povo [...] alguém já lembrou que seria bom fazer casualmente uma eleição de todos os que são amigos, e de quem pensamos precisar, e poder ganhá-los indo de casa em casa, e declará-los nobres por disposição pública, admitindo apenas esses ao governo, e excluindo todos os demais por plebeus.253A diferenciação deveria ser radical: apenas os que fossem declarados nobres poderiam ter acesso às honras e aos cargos públicos e ter armas, “para que a diferença entre os plebeus e eles apareça por toda a parte”, de maneira tal que entre os novos nobres e o povo nascesse um contraste irremediável em benefício do senhor. Esses mecanismos de inflexibilidade e de estratificação social estavam destinados a se afirmarem na vida italiana do século XVI, enquanto os artifícios da engenharia constitucional, sugeridos por Maquiavel para dar vida a uma sólida república, restariam como letra morta. Apesar disso, o final do Discursus, pela nobreza de sentimentos e calor humano, pode ser comparado ao último capítulo de O Príncipe. O espírito do secretário florentino continuava aberto à esperança no futuro.

3. “Anais ou as histórias de Florença” Antes de se dispor a escrever o Discursus, Maquiavel havia recebido um outro encargo que lhe deu oportunidade de se preparar para a redação de sua obra historiográfica. No verão de 1520, o cardeal Júlio pensou em se valer de sua produção em uma missão que, uma vez mais, seria de caráter financeiro. Como sempre, tratavam-se de negócios frustrados: nesse caso, de um comerciante de Lucca, Michele Guinigi, pertencente a uma das primeiras famílias da pequena república toscana. Por causa de sua vida desregrada, havia sido deserdado pelo pai, mas o sobrenome ilustre lhe garantia imprudentes créditos em Florença. Até os Salviati, aparentados de Leão X pelo

matrimônio de sua irmã Lucrécia, haviam arriscado uma grande soma. Por isso, a própria Signoria de Florença se interessou pelo assunto a ponto de encaminhar tratativas com o governo de Lucca, já no outono de 1519. Em 7 de julho do ano seguinte, Maquiavel seria enviado “para negociar e resolver essa questão”, que se prolongaria a ponto de ele não poder mais resolvê-la (seria encerrada um ano depois), embora, quando de seu retorno a Florença, a negociação se encontrasse satisfatoriamente encaminhada. No tempo livre entre as negociações, Maquiavel ficava bem disponível para se dedicar a outras coisas. Estudou o governo da república de Lucca, do ponto de vista da reforma a ser introduzida em Florença, mas, sobretudo, escreveu La vita di Castruccio Castracani da Lucca [A vida de Castruccio Castracani de Lucca], o capitão que, no século XIV, tornou-se o senhor da cidade. É uma espécie de prova de suas qualidades de escritor na área de história, que, precisamente, lhe servia para mostrar suas qualidades, em vista do encargo que, no outono, receberia do Studio de sua cidade: redigir a História de Florença. De fato, Leão X havia falado a Battista della Palla que pretendia conceder-lhe “uma provisão para escrever”, fazendo referência a essa obra254, e, em 6 de setembro de 1520, Zanobi Buondelmonti, que havia lido a vida do condottiere de Lucca, o convidou a realizar essa empresa, muito mais penosa, posto que “esse seu modelo de história” o agradou bastante, e teve oportunidade de discuti-lo com muitos outros amigos que haviam frequentado os Orti Oricellari. No outono de 1520, o Studio florentino, então diretamente sob o controle do cardeal Médici, encarrega Maquiavel dos “anais ou as verdadeiras histórias das coisas realizadas pelo Estado e pela cidade de Florença”255. A tarefa, tradicionalmente confiada a um chanceler da República, de algum modo o levou de volta às antigas funções, ainda que a contrapartida fosse apenas a metade, ou pouco mais, dos vencimentos que recebia como secretário. Por isso, Pier Soderini, que já lhe havia oferecido o posto de chanceler da

República de Ragusa (proposta que sequer foi analisada por Maquiavel, excessivamente ligado a Florença), então, sabendo desse encargo e da respectiva remuneração, lhe propôs, em 13 de abril de 1521, que se colocasse a serviço do condottiere Prospero Colonna. É magnífica a “provisão” que ele estaria pronto a lhe conceder, “duzentos ducados de ouro para as despesas [...]: muito melhor que estar aí a escrever histórias por florins selados256”257. Evidentemente, o ex-gonfaloneiro não compreendia o espírito de seu antigo colaborador: para Maquiavel, o fato de ter obtido um encargo público em Florença era mais importante do que a remuneração. Assim, ele recusa a oferta. Seria possível pensar também que essa falta de compreensão, somada à fuga em 1512, tenha ditado o irônico epigrama composto por ocasião da morte de seu antigo patrono, em 1522: Na noite em que Pier Soderini morreu à boca do inferno a alma chegou. Plutão gritou: “Que inferno? Alma tonta, com as outras crianças ao limbo monte!”258

Com efeito, o ofício de historiógrafo não significava apenas ter o próprio valor reconhecido e voltar a conquistar autoridade: “escrever histórias” o colocava em pé de igualdade com dois famosos chanceleres da República, Leonardo Bruni e Poggio Bracciolini, cujas obras evocaria no proêmio da História de Florença. Também já se observou que tal trabalho lhe permitia “dar a conhecer o valor de sua língua e de Florença”, em anos nos quais, entre os literatos italianos, o debate sobre a língua era acalorado, o que o interessou a ponto de querer tomar parte dele259. Com a elaboração da História, teria a possibilidade de tentar restituir à sua cidade o prestígio literário perdido no isolamento em que havia caído a literatura florentina no início do século XVI. É certo que, nas cláusulas de seu contrato, ele havia sido liberado para escrever “na língua latina ou toscana, como melhor lhe parecesse”260; mas seria

isolar Maquiavel do mundo intelectual do seu tempo atribuir a escolha do idioma italiano a uma pouca familiaridade com o latim. Podemos, de todo modo, observar que a preocupação de redigir a história da Itália em “língua moderna” o induziu a buscar um estilo de cadência clássica, bem mais acentuado do que em O Príncipe e nos Discursos, e até em relação a A arte da guerra, em que, apesar de tudo, já havia demonstrado mais boa vontade para com as convenções literárias de sua época. Durou quatro anos – embora intercalados por várias outras atividades – a redação da História de Florença. Não era uma tarefa fácil redigir os acontecimentos de Florença depois que Cosme tomou o poder por designação de um papa da família Médici (o cardeal Júlio, eleito com o nome de Clemente VII, em novembro de 1523). É bastante compreensível que, em 30 de agosto de 1524, Maquiavel confidenciasse o seguinte a Francesco Guicciardini, com o qual, como veremos, havia estabelecido sólidos laços de amizade: Aguardei e tenho aguardado na casa de campo a escrever a história, e pagaria dez soldos, para não dizer mais, porque, precisando descer a certas particularidades, seria necessário ouvir de você se ofendo demais ao exaltar ou aviltar as coisas261.

Mesmo sem esconder o seu pensamento sobre a situação italiana e florentina, sem dúvida era preciso se servir de certa cautela. Donato Giannotti, que havia frequentado os Orti Oricellari, escreveu mais tarde que o tinha ouvido dizer: Eu não posso escrever a história de quando Cosme tomou o governo até a morte de Lourenço, como se não fosse devedor de nenhum respeito; as ações serão verdadeiras, e não omitirei coisa alguma, somente deixarei para trás as divagações sobre a causa universal das coisas; verbi gratia [“com a graça da palavra”], contarei os acontecimentos e os casos que sucederam quando Cosme tomou o governo; deixarei para trás as divagações sobre o modo, os meios e as astúcias com que alguém chega a um posto tão alto, e quem quiser também entender isso, que observe muito bem o que farei seus adversários dizerem, porque o que eu não quiser dizer por mim mesmo, farei

seus adversários dizerem.262A bem da verdade, se Maquiavel alimentava tais escrúpulos, podemos dizer que as cláusulas a que se submetia eram bastante limitadas. Por certo, os maiores estragos e as mais graves transgressões de Cosme, de Piero e de Lourenço são atribuídos em grande parte a seus partidários, mas a reprovação da atuação facciosa dos poderosos expoentes do partido dos Médici ataca por tabela os que dominam o governo, e não encontramos na História páginas que soem como apologia ao regime imposto pelos Médici. Basta recordar a reprimenda que Piero dirige a seus apoiadores, convocando-os para a sua casa “para aliviar sua consciência e para ver se poderia fazer com que se envergonhassem”, declarando, no início de seu discurso: “Nunca acreditei que poderia chegar o tempo em que os modos e os costumes dos amigos me fizessem amar e desejar os inimigos”. E prossegue: “Vocês despojaram o vizinho de seus bens, vocês venderam a justiça, vocês fugiram dos julgamentos dos cidadãos, vocês oprimiram os homens pacíficos e exaltaram os insolentes. Não creio que em toda a Itália haja tantos exemplos de violência e de avareza quanto os que existem nesta cidade” (VII, 23).

No final de 1524, a narrativa chegou à morte de Lourenço, o Magnífico, e o manuscrito, caprichosamente copiado, ficou pronto nas primeiras semanas de 1525 para ser oferecido a quem o encomendara, então já feito papa. Infelizmente, o momento não parecia propício: de fato, eram dias tempestuosos. Francisco I e Carlos V se haviam enredado num combate na Itália, e Clemente VII, depois que, em outubro de 1524, Milão foi reconquistada pelos franceses, havia-se aliado a eles. Mas, em 24 de fevereiro de 1525, em Pavia, deu-se uma batalha decisiva, na qual o rei da França sofreu uma derrota clamorosa, e ele próprio caiu prisioneiro. Em tal situação, Vettori hesitava aconselhar Maquiavel se deveria “ou não vir com o livro, porque os tempos não estão para leituras e doações”. Todavia – escreveu em 8 de março ao amigo – “o papa, na primeira tarde em que chegou, [...] tomou a iniciativa de me perguntar a seu respeito, dizendome se havia terminado a História”. Pego de surpresa por essa curiosidade, Vettori responde que Maquiavel havia chegado “até à morte de Lourenço, e que isso era satisfatório”, tanto que queria levar a obra até ele, mas, – acrescentava – “em respeito ao momento”, ele mesmo o havia dissuadido. Àquela altura, Clemente VII replicou que ele se havia equivocado naquele conselho: “E deveria vir, e

creio certamente que seus livros sejam agradáveis e bons de se ler”263. Assim, em maio, Maquiavel esteve em Roma apresentando a História ao pontífice, que, por essa razão, lhe faz um donativo de 120 ducados de ouro. Naquele momento, somente se publica o manuscrito da obra: a edição impressa sairia postumamente, em 1532, graças ao tipógrafo romano Blado e, concomitantemente, ao florentino Giunta.

4.“As coisas feitas dentro e fora pelo povo florentino” Quem lê a História de Florença pode-se perguntar: estamos diante de uma obra acabada ou não? As opiniões são divididas. Um respeitável estudioso, Felix Gilbert, fazendo referência a alguns trechos em que Maquiavel manifesta o propósito de não se ocupar muito da morte de Lourenço, o Magnífico, afirma que “a História de Florença não é uma obra completa”. Por outro lado, outro estudioso não menos respeitável, Carlo Dionisotti, considera que “Maquiavel, sendo Clemente VII o papa, nunca se tenha comprometido seriamente a continuar a sua História de Florença”, observando: “Já foi um milagre que tenha saído ileso da publicação do manuscrito de uma obra, sob muitos aspectos, provocativa”264. Quais elementos internos e quais informações podem levar a pensar na falta de uma continuação? Os primeiros, na verdade, são escassos. Na dedicatória a Clemente VII, o autor explica que, “tendo chegado, na escrita, aos tempos em que a morte do Magnífico Lourenço de Médici mudou a configuração da Itália”, desejou “reduzi-la a um volume” e oferecê-la ao papa. A promessa de uma continuação é bastante vaga: “seguindo-se coisas mais elevadas e superiores a serem descritas com espírito superior e mais elevado”, considerou oportuno apresentar ao papa “tudo o que até estes tempos descrevi”. Podemos ler esse trecho

como um adiamento da continuação, a ser escrita num segundo momento “com espírito superior e mais elevado”, mas também seu inverso, como a indicação de um período encerrado, após o qual as mudanças ocorridas justificam a interrupção. No livro VIII, capítulo 9, é então anunciado o nascimento do futuro Clemente VII, e lemos sobre sua fortuna e virtude que, “quando chegarmos às coisas presentes, concedendo-nos Deus vida, nós as apreciaremos amplamente”. Mais do que um compromisso de continuação, essas palavras podem ser apenas um ato de reverência e de expectativa. No final, o autor conclui a dedicatória escrevendo que continuaria a obra “enquanto a vida não se separar de mim e V. Sa. não me abandonar”. Essa expressão também pode ser considerada um cerimonial de confiança. Existe, no entanto, uma carta a Guicciardini, escrita após 21 de outubro de 1525, ou seja, depois de alguns trágicos eventos milaneses que puseram fim à esperança de que o domínio espanhol sobre aquele ducado pudesse ser destruído, na qual anuncia: “Tive um aumento de até cem ducados pela História. Agora começo a escrever de novo, e me desafogo acusando os príncipes que fizeram de tudo para nos trazer até aqui”. Sabemos, portanto, que quem encomendou a obra desejava o seu prosseguimento, e que o autor se dispunha a prossegui-la com o intento de se “desafogar”. Isso torna verossímil seu intento de abraçar o trabalho, justamente para dar vazão à paixão que notamos jorrar nas cartas de seus últimos anos. Todavia, nada dessa continuação chegou até nós, ou pelo menos nada se encontrou até hoje265. Por outro lado, não se pode descartar que Maquiavel não havia abandonado o projeto de continuar a narração dos acontecimentos que se sucederam à morte de Lourenço, o Magnífico, ainda que ele a tivesse considerado, com razão, como o fim de uma era. Certamente, ele estava ciente das dificuldades de abordar acontecimentos em que ele próprio estivera envolvido, e, de nossa parte, podemos lamentar não termos uma versão sua

acerca de tais eventos. De qualquer maneira, a obra histórica de qual dispomos mostra uma construção inteligente e uma coesão interna que nos permitem considerá-la como terminada. Sobre a escolha do início da História, as coisas são mais claras. Quando escreveu a Del Nero sobre a “essência da conduta”, Maquiavel não precisou a data de início, deixando em aberto a questão: teria começado “da época que lhe pareceu mais conveniente”. No proêmio, declarou ter pensado – “quando, no começo, decidi escrever as coisas feitas dentro e fora pelo povo florentino” – em “começar minha narrativa a partir do ano de 1434 da era cristã”, ou seja, desde a subida ao poder de Cosme de Médici. Em seguida, porém, mudou de ideia, e decidiu “começar a minha história desde o início de nossa cidade”. De fato, explicava que se havia dado conta da existência de uma grave lacuna nas histórias de Leonardo Bruni e de Poggio Bracciolini, o que o impedia de escrever a sua obra seguindo o projeto inicial, como uma continuação delas: os dois autores não haviam falado o bastante “das discórdias civis e das inimizades intrínsecas, e dos efeitos originários delas”, e os criticava por “terem silenciado totalmente uma parte e descrito brevemente outra, de modo a não ofertarem leitores, nem utilidade, nem prazer algum”266. Na verdade, a crítica a seus dois predecessores foi objeto de discussão: parece forçado, de fato, afirmar que a vida política de Florença foi silenciada em suas obras. Não podemos descartar que tal crítica (com o consequente início anterior à chegada de Cosme ao poder) fosse um expediente de conveniência: uma vez que a obra havia sido encomendada pelo cardeal (depois papa) Médici, começar a História em 1434 poderia dar a impressão de um trabalho apologético, e, ainda por cima, seria difícil evitar um enaltecimento do ocorrido. Porém, há sobretudo uma real divergência interpretativa que não deve ser desprezada. Ao refletir sobre o desenrolar dos acontecimentos, a situação em que se encontrava

Florença no tempo de Cosme, e ainda no tempo de Maquiavel, parecia-lhe estreitamente ligada às antigas lutas civis, e, nessa ótica, o modo como elas eram expostas nas histórias de Bruni e de Bracciolini não era aceitável. Com efeito, Maquiavel se sentia instigado a dar um juízo negativo do governo dos ottimati instaurado pelos Albizzi nos anos entre os séculos XIV e XV, e não poderia, portanto, fazer seu o panegírico de Bruno, que havia saudado o regime republicano daquela época como “vera libertas” [“verdadeira liberdade”], a ponto de ter sido evidenciada a íntima ligação ideal entre a sua História e seu Laudatio florentinae urbis [Louvor da Cidade de Florença]267. Do mesmo modo, Maquiavel não poderia comungar da glorificação que Poggio Bracciolini fez mais tarde do governo. Os propósitos celebrativos na reconstrução do passado de Florença haviam feito das obras dos dois humanistas um pilar da autorrepresentação da república oligárquica, afirmando precisamente a existência simultânea da libertas e da equabilitas [igualdade] na vida dos cidadãos, uma modulação ideológica em claro contraste com as ideias de Maquiavel. É evidente que, escrevendo por encomenda de um descendente de Cosme, seria despropositado apontar como modelo o governo de quem já havia desejado eliminar os Médici da vida florentina. Mas certamente não era esse o entendimento de Maquiavel, se justamente tal governo estivera na origem da situação institucional híbrida lamentada no início do Discursus, escrito elaborado entre novembro de 1520 e fevereiro de 1521 para propor uma reforma do governo florentino. A razão pela qual Florença trocou tantas vezes de governo [Maquiavel observou naquele escrito] é porque jamais teve república ou principado que tenham posssuído suas respectivas qualidades.268

Já nos Discursos, por outro lado, havia observado que Florença,

[...] por ter suas origens no Império Romano e sempre vivido sob governos alheios, deixou-se ficar algum tempo em condição indigna e sem se

preocupar consigo; depois, quando pôde respirar, começou a fazer suas leis.

No entanto, nem mesmo a liberdade então conseguida lhe permitiu construir instituições satisfatórias, porque aqueles ordenamentos, “misturados aos antigos, que eram ruins”, se revelaram defeituosos, a ponto de concluir: “assim se foi conduzindo por duzentos anos, dos quais se guardam fiéis recordações, sem jamais ter um Estado que pudesse realmente ser chamado de república”269. Além disso, essa condição ambígua, desaguando na fragilidade de Florença, contribuía para complicar a “crise” italiana. No momento em que convidava o cardeal Júlio de Médici a instaurar uma república “que tenha as qualidades que lhe sejam inerentes”270, a chance de mostrar quais acontecimentos corromperam a vida política florentina poderia ser aproveitada simplesmente ilustrando o desenvolvimento da história completa da cidade. A prevalência dos interesses privados sobre as “coisas públicas” era uma antiga característica. Nos Discursos (I, 4), afirmou: “Aqueles que condenam os tumultos entre os nobres e a plebe me parecem condenar coisas que estão na origem da liberdade de Roma”; na História, poderia então sublinhar as diferenças entre as lutas políticas romanas e as divisões florentinas. Assim, no início do terceiro livro ilustra a radical diversidade entre os dois tipos de enfrentamento e os efeitos contrários que engendraram: enquanto em Roma a divisão era superada com a promulgação de novas leis ou a instituição de novas magistraturas que davam à República maior equidade e estabilidade, em Florença, a vitória de um partido era marcada por mortes e exílios; as lutas de Roma “sempre aumentaram a virtude militar, as de Florença a destruíam totalmente”; em Roma chegou-se a uma articulação social mais complexa, enquanto Florença “foi submetida a uma admirável igualdade”. Esta, todavia, não trouxe maior democracia, mas um nivelamento tal que extinguiu qualquer “virtude de armas e generosidade de

espírito”, assim o povo florentino “tornou-se cada vez mais servil e desprezível”. A divisão entre cidadãos é um problema enfrentado com particular vigor nos acontecimentos que levaram ao crescente poder do partido guelfo. Usando do expediente historiográfico do discurso, atribuído a um dos “muitos cidadãos impelidos pelo amor à pátria”, são revelados os danos provocados por “aqueles que, pela ruína da república, se misturam”, se unem em facções, e que, para fazer prevalecer seus interesses particulares, “se põem de acordo em favor de suas ambições particulares, não de algum préstimo público”271. O discurso percorre a situação de todas as cidades da Itália que, “não tendo um freio potente que as corrigisse, organizaram seus Estados e governos não de forma livre, mas divididos em seitas”. A vida política italiana ficaria, portanto, sufocada por interesses particularizantes e fragmentada por todos os lados, seja no âmbito da constituição estatal, caracterizada por uma cidade dominante e vários centros submetidos, seja no âmbito da própria ação política da cidade principal, desenvolvida como uma aliança de indivíduos ambiciosos, prontos a se colocar à frente de facções dotadas de larga autonomia e preparadas para se enfrentarem entre si, a fim de afirmar a sua própria superioridade. Fica claro, portanto, que a História de Florença tem como elo de ligação da narrativa os proêmios e os discursos. No primeiro capítulo de cada livro são desenvolvidas considerações originais que projetam os acontecimentos seguintes, e o autor se serve de tais premissas para consolidar a estrutura da narração. A simples cronologia dos acontecimentos não pareceria suficiente para quem soubesse expor de maneira tão original as próprias reflexões históricas nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Assim, nas observações que abrem cada livro, são traçadas as linhas essenciais e as características singulares dos acontecimentos florentinos; seu

encadeamento dá à História um ritmo e um vigor uniforme, útil para deixar claros os propósitos de Maquiavel. Por isso, o proêmio da obra logo introduz as divisões de Florença: aparentemente se chega a um elogio da cidade, poderoso o suficiente para se afirmar apesar das contradições internas. Mas a ressalva se sobressai de modo bem convincente: Se Florença tivesse a felicidade de [...] ter possuído uma forma de governo que a tivesse mantido unida, não sei qual república, moderna ou antiga, a teria suplantado, tão repleta seria de virtudes, de armas e de capacidade de ação.272

Isso não aconteceu, e as consequências deveriam estar bem claras para o leitor. O primeiro capítulo do segundo livro lamenta o abandono do antigo costume romano de fundar novos centros habitacionais, “onde os homens se podem reunir para favorecer a defesa ou a [agri]cultura”273. Os antigos costumavam “enviar aos países vencidos ou desabitados novos habitantes”, dando a essas zonas de povoamento o nome de “colônias”. É um costume útil não apenas para manter as conquistas, mas também para evitar que se formem zonas despovoadas: uma vez que nem todos os lugares “são produtivos ou saudáveis”, em alguns abundam os habitantes, em outros são escassos, “e se não existe maneira de arrancá-los de onde abundam e levá-los até onde faltam, em pouco tempo essa província se deteriora, porque uma parte dela se torna deserta, dada a escassez de habitantes, e outra, pelo excesso, vem a se tornar pobre”. Eis porque “muitas partes [...] na Itália tornaram-se desertas em relação a épocas antigas”. Seria errado considerar essas palavras apenas como fruto da admiração pelo antigo costume romano de controlar os territórios conquistados por colônias. Maquiavel não podia deixar de ter presente as terríveis consequências da peste negra de 1348, que oneraram gravemente a situação demográfica italiana, ao menos até a metade do século XV, como atesta também o

cadastro florentino da época. Além do mais, um conhecedor de Tito Lívio, tão atento aos deslocamentos de etruscos e samnitas, certamente não deixaria de perceber a revolução demográfica da Itália que, depois da queda do Império do Ocidente, havia testemunhado o despovoamento das zonas costeiras, seja pela degradação do território, transformado em pântano e zona de malária, seja pelas incursões e pelos saques dos árabes. Já na Cronica [Crônica], de Giovanni Villani, o escritor florentino que no século XIV havia desejado “narrar e fazer memória da origem e do começo” de sua cidade, Maquiavel pudera ler: É sabido que, antigamente, as costas eram muito habitadas, e nas baixadas havia poucas cidades e poucos habitantes, mas em Maremma e Maretima, na direção de Roma [...], havia muitas cidades e pessoas, que hoje diminuíram e desapareceram pela corrupção do ar (I, 50).

O repovoamento do “litoral”, quando acontecia, verificava-se como consequência de eventos posteriores. Por isso, na História de Florença, encontramos a menção ao nascimento de Veneza, “situada em um lugar pantanoso e insalubre. Apesar disso, os muitos habitantes que de repente para ali concorreram a sanaram”. De igual modo Pisa, “pela malignidade do ar, nunca foi repleta de habitantes, senão quando Gênova e seu litoral foram destruídos pelos sarracenos, o que fez com que aqueles homens, expulsos do solo pátrio, subitamente e em tal número concorressem para lá, tornando-a povoada e poderosa”. Já foram mencionadas as considerações do início do terceiro livro sobre as consequências das facções; e, de algum modo, o primeiro capítulo do quarto livro desenvolve essa reflexão, chamando a atenção sobre os maus ordenamentos que veem os Estados mudarem seus governos “não pela liberdade e pela servidão, como muitos acreditam, mas pela servidão e pela licença”. Os dois partidos que favorecem a licença ou a servidão celebram

“da liberdade apenas o nome”, e, certamente, não se deve esquecer que essas considerações abrem o livro que expõe os acontecimentos florentinos nos anos em que se estabeleceu a hegemonia dos Albizzi. A dura polêmica tem como alvo, no entanto, todas as facções florentinas, que, na verdade – acusa –, se propõem apenas a “não estar nem às leis nem aos homens submetidas”. Por isso a instabilidade e o predomínio de homens “insolentes” ou “estúpidos”, que causam a ruína da república274. O quinto livro abre a parte mais escabrosa da obra: o governo de Cosme de Médici. Se houvesse uma intenção celebrativa, seria fácil mostrar que, para Florença, se iniciava então uma nova história, e que o consenso popular havia favorecido a ascensão do primeiro dos Médici, derrubando o poder oligárquico. Em vez disso, Maquiavel conseguiu evitar qualquer expressão elogiosa, ou, pior, adulatória, e, coerentemente com algumas anotações dos Discursos (I 7; II, proêmio), toma como ponto de partida a “variação” contínua das “coisas mundanas”, que, “não podendo mais subir, convêm que desçam, e, de igual modo, uma vez descidas, por causa das desordens, atingindo a mais extrema baixeza, não podendo por qualquer modo descer mais, convêm que subam”. Em suma, existe uma concatenação inevitável da virtude, que produz sossego, passa ao ócio, e, daí, à desordem e à ruína; depois, o ciclo recomeça. Se o sossego sucede à virtude, “as letras seguem as armas, e [...] nascem antes os capitães do que os filósofos”275. Essa é uma observação, no livro oitavo, que levaria a diminuir os méritos do renascimento das letras e das artes atribuído a Lourenço, o Magnífico, e, no entanto, nessas páginas, o retrato que ele faz do período de governo dos Médici é, precisamente, negativo. De fato, das ruínas do Império Romano não nasceu na Itália um principado capaz de “atuar gloriosamente”, ainda que se reconheça o mérito das cidades e das novas formações políticas de que “dos bárbaros a [a Itália] liberaram e defenderam”. Posteriormente, “se não

nasceram tempos que mantiveram a tranquilidade durante uma longa paz”, também não existiram eventos trágicos e belicosos: “aquelas guerras tanta fragilidade geraram que se iniciavam sem temor, eram travadas sem perigo e terminavam sem dano”276. A essa altura, podemos entender porque, no primeiro livro, o duelo entre João Galeácio Visconti e Florença foi mencionado só de passagem277, e apenas para dar oportunidade para introduzir o argumento das armas mercenárias. A luta que, nas páginas de Leonardo Bruni e de Poggio Bracciolini, assumira tons épicos e até simbolizara o embate entre a liberdade e a tirania278, aqui é rapidamente mencionada da mesma forma como uma das tantas guerras entre os Estados italianos. Longe de expressar admiração pelo governo de Florença que combate o expansionismo do duque de Milão, Maquiavel não o vê, como poderemos observar mais adiante, particularmente animado por energias republicanas. O início do sexto livro conduz uma áspera polêmica contra os costumes militares e o modo de combater, ecoando as críticas de A arte da guerra, enquanto no sétimo encontramos indicados os danos produzidos pelas seitas e pelos “partidários” de algum cidadão, que podem, assim, prevaricar a coisa pública. Finalmente, o primeiro capítulo do livro oitavo desenvolve considerações anteriores: as seitas têm levado ao poderio dos Médici, e a autoridade desses sobre os demais cidadãos induz os adversários a lutar, recorrendo a conspirações. “Estando o princípio deste oitavo livro localizado no meio de duas conspirações, uma já narrada e ocorrida em Milão [contra Galeazzo Maria Sforza, em 1476], outra a ser narrada, e que se deu em Florença [a dos Pazzi contra Lourenço e Juliano de Médici, em 1478]”279, seria o caso de tratar de forma especial esse tipo de acontecimento político, “se [...] alhures sobre isso eu não houvesse falado”. Nos Discursos (III, 6), de fato, ele já havia ilustrado amplamente as dificuldades que as conspirações enfrentavam, e, de alguma maneira, havia demonstrado sua ineficácia. Mas havia também observado que os conspirados

eram geralmente “homens grandes ou bem familiares ao príncipe”280: de fato, as conspirações nasciam de uma fratura no interior da classe dirigente, que, na Itália daquela época, era muito reduzida. Justamente por isso, o fracasso das conspirações resulta, como reação, em um governo mais duro do que aquele que se buscava derrubar, mas, depois da repressão, o poder do príncipe acaba enfraquecendo. Se não acaba vítima dos conspirados, “o que raras vezes acontece, alcança maior poder e, muitas vezes, sendo bom, torna-se mau”, pelo medo sentido. Daí um encadeamento fatal, porque o temor induz a buscar maneiras de “garantirse” e o “garantir-se” induz a “ofender, do que nascem ódios”, até a queda do príncipe281. Parece quase o prenúncio de uma página não escrita da História: a expulsão de Pedro de Médici, em 1494282. É de se perguntar se a relativa liberdade de expressão usada, apesar do respeito devido ao destinatário da obra, pode ser explicada pela situação particular em que se encontrava, naqueles anos, o governo dos Médici em Florença, privado de um personagem da família que gerisse diretamente a cidade. Já foi mencionada a carta de Donato Giannotti, que faz referência à declaração de Maquiavel de que não se sentia “livre em todos os aspectos” ao escrever sobre o regime dos Médici; mas, como já dito, se o escrúpulo honra o autor, as condições a que se submeteu parecem bem mais precárias. Até o elogio a Lourenço, o Magnífico, no fim da obra, parece bem acanhado, embora seu mito já se viesse formando naqueles anos. A sua figura parece corresponder muito mais às indicações do Discursus para a reforma da República florentina, em que Maquiavel sugere ao cardeal de Médici que assuma o comportamento de um “sábio outorgante de leis” e dê um novo ordenamento a Florença283. É como se brilhasse uma luz de simpatia sobre os aspectos negativos apontados na conclusão (VIII, 36), e parece haver algum ponto de contato com o caráter do próprio Maquiavel, quando escreve que dele não se pudessem “aduzir vícios que maculassem tanto

suas virtudes”. Com efeito, não convinha ao autor criticá-lo por estar “maravilhosamente envolto em coisas venéreas”, tampouco censurá-lo se gostava da companhia de “homens brincalhões e mordazes”: a indicação de “considerar nele não somente a vida voluptuosa, mas também a grave”, leva a recordar o gosto de Maquiavel pelas “coisas grandes” e, ao mesmo tempo, pelas “coisas fúteis”. Maquiavel confidenciou a Giannotti sobre a chance de levar em consideração os discursos dos adversários dos Médici para entender o que não poderia dizer em primeira pessoa. Isso se confirma por suas palavras, obviamente mais cautelosas e atenuadas, da dedicatória ao papa. Ele queria evidenciar “quão longe estou das adulações”, e, para confirmar isso, trazia como exemplo precisamente o que dizia “nas arengas e nos raciocínios particulares”. A função dos discursos atribuídos a personagens particularmente em evidência resulta, portanto, patente. Todavia, o recurso a esse artifício, segundo um modelo tradicional da historiografia clássica, tomado dos humanistas, foi objeto de várias críticas. Apenas para citar um nome, Eduard Fueter, o autor do conhecido manual de história da historiografia, lamentou “a influência fatal” exercida “pela teoria artística antiga” sobre a historiografia humanista italiana, que levou à “manipulação retórica da realidade” por discursos diretos. Seguindo esse costume, Maquiavel introduziu discursos que “frequentemente violam de modo grosseiro a 284 verossimilhança externa” . Gilbert, por sua vez, acreditou que deveria desculpar o autor de História de Florença por ter mantido essa maneira de expor, apresentando presumíveis “indícios” de um certo enfado em relação aos preceitos dos humanistas, que teria considerado “mais uma convenção literária do que um guia válido para escrever história”285. Parece curiosa uma crítica à historiografia dos séculos XV e XVI baseada na não adoção dos métodos atuais para estudar o passado, sem captar nos diferentes costumes existentes um problema de história, não apenas da cultura, mas também das mentalidades.

Com bem mais propriedade havia desenvolvido suas considerações a esse respeito o primeiro biógrafo de Maquiavel, Pasquale Villari, observando que os discursos inseridos na História de Florença, “embora também imaginários, expõem os sentimentos, as considerações próprias do autor em torno dos acontecimentos históricos”, e exprimem, de modo profundo, “o que os próprios fatos diziam e inspiravam”286. Com efeito, deve-se levar em consideração a maneira como é aproveitado o artifício dos discursos em História de Florença. Não são mais testemunhos de um nobre sentimento, trazidos como exemplo para a admiração dos leitores, como geralmente acontece na historiografia antiga e também na humanista; servem, na verdade, para desnudar a política florentina, e não apenas a dos Médici. Podem, portanto, propor um modelo, inclusive no sentido negativo. Em uma aguda análise da função dos discursos na historiografia humanista, visando a examinar sobretudo as novidades introduzidas por Maquiavel ao recorrer a essa forma retórica, indicou-se a funcionalidade dos discursos diretos para colocar em relevo “os pontos de viragem” nos acontecimentos narrados e, ao mesmo tempo, “a essência intrinsecamente dialógica da política e a multiplicidade de seus atores”287. Maquiavel tira proveito efetivo desse recurso nos discursos não somente para representar indivíduos importantes em circunstâncias históricas particulares, mas também grupos de homens. Assim, o primeiro discurso importante é aquele feito por uma “parte dos senhores” diante do duque de Atenas, em setembro de 1342 (II, 34), para tentar dissuadi-lo de querer impor seu domínio e “escravizar uma cidade que sempre viveu livre”. Por um lado, tal página de eloquência republicana tinha a intenção de exaltar princípios exemplares, mediante os sábios conselhos sugeridos para o bem comum e para a liberdade dos cidadãos; talvez também – foi sugerido – houvesse a finalidade de influir no ânimo de a quem se dedicou a História de Florença, para encorajá-lo a fazer a reforma

exposta no Discursus; para nós, todavia, o importante é observar como vários pontos do discurso ecoam alguns trechos de O Príncipe e dos Discursos. Uma vez mais, notamos uma profunda coerência teórica na obra de Maquiavel. O caráter exemplar dos princípios pode ser ilustrado também de forma negativa, por discursos em evidente contraste com as ideias comumente respeitadas. Um caso eloquente é a intervenção de Reinaldo de Albizzi, depois do exílio que lhe foi imposto por Cosme de Médici, para incitar Filipe Maria Visconti à guerra contra Florença (V, 8). “O amor à pátria é causado pela natureza”, havia afirmado Maquiavel em A arte da guerra288 e no começo do Dialogo intorno alla nostra lingua [Diálogo sobre a nossa língua], em uma passagem inspirada pelo Críton platônico289, teria criticado duramente Dante porque “perseguiu com toda sorte de injúria” a pátria para se vingar da “injúria do exílio”290. De igual modo, o patrício florentino foi movido por uma vontade de vingança parecida, e, todavia, o seu discurso tem tons e cadências que, apesar de tudo, o faziam proferir palavras apreciáveis: “A pátria que merece ser amada por todos os cidadãos é aquela que ama igualmente todos os seus cidadãos, não aquela que coloca todos atrás daqueles poucos que deseja adorar”291. Existe também uma advertência que, ainda hoje, nos soa familiar: um povo, privado da liberdade, certamente não é levado a defender os interesses daqueles que o tiranizam, e pode acolher com consideração o inimigo, quando este desperta a esperança de derrubar o regime que o oprime. As consequências são aquelas evocadas outras vezes por Maquiavel sobre os príncipes que não embasam seu poder no povo: o perigo constante das rebeliões e a impossibilidade de recorrer a “armas próprias”, e, portanto, a necessidade de se servir de armas mercenárias. O discurso sobre o qual frequentemente se concentrou a análise dos comentadores é o atribuído a um anônimo plebeu nos primeiros dias da “Revolta dos Ciompi”, tumulto

encabeçado pelos trabalhadores de lã, em 1378 (III, 13). Das palavras do orador emerge a profunda ruptura que a luta social provocou entre os grupos dirigentes e a parte rebelada. Enquanto Leonardo Bruni, a seu turno, havia dado voz a alguns chefes de facções, mas atribuindo a eles a linguagem da coletividade e do interesse comum, Maquiavel dá a palavra a um plebeu que trabalha a lã para esclarecer as razões do protesto e denunciar a ficção que se esconde sob a referência à vantagem coletiva. Essas palavras levaram Marx a anotar comentários em sua cópia de História de Florença, comparando o insurgente florentino a Catilina de Salústio, aliás, observação análoga à feita posteriormente por Pasquale Villari292. Mais idônea parece, no entanto, a comparação recentemente proposta aos discursos atribuídos por Salústio a Mitrídates e por Tácito ao chefe dos bretões, Calgaco, para incitar a guerra contra os romanos, os quais mostram uma realidade distorcida conforme os interesses dos dominadores: a identificação do poder à violência e ao roubo destrói a verdade “oficial”, inclusive no discurso destes dois inimigos de Roma293. Assim, também as palavras do ciompo denunciam a força da economia como motor dos acontecimentos que conduziram à insurreição: poucas pessoas usaram da fraude ou da força para se apossar das riquezas e do poder, transgredindo a lei natural que fez todos os homens iguais. “Tirem de nós todos a roupa, deixem-nos nus e nos verão semelhantes”294. Maquiavel não assume os argumentos do povo rebelde, antes conclui: “Tais convicções excitam muito os ânimos, já bastante exaltados por si mesmos, de fazer o mal”. No entanto, não desejava que as razões dos insurgentes permanecessem desconhecidas, para que percebamos a violenta tensão a que havia chegado a luta política. E nisso reside a novidade de seu relato. É possível que nas suas fontes existisse alguma convergência com o discurso do trabalhador de lã, porque, por exemplo, a Cronica, de Alamanno Acciaiuoli, que sabemos ter sido utilizada na História, faz referência a alguns relatórios de processos

contra prisioneiros insurretos. Mas o vigor da intervenção do rebelde, construída com coerência e habilidade retórica, não pode, por certo, comparar-se às confissões contidas em testemunhos fragmentados e muitas vezes extraídos à força. Até mesmo esse único exemplo pode ilustrar a funcionalidade do expediente adotado para mostrar ao leitor o drama da situação. Da mesma forma, deve-se destacar o ponto de viragem que esses acontecimentos representaram na história de Florença: antes deles, as lutas internas haviam levado à eliminação das classes superiores e ao nivelamento social que, segundo Maquiavel, acabou debilitando a República. Depois da derrota das guildas menores, que haviam sido o núcleo do “tumulto”, o poder se concentrou nas mãos dos partidários de uma única família particularmente poderosa, e, nesse quesito, não faz grande diferença se quem manda são os Albizzi, antes de 1434, ou os Médici, depois. Deve-se levar em consideração a solução que, ainda que por um breve período de tempo, se oferecia à revolta. O desfecho foi relativamente pacífico, e, de certo modo, não muito diferente do que tiveram as agitações da antiga Roma: reformas foram introduzidas, novas forças entraram no governo, as guildas se ampliaram, e foi criada uma nova Signoria, mais representativa. Então se elegeu gonfaloneiro o humilde cardador Michele di Lando, “homem sagaz e prudente, e mais comprometido com a natureza do que com a fortuna” (III, 16), ou seja, dotado de inteligência política: uma vez no governo, revela-se um homem de partido, mas merecedor “de ser contado entre os poucos que beneficiaram sua pátria [...]. Sua bondade jamais deixou que chegasse a seu espírito pensamento que fosse contrário ao bem universal” (III, 17). A reação dos ottimati que levaria à sua queda e ao domínio dos Albizzi provocou a ascensão ao poder de uma facção que governaria Florença de modo tirânico e violento, e o juízo que Maquiavel fez dela foi excessivamente severo. Se lermos a História de Florença tendo presente o Discursus

– o escrito apresentado em 1521 ao cardeal Júlio de Médici sobre a reforma da república de Florença –, podemo-nos deter em algumas reflexões sobre as bases de um governo sábio, que, certamente, não foram então levadas em consideração: “Aqueles que dão ordenamentos a uma república devem dar lugar a três diferentes qualidades de homens, que existem em todas as cidades, isto é, os primeiros, os medianos e os últimos”. Dado um lugar de destaque aos primeiros e um satisfatório aos segundos, para “satisfazer a terceira e última categoria de homens, que representam a universalidade dos cidadãos”, seria oportuno “reabrir a sala do Conselho dos Mil, ou, ao menos, dos Seiscentos cidadãos”295, ou seja, restaurar a instituição que dava uma representação ao povo bem como uma possibilidade de ouvi-lo. Se as histórias de Bruni e de Bracciolini constituíam dois textos fundamentais para a vida florentina de seu tempo, e, de alguma maneira, a explicação dos fundamentos sobre os quais se guiava, Maquiavel esperava que sua obra pudesse desenvolver uma função análoga para a república que esperava poder nascer depois da morte de Lourenço, o jovem. Por isso, ilustrava as ações negativas do passado oferecendo uma documentação dos males a se evitar ao dar uma nova organização à cidade. As velhas lutas políticas levaram a criar um ordenamento instável, nem república, nem principado. Tornou-se, então, necessário encontrar uma maneira de fundar uma república bem sólida em seus princípios, a partir do momento em que a casa dos Médici parecia não ter mais um membro capaz de exercer o governo. A esperança de Maquiavel estava destinada a murchar, mas não pôde deixar de ser afetada pela ânsia de futuro que nutria o seu pensamento, capaz de construir novos horizontes políticos e de unir ao raciocínio um patriotismo apaixonado. A essa altura, pode parecer inútil retomar a velha discussão de se Maquiavel foi ou não um “autêntico” historiador. É bem verdade que não encontramos nele aquela postura que, para os historiadores do século XIX, a

começar por Leopold Ranke, deveria ser uma característica essencial de quem indaga sobre o passado e que se resume no seguinte lema: narrar como as coisas realmente aconteceram. O “distanciamento histórico” não é uma virtude praticada na História de Florença, e, para demonstrar isso, bastaria o desprezo que leva o autor a escrever, ao final do primeiro livro: “desses [...] ociosos príncipes e dessas armas muito vis estará repleta a minha história”296. E, no entanto, é difícil não concordar com quem observou que os problemas propostos por Maquiavel foram “a levedura e o fermento, direta ou indiretamente, de nossa literatura historiográfica a partir do século XVI”297. Precisamente porque o problema da liberdade italiana é o impulso inspirador de toda a obra, sua representação do passado nos coloca diante do primeiro exemplo de história nacional.

5. A amizade com Guicciardini No raiar da década de 1520, Maquiavel havia estreitado laços de amizade com Francesco Guicciardini. A relação pode causar surpresa, se pensarmos na postura hostil do aristocrata florentino em relação ao governo de Pier Soderini, e se tivermos presente a aversão que transparece nas páginas dedicadas ao seu ex-braço direito na juvenil História de Florença. Além disso, existia entre eles uma diferença de idade importante, quatorze anos, ainda que, para Maquiavel, isso pudesse ser mais um incentivo do que um obstáculo para abrir seu espírito, uma vez que confiava em quem tinha um horizonte de vida mais vasto. Cada um também tinha um caráter muito diferente: enquanto Maquiavel era extrovertido e cordial, Guicciardini era fechado e reservado. Isso pode ser constatado por seus respectivos comportamentos como escritores: sempre que possível, Maquiavel amava divulgar sua obra; Guicciardini invariavelmente escrevia para si mesmo, e não publicou sequer uma linha em vida: apenas quando encerrou sua

atividade política dedicou-se a um trabalho que, provavelmente, teria desejado publicar, a Storia d’Italia [História da Itália], mas não teve tempo. De todo modo, a amizade de dois personagens desse quilate deve ser levada em consideração pelo significado que assume no quadro geral da história – política e intelectual – daquela época. Os dois se conheciam havia muito tempo: pelo menos desde 1509. Naquele ano, de fato, em 29 de novembro, Maquiavel escreveu uma carta a Luigi Guicciardini, colocando como destinatário um afetuoso “como caríssimo irmão”, e, no encerramento, pedia lembranças a “seu Francesco”, o irmão mais novo. Não parece que esse tenha então correspondido a simpatia, e, com certeza, se teve de se relacionar com o secretário dos Dez – em janeiro de 1512, quando foi enviado como embaixador à Espanha – não parece que, posteriormente, tiveram outras ocasiões de se encontrar. Depois que Maquiavel foi expulso da chancelaria, seus caminhos se separaram: Guicciardini, de retorno à embaixada da Espanha, em 1514, ocupou alguns cargos no governo em Florença, e, depois, de 1516 a 1527, recebeu missões importantes na administração dos Estados da Igreja298; Maquiavel, como sabemos, depois de seu confinamento no campo, ficou isolado durante um longo período em Florença, privado de qualquer relação com a vida pública da cidade. No entanto, alguma relação entre eles deve ter existido, do contrário não se entenderia a visita que Maquiavel lhe fez em Módena, em maio de 1521. Naqueles dias, a Signoria florentina o convidou para representá-la no capítulo geral dos frades menores, reunido em Carpi, uma missão não sem importância para a República, contrariamente ao que se poderia crer pelas cartas trocadas entre Maquiavel e Guicciardini. Com efeito, a atividade dos conventos franciscanos na cidade e no território florentino tinha notável importância, e Florença queria que o capítulo geral dos frades menores dividisse a própria província da Toscana em duas partes, de modo a subtrair o governo para Siena, que, naquele momento, o

controlava. Naquela ocasião o capítulo resolveria a questão com um compromisso, mantendo a unidade da província, mas elegendo como comissário uma pessoa do agrado de Florença, em vez de, como pareceria antes da reunião, o sienense Bernardino Ochino. Devendo passar por Módena, Maquiavel decidiu ficar ali entre os dias 15 e 16 de maio, fazendo uma visita a Guicciardini, que era o governador em nome do papa. “A natureza havia produzido dois homens diferentes”, escreveu o seu maior biógrafo, Roberto Ridolfi299, “e a fortuna os havia separado e distanciado ainda mais”. Todavia, aquelas poucas horas passadas juntos bastaram para estreitar sua amizade: “Maquiavel propagava, além da fascinação de seu talento, um calor humano que derreteu o gelo de Guicciardini”. Assim, a partir das primeiras cartas que se seguiram, a relação entre eles se revelava íntima e caracterizada por uma viva cordialidade. Como na correpondência com Vettori, também nessa troca epistolar o tom brincalhão se alterna com reflexões sérias, e, não raro, preocupadas. Já no dia seguinte ao encontro em Módena, Guicciardini, ciente de uma missão adicional encomendada pela guilda da lã a Maquiavel – que aproveitara o fato de ele se encontrar no capítulo franciscano de Carpi para pedir-lhe que escolhesse um renomado pregador –, e bem conhecendo suas opiniões a respeito, zombava dos “reverendos cônsules” daquela corporação que agiram – escreve – como se a Pacchierotto ou ao senhor Sano, dois conhecidos homossexuais florentinos, “tivesse sido dado o encargo de encontrar uma bela e galante mulher para um amigo”. No mesmo dia, começou uma troça com os anfitriões de Maquiavel, provavelmente orquestrada desde o encontro de Módena: o governador lhe enviou a todo vapor, em Carpi, um soldado que, “com uma inclinação de reverência até o solo”, lhe entregou uma missiva, causando uma notável impressão entre os presentes, levados a acreditar que o enviado florentino e o governador de Módena trocavam notícias de

especial urgência. A cena se repetiu no dia seguinte com um outro enviado, que levava um “grande feixe de cartas”, cuja “fumaça subiu até o céu”, e todos a pedirem àquele que agora era considerado um personagem de primeiríssima importância notícias do grande mundo político. Maquiavel não se fez de rogado: mostrou ao chanceler do senhor de Carpi, que o hospedava, “os capítulos dos suíços e do rei [da França]. Pareceu-lhe coisa grande; disse-lhe da doença de César e dos Estados que desejava comprar na França, de uma maneira que lhe deixava boquiaberto”300. O próprio estilo da correspondência é intencionalmente cômico, e pode lembrar o do então recente trabalho de Maquiavel, A mandrágora. O início das cartas tinha um evidente sabor burlesco: “Magnífico vir, superior reverendíssimo. Estava no banheiro quando chegou vosso mensageiro [...]”, ou então: “Magnífico Domine, cazzus! É preciso ser rápido com este [...]”. E, da mesma forma, digna da comédia é a descrição de algumas cenas, lembram o senhor Nícia, quando lemos sobre quem são aqueles que estavam em volta de Maquiavel à chegada do correio: Todos estavam de boca aberta e com o barrete em mãos, e, enquanto escrevo, me circundam, e, vendo-me escrever por longo tempo, admiram-se e tomam-me por possesso, e eu, para deixá-los ainda mais admirados, às vezes me detenho na escrita e me inflamo, e então eles ficam boquiabertos.

Para ficarmos nas cenas de A mandrágora, podemos lembrar certas respostas de Calímaco, em solenes vestes de doutor, quando Maquiavel se voltou para seu anfitrião, que morria de curiosidade: Eu lhe respondo com poucas palavras mal juntadas e me baseio no dilúvio que deve vir, ou no Turco que deve passar [na Itália], e boa coisa seria fazer a Cruzada nestes tempos, e fofocas semelhantes, contadas em bancos de praça.

Mas, em meio à brincadeira e ao escárnio, alternam-se reflexões sérias. Guicciardini pensava melancolicamente na sorte do amigo: Quando leio seus títulos de mensageiro da República e dos frades, e pondero com quantos reis, duques e príncipes em outras oportunidades negociou, lembro-me de Lisandro, a quem, depois de tantas vitórias e troféus, entregouse a responsabilidade de distribuir a carne àqueles mesmos soldados que tão gloriosamente havia comandado.

O general espartano, celebrado por Plutarco, seguramente era um personagem familiar, porque dele o historiador grego disse que sabia costurar pele de raposa nas vestes de leão, como Maquiavel queria que seu príncipe fizesse. Mas as considerações de Guicciardini influenciaram a própria visão do destino humano: Veja como, apenas mudando o rosto dos homens e os costumes externos, as mesmas coisas voltam, e nem vemos qualquer acidente que já não se tenha visto em outros tempos. Mas a mudança de nomes e de imagem das coisas faz com que apenas os prudentes as reconheçam, e, por isso, a história é boa e útil.301São pensamentos em torno dos quais Guicciardini reflete constantemente. Assim, nos Ricordi (LXXVI), escreve: Tudo o que existiu no passado e existe no presente existirá ainda no futuro; mas mudam os nomes e a superfície das coisas, de modo que aquele que não tem bom olho não as reconhece, nem sabe como tirar lições ou dar sua opinião por essa observação.

Não pensava diferente o seu amigo, que, nos Discursos (III, 43), ecoando o Eclesiastes302, escreveu: Costumam dizer os homens prudentes [...] que aqueles que querem ver o que existirá considerem o que existiu: porque todas as coisas do mundo, em qualquer tempo, têm a sua provação com os tempos antigos. Isso é assim porque, sendo tais coisas realizadas pelos homens, que têm e tiveram sempre as mesmas paixões, convêm, necessariamente, que surtam o mesmo efeito.

É

É o mesmo princípio da repetibilidade das coisas humanas, ilustrado no proêmio do primeiro livro, em que afirma a necessidade de imitar os antigos, em polêmica com os que não acham que isso seja possível: “como se o céu, o sol, os elementos, os homens tivessem variado de movimento, de ordem e de potência em relação ao que eram antigamente”. Pela carta de Guicciardini de 18 de maio, podemos compreender, sem espanto, que ele pôde ler algumas páginas dos Discursos, visto que observou: Esta missão não lhe será de todo inútil, porque, no ócio destes três dias, terá de suportar toda a “república dos tamancos”303, e com algum propósito lhe valerá esse modelo, opondo-o ou comparando-o com qualquer de suas condutas.

A alusão pode se referir apenas ao segundo capítulo dos Discursos, em que é exposto “de quantas espécies são as repúblicas”. Apesar de, por isso, sobre escolhas políticas igualmente importantes, como também sobre alguns pontos de sua reflexão, haver entre os dois amigos divergências de pontos de vista – inclusive sobre não poucas afirmações dos Discursos, como atestam as mais tardias Considerazioni [Considerações] de Guicciardini sobre essa obra –, notamos, a propósito de algumas linhas gerais da visão de mundo de cada um, uma harmonia de sentimento que certamente contribuiu para tornar mais sólida a sua relação e para superar suas diferenças de opinião. Nos anos seguintes, sua correspondência ficaria mais espaçada, ou, talvez, algumas cartas foram perdidas. Por exemplo, da carta em que Maquiavel expressa o desejo de poder consultar o amigo sobre a História de Florença, não chegou até nós senão um fragmento. De qualquer modo, a relação entre eles continuaria a alternar momentos graves e episódios zombeteiros. Em junho de 1525, depois de presentear o papa com a História de Florença, Maquiavel, que evidentemente sempre gozou de boa fama como técnico militar, sugeriu ao pontífice instituir na Romanha

uma milícia que provesse a defesa da região na difícil situação provocada pela derrota francesa em Pavia. Persistia nele a lembrança das “armas”, criadas naquelas terras pelo Valentino, e Clemente VII o encaminhou para Guicciardini, governador daquela região, com uma carta em que recomendava calorosamente essa provisão definida, não sem grande afetação, como a “salvação do Estado eclesiástico, de toda a Itália e de quase toda a cristandade”. Guicciardini tampouco estava convencido da boa inclinação de tais disposições. E escreveu ao seu agente em Roma, Cesare Colombo, em 22 de junho: a Romanha estava em condições tais que não permitiam “colocar armas na mão da população”, seja por causa dos ódios e das facções que a dividiam, seja porque “a Igreja não tem amigos na Romanha”, e o papa não poderia “se valer do amor do povo”. Este, em especial, deve ter sido um argumento convincente também para Maquiavel, que abandonou a empresa de uma hora para outra. Apesar desse incidente, as relações entre os dois amigos permaneceriam cordiais. Assim, em 2 de julho, Guicciardini lhe escreveu em tom zombeteiro que “depois da sua partida, Marescotta [uma conhecida cortesã] falou muito respeitosamente sobre você”. De sua parte, Maquiavel prometeu visitar duas fazendas que Guicciardini adquirira em Mugello sem tê-las visto previamente, e, em 3 de agosto, informou-lhe cuidadosamente sobre a inspeção efetuada. De uma das duas, chamada La Colombaia, confirmou as boas condições e a produtividade, mas essas notícias são precedidas por informações sobre a outra, que se chamava Finocchieto: “a Arábia Petreia”, observou, “não está constituída de outro modo”, e, abaixo, uma descrição deprimente do terreno, e o conselho para “grudá-lo” em alguém. Jocosamente, Gicciardini respondeu quatro dias depois, fingindo que a resposta foi escrita pela “Madona Possessão de Finocchieto”: esta “deseja a Maquiavel saúde e juízo purgado”, e escreve uma longa apologia das próprias virtudes e dos próprios méritos, afirmando que, se parecia

de modo um tanto desagradável diante de todos, o fazia porque queria agradar somente ao proprietário que ama, e pelo qual se sabe amada304.

6. Clízia e os madrigais em música Guicciardini, entretanto, leu A mandrágora e gostou tanto que queria representá-la em Faenza, no carnaval do ano seguinte. Maquiavel ficou contente com isso, e é provável que, em setembro, retornando de uma viagem a Veneza, onde fora para recuperar alguns bens de mercadores florentinos, fez uma breve parada na casa do amigo, que lhe confiou algumas obscuridades suscitadas pela leitura da comédia. Por isso, na metade de outubro, o autor tratou de lhe esclarecer acerca de alguns ditos e termos da comédia com uma carta de sabor bizarro, num tom jocosamente erudito, em que, inclusive chegava a citar a segunda década de Tito Lívio, perdida305. Mas Guicciardini queria ainda mais: não considerava o prólogo original apropriado para os espectadores de Faenza, e pedia também algum interlúdio para ser recitado entre os atos. Maquiavel o deixaria bem contente por não só compor um novo prólogo, mas, em 3 de janeiro de 1526, lhe escreveria: “Fizemos cinco canções novas a propósito da comédia, e foram musicadas para serem cantadas entre os atos”. De fato, ele introduziu uma novidade, o madrigal cantado, que, no ano anterior, já queria introduzir na apresentação de uma nova comédia, Clizia. Segundo um ilustre musicólogo, não existe nenhum exemplo de madrigal musicado para o teatro, antes daquele composto por Maquiavel, que, para isso, valeu-se da arte de um musicista francês então bastante famoso, Philippe Verdelot306. É possível que a ideia de introduzir a música em suas comédias tenha sido inspirada pelo desejo de agradar “la Barbera”, uma cantora e atriz por quem Maquiavel se havia apaixonado naqueles dias. Desde 1523, passou a frequentar um rico homem do povo, Iacopo Falconetti, conhecido como

“o Forneiro”, porque, na vasta área para além da Porta San Frediano, onde morava, possuía um grande forno, do qual tirava boa parte de sua fortuna. Depois de ter sido membro de um dos colégios da Signoria, foi cassado por razões que desconhecemos, e confinado por cinco anos em sua casa. Nessa prisão domiciliar, porém, vivia alegremente: era frequentado por importantes personagens florentinos, recebidos com banquetes e festas. Foi ali que, provavelmente, Maquiavel conheceu Barbara Salutati Raffacani, e, quando, em 1525, o Forneiro quis organizar uma apresentação teatral, sugerindo repetir a interpretação de A mandrágora, preferiu compor outra comédia – justamente a Clizia – para agradar seu novo amor: a amiga poderia, assim, exibir seus dotes canoros, graças às canções musicadas introduzidas entre um ato e outro. Tratava-se de uma derivação da trama da comédia Cásina, de Plauto, mas, graças a sua verve, conseguiu dar originalidade ao trabalho. Quis relacioná-lo a A mandrágora, situando os acontecimentos dois anos depois dos que envolveram Calímaco e Lucrécia, e inserindo algumas referências aos personagens do outro trabalho. O personagem principal de Clizia, um velho padre apaixonado pela moça que ele mesmo encontrou e educou, introduzia uma carga de autoironia na trama, porque Maquiavel lhe atribui um nome no qual aparecem as primeiras letras de seu nome e sobrenome, Nicômaco. A tentativa do ancião de casar Clizia com um servo seu, para depois poder tornar-se seu amante, é frustrada pela mulher, e a revelação final da moça, uma nobre de berço, torna possível o matrimônio com o jovem Learco, que a ama. O espírito da comédia não é o mesmo que o de A mandrágora. Nesta, também o engano possui uma leveza capaz de dar um respiro aos acontecimentos, que se sucedem com lúcida precisão. Apenas a ingenuidade de Messer Nícia introduz tons farsescos, que quase nunca excedem o âmbito da grande tradição burlesca. Pelo contrário, no desejo amoroso do velho Nicômaco, o ridículo

culmina no escárnio da mortificação final, e raramente encontramos a feliz genialidade da comédia anterior. A partir dessas diferentes veias humorísticas do autor, podem parecer emblemáticas as figuras dos dois nus silenciosos, evocados ao final de ambas as comédias. O corpo de Calímaco, nu e admirado por Nícia, é descrito em seu esplendor juvenil: “Você nunca viu as mais belas carnes: brancas, macias, pastosas. E não perguntou por outras coisas”. Todavia, o servo Siro, “erguido sobre a cama, totalmente pelado”, voltado em estado priápico para Nicômaco, crente que estava se deitando com Clizia, troça dele com um gesto obsceno. Ao final, o velho Nicômaco é humilhado a ponto de despertar a compaixão até de sua mulher: “Pobre homem, foi publicamente exposto ao ridículo! Sente-se menosprezado”307. O Forneiro não economizou em nada, e como os cenários de A mandrágora haviam sido feitos por Andrea del Sarto e Bastiano da Sangallo, encarregou este de fazer os cenários para a Clizia. Participaram da festa, com outros hóspedes ilustres, os mesmos dois jovens descendentes da casa dos Médici, Hipólito e Alexandre. Entende-se porque, de Módena, um amigo, que mais tarde teria feito nome como historiógrafo, Filippo de Nerli, celebrou a representação com entusiasmo: O Forneiro e você, você e o Forneiro conseguiram que não só por toda a Toscana, mas ainda pela Lombardia, se tenha espalhado a fama de suas magnificências [...]. A fama de sua comédia correu todos os lugares; e não creia que sei essas coisas por carta de amigos, mas delas soube por viandantes que por todo o caminho vão predicando “as gloriosas pompas e os altivos jogos” da Porta de San Friano.308

Mesmo decorridos anos, a festa na casa do Forneiro, por seu esplendor, e a representação da comédia, por seu sucesso, seriam lembradas na Repubblica fiorentina [República Florentina], escrita por um outro amigo dos Orti Oricellari, Donato Giannotti309.

Ú

7. Último ato Nesse ínterim, porém, o horizonte italiano ficava cada vez mais sombrio. Já foi lembrada a batalha de Pavia: naquela jornada, a vitória do exército de Carlos V marcou o destino da península. O ducado de Milão, enfim já plenamente nas mãos dos imperiais, era governado por um Sforza, que tinha a autonomia de um fantoche. Seu ministro, Girolamo Morone, queria reverter a situação e se juntar aos antiimperiais, buscando atrair o marquês de Pescara, lugartenente de Carlos V: a tentativa, perigosa demais, falharia. “Morone foi preso”, escreve Maquiavel a Guicciardini, no final de outubro de 1525, “e o ducado de Milão está liquidado”. Ele também achava que Clemente VII estivesse em perigo, e, ao citar, como sempre de memória, Dante (Purg. XX, vv. 86-7): “Vejo em Alagna a flor-de-lis, e em seu vigário Cristo ser cativado”, parecia pressagiar o saque de Roma de 1527. A carta se encerrava acusando os príncipes italianos (“que fizeram todos de tudo para nos trazer até aqui”) e foi assinada: “Nicolau Maquiavel, historiador, comediógrafo e tragediógrafo”310. Em 18 de março de 1526, Francisco I, prisioneiro na Espanha, depois da derrota de Pavia no ano anterior, foi libertado por Carlos V. Isso parecia inacreditável para Maquiavel, que, em suas cartas a Guicciardini, e, em particular na de 15 de março, quando a notícia já estava circulando, debateu fartamente os vários problemas. Depois de ter exposto os eventuais argumentos que o rei da França poderia ter empregado para obter a liberação, concluiu: “Mesmo juntando toda a inteligência possível, não seria suficiente para curar o imperador de sua estupidez”, e, por esses dias, compôs uma epigrama contra “o louco/ Carlos, rei dos Romanos”311. Que a decisão do destino de Francisco I fosse bastante questionada até entre os mais íntimos colaboradores do imperador, logo se soube, e a discussão seria relatada por Guicciardini312. O desenrolar dos acontecimentos seguintes mostraria que, na verdade, o

imperador, se não havia conseguido obter muito, porque Francisco I, assim que entrou em seu reino, havia declarado nulas todas as concessões conseguidas enquanto ele estava prisioneiro, ao menos se havia livrado de uma situação embaraçosa, não podendo manter o rei da França prisioneiro por muito mais tempo. Ora, este, diante do mundo político europeu, faria o papel de quem faltou com a palavra e de traidor dos próprios filhos, entregues como reféns em troca de sua libertação. Em tempos como aqueles, as condições de seu reino não lhe permitiam enfrentar logo um conflito com Carlos V. Com efeito, a Liga de Cognac, assinada em 22 de maio de 1526, entre a França, o papa, Veneza, Florença e o duque de Milão foi mais uma ameaça no papel do que nos campos de batalha. Francisco I não pôde ou não quis intervir imediatamente na Itália, e os potentados italianos demonstraram ser os incapazes que Maquiavel denunciava em seus escritos. Uma esperança ainda lhe restava por um breve momento: acreditava ter encontrado um personagem à altura da situação em João de Médici, o condottiere conhecido como João das Bandas Negras. Ciente da ousada proposta, escreveu a Guicciardini em 15 de março: “Eu digo uma coisa que lhe parecerá uma loucura; vou apresentar um plano que lhes parecerá ou temerário ou ridículo”. Mas a situação se estava transformando com grande rapidez, e “estes tempos requerem deliberações audazes, inusitadas e estranhas”. Assim, reportou o rumor do que, “há poucos dias, dizia-se por Florença”: sabia bem que “os povos são diferentes e estúpidos”, todavia “dizem muitas vezes que se faça o que deveria ser feito”. O rumor era que João de Médici “erguia uma bandeira mercenária para fazer guerra onde melhor fosse”. Quem sabe pudesse ser o “redentor” invocado em O Príncipe, o personagem que Fabrizio Colonna havia anunciado, capaz de imitar Filipe da Macedônia, quando, pela força das armas, unificou a Grécia? Provavelmente nem mesmo Maquiavel chegava a esperar tanto, mas era ao menos possível que esse homem de

armas, “audaz, impetuoso, de grandes ideias, gerador de grandes soluções”, conseguisse mostrar aos espanhóis que não seria possível “arruinar a Toscana e a Igreja sem obstáculos”. Não seria necessário que o papa se expusesse demais, observava: poderia financiar dissimuladamente a sua empresa contra os espanhóis no ducado de Milão. E o rei da França, “vendo que teria de concordar com gentes vivas, que, além de convencê-lo, mostram-lhe os fatos”, teria sido energicamente levado a combater313. Ocorre que as “deliberações audazes” certamente não eram da natureza de Clemente VII, sem contar a desconfiança dos Médici da linha primogênita em relação ao ramo cadete. A ducha fria não demoraria a chegar. Em 31 de março, Filippo Strozzi lhe escreveu informando ter lido sua carta a Guicciardini, e que não compartilhava de sua proposta de uma ação na Lombardia sob a responsabilidade de João de Médici. Trata-se da mesma posição do papa, com quem falou daquele projeto: a objeção é que o papa ficaria igualmente descoberto, porque “transmitindo-lhe Nosso Senhor o dinheiro [a João de Médici], a empresa se torna sua”. Naquele momento, Clemente VII não queria expor-se de maneira alguma. Todavia, Maquiavel não recuava, e, depois de ter ouvido sobre a explosão de tumultos populares em Milão contra os espanhóis, no final de abril, escreveu uma vez mais a Guicciardini, em 17 de maio de 1526: Compreendi os rumores da Lombardia, e sabe-se, em toda parte, o quanto facilitaria varrer os safados deste país. Pelo amor de Deus, não se perca esta ocasião, e lembre-se de como a fortuna, os nossos maus conselhos e os piores ministros conduziriam não o rei [da França], mas o papa, à prisão [...]. Providencie agora, pelo amor de Deus, uma maneira com que Sua Santidade não corra os mesmos perigos, pois vocês jamais estarão seguros se não quando os espanhóis forem arrancados da Lombardia de modo tal que não possam mais voltar.

É uma das cartas mais comovidas e perturbadas de Maquiavel: em toda a sua correspondência, a que, por duas

vezes, encontramos evocado “o amor de Deus”. O encerramento da carta tem um análogo tom apaixonado: Sabe quantas oportunidades se perderam: não perca esta, não confie mais na situação atual, entregando-se à fortuna e ao tempo, porque, com o tempo, nem sempre vêm as mesmas coisas, nem a fortuna é sempre a mesma.

E, ao final, com uma frase de Tito Lívio, lançava uma exortação desesperada: “Liberate diuturna cura Italiam” [“Livrai a Itália do longo cuidado”]314. Ele ficou angustiado por saber que, em Milão, continuava a fermentação popular, e que o duque, assediado no castelo, resistia aos espanhóis, enquanto quem deveria intervir em seu auxílio hesitava, refém de incertezas, mais preso às desconfianças em relação aos outros potentados italianos do que ao perigo representado pela potência espanhola. Por fim, nos últimos dias de junho, os membros da coalizão se movimentaram. Mas não estavam unidos: o papa tinha seu próprio capitão geral; os florentinos, outro; os venezianos pagaram ao duque de Urbino; e, a soldo do rei da França, João das Bandas Negras também interviu. O ataque à Lombardia, porém, foi tão frágil que, depois de ter ocupado Lodi, o exército da Liga acampou diante de Milão, sem fazer movimentos para conquistar a cidade, esperando que os milaneses, com os aliados à porta, se sublevassem. Mas a repressão espanhola havia surtido efeito, e nenhuma revolta estourou. Pouco depois, o duque de Urbino abandonou o cerco e se retirou para Marignano. O ataque fracassou. Na metade de julho, Maquiavel chegou ao campo, mas as operações bélicas cessaram quase totalmente. Havia pouco, fora nomeado chanceler da nova magistratura dos Provedores das Muralhas, encarregados da defesa de Florença, e não estava clara a razão pela qual se deslocou para a Lombardia: talvez fosse chamado por Guicciardini, enviado pelo papa como seu lugar-tenente geral. A situação devia ter-se desenhado subitamente negativa, quando, em 18 de julho, Guicciardini escreveu a Roberto Acciaiuoli:

Maquiavel encontra-se aqui. Veio para reorganizar esta milícia, mas, vendo quão corrompida está, não crê que se possam fazer honrar. Rirá dos erros dos homens, uma vez que não pode corrigi-los315.

Seu riso, porém, não devia ser muito alegre. Como já havia escrito em um estramboto: Eu espero, e esperar aumenta meu tormento, eu choro, e chorar o lasso coração alimenta, eu rio, e meu riso não me passa adentro [...] Esperando, então, eu rio e me abraso e choro, e com o que ouço e vejo logo eu me apavoro.316Poucos dias depois, também o castelo foi obrigado a se render aos espanhóis, e as forças da Liga se retiraram de Milão. Em 30 de julho, atacaram Cremona, supondo-a uma presa fácil, mas também nesse caso estavam em inferioridade. A cidade não capitularia até 23 de setembro, depois que os aliados perderam a oportunidade de se deslocar para Gênova para impedir o desembarque de reforços da Espanha. Uma carta de Maquiavel a um jovem amigo, Bartolomeu Cavalcanti, esboçava a dramática inconsistência dos aliados: A razão pela qual o papa iniciou esta guerra antes que o rei da França enviasse seus homens para a Itália, e atacasse a Espanha, como cumpria, ou antes que todos os suíços tivessem chegado, foi a esperança que se depositou sobre a população de Milão, e a crença de que seis mil suíços, mobilizados pelos venezianos e por ele nos primeiros tumultos de Milão, fossem tão rápidos a ponto de chegar ao mesmo tempo que os venezianos com seu exército; e, logo depois, acreditando que as tropas reais, embora não fossem tão rápidas, ao menos chegariam a tempo de poder ajudar a vencer a empresa.317

Visto que Francesco Sforza estava cercado no castelo, e era necessário socorrê-lo, colocaram-se em movimento, esperando que a guerra pudesse ser encerrada rapidamente. Mas, entre os “pressupostos”, ao menos “dois importantíssimos” fracassaram: os suíços não chegaram, e os milaneses não se rebelaram. O exército da Liga se retirou para Marignano; mais tarde, chegados os suíços, voltou a Milão, mas não a atacou. Decidiu-se assaltar Cremona, mas deixando parte das forças em Milão: “o que foi contra uma de minhas regras que diz que não é uma decisão sábia arriscar toda a fortuna, e não todas as forças”318. Em conclusão, “[...] perdemos esta guerra duas vezes: uma

quando fomos a Milão e não ficamos; outra quando chegamos e não adentramos Cremona”. As coisas pioravam depois: os Colonna, aliados da Espanha, atacaram o reino de Nápoles, penetraram nos Estados do papa, chegaram a Roma e a saquearam. Clemente VII, confuso também pela notícia da vitória dos turcos em Mohács, em agosto anterior, que abria caminho para seu avanço até a Hungria, pensava então na paz com o imperador e firmou uma trégua com o vice-rei de Nápoles. A Liga de Cognac acabou se dissolvendo, e a situação italiana ruía. Bandos de lansquenetes descem da Alemanha para a Itália, animados por um fanático luterano, Georg von Frundsberg, que desejava punir “o Anticristo” que reinava em Roma. Os venezianos se pouparam bem de enfrentá-los, satisfeitos com o que rendiam os saques nos países que atravessavam. João de Médici quis detê-los no Pó, mas, em 25 de novembro, foi mortalmente ferido em combate. Pelas cartas que Maquiavel, novamente enviado para junto de Guicciardini pela Signoria florentina, escreveu entre fevereiro e abril de 1527, podemos acompanhar sua jornada a Roma, que se desenvolveria com inexorável fatalidade. Apesar de, no papel, as forças que deveriam enfrentar os lansquenetes serem superiores, inclusive depois que nos arredores de Piacenza a elas se uniu a soldadesca do condestável de Bourbon, que havia rompido com Francisco I, os grupos alemães continuaram seu avanço, atraídos pela miragem do butim que prometia o saque da capital do papa. Não os detinha nem mesmo a anarquia em que se encontravam quando, em março, ficaram sem chefe devido ao ataque de apoplexia sofrido por Frundsberg, em um acesso de ira, levando-o à morte. O papa, que, nos dias das tratativas para a formação da Liga de Cognac se opusera à adesão do duque de Ferrara, agora invocava sua ajuda, disposto a entregar a própria sobrinha Catarina (futura rainha da França) em matrimônio para o filho deste, Hércules. O duque respondeu que já

firmara um acordo com Carlos V. O duque de Urbino, irritado com Clemente VII por não obrigar os florentinos a lhe devolverem a fortaleza de San Leo, que ameaçava sua capital, permaneceu indiferente no próprio ducado. Por uma carta de Maquiavel a Francesco Vettori de 5 de abril de 1527, sabemos que Guicciardini submeteu ao papa uma alternativa: ou a vigorosa retomada das hostilidades contra os espanhóis, ou uma sólida paz com eles. A trégua era apenas um caminho do meio, que não afastava os perigos319. Mas, ainda uma vez, diante de uma decisão enérgica, Clemente VII se mostrava recalcitrante. O avanço dos lansquenetes colocava Florença em risco: se o vice-rei de Nápoles impedisse o ataque deles a Roma, provavelmente eles se voltariam contra o território florentino. Por isso, Maquiavel encorajou Vettori para que Pisa, Pistoia, Prato e, naturalmente, Florença, se preparassem para se defender. Em vez disso, a marcha dos lansquenetes continuava imperturbável, e não tiveram êxito as sucessivas exortações de Maquiavel para que “os aliados venham, sem reverência alguma”, acordar uma trégua, que os espanhóis seriam os primeiros a não respeitar. Havia ainda a possibilidade de unir forças e obrigar os invasores a uma retirada: “Aqui não é mais necessário claudicar, senão agir como louco”, e recordou que “muitas vezes o desespero encontra remédios que a eleição não soube encontrar”. Mas, para chegar a isso, seriam necessárias decisões enfáticas, porque – concluía na carta a Vettori – “pela experiência que sessenta anos me deram, creio que nunca antes provocaram tanta aflição momentos mais difíceis que estes, em que a paz é necessária, e a guerra não pode ser abandonada”320. Em 22 de abril, retornava a Florença, onde, no dia seguinte, também chegaria Guicciardini para fiscalizar as medidas tomadas para a defesa da cidade que, apesar do inepto trio de cardeais que a governava (Silvio Passerini, Niccolò Ridolfi e Innocenzo Cybo), parecia aos lansquenetes bem protegida a ponto de deixarem-na de lado. Porém,

antes que isso se fizesse sabido, um grupo de jovens solicitou armas para poder combater aqueles bandos ferozes. As armas foram prometidas, mas não seriam entregues, e, em 26 de abril, estourou um tumulto que amedrontou tanto os cardeais que foram levados a abandonar a cidade. O Palácio foi ocupado, e a Signoria foi obrigada a declarar os Médici rebeldes e a restaurar os ordenamentos vigentes antes de seu retorno, em 1512. Mas as tropas da Liga que não se opuseram aos lansquenetes serviram agora aos cardeais para tornar a entrar na cidade e obrigar os revoltosos a chegar a um acordo: assegurou-se que não seriam punidos, e que o poder dos Médici seria restaurado. No entanto, em 6 de maio, bandos de lansquenetes e do condestável de Bourbon (morto no assalto às muralhas por um disparo de arcabuz que Benvenuto Cellini se vangloriou de ter disparado) entraram em Roma e a submeteram a um terrível saque. Cinco dias depois, a notícia chegou a Florença, e, dessa vez, a República foi instaurada definitivamente. Temos escassas notícias de Maquiavel nesses dias. Provavelmente, em 26 de abril, o dia do tumulto dos jovens, já deveria estar a caminho de Roma para encontrar as forças mobilizadas para socorrer o papa. Guicciardini também havia deixado Florença pela mesma razão. A notícia do saque de Roma os alcançou nos arredores de Orvieto, e, ao ouvir a notícia de que os Médici haviam sido expulsos de sua cidade, ambos decidiram dar meia volta e retornar: primeiramente, Maquiavel, por mar, de Civitavecchia a Livorno. O ex-secretário esperava poder retomar o seu antigo posto na República restaurada, mesmo que aparentemente ciente de que a sua recente colaboração a serviço de Clemente VII lhe seria desfavorável. Com efeito, em 10 de junho, o governo florentino confirmou na secretaria um outro funcionário que já havia ocupado aquele cargo no governo dos Médici321. Todavia, a Maquiavel restavam poucos dias de vida: de fato, ele morreria em 21 de junho de 1527. Não sabemos

bem, mas, havia tempos, padecia de males do estômago ou do intestino. Escrevendo a Guicciardini em 17 de agosto de 1525, havia exagerado o efeito de certas pílulas que mandava preparar com vários ingredientes e que enviara então ao amigo322. É provável, no entanto, que tenham acelerado o seu fim. Paolo Giovio, na breve biografia que escreveu, atribui sua morte àquele “fármaco”323, traçando sobre Maquiavel, segundo se diz – a quem definia como “escarnecedor e ateu” –, o mesmo que são Jerônimo disse de Lucrécio, o poeta latino com igual fama de impiedade, que teria sido vítima de um amavio amoroso. Mas se retirarmos da acusação os propósitos denegridores, pode ser que o seu fim possa mesmo ser atribuído àquela causa: as pílulas elogiadas por Maquiavel por seus efeitos purgativos continham, entre outros, um ingrediente que ele designava “carmandeos”; trata-se, provavelmente, do camédrio, uma substância que, sobretudo em consumo constante, pode provocar efeitos gravemente nocivos ao fígado, tanto que, atualmente, sua utilização farmacêutica está proibida. Conta-se que, aos amigos que foram visitá-lo pouco antes de sua morte – Zanobi Buondelmonti e Luigi Alamanni, recém-chegados do exílio a que tinham sido submetidos por causa da conspiração de 1522, Filippo Strozzi, Francesco del Nero e Jacopo Nardi –, narrou um sonho que teve naqueles dias: havia visto uma multidão de pobres esfarrapados, famintos, entrevados, mal-ajambrados e de quem ouviu que eram os espíritos bem-aventurados do paraíso, sobre os quais está escrito: “Beati pauperes, quoniam ipsorum est regnum coelorum” [“bem-aventurados os pobres, pois deles é o reino dos céus”]. Logo depois, apareceu-lhe um grupo de personagens cheios de gravidade e de majestade: passava a impressão de uma assembleia dedicada a discutir negócios de Estado. Entre eles, reconheceu Platão, Sêneca, Plutarco, Tácito e outros famosos literatos antigos. Estes – foi-lhe comunicado – estavam condenados ao inferno, porque está escrito: “Sapientia huius saeculi inimica est

Dei” [“a sabedoria deste século é inimiga de Deus”]. Quando lhe foi perguntado com quem desejava ir, respondeu que preferia estar no inferno com essas grandes almas, para debater com eles os assuntos de Estado, do que com aquela gentalha, que lhe havia sido mostrada324.É possível que o relato seja uma lenda, e sabemos que, no século XVII, foi aproveitada por escritores “antimaquiavelistas”, todavia quem o conhecia já fazia referência a ela325. De forma sensata, Sasso observa que a questão a ser colocada não é em termos de veracidade ou falsidade, mas em que medida parece estar “ou não de acordo com o que Maquiavel concretamente imaginou, narrou em novelas, pensou e escreveu”326. Já se sabe como essas imagens do paraíso e do inferno devem ser vistas em relação às críticas dirigidas nos Discursos à religião cristã, interpretada segundo o ócio, e não segundo a virtude (II, 2). Podemos pensar que, desde os meses que precederam a restauração da república florentina, e ainda nos poucos dias vividos em Florença até sua morte, a reminiscência das tendências savonarolianas pode ter criado em Maquiavel tal atitude polêmica de desprezo pelos pauperes [pobres], personificação das virtudes cristãs, e, ao contrário, de respeito pela sapientia huius saeculi [sabedoria deste século]. Villari, por sua vez, observou harmonia entre o espírito daquele sonho e outros escritos de Maquiavel327. Em A mandrágora (IV, 1), Calímaco, ansioso por saber se frei Timóteo convenceu Lucrécia a tomar a poção, desabafa: “Em quanta angústia minha alma esteve e está!”. E, após debater as diferentes possibilidades, diz a si mesmo: “O pior que lhe pode acontecer é morrer e ir para o inferno: tantos outros já morreram! E estão no inferno tantos homens de bem! Você vai se envergonhar de ir também?”. Como se sabe, o papa Leão X se reconciliou com Maquiavel justamente depois de ter assistido à representação de sua comédia. Por outro lado, em Vita di Castruccio Castracani, atribui-se ao condottiere de Lucca uma expressão não menos escandalosa: “Perguntado se, para salvar a alma,

pensou alguma vez em ser padre, respondeu que não, porque lhe parecia estranho que frei Lázaro tivesse de ser enviado ao paraíso, e Uguccione della Faggiuola, ao inferno”328. Já se lembrou que a Vita di Castruccio foi uma espécie de prova escrita que Maquiavel fez para receber do futuro papa Clemente VII a missão de escrever a História de Florença. Se, na época da Contrarreforma, o relato do sonho foi usado pelos “antimaquiavelistas” para demonstrar a impiedade do autor de O Príncipe, quando Maquiavel era vivo um chiste espirituoso ainda era ouvido com simpatia.

Apêndice Notas em torno do termo “Estado” em Maquiavel Volto a publicar aqui, com mínimas alterações, o trabalho que escrevi para o volume Storia sociale e politica. Omaggio a Rosario Villari [História social e política. Homenagem a Rosario Villari], organizado por Alberto Merola, Giovanni Muto, Elena Valeri, Maria Antonietta Visceglia (Franco Angeli, Milão, 2007, p. 79-98). A ideia de Estado está frequentemente envolta, em nossos dias, em considerações que unem, de modo contraditório, uma vontade exasperada de controle e disciplinamento à aversão às restrições que tal instituição comporta. Assim, aumentam as lamentações pelo “Estado excessivo”, que oneraria a sociedade, mas também pelo abandono em que os cidadãos são deixados diante das dificuldades da vida, ou então ouvimos erguerem-se apelos de endurecimento das leis que regulam a ordem pública e, ao mesmo tempo, de mitigação das normas referentes a outras infrações não menos nocivas à segurança geral. Tais críticas mostram o descolamento entre sociedade civil e Estado, como consequência das profundas transformações da vida econômica e das relações internacionais ocorridas nas últimas décadas. E, todavia, já há meio século, Bobbio apontou a controvertida relação entre Estado e liberdade, traçando duas direções: A que vai de Locke a Kant, segundo a qual a principal tarefa do Estado é garantir a liberdade natural, e, portanto, permitir efetivamente a existência segundo a liberdade, que, no estado de natureza, permanece como exigência, sim, mas não satisfeita, e é a tradição mais propriamente liberal, pela qual a função do Estado não é a de sobrepor suas próprias leis às naturais, mas sim fazer, mediante o exercício do poder coativo, com que as leis naturais sejam realmente operantes. A outra direção, que vai de Rousseau a Hegel, atribui ao Estado a função de eliminar totalmente a liberdade natural, que é a liberdade

do indivíduo isolado, e de transformá-la em liberdade civil, isto é, na liberdade entendida como perfeita adequação da vontade individual à coletiva, e é a tradição mais propriamente democrática.329

Talvez seja de alguma utilidade retroceder a anos longínquos, quando a noção de “Estado” começava a tomar forma, antes de se desenvolver completamente e desembarcar, na era liberal, na visão de um ente público ideal, coletivo e soberano, cujos interesses – escrevia um democrata daquele tempo, aberto às instituições liberais – “touchent tous les citoyens et souvent n’en touchent aucun en particulier: ils ne sont pas liés d’une manière sensible aux intérêts de chaque citoyen”330. Eram regras respeitadas por aqueles que, dizia-se, “têm o sentido de Estado”. Claro, Marx mais tarde esclareceria como os interesses das classes dominantes conseguiam incidir sobre a vida das sociedades organizadas, e teria sonhado com a extinção final do Estado, a ser alcançada graças à incessante progressão revolucionária de normas capazes de assegurar, ao mesmo tempo, liberdade e igualdade. O dramático fracasso do caminho tentado para conseguir tal objetivo, e, por reação, o agressivo individualismo que se desenvolveu até o findar do “século breve”, influíram sobre as próprias instituições e ordenamentos criados para garantir a coisa pública e o interesse geral. Maquiavel, para devolver vida aos “corpos mistos”, tais quais os Estados, sugeria “reduzi-los” a seus princípios, e o exame de seus escritos pode fornecer matéria de reflexão e nos fazer entender por quais vias a noção de “Estado” vemse formando. O exame terminológico já foi enfrentado em alguns estudos331 que, em geral, destacaram que “Estado”, na linguagem do secretário florentino, tem uma concepção diferente da que hoje temos. Vale a pena, todavia, refazer esse caminho e, mesmo limitando a resenha a uma rápida amostra em meio a centenas de trechos em que o vocábulo aparece, ter presentes também as atribuições e os deveres que a esse termo se referem.

*** No terceiro capítulo de O Príncipe, lemos que, em medicina, deve-se “prevenir com antecipação” para evitar que a doença se torne incurável: “assim sucede em matéria de Estado, porque, conhecendo por antecipação [...] os males que nele nascem, logo se curam”332. Um pouco mais adiante, encontramos uma dura crítica à política de Luís XII, que “fez o contrário do que se deve fazer para se manter um Estado [o de Milão] em uma província fora dos padrões”. O termo “Estado” retorna, portanto, não muitas linhas depois, mas com significado diverso: no primeiro caso, tem uma conotação institucional, próxima àquela de individualidade política, que assume caráter orgânico pela comparação, carregada de vitalidade, ao corpo humano; no segundo caso, ao contrário, designa o domínio territorial. Encontramos ainda um terceiro significado, por exemplo, no capítulo IX, em que, a propósito dos principados civis, Maquiavel observa: “Estes Estados costumam periclitar quando estão prestes a ascender do ordenamento civil para o absoluto”. Aqui, “Estado” indica o que hoje chamaríamos “regime”, e o seu dinamismo faz pensar na observação dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (I, 6: I, 216), mais de uma vez repetida em suas obras: estando as coisas dos homens em movimento, e não podendo permanecer fixas, convêm que sejam elevadas ou rebaixadas”333. Em tal caso, a ideia de movimento e de transformação se sobrepõe ao significado originário do termo – “condição”, “modo de ser” –, e o projeta em um horizonte histórico. Estamos diante de três exemplos encontrados em trechos redigidos num espaço de tempo muito reduzido. Mesmo convencido de que Chabod tivesse suposto, com razão, que O Príncipe foi redigido de um jato, em poucos meses, a partir do verão de 1513, preferi ater-me às páginas compreendidas naquele que, geralmente, é considerado o

primeiro núcleo do “opúsculo”: os onze capítulos iniciais334. De todo modo, deve-se notar que as observações sugeridas por seu exame não se opõem às que são deduzidas a partir de outros escritos de Maquiavel: o termo “Estado” nunca é objeto de uma definição; ao mesmo tempo, aparece alternando sempre os vários significados, mesmo que com diferentes matizes, e, em nenhuma de suas obras, encontrase ocorrência mais circunscrita ou unívoca. Ainda por volta de dez anos depois da redação de O Príncipe, em História de Florença, seu valor semântico conhece as mesmas variações. Encontramos, por exemplo, “Estado” com o sentido de domínio territorial, ao se referir à batalha de Agnadello, quando “em um dia foi tirado” dos venezianos “esse Estado que, em muitos anos, havia-se ganhado com infinito dispêndio” (I, 29: III, 350); no sentido de governo, regime, pode ser encontrado no discurso atribuído a um dos cidadãos, que, em 1371, protestam diante da Signoria por causa da prepotência do partido guelfo, lamentando que a liberdade seja oprimida “ou sob a cor do Estado de ottimati, ou de populares” (III, 5: III, 430); finalmente, em sentido institucional, encontramos o termo na passagem em que se fala do desgoverno do duque de Atenas, que suscitava nos “cidadãos [...] indignação, vendo a majestade de seu Estado arruinada” (II, 36: III, 411). Portanto, podemos descartar a hipótese de que, começando da primeira obra escrita post res perditas [“após os negócios arruinados”], e flagrando o “quondam [outrora] secretário” no momento em que começava a desenvolver sua reflexão política, seja possível acompanhar em seus escritos uma progressão sucessiva da noção de Estado. Tampouco se deve levar em consideração a possibilidade oposta: que tal noção esteja clara desde o princípio. Partindo da frase de abertura de O Príncipe (“Todos os Estados, todos os domínios que exerceram e exercem seu império sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados”), Bobbio observava que “Maquiavel não

poderia escrever aquela frase justamente no início da obra se a palavra em questão [Estado] já não fosse de uso corrente”335. Quase como confirmação dessa observação, podemos ler a famosa carta de 10 de dezembro de 1513, em que Maquiavel informa a Vettori ter “composto um opúsculo, O Príncipe”, e acrescenta que, uma vez lido, “se veria que não passei dormindo ou jogando os quinze anos que tenho dedicado ao estudo da arte do Estado” (II, 297). Sob a pena de Maquiavel, no entanto, a expressão “arte do Estado” – que ficou famosa depois que Burckhardt, falando de senhores e de príncipes italianos do Renascimento, definiu seu Estado como “obra de arte” – não indica a criação original de uma única personalidade, mas a atividade por ele desenvolvida na chancelaria florentina, equiparada ao aprendizado de um ofício como qualquer outro exercido nas corporações da época. E o termo “Estado” se refere aqui a uma entidade política estruturalmente complexa, que compreende não apenas o aparato administrativo da República, mas também o seu ordenamento normativo: em suma, começa a surgir o significado moderno do conceito. Tudo isso parece incontestável. No entanto, antes de O Príncipe, não encontramos em Maquiavel nenhum uso da palavra “Estado” no sentido institucional. Fredi Chiappelli, analisando os escritos elaborados nos primeiros tempos da chancelaria florentina, concluiu que eles pertencem a “uma fase da história do termo que mostra maior incerteza e oscilação do que em O Príncipe”336. Na correspondência privada, como também nos informes epistolares das legações, “Estado” é geralmente utilizado para se referir à república florentina: “o nosso Estado” (5 de junho de 1499), “este Estado” (5 de outubro de 1499) etc. Ou também diferentes Estados especificamente referidos: “o duque de Ferrara e o marquês de Mantova se uniram e se aproximaram com a desculpa de defender seus Estados” (21 de novembro de 1500). Poderíamos concluir que, de tal acepção, é fácil passar ao significado político-institucional

geral. Este, porém, não ocorre no primeiro Decennale, onde o termo aparece cinco vezes: nos versos 72 (“o vosso Estado popular fundastes”), 286 (“Nem mesmo o vosso Estado bem poderia/ deliberar”), 308 (“que sobre o vosso Estado põe o pé”), 420 (“reaver o Estado e a honra perdida”), 464 (“o Estado de seu duque de Valentinois”); no verso 286, o valor semântico é análogo ao que temos visto também nos escritos de governo: não designa uma individualidade abstrata, mas a república florentina; nos outros, indica o território, exceto no verso 72, em que significa governo ou regime. Se o termo “Estado” não aparece nos Capitoli, no escrito Ai Palleschi [Aos Palleschi], de 1512, “Estado” é usado muitas vezes para designar “governo”, “regime”. Reconsideremos, então, a frase do início de O Príncipe: “Estados”, notamos, está ligado a “domínios”, quase como se a hendíadis fosse útil para esclarecer melhor o conceito, e não estamos, portanto, muito distantes da “noção múltipla”, observada por Chiappelli “na tentativa de resolver ainda em perífrase analítica o problema”, como no caso por ele citado: “cidade e liberdade nossa”. Além disso, podemos recordar que, para se referir genericamente ao Estado, não é raro encontrarmos também o termo “república”. Assim, no início dos Discursos (I, 2: I, 203), lemos: “alguns que escreveram sobre as repúblicas dizem que estão nelas um dos três Estados, chamados por eles principado, ottimati e popular”; um pouco mais além, uma vez descritos os acontecimentos pelos quais as sociedades variaram e variam a maneira como se conduzem, conclui: “E esse é o círculo no qual, girando, todas as repúblicas se governaram e se governam”. Aqui, “república” tem, portanto, o antigo significado latino que ainda teria sido utilizado por Bodin, e “Estado” define o “regimento”, um termo recorrente empregado na época de Maquiavel, embora raramente pelo próprio Maquiavel. Por isso, não somente em seus escritos o sentido atribuído a “Estado” varia, mas também o que para nós é um conceito passível de ser definido com um único

vocábulo é, em vez disso, expresso também com um outro termo. *** Efetivamente, a palavra “Estado” demora a aparecer com valor semântico preciso. No estudo que Tenenti dedicou à noção de “Estado” entre o século XIV e a primeira parte do século XVI, trazendo exemplos tanto em latim quanto em vulgar337, constatamos bem mais precocemente a acepção territorial do termo, enquanto apenas no princípio do século XV seu significado fica “com frequência ligado ao de regimento”. Ao contrário, como “referência suprema da ação política”, repete-se em várias deliberações de organismos venezianos relacionados a essa república, mas tem dificuldade para se afirmar em Florença, e eu me inclinaria a dizer que nem todos os exemplos adotados em tal sentido parecem convincentes. Devo acrescentar que não concordo totalmente com a observação final de Tenenti, que sustenta que Maquiavel, “ainda que tenha chegado a falar de sua [do Estado] ‘majestade’, jamais captou realmente qual poderia ser a verdadeira natureza de sua essência interior”. Certamente, jamais encontramos uma definição que explique por completo a sua essência; todavia, em sua análise, Chabod deu alguns exemplos nos quais acreditou vislumbrar uma “acepção moderna”338. Além disso, o exame de diferentes fragmentos referentes às funções do Estado permite delinear uma concepção mais amadurecida. Por exemplo, na conhecida passagem de O Príncipe, III, que faz referência à réplica de Maquiavel ao “cardeal de Rouen”, o qual havia afirmado “que os italianos não entendiam de guerra”, ao que o secretário florentino rebate “que os franceses não entendiam de Estado”: em que não apenas se capta a noção abstrata da instituição, mas também a própria ação política a ser desenvolvida para salvaguardála.

Para captar o uso da palavra “Estado” em sua complexidade, vale a pena examinar também outras indicações. No Dizionario del linguaggio italiano storico ed ammnistrativo [Dicionário da linguagem italiana histórica e administrativa], de Giulio Rezasco, encontramos elencadas várias definições a serem atribuídas ao vocábulo, numa sequência que dá cabo da pluralidade de significados assumidos pela palavra “Estado” ao longo dos tempos. Os exemplos mais antigos são, certamente, aqueles nos quais o termo soa como “condição” e “modo de ser”; aliás, o vocábulo já estava presente com tal sentido na Comédia dantesca339. Com tal significado, o termo pode estender-se à situação que não apenas um indivíduo, mas toda uma linhagem ocupa na cidade, segundo um uso que tem um precedente importante nos Libri della famiglia [Livros de família], de Leon Battista Alberti, e que ainda encontramos em Guicciardini340. No Dizionario de Rezasco, vemos que custa a aparecer uma acepção próxima da moderna, no sentido de “domínio”, e os exemplos são tirados indiferentemente de Villani ou de Maquiavel, enquanto que o lema “essência do regimento” é ilustrado com um fragmento do Trattato de’ governi [Tratados dos governos], de Bernardo Segni: “O Estado é uma ordem de fato nas cidades, mediante a qual se devem distribuir as magistraturas e determinar o partido que há de mandar na cidade”. O significado é parecido com o de “regimento”, tal como Guicciardini havia explicado 25 anos antes: “o considerar próximo dos governos públicos, dos quais depende o bem-estar, a saúde, a vida dos homens e todas as ações egrégias que se realizam nesse mundo inferior”341. E, em Maquiavel, o uso da palavra “Estado”, com o sentido de “governo” e “regime”, é ainda anterior. Se procedermos a uma análise do termo “Estado” nos escritos de Guicciardini342, veremos expressa também a ideia de que o Estado se funda em uma ação de força. Em Ricordo, 48, de fato, lemos: “Não se pode manter os Estados de acordo com a consciência, porque – quem

considera a sua origem – todos são violentos”. Porém, precisa: “desde aqueles das repúblicas da própria pátria aos de fora”. Portanto, no restrito âmbito da cidade de origem, as repúblicas – evidentemente, não os principados – se constituem graças a um pacto entre os cidadãos, enquanto se impõem com as armas, ou seja, com a conquista, e, não raro, com a obra de repressão sobre o território circunstante. A observação implica, evidentemente, um juízo negativo, inclusive pela consideração seguinte sobre a “dupla” violência que exercitam os “padres”, os quais “nos obrigam com armas temporais e espirituais”. A avaliação de Maquiavel parece distinta: para ele, o fato de “ampliar”, ou seja, conquistar territórios, é julgado em função da disposição interna da república que o executa, e apresenta os casos de Esparta e Veneza, de um lado, e de Roma, de outro (Discursos, I, 6: I, 216-17). Anteriormente, havia observado que somente “com a potência” os homens podem “se garantir”, e por isso é oportuno que a fundação de uma nova cidade se faça “em lugares muito férteis, onde, podendo espalhar-se pela fecundidade local, possam defender-se de quem a assalte, e oprimir quem quer que se oponha a sua grandeza”. Os exemplos poderiam multiplicarse, mas esse me parece suficientemente explícito. Se, por um lado, Maquiavel aceita que um Estado utilize a violência com o objetivo de conquistar territórios, e, mais, vê com bons olhos a sua expansão – como quando fala da capacidade do “Estado romano” de chegar “a essa grandeza que alcançaram” (I, 6: I, 215) –, por outro, desaprova qualquer forma de opressão no governo interno de um Estado. Não aponta explicitamente que seja indispensável a busca do consenso como fundamento sobre o qual se deva erigir e manter uma construção política, todavia, para dar a ela uma base segura indica o consenso como o instrumento mais idôneo. Também no caso do Valentino, que poderia até mesmo nos parecer o exemplo mais eloquente de “reinante” de quem se revela “que lágrimas e sangue brotam” de seu cetro, destaca, pelo contrário, como ele havia ganhado o

povo da Romanha “por ter começado a gozar de seu bemestar”, e se detém sobre as formas com que havia governado esse ducado, “porque essa parte é digna de notícia e de imitação pelos outros” (VII: I, 136). Em seguida, afirma claramente esse princípio nos Discursos (III, 7: I, 445), quando colocada a questão: “de onde vem que muitas transformações que ocorrem desde a vida livre até à tirânica, e algumas se realizam com sangue, e outras sem”, explica: O que depende disto: porque o Estado que se transforma nasce com violência ou não, e porque, quando nasce com violência, convém que seja ofendendo a muitos, é necessário então que em sua desgraça os ofendidos queiram vingar-se, e desse desejo de vingança nasce o sangue e a morte dos homens.

Ao contrário: Quando esse Estado é a origem de um consenso comum com a universalidade dos cidadãos que o fizeram grande, não há razão então, quando se derruba esse consenso universal, de ofender outros que não o chefe.

Com efeito, no capítulo anterior, dedicado às conspirações (III, 6: I, 426), a razão, “mais importantíssima do que todas as outras”, que induz a tramar contra um príncipe, indicada é “ser odiado pelos cidadãos em geral”. De modo coerente, em 1520, tendo de dar o próprio parecer sobre o governo a ser instalado em Florença, escreveria: “Sem contentar a generalidade dos cidadãos, jamais república alguma foi estável”343. Em O Príncipe, havia observado que “os Estados bem ordenados e os príncipes sábios pensaram com toda a diligência em não provocar desespero nos grandes e satisfazer o povo e mantê-lo contente”, em outras palavras, em obter o apoio dos “cidadãos em geral”. Todavia, afirma, é mais fácil obter o apoio do povo, e, falando do principado civil (IX: I, 143-44), observa: quem “chega ao principado com a ajuda dos grandes, mantém-se com maior

dificuldade” do que aquele que sobe “com a ajuda do povo”. De fato, encontra obstáculos maiores para se impor, ao passo que é mais fácil “satisfazer o povo: porque o objetivo do povo é mais honesto do que o dos grandes, querendo estes oprimir, e aqueles não serem oprimidos”. Seguindo esse caminho, o príncipe se garante contra as conspirações, com as quais pode ter “pouca preocupação, quando o povo lhe é benévolo” (XIX: I, 169). Quando, na História de Florença, enfrentasse a primeira tentativa – a do duque de Atenas – de impor a Florença um poder senhoril in perpetuo, colocaria a culpa da violência nas maneiras de conduzir um Estado em um dos membros da Signoria, fazendo-o afirmar, em seu discurso – o primeiro que insere na obra –, os próprios princípios da vida civil (II, 34: III, 407-408): Vocês buscam escravizar uma cidade que sempre viveu livre [...] Pensam, senhores, quantas forças serão necessárias para manter servil uma tal cidade. As forças forasteiras que vocês sempre podem ter não bastam; e, nas de dentro, não podem confiar, porque os que agora são seus amigos e os encorajam a tomar essa decisão, primeiro derrotarão seus inimigos com sua autoridade, e então buscarão uma forma de destruir vocês e fazer deles príncipes.

É o risco já projetado para o príncipe que pensava em se apoiar nos grandes: seria imprudente, a seu ver, “porque existem príncipes com muitos ao redor que parecem seus iguais” (IX). Mas Gualtiero de Brienne não podia contar nem mesmo com o povo: A plebe, na qual você confia, por qualquer incidente, ainda que mínimo, se rebela, de modo que, em pouco tempo, pode temer ter toda essa cidade como inimiga, o que seria a razão da ruína dela e da sua.

E volta ao tema dos perigos que o príncipe corre, já abordado nos Discursos:

Tampouco pode, para esse mal, encontrar remédio, porque esses senhores podem deixar sua signoria segura de que tem poucos inimigos, [...] mas, no ódio dos cidadãos em geral, jamais existe qualquer segurança.

O desejo de liberdade – adverte o orador – não diminui com o tempo, porque as memórias da pátria e os próprios “edifícios públicos, os escritórios dos magistrados, as insígnias das ordens livres a rememoram”. E empresa alguma seria capaz de contrabalançar o lamento de viver livre: “Nem se se acrescentasse a este império toda a Toscana”, porque a glória não seria sentida como própria pelos florentinos, que “não conquistariam súditos, mas irmãos de servidão”. Nem mesmo os cidadãos poderiam ser consolados “ainda que seus costumes fossem santos, [...] porque para aquele que está acostumado a viver livre, qualquer corrente pesa, e qualquer laço aperta”. Além disso, não é possível “encontrar um Estado violento com um príncipe bom”. Em conclusão: Você há, portanto, de crer ou que pode manter essa cidade com a máxima violência [...] ou ficar contente com a autoridade que nós lhe demos. Pelo que lhe consolamos, lembrando-lhe de que esse domínio só perdura porque é voluntário.

O Estado seguro é, então, o que tem um governo com ampla aceitação. Na História de Florença, pode causar surpresa não se encontrar referência à “florentina libertas”, quando se fala do conflito entre Florença e os Visconti: evocam-se naturalmente os perigos que a cidade correu, mas não se faz qualquer referência aos motivos ideais, tradicionalmente invocados pelos humanistas florentinos em apoio à luta contra o “tirano” milanês e como forma de comemorar o Estado republicano. Devemos interpretar esse silêncio como uma espécie de prudência numa obra encomendada por um Médici? Eu tenderia a negar essa hipótese, a partir do momento em que os valores da liberdade certamente não foram silenciados no discurso dirigido ao duque de Atenas, a ponto de se supor uma

introdução de Maquiavel, para fazer o papa Clemente VII entender a necessidade de devolver a Florença – uma vez morto Lourenço, duque de Urbino – a liberdade republicana, retomando e ampliando os temas abordados no Discursus florentinarum rerum [Discurso dos assuntos florentinos]344. Na verdade, o “Estado” surgido da derrota dos Ciompi, que detinham o poder nos anos da guerra contra Milão, é objeto de duras considerações na História de Florença: a facção que o apoiou governou de maneira “ofensiva em relação a seus cidadãos” (III, 22: III, 460). Se tal era o juízo que se fazia, dificilmente se poderia partilhar o hino à liberdade contido, por exemplo, na Laudatio florentinae urbis [Louvor da cidade de Florença], de Bruni. Deveria parecer mais convincente mostrar os perigos da tirania no momento em que a liberdade era colocada em perigo por um signore, do que fazer um panegírico em anos em que a reação dos “grandes” era arrogante e opressiva. Justamente o governo que sobe ao poder depois de 1381 inspira Maquiavel a tecer as considerações com que abre o quarto livro da História (III, 473): As cidades, principalmente as que não têm bons ordenamentos, as quais são administradas sob a denominação de república, mudam frequentemente seus governos e Estados, não mediante a liberdade e a servidão, como muitos creem, mas mediante a servidão e a licença. Porque da liberdade apenas o nome é celebrado pelos ministros da licença que são os homens do povo, e pelos da servidão, que são os nobres, desejando uns e outros não estar nem submetidos às leis, nem aos homens.

Dificilmente, quem escrevesse essas palavras poderia compartilhar a glorificação que daquele “Estado” havia feito Bruni: “Haec est vera libertas, haec aequitas civitatis [...]” [é esta a verdadeira liberdade, é esta a igualdade da cidade”]345. Também podemos compreender melhor a polêmica menção feita ao diferente juízo que havia manifestado sobre o Estado florentino; ao iniciar seu trabalho historiográfico com tal menção, Maquiavel expressou suas próprias reservas críticas às obras de

Leonardo Bruni e Poggio Bracciolini. Sem dúvida, Garin tem razão quando observa que “Bruni [...] encaminha uma elaboração teórica, partindo da história e da historiografia clássica, mas para construir uma visão original da vida política em um contínuo diálogo com os historiadores antigos”. Todavia, é necessário ter presente sua advertência: “Bruni pode constituir um fecundo prólogo a Maquiavel, um termo de comparação, ainda que, muitas vezes, por contraste”346. *** Aos olhos de Maquiavel, a base social de um Estado caracteriza as suas instituições e a sua força. Assim, no quarto capítulo de O Príncipe (I, 127-28), coloca-se a questão: “como foi que Alexandre Magno se tornou senhor da Ásia em poucos anos?”. A resposta leva a desenvolver uma digressão original sobre “dois modos diferentes” de conduzir uma monarquia: [...] ou com um príncipe e todos os outros servos, os quais, como ministros, por graça e concessão sua, ajudem a governar tal reino, ou por um príncipe e por barões, os quais, não por graça do senhor, mas por antiguidade de sangue, possua esse grau.

A maior ou menor complexidade da construção se reflete nas particularidades do reino: Os Estados que se governam por um príncipe e servos têm o seu príncipe com mais autoridade, porque em toda a sua província não existe homem que reconheça outro como superior senão ele.

Isso determina a própria natureza do Estado, e, para ilustrar suas diferenças, são considerados dois casos contemporâneos:

Os exemplos dessas duas variedades de governo são, em nossos tempos, o Turco e o rei da França. Toda a monarquia do Turco é governada por um senhor: os outros são seus servos; e, dividindo seu reino em sandjaks, para aí envia diversos administradores e os troca e varia como melhor lhe pareça. Mas o rei da França, naquele Estado, está colocado em meio a uma multidão arcaica de senhores reconhecidos por seus súditos e por eles amados: têm os seus privilégios, não podendo o rei extingui-los sem risco próprio.

Por consequência: Considerando, então, um e outro desses Estados, terá dificuldades para conquistar o Estado turco, mas, uma vez vencido, teria grande facilidade para dominá-lo. Assim sendo, em sentido inverso, encontraria, em relação a alguns aspectos, mais facilidade para poder ocupar o reino da França, mas grandes dificuldades para mantê-lo.

A coesão do “Estado do Turco” se deve ao nivelamento de todos os súditos à condição de servos, e à falta de uma articulação social, logo, à administração direta do soberano e à ausência de príncipes capazes de facilitar uma invasão ou de se colocar à frente de uma revolta. Em contrapartida, no reino da França, tais possibilidades existem347, mas, precisamente por isso, o primeiro, no caso de ser ocupado e ter seu soberano morto, ficaria totalmente despojado de focos de resistência; no outro, pelo contrário, “a vitória [...] traz consigo infinitas dificuldades, tanto com aqueles que lhe ajudaram, quanto com aqueles que oprimiu”. Seria criada, assim, uma rede de resistência que tornaria difícil “mantê-lo”. Para Chabod, esse passo é uma das primeiras formulações da ideia de Europa, da qual vê indicadas algumas características específicas348. “A Europa”, observa, “desta vez é precisamente a Europa; a christianitas que Maquiavel esqueceu completamente”. É uma peculiaridade “rica de consequências, que favorece o desenvolvimento da virtude, isto é, da capacidade de fazer, da energia criativa”. Especial importância assume a contraposição geopolítica, porque essa é examinada “em nossa época”: a distinção aristotélica entre os reinos da antiga Grécia e a monarquia, “própria de Á

muitos povos bárbaros”, habitantes da Ásia que, “sendo mais servis que os gregos”, toleram mais facilmente “um poder despótico”, está adaptada aos Estados 349 contemporâneos do Turco e do rei da França . Os teóricos medievais, de São Tomás a Marsílio de Pádua, haviam revisitado as diferenças entre as duas formas de monarquia, repetindo as referências às características asiáticas do despotismo, mas, em O Príncipe – provavelmente pela primeira vez –, o exemplo dos impérios orientais não é apresentado senão como ponto de partida, e a ênfase é colocada na diferença entre duas grandes potências da época. A diferença entre o império turco e o reino da França – notou Procacci350 – retornará nos escritos de Le Roy e na obra de Bodin, como também nas polêmicas ao longo das guerras religiosas. A atenção, porém, será deslocada para o caráter servil do despotismo, enquanto se dedicará pouca atenção à diferente complexidade social dos dois tipos de Estado, ao menos até Montesquieu, que, em O espírito das leis, debruçar-se-á sobre as peculiaridades do despotismo. Mais tarde, todavia, geralmente seria negligenciado o aspecto destacado por Maquiavel: a dificuldade de chegar à conquista do “Estado do Turco” e a facilidade de manter sua posse, o contrário do que seria válido para o reino da França. Apenas Hume, em Ensaios políticos, e, em seu rastro, Tocqueville, em A democracia na América, voltam ao problema, citando expressamente o capítulo IV de O príncipe351.Tal caracterização convida a seguir analogias posteriores surgidas a partir da indicação de Maquiavel, até chegar à reflexão sobre a hegemonia em Gramsci, ditada pela observação de que o império regido pelo despotismo czarista era profundamente diferente dos Estados ocidentais, bem mais complexos. Como se sabe, ele ressalta, a propósito da Revolução Russa: “no Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa”; portanto, a revolução teve o caráter de uma “guerra de movimento”. Inversamente, no Ocidente, a conquista do poder, por parte do proletariado, estaria

condicionada por sua capacidade de sustentar uma “guerra de posição”; no Ocidente, “entre Estado e sociedade civil havia uma relação equilibrada e, em caso de instabilidade do Estado, logo se divisaria uma estrutura robusta da sociedade civil. O Estado seria apenas uma trincheira avançada, atrás da qual estaria uma cadeia robusta de fortalezas e casamatas”352. Não é o caso de ir além da ênfase na contraposição entre os dois tipos de Estado e de sociedade: todavia, não se deixa de lado a permanência de categorias interpretativas usadas para compreender estruturas profundas da vida política. *** Sobre quais princípios se apoia um Estado? Como Chiappelli observou, é oportuno determinar o que o Estado faz, e não apenas o que ele é353. E então lemos em O Príncipe (XII, I, 150): “Os principais fundamentos que todos os Estados têm, tanto os novos quanto os antigos ou os mistos, são as boas leis e as boas armas”. Esse fragmento lembra a observação com que, em 1506, Maquiavel abriu La cagione dell’Ordinanza: Qualquer um sabe que quem diz império, reino, principado, república, quem diz homens que comandam, começando pelo de primeiro grau e descendo ao infinito, ao capitão de um bergantim, diz justiça e armas (I, 26).

Com esses mesmos termos ou com termos parecidos, reafirma tal princípio também em outros escritos. Assim, nos Discursos: “não pode haver nem leis boas, nem qualquer outra coisa boa” onde não haja “boa milícia” (III, 31: I, 496). E, para mostrar que “a desunião da plebe e do senado tornou livre e poderosa” a república romana (I, 4: I, 209), observa, entrando em polêmica com quem não compreende que a força das armas deve ser acompanhada de bons ordenamentos:

Eu não posso negar que a fortuna e a milícia não foram a causa do Império Romano; mas bem me parece que esses que o dizem não se conformam com que, onde há boa milícia, convém que haja bom ordenamento, e raras vezes também acontece de não haver boa fortuna.

Quaglioni, afirmando ser impensável “um Maquiavel estranho à cultura jus-política de seu tempo”, chamou a atenção sobre “o verdadeiro motivo justiniano” recorrente em sua obra: a junção justiça-armas, colocada no início da constituição Imperatoriam maiestatem [a majestade do império], que “non solum armis decoratam, sed etiam legibus oportet esse armatam” [“não somente é ornada pelas armas, mas também convém ser armada pelas leis”]354. Por isso, pergunta-se: “É lícito cogitar que Maquiavel quisesse recordar constantemente que ‘iustitia et arma’ [justiça e armas], ‘boas armas’ e ‘boas leis’ são o primeiro e fundamental princípio de todo o corpus justiniano, e, portanto, de todo o suporte relacionado à autoridade da ciência do direito público?”. Sua análise da língua de Maquiavel coloca em evidência a cultura jurídica e explica sua “insistência no problema dos ‘ordenamentos’, isto é, dos direitos positivos e das formas de regimento”355. Podemos acrescentar que “os antigos ordenamentos” ditam, em A arte da guerra, a afirmação mais solene da união que deve amarrar os dois fundamentos do Estado: “todas as artes que se organizam em uma civilização em razão do bem comum dos homens, todos os ordenamentos nela construídos para viver sob o temor das leis e de Deus seriam inúteis se não tivessem suas defesas preparadas”, precisamente a “ajuda militar”. E, um pouco mais adiante, Fabrizio Colonna declara: “as armas levadas por seus cidadãos ou súditos, permitidas pelas leis e pelo ordenamento, não provocaram maior dano, pelo contrário, sempre são úteis, e as cidades se mantêm mais tempo puras por meio das armas do que sem elas” (I, 529 e 549).

Se “a majestade do Estado” – uma expressão que retorna (com algumas variantes, como “principado”, “império”) em O Príncipe, nos Discursos e na História de Florença – está assegurada pelo binômio justiniano, a importância dos “ordenamentos” constitui quase um leitmotiv na obra de Maquiavel, tanto que é o fundamento do viver civil. Os “ordenamentos” dados por Ciro, Rômulo e Teseu – observa em O Príncipe (VI: I, 131) – não parecem “discrepantes daquelas de Moisés, que teve um preceptor tão importante” – o próprio Deus –, e tais “ordenamentos” – “os ordenamentos que eu preferi como objetivo” – oferecem “uma disposição muito grande” para a salvação da Itália (cap. XXVI: I, 190). Também os “ordenamentos” do Valentino lhe pareciam exemplares para fundar seu Estado, e, se “não lhe aproveitaram”, foi só por “uma extraordinária e extrema malvadeza da fortuna” (cap. VII: I, 134). Nos Discursos, a reflexão tem início pelas “cidades que [...] logo se governaram pelo seu arbítrio, [...] as quais tiveram, tanto quanto diferentes príncipes, diferentes leis e ordenamentos”. “Leis e ordenamentos”: outro binômio essencial na visão política de Maquiavel; as normas que regulam a vida do Estado e os estatutos fundamentais constitutivos são a própria razão da solidez de uma república ou de um principado. A grandeza de Roma nasceu dos “tumultos”, que trouxeram à luz “leis e ordenamentos em benefício da liberdade pública (I, 4: I, 209). Para não multiplicar os exemplos, podemos recorrer a uma “extravagância”, os versos de O asno, em que o herói, deixado só por sua “duquesa”, volta, com o pensamento a “mitigar [...]/ o incêndio grande que me ardia o peito”, à “variação das coisas mundanas” e se dá conta de “que costuma durar mais ou menos/ uma potência, conforme mais/ ou menos suas leis e ordenamentos bons sejam” (V, vv. 36 e 76-78: III, 65-66). Os bons ordenamentos devem assegurar a primazia do bem público. Em Maquiavel, é muito clara a distinção entre utilidade pública e utilidade privada. Quando nesta há

prevaricação, a corrupção chega ao grau máximo, enquanto “o viver livre” vê a harmonia reinar entre os dois princípios: Porque todas as terras e províncias que vivem livres em qualquer parte [...] tiram enormes proveitos. Porque aqui se veem os povos maiores, que, por estarem em alianças mais livres, são mais desejados pelos homens, porque a liberdade dá segurança, e cada um procria de bom grado os filhos que crê poder alimentar, não tendo dúvidas se o patrimônio lhes será tirado, e sabem não somente que nascem livres e não escravos, mas que podem, por sua virtude, tornarem-se príncipes.

Em tais condições, o Estado floresce: Vê-se como as riquezas se multiplicam em maior número, as que se originam da cultura e as que se originam das artes. Porque cada cidadão, de bom grado, multiplica tais coisas e busca conquistar os bens de que, uma vez adquiridos, crê poder desfrutar. Por isso os homens competem pensando em vantagens públicas e privadas, e umas e outras vêm a crescer maravilhosamente. (II, 2: I, 334-35)

Certamente, a variação das coisas humanas faz com que a riqueza provoque a corrupção, porque todos os cidadãos que se tornam ricos tendem a querer apropriar-se também dos “graus” e das “honras”, colocando em risco o bem público com a sua ambição. Daí a advertência de que “as repúblicas bem ordenadas devem manter rico o que é público, e pobres os seus cidadãos” (I, 37: I, 276-77)356. A ambição é apontada como um perigo constante: ele já havia afirmado isso no capítulo Dell’Ambizione, dizendo que era enviada aos homens “para nos privar da paz e levar à guerra,/ para nos tirar toda calma e todo bem” (vv. 28-9: III, 44). Da ambição privada nascem as seitas e seus partidários, pelos quais uma república é levada à ruína. Que Maquiavel não se opusesse às lutas internas de uma entidade política está comprovado no conhecido juízo que fez sobre os “tumultos” em Roma, graças aos quais aquela república tornou-se “livre e poderosa”357. Naquele caso, porém, tratava-se de dois corpos cívicos, identificados como “plebe e senado”, em luta para afirmar os próprios direitos,

mas capazes, ao final, em nome do “bem público”, de chegar a um acordo, dando vida a novas instituições. As seitas, pelo contrário, originárias de divergências particulares e da ambição de cidadãos poderosos que querem criar partidários, lutam para prevalecer. Uma das passagens mais significativas está no capítulo dos Discursos, que trata das “acusações” e das “calúnias” (I, 8: I, 222). As calúnias disseminadas em Florença provocavam “ódio, do que se chegava à divisão, da divisão às seitas, das seitas à ruína”. O exemplo – omitido no texto, mas claro o bastante para ser intuído por Guicciardini358 – é o de Cosme de Médici, que, “entre outras coisas”, também se valeu das calúnias dirigidas “contra os cidadãos poderosos que se opunham a seu apetite”, e, “tomando partido do povo, e confirmando com eles a má ideia que dele faziam, dele se fez amigo”. Dessa forma chegou ao poder. Na História de Florença, esse acontecimento será narrado no sétimo livro, e no primeiro capítulo se explica quais “divisões” seriam nocivas ou benéficas a uma república: “São nocivas as que são acompanhadas por seitas e partidários, são benéficas as que se mantêm sem seitas ou partidários” (III, 628-29). Depois, seguem os mecanismos pelos quais as seitas e os partidários se reforçam e acabam por prevalecer para destruição do “bem público”. Por outro lado, na abertura do terceiro livro (III, 423-24), havia esclarecido – pelo confronto entre as “inimizades” que mantiveram Roma e Florença “desunidas” – quais “divisões produziriam efeitos benéficos, e quais, pelo contrário, foram desastrosas. As em que os cidadãos se haviam enfrentado em “disputa” e superado os conflitos “com uma lei”, a sua luta havia sido profícua para a liberdade e para a coisa pública; nas em que, ao contrário, o conflito os havia transformado em inimigos recíprocos, e a parte vencedora havia triunfado “com o exílio ou com a morte de muitos cidadãos”, o sucesso da facção vencedora, “injurioso e injusto”, havia acabado por apagar qualquer virtude.

Em suma, a prevalência do interesse privado sobre o bem público não pode ocorrer senão sob o domínio da injustiça, e é o sintoma mais visível da “corrupção”, de que se perturba uma sociedade e toda a vida política. No discurso que os cidadãos rebelados contra as violências do partido guelfo dirigiram à Signoria, em 1371, lamenta-se que os seus seguidores busquem “a satisfação de ter superado os outros”, e tenham “usurpado” a soberania da República (III, 5: III, 430): Por isso os ordenamentos e as leis se fazem por utilidade privada, não pública; por isso as guerras, as pazes, as amizades, não são decididas para a glória comum, mas para a satisfação de poucos [...]. As leis, as ordens civis, os estatutos [...] são organizados não segundo o livre viver, mas segundo a ambição do partido que ficou em posição superior.

Nos Discursos, para demonstrar que “a multidão é mais sábia [...] do que um príncipe”, Maquiavel recorre a um argumento quase paradoxal: “as crueldades da multidão são contra quem se teme que solape o bem comum; as de um príncipe são contra quem se teme que solape seu bem particular” (I, 58: I, 319-20). Mas, precisamente nessa defesa extrema do “bem comum” está a afirmação da necessidade da lei e da igualdade dos cidadãos, que é o terreno sobre o qual podem crescer as repúblicas. Entre “igualdade” e “república”, a relação é quase de causa e efeito: de qualquer modo, a primeira é condição indispensável da segunda (Discursos, I, 55, I, 311-12). Assim, a demonstração de que nas cidades alemãs “se manteve o viver político e incorrupto” revela que elas “não suportam que nenhum de seus cidadãos nem seja, nem viva como um gentil-homem”. Como exemplo máximo da “corruptela” são apontados aqueles que, além de grandes fortunas, “comandam castelos e têm súditos que lhes obedecem”. A presença desses “gentis-homens” – dos quais “estão cheios o reino de Nápoles, o território de Roma, a

Romanha e a Lombardia” – não é compatível com o “viver político, porque essas gerações de homens são completamente inimigas de qualquer civilidade”. Trata-se de outro termo que joga luz sobre uma visão da vida política organizada: ela aparece, portanto, não apenas incluída sob o nome de “Estado” ou de “república”: o viver civil, governado por “leis e ordenamentos bons”, não pode subsistir incorrupto se, em seu próprio interior, existirem elementos desagregadores, como, justamente, as seitas em uma república, e os “gentis-homens que comandam castelos” em um principado. A “igualdade”, como a existente nas três repúblicas toscanas de Florença, Siena e Lucca, é um fundamento político de tal vigor “que facilmente um homem prudente e que tivesse conhecimento das antigas civilizações introduziria ali um viver civil”. Inversamente, onde “é tanta a matéria corrompida que as leis não bastam para freá-la”, como nas “províncias” cheias de gentis-homens, só “uma mão régia [...] com potência absoluta e excessiva” pode colocar “freio na excessiva ambição e corrupção dos poderosos”. Reaparece a figura do príncipe, dotado de um poder “excessivo”, que evoca o fantasma do Valentino. Impressiona a precisão da qual encontraremos confirmação poucos anos depois da morte de Maquiavel. Naquele mesmo capítulo dos Discursos, lemos: “Quem queira criar um reino ou um principado onde exista igualdade suficiente, nunca poderá fazê-lo se não afastar daquela igualdade muitos de ânimo ambicioso e inquieto, e não fizer deles gentis-homens de fato”. Como já me ocorreu recordar, Filippo Strozzi – que havia assistido a Maquiavel em seu leito de morte e parece ter escutado dele o relato de seu “famoso sonho”359 – mostrou ter tirado uma preciosa lição daquele ensinamento, depois da queda da república florentina, em 1530, quando, para “dar outra forma de governo que não a presente”, ou seja, para fundar em Florença um principado, aconselhou ao papa Clemente VII proceder a “uma eleição de todos os que são amigos [...] e

declará-los nobres por ato oficial, admitindo apenas esses no governo, e excluindo a todos os demais enquanto plebleus”360: em outras palavras, introduzindo a “desigualdade” que Maquiavel julgava elemento fundamental de um principado. *** Considerado em seu aspecto semântico, o termo “Estado” se encontra, portanto, ainda oscilante nos escritos de Maquiavel; também a esse poderia ser aplicada a advertência dos Discursos (I, 34: I, 271): “e são as forças que facilmente conquistam os nomes, não os nomes as forças”, e as “forças” do Estado estavam então em gestação. Todavia, um exame aberto às várias implicações desse organismo político coletivo nos escritos de Maquiavel revela uma riqueza qualitativa e uma busca de unidade interna que, remontando à tradição romana, se projetam em direção à ideia que aos poucos veio avançando, em particular se tivermos presente a que Bobbio chamou “o caminho de Rousseau a Hegel”. Talvez porque essa linha projete uma visão “democrática” do Estado, tenha encontrado incompreensões em quem, como Gentile, buscava no secretário florentino uma harmonia à própria filosofia. Mas julgar que o pensamento de Maquiavel se encerrou “em uma subjetividade, na qual não pode existir lugar para um Estado que tenha um verdadeiro valor moral, e se possa considerar um absoluto bem comum ou universal”, só significa que Maquiavel não desenvolveu a ideia de “Estado ético”, não que nele estivesse ausente a noção de Estado361. Ora, a aproximação atualizante de um autor do passado, caso falhe, revela o defeito não do criticado, mas do crítico, que demonstra ter usado instrumentos interpretativos impróprios.

Um outro ponto que merece uma reflexão: não apenas Gentile, mas também Croce destacaram que, em Maquiavel, a ideia de política não se identifica com a ideia de Estado; independentemente do juízo de valor contido em suas observações, pode ser útil tomá-lo como ponto de partida, como já se tentou fazer, para extrair de sua complexidade uma visão do “viver civil” que engloba a ideia de Estado e, portanto, leva em consideração os vários fenômenos atinentes às diversas “gerações dos homens” organizados em sociedade.

Índice de nomes A

Acciaiuoli, Alamanno 37 Acciaiuoli, Roberto 9, 41 Agátocles, tirano de Siracusa 23 Alamanni, Lodovico 9, 33 Alamanni, Luigi 42 Alberti, Leon Battista 44, 45 Albertini, Rudolf von 33 Albizzi, família 5, 32, 35, 36, 37, 38 Albizzi, Reinaldo de 37 Albumasar 14 Alexandre Magno 47 Alexandre VI (Rodrigo Bórgia), papa 8, 11, 12, 21, 23, 24 Alighieri, Dante, cf. Dante. See also Dante Alighieri Amboise, Georges d’, cardeal, arcebispo de Rouen 12 Amiano Marcelino 21 Andrea di Romolo 9 Anselmi, Gian Mario 45 Apiano de Alexandria 21 Apuleio, Lucio 26 Aquilecchia, Giovanni 31 Arendt, Hannah 44 Ariosto, Ludovico 4, 5, 9, 30, 33 Aristófanes 31 Aristóteles 4 Asor Rosa, Alberto 24 Ávalos, Ferrante d’, marquês de Pescara 40 B Bacon, Francis 27 Baglioni, João Paulo, senhor de Perúgia 12, 13 Bandello, Matteo 31 Barbara Salutati Raffacani 40 Baron, Hans 5, 46 Bausi, Francesco 37

Bayle, Pierre 42 Becchi, Ricciardo 8 Benedetto, Luigi Foscolo 26 Bentivoglio, família 13 Bentivoglio, João, senhor de Bolonha 12 Berlin, Isaiah 28 Bertelli, Sergio 28 Berti, Marcello Virgilio di Adriano 8, 9, 16, 31 Bettarini, Rosanna 45 Bigazzi, Pietro 33 Biondo, Flávio 7, 22 Blado, Antonio 34 Bobbio, Norberto 44, 49 Boccaccio, Giovanni 5 Bodin, Jean 4, 5, 44, 45, 47 Boiardo, Matteio Maria 5 Bórgia, César, o Valentino 11, 12, 13, 14, 21, 24 Bornstein, Daniel 5 Botero, Giovanni 29 Bourbon, Charles de, condestável 41, 42 Bracciolini, Poggio 7, 8, 34, 35, 36, 46 Brancacci, Giuliano 31 Brienne, Gualtiero de, duque de Atenas 37, 44, 46 Bruni, Leonardo 5, 8, 34, 35, 36, 37, 46 Budé, Guilherme 7 Buonaccorsi, Biagio 7, 8, 9 Buonarroti, cf. Michelangelo Buonarroti. also Michelangelo Buonarroti Buondelmonti, Zanobi 33, 42 Burchiello, Domenico di Giovanni, O 5 Burckhardt, Jacob 4 Burr Litchfield 9 Busini, Giovambattista 5 C Calgaco, chefe dos bretões 37 Calvino, Italo 27 Cantimori, Delio 25, 38

See

Capponi, Nicolau 16 Cardona, Raimundo de 18 Carlos V de Habsburgo, imperador e rei da Espanha 12, 28, 34, 40, 42 Carlos VIII, rei da França 4, 5, 8, 22, 24, 29 Carta, Paolo 5, 12 Casavecchia, Filippo 9 Catilina, Lucio Sergio 37 Cavalcanti, Bartolomeu 41 Cecchi, Emilio 25, 38 Cellini, Benvenuto 42 Cervelli, Innocenzo 8 Cesare, Caio Giulio 39 Chabod, Federico 11, 20, 22, 44, 47 Chiappelli, Fredi 10, 44, 45 Chittolini, Giorgio 11 Cícero, Marco Túlio 7, 25 Ciro, rei da Pérsia 11, 23, 48 Clemente VII (Júlio de Médici) 32, 33, 34, 39, 40, 41, 42, 46, 49 Colombo, Cesare 39 Colombo, Cristóvão 4 Colonna, Fabrizio 9, 26, 29, 30, 40, 48 Colonna, família 23, 41 Colonna, Prospero 33 Commynes, Philippe de 8 Comparato, Vittor Ivo 21 Condorelli, Orazio 44 Copérnico, Nicolau 13 Corrado Vivanti 48 Crinito, Pietro 7 Croce, Benedetto 24, 29 Cutinelli-Réndina, Emanuele 9, 10 Cybo, Innocenzo, cardeal 42 D Dante Alighieri 14, 45 Dario, rei da Pérsia 23

Daviso di Charvensod, Maria Clotilde 8, 24 de Bujanda, Jesús Martínez 5 Del Badia, Jodoco 14 della Casa, Francesco 11 della Palla, Battista 32, 33 Della Rovere, Francesco Maria I, duque de Urbino 41, 42, 46 Del Nero, Francesco 33, 34 Desjonquères, Chantal 6 Dionísio de Halicarnasso 48 Dionisotti, Carlo 7, 34 Donzelli, Carmine 6 E Einstein, Alfred 40 Ênio, Quinto 16 Erasmo de Rotterdam 5, 13, 25, 27, 29 Ercole, Francesco 44 Espartiano, Elio 21 Este, Alfonso I d’, duque de Ferrara 8, 17, 41, 45 Este, família 17 Este, Hércules 42 F Fábio Máximo, Quinto, o “Protelador” 16 Faggiuola, Uguccione della 42 Falconetti, Iacopo, o “Forneiro” 40 Fasano Guarini, Elena 11 Febvre, Lucien 13 Felipe II da Macedônia 30, 40 Felipe II de Habsburgo, rei da Espanha 28 Fera, Vincenzo 37 Fernando I de Aragão, rei de Nápoles 18, 24, 40, 41, 42 Fernando II de Aragão, o Católico, rei da Espanha 18, 20, 25 Ferrai, Luigi Alberto 34 Ficino, Marsilio 21 Floro, Lúcio 21 Foix, Gaston de 18

Folengo, Teofilo 5 Fontana, Alessandro 4, 9, 11, 48 Foscolo, Ugo 5 Fournel, Jean-Louis 4, 9, 21, 45, 48 Francisco I, rei da França 12, 28, 34, 40, 41 Fregoso, Ottaviano 31 Frundsberg, Georg von 41 Fubini, Riccardo 9, 21 Fueter, Eduard 37 G Gaille-Nikodimov, Marie 5 Galilei, Galileu 4 Garfagnini, Gian Carlo 8 Garin, Eugenio 8, 13, 14, 25, 35, 39, 44, 46 Garnier-Pagès, Étienne 44 Gattinara, Mercurino da 40 Gentile, Giovanni 49 Gerratana, Valentino 22, 47 Giannotti, Donato 34, 36, 40 Gilbert, Felix 9, 21, 34, 37 Gilmore, Myron 8, 28 Ginzburg, Carlo 7, 31, 48 Giovio, Paolo 7, 42 Giunta, Filippo 34 Gonzaga, Gian Francesco II, marquês de Mântua 16 Gramsci, Antonio 22, 47 Guicciardini, Francesco 4, 10, 12, 13, 14, 17, 29, 34, 36, 38, 45, 48 Guicciardini, Luigi 10, 31, 38 Guicciardini, Piero 15 Guidi, Andrea 11 Guidi, Guido 8 Guidobaldo de Montefeltro, duque de Urbino 11 Guinigi, Michele 33 H Hardy, Henry 28 Hegel, Georg Wilhelm Friedrich 44, 49

Herodiano 21 Holbein, Hans 11 Holywood, John, cf. Sacrobosco, Giovanni. See Sacrobosco, Giovanni Hume 47 Hume, David 47 I Iacopo IV d’Appiano, senhor de Piombino 11, 16 Inglese, Giorgio 9, 24, 27, 44 Insabato, Elisabetta 9 Isabella d’Este, marquesa de Mântua 16, 18 J Jaeckel, Hugo 21 Jerônimo, santo 42 Júlio II (Giuliano della Rovere), papa 12, 13, 14, 17, 18, 23, 24 Justiniano I, imperador 15 K Kant, Immanuel 44 Koyré, Alexandre 4 L Landucci, Luca 14 Lannoy, Charles de 40 La Noue, François de 29 Lanza, Maria Teresa 5 Larivaille, Pierre 37 Leão X (João de Médici), papa 12, 13, 20, 21, 24, 31, 32, 33, 42 Le Febvre, Jehan 31 Leonardo da Vinci 14 Le Roy, Louis 47 Lisandro, general espartano 39 Livio, Tito 4, 21, 28, 48 Locke, John 44 Lovera, Luciano 45 Lucrécio Caro, Tito 5, 7, 27, 31, 42 Luís XII, rei da França 8, 11, 12, 16, 17, 18, 20, 21, 22, 44

Luís XI, rei da França 22 Lutero, Martinho 25, 38

M Macróbio, Ambrogio Aurelio Teodosio 4 Maquiavel, Bernardo 7 Maquiavel Corsini, Mariett 32 Marchand, Jean-Jacques 9, 10, 44 Mário, Caio 27 Marsílio de Pádua 47 Martelli, Mario 7, 21, 26, 32, 37, 44 Martines, Lauro 9 Marx, Karl 37, 44 Marzi, Domenico 8 Mattingly, Garrett 11 Maximiliano I de Habsburgo, imperador 12, 15, 16, 17, 28 Mazzarello, Anna 45 Médici, Alexandre de, duque de Florença 32, 33 Médici, Catarina de 12 Médici, Cosme de 14, 23, 32, 35, 36, 37, 48 Médici, família 5, 7, 9, 13, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 26, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 40, 41, 42, 46 Médici, Hipólito de, cardeal 32 Médici, João de, cardeal, cf. Leão X. See also Leão X Médici, João de, o “Bandas Negras” 18, 20, 32, 40, 41 Médici, Juliano de Lourenço de 7, 21, 26 Médici, Juliano de Pedro de 36 Médici, Júlio de Juliano de, cardeal cf. Clemente. See also Clemente Médici, Lourenço de, duque de Urbino 41, 42, 46 Médici, Lourenço de, o “Magnífico” 21, 24, 32, 34 Médici, Lucrécia de 31, 33, 40, 42 Médici, Pedro de Cosme de 36 Médici, Pedro de Lourenço de 8 Meinecke, Friedrich 22, 29 Melera-Morettini, Matteo 9 Mesnard, Pierre 5 Michelangelo Buonarroti 30

Michele di Lando 38 Micheletto Corella, dom 14 Milanesi, Gaetano 5 Minonzio, Franco 7 Mitrídates, rei do Ponto 37 Moisés 23, 25, 48 Molho, Anthony 5 Montaigne, Michel de 27, 47 Montesquieu, Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de 47 Morandi, Carlo 29 Morone, Girolamo 40 N Nardi, Jacopo 42 Nerli, Filippo de 40 Niccolini, Giovan Battista 5, 13, 14, 33, 49 Niccòlo Alamanno, ou Tedesco, ou della Magna 7 O Ochino, Bernardino 38 Oliverotto da Fermo 12 Olschki, Carlo 4, 7, 8, 21 Orsini, família 12, 13, 23 Osthoff, Wolfgang 40 Ovídio Naso, Públio 21 P Palmarocchi, Roberto 14, 36 Palmieri, Matteo 9 Paolo da Ronciglione (Sassi, Paolo di Antonio) 7 Passerini, Silvio, cardeal 42 Paulo III (Alessandro Farnese) 4 Paulo IV (Giampietro Carafa) 5 Pazzi, família 36 Pecchioli, Renzo 5 Pedullà, Gabrielle 37, 48 Perini, Leandro 4, 7, 27 Pescara, marquês de, cf. Àvalos, Ferrante. See also Àvalos, Ferrante

Peterson, David S. 5 Petrarca, Francesco 21, 45 Petrucci, Pandolfo, senhor de Siena 12 Pio III (Francesco Todeschini Piccolomini), papa 13 Pirrotta, Nino 40 Pisani, Giuliano 47 Pissavino, Paolo Constantino 4 Platão 21, 37, 42 Plauto, Tito Maccio 31, 40 Plínio, Caio Segundo 7 Plutarco 7, 9, 21, 26, 39, 42, 47 Pocock, John Greville A. 5 Políbio 7, 22, 26, 27 Pontano, Giovanni 9 Prandi, Alfonso 5 Procacci, Giuliano 5, 23, 25, 28, 47 Procópio di Cesarea 21 Prosperi, Adriano 29 Ptolomeu, Cláudio 7, 13, 21 Pulci, Luigi 4 Q Quaglioni, Diego 4, 21, 48 Quirini, Vincenzo 15 R Raimondi, Ezio 31 Ranke, Leopold 38 Renaudet, Augustin 17 Rezasco, Giulio 45 Ricci, Giuliano de 13, 26, 31 Richardson, Brian 18 Ridolfi, Niccolò, cardeal 42 Ridolfi, Roberto 7, 21, 38 Rohan, Henri de 29 Rômulo 23, 25, 48 Rousseau, Jean-Jacques 44, 49 Rubinstein, Nicolai 8 Rucellai, Bernardo 7, 9, 15, 26

Rucellai, Cosimo 26, 29 Rucellai, família 8, 26, 29, 32 S Sacrobosco, Giovanni (John Holywood) 4 Saitta, Armando 47 Salústio, Caio Crispo 7, 21, 37 Salutati, Coluccio 8 Salviati, Alamanno 8, 14, 15, 16 Salviati, família 33 Salviati, Giovanni 29 Sanctis, Francesco de 5 Sangallo, Bastiano da 40 Sangallo, Giuliano da 17 Sanudo, Marino 31 Sapegno, Natalino 25, 38 Sarto, Andrea del 40 Sasso, Gennaro 13, 21, 22, 24, 26, 44, 48, 49 Savonarola, Girolamo 7 Schiavone 37 Segni, Bernardo 45 Seidel Menchi, Silvana 4, 17, 25 Sêneca, Lúcio Aneu 42 Sepúlveda, Juan Ginés de 28 Sestan, Ernesto 47 Sforza, família 18, 40 Sforza, Francesco II, duque de Milão 41 Sforza, Galeazzo Maria, duque de Milão 36 Sforza Riario, Catarina, senhora de Forli 11 Silvano, Giovanni 40 Soderini, Francisco, cardeal 11, 14 Soderini, Pier 8, 13, 14, 15, 32, 33, 34, 38 Spinella, Mario 45 Stoppelli, Pasquale 31 Strozzi, Filippo 33, 41, 42, 49 Strozzi, Lorenzo 32 Suetônio Tranquilo, Caio 21 Sula, Lúcio Cornélio 27

T

Tabet, Xavier 4, 5, 9, 48 Tácito, Públio Cornélio 7, 21, 26, 37, 42 Tenenti, Alberto 11, 45 Terêncio, Públio Afro 7, 31 Teseu 23, 48 Tibulo, Álbio 21 Tocqueville, Alexis 47 Tomás de Aquino, santo 47 Tommasini, Oreste 26, 31, 46 Trivulzio, Gian Jacopo 17 V Valentino, cf. César Bòrgia, o. See also César Bòrgia Varchi, Benedetto 5, 49 Varotti, Carlo 45 Vasco da Gama 4 Vasoli, Cesare 4 Verde, Armando 7 Verdelot, Philippe 40 Vernacci, Giovanni 31, 32 Vespúcio, Agostino 9, 16, 26 Vespúcio, Bartolomeu 13 Vettori, Francesco 7, 9, 12, 15, 20, 26, 42, 44 Vettori, Paolo 26 Villani, Giovanni 36 Villari, Pasquale 37 Virgílio Maro, Públio 25 Viroli, Maurizio 5, 29 Visconti, família 32, 46 Visconti, Filipe Maria, duque de Milão 37 Visconti, João Galeácio 5, 36 Vitelli, Paolo 8 Vitelli, Vitellozzo 11, 12 W Whitfield, John H. 7 Willoweit, Dietmar 11 X

Xenofonte 7, 11

Z Zancarini, Jean-Claude 4, 9, 48 Zanzi, Luigi 27

1. Niccolò Machiavelli, Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, in Opere, Preambulo, I, p. 197. Os escritos de Maquiavel são citados com base na edição em três volumes de suas obras publicada pela Pléiade Einaudi, em 1997, 1999 e 2005, respectivamente. 2. Jacob Burckhardt, La civiltà del Rinascimento in Italia [A cultura do Renascimento na Itália], Sansoni, Florença, 1952, p. 259 e ss. 3. Virtù (literalmente, virtude) é um conceito bem específico na obra de Maquiavel, assim como o termo fortuna, com o sentido de sorte, destino. Genericamente, virtù significa a capacidade de discernir a melhor forma de agir diante da realidade, de acordo com a necessidade. O conceito envolve a capacidade de mudar e de se transformar. Quanto maior a virtù de um governante, maior fortuna ele atrai. (N. T.) 44. Luigi Pulci, Morgante [Morgante], XXV, 228-36: o sábio diabo Astarote informa o paladino Rinaldo que “se pode descer ao outro hemisfério”, onde igualmente “existem cidades, castelos e impérios” e terras muito habitadas. 5. John Holywood (Giovanni Sacrobosco), em seu tratado De Sphaera mundi [Tratado da esfera], composto por volta da metade do século XIII, explicava que a Terra se separava em cinco zonas, das quais apenas duas, as temperadas do hemisfério setentrional e do hemisfério meridional, eram habitáveis. As outras, não só eram inabitáveis, mas inacessíveis pelo rigor extremo do frio ou em razão do calor, que chegaria a incendiar os navios que se aventurassem naqueles mares. De Sphaera foi o texto por excelência usado para estudar as características da Terra, e teve longa e prolongada sorte, a ponto de ser continuamente editado por todo o século XVI e seguintes; assim, a Universidade de Pádua, ainda em 1592, vinculava Galileu por contrato à leitura e explicação dessa obra. Por outro lado, sabemos pelo Libro di ricordi [Livro de memórias] do pai de Nicolau Maquiavel, Bernardo (organização de Leo S. Olschki, Edizioni di storia e letteratura, Roma, 2007, com posfácio de Leandro Perini), que este possuía o comentário ao ciceroniano Somnium Scipionis [O sonho de Cipião], de Macróbio, escritor latino do século V, que também ilustrava a divisão do mundo em cinco zonas, das quais somente duas habitáveis. 6. Orlando Furioso, XV, 21-2 [São Paulo, Ateliê, 2011, p. 371]. 7. Esta navegação confundiu muitas coisas afirmadas pelos escritores das coisas terrenas, mas, para além disso, provocou alguma ansiedade nos intérpretes da escritura sagrada, acostumados a inter-pretar aquele versículo do salmo [18, 5], que diz que por toda a terra ecoou o seu som e nos confins do mundo as suas palavras, o que significava que a fé de Cristo havia penetrado, pela boca dos apóstolos, todo o mundo: interpretação alheia à verdade” (Francesco Guicciardini, Storia d’Italia, organização de Silvana Seidel Menchi, Einaudi, Turim, 1971, p. 593). 8. Assim fez Copérnico na dedicatória ao papa Paulo III do De revolutionibus orbium caelestium (cf. a edição do primeiro livro, La costituzione generale dell’universo [A constituição geral do universo], organização de Alexandre Koyré, Einaudi, Turim, 1975, p. 11). Com base em tal indicação, a primeira ideia da “revolução astronômica” que teria negado a visão geocêntrica do universo teria sido concebida por Copérnico quando ainda frequentava a Universidade de Pádua (1501-06), ou logo após.

9. Cf. Cesare Vasoli, La tradizione scolastica e le novità umanistiche filosofiche del tardo Trecento e del Quattrocento [A tradição escolástica e as novidades humanísticas filosóficas de fins do século XIV e do XV], organização de Paolo Costantino Pissavino, Bruno Mondadori, Milão, 2002, em particular p. 126 e ss, para um quadro da evolução intelectual dessa época. 10. Discorsi, I, 40, Opere, I, p. 288. 11. Carta de Vettori a Maquiavel, de 20 de agosto de 1513, e de Maquiavel a Vettori, de 26 de agosto de 1513, in Opere, II, p. 285 e 289. Por outro lado, tal adesão à realidade o impele a buscar confirmações nos textos jurídicos, em consonância com a vida vivida: para citar um único escrito particularmente eficiente, veja-se Diego Quaglioni, “Machiavelli e la lingua della giurisprudenza” [Maquiavel e a língua da jurisprudência], in Langues et écritures de la République et de la guerre: études sur Machiavel, organização de Alessandro Fontana, Jean-Louis Fournel, Xavier Tabet, Jean-Claude Zancarini, Name, Gênova, 2004, p. 177-92. 12. A frase é repetida in Discorsi, I. 6, e II. Proemio [Prefácio], in Opere, I, p. 216 e 325, e in Istorie fiorentine, v. 1, in Opere, III, p. 519. 13. Até esta postura será motivo de incompreensão. Assim, Bodin, que reconhecia em Maquiavel a experiência “de republica”, apresenta o testemunho de Giovio sobre seu pouco conhecimento dos clássicos [“hoc quidem illi defuisse Jovius tradit” (“com efeito, Giovio conta que lhe faltava isso”)] para afirmar que teria sido um autor mais verdadeiro “si veterum philosophorum et historicorum scripta cum usu coniunxisset” [“se à experiência ajuntasse os escritos dos antigos filósofos e historiadores”]: cf. J. Bodin, Methodus ad facilem historiarum cognotionem... [Médodo para a fácil compreensão das histórias], organização de P. Mesnard, Puf, Paris, 1951, p. 167 A. 14. Francesco de Sanctis, “Conferenze su Machiavelli” [Conferências sobre Maquiavel], in L’arte, la scienza e la vita [A arte, a ciência e a vida], organização de Maria Teresa Lanza, Einaudi, Turim, 1972, p. 76. 15. Desnecessária a remissão à imponente obra de Jesús Martínez de Bujanda, mas veja-se, pelo menos, Index de Rome, 1557, 1559, 1564, Centre d’Études de la Renaissance, Sherbrooke (Québec), 1990. 16. Lettere di Giovambattista Busini a Benedetto Varchi [Cartas de Giovambattista Busini a Benedetto Varchi], organização de Gaetano Milanesi, Le Monnier, Florença, 1860, p. 241. 17. Sobre tais problemas é fundamental Giuliano Procacci, Machiavelli nella cultura europea dell’età moderna [Maquiavel na cultura europeia da Idade Moderna], Laterza, Roma-Bari, 1995. 18. Ibid., p. 347 e ss. Como é sabido, é ainda esta a interpretação de Foscolo em Os Sepulcros, vv. 155-158. 19. John Greville Agard Il momento machiavelliano: il pensiero politico fiorentino e la tradizione repubblicana anglosassone [O momento maquiaveliano: o pensamento político florentino e a tradição republicana anglo-saxã], tradução italiana de Alfonso Prandi, il Mulino, Bolonha, 1980. Sobre algumas aporias da interpretação de Pocock, cf. Maurizio Viroli, Il Dio di Machiavelli e il problema morale dell’Italia [O Deus de Maquiavel e o problema moral da Itália], Laterza, Roma-Bari, 2005p. XXXII-XXXIV 20. Cf. Marie Gaille-Nikodimov, L’annexion républicaine de Machiavel dans la pensée anglo-saxonne, in Machiavel aux XIXe. et XXe. siècles, organização de Paolo Carta e Xavier Tabet, Cedam, Padova, 2007, p. 287-307.

21. Cf. o prefácio de H. Baron à edição por ele organizada de Leonardo Bruni Aretino, humanistisch-philosophische Schriften, Teubner, Leipzig-Berlim, 1928, onde, pela primeira vez, aparece o termo Bürgerhumanismus (Humanismo civil). O desenvolvimento dessa concepção encontra-se, naturalmente, em seu livro The Crisis of the Early Italian Renaissance, Princeton University Press, Princeton, 1966 (La crisi del primo Rinascimento italiano [A crise do primeiro Renascimento italiano], tradução italiana de Renzo Pecchioli, Sansoni, Florença, 1970), onde deve ser visto Anthony Molho, “Hans Baron’s Crisis”, in Florence and Beyond. Culture, Society and Politics in Renaissance Italy. Essays in Honour of John M. Najemy, organização de David S. Peterson, com a colaboração de Daniel E. Bornstein, The Centre for Reformation and Renaissance Studies, Toronto, 2008, p. 61-90. 22. Em tradução livre, Caprichos endereçados a Soderino. São cartas escritas para Giovan Battista Soderini. (N. T.) 23. Carta a Francesco Vettori, 16 de abril de 1527 (Opere, II, p. 459). 24. Cf. Bernardo Maquiavel, Libro di recordi, op. cit. 25. Roberto Ridolfi, Vita di Niccolò Machiavelli [Vida de Nicolau Maquiavel], Sansoni, Florença, 1978, p. 4. 264. Carta a Francesco Vettori, 18 de março de 1513 (Opere, II, p. 237). 27. Cf. o apêndice do segundo volume da obra de Armando Verde, Lo Studio fiorentino 1473-1503 [O Studio florentino], Leo S. Olschki, Florença, 1973-94, dedicada ao estudante Maquiavel (p. 537). Segundo Verde, Maquiavel não frequentou a Universidade de Pisa, diferentemente do costume dos jovens florentinos de sua condição, porque, pelo que se extrai dos Ricordi, de Bernardo, este era capaz de prover sua instrução sem recorrer ao ensino público. Bernardo possuía – explica Verde – um bom conhecimento dos livros de direito, de história, de letras, e, assim, podia dar ao jovem Nicolau uma boa formação cultural. Ao mesmo tempo, é de se notar, o título universitário de doutor não era exigido para os cargos públicos, bastando o diploma conferido pelas corporações de ofício. 28. Paolo Giovio, Elogia clarorum virorum... [Sentenças dos homens ilustres...], apud Michaelem Tramezinum, Veneza, 1546 (mas cito da tradução italiana organizada por Franco Minonzio, Einaudi, Turim, 2006, p. 258). 297. Pelo Libro di ricordi do pai (p. 138), sabemos que Maquiavel começou a “fazer latim” com Paolo da Ronciglione, que também ensinou o humanista Pietro Crinito: esse detalhe também permite colocar em dúvida a afirmação de Giovio. 30. Já John Humphreys Whitfield (Discourses on Machiavelli, W. Heffer & Sons, Cambridge, 1969, p. 197) aventou a hipótese de que Maquiavel conhecesse o VI livro de Políbio graças ao ambiente filelênico florentino, e Carlo Dionisotti (Maquiavellerie. Storia e fortuna di Machiavelli [Maquiavelices. História e fortuna de Maquiavel], Einaudi, Turim, 1980, p. 139-40) cita um caso do Liber de urbe Roma [Livro sobre a cidade de Roma], de Bernardo Rucellai, que menciona a leitura daquele texto em latim. 31. Carlo Ginzburg, “Machiavelli, l’eccezione e la regola” [Maquiavel, a exceção e a regra], in Quaderni storici, 2003, 112, e Leandro Perini, no posfácio ao Libro di ricordi, op. cit., identificaram boa parte dos livros mencionados por Bernardo Maquiavel. Sobre as leituras de Maquiavel, cf. também Carlo Ginzburg, Diventare Machiavelli. Per una nuova lettura dei “Ghiribizzi al Soderini” [Tornar-se Maquiavel. Para uma nova leitura dos “Ghiribizzi al Soderini”], in Quaderni storici, 2006, 121, p. 151-64.

32. Libro di ricordi, op cit., p. 14 e 35. De que modo o trabalho de Bernardo Maquiavel foi usado por Niccolò Alamanno (ou della Magna) não se sabe, porque nenhuma edição da obra de Tito Lívio feita por esse tipógrafo chegou até nós. 33. Em 1971, Mario Martelli publicou o artigo “Preistoria (medicea) di Machiavelli” [Pré-história (relacionada aos Médici) de Maquiavel], in Studi di filologia italiana, XXIX, p. 377-405, em que, fundamentando-se no manuscrito Laurenziano, XLI, 33, das mãos de Biagio Buonaccorsi, atribuiu a composição de Poscia che a l’ombra sotto questo alloro [Pois que na sombra sob este loureiro] e de Se avessi l’arco e le ale [Se eu tivesse arco e asas], de Maquiavel, a uma data anterior a 1494, e cogitou, portanto, que frequentasse o ambiente cultural dos Médici, durante a juventude. Logo em seguida, porém, em “Machiavelli politico, amante, poeta” [Maquiavel político, amante, poeta], in Interpres, XVII, 1998, p. 252, afirmou que “as conclusões de tempos atrás, então provisórias, e como provisórias formuladas, tiveram de ser radicalmente revisadas” e que tinha “restituído o Capitolo pastorale [Capítulo pastoral] à sua data (1515 ou 1518)”. Desapareceria, assim, aquela breve iluminação sobre o período anterior ao ingresso na chancelaria, que, por outro lado, poderia explicar a relação com Juliano de Médici, depois da queda da República. 34. S. Bertelli, “Noterelle machiavelliane. Un codice di Lucrezio e di Terenzio” [Pequenas notas maquiavelianas. Um códice de Lucrécio e de Terêncio], in Rivista storica italiana, LXXIII 1961, p. 544-53; idem, “Noterelle machiavelliane. Ancora su Lucrezio e Machiavelli” [Pequenas notas maquiavelianas. Ainda sobre Lucrécio e Maquiavel], IVI, LXXVI, 1964, p. 774-90. Como é sabido, o poema de Lucrécio foi descoberto por Poggio Bracciolini quando foi para o Concílio de Constança, em 1415. 35. Opere, II, p. 295-96. 36. Assim, Ginzburg, Machiavelli, l’eccezione e la regola, op. cit., p. 197 e ss., observou em um diálogo de A mandrágora a citação indireta de um especialista em direito canônico, cuja obra Bernardo Maquiavel possuía. 37. Carta a Ricciardo Becchi, 9 de março de 1498 (Opere, II, p. 5-8). 38. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, I. 45 (Opere, I, p. 292). 39. Ibid. A respeito do que se passou veja-se I. Cervelli, Savonarola, Machiavelli e il libro del’Esodo [Savonarola, Maquiavel e o livro do Êxodo], in Savonarola, democrazia, tinannide, profezia [Savo-narola, democracia, tirania, profecia], organização de G. C. Garfagnini, Edizioni del Galluzzo, Florença, 1998, p. 243-98. 40. Opere, II, p. 6. 41. Um dos membros eleitos para uma junta encarregada de governar Florença. Era ele quem detinha o gonfalone, o estandarte da República. (N.T.) 42. Aristocracia predominantemente mercantil, estabelecida há muito tempo na cidade, e que enxergava a si mesma como portadora de sabedoria e virtude. (N. T.) 43. O episódio foi narrado por Philippe de Commynes, o historiador francês que acompanhou Carlos VIII em sua expedição (Philippe de Commynes, Memorie, organização de Maria Clotilde Daviso di Charvensod, Einaudi, Turim, 1960, p. 413-14): os habitantes de Pisa “foram em grande multidão, de homens e de mulheres, a gritar ao rei, que ia à missa: ‘Liberdade, liberdade!’, e a suplicar-lhe, com lágrimas nos olhos, para que lhes a devolvesse [...] O rei, que não compreendia o significado daquela palavra, e que, segundo o direito, não poderia conceder a liberdade (já que a cidade não lhe pertencia, ele apenas a

havia recebido, por amizade, em razão da grande necessidade em que se encontrava) [...] respondeu que estava contente”. 44. Comandante militar que formava milícias mercenárias que colocavam suas forças a serviço de Estados italianos. (N. E.) 45. Discorso sopra Pisa [Discurso sobre Pisa], in Opere, I, p. 3-4, e carta de 5 de outubro de 1499, in Opere, II, p. 19. 4624. Sobre estruturação, cf.: D. Marzi, La Cancelleria della Repubblica fiorentina [A chancelaria da república florentina], edição fac-símile Le Lettere, Florença, 1987; G. Guidi, Lotte, pensiero e istituzioni politiche nella Repubblica fiorentina dal 1494 al 1512 [Lutas, pensamento e instituições políticas na república florentina, de 1494 a 1512], L. S. Olschki, Florença, 1992, e, no que tange a Maquiavel: N. Rubinstein, The Beginnings of Niccolò Macchiavelli Career in the Florentine Chancery, in “Italian Studies”, XI, 1956, p. 72-91. 47. Instituição de estudo aberta em Florença, no século XIV, equivalente à universidade. (N. T.) 48. Cf. Eugenio Garin, I cancellieri umanisti della repubblica fiorentina [Os chanceleres humanistas da república florentina], in id., La cultura filosofica del Rinascimento italiano [A cultura filosófica do Renascimento italiano], Sansoni, Florença, 1961, p. 3-37. 49. Cf. S. Bertelli, Machiavelli e la politica estera fiorentina [Maquiavel e a política externa florentina], in Studies on Machiavelli, organização de M. P. Gilmore, Sansoni, Florença, 1972, p. 51. 50. Opere,II, p. 53. 51. Análises políticas em registros de crônicas e de diários foram apropriados por Emanuele Cutinelli-Réndina, Jean-Jacques Marchand, Matteo MeleraMorettini, “Ipotesi per una ricerca. L’emergenza del discorso politico dalla storiografia toscana minore tra Quattro e Cinquecento” [Hipótese de pesquisa. A emergência do discurso político da historiografia toscana menor entre os séculos XV e XVI], in Langues et écritures de la république et de la guerre. Études sur Machiavel, organização de Alessandro Fontana, Jean-Louis Fournel, Xavier Tabet, Jean-Claude Zancarini, Name, Gênova, 2004, p. 29-50. Sobre as ligações entre narração histórica e reflexão política, seguindo uma linha cultural já provada no século XV na Toscana, veja-se, de Cutinelli-Réndina, Marchand e MeleraMorettini, Dalla storia alla politica nella Toscana del Rinascimento [Da história à política na Toscana do Renascimento], Salerno, Roma, 2005. 52. Arte della guerra, VII, in Opere, I, p. 685. 53. Composições performáticas medievais, de caráter popular, em oitava, geralmente sobre temas heroicos, épicos e cavaleirescos, recitadas em público com o acompanhamento de um instrumento musical. (N. T.) 54. Ridolfi, Vita, op. cit., p. 468. Cf. também a Introduzione [Introdução] de Giorgio Inglese à sua edição dos Capitoli, de Maquiavel, Bulzoni, Roma, 1981, p. 28 e ss. 55. Ibid., II, p. 23. 56. “Teu, muitíssimo teu”, em latim. (N. E.) 57. Ibid., p. 30. 58. Ibid., p. 28. 59. Ibid., p. 47. 60. Ibid., p. 295. 61. Ibid., p. 57-8. 62 Ibid., p. 224.

63. Sobre o mundo florentino desses anos, veja-se, em particular, I ceti dirigenti in Firenze dal gonfalonierato di giustizia a vita all’avvento del ducato [As classes dirigentes em Florença, desde o gonfalonierato de justiça vitalício ao advento do ducado], organização de Elisabetta Insabato, introdução de Riccardo Fubini, Conte, Lecce, 1999. Além disso, algumas indicações em Felix Gilbert, “Bernardo Rucellai e gli Orti Oricellari. Studio sull’origine del pensiero politico moderno” [Bernardo Rucellai e os Orti Oricellari. Estudo sobre a origem do pensamento político moderno] e “Le idee politiche a Firenze al tempo di Savonarola e Soderini” [As ideias políticas em Florença no tempo de Savonarola e Soderini], ambos em Machiavelli e il suo tempo [Maquiavel e o seu tempo], il Mulino, Bolonha, 1977. Veja-se também Lauro Martines, The Social World of the Florentine Humanists e Lawyers and Statecrafts in Renaissance Florence, Princeton, 1963 e 1968, respectivamente, e Robert Burr Litchfield, Emergence of a Bureaucracy. The Florentine Patricians 1530-1790, que, todavia, enfrentam as questões com interesse mais geral. 64. Opere, II, p. 349. 65. Ibid., p. 205-6. 66. Em 1971, a editora Laterza havia dado início à publicação dos escritos de chancelaria de Maquiavel, compreendendo tanto as cartas das missões diplomáticas, em sua integralidade, quanto uma seleção de escritos de governo, organizada por Fredi Chiappelli e Jean-Jacques Marchand, mas tal edição parou no quarto volume, que chegava até o dia 31 de dezembro de 1505. Agora, a Edizione Nazionale delle Opere di Machiavelli também retomou a publicação de uma seleção dos escritos de governo, sob a responsabilidade de Jean-Jacques Marchand e colaboradores. 67. Niccolò Machiavelli, Legazioni. Commissarie. Scritti di governo [Legações. Comissariados. Escritos de governo], t. I (1498-1500), organização de JeanJacques Marchand, Edizione Nazionale delle Opere di Machiavelli, Roma, 2002, p. 17-8. 68. Ibid., p. 20. 69. Ghiribizzi al Soderino, in Opere, II, p. 137. 70. Legazioni. Commissarie. Scriti di governo, op. cit., t. I, p. 23. 71. Niccolò Maquiavel, Legazioni. Commissarie. Scritti di governo, t. II, (15011503), organização de Fredi Chiappelli, com a colaboração de Jean-Jacques Marchand, Laterza, Roma-Bari, 1973, p. 11. 72. Id., Legazioni. Commissarie. Scritti di governo, t. II (1501-1503), organização de Emanuele Cutinelli-Réndina, Edizione Nazionale delle Opere di Machiavelli, Roma, 2003, p. 82-3. 73. Carta a Vettori de 10 de dezembro de 1513, in Opere, II, p. 297. 74. Ibid., p. 241. 75. Opere,I, p. 159. 76. Ibid., p. 26-31. 77. Ibid., p. 335. 78. Cf. Elena Fasano Guarini, “Gli statuti delle città soggette a Firenze tra ‘400 e ‘500: riforme locali e interventi centrali” [Estatutos das cidades submetidas à Florença entre os séculos XIII e XIV: reformas locais e intervenções centrais], in Statuti, città, territori in Italia e Germania tra Medioevo ed Età moderna [Estatutos, cidades e territórios na Itália e na Alemanha entre a Idade Média e a Idade Moderna], organização de Giorgio Chittolini e Dietmar Willoweit, il Mulino, Bolonha, 1991, p. 69-124.

79. Ibid., p. 24. Sobre esses problemas, cf. a tese de doutorado de Andrea Guidi, L’esperienza cancelleresca di Niccolò Machiavelli. L’“arte dello Stato” e la milizia nei dispacci della Cancelleria fiorentina [A experiência chanceleresca de Nicolau Maquiavel. A “arte do Estado” e a milícia nos despachos da chancelaria florentina], Istituto di Studi Umanistici di Firenze, 2008. 80. Opere, II, p. 622-28. 81. Sempre preciosas as indicações de Federico Chabod, “Alle origini dello Stato moderno” [Nas origens do Estado moderno], in Scritti sul Rinascimento [Escritos sobre o Renascimento], Einaudi, Turim, 1967, p. 625-50. Cf. também Alberto Tenenti, “La nozione di ‘stato’ nell’Italia del Rinascimento” [A noção de “estado” na Itália do Renascimento], in Stato: un‘ideia, una logica. Dal comune italiano all’assolutismo francese [Estado: uma ideia, uma lógica. Da comuna italiana ao absolutismo francês], il Mulino, Bolonha, 1987, p. 53-97. Enfim, remeto ao meu escrito “Note intorno al termine ‘stato’ in Machiavelli” [Notas em torno do termo “estado” em Maquiavel], que consta do apêndice deste livro. 82. Cf. Garrett Mattingly, Renaissance Diplomacy, Penguin Books, Harmondsworth, 1955. 83. Cf. Alessandro Fontana, “Les Ambassadeurs après 1494: la diplomatie et la politique nouvelles”, in Cahiers de la Renaissance Italienne, Paris, 1995, em particular p. 164-5. 84. Discorsi, III, 39, Opere, I, p. 512. 85. Opere,I, p. 729-32. 86. Cf. Garrett Mattingly, Renaissance Diplomacy, op. cit., p. 201 e ss. 87. O príncipe, cap. III, Opere, I, p. 126. Essa afirmação, que evidentemente se refere a relações de política externa, foi feita em termos gerais pelo antimaquiavelismo francês da segunda metade do século XVI, para acusar os italianos na corte de Catarina de Médici de, com suas máximas imorais, querer alterar as leis sobre as quais o reino se embasava. Cf. Paolo Carta, “I fuorusciti italiani e l’antimachiavellismo” [Os refugiados italianos e o antimaquiavelismo], in Francesco Guicciardini fra diritto e politica [Fran-cesco Guicciardini entre o direito e a política], Cedam, Padova, 2008, p. 159 e ss. 88. Epíteto de César Bórgia, duque de Valentinois. (N. E.) 89. Cf. E. Cutinelli-Réndina, Chiesa e religione in Machiavelli [Igreja e religião em Maquiavel], Istituti editoriali e tipografici, Pisa-Roma, 1998. 90. Opere, I, p. 126. 91. Ibid., p. 4-7. 92. Ibid., p. 56-68 e 77-84. 93. Rapporto di cose della Magna, Opere, I, p. 72. 94. Opere, I, p. 16-22; para o relatório à Signoria de Florença, Opere, II, p. 801-5. 95. Opere, II, p. 350. 96. Cf. ibid., p. 1703. 97. Ibid., p. 630. 98. Ibid., p. 777-778. 99. Ibid., p. 804. 100. O príncipe, cap. VII, Opere, I, p. 136. 101. Opere, II, p. 990. 102. Discursos, I, 27, ibid., p. 259. 103. O texto, que chegou a nós pela transcrição de Giuliano de’ Ricci, carrega o seguinte título, até a redescoberta do manuscrito: Ghiribizzi scripti in Raugia al Soderino [Extravagâncias escritas em Ragusa para Soderino], e, portanto,

pensou-se que fossem endereçadas ao ex-gonfaloneiro Pier Soderini, que, no retorno dos Médici a Florença, em 1512, havia-se refugiado em Ragusa, república mercantil no litoral do Adriático (cf. Ridolfi, Vita, op. cit., p. 477-8). A leitura do manuscrito permite compreender que os Ghiribizzi foram “escritos em Perúgia”, não remetidos para Ragusa, a Soderino, que, na verdade, não era Piero, mas o sobrinho, Giovan Battista, em resposta a uma carta de 12 de setembro de 1506 (cf. Opere, II, p. 135-8). 104. Gennaro Sasso, “Qualche osservazione sui ‘Ghiribizzi al Soderini’” [Algumas observações sobre os “Ghiribizzi a Soderini”] in Machiavelli e gli Antichi ed altri saggi [Maquiavel e os Antigos e outros ensaios], t. II, Ricciardi, Milão-Nápoles, 1988, p. 12. 105. Acerca desta afirmação de Ptolomeu e suas implicações cf. Eugenio Garin, “Aspetti del pensiero di Machiavelli” [Aspectos do pensamento de Maquiavel], in Dal Rinascimento all’Illuminismo. Studi e ricerche [Do Renascimento ao Iluminismo. Estudos e pesquisas], Nistri-Lischi, Pisa, 1970, p. 57 e ss. 106. Discursos, I, 56, Opere, I, p. 314. Francesco Guicciardini, em Ricordi [Recordações] (211), também escreve: “Creio poder afirmar que os espíritos existem; digo, aquilo a que chamamos espíritos, isto é, aqueles seres aéreos que domesticamente falam com as pessoas, porque vi experiência tal que me faz ter muita certeza disso”. 107. Lucien Febvre, Il problema dell’incredulità nel secolo XVI. La religione di Rabelais [O problema da incredulidade no século XVI. A religião de Rabelais], Einaudi, Turim, 1978. 108. Opere, II, p. 101. Preciosas informações sobre Bartolomeu Vespúcio in Sasso, Qualche osservazione sui “Ghiribizzi”, op. cit., p. 32 e ss. 109. Eugenio Garin, Lo Zodiaco della vita. La polemica sull’astrologia dal Trecento al Cinquecento [O zodíaco da vida. A polêmica sobre astrologia, do século XIV ao século XVI), Laterza, Roma-Bari, 1976, p. 22-23, lembra que em San Marco, no convento de Savonarola, estava guardado um exemplar, pertencente a , da Introductorium maius in astronomiam, do grande astrólogo de Bagdá, Albumasar, no qual se afirmava a impossibilidade de alterar as determinantes dos planetas e, nas comparações de suas influências, negava-se qualquer margem à iniciativa dos homens. Podemos duvidar que Maquiavel tivesse tido conhecimento direto do texto, mas, provavelmente, ideias parecidas circulavam fora daquele claustro. 110. Opere, I, p. 587. 111. Leonardo da Vinci, além de artista e humanista famoso, foi engenheiro militar a serviço de César Bórgia entre 1502 e 1503, e trabalhou em Florença nos anos seguintes. (N. E.) 112. Cf. C. Dionisotti, Machiavelli, Cesare Borgia e don Micheletto [Maquiavel, César Bórgia e dom Micheletto], in id., Machiavellerie, op. cit., p. 3-59. 113. Opere, II, p. 105. 114. Tercetos rimados, em que o primeiro e terceiro versos rimam entre si, o segundo verso rima com o primeiro e o terceiro da estrofe seguinte. Essa forma foi usada em um longo poema pela primeira vez por Dante Alighieri, em sua Comédia. (N. T.) 115. Dionisotti, Machiavellerie, op. cit., p. 17. 116. Francesco Guicciardini, Storie fiorentine dal 1378 al 1509 [Histórias de Florença de 1378 a 1509], organização de Roberto Palmarocchi, Laterza, Bari, 1931, p. 282.

117. Luca Landucci, Diario fiorentino dal 1450 al 1516 [Diário florentino de 1450 a 1516], organização de Jodoco Del Badia, Sansoni, Florença, 1883, p. 273. 118. Opere, I, p. 26-31. 119. Ibid., p. 688. 120. Guicciardini, Storie fiorentine, op. cit., p. 282. 121. Opere, II, p. 1173. 122. Ibid., p. 161-64. 123. Opere, III, p. 38. 124. Guicciardini, Storie fiorentine, op. cit., p. 304-5. 125. Carta de 8 de fevereiro de 1509, in Opere, II, p. 1099. 126. Cf. Rapporto di cose della Magna, Opere, I, p. 69-77. 127. Nos escritos de Maquiavel, a batalha ganha o nome de outra localidade, vizinha ao lugar do combate, Vailate. 128. República de São Marcos é outro nome por que se conhecia a República de Veneza, também apelidade de a Sereníssima. [N. E.] 129. Opere, II, p. 1170. 130. Ibid., p. 1184. 131. Ibid., p. 1194. 132. Alusão ao fragmento 154, do oitavo canto, dos Anais de Ênio. Os Annales, de Quinto Ênio (239-169 a.C.), foram um poema épico originalmente composto em dezoito livros, e, imitando a disposição dos anais pontificiais, narrava toda a história de Roma: das origens mitológicas da cidade às Guerras Púnicas.(N. E.) 133. Carta de 8 de junho de 1509, Opere, II, p. 188 (“Nisi crederem te nimis superbire, oserei dire che voi con li vostri battaglioni tam bonam navastis operam ita ut non cunctando sed accelerando restitueritis rem florentinam”). 134. Ibid., p. 1231. De mesmo modo que escreve no capítulo Dell’Ambizione [Da Ambição] (v. 132]: “Jamais viu o sol tamanha crueldade!”. 135. Ibid. 136. Opere, III, p. 46. 137. A carta de Maquiavel de 28 de setembro de 1509, endereçada ao “Magnífico homem Alamanno de Salviatis, digníssimo capitaneo Pisarum, patrono honorando”, está in Opere, II, p. 195-9; a resposta de Salviati “Ao meu caro Nicolau Maquiavel”, de 4 de outubro, ibid., p. 200-1. 138. Opere, III, p. 47. 139. Carta de 1º de dezembro de 1509, Opere, II, p. 1235. 140. Francesco Guicciardini, Storia d’Italia [História da Itália], organização de Silvana Seidel Menchi, Einaudi, Turim, 1971, I, 1, cap. IX. 141. Carta de 20 de junho de 1510, Opere, II, p. 1247-8. 142. Cf. Le Concile Gallican de Pise-Milan. Documents florentins (1510-1512) [O Conselho Galicano de Pisa - Milão. Documentos florentinos] publicados por Augustin Renaudet, Champion, Paris, 1922. 143. Ainda é essencial sobre estes problemas a obra de A. Renaudet, Préréforme et Humanisme à Paris pendant les premières guerres d’Italie (1494-1517) [Préreforma e Humanismo em Paris durante as primeiras guerras da Itália], Paris, 1953. 144. Discorsi, II, 15, Opere, II, p. 362-3. 145. Carta de Florença, logo após o 16 de setembro de 1512, Opere, II, p. 231-5. A identidade da “gentil-dona” como sendo Isabella d’Este deve-se a B. Richardson, La “lettera a una gentildonna” del Maquiavelli [A “carta a uma gentil-dona”, de Maquiavel], in “La Bibliofilia”, LXXXIV 1982, p. 271-6.

146. Opere, I, p. 87-9. 147. Assim Maquiavel logo informa a sua libertação a Francesco Vettori, em 13 de março de 1513. Cf. Opere, II, p. 235. 148. Carta de 30 de setembro de 1514, ibid., p. 346. 149. Maquiavel a Vettori, 18 de março de 1513, ibid., p. 237. 150. Carta de 13 de março de 1513, ibid., p. 235. 151. Maomé II, o Conquistador, sultão do Império Otomano no final do século XV. 152. Degli Spiriti beati, in Opere, III, p. 27-8. (N. E.) 153. Sobre essa troca de cartas, que se prolonga de 19 de abril a 26 de agosto de 1513, cf. Opere, II, p. 243-290. Sobre essa correspondência e a seguinte, de 1514, relacionada às considerações de O Príncipe, cf. Federico Chabod, “Sulla composizione de ‘Il Principe’” [Sobre a composição de “O príncipe”], in Scritti su Machiavelli [Escritos sobre Maquiavel], Einaudi, Turim, 1964, p. 177 e ss. 154. “Io ho, Giuliano, in gamba un paio di geti” [Eu tenho, Juliano, um par de grilhões em minhas pernas] e “In questa notte, pregando le Muse” [Nesta noite, rogando às musas], in Opere, III, p. 8-9. O terceiro soneto a Juliano é posterior, aquele sobre a remessa de tordos (ibid., p. 9), escrito provavelmente no outono de 1514. Hugo Jaeckel e Riccardo Fubini, “I ‘Tordi’ e il ‘Principe Nuovo’. Note sulle dediche del ‘Principe’ di Machiavelli a Giuliano e a Lorenzo de’ Medici, e Postilla ai ‘Tordi’” [Os “Tordos” e o “Príncipe novo”. Notas sobre as dedicatórias de “O príncipe”, de Maquiavel, a Juliano e a Lourenço de Médici, e Comentários aos “Tordos”], in Archivio Storico Italiano, CLVI, 1998, p. 73-92 e 93-6, sugere que o soneto mascara a homenagem de O Príncipe. Não é de se afastar que o relacionamento com Juliano remonte aos últimos dias de Lourenço, o Magnífico. Cf. o já citado artigo de Martelli, Preistoria (medicea) di Machiavelli. 155. Depois da saída da prisão, escreveu-lhe em 18 de março de 1513 que precisava reconhecer “tudo o que me resta de vida [...] ao magnífico Juliano e a seu [irmão] Pagolo”, e, em 16 de abril: “a magnificência de Juliano virá aqui, e você o encontrará naturalmente voltado a fazer-me o bem”. 156. O Príncipe, XXVI, Opere, I, p. 190. 157. Cf. Felix Gilbert, “Il concetto umanistico di principe e ‘Il Principe’ di Machiavelli” [O conceito humanista de príncipe e “O Príncipe” de Maquiavel], in Machiavelli e il suo tempo [Maquiavel e o seu tempo], il Mulino, Bolonha, 1977, p. 171-208. 158. Cf. Diego Quaglioni, “Il modello del principe cristiano. Gli ‘specula principum’ fra Medio Evo e prima Età Moderna” [O modelo do príncipe cristão. Os “specula principum” [“espelhos de príncipes”] entre a Idade Média e o início da Idade Moderna], in Modelli nella storia del pensiero politico [Modelos na história do pensamento político], organização de v, Leo S. Olschki, Florença, 1988, I, p. 103-22. 159. Opere, II, p. 250. 160. Uma resenha geral das inexatidões e dos erros nas citações dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, in Mario Martelli, [Maquiavel e os historiadores antigos], Salerno, Roma, 1998. 161. Cf. a esse respeito as indicações de Jean-Louis Fournel, “Retorica della guerra, retorica dell’emergenza nella Firenze repubblicana” [Retórica da guerra, retória da emergência na Florença republicana], in Giornale critico della filosofia italiana, LXXXV (LXXXVII), fasc. III, setembro-dezembro de 2006, p. 389-411. 162. Veja-se sua carta citada na introdução à minha edição de Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, Einaudi, Turim, 2000, p. XXIII.

163. Cf. Ridolfi, Vita di Niccolò Machiavelli, op. cit., p. 620, e Sasso, Niccolò Machiavelli, op. cit., I, p. 330. 164. Opere, II, p. 292. 165. Ibid., p. 294-297. 166. Cf. Federico Chabod, “Del ‘Principe’ di Niccolò Machiavelli” [De O príncipe, de Nicolau Maquiavel], in Scritti su Machiavelli [Escritos sobre Maquiavel], Einaudi, Turim, 1964, p. 29 e ss., e, em especial, nota 3, p. 35, e Friedrich Meinecke, “Anhang zur Einführung”, na edição de O Príncipe organizada por ele, Berlim, 1923, p. 38-47. 167. Il “Principe” ebbe due redazioni? [“O príncipe” teve duas redações?], in Sasso, Machiavelli e gli Antichi e altri saggi, op. cit, t. II, p. 197-276. 168. Antonio Gramsci, Quaderni del carcere [Cadernos do cárcere], organização de Valentino Gerratana, Einaudi, Turim, 1975, p. 1555 (Q. 13). 169. Sempre preciosas as indicações de G. Chittolini, La formazione dello Stato regionale e le istituzioni del contado. Secoli XIV e XV [A formação do Estado regional e as instituições do condado. Séculos XIV e XV], Einaudi, Turim, 1979. 170. Deve-se, porém, lembrar-se de que, ao longo das guerras religiosas na França, a publicidade antimaquiaveliana, sem levar em consideração o valor dado às “boas constituições” daquele reino (Opere, I, p. 169, 316, 419 etc.), interpretou aquelas observações “como um incitamento a instaurar também em França um regime à turca”. Cf. Procacci, Machiavelli nella cultura europea, op. cit., p. 174-5. 171. Opere, I, p. 142. 172. Opere, III, p. 637. 173. Opere, I, p. 56. 174. Veja-se em especial o Discursus florentinarum rerum post mortem iunioris Laurentii Medicis [Discurso dos assuntos florentinos após a morte de Lourenço de Médici, o jovem], in Opere, I, p. 733-745. 175. Ibid., p. 145. 176. Ibid., p. 146-147. 177. Gennaro Sasso, Il “Principe” ebbe due redazioni?, op. cit. 178. Ibid., p. 150. 179. Ph. de Commynes, Memorie, organização de M. C. Daviso di Charvensod, Einaudi, Turim, 1960, p. 425 (VII. 14). 180. Giorgio Inglese, “Il Principe (De Principatibus) di Niccolò Machiavelli” [O príncipe (De Principatibus) de Nicolau Maquiavel], in Letteratura italiana. Le Opere, direção de Alberto Asor Rosa, v. I, Einaudi, Turim, 1992, p. 914. 181. Benedetto Croce, “Machiavelli e Vico” [Maquiavel e Vico], in Elementi di politica [Elementos de política], de 1925, posteriormente recuperado no volume Etica e politica [Ética e política], Laterza, Bari, 1931, em especial p. 251-53. 182. Guicciardini, Storia d’Italia, op. cit. (VI, cap. IV). 183. Opere, I, p. 160. 184. Ibid., p. 167. 185. Eneida, I, 563. 186. Delio Cantimori, “Niccolò Machiavelli: il politico e lo storico” [Nicolau Maquiavel: o político e o historiador], in Storia della letteratura italiana [História da literatura italiana], organização de Emilio Cecchi e Natalino Sapegno, v. IV, “Il Cinquecento”, Ganzanti, Milão, 1996, p. 38-9. 187. A observação de Procacci, em Machiavelli nella cultura europea, op. cit., em particular p. 36 e ss., remete ao estudo de Silvana Seidel Menchi, Erasmo in

Italia [Erasmo na Itália], Bollati Boringhieri, Turim, 1987. 188. Na História de Florença, I, 9, Maquiavel lembra como os papas, por terem utilizado mal as excomunhões e as armas, tornaram ineficaz o recurso às primeiras (depois da rebelião de Lutero, provocada pela questão das indulgências), e ficaram à disposição de outras potências, no que diz respeito às armas. 189. Eugenio Garin, L’Umanesimo italiano. Filosofia e vita civile nel Rinascimento [O humanismo italiano. Filosofia e vida civil no Renascimento], Laterza, Bari, 1952, p. 277. Cf. também Delio Cantimori, “Retorica e politica nell’Umanesimo italiano” [Retórica e política no humanismo italiano], in Eretici italiani del Cinquecento [Hereges italianos do século XVI], Einaudi, Turim, 1992, p. 485-511. 190. Opere, I, p. 111, vv. 182-83. O segundo Decennale foi composto numa época próxima a O Príncipe: 1514 ou 1515. 191. Ibid., p. 186 (cap. XXIV). 192. Opere, II, p. 325. 193. Cf. Ridolfi, Vita di Niccolò Machiavelli, op. cit., p. 254 (a ordem, dada pelo cardeal Júlio de Médici, é de 15 de fevereiro de 1515). 194. Sobre esta obra, cf., em particular Gennaro Sasso, “L’Asino: una satira antidantesca” [O asno: uma sátira antidantesca], in Machiavelli e gli Antichi, t. IV, Ricciardi, Milão-Nápoles, 1997, p. 39-128, em que é discutida e rechaçada a hipótese, proposta em 1920 por L. F. Benedetto e retomada em 1990 por Mario Martelli, de que a composição se iniciou em 1512, no dia seguinte à queda da República. 195. L’Asino, cap. I, vv. 32 e ss., in Opere, III, p. 12. 196.”Medici”, em italiano, o nome da famosa família florentina, também é plural do substantivo “medico”. (N. E.) 197. Por tal motivo, Giuliano de Ricci não copiou a comédia, logo depois perdida. Cf. Oreste Tommasini, La vita e gli scritti di Niccolò Machiavelli nella loro relazione col machiavellismo [A vida e os escritos de Nicolau Maquiavel em sua relação com o maquiavelismo], Loescher, Roma, 1911, vol. II, p. 305, nota. 198. Opere, II, p. 235. 199. Opere, III, p. 53. 200. Ibid., p. 75. 201. Ibid., p. 141. 202. Cf. Gilbert, Bernardo Rucellai e gli Orti Oricellari, op. cit. 203. Discursos, II, Proemio, in Opere, I, p. 327. 204. Arte della guerra, VII, ibid., p. 689. 205. Dionisotti, Machiavellerie, op. cit., p. 233 e ss. Pode ser aproximada desta interpretação a observação de Giorgio Inglese, o qual, mesmo destacando que não se pode “indicar nenhum verdadeiro modelo” dos Discursos, nota: “Maquiavel experimenta uma espécie de cruzamento genial entre o tratado de matéria política, ordenado por temas, e o comentário humanista, como série contínua de glosas ao texto dos clássicos”. Cf. Giorgio Inglese, Per Machiavelli. L’arte dello stato. La cognizione delle storie [Por Maquiavel. A arte do Estado. O conhecimento das histórias], Carocci, Roma, 2006, p. 97. 206. Uma interessante comparação entre a casuística dos juristas e a dos médicos, para indicar o caráter metódico que leva Maquiavel a seguir os procedimentos diagnósticos dos médicos, é apontada por Luigi Zanzi, I “segni” della natura e i “paradigmi” della storia: il metodo del Machiavelli. Ricerche sulla logica scientifica degli “umanisti” tra medicina e storiografia [Os “sinais” da

natureza e os “paradigmas” da história: o método de Maquiavel. Pesquisas sobre a lógica científica dos “humanistas” entre medicina e historiografia], Lacaita, Manduria, 1981 (devo a indicação ao amigo Leandro Perini, a quem agradeço). 207. Italo Calvino, Lezioni americane. Sei proposte per il prossimo millennio [Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas], Garzanti, Milão, 1988, p. 113. 208. Discorsi, I, 4, in Opere, I, p. 209. 209. Ibid., I, 2, p. 204. 210. Ibid., II, 2, p. 335. 211. Ibid., p. 334. 212. Ibid., I, 11, p. 230. 213. Ibid., I, 18, p. 248. 214. Ibid., I, 55, p. 310. 215. Ibid., I, 37, p. 276-77. 216. Ibid., III, 25, p. 483. 217. Justamente essas afirmações serão logo rebatidas pelos primeiros críticos de Maquiavel. Assim, os mais antigos testemunhos de antimaquiavelismo se encontram na obra do historiador e capelão de Carlos V, depois preceptor de seu filho Felipe, Juan Ginés de Sepúlveda, que, em 1535, sem levar em consideração naturalmente o nexo estabelecido por Maquiavel entre liberdade e força de espírito, contestou essas observações, lembrando como a ideia de cruzada havia inspirado a reconquista espanhola. Cf. Giuliano Procacci, Machiavelli nella cultura europea [Maquiavel na cultura europeia], Laterza, Roma-Bari, 1995, p. 85-87. 218. Como observou Giuliano Procacci na introdução a Niccolò Machiavelli, Il Principe e Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio [O Príncipe e Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio], organização de Sergio Bertelli, Feltrinelli, Milão, 1960, p. LX, “a religião, no sentido latino do termo ‘religio’, não liga apenas os homens a um deus ou a mais deuses, mas, essencialmente, liga os homens entre si”. 219. Cf. Isaiah Berlin, “The Originality of Machiavelli”, in Studies on Machiavelli, organização de Myron P. Gilmore, Sansoni, Florença, 1972, p. 157-206 (veja-se a tradução em italiano, Isaiah Berlin, Controcorrente. Saggi di storia delle idee [Contracorrente. Ensaios de história das ideias], organização de Henry Hardy, Adelphi, Milão, 2000, p. 39-117). 220. Discorsi, I, 55, in Opere, I, p. 311. 221. Discorsi, III, 9, ibid., p. 449. 222. Com tal pesquisa, abre-se o clássico trabalho de Friedrich Meinecke, L’idea della ragion di Stato nella storia moderna [A ideia da razão de Estado na história moderna] (1924), Sansoni, Florença, 1942. Mas também Benedetto Croce, Storia dell’età barocca [História da era barroca], Laterza, Bari, 19533, p. 75-6, coloca no pensamento do secretário florentino o rótulo de razão de Estado. 223. Assim, Adriano Prosperi, Tribunali della coscienza. Inquisitori, confessori, missionari [Tribunais de consciência. Inquisidores, confessores, missionários], Einaudi, Turim, 1996, p. XIX-XX. 224. Giovanni Botero, Della ragion di Stato [Da razão de Estado], organização de Carlo Morandi, Cappelli, Bolonha, 1930, p. 9. 225. Maurizio Viroli, Il Dio di Machiavelli e il problema morale dell’Italia [O Deus de Maquiavel e o problema moral da Itália], Laterza, Roma-Bari, 2005, p. XIII.

226. Ridolfi, Vita di Niccolò Machiavelli, op. cit., p. 258. 227. Opere, I, p. 529. 228. Opere, II, p. 380 (carta de 6 de setembro de 1521). 229. Opere, I, p. 530. 230. Ibid., p. 540. 231. Ibid., p. 686-687. 232. Ibid., p. 688-689. 233. Carta de 15 de fevereiro de 1517, Opere, II, p. 353. 234. Ridolfi, Vita di Niccolò Machiavelli, op. cit., p. 264. 235. A data estabelecida por Ridolfi, ibid., p. 532-35, é confirmada, como esse estudioso já notou, na cena entre frei Timóteo e uma viúva (III, 3), em que ela expressa seu temor de que o Turco chegue à Itália, temor difundido precisamente no final de 1517. 236. Tommasini, La vita e gli scritti di Niccolò Machiavelli, op. cit., t. II, p. 305, nota. 237. Carta de 31 de janeiro de 1515, in Opere, II, p. 349. 238. Ezio Raimondi, Politica e commedia [Política e comédia], il Mulino, Bolonha, 1972. 239. Cf. G. Aquilecchia, La favola Mandragola si chiama [A fábula Mandrágora se chama], in id., Schede di italianistica [Cartões de italianística], Einaudi, Turim, 1976, p. 102 e ss. 240. Cf. Carlo Ginzburg, “Machiavelli, l’eccezione e la regola” [Machiavel, a exceção e a regra], in Quaderni storici, 2003, 112, p. 197 e ss. 241. O sucesso de A mandrágora foi particularmente clamoroso em Veneza, onde, por três noites, em fevereiro de 1522, a representação teve de ser suspensa “tamanho o número de pessoas”, escreve Marino Sanudo, I Diari, Veneza, 1879-1902, t. XXXII, col. 458 e 466. Em 1526, a apresentação de Menaecmi, de Plauto, levada aos palcos por uma companhia de nobres venezianos, foi abandonada porque encenada ao mesmo tempo que a “Comédia de Calímaco” (Opere, II, p. 417). 242. Recentemente, porém, Pasquale Stoppelli, Machiavelli e la novella di Belfagor [Maquiavel e a história de Belfagor], Salerno, Roma, 2007, baseou-se na grafia para aventar a hipótese de que a narrativa seja datada de 1525-26. 243. Matteo Bandello, Novelle [Novelas], I, 40. 244. Opere, III, p. 78. 245. Ibid., p. 159 e ss. 246. Maquiavel pede uma peça de lã de camelo ao sobrinho Giovanni Vernacci, em carta de 8 de junho de 1517, in Opere, II, p. 354. Sobre os amores de Maquiavel, inclusive a hipótese de relações homossexuais, cf. Mario Martelli, “Machiavelli politico, amante, poeta” [Maquiavel político, amante, poeta], in “Interpres”, XVII, 1998, p. 211-56. 247. Carta de 26 de abril de 1520, in Opere, II, p. 362. 248. João de Médici ganhou esse apelido por ter acrescentado palas negras a suas insígnias em sinal de luto pela morte de Leão X. [N. E.] 249. Opere, I, p. 734. 250. Ibid., p. 735. 251. , Firenze dalla repubblica al principato [Florença: da república ao principado], Einaudi, Turim, 1970, p. 376-84. 252. Opere, II, p. 356-57. É a carta em que Maquiavel lhe escreve: “Por esses dias, eu li Orlando furioso, de Ariosto, e, certamente, o poema é inteiramente

belo, e, em muitas passagens, admirável. Se ele se encontrar por aí, mande-lhe minhas recomendações, e diga-lhe que me queixo apenas de que, tendo-se lembrado de tantos poetas [no final do poema], me tenha deixado para trás, como se eu fosse uma porcaria”. 253. Cf. as cartas e os documentos, organizados por Pietro Bigazzi, publicados em apêndice à tragédia de Giovan Battista Niccolini, Filippo Strozzi, Le Monnier, Florença, 1847. A carta Citada está nas p. 183-84. 254. Cf. a carta de Battista della Palla a Maquiavel, de 26 de abril de 1520, Opere, II, p. 361-62. 255. Esta é “a essência da conduta” indicada pelo próprio Maquiavel a seu cunhado Francesco Del Nero, administrador do Studio florentino. Cf. Opere, II, p. 367. 256. Eram assim chamados os florins que circulavam em pequenos sacos pesados e selados pelas autoridades para evitar a falsificação ou fraude no peso. (N. T.) 257. Ibid., p. 369-70. Lembre-se de que Maquiavel, na carta a Vettori de 10 de junho de 1514, na qual, uma vez mais decepcionado com a possibilidade de receber um trabalho dos Médici, havia escrito “Ficarei então assim, entre meus piolhos”, fazia referência à possibilidade de ser “obrigado” a se virar como “chanceler de um condestável” (ibid., p. 325). 258. Opere, III, p. 19. 259. Provavelmente, em 1524, Maquiavel compôs o Dialogo intorno alla nostra lingua [Diálogo em torno de nossa língua] (ibid., p. 259-73). A observação reproduzida é de Dionisotti, Machiavellerie, op. cit., p. 379. 260. Assim, o próprio Maquiavel indica “a essência da conduta” a Francesco Del Nero na carta que lhe enviou no outono de 1520 (Opere, II, p. 367). 261. Ibid., p. 389. 262. Cf. Luigi A. Ferrai, “Lettere inedite di Donato Giannotti” [Cartas inéditas de Donato Giannotti], in Atti dell’Istituto Veneto di Scienze, Lettere ed Arti, VI, 3, 1884-85, p. 1570 e ss. 263. Opere, II, p. 391. 264. Felix Gilbert, “Le ‘Istorie fiorentine di Machiavelli’” [A “História de Florença de Maquiavel”], in Machiavelli e il suo tempo, op. cit., p. 291-318 (em particular p. 309 e ss.), e Dionisotti, Machiavellerie, op. cit., p. 392. 265. Sobre a intenção de continuar a História de Florença e sobre a ausência de textos que tenham chegado até nós, cf. Ridolfi, Vita di Machiavelli, op. cit., p. 350 e 578-79 (nota 17). 266. Opere, III, p. 308. 267. Cf. a Presentazione [Apresentação] de Eugenio Garin, in Leonardo Bruni e Poggio Bracciolini, Storie fiorentine, editado pela cidade de Arezzo em 1984 (reedição anastática da edição de Veneza, de 1476). 268. Discursus florentinarum rerum post mortem iunioris Laurentii Medicis, in Opere, I, p. 733. 269. Discorsi, I, 49, p. 299. 270. Opere, I, p. 737. 271. Opere, III, p. 428 (III. 5). 272. Ibid., p. 309. 273. Ibid., p. 361. 274. Ibid., p. 473-74. 275. Ibid., p. 519.

276. Ibid., p. 519-20. 277. Ibid., p. 354: “João Galeácio Visconti havia matado Barnabé, seu tio, e tomado todo o Estado de Milão, e, não sendo bastante se ter tornado duque de toda a Lombardia, desejava ainda ocupar a Toscana, mas quando acreditou poder assumir seu domínio e, depois, coroar-se rei da Itália, morreu”. Em termos parecidos se fala de João Galeácio no terceiro livro (ibid., p. 464). 278. Desnecessária a remissão ao clássico estudo de Baron, La crisi del primo Rinascimento italiano, op. cit. 279. Ibid., p. 678. 280. Opere, I, p. 428. 281. Opere, III, p. 679. 282. Considerações parecidas desenvolve Francesco Guicciardini nas suas Storie fiorentine [Histórias de Florença], redigidas entre 1508 e 1512 (mas que ele deixou inéditas, cf. a edição organizada por Roberto Palmarocchi, Laterza, Bari, 1968, p. 38), observando que, depois da conspiração dos Pazzi, Lourenço “se apoderou de tal modo do Estado, que depois virou um árbitro livre e absoluto e quase senhor da cidade”. Nesse resultado vê “o fim das divisões e discórdias civis: o extermínio de um partido; o chefe de outro se torna senhor da cidade; seus seguidores e partidários, de companheiros, a quase súditos; o povo e o conjunto dos cidadãos permanecem escravizados; o Estado se transmite hereditariamente, e, muitas vezes, de um sábio [Lourenço] vai para um louco [Piero], que logo faz a cidade afundar pela última vez”. 283. Cf. Paul Larivaille, “Sul ritratto machiavelliano di Lorenzo il Magnifico nel capitolo finale delle ‘Istorie fiorentine’” [Sobre o retrato maquiavelista de Lourenço, o Magnífico, no capítulo final de “História de Florença”], in Laurentia Laurus. Per Mario Martelli, organização de Francesco Bausi e Vincenzo Fera, Centro interdipartimentale di studi umanistici, Messina, 2004, p. 11-37. 284. Eduard Fueter, Storia della storiografia moderna [História da historiografia moderna], Nápoles, 1943, v. I, p. 21 e 80. 285. Felix Gilbert, Machiavelli e Guicciardini. Pensiero politico e storiografia a Firenze nel Cinquecento [Maquiavel e Guicciardini. Pensamento político e historiografia em Florença no século XVI], Einaudi, Turim, 1970, p. 203. 286. Pasquale Villari, Niccolò Machiavelli e i suoi tempi [Nicolau Maquiavel e sua época], Hoepli, Milão, 19143, v. III, p. 238. 287. G. Pedullà, Il divieto di Platone. Machiavelli e il discorso dell’anonimo plebeo [A proibição de Platão. Maquiavel e o discurso do anônimo plebeu], in Aa. Vv., Storiografia repubblicana fiorentina (1494-1570), organização de J.-J. Marchand e J.-C. Zancarini, Franco Cesati Editore, Florença, 2003, p. 209-66. 288. Opere, I, p. 626 (1, IV). 289. Cf. G. Sasso, Machiavelli e gli Antichi e altri saggi [Maquiavel e os antigos e outros sábios], v. III, Ricciardi, Milão-Nápoles, 1988, p. 286-89. 290. Opere, III, p. 264. 291. Ibid., p. 529. 292. Cf. Ex libris Karl Marx und Friedrich Engels. Schicksal und Verzeichnis einer Bibliothek, organização do Institut für Marxismus-Leninismus, Dietz, Berlim, 1967, p. 136-37, e Villari, Niccolò Machiavelli, op. cit., t. III, p. 249. 293. Cf. Pedullà, Il divieto di Platone, op. cit., p. 247-249, que demonstrou a semelhança do discurso do ciompo com os de Mitrídates e de Calgaco, graças à análise que a eles dedicou Aldo Schiavone, La storia spezzata. Roma antica e

l’Occidente moderno [A história partida. Roma antiga e o Ocidente moderno], Laterza, Roma-Bari, 1996, p. 92-93. 294. Opere, III, p. 444. 295. Opere, I, p. 738. 296. Opere, III, p. 360. 297. Delio Cantimori, “Niccolò Machiavelli: il politico e lo storico” [Nicolau Maquiavel: o político e o historiador], in Storia della letteratura italiana [História da literatura italiana], organização de Emilio Cecchi e Natalino Sapegno, v. IV, Il Cinquecento [O século XVI], Garzanti, Milão, 1966, p. 51. 298. É bem conhecida a reflexão de Guicciardini acerca de tais missões, em Ricordo, 28: “Eu não sei a quem desagrada mais do que a mim a ambição, a avareza e a molícia dos padres: seja porque cada um desses vícios é em si mesmo odioso, seja porque cada um e todos juntos pouco se reúnem com quem faz profissão de uma vida dependente de Deus, e, ainda, porque são vícios tão contraditórios que não podem permanecer juntos senão em um sujeito muito estranho. Não obstante, na posição a que cheguei com mais de um pontífice, fui obrigado, para meu próprio bem, a amar sua grandeza; e, não fosse esse respeito, teria amado a Martinho Lutero como a mim mesmo: não para me livrar das leis inspiradas pela religião cristã, da maneira comumente interpretada e entendida, mas para ver redu-zida esta malta de pessoas más a seus devidos termos, isto é, a ficarem sem vícios ou sem autoridade”. 299. Roberto Ridolfi, Vita di Francesco Guicciardini [Vida de Francesco Guicciardini], A. Belardetti, Roma, 1960, p. 142. 300. Opere, II, p. 371-75. 301. Este e o trecho anteriormente citados são partes da carta de Guicciardini a Maquiavel, de 18 de maio de 1521 (ibid., p. 377). 302. A observação é de Eugenio Garin, “Aspetti del pensiero di Machiavelli” [Aspectos do pensamento de Maquiavel], in Dal Rinascimento all’Illuminismo. Studi e ricerche [Do Renascimento ao Iluminismo. Estudos e pesquisas], NistriLischi, Pisa, 1970, p. 73, referindo-se ao versículo 3, 15: “Quid est quod est? Ipsum quod fuit” [“o que é que existe? O mesmo que existiu”]. 303. No original, “repubblica de zoccoli”. Diz-se de modo brincalhão sobre os frades menores de Carpi, que usavam tamancos (zoccoli) de madeira, ou seja, essa missão de três dias se refere ao capítulo franciscano em Carpi. (N. E.) 304. Ibid., p. 395-97. 305. A carta foi escrita entre 16 e 20 de outubro de 1525; ibid., p. 407-08. 306. Cf. Nino Pirrotta, Li due Orfei. Da Poliziano a Monteverdi [Os dois Orfeus. De Poliziano a Monteverdi], Einaudi, Turim, 1975, p. 143-69 (as músicas dos madrigais de Maquiavel estão reproduzidas in Opere, III, p. 832-41). Estudos importantes foram dedicados a essas músicas. Cf. Alfred Einstein, The Italian Madrigal, Princeton, University Press, Princeton, 1949, v. I, p. 250-51, e Wolfgang Osthoff, Theatergesang und darstellende Musik, Schneider, Tutzing, 1968, v. I, p. 213-49 (o capítulo “Verdelot Musik zu Machiavelli-Komödin und das Madrigal”), e v. II, p. 68. 307. A mandrágora, V, II, e Clizia, V, II e IV (Opere, III, p. 182 e 233, 283). 308. Carta de 22 de fevereiro de 1525, in Opere, II, p. 390 (a última frase é uma citação de Poliziano). 309. Donato Giannotti, Repubblica fiorentina, organização de Giovanni Silvano, Droz, Genebra, 1990, p. 208-09. 310. Opere, II, p. 411.

311. Cf. a epigrama Sappi ch’io non son Argo [Saiba que eu não sou Argo], in Opere, III, p. 19. 312. Em Storia d’Italia [História da Itália], 1. XVI, caps. XIV e XV, encontram-se referências a pareceres do grande chanceler Mercurino da Gattinara e do vicerei de Nápoles, Charles Lannoy, contrários à libertação de Francisco I. 313. Carta de 15 de março de 1526, Opere, II, p. 421. 314. Ibid., p. 426-27. 315. In Ridolfi, Vita di Machiavelli, op. cit., p. 357. 316. Opere, III, p. 18. 317. Carta de 6 de outubro de 1526 (circa), in Opere, II, p. 447-50. 318. Cf. Discorsi, I, 22-3. 319. Opere, II, p. 457. 320. Ibid., p. 459. É a carta de 16 de abril de 1516, na qual declara: “Amo minha pátria mais do que a minha alma”. 321. Cf. Villari, Niccolò Machiavelli, op. cit., v. III, p. 364 e 477. 322. Ibid., p. 402-403 (em que é apresentada a composição das pílulas). 323. Giovio, Elogio dei letterati illustri, op. cit., p. 259. 324. O mais completo relato do sonho nos chegou por Pierre Bayle, Dictionnaire historique et critique, [Dicionário histórico e crítico], no verbete “Machiavel”, nota L: “Il [Machiavel] vit un tas de pauvres gens, comme coquins, deschirez, affamez, contrefaits, fort mal en ordre et en assez petit nombre; on luy dit que c’estoit ceux du paradis, desquels il estoit escrit: besti pauperes, quoniam ipsorum est regnum coelorum. Ceux-ci estants retirez, on fit paroistre un nombre innombrable de personnages pleins de gravité et de majesté; on les voyoit comme un senat, où on traitoit d’affaires d’Estat, et fort serieuses: il entrevit Platon, Senèque, Plutarque, Tacite et d’autres de cette qualité. Il demanda qui estoient ces messieurs-là si venerables; on lui dit que c’estoient les damnés et que c’estoient des ames reprouvées du ciel: sapientia huius saeculi inimica est Dei. Celà estant passé, on luy demanda desquels il vouloit estre. Il respondit qu’il aimoit beaucoup mieux estre en enfer avec ces grands esprits, pour deviser avec eux des affaires d’Estat, que d’estre avec cette vermine de ces belistres, qu’on luy avoit fait voir”. 325. Cf. Lettere di G. B. Busini a B. Varchi [Cartas de G. B. Busini a B. Varchi], organização de G. Milanesi, Le Monnier, Florença, 1860, p. 82-3 (carta de 23 de janeiro de 1549), e B. Varchi, Storie fiorentine [Histórias de Florença], Edizioni di storia e letteratura, Roma, 2003, p. 266, nota 4. Sobre o sonho, cf. G. Sasso, Il “celebrato sogno” di Machiavelli [O “famoso sonho” de Maquiavel], in id., Machiavelli e gli Antichi, vol. III, Ricciardi, Milão-Nápoles, 1988, p. 211-300. 326. Sasso, Il “celebrato sogno”, op. cit., p. 271. 327. Villari, Niccolò Machiavelli, op. cit., vol. III, p. 368-70. 328. Opere, III, p. 301. 329. Norberto Bobbio, “Della libertà dei moderni comparata a quella dei posteri” [A liberdade dos modernos comparada com a dos antigos], in Politica e cultura [Política e cultura], Einaudi, Turim, 1955, p. 186. 330. Étienne Garnier-Pagès, Dictionnaire politique [Dicionário político], Pagnerre, Paris, 1841, ad vocem État. 331. Particularmente eficaz, o texto do curso universitário de Federico Chabod, “Alle origini dello Stato moderno” [Nas origens do Estado moderno] (1956-57), reeditado in Scritti sul Rinascimento [Escritos sobre o Renascimento], Einaudi, Turim, 1967, p. 625-50. Exemplar a análise realizada por Fredi Chiappelli, Studi

sul linguaggio del Machiavelli [Estudos sobre a linguagem de Maquiavel], Le Monnier, Florença, 1952, p. 59-73. Cf. também Francesco Ercole, La politica di Machiavelli [A política de Maquiavel], Anonima Romana Editoriale, Roma, 1926, em particular p. 65-96, e Orazio Condorelli, “Per la storia del nome ‘stato’. (Il nome ‘stato’ in Machiavelli)” [Pela história do nome “estado”. (O nome “estado” em Maquiavel)], in Archivio giuridico Filippo Serafini, s. IV, vol. V (1923), p. 22335, e VI (1924), p. 77-112. Hannah Arendt, Sulla rivoluzione [Sobre a revolução] (1963), Comunità, Milão, 1983, p. 37, observa que o termo “Estado” é novo, na época de Maquiavel, mas também havia sido usado antes dele. É uma derivação de “status rei publicae” [“estado da república”], equivalente a “forma de governo”, acrescentando que, com o mesmo sentido, aparece ainda em Bodin. 332. Maquiavel, Opere, I, p. 124. 333. Trata-se, observa Eugenio Garin, Rinascite e Rivoluzioni. Movimenti culturali dal XIV al XVIII secolo [Renascimentos e Revoluções. Movimentos culturais do século XIV ao XVIII], Laterza, Bari, 1975, p. 136, de um tema hipocrático, retomado de Leon Battista Alberti (Theogenius, II, in Opere volgari, ed. Grayson, II, p. 87 e ss.). 334. A hipótese de Federico Chabod, “Sulla composizione de ‘Il Principe’ di Niccolò Machiavelli (1927)” [Sobre a composição de “O príncipe”, de Nicolau Maquiavel (1927)], in Scritti su Machiavelli, Einaudi, Turim, 1964, p. 139-93, partia da declaração contida na carta de 10 de dezembro de 1513 a Francesco Vettori, em que lhe informava ter “composto um opúsculo, O Príncipe”. Mario Martelli, “Da Poliziano a Machiavelli. Sull’epigramma ‘dell’Occasione’ e sull’occasione” [De Poliziano a Maquiavel. Sobre o epigrama “da Occasione” e sobre a occasione], in Interpres, 1979, 2, p. 230-54, sustenta, por outro lado, que a obra havia sido reelaborada e retocada ainda em 1518. Em 1981, surgiu uma réplica bastante controversa de Gennaro Sasso, “Il ‘Principe’ ebbe due redazioni?” [O Príncipe teve duas redações?], in Machiavelli e gli Antichi, e altri saggi, Ricciardi, Milão-Nápoles, t. I, 1988, p. 197-276, que retomava a hipótese de Chabod, mesmo que vislumbrando a possibilidade de o autor, referindo-se na carta a modificações e correções que estava aportando (“ainda que, todavia, eu continue a engordá-lo e puli-lo”), tivesse trabalhado em O Príncipe até o final de maio de 1514. Martelli, todavia, reafirmou sua opinião no Congresso de Lausanne, de setembro de 1995, Niccolò Machiavelli politico, storico, letterato, na comunicação “Machiavelli e Firenze dalla repubblica al principato” (as atas do Congresso, organizadas por Jean-Jacques Marchand, foram publicadas pela Salerno Editrice, Roma, 1996). Em sentido contrário, Giorgio Inglese, na sua edição crítica De principatibus [Sobre os principados](Istituto storico italiano per il Medioevo, Roma, 1994), acolhe os argumentos de Sasso. 335. Norberto Bobbio, “Stato” [Estado], in Enciclopedia Einaudi, 13, Turim, 1981, p. 462. 336. Cf. Fredi Chiappelli, Nuovi studi sul linguaggio di Machiavelli [Novos estudos sobre a linguagem de Maquiavel], Le Monnier, Florença, 1969, p. 34-5. 337. Alberto Tenenti, “La nozione di ‘stato’ nell’Italia del Rinascimento” [A noção de “Estado” na Itália do Renascimento], in Stato: un’idea, una logica. Dal comune italiano all’assolutismo francese [Estado: uma ideia, uma lógica. Da comuna italiana ao absolutismo francês], il Mulino, Bolonha, 1987, p. 53-97 (as citações que seguem referem-se, respectivamente, às p. 55, 73, 92 e 96). Cf. no mesmo volume “Archeologia medievale della parola ‘Stato’” [Arqueologia medieval da palavra “Estado”], p. 15-52.

338. Chabod, Scritti sul Rinascimento, op. cit., p. 633. 339. A Concordanza della Commedia di Dante Alighieri [Concordância da Comédia de Dante Alighieri], organização Luciano Lovera, com a colaboração de Rosanna Bettarini e Anna Mazzarello, Einaudi, Turim, 1975, p. 2311, registra seis casos com tal significado. Em Petrarca, o uso do termo já tem uma tendência para se articular, como se vê em “Trionfo della Pudicizia” [Triunfo da Castidade], vv. 136-138: “Virgínia junto e o feroz padre armado/ de desdém, de ferro e de piedade/ que a sua filha e a Roma mudou Estado”. 340. Nas Memorie di famiglia [Memórias de família], de Guicciardini, lemos: “Permaneceu então a nossa casa bom tempo, quer dizer, por cerca de oitenta anos, em uma condição medíocre de riqueza e de estado, e, como vulgarmente se diz, de bons homens do povo. Depois cresceu primeiro em riqueza, e depois em Estado, de modo que sempre se manteve, melhor em Estado, e ainda hoje está entre as primeiras famílias da cidade”, in Francesco Guicciardini, Ricordi, Diari, Memorie [Recordações, diários, memórias], organização de Mario Spinella, Editori Riuniti, Roma, 1981, p. 34. 341. Assim no Proemio al Dialogo del reggimento di Firenze [Proêmio ao diálogo do regimento de Florença], de 1525-26 (citado pela edição organizada por Gian Mario Anselmi e Carlo Varotti, Bollati Boringhieri, Turim, 1994, p. 13). 342. Um primeiro perfil do problema foi traçado com argúcia por Jean-Louis Fournel, “Qu’est-ce qu’un homme d’État? Réflexions sur l’écriture autobiographique de Francesco Guicciardini”, comunicação ao Congresso de Verona de 20-22 de maio de 2004, Vite parallele: memoria, autobiografia, coscienza di sé e dell’altro [Vidas paralelas: memória, autobiografia, consciência de si e do outro]. 343. Discursus florentinarum rerum post mortem iunioris Laurentii Medicis, I, 741. 344. Já esta hipótese é de Oreste Tommasini, La vita e gli scritti di Machiavelli nella loro relazione col machiavellismo [A vida e os escritos de Maquiavel na sua relação com o maquiavelismo], v. II, Loescher, Roma, 1911, p. 518. 345. Cf. todo o trecho in Hans Baron, La crisi del primo Rinascimento italiano. Umanesimo civile e libertà repubblicana in un’età di classicismo e di tirannide [A crise do primeiro Renascimento italiano. Humanismo civil e liberdade republicana em uma época de classicismo e de tirania], Florença, Sansoni, 1970, p. 455, nota 21. Baron observa (p. 464-65) como, em 1439, o próprio Bruni fez uma avaliação diferente, mas julga desnecessário “perguntar-se se tal transformação [...] estaria justificada à luz das condições de Florença nos primeiros anos do principado dos Médici”. Não se pode excluir que tivesse parecido inoportuna a Maquiavel uma celebração que o seu próprio autor havia retratado ao final. 346. Eugenio Garin, Machiavelli fra politica e storia [Maquiavel entre a política e a história], Einaudi, Turim, 1993, p. 11 (itálicos nossos). 347. Já o havia notado em Ritracto di cose di Francia, I, 56-7. 348. Federico Chabod, Storia dell’idea d’Europa [História da ideia de Europa], organização de Ernesto Sestan e Armando Saitta, Laterza, Bari, 1961, p. 49-51. 349. Profunda a observação de Montaigne (Essais, I, XXVI), que atribui, porém, a Plutarco a observação: “les habitans d’Asie servoient à un seul, pour ne sçavoir prononcer une seule sillabe, qui est: Non”. Este trecho, traduzido quase textualmente, está em De vitioso pudore, 10 (cf. Plutarco, Moralia, I, organização

de Giuliano Pisani, Edizioni Biblioteca dell’Immagine, Pordenone, 1989, p. 26061). 350. Giuliano Procacci, Machiavelli nella cultura europea dell’età moderna [Maquiavel na cultura europeia da era moderna], Laterza, Roma-Bari, 1995, p. 171 e ss. 351. Deve-se notar que Tocqueville afirma que a observação de Maquiavel ainda vale em sua época, embora nutrisse preconceitos arraigados contra “son horrible ouvrage du Prince”. 352. Antonio Gramsci, Quaderni del carcere [Cadernos do cárcere], edição crítica organizada por Valentino Gerratana, Einaudi, Turim, 1975, p. 866. 353. Chiappelli, Nuovi studi sul linguaggio di Machiavelli, op. cit., p. 35. 354. Diego Quaglioni, “Machiavelli e la lingua della giurisprudenza” [Maquiavel e a língua da jurisprudência], in Langues et écritures de la République et de la guerra. Études sur Machiavel, organização de Alessandro Fontana, Jean-Louis Fournel, Xavier Tabet, Jean-Claude Zancarini Name, Gênova, 2004, p. 180-81. 355. Ibid. Cf. também La giustizia nel Medioevo e nella prima età moderna [A justiça na Idade Média e no início da era moderna], il Mulino, Bolonha, 2004, em particular p. 110-15. Que Maquiavel tenha aproveitado, em sua formação juvenil, das obras de direito de seu pai, é mostrado em Carlo Ginzburg, “Machiavelli, l’eccezione e la regola” [Maquiavel, a exceção e a regra], in Quaderni storici, 2003, 112, p. 197 e ss. 356. “Manter rico o que é público, e pobres os seus cidadãos”, também é repetido, mais adiante (II 19: I 378), como um dos princípios sugeridos pelos “ordenamentos antigos”. Sobre isso, cf. Gennaro Sasso, Niccolò Machiavelli, I, Il pensiero politico [Nicolau Maquiavel, I, O pensamento político], il Mulino, Bolonha, 1993, p. 536 e ss. 357. O julgamento positivo que fez dos tumultos na República romana, em oposição à condenação que grande parte da literatura política havia expressado sobre eles, parece próprio da reflexão de Maquiavel. Um antecedente de tal avaliação, porém, foi identificado por Gabriele Pedullà, “La ricomparsa di Dionigi. Niccolò Machiavelli tra Roma e la Grecia” [O reaparecimento de Dionísio. Nicolau Maquiavel entre Roma e Grécia], in Storica, X, 2004, 28, nas Antiquitates de Dionísio de Halicarnasso, disponíveis em tradução latina do princípio do século XVI. 358. Francesco Guicciardini, Considerazioni intorno ai Discorsi del Machiavelli [Considerações em torno dos Discursos de Maquiavel], in Niccolò Machiavelli, Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, organização de Corrado Vivanti, Einaudi, Turim, 2000, p. 350. 359. Cf. G. B. Busini, Lettere... a Benedetto Varchi sopra l’assedio di Firenze [Cartas... a Benedetto Varchi sobre o cerco de Florença], organização de G. Milanesi, Le Monnier, Florença, 1860, p. 84-85. Cf. também Gennaro Sasso, “Il ‘celebrato sogno’ di Machiavelli” [O “famoso sonho” de Maquiavel], in Machiavelli e gli Antichi, e altri saggi, t. III, Ricciardi, Milão-Nápoles, 1988, p. 211-300. O relato do sonho está também in Opere, I, p. CXXXVI. 360. Filippo Strozzi escreve isso para Vettori, de Roma, em 28 de janeiro de 1531. Cf. “Documenti inediti spettanti alla vita politica e letteraria di Filippo Strozzi” [Documentos inéditos relativos à vida política e literária de Filippo Strozzi], Giovan Battista Niccolini, Filippo Strozzi. Tragedia [Filippo Strozzi. Tragédia], Le Monnier, Florença, 1847, p. 183.

361. Cf. Giovanni Gentile, L’etica di Machiavelli [A ética de Maquiavel], in Studi sul Rinascimento [Estudos sobre o Renascimento], Sansoni, Florença, 1936, p. 141. Bastante discutível é a comparação entre o príncipe de Maquiavel, constutor de um novo Estado, com o artista que cria a própria obra. Deve-se ter presente, não obstante, por que, a partir dessa visão burckhardtiana, Gentile deriva o juízo sobre a força criativa do príncipe, “uma força abstratamente concebida, fora da história, e, portanto, sempre em luta com o fantasma da fortuna [...] E dessa abstração – característica do individualismo do Renascimento – é necessário observar com bastante atenção para compreender todo o maquiavelismo” (Gentile, “Religione e virtù in Machiavelli” [Religião e virtù em Maquiavel], in Studi sul Rinascimento, op. cit., p. 133). Duvido que tal juízo seja válido para O príncipe: certamente não leva em consideração muitas páginas dos Discursos.