Mil Platôs (volume único)

Table of contents :
Orelhas dos livros (ed. brasileira)
Prefácio para a edição italiana
Nota dos autores
1 Introdução: Rizoma
2 1914 Um só ou vários lobos?
3 10.000 a.C. A geologia da moral (Quem a Terra pensa que é?)
4 20 de novembro de 1923 Postulados da linguística
5 587 a.C. - 70 d.C. Sobre alguns regimes de signos
6 28 de novembro de 1947 Como criar para si um Corpo sem Órgãos
7 Ano Zero Rostidade
8 1874 Três novelas ou “o que se passou?”
9 1933 Micropolítica e segmentaridade
10 1730 Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível...
11 1837 Acerca do ritornelo
12 1227 Tratado de nomadologia: a máquina de guerra
13 7.000 a.C. Aparelho de captura
14 1440 O liso e o estriado
15 Conclusão: Regras concretas e máquinas abstratas
Índice das ilustrações

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Gilles Deleuze Félix Guattari

MIL PLATÔS Capitalismo e Esquizofrenia 2

Volume único PDF - 2021 Editora 34, Rio de Janeiro, 1995 Les Éditions de Minuit, Paris, 1980

SUMÁRIO

Orelhas dos livros (ed. brasileira).................................................................................... I Prefácio para a edição italiana ...................................................................................... VI Nota dos autores ............................................................................................................. 8 1.

Introdução: Rizoma ......................................................................................................... 9

2.

1914 Um só ou vários lobos?........................................................................................ 38

3.

10.000 a.C. A geologia da moral (Quem a Terra pensa que é?) ................................. 53

4.

20 de novembro de 1923 Postulados da linguística ................................................... 95

5.

587 a.C. - 70 d.C. Sobre alguns regimes de signos ................................................... 140

6.

28 de novembro de 1947 Como criar para si um Corpo sem Órgãos .................... 185

7.

Ano Zero Rostidade ..................................................................................................... 205

8.

1874 Três novelas ou “o que se passou?”.................................................................. 235

9.

1933 Micropolítica e segmentaridade ....................................................................... 253

10.

1730 Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível... ......................................... 284

11.

1837 Acerca do ritornelo ............................................................................................ 381

12.

1227 Tratado de nomadologia: a máquina de guerra ............................................. 434

13.

7.000 a.C. Aparelho de captura ................................................................................. 528

14.

1440 O liso e o estriado .............................................................................................. 592

15.

Conclusão: Regras concretas e máquinas abstratas ............................................... 626 Índice das ilustrações .................................................................................................. 642

I

ORELHAS DOS LIVROS (ED. BRASILEIRA) Volume 1 Por François Ewald O que é Mil platôs? Como se organiza? Como um tratado de filosofia, após a ruptura, quando o filósofo, o grande nômade, resolveu desertar a filosofia dos códigos, dos territórios e dos Estados, a filosofia do comentário. Mil platôs é um grande livro, porque com ele a filosofia alcança um de seus devires improváveis. Mil platôs desenvolve uma filosofia verdadeira, quer dizer nova, inaugural, inédita. Duas grandes filosofias jamais se assemelham; pois elas jamais são da mesma família. A filosofia não se desenvolve seguindo uma linha arborescente de evolução, mas segundo uma lógica dos múltiplos singulares. A questão que Deleuze e Guattari retomam é a seguinte: de que se ocupa, então, a filosofia, se ela só pode se exprimir de uma maneira incomparável? Evidentemente não daquele que poderia ser comum a todas as filosofias: do universal, do verdadeiro, do belo e do bem. Deleuze e Guattari respondem do múltiplo puro sem referência a um qualquer um, da diferença pura, das intensidades que individualizam, das hecceidades. Mil platôs é um evento na ordem da filosofia. E ler Mil platôs é se perguntar: 1980, Mil platôs, o que é que aconteceu? Mil platôs contém todos os componentes de um tratado clássico de filosofia: uma ontologia, uma física, uma lógica, uma psicologia e uma moral, uma política. Com a diferença de que não se vai de uma a outra segundo uma lógica de desenvolvimento, do que funda ao fundado, dos princípios às consequências. Deleuze e Guattari dão mais privilégio ao espaço do que ao tempo, ao mapa do que à árvore. Tudo é coextensivo a tudo. Assim as divisões só podem corresponder a placas, a estrias paralelas, com diferenças de escala, correspondências e articulações dos platôs, datados mas co-presentes. Deleuze e Guattari concebem a ontologia como geologia: ao invés do ser, a terra, com seus estratos físico-químicos, orgânicos, antropomórficos. Pois de que a terra é feita? Quem fez da terra o que ela é? Quem deu esse corpo à terra? Máquinas, sempre as máquinas. A terra é a grande máquina, a máquina de todas as máquinas. Mecanosfera. A filosofia de Mil platôs não concebe oposição entre o homem e a natureza, entre a natureza e a indústria, mas simbiose e aliança. A lógica da mecanosfera não conhece a negação nem a privação. Há apenas devires, sempre positivos, e, dentre estes, devires perdidos, bloqueados, mortos. Positividade do esquizo. Como criar para si um corpo sem órgão? E o que está em jogo em um devir-? Não há dúvida de que, antes de Mil platôs, nunca se tinha ido tão longe na crítica da representação e da significação, na revelação do que se relaciona a uma representação. Não um significante, mas sempre um ato, uma ação. Gilles Deleuze e Félix Guattari detestam a interpretação. “Interpretar”, dizem, “é nossa maneira moderna de crer e de ser piedoso”. À interpretação, eles opõem a experimentação. Seu método, esquizoanálise ou pragmática, obedece às regras de um positivismo radical. Não se trata de amor a ciência, mas de produzir fatos. Os dois tomos de Capitalismo e esquizofrenia são uma máquina de produzir fatos e, como tal, inéditos. Sua importância é a de renovar completamente os fatos de que trata a filosofia e que tramam a nossa existência.

II

Volume 2 Por Antônio Negri Dizem que não existe livro que traduza 68: isso é falso! Esse livro é Mil platôs. Mil platôs é o materialismo histórico em ato de nossa época. Contrastando radicalmente com certa deriva atual, os Mil platôs reinventam as ciências do espírito (deixando bem claro que, na tradição em que se situam Deleuze e Guattari, geist é o cérebro), renovando o ponto de vista da historicidade, em sua dimensão ontológica e constitutiva. Os Mil platôs precedem o pós-moderno e as teorias de hermenêutica fraca: antecipam uma nova teoria da expressão, um novo ponto de vista ontológico — instrumento graças ao qual se encontram em posição de combater a pós-modernidade, desvelando e dinamitando suas estruturas. Trata-se aqui de um pensamento forte, mesmo quando se aplica ã “fraqueza” do cotidiano. Quanto ao seu projeto, trata-se de apreender o criado, do ponto de vista da criação. Esse projeto não tem nada de idealista: a força criadora é um rizoma material, ao mesmo tempo máquina e espírito, natureza e indivíduo, singularidade e multiplicidade — e o palco é a história, de 10.000 a.C. aos dias de hoje. O moderno e o pós-moderno são ruminados e digeridos, e reaparecem contribuindo para fertilizar abundantemente uma hermenêutica do porvir. Relendo os Mil platôs anos mais tarde, o que é mais impressionante é a incrível capacidade de antecipação que aí se exprime. O desenvolvimento da informática e da automação, os novos fenômenos da sociedade mediática e da interação comunicacional, as novas vias percorridas pelas ciências naturais e pela tecnologia científica, em eletrônica, biologia, ecologia, etc, são apenas previstos, mas já levados em conta como horizonte epistemológico, e não como simples tecido fenomenológico sofrendo uma extraordinária aceleração. Mas a superfície do quadro no qual se desenrola a dramaturgia do futuro é, na verdade, ontológica — uma superfície dura e irredutível, precisamente ontológica e não transcendental, constitutiva e. não sistêmica, criativa e não liberal. Se toda filosofia assume e determina sua própria fenomenologia, uma nova fenomenologia se afirma aqui com força. Ela se caracteriza pelo processo que remete o mundo à produção, a produção à subjetividade, a subjetividade à potência do desejo, a potência do desejo ao sistema de enunciação, a enunciação à expressão. E vice-versa. E no interior da linha traçada a partir do “vice-versa”, quer dizer, indo da expressão subjetiva à superfície do mundo, ã historicidade em ato, que se revela o sentido do processo (ou ainda a única ideologia que a imanência absoluta pode se permitir): o sentido do processo é o da abstração. O sujeito que produz o mundo, na horizontalidade ampliada de suas projeções, efetua ele mesmo, cada vez mais, sua própria realização. A primeira vista, o horizonte do mundo construído por Deleuze-Guattari parece animista: mas muito rapidamente se vê que esse animismo traduz a mais alta abstração, o processo incessante dos agenciamentos maquínicos e das subjetividades se elevando a uma abstração cada vez mais alta. Nesse mundo de cavernas, de dobras, de rupturas, de reconstruções, o cérebro humano se dedica a compreender, antes de mais nada, sua própria transformação, seu próprio deslocamento, para além da conflitualidade, nesse lugar em que reina a mais alta abstração. Mas essa abstração é novamente desejo.

III

Volume 3 Jean-Clet Martin Mil platôs, esse livro plural, não é um tratado de metafísica ou um simples ensaio de história das ideias. É, antes, um livro de magia, uma alquimia preciosa em que cada fórmula traça a cifra de uma metamorfose. O que se trata de modificar sob a ação dessa metamorfose é a própria ideia de conceito, que nada tem em comum com a lógica de sua compreensão, tampouco com a de sua extensão. Nem interpretação nem explicação, o conceito só existe por variação, quer dizer, no fim das contas, por criação contínua. Mas não basta definir a filosofia pela criação de conceito se, nessa mesma circunstância, nos eximimos de fazê-lo. Descrever conceitos não é produzi-los. Desse modo, esse livro de platôs superpostos fará com que penetremos no antro da feiticeira, no lugar onde Deleuze não se transforma em gato sem que Guattari se torne um rato, onde o rato se torna subitamente um tigre, o tigre vira pulga assim que o gato se metamorfoseia em micróbio. Fazer conceitos é questão de devir-, um devir que, arrastando esta ou aquela determinação conceituai no declive de sua variação, produzirá mutações na vertente da estética, da política, da ciência, cujos mapas e transformações é impossível separar. Um platô não é nada além disso: um encontro entre devires, um entrecruzamento de linhas, de fluxos, ou uma percolação — fluxos que, ao se encontrarem, modificam seu movimento e sua estrutura; é por isso que o mais importante dos operadores que este livro consegue construir concerne não ao relevo de um platô, mas àquele por meio do qual os platôs se chocam e se penetram, mudando todos os índices de ambiente e as coordenadas de território: é a desterritorialização. Um conceito, assim como uma flor ou um inseto, tem seus ambiente e seus territórios. Toda uma etologia do conceito, por meio da qual não se pode mais separar seus componentes do ambiente concreto em que eles se depositam. O que ocorre, ao contrário, quando certo conceito é levado para um outro ambiente? Quais são os acontecimentos que ocorrem com os conceitos quando estes se desterritorializam? A essa questão responde a ideia de ritornelo, uma ideia musical que proporá aos conceitos seu ritmo e seu canto, para posturas e acrobacias inauditas. Há, então, duas coisas muito diferentes: aquelas em que se tramam procedimentos éticos, etológicos, mas que ainda não são conceitos. São condições dos conceitos, dos gritos, dos cantos que os afetam. E, acima dos territórios e dos ambientes, ainda são necessários os processos, que são como gestos e posturas reagindo aos ambientes. O procedimento é um ritmo, ao passo que o processo é uma dança — duas asas que abrem para este livro suas longitudes e sua latitude.

IV

Volume 4 Peter Pál Pelbar Mil platôs é o prolongamento de uma aposta iniciada em O anti-Édipo. Mais do que um acerto de contas com a conturbada década dos 60 e o freudo-marxismo que parecia animá-la, este era, segundo a bela definição de Michel Foucault, uma “introdução à vida não-fascista”. Ou seja, um livro de ética. Foucault resumia as linhas de força daquele “guia da vida cotidiana”: liberar a ação política de toda forma de paranoia unitária e totalizante; alastrar a ação, o pensamento e o desejo por proliferação e disjunção (e não por hierarquização piramidal); liberar-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta), investindo o positivo, o múltiplo, o nômade; desvincular a militância da tristeza (o desejo pode ser revolucionário); liberar a prática política da noção de Verdade; recusar o indivíduo como fundamento para reivindicações políticas (o próprio indivíduo é um produto do poder) etc. Ora, não podemos dizer que essas balizas perderam algo de sua pertinência ou atualidade, muito pelo contrário. Na esteira delas, Mil platôs vai ainda mais longe, e de maneira mais leve, sóbria e radical. Despede-se das polêmicas com a psicanálise, desfaz os mal-entendidos sobre os marginais e suas bandeiras, multiplica as regras de prudência, intensifica a leitura micropolítica, amplia o espectro das matérias deglutidas (etologia, arquitetura, cibernética, metalurgia etc)., reinventa suas interfaces e hibridações e lança ao ar saraivadas de conceitos novos, como desterritorialização, devires, rizoma, platô. Já a forma do livro pede uma leitura inusitada. Seus platôs de intensidade, e não capítulos, podem ser lidos independentemente uns dos outros, mas formam uma rede, um rizoma. Num rizoma entra-se por qualquer lado, cada ponto se conecta com qualquer outro, não há um centro, nem uma unidade presumida — em suma, o rizoma é uma multiplicidade (como se vê, todas essas características prenunciavam a geografia imaterial da Internet, para cuja assimilação filosófica parecíamos tão pouco preparados). Contra a geografia mental do Estado, com seus sulcos e estrias, Mil platôs faz valer um espaço liso para um pensamento nômade. Contra o homem-branco-macho-racionaleuropeu, padrão majoritário da cultura, libera as mutações virtuais, os devires minoritários e moleculares capazes de desfazer nosso rosto demasiadamente humano. Contra as miragens em que se contempla, o homem é devolvido ao rizoma material e imaterial que o constitui, seja ele biopsíquico, tecno-social ou semiótico. Para aquém das figuras visíveis da História e do Capital, colhe seus movimentos de desterritorialização, a singularidade dos Acontecimentos aí gestados, as subjetivações que se anunciam, as lufadas intempestivas que chamam por um povo ainda desconhecido. Este livro é um exemplo vivo daquilo que os autores consideram a tendência, ou mesmo a tarefa da filosofia moderna: elaborar um material de pensamento capaz de captar a miríade de forças em jogo e fazer do próprio pensamento uma força do Cosmos. O filósofo como um artesão cósmico, a filosofia como estratégia. Deleuze chegou a considerar Mil platôs o melhor de tudo o que já escrevera. Predileção premonitória ou não, o fato é que este livro inclassificável começa a ser revisitado, justo numa época em que se prega sobranceiramente o fim da Filosofia, ou mesmo da História, em vez de se buscar ferramentas teóricas para a travessia do milênio.

V

Volume 5 Michael Hardt Mil platôs é o mais profundo trabalho político de Deleuze e Guattari. A primeira vista, ele parece, na verdade, um guia claro, pronto a responder a questões de avaliação e ação políticas. Deleuze e Guattari apresentam incessantemente dicotomias no campo social e político: o Estado e a máquina de guerra, o sedentário e o nômade, territorialização e desterritorialização, o estriado e o liso, e assim por diante. As distinções parecem proliferar infinitamente, mas todas elas giram em torno de um único eixo. O mundo é dividido em compartimentos e o texto nos convida a censurar um polo e afirmar o outro — Abaixo o Estado! Viva a máquina de guerra nômade! Se ao menos a política fosse tão simples. No entanto, ao prosseguirmos na leitura, percebemos que Deleuze e Guattari complicam continuamente essa clara série de distinções. É importante reconhecer, em primeiro lugar, que os termos contrastantes não estão em oposição absoluta um com o outro (como se pudessem ser subsumidos dialeticamente em uma unidade superior). Os termos de cada distinção não são postos em contradição, mas sim em uma relação oblíqua ou diagonal, irreconciliavelmente diferente e desconjunta. Em segundo lugar, ao analisarmos cada par mais de perto, descobrimos que nenhum termo é realmente puro, ou exclusivo de seu outro. O Estado sempre contém internalizada uma máquina de guerra institucionalizada; todo movimento de desterritorialização carrega consigo elementos de reterritorialização. As próprias fronteiras que separam os termos emparelhados são, em outras palavras, vagas, continuamente em fluxo. Finalmente, o que parecia ser o caminho assinalado da liberação revela, por vezes, conter paradoxalmente a dominação mais brutal: o alisamento do espaço social traz, às vezes, uma rigorosa hipersegmentação; linhas de fuga revertem-se frequentemente em linhas de destruição, tendendo assim ao fascismo e ao suicídio. Ao final, Deleuze e Guattari irão frustrar qualquer aplicação direta de simples fórmulas políticas. Eles dificultarão qualquer slogan ou mol d’ordre. É essa complexidade é parte da riqueza de Mil platôs enquanto análise propriamente política. A complexidade e as distinções flutuantes, oblíquas não necessariamente paralisam a ação política — por medo de que possamos ser impuros, cúmplices de nossos inimigos. Isto significa apenas que o pensamento político e a ação política não podem prosseguir ao longo de uma linha reta. A política de Deleuze e Guattari é melhor concebida como um ziguezague que se move em diferentes ângulos de acordo com as contingências locais e em mudança.

VI

PREFÁCIO PARA A EDIÇÃO ITALIANA Com o passar dos anos, os livros envelhecem, ou, ao contrário, recebem uma segunda juventude. Ora eles engordam e incham, oram modificam seus traços, acentuam suas arestas, fazem subir à superfície novos planos. Não cabe aos autores determinar um tal destino objetivo. Mas cabe a eles refletir sobre o lugar que tal livro ocupou, com o tempo, no conjunto de seu projeto (destino subjetivo), ao passo que ele ocupava todo o projeto no momento em que foi escrito. Mil platôs (1980) se seguiu ao Anti-Édipo (1972). Mas eles tiveram objetivamente destinos muito diferentes. Sem dúvida por causa do contexto: a época agitada de um, que pertence ainda a 68, e a calmaria já absoluta, a indiferença em que o outro surgiu. Mil platôs foi o nosso livro de menor receptividade. Entretanto, se o preferimos, não é da maneira como uma mãe prefere seu filho desfavorecido. O Anti-Édipo obtivera muito sucesso, mas esse sucesso se duplicava em um fracasso mais profundo. Pretendia denunciar as falhas de Édipo, do “papai-mamãe”, na psicanálise, na psiquiatria e até mesmo na antipsiquiatria, na crítica literária e na imagem geral que se faz do pensamento. Sonhávamos em acabar com Édipo. Mas era uma tarefa grande demais para nós. A reação contra 68 iria mostrar a que ponto o Édipo familiar passava bem e continuava a impor seu regime de choramingo pueril na psicanálise, na literatura e por toda parte no pensamento. De modo que o Édipo continuava a ser nossa ocupação. Ao passo que Mil platôs, apesar de seu fracasso aparente, fazia com que déssemos um passo à frente, ao menos para nós, e abordássemos terras desconhecidas, virgens de Édipo, que o Anti-Édipo tinha apenas visto de longe sem nelas penetrar. Os três temas do Anti-Édipo eram os seguintes: 1) o inconsciente funciona como uma usina e não como um teatro (questão de produção, e não de representação); 2) o delírio, ou o romance, é histórico-mundial, e não familiar (deliram-se as raças, as tribos, os continentes, as culturas, as posições sociais..).; 3) há exatamente uma história universal, mas é a da contingência (como os fluxos, que são o objeto da História, passam por códigos primitivos, sobrecodificações despóticas, e descodificações capitalistas que tornam possível uma conjunção de fluxos independentes). O Anti-Édipo tinha uma ambição kantiana: era preciso tentar uma espécie de Crítica da Razão pura no nível do inconsciente. Daí a determinação de sínteses próprias ao inconsciente; o desenrolar da história como efetuação dessas sínteses; a denúncia do Édipo como “ilusão inevitável” falsificando toda produção histórica. Mil platôs se baseia, ao contrário, em uma ambição pós-kantiana (apesar de deliberadamente anti-hegeliana). O projeto é “construtivista”. É uma teoria das multipheidades por elas mesmas, no ponto em que o múltiplo passa ao estado de substantivo, ao passo que o Anti-Édipo ainda o

VII

considerava em sínteses e sob as condições do inconsciente. Em Mil platôs, o comentário sobre o homem dos lobos (“Um só ou vários lobos”) constitui nosso adeus à psicanálise, e tenta mostrar como as multipheidades ultrapassam a distinção entre a consciência e o inconsciente, entre a natureza e a história, o corpo e a alma. As multipheidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multipheidades. Os princípios característicos das multipheidades concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas relações, que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização. A história universal da contingência atinge aí uma variedade maior. Em cada caso, a questão é: onde e como se faz tal encontro? Em vez de seguir, como no Anti-Édipo, a sequência tradicional Selvagens-Bárbaros Civilizados, encontramo-nos agora diante de todas as espécies de formações coexistentes: os grupos primitivos, que operam por séries e por avaliação do “último” termo, em um estranho marginalismo; as comunidades despóticas, que constituem, ao contrário, conjuntos submetidos a processos de centralização (aparelhos de Estado); as máquinas de guerra nômades, que não irão apossar-se dos Estados sem que estes se apropriem da máquina de guerra, que eles não admitiam de início; os processos de subjetivação que se exercem nos aparelhos estatais e guerreiros; a convergência desses processos, no capitalismo e através dos Estados correspondentes; as modalidades de uma ação revolucionária; os fatores comparados, em cada caso, do território, da terra e da desterritorialização. Esses três fatores podem ser vistos jogando aqui livremente, quer dizer esteticamente, no ritornelo. As pequenas cantigas territoriais, ou o canto dos pássaros; o grande canto da terra, quando a terra bramiu; a potente harmonia das esferas ou a voz do cosmo? É isso o que este livro teria desejado: agenciar ritornelos, lieder, correspondentes a cada platô. Pois a filosofia, ela também, não é diferente disso, da cançoneta ao mais potente dos cantos, uma espécie de sprechgesang cósmico. O pássaro de Minerva (para falar como Hegel) tem seus gritos e seus cantos; os princípios em filosofia são gritos, em torno dos quais os conceitos desenvolvem verdadeiros cantos. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira

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NOTA DOS AUTORES Esse livro é a continuação e o fim de Capitalismo e Esquizofrenia, cujo primeiro tomo é O anti-Édipo. Não é composto de capítulos, mas de “platôs”. Tentamos explicar mais adiante o porquê (e também por que os textos são datados). Em uma certa medida, esses platôs podem ser lidos independentemente uns dos outros, exceto a conclusão, que só deveria ser lida no final. Já foram publicados: “Rizoma” (Ed. de Minuit, 1976); “Um só ou vários lobos” (revista Minuit, n°5); “Como produzir um corpo sem órgãos” (Minuit, n° 10). Eles são aqui republicados com modificações.

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1 INTRODUÇÃO: RIZOMA

Sylvano Bussoti Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais distante. Distribuímos hábeis pseudônimos para dissimular. Por que preservamos nossos nomes? Por hábito, exclusivamente por hábito. Para passarmos despercebidos. Para tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir, experimentar ou pensar. E, finalmente, porque é agradável falar como todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo sabe que essa é apenas uma maneira de falar. Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados. Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias diferentemente formadas, de datas e velocidades muito diferentes. Desde que se atribui um livro a um sujeito, negligencia-se este trabalho das matérias e a exterioridade de suas correlações. Fabrica-se um bom Deus para movimentos geológicos. Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga,

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movimentos de desterritorialização e desestratificação. As velocidades comparadas de escoamento, conforme estas linhas, acarretam fenômenos de retardamento relativo, de viscosidade ou, ao contrário, de precipitação e de ruptura. Tudo isto, as linhas e as velocidades mensuráveis, constitui um agenciamento. Um livro é um tal agenciamento e, como tal, inatribuível. É uma multiplicidade — mas não se sabe ainda o que o múltiplo implica, quando ele deixa de ser atribuído, quer dizer, quando é elevado ao estado de substantivo. Um agenciamento maquínico é direcionado para os estratos que fazem dele, sem dúvida, uma espécie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou bem uma determinação atribuível a um sujeito, mas ele não é menos direcionado para um corpo sem órgãos, que não para de desfazer o organismo, de fazer passar e circular partículas a-significantes, intensidades puras, e não para de atribuir-se os sujeitos aos quais não deixa senão um nome como rastro de uma intensidade. Qual é o corpo sem órgãos de um livro? Há vários, segundo a natureza das linhas consideradas, segundo seu teor ou sua densidade própria, segundo sua possibilidade de convergência sobre “um plano de consistência” que lhe assegura a seleção. Aí, como em qualquer lugar, o essencial são as unidades de medida: “quantificar a escrita”. Não há diferença entre aquilo de que um livro fala e a maneira como é feito. Um livro tampouco tem objeto. Considerado como agenciamento, ele está somente em conexão com outros agenciamentos, em relação com outros corpos sem órgãos. Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora. Assim, sendo o próprio livro uma pequena máquina, que relação, por sua vez mensurável, esta máquina literária entretém com uma máquina de guerra, uma máquina de amor, uma máquina revolucionária etc. — e com uma máquina abstrata que as arrasta. Fomos criticados por invocar muito frequentemente literatos. Mas a única questão, quando se escreve, é saber com que outra máquina a máquina literária pode estar ligada, e deve ser ligada, para funcionar. Kleist e uma louca máquina de guerra, Kafka e uma máquina burocrática inaudita... (e se nos tornássemos animal ou vegetal por literatura, o que não quer certamente dizer literariamente? Não seria primeiramente pela voz que alguém se torna animal?) A literatura é um agenciamento, ela nada tem a ver com ideologia, e, de resto, não existe nem nunca existiu ideologia. Falamos exclusivamente disto: multiplicidade, linhas,

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estratos e segmentaridades, linhas de fuga e intensidades, agenciamentos maquínicos e seus diferentes tipos, os corpos sem órgãos e sua construção, sua seleção, o plano de consistência, as unidades de medida em cada caso. Os Estratômetros, os deleômetros, as unidades CsO* de densidade, as unidades CsO de convergência não formam somente uma quantificação da escrita, mas a definem como sendo sempre a medida de outra coisa. Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir. Um primeiro tipo de livro é o livro-raiz. A árvore já é a imagem do mundo, ou a raiz é a imagem da árvore-mundo. É o livro clássico, como bela inferioridade orgânica, significante e subjetiva (os estratos do livro). O livro imita o mundo, como a arte, a natureza: por procedimentos que lhes são próprios e que realizam o que a natureza não pode ou não pode mais fazer. A lei do livro é a da reflexão, o Uno que se torna dois. Como é que a lei do livro estaria na natureza, posto que ela preside a própria divisão entre mundo e livro, natureza e arte? Um torna-se dois: cada vez que encontramos esta fórmula, mesmo que enunciada estrategicamente por Mao Tsé-Tung, mesmo compreendida o mais “dialeticamente” possível, encontramo-nos diante do pensamento mais clássico e o mais refletido, o mais velho, o mais cansado. A natureza não age assim: as próprias raízes são pivotantes com ramificação mais numerosa, lateral e circular, não dicotômica. O espírito é mais lento que a natureza. Até mesmo o livro como realidade natural é pivotante, com seu eixo e as folhas ao redor. Mas o livro como realidade espiritual, a Árvore ou a Raiz como imagem, não para de desenvolver a lei do Uno que se torna dois, depois dois que se tornam quatro.... A lógica binária é a realidade espiritual da árvore-raiz. Até uma disciplina “avançada” como a Linguística retém como imagem de base esta árvore-raiz, que a liga à reflexão clássica (assim Chomsky e a árvore sintagmática, começando num ponto S para proceder por dicotomia). Isto quer dizer que este pensamento nunca compreendeu a multiplicidade: ele necessita de uma forte unidade principal, unidade que é suposta para chegar a duas, segundo um método espiritual. E do lado do objeto, segundo o método natural, pode-se sem dúvida passar diretamente do Uno a três, quatro ou cinco, mas sempre com a condição de dispor de uma forte unidade principal, a do pivô, que suporta as raízes secundárias. Isto não melhora nada. As relações biunívocas entre círculos sucessivos apenas substituíram a lógica binária da dicotomia. A raiz pivotante não compreende a multiplicidade mais do que o conseguido pela raiz dicotômica. Uma opera no objeto, enquanto a outra opera no sujeito. A lógica binária e as relações

*

CsO, é a abreviatura de. (N. do T).

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biunívocas dominam ainda a psicanálise (a árvore do delírio na interpretação freudiana de Schreber), a linguística e o estruturalismo, e até a informática. O sistema-radícula, ou raiz fasciculada, é a segunda figura do livro, da qual nossa modernidade se vale de bom grado. Desta vez a raiz principal abortou, ou se destruiu em sua extremidade: vem se enxertar nela uma multiplicidade imediata e qualquer de raízes secundárias que deflagram um grande desenvolvimento. Desta vez, a realidade natural aparece no aborto da raiz principal, mas sua unidade subsiste ainda como passada ou por vir, como possível. Deve-se perguntar se a realidade espiritual e refletida não compensa este estado de coisas, manifestando, por sua vez, a exigência de uma unidade secreta ainda mais compreensiva, ou de uma totalidade mais extensiva. Seja o método do cut-up de Burroughs: a dobragem de um texto sobre outro, constitutiva de raízes múltiplas e mesmo adventícias (dir-se-ia uma estaca), implica uma dimensão suplementar à dos textos considerados. É nesta dimensão suplementar da dobragem que a unidade continua seu trabalho espiritual. É neste sentido que a obra mais deliberadamente parcelar pode também ser apresentada como Obra total ou o Grande Opus. A maior parte dos métodos modernos para fazer proliferar séries ou para fazer crescer uma multiplicidade valem perfeitamente numa direção, por exemplo, linear, enquanto que uma unidade de totalização se afirma tanto mais numa outra dimensão, a de um círculo ou de um ciclo. Toda vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis de combinação. Os abortadores da unidade são aqui fazedores de anjos, doctores angelici, posto que eles afirmam uma unidade propriamente angélica e superior. As palavras de Joyce, justamente ditas “com raízes múltiplas”, somente quebram efetivamente a unidade da palavra, ou mesmo da língua, à medida que põem uma unidade cíclica da frase, do texto ou do saber. Os aforismos de Nietzsche somente quebram a unidade linear do saber à medida que remetem à unidade cíclica do eterno retorno, presente como um não sabido no pensamento. Vale dizer que o sistema fasciculado não rompe verdadeiramente com o dualismo, com a complementaridade de um sujeito e de um objeto, de uma realidade natural e de uma realidade espiritual: a unidade não para de ser contrariada e impedida no objeto, enquanto que um novo tipo de unidade triunfa no sujeito. O mundo perdeu seu pivô, o sujeito não pode nem mesmo mais fazer dicotomia, mas acede a uma mais alta unidade, de ambivalência ou de sobredeterminação, numa dimensão sempre suplementar àquela de seu objeto. O mundo tornou-se caos, mas o livro permanece sendo imagem do mundo, caosmo-radícula, em vez

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de cosmo-raiz. Estranha mistificação, esta do livro, que é tanto mais total quanto mais fragmentada. O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma. Um rizoma como haste subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e radículas. Os bulbos, os tubérculos, são rizomas. Plantas com raiz ou radícula podem ser rizomórficas num outro sentido inteiramente diferente: é uma questão de saber se a botânica, em sua especificidade, não seria inteiramente rizomórfica. Até animais o são, sob sua forma matilha; ratos são rizomas. As tocas o são, com todas suas funções de hábitat, de provisão, de deslocamento, de evasão e de ruptura. O rizoma nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos. Há rizoma quando os ratos deslizam uns sobre os outros. Há o melhor e o pior no rizoma: a batata e a grama, a erva daninha. Animal e planta, a grama é o capim-pé-de-galinha. Sentimos que não convenceremos ninguém se não enumerarmos certas características aproximativas do rizoma. 1º e 2º – Princípios de conexão e de heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem. A árvore linguística à maneira de Chomsky começa ainda num ponto S e procede por dicotomia. Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço linguístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas. Os Agenciamentos coletivos de enunciação funcionam, com efeito, diretamente nos agenciamentos maquínicos, e não se pode estabelecer um corte radical entre os regimes de signos e seus objetos. Na linguística, mesmo quando se pretende ater-se ao explícito e nada supor da língua, acaba-se permanecendo no interior das esferas de um discurso que implica ainda modos de agenciamento e tipos de poder sociais particulares. A gramaticalidade de Chomsky, o

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símbolo categorial S que domina todas as frases, é antes de tudo um marcador de poder antes de ser um marcador sintático: você constituirá frases gramaticalmente corretas, você dividirá cada enunciado em sintagma nominal e sintagma verbal (primeira dicotomia...). Não se criticarão tais modelos linguísticos por serem demasiado abstratos, mas, ao contrário, por não sê-lo bastante, por não atingir a máquina abstrata que opera a conexão de uma língua com os conteúdos semânticos e pragmáticos de enunciados, com agenciamentos coletivos de enunciação, com toda uma micropolítica do campo social. Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, linguísticos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais. Não existe locutor-auditor ideal, como também não existe comunidade linguística homogênea. A língua é, segundo uma fórmula de Weinreich, “uma realidade essencialmente heterogênea”. Não existe uma língua-mãe, mas tomada de poder por uma língua dominante dentro de uma multiplicidade política. A língua se estabiliza em torno de uma paróquia, de um bispado, de uma capital. Ela faz bulbo. Ela evolui por hastes e fluxos subterrâneos, ao longo de vales fluviais ou de linhas de estradas de ferro, espalha-se como manchas de óleo1. Podem-se sempre efetuar, na língua, decomposições estruturais internas: isto não é fundamentalmente diferente de uma busca das raízes. Há sempre algo de genealógico numa árvore, não é um método popular. Ao contrário, um método de tipo rizoma é obrigado a analisar a linguagem efetuando um descentramento sobre outras dimensões e outros registros. Uma língua não se fecha sobre si mesma senão em uma função de impotência. 3º – Princípio de multiplicidade: é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. Inexistência, pois, de unidade que sirva de pivô no objeto ou que se divida no sujeito. Inexistência de unidade ainda que fosse para abortar no objeto e para “voltar” no sujeito. Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que

1

Cf. Bertil Malmberg, Les nouvelles tendances de la linguistique. P.U.F. (o exemplo do dialeto castelhano), pp 97 sq.

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mude de natureza (as leis de combinação crescem então com a multiplicidade). Os fios da marionete, considerados como rizoma ou multiplicidade, não remetem à vontade suposta una de um artista ou de um operador, mas à multiplicidade das fibras nervosas que formam por sua vez uma outra marionete seguindo outras dimensões conectadas às primeiras. “Os fios ou as hastes que movem as marionetes — chamemo-los a trama. Poderse-ia objetar que sua multiplicidade reside na pessoa do ator que a projeta no texto. Seja, mas suas fibras nervosas formam por sua vez uma trama. E eles mergulham através de uma massa cinza, a grade, até o indiferenciado... O jogo se aproxima da pura atividade dos tecelões, a aqueles que os mitos atribuem às Parcas e às Norns2. Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas. Quando Glenn Gould acelera a execução de uma passagem não age exclusivamente como virtuose; transforma os pontos musicais em linhas, faz proliferar o conjunto. Acontece que o número deixou de ser um conceito universal que mede os elementos segundo seu lugar numa dimensão qualquer, para tornar-se ele próprio uma multiplicidade variável segundo as dimensões consideradas (primado do domínio sobre um complexo de números ligado a este domínio). Nós não temos unidades de medida, mas somente multiplicidades ou variedades de medida. A noção de unidade aparece unicamente quando se produz numa multiplicidade uma tomada de poder pelo significante ou um processo correspondente de subjetivação: é o caso da unidade-pivô que funda um conjunto de correlações biunívocas entre elementos ou pontos objetivos, ou do Uno que se divide segundo a lei de uma lógica binária da diferenciação no sujeito. A unidade sempre opera no seio de uma dimensão vazia suplementar àquela do sistema considerado (sobrecodificação). Mas acontece, justamente, que um rizoma, ou multiplicidade, não se deixa sobrecodificar, nem jamais dispõe de dimensão suplementar ao número de suas linhas, quer dizer, à multiplicidade de números ligados a estas linhas. Todas as multiplicidades são planas, uma vez que elas preenchem, ocupam todas as suas dimensões: falar-se-á então de um plano de consistência das multiplicidades, se bem que este “plano” seja de dimensões crescentes segundo o número de conexões que se estabelecem nele. As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização

Ernst Junger, Approches drogues et ivresse, Table ronde, p. 304, 218. [Na mitologia germânica, a Norns correspondem às Parcas latinas que, por sua vez, correspondem às Moiras gregas (Moirai): Átropo, Clato e Láquesis, divindades fiandeiras que tecem a regulação da vida, desde o nascimento até a morte] 2

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segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras. O plano de consistência (grade) é o fora de todas as multiplicidades. A linha de fuga marca, ao mesmo tempo: a realidade de um número de dimensões finitas que a multiplicidade preenche efetivamente; a impossibilidade de toda dimensão suplementar, sem que a multiplicidade se transforme segundo esta linha; a possibilidade e a necessidade de achatar todas estas multiplicidades sobre um mesmo plano de consistência ou de exterioridade, sejam quais forem suas dimensões. O ideal de um livro seria expor toda coisa sobre um tal plano de exterioridade, sobre uma única página, sobre uma mesma paragem: acontecimentos vividos, determinações históricas, conceitos pensados, indivíduos, grupos e formações sociais. Kleist inventou uma escrita deste tipo, um encadeamento quebradiço de afetos com velocidades variáveis, precipitações e transformações, sempre em correlação com o fora. Anéis abertos. Assim seus textos se opõem de todos os pontos de vista ao livro clássico e romântico, constituído pela interioridade de uma substância ou de um sujeito. O livro-máquina de guerra, contra o livro-aparelho de Estado. As multiplicidades planas a n dimensões são a a-significantes e a-subjetivas. Elas são designadas por artigos indefinidos, ou antes partitivos (c'est du chiendent, du rhizome..). [é grama, é rizoma...] 4° – Princípio de ruptura a-significante: contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas, ou que atravessam uma estrutura. Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. É impossível exterminar as formigas, porque elas formam um rizoma animal do qual a maior parte pode ser destruída sem que ele deixe de se reconstruir. Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não param de se remeter uma às outras. É por isto que não se pode contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau. Faz-se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas corre-se sempre o risco de reencontrar nela organizações que reestratificam o conjunto, formações que dão novamente o poder a um significante, atribuições que reconstituem um sujeito — tudo o que se quiser, desde as ressurgências edipianas até as concreções fascistas. Os grupos e os indivíduos contêm microfascismos sempre à espera de cristalização. Sim, a grama é também rizoma. O bom o mau são somente o produto de uma seleção ativa e temporária a ser recomeçada.

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Como é possível que os movimentos de desterritorialização e os processos de reterritorialização não fossem relativos, não estivessem em perpétua ramificação, presos uns aos outros? A orquídea se desterritorializa, formando uma imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se reterritorializa sobre esta imagem. A vespa se desterritorializa, no entanto, tornando-se ela mesma uma peça no aparelho de reprodução da orquídea; mas ela reterritorializa a orquídea, transportando o pólen. A vespa e a orquídea fazem rizoma em sua heterogeneidade. Poder-se-ia dizer que a orquídea imita a vespa cuja imagem reproduz de maneira significante (mimese, mimetismo, fingimento, etc). Mas isto é somente verdade no nível dos estratos — paralelismo entre dois estratos determinados cuja organização vegetal sobre um deles imita uma organização animal sobre o outro. Ao mesmo tempo trata-se de algo completamente diferente: não mais imitação, mas captura de código, mais-valia de código, aumento de valência, verdadeiro devir-, devir-vespa da orquídea, devir-orquídea da vespa, cada um destes devires assegurando a desterritorialização de um dos termos e a reterritorialização do outro, os dois devires se encadeando e se revezando segundo uma circulação de intensidades que empurra a desterritorialização cada vez mais longe. Não há imitação nem semelhança, mas explosão de duas séries heterogêneas na linha de fuga composta de um rizoma comum que não pode mais ser atribuído, nem submetido ao que quer que seja de significante. Rémy Chauvin diz muito bem: “Evolução a-paralela de dois seres que não têm absolutamente nada a ver um com o outro”3. Mais geralmente, pode acontecer que os esquemas de evolução sejam levados a abandonar o velho modelo da árvore e da descendência. Em certas condições, um vírus pode conectar-se a células germinais e transmitir-se como gene celular de uma espécie complexa; além disso, ele poderia fugir, passar em células de uma outra espécie, não sem carregar “informações genéticas” vindas do primeiro anfitrião (como evidenciam as pesquisas atuais de Benveniste e Todaro sobre um vírus de tipo C, em sua dupla conexão com o ADN do babuíno e o ADN de certas espécies de gatos domésticos). Os esquemas de evolução não se fariam mais somente segundo modelos de descendência arborescente, indo do menos diferenciado ao mais diferenciado, mas segundo um rizoma que opera imediatamente no heterogêneo e salta de uma linha já diferenciada a uma outra4.

3

Rémy Chauvin, in Entretiens sur Ia sexualité, Plon, p. 205.

Sobre os trabalhos de R.E. Benveniste e G.J. Todaro, cf. Yves Christen, “Le role des virus dans 1’évolution”, La Recberche, n° 54, março de 1975: “Após integração-extração numa célula, e tendo havido um erro de excisão, os vírus podem carregar fragmentos de ADN de seu anfitrião e transmiti-los para novas células: é, aliás, a base do que se chama engenharia genética. Daí resulta que a informação genética própria de um organismo poderia ser transferida a um outro graças aos vírus. Se se interessa pelas situações extremas, pode-se até imaginar que esta transferência de informação poderia efetuar-se de uma espécie mais evoluída a uma espécie menos evoluída ou geradora da precedente. Este mecanismo funcionaria então em sentido inverso àquele que a evolução utiliza de uma maneira clássica. Se tais passagens de informações tivessem tido uma grande importância, seríamos até levados em certos casos a substituir esquemas reticulares (com comunicações entre ramos após suas diferenciações) aos esquemas em arbusto ou em árvore que servem boje para representar a evolução” (p. 271). 4

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É o caso, ainda aqui, da a evolução a-paralela do babuíno e do gato, onde um não é evidentemente o modelo do outro, nem o outro a cópia do primeiro (um devir babuíno no gato não significaria que o gato “taça como o babuíno). Nós fazemos rizoma com nossos vírus, ou antes, nossos vírus nos fazem fazer rizoma com outros animais. Como diz Jacob, as transferências de material genético por intermédio de vírus ou por outros procedimentos, as fusões de células saídas de espécies diferentes, têm resultados análogos àqueles dos “amores abomináveis apreciados na Antiguidade e na Idade Média”5. Comunicações transversais entre linhas diferenciadas embaralham as árvores genealógicas. Buscar sempre o molecular, ou mesmo a partícula sub-molecular com a qual fazemos aliança. Evoluímos e morremos devido a nossas gripes polimórficas e rizomáticas mais do que devido a nossas doenças de descendência ou que têm elas mesma sua descendência. O rizoma é uma antigenealogia. É a mesma coisa quanto ao livro e ao mundo: o livro não é a imagem do mundo segundo uma crença enraizada. Ele faz rizoma com o mundo, há evolução a-paralela do livro e do mundo, o livro assegura a desterritorialização do mundo, mas o mundo opera uma reterritorialização do livro, que se desterritorializa por sua vez em si mesmo no mundo (se ele é disto capaz e se ele pode). O mimetismo é um conceito muito ruim, dependente de uma lógica binária, para fenômenos de natureza inteiramente diferente. O crocodilo não reproduz um tronco de árvore assim como o camaleão não reproduz as cores de sua vizinhança. A Pantera Cor-de-rosa nada imita, nada reproduz; ela pinta o mundo com sua cor, rosa sobre rosa, é o seu devir-mundo, de forma a tornar-se ela mesma imperceptível, ela mesma a-significante, fazendo sua ruptura, sua linha de fuga, levando até o fim sua “evolução a-paralela”. Sabedoria das plantas: inclusive quando elas são de raízes, há sempre um fora onde elas fazem rizoma com algo — com o vento, com um animal, com o homem (e também um aspecto pelo qual os próprios animais fazem

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François Jacob, La logique du vivant, Gallimard, pp 312, 333.

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rizoma, e os homens etc). “A embriaguez como irrupção triunfal da planta em nós”. Seguir sempre o rizoma por ruptura, alongar, prolongar, revezar a linha de fuga, fazê-la variar, até produzir a linha mais abstrata e a mais tortuosa, com n dimensões, com direções rompidas. Conjugar os fluxos desterritorializados. Seguir as plantas: começando por fixar os limites de uma primeira linha segundo círculos de convergência ao redor de singularidades sucessivas; depois, observando-se, no interior desta linha, novos círculos de convergência se estabelecem com novos pontos situados fora dos limites e em outras direções. Escrever, fazer rizoma, aumentar seu território por desterritorialização, estender a linha de fuga até o ponto em que ela cubra todo o plano de consistência em uma máquina abstrata. “Primeiro, caminhe até tua primeira planta e lá observe atentamente como escoa a água de torrente a partir deste ponto. A chuva deve ter transportado os grãos para longe. Siga as valas que a água escavou, e assim conhecerá a direção do escoamento. Busque então a planta que, nesta direção, encontra-se o mais afastado da tua. Todas aquelas que crescem entre estas duas são para ti. Mais tarde, quando esta últimas derem por sua vez grãos, tu poderás, seguindo o curso das águas, a partir de cada uma destas plantas, aumentar teu território6“. A música nunca deixou de fazer passar suas linhas de fuga, como outras tantas “multiplicidades de transformação”, mesmo revertendo seus próprios códigos, os que a estruturam ou a arborificam; por isto a forma musical, até em suas rupturas e proliferações, é comparável à erva daninha, um rizoma7. 5º e 6 º – Princípio de cartografia e de decalcomania: um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele é estranho a qualquer ideia de eixo genético ou de estrutura profunda. Um eixo genético é como uma unidade pivotante objetiva sobre a qual se organizam estados sucessivos; uma estrutura profunda é, antes, como que uma sequência de base decomponível em constituintes imediatos, enquanto que a unidade do produto se apresenta numa outra dimensão, transformacional e subjetiva. Não se sai, assim, do modelo representativo da árvore ou da raiz-pivotante ou fasciculada (por exemplo, a “árvore”

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Carlos Castaneda, L’herbe du diable et la petite fumée, Soleil noir, p. 160.

Pierre Boulez, Par volonté et par hasard, Ed. du Seuil “Você a planta num certo terreno e, bruscamente, ela se põe a proliferar como erva daninha”. E passim, sobre a proliferação musical, p. 89: “uma música que flutua, na qual a própria escrita traz para o instrumentista uma impossibilidade de preservar uma coincidência com um tempo ritmado”. 7

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chomskyana associada à sequência de base, representando o processo de seu engendramento segundo uma lógica binária). Variação sobre o mais velho pensamento. Do eixo genético ou da estrutura profunda, dizemos que eles são antes de tudo princípios de decalque, reprodutíveis ao infinito. Toda lógica da árvore é uma lógica do decalque e da reprodução. Tanto na Linguística quanto na Psicanálise, ela tem como objeto um inconsciente ele mesmo representante, cristalizado em complexos codificados, repartido sobre um eixo genético ou distribuído numa estrutura sintagmática. Ela tem como finalidade a descrição de um estado de fato, o reequilíbrio de correlações intersubjetivas, ou a exploração de um inconsciente já dado camuflado, nos recantos obscuros da memória e da linguagem. Ela consiste em decalcar algo que se dá já feito, a partir de uma estrutura que sobrecodifica ou de um eixo que suporta. A árvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques são como folhas da árvore. Diferente é o rizoma, mapa e não decalque. Fazer o mapa, não o decalque. A orquídea não reproduz o decalque da vespa, ela compõe um mapa com a vespa no seio de um rizoma. Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas; a toca, neste sentido, é um rizoma animal, e comporta às vezes uma nítida distinção entre linha de fuga como corredor de deslocamento e os estratos de reserva ou de habitação (cf. por exemplo, a lontra). Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre “ao mesmo”. Um mapa é uma questão de performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida “competência”. Ao contrário da psicanálise, da competência psicanalítica, que achata cada desejo e enunciado sobre um eixo genético ou uma estrutura sobrecodificante e que produz ao infinito monótonos decalques dos estágios sobre este eixo ou dos constituintes nesta estrutura, a esquizoanálise recusa toda ideia de fatalidade decalcada, seja qual for o nome que se lhe dê, divina, anagógica, histórica,

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econômica, estrutural, hereditária ou sintagmática. (Vê-se bem como Melanie Klein não compreende o problema de cartografia de uma de suas crianças pacientes, o pequeno Richard, e contenta-se em produzir decalques estereotipados — Édipo, o bom e o mau papai, a má e boa mamãe — enquanto que a criança tenta com desespero prosseguir uma performance que a psicanálise desconhece absolutamente8). As pulsões e objetos parciais não são nem estágios sobre o eixo genético, nem posições numa estrutura profunda, são opções políticas para problemas, entradas e saídas, impasses que a criança vive politicamente, quer dizer, com toda força de seu desejo. Entretanto será que nós não restauramos um simples dualismo opondo os mapas aos decalques, como um bom e um mau lado? Não é próprio do mapa poder ser decalcado? Não é próprio de um rizoma cruzar as raízes, confundir-se às vezes com elas? Um mapa não comporta fenômenos de redundância que já são como que seus próprios decalques? Uma multiplicidade não tem seus estratos onde se enraízam unificações e totalizações, massificações, mecanismos miméticos, tomadas de poder significantes, atribuições subjetivas? As linhas de fuga, inclusive elas, não vão reproduzir, a favor de sua divergência eventual, formações que elas tinham por função desfazer ou inverter? Mas o inverso é também verdadeiro, é uma questão de método: é preciso sempre projetar o decalque sobre o mapa. E esta operação não é de forma alguma simétrica à precedente, porque, com todo o rigor, não é exato que um decalque reproduza o mapa. Ele é antes como uma foto, um rádio que começaria por eleger ou isolar o que ele tem a intenção de reproduzir, com a ajuda de meios artificiais, com a ajuda de colorantes ou outros procedimentos de coação. É sempre o imitador quem cria seu modelo e o atrai. O decalque já traduziu o mapa em imagem, já transformou o rizoma em raízes e radículas. Organizou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação que são os seus. Ele gerou, estruturalizou o rizoma, e o decalque já não reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa. Por isto ele é tão perigoso. Ele injeta redundâncias e as propaga. O que o decalque reproduz do mapa ou do rizoma são somente os impasses, os bloqueios, os germes de pivô ou os pontos de estruturação. Vejam a Psicanálise e a Linguística: uma só tirou

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Cf. Melanie Klein, Psychanalyse d’un enfant, Tchou: o papel dos mapas de guerra nas atividades de Richard.

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decalques ou fotos do inconsciente, a outra, decalques ou fotos da linguagem, com todas as traições que isto supõe (não é de espantar que a Psicanálise tenha ligado sua sorte à da Linguística). Vejam o que acontece já ao pequeno Hans em pura Psicanálise de criança: não se parou nunca de lhe QUEBRAR SEU RIZOMA, de lhe MANCHAR SEU MAPA, de colocá-lo no bom lugar, de lhe bloquear qualquer saída, até que ele deseje sua própria vergonha e sua culpa, FOBIA (impede-se-lhe o rizoma do prédio, depois, o da rua, enraizando-o na cama dos pais, radiculando-o sobre seu próprio corpo, e, finalmente bloqueando-o sobre o professor Freud. Freud considera explicitamente a cartografia do pequeno Hans, mas sempre somente para rebatê-la sobre uma foto de família. E vejam o que faz Melanie Klein com os mapas geopolíticos do pequeno Richard: ela tira fotos, ela faz decalques, tirem fotos ou sigam o eixo, estágio genético ou destino estrutural, seu rizoma será quebrado. Deixarão que vocês vivam e falem, com a condição de impedir qualquer saída. Quando um rizoma é fechado, arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque é sempre por rizoma que o desejo se move e produz. Toda vez que o desejo segue uma árvore acontecem as quedas internas que o fazem declinar e o conduzem à morte; mas o rizoma opera sobre o desejo por impulsões exteriores e produtivas. Por isto é tão importante tentar a outra operação, inversa mas não simétrica. Religar os decalques ao mapa, relacionar as raízes ou as árvores a um rizoma. Estudar o inconsciente, no caso do pequeno Hans, seria mostrar como ele tenta constituir um rizoma, com a casa da família, mas também com a linha de fuga do prédio, da rua, etc; como estas linhas são obstruídas, como o menino é enraizado na família, fotografado sob o pai, decalcado sobre a cama materna; depois, como a intervenção do professor Freud assegura uma tomada de poder do significante como subjetivação dos afetos; como o menino não pode mais fugir senão sob a forma de um devir-animal apreendido como vergonhoso e culpado (o devir-cavalo do pequeno Hans, verdadeira opção política). Seria necessário sempre ressituar os impasses sobre o mapa e por aí abri-los sobre linhas de fuga possíveis. A mesma coisa para um mapa de grupo: mostrar até que ponto do rizoma se formam fenômenos de massificação, de burocracia, de leadership, de fascistização, etc., que linhas subsistem, no entanto, mesmo subterrâneas, continuando a fazer obscuramente rizoma. O método Deligny: produzir o mapa dos gestos e dos movimentos de uma criança autista, combinar vários mapas para a mesma

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criança, para várias crianças9... Se é verdade que o mapa ou o rizoma têm essencialmente entradas múltiplas, consideraremos que se pode entrar nelas pelo caminho dos decalques ou pela via das árvores-raízes, observando as precauções necessárias (renunciandose também aí a um dualismo maniqueísta). Por exemplo, seremos seguidamente obrigados a cair em impasses, a passar por poderes significantes e afetos subjetivos, a nos apoiar em formações edipianas, paranoicas ou ainda piores, assim como sobre territorialidades endurecidas que tornam possíveis outras operações transformacionais. Pode ser até que a Psicanálise sirva, não obstante ela, de ponto de apoio. Em outros casos, ao contrário, nos apoiaremos diretamente sobre uma linha de fuga que permita explodir os estratos, romper as raízes e operar novas conexões. Há, então, agenciamentos muito diferentes de mapas-decalques, rizomas-raízes, com coeficientes variáveis de desterritorialização. Existem estruturas de árvore ou de raízes nos rizomas, mas, inversamente, um galho de árvore ou uma divisão de raiz podem recomeçar a brotar em rizoma. A demarcação não depende aqui de análises teóricas que impliquem universais, mas de uma pragmática que compõe as multiplicidades ou conjuntos de intensidades. No coração de uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um novo rizoma pode se formar. Ou então é um elemento microscópico da árvore raiz, uma radícula, que incita a produção de um rizoma. A contabilidade e a burocracia procedem por decalques: elas podem, no entanto, começar a brotar, a lançar hastes de rizoma, como num romance de Kafka. Um traço intensivo começa a trabalhar por sua conta, uma percepção alucinatória, uma sinestesia, uma mutação perversa, um jogo de imagens se destacam e a hegemonia do significante é recolocada em questão. Semióticas gestuais, mímicas, lúdicas etc. retomam sua liberdade na criança e se liberam do “decalque”, quer dizer, da competência dominante da língua do mestre — um acontecimento microscópico estremece o equilíbrio do poder local. Assim, as árvores gerativas, construídas a partir do modelo sintagmático de Chomsky, poderiam abrir-se em todos os sentidos, fazer, por sua vez, rizoma10. Ser rizomorfo é produzir hastes e filamentos que parecem raízes, ou, melhor ainda, que se conectam com elas penetrando

9

Fernand Deligny, “Voix et voir”, Cahiers de 1’immuable, Recherches, abril, 1975.

Cf. Dieter Wunderlich, “Pragmatique, situation d’énonciation et Deixis”, in Langages, n” 26, junho de 1972, pp. 50 sq: as tentativas de Mac Cawley, de Sadock e de Wunderlich para introduzir “propriedades pragmáticas” nas árvores chomskianas. 10

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no tronco, podendo fazê-las servir a novos e estranhos usos. Estamos cansados da árvore. Não devemos mais acreditar em árvores, em raízes ou radículas, já sofremos muito. Toda a cultura arborescente é fundada sobre elas, da biologia à linguística. Ao contrário, nada é belo, nada é amoroso, nada é político a não ser que sejam arbustos subterrâneos e as raízes aéreas, o adventício e o rizoma. Amsterdã, cidade não enraizada, cidade rizoma com seus canais em hastes, onde a utilidade se conecta à maior loucura, em sua relação com uma máquina de guerra comercial. O pensamento não é arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada. O que se chama equivocadamente de “dendritos” não assegura uma conexão dos neurônios num tecido contínuo. A descontinuidade das células, o papel dos axônios, o funcionamento das sinapses, a existência de microfendas sinápticas, o salto de cada mensagem por cima destas fendas fazem do cérebro uma multiplicidade que, no seu plano de consistência ou em sua articulação, banha todo um sistema, probalístico incerto, un certain nervous system. Muitas pessoas têm uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva do que uma árvore. “O axônio e o dendrito enrolam-se um ao redor do outro como a campanulácia em torno de espinheiro, com uma sinapse em cada espinho11.” É como no caso da memória... Os neurólogos, os psicofisiólogos, distinguem uma memória longa e uma memória curta (da ordem de um minuto). Ora, a diferença não é somente quantitativa: a memória curta é de tipo rizoma, diagrama, enquanto que a longa é arborescente e centralizada (impressão, engrama, decalque ou foto). A memória curta não é de forma alguma submetida a uma lei de contiguidade ou de imediatidade em relação a seu objeto; ela pode acontecer à distância, vir ou voltar muito tempo depois, mas sempre em condições de descontinuidade, de ruptura e de multiplicidade. Além disto, as duas memórias não se distinguem como dois modos temporais de apreensão da mesma coisa; não é a mesma coisa, não é a mesma recordação, não é também a mesma ideia que elas apreendem. Esplendor de um Ideia curta: escrevese com a memória curta, logo, com ideias curtas, mesmo que se leia e releia com a longa memória dos longos conceitos. A memória curta compreende o esquecimento como processo; ela não se confunde com o instante, mas com o rizoma coletivo, temporal e nervoso. A memória longa (família, raça, sociedade ou civilização)

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Steven Rose, Le cerveau consaent, Ed. du Seuil, p. 97, e sobre a memória, pp. 250 sq.

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decalca e traduz, mas o que ela traduz continua a agir nela, à distância, a contratempo, “intempestivamente”, não instantaneamente. A árvore ou a raiz inspiram uma triste imagem do pensamento que não para de imitar o múltiplo a partir de uma unidade superior, de centro ou de segmento. Com efeito, se se considera o conjunto galhos-raízes, o tronco desempenha o papel de segmento oposto para um dos subconjuntos percorridos de baixo para cima: um tal segmento será um “dipolo de ligação”, diferentemente dos “dipolos-unidades” que formam os raios que emana de um único centro12. Mas as próprias ligações podem proliferar como no sistema radícula, permanecendo no Um-Dois e nas multiplicidades só fingidas. As regenerações, as reproduções, os retornos, as hidras e as medusas não nos fazem também sair disto. Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que comportam centros de significância e de subjetivação, autômatos centrais como memórias organizadas. Acontece que os modelos correspondentes são tais que um elemento só recebe suas informações de uma unidade superior e uma atribuição subjetiva de ligações preestabelecidas. Vê-se bem isso nos problemas atuais de informática e de máquinas eletrônicas, que conservam ainda o mais arcaico pensamento, dado que eles conferem o poder a uma memória ou a um órgão central. Num belo artigo, que denuncia a fabricação de imagens das “arborescências de comando” (sistemas centrados ou estruturas hierárquicas), Pierre Rosenstiehl e Jean Petitot observam: “Admitir o primado das estruturas hierárquicas significa privilegiar as estruturas arborescentes. (...). A forma arborescente admite uma explicação topológica. (...). Num sistema hierárquico, um indivíduo admite somente um vizinho ativo, seu superior hierárquico. (...).

Cf. Julien Pacotte, Le réseau arborescent, schème primordial de Ia pensée, Hermann, 1936. Este livro analisa e desenvolve diversos esquemas da forma de arborescência, que não é apresentada como simples formalismo, mas como “o fundamento real do pensamento formal”. Ele leva ao extremo o pensamento clássico. Recolhe todas as formas do “UnoDois”, teoria do dipolo. O conjunto tronco-raízes-galhos propicia o seguinte esquema:

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Mais recentemente, Michel Serres analisou as variedades e sequências de árvores nos domínios científicos os mais diferentes: como a árvore se forma a partir de uma “rede” (La traduction Ed. de Minuit, pp. 27 sq.; Feux et signaux de brume, Grasset pp. 35 sq)..

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Os canais de transmissão são preestabelecidos: a arborescência preexiste ao indivíduo que nela se integra num lugar preciso” (significância e subjetivação). Os autores assinalam, a esse respeito, que, mesmo quando se acredita atingir uma multiplicidade, pode acontecer que esta multiplicidade seja falsa — o que chamamos tipo radícula — porque sua apresentação ou seu enunciado de aparência não hierárquica não admitem de fato senão uma solução totalmente hierárquica: é o caso do famoso teorema da amizade — “se, numa sociedade, dois indivíduos quaisquer têm exatamente um amigo comum, então existe um indivíduo amigo de todos os outros”. (Como dizem Rosenstiehl e Petitot, quem é o amigo comum? “o amigo universal desta sociedade de casais, mestre, confessor, médico? outras tantas ideias que são estranhamente distantes dos axiomas de partida”, o amigo do gênero humano? ou bem o filósofo como aparece no pensamento clássico, mesmo se é a unidade abortada que valha somente por sua própria ausência ou sua subjetividade, dizendo eu não sei nada, eu não sou nada). Os autores falam, a esse respeito, de teoremas de ditadura. Este é o princípio das árvores-raízes, ou a saída, a solução das radículas, a estrutura do Prover13. A estes sistemas centrados, os autores opõem sistemas a-centrados, redes de autômatos finitos, nos quais a comunicação se faz de um vizinho a um vizinho qualquer, onde as hastes ou canais não preexistem, nos quais os indivíduos são todos intercambiáveis, se definem somente por um estado a tal momento, de tal maneira que as operações locais se coordenam e o resultado final global se sincroniza independente de uma instância central. Uma transdução de estados intensivos substitui a topologia, e “o grafismo que regula a circulação de informação é de algum modo o oposto do grafismo hierárquico... Não há qualquer razão para que esse grafismo seja uma árvore (chamávamos mapa um tal grafismo). Problema da máquina de guerra, ou do Firing Squad: um general é de fato necessário para que n indivíduos cheguem ao mesmo tempo ao momento do disparo? A solução sem general aparece para uma multiplicidade a-centrada que comporta um número finito de estados e de sinais de velocidade correspondente, do ponto de vista de um rizoma de guerra ou de uma lógica da guerrilha, sem decalque, sem cópia de uma ordem central. Demonstra-se mesmo que uma tal multiplicidade, agenciamento

Pierre Rosenstiehl e Jean Petitot, “Automate asocial et systèmes acentrés”, in Communications, n° 22, 1974. Sobre o teorema da amizade, cf. H.S. Wilf, The Friendsbip Theorem in Combinatorial Mathematics, Welsh Academic Press; e, sobre um teorema de mesmo tipo, dito de indecisão coletiva, cf. K.J. Arrow, Choix collectif et préférences individuelles, Calmann-Lévy. 13

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ou sociedade maquínicos, rejeita como “intruso a-social” todo autômato centralizador, unificador14. N, desde então, será sempre n-1. Rosenstiehl e Petitot insistem no fato de que a oposição centro a-centrado vale menos pelas coisas que ela designa do que pelos modos de cálculos que aplica às coisas. Árvores podem corresponder ao rizoma, ou, inversamente, germinar em rizoma. E é verdade geralmente que uma mesma coisa admite os dois modos de cálculos ou os dois tipos de regulação, mas não sem mudar singularmente de estado tanto num caso quanto no outro. Seja, por exemplo, ainda a Psicanálise: não somente em sua teoria, mas em sua prática de cálculo e de tratamento, ela submete o inconsciente a estruturas arborescentes, a grafismos hierárquicos, a memórias recapituladoras, órgãos centrais, falo, árvore-falo. A Psicanálise não pode mudar de método a este respeito: sobre uma concepção ditatorial do inconsciente ela funda seu próprio poder ditatorial. A margem de manobra da Psicanálise é, por isto, muito limitada. Há sempre um general, um chefe, na Psicanálise como em seu objeto (general Freud). Ao contrário, tratando o inconsciente como um sistema a-centrado, quer dizer, como uma rede maquínica de autômatos finitos (rizoma), a esquizo-análise atinge um estado inteiramente diferente do inconsciente. As mesmas observações valem em Linguística; Rosenstiehl e Petitot consideram com razão a possibilidade de uma “organização a-centrada de uma sociedade de palavras”. Para os enunciados como para os desejos, a questão não é nunca reduzir o inconsciente, interpretá-lo ou fazê-lo significar segundo uma árvore. A questão é produzir inconsciente e, com ele, novos enunciados, outros desejos: o rizoma é esta produção de inconsciente mesmo. É curioso como a árvore dominou a realidade ocidental e todo o pensamento ocidental, da botânica à biologia, a anatomia, mas também a gnoseologia, a teologia, a ontologia, toda

Ibid. O caráter principal do sistema a-centrado é que as iniciativas locais são coordenadas independentemente de uma instância central, fazendo-se cálculo no conjunto da rede (multiplicidade). “É por isto que o único lugar onde pode ser constituído um fichário possível das pessoas está entre as próprias pessoas, as únicas capazes de serem portadores de sua descrição e de mantê-la em dia: a sociedade é o único fichário de pessoas. Uma sociedade a-centrada natural rejeita como intruso asocial o autômato centralizador” (p. 62). Sobre o “teorema de Firing Squad”, pp. 51-57. Acontece inclusive que generais, em seu sonho de apropriação das técnicas formais de guerrilha, façam apelo a multiplicidades de “módulos síncronos”, “com base em células leves, numerosas, mas independentes”, comportando teoricamente só um mínimo de poder central e de “modulação hierárquica”: como, por exemplo, Guy Brossollet, Essai sur la non-bataille, Belin, 1975. 14

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a filosofia...: o fundamento-raiz, Grund, roots e fundations. O Ocidente tem uma relação privilegiada com a floresta e com o desmatamento; os campos conquistados no lugar da floresta são povoados de plantas de grãos, objeto de uma cultura de linhagens, incidindo sobre a espécie e de tipo arborescente; a criação, por sua vez, desenvolvida em regime de alqueire, seleciona as linhagens que formam uma arborescência animal. O Oriente apresenta uma outra figura: a relação com a estepe e o jardim (em outros casos, o deserto e o oásis) em vez de uma relação com a floresta e o campo: uma cultura de tubérculos que procede por fragmentação do indivíduo; um afastamento, um pôr entre parênteses a criação confinada em espaços fechados ou relegada à estepe dos nômades. Ocidente, agricultura de uma linhagem escolhida com muitos indivíduos variáveis; Oriente, horticultura de um pequeno número de indivíduos remetendo a uma grande gama de “clones”. Não existiria no Oriente, notadamente na Oceania, algo como que um modelo rizomático que se opõe sob todos os aspectos ao modelo ocidental da árvore? Haudricourt vê aí uma razão da oposição entre as morais ou filosofias da transcendência, caras ao Ocidente, àquelas da imanência no Oriente: o Deus que semeia e que ceifa, por oposição ao Deus que pica e desenterra (picar contra semear15). Transcendência, doença propriamente europeia. E, de resto, não é a mesma música, a terra, não tem aí a mesma música. E também não é a mesma sexualidade: as plantas de grão, mesmo reunindo os dois sexos, submetem a sexualidade ao modelo da reprodução; o rizoma, ao contrário, é uma liberação da sexualidade, não somente em relação à reprodução, mas também em relação à genitalidade. No Ocidente a árvore plantou-se nos corpos, ela endureceu e estratificou até os sexos. Nós perdemos o rizoma ou a erva. Henry Miller: “A China é a erva daninha no canteiro de repolhos da humanidade (....). A erva daninha é a Nêmesis dos esforços humanos. Entre todas as existências imaginárias que nós atribuímos às plantas, aos animais e às estrelas, é talvez a erva daninha aquela que leva a vida mais sábia. É verdade que a erva não produz flores nem porta-aviões, nem Sermões sobre a montanha (....). Mas, afinal de contas, é sempre a erva

Sobre a agricultura ocidental das plantas de grão e a horticultura oriental dos tubérculos, sobre a oposição semear picar, sobre as diferenças em relação à criação animal, cf. Haudricourt, “Domestication des animaux, culture des plantes et traitement d’autrui”, (L’home, 1962) e L’origine des clones et des clans” (L’home, janvier 1964). O milho e o arroz não são objeções: são cereais “adotados tardiamente pelos cultivadores de tubérculos” e tratados de maneira correspondente; é provável que o arroz “tenha aparecido como erva daninha nos sulcos destinados a outras culturas. 15

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quem diz a última palavra. Finalmente, tudo retorna ao estado de China. É isto que os historiadores chamam comumente de trevas da Idade Média. A única saída é a erva (....). A erva existe exclusivamente entre os grandes espaços não cultivados. Ela preenche os vazios. Ela cresce entre e no meio das outras coisas. A flor é bela, o repolho útil, a papoula enlouquece. Mas a erva é transbordamento, ela é uma lição de moral16“. — De que China fala Miller, da antiga, da atual, de uma imaginária, ou bem de uma outra ainda que faria parte de um mapa movediço? É preciso criar um lugar à parte para a América. Claro, ela não está isenta da dominação das árvores e de uma busca das raízes. Vê-se isto até na literatura, na busca de uma identidade nacional, e mesmo de uma ascendência ou genealogia europeias (Kerouac parte em busca de seus ancestrais). O que vale é que tudo o que aconteceu de importante, tudo o que acontece de importante, procede por rizoma americano: beatnik, underground, subterrâneos, bandos e gangues, empuxos laterais sucessivos em conexão imediata com um fora. Diferença entre o livro americano e o livro europeu, inclusive quando o americano se põe na pista das árvores. Diferenças na concepção do livro. “Folhas de erva”. E, no interior da América, não são sempre as mesmas direções: à leste se faz a busca arborescente e o retorno ao velho mundo. Mas o oeste rizomático, com seus índios sem ascendência, seu limite sempre fugidio, suas fronteiras movediças e deslocadas. Todo um “mapa” americano, no oeste, onde até as árvores fazem rizoma. A América inverteu as direções: ela colocou seu oriente no oeste, como se terra tivesse se tornado redonda precisamente na América; seu oeste é a própria franja do leste17. (Não é a Índia, como acreditava

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Henry Miller, Hamlet, Corrêa, pp. 48-49.

Cf. Leslie Fiedler, Le retour du Peau-rouge, Ed. du Seuil. Encontra-se neste livro uma bela análise da geografia, de seu papel mitológico e literário na América e da inversão das direções. A leste, a busca de um código propriamente americano, e também de uma recodificação com a Europa (Henry James, Eliot, Pound etc); a sobrecodificação escravagista no sul, com sua própria ruína e a das plantações na guerra de Secessão (Faulkner, Caldwell); a descodificação capitalista que vem do norte (Dos Passos, Dreiser); mas o papel do oeste, como linha de fuga, onde se conjugam a viagem, a alucinação, a loucura, o índio, a experimentação perceptiva e mental, a mobilidade das fronteiras, o rizoma (Ken Kesey e sua “máquina produtora de enevoante”; a geração beatnik etc).. Cada grande autor americano faz uma cartografia, inclusive por seu estilo; contrariamente ao que acontece na Europa, ele faz um mapa que se conecta diretamente com os movimentos sociais reais que atravessam a América. Por exemplo, a demarcação das direções geográficas em toda a obra de Fitzgerald. 17

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Haudricourt, o intermediário entre o Ocidente e o Oriente, é a América que faz Pivô e mecanismo de inversão). A cantora americana Patti Smith canta a bíblia do dentista americano: não procure a raiz, siga o canal... Não existiriam então duas burocracias e até três (e mais ainda)? A burocracia ocidental: com sua origem agrária, cadastral, as raízes e os campos, as árvores e seu papel de fronteiras, o grande recenseamento de Guilherme, o Conquistador, a feudalidade, a política dos reis da França, assentar o Estado sobre a propriedade, negociar as terras pela guerra, os processos e os casamentos. Os reis da França escolhem o lírio, porque é uma planta com raízes profundas prendendo os talos. Seria a mesma coisa no Oriente? Seguramente, é muito fácil apresentar um Oriente de rizoma e de imanência; mas o Estado não age nele segundo um esquema de arborescência correspondente a classes preestabelecidas, arborificadas e enraizadas: é uma burocracia de canais, por exemplo o famoso poder hidráulico feito de “propriedade fraca”, onde o Estado engendra classes canalizantes e canalizadas (cf. o que nunca foi refutado nas teses de Wittfogel). O déspota age aí como rio, e não como uma fonte que seria ainda um ponto, ponto-árvore ou raiz; ele esposa as águas bem mais do que sentase sob a árvore; e a árvore de Buda torna-se ela mesma rizoma; o rio de Mao Tsé-Tung e a árvore de Luís. Ainda neste caso a América não teria procedido como intermediária? Porque ela age ao mesmo tempo por extermínios, liquidações internas (não somente os índios, mas os fazendeiros etc). e por empuxos sucessivos externos de imigrações. O fluxo do capital produz aí um imenso canal, uma quantificação de poder, com uns “quanta” imediatos onde cada um goza à sua maneira na passagem do fluxo-dinheiro (de onde o mito-realidade do pobre que se torna milionário para tornar-se novamente pobre): tudo se reúne assim, na América, ao mesmo tempo árvore e canal, raiz e rizoma. Não existe capitalismo universal e, em si, o capitalismo existe no cruzamento de toda sorte de formações, ele é sempre por natureza neocapitalismo, ele inventa para o pior sua face de oriente e sua face de ocidente, além de seu remanejamento dos dois. Estamos ao mesmo tempo num mau caminho com todas estas distribuições geográficas. Um impasse, tanto melhor. Se se trata de mostrar que os rizomas têm também seu próprio despotismo, sua própria hierarquia, mais duros ainda, muito bem, porque não existe dualismo, não existe dualismo ontológico aqui e ali, não existe dualismo axiológico do bom e do mau, nem mistura ou síntese americana. Existem nós de arborescência nos rizomas, empuxos rizomáticos nas raízes. Bem mais, existem formações despóticas, de imanência e de canalização,

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próprias aos rizomas. Há deformações anárquicas no sistema transcendente das árvores; raízes aéreas e hastes subterrâneas. O que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como dois modelos: um age como modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas; o outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboça um mapa, mesmo que constitua suas próprias hierarquias, e inclusive ele suscite um canal despótico. Não se trata de tal ou qual lugar sobre a terra, nem de tal momento na história, ainda menos de tal ou qual categoria no espírito. Tratase do modelo que não para de se erigir e de se entranhar, e do processo que não para de se alongar, de romper-se e de retomar. Nem outro nem novo dualismo. Problema de escrita: são absolutamente necessárias expressões anexatas para designar algo exatamente. E de modo algum porque seria necessário passar por isto, nem porque poder-seia proceder somente por aproximações: a anexatidão não é de forma alguma uma aproximação; ela é, ao contrário, a passagem exata daquilo que se faz. Invocamos um dualismo para recusar um outro. Servimo-nos de um dualismo de modelos para atingir um processo que se recusa todo modelo. É necessário cada vez corretores cerebrais que desfaçam os dualismos que não quisemos fazer e pelos quais passamos. Chegar à fórmula mágica que buscamos todos: PLURALISMO = MONISMO, passando por todos os dualismos que constituem o inimigo necessário, o móvel que não paramos de deslocar. Resumamos os principais caracteres de um rizoma: diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reconduzir nem ao Uno nem ao múltiplo. Ele não é o Uno que se torna dois, nem mesmo que se tornaria diretamente três, quatro ou cinco etc. Ele não é um múltiplo que deriva do Uno, nem ao qual o Uno se acrescentaria (n+1). Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades lineares a n dimensões, sem sujeito nem objeto, exibíveis num plano de consistência e do qual o Uno é sempre subtraído (n-1). Uma tal multiplicidade não varia suas dimensões sem mudar de natureza nela mesma e se metamorfosear. Oposto a uma estrutura, que se define por um conjunto de pontos e posições, por correlações binárias entre estes pontos e relações biunívocas

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entre estas posições, o rizoma é feito somente de linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza. Não se deve confundir tais linhas ou lineamentos com linhagens de tipo arborescente, que são somente ligações localizáveis entre pontos e posições. Oposto à árvore, o rizoma não é objeto de reprodução: nem reprodução externa como árvore-imagem, nem reprodução interna como a estrutura-árvore. O rizoma é uma antigenealogia. É uma memória curta ou uma antimemória. O rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou à fotografia, oposto aos decalques, o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga. São os decalques que é preciso referir aos mapas e não o inverso. Contra os sistemas centrados (e mesmo policentrados), de comunicação hierárquica e ligações preestabelecidas, o rizoma é um sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General, sem memória organizadora ou autômato central, unicamente definido por uma circulação de estados. O que está em questão no rizoma é uma relação com a sexualidade, mas também com o animal, com o vegetal, com o mundo, com a política, com o livro, com as coisas da natureza e do artifício, relação totalmente diferente da relação arborescente: todo tipo de “devires”. Um platô está sempre no meio, nem início nem fim. Um rizoma é feito de platôs. Gregory Bateson serve-se da palavra “platô” para designar algo muito especial: uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior. Bateson cita como exemplo a cultura balinense, onde jogos sexuais mãe-filho, ou bem que-relas entre homens, passam por essa estranha estabilização intensiva. “Um tipo de platô contínuo de intensidade substitui o orgasmo”, a guerra ou um ponto culminante. É um traço deplorável do espírito ocidental referir as expressões e as ações a fins exteriores ou transcendentes em lugar de considerá-los num plano de imanência segundo seu valor em si18. Por exemplo, uma vez que um livro é feito de capítulos, ele possui seus pontos culminantes, seus pontos de conclusão.

Bateson, Vers une écologie de 1’esprit, t. 1, Ed. du Seuil, pp. 125-126. Observa-se-á que a palavra “platô” é classicamente empregada no estudo dos bulbos, tubérculos e rizomas: cf. Dictionnaire de botanique de Baillon, artigo “Bulbo”. 18

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Contrariamente, o que acontece a um livro feito de “platôs” que se comunicam uns com os outros através de microfendas, como num cérebro? Chamamos “platô” toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma. Escrevemos este livro como um rizoma. Compusemo-lo com platôs. Demos a ele uma forma circular, mas isto foi feito para rir. Cada manhã levantávamos e cada um de nós se perguntava que platôs ele ia pegar, escrevendo cinco linhas aqui, dez linhas alhures. Tivemos experiências alucinatórias, vimos linhas, como fileiras de formiguinhas, abandonar um platô para ir a um outro. Fizemos círculos de convergência. Cada platô pode ser lido em qualquer posição e posto em relação com qualquer outro. Para o múltiplo, é necessário um método que o faça efetivamente; nenhuma astúcia tipográfica, nenhuma habilidade lexical, mistura ou criação de palavras, nenhuma audácia sintática podem substituí-lo. Estas, de fato, mais frequentemente, são apenas procedimentos miméticos destinados a disseminar ou deslocar uma unidade mantida numa outra dimensão para um livro-imagem. Tecnonarcisismo. As criações tipográficas, lexicais ou sintáticas são necessárias somente quando deixam de pertencer à forma de expressão de uma unidade escondida para se tornarem uma das dimensões da multiplicidade considerada; conhecemos poucas experiências bem-sucedidas neste gênero19. No que nos diz respeito não soubemos fazê-lo. Empregamos somente palavras que, por sua vez, funcionavam para nós como platôs. RIZOMÁTICA = ESQUIZOANÁLISE = ESTRATO ANÁLISE = PRAGMÁTICA = MICROPOLÍTICA. Estas palavras são conceitos, mas os conceitos são linhas, quer dizer, sistemas de números ligados a esta ou àquela dimensão das multiplicidades (estratos, cadeias moleculares, linhas de fuga ou de ruptura, círculos de convergência, etc). De forma alguma pretendemos ao título de ciência. Não reconhecemos nem cientificidade nem ideologia, somente agenciamentos. O que existe são os agenciamentos maquínicos de desejo assim como os agenciamentos coletivos de enunciação. Sem significância e sem subjetivação: escrever a n (toda enunciação individuada permanece prisioneira das significações dominantes, todo desejo significante remete a sujeitos dominados). Um agenciamento em sua multiplicidade trabalha forçosamente, ao mesmo tempo, sobre fluxos semióticos, fluxos materiais e fluxos

É o caso de Joëlle de la Casinière, Absolument nécessaire, Ed. de Minuit, que é um livro verdadeiramente nômade. Na mesma direção, cf. as pesquisas do “Montfaucon Research Center”. 19

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sociais (independentemente da retomada que pode ser feita dele num corpus teórico ou científico). Não se tem mais uma tripartição entre um campo de realidade, o mundo, um campo de representação, o livro, e um campo de subjetividade, o autor. Mas um agenciamento põe em conexão certas multiplicidades tomadas em cada uma destas ordens, de tal maneira que um livro não tem sua continuação no livro seguinte, nem seu objeto no mundo nem seu sujeito em um ou em vários autores. Resumindo, parece-nos que a escrita nunca se fará suficientemente em nome de um fora. O fora não tem imagem, nem significação, nem subjetividade. O livro, agenciamento com o fora contra o livro-imagem do mundo. Um livro rizoma, e não mais dicotômico, pivotante ou fasciculado. Nunca fazer raiz, nem plantar, se bem que seja difícil não recair nos velhos procedimentos. “As coisas que me vêm ao espírito se apresentam não por sua raiz, mas por um ponto qualquer situado em seu meio. Tentem então retê-las, tentem então reter um pedaço de erva que começa a crescer somente no meio da haste e manter-se ao lado”20. Por que é tão difícil? É desde logo uma questão de semiótica perceptiva. Não é fácil perceber as coisas pelo meio, e não de cima para baixo, da esquerda para a direita ou inversamente: tentem e verão que tudo muda. Não é fácil ver a erva nas coisas e nas palavras (Nietzsche dizia da mesma maneira que um aforismo devia ser “ruminado”, e jamais um platô é separável das vacas que o povoam e que são também as nuvens do céu). Escreve-se a história, mas ela sempre foi escrita do ponto de vista dos sedentários, e em nome de um aparelho unitário de Estado, pelo menos possível, inclusive quando se falava sobre nômades. O que falta é uma Nomadologia, o contrário de uma história. No entanto, aí também encontram-se raros e grandes sucessos, por exemplo a propósito de cruzadas de crianças: o livro de Mareei Schwob, que multiplica os relatos como outros tantos de platôs de dimensões variáveis. O livro de Andrzejewski, Les Portes du Paradis, feito de uma única frase ininterrupta, fluxo de crianças, fluxo de caminhada com pisoteamento, estiramento, precipitação, fluxo semiótico de todas as confissões de crianças que vêm declarar-se ao velho monge no início do cortejo, fluxo de desejo e de sexualidade, cada um tendo partido por amor, e mais ou menos diretamente conduzido pelo negro desejo póstumo e pederástico do conde de Vendôme, com círculos de convergência — o importante não é que os fluxos produzam “Uno ou múltiplo”, não estamos mais nessa: há um agenciamento

20

Kafka, Journal, Grasset, p. 4.

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coletivo de enunciação, um agenciamento maquínico de desejo, um no outro, e ligados num prodigioso fora que faz multiplicidade de toda maneira. E depois, mais recentemente, o livro de Armand Farrachi sobre a IV cruzada, La dislocation, em que as frases afastam-se e se dispersam ou bem se empurram e coexistem, e as letras, a tipografia se põe a dançar à medida que a cruzada delira21. Eis modelos de escrita nômade e rizomática. A escrita esposa uma máquina de guerra e linhas de fuga, abandona os estratos, as segmentaridades, a sedentaridade, o aparelho de Estado. Mas por que é ainda necessário um modelo? O livro não seria ainda uma “imagem” das cruzadas? Não existiria ainda uma unidade salvaguardada, como unidade pivotante no caso de Schwob, como unidade abortada no caso de Farrachi, como unidade do Conde mortuária no caso mais belo das Portes du Paradis? Seria necessário um nomadismo mais profundo que aquele das cruzadas, o dos verdadeiros nômades ou ainda o nomadismo daqueles que nem se mexem, e que não imitam nada? Eles agenciam somente. Como encontrará o livro um fora suficiente com a qual ele possa agenciar no heterogêneo, em vez de reproduzir um mundo? Cultural, o livro é forçosamente um decalque: de antemão, decalque dele mesmo, decalque do livro precedente do mesmo autor, decalque de outros livros sejam quais forem as diferenças, decalque interminável de conceitos e de palavras bem situados, reprodução do mundo presente, passado ou por vir. Mas o livro anticultural pode ainda ser atravessado por uma cultura demasiado pesada: dela fará, entretanto, um uso ativo de esquecimento e não de memória, de subdesenvolvimento e não de progresso a ser desenvolvido, de nomadismo e não de sedentarismo, de mapa e não de decalque. RIZOMÁTICA = POP'ANÁLISE, mesmo que o povo tenha outra coisa a fazer do que lê-lo, mesmo que os blocos de cultura universitária ou de pseudocientificidade permaneçam demasiado penosos ou enfadonhos. Porque a ciência seria completamente louca se a deixassem agir; vejam, por exemplo, a matemática: ela não é uma ciência mas uma prodigiosa gíria, e nomádica. Ainda e sobretudo no domínio teórico, qualquer esboço precário e pragmático é melhor do que o decalque de conceitos com seus cortes e seus progressos que nada mudam. A imperceptível ruptura em vez do corte significante. Os nômades inventaram uma

Marcel Schowob, La croisade des enfants, 1986; Jersy Andrzejewski, Les portes du paradis, 1959, Gallimard; Armand Farrachi, La dislocation, 1974, Stock. É a propósito do livro de Schwob que Paul Alphandéry dizia que a literatura, em alguns casos, podia renovar a história e lhe impor “verdadeiras direções de pesquisas” (La chrétienté et 1’idée de croisade, t II, Albin Michel, p. 116). 21

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máquina de guerra contra o aparelho de Estado. Nunca a história compreendeu o nomadismo, nunca o livro compreendeu o fora. Ao longo de uma grande história, o Estado foi o modelo do livro e do pensamento: o logos, o filósofo-rei, a transcendência da Ideia, a interioridade do conceito, a república dos espíritos, o tribunal da razão, os funcionários do pensamento, o homem legislador e sujeito. É pretensão do Estado ser imagem interiorizada de uma ordem do mundo e enraizar o homem. Mas a relação de uma máquina de guerra com o fora não é um outro “modelo”, é um agenciamento que torna o próprio pensamento nômade, que torna o livro uma peça para todas as máquinas móveis, uma haste para um rizoma (Kleist e Kafka contra Goethe). Escrever a n, n-1, escrever por intermédio de slogans: faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha22! Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General em você! Nunca ideias justas, justo uma ideia (Godard). Tenha ideias curtas. Faça mapas, nunca fotos nem desenhos. Seja a Pantera cor-de-rosa e que vossos amores sejam como a vespa e a orquídea, o gato e o babuíno. Diz-se do velho homem rio: He don't plant tatos Don’t plant cotton Them that plants them is soon forgotten But old man river he just keeps rollin along. Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e... e... e...” Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tabula rasa, partir ou repartir de zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento (metódico, pedagógico, iniciático, simbólico...). Kleist, Lenz ou Buchner têm outra maneira de viajar e também de se mover, partir do meio, pelo meio, entrar e sair, não começar nem

Cf. Paul Virilio, “Véhiculaire”, in Nômades et vagabonds, 10-18 p. 43: Sobre o surgimento da linearidade e perturbação da percepção pela velocidade 22

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terminar23. Mas ainda, é a literatura americana, e já inglesa, que manifestaram este sentido rizomático, souberam mover-se entre as coisas, instaurar uma lógica do E, reverter a ontologia, destituir o fundamento, anular fim e começo. Elas souberam fazer uma pragmática. É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio. Tradução de Aurélio Guerra Neto

23

Cf. J.C. Bailly, La legende dispersée, 10-18: a descrição do movimento no romantismo alemão, pp. 18 sq.

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2 1914 UM SÓ OU VÁRIOS LOBOS?

Campos de rastros ou linha de lobo. Naquele dia o Homem dos lobos saiu do divã particularmente cansado. Ele sabia que Freud tinha o talento de tangenciar a verdade, passando ao lado, para, depois, preencher o vazio com associações. Ele sabia que Freud não conhecia nada sobre

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lobos nem tampouco sobre ânus. Freud compreendia somente o que era um cachorro e a cauda de um cachorro. Isso não bastava, não bastaria. O Homem dos lobos sabia que Freud o declararia logo curado, mas que de fato ele não estava, e que ele continuaria a ser tratado eternamente por Ruth, por Lacan, por Leclaire. Ele sabia, enfim, que estava em vias de adquirir um verdadeiro nome próprio, Homem dos lobos, bem mais adequado que o seu, posto que ele acedia à mais alta singularidade na apreensão instantânea de uma multiplicidade genérica: os lobos — mas que este novo, este verdadeiro nome próprio ia ser desfigurado, mal ortografado, retranscrito em patronímico. No entanto, Freud, por sua vez, iria logo escrever algumas páginas extraordinárias. Páginas eminentemente práticas, no artigo de 1915 sobre “O inconsciente”, concernindo à diferença entre neurose e psicose. Freud diz que um histérico ou um obsessivo são pessoas capazes de comparar globalmente uma meia a uma vagina, uma cicatriz à castração etc. Sem dúvida, é ao mesmo tempo que eles apreendem o objeto como global e como perdido. Mas apreender eroticamente a pele como uma multiplicidade de poros, de pontinhos, de pequenas cicatrizes ou de buraquinhos, apreender eroticamente a meia como uma multiplicidade de malhas, eis o que não viria à cabeça de um neurótico, enquanto que o psicótico é disto capaz: “acreditamos que a multiplicidade das pequenas cavidades impediria o neurótico de utilizá-las como substitutos dos órgãos genitais femininos”1. Comparar uma meia a uma vagina, ainda passa, isto é feito todos os dias, mas um puro conjunto de malhas a um campo de vaginas, só mesmo sendo louco: é isto que diz Freud. Há nisto uma descoberta clínica muito importante, que faz toda diferença de estilo entre a neurose e a psicose. Por exemplo, quando Salvador Dali se esforça para reproduzir delírios, ele pode falar longamente sobre o chifre de rinoceronte, mas não abandona nunca um discurso neuropata. No entanto, quando se põe a comparar eriçamento da pele a um campo de minúsculos chifres de rinoceronte, sente-se bem que a atmosfera muda e que se entra na loucura. Trata-se ainda de uma comparação? É, antes, uma pura multiplicidade que muda de elementos ou que devêm. No nível micrológico, as pequenas erupções “tornam-se” chifres e, os chifres, pequenos pênis. Tão logo descobria a maior arte do inconsciente, a arte das multiplicidades moleculares, Freud já retornava às unidades molares, e reencontrava seus temas familiares, o pai,

1

Freud, Métapsychologie, Gallimard, p. 153.

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o pênis, a vagina, a castração... etc. (Na iminência de descobrir um rizoma, Freud retorna sempre às simples raízes). O procedimento de redução é muito interessante no artigo de 1915: ele diz que o neurótico guia suas comparações ou identificações com base em representações de coisas, enquanto que o psicótico tem somente a representação de palavras (por exemplo a palavra buraco). “É a identidade da expressão verbal e não a similitude dos objetos que ditou a escolha do substituto”. Assim, quando não existe unidade da coisa, há pelo menos unidade e identidade da palavra. Pode-se observar que as palavras são tomadas aqui num uso extensivo, quer dizer, funcionam como nomes comuns que asseguram a unificação de um conjunto que elas subsumem. O nome próprio só vem a ser um caso extremo de nome comum, compreendendo nele mesmo sua multiplicidade já domesticada e relacionando-a a um ser ou objeto posto como único. O que é comprometido, tanto do lado das palavras quanto das coisas, é a relação do nome próprio como intensidade com a multiplicidade que ele apreende instantaneamente. Para Freud, quando a coisa explode e perde sua identidade, ainda a palavra aí está para reconduzi-la à identidade ou para inventar-lhe uma. Freud conta com a palavra para restabelecer uma unidade que já não estava nas coisas. Não se assiste aqui ao nascimento de uma aventura ulterior, a do Significante, a instância despótica sorrateira que se põe no lugar dos nomes próprios a-significantes e que também substitui as multiplicidades pela morna unidade de um objeto declarado perdido? Não estamos longe dos lobos, pois o Homem dos lobos é também aquele que em seu segundo episódio, dito psicótico, observará constantemente as variações ou o trajeto movediço dos buraquinhos ou pequenas cicatrizes na pele de seu nariz. Mas no primeiro episódio, que Freud declara neurótico, o Homem dos lobos conta que sonhou com seis ou sete lobos em cima de uma árvore e desenhou apenas cinco. Quem ignora efetivamente que os lobos andam em matilha? Ninguém, exceto Freud. O que qualquer criança sabe, Freud não sabe. Freud pergunta com um falso escrúpulo: como explicar que haja cinco, seis ou sete lobos no sonho? Posto que ele decidiu tratar-se de neurose, Freud emprega então outro procedimento de redução: não mais subjunção verbal no nível da representação de palavra, mas associação livre no nível das representações de coisas. O resultado é o mesmo, pois trata-se sempre de retornar à unidade, à identidade da pessoa ou do objeto supostamente perdido. Eis que os lobos deverão purgar-se de sua multiplicidade. A operação é feita pela associação do sonho com o conto O lobo e os sete cabritinhos (dos quais somente seis foram comidos). Assiste se ao júbilo redutor de Freud, vêse literalmente a multiplicidade sair dos

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lobos para afetar cabritinhos que não têm estritamente nada a ver com a história. Sete lobos que são apenas cabritinhos; seis lobos, posto que o sétimo cabritinho (o Homem dos lobos em pessoa) esconde-se no relógio; cinco lobos, posto que talvez tenha sido às cinco horas que ele viu seus pais fazendo amor e que o algarismo romano V está associado à abertura erótica das pernas femininas, três lobos, posto que os pais fizeram amor três vezes; dois lobos, posto que eram os dois pais more ferarum, ou mesmo dois cães que a criança, antes, teria visto copularem; depois, um lobo, posto que o lobo é o pai, o que já sabia desde o início; finalmente, zero lobo, posto que ele perdeu sua cauda, não menos castrado do que castrador. Zomba-se de quem? Os lobos não tinham qualquer chance de se salvar, de salvar sua matilha: decidiu-se desde o início que os animais podiam servir apenas para representar um coito entre pais, ou, ao contrário, para serem representados por um tal coito. Manifestamente, Freud ignora tudo sobre a fascinação exercida pelos lobos, do que significa o apelo mudo dos lobos, o apelo por devir-lobo. Lobos observam e fixam a criança que sonha; é tão mais tranquilizador dizer que o sonho produziu uma inversão e que a criança é quem olha cães ou pais fazendo amor. Freud conhece somente o lobo ou o cão edipianizado, o lobo-papai castrado castrador, o cão de casinha, o au-au do psicanalista. Franny ouve uma emissão sobre lobos. Eu lhe digo: gostarias de ser um lobo? Resposta altiva — é idiota, não se pode ser um lobo, mas sempre oito ou dez lobos, seis ou sete lobos. Não seis ou sete lobos ao mesmo tempo, você, sozinho, mas um lobo entre outros, junto com cinco ou seis outros lobos. O que é importante no devir-lobo é a posição de massa e, primeiramente, a posição do próprio sujeito em relação à matilha, em relação à multiplicidade-lobo, a maneira de ele aí entrar ou não, a distância a que ele se mantém, a maneira que ele tem de ligar-se ou não à multiplicidade. Para atenuar a severidade de sua resposta, Franny conta um sonho: “Há o deserto. Não teria ainda qualquer sentido dizer que eu estou no deserto. É uma visão panorâmica do deserto. Este deserto não é trágico nem desabitado, ele é deserto só por sua cor, ocre, e sua luz quente e sem sombra. Aí dentro uma multidão fervilhante, enxame de abelhas, confusão de jogadores de futebol ou grupo de tuaregues. Estou na borda desta multidão, na periferia; mas pertenço a ela, a ela estou ligado por uma extremidade de meu corpo, uma mão ou um pé. Sei que esta periferia é o meu único lugar possível, eu morreria se me deixasse levar ao centro da confusão, mas também, certamente, se eu abandonasse a multidão. Não é fácil conservar minha posição; na verdade é muito difícil mantê-la, porque

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estes seres não param de se mexer, seus movimentos são imprevisíveis e não correspondem a qualquer ritmo. Às vezes eles giram, às vezes vão em direção ao norte, depois, bruscamente, em direção ao leste e nenhum dos indivíduos que compõem a multidão permanece num mesmo lugar em relação aos outros. Consequentemente, encontro-me também permanentemente móvel; tudo isto exige uma grande tensão, mas me dá um sentimento de felicidade violenta, quase vertiginosa”. É um excelente sonho esquizofrênico. Estar inteiramente na multidão e ao mesmo tempo completamente fora, muito longe: borda, passeio à Virgínia Woolf (“nunca mais direi sou isto, sou aquilo”). Problemas de povoamento no inconsciente: tudo o que se passa pelos poros do esquizo, as veias do drogado, formigamentos, fervilhamentos, animações, intensidades, raças e tribos. Seria de Jean Ray, que soube ligar o terror aos fenômenos de micromultiplicidades, este conto no qual a pele branca se eriça em inúmeras erupções e pústulas e cabeças negras anãs passam pelos poros fazendo caretas, abomináveis, que havia necessidade de raspar com uma faca a cada manhã? E também as “alucinações liliputeanas”, com éter. Um, dois, três esquizos: “Em cada poro da pele brotam-me bebês” — “Oh!, quanto a mim não é nos poros, mas nas veias que nascem pequenas barras de ferro” — “Eu não quero que me deem injeções, salvo com álcool canforado. Senão seios me nascem em cada poro”. Freud tentou abordar os fenômenos de multidão desde o ponto de vista do inconsciente, mas ele não viu bem, não via que o inconsciente era antes de mais nada uma multidão. Ele estava míope e surdo, confundia multidões com uma pessoa. Os esquizos, ao contrário têm o olho e a orelha agudos. Eles não confundem os rumores e as impulsões da multidão com a voz de papai. Jung, certa vez, sonhou com ossos e crânios. Um osso, um crânio, nunca existem sozinhos. O ossuário é uma multiplicidade. Mas Freud quer que isto signifique a morte de alguém. “Jung, surpreso, leva-o a observar que havia vários crânios, não somente um. Mas Freud continuava...2“. Uma multiplicidade de poros, de pontos negros, de pequenas cicatrizes ou de malhas, seios, bebês e barras. Uma multiplicidade de abelhas, de jogadores de futebol ou de tuaregues. Uma multiplicidade de lobos, de chacais... Nada disto se deixa reduzir, mas nos remete a um certo estatuto das formações do inconsciente. Tentemos definir os fatores que intervém aqui: primeiramente, algo que desempenha o papel de corpo pleno — corpo sem órgãos. É o deserto no sonho precedente. É a árvore despojada na qual os lobos estão empoleirados no sonho do Homem dos

2

E. A. Bennet, Ce que Jung a vraiment dit, Stock, p. 80.

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Lobos. É a pele como invólucro ou anel, a meia como superfície reversível. Pode ser uma casa, um cômodo de casa, tantas coisas ainda, qualquer coisa. Ninguém faz amor com amor sem constituir para si, sozinho, com outro ou com outros, um corpo sem órgãos. Um corpo sem órgãos não é um corpo vazio e desprovido de órgãos, mas um corpo sobre o qual o que serve de órgãos (lobos, olhos de lobos, mandíbulas de lobos?) se distribui segundo movimentos de multidões, segundo movimentos brownóides, sob forma de multiplicidades moleculares. O deserto é povoado. Ele se opõe menos aos órgãos do que a uma organização que compõe um organismo com eles. O corpo sem órgãos não é um corpo morto, mas um corpo vivo, e tão vivo e tão fervilhante que ele expulsou o organismo e sua organização. Piolhos saltam na praia do mar. As colônias da pele. O corpo pleno sem órgãos é um corpo povoado de multiplicidades. E o problema do inconsciente, seguramente, nada tem a ver com a geração, mas com o povoamento, com a população. Um caso de população mundial sobre o corpo pleno da terra e não de geração familiar orgânica. “Adoro inventar povoações, tribos, as origens de uma raça... Retorno de minhas tribos. Sou, até o dia de hoje, o filho adotivo de quinze tribos, nem mais nem menos. E estas são minhas tribos adotivas, porque eu amo cada uma mais e melhor do que se eu tivesse nascido nelas”. Dizem-nos: Mas, afinal de contas, o esquizofrênico tem um pai e uma mãe? Lamentamos dizer que não, que ele não os tem como tal. Ele tem somente um deserto e tribos que nele habitam, um corpo pleno e multiplicidades que nele se ligam. Disto ocorre, em segundo lugar, a natureza destas multiplicidades e de seus elementos. O RIZOMA. Uma das características essenciais do sonho de multiplicidade é a de que cada elemento não para de variar e modificar sua distância em relação aos outros. No nariz do Homem dos lobos, os elementos não pararão de dançar, crescer e diminuir, determinados como poros na pele, pequenas cicatrizes nos poros, pequenos sulcos no tecido cicatricial. Ora, essas distâncias variáveis não são quantidades extensivas que se dividiriam uma nas outras, mas são, sobretudo, indivisíveis, “relativamente indivisíveis, isto é, que não se dividem aquém ou além de um certo limiar, não aumentam ou não diminuem sem que seus elementos mudem de natureza. Enxame de abelhas, ei-las, confusão de jogadores de futebol com malhas riscadas, ou, então, bando de tuaregues. Ou ainda: o clã dos lobos é duplicado por um enxame de abelhas contra o bando dos Deulhs, sob a ação de Mowgli que corre pela borda (ah sim, Kipling compreendia melhor do que Freud o apelo dos lobos, seu sentido

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libidinal; de resto, no Homem dos lobos há também uma história de vespas ou borboletas que vêm revezar com os lobos, passando-se dos lobos às vespas). Mas o que quer dizer isto, estas distâncias indivisíveis que se modificam incessantemente e que não se dividem ou não se modificam sem que seus elementos mudem a cada vez de natureza? Não será já o caráter intensivo dos elementos e de suas relações neste gênero de multiplicidade? Exatamente como uma velocidade e uma temperatura: não se compõem de velocidades ou temperaturas, mas envolvem-se noutras ou envolvem outras que marcam cada vez uma mudança de natureza. É porque estas multiplicidades não têm o princípio de sua matéria num meio homogêneo, mas em outro lugar, nas forças que agem nelas, nos fenômenos físicos que as ocupam, precisamente na libido que as constituem de dentro e que não as constituem sem se dividir em fluxos variáveis e qualitativamente distintos. Freud mesmo reconhece a multiplicidade das correntes” libidinais que coexistem no Homem dos lobos. Espanta-nos mais ainda, por isto, a maneira pela qual ele trata as multiplicidades do inconsciente. Porque, para ele, haverá sempre redução ao Uno: as pequenas cicatrizes, os buraquinhos, serão as subdivisões da grande cicatriz ou do buraco maior chamado castração. Os lobos serão os substitutos de um único e mesmo Pai que se encontra em toda parte, tantas vezes quanto quisermos (como diz Ruth Mack Brunswick, vamos, os lobos, são “todos os pais e os doutores” mas o Homem dos lobos pensa: e meu eu, não é um lobo?). Seria preciso fazer o inverso, seria preciso compreender em intensidade: o Lobo é a matilha, quer dizer, a multiplicidade apreendida como tal em um instante, por sua aproximação e seu distanciamento de zero — distâncias sempre indecomponíveis. O zero é o corpo sem órgãos do Homem dos lobos. Se o inconsciente não conhece negação é porque nada há de negativo no inconsciente, mas aproximações e distanciamentos indefinidos do ponto zero, o qual não exprime de forma alguma a falta, mas a positividade do corpo pleno como suporte e suposto (porque “um afluxo é necessário para tão-somente significar a ausência de intensidade”). Os lobos designam uma intensidade, uma faixa de intensidade, um limiar de intensidade sobre o corpo sem órgãos do Homem dos lobos. Um dentista dizia ao Homem dos lobos “seus dentes cairão, por causa de sua mordida, sua mordida é muito forte” — e, ao mesmo tempo suas gengivas cobriam-se de pústulas e de buraquinhos3. O maxilar como

Ruth Mack Brunswick, “En supplément à l’Histoire d’une névrose infantile de Freud”, Revue Française de Psycbanalise, 1936, n” 04. 3

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intensidade superior, os dentes como intensidade inferior e as gengivas pustulentas como aproximação de zero. O lobo como apreensão instantânea de uma multiplicidade em tal região não é um representante, um substituto, é um eu sinto. Sinto que me transformo em lobo, lobo entre lobos, margeando lobos, e o grito de angústia, o único que Freud ouve: ajude-me a não tornar-me lobo (ou, a contrário, a não fracassar neste devir). Não se trata de representação: não acreditar que se é um lobo, representar-se como lobo. O lobo, os lobos são intensidades, velocidades, temperaturas, distâncias variáveis indecomponíveis. É um formigamento, uma inflamação. E quem pode acreditar que a máquina anal nada tenha a ver com a máquina dos lobos, ou que os dois estejam somente ligados pelo aparelho edipiano, pela figura demasiado humana do Pai? Porque, enfim, o ânus também exprime uma intensidade, aqui a aproximação de zero da distância que não se decompõe sem que os elementos mudem de natureza. Campo de ânus assim como matilha de lobos. E não é pelo ânus que o menino está ligado aos lobos, à periferia? Descida do maxilar ao ânus. Unir-se aos lobos pelo maxilar e pelo ânus. Um maxilar não é uma mandíbula, não é tão simples, mas maxilar e lobo formam uma multiplicidade que se modifica no olho e lobo, ânus e lobo, segundo outras distâncias, conforme outras velocidades, com outras multiplicidades, nos limites de limiares. Linhas de fuga ou de desterritorialização, devir-lobo, devir-inumano, intensidades desterritorializadas — é isto a multiplicidade. Devir-lobo, devir-buraco, é desterritorializar-se segundo linhas distintas emaranhadas. Um buraco não é mais negativo do que um lobo. A castração, a falta, o substituto, que história contada por um idiota demasiado consciente e que nada compreende a respeito das multiplicidades entendidas como formações do inconsciente. Um lobo, mas também um buraco, são partículas do inconsciente, apenas partículas, produções de partículas, trajetos de partículas, consideradas como elementos de multiplicidades moleculares. Não basta nem mesmo dizer que as partículas intensas e movediças passam por buracos; um buraco é tão partícula quanto o que por ele passa. Os físicos dizem: os buracos não são ausências de partículas, mas partículas que andam mais rápido do que a luz. Ânus voadores, vaginas rápidas, não existe a castração. Voltemos a esta história de multiplicidade, porque foi um momento muito importante quando foi criado tal substantivo, precisamente para escapar da oposição abstrata entre o múltiplo e o uno, para escapar da dialética, para chegar a pensar o múltiplo em estado puro, para deixar de fazer dele o fragmento numérico de uma Unidade ou Totalidade perdidas ou, ao contrário, o elemento orgânico

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de uma unidade ou totalidade por vir — e, sobretudo, para distinguir tipos de multiplicidade. É assim que se encontra no matemático-físico Riemman a distinção entre multiplicidades discretas e multiplicidades contínuas (sendo que estas últimas encontram o princípio de sua métrica tão-somente nas forças que agem sobre elas). Encontra-se depois em Meinong e em Russel a distinção entre multiplicidades de grandeza ou divisibilidade, extensivas, e multiplicidades de distância, mais próximas do intensivo. Ou ainda, em Bergson, encontra-se a distinção entre multiplicidades numéricas ou extensas e multiplicidades qualitativas e de duração. Nós fazemos aproximadamente a mesma coisa, distinguindo multiplicidades arborescentes e multiplicidades rizomáticas. Macro e micromultiplicidades. De um lado, as multiplicidades extensivas, divisíveis e molares; unificáveis, totalizáveis, organizáveis; conscientes ou préconscientes — e, de outro, as multiplicidades libidinais inconscientes, moleculares, intensivas, constituídas de partículas que não se dividem sem mudar de natureza, distâncias que não variam sem entrar em outra multiplicidade, que não param de fazer-se e desfazer-se, comunicando, passando umas nas outras no interior de um limiar, ou além ou aquém. Os elementos destas últimas multiplicidades são partículas; suas correlações são distâncias; seus movimentos são brownóides; sua quantidade são intensidades, são diferenças de intensidade. Existe aí apenas uma base lógica. Elias Canetti distingue dois tipos de multiplicidade que às vezes se opõem e às vezes se penetram: de massa e de matilha. Entre os caracteres de massa, no sentido de Canetti, precisa-se notar a grande quantidade, a divisibilidade e a igualdade dos membros, a concentração, a sociabilidade do conjunto, a unicidade da direção hierárquica, a organização de territorialização, a emissão de signos. Entre os caracteres de matilha, a exiguidade ou a restrição do número, a dispersão, as distâncias variáveis indecomponíveis, as metamorfoses qualitativas, as desigualdades como restos ou ultrapassagens, a impossibilidade de uma totalização ou de uma hierarquização fixas, a variedade browniana das direções, as linhas de desterritorialização, a projeção de partículas4. Sem dúvida, não existem mais igualdade e nem menos hierarquia nas matilhas do que nas massas, mas elas não são as mesmas. O chefe de matilha ou de bando arrisca a cada vez, ele deve colocar tudo em jogo a cada vez, enquanto que o chefe de grupo ou de massa consolida e capitaliza aquisições. A matilha, mesmo em seus lugares,

Elias Canetti, Masse et Puissance, Gallimard, pp. 27-29, 97 sq. Algumas das diferenças indicadas acima são assinaladas por Canetti. 4

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constitui-se numa linha de fuga ou de desterritorialização que faz parte dela mesma, linha a que ela dá um elevado valor positivo, ao passo que as massas só integram tais linhas para segmentarizá-las, bloqueá-las, afetá-las com um signo negativo. Canetti observa que, na matilha, cada um permanece só, estando no entanto com os outros (por exemplo, os lobos-caçadores); cada um efetua sua própria ação ao mesmo tempo em que participa do bando. “Nas constelações cambiantes da matilha, o indivíduo se manterá sempre em sua periferia. “Ele estará dentro e, logo depois, na borda, na borda e, logo após, dentro. Quando a matilha se põe em círculo ao redor de seu fogo cada um poderá ter vizinhos à direita e à esquerda, mas as costas estão livres, as costas estão expostas à natureza selvagem”. Reconhece-se a posição esquizo, estar na periferia, manter-se ligado por uma mão ou um pé... Opor-se-á a isto a posição paranoica do sujeito de massa, com todas as identificações do indivíduo ao grupo, do grupo ao chefe, do chefe ao grupo; estar bem fundido com a massa, aproximar-se do centro, nunca ficar na periferia, salvo prestando serviço sob comando. Por que supor (com Konrad Lorenz, por exemplo) que os bandos e seu tipo de camaradagem representam um estado mais rudimentar, evolutivamente, do que as sociedades de grupo ou de conjugalidade? Não somente existem bandos humanos, como também, entre eles, alguns particularmente refinados: a “mundanidade” distingue-se da “socialidade” porque está mais próxima de uma matilha, e o homem social tem do mundano uma certa imagem invejosa e errônea, porque desconhece as posições e as hierarquias próprias, as relações de força, as ambições e os projetos bastante especiais. As correlações mundanas jamais recobrem as correlações sociais, não coincidem com estas. Inclusive os “maneirismos” (existem em todos os bandos) pertencem às micromultiplicidades e distinguem-se das maneiras ou costumes sociais. Não se trata, no entanto, de opor os dois tipos de multiplicidades, as máquinas molares e moleculares, segundo um dualismo que não seria melhor que o do Uno e do múltiplo. Existem unicamente multiplicidades de multiplicidades que formam um mesmo agenciamento, que se exercem no mesmo agenciamento: as matilhas nas massas e inversamente. As árvores têm linhas rizomáticas, mas o rizoma tem pontos de arborescência. Como não seria necessário um enorme ciclotron para produzir partículas enlouquecidas? Como é que linhas de desterritorialização seriam assinaláveis fora de circuitos de territorialidade? Como supor que o fluir abrupto do minúsculo riacho de uma intensidade nova se faça fora das grandes extensões e em relação com grandes transformações nestas extensões? Quanto esforço para fazer eclodir um novo som? O devir-animal,

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o devir-molecular, o devir-inumano passam por uma extensão molar, uma hiper-concentração humana, ou as prepara. Impossível separar em Kafka a ereção de uma grande máquina burocrática paranoica e a instalação de pequenas máquinas esquizo de um devir-cão, de um devir-coleóptero. Impossível separar, no Homem dos lobos, o devir-lobo do sonho e a organização religiosa e militar das obsessões. Um militar imita o lobo, um militar imita o cão. Não há duas multiplicidades ou duas máquinas, mas um único e mesmo agenciamento maquínico que produz e distribui o todo, isto é, o conjunto dos enunciados que correspondem ao “complexo”. Sobre tudo isto o que é que a Psicanálise tem a nos dizer? Édipo, nada mais do que Édipo, posto que ela não escuta nada nem ninguém. Ela esmaga tudo, massa e matilhas, máquinas molares e moleculares, multiplicidades de todo tipo. Por exemplo, o segundo sonho do Homem dos lobos, no momento do episódio dito psicótico: numa rua, uma parede, com uma porta fechada e, à esquerda, um armário vazio; o paciente diante do armário e uma mulher grande com uma pequena cicatriz que parece querer contornar a parede; e, atrás da parede, lobos que se empurram contra a porta. Mme. Brunswick, inclusive ela, não consegue enganar-se: por mais que ela se reconheça e identifique com a mulher grande, ela vê bem que os lobos são desta vez Bolcheviques, a massa revolucionária que esvaziou o armário ou confiscou a fortuna do Homem dos lobos. Em estado metastável os lobos passaram para o lado de uma grande máquina social. Mas a Psicanálise não tem nada a dizer sobre todos estes pontos — salvo o que já dizia Freud: tudo isto remete ainda ao papai (vejam, ele era um dos chefes do partido liberal na Rússia, mas isto não tem importância, basta dizer que a revolução “satisfaz o sentimento de culpa do paciente”). Realmente, acreditava-se que a libido, em seus investimentos e seus contra-investimentos, nada tinha a ver com a agitação das massas, os movimentos das matilhas, os signos coletivos e as partículas do desejo. Não basta então atribuir ao pré-consciente as multiplicidades molares ou as máquinas de massa, reservando para o inconsciente um outro gênero de máquinas ou de multiplicidades, porque o que pertence de todo modo ao inconsciente é o agenciamento dos dois, a maneira pela qual as primeiras condicionam as segundas e pela qual as segundas preparam as primeiras, ou delas escapam, ou a elas voltam: a libido tudo engloba. Estar atento a tudo ao mesmo tempo: à maneira pela qual uma máquina social ou uma massa organizada tem um inconsciente molecular que não marca unicamente sua tendência à decomposição, mas componentes atuais de seu próprio exercício e de sua própria organização; à maneira pela qual um indivíduo tal ou qual, tomado numa massa,

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tem ele mesmo um inconsciente de matilha que não se assemelha necessariamente às matilhas da massa da qual ele faz parte; à maneira pela qual um indivíduo ou uma massa vão viver em seu inconsciente as massas e as matilhas de uma outra massa ou de um outro indivíduo. O que quer dizer amar alguém? É sempre apreendê-lo numa massa, extraí-lo de um grupo, mesmo restrito, do qual ele participa, mesmo que por sua família ou por outra coisa; e depois buscar suas próprias matilhas, as multiplicidades que ele encerra e que são talvez de uma natureza completamente diversa. Ligá-las às minhas, fazêlas penetrar nas minhas e penetrar as suas. Núpcias celestes, multiplicidades de multiplicidades. Não existe amor que não seja um exercício de despersonalização sobre um corpo sem órgãos a ser formado; e é no ponto mais elevado desta despersonalização que alguém pode ser nomeado, recebe seu nome ou seu prenome, adquire a discernibilidade mais intensa na apreensão instantânea dos múltiplos que lhe pertencem e aos quais ele pertence. Multiplicidade de sardas sobre um rosto, multiplicidade de jovens rapazes falando na voz de uma mulher, ninhada de meninas na voz de M. de Charlus, horda de lobos na garganta de alguém, multiplicidade de ânus no ânus, a boca ou o olho sobre o qual a gente se inclina. Cada um passa por tantos corpos em cada um. Albertine é lentamente extraída de um grupo de moças que tem seu número, sua organização, seu código, sua hierarquia; e não somente todo um inconsciente envolve este grupo e esta massa restrita, como Albertine tem suas próprias multiplicidades, que o narrador, tendo-a isolado, descobre sobre seu corpo e em suas mentiras — até o momento no qual o fim do amor a restitui ao indiscernível. Trata-se, sobretudo, de não acreditar que basta distinguir massa e grupos exteriores dos quais alguém participa ou a que pertence e conjuntos internos que ele envolveria em si. A distinção não é absolutamente a do exterior e do interior, sempre relativos e cambiantes, intervertíveis, mas a dos tipos de multiplicidades que coexistem, se penetram e mudam de lugar — máquinas, maquinismos, motores e elementos que intervém em dado momento para formar um agenciamento produtor de enunciado: eu te amo (ou outra coisa). Para Kafka ainda, Felice é inseparável de uma certa máquina social e das máquinas parláfonas cuja firma ele representa; como não pertenceria ela a esta organização, aos olhos de Kafka fascinado por comércio e burocracia? Mas, ao mesmo tempo, os dentes de Felice, os grandes dentes carnívoros, fazem-na correr seguindo outras linhas, nas multiplicidades moleculares de um devir-cão, de um devir-chacal... Felice, inseparável ao mesmo tempo do signo das máquinas sociais modernas, que são as suas e as de Kafka (não as

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mesmas), e das partículas, das pequenas máquinas moleculares, de todo o estranho devir, do trajeto que Kafka vai fazer e levá-la a fazer através de seu perverso aparelho de escrita. Não existe enunciado individual, mas agenciamentos maquínicos produtores de enunciados. Dizemos que o agenciamento é fundamentalmente libidinal e inconsciente. É ele, o inconsciente em pessoa. Por enquanto vemos aí elementos (ou multiplicidades) de vários tipos: máquinas humanas, sociais e técnicas, molares organizadas; máquinas moleculares, com suas partículas de devir-inumano; aparelhos edipianos (pois sim, claro, existem enunciados edipianos, e muitos); aparelhos contra-edipianos, de marcha e funcionamento variáveis. Veremos mais tarde. Não podemos nem mesmo mais falar de máquinas distintas, mas somente de tipos, de multiplicidades que se penetram e formam em dado momento um único e mesmo agenciamento maquínico, figura sem rosto da libido. Cada um de nós é envolvido num tal agenciamento, reproduz o enunciado quando acredita falar em seu nome, ou antes fala em seu nome quando produz o enunciado. Como estes enunciados são estranhos, verdadeiros discursos de loucos. Dizíamos Kafka, poderíamos dizer da mesma forma o Homem dos lobos: uma máquina religiosa militar que Freud assimila à neurose obsessiva — uma máquina anal de matilha ou de devir-lobo, e também vespa ou borboleta que Freud assimila ao caráter histérico — um aparelho edipiano do qual Freud faz o único motor, o motor imóvel a ser encontrado em todo lugar — um aparelho contra-edipiano (o incesto com a irmã, incesto-esquizo, ou bem o encontro amoroso com as “pessoas de condição inferior”, ou bem a analidade, a homossexualidade?), todas estas coisas nas quais Freud vê só substitutos, regressões e derivados de Édipo. Na verdade, Freud nada vê e nada compreende. Ele não tem qualquer ideia do que seja um agenciamento libidinal com todas as maquinarias postas em jogo, todos os amores múltiplos. É claro que existem enunciados edipianos. Pode-se ler assim, por exemplo, o conto de Kafka, Chacais e Árabes: é sempre possível, nada se arrisca, a coisa funciona sempre, mesmo que nada se compreenda. Os árabes são claramente referidos ao pai, os chacais à mãe: entre os dois, toda uma história de castração, representada pelas tesouras enferrujadas. Mas acontece que os árabes são uma massa organizada, armada, extensiva, espalhada em todo o deserto; e os chacais são uma matilha intensa que não para de entranhar-se no deserto, seguindo linhas de fuga ou desterritorialização (“são loucos, verdadeiros loucos”); entre os dois, na borda, o Homem do Norte, o Homem dos chacais. E as grandes tesouras? Não se teria aqui o signo árabe, que guia ou libera as partículas-chacal, tanto para acelerar sua corrida

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louca, destacando-as da massa, quanto para reconduzi-las a esta massa, domá-las e chicoteá-las, fazê-las dar voltas? Aparelho edipiano da comida, o camelo morto; aparelho contra-edipiano da carniça: matar os animais para comer, ou comer para limpar as carniças. Os chacais colocam bem o problema: não é um problema de castração, mas de “limpeza”, a prova do deserto-desejo. Quem ganhará, a territorialidade de massa ou a desterritorialização de matilha, a libido banhando todo o deserto como corpo sem órgãos onde se passa o drama? Não existe enunciado individual, nunca há. Todo enunciado é o produto de um agenciamento maquínico, quer dizer, de agentes coletivos de enunciação (por “agentes coletivos” não se deve entender povos ou sociedades, mas multiplicidades). Ora, o nome próprio não designa um indivíduo: ao contrário, quando o indivíduo se abre às multiplicidades que o atravessam de lado a lado, ao fim do mais severo exercício de despersonalização, é que ele adquire seu verdadeiro nome próprio. O nome próprio é a apreensão instantânea de uma multiplicidade. O nome próprio é o sujeito de um puro infinitivo compreendido como tal num campo de intensidade. O que Proust diz do prenome: pronunciando Gilberte, eu tinha a impressão de tê-la nua inteira em minha boca. O Homem dos lobos, verdadeiro nome próprio, íntimo prenome que remete aos devires, infinitivos, intensidades de um indivíduo despersonalizado e multiplicado. Mas o que a Psicanálise compreende da multiplicação? A hora do deserto, na qual o dromedário torna-se mil dromedários gargalhando no céu. A hora da tarde na qual mil buracos se abrem na superfície da terra. Castração, castração, grita o espantalho psicanalítico que nunca viu senão um buraco, um pai, um cão, lá onde existem lobos; que só viu um indivíduo domesticado lá onde existem multiplicidades selvagens. Não se reprova a Psicanálise só por ter selecionado enunciados edipianos, pois estes enunciados, numa certa medida, ainda fazem parte de um agenciamento maquínico em relação ao qual eles poderiam servir de índices a corrigir, como num cálculo de erros. Reprova-se a Psicanálise por ter se servido da enunciação edipiana para levar o paciente a acreditar que ele ia produzir enunciados pessoais, individuais, que ele ia finalmente falar em seu nome. Ora, tudo é uma armadilha desde o início: nunca o Homem dos lobos poderá falar. Ele pode falar o que quiser dos lobos, gritar como um lobo Freud nem escuta, olha seu cão e responde “é papai”. Enquanto isto dura, Freud diz que se trata de neurose, quando a coisa quebra, é psicose. O Homem dos lobos receberá a medalha psicanalítica por serviços prestados à causa, e até pensão alimentícia como as que se dá aos antigos combatentes mutilados. Não teria podido falar em seu nome a não ser que

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se houvesse posto às claras o agenciamento maquínico que produzia nele tais ou tais enunciados. Mas não se trata disto em Psicanálise: no mesmo momento em que se persuade o sujeito de que ele vai proferir seus enunciados mais individuais, retira-se-lhe toda condição de enunciação. Calar as pessoas, impedi-las de falar, e, sobretudo, quando elas falam, fazer de conta que não disseram nada: famosa neutralidade psicanalítica. O Homem dos lobos continua a gritar: seis ou sete lobos! Freud responde: o quê? Cabritinhos? Como é interessante, eu retiro os cabritos, sobra um lobo, é pois teu pai... Eis por que o Homem dos lobos sente-se tão cansado: ele permanece deitado com todos os seus lobos na garganta e todos os buraquinhos sobre seu nariz, todos estes valores libidinais sobre seu corpo sem órgãos. A guerra vai chegar, os lobos tornar-se-ão bolcheviques, o Homem permanece sufocado por tudo o que ele tinha a dizer. Anunciarão somente que ele voltou a ser bem-educado, polido, resignado, “honesto e escrupuloso”; numa palavra, curado. Ele se vinga, lembrando que a Psicanálise carece de uma visão verdadeiramente zoológica: “Nada pode ter mais valor para um jovem do que o amor pela natureza e a compreensão das ciências naturais, em particular da Zoologia”5. Tradução de Aurélio Guerra Neto

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Carta citada por Roland Jaccard, L ‘bomme aux loups, Ed. Universitaires, p. 113.

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3 10.000 A.C. A GEOLOGIA DA MORAL (QUEM A TERRA PENSA QUE É?)

Dupla articulação O professor Challenger, aquele que fez a Terra berrar como uma máquina dolorífera, nas condições descritas por Conan Doyle*, depois de misturar vários manuais de geologia e biologia, segundo seu humor simiesco, fez conferência. Explicou que a Terra — a Desterritorializada, a Glaciária, a Molécula gigante — era um corpo sem órgãos. Esse corpo sem órgãos era atravessado por

O professor Challenger é um personagem criado por Arthur Conan Doyle que aparece em várias de suas obras de ficção científica, como o livro The Lost World (1912) e o conto “When the World Screamed” (1928) (N. da T.). *

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matérias instáveis não-formadas, fluxos em todos os sentidos, intensidades livres ou singularidades nômades, partículas loucas ou transitórias. Mas, no momento, essa ainda não era a questão. Pois, ao mesmo tempo, produzia-se na terra um fenômeno muito importante, inevitável, benéfico sob certos aspectos, lamentável sob muitos outros: a estratificação. Os estratos eram Camadas, Cintas. Consistiam em formar matérias, aprisionar intensidades ou fixar singularidades em sistemas de ressonância e redundância, constituir moléculas maiores ou menores no corpo da terra e incluir essas moléculas em conjuntos molares. Os estratos eram capturas; eram como “buracos negros” ou oclusões que se esforçavam para reter tudo o que passasse ao seu alcance1. Operavam por codificação e territorialização na terra, procediam simultaneamente por código e territorialidade. Os estratos eram juízos de Deus, a estratificação geral era todo o sistema do juízo de Deus (mas a terra, ou o corpo sem órgãos, não parava de se esquivar ao juízo, de fugir e se desestratificar, se descodificar, se desterritorializar). Challenger citava uma frase que afirmava ter encontrado num manual de geologia; era preciso decorá-la, pois só poderia compreendê-la mais tarde: “Uma superfície de estratificação é um plano de consistência mais compacto entre duas camadas”. As camadas eram os próprios estratos. Grupavam-se, no mínimo, aos pares, uma servindo de subestrato à outra. A superfície de estratificação era um agenciamento maquínico que não se confundia com os estratos. O agenciamento ficava entre duas camadas, entre dois estratos, tendo portanto uma face voltada para os estratos (nesse sentido era um interestrato), mas também uma face voltada para outro lugar, para o corpo sem órgãos ou plano de consistência (era um metaestrato). Na verdade, o próprio corpo sem órgãos formava o plano de consistência, que se tornava compacto ou mais espesso no nível dos estratos. Deus é uma Lagosta ou uma dupla-pinça, um double-bind. Os estratos não se limitam a grupar-se, no mínimo, aos pares; de uma outra maneira, cada estrato em si é duplo (terá, ele próprio, várias camadas). Cada um apresenta, com efeito, fenômenos constitutivos de dupla articulação. Articulem duas vezes, B-A, BA. Isso não quer absolutamente dizer que os estratos falem ou sejam

Roland Omnès, L’univers et ses métamorphoses, Hermann, p. 164: “Uma estrela que caiu abaixo do raio crítico constitui o que se chama um buraco negro (astro ocluso). Esta expressão significa que o que se enviar para semelhante objeto de lá não poderá mais sair. Ele é, pois, totalmente negro porque não emite nem reflete qualquer luz.” 1

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linguagem. A dupla articulação é tão variável que não podemos partir de um modelo geral, mas apenas de um caso relativamente simples. A primeira articulação escolheria ou colheria, nos fluxos-partículas instáveis, unidades moleculares ou quase moleculares metaestáveis (substâncias) às quais imporia uma ordem estatística de ligações e sucessões (formas). A segunda articulação instauraria estruturas estáveis, compactas e funcionais (formas) e constituiria os compostos molares onde essas estruturas se atualizam ao mesmo tempo (substâncias). Assim, num estrato geológico, a primeira articulação é a “sedimentação”, que empilha unidades de sedimentos cíclicos segundo uma ordem estatística: o flysch, com sua sucessão de arenito e xisto. A segunda articulação é o “dobramento”, que instaura uma estrutura funcional estável e garante a passagem dos sedimentos a rochas sedimentárias. Vê-se que as duas articulações não se dividem em uma para as substâncias e outra para as formas. As substâncias não passam de matérias formadas. As formas implicam um código, modos de codificação e descodificação. As substâncias como matérias formadas se referem a territorialidades, a graus de territorialização e desterritorialização. Mas há, justamente, código e territorialidade para cada articulação, cada uma comportando, por sua conta, forma e substância. No momento, podia-se apenas dizer que a cada articulação correspondia um tipo de segmentaridade ou de multiplicidade: um maleável, sobretudo molecular e apenas ordenado; outro mais duro, molar e organizado. Na verdade, embora a primeira articulação não deixasse de apresentar interações sistemáticas, era sobretudo no nível da segunda que se produziam fenômenos de centramento, unificação, totalização, integração, hierarquização, finalização, que formavam uma sobrecodificação. Cada uma das duas articulações estabelecia relações binárias entre seus próprios segmentos. Mas entre os segmentos de uma e os de outra havia correlações biunívocas segundo leis muito mais complexas. A palavra estrutura podia designar, em geral, o conjunto dessas relações e correlações, mas seria ilusão acreditar que a estrutura fosse a última palavra da terra. Mais que isso, não era certo que as duas articulações se distribuíssem de acordo com a distinção entre molecular e molar. Passava-se por cima da imensa diversidade dos estratos energéticos, físico-químicos, geológicos. E caía-se nos estratos orgânicos ou na existência de uma grande estratificação orgânica. Ora, o problema do organismo — como “fazer” um

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organismo no corpo? — era, ainda uma vez, o da articulação, da correlação articular. Os Dogons, que o professor conhecia bem, formulavam assim o problema: um organismo adivinha no corpo do ferreiro sob o efeito de uma máquina ou de um agenciamento maquínico que operava sua estratificação. “No choque, o martelo e a bigorna tinham quebrado suas pernas e seus braços na altura dos cotovelos e dos joelhos, que ele não possuía até então. Recebia assim as articulações características da nova forma humana que se espalharia pela terra e se destinaria ao trabalho (...). Em função do trabalho, seu braço se dobrou”2. Mas, evidentemente, reduzir a correlação articular aos ossos não passava de uma maneira de falar. Seria preciso considerar o conjunto do organismo sob o prisma de uma dupla articulação e em níveis muito diferentes. Primeiramente, no nível da morfogênese: por um lado, realidades de tipo molecular com correlações aleatórias são capturadas em fenômenos de multidão ou conjuntos estatísticos que determinam uma ordem (a fibra protéica e sua sequência ou segmentaridade): por outro lado, esses mesmos conjuntos são capturados em estruturas estáveis que “elegem” os compostos estereoscópicos que formam órgãos, funções e regulações, organizam mecanismos molares e até distribuem centros capazes de sobrevoar as multidões, supervisionar os mecanismos, utilizar e consertar o equipamento, “sobrecodificar” o conjunto (o redobramento da fibra em estrutura compacta e a segunda segmentaridade)3. Sedimentação e dobramento, fibra e redobramento. Mas, em outro nível, a química celular que preside a constituição das proteínas também procede por dupla articulação. Esta se faz no interior do molecular, entre pequenas e grandes moléculas, segmentaridade por remanejamentos sucessivos e segmentaridade por polimerização. “Numa primeira fase, os elementos colhidos no meio são combinados através de uma série de transformações (...). Toda essa atividade aciona várias centenas de reações. Mas, no final das contas, só se chega a uma produção limitada de pequenos compostos, no máximo algumas dezenas. Numa segunda fase da química celular, as pequenas moléculas são reunidas para a produção das grandes. É pela polimerização de unidades ligadas pelas extremidades

2

Griaule, Dieu d’eau, Fayard, pp. 38-41.

Sobre os dois aspectos da morfogênese em geral, cf. Raymond Huyer, La gênese des formes, Flammarion, pp. 54 ss. e Pierre Vendryès, Vie et probabilité, Albin Michel. Vendryès analisa precisamente o papel da correlação articular e dos sistemas articulados. Sobre os dois aspectos estruturais da proteína, cf. Jacques Monod, Le hasard et Ia necessite, Ed. du Seuil, pp. 105-109. 3

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que se formam as cadeias que caracterizam as macrocélulas (...). Portanto, as duas fases da química celular diferem, simultaneamente, por sua função, seus produtos, sua natureza. A primeira modela os motivos químicos, a segunda reúne. A primeira forma compostos que só têm existência temporária, pois constituem intermediários em processo de biossíntese; a segunda edifica produtos estáveis. A primeira opera por uma série de reações distintas; a segunda, por repetição da mesma” 4. — E ainda, num terceiro nível, do qual depende a própria química celular, o código genético, por sua vez, não se dissocia de uma dupla segmentaridade ou dupla articulação. Esta se faz agora entre dois tipos de moléculas independentes: por um lado, a sequência das unidades protéicas; por outro, a sequência das unidades nucléicas — as unidades de mesmo tipo tendo relações binárias e as unidades de tipo diferente, correlações biunívocas. Há sempre, pois, duas articulações, duas segmentaridades, duas espécies de multiplicidade, cada uma delas instituindo formas e substâncias; mas essas duas articulações não se distribuem de modo constante, mesmo no âmbito de um determinado estrato. Os ouvintes, meio entediados, apontavam muitas coisas mal compreendidas, muitos contrassensos e mesmo malversações na exposição do professor, apesar das autoridades por ele invocadas como se fossem seus “amigos”. Até os Dogons... E o pior ainda estava por vir. O professor se gabava cinicamente de fazer farol à custa dos outros, mas quase sempre dava à luz aleijões, degenerescências, coisas sem pé nem cabeça, quando muito vulgarizações idiotas. O professor, aliás, não era nem geólogo, nem biólogo, nem mesmo linguista, etnólogo ou psicanalista; há muito se tinha esquecido qual era sua especialidade. Na realidade, o professor era duplo, articulado duas vezes. Isso não facilitava as coisas, pois nunca se sabia qual deles estava presente. Ele (?) afirmava ter inventado uma disciplina que chamava de diversos nomes: rizomática, estratoanálise, esquizoanálise, nomadologia, micropolítica, pragmática, ciência das multiplicidades. Mas não se viam claramente nem os objetivos, nem o método, nem a razão de tal disciplina. O jovem professor Alasca, aluno preferido de Challenger, tentou defendê-lo hipocritamente explicando que a passagem de uma articulação a outra num determinado estrato era facilmente verificável, pois se processava sempre por perda de água tanto em genética quanto em geologia, e até em linguística, onde se avaliava a importância do fenômeno “perda de saliva”. Challenger sentiu-se ofendido e preferiu citar seu amigo, dizia ele, o geólogo

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François Jacob, La logique du vivant. pp. 289-290.

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dinamarquês espinosista Hjelmslev, o príncipe sombrio descendente de Hamlet, que também trabalhava com linguagem, mas para, justamente, depreender sua “estratificação”. Hjelmslev tinha conseguido elaborar uma grade com as noções de matéria, conteúdo e expressão, forma e substância. Esses eram os “strata”, dizia Hjelmslev. Ora, essa grade já tinha a vantagem de romper a dualidade forma/conteúdo, pois havia tanto uma forma de conteúdo quanto uma forma de expressão. Os inimigos de Hjelmslev só viam nisso uma maneira de rebatizar as noções desacreditadas de significado e significante, mas a coisa não era bem assim. Independentemente do próprio Hjelmslev, a grade tinha um outro alcance, uma origem linguística (o mesmo se deveria dizer da dupla articulação: se a linguagem tinha uma especificidade — e certamente tinha uma —, esta não consistia nem na dupla articulação nem na grade de Hjelmslev, que eram características gerais de estrato). Chamava-se matéria o plano de consistência ou o Corpo sem Órgãos, quer dizer, o corpo não-formado, não-organizado, não-estratificado ou desestratificado, e tudo o que escorria sobre tal corpo, partículas submoleculares e subatômicas, intensidades puras, singularidades livres préfísicas e pré-vitais. Chamava-se conteúdo as matérias formadas que deviam, por conseguinte, ser consideradas sob dois pontos de vista: do ponto de vista da substância, enquanto tais matérias eram “escolhidas”, e do ponto de vista da forma, enquanto eram escolhidas numa certa ordem (substância e forma de conteúdo). Chamaríamos expressão as estruturas funcionais que deviam, elas próprias, ser consideradas sob dois pontos de vista: o da organização da sua própria forma, e o da substância, à medida que formavam compostos (forma e substância de expressão). Num estrato havia sempre uma dimensão do expressável ou da expressão como condição de invariância relativa: por exemplo, as sequências nucléicas eram inseparáveis de uma expressão relativamente invariante pela qual determinavam os compostos, órgãos e funções do organismo5. Exprimir é sempre cantar a glória de Deus. Sendo cada estrato um juízo de Deus, não são apenas as plantas e os animais, as orquídeas e as vespas que cantam ou se exprimem, são também os rochedos e até os rios, todas as coisas estratificadas da terra. Como se vê, então, a primeira articulação se refere ao conteúdo e a segunda, à expressão. A distinção

François Jacob, “Le modele linguistique en biologie”, Critique (março 1974), p. 202: “O material genético tem dois papéis a desempenhar: por uma lado, deve ser reproduzido para ser transmitido à geração seguinte; por outro, deve ser expresso para determinar as estruturas e as funções do organismo.” 5

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entre as duas articulações não se faz através das noções de forma e substância, mas sim de conteúdo e expressão, já que a expressão não tem menos substância que o conteúdo nem o conteúdo menos forma que a expressão. Se a dupla articulação coincide às vezes com molecular e molar e às vezes não, é porque o conteúdo e a expressão ora se dividem assim, ora de outro modo. Entre o conteúdo e a expressão nunca há correspondência ou conformidade, mas apenas isomorfismo com pressuposição recíproca. Entre o conteúdo e a expressão a distinção é sempre real, por diversas razões, mas não se pode dizer que os termos preexistam à dupla articulação. É ela que os distribui segundo seu traçado em cada estrato e que constitui sua distinção real. (Entre a forma e a substância, ao contrário, não há distinção real, mas apenas mental ou modal: sendo as substâncias apenas matérias formadas, não se poderiam conceber substâncias sem forma, mesmo que, em certos casos, o inverso fosse possível). Mesmo em sua distinção real, o conteúdo e a expressão eram relativos (“primeira” e “segunda” articulações deviam também ser compreendidas de maneira inteiramente relativa). Mesmo em seu poder de invariância, a expressão era uma variável, assim como o conteúdo. Conteúdo e expressão eram as duas variáveis de uma função de estratificação. Não variavam somente de um estrato a outro, mas espalhavam-se um no outro, multiplicavam-se ou se dividiam infindavelmente num mesmo estrato. Na realidade, como toda articulação é dupla, não há uma articulação de conteúdo e uma articulação de expressão sem que a articulação de conteúdo seja dupla por sua própria conta e, ao mesmo tempo, constitua uma expressão relativa no conteúdo — e sem que a articulação de expressão seja dupla por sua vez e, ao mesmo tempo, constitua um conteúdo relativo na expressão. É por isso que entre o conteúdo e a expressão, entre a expressão e o conteúdo há estados intermediários, níveis, trocas, equilíbrios pelos quais passa um sistema estratificado. Em suma, encontramos formas e substâncias de conteúdo que têm um papel de expressão em relação a outras, e inversamente quanto à expressão. Essas novas distinções não coincidem, por conseguinte, com as das formas e substâncias em cada articulação; mostram, antes, como cada articulação já é ou ainda é dupla. Isso se verifica quanto ao estrato orgânico: as proteínas de conteúdo têm duas formas, uma das quais (a fibra redobrada) assume o papel de expressão funcional com relação à outra. Assim também, quanto aos ácidos nucléicos de expressão, as articulações duplas fazem com que certos elementos formais e substanciais desempenhem um papel de

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conteúdo em relação a outros: não só a metade da cadeia que se vê reproduzida pela outra torna-se conteúdo, como também a cadeia reconstituída torna-se, ela mesma, conteúdo com relação ao “mensageiro”. Num estrato há duplas-pinças por toda parte, double binds, lagostas por toda parte, em todas as direções, uma multiplicidade de articulações duplas que ora atravessam a expressão, ora o conteúdo. Por todos esses aspectos, não se deveria esquecer a advertência de Hjelmslev: “os próprios termos plano de expressão e plano de conteúdo foram escolhidos de acordo com o uso corrente e são completamente arbitrários. Por sua definição funcional, é impossível afirmar que seja legítimo chamar uma dessa grandezas de expressão e a outra de conteúdo, e não o contrário: elas só se definem como mutuamente solidárias, e nem uma nem outra podem sê-lo mais precisamente. Tomadas em separado, só podem ser definidas por oposição e de maneira relativa como os functivos de uma mesma função que se opõem um ao outro6“. Devemos combinar aqui todos os recursos da distinção real, da pressuposição recíproca e do relativismo generalizado. Primeiramente, íamos perguntar o que variava e o que não variava num determinado estrato. O que constituía a unidade, a diversidade de um estrato? A matéria, a pura matéria do plano de consistência (ou de inconsistência) está fora dos estratos. Mas, num estrato, os materiais moleculares tomados de empréstimo aos subestratos podem ser os mesmos sem que, por isso, as moléculas também o sejam. Os elementos substanciais podem ser os mesmos sobre todo o estrato sem que as substâncias o sejam. As correlações formais ou as ligações podem ser as mesmas sem que as formas o sejam. A unidade de composição do estrato orgânico, em bioquímica, se define no nível dos materiais e da energia, dos elementos substanciais ou dos radicais, das ligações e reações. Mas não são as mesmas moléculas, as mesmas substâncias nem as mesmas formas. — Não seria o caso de se dedicar um canto de glória a Geoffroy Saint-Hilaire? Pois Geoffroy foi capaz de formular, no século XIX, uma grandiosa concepção da estratificação. Ele dizia que a matéria, no sentido de sua máxima divisibilidade, consistia em partículas decrescentes, fluxos ou fluidos elásticos que “se desenrolavam” irradiando-se no espaço. A combustão era o processo dessa fuga ou dessa divisão infinita no plano de consistência. Mas a eletrização é o processo inverso, constitutivo dos estratos, pelo qual as partículas semelhantes

6

Hjelmslev, Prolégomènes à une théorie du langage, Ed. de Minuit, p. 85.

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se agrupam em átomos e moléculas, as moléculas semelhantes em moléculas maiores e estas em conjuntos molares: “atração de Si para Si”, como uma dupla articulação. Assim o estrato orgânico não possuía qualquer matéria vital específica, pois a matéria era a mesma para todos os estratos mas tinha uma unidade específica de composição, um único e mesmo Animal abstrato, uma única e mesma máquina abstrata presa no estrato e apresentava os mesmos materiais moleculares, os mesmos elementos ou componentes anatômicos de órgãos, as mesmas conexões formais. O que não impedia que as formas orgânicas fossem diferentes entre si, não menos que os órgãos ou substâncias compostas, não menos que as moléculas. Pouco importava que Geoffroy tivesse escolhido como unidades substanciais os elementos anatômicos, de preferência aos radicais de proteínas e ácidos nucléicos. Aliás, ele já invocava todo um jogo de moléculas. O importante era o princípio da unidade e da variedade do estrato: isomorfismo das formas sem correspondência, identidade dos elementos ou componentes sem identidade das substâncias compostas. É nessa altura que intervinha o diálogo, ou melhor, a violenta polêmica com Cuvier. Para reter os derradeiros ouvintes, Challenger imaginava um diálogo de mortos, particularmente epistemológico, à maneira de um teatro de marionetes. Geoffroy conclamava os Monstros, Cuvier dispunha em ordem todos os Fósseis, Bäer empunhava frascos de Embriões, Vialleton punha um Cinturão de Tetrápode, Perrier representava a luta dramática da Boca e do Cérebro... etc. Geoffroy: A prova do isomorfismo e que sempre se pode passar, por dobragem, de uma forma a outra, por mais diferentes que elas sejam no estrato orgânico. Do Vertebrado ao Cefalópode: aproximem as duas partes da espinha dorsal do Vertebrado, tragam a cabeça dele até os pés, a bacia até a nuca... — Cuvier (encolerizado): Não é verdade, não é verdade, o senhor não passará de um Elefante a uma Medusa, eu já tentei. Há eixos, tipos, entroncamentos irredutíveis. Há semelhanças de órgãos e analogias de formas, nada mais. O senhor é um falsário, um metafísico. — Vialleton (discípulo de Cuvier e de Bäer): E mesmo se a dobragem desse bom resultado, quem poderia suportá-la? Não é por acaso que Geoffroy só considera elementos anatômicos. Nenhum músculo, nem ligamento, nem cintura sobreviveriam. — Geoffroy: Eu disse que havia isomorfismo, mas não correspondência. É que se precisa da intervenção de “graus de desenvolvimento ou de perfeição”. Os materiais não atingem em qualquer lugar do estrato o grau que lhes permitiria constituir tal ou qual conjunto. Os

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elementos anatômicos podem ser, aqui e ali, detidos ou inibidos por percussão molecular, influência do meio ou pressão dos vizinhos, de modo que não compõem os mesmos órgãos. As correlações ou conexões formais são, então, determinadas a se efetuar em formas e disposições completamente diferentes. Entretanto, é o mesmo Animal abstrato que se realiza em todo o estrato, mas em graus diversos, de maneiras diversas, a cada vez tão perfeito quanto possível em função do que o cerca e do meio (não se trata ainda, evidentemente, de evolução: nem a dobragem, nem os graus implicam descendência ou derivação, mas somente realizações autônomas de um mesmo abstrato). É aqui que Geoffroy invoca os Monstros: os monstros humanos são embriões paralisados em certo grau de desenvolvimento, neles o homem é apenas uma ganga para formas e substâncias não-humanas. Sim, o Heteradelfo é um crustáceo. — Bäer (aliado de Cuvier, contemporâneo de Darwin, mas tão reticente a seu respeito quanto inimigo de Geoffroy): Não é verdade, o senhor não pode confundir graus de desenvolvimento e tipos de formas. Um mesmo tipo possui vários graus, um mesmo grau se encontra em vários tipos. Mas o senhor nunca fará tipos com graus. Um embrião de certo tipo não pode apresentar um outro tipo, só pode, no máximo, ter o mesmo grau que um embrião de outro tipo. — Vialleton (discípulo de Bäer, investindo mais ainda, ao mesmo tempo contra Darwin e Geoffroy): Além do mais, há coisas que só um embrião pode fazer ou suportar. E pode fazêlas ou suportá-las em virtude de seu tipo, e não porque possa passar de um tipo a outro conforme seus graus de desenvolvimento. Admirem a Tartaruga, cujo pescoço exige o deslizamento de um certo número de protovértebras e o membro anterior, um deslizamento de 180º em relação ao de um pássaro. O senhor não poderá jamais tirar conclusões sobre a embriogênese a partir da filogênese; a dobragem não permite passar de um tipo a outro, são os tipos, ao contrário, que comprovam a irredutibilidade das formas de dobramento... (Assim, Vialleton apresenta dois gêneros de argumentos conjugados para a mesma causa, ora dizendo que há coisas que nenhum animal pode fazer em virtude de sua substância, ora que há coisas que só um embrião pode fazer em virtude de sua forma. São dois argumentos muito fortes7). Não sabemos mais muito bem em que ponto estamos. Há tantas

Cf. Geoffroy Saint-Hilaire, Príncipes de philosophie zoologique, onde são citados extratos da polêmica com Cuvier; Notions synthétiques, onde Geoffroy expõe sua concepção molecular da combustão, da eletrização e da atração. Baër, Uber Entwickelungsgeschichte der Thiere, e “Biographie de Cuvier” (Annales des sciences naturelles, 1908). Vialleton, Membres et ceintures des vertébrés tétrapodes. 7

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coisas em jogo nessas réplicas. Há tantas distinções que não param de proliferar. Há tantos ajustes de contas, pois a epistemologia não é inocente. Geoffroy sutil e muito delicado, Cuvier sério, especialista rigoroso, e Geoffroy, sempre pronto a mudar de especialidade. Cuvier detesta Geoffroy, não suporta as fórmulas levianas de Geoffroy (é, as Galinhas têm dentes, a Lagosta é só pele e osso etc). Cuvier é um homem de Poder e de Campo de Batalha, e o dará a perceber a Geoffroy, que, por sua vez, já prefigura o homem das velocidades. Cuvier reflete em termos de espaço euclidiano, ao passo que Geoffroy pensa topologicamente. Invoquemos hoje o dobramento do córtex com todos os seus paradoxos. Os estratos são topológicos, e Geoffroy é um grande artista da dobragem, um artista formidável; por isso já tem o pressentimento de um certo rizoma animal, com comunicações aberrantes, os Monstros, ao passo que Cuvier reage em termos de fotos descontínuas e decalques fósseis. Não sabemos mais muito bem onde estamos, porque as distinções se multiplicaram em todos os sentidos. Nem chegamos ainda a considerar Darwin, o evolucionismo e o neoevolucionismo. Entretanto, é aí que se produz um fenômeno decisivo: nosso teatro de marionetes tornase cada vez mais nebuloso, quer dizer, coletivo e diferencial. Os dois fatores invocados com suas correlações incertas para explicar a diversidade num estrato — os graus de desenvolvimento ou de perfeição e os tipos de formas — sofrem uma profunda transformação. Seguindo uma dupla tendência, os tipos de formas devem ser compreendidos cada vez mais a partir de populações, matilhas e colônias, coletividades ou multiplicidades; e os graus de desenvolvimento devem ser entendidos em termos de velocidades, taxas, coeficientes e relações diferenciais. Duplo aprofundamento. É a conquista fundamental do darwinismo, implicando um novo acoplamento indivíduos-meios no estrato8. Por um lado, se supomos uma

É nessa longa história que se poderia atribuir um lugar à parte, embora não determinante, a Edmond Perrier. Ele tinha retomado o problema da unidade de composição, renovando Geoffroy com a ajuda de Darwin e sobretudo de Lamarck. Efetivamente, toda a obra de Perrier é orientada a partir de dois temas: as colônias ou multiplicidades animais, por um lado; as velocidades que devem dar conta dos graus e das dobragens heterodoxas (taquigênese), por outro. Por exemplo: como o cérebro dos vertebrados pode vir no lugar da boca dos Anelídeos, “luta da boca e do cérebro”. Cf. Les colonies animales et la formation des organismes; “L’origine des embranchements du règne animal” (in Scientia, maio-junho, 1918). Perrier escreveu uma história da Philosopbie zoologique avant Darwin, com excelentes capítulos sobre Geoffroy e Cuvier. 8

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população elementar ou mesmo molecular num determinado meio, as formas não preexistem a essa população, são antes resultados estatísticos: a população se distribui melhor no meio, partilhando-o melhor, quando toma formas divergentes, quando sua multiplicidade se divide em multiplicidades diferentes e seus elementos entram em compostos ou em matérias formadas distintas. Nesse sentido, a embriogênese e a filogênese invertem suas relações: não é mais o embrião que dá provas de uma forma absoluta preestabelecida num meio fechado, é a filogênese das populações que dispõe de uma liberdade de formas relativas, nenhuma delas preestabelecida em meio aberto. No caso da embriogênese, “pode-se dizer, com base nos genitores e por antecipação quanto ao término do processo, se é um pombo ou um lobo que está se desenvolvendo... Mas aqui as próprias balizas estão em movimento: só há pontos fixos por comodidade de linguagem. Na escala da evolução universal, qualquer demarcação desse gênero é impossível... A vida na terra se apresenta como uma soma de faunas e floras relativamente independentes com fronteiras por vezes movediças ou permeáveis. As áreas geográficas só podem abrigar aí uma espécie de caos ou, quando muito, harmonias extrínsecas de ordem ecológica, equilíbrios provisórios entre populações”.9 Por outro lado, ao mesmo tempo e nas mesmas condições, os graus não são de desenvolvimento ou de perfeição preexistente, mas sim equilíbrios relativos e globais: valem em função das vantagens que dão a certos elementos, depois a certa multiplicidade no meio, e em função de tal variação no meio. Nesse sentido, os graus não se medem mais por perfeição crescente, por diferenciação e complicação das partes, mas por essas relações e coeficientes diferenciais tais como pressão de seleção, ação de catalisador, velocidade de propagação, taxa de crescimento, de evolução, de mutação etc; o progresso relativo pode, então, se dar por simplificação quantitativa e formal, mais do que por complicação, por perda de componentes e de sínteses, mais do que por aquisição (trata-se de velocidade, e a velocidade é um diferencial). É por populações que nos formamos, que tomamos formas; é por perda que progredimos e ganhamos velocidade. As duas conquistas fundamentais do darwinismo encaminham-se no sentido de uma ciência das multiplicidades: a substituição dos tipos pelas populações e as dos graus pela taxas ou relações diferenciais10. São conquistas nômades,

9

Canguilhem e colab. “Du développement à 1’évolution au XIX e siècle”, in Thalès, p.34.

10

G. G. Simpson, L’évolution et sa signification, Payot.

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com fronteiras movediças de populações ou variações de multiplicidades, com coeficientes diferenciais ou variações de relações. E a bioquímica atual, todo o “darwinismo molecular”, como diz Monod, confirma no nível de um mesmo e único indivíduo global e estatístico, de uma simples amostra, a importância determinante das populações moleculares e das taxas microbiológicas (por exemplo, a inumerável sequência numa cadeia e a variação de um único segmento, ao acaso, nessa sequência). Challenger assegurava que tinha acabado de fazer uma longa digressão, mas que nada poderia distinguir o digressivo do não-digressivo. Tratava-se de tirar várias conclusões a respeito dessa unidade e dessa diversidade num mesmo estrato, ou seja, o estrato orgânico. Em primeiro lugar, um estrato possuía uma unidade de composição, pelo que podia ser considerado um estrato: materiais moleculares, elementos substanciais, correlações ou traços formais. Os materiais não eram a matéria não-formada do plano de consistência, já eram estratificados e provinham dos “subestratos”. Mas os subestratos não deviam, é claro, ser considerados simples subestratos: sobretudo não tinham uma organização menos complexa ou inferior, e era preciso evitar qualquer evolucionismo cósmico ridículo. Os materiais fornecidos por um subestrato, sem dúvida, eram mais simples que os compostos do estrato, mas o nível de organização ao qual pertenciam no subestrato não era menor que o do próprio estrato. Entre os materiais e os elementos substanciais havia outra organização, mudança de organização, não aumento. Os materiais fornecidos constituíam um meio exterior para os elementos e os compostos do estrato considerado; mas não eram exteriores ao estrato. Os elementos e os compostos constituíam um interior do estrato, como os materiais, um exterior do estrato, mas ambos pertenciam ao estrato, estes enquanto materiais fornecidos e coletados, aqueles enquanto formados com os materiais. Além disso, esse exterior e esse interior eram relativos, só existindo por suas trocas, graças, portanto, ao estrato que os colocava em correlação. Assim, num estrato cristalino, o meio amorfo é exterior ao germe no momento em que o cristal ainda não está constituído; mas o cristal não se constitui sem interiorizar e incorporar massas do material amorfo. Inversamente, a interioridade do germe cristalino deve passar para a exterioridade do sistema onde o meio amorfo pode cristalizar (aptidão para adotar outra organização). A tal ponto que é o germe que vem de fora. Em resumo, o exterior e o interior são ambos interiores ao estrato. A mesma coisa quanto ao orgânico: os materiais fornecidos pelos subestratos são efetivamente um meio exterior constituindo

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a famosa sopa pré-biótica, enquanto catalisadores fazem o papel de germe para formar elementos e mesmo compostos substanciais interiores. Mas elementos e compostos tanto se apropriam dos materiais quanto se exteriorizam por replicação nas próprias condições da sopa primitiva. Ainda aqui o interior e o exterior entram em relação de troca, sendo ambos interiores ao estrato orgânico. Entre os dois fica o limite, a membrana que regula as trocas e a transformação de organização, as distribuições interiores ao estrato e que nele definem o conjunto das correlações ou traços formais (mesmo que esse limite tenha uma situação e um papel muito variáveis segundo cada estrato: por exemplo, o limite do cristal e a membrana da célula). Pode-se, então, chamar camada central, anel central de um estrato, o seguinte conjunto de unidade de composição: os materiais moleculares exteriores, os elementos substanciais interiores, o limite ou membrana portadora das correlações formais. Há como uma única e mesma máquina abstrata envolvida no estrato e constituindo sua unidade. É o Ecúmeno, por oposição ao Planômeno do plano de consistência. Mas seria um erro acreditar que essa camada central unitária de estrato fosse isolável ou que se pudesse atingi-la por si mesma e por regressão. Primeiramente, um estrato se estendia necessariamente, e desde o começo, de camada em camada. Já tinha várias camadas. Ia de um centro a uma periferia e a periferia, ao mesmo tempo que reagia sobre o centro, já formava um novo centro para uma nova periferia. Fluxos estavam sempre se irradiando e retrocedendo. Havia empuxo e multiplicação de estados intermediários, estando esse processo compreendido nas condições locais do anel central (diferenças de concentração, variações toleradas inferiores a um limiar de identidade). Estes estados intermediários apresentavam novas figuras de meios ou materiais, mas também de elementos e compostos. Com efeito, eram intermediários entre o meio exterior e o elemento interior, entre os elementos substanciais e seus compostos, entre os compostos e as substâncias e também entre as diferentes substâncias formadas (substâncias de conteúdo e substâncias de expressão). Chamaríamos de epistratos a esses intermediários e superposições, esses empuxos, esses níveis. Nos nossos dois exemplos, o estrato cristalino comporta muitos intermediários possíveis entre o meio ou o material exteriores e o germe interior: multiplicidade dos estados de metaestabilidade perfeitamente descontínuos como outros tantos graus hierárquicos. O estrato orgânico é igualmente inseparável de meios ditos interiores que são, de fato, elementos interiores com relação a materiais exteriores, mas também elementos exteriores com relação a

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substâncias interiores 11 . E sabemos que esses meios interiores orgânicos regulam os graus na complexidade e a diferenciação das partes de um organismo. Um estrato tomado em sua unidade de composição só existe, pois, em seus epistratos substanciais, que quebram a sua continuidade, fragmentam-lhe o anel e o graduam. O anel central não existe independentemente de uma periferia que forma um novo centro e reage sobre o primeiro e que se dissemina, por sua vez, em epistratos descontínuos. Além do mais, não se trata apenas disso. Não havia somente essa nova ou segunda relatividade do interior e do exterior, mas também toda uma história no nível da membrana ou do limite. Efetivamente, uma vez que os elementos e compostos se incorporavam, se apropriavam dos materiais, os organismos correspondentes eram forçados a se dirigir a materiais diferentes “mais estrangeiros e menos cômodos” que tomavam de empréstimo ora a massas ainda intactas, ora, ao contrário, a outros organismos. O meio assumia aqui uma terceira figura ainda: não se tratava mais do meio exterior ou interior, mesmo relativo, nem de um meio intermediário, mas sim de um meio associado ou anexado. Os meios associados implicavam, primeiramente, fontes de energia distintas dos próprios materiais alimentares. Enquanto tais fontes não fossem conquistadas, só se poderia dizer que o organismo se alimentava, mas não que respirava: ficava, isto sim, em estado de sufocação12. A conquista de uma fonte de energia permitia, em contrapartida, uma extensão dos materiais, uma extensão dos materiais transformáveis em elementos compostos. O meio associado se definia, assim, por capturas de fontes de energia (respiração, no sentido mais amplo), pelo discernimento dos materiais, pela captação de sua presença ou ausência (percepção) e pela fabricação ou não dos elementos ou compostos correspondentes (resposta, reação). A esse respeito, o fato de haver tanto percepções moleculares quanto reações pode ser verificado em toda a economia da célula e na propriedade que têm os agentes de regulação de “reconhecer” exclusivamente uma ou duas espécies químicas num meio de exterioridade muito variado. Mas o próprio desenvolvimento dos meios associados ou anexados desemboca nos mundos animais, tais como descritos por Uexkull, com suas características energéticas, perceptivas e ativas. Inesquecível mundo associado do Carrapato definido por sua energia

Gilbert Simondon, L’individu et sa genèse physico-biologique, P.U.F., pp. 107-114, 259-264: sobre o interior e o exterior no caso do cristal e no do organismo, e também sobre o papel do limite e da membrana. 11

J. H. Rush, L’origine de Ia vie, Payot, p. 158: “Os organismos primitivos viviam, em certo sentido, num estado de sufocação. A vida tinha nascido, mas não tinha começado a respirar.” 12

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gravídica de queda, seu caráter olfativo de percepção de suor, seu caráter ativo de picada: o carrapato sobe no alto de uma planta para se jogar em cima de um mamífero que passa, que ele reconhece pelo suor e pica bem fundo na pele (mundo associado formado por três fatores, e ponto final). Os próprios caracteres perceptivos e ativos são como uma dupla-pinça, uma dupla articulação13. Ora, dessa vez, os meios associados estão em estreita relação com formas orgânicas. Tal forma não é uma simples estrutura, mas uma estruturação, uma constituição do meio associado. Um meio animal como teia de aranha não é menos “morfogenético” que a forma de organismo. Não se pode, claro, dizer que seja o meio que determine a forma; mas não é por ser mais tortuosa que a relação da forma com o meio seja menos decisiva. Uma vez que a forma depende de um código autônomo, só pode se constituir num meio associado que entrelace de maneira complexa as características energéticas, perceptivas e ativas conforme as exigências do próprio código; e só pode se desenvolver através dos meios intermediários que regulem as velocidades e as taxas de suas substâncias; só pode se comprovar no meio de exterioridade que meça as vantagens comparadas dos meios associados e as relações diferenciais dos meios intermediários. Os meios atuam sempre por seleção em organismos inteiros cujas formas dependem de códigos sancionados indiretamente por esses meios. Os meios associados compartilham um mesmo meio de exterioridade em função das formas diferentes, assim como os meios intermediários o compartilham em função de taxas ou graus para uma mesma forma. Mas essas partilhas não se fazem do mesmo modo. No que diz respeito à cinta central do estrato, os meios ou estados intermediários constituem “epistratos”, uns sobre os outros, formando novos centros para novas periferias. Mas chamaríamos “paraestratos” essa outra maneira pela qual a cinta central se fragmentava em lados e ao-lado, em formas irredutíveis e meios que lhes eram associados. Desta vez, é no nível do limite ou da membrana própria à cinta central que as correlações ou traços formais comuns a todo o estrato tomavam necessariamente formas ou tipos de formas completamente diferentes correspondendo aos paraestratos. Um estrato só existia, ele próprio, em seus epistratos e paraestratos, de modo que estes deveriam, por seu turno, ser considerados, em último caso, estratos. A cinta, o anel idealmente contínuo do estrato, o Ecúmeno,

13

J. von Uexkull, Mondes animanx e monde humain, Gonthier.

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definido pela identidade dos materiais moleculares, dos elementos substanciais e das correlações formais, só existia enquanto partido, fragmentado em epistratos e paraestratos que implicavam máquinas concretas, com seus respectivos índices, e que constituíam moléculas diferentes, substâncias específicas, formas irredutíveis14. Poderíamos voltar às duas conquistas fundamentais: por que as formas, os tipos de formas nos paraestratos deviam ser compreendidos em relação a populações, por que os graus de desenvolvimento nos epistratos deviam ser compreendidos como taxas, relações diferenciais. É que, primeiramente, os paraestratos envolviam os próprios códigos dos quais dependiam as formas e que diziam, necessariamente, respeito a populações. Já era preciso toda uma população molecular para ser codificada, e os efeitos do código ou de uma mudança no código se avaliavam no nível de uma população mais ou menos molar, em virtude de sua aptidão para se propagar no meio, ou criar para si um novo meio associado no qual a modificação fosse popularizável. É, seria preciso pensar sempre em termos de matilhas e multiplicidades: se um código funcionava ou não, era porque o indivíduo codificado fazia parte de uma população, “a que vive num tubo de ensaio, numa poça d'água ou num intestino de mamífero”. Mas o que significaria mudança no interior de um código, variação de paraestrato, de onde provinham eventualmente novas formas e novos meios associados? Pois bem, a própria mudança não decorria, evidentemente, de uma passagem entre formas estabelecidas, quer dizer, de uma tradução de um código para outro. Enquanto o problema era formulado assim, permanecia insolúvel; era, sem dúvida, preciso dizer, com Cuvier e Baér, que os tipos de formas instaladas, pois que irredutíveis, não permitiam qualquer tradução ou transformação. Mas o problema se coloca de modo inteiramente diferente tão logo se perceba que um código é indissociável de um processo de descodificação a ele inerente. Não pode haver genética sem “deriva genética”. A teoria moderna das mutações mostrou muito bem como um código, forçosamente de população, comporta uma margem essencial de descodificação: todo código possui suplementos capazes de variar livremente; mas não é só isso, um mesmo segmento pode ser copiado duas vezes, o segundo se tornando livre para a variação. Acontecem também transferências de fragmentos de código entre células oriundas de espécies diferentes, Homem e Rato, Macaco e Gato, por intermédio de

Cf. P. Laviosa-Zambotti, Les origines et la diffusion de Ia civilisation, Payot; seu emprego das noções de estrato, subestrato e paraestrato (se bem que ela não defina esta última noção). 14

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vírus ou outros procedimentos; nesses casos não ocorre tradução de um código para outro (os vírus não são tradutores), mas, sim, fenômeno singular que nós chamamos maisvalia de código, comunicação ao-lado15. Teremos a oportunidade de voltar ao assunto, porque é essencial para todos os devires-animais. Mas suplementos e mais-valias, suplementos na ordem de uma multiplicidade, mais-valias na ordem de um rizoma já fazem com que qualquer código seja afetado por um margem de descodificação. Em vez de permanecer imóveis e paralisadas nos estratos, as formas nos paraestratos e os próprios são enredados num encadeamento maquínico: remetem a populações, as populações implicam códigos, os códigos compreendem fundamentalmente fenômenos relativos de descodificação, ainda mais utilizáveis, componíveis, adicionáveis pelo fato de serem relativos, sempre “ao lado de”. Se as formas remetem a códigos, a processos de codificação e descodificação nos paraestratos, as substâncias, enquanto matérias formadas, remetem a territorialidades, a movimentos de desterritorialização nos epistratos. Em verdade, os epistratos não são mais dissociáveis desses movimentos que os constituem do que os paraestratos daqueles processos. Da camada central à periferia, depois do novo centro à nova periferia, passam ondas nômades ou fluxos de desterritorialização que recaem no antigo centro e se precipitam para o novo16. Os epistratos se organizam no sentido de uma desterritorialização cada vez maior. As partículas físicas, as substâncias químicas atravessam, no seu estrato e através dos estratos, limiares de desterritorialização que correspondem a estados intermediários mais ou menos estáveis, valências, existências mais ou menos transitórias, investimentos neste ou naquele corpo, densidades de vizinhança, ligações mais ou menos localizáveis. Mas não são somente as partículas físicas que se caracterizam por velocidades de desterritorialização tachyons, buracospartículas, quarks à Joyce para lembrar a noção fundamental de “sopa” — uma mesma substância química, como o enxofre, o carbono, etc, também apresenta estados mais ou menos desterritorializados. No seu próprio estrato, um organismo é ainda mais desterritorializado por comportar meios interiores que asseguram sua autonomia e o colocam em um conjunto de correlações aleatórias com o exterior. É nesse sentido

15

François Jacob, La logique du vivant pp. 311-312, 332-333 e o que Rémy chama “evolução a-paralela”.

Cf. P. Laviosa-Zambotti, ibid: sua concepção das ondas e dos fluxos, do centro à periferia, do nomadismo e migrações (os fluxos nômades). 16

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que os graus de desenvolvimento só podem ser compreendidos de maneira relativa e em função de velocidades, relações e taxas diferenciais. Temos que pensar a desterritorialização como uma potência perfeitamente positiva, que possui seus graus e seus limiares (epistratos) e que é sempre relativa, tendo um reverso, uma complementaridade na reterritorialização. Um organismo desterritorializado em relação ao exterior se reterritorializa necessariamente nos meios interiores. Tal fragmento, supostamente de embrião, se desterritorializa mudando de limiar ou de gradiente, mas é de novo afetado no novo meio ambiente. Os movimentos locais são efetivas alterações. Por exemplo, as migrações celulares, os estiramentos, as invaginações, os dobramentos. É que toda viagem é intensiva e se faz em limiares de intensidade nos quais evolui ou, então, que transpõe. É por intensidade que se viaja, e os deslocamentos, as figuras no espaço dependem de limiares intensivos de desterritorialização nômade, por conseguinte, de relações diferenciais que fixam, ao mesmo tempo, as reterritorializações sedentárias e complementares. Cada estrato procede assim: pega nas suas pinças um máximo de intensidades, de partículas intensivas, onde vai estender suas formas e suas substâncias e constituir gradientes, limiares de ressonância determinados (num estrato a desterritorialização se encontra sempre determinada em relação à reterritorialização complementar17). Pelo fato de que se comparavam formas preestabelecidas e graus predeterminados, não só se era limitado à simples constatação de sua irredutibilidade, como também não se tinha qualquer meio de avaliar a possível comunicação entre os dois fatores. O que se vê é que as formas dependem de códigos nos paraestratos e se precipitam em processos de descodificação ou de deriva; os próprios graus são enredados em movimentos de desterritorialização e reterritorialização intensivas. Códigos e territorialidades, descodificações e desterritorialização não se correspondem termo a termo: ao contrário, um código pode ser de desterritorialização, uma reterritorialização pode ser de descodificação. Há grandes lacunas entre um código e uma territorialidade. Os dois fatores não deixam por isso de ter o mesmo “sujeito” num estrato: são populações que tanto se territorializam e se desterritorializam quanto se codificam e se descodificam. E esses fatores se comunicam, se entrelaçam nos meios. Por um lado, as modificações de código têm certamente uma causa aleatória no meio de exterioridade, e são seus efeitos sobre os meios interiores, sua compatibilidade com eles, que decidem

17

Sobre os fenômenos de ressonância entre ordens de grandeza diferentes, cf. Simondon, ibid, pp. 16-20, 124-131 e passim.

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sua popularização. As desterritorializações e reterritorializações não determinam as modificações, mas determinam estreitamente sua seleção. Por outro lado, toda modificação tem seu meio associado que, por sua vez, provoca tal desterritorialização em relação ao meio de exterioridade, tal reterritorialização em meios interiores ou intermediários. Num meio associado, as percepções e as ações, mesmo no nível molecular, erigem ou produzem signos territoriais (indícios). Com muito mais razão, um mundo animal é constituído, demarcado por tais signos que o dividem em zonas (zona de abrigo, zona de caça, zona neutralizada etc), mobilizam órgãos especiais e correspondem a fragmentos de código, inclusive à margem de descodificação inerente ao código. Mesmo a dimensão do adquirido é reservada pelo código ou prescrita por ele. Mas os indícios ou signos territoriais são inseparáveis de um duplo movimento. Sendo o meio associado sempre confrontado com um meio de exterioridade onde o animal se engaja e, necessariamente, se arrisca, uma linha de fuga deve ser preservada para permitir ao animal voltar para seu meio associado quando aparecer o perigo (como a linha de fuga do touro na arena, graças à qual ele pode retornar ao território que escolheu para si18). Depois, uma segunda linha de fuga aparece quando o meio se acha transtornado sob os impactos do exterior, e o animal deve abandoná-lo para associar a si novas porções de exterioridade, apoiando-se, desta vez, nos meios interiores como frágeis muletas. Com a secagem do mar, o Peixe primitivo deixa seu meio associado para explorar a terra, forçado a “transportar a si mesmo”, e só carregando água no interior de suas membranas amnióticas para proteção do embrião. De uma maneira ou de outra, o animal é mais aquele que foge do que aquele que ataca, mas suas fugas são igualmente conquistas, criações. As territorialidades são, pois, atravessadas, de um lado a outro, por linhas de fuga que dão prova da presença, nelas, de movimentos de desterritorialização e reterritorialização. De certo modo, elas vêm em segundo lugar. Elas próprias nada seriam sem esses movimentos que as depositam. Em suma, no Ecúmeno ou unidade de composição de um estrato, os epistratos e os paraestratos não param de se mexer, deslizar, se deslocar, mudar, uns levados por linhas de fuga e movimentos de desterritorialização, outros por processos de descodificação ou deriva, uns com os outros se comunicando no cruzamento dos meios. Os estratos estão sempre sendo

18

Claude Poquelin, Le taureau et son combat, 10-18: o problema dos territórios do homem e do touro na arena, in cap. IV.

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sacudidos por fenômenos de quebra ou ruptura, seja no nível dos subestratos que fornecem materiais, seja no nível das “sopas” que cada estrato comporta (sopa prebiótica, sopa pré-química..)., seja no nível dos epistratos que se acumulam, seja no nível dos paraestratos que se ladeiam: por toda parte surgem acelerações e bloqueios simultâneos, velocidades comparadas, diferenças de desterritorialização que criam campos relativos de reterritorialização. Não se deveria, certamente, confundir esses movimentos relativos com a possibilidade de uma desterritorialização absoluta, uma linha de fuga absoluta, uma deriva absoluta. Os primeiros eram estráticos ou interestráticos, enquanto que estas se referiam ao plano de consistência e sua desestratificação (sua “combustão”, como dizia Geoffroy). Não há dúvida de que, em sua precipitação, as partículas físicas loucas percutiam os estratos, atravessando-os quase sem deixar vestígio, escapavam às coordenadas espaço-temporais e até existenciais para tender a um estado de desterritorialização absoluta, ou de matéria não-formada, no plano de consistência. De certo modo, a aceleração das desterritorializações relativas atingia uma barreira do som: se as partículas ricocheteavam nessa barreira ou se deixavam reabsorver pelos buracos negros, recaíam nos estratos, nas suas correlações e seus meios; mas, se transpunham a barreira, atingiam o elemento não-formado, desestratificado, do plano de consistência. Poderíamos mesmo dizer que as máquinas abstratas que emitiam e combinavam partículas tinham como que dois modos de existência muito diferentes: o ecúmeno e o planômeno. Ora ficavam prisioneiras das estratificações, envolvidas em tal ou qual estrato determinado, cujo programa ou unidade de composição (o Animal abstrato, o Corpo químico abstrato, a Energia em si) definiam e onde regulavam os movimentos de desterritorialização relativa. Ora, ao contrário, a máquina abstrata atravessava todas as estratificações, desenvolvia-se por si só no plano de consistência, cujo diagrama constituía, a mesma máquina trabalhando igualmente o astrofísico e o microfísico, o natural e o artificial, e pilotando fluxos de desterritorialização absoluta (a matéria não-formada não era de modo algum um caos qualquer, é claro). Mas essa apresentação ainda era simples demais. Por um lado, não se passava do relativo ao absoluto por simples aceleração, se bem que o aumento das velocidades tendesse para esse resultado global e comparado. Uma desterritorialização absoluta não se definia por um acelerador gigante; era absoluta ou não, independentemente do fato de ser mais ou menos rápida

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ou lenta. Podia-se até atingir o absoluto por fenômenos de lentidão ou atraso relativos. Por exemplo, atrasos de desenvolvimento. O que deveria qualificar a desterritorialização não era sua velocidade (havia as muito lentas), mas sua natureza, uma vez que constituía epistratos e paraestratos e procedia por segmentos articulados, ou, muito pelo contrário, à medida que saltava de uma singularidade a outra, segundo uma linha não-segmentária indecomponível que traçava um metaestrato de plano de consistência. Por outro lado, não se deveria sobretudo acreditar que a desterritorialização absoluta sobreviesse de repente, a mais, depois de ou além de. Nessas condições, não se poderia compreender por que os próprios estratos eram animados por movimentos de desterritorialização e descodificação relativas que não aconteciam aí como acidentes. Na realidade, o que acontecia primeiramente era uma desterritorialização absoluta, uma linha de fuga absoluta, por mais complexa e múltipla que fosse, aquela do plano de consistência ou do corpo sem órgãos (a Terra, a absolutamente-desterritorializada). E ela só se tornava relativa por estratificação nesse plano, nesse corpo: os estratos eram sempre resíduos, não o inverso — não deveríamos nos perguntar como alguma coisa saía dos estratos, mas antes como as coisas aí entravam. De modo que havia continuamente imanência da desterritorialização absoluta na relativa; e os agenciamentos maquínicos entre estratos, que regulavam as relações diferenciais e os movimentos relativos, tinham também picos de desterritorialização voltados para o absoluto. Sempre imanência dos estratos e do plano de consistência, ou coexistência dos dois estados da máquina abstrata como a de dois estados diferentes de intensidades. A maior parte dos ouvintes tinha ido embora (primeiro os martinetistas * da dupla articulação, depois os hjelmslevianos do conteúdo e da expressão, e os biólogos entendidos em proteínas e ácidos nucléicos). Só restavam matemáticos porque estavam acostumados a outras loucuras, alguns astrólogos e arqueólogos, e pessoas esparsas. Aliás, Challenger tinha mudado desde o começo, sua voz estava mais rouca, e era por vezes entrecortada por uma tosse de macaco. Seu sonho não era tanto fazer uma conferência para humanos, mas sim propor um programa para puros computadores. Ou então era uma axiomática, pois dizia principalmente respeito à estratificação. Challenger só se dirigia à memória. Já que tínhamos acabado de falar sobre o que permanecia constante e o que variava num estrato, do ponto de vista das substâncias e das formas, faltava nos perguntar o que variava de um estrato a outro, adotando o ponto de vista

*

Os seguidores de André Martinet. (N. da T).

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do conteúdo e da expressão. Pois, se é verdade que sempre há uma distinção real constitutiva da dupla articulação, uma pressuposição recíproca entre o conteúdo e a expressão — o que varia de um estrato a outro é a natureza dessa distinção real e a natureza e a respectiva posição dos termos distinguidos. Consideremos desde já um primeiro grande grupo de estratos: podemos caracterizá-los dizendo sumariamente que nesse grupo o conteúdo (forma e substância) é molecular e a expressão (forma e substância) é molar. Entre ambos, a diferença é primeiramente de ordem de grandeza ou de escala. A dupla articulação implica aqui duas ordens de grandeza. É a ressonância, a comunicação que sobrevém entre duas ordens independentes, que instaura o sistema estratificado cujo conteúdo molecular tem, ele próprio, uma forma que corresponde à distribuição das massas elementares e à ação de molécula a molécula, do mesmo modo que a expressão tem uma forma que manifesta, por sua conta, o conjunto estatístico e o estado de equilíbrio no nível macroscópico. A expressão é como uma “operação de estruturação amplificante que faz passar para o nível macrofísico as propriedades ativas da descontinuidade primitivamente microfísica”. Tínhamos partido de um caso desses quanto ao estrato geológico, o estrato cristalino, os estratos físico-químicos, em toda parte em que se pode sempre dizer que o molar exprime as interações moleculares microscópicas (“o cristal é a expressão macroscópica”, “a forma dos cristais expressa certos caracteres moleculares ou atômicos da espécie química constituinte”). Sem dúvida, as próprias possibilidades eram muito variadas a esse respeito, conforme o número e a natureza de estados intermediários, conforme também a intervenção de forças exteriores para a formação da expressão. Podia haver mais ou menos estados intermediários entre o molecular e o molar; podia haver mais ou menos forças exteriores ou centros organizadores interferindo na forma molar. E, evidentemente, esses dois fatores estavam em razão inversa, indicando dois casos-limites. Por exemplo, a forma de expressão molar podia ser do tipo “molde”, mobilizando um máximo de forças exteriores; ou, ao contrário, do tipo “modulação”, acionando apenas um número mínimo. Havia, entretanto, mesmo no caso do molde, estados intermediários interiores quase instantâneos entre o conteúdo molecular, que tomava suas formas específicas, e a expressão molar determinada de fora pela forma do molde. Inversamente, quando a multiplicação e a temporalização dos estados intermediários comprovavam o caráter endógeno da forma molar, como para os cristais, nem por isso deixava de haver um mínimo de forças exteriores

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intervindo em cada uma dessas etapas19. Deveríamos, portanto, dizer que a independência relativa do conteúdo e da expressão, a distinção real entre o conteúdo molecular com suas formas e a expressão molar com as suas tinha um estatuto especial dotado de uma certa latitude entre os casos-limites. Como os estratos eram juízos de Deus, não seria preciso hesitar em pedir de empréstimo todas as sutilezas da escolástica e da teologia da Idade Média. Entre o conteúdo e a expressão havia, de fato, uma distinção real, pois as formas correspondentes eram atualmente distintas na “coisa” mesma e não apenas no espírito de um observador. Mas essa distinção real era muito particular, somente formal, já que as duas formas compunham ou conformavam uma única e mesma coisa, um único e mesmo sujeito estratificado. Daríamos vários exemplos de distinção formal: entre escalas ou ordens de grandeza (como entre um mapa e seu modelo; ou então, de outro modo, entre níveis microfísico e macrofísico, como na parábola dos dois gabinetes de Eddington), entre diversos estados ou razões formais pelos quais passa uma mesma coisa — entre a coisa tomada sob uma forma e na relação de causalidade eventualmente exterior que lhe confere uma outra forma... etc. (Havia ainda mais formas distintas não só pelo fato de o conteúdo e a expressão terem cada qual a sua, pois os estados intermediários também introduziam formas de expressão próprias ao conteúdo e formas de conteúdo próprias à expressão). Por mais variadas e reais que sejam as distinções formais, é a natureza da distinção que muda com o estrato orgânico e, por aí, toda a distribuição do conteúdo e da expressão nesse estrato. Entretanto, este conserva e até amplifica a relação do molecular e do molar com estados intermediários de toda espécie. Vimos isso quanto à morfogênese, onde a dupla articulação permanece indissociável da comunicação de duas ordens de grandeza. A mesma coisa quanto à química celular. Mas há um caráter original do estrato orgânico que deve dar conta dessas próprias amplificações. É que, anteriormente, a expressão dependia do conteúdo molecular expresso, em todas as direções e segundo todas as dimensões, e só tinha independência quando recorria a uma ordem de grandeza superior e a forças exteriores: a distinção real se fazia entre formas, mas formas de um único e mesmo conjunto, de uma

Sobre as ordens de grandeza e a instauração de sua ressonância, sobre as ações do tipo “molde”, “modulação” e “modelagem”, sobre as forças exteriores e os estratos intermediários, cf. Gilbert Simondon. 19

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mesma coisa ou sujeito. Mas agora a expressão se torna independente em si mesma, quer dizer, autônoma. Ao passo que a codificação de um estrato precedente era coextensiva ao estrato, a do estrato orgânico se processa numa linha independente e autônoma que se destaca ao máximo das segunda e terceira dimensões. A expressão deixa de ser volumosa ou superficial para tornar-se linear, unidimensional (mesmo na sua segmentaridade). O essencial é a linearidade da sequência nucléica20. A distinção real conteúdo/expressão não é mais simplesmente formal, é, propriamente falando, real; ela se faz agora no molecular, independentemente das ordens de grandeza, entre duas classes de moléculas, ácidos nucléicos de expressão e proteínas de conteúdo, entre elementos nucléicos ou nucleotídeos e elementos proteicos ou aminoácidos. Tanto a expressão quanto o conteúdo têm molecular e molar. A distinção não se refere mais a um único e mesmo conjunto ou sujeito; a linearidade nos faz avançar na ordem das multiplicidades planas, mais do que na direção da unidade. Com efeito, a expressão remete aos nucleotídeos e aos ácidos nucléicos tomados como moléculas que, em sua substância e sua forma, são inteiramente independentes não só das moléculas de conteúdo como também de qualquer ação orientada do meio exterior. A invariância pertence, assim, a certas moléculas e não mais à escala molar. Inversamente, as proteínas, na sua substância e também na sua forma de conteúdo, não são menos independentes dos nucleotídeos: o que é determinado de maneira unívoca é apenas que tal ácido aminado, e não outro, corresponde a uma sequência de três nucleotídeos21. O que a forma de expressão linear determina é, pois, uma forma de expressão derivada, desta vez relativa ao conteúdo, e que produzirá finalmente, por redobramento da sequência proteica dos ácidos aminados, as estruturas específicas de três dimensões. Em suma, o que caracteriza o estrato orgânico é esse alinhamento da expressão, essa exaustão ou esse destaque de uma linha de expressão, esse rebatimento da forma e da substância de expressão numa linha unidimensional que vai garantir a independência recíproca em relação ao conteúdo sem ter que considerar ordens de grandeza.

Evidentemente, há multiplicidade de sequências ou de linhas. Mas isso não impede que “a ordem da ordem” seja unilinear (cf. Jacob, La logique du vivant, p. 306, e “Le modele linguistique en biologie”, pp. 199-203). 20

Sobre a independência respectiva das proteínas e ácidos nucléicos e sua pressuposição recíproca, François Jacob, La logique du vivant, pp. 325-327 e Jacques Monod, Le Hasard et Ia necessite, pp. 110-112, 123-124,129, 159-160. 21

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Daí decorrem muitas consequências. Essa nova situação da expressão e do conteúdo não condiciona somente a potência ou sua aceleração de desterritorialização. O alinhamento do código ou a linearidade da sequência nucléica marcam efetivamente um limiar de desterritorialização do “signo”, que define a nova aptidão para ser copiado, mas que define também o organismo como mais desterritorializado que um cristal: só o desterritorializado é capaz de se reproduzir. De fato, enquanto o conteúdo e a expressão se distribuem segundo o molecular e o molar, as substâncias vão de um estado a outro, do estado precedente ao estado seguinte, ou de camada em camada, de uma já constituída a outra ainda em vias de se constituir, ao passo que as formas se estabelecem no limite da última camada ou do último estado, e do meio exterior. Assim, o extrato se desenvolve em epistratos, por um conjunto de induções de camada em camada, de estado em estado, ou então no extremo limite. Um cristal libera esse processo em estado puro, pois sua forma se estende em todas as direções, mas sempre em função da camada superficial da substância que pode ser esvaziada da sua maior parte interior sem parar o crescimento. É a sujeição do cristal às três dimensões, quer dizer, seu índice de territorialidade, que faz com que a estrutura não possa formalmente se reproduzir e se expressar, mas somente a superfície accessível, a única desterritorializável. Ao contrário, o destaque de uma pura linha de expressão no estrato orgânico vai tornar o organismo simultaneamente capaz de atingir um limiar de desterritorialização muito mais elevado, dispor de um mecanismo de reprodução de todos os detalhes de sua complexa estrutura no espaço e colocar todas as suas camadas interiores “topologicamente em contato” com o exterior, ou melhor, com o limite polarizado (donde o papel particular da membrana viva). O desenvolvimento do estrato em epistratos e paraestratos não mais se faz, então, por simples induções, mas por transduções que dão conta quer da amplificação de ressonância entre molecular e molar, independentemente das ordens de grandeza, quer da eficácia funcional das substâncias interiores independentemente das distâncias e da possibilidade de uma proliferação e mesmo de um entrecruzamento das formas, independentemente dos códigos (as mais-valias de código ou fenômenos de transcodificação, de evolução aparalela22).

Sobre a noção de transdução, cf. Simondon (mas ele a considera no sentido mais geral e a estende a qualquer sistema): pp. 18-21. E sobre a membrana, pp. 259 ss. 22

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Um terceiro grande grupo de estratos se definirá, ainda aqui, mais por uma nova distribuição do conteúdo e da expressão do que por um essência humana. A forma de conteúdo torna-se “aloplástica” e não mais “homoplástica”, isto é, opera modificação do mundo exterior. A forma de expressão torna-se linguística e não mais genética, quer dizer, opera por símbolos compreensíveis, transmissíveis modificáveis de fora. O que nós chamamos propriedades do homem — a técnica e a linguagem, a ferramenta e o símbolo, a mão livre, a laringe flexível, “o gesto e a palavra” — são antes propriedades dessa nova distribuição cujo começo só dificilmente se poderia fazer coincidir com o homem como origem absoluta. A partir das análises de Leroi-Gourham, vê-se como os conteúdos se acham ligados ao par mão-ferramenta e as expressões ao par face-linguagem, rosto-linguagem23. A mão não deve ser considerada aqui como simples órgão, mas como uma codificação (código digital), uma estruturação dinâmica, uma formação dinâmica (forma manual ou traços formais manuais). A mão como forma geral de conteúdo se prolonga nas ferramentas que são, elas próprias, formas em atividade, implicando substâncias enquanto matérias formadas; enfim, os produtos são matérias formadas ou substâncias que, por sua vez, servem de ferramentas. Se os traços formais manuais constituem uma unidade de composição para o estrato, as formas e as substâncias de ferramentas e de produtos se organizam em paraestratos e epistratos, que funcionam, eles mesmos, como verdadeiros estratos e assinalam as descontinuidades, as fraturas, as comunicações e difusões, os nomadismos e sedentaridades, os limiares múltiplos e as velocidades de desterritorialização relativas nas populações humanas. Portanto, com a mão como traço formal ou forma geral de conteúdo, foi atingido um elevado limiar de desterritorialização e que se abre, um acelerador que permite, em si mesmo, todo um jogo móvel de desterritorializações comparadas — são, justamente, fenômenos de “atraso de desenvolvimento” no subestrato orgânico que tornam possível essa aceleração. Além de ser uma pata anterior desterritorializada, a mão livre é desterritorializada em relação à mão prensora e locomotriz do macaco. Levar em conta desterritorializações sinérgicas de outros órgãos (por exemplo, o pé). Levar em conta também as desterritorializações correlativas de meios: a estepe, meio associado mais desterritorializado que a floresta e exercendo sobre o corpo e a técnica uma pressão seletiva de desterritorialização

23

André Leroi-Gourhan, Le geste et Ia parole, technique e langage, Albin Michel, p. 161.

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(não é na floresta, mas na estepe, que a mão pode aparecer como forma livre, e o fogo como matéria tecnologicamente formável). Levar em conta, enfim, as reterritorializações complementares (o pé como reterritorialização compensatória da mão e se efetuando na estepe). Fazer mapas, nesse sentido, orgânicos, ecológicos e tecnológicos a serem estendidos no plano de consistência. Por outro lado, a linguagem surge como a nova forma de expressão, ou melhor, o conjunto dos traços formais que definem a nova expressão em todo o estrato. Mas, assim como os traços formais só existem nas formas e nas matérias formadas que interrompem sua continuidade e distribuem seus efeitos, os traços formais de expressão só existem nas diversas línguas formais e implicam uma ou mais substâncias formáveis. A substância é, primeiramente, a substância vocal que aciona diversos elementos orgânicos, não apenas a laringe, mas a boca e os lábios, toda a motricidade da face, o rosto inteiro. Aqui, também, levar em conta um mapa intensivo: a boca como desterritorialização da goela (todo um “conflito entre a boca e o cérebro”, como dizia Perier); os lábios como desterritorialização da boca (só os homens têm lábios, isto é, um arrebitamento da mucosa interior; só as fêmeas de homens têm seios, quer dizer, glândulas mamárias desterritorializadas: faz-se uma reterritorialização complementar dos lábios sobre o seio e do seio sobre os lábios no aleitamento prolongado favorável à aprendizagem da linguagem). Que curiosa desterritorialização, encher a boca de palavras mais que de alimentos e ruídos. A estepe parece ainda ter exercido uma forte pressão de seleção: a “laringe flexível” é como que o correspondente da mão livre e só pode se expandir num meio desmatado onde não é mais preciso ter sacos laríngeos gigantescos para dominar com gritos a permanência dos barulhos da floresta. Articular, falar, é falar baixo, e sabe-se que os lenhadores mal falam24. Mas não é apenas a substância vocal acústica e fisiológica que passa por todas essas desterritorializações, é também a forma de expressão como linguagem que transpõe um limiar.

Sobre todos esses problemas — a mão livre, a laringe flexível, os lábios e o papel da estepe como fator de desterritorialização —, cf. o belo livro de Émile Deavaux, L’espèce, l’instinct, l’homme, Ed. Le François, IIIa parte (cap. VII: “Privado de sua floresta, atrasado no desenvolvimento, infantilizado, o antropóide deveria adquirir mãos livres e uma laringe flexível”; e cap. IX: “A floresta fez o macaco, a caverna e a estepe fizeram o homem.”) 24

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Os signos vocais têm uma linearidade temporal, e é essa sobrelinearidade que estabelece sua desterritorialização específica, sua diferença face à linearidade genética. Com efeito, esta é, antes de mais nada, espacial, mesmo se seus segmentos são construídos e reproduzidos sucessivamente; tanto que não exige qualquer sobrecodificação efetiva nesse nível, mas somente fenômenos de ajuntamento, regulações locais e interações parciais (a sobrecodificação só intervirá no nível de integrações implicando ordens de grandeza diferentes). Donde as reservas de Jacob quanto a qualquer comparação do código genético a uma linguagem: na realidade, no código genético não há nem emissor, nem receptor, nem compreensão, nem tradução, mas apenas redundâncias e mais-valias25. Ao contrário, a linearidade temporal da expressão de linguagem remete não somente a uma sucessão como também a uma síntese formal da sucessão no tempo, que constitui toda uma sobrecodificação linear e faz aparecer um fenômeno desconhecido nos outros estratos: a tradução, a tradutibilidade, por oposição às induções ou transduções precedentes. E por tradução não se deve somente compreender que uma língua possa, de algum modo, “representar” só dados de uma outra língua; mas, mais ainda, que a linguagem, com seus próprios dados no seu estrato, pode representar todos os outros estratos e aceder assim a uma concepção científica do mundo. O mundo científico (Welt, por oposição ao Umwelt animal) aparece, com efeito, como a tradução de todos os fluxos, partículas, códigos e territorialidades dos outros estratos num sistema de signos suficientemente desterritorializados, quer dizer, uma sobrecodificação própria à linguagem. É essa propriedade de sobrecodificação ou de sobrelinearidade que explica o fato de não haver, na linguagem, somente independência da expressão em relação ao conteúdo, mas também independência da forma de expressão em relação às substâncias: a tradução é possível porque uma mesma forma pode passar de uma substância a outra, contrariamente ao que acontece no código genético, por exemplo, entre as cadeias de RNA e DNA. Veremos como essa situação suscita certas pretensões imperialistas da linguagem, que se enunciam com ingenuidade nas fórmulas do tipo: “toda semiologia de um sistema nãolinguístico deve recorrer à mediação da língua. (...). A língua é o interpretante de todos ou outros sistemas, linguísticos e não-linguísticos”. Isto equivale a abstrair uma característica da linguagem para dizer que os outros

François Jacob, La logique du vivant, pp. 298, 310, 319. Jacob e Monod empregam por vezes a palavra tradução para o código genético, mas por comodidade, e com a seguinte precisão de Monod: “o código só pode ser traduzido por produtos de tradução”. 25

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estratos só podem participar dessa característica se falados. Isto seria de se esperar. Contudo, mais positivamente, deve-se constatar que essa imanência de uma tradução universal à linguagem faz com que os epistratos e os paraestratos, na ordem das superposições, difusões, comunicações, ladeamentos, procedam de modo completamente diferente do que nos outros estratos: todos os movimentos humanos, mesmo os mais violentos, implicam traduções. Precisávamos andar depressa, dizia Challenger, agora é a linha de tempo que nos empurra para esse terceiro tipo de estrato. Temos, então, uma nova organização conteúdo-expressão, cada qual com formas e substâncias: conteúdo tecnológico-expressão simbólica ou semiótica. Por conteúdo, não se deve apenas entender a mão e as ferramentas, mas uma máquina social técnica que a elas preexiste e constitui estados de força ou formações de potência. Por expressão, não se deve apenas entender a face e a linguagem, nem as línguas, mas uma máquina coletiva semiótica que a elas preexiste e constitui regimes de signos. Uma formação de potência é muito mais que uma ferramenta, um regime de signos é muito mais que uma língua: atuam antes como agentes determinantes e seletivos, tanto para a constituição das línguas, das ferramentas, quanto para seus usos, suas comunicações e difusões mútuas ou respectivas. Com o terceiro estrato ocorre, então, a emergência de Máquinas que pertencem plenamente a esse estrato, mas que, ao mesmo tempo, se alçam e estendem suas pinças em todos os sentidos, na direção de todos os outros estratos. Não seria como um estado intermediário entre os dois estados da Máquina abstrata — aquele em que ela permanecia envolvida num estrato correspondente (ecúmeno) e aquele onde ela se desenvolvia por si mesma no plano de consistência desestratificado (planômeno)? Aqui a Máquina abstrata começa a se desdobrar, começa a se erigir, produzindo uma ilusão que transborda todos os estratos, embora pertença ainda a um determinado estrato. É, evidentemente, a ilusão constitutiva do homem (quem o homem pensa que é?). É a ilusão que deriva da sobrecodificação imanente à própria linguagem. Mas o que não é ilusório são as novas distribuições do conteúdo e da expressão: conteúdo tecnológico caracterizado por mão-ferramenta, remetendo mais profundamente a uma Máquina social e a formações de potência; expressão simbólica caracterizada por face-linguagem, remetendo mais profundamente a uma Máquina semiótica e a regimes de signos. De ambos os lados, os epistratos e os paraestratos, os graus superpostos e as formas ladeadas valem mais do que nunca para os próprios estratos autônomos. Se conseguimos distinguir dois regimes de signos ou duas formações de potência,

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dizemos que são dois estratos, de fato, nas populações humanas. Mas, justamente, que correlação se estabelece então entre conteúdo e expressão, e que tipo de distinção? Tudo isso está na cabeça. Entretanto, nunca houve distinção mais real. Queremos dizer que há, efetivamente, um meio exterior comum em todo o estrato, envolvido no estrato inteiro, o meio nervoso cerebral. Ele provém do subestrato orgânico, mas este não desempenha, é claro, o papel de um subestrato, nem de um suporte passivo. Ele próprio não apresenta uma organização menor. Constitui antes a sopa pré-humana onde estamos mergulhados. Aí banhamos as mãos e o rosto. O cérebro é uma população, um conjunto de tribos que tendem para dois polos. Quando Leroi-Gourham analisa precisamente a constituição dos dois polos nessa sopa — sendo que de um dependerão as ações da face e, do outro, as da mão —, a correlação ou relatividade dos dois não impede a distinção real; implica-a, pelo contrário, como a pressuposição recíproca de duas articulações, a articulação manual de conteúdo, a articulação facial de expressão. E a distinção não é simplesmente real, como entre moléculas, coisas ou sujeitos, tornou-se essencial (dizia-se na Idade Média), como entre atributos, gêneros de ser ou categorias irredutíveis: as coisas e as palavras. Nem por isso se deixa de encontrar, levado a esse nível, o movimento mais geral pelo qual cada uma das duas articulações distintas já é dupla por si mesma, certos elementos formais do conteúdo desempenhando um papel de expressão em relação ao próprio conteúdo, certos elementos formais de expressão desempenhando um papel de conteúdo em relação à expressão mesma. Leroi-Gourham mostra, no primeiro caso, como a mão cria todo um mundo de símbolos, toda uma linguagem pluridimensional que não se confunde com a linguagem verbal unilinear e que constitui uma expressão irradiante própria ao conteúdo (seria uma origem da escrita)26. Já o segundo caso aparece nitidamente na dupla articulação peculiar à própria linguagem, visto que os fonemas formam um conteúdo irradiante adequado à expressão dos monemas considerados como segmentos significativos lineares (só nessas condições, como caráter geral de estrato, a dupla articulação ganha o sentido que lhe reserva Martinet). Pois bem, já tínhamos dado conta, provisoriamente, das relações conteúdo-expressão, sua distinção real e as variações dessas relações e dessa distinção de acordo como os grandes tipos de estratos.

26

André Leroi-Gourhan, ibid, pp. 269-275.

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Challenger queria ir cada vez mais depressa. Não tinha ficado ninguém; entretanto, ele prosseguia. Aliás, sua voz mudava cada vez mais, sua aparência também; havia algo de animal nele desde que tinha começado a falar do homem. Ainda não se poderia jurar, mas Challenger parecia se desterritorializar ali mesmo. Queria ainda considerar três problemas. O primeiro parecia sobretudo terminológico: quando é que se pode falar de signos? Devia-se colocá-los por toda parte, em todos os estratos, e dizer que havia signo cada vez que houvesse forma de expressão? Distinguiam-se sumariamente três espécies de signos: os índices (signos territoriais), os símbolos (signos desterritorializados), os ícones (signos de reterritorialização). Poderíamos semeá-los em todos os estratos pretextando que todos eles comportavam territorialidades, movimentos de desterritorialização e reterritorialização? Semelhante método expansivo seria muito perigoso porque preparava ou reforçava o imperialismo da linguagem, quanto mais não seja por apoiar-se em sua função de tradutora ou intérprete universal. Não há, evidentemente, um sistema de signos que atravesse o conjunto dos estratos, nem mesmo sob a forma de uma região “khora” semiótica que se suporia teoricamente prévia à simbolização. Parece que só se pode falar rigorosamente de signo quando há uma distinção não apenas real, mas categorial, entre as formas de expressão e as formas de conteúdo. Então, há semiótica, no estrato correspondente, porque a máquina abstrata está erigida exatamente na posição que lhe permite “escrever”, quer dizer, tratar da linguagem e dela extrair regimes de signos. Mas, aquém, nas codificações ditas naturais, a máquina abstrata permanece envolvida nos estratos: ela nada escreve e não dispõe de qualquer grau de liberdade para reconhecer algo como signo (salvo no sentido estritamente territorial do animal). E, para além, a máquina abstrata se desenvolve no plano de consistência, não tendo mais como distinguir categoricamente signos de partículas; por exemplo, ela escreve, mas escreve diretamente no real, tem uma inscrição direta no plano de consistência. Então, parece razoável reservar a palavra signo, propriamente falando, para o último grupo de estratos. Mas esta discussão terminológica só tem verdadeiramente interesse porque remete também a um outro perigo: não mais o imperialismo da linguagem em todos os estratos, ou a extensão do signo a todos os estratos, mas o imperialismo do significante sobre a própria linguagem, sobre o conjunto dos regimes de signos e sobre a extensão do estrato portadora desses regimes. Não se trata mais de saber se o signo se aplica a todos os estratos, mas se o significante se aplica a todos os signos, se todos os signos são dotados de significância, se a semiótica

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dos signos remete necessariamente a uma semiologia do significante. Por esse caminho, é possível até que sejamos levados a economizar a noção de signo, pois a primazia do significante sobre a linguagem é mais eficaz que a simples expansão do signo em todos os sentidos para garantir a primazia da linguagem sobre todos os estratos. Queremos dizer que a ilusão própria a essa posição da Máquina abstrata, ilusão de apreender e abarcar todos os estratos com suas pinças, pode ser efetuada pela ereção do significante mais seguramente ainda do que pela extensão do signo (graças à significância, a linguagem pretende estar diretamente ligada aos estratos, independentemente de uma passagem por signos supostos para cada um deles). Mas continuamos a andar em círculo; propagase, assim, a mesma gangrena. A relação linguística significante-significado foi, sem dúvida, concebida de maneiras muito diversas: ora como arbitrária, ora como necessária, da mesma forma que o verso e o anverso de uma mesma folha, ora como correspondente termo a termo, ora globalmente, ora como sendo tão ambivalente que não se pode mais distingui-los. De qualquer modo, o significado não existe fora de sua relação com o significante, e o significado último é a própria existência do significante que extrapolamos para além do signo. Sobre o significante, só podemos dizer uma coisa: ele é a Redundância, o Redundante. Donde seu incrível despotismo e o sucesso que alcançou. O arbitrário, o necessário, o correspondente termo-a-termo ou global, o ambivalente, servem a uma mesma causa que comporta a redução do conteúdo ao significado e a redução da expressão ao significante. Ora, as formas de conteúdo e as formas de expressão são eminentemente relativas e estão sempre em estado de pressuposição recíproca; mantêm correlações biunívocas, exteriores e “disformes” entre seus respectivos segmentos; não há jamais conformidade entre ambas, nem de uma à outra, mas há sempre independência e distinção reais; para ajustar uma das formas à outra e para determinar as correlações, é preciso mesmo um agenciamento específico variável. Nenhum desses caracteres convém à relação significantesignificado, mesmo se alguns parecem manter com ela uma espécie de coincidência parcial e acidental, e o conjunto dos caracteres se opõe radicalmente ao quadro do significante. Uma forma de conteúdo não é significado, do mesmo modo que uma forma de expressão não é significante27. Isso é verdadeiro para

É por isso que Hjelmslev, apesar de suas próprias reservas e hesitações, nos parece o único linguista que rompe realmente com o significante e o significado, muito mais que outros que parecem fazê-lo deliberadamente e sem reserva, mantendo, entretanto, as pressuposições implícitas do significante. 27

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todos os estratos, inclusive para aqueles onde intervém a linguagem. Os amantes de significante conservam como modelo implícito uma situação demasiado simples: a palavra e a coisa. Extraem da palavra o significante, e da coisa o significado adequado à palavra, portanto submetido ao significante. Instalam-se assim numa esfera interior homogênea à linguagem. Tomemos de empréstimo a Foucault uma análise exemplar que diz respeito à linguística, tanto mais que não parece: ou seja, uma coisa como a prisão. A prisão é uma forma, a “forma-prisão”, uma forma de conteúdo num estrato em relação com outras formas de conteúdo (escola, quartel, asilo, fábrica). Ora, esta coisa ou esta forma não remetem à palavra “prisão”, mas a palavras e conceitos diversos, tais como “delinquente, delinquência”, que exprimem uma nova maneira de classificar, enunciar, traduzir e mesmo praticar atos criminosos. “Delinquência” é a forma de expressão em pressuposição recíproca com a forma de conteúdo “prisão”. Não é absolutamente um significante, mesmo jurídico, cujo significado seria a prisão. Minimizaríamos, assim, toda análise. A forma de expressão, aliás, não se reduz a palavras, mas sim a um conjunto de enunciados que surgem no campo social considerado estrato (é isto um regime de signos). A forma de conteúdo não se reduz a uma coisa, mas a um estado de coisas complexo como formação de potência (arquitetura, programa de vida etc). Há nisso como que duas multiplicidades que não cessam de se entrecruzar, “multiplicidades discursivas” de expressões e “multiplicidades não-discursivas” de conteúdo. Isto é ainda complexo, porque a prisão como forma de conteúdo possui, ela mesma, sua expressão relativa, todos os tipos de enunciados que lhe são próprios e que não coincidem forçosamente com os enunciados de delinquência. Inversamente, a delinquência, como forma de expressão, possui, ela mesma, seu conteúdo autônomo, pois não exprime somente uma nova maneira de apreciar os crimes, mas de praticá-los. Forma de conteúdo e forma de expressão, prisão e delinquência, cada qual tem sua história, sua micro-história, seus segmentos. Quando muito elas implicam, com outros conteúdos e outras expressões, um mesmo estado de Máquina abstrata que não atua de modo algum como significante, mas como uma espécie de diagrama (uma mesma máquina abstrata para prisão, escola, quartel, asilo, fábrica...). E para ajustar os dois tipos de formas, os segmentos de conteúdo e os segmentos de expressão, é preciso todo um agenciamento concreto com dupla pinça, ou melhor, dupla cabeça que leve em conta sua distinção real. É necessário toda uma organização que articula as formações de potência e os regimes de signos e que trabalhe no nível molecular (o que Foucault chama sociedades com

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poder disciplinar28). Em suma, não se deve jamais confrontar palavras e coisas supostamente correspondentes, nem significantes e significados supostamente conformes, mas sim formalizações distintas em estado de equilíbrio instável ou pressuposição recíproca. “Não adianta dizer o que se vê; o que se vê não habita jamais o que se diz” É como na escola: não há uma lição de escrita que seja a do grande Significante redundante para significados quaisquer, há duas formalizações distintas, em pressuposição recíproca e constituindo uma dupla pinça: a formalização de expressão na lição de leitura e de escrita (com seus conteúdos relativos próprios), e a formalização de conteúdo na lição de coisas (com suas expressões relativas próprias). Não se é jamais significante ou significado, mas sim estratificado. A esse método expansivo que põe signos em todos os estratos, ou significante em todos os signos (pronto a prescindir mesmo deles, em último caso), preferiremos, então, um método severamente restritivo. Primeiramente, há formas de expressão sem signos (por exemplo, o código genético não tem nada a ver com a linguagem). Os signos se dizem somente em certas condições de estratos e nem se confundem com a linguagem em geral, mas se definem por regimes de enunciados que são outros tantos usos reais ou funções da linguagem. Mas por que manter a palavra signo para esses regimes que formalizam uma expressão sem designar nem significar os conteúdos simultâneos que se formalizam de outro modo? É que os signos não são signos de alguma coisa, mas são signos de desterritorialização e reterritorialização e marcam um certo limiar transposto nesses movimentos; e é nesse sentido que devem ser conservados (vimos isso até para os “signos” animais). Em seguida, se consideramos os regimes de signos nessa acepção restritiva, vemos que eles não são significantes, ou não o são necessariamente. Do mesmo modo que os signos só designam uma certa formalização da expressão num determinado grupo de estratos, a própria significância só designa um certo regime dentre outros nessa formalização particular. Assim como há expressões assemióticas ou sem signos, há regimes de signos assemiológicos, signos assignificantes, simultaneamente nos estratos e no plano de consistência. Tudo o que se pode dizer sobre a significância é que ela qualifica

Michel Foucault, Surveiller et punir, Gallimard. Em L’archéologie du savoir, Gallimard, Foucault já tinha esboçado sua teoria das duas multiplicidades, de expressões ou enunciados, de conteúdos ou objetos, mostrando sua irredutibilidade ao par significantesignificado. Explicava também por que o título de um de seus livros precedentes, Les mots et les choses, deveria ser compreendido negativamente (pp. 66-67). 28

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um regime, nem o mais interessante, nem o mais moderno ou atual, simplesmente talvez mais pernicioso, mais canceroso, mais despótico que os outros, por ir mais fundo na ilusão. De todo modo, conteúdo e expressão não são jamais redutíveis a significante-significado, tampouco a infraestrutura e superestrutura (aí está o segundo problema). Nem se pode fixar um primado de conteúdo como determinante, nem um primado da expressão como significante. Não se pode fazer da expressão uma forma que reflita o conteúdo, mesmo se a dotarmos de uma “certa” independência e de uma certa possibilidade de reagir. Quanto mais não seja porque o conteúdo dito econômico já tem uma forma, e mesmo formas de expressão que lhe são próprias. Forma de conteúdo e forma de expressão remetem a duas formalizações paralelas em pressuposição: é evidente que elas não param de entrecruzar seus segmentos, introduzi-los uns nos outros, mas isso em virtude de uma máquina abstrata da qual derivam ambas as formas e em virtude de agenciamentos maquínicos que regulam suas relações. Se substituímos esse paralelismo por uma imagem piramidal, fazemos do conteúdo (até em sua forma) uma infraestrutura econômica de produção que toma todas as características do Abstrato; fazemos dos agenciamentos o primeiro andar de uma superestrutura que, como tal, deve ser localizada num aparelho de Estado; fazemos dos regimes de signos e das formas de expressão o segundo andar da superestrutura, definido pela ideologia. Quanto à linguagem, não sabemos mais muito bem o que fazer com ela: o grande Déspota tinha decidido que seria preciso conferir a ela um lugar à parte como bem comum da nação e veículo de informação. Desconsideramos assim quer a natureza da linguagem, que só existe em regimes heterogêneos de signos, que distribuem ordens contraditórias em vez de fazer circular uma informação, quer a natureza dos regimes de signos que exprimem precisamente as organizações de poder ou os agenciamentos e nada têm a ver com a ideologia como suposta expressão de um conteúdo (a ideologia é o conceito mais execrável que esconde todas as máquinas sociais efetivas), quer a natureza das organizações de poder, que não se localizam absolutamente num aparelho de Estado, mas operam em todo e qualquer lugar as formalizações de conteúdo e expressão cujos segmentos entrecruzam, quer a natureza do conteúdo, que não é absolutamente econômico “em última instância”, pois há tanto signos ou expressões diretamente econômicas quanto conteúdos não-economistas. Não é também introduzindo significante na infraestrutura, ou o inverso, um pouco de falo ou castração na economia política, um pouco de economia ou política na Psicanálise, que se elabora um estatuto das formações sociais.

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Há, enfim, um terceiro problema, pois é difícil expor o sistema dos estratos sem parecer introduzir entre eles uma espécie de evolução cósmica ou mesmo espiritual, como se eles se ordenassem em estágios e passassem por graus de perfeição. Entretanto, não é nada disso. As diferentes figuras do conteúdo e da expressão não são estágios. Não há biosfera, noosfera, por toda parte só há uma única e mesma Mecanosfera. Se considerarmos, primeiramente, os estratos por si mesmos, não poderemos dizer que um seja menos organizado que outro. Mesmo o que serve: não há ordem fixa, e um estrato pode servir de subestrato direto a um outro independentemente dos intermediários que se poderia julgar necessários do ponto de vista dos estágios e dos graus (por exemplo, setores microfísicos como subestrato imediato de fenômenos orgânicos). Ou, então, a ordem aparente pode ser invertida e fenômenos tecnológicos ou culturais serem um bom húmus, uma boa sopa para o desenvolvimento dos insetos, bactérias, micróbios ou mesmo partículas. A idade industrial definida como idade dos insetos... Hoje em dia, pior ainda: não se pode mais dizer de antemão qual estrato comunica com tal outro, nem em que sentido. Sobretudo não há organização menor, menos alta ou mais alta, e o subestrato é parte integrante do estrato, nele estando preso a título de meio onde se processa a mudança, não o aumento de organização29. Se, por outro lado, considera-se o plano de consistência, percebe-se que ele é percorrido pelas coisas e signos mais heteróclitos: um fragmento semiótico avizinha-se de uma interação química, um elétron percute uma linguagem, um buraco negro capta uma mensagem genética, uma cristalização tem uma paixão, a vespa e a orquídea atravessam uma letra... Não é “como”, não é “como um elétron”, “como uma interação” etc. O plano de consistência é a abolição de qualquer metáfora; tudo o que consiste é Real. São elétrons em pessoa, buracos negros verdadeiros, organitos em realidade, sequências de signos autênticas. Só que eles são arrancados dos seus estratos, desestratificados, descodificados, desterritorializados, e é isso que permite sua vizinhança e sua mútua penetração no plano de consistência. Uma dança muda. O plano de consistência ignora as diferenças de nível, as ordens de grandeza e as distâncias. Ignora qualquer diferença entre o artificial e o natural. Ignora a distinção dos conteúdos e das expressões, assim como a das formas e substâncias formadas, que só existem pelos estratos e em relação aos estratos.

29

Gilbert Simondon, ibid, pp. 139-141.

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Mas como poderemos ainda identificar e nomear as coisas, se elas perderam os estratos que as qualificavam e passaram para uma desterritorialização absoluta? Os olhos são buracos negros, mas o que são buracos negros e olhos fora de seus estratos e suas territorialidades? Precisamente, não podemos nos contentar com um dualismo ou com uma oposição sumária entre os estratos e o plano de consistência desestratificado. É que os próprios estratos são animados e definidos por velocidades de desterritorialização relativa; mais que isso, a desterritorialização absoluta aí está desde o começo, e os estratos são recaídas, espessamentos num plano de consistência por toda parte presente, por toda parte primeiro, sempre imanente. Além disso, o plano de consistência é ocupado, traçado pela Máquina abstrata; ora, esta existe simultaneamente desenvolvida no plano desestratificado que traça, mas envolvida em cada estrato cuja unidade de composição define e mesmo erigida pela metade em certos estratos cuja forma de preensão ela também define. O que foge ou dança no plano de consistência carrega, pois, uma aura do seu estrato, uma ondulação, uma lembrança ou uma tensão. O plano de consistência conserva apenas os estratos suficientes para deles extrair variáveis que nele se exercem como suas próprias funções. O plano de consistência, ou o planômeno, não é de modo algum um conjunto indiferenciado de matérias não-formadas, tampouco um caos de quaisquer matérias formadas. E bem verdade que no plano de consistência não mais existam formas nem substâncias, não mais existe conteúdo nem expressão, nem mesmo desterritorializações relativas e respectivas. Mas, sob as formas e as substâncias de estratos, o plano de consistência (ou máquina abstrata) constrói contínuos de intensidade: cria uma continuidade para intensidades que extrai de formas e substâncias distintas. Sob os conteúdos e as expressões, o plano de consistência (ou a máquina abstrata) emite e combina signos-partículas (partigos) que fazem o signo mais assignificante funcionar na partícula mais desterritorializada. Sob os movimentos relativos, o plano de consistência (ou a máquina abstrata) opera conjunções de fluxos de desterritorialização que transformam os indícios respectivos em valores absolutos. Os estratos conhecem apenas intensidades descontínuas, tomadas em formas e substâncias; partigos divididos em partículas de conteúdo e artigos de expressão; e fluxos desterritorializados disjuntos e reterritorializados. Contínuos de intensidades, emissão combinada de partigos ou de partículas signos, conjunção de fluxos desterritorializados, são estes, ao contrário, os três fatores próprios ao plano de consistência, operados pela máquina abstrata e constituindo a desestratificação. Ora, nada disso é uma noite

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em claro caótica ou uma noite escura indiferenciada. Há regras que são as da “planificação”, da diagramatização. Veremos isso mais tarde ou em outro lugar. A máquina abstrata não é uma máquina qualquer; as continuidades, as emissões e combinações, as conjugações não se fazem de qualquer maneira. Por enquanto, seria preciso assinalar uma última distinção. A máquina abstrata tem estados diferentes simultâneos que dão conta da complexidade do que se passa no plano de consistência, mas, além disso, ela não deve ser confundida com o que chamamos agenciamento maquínico concreto. A máquina abstrata ora se desenvolve no plano de consistência cujos contínuos, emissões e conjugações constrói, ora permanece envolvida num estrato do qual ela define a unidade de composição e a força de atração ou preensão. O agenciamento maquínico é completamente diferente, se bem que em estreita relação: primeiro, ele opera as coadaptações de conteúdo e expressão num estrato, assegura as correlações biunívocas entre segmentos de ambos, pilota as divisões do estrato em epistratos e paraestratos; depois, de um estrato a outro, assegura a relação com o que é subestrato e as correspondentes mudanças de organização; finalmente, ele é voltado para o plano de consistência porque efetua necessariamente a máquina abstrata em tal ou qual estrato, entre os estratos e na relação destes com o plano. Era preciso um agenciamento, por exemplo a bigorna do ferreiro mencionada pelos Dogons, para que se fizessem as articulações do estrato orgânico. É preciso um agenciamento para que se faça a relação entre dois estratos. Para que os organismos se vejam presos e penetrados num campo social que os utilize: as Amazonas não têm que cortar um seio para que o estrato orgânico se adapte a um estrato tecnológico guerreiro, por exigência de um terrível agenciamento mulher-arco-estepe? São necessários agenciamentos para que estados de forças e regimes de signos entrecruzem sua relações. São necessários agenciamentos para que seja organizada a unidade de composição envolvida num estrato, isto é, para que as relações entre tal estrato e os outros, entre esses estratos e o plano de consistência, sejam relações organizadas e não relações quaisquer. Sob todos os pontos de vista, os agenciamentos maquínicos efetuam a máquina abstrata tal como ela é desenvolvida no plano de consistência ou envolvida num estrato. E não haverá problema mais importante que este: considerando-se um agenciamento maquínico, qual é sua relação de efetuação com a máquina abstrata? De que modo ele efetua essa relação, com qual adequação? Classificar os agenciamentos. O que chamamos mecanosfera é o conjunto das máquinas abstratas e agenciamentos maquínicos, ao mesmo tempo, fora dos estratos, nos estratos e interestráticos.

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O sistema dos estratos, portanto, nada tinha a ver com significante-significado, nem com infraestrutura superestrutura, nem com matéria-espírito. Tais oposições eram maneiras de reduzir a um todos os estratos, ou então de fechar o sistema sobre si, isolandoo do plano de consistência como desestratificação. Precisávamos resumir, antes que a voz nos faltasse. Challenger estava terminando. Sua voz tinha se tornado inaudível, sibilante. Respirava com dificuldade. Suas mãos transformavam-se em pinças alongadas, que não podiam pegar mais nada e designavam ainda alguma coisa vagamente. A máscara dupla, a dupla cabeça pareciam desmanchar-se por dentro numa matéria que, impossível distingui-lo, tornava-se mais espessa, ou, ao contrário, fluida. Alguns ouvintes tinham voltado, mas eram sombras ou vagabundos. “Vocês ouviram? É a voz de um animal.” Era preciso então resumir rapidamente, fixar a terminologia do jeito que se pudesse, por nada. Havia inicialmente um primeiro grupo de noções: o Corpo sem Órgãos ou o Plano de consistência desestratificado — a Matéria do Plano, o que se passa nesse corpo e nesse plano (multiplicidades singulares, não segmentarizadas, feitas de contínuos intensivos, emissões signos-partículas, conjunções de fluxos) —, a ou as Máquinas abstratas, uma vez que constroem esse corpo, traçam esse plano ou “diagramatizam” o que se passa (linhas de fuga ou desterritorializações absolutas). Depois havia o sistema de estratos. No contínuo intensivo, os estratos recortavam formas e formavam as matérias em substâncias. Nas emissões combinadas, distinguiam expressões e conteúdos, unidades de expressão e unidades de conteúdo, por exemplo, signos e partículas. Nas conjunções, separavam os fluxos consignando-lhes movimentos relativos e territorialidades diversas, desterritorializações relativas e reterritorializações complementares. Assim os estratos instauravam por toda parte articulações duplas animadas de movimentos: formas e substâncias de expressão, que constituíam multiplicidades segmentárias sob relações, a cada vez, determináveis. Tais eram os strata. Cada estrato era uma dupla articulação de conteúdo e expressão, ambos realmente distintos, ambos em estado de pressuposição recíproca, disseminando-se um no outro, com agenciamentos maquínicos de duas cabeças estabelecendo correlações entre seus segmentos. O que variava de um estrato a outro era a natureza da distinção real entre conteúdo e expressão, a natureza das substâncias como matérias formadas, a natureza dos movimentos relativos. Podia-se sumariamente distinguir três grandes tipos de distinção real: a real-formal para as ordens de grandeza onde se instaurava uma ressonância de expressão (indução); a

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real-real para sujeitos diferentes onde se instaurava uma linearidade de expressão (transdução); a real-essencial para atributos ou categorias diferentes onde se instaurava uma sobrelinearidade de expressão (tradução). Um estrato servia de subestrato a outro. Tinha uma unidade de composição de acordo com seu meio, seus elementos substanciais e seus traços formais (Ecúmeno). Mas se dividia em paraestratos, segundo suas formas irredutíveis e seus meios associados, e em epistratos, segundo suas camadas de substâncias formadas e seus meios intermediários. Epistratos e paraestratos deviam ser, eles próprios, considerados estratos. Um agenciamento maquínico era um interestrato, uma vez que regulava as relações entre os estratos, mas também, em cada um deles, as relações entre conteúdos e expressões conforme as divisões precedentes. Um mesmo agenciamento podia recorrer a estratos diferentes e numa certa desordem aparente; inversamente, um estrato ou um elemento de estrato podiam funcionar com outros mais, graças a um agenciamento diferente. O agenciamento maquínico, enfim, era um metaestrato porque, por outro lado, ficava voltado para o plano de consistência e efetuava necessariamente a máquina abstrata. Esta existia envolvida em cada estrato cujo Ecúmeno ou unidade de composição definia, e desenvolvida no plano de consistência cuja desestratificação conduzia (o Planômeno). Os agenciamentos não ajustavam, por conseguinte, as variáveis de um estrato em função de sua unidade sem também efetuar, dessa ou daquela maneira, a máquina abstrata tal como ela se apresentava fora dos estratos. Os agenciamentos maquínicos se davam, simultaneamente, no cruzamento dos conteúdos e das expressões em cada estrato, e do conjunto dos estratos com o plano de consistência. Eles giravam efetivamente em todas as direções, como faróis. Pronto, estava acabado. Só mais tarde tudo aquilo tomaria um sentido concreto. A dupla máscara articulada tinha-se desfeito, mas também as luvas e a túnica de onde escorriam líquidos que, em seu percurso fugidio, pareciam corroer os estratos da sala de conferência “cheia das fumaças do olíbano e forrada de papel com estranhos desenhos”. Desarticulado, desterritorializado, Challenger murmurava que levava a terra consigo, partia para o mundo misterioso, seu jardim venenoso. Sussurrava ainda: é por debandada que as coisas progridem e os signos proliferam. O pânico é a criação. Uma jovem gritou “debaixo da mais selvagem, mais profunda e mais hedionda crise de pânico epilético”. Ninguém tinha ouvido o resumo e ninguém tentava reter Challenger. Challenger, ou o que dele restava, precipitava-se lentamente para o plano de consistência seguindo uma trajetória bizarra que nada mais tinha de relativo. Tentava

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deslizar para dentro do agenciamento que servia de porta giratória, espécie de Relógio de partigos, com tique-taque intensivo, ritmos conjugados que martelavam o absoluto: “A silhueta desmoronou numa postura quase nada humana e começou, fascinada, um movimento singular na direção do relógio em forma de caixão que tiquetaqueava seu ritmo anormal e cósmico (...). A silhueta tinha agora alcançado o misterioso relógio, e os espectadores viram, através de densas fumaças, uma indistinta garra negra arranhando a grande porta coberta de hieróglifos. O toque da garra provocou um estranho tilintar. A silhueta entrou então na arca em forma de caixão e fechou a porta atrás de si. O tiquetaque anormal recomeçou, martelando o negro ritmo cósmico que está na base da abertura de todas as portas ocultas30“ — a Mecanosfera, ou rizosfera. Tradução de Célia Pinto Costa

30

Lovecraft, Démons et merveilles, Bibliothèque mondiale, pp. 61-62.

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4 20 DE NOVEMBRO DE 1923 POSTULADOS DA LINGUÍSTICA

Agenciamento da palavra de ordem I. A linguagem seria informativa e comunicativa A professora não se questiona quando interroga um aluno, assim como não se questiona quando ensina uma regra de gramática ou de cálculo. Ela “ensigna”, dá ordens, comanda. Os mandamentos do professor não são exteriores nem se acrescentam ao que ele nos ensina. Não provêm de significações primeiras, não são a consequência de informações: a ordem se apoia sempre, e desde o início, em ordens, por isso é redundância. A máquina do ensino obrigatório não comunica informações, mas impõe à criança coordenadas semióticas com todas as bases duais da gramática (masculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito do enunciado-sujeito de enunciação etc). A unidade elementar da linguagem — o enunciado — é a palavra de ordem. Mais do que o senso comum, faculdade que centralizaria as informações, é preciso definir uma faculdade abominável

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que consiste em emitir, receber e transmitir as palavras de ordem. A linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer. “A baronesa não tem a mínima intenção de me convencer de sua boa-fé, ela me indica simplesmente aquilo que prefere me ver fingir admitir1“. Isso pode ser percebido nos informes da polícia ou do governo, que pouco se preocupam com a verossimilhança ou com a veracidade, mas que definem muito bem o que deve ser observado e guardado. A indiferença dos comunicados em relação a qualquer credibilidade frequentemente beira a provocação. O que prova que se trata de uma outra coisa. Mas deixemos bem claro: a linguagem não exige mais do que isso. Spengler observa que as formas fundamentais da fala não são o enunciado de um juízo nem a expressão de um sentimento, mas “o comando, o testemunho de obediência, a asserção, a pergunta, a afirmação ou a negação”, frases muito curtas que comandam a vida e que são inseparáveis dos empreendimentos ou das grandes realizações: “Pronto?”, “Sim”, “Vamos2“. As palavras não são ferramentas; mas damos às crianças linguagem, canetas e cadernos, assim como damos pás e picaretas aos operários. Uma regra de gramática é um marcador de poder, antes de ser um marcador sintático. A ordem não se relaciona com significações prévias, nem com uma organização prévia de unidades distintivas, mas sim o inverso. A informação é apenas o mínimo estritamente necessário para a emissão, transmissão e observação das ordens consideradas como comandos. É preciso estar suficientemente informado para não confundir Au feu! (Fogo!) com Au jeu! (Jogo!), ou para evitar a situação deveras desagradável do professor e do aluno segundo Lewis Carroll (o professor lança uma questão do alto da escadaria, transmitida pelos valetes que a deformam a cada degrau, ao passo que o aluno, embaixo, no pátio, envia uma resposta, ela mesma deformada, a cada etapa da subida). A linguagem não é a vida, ela dá ordens à vida; a vida não fala, ela escuta e aguarda3. Em toda palavra de ordem, mesmo de um pai a seu filho, há uma pequena sentença de morte — um Veredito, dizia Kafka.

Georges Darien, L’épaulette, 10-18, p.435. Ou Zola, La bete bumaine, Gallimard, p.188: “E ela dizia isso, não para convencêlo, mas unicamente para adverti-lo de que ela devia ser inocente aos olhos dos outros”. Esse tipo de frase nos parece característico do romance em geral, muito mais do que a frase informativa “a marquesa saiu às cinco horas”. 1

2

Spengler, L’homme et la technique, Gallimard, Idées, p.103.

Brice Parain, Sur la dialectique, Gallimard. Parain desenvolve uma teoria da “suposição” ou do pressuposto na linguagem, relacionada a essas ordens dadas à vida: mas vê, nestas, menos um poder no sentido político do que um dever no sentido moral. 3

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O difícil é precisar o estatuto e a extensão da palavra de ordem. Não se trata de uma origem da linguagem, já que a palavra de ordem é apenas uma função-linguagem, uma função coextensiva à linguagem. Se a linguagem parece sempre supor a linguagem, se não se pode fixar um ponto de partida não-linguístico, é porque a linguagem não é estabelecida entre algo visto (ou sentido) e algo dito, mas vai sempre de um dizer a um dizer. Não acreditamos, a esse respeito, que a narrativa consista em comunicar o que se viu, mas em transmitir o que se ouviu, o que um outro disse. Ouvir dizer. Nem mesmo basta evocar uma visão deformante vinda da paixão. A “primeira” linguagem, ou, antes, a primeira determinação que preenche a linguagem, não é o tropo ou a metáfora, é o discurso indireto. A importância que se quis dar à metáfora, à metonímia, revela-se desastrosa para o estudo da linguagem. Metáforas e metonímias são apenas efeitos que só pertencem à linguagem quando já supõem o discurso indireto. Existem muitas paixões em uma paixão, e todos os tipos de voz em uma voz, todo um rumor, glossolalia: isto porque todo discurso é indireto, e a translação própria à linguagem é a do discurso indireto 4. Benveniste nega que a abelha tenha uma linguagem, ainda que disponha de uma codificação orgânica, e até mesmo se utilize de tropos. Ela não tem linguagem porque é capaz de comunicar o que viu, mas não de transmitir o que lhe foi comunicado. A abelha que percebeu um alimento pode comunicar a mensagem àquelas que não o perceberam; mas a que não o percebeu não pode transmiti-lo às outras que igualmente não o perceberam5. A linguagem não se contenta em ir de um primeiro a um segundo, de alguém que viu a alguém que não viu, mas vai necessariamente de um segundo a um terceiro, não tendo, nenhum deles, visto. É nesse sentido que a linguagem é transmissão de palavra funcionando como palavra de ordem, e não comunicação de um signo como informação. A linguagem é um

Dois autores sobretudo destacaram a importância do discurso indireto, especialmente na forma dita “livre”, do ponto de vista de uma teoria da enunciação que vai além das categorias linguísticas tradicionais: Mikhail Bakhtin (para o russo, o alemão e o francês), Le marxisme et Ia philosophie du langage, Ed. de Minuit, parte III; P.P. Pasolini (para o italiano), L’expérience héretique, Payot, 1.a parte. Utilizamo-nos também de um estudo inédito de J.-P. Bamberger sobre “Les formes du discouirs indirect dans le cinema muet et parlant”. 4

Emile Benveniste, Problèmes de linguistique génerale, Gallimard, p.61: “Não se constatou que uma abelha vá, por exemplo, levar para uma outra colméia a mensagem que recebeu na sua, o que seria uma maneira de transmissão ou de alternância.” 5

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mapa e não um decalque. Mas em quê a palavra de ordem é uma função coextensiva à linguagem, visto que a ordem, o comando, parecem remeter a um tipo restrito de proposições explícitas marcadas pelo imperativo? As célebres teses de Austin mostram que não existem, entre a ação e a fala, apenas relações extrínsecas diversas, de forma que um enunciado possa descrever uma ação no modo indicativo, ou antes provocá-la em um modo imperativo, etc. Existem também relações intrínsecas entre a fala e determinadas ações que se realizam quando estas são ditas (o performativo: juro ao dizer “eu juro”), e mais geralmente entre a fala e determinadas ações que se realizam quando falamos (o ilocutório: interrogo dizendo “será que...?”, prometo dizendo “eu te amo...”, ordeno empregando o imperativo... etc). São esses atos, interiores à fala, essas relações imanentes dos enunciados com os atos, que foram chamados de pressupostos implícitos ou não discursivos, diferenciando-se das suposições sempre explicitáveis nas quais um enunciado remete a outros enunciados ou, antes, a uma ação exterior (Ducrot). O destaque da esfera do performativo, e da esfera mais vasta do ilocutório, apresentava três importantes consequências: 1) A impossibilidade de conceber a linguagem como um código, visto que este é a condição que torna possível uma explicação; e a impossibilidade de conceber a fala como a comunicação de uma informação: ordenar, interrogar, prometer, afirmar, não é informar um comando, uma dúvida, um compromisso, uma asserção, mas efetuar esses atos específicos imanentes, necessariamente implícitos; 2) A impossibilidade de definir uma semântica, uma sintaxe ou mesmo uma fonemática, como zonas científicas de linguagem que seriam independentes da pragmática; a pragmática deixa de ser uma “cloaca”, as determinações pragmáticas deixam de estar submetidas à alternativa: ou se voltar para o exterior da linguagem, ou responder a condições explícitas sob as quais elas são sintaxizadas e semantizadas; a pragmática se torna, ao contrário, o pressuposto de todas as outras dimensões, e se insinua por toda parte; 3) A impossibilidade de manter a distinção língua-fala, visto que a fala não pode mais ser definida pela simples utilização individual e extrínseca de uma significação primeira, ou pela aplicação variável de uma sintaxe prévia: ao contrário, são o sentido e a sintaxe da língua que não se deixam definir independentemente dos atos de fala que ela pressupõe6.

William Labov apontou a contradição, ou pelo menos o paradoxo, no qual desembocava a distinção língua-fala: define-se a língua como “a parte social” da linguagem, remete-se a fala às variações individuais; mas estando a parte social fechada sobre si mesma, disso resulta necessariamente que um único indivíduo testemunhará em direito pela língua, independentemente de qualquer dado exterior, ao passo que a fala só será descoberta em um contexto social. De Saussure a Chomsky, é o mesmo paradoxo: “O aspecto social da linguagem se deixa estudar na intimidade de um gabinete, ao passo que seu aspecto individual exige uma pesquisa no interior da comunidade” (Sociolinguistique, Ed. de Minuit, p.259 sq., 361 ss).. 6

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É verdade que ainda não se consegue compreender bem como é possível fazer, dos atos de fala ou pressupostos implícitos, uma função coextensiva à linguagem. Compreende-se menos ainda tal operação se partimos do performativo (o que é feito quando “o” falamos) para ir, por extensão, até o ilocutório (o que é feito quando falamos). Pois podese sempre evitar essa extensão e encerrar o performativo nele mesmo, explicando-o por caracteres semânticos e sintáticos particulares que evitam qualquer recurso a uma pragmática generalizada. Assim, segundo Benveniste, o performativo não remete a atos, mas, ao contrário, à propriedade de termos sui-referenciais (os verdadeiros pronomes pessoais EU, TU..., definidos como embreantes): de tal modo que uma estrutura de subjetividade, de intersubjetividade prévia na linguagem, dê conta suficientemente dos atos de fala, ao invés de pressupô-los7. A linguagem é então definida aqui como comunicativa mais do que como informativa, e é essa intersubjetividade, essa subjetivação propriamente linguística, que explica o resto, isto é, tudo aquilo que fazemos existir ao dizê-”lo”. Mas a questão é a de saber se a comunicação subjetiva é uma noção linguística melhor do que a de in formação ideal. Oswald Ducrot expôs as razões que o levaram a inverter o esquema de Benveniste: não é o fenômeno de sui-referência que pode dar conta do performativo, mas o inverso, é “o fato de determinados enunciados serem socialmente consagrados à realização de determinadas ações” que explica a suireferência. De modo que o próprio performativo é explicado pelo ilocutório, e não o contrário. É o ilocutório que constitui os pressupostos implícitos ou não-discursivos. E o ilocutório, por sua vez, é explicado por agenciamentos coletivos de enunciação, por atos jurídicos, equivalentes de atos jurídicos, que coordenam os processos de subjetivação ou as atribuições de sujeitos na língua, e que não dependem nem um pouco dela. A comunicação não é um conceito melhor do que o de informação, nem a intersubjetividade vale mais do que a significância para esclarecer esses agenciamentos “enunciadosatos” que medem, em cada língua, o papel e a participação dos

7

Benveniste, Problèmes de linguistique générale (parte V): sobre a eliminação do ilocutório, cf. p.274 sq.

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morfemas subjetivos8. (Veremos que a análise do discurso indireto confirma esse ponto de vista, já que nele as subjetivações não são primeiras, mas derivam de um agenciamento complexo). Chamamos palavras de ordem não uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem não remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão ligados aos enunciados por uma “obrigação social”. Não existe enunciado que não apresente esse vínculo, direta ou indiretamente. Uma pergunta, uma promessa, são palavras de ordem. A linguagem só pode ser definida pelo conjunto das palavras de ordem, pressupostos implícitos ou atos de fala que percorrem uma língua em um dado momento. A relação entre o enunciado e o ato é interior, imanente, mas não existe identidade. A relação é, antes, de redundância. A palavra de ordem é, em si mesma, redundância do ato e do enunciado. Os jornais, as notícias, procedem por redundância, pelo fato de nos dizerem o que é “necessário” pensar, reter, esperar, etc. A linguagem não é informativa nem comunicativa, não é comunicação de informação, mas — o que é bastante diferente — transmissão de palavras de ordem, seja de um enunciado a um outro, seja no interior de cada enunciado, uma vez que um enunciado realiza um ato e que o ato se realiza no enunciado. O esquema mais geral da informática admite, em princípio, uma informação máxima ideal, e faz da redundância uma simples condição limitativa que diminui este máximo teórico para impedir que seja encoberto pelo ruído. Dizemos, ao contrário, que aquilo que é primeiro é a redundância da palavra de ordem, e que a informação é apenas a condição mínima para a transmissão das palavras de ordem (é por isso que não há como opor o ruído à informação, mas, antes, opor todas as indisciplinas que trabalham a linguagem, à palavra de ordem como disciplina ou “gramaticalidade”). A redundância tem duas formas, frequência e ressonância, a primeira concernente à significância da informação, a segunda (EU = EU) concernente à

Oswald Ducrot, Dire et ne pas dire, Hermann, p.70-80 (e “De Saussure à Ia philosophie du langage”, prefácio a Actes de langage, J.R. Searle, Hermann). Ducrot questiona as noções de informação e de código, de comunicação e de subjetividade linguísticas. Elabora uma teoria da “pressuposição linguística” ou do implícito não-discursivo, em oposição ao implícito discursivo e concluído que se refere ainda a um código. Constrói uma pragmática que penetra toda a linguística, e tende para um estudo dos agenciamentos de enunciação, considerados de um ponto de vista “jurídico”, “polêmico” ou “político”. 8

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subjetividade da comunicação. Mas o que surge desse ponto de vista é justamente a subordinação da informação e da comunicação, ou, mais ainda, da significância e da subjetivação, em relação à redundância. Ocorre que informação e comunicação se separam; e, igualmente, que se destacam uma significância abstrata da informação e uma subjetivação abstrata da comunicação. Mas nada disso nos dá uma forma primária ou implícita da linguagem. Não existe significância independente das significações dominantes nem subjetivação independente de uma ordem estabelecida de sujeição. Ambas dependem da natureza e da transmissão das palavras de ordem em um campo social dado. Não existe enunciação individual nem mesmo sujeito de enunciação. Entretanto, existem relativamente poucos linguistas que tenham analisado o caráter necessariamente social da enunciação9. É porque esse caráter não é suficiente por ele mesmo, e pode, ainda, ser extrínseco: assim, ou se fala demais ou muito pouco sobre ele. O caráter social da enunciação só é intrinsicamente fundado se chegamos a mostrar como a enunciação remete, por si mesma, aos agenciamentos coletivos. Assim, compreende-se que só há individuação do enunciado, e da subjetivação da enunciação, quando o agenciamento coletivo impessoal o exige e o determina. Esse é precisamente o valor exemplar do discurso indireto, e sobretudo do discurso indireto “livre”: não há contornos distintivos nítidos, não há, antes de tudo, inserção de enunciados diferentemente individuados, nem encaixe de sujeitos de enunciação diversos, mas um agenciamento coletivo que irá determinar como sua consequência os processos relativos de subjetivação, as atribuições de individualidade e suas distribuições moventes no discurso. Não é a distinção dos sujeitos que explica o discurso indireto; é o agenciamento, tal como surge livremente nesses discursos, que explica todas as vozes presentes em uma voz, as risadas de meninas em um monólogo de Charlus, as línguas em uma língua, em suma, as palavras de ordem. O assassino americano “Son of Sam” matava sob o impulso de uma voz ancestral, mas que passava, ela mesma, pela voz de um cão. É a noção de agenciamento coletivo de enunciação que se torna a mais importante, já que deve dar conta do caráter social. Ora, podemos, sem dúvida, definir o agenciamento coletivo pelo complexo redundante do ato e do enunciado que o efetua necessariamente.

Bakhtine e Labov insistiram, de duas maneiras diferentes, no caráter social da enunciação. Dessa forma, eles se opõem não apenas ao subjetivismo, mas ao estruturalismo, dado que este remete o sistema da língua à compreensão de um indivíduo de direito, e os fatores sociais, aos indivíduos de fato enquanto falantes. 9

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Mas temos aí apenas uma definição nominal; e não estamos nem mesmo em condições de justificar nossa posição precedente segundo a qual a redundância não se reduz a uma simples identidade (ou segundo a qual não há simples identidade do enunciado e do ato). Se se quer passar a uma definição real do agenciamento coletivo, perguntar-se-á em que consistem os atos imanentes à linguagem, atos que estão em redundância com os enunciados ou criam palavras de ordem. Parece que esses atos se definem pelo conjunto das transformações incorpóreas em curso em uma sociedade dada, e que se atribuem aos corpos dessa sociedade. Podemos dar à palavra “corpo” o sentido mais geral (existem corpos morais, as almas são corpos etc); devemos, entretanto, distinguir as ações e as paixões que afetam esses corpos, e os atos, que são apenas seus atributos não corpóreos, ou que são “o expresso” de um enunciado. Quando Ducrot se pergunta em que consiste um ato, ele chega precisamente ao agenciamento jurídico, e dá como exemplo a sentença do magistrado, que transforma o acusado em condenado. Na verdade, o que se passa antes — o crime pelo qual se acusa alguém — e o que se passa depois — a execução da pena do condenado — são açõespaixões afetando os corpos (corpo da propriedade, corpo da vítima, corpo dó condenado, corpo da prisão); mas a transformação do acusado em condenado é um puro ato instantâneo ou um atributo incorpóreo, que é o expresso da sentença do magistrado10. A paz e a guerra são estados ou misturas de corpos muito diferentes; mas o decreto de mobilização geral exprime uma transformação incorpórea e instantânea dos corpos. Os corpos têm uma idade, uma maturação, um envelhecimento; mas a maioridade, a aposentadoria, determinada categoria de idade, são transformações incorpóreas que se atribuem imediatamente aos corpos, nessa ou naquela sociedade. “Você não é mais uma criança...”: esse enunciado diz respeito a uma transformação incorpórea, mesmo que esta se refira aos corpos e se insira em suas ações e paixões. A transformação incorpórea é reconhecida por sua instantaneidade, por sua imediatidade, pela simultaneidade do enunciado que a exprime e do efeito que ela produz; eis

Ducrot, p.77: “Qualificar uma ação como crime (roubo, abuso de confiança, chantagem etc) não é, no sentido que damos a esse termo, apresentá-la como um ato, visto que a situação jurídica de culpabilidade, que define o crime, c considerada como resultante de tais ou quais consequências outras da atividade descrita: tal atividade é considerada como passível de punição por prejudicar os outros, a ordem, a sociedade etc. O enunciado de uma sentença por um juiz pode, ao contrário, ser considerado como um ato jurídico, visto que nenhum efeito vem se intercalar entre a palavra do juiz e a transformação do acusado em condenado”. 10

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por que as palavras de ordem são estritamente datadas, hora, minuto e segundo, e valem tão logo datadas. O amor é uma mistura de corpos que pode ser representada por um coração atravessado por uma flecha, por uma união de almas etc; mas a declaração “Eu te amo” expressa um atributo não-corpóreo dos corpos, tanto do amante quanto do amado. Comer pão e beber vinho são misturas de corpos; comunicar com o Cristo é também uma mistura entre corpos propriamente espirituais, não menos “reais”. Mas a transformação do corpo do pão e do vinho em corpo e sangue do Cristo é a pura expressão de um enunciado, atribuído aos corpos. Em um sequestro de avião, a ameaça do bandido que aponta um revólver é evidentemente uma ação; da mesma forma que a execução de reféns, caso ocorra. Mas a transformação dos passageiros em reféns, e do corpo-avião em corpo-prisão, é uma transformação incorpórea instantânea, um mass-media act no sentido em que os ingleses falam de speech-act. As palavras de ordem ou os agenciamentos de enunciação em uma sociedade dada — em suma, o ilocutório — designam essa relação instantânea dos enunciados com as transformações incorpóreos ou atributos não-corpóreos que eles expressam. Essa instantaneidade da palavra de ordem que pode ser projetada ao infinito, situada na origem da sociedade, é bastante curiosa: assim, em Rousseau, a passagem do estado de natureza ao estado civil é como um salto no mesmo lugar, uma transformação incorpórea que se faz no instante Zero. A História real narra, sem dúvida, as ações e as paixões dos corpos que se desenvolvem em um campo social, ela as comunica de uma certa maneira; mas também transmite as palavras de ordem, isto é, os atos puros que se intercalam nesse desenvolvimento. A História não se desembaraçará das datas. Talvez seja a economia, ou a análise financeira, que melhor mostre a presença e a instantaneidade desses atos decisórios em um processo de conjunto (é por isso que os enunciados certamente não fazem parte da ideologia, mas já operam no domínio suposto da infraestrutura). A inflação galopante na Alemanha, depois de 1918, é um processo que afeta o corpo monetário, e muitos outros corpos; mas o conjunto das “circunstâncias” possibilita subitamente uma transformação semiótica que, para ser teoricamente indexada sobre o corpo da terra e dos ativos materiais, não é por isso menos um ato puro ou uma transformação incorpórea — o 20 de novembro de 192311...

J.K. Galbraith, L’argent, Gallimard, Idées, “L’Inflation finale”, p.259 sq.: “A cortina caiu em 20 de novembro de 1923. Assim como para a Áustria um ano antes, o fim chega brutalmente. E como a inflação francesa de menor amplitude, ela termina com uma facilidade desconcertante. Terminou talvez porque não pudesse mais continuar. Em 20 de novembro decretouse que o velho reichmarck não era mais uma moeda. Instaurou-se uma nova, o rentenmark. (...). Decretou-se que esse novo rentenmark seria garantido por uma hipoteca sobre o conjunto do solo e dos outros ativos materiais detidos pelo Reich. A origem dessas ideias remonta aos assignats*: mas essa nova moeda era nitidamente mais fraudulenta [Galbraith quer dizer: desterritorializada]. Na França de 1789, existiam vastas terras recentemente confiscadas da Igreja que poderiam, no início, ser trocadas por moeda. Mas se um alemão tivesse exercido um direito de posse sobre a propriedade fundiária, ter-se-ia duvidado de sua saúde mental. E, entretanto, o sistema funcionou. Com a ajuda das circunstâncias. (...). Se, depois de 1923, o orçamento alemão tivesse sido submetido às mesmas exigências que anteriormente (as indenizações e o custo da resistência passiva), nada teria salvado o marco e sua reputação. [* Papel moeda emitido durante a Revolução Francesa e que era, em princípio, caucionado nos bens nacionais. (N. das T).] 11

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Os agenciamentos não cessam de variar, de ser eles mesmos submetidos a transformações. Em primeiro lugar, é necessário fazer intervir as circunstâncias: Benveniste mostra que um enunciado performativo não é nada fora das circunstâncias que o tornam o que é. Alguém pode gritar “decreto a mobilização geral”; esta será uma ação de infantilidade ou de demência, e não um ato de enunciação, se não existir uma variável efetuada que dê o direito de enunciar. O mesmo é verdade em relação a “eu te amo”, que não possui sentido nem sujeito, nem destinatário, fora das circunstâncias que não se contentam em torná-lo crível, mas fazem dele um verdadeiro agenciamento, um marcador de poder, mesmo no caso de um amor infeliz (é ainda por vontade de potência que se obedece...). Ora, o termo geral circunstâncias não deve fazer crer que se trata somente de circunstâncias exteriores. “Eu juro” não é o mesmo se for dito em família, na escola, em um amor, no interior de uma sociedade secreta, no tribunal: não é a mesma coisa, mas tampouco é o mesmo enunciado; não é a mesma situação de corpo, mas tampouco é a mesma transformação incorpórea. A transformação se refere aos corpos, mas ela mesma é incorpórea, interior à enunciação. Existem variáveis de expressão que colocam a língua em relação com o fora, mas precisamente porque elas são imanentes à língua. Enquanto a linguística se atem a constantes — fonológicas, morfológicas ou sintáticas — relaciona o enunciado a um significante e a enunciação a um sujeito, perdendo, assim, o agenciamento, remete as circunstâncias ao exterior, fecha a língua sobre si e faz da pragmática um resíduo. Ao contrário, a pragmática não recorre simplesmente às circunstâncias externas: destaca variáveis de expressão ou de enunciação que são para a língua razões internas suficientes para não se fechar sobre si. Como diz Bakhtine, enquanto a linguística extrai constantes, permanece incapaz de nos fazer compreender como uma palavra forma uma enunciação completa; é necessário um “elemento suplementar que permanece inacessível a todas

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as categorias ou determinações linguísticas”, embora seja completamente interior à teoria da enunciação ou da língua12. A palavra de ordem é, precisamente, a variável que faz da palavra como tal uma enunciação. A instantaneidade da palavra de ordem, sua imediatidade, lhe confere uma potência de variação em relação aos corpos aos quais se atribui a transformação. A pragmática é uma política da língua. Um estudo como o de Jean-Pierre Faye acerca da constituição dos enunciados nazistas no campo social alemão é exemplar a esse respeito (e não se pode rebatê-los sobre a constituição dos enunciados fascistas na Itália). Tais pesquisas transformacionais referem-se à variação das palavras de ordem e dos atributos não-corpóreos que se relacionam aos corpos sociais, efetuando atos imanentes. Tomar-se-á por exemplo igualmente, em outras condições, a formação de um tipo de enunciados propriamente leninistas na Rússia soviética, a partir do texto de Lênin intitulado “Sobre as palavras de ordem” (1917). Esta já era uma transformação incorpórea que havia destacado das massas uma classe proletária enquanto agenciamento de enunciação, antes que fossem dadas as condições de um proletariado como corpo. Golpe de gênio da 1ª Internacional marxista, que “inventa” um novo tipo de classe: proletários de todo o mundo, uni-vos!13 Mas, graças à ruptura com os socialdemocratas, Lênin inventa ou decreta ainda uma outra transformação incorpórea, que destaca da classe proletária uma vanguarda como agenciamento de enunciação, e que será atribuída ao “Partido”, a um novo tipo de partido como corpo distinto, pronto para cair em um sistema de redundância propriamente burocrático. Aposta leninista, golpe de audácia? Lênin declara que a palavra de ordem “Todo poder aos sovietes” só valeu de 27 de fevereiro a 4 de julho, para o desenvolvimento pacífico da Revolução, mas não valia mais para o estado de guerra, sendo que a passagem de um a outro implicava essa transformação que não se contenta em ir das massas a um proletariado diretor, mas do proletariado a uma vanguarda dirigente. Em 4 de julho, exatamente, termina o poder aos sovietes. Podem-se assinalar todas as circunstâncias exteriores: não somente

Bakhtin, p. 156-7. E sobre “as relações de força simbólica” enquanto variáveis interiores à enunciação, cf. P. Bourdieu, “L’économie des échanges linguistiques”, in Linguistique et sociolinguistique, Langue française, maio 1977, Larousse, p.18-21. 12

A própria noção de classe proletária suscita a pergunta: o proletariado já existe nesse momento, e como corpo? (ou então: ainda existe?). Vê-se como os marxistas utilizam-se disso antecipadamente, por exemplo, quando falam de um “proletariado embrionário” 13

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a guerra, mas a insurreição que força Lênin a fugir para a Finlândia. Mesmo assim, o 4 de julho continua sendo a data que se enuncia a transformação incorpórea, antes que o corpo ao qual ela será atribuída, o próprio Partido, esteja organizado. “Toda palavra de ordem deve ser deduzida da soma das particularidades de uma situação política determinada.” Se se objeta que essas particularidades remetem justamente à política e não à linguística, é necessário observar até que ponto a política trabalha a língua de dentro, fazendo variar não apenas o léxico, mas a estrutura e todos os elementos de frases, ao mesmo tempo em que as palavras de ordem mudam. Um tipo de enunciado só pode ser avaliado em função de suas implicações pragmáticas, isto é, de sua relação com pressupostos implícitos, com atos imanentes ou transformações incorpóreas que ele exprime, e que vão introduzir novos recortes entre os corpos. A verdadeira intuição não é o juízo de gramaticalidade, mas a avaliação das variáveis interiores de enunciação em relação ao conjunto das circunstâncias. Passamos dos comandos explícitos às palavras de ordem como pressupostos implícitos; das palavras de ordem aos atos imanentes ou transformações incorpóreas que eles expressam; depois, aos agenciamentos de enunciação dos quais eles são as variáveis. Quando essas variáveis se relacionam de determinado modo em um dado momento, os agenciamentos se reúnem em um regime de signos ou máquina semiótica. Mas é evidente que uma sociedade é perpassada por diversas semióticas, e possui de fato regimes mistos. Além disso, novas palavras de ordem surgem em um outro momento, fazendo variar as variáveis, e não pertencendo, ainda, a um regime conhecido. É então de diversas maneiras que a palavra de ordem é redundância; ela não o é apenas em função de uma transmissão que lhe é essencial, mas o é também em si mesma e desde sua emissão, em sua relação “imediata” com o ato ou com a transformação que efetua. Mesmo a palavra de ordem em ruptura com uma semiótica considerada já é redundância. É por isso que o agenciamento coletivo de enunciação não tem outros enunciados a não ser aqueles de um discurso sempre indireto. O discurso indireto é a presença de um enunciado relatado em um enunciado relator, a presença da palavra de ordem na palavra. É toda a linguagem que é discurso indireto. Ao invés de o discurso indireto supor um discurso direto, é este que é extraído daquele, à medida que as operações de significância e os processos de subjetivação em um agenciamento se encontram distribuídos, atribuídos, consignados, ou à medida que as variáveis do agenciamento estabelecem relações constantes, por mais provisórias que sejam. O discurso direto é um fragmento de massa destacado, e nasce do desmembramento do agenciamento coletivo; mas este é

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sempre como o rumor onde coloco meu nome próprio, o conjunto das vozes concordantes ou não de onde tiro minha voz. Dependo sempre de um agenciamento de enunciação molecular, que não é dado em minha consciência, assim como não depende apenas de minhas determinações sociais aparentes, e que reúne vários regimes de signos heterogêneos. Glossolalia. Escrever é talvez trazer à luz esse agenciamento do inconsciente, selecionar as vozes sussurrantes, convocar as tribos e os idiomas secretos, de onde extraio algo que denomino Eu [Moi]. EU [JE]* é uma palavra de ordem. Um esquizofrênico declara: “ouvi vozes dizendo: ele tem consciência da vida”14. Existe então, nesse sentido, um cogito esquizofrênico, mas que faz da consciência de si a transformação incorpórea de uma palavra de ordem ou o resultado de um discurso indireto. Meu discurso direto é ainda o discurso indireto livre que me percorre de um lado a outro, e que vem de outros mundos ou de outros planetas. É por isso que tantos artistas e tantos escritores foram tentados pela experiência do copo que se move na mesa. Consequentemente, quando perguntamos qual é a faculdade própria à palavra de ordem, devemos reconhecer nela características estranhas: uma espécie de instantaneidade na emissão, na percepção e na transmissão das palavras de ordem; uma grande variabilidade, e uma potência de esquecimento que faz com que nos sintamos inocentes diante das palavras de ordem que seguimos, e depois abandonamos, para acolher outras em seu lugar; uma capacidade propriamente ideal ou fantasmática na apreensão das transformações incorpóreas; uma aptidão para apreender a linguagem sob a forma de um imenso discurso indireto15. Faculdade do ponto no teatro e

*

Eu corresponde a je empregado como substantivo no original, enquanto eu corresponde ao francês moi. (N. das T).

Citado por David Cooper, Le langage de Ia folie, Ed. du Seuil, p.32-33. Cooper comenta: “o termo ouvir vozes significa que nos tornamos conscientes de algo que ultrapassa a consciência do discurso normal [í.e. direto] e que deve, consequentemente, ser experimentado como diferente”. 14

Elias Canetti é um dos raros autores interessados no modo de ação psicológico da palavra de ordem (Masse et puissance, Gallimard, p.321-353). Canetti supõe que uma ordem imprime na alma e na carne um tipo de aguilhão que forma um quisto, uma parte endurecida, eternamente conservada. Só podemos, então, nos livrar dela, passando-a, o mais rápido possível, aos outros, para fazer “massa”, correndo o risco de que a massa se volte contra o emissor da palavra de ordem. Mas além disso, o fato de a palavra de ordem ser como um corpo estranho no corpo, um discurso indireto na fala, explica o prodigioso esquecimento: “O executante não acusa a si mesmo, acusa o aguilhão, a instância estrangeira, o verdadeiro culpado, por assim dizer, que transporta por toda a parte com ele. (...). O aguilhão é o testemunho perpétuo de que nem mesmo fomos o autor de tais atos. Sentimo-nos vítimas dele, e não resta então o menor sentimento para com a verdadeira vítima. É, portanto, verdade que os homens que agiram por ordem se consideram perfeitamente inocentes”, e eles recomeçam, de forma ainda melhor, com outras palavras de ordem (p.352). Canetti fornece aqui uma explicação profunda para o sentimento de inocência dos nazistas, ou para a capacidade de esquecimento dos antigos stalinistas, mais amnésicos ainda quando invocam sua memória e seu passado para se arrogarem o direito de lançar ou de seguir novas palavras de ordem ainda mais dissimuladas, “mania de aguilhões”. A análise de Canetti parece-nos essencial a esse respeito. Entretanto, pressupõe a existência de uma faculdade psíquica muito particular, sem a qual a palavra de ordem não poderia possuir esse modo de ação. Toda a teoria racionalista clássica, de um “senso comum”, de um bom senso universalmente compartilhado, fundado na informação e na comunicação, é uma maneira de encobrir ou de ocultar, e de justificar previamente, uma faculdade muito mais inquietante que é a das palavras de ordem. Faculdade singularmente irracional que caucionamos ainda mais quando a abençoamos com o nome de razão pura, nada senão a razão pura... 15

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de quem o escuta, faculdade da canção que coloca sempre uma ária em uma ária, em uma relação de redundância, faculdade mediúnica na verdade, glossolálica ou xenoglóssica. Retornemos à questão: em que é assim definida uma função-linguagem, uma função coextensiva à linguagem? É evidente que as palavras de ordem, os agenciamentos coletivos ou regimes de signos, não se confundem com a linguagem. Mas efetuam a condição desta (sobrelinearidade da expressão); preenchem, em cada caso, esta condição, de forma que, sem eles, a linguagem permaneceria como pura virtualidade (caráter sobrelinear do discurso indireto). E certamente os agenciamentos variam, se transformam. Mas não variam necessariamente segundo cada língua, não correspondem às diversas línguas. Uma língua parece se definir pelas constantes fonológicas, semânticas, sintáticas, que coexistem em seus enunciados; o agenciamento coletivo, ao contrário, concerne ao uso dessas constantes em função das variáveis interiores à própria enunciação (as variáveis de expressão, os atos imanentes ou transformações incorpóreas). Constantes diferentes, de diferentes línguas, podem ter o mesmo uso; e as mesmas constantes, em uma determinada língua, podem ter usos diferentes, seja sucessivamente, seja mesmo simultaneamente. Não podemos nos ater a uma dualidade entre as constantes como fatores linguísticos, explícitos ou explicitáveis, e às variáveis como fatores extrínsecos não-linguísticos. Pois as variáveis pragmáticas de uso são interiores à enunciação, e formam os pressupostos implícitos da língua. Se então o agenciamento coletivo é, em todos os casos, coextensivo à língua considerada, e à própria linguagem, é porque exprime o conjunto das transformações incorpóreas que efetuam a condição da linguagem, e que utilizam os elementos da língua. A função-linguagem assim definida não é informativa nem comunicativa; não remete a uma informação significante nem a uma comunicação intersubjetiva. E de nada serviria abstrair uma significância fora da informação, ou uma subjetividade fora da comunicação. Pois

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é o processo de subjetivação e o movimento de significância que remetem aos regimes de signos ou agenciamentos coletivos. A função-linguagem é transmissão de palavras de ordem, e as palavras de ordem remetem aos agenciamentos, como estes remetem às transformações incorpóreas que constituem as variáveis da função. A linguística não é nada fora da pragmática (semiótica ou política) que define a efetuação da condição da linguagem e o uso dos elementos da língua.

II. Haveria uma máquina abstrata da língua, que não recorreria a qualquer fator “extrínseco” Se, em um campo social, distinguimos o conjunto das modificações corpóreas e o conjunto das transformações incorpóreas, encontramos, apesar da variedade de cada um, duas formalizações: uma de conteúdo, outra de expressão. Com efeito, o conteúdo não se opõe à forma, ele tem sua própria formalização: o polo mão-ferramenta, ou a lição das coisas. Mas ele se opõe à expressão, dado que esta tem também sua própria formalização: o polo rosto-linguagem, a lição dos signos. É precisamente porque o conteúdo tem sua forma assim como a expressão, que não se pode jamais atribuir à forma de expressão a simples função de representar, de descrever ou de atestar um conteúdo correspondente: não há correspondência nem conformidade. As duas formalizações não são de mesma natureza, e são independentes, heterogêneas. Os estoicos foram os primeiros a elaborar a teoria dessa independência: eles distinguem as ações e as paixões dos corpos (dando à palavra “corpo” a maior extensão, isto é, todo o conteúdo formado), e os atos incorpóreos (que são o “expresso” dos enunciados). A forma de expressão será constituída pelo encadeamento dos expressos, como a forma de conteúdo pela trama dos corpos. Quando o punhal entra na carne, quando o alimento ou o veneno se espalha pelo corpo, quando a gota de vinho é vertida na água, há mistura de corpos; mas os enunciados “o punhal corta a carne”, “eu como”, “a água se torna vermelha”, exprimem transformações incorpóreas de natureza completamente diferente (acontecimentos) 16. Genialidade dos estoicos, a de ter levado esse paradoxo ao ponto máximo, até a demência e ao cinismo, e a de tê-lo fundado nas mais sérias razões: a recompensa é a de terem sido os primeiros a elaborar uma filosofia da linguagem.

Cf. o livro clássico de Bréhier, La théorie des incorporels dans l’ancien stoicisme, Vrin, p.12, p.20, sobre os enunciados “a faca corta a carne” ou “a árvore verdeja”. 16

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O paradoxo não vale nada, se não se acrescentar, com os estoicos: as transformações incorpóreas, os atributos incorpóreos, são ditos, e só são ditos, acerca dos próprios corpos. Eles são o expresso dos enunciados, mas são atribuídos aos corpos. Não se trata, contudo, de descrever ou representar os corpos; pois estes já têm suas qualidades próprias, suas ações e suas paixões, suas almas, em suma, suas formas, que são, elas mesmas, corpos — e as representações também são corpos! Se os atributos não-corpóreos são ditos acerca dos corpos, se podemos distinguir o expresso incorpóreo “avermelhar” e a qualidade corpórea “vermelha” etc, é então por uma razão bem diferente do que a da representação. Não se pode nem mesmo dizer que o corpo, ou o estado de coisas, seja o “referente” do signo. Expressando o atributo não-corpóreo, e simultaneamente atribuindo-o ao corpo, não representamos, não referimos, intervimos de algum modo, e isto é um ato de linguagem. A independência das duas formas, a de expressão e a de conteúdo, não é contradita, mas ao contrário confirmada, pelo fato de que as expressões ou os expressos vão se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reunilos, recortá-los de um outro modo. A cadeia das transformações instantâneas vai se inserir, o tempo todo, na trama das modificações contínuas (daí o sentido das datas nos estoicos: a partir de que momento se pode dizer que alguém é careca? E em que sentido um enunciado do tipo “haverá uma batalha naval amanhã” é uma data ou uma palavra de ordem?). A noite de 4 de agosto, o 4 de julho de 1917, o 20 de novembro de 1923: que transformação incorpórea está expressa, que entretanto é atribuída aos corpos, e neles se insere? A independência da forma de expressão e da forma de conteúdo não funda qualquer paralelismo entre as duas, tampouco qualquer representação de uma para a outra, mas, ao contrário, um esfacelamento das duas, uma maneira cujas expressões se inserem nos conteúdos, por meio da qual se salta sem cessar de um registro a outro, cujos signos trabalham as próprias coisas, ao mesmo tempo em que as coisas se estendem ou se desenrolam através dos signos. Um agenciamento de enunciação não fala “das” coisas, mas fala diretamente os estados de coisas ou estados de conteúdo, de tal modo que um mesmo x, uma mesma partícula, funcionará como corpo que age e sofre, ou mesmo como signo que faz ato, que faz palavra de ordem, segundo a forma na qual se encontra (como no conjunto teórico-experimental da física). Em suma, a independência funcional das duas formas é somente a forma de sua pressuposição recíproca, e da passagem incessante de uma a outra. Nunca nos encontramos diante de um encadeamento de palavras de ordem, e de uma causalidade de

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conteúdos, cada um valendo por si, ou um representando o outro, e o outro servindo como referente. Ao contrário, a independência das duas linhas é distributiva, e faz com que um segmento de uma reveze, sem cessar, com um segmento da outra, que se insinue ou se introduza na outra. Não cessamos de passar das palavras de ordem à “ordem muda” das coisas, como diz Foucault, e vice-versa. Mas quando empregamos essa palavra vaga “intervir”, quando dizemos que as expressões intervém ou se inserem nos conteúdos, isso não é ainda um tipo de idealismo no qual a palavra de ordem vem do céu, instantaneamente? Seria preciso determinar não uma origem, mas os pontos de intervenção, de inserção, e isso no quadro da pressuposição recíproca entre as duas formas. Ora, as formas, tanto de conteúdo quanto de expressão, tanto de expressão quanto de conteúdo, não são separáveis de um movimento de desterritorialização que as arrebata. Expressão e conteúdo, cada um deles é mais ou menos desterritorializado, relativamente desterritorializado segundo o estado de sua forma. A esse respeito, não se pode postular um primado da expressão sobre o conteúdo, ou o inverso. Os componentes semióticos são mais desterritorializados do que os componentes materiais, mas o contrário também ocorre. Por exemplo, um complexo matemático de signos pode ser mais desterritorializado do que um conjunto de partículas; mas as partículas podem, inversamente, ter efeitos experimentais que desterritorializam o sistema semiótico. Uma ação criminal pode ser desterritorializante em relação a um regime de signos existente (o solo pede vingança e se esquiva, minha culpa é grande demais); mas o signo que expressa o ato de condenação pode ser, por sua vez, desterritorializante em relação a todas as ações e reações (“tu serás fugitivo e fugidio sobre a terra”, não será possível nem mesmo te matar). Em suma, existem graus de desterritorialização que quantificam as formas respectivas, e segundo os quais os conteúdos e as expressões se conjugam, se alternam, se precipitam uns sobre os outros, ou, ao contrário, se estabilizam, operando uma reterritorialização. O que denominamos circunstâncias e variáveis são esses próprios graus. Existem variáveis de conteúdo que são proporções nas misturas ou agregados de corpos, e existem variáveis de expressão, que são fatores interiores à enunciação. Na Alemanha, por volta de 20 de novembro de 1923, tem-se a inflação desterritorializante do corpo monetário, mas também a transformação semiótica do reichsmark em rentenmark, que predomina e torna possível uma reterritorialização. Na Rússia, por volta de 4 de julho de 1917, tem-se as proporções de um estado de “corpo” SovietesGoverno provisório, mas igualmente a elaboração de uma semiótica incorpórea bolchevista que precipita as coisas, e será substituída, do outro lado, pela ação

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detonadora do corpo do Partido. Em resumo, não é ao descobrir ou representar um conteúdo que uma expressão entra em relação com ele. É por conjugação de seus quanta de desterritorialização relativa que as formas de expressão e de conteúdo se comunicam, umas intervindo nas outras, estas interferindo naquelas. Podem-se tirar daí conclusões gerais acerca da natureza dos Agenciamentos. Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos: um de conteúdo, o outro de expressão. Por um lado, ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; por outro lado, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas sendo atribuídas aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem, de uma parte, lados territoriais ou reterritorializados que o estabilizam e, de outra parte, picos de desterritorialização que o arrebatam. Ninguém mais do que Kafka soube destacar e fazer funcionar conjuntamente esses eixos do agenciamento. De um lado, a máquina-barco, a máquina-hotel, a máquina-circo, a máquina-castelo, a máquinatribunal: cada uma com suas peças, suas engrenagens, seus processos, seus corpos enredados, encaixados, desarticulados (cf. a cabeça que fura o teto). Por outro lado, o regime de signos ou de enunciação: cada regime com suas transformações incorpóreas, seus atos, suas sentenças de morte e seus vereditos, seus processos, seu “direito”. Ora, é evidente que os enunciados não representam as máquinas: o discurso do Foguista não descreve a casa de máquinas como corpo, ele tem sua forma própria, e seu desenvolvimento sem semelhança. E entretanto é atribuído ao corpo, a todo o barco como corpo. Discurso de submissão às palavras de ordem, de discussão, de reivindicação, de acusação e de petição. Isto porque, de acordo com o segundo eixo, o que se compara ou se combina de um aspecto a outro, o que coloca constantemente um dentro do outro, são os graus de desterritorialização conjugados ou alternados, e as operações de reterritorialização que estabilizam, em um dado momento, o conjunto. K, a função-K, designa a linha de fuga ou de desterritorialização que leva consigo todos os agenciamentos, mas que passa também por todas as reterritorializações e redundâncias, redundâncias de infância, de cidade, de amor, de burocracia..., etc. Tetravalência do agenciamento. Um exemplo: o agenciamento feudal. Considerarse-ão as misturas de corpos que definem a feudalidade: o corpo da terra e o corpo social, os corpos do suserano, do vassalo e do servo, o corpo do cavaleiro e o do cavalo, a nova relação que estabelecem com o estribo, as armas e as ferramentas que asseguram as simbioses de corpos — é tudo um agenciamento maquínico. Mas também os enunciados, as expressões,

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o regime jurídico dos brasões, o conjunto das transformações incorpóreas, principalmente os juramentos com suas variáveis, o juramento de obediência, mas igualmente o juramento amoroso, etc: é o agenciamento coletivo de enunciação. E, de acordo com o outro eixo, as territorialidades e reterritorializações feudais, ao mesmo tempo que a linha de desterritorialização que arrebata o cavaleiro e sua montaria, os enunciados e os atos. Como tudo isso se combina nas Cruzadas. O erro seria então o de acreditar que o conteúdo determina a expressão, por ação causai, mesmo se atribuíssemos à expressão o poder não somente de “refletir” o conteúdo, mas de reagir ativamente sobre ele. Uma tal concepção ideológica do enunciado, que o faz depender de um conteúdo econômico primeiro, enfrenta todos os tipos de dificuldades inerentes à dialética. Em primeiro lugar, se podemos conceber, a rigor, uma ação causai que vai do conteúdo à expressão, o mesmo não ocorre em relação às formas respectivas: a forma de conteúdo e a forma de expressão. É necessário reconhecer para esta uma independência que irá justamente permitir que as expressões reajam sobre os conteúdos. Mas essa independência é mal concebida. Se os conteúdos são considerados econômicos, a forma de conteúdo não pode sê-lo, e se encontra reduzida a uma pura abstração, a saber, a produção de bens e de meios dessa produção considerados por eles mesmos. Da mesma forma, se as expressões são consideradas ideológicas, a forma de expressão não o é, e se encontra reduzida à linguagem como abstração, como disposição de um bem comum. Consequentemente, pretende-se caracterizar os conteúdos e as expressões por meio de todas as lutas e conflitos que os atravessam sob duas formas diferentes, mas essas próprias formas são, por sua vez, isentas de qualquer luta e de qualquer conflito, e sua relação permanece completamente indeterminada 17. Só se poderia determiná-la remanejando a teoria da ideologia, e fazendo desde logo intervir as expressões e os enunciados na produtividade, sob a forma de uma produção de sentido ou de um valor-signo. A categoria de produção tem aqui, sem dúvida, a vantagem de romper com os esquemas de representação, de informação e de comunicação. Mas seria ela mais adequada do que esses esquemas? Sua aplicação à linguagem é muito ambígua, dado que se recorre a um milagre dialético

É assim que Stalin, em seu célebre texto acerca da linguística, pretende destacar duas formas neutras, que servem indiferentemente a toda a sociedade, a todas as classes e a todos os regimes: por um lado, os instrumentos e máquinas como puro meio de produzir quaisquer bens; por outro, a linguagem como puro meio de informação e de comunicação. Até mesmo Bakhtin define a linguagem como forma da ideologia, mas esclarece que a forma de ideologia não é, ela mesma, ideológica 17

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constante que transforma a matéria em sentido; o conteúdo, em expressão; o processo social, em sistema significante. Em seu aspecto material ou maquínico, um agenciamento não nos parece remeter a uma produção de bens, mas a um estado preciso de mistura de corpos em uma sociedade, compreendendo todas as atrações e repulsões, as simpatias e as antipatias, as alterações, as alianças, as penetrações e expansões que afetam os corpos de todos os tipos, uns em relação aos outros. Um regime alimentar, um regime sexual regulam, antes de tudo, misturas de corpos obrigatórias, necessárias ou permitidas. Até mesmo a tecnologia erra ao considerar as ferramentas nelas mesmas: estas só existem em relação às misturas que tornam possíveis ou que as tornam possíveis. O estribo engendra uma nova simbiose homem-cavalo, que engendra, ao mesmo tempo, novas armas e novos instrumentos. As ferramentas não são separáveis das simbioses ou amálgamas que definem um agenciamento maquínico Natureza-Sociedade. Pressupõem uma máquina social que as selecione e as tome em seu phylum: uma sociedade se define por seus amálgamas e não por suas ferramentas. E, da mesma forma, em seu aspecto coletivo ou semiótico, o agenciamento não remete a uma produtividade de linguagem, mas a regimes de signos, a uma máquina de expressão cujas variáveis determinam o uso dos elementos da língua. Esses elementos, assim como as ferramentas, não valem por eles mesmos. Há o primado de um agenciamento maquínico dos corpos sobre as ferramentas e sobre os bens, primado de um agenciamento coletivo de enunciação sobre a língua e sobre as palavras. E a articulação dos dois aspectos do agenciamento se faz pelos movimentos de desterritorialização que quantificam suas formas. É por isso que um campo social se define menos por seus conflitos e suas contradições do que pelas linhas de fuga que o atravessam. Um agenciamento não comporta nem infraestrutura e superestrutura, nem estrutura profunda e estrutura superficial, mas nivela todas as suas dimensões em um mesmo plano de consistência em que atuam as pressuposições recíprocas e as inserções mútuas. O outro erro (que se combina necessariamente ao primeiro) seria crer na suficiência da forma de expressão como sistema linguístico. Esse sistema pode ser concebido como estrutura fonológica significante, ou como estrutura sintática profunda. Teria, de todo modo, a virtude de engendrar a semântica, e de preencher assim a expressão, ao passo que os conteúdos seriam entregues ao arbitrário de uma simples “referência”, e a pragmática, à exterioridade dos fatores não-linguísticos. O que há de comum a todas essas empresas é o fato de erigirem uma máquina abstrata da língua, mas constituindo essa máquina

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como um conjunto sincrônico de constantes. Ora, não se pode objetar que a máquina assim concebida seja por demais abstrata. Ao contrário, ela não o é suficientemente, permanece “linear”. Permanece em um nível de abstração intermediário, que lhe permite, por um lado, considerar os fatores linguísticos neles mesmos, independentemente dos fatores não-linguísticos; e, por outro lado, considerar esses fatores linguísticos como constantes. Mas, se impulsionamos a abstração, alcançamos necessariamente um nível onde as pseudoconstantes da língua dão lugar às variáveis de expressão, interiores à própria enunciação; consequentemente, essas variáveis de expressão não são mais separáveis das variáveis de conteúdo em perpétua interação. Se a pragmática externa dos fatores não-linguísticos deve ser levada em consideração, é porque a própria linguística não é separável de uma pragmática interna que concerne a seus próprios fatores. Não basta considerar o significado, ou mesmo o referente, visto que as próprias noções de significação e de referência relacionam-se ainda a uma estrutura de expressão que se supõe autônoma e constante. De nada adianta construir uma semântica, ou mesmo reconhecer determinados direitos da pragmática, se fazemos ainda com que passem por uma máquina sintática ou fonológica que deve trabalhá-las previamente, pois uma verdadeira máquina abstrata se relaciona com o conjunto de um agenciamento: se define como o diagrama desse agenciamento. Ela não faz parte da linguagem, mas é diagramática e sobrelinear. O conteúdo não é um significado nem a expressão um significante, mas ambos são as variáveis do agenciamento. Enquanto as determinações pragmáticas, mas também semânticas, sintáticas e fonológicas, não forem diretamente relacionadas aos agenciamentos de enunciação dos quais elas dependem, nada terá sido feito. A máquina abstrata de Chomsky permanece ligada a um modelo arborescente, e à ordem linear dos elementos linguísticos nas frases e sua combinatória. Mas desde que levamos em conta os valores pragmáticos ou as variáveis interiores, principalmente em função do discurso indireto, somos forçados a fazer intervir “hiperfrases”, ou a construir “objetos abstratos” (transformações incorpóreas) que implicam uma sobrelinearidade, isto é, um plano cujos elementos não possuem mais ordem linear fixa: modelo rizoma18.

Sobre esses problemas, cf. J.M. Sadock, “Hypersentences”, Phil. Diss. Univ. of Illinois, 1968; D. Wunderlich, “Pragmatique, situation d’énonciation et Deixis”, Langages, Larousse, junho 1972; e sobretudo S.K. Saumjan, que propõe um modelo de objetos abstratos, fundados sobre a operação de aplicação, M.G.A. — modelo gerativo aplicativo (Langages, março 1974). Saumjan toma Hjelmslev como referência: a força deste é a de ter concebido a forma de expressão e a forma de conteúdo como duas variáveis completamente relativas, em um mesmo plano, como “os funtivos de uma mesma função” (Prolégomènes à une théorie du langage, p.85). Esse avanço em direção a uma concepção diagramática da máquina abstrata é entretanto contrariado pelo fato de Hjelmslev conceber ainda a distinção da expressão e do conteúdo no modo significantesignificado, e manter assim a dependência da máquina abstrata em relação à linguística. 18

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Desse ponto de vista, a interpenetração da língua com o campo social e com os problemas políticos encontra-se no âmago da máquina abstrata, e não na superfície. A máquina abstrata enquanto relacionada ao diagrama do agenciamento nunca é linguagem pura, exceto por erro de abstração. É a linguagem que depende da máquina abstrata, e não o inverso. No máximo é possível distinguir, nela, dois estados de diagrama: um no qual as variáveis de conteúdo e de expressão se distribuem segundo sua forma heterogênea em pressuposição recíproca em um plano de consistência; outro, no qual não se pode nem mesmo distingui-las, porque a variabilidade do mesmo plano fez com que este predominasse precisamente sobre a dualidade das formas, tornando-as “indiscerníveis”. (O primeiro estado remeteria a movimentos de desterritorialização ainda relativos, ao passo que o segundo teria alcançado um limiar absoluto da desterritorialização).

III. Haveria constantes ou universais da língua que permitiriam defini-la como um sistema homogêneo A questão das invariantes estruturais — e a própria ideia de estrutura é inseparável de tais invariantes, atômicas ou relacionais — é essencial para a linguística. É sob essa condição que a linguística pode reivindicar para si uma pura cientificidade, nada a não ser a ciência..., a salvo de qualquer fator supostamente exterior ou pragmático. Essa questão das invariantes assume diversas formas estreitamente ligadas: 1) as constantes de uma língua (fonológicas, por comutatividade; sintáticas, por transformatividade; semânticas, por geratividade); 2) os universais da linguagem (por decomposição do fonema em traços distintivos; da sintaxe, em constituintes de base; da significação, em elementos semânticos mínimos); 3) as árvores, que ligam as constantes entre si, com correlações binárias no conjunto das árvores (cf. o método linear arborescente de Chomsky); 4) a competência, coextensiva em direito à língua e definida pelos juízos de gramaticalidade; 5) a homogeneidade, que se refere aos elementos e às relações não menos do que aos juízos intuitivos; 6) a sincronia, que erige um “em-si” e um “para-si”

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da língua, passando perpetuamente do sistema objetivo à consciência subjetiva que o apreende em direito (o do próprio linguista). Pode-se trabalhar com todos esses fatores, retirando ou mesmo acrescentando alguns deles. Entretanto, permanecem todos juntos, porque se encontra, no nível de um, o essencial de todos os outros. Por exemplo, a distinção língua-fala é retomada em competência-performance, mas no nível da gramaticalidade. Se objetamos que a distinção da competência e da performance é completamente relativa — uma competência linguística pode ser econômica, religiosa, política, estética... etc; a competência escolar de um professor primário pode ser somente uma competência em relação ao juízo do inspetor ou às regras ministeriais —, os linguistas respondem que estão prontos a multiplicar os níveis de competência, e mesmo a introduzir valores pragmáticos no sistema. É assim que Brekle propõe acrescentar um fator de “competência performancial idiossincrática”, ligado a todo um conjunto de fatores linguísticos, psicológicos ou sociológicos. Mas de que adianta essa injeção de pragmática se esta, por sua vez, é considerada como tendo constantes ou universais que lhe são próprios? E em que as expressões como “eu”, “prometer”, “saber” seriam mais universais do que “saudar”, “nomear” ou “condenar”19? Do mesmo modo, quando nos esforçamos para germinar as árvores chomskianas, e para quebrar a ordem linear, não ganhamos verdadeiramente nada, não constituímos um rizoma, se os componentes pragmáticos que marcam as rupturas estiverem situados no ponto mais alto da árvore, ou desaparecerem no momento da derivação20. Na verdade, o problema mais geral concerne à natureza da máquina abstrata: não há qualquer razão para relacionar o abstrato ao universal ou ao constante, e para apagar a singularidade das máquinas abstratas, quando estas são construídas em torno de variáveis e variações. Pode-se compreender melhor o que está em questão remetendo à discussão que opõe Chomsky a Labov. Que toda língua seja uma realidade compósita essencialmente heterogênea, os linguistas o sabem e o afirmam; mas esta é uma observação de fato. Chomsky exige somente que se trace, dentro desse conjunto, um sistema homogêneo ou padrão como condição de abstração, de idealização, tornando possível um estudo científico

Cf. H.E. Brekle, Sémantique, Armand Colin, p.94-104: sobre a ideia de uma pragmática universal e de “universais de diálogo”. 19

20

Sobre esse germinar e suas diferentes representações, cf. Wunderlich, “Pragmatique...”

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de direito. Não se trata, então, de se ater a um inglês padrão, pois, mesmo quando estudar o black-english ou o inglês dos guetos, o linguista se achará na obrigação de destacar um sistema padrão que garanta a constância e a homogeneidade do objeto estudado (nenhuma ciência poderia proceder diferentemente, diz-se). Chomsky finge acreditar que Labov, quando afirma seu interesse pelos traços variáveis da linguagem, se instala assim em urna pragmática de fato, exterior à linguística21. Entretanto, Labov tem uma outra ambição. Quando ele destaca linhas de variaçãoinerente, não vê nestas simplesmente “variantes livres” que se refeririam à pronúncia, ao estilo ou aos traços não-pertinentes, estando fora do sistema e deixando subsistir a homogeneidade do sistema; mas tampouco uma mistura de fato entre dois sistemas na qual cada um seria homogêneo por sua conta, como se o locutor passasse de um a outro. Ele recusa a alternativa na qual a linguística quis se instalar: atribuir variantes a sistemas diferentes, ou antes remetê-los para aquém da estrutura. É a própria variação que é sistemática, no sentido em que os músicos dizem “o tema é a variação”. Na variação, Labov vê um componente de direito que afeta, de dentro, cada sistema, e o faz seguir ou saltar por sua própria potência, impedindo-o de fechar-se sobre si, de homogeneizá-lo em princípio. E sem dúvida as variações consideradas por Labov são de natureza completamente diversa — fonéticas, fonológicas, sintáticas, semânticas, estilísticas. Parecenos difícil objetar a Labov que ele ignora a distinção do direito e do fato — ou da linguística e da estilística, ou da sincronia e da diacronia, ou dos traços pertinentes e dos traços não-pertinentes, ou da competência e da performance, ou da gramaticalidade da língua e da agramaticalidade da fala. Mesmo com o risco de cristalizar as posições de Labov, dir-se-ia, antes, que ele propõe uma outra distribuição do fato e do direito, e sobretudo uma outra concepção do próprio direito e da abstração. Labov toma o exemplo de um jovem negro que, em uma série muito curta de frases, parece passar dezoito vezes do sistema blackenglish ao sistema padrão, e vice-versa. Mas justamente, não é a distinção abstrata dos dois sistemas que se revela arbitrária, insuficiente, visto que a maioria das formas só se relaciona a um ou a outro sistema pelos acasos dessa ou daquela sequência? Assim, não se deveria convir que todo sistema está em variação e se define, não por suas constantes e sua homogeneidade, mas, ao contrário, por uma variabilidade que tem como características ser imanente,

21

Noam Chomsky e Mitsou Ronat, Dialogues, Flammarion, p.72-74.

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contínua e regulada segundo um modo muito particular (regras variáveis ou facultativas)22? Como conceber essa variação contínua que trabalha, de dentro, uma língua, mesmo se devemos sair dos limites aos quais sé fixa Labov, e das condições de cientificidade que a linguística invoca? Em um mesmo dia, um indivíduo passa constantemente de uma língua a outra. Sucessivamente, falará como “um pai deve fazê-lo”, depois como um patrão; com a amada, falará uma língua infantilizada; dormindo, mergulha em um discurso onírico, e bruscamente volta a uma língua profissional quando o telefone toca. Objetar-se-á que essas variações são extrínsecas, e que o que ele usa não deixa de ser a mesma língua. Mas afirmá-lo é prejulgar o que está em questão. Pois, por um lado, não é certo que seja a mesma fonologia, nem a mesma sintaxe, a mesma semântica. Por outro, toda questão é a de saber se a língua considerada a mesma se define por invariantes ou, ao contrário, pela linha de variação contínua que a perpassa. Alguns linguistas sugeriram que a mudança linguística se faz menos por ruptura de um sistema do que por modificação gradual de frequência, por coexistência e continuidade de usos diferentes. Considere-se um só e mesmo enunciado: “eu juro!”. Não é o mesmo enunciado se for dito por uma criança diante de seu pai, por um apaixonado diante de sua amada, por uma testemunha diante de um tribunal. É como se fossem três sequências. (Ou como os quatro Améns apresentados em sete sequências, de Messaien). Ainda aqui não vemos qualquer razão para dizer que as variáveis são somente de situação e que o enunciado permanece constante de direito. Não apenas existem tantos enunciados quantas efetuações, como o conjunto de enunciados se encontra presente na efetuação de um deles, de forma que a linha de variação seja virtual, isto é, real sem ser atual, contínua por esse mesmo motivo e quaisquer que sejam os saltos do enunciado. Colocar em variação contínua seria fazer passar o enunciado por todas as variáveis — fonológicas, sintáticas, semânticas, prosódicas — que podem afetá-lo no mais breve instante de tempo (o menor intervalo). Construir o continuam de Eu juro! com as transformações correspondentes. Este é o ponto de vista da pragmática; mas esta se tornou interior à língua, imanente, e compreende a variação de quaisquer elementos linguísticos.

William Labov, Sociolinguistique, principalmente p.262-265. Observar-se-á que Labov ora se impõe a condição restritiva de considerar enunciados que têm quase o mesmo sentido, ora abandona essa condição para seguir um encadeamento de enunciados complementares, porém heterogêneos. 22

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Por exemplo, a linha dos três processos de Kafka: o processo de pai, em família; o processo de noivado, no hotel; o processo de tribunal. Tendemos sempre a buscar uma “redução”: tudo será explicado pela situação da criança face a seu pai, ou a do homem em relação à castração, ou a do cidadão em relação à lei. Mas assim nos contentamos em destacar uma pseudo-constante de conteúdo, o que não vale mais do que extrair uma pseudo-constante de expressão. Colocar em variação deve nos fazer evitar esses perigos, )a que isso constrói um continuum ou um médium que não comportam início nem fim. Não se confundirá a variação contínua com o caráter contínuo ou descontínuo da própria variável: palavra de ordem, variação contínua para uma variável descontínua... Uma variável pode ser contínua em uma parte de seu trajeto, depois pular ou saltar sem que sua variação contínua seja por isso afetada, impondo um desenvolvimento ausente como uma “continuidade alternativa”, virtual e entretanto real. Uma constante, uma invariante se definem menos por sua permanência e sua duração do que por sua função de centro, mesmo relativo. No sistema tonal ou diatônico da música, as leis de ressonância e de atração determinam, em todos os modos, centros válidos, dotados de estabilidade e de poder atrativo. Esses centros são assim organizadores de formas distintas, distintivas, claramente estabelecidas durante determinadas porções de tempo: sistema centrado, codificado, linear, de tipo arborescente. É verdade que o “modo” menor, em virtude da natureza de seus intervalos e da menor estabilidade de seus acordes, confere à música tonal um caráter fugidio, evasivo, descentrado. Isso explica a ambiguidade de ser submetido a operações que o alinham pelo modelo ou padrão maior, mas entretanto também a de fazer valer uma certa potência modal irredutível à tonalidade, como se a música viajasse, e reunisse todas as ressurgências, fantasmas do oriente, recantos imaginários, tradições de todas as partes. Porém, é o temperamento, o cromatismo temperado, que apresenta uma outra ambiguidade, ainda maior: a de estender a ação do centro aos tons mais longínquos, mas igualmente preparar a desagregação do princípio central, substituir as formas centrais pelo desenvolvimento contínuo de uma forma que não para de se dissolver ou de se transformar. Quando o desenvolvimento subordina a forma e se estende ao conjunto, como em Beethoven, a variação começa a se liberar e se identifica à criação. Entretanto, é preciso esperar que o cromatismo se desencadeie, se torne um cromatismo generalizado, se volte contra o temperamento, e afete não somente as alturas, mas todos os componentes do som, durações, intensidades, timbres, ataques. Assim,

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não se pode mais falar de uma forma sonora que viria organizar uma matéria; nem mesmo se pode mais falar de um desenvolvimento contínuo da forma. Trata-se, antes, de um material deveras complexo e bastante elaborado, que tornará audíveis forças nãosonoras. O par matéria-forma é substituído pelo acoplamento material-forças. O sintetizador tomou o lugar do antigo “juízo sintético a priori”, mas com isso todas as funções mudam. Colocando em variação contínua todos os componentes, a música se torna, ela mesma, um sistema sobrelinear, um rizoma ao invés de uma árvore, e fica a serviço de um continuum cósmico virtual, do qual até mesmo os buracos, os silêncios, as rupturas, os cortes fazem parte. De tal forma que o importante não seja certamente um pseudocorte entre o sistema tonal e uma música atonal; esta, ao contrário, rompendo com o sistema tonal, não faz senão levar o temperamento até suas consequências extremas (entretanto, nenhum vienense se dedicou a isso). O essencial é quase o movimento inverso: a efervescência que afeta o próprio sistema tonal, em um longo período dos séculos XIX e XX, e que dissolve o temperamento, amplia o cromatismo, conservando ainda um tonal relativo, reinventa novas modalidades, conduz o maior e o menor para uma nova mescla, e ganha a cada vez domínios de variação contínua para esta ou aquela variável. Essa efervescência passa para o primeiro plano, se faz ouvir por si mesma, e faz ouvir, por seu material molecular assim trabalhado, as forças não sonoras do cosmos que sempre agitavam a música — um pouco de Tempo em estado puro, um grão de Intensidade absoluta... Tonal, modal, atonal não significam mais quase nada. Não existe senão a música para ser a arte como cosmos, e traçar as linhas virtuais da variação infinita. Ainda aqui, objeta-se que a música não é uma linguagem, os componentes do som não são traços pertinentes da língua, não existe correspondência entre os dois. Mas não invocamos correspondência alguma, não cessamos de pedir que se deixe em aberto o que está em questão, e que se recuse toda distinção pressuposta. Antes de tudo, a distinção língua-fala foi feita para colocar fora da linguagem todos os tipos de variáveis que trabalham a expressão ou a enunciação. Jean-Jacques Rousseau propunha, ao contrário, uma relação Voz-Música, que teria podido conduzir para uma outra direção não somente a fonética e a prosódia, mas toda a linguística. A voz na música nunca deixou de ser um eixo de experimentação privilegiado, jogando ao mesmo tempo com a linguagem e com o som. A música ligou a voz e os instrumentos de maneiras bastante diversas; mas, como a voz é canto, tem por papel principal “manter” o som, preenche uma função de constante, circunscrita a uma nota,

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ao mesmo tempo em que é acompanhada pelo instrumento. É somente quando relacionada ao timbre que ela desvela uma tessitura que a torna heterogênea a si mesma e lhe dá uma potência de variação contínua: assim não é mais acompanhada, é realmente “maquinada”, pertence a uma máquina musical que coloca em prolongamento ou superposição em um mesmo plano sonoro as partes faladas, cantadas, sonoplastizadas, instrumentais e eventualmente eletrônicas. Plano sonoro de um “glissando” generalizado, que implica a constituição de um espaço estatístico, onde cada variável tem não um valor médio, mas uma probabilidade de frequência que a coloca em variação contínua com as outras variáveis23. Rosto, de Berio, ou Glossolalia, de Dieter Schnebel, seriam exemplos típicos a esse respeito. E não importa o que diga o próprio Berio, trata-se menos de produzir um simulacro de linguagem ou uma metáfora da voz, com pseudoconstantes, do que de alcançar essa língua neutra, secreta, sem constantes, toda em discurso indireto, onde o sintetizador e o instrumento falam tanto quanto a voz, e a voz toca tanto quanto o instrumento. Não se pensará que a música não sabe mais cantar, em um mundo que se tornou mecânico ou atômico, mas, antes, que um imenso coeficiente de variação afeta e arrebata todas as partes fáticas, afáticas, linguísticas, poéticas, instrumentais, musicais, de um mesmo agenciamento sonoro — “um simples uivo percorrendo todos os graus” (Thomas Mann). Os procedimentos de variação da voz são numerosos não apenas no sprechgesang que não cessa de abandonar a altura, por uma queda ou por uma elevação, mas nas técnicas de respiração circular, ou zonas de ressonância, onde várias vozes parecem sair da mesma boca. As línguas secretas adquirem aqui uma enorme importância, tanto na música erudita quanto na popular. Os etnomusicólogos destacaram casos extraordinários, por exemplo em Daomé, onde, ora uma primeira parte diatônica vocal dá lugar a uma descida cromática em língua secreta, deslizando de um som a outro de forma contínua, modulando um continuum sonoro em intervalos cada vez menores, até alcançar um parlando cujos intervalos param; e ora é a parte diatônica que se encontra ela mesma transposta segundo os níveis cromáticos de uma arquitetura em plataformas, sendo o canto às vezes interrompido pelo

É assim que Labov tende a definir sua noção de “regras variáveis ou facultativas”, em oposição às regras constantes: não simplesmente uma frequência constatada, mas uma quantidade específica que aponta a probabilidade de frequência ou de aplicação da regra (cf. Le parler ordinaire, Ed. de Minuit, t.II, p.44 sq). 23

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parlando, uma simples conversa sem altura definida24. Talvez seja, aliás, uma característica das línguas secretas, das gírias, dos jargões, das linguagens profissionais, das fórmulas repetidas em jogos infantis, dos gritos dos vendedores, a de valerem menos por suas invenções lexicais ou por suas figuras de retórica do que pela maneira pela qual operam variações contínuas nos elementos comuns da língua. São línguas cromáticas, próximas a uma notação musical. Uma língua secreta não tem apenas uma cifra ou um código escondido que funciona ainda por meio de constante e forma um subsistema; ela coloca em estado de variação o sistema das variáveis da língua pública. Eis o que queríamos dizer: um cromatismo generalizado... Colocar em variação contínua quaisquer elementos é uma operação que talvez faça surgir novas distinções, mas não reconhecendo qualquer de seus procedimentos como adquirido, não atribuindo a si mesma nenhum destes previamente. Ao contrário, essa operação refere-se, em princípio, simultaneamente à voz, à fala, à língua, à música. Nenhuma razão para fazer distinções prévias e de princípio. A linguística em geral ainda não abandonou uma espécie de modo maior, um tipo de escala diatônica, um estranho gosto pelas dominantes, constantes e universais. Durante esse período, todas as línguas estão em variação contínua imanente: nem sincronia nem diacronia, mas assincronia, cromatismo como estado variável e contínuo da língua. Por uma linguística cromática, que dê ao pragmatismo suas intensidades e valores. O que denominamos um estilo, que pode ser a coisa mais natural do mundo, é precisamente o procedimento de uma variação contínua. Ora, dentre todos os dualismos instaurados pela linguística, existem poucos menos fundados do que aquele que separa a linguística da estilística: sendo um estilo não uma criação psicológica individual, mas um agenciamento de enunciação, não será possível impedi-lo de fazer uma língua dentro de uma língua. Considere-se uma lista arbitrária de autores que amamos: citamos mais uma vez Kafka, Beckett, Gherasim Luca, Jean-Luc Godard... Observa-se que estão mais ou menos na situação de um certo bilinguismo: Kafka, judeu tcheco escrevendo em alemão; Beckett, irlandês escrevendo simultaneamente em inglês e em francês; Luca, de origem romena; Godard e sua vontade de ser suíço. Mas é apenas uma coincidência, uma ocasião, e a ocasião pode ser encontrada em outro lugar. Observa-se também que muitos

Cf. o artigo de Gilbert Rouget, “Un chromatisme africain”, in L’Homme, setembro de 1961 (que traz o disco “Chants rituels Daomé” como encarte). 24

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dentre eles não são somente escritores ou primeiramente escritores (Beckett e o teatro e a televisão; Godard e o cinema, a televisão; Luca e suas máquinas audiovisuais): é porque, quando submetemos os elementos linguísticos sejam submetidos a um tratamento de variação contínua, quando introduzimos na linguagem uma pragmática interna, somos necessariamente levados a tratar da mesma maneira os elementos não-linguísticos, gestos, instrumentos, como se os dois aspectos da pragmática se reunissem, na mesma linha de variação, no mesmo continuum. Além do mais, de início talvez a ideia tenha vindo do exterior, a linguagem não fez senão seguir, como acontece nas origens necessariamente exteriores de um estilo. Mas o essencial é que cada um desses autores tenha seu procedimento de variação, seu cromatismo ampliado, sua louca produção de velocidades e de intervalos. A gagueira criadora de Gherasim Luca, no poema “Passionnément”25. Uma outra gagueira, a de Godard. No teatro, os sussurros sem altura definida de Bob Wilson, as variações ascendentes e descendentes de Carmelo Bene. Gaguejar é fácil, mas ser gago da própria linguagem é uma outra coisa, que coloca em variação todos os elementos linguísticos, e mesmo os elementos não-linguísticos, as variáveis de expressão e as variáveis de conteúdo. Nova forma de redundância. E... e... e... Sempre houve uma luta na linguagem entre o verbo “ser” e a conjunção “e”, entre é e e. Esses dois termos só se entendem e só se combinam aparentemente, porque um age na linguagem como uma constante e forma a escala diatônica da língua, ao passo que o outro coloca tudo em variação, constituindo linhas de um cromatismo generalizado. De um a outro, tudo bascula. Mais do que nós [franceses], os que escrevem em inglês ou em americano estavam conscientes dessa luta e do que estava em jogo, e da valência do “e”26. Proust dizia: “as obras-primas são escritas em um tipo de língua estrangeira”. E a mesma coisa que gaguejar, mas estando gago da linguagem e não simplesmente da fala. Ser um estrangeiro, mas em sua própria

Gherasim Luca, Le chant de Ia carpe, Ed. du Soleil Noir; e o disco produzido por Givaudan, onde G. Luca recita o poema “Passionnément”. 25

O “e” (and) tem um papel particularmente importante na literatura inglesa, em função não somente do Antigo Testamento, mas das “minorias” que trabalham a língua: citemos, entre outros, o caso de John Millington Synge (cf. as observações de François Regnault sobre a coordenação em anglo-irlandês, tradução du Baladin du monde Occidental, Bibl. du Graphe). Não nos contentaremos em analisar o “e” como uma conjunção; é, antes, uma forma bastante especial de qualquer conjunção possível, e que coloca em jogo uma lógica da língua. Encontraremos na obra de Jean Wahl uma profunda reflexão acerca desse sentido do “e”, acerca da maneira pela qual ele coloca em questão o primado do verbo ser. 26

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língua, e não simplesmente como alguém que fala uma outra língua, diferente da sua. Ser bilíngue, multilíngue, mas em uma só e mesma língua, sem nem mesmo dialeto ou patuá. Ser um bastardo, um mestiço, mas por purificação da raça. É aí que o estilo cria língua. É aí que a linguagem se torna intensiva, puro contínuo de valores e de intensidades. É aí que toda língua se torna secreta, e entretanto não tem nada a esconder, ao invés de talhar um subsistema secreto na língua. Só se alcança esse resultado através de sobriedade, subtração criadora. A variação contínua tem apenas linhas ascéticas, um pouco de erva e água pura. Podemos escolher qualquer variável linguística e fazê-la variar em uma linha contínua necessariamente virtual entre dois estados dessa variável. Não estamos mais na situação dos linguistas que esperam que as constantes da língua experimentem um tipo de mutação, ou antes sofram o efeito de mudanças acumuladas na simples fala. As linhas de mudança ou de criação fazem parte da máquina abstrata, plena e diretamente. Hjelmslev observava que uma língua comporta necessariamente possibilidades inexploradas, e que a máquina abstrata deve compreender essas possibilidades, ou potencialidades27. “Potencial”, “virtual” não se opõem precisamente ao real; ao contrário, é a realidade do criativo, o colocar em variação contínua das variáveis, que se opõe somente à determinação atual de suas relações constantes. A cada vez que se traça uma linha de variação, tem-se variáveis de diversas naturezas — fonológica, sintática ou gramatical, semântica etc. —, mas a própria linha é a-pertinente, assintática ou agramatical, assemântica. A agramaticalidade, por exemplo, não é mais uma característica contingente da fala que se oporia à gramaticalidade da língua; é, ao contrário, a característica ideal da linha que coloca as variáveis gramaticais em estado de variação contínua. Retomemos uma análise de Nicolas Ruwet, concernente a determinadas expressões singulares de Cummings, he danced his did, ou they went their came. Podem-se reconstituir as variações pelas quais as variáveis gramaticais passam virtualmente para chegar a tais expressões agramaticais (he did his dance, he danced his danse, he danced what he did..., they went as they came, they went their way...28). Apesar da interpretação estrutural de Ruwet,

27

Hjelmslev, Le langage, Ed. de Minuit, p.6.3 sq.

Nicolas Ruwet, “Parallélisme et déviations en poésie”, in Langage, discours, société, Ed. du Seuil. Ruwet analisa o poema 29 em Fifty Poems de Cummings; apresenta uma interpretação restrita e estruturalista desse fenômeno de variação, invocando a noção de “paralelismo”; em outros textos, diminui o alcance dessas variações, relacionando-as aos exercícios marginais que não dizem respeito às verdadeiras mudanças na língua; entretanto, seu próprio comentário parece ultrapassar todas essas restrições de interpretação. 28

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evitar-se-á crer que a expressão atípica seja produzida pelas formas corretas sucessivas. Ao contrário, é ela que leva ao estado de variação as formas corretas, e as arranca de seu estado de constantes. A expressão atípica constitui um extremo de desterritorialização da língua, representa o papel de tensor, isto é, faz com que a língua tenda em direção a um limite de seus elementos, formas ou noções, em direção a um aquém ou a um além da língua. O tensor opera um tipo de transitivização da frase, e faz com que o último termo reaja sobre o precedente, remontando toda a cadeia. Assegura um tratamento intensivo e cromático da língua. Uma expressão tão simples como e... pode representar o papel de tensor através de toda a linguagem. Nesse sentido, o e é menos uma conjunção do que a expressão atípica de todas as conjunções possíveis que coloca em variação contínua. Eis porque o tensor não se deixa reduzir nem a uma constante nem a uma variável, mas assegura a variação da variável, subtraindo a cada vez o valor da constante (n-1). Os tensores não coincidem com qualquer categoria linguística; são entretanto valores pragmáticos essenciais aos agenciamentos de enunciação bem como aos discursos indiretos29. Acredita-se, às vezes, que essas variações não expressam o trabalho comum da criação na língua, e permanecem marginais, reservadas aos poetas, às crianças e aos loucos. É por isso que se quer definir a máquina abstrata pelas constantes, que só podem consequentemente ser modificadas secundariamente, por efeito cumulativo ou mutação sintagmática. Mas a máquina abstrata da língua não é universal ou mesmo geral, ela é singular; não é atual, mas virtual-real; não possui regras obrigatórias ou invariáveis, mas regras facultativas que variam incessantemente com a própria variação, como em um jogo onde cada jogada se basearia na regra. Daí a complementaridade das máquinas abstratas e dos agenciamentos de enunciação, a presença de umas nas outras. Isto ocorre porque a máquina abstrata é como o diagrama de um agenciamento; traça as linhas de variação contínua, ao passo que o agenciamento concreto trata das variáveis, organiza suas relações bastante diversas em função dessas linhas. O agenciamento negocia as variáveis em tal ou qual variação, segundo tal ou qual grau de desterritorialização, para determinar aquelas que estabelecerão relações constantes ou

Cf. Vidal Sephiha, “Introduction à l’étude de 1’intensif”, Langages, março de 1973. E um dos primeiros estudos sobre as tensões e variações atípicas da linguagem, tal como aparecem principalmente nas línguas ditas menores. 29

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obedecerão a regras obrigatórias, e aquelas, ao contrário, que servirão de matéria fluente à variação. Não se concluirá que o agenciamento opõe somente uma certa resistência ou inércia à máquina abstrata; pois mesmo as “constantes” são essenciais à determinação das virtualidades pelas quais a variação passa; são, elas mesmas, facultativamente escolhidas. Em certo nível, há freio e resistência, mas, em outro nível de agenciamento, não há mais do que um vaivém entre os diversos tipos de variáveis e corredores de passagem percorridos nos dois sentidos: é ao mesmo tempo que todas as variáveis efetuam a máquina segundo o conjunto de suas relações. Não há como distinguir, portanto, uma língua coletiva e constante, e atos de fala, variáveis e individuais. A máquina abstrata é sempre singular, designada por um nome próprio, de grupo ou de indivíduo, ao passo que o agenciamento de enunciação é sempre coletivo, no indivíduo como no grupo. Máquina abstrata-Lênin e agenciamento coletivo-bolchevique... O mesmo é válido para a literatura, para a música. Nenhum primado do indivíduo, mas indissolubilidade de um Abstrato singular e de um Concreto coletivo. A máquina abstrata não existe mais independentemente do agenciamento, assim como o agenciamento não funciona independentemente da máquina.

IV. Só se poderia estudar cientificamente a língua sob as condições de uma língua maior ou padrão Visto que todo mundo sabe que uma língua é uma realidade variável heterogênea, o que significa a exigência dos linguistas de traçar um sistema homogêneo para tornar possível o estudo científico? Trata-se de extrair das variáveis um conjunto de constantes, ou de determinar relações constantes entre as variáveis (como já se pode observar na comutatividade dos fonologistas). Mas o modelo científico através do qual a língua se torna objeto de estudo não é senão um modelo político através do qual a língua é por sua vez homogeneizada, centralizada, padronizada, língua de poder, maior ou dominante. É inútil o linguista recorrer à ciência, à ciência pura — mas essa não seria a primeira vez que a ordem da ciência viria garantir as exigências de uma outra ordem. O que é a gramaticalidade e o signo S, o símbolo categorial que domina os enunciados? É um marcador de poder antes de ser um marcador sintático, e as árvores chomskianas estabelecem relações constantes entre variáveis de poder. Formar frases gramaticalmente corretas é, para o indivíduo normal, a condição prévia para qualquer submissão às leis sociais. Ninguém pode ignorar a gramaticalidade; aqueles que

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a ignoram pertencem a instituições especiais. A unidade de uma língua é, antes de tudo, política. Não existe língua-mãe, e sim tomada de poder por uma língua dominante, que ora avança sobre uma grande frente, ora se abate simultaneamente sobre centros diversos. Podem-se conceber várias maneiras de uma língua se homogeneizar, se centralizar: a maneira republicana não é necessariamente a mesma que a real, e não é a menos dura30. Mas o empreendimento científico de destacar constantes e relações constantes sempre se duplica no empreendimento político de impô-las àqueles que falam, e de transmitir palavras de ordem. Speak white and loud sim que admirável língua para enquadrar dar ordens fixar a hora da morte no trabalho e da pausa que arrefece...

Assim, seria preciso distinguir dois tipos de línguas, “altas” e “baixas”, maiores e menores? Umas se definiriam precisamente pelo poder das constantes; outras, pela potência da variação. Não queremos simplesmente opor a unidade de uma língua maior a uma multiplicidade de dialetos. É, antes, cada dialeto que se encontra afetado por uma zona de transição e de variação, ou melhor, é cada língua menor que se encontra afetada por uma zona de variação propriamente dialetal. Segundo Malmberg, raramente se distinguem fronteiras nítidas nos mapas dos dialetos, mas zonas limítrofes e transicionais, de indiscernibilidade. Diz-se igualmente que “a língua quebequense é tão rica

Sobre as extensões e difusões dos estados de língua, tanto em “mancha de óleo”, quanto na forma de “bandos aerotransportados”, cf. Bertil Malmberg, Les nouvelles tendances de la linguistique, PUF, cap. III (invocando os muito importantes estudos de N. Lindqvist sobre a dialetologia). Seriam necessários, então, estudos comparativos concernentes à maneira pela qual se operam as homogeneizações e centralizações das diversas línguas maiores. A esse respeito, a história linguística do francês não é absolutamente igual à do inglês; a relação com a escrita como forma de homogeneização tampouco é a mesma. Para o francês, língua centralizada por excelência, reportaremos à análise de M. de Certeau, D. Julia, J.Revel, Une politiqite de Ia langue, Gallimard. Essa análise refere-se a um período muito curto, no fim do século XVIII, em torno do abade Gregório, e marca entretanto dois momentos distintos: um, em que a língua central se opõe aos dialetos rurais, como a cidade ao campo, a capital à província; outro, em que se opõe aos “idiomas feudais”, mas também à linguagem dos emigrados, como a Nação se opõe a tudo o que lhe é estrangeiro ou inimigo (p. 160 sq.: “É igualmente evidente que a recusa dos dialetos resulta de uma incapacidade técnica de apreender leis estáveis na oralidade ou nas falas regionais.”). 30

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em modulações e variações de sotaques regionais e jogos de acentuações tônicas que, sem entretanto exagerar, parece, às vezes, que seria melhor preservada pela notação musical do que por todo o sistema de ortografia”31. A própria noção de dialeto é bastante incerta. Além disso, é relativa, porque é preciso saber em relação a que língua maior ela exerce sua função: por exemplo, a língua quebequense não é avaliada apenas em relação a um francês padrão, mas em relação ao inglês maior do qual ela toma emprestados todos os tipos de elementos fonéticos e sintáticos para fazê-los variar. Os dialetos bantos não são avaliados somente em relação a uma língua-mãe, mas em relação ao africâner como língua maior, e ao inglês como língua contra-maior preferida pelos negros32. Em suma, não é a noção de dialeto que esclarece a de língua menor, mas ao contrário, é a língua menor que define os dialetos por suas próprias possibilidades de variação. Assim, perguntamos, seria preciso distinguir línguas maiores e línguas menores, seja se colocando na situação regional de um bilinguismo ou de um multilinguismo que comporta pelo menos uma língua dominante e uma língua dominada, seja considerando uma situação mundial que dá a determinadas línguas um poder imperialista em relação a outras (assim como o papel do inglês-americano atualmente)? Pelo menos duas razões nos impedem de adotar esse ponto de vista. Como observa Chomsky, um dialeto, uma língua de gueto, uma língua menor não escapam às condições de um tratamento que delas destaca um sistema homogêneo extraindo daí constantes o black-english tem uma gramática própria que não se define como uma soma de erros ou de infrações em relação ao inglês padrão, mas de fato essa gramática só pode ser considerada aplicando-lhe as mesmas regras de estudo aplicadas à gramática do inglês padrão. Nesse sentido, as noções de maior e de menor parecem não ter nenhum interesse linguístico. O francês, ao perder sua função maior mundial, não perde nada de sua constância e de sua homogeneidade, de sua centralização. Ao contrário, o africâner adquiriu sua homogeneidade quando era uma língua localmente menor em luta contra o inglês. Mesmo e sobretudo politicamente, é difícil perceber como os defensores de uma língua menor podem operar, a não ser dando-lhe — mesmo que apenas pela

Cf. Michèle Lalonde, em Change, n.30, onde encontramos ao mesmo tempo o poema precedente “Speak White” e um manifesto sobre a língua quebequense. 31

Sobre a situação complexa do africâner, o belo livro de Breyten Breytenbach, Feu froid, Bourgois: o estudo de G.M. Lory (p. 101-107) esclarece a empresa de Breytenbach, a violência de seu tratamento poético da língua, sua vontade de ser “bastardo, com uma língua bastarda”. 32

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escrita — a constância e a homogeneidade que fazem dela uma língua localmente maior capaz de forçar o reconhecimento oficial (daí o papel político dos escritores que fazem valer os direitos de uma língua menor). Mas parece que o argumento contrário tem ainda mais peso: quanto mais uma língua tem ou adquire os caracteres de uma língua maior, mais ela é trabalhada pelas variações contínuas que a transpõem em “menor”. É inútil criticar o imperialismo mundial de uma língua denunciando as corrupções que ela introduz nas outras línguas (por exemplo, a crítica dos puristas à influência inglesa, a denúncia poujadista* ou acadêmica do “franglês”). Pois uma língua, como o inglês, o americano, não é mundialmente maior sem ser trabalhada por todas as minorias do mundo, com procedimentos de variação bastante diversos. Modo pelo qual o gaélico, o anglo-irlandês, faz variar o inglês. Modo pelo qual o black-english e tantos “guetos” fazem variar o americano, a ponto de Nova Iorque ser quase uma cidade sem língua. (E ainda mais: o americano não se constituiu, em suas diferenças em relação ao inglês, sem esse trabalho linguístico das minorias). Ou ainda a situação linguística no antigo império austríaco: o alemão não é língua maior em relação às minorias, sem sofrer por parte destas um tratamento que faz dele uma língua menor em relação ao alemão dos alemães. Ora, não existe língua que não tenha suas minorias internas, endógenas, intralinguísticas. De tal modo que, do ponto de vista mais geral da linguística, a posição de Chomsky e a de Labov não deixam de se cruzar, e de se transmutar. Chomsky pode dizer que uma língua, mesmo menor, dialetal ou de gueto, não pode ser estudada fora das condições que dela extraem invariantes, e que eliminam as variáveis “extrínsecas ou mistas”; mas Labov pode responder que uma língua, mesmo maior e padrão, não pode ser estudada independentemente das variações “inerentes”, que não são precisamente nem mistas nem extrínsecas. Vocês não chegarão a um sistema homogêneo que ainda não seja ou que não venha a ser trabalhado por uma variação imanente, contínua e regrada (por que Chomsky finge não compreender isso?). Não existem então dois tipos de língua, mas dois tratamentos possíveis de uma mesma língua. Ora tratam-se as variáveis de maneira a extrair delas constantes e relações constantes; ora, de maneira a colocá-las em estado de variação contínua. Erramos algumas vezes ao agir como se as constantes existissem ao lado das variáveis, constantes linguísticas ao lado de variáveis de enunciação: isso foi feito por comodidade de exposição. Pois é evidente que as constantes são tiradas das próprias variáveis; os universais não têm mais existência em si na linguística

O termo refere-se a Pierre Poujade, que encarnou, nos anos 50, a mais radical forma de corporativismo do “pequeno comerciante”, em sua fixação sobre os “valores franceses”, aqui sinônimo de uma xenofobia reivindicada. (N. das T). *

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do que na economia, e são sempre inferidos a partir de uma universalização ou de uma uniformização que se refere às variáveis. Constante não se opõe a variável, é um tratamento da variável que se opõe a outro tratamento, o da variação contínua. As regras ditas obrigatórias correspondem ao primeiro tratamento, ao passo que as regras facultativas concernem à construção de um continuum de variação. Além do mais, determinado número de categorias ou de distinções não pode ser invocado; elas não são aplicáveis nem objetáveis, porque já supõem o primeiro tratamento e são completamente subordinadas à busca das constantes: assim é a língua enquanto a opomos à fala; a sincronia, à diacronia; a competência, à performance; os traços distintivos, aos traços não-distintivos (ou secundariamente distintivos). Pois os traços não-distintivos, pragmáticos, estilísticos, prosódicos, não são somente variáveis onipresentes que se distinguem da presença ou da ausência de uma constante, não são elementos sobrelineares e “supra-segmentares” que se distinguem dos elementos segmentares lineares: seus próprios caracteres lhes fornecem a potência de colocar todos os elementos da língua em estado de variação contínua — como a ação do tom sobre os fonemas, do acento sobre os morfemas, da entonação sobre a sintaxe. Esses não são, portanto, traços secundários, mas um outro tratamento da língua, que não passa mais pelas categorias precedentes. “Maior” e “menor” não qualificam duas línguas, mas dois usos ou funções da língua. O bilinguismo tem certamente um valor exemplar, mas, ainda aqui, por simples comodidade. Não há dúvida de que, no império austríaco, o tcheco é língua menor em relação ao alemão; mas o alemão de Praga já funciona como língua potencialmente menor em relação ao de Viena ou de Berlim; e Kafka, judeu tcheco escrevendo em alemão, faz o alemão sofrer um tratamento criador de língua menor, construindo um continuum de variação, negociando todas as variáveis para, ao mesmo tempo, restringir as constantes e estender as variações: fazer gaguejar a língua, ou fazê-la “piar”..., armar tensores em toda a língua, mesmo a escrita, e extrair daí gritos, clamores, alturas, durações, timbres, acentos, intensidades. Duas tendências conjuntas das línguas ditas menores foram recorrentemente apontadas: um empobrecimento, um esgotamento das formas, sintáticas ou lexicais; mas, ao mesmo tempo, uma curiosa proliferação de efeitos cambiantes, um gosto pela sobrecarga e pela paráfrase. O mesmo pode ser dito em relação ao alemão de Praga, ao black-english ou ao quebequense. Mas a interpretação dos linguistas foi basicamente, a não ser em raras exceções, mal intencionada, invocando uma pobreza e uma preciosidade consubstanciais.

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A suposta pobreza é, de fato, uma restrição das constantes, assim como a sobrecarga é uma extensão das variações, para desenrolar um continuum que arrebata todos os componentes. Essa pobreza não é uma falta, mas um vazio ou uma elipse que faz com que se contorne uma constante sem se engajar nela, ou que se a aborde por baixo ou por cima sem nela se instalar. E essa sobrecarga não é uma figura de retórica, uma metáfora ou estrutura simbólica, é uma paráfrase movente que testemunha a presença não-localizada de um discurso indireto no interior de qualquer enunciado. Assiste-se, dos dois lados, a uma recusa de pontos de referência, a uma dissolução da forma constante em benefício das diferenças de dinâmica. E quanto mais uma língua entra nesse estado, mais se aproxima não somente de uma notação musical, mas da própria música33. Subtrair e colocar em variação, diminuir e colocar em variação, é uma só e mesma operação. Não existe uma pobreza e uma sobrecarga que caracterizariam as línguas menores em relação a uma língua maior ou padrão; há uma sobriedade e uma variação que são como um tratamento menor da língua padrão, um devir-menor da língua maior. O problema não é o de uma distinção entre língua maior e língua menor, mas o de um devir. A questão não é a de se reterritorializar em um dialeto ou um patuá, mas de desterritorializar a língua maior. Os negros americanos não opõem o black ao inglês, fazem com o americano, que é sua própria língua, um black-english. As línguas menores não existem em si: existindo apenas em relação a uma língua maior, são igualmente investimentos dessa língua para que ela devenha,

Sobre o duplo aspecto das línguas menores, pobreza-elipse, sobrecarga-variação, pode-se reportar a algumas análises exemplares: a que Wagenbach faz do alemão de Praga no começo do século XX (Franz Kafka, années de jeneusse, Mercure de France); a de Pasolini, mostrando que o italiano não foi construído em um nível padrão ou médio, mas explodiu em duas direções simultâneas, “para o alto e para baixo”, material simplificado e exagero expressivo (L’expérience hérétique, Payot, p.46-47); a de J.L. Dillard, destacando a dupla tendência do black-english, por um lado de omitir, perder ou se desembaraçar, por outro de sobrecarregar, elaborar um “fancy talk” (Black-english, Vintage Book, New York). Como observa Dillard, não há aí qualquer inferioridade em relação a uma língua padrão, mas correlação de dois movimentos que escapam necessariamente do nível padrão da língua. Sempre a propósito do blackenglish, LeRoi Jones mostra a que ponto essas duas direções conjuntas aproximam a língua da música (Le peuple du blues, Gallimard, p.44-45, e todo o capítulo III). Mais geralmente, cabe lembrar a análise que Pierre Boulez faz de um duplo movimento musical, dissolução da forma, sobrecarga ou proliferação dinâmicas: Par volonté et par hasard, Ed. du Seuil p.22,24 33

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ela mesma, menor. Cada um deve encontrar a língua menor, dialeto ou antes idioleto, a partir da qual tornará menor sua própria língua maior. Essa é a força dos autores que chamamos “menores”, e que são os maiores, os únicos grandes: ter que conquistar sua própria língua, isto é, chegar a essa sobriedade no uso da língua maior, para colocá-la em estado de variação contínua (o contrário de um regionalismo). É em sua própria língua que se é bilíngue ou multilíngue. Conquistar a língua maior para nela traçar línguas menores ainda desconhecidas. Servir-se da língua menor para por em fuga a língua maior. O autor menor é o estrangeiro em sua própria língua. Se é bastardo, se vive como bastardo, não é por um caráter misto ou mistura de línguas, mas antes por subtração e variação da sua, por muito ter entesado tensores em sua própria língua. A noção de minoria, com suas remissões musicais, literárias, linguísticas, mas também jurídicas, políticas, é bastante complexa. Minoria e maioria não se opõem apenas de uma maneira quantitativa. Maioria implica uma constante, de expressão ou de conteúdo, como um metro padrão em relação ao qual ela é avaliada. Suponhamos que a constante ou metro seja homem-branco-masculino-adulto-habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual qualquer (o Ulisses de Joyce ou de Ezra Pound). É evidente que “o homem” tem a maioria, mesmo se é menos numeroso que os mosquitos, as crianças, as mulheres, os negros, os camponeses, os homossexuais... etc. É porque ele aparece duas vezes, uma vez na constante, uma vez na variável de onde se extrai a constante. A maioria supõe um estado de poder e de dominação, e não o contrário. Supõe o metro padrão e não o contrário. Mesmo o marxismo “traduziu quase sempre a hegemonia do ponto de vista do operário nacional, qualificado, masculino e com mais de trinta e cinco anos”34. Uma outra determinação diferente da constante seria então considerada como minoritária, por natureza e qualquer que seja seu número, isto é, como um subsistema ou como fora do sistema. Isso pode ser visto em todas as operações, eleitorais ou não, onde se dá o poder de escolha, com a condição de que a escolha permaneça conforme aos limites da constante (“vocês não têm que escolher uma mudança de sociedade...”). Mas, nesse ponto, tudo se inverte. Pois a maioria, na medida em que é analiticamente compreendida no padrão abstrato, não é nunca alguém, é sempre Ninguém — Ulisses —, ao passo que a minoria é o devir de todo o mundo, seu devir potencial por desviar

34

Yann Moulier, prefácio a Ouvriers et Capital, de Mario Tronti, Bourgois.

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do modelo. Há um “fato” majoritário, mas é o fato analítico de Ninguém que se opõe ao devir-minoritário de todo o mundo. É por isso que devemos distinguir: o majoritário como sistema homogêneo e constante, as minorias como subsistemas, e o minoritário como devir potencial e criado, criativo. O problema não é nunca o de obter a maioria, mesmo instaurando uma nova constante. Não existe devir majoritário, maioria não é nunca um devir-. Só existe devir minoritário. As mulheres, independentemente de seu número, são uma minoria, definível como estado ou subconjunto; mas só criam tornando possível um devir-, do qual não são proprietárias, no qual elas mesmas têm que entrar, um devirmulher que concerne a todos os homens, incluindo-se aí homens e mulheres. O mesmo ocorre com as línguas menores: não são simplesmente sublínguas, idioletos ou dialetos, mas agentes potenciais para fazer entrar a língua maior em um devir minoritário de todas as suas dimensões, de todos os seus elementos. Podem-se distinguir línguas menores, a língua maior, e o devir-menor da língua maior. Certamente as minorias são estados que podem ser definidos objetivamente, estados de língua, de etnia, de sexo, com suas territorialidades de gueto; mas devem ser consideradas também como germes, cristais de devir-, que só valem enquanto detonadores de movimentos incontroláveis e de desterritorializações da média ou da maioria. É por isso que Pasolini mostrava que o essencial, precisamente no discurso indireto livre, não estava nem em uma língua A, nem em uma língua B, mas “em uma língua X, que não é senão a língua A em vias de se tornar realmente uma língua B”35. Há uma figura universal da consciência minoritária, como devir de todo o mundo, e é esse devir que é criação. Não é adquirindo a maioria que se o alcança. Essa figura é precisamente a variação contínua, como uma amplitude que não cessa de transpor, por excesso e por falta, o limiar representativo do padrão majoritário. Erigindo a figura de uma consciência universal minoritária, dirigimo-nos a potências de devir que pertencem a um outro domínio, que não o do Poder e da Dominação. É a variação contínua que constitui o devir minoritário de todo o mundo, por oposição ao Fato majoritário de Ninguém. O devir minoritário como figura universal da consciência é denominado autonomia. Sem dúvida não é utilizando uma língua menor como dialeto, produzindo regionalismo ou gueto que nos tornamos revolucionários; é utilizando muitos dos elementos de minoria,

35

P.P. Pasolini, L’expérience hérétique, p.62.

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conectando-os, conjugando-os, que inventamos um devir específico autônomo, imprevisto36. O modo maior e o modo menor são dois tratamentos da língua: um, consistindo em extrair dela constantes; outro, em colocá-la em variação contínua. Mas, à medida que a palavra de ordem é a variável de enunciação que efetua a condição da língua e define o uso dos elementos segundo um ou outro tratamento, é então à palavra de ordem que se deve voltar, como a única “metalinguagem” capaz de apreender essa dupla direção, esse duplo tratamento das variáveis. Se o problema das funções da linguagem é geralmente mal formulado, é porque se deixa de lado essa variável-palavra de ordem, que subordina todas as funções possíveis. Segundo as indicações de Canetti, podemos partir da seguinte situação pragmática: a palavra de ordem é sentença de morte, implica sempre uma sentença como essa, mesmo muito atenuada, tornada simbólica, iniciática, temporária... etc. A palavra de ordem traz uma morte direta àquele que recebe a ordem, uma morte eventual se ele não obedece ou, antes, uma morte que ele mesmo deve infligir, levar para outra parte. Uma ordem do pai a seu filho — “você fará isso”, “você não fará aquilo” — não pode ser separada da pequena sentença de morte que o filho experimenta em um ponto de sua pessoa. Morte, morte, esse é o único julgamento, e o que faz do julgamento um sistema. Veredito. Mas a palavra de ordem é também outra coisa, inseparavelmente ligada a essa: é como um grito de alarme ou uma mensagem de fuga. Seria simples demais dizer que a fuga é uma reação à palavra de ordem; encontra-se, antes, compreendida nesta, como sua outra face em um agenciamento complexo, seu outro componente. Canetti tem razão ao invocar o rugido do leão, que enuncia ao mesmo tempo a fuga e a morte37. A palavra de ordem tem dois tons. O profeta não recebe menos as palavras de ordem ao fugir do que ao desejar a morte: o profetismo judeu juntou o desejo de estar morto e o impulso de fuga com a palavra de ordem divina.

Cf. O manifesto do “Coletivo Estratégia” a propósito da língua quebequense, em Change n.30, denuncia “o mito da língua subversiva”, como se bastasse um estado de minoria para possuir, com isso, uma posição revolucionária (“essa equação mecanicista deriva de uma concepção populista da língua. (...). Não é porque um indivíduo fala a língua da classe trabalhadora que ele defende as posições dessa classe. (...). A tese segundo a qual o joual* possui uma força subversiva, contracultural, é perfeitamente idealista”, p.188. [* Palavra utilizada em Quebec para designar, de forma geral, as diferenças (fonéticas, lexicais, sintáticas) do francês popular canadense. (N. das T).] 36

Elias Canetti, Massa e potência. (Cf. os dois capítulos essenciais correspondentes aos dois aspectos da palavra de ordem, “A ordem” e “A metamorfose”; e, sobretudo, p.332-333, quanto à descrição da peregrinação a Meca, com seu duplo aspecto codificado: petrificação mortuária e fuga em pânico). 37

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Ora, se consideramos o primeiro aspecto da palavra de ordem, isto é, a morte como expresso do enunciado, percebemos que corresponde às exigências precedentes: a morte tenta concernir essencialmente aos corpos, se atribuir aos corpos, deve à sua imediatidade, à sua instantaneidade, o caráter autêntico de uma transformação incorpórea. O que a precede e o que a ela se segue pode ser um longo sistema de ações e de paixões, um lento trabalho dos corpos; em si mesma, ela não é nem ação nem paixão, mas puro ato, pura transformação que a enunciação junta ao enunciado, sentença. Esse homem está morto... Você já está morto quando recebe a palavra de ordem... A morte, com efeito, está em toda parte como essa fronteira intransponível, ideal, que separa os corpos, suas formas e seus estados, e como a condição, mesmo iniciática, mesmo simbólica, pela qual um sujeito deve passar para mudar de forma ou de estado. É nesse sentido que Canetti fala da “enantiomorfose”: um regime que remete a um Senhor imóvel e hierático, legislando a todo momento por meio de constantes, proibindo ou limitando estritamente as metamorfoses, fixando para as figuras contornos nítidos e estáveis, opondo duas a duas as formas, impondo aos sujeitos que morram para que passem de uma a outra. É sempre por algo de incorpóreo que um corpo se separa e se distingue de um outro. Enquanto extremidade de um corpo, a figura é o atributo não-corpóreo que o limita e o fixa: a morte é a Figura. É por uma morte que um corpo se consuma não somente no tempo, mas no espaço, e que suas linhas formam, delimitam um contorno. Tanto existem espaços mortos quanto tempos mortos. “A repetição da enantiomorfose conduz a uma redução do mundo (...).; as proibições sociais de metamorfose são talvez as mais importantes de todas. (...). É a própria morte que é interposta entre as classes, a mais estrita fronteira.” Em um tal regime, todo corpo novo exige a ereção de uma forma oponível tanto quanto a formação de sujeitos distintos: a morte é a transformação geral incorpórea que é atribuída a todos os corpos do ponto de vista de suas formas e de suas substâncias (por exemplo, o corpo do Partido não se destacará sem uma operação de enantiomorfia, e sem a formação de novos militantes que supõem a eliminação de uma primeira geração). É verdade que invocamos aqui considerações tanto de conteúdo quanto de expressão. Na verdade, no exato momento em que os dois planos mais se distinguem, como o regime de corpos e o regime de signos em um agenciamento, remetem mais uma vez à sua pressuposição recíproca. A transformação incorpórea é o expresso das palavras de ordem, mas também o atributo dos corpos.

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Não são apenas as variáveis linguísticas de expressão, mas também as variáveis não-linguísticas de conteúdo, que entram respectivamente em relações de oposição ou de distinção formais, capazes de liberar constantes. Como o indica Hjelmslev, da mesma maneira que uma expressão se divide em unidades fônicas, por exemplo, e que um conteúdo se divide em unidades físicas, zoológicas ou sociais (“bezerro” se divide em bovinomacho-jovem 38 ). A rede das binariedades, das arborescências, vale tanto de um lado quanto do outro. Não há, entretanto, qualquer semelhança, nem correspondência ou conformidade analíticas dos dois planos. Mas sua independência não exclui o isomorfismo, isto é, a existência do mesmo tipo de relações constantes de um lado ou do outro. E é esse tipo de relações que faz, desde o início, com que os elementos linguísticos e nãolinguísticos não sejam separáveis, apesar de não apresentarem correspondência. É simultaneamente que os elementos de conteúdo darão contornos nítidos às misturas de corpos, e os elementos de expressão darão um poder de sentença ou de julgamento aos expressos não-corpóreos. Todos esses elementos possuem graus de abstração e de desterritorialização diferentes, mas realizam, a cada vez, uma reterritorialização do conjunto do agenciamento, nessas palavras de ordem e nesses contornos. E é esse o sentido da doutrina do juízo sintético: o de ter mostrado que havia um vínculo a priori (isomorfismo) entre a Sentença e a Figura, entre a forma de expressão e a forma de conteúdo. Mas se consideramos o outro aspecto da palavra de ordem, a fuga e não a morte, é evidente que as variáveis entram então em um novo estado, que é o da variação contínua. A passagem ao limite revela-se agora como a transformação incorpórea, que não cessa entretanto de ser atribuída aos corpos: a única maneira não de suprimir a morte, mas de reduzi-la ou de fazer dela mesma uma variação. A linguagem é impelida por esse movimento que a faz se estender para além de seus próprios limites, ao mesmo tempo que os corpos são tomados no movimento da metamorfose de seu conteúdo, ou na exaustão que os faz alcançar ou ultrapassar o limite de suas figuras. Seria possível opor aqui as ciências menores às maiores: por exemplo, o impulso da linha quebrada em direção à curva, toda uma geometria operativa do traço e

Vimos que Hjelmslev impunha uma condição restritiva — a de assimilar o plano de conteúdo a um tipo de “significado”. Temos então razão de objetar-lhe que a análise do conteúdo, tal como a propõe, deriva menos da linguística do que de outras disciplinas como a zoologia, por exemplo (ver também Martinet, La linguistique, Denoel, p.353). Mas essa objeção nos parece se referir apenas à condição restritiva de Hjelmslev. 38

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do movimento, uma ciência pragmática das operações de variação, que age diferentemente da ciência maior ou real das invariantes de Euclides, e que apresenta uma longa história de suspeição e mesmo de repressão (questão à qual voltaremos mais adiante). O menor intervalo é sempre diabólico: o senhor das metamorfoses se opõe ao rei hierático invariante. É como se uma matéria intensa se liberasse — um continuum de variação: aqui, nos tensores interiores da língua; ali, nas tensões interiores de conteúdo. A ideia do menor intervalo não se estabelece entre figuras de mesma natureza, mas implica pelo menos a curva e a reta, o círculo e a tangente. Assiste-se a uma transformação de substâncias e a uma dissolução das formas, passagem ao limite ou fuga dos contornos, em benefício das forças fluidas, dos fluxos, do ar, da luz, da matéria, que fazem com que um corpo ou uma palavra não se detenham em qualquer ponto preciso. Potência incorpórea dessa matéria intensa, potência material dessa língua. Uma matéria mais imediata, mais fluida e ardente do que os corpos e as palavras. Na variação contínua, não é nem mesmo possível distinguir uma forma de expressão e uma forma de conteúdo, mas dois planos inseparáveis em pressuposição recíproca. Nesse momento, a relatividade de suas distinções está plenamente realizada no plano de consistência onde a desterritorialização torna-se absoluta, desencadeando o agenciamento. Absoluto não significa entretanto indiferenciado: as diferenças, tornadas “infinitamente pequenas”, se farão em uma única e mesma matéria que servirá de expressão como potência incorpórea, mas que servirá igualmente de conteúdo como corporeidade sem limites. As variáveis de conteúdo e de expressão não se encontram mais na relação de pressuposição que supõe, ainda, duas formas: a entrada em variação contínua das variáveis opera, antes, a aproximação das duas formas, a conjunção dos picos de desterritorialização tanto de um lado quanto do outro, no plano de uma mesma matéria liberada, sem figuras, deliberadamente não-formada, que retém justamente apenas essas extremidades, esses tensores ou tensões tanto na expressão quanto no conteúdo. Os gestos e as coisas, as vozes e os sons, são envolvidos na mesma “ópera”, arrebatados nos efeitos cambiantes de gagueira, de vibrato, de trêmulo e de transbordamento. Um sintetizador coloca em variação contínua todos os parâmetros e faz com que, pouco a pouco, “elementos essencialmente heterogêneos acabem por se converter um no outro de algum modo”. Há matéria comum desde que haja essa conjunção. E somente então que se alcança a máquina abstrata, ou o diagrama do agenciamento. O sintetizador assumiu o lugar do juízo, como a matéria assumiu o da figura ou da substância formada. Nem mesmo convém mais agrupar de um lado intensidades energéticas,

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físico-químicas, biológicas, e de outro lado intensidades semióticas, informativas, linguísticas, estéticas, matemáticas... etc. A multiplicidade dos sistemas de intensidades se conjuga, se rizomatiza, em todo o agenciamento, desde o momento em que este é conduzido por esses vetores ou tensões de fuga. Pois a questão não era: como escapar à palavra de ordem?, mas como escapar à sentença de morte que ela envolve, como desenvolver a potência de fuga, como impedir a fuga de se voltar para o imaginário, ou de cair em um buraco negro, como manter ou destacar a potencialidade revolucionária de uma palavra de ordem? Hoffmannsthal dirige a si mesmo a palavra de ordem “Alemanha, Alemanha!”, necessidade de reterritorializar, mesmo em um “espelho melancólico”. Mas, sob essa palavra de ordem, ouve uma outra: como se as velhas “figuras” alemãs fossem simples constantes que se apagassem agora para indicar uma relação com a natureza, com a vida, tanto mais profunda porque mais variável — em que caso essa relação com a vida deve ser um endurecimento, em que caso uma submissão, em que momento trata-se de se revoltar, em que momento se render, ou ficar impassível, e quando é necessário uma palavra seca, quando uma exuberância ou um divertimento-39? Quaisquer que sejam os cortes ou as rupturas, somente a variação contínua destacará essa linha virtual, esse continuam virtual da vida, “o elemento essencial ou o real por trás do cotidiano”. Há um enunciado esplêndido em um filme de Herzog. Colocando-se uma questão, o personagem do filme diz: quem dará uma resposta a essa resposta? De fato, não existe pergunta, respondemos sempre a respostas. A resposta já contida em uma pergunta (interrogatório, concurso, plebiscito etc), serão opostas perguntas que provêm de uma outra resposta. Será destacada uma palavra de ordem da palavra de ordem. Na palavra de ordem, a vida deve responder à resposta da morte, não fugindo, mas fazendo com que a fuga aja e crie. Existem senhas sob as palavras de ordem. Palavras que seriam como que passagens, componentes de passagem, enquanto as palavras de ordem marcam paradas, composições estratificadas, organizadas. A mesma coisa, a mesma palavra, tem sem dúvida essa dupla natureza: é preciso extrair uma da outra — transformar as composições de ordem em componentes de passagens. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão

39

Cf. o detalhe do texto de Hofmannsthal, Lettres du voyageur à son retour (carta de 9 de maio de 1901), Mercure de France.

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5 587 A.C. - 70 D.C. SOBRE ALGUNS REGIMES DE SIGNOS

Um novo regime Denominamos regime de signos qualquer formalização de expressão específica, pelo menos quando a expressão for linguística. Um regime de signos constitui uma semiótica. Mas parece difícil considerar as semióticas nelas mesmas: na verdade, há sempre uma forma de conteúdo, simultaneamente inseparável e independente da forma de expressão, e as duas formas remetem a agenciamentos que não são principalmente linguísticos. Entretanto, podemos considerar a formalização de expressão como autônoma e suficiente. Pois, mesmo nessas condições, há tanta diversidade nas formas de expressão, um caráter tão misto dessas formas, que não se pode atribuir qualquer privilégio especial à forma ou ao regime do “significante”. Se denominamos semiologia a semiótica significante, a primeira é tão somente um regime de signos dentre outros, e não o mais importante. Por isso a necessidade de voltar a uma pragmática, na qual a linguagem nunca possui universalidade em si mesma, nem formalização

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suficiente, nem semiologia ou metalinguagem gerais. É então, antes de tudo, o estudo do regime significante que dá testemunho da inadequação dos pressupostos linguísticos, em nome dos próprios regimes de signos. O regime significante do signo (o signo significante) possui uma fórmula geral simples: o signo remete ao signo, e remete tão somente ao signo, infinitamente. É por isso que é mesmo possível, no limite, abster-se da noção de signo, visto que não se conserva, principalmente, sua relação com um estado de coisas que ele designa nem com uma entidade que ele significa, mas somente a relação formal do signo com o signo enquanto definidor de uma cadeia dita significante. O ilimitado da significância substituiu o signo. Quando supomos que a denotação (aqui, o conjunto da designação e da significação) já faz parte da conotação, encontramo-nos plenamente nesse regime significante do signo. Não nos ocupamos especialmente dos índices, isto é, dos estados de coisas territoriais que constituem o designável. Não nos ocupamos especialmente dos ícones, isto é, das operações de reterritorialização que constituem, por sua vez, o significável. O signo já alcançou, então, um alto grau de desterritorialização relativa, no qual é considerado como símbolo em uma remissão constante do signo ao signo. O significante é o signo redundante com o signo. Os signos emitem signos uns para os outros. Não se trata ainda de saber o que tal signo significa, mas a que outros signos remete, que outros signos a ele se acrescentam, para formar uma rede sem começo nem fim que projeta sua sombra sobre um continuum amorfo atmosférico. É esse continuum amorfo que representa, por enquanto, o papel de “significado”, mas ele não para de deslizar sob o significante para o qual serve apenas de meio ou de muro: todos os conteúdos vêm dissolver nele suas formas próprias. Atmosferização ou mundanização dos conteúdos. Abstrai-se, então, o conteúdo. Estamos na situação descrita por Lévi-Strauss: o mundo começou por significar antes que se soubesse o que ele significava, o significado é dado sem ser por isso conhecido1. Sua mulher olhou para você com um ar estranho, e essa manhã o porteiro lhe entregou uma notificação de imposto cruzando os dedos, depois você pisou em um cocô de cachorro, viu na calçada dois pequenos pedaços de madeira dispostos como os ponteiros de um relógio, as pessoas sussurraram à sua passagem quando você entrou no escritório. Pouco importa o que isso queira dizer, é sempre o

Lévi-Strauss, “Introduction à l’oeuvre de Mareei Mauss”, Sociologie et anthropohgie, PUF, p. 4849 (Lévi-Strauss distinguira, na continuação do texto, um outro aspecto do significado). Quanto a esse primeiro valor de um continuum atmosférico, cf. as descrições psiquiátricas de Binswanger e de Arieti. 1

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significante. O signo que remete ao signo é atingido por uma estranha impotência, por uma incerteza, mas potente é o significante que constitui a cadeia. Eis porque o paranoico participa dessa impotência do signo desterritorializado que o assalta por todos os lados na atmosfera escorregadia, mas ele acede ainda mais ao sobrepoder do significante, no sentimento real da cólera, como senhor da rede que se propaga na atmosfera. Regime despótico paranoico: eles me atacam e me fazem sofrer, mas eu adivinho suas intenções, eu os antecipo, eu o sabia durante todo o tempo, tenho o poder até em minha impotência, “eu os vencerei”. Não terminamos nada em um tal regime. É feito para isso, é o regime trágico da dívida infinita, no qual se é ao mesmo tempo devedor e credor. Um signo remete a um outro signo para o qual ele passa, e que, de signo em signo, o reconduz para passar ainda para outros. “Podendo mesmo retornar circularmente...”. Os signos não constituem apenas uma rede infinita, a rede dos signos é infinitamente circular. O enunciado sobrevive a seu objeto: o nome, a seu dono. Seja passando para outros signos, seja posto em reserva por um certo tempo, o signo sobrevive a seu estado de coisas como a seu significado, salta como um animal ou como um morto para retomar seu lugar na cadeia e investir um novo estado, um novo significado do qual é extraído mais uma vez2. Impressão de eterno retorno. Há todo um regime de enunciados flutuantes, ambulantes, de nomes suspensos, de signos que espreitam, esperando para voltarem a ser levados adiante pela cadeia. O significante como redundância do signo desterritorializado consigo mesmo, mundo mortuário e de terror. Mas o que conta é menos essa circularidade dos signos do que a multiplicidade dos círculos ou das cadeias. O signo não remete apenas ao signo em um mesmo círculo, mas de um círculo a um outro ou de uma espiral a uma outra. Robert Lowie narra como os Crow e os Hopi reagem diferentemente quando enganados por suas mulheres (os Crow são caçadores nômades, ao passo que os Hopi são sedentários ligados a uma tradição imperial): “Um índio Crow, enganado pela mulher, retalha-lhe o rosto, ao passo que um Hopi, vítima do mesmo infortúnio, sem perder a calma, recolhe-se e ora, pedindo que a seca e a fome se abatam sobre a aldeia”. Vemos de que lado está a paranoia, o elemento despótico ou o regime significante, “a beatice” como diz ainda Lévi-Strauss: “É que na verdade, para um Hopi, tudo está ligado: uma desordem social, um incidente doméstico invocam o sistema do universo cujos

2

Cf. Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Plon p. 278 sq. (análise dos dois casos).

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níveis são unidos por múltiplas correspondências; uma reviravolta em um plano só é inteligível, e moralmente tolerável, como projeção de outras reviravoltas, afetando outros níveis3“. O Hopi salta de um círculo a outro, ou de um signo a outro em duas espirais. Saímos da aldeia ou da cidade, voltamos a ela. Ocorre que esses saltos são regulados não apenas por rituais pré-significantes, mas por toda uma burocracia imperial que decide sobre sua legitimidade. Não se salta de qualquer jeito, nem sem regras; e não apenas os saltos são regulados, como existem aí proibições: não ultrapassar o círculo mais exterior, não se aproximar do círculo mais central... A diferença dos círculos deve-se ao fato de que, embora todos os signos remetam uns aos outros apenas enquanto desterritorializados, voltados para um mesmo centro de significância, distribuídos em um continuum amorfo, não têm por isso menos velocidades de desterritorialização diferentes que deem testemunho de um lugar de origem (o templo, o palácio, a casa, a rua, a aldeia, a savana etc), relações diferenciais que mantêm a distinção dos círculos ou que constituem limiares na atmosfera do continuum (o privado e o público, o incidente familiar e a desordem social). Esses limiares e esses círculos têm, aliás, uma distribuição móvel de acordo com o caso. Há uma trapaça fundamental no sistema. Saltar de um círculo a outro, deslocar sempre a cena, representá-la em outra parte, é a operação histérica do trapaceiro como sujeito, que responde à operação paranoica do déspota instalado em seu centro de significância. Há ainda um outro aspecto: o regime significante não se encontra somente diante da tarefa de organizar em círculos os signos emitidos em todas as partes; deve assegurar incessantemente a expansão dos círculos ou da espiral, fornecer novamente ao centro o significante para vencer a entropia própria ao sistema, e para que novos círculos brotem ou para que os antigos sejam realimentados. É preciso, então, um mecanismo secundário a serviço da significância: é a interpretância ou a interpretação. Nesse caso, o significado assume uma nova figura: deixa de ser esse continuum amorfo, dado sem ser conhecido, sobre o qual a rede dos signos lançava sua malha. A um signo ou a um grupo de signos corresponderá uma parte de significado determinado como conforme, consequentemente conhecível. Ao eixo sintagmático do signo que remete ao signo se acrescenta um eixo paradigmático onde o signo assim formalizado talha para si um significado conforme (portanto, ainda aí, abstração do conteúdo, mas de uma nova maneira). O sacerdote interpretativo, o adivinho, é um dos burocratas do deus-déspota. Surge um

3

Lévi-Strauss, Prefácio a Soleil Hopi, Plon, p.VI.

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novo aspecto da trapaça, a trapaça do sacerdote: a interpretação estende-se ao infinito, e nada jamais encontra para interpretar que já não seja uma interpretação. Assim, o significado não para de fornecer novamente significante, de recarregá-lo ou de produzi-lo. A forma vem sempre do significante. O significado último é então o próprio significante em sua redundância ou seu “excedente”. É totalmente inútil pretender ultrapassar a interpretação, e mesmo a comunicação, pela produção de significante, já que é a comunicação da interpretação que serve sempre para reproduzir e para produzir significante. Não é certamente assim que se pode renovar a noção de produção. Essa foi a descoberta dos sacerdotes psicanalistas (mas que todos os outros sacerdotes e todos os outros adivinhos fizeram em sua época): que a interpretação deveria ser submetida à significância, a ponto de o significante não fornecer qualquer significado sem que este não restituísse, por sua vez, um significante. A rigor, com efeito, não há mesmo mais nada a interpretar, mas porque a melhor interpretação, a mais pesada, a mais radical, é o silêncio eminentemente significativo. Sabe-se que o psicanalista nem mesmo fala mais e que só interpreta, ou, melhor ainda, faz interpretar, para o sujeito que salta de um círculo do inferno a outro. Na verdade, significância e interpretose são as duas doenças da terra ou da pele, isto é, do homem, a neurose de base. Quanto ao centro de significância, quanto ao Significante em pessoa, há pouco a dizer, pois ele é tanto pura abstração quanto princípio puro, isto é, nada. Falta ou excesso, pouco importa. É a mesma coisa dizer que o signo remete ao signo infinitamente, ou que o conjunto infinito dos signos remete a um significante maior. Mas, justamente, essa pura redundância formal do significante não poderia nem mesmo ser pensada sem uma substância de expressão particular para a qual é necessário encontrar um nome: a rostidade. Não somente a linguagem é sempre acompanhada por traços de rostidade, como o rosto cristaliza o conjunto das redundâncias, emite e recebe, libera e recaptura os signos significantes. É, em si mesmo, todo um corpo: é como o corpo do centro de significância no qual se prendem todos os signos desterritorializados, e marca o limite de sua desterritorialização. É do rosto que a voz sai; é por isso mesmo, qualquer que seja a importância fundamental de uma máquina de escrita na burocracia imperial, que o escrito mantém um caráter oral, não livresco. O rosto é o ícone próprio ao regime significante, a reterritorialização interior ao sistema. O significante se reterritorializa no rosto. É o rosto que dá a substância do significante, é ele que faz interpretar, e que muda, que muda de traços,

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quando a interpretação fornece novamente significante à sua substância. Veja, ele mudou de rosto. O significante é sempre rostificado. A rostidade reina materialmente sobre todo esse conjunto de significâncias e de interpretações (os psicólogos escreveram bastante acerca das relações do bebê com o rosto da mãe; os sociólogos, acerca do papel do rosto nos mass-media ou na publicidade). O deus-déspota nunca escondeu seu rosto, ao contrário: criou para si um e mesmo vários. A máscara não esconde o rosto, ela o é. O sacerdote manipula o rosto de deus. Tudo é público no rosto do déspota, e tudo o que é público o é pelo rosto. A mentira, a trapaça pertencem fundamentalmente ao regime significante, mas não o segredo44. Inversamente, quando o rosto desaparece, quando os traços de rostidade somem, podemos ter certeza de que entramos em um outro regime, em outras zonas infinitamente mais mudas e imperceptíveis onde se operam os dcvires-animais, devires-moleculares subterrâneos, desterritorializações noturnas que transpõem os limites do sistema significante. O déspota ou o deus mostra ameaçadoramente seu rosto solar que é todo seu corpo, como corpo do significante. Ele me olhou com um ar esquisito, franziu a sobrancelha, o que eu fiz para que mudasse de rosto? Tenho sua foto diante de mim, parece que ela me olha... Vigilância do rosto, diria Strindberg, sobrecodificação do significante, irradiação em todos os sentidos, onipresença ilocalizada. Enfim o rosto, ou o corpo do déspota ou do deus, tem uma espécie de contra-corpo: o corpo do supliciado, ou, ainda melhor, do excluído. É certo que esses dois corpos se comunicam, já que ocorre que esse corpo do déspota esteja submetido a provas de humilhação e mesmo de martírio, ou de exílio e de exclusão. “No outro polo, poder-se-ia imaginar colocar o corpo do condenado, este tem também seu estatuto jurídico, suscita seu cerimonial (...). não para fundar o máximo de poder que se atribuía à pessoa do soberano, mas para codificar o mínimo de poder que marca aqueles que são submetidos a uma punição. Na região mais sombria do campo político, o condenado deixa entrever a figura simétrica e invertida do rei”5. O supliciado é, antes de tudo, aquele que perde seu rosto, e que entra em um devir-animal, em um devir-molecular cujas cinzas espalhamos ao

Por exemplo, no mito banto, o primeiro fundador de Estado mostra seu rosto, come e bebe em público, enquanto o caçador, depois o guerreiro, inventam a arte do secreto, se esquivam e comem atrás de uma tela: cf. Luc de Heusch, Le roi ivre ou 1’origine de 1’Etat, Gallimard, p.20-25. Heusch vê no segundo momento a prova de uma civilização mais “refinada”: parece-nos, antes, que se trata de uma outra semiótica, de guerra e não mais de trabalhos públicos. 4

5

Foucault, Surveiller et punir, p.33.

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vento. Mas diríamos que o supliciado não é absolutamente o termo último; é, ao contrário, o primeiro passo antes da exclusão. Édipo ao menos havia compreendido isso. Ele se suplicia, fura seus olhos, depois vai embora. O rito, o devir-animal do bode emissário mostra-o bem: um primeiro bode expiatório é sacrificado, mas um segundo bode é expulso, enviado para o deserto árido. No regime significante, o bode emissário representa uma nova forma de aumento da entropia para o sistema dos signos: está carregado de tudo o que é “ruim”, em um dado período, isto é, de tudo o que resistiu aos signos significantes, de tudo o que escapou às remissões de signo a signo através dos círculos diferentes; assume igualmente tudo aquilo que não soube recarregar o significante em seu centro, leva consigo ainda tudo o que transpõe o círculo mais exterior. Encarna, enfim, e sobretudo, a linha de fuga que o regime significante não pode suportar, isto é, uma desterritorialização absoluta que esse regime deve bloquear ou que só pode determinar de forma negativa, justamente porque excede o grau de desterritorialização, por mais forte que este já seja, do signo significante. A linha de fuga é como uma tangente aos círculos de significância e ao centro do significante. Ela será atingida por maldição. O ânus do bode se opõe ao rosto do déspota ou de deus. Matar-se-á e se fará fugir o que pode provocar a fuga do sistema. Tudo o que excede o excedente do significante, ou tudo o que se passa embaixo, será marcado com valor negativo. Vocês não terão escolha senão entre o eu do bode e o rosto de deus, os feiticeiros e os sacerdotes. O sistema completo compreende então: o rosto ou o corpo paranoico do deus-déspota no centro significante do templo; os sacerdotes interpretativos, que sempre recarregam, no templo, o significado de significante; a multidão histérica do lado de fora, em círculos compactos, e que salta de um círculo a outro; o bode emissário depressivo, sem rosto, emanando do centro, escolhido e tratado, ornamentado pelos sacerdotes, atravessando os círculos em sua fuga desesperada em direção ao deserto. Quadro por demais sumário que não é somente o do regime despótico imperial, mas que figura também em todos os grupos centrados, hierarquizados, arborescentes, assujeitados: partidos políticos, movimentos literários, associações psicanalíticas, famílias, conjugalidades... O retrato, a rostidade, a redundância, a significância e a interpretação intervêm por toda a parte. Mundo triste do significante, seu arcaísmo com função sempre atual, sua trapaça essencial que conota todos os seus aspectos, sua farsa profunda. O significante reina em todas as cenas domésticas, como em todos os aparelhos de Estado. O regime significante do signo é definido por oito aspectos ou princípios: 1) o signo remete ao signo, infinitamente (o ilimitado da significância, que desterritorializa o signo); 2) o signo é levado pelo

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signo, e não cessa de voltar (a circularidade do signo desterritorializado); 3) o signo salta de um círculo a outro, e não cessa de deslocar o centro ao mesmo tempo que de se relacionar com ele (a metáfora ou histeria dos signos); 4) a expansão dos círculos é sempre assegurada por interpretações que fornecem significado e fornecem novamente significante (a interpretose do sacerdote); 5) o conjunto infinito dos signos remete a um significante maior que se apresenta igualmente como falta e como excesso (o significante despótico, limite de desterritorialização do sistema); 6) a forma do significante tem uma substância, ou o significante tem um corpo que é Rosto (princípio dos traços de rostidade, que constitui uma reterritorialização); 7) a linha de fuga do sistema é afetada por um valor negativo, condenada como aquilo que excede à potência de desterritorialização do regime significante (princípio do bode emissário); 8) é um regime de trapaça universal, ao mesmo tempo nos saltos, nos círculos regrados, nos regulamentos das interpretações do adivinho, na publicidade do centro rostificado, no tratamento da linha de fuga. Não somente uma tal semiótica não é a primeira, como tampouco se vê qualquer razão para lhe atribuir um privilégio particular do ponto de vista de um evolucionismo abstrato. Gostaríamos de indicar muito rapidamente algumas características de duas outras semióticas. Primeiramente, a semiótica pré-significante considerada primitiva, muito mais próxima das codificações “naturais” que operam sem signos. Não encontraremos aí qualquer redução à rostidade como única substância de expressão: nenhuma eliminação das formas de conteúdo pela abstração de um significado. Mesmo quando abstraímos o conteúdo em uma perspectiva estritamente semiótica, é em benefício de um pluralismo ou de uma polivocidade das formas de expressão, que conjuram qualquer tomada de poder pelo significante, e que conservam formas expressivas próprias ao próprio conteúdo: assim, formas de corporeidade, de gestualidade, de ritmo, de dança, de rito, coexistem no heterogêneo com a forma vocal6. Várias formas e várias substâncias de expressão se entrecortam e se alternam. É uma semiótica segmentar, mas plurilinear, multidimensional, que combate antecipadamente qualquer circularidade significante. A segmentaridade é a lei das linhagens. De forma que o signo deve aqui seu grau de desterritorialização relativa não mais a uma remissão perpétua ao signo, mas ao confronto de territorialidades e de segmentos

Cf. Greimas, “Pratiques et langages gestuels”, Langages n.10, junho 1968; mas Greimas relaciona essa semiótica a categorias como “sujeito de enunciado”, “sujeito de enunciação”, que nos parecem pertencer a outros regimes de signos. 6

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comparados dos quais cada signo é extraído (o campo, a savana, a mudança de campo). Não apenas a polivocidade dos enunciados é preservada, como também somos capazes de eliminar um enunciado: um nome usado é abolido, o que é bastante diferente da operação de colocar em reserva ou da transformação significante. Quando é pré-significante, a antropofagia tem precisamente esse sentido: comer o nome é uma semiografia, que pertence plenamente a uma semiótica, apesar de sua relação com o conteúdo (mas relação expressiva7). Evitaremos pensar que é por ignorância, por recalque ou forclusão do significante que uma tal semiótica funciona. Ela é, ao contrário, animada pelo pesado pressentimento do que virá, não tem necessidade de compreender para combater, é inteiramente destinada, por sua própria segmentaridade e sua polivocidade, a impedir o que já ameaça: a abstração universalizante, a ereção do significante, a uniformização formal e substancial da enunciação, a circularidade dos enunciados, com seus correlatos, aparelho de Estado, instalação do déspota, casta de sacerdotes, bode expiatório..., etc. E cada vez que se come um morto, pode-se dizer: mais um que o Estado não terá. Em seguida, ainda uma outra semiótica, que chamaremos contra-significante (principalmente a dos terríveis nômades criadores e guerreiros, em contraste com os nômades caçadores que faziam parte da precedente). Dessa vez, essa semiótica procede menos por segmentaridade do que por aritmética e numeração. Certamente, o número já tinha uma grande importância na divisão ou na reunião das linhagens segmentárias; tinha também uma função decisiva na burocracia imperial significante. Mas era um número que representava ou significava, “provocado, produzido, causado por outra coisa diferente dele”. Ao contrário, um signo numérico que não é produzido por nada exterior à marcação que o institui, marcando uma repartição plural e móvel, estabelecendo ele mesmo funções e correlações, procedendo a arranjos mais do que a totais, a distribuições mais do que a coleções, operando por corte, transição, migração e acumulação mais do que por combinação de unidades, um tal tipo de signo parece pertencer à semiótica de uma máquina de guerra nômade, dirigida por sua vez contra o aparelho de Estado. Número abstrato 8. A organização numérica em 10, 50, 100, 1000... etc, e a organização

Sobre a antropofagia como maneira de conjurar a ação das almas ou de nomes mortos; e sobre sua função semiótica de “calendário”, cf. Pierre Clastres, Chronique des Indiens Guayaki, Plon, p.332-340. 7

As expressões precedentes concernentes ao número são tomadas de Julia Kristeva, ainda que ela as utilize para a análise de textos literários na hipótese do “significante”: Semeiotikè, Ed. du Seuil, p.294 sq. 317 8

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espacial que lhe é associada, serão evidentemente retomadas pelos exércitos do Estado, mas revelam, antes de tudo, um sistema militar próprio aos grandes nômades das estepes, dos hicsos aos mongóis, e se superpõem ao princípio das linhagens. O segredo, a espionagem são elementos importantes dessa semiótica dos Números na máquina de guerra. O papel dos Números na Bíblia não é independente dos nômades, já que Moisés recebe a ideia de números de seu sogro Jetro, o Quenita: faz deles um princípio de organização para a marcha e a migração, e o aplica, ele mesmo, ao domínio militar. Nessa semiótica contrassignificante, a linha de fuga despótica imperial é substituída por uma linha de abolição que se volta contra os grandes impérios, atravessa-os ou os destrói, a menos que os conquiste e que se integre a eles formando uma semiótica mista. Gostaríamos de falar ainda mais particularmente de um quarto regime de signos, regime pós-significante, que se opõe à significância com novos caracteres, e que se define por um procedimento original, de “subjetivação”. Existem, portanto, muitos regimes de signos. Nossa própria lista é arbitrariamente limitada. Não há qualquer razão para identificar um regime ou uma semiótica a um povo, nem a um momento da história. Em um mesmo momento ou em um mesmo povo, há tanta mistura de forma que podemos simplesmente dizer que um povo, uma língua ou um momento asseguram a dominância relativa de um regime. Talvez todas as semióticas sejam, elas mesmas, mistas, combinandose não apenas a formas de conteúdo diversas, mas também combinando regimes de signos diferentes. Elementos pré-significantes são sempre ativos, elementos contra-significantes estão sempre trabalhando e presentes, elementos pós-significantes já existem no regime significante. E isso já é marcar temporalidade em demasia. As semióticas e seu caráter misto podem aparecer em uma história onde os povos se confrontam e se misturam, mas também em linguagens onde várias funções concorrem, em um hospital psiquiátrico onde formas de delírios coexistem e mesmo se enxertam em um mesmo caso, em uma conversa comum onde as pessoas que falam a mesma língua não falam a mesma linguagem (subitamente surge um fragmento de uma semiótica inesperada). Não fazemos evolucionismo, nem mesmo história. As semióticas dependem de agenciamentos, que fazem com que determinado povo, determinado momento ou determinada língua, mas também determinado estilo, determinado modo, determinada patologia, determinado evento minúsculo em uma situação restrita possam assegurar a predominância de uma ou de outra. Tentamos construir mapas de regimes de signos: podemos mudá-los de posição, reter algumas de suas coordenadas, algumas de suas dimensões, e, dependendo do caso,

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teremos uma formação social, um delírio patológico, um acontecimento histórico... etc. Nós o veremos ainda em uma outra ocasião: ora lidamos com um sistema social datado, “amor cortês”, ora com um empreendimento privado, chamado “masoquismo”. Podemos também combinar esses mapas ou separá-los. Para distinguir dois tipos de semióticas — por exemplo, o regime pós-significante e o regime significante — devemos considerar simultaneamente domínios bastante diversos. No começo do século XX, a psiquiatria, no auge de sua agudeza clínica, encontrouse diante do problema dos delírios não-alucinatórios, com conservação de integridade mental, sem “diminuição intelectual”. Havia um primeiro grande grupo, o dos delírios paranoicos e de interpretação, que já englobava diferentes aspectos. Mas a questão se referia à independência eventual de um outro grupo, esboçado na Monomania de Esquirol, na Querelência de Kraepelin, mais tarde definido no delírio de Reivindicação de Serieux e de Capgras, e no delírio passional de Clérambault (“querelência ou reivindicação, ciúme, erotomania”). Segundo os belíssimos estudos de Serieux e Capgras, por um lado, e de Clérambault, por outro (é este que mais aprofunda a via da distinção), poderiam se opor um regime ideal de significância, paranoico-interpretativo, e um regime subjetivo, póssignificante, passional. O primeiro se define por um início insidioso, um centro oculto manifestando forças endógenas em torno de uma ideia; depois, por um desenvolvimento em rede em um continuum amorfo, uma atmosfera escorregadia onde o mínimo incidente pode ser capturado; uma organização radiante em círculos, uma extensão por irradiação circular em todos os sentidos, onde o indivíduo salta de um ponto a outro, de um círculo a outro, se aproxima do centro ou dele se afasta, faz prospectiva e retrospectiva; por uma transformação da atmosfera, seguindo traços variáveis ou centros secundários que se reagrupam em torno do núcleo principal. O segundo regime se define, ao contrário, por uma ocasião exterior decisiva, por uma relação com o fora que se exprime mais como emoção do que como ideia, e mais como esforço e ação do que como imaginação (“delírio de atos mais do que de ideias”); por uma constelação limitada, operando em um único setor; por um “postulado” ou uma “fórmula concisa” que é o ponto de partida de uma série linear, de um processo, até o esgotamento que marcará a partida de um novo processo; em suma, pela sucessão linear e temporal de processo finito, mais do que pela simultaneidade dos círculos em expansão ilimitada9.

Cf. Sérieux et Capgras, Les folies raisonnantes, Alcan 1909; Clérambault, Oeuvre psychiatrique, reed. PUF; mas Capgras acredita em uma semiótica essencialmente mista ou polimorfa, enquanto Clérambault destaca abstratamente duas semióticas puras, mesmo reconhecendo sua mistura de fato. Sobre as origens dessa distinção de dois grupos de delírios, cabe consultar principalmente Esquirol, Des maladies mentales, 1 838 (em que medida a “monomania” é separável da mania?); e Kraepelin, Lehrbucb der Psychiatrie (em que medida a “querelência” é separável da paranoia?). A questão do segundo grupo de delírios, ou delírios passionais, foi retomada e exposta historicamente por Lacan, De Ia psychose paranoiaque, Ed. du Seuil, e por Lagache, La jalousie amoureuse, PUF. 9

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Essa história de dois delírios sem diminuição intelectual é bastante importante, pois não vem perturbar uma psiquiatria preexistente, mas está, isto sim, no centro da constituição da psiquiatria no século XIX, e explica o fato de o psiquiatra ter nascido, desde seu começo, como nunca deixará de ser: nasce encurralado, preso a exigências humanitárias, policiais, jurídicas etc, acusado de não ser um verdadeiro médico, suspeito de considerar loucos aqueles que não o são e de não ver aqueles que o são, ele mesmo às voltas com dramas de consciência, a última bela alma hegeliana. Se consideramos, de fato, os dois tipos de delirantes intactos, podemos dizer que alguns parecem completamente loucos, mas que não o são: o presidente Schreber desenvolve em todos os sentidos sua paranoia irradiante e suas relações com Deus; ele não é louco dado que permanece capaz de gerir sabiamente sua fortuna, e de distinguir os círculos. No outro polo, existem aqueles que não parecem absolutamente loucos, mas que o são, como o demonstram suas ações súbitas, querelas, incêndios, assassinatos (por exemplo as quatro grandes monomanias de Esquirol: erótica, raciocinante, incendiaria, homicida). Em suma, a psiquiatria não se constituiu absolutamente em relação ao conceito de loucura, nem mesmo com um remanejamento desse conceito, mas, antes, com sua dissolução nessas duas direções opostas. E não é a dupla imagem de todos nós que a psiquiatria nos revela assim, ora a de parecer louco sem ser, ora a de sê-lo sem parecer? (Essa dupla constatação será ainda o ponto de partida da psicanálise, sua forma de se imbricar com a psiquiatria: parecemos loucos mas não somos, veja-se o sonho; somos loucos mas não parecemos, veja-se a vida cotidiana). Então o psiquiatra foi levado ora a implorar a indulgência e a compreensão, a sublinhar a inutilidade do internamento, a solicitar hospícios open-door; ora, ao contrário, a exigir uma vigilância intensificada, hospícios especiais de segurança, mais duros ainda para os loucos que não o pareciam10. Não é por acaso que a distinção dos

Cf. Sérieux e Capgras, p. 340 sq. e Clérambault, p.369 sq.: os delirantes passionais são incompreendidos, mesmo no hospício, porque são tranquilos e astutos, “afetados por um delírio deveras limitado para que saibam como nós os julgamos”; é ainda mais necessário mantê-los internados; “tais doentes não devem ser questionados, mas manobrados, e para manobrá-los, há apenas um meio: emocioná-los”. 10

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dois grandes delírios, de ideias e de ações, coincide, em vários pontos, com a distinção das classes (o paranoico que não tem tanta necessidade de ser internado é, antes de tudo, um burguês, ao passo que o monomaníaco, o reivindicador passional, é, o mais frequentemente, oriundo das classes rurais e proletárias, ou de casos marginais de assassinos políticos11). Uma classe de ideias radiantes, irradiantes (forçosamente) contra uma classe reduzida às ações locais, parciais, esporádicas, lineares... Nem todos os paranoicos são burgueses, nem todos os passionais ou monomaníacos são proletários. Mas, nas misturas de fato, Deus e seus psiquiatras são encarregados de reconhecer aqueles que conservam uma ordem social de classe, mesmo delirante, e aqueles que trazem a desordem, mesmo estritamente localizada, incêndio de moinho, assassinato de parente, amor ou agressividade deslocados. Procuramos então distinguir um regime de signos despótico, significante e paranoico, e um regime autoritário, pós-significante, subjetivo ou passional. Seguramente o autoritário não é a mesma coisa que o despótico, o passional não é a mesma coisa que o paranoico, o subjetivo a mesma coisa que o significante. O que ocorre no segundo regime, em oposição ao regime significante, anteriormente definido? Em primeiro lugar, um signo ou um grupo de signos se destaca da rede circular irradiante, começa a trabalhar por sua conta, a correr em linha reta, como se adentrasse em uma estreita via aberta. O sistema significante já traçava uma linha de fuga ou de desterritorialização que excedia o índice próprio de seus signos desterritorializados; mas a essa linha, justamente, ele atribuiu um valor negativo, fazendo nela fugir o emissário. Dir-se-ia, agora, que essa linha recebe um signo positivo, que está efetivamente ocupada e seguida por todo um povo que nela encontra sua razão de ser ou seu destino. E certamente, ainda aqui, não fazemos história: não dizemos que um povo inventa esse regime de signos, mas somente que efetua em um dado momento o agenciamento que assegura a dominância relativa desse regime em condições históricas (e esse regime, essa dominância, esse agenciamento podem ser assegurados em outras condições, por exemplo patológicas ou literárias, ou amorosas, ou completamente

Esquirol sugere que a monomania é uma “doença da civilização” e segue uma evolução social: começa sendo religiosa, mas tende cada vez mais a se tornar política, assediada pela polícia (Des maladies mentales, t.I, p.400). Cf. também as observações de Emmanuel Regis, Les régicides dans l’histoire et dans le présent, 1890. 11

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cotidianas etc). Não dizemos que um povo seja possuído por tal tipo de delírio, mas que o mapa de um delírio, considerando-se suas coordenadas, pode coincidir com o de um povo, considerando-se as dele. Como o faraó paranoico e o hebreu passional? Com o povo judeu, um grupo de signos se destaca da rede imperial egípcia da qual fazia parte, começa a seguir uma linha de fuga no deserto, opondo a subjetividade mais autoritária à significância despótica, o delírio mais passional e o menos interpretativo ao delírio paranoico interpretante, em suma opondo “o processo ou a reivindicação” lineares à rede circular irradiante. Sua reivindicação, seu processo — essa será a palavra de Moisés a seu povo, e os processos se sucedem em uma linha de Paixão12. Kafka extrairá daí sua própria concepção da querelência ou do processo, e a sucessão dos segmentos lineares: o processo-pai, o processo-hotel, o processo-barco, o processo-tribunal... Não podemos negligenciar aqui o acontecimento mais fundamental ou mais extensivo da história do povo judeu: a destruição do templo, que se faz em dois tempos (587 a.C. - 70 d.C). Toda a história do Templo, em primeiro lugar a mobilidade e a fragilidade do Arco, depois a construção de uma Casa por Salomão, sua reconstrução com Dario etc, só adquirem seu sentido em relação a processos renovados de destruição, que encontram seus dois grandes momentos com Nabucodonosor e com Tito. Templo móvel, frágil ou destruído: o arco não é mais do que um pequeno pacote de signos que alguns carregam consigo. O que se tornou impossível é uma linha de fuga somente negativa, ocupada pelo animal ou pelo bode, enquanto carregado com todos os perigos que ameaçavam o significante. Que o mal recaia sobre nós é a fórmula que escande a história judaica: somos nós que devemos seguir a linha mais desterritorializada, a linha do bode, mudando-lhe o signo, tornando-a a linha positiva de nossa subjetividade, de nossa Paixão, de nosso processo ou reivindicação. Nós seremos nosso próprio bode. Nós seremos o cordeiro: “o Deus que, como um leão, era honrado com sangue dos sacrifícios, deve agora ser colocado em segundo plano, para que o Deus sacrificado ocupe a cena. (...). Deus se tornou o animal imolado ao invés de ser o animal que imola”13. Seguiremos, esposaremos a tangente que separa a terra e as águas, separaremos a rede circular e o continuum escorregadio, faremos nossa a linha de separação para traçar nela nosso caminho e dissociar os elementos do significante

12

Deutéronome, I, 12, Dhorme, em La Pléiade, precisa: “Vossa reivindicação, literalmente vosso processo”.

13

D.H. Lawrence, L’Apocalypse, Balland, capítulo X

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(a pomba do Arco). Um estreito desfiladeiro, um entre-dois que não é uma média, mas uma linha afilada. Existe toda uma especificidade judaica, que se afirma já em uma semiótica. Essa semiótica, entretanto, não é menos mista do que uma outra. Por um lado, está em relação íntima com a semiótica contra-significante dos nômades (os hebreus têm todo um passado nômade, toda uma relação real com a organização numérica nômade na qual se inspiram, todo um devir-nômade específico; e sua linha de desterritorialização retoma muito da linha militar de destruição nomádica14). Por outro lado, está em relação essencial com a própria semiótica significante, cuja nostalgia não cessa de atravessá-las, elas mesmas e seu Deus: restabelecer uma sociedade imperial ou a ela se integrar, darse um rei como todo mundo (Samuel), reconstruir um templo enfim sólido (David e Salomão, Zacarias), fazer a espiral da torre de Babel e reencontrar o rosto de Deus, não somente parar a errância, mas transpor a diáspora que só existe, ela mesma, em função de um ideal de grande agrupamento. Pode-se somente assinalar aquilo que, nessa semiótica mista, dá testemunho do novo regime passional ou subjetivo, pós-significante. A rostidade sofre uma profunda transformação. O deus desvia seu rosto, que ninguém deve ver; porém, inversamente, o sujeito desvia o seu, transido de um verdadeiro medo de deus. Os rostos que se desviam, e se colocam de perfil, substituem o rosto irradiante visto de frente. É nesse duplo desvio que se traça a linha de fuga positiva. O profeta é o personagem desse agenciamento; ele tem necessidade de um signo que lhe garanta a fala divina, sendo ele mesmo marcado por um signo que designa o regime especial ao qual ele pertence. Foi Spinoza quem elaborou a mais profunda teoria do profetismo, abrangendo essa semiótica própria. Caim, desviado de Deus que desviava dele, já segue a linha de desterritorialização, protegido pelo signo que o faz escapar à morte. Signo de Caim. Castigo pior do que a morte imperial? O Deus judaico inventa o sursis, a existência em sursis, o adiamento ilimitado15. Mas, igualmente, positividade da

Cf. Dhorme, La religion des Hébreux nômades, Bruxelas. E Mayani, Les Hyksos et le monde de Ia Bible, Payot. O autor insiste nas relações dos hebreus com os habiru, nômades guerreiros, e com os quenianos, ferreiros nômades; o que é próprio a Moisés não é o princípio de organização numérica, tomado dos nômades, mas a ideia de uma convenção-processo, de um contrato-processo sempre revogável. Essa ideia, precisa Mayani, não vem nem de agricultores enraizados, nem de nômades guerreiros, nem mesmo de migrantes, mas de uma tribo em marcha que se pensa em termos de destino subjetivo. 14

Cf. Kafka, O processo. É o pintor Titorelli que elabora a teoria da moratória ilimitada. Deixando de lado a quitação definitiva, que não existe, Titorelli distingue a “quitação aparente” e a “moratória ilimitada” como dois regimes jurídicos: o primeiro é circular e remete a uma semiótica do significante, ao passo que o segundo é linear e segmentar, remetendo à semiótica passional. 15

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aliança como nova relação com o deus, visto que o sujeito permanece sempre vivo. Abel, cujo nome é vaidade, não é nada, mas Caim é o verdadeiro homem. Não é mais absolutamente o sistema do truque ou da trapaça, que animava o rosto do significante, a interpretação do adivinho e os deslocamentos do sujeito. É o regime da traição, da traição universal, onde o verdadeiro homem não cessa de trair a Deus tanto quanto Deus trai o homem, em uma cólera de Deus que define a nova positividade. Antes de sua morte, Moisés recebe as palavras do grande cântico da traição. Contrariamente ao sacerdoteadivinho, até mesmo o profeta é fundamentalmente traiçoeiro, e realiza assim a ordem de Deus melhor do que o faria um fiel. Deus encarrega Jonas de ir a Nínive para convidar os habitantes a se corrigir, eles que não cessaram de trair a Deus. Mas o primeiro gesto de Jonas é o de tomar a direção oposta: por sua vez, ele trai a Deus e foge “longe da face de Adonai”. Pega um barco em direção a Tarsis e dorme, como um justo. A tempestade suscitada por Deus faz com que seja lançado na água, engolido pelo grande peixe, cuspido para o limite da terra e das águas, o limite de separação ou a linha de fuga que já era a da pomba do Arco (Jonas é precisamente o nome da pomba). Mas, ao fugir do rosto de Deus, Jonas fez exatamente o que Deus queria, tomou para si o mal de Nínive, e fez melhor do que Deus teria desejado, antecipou a Deus. Foi por isso que dormiu como um justo. Deus o mantém vivo, provisoriamente protegido pela árvore de Caim, mas fazendo morrer por sua vez a árvore, visto que Jonas reconstituiu a aliança ocupando a linha de fuga16. É Jesus quem torna universal o sistema da traição: traindo o Deus dos judeus, traindo os judeus, traído por Deus (por que me abandonaste?), traído por Judas, o verdadeiro homem. Tomou o mal para si, mas os judeus que o matam tomam também o mal para eles mesmos. A Jesus pede-se o signo de sua filiação divina: ele invoca um signo de Jonas. Caim, Jonas e Jesus formam três grandes processos lineares nos quais os signos se imbricam e se alternam. Há muitos outros. Em toda parte, o duplo desvio na linha de fuga. Quando o profeta recusa a tarefa que Deus lhe confia (Moisés, Jeremias, Isaías, etc), não é porque essa tarefa seja por demais pesada para ele, à maneira de um oráculo ou de um adivinho

Jérôme Lindon foi o primeiro a analisar essa relação do profetismo judeu e da traição, no caso exemplar de Jonas, Jonas, Ed. de Minuit. 16

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de império que recusasse uma missão perigosa: é, antes, à maneira de Jonas, que antecipa a intenção de Deus, ocultando-se e fugindo, traindo, muito mais do que se tivesse obedecido. O profeta não para de ser forçado por Deus, literalmente violado por este, muito mais do que inspirado. O profeta não é um sacerdote. O profeta não sabe falar, Deus crava-lhe as palavras na boca, manducação da palavra, semiofagia de uma nova forma. Contrariamente ao adivinho, o profeta não interpreta nada: tem um delírio de ação mais do que de ideia ou de imaginação, uma relação com Deus passional e autoritária mais do que despótica e significante; ele antecipa e detecta as potências do devir mais do que aplica os poderes presentes e passados. Os traços de rostidade não têm mais como função a de impedir a formação de uma linha de fuga, ou a de formar um corpo de significância que a controla e que só lhe envia um bode sem rosto. E a rostidade, ao contrário, que organiza a linha de fuga, no face a face dos dois rostos que se recortam e se desviam, se colocam de perfil. A traição se tornou a ideia fixa, a obsessão maior, que substitui a trapaça do paranoico e do histérico. A relação “perseguidor/perseguido” não é de forma alguma pertinente: ela muda inteiramente de sentido segundo o regime paranoico despótico, e segundo o regime passional autoritário. Uma coisa nos preocupa mais uma vez: a história de Édipo. Pois Édipo no mundo grego é quase único. Toda a primeira parte é imperial, despótica, paranoica, interpretativa, divinatória. Mas toda a segunda parte é a errância de Édipo, sua linha de fuga no duplo desvio, de seu próprio rosto e do rosto de Deus. Ao invés dos limites bastante precisos que transpomos ordenadamente, ou, ao contrário, que não temos o direito de transpor (hybris), um ocultamento do limite no qual Édipo é tragado. Ao invés da irradiação significante interpretativa, um processo linear subjetivo que permitirá exatamente a Édipo guardar um segredo como resíduo capaz de reiniciar um novo processo linear. Édipo, denominado atheos: ele inventa algo pior do que a morte ou do que o exílio, segue a linha de separação ou de desterritorialização estranhamente positiva onde erra e sobrevive. Holderlin e Heidegger veem aí o nascimento do duplo desfio, a mudança de rosto, e o nascimento da tragédia moderna, dos quais eles afirmam terem os gregos se beneficiado estranhamente: o resultado não é mais o assassinato e a morte brusca, mas uma sobrevivência em sursis, um adiamento ilimitado17. Nietzsche sugeria

Holderlin, Remarques sur Oedipe, 10-18 (mas igualmente as restrições de Holderlin acerca do caráter grego de uma tal morte “lenta e difícil”; e o belo comentário de Jean Beaufret acerca da natureza dessa morte e suas relações com a traição: “Ao desvio categórico do deus que não é mais do que o Tempo, o homem deve corresponder desviando-se ele mesmo como um traidor.”). 17

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que Édipo, em oposição a Prometeu, era o mito semita dos gregos, a glorificação da Paixão ou da passividade18. Édipo, o Caim grego. Voltemos mais uma vez à psicanálise. Não foi por acaso que Freud escolheu Édipo. Trata-se verdadeiramente de uma semiótica mista: regime despótico da significância e da interpretação, com irradiação do rosto; mas também regime autoritário da subjetivação e do profetismo, com desvio do rosto (nesse momento, o psicanalista situado atrás do paciente adquire todo seu sentido). Os recentes esforços para explicar que um “significante representa o sujeito para um outro significante” são tipicamente sincretismo: processo linear da subjetividade ao mesmo tempo que desenvolvimento circular do significante e da interpretação. Dois regimes de signos absolutamente diferentes para um misto. Mas é aí que os piores poderes, os mais dissimulados, são fundados. Ainda uma palavra acerca da história da traição passional autoritária, em oposição à trapaça paranoica despótica. Tudo é infâmia, mas Borges falhou em sua história da infâmia universal. Teria sido necessário distinguir o grande domínio das trapaças e o grande domínio das traições. E, em seguida, as diversas figuras de traição. Há, de fato, uma segunda figura da traição, surgindo em determinados momentos, em determinados lugares, mas sempre em virtude de um agenciamento que varia segundo novos componentes. O cristianismo é um caso particular importante de semiótica mista, com sua combinação imperial significante, mas também sua subjetividade judaica pós-significante. Transforma o sistema ideal significante, porém não menos o sistema passional pós-significante. Inventa um novo agenciamento. As heresias ainda fazem parte da trapaça, como a ortodoxia faz parte da significância. Mas existem heresias que são mais do que heresias, e que invocam a traição pura: os bugres, não é por acaso que os búlgaros têm um lugar especial. Desconfiem dos búlgaros, dizia Monsieur Plume. Problema das territorialidades em relação aos profundos movimentos de desterritorialização. E em seguida uma outra territorialidade ou uma outra desterritorialização, a Inglaterra: Cromwell, traidor em todos os lugares, linha reta de subjetivação passional que se opõe ao centro real de significância e aos círculos intermediários: o ditador contra o déspota. Ricardo III, o facínora, o tortuoso, que tem como ideal a tudo trair: ele enfrenta Lady Anne em um face a face no qual os

18

Nietzsche, La naissance de la tragédie, §9

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dois rostos se desviam, mas no qual cada um sabe que é feito para o outro, destinado ao outro. Diferença em relação a outros dramas históricos de Shakespeare: os reis que trapaceam para tomar o poder, assassinos, mas que se tornam bons reis. São homens de Estado. Ricardo III vem de outro lugar: o seu negócio, inclusive em relação às mulheres, provém de uma máquina de guerra mais do que de um aparelho de Estado. E o traidor, oriundo dos grandes nômades e de seu segredo. Ele diz isso desde o início, falando de um projeto secreto, que ultrapassa infinitamente a conquista do poder. Quer restaurar a máquina de guerra, tanto no Estado frágil quanto nos casais pacificados. Somente lady Anne o adivinha, fascinada, aterrorizada, consenciente. Todo o teatro elizabetano é perpassado por esses personagens de traidores que se querem absolutos, que se opõem às trapaças do homem da corte ou mesmo de Estado. Quantas traições acompanham as grandes descobertas na cristandade, a descoberta das terras e dos continentes novos: linhas de desterritorializações, onde pequenos grupos a tudo traem: seus companheiros, o rei, os indígenas, o explorador vizinho, na louca esperança de fundar, com uma mulher de sua família, uma raça enfim pura que fará tudo recomeçar. O filme de Herzog, Aguirre, bastante shakespeariano. Aguirre levanta a questão: como ser traidor em toda a parte, em tudo? Sou eu o único traidor, aqui. Finda a trapaça, chega o momento de trair. Que grande sonho! Eu serei o último traidor, o traidor total, logo o último homem. E em seguida a Reforma: a prodigiosa figura de Lutero como traidor de todas as coisas e de todas as pessoas, sua relação pessoal com o diabo de onde deriva a traição universal tanto nas boas obras quanto nas más. Há sempre um retorno ao Antigo Testamento nessas novas figuras da traição: eu sou a cólera de Deus. Mas a traição se tornou humanista, ela não ocorre mais entre Deus e seus próprios homens, se apoia em Deus para ocorrer entre seus homens e os outros, denunciados como trapaceiros. A rigor, há apenas um homem de Deus ou da cólera de Deus, um único traidor contra todos os trapaceiros. Mas, sempre misto, qual trapaceiro não se toma por tal homem e qual traidor não diz a si mesmo, um dia, que não era, afinal, senão um trapaceiro (Cf. o estranho caso de Maurice Sachs). É evidente que o livro, ou o que serve como livro, muda de sentido entre o regime paranoico significante e o regime passional pós-significante. No primeiro caso, há, antes de tudo, a emissão do significante despótico, e sua interpretação pelos escribas ou pelos sacerdotes, que fixa o significado e fornece novamente o significante; mas existe também, de signo em signo, um movimento que vai de um território a um outro e que, circulante, assegura uma certa velocidade de desterritorialização (por exemplo, a circulação de uma epopeia, a rivalidade

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de várias cidades pelo nascimento de um herói, e aí, novamente o papel dos sacerdotesescribas nas trocas de territorialidades e de genealogias19). Mas o que serve como livro tem sempre aqui um modelo exterior, um referente, rosto, família ou território que asseguram para o livro um caráter oral. Diríamos, ao contrário, que, no regime passional, o livro se interioriza, e interioriza tudo: torna-se Livro escrito sagrado. É ele que funciona como rosto, e Deus, que dissimula o seu, dá a Moisés as tábuas escritas. Deus se manifesta pelas trombetas e pela Voz; mas no som ouve-se o não-rosto, assim como no livro se veem as palavras. O livro se tornou o corpo da paixão, como o rosto era o corpo do significante. É agora o livro, o mais desterritorializado, que fixa os territórios e as genealogias. Estas são o que diz o livro, e aqueles o lugar onde o livro se diz. De forma que a interpretação muda completamente de função. Ou desaparece completamente, em benefício de uma pura recitação da letra que interdita a mínima mudança, o mínimo acréscimo, o mínimo comentário (o famoso “embrutecei-vos” cristão faz parte dessa linha passional, e o Corão é o que vai mais longe nessa direção). Ou a interpretação subsiste, mas se torna interior ao próprio livro, que perde sua função circulatória entre elementos de fora: por exemplo, é segundo esses eixos interiores aos livros que são fixados os diferentes tipos de interpretação codificados; é segundo as correspondências entre dois livros, assim como o Antigo e o Novo Testamento, que a interpretação se organiza, podendo induzir ainda a um terceiro livro que está imerso no mesmo elemento de interioridade20. Ou enfim a interpretação recusa qualquer intermediário bem como qualquer especialista, torna-se imediata, porque o livro é, ao mesmo tempo, escrito nele mesmo e no coração, uma vez como ponto de subjetivação, uma vez no sujeito (concepção reformista do livro). Em todo caso, a paixão delirante do livro, como origem e finalidade do mundo, encontra aqui seu ponto de partida. O livro único, a obra total, todas as combinações possíveis no interior do livro, o livro-árvore, o livro-cosmos, todas essas reapropriações caras às vanguardas, que separam o livro de suas relações com o fora, são ainda piores do que o canto do significante. Não há dúvida de que elas participam

Sobre a natureza da “biblioteca” épica (o caráter imperial, o papel dos sacerdotes, a circulação entre santuários e cidades), cf. Charles Autran, Homére et les origines sacerdotales de 1’épopée greeque, Denoel. 19

Cf. as técnicas de interpretação do livro na Idade Média; e a tentativa extrema de Joachim de Flore, que induz, do interior, um terceiro estado ou processo de concordâncias entre os dois Testamentos (L’Evangile éternel, Rieder). 20

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estreitamente desse canto na semiótica mista. Mas, na verdade, têm uma origem particularmente devota. Wagner, Mallarmé e Joyce, Marx e Freud são ainda Bíblias. Se o delírio passional é profundamente monomaníaco, a monomania, por sua vez, encontrou um elemento fundamental de seu agenciamento no monoteísmo e no Livro. O mais estranho culto. Eis o que acontece no regime passional ou de subjetivação. Não há mais centro de significância em relação aos círculos ou a uma espiral em expansão, mas um ponto de subjetivação que dá a partida da linha. Não há mais relação significante-significado, mas um sujeito de enunciação, que deriva do ponto de subjetivação, e um sujeito de enunciado em uma relação determinável, por sua vez, com o primeiro sujeito. Não há mais circularidade de signo a signo, mas processo linear onde o signo se abisma através dos sujeitos. Consideremos três diferentes domínios: 1) Os judeus em oposição aos impérios: Deus afastando seu rosto, que se tornou ponto de subjetivação para o traçado de uma linha de fuga ou de desterritorialização; Moisés como sujeito de enunciação, que se constitui a partir das tábuas de Deus substituindo o rosto; o povo judeu, constituindo o sujeito de enunciado, para a traição, mas também para a nova terra, formando uma aliança ou um “processo” linear a ser sempre retomado, ao invés de uma expansão circular. 2) A dita filosofia moderna, ou cristã: Descartes em oposição à filosofia antiga: a ideia de infinito como primeira, ponto de subjetivação absolutamente necessário; o Cogito, a consciência, o “eu penso”, como sujeito de enunciação que reflete seu próprio uso, e que só se concebe segundo uma linha de desterritorialização representada pela dúvida metódica; o sujeito de enunciado, a união da alma e do corpo ou o sentimento, que serão garantidos de forma complexa pelo cogito, e que operam as reterritorializações necessárias. O cogito, a ser sempre recomeçado como um processo, com a possibilidade de traição que o assola, Deus enganador e Gênio maligno. E quando Descartes diz: posso inferir “penso, logo existo”, ao passo que não posso fazer o mesmo para “caminho, logo sou”, levanta a distinção dos dois sujeitos (o que os linguistas atuais, sempre cartesianos, denominam shifter [embreante], podendo encontrar no segundo sujeito o rastro do primeiro). 3) A psiquiatria do século XIX: a monomania separada da mania; o delírio subjetivo isolado dos delírios ideais; a “possessão”, substituindo a feitiçaria; um lento desprender dos delírios passionais, que se distinguem da paranoia... O esquema do delírio passional segundo Clérambault é: o Postulado como ponto de subjetivação (Ele me ama); o orgulho como tonalidade

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do sujeito de enunciação (perseguição delirante do ser amado); o Desprezo, o Rancor (como efeito da recaída no sujeito de enunciado). O delírio passional é um verdadeiro cogito. Nesse exemplo da erotomania, assim como para o ciúme ou a querelência, Clérambault insiste bastante sobre o fato de o signo dever ir até o fim de um segmento ou processo linear antes de recomeçar um outro processo, ao passo que os signos no delírio paranoico não deixam de formar uma rede que se desenvolve em todos os sentidos e se modifica. Também o cogito segue um processo temporal linear que deve ser recomeçado. A história dos judeus foi pontuada por catástrofes nas quais subsistia, a cada vez, o número suficiente de sobreviventes para recomeçar um novo processo. O conjunto de um processo é frequentemente marcado pelo seguinte: o plural é empregado sempre que haja movimento linear, mas surge um recolhimento no Singular desde que um repouso, uma parada determinem o fim de um movimento antes que um outro recomece21. Segmentaridade fundamental: é preciso que um processo esteja terminado (e seu término, marcado) antes que um outro comece, e para que o outro possa começar. A linha passional do regime pós-significante encontra sua origem no ponto de subjetivação. Este pode ser qualquer um. Basta que a partir desse ponto se possam encontrar os traços característicos da semiótica subjetiva: o duplo desvio, a traição, a existência em sursis. O alimento representa esse papel para o anoréxico (o anoréxico não enfrenta a morte, mas se salva traindo o alimento, e o alimento não é menos traidor, suspeito de conter larvas, vermes e micróbios). Um vestido, uma lingerie, um calçado são pontos de subjetivação para um fetichista. Um traço de rostidade para um apaixonado, mas o rosto mudou de sentido, deixando de ser o corpo de um significante para se tornar o ponto de partida de uma desterritorialização que põe em fuga todo o resto. Uma coisa, um animal podem bastar. Existe cogito em todas as coisas. “Dois olhos muito afastados, uma cabeça entalhada no quartzo, um quadril que parecia dotado de vida pessoal (...)., cada vez que a beleza se torna irresistível, ela pode se reduzir a uma qualidade única”: ponto de subjetivação na partida de uma linha passional22. E mais: vários pontos coexistem para um determinado indivíduo ou grupo, sempre engajados em vários processos lineares distintos, nem sempre compatíveis. As diversas formas de educação ou de “normalização”

Por exemplo, Deutéronome XIX, 1: “Eles partiram de Refichim e chegaram ao deserto do Sinai, eles acamparam no deserto e aí Israel acampou diante da montanha.” 21

22

Henry Miller, Sexus, Buchet-Chastel, p.334

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impostas a um indivíduo consistem em fazê-lo mudar de ponto de subjetivação, sempre mais alto, sempre mais nobre, sempre mais conforme a um suposto ideal. Depois, do ponto de subjetivação deriva o sujeito de enunciação, em função de uma realidade mental determinada por esse ponto. E do sujeito de enunciação deriva, por sua vez, um sujeito de enunciado, isto é, um sujeito preso nos enunciados conformes a uma realidade dominante (sendo a realidade mental de agora há pouco apenas uma parte desta realidade, mesmo quando parece a ela se opor). O que é importante, o que faz então da linha passional pós-significante uma linha de subjetivação ou de sujeição, é a constituição, a duplicação dos dois sujeitos, e o rebatimento de um sobre o outro, do sujeito de enunciação sobre o sujeito de enunciado (o que os linguistas reconhecem quando falam de uma “marca do processo de enunciação no enunciado”). A significância operava uma uniformização substancial da enunciação, mas agora a subjetividade opera, nesta, uma individuação, coletiva ou particular. Como se diz, a substância se tornou sujeito. O sujeito de enunciação é rebatido sobre o sujeito de enunciado, podendo este fornecer novamente, por sua vez, um sujeito de enunciação para um outro processo. O sujeito do enunciado se tornou o “respondente” do sujeito de enunciação, em um tipo de ecolalia redutora, em uma relação biunívoca. Essa relação, esse rebatimento, é igualmente o da realidade mental sobre a realidade dominante. Há sempre um apelo a uma realidade dominante que funciona de dentro (por exemplo no Antigo Testamento; ou na Reforma, com o comércio e o capitalismo). Nem mesmo há mais necessidade de um centro transcendente de poder, mas, antes, de um poder imanente que se confunde com o “real”, e que procede por normalização. Há aí uma estranha invenção: como se o sujeito duplicado fosse, em uma de suas formas, causa dos enunciados dos quais ele mesmo faz parte na sua outra forma. É o paradoxo do legislador-sujeito, que substitui o déspota significante: quanto mais você obedece aos enunciados da realidade dominante, mais comanda como sujeito de enunciação na realidade mental, pois finalmente você só obedece a você mesmo, é a você que você obedece! E é você quem comanda, enquanto ser racional... Inventou-se uma nova forma de escravidão, ser escravo de si mesmo, ou a pura “razão”, o Cogito. Existe algo mais passional do que a razão pura? Existe uma paixão mais fria e mais extrema, mais interessada do que o Cogito? Althusser destacou essa constituição dos indivíduos sociais em sujeitos: ele a nomeia interpelação (“ei, você aí!”), denomina Sujeito absoluto o ponto de subjetivação, analisa “a reduplicação especular” dos sujeitos, e conduz sua demonstração

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com o exemplo de Deus, de Moisés e do povo judeu23. Linguistas como Benveniste fazem uma curiosa personologia linguística, bem próxima do Cogito: o Tu, que pode, sem dúvida, designar a pessoa a quem nos dirigimos, porém mais ainda um ponto de subjetivação a partir do qual cada um se constitui como sujeito; o Eu como sujeito de enunciação, designando a pessoa que enuncia e reflete seu próprio uso no enunciado (“signo vazio não referencial”), tal como aparece em proposições do tipo “eu creio, eu suponho, eu penso...”; enfim o eu como sujeito de enunciado, que indica um estado que se poderia sempre substituir por um Ele (“sofro, ando, respiro, sinto...24). Não se trata, entretanto, de uma operação linguística, pois um sujeito nunca é condição de linguagem nem causa de enunciado: não existe sujeito, mas somente agenciamentos coletivos de enunciação, sendo a subjetivação apenas um dentre eles, e designando por isso uma formalização da expressão ou um regime de signos, não uma condição interior da linguagem. Tampouco se trata, como diz Althusser, de um movimento que caracterizaria a ideologia: a subjetivação como regime de signos ou forma de expressão remete a um agenciamento, isto é, a uma organização de poder que já funciona plenamente na economia, e que não vem se superpor a conteúdos ou a relações de conteúdos determinados como reais em última instância. O capital é um ponto de subjetivação por excelência. Cogito psicanalítico: o psicanalista se apresenta como ponto de subjetivação ideal, que fará com que o paciente abandone seus antigos pontos considerados neuróticos. O paciente será parcialmente sujeito de enunciação em tudo o que diz ao psicanalista, e nas condições mentais artificiais da sessão: assim ele será nomeado “psicanalisando”. Mas, em tudo o que diz ou faz em qualquer outro lugar, ele é sujeito de enunciado, eternamente psicanalisado, de processo linear em processo linear, mesmo mudando de psicanalista, cada vez mais submetido à normalização de uma realidade dominante. É nesse sentido que a psicanálise, em sua semiótica mista, participa plenamente de uma linha de subjetivação. O psicanalista nem mesmo tem mais necessidade de falar, o psicanalisando encarrega-se da interpretação; quanto ao psicanalisado, é um sujeito ainda melhor quando pensa em “sua” próxima sessão, ou na precedente, em segmentos.

23

Althusser, “Idéologie et appareils idéologiques d’Etat”, La Pensée, junho 1970, p.29-35.

24

Benveniste, Problèmes de linguistique génerale, Gallimard, p.252 sq. Benveniste fala de um “processo”.

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Assim como o regime paranoico possuía dois eixos — de um lado o signo remetendo ao signo (e com isso, significando), de outro o significante remetendo ao significado —, o regime passional, a linha de subjetivação, tem também seus dois eixos, sintagmático e paradigmático: o primeiro, acabamos de ver, é a consciência. A consciência como paixão é precisamente essa duplicação dos dois sujeitos, em sujeito de enunciação e sujeito de enunciado, e o rebatimento de um sobre o outro. Mas a segunda forma de subjetivação é o amor como paixão, o amor-paixão, um outro tipo de duplo, de duplicação e de rebatimento. Mais uma vez, um ponto de subjetivação variável irá servir para a distribuição de dois sujeitos que ocultarão seus rostos enquanto os inclinam um em direção ao outro, e esposarão uma linha de fuga, uma linha de desterritorialização que os aproxima e os separa para sempre. Mas tudo muda: há um lado celibatário da consciência que se duplica, há um par do amor passional que não tem mais necessidade de consciência nem de razão. E entretanto, é o mesmo regime, mesmo na traição, e mesmo se a traição é assegurada por um terceiro. Adão e Eva, a mulher de Caim (sobre quem a Bíblia deveria ter falado mais). Ricardo III, o traidor, termina na consciência que o sonho lhe traz, mas havia passado pelo estranho face a face com lady Anne, de dois rostos que se ocultam sabendo que estão prometidos um ao outro segundo a mesma linha que, entretanto, irá separá-los. O amor mais leal e o mais terno, ou o mais intenso, distribui um sujeito de enunciação e um sujeito de enunciado que não cessam de se alternar, na doçura de ser ele mesmo um enunciado nu na boca do outro, e na medida em que o outro seja uma enunciação nua em minha própria boca. Mas existe sempre um traidor em estado latente. Que amor não seria traído? Que cogito não possui seu gênio maligno, o traidor do qual não nos desembaraçamos? “Tristão... Isolda... Isolda... Tristão...”: o grito dos dois sujeitos percorre assim toda a escala das intensidades, até alcançar o auge de uma consciência sufocante, enquanto o navio segue a linha das águas, da morte e do inconsciente, da traição, a linha da melodia contínua. O amor passional é um cogito a dois, como o cogito é uma paixão apenas por si mesmo. Há um par potencial no cogito, como a duplicação de um sujeito virtual único no amor-paixão. Klossowski pôde extrair as mais estranhas figuras dessa complementaridade de um pensamento por demais intenso e de um par por demais ardente. A linha de subjetivação é então completamente ocupada pelo Duplo, mas ela tem duas figuras assim como existem dois tipos de duplos: a figura sintagmática da consciência ou o duplo consciencial que concerne à forma (Eu = Eu); a figura paradigmática do par ou o duplo passional que concerne à substância (Homem = Mulher,

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sendo o duplo imediatamente a diferença dos sexos). Podemos seguir o devir desses duplos nas semióticas mistas, que tanto formam misturas quanto degradações. Por um lado, o duplo amoroso passional, o par do amorpaixão cai em uma relação conjugai, ou mesmo em uma “cena doméstica”: quem é sujeito de enunciação? Quem é sujeito de enunciado? Luta de sexos: Você rouba meus pensamentos, a cena doméstica sempre foi um cogito a dois, um cogito de guerra, Strindberg levou ao extremo essa queda do amor-paixão na conjugalidade despótica e na cena paranoicohistérica (“ela” diz que encontrou por ela mesma; de fato, ela me deve tudo, eco, roubo de pensamentos, oh Strindberg!25). Por outro lado, o duplo consciência! do pensamento puro, o par do legislador-sujeito, cai em uma relação burocrática, e uma nova forma de perseguição, onde um se apossa do papel de sujeito de enunciação ao passo que o outro não é senão sujeito de enunciado: o cogito se torna ele mesmo “cena de escritório”, delírio amoroso burocrático, uma nova forma de burocracia substitui ou se conjuga à velha burocracia imperial, o burocrata diz Eu penso (é Kafka quem vai mais longe nesse sentido, como no exemplo do Castelo, Sortini e Sordini, ou as diversas subjetivações de Klamm26). A conjugalidade é o desenvolvimento do par, como a burocracia o do cogito: mas um está no outro, burocracia amorosa e par burocrático. Escreveu-se demais acerca do duplo, de todos os modos, metafisicamente, colocando-o em toda parte, em todos os espelhos, sem ver seu regime próprio tanto em uma semiótica mista onde ele introduz novos momentos, quanto na semiótica pura de subjetivação onde ele se inscreve na linha de fuga para nela impor figuras deveras particulares. Mais uma vez: as duas figuras do pensamento-consciência e do amor-paixão no regime pós-significante; os dois momentos da consciência burocrática e da relação conjugai na queda ou na combinação mistas. Mas, mesmo no misto, a linha original facilmente se destaca sob as condições de uma análise semiótica. Há uma redundância da consciência e do amor, que não é a mesma coisa que a redundância significante do outro regime.

Um aspecto da genialidade de Strindberg foi o de elevar o casal, e a cena doméstica, a um nível semiótico intenso, e de fazer dessa cena um fator de criação no regime dos signos. Esse não foi o caso de Jouhandeau. Em contrapartida, Klossowski soube inventar novas fontes e conflitos de um cogito passional a dois, do ponto de vista de uma teoria geral dos signos (Les lois de l’hospitalité, Gallimard). 25

26

Cf. também O Duplo, de Dostoievski.

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No regime significante, a redundância é um fenômeno de frequência objetiva, afetando os signos ou elementos de signos (fonemas, letras, grupos de letras em uma língua); há ao mesmo tempo uma frequência máxima do significante em relação a cada signo e uma frequência comparativa de um signo em relação a um outro. Dir-se-ia, em todo caso, que esse regime desenvolve um tipo de “muro” onde os signos se inscrevem, em suas relações uns com os outros bem como em sua relação com o significante. No regime pós-significante, ao contrário, a redundância é de ressonância subjetiva, e afeta antes de tudo os aparelhos de embreantes, pronomes pessoais e nomes próprios. Também aí, distinguirse-á uma ressonância máxima da consciência de si (Eu = Eu) e uma ressonância comparada de nomes (Tristão... Isolda...). Mas dessa vez não existe mais um muro onde a frequência se contabiliza, é antes um buraco negro que atrai a consciência e a paixão, no qual elas ressoam. Tristão chama Isolda, Isolda chama Tristão, os dois avançam em direção ao buraco negro de uma consciência de si onde a torrente os arrasta, a morte. Quando os linguistas distinguem as duas formas de redundância — frequência e ressonância —, atribuem frequentemente à segunda um estatuto unicamente derivado 27 . Trata-se, na verdade, de duas semióticas, que se misturam, mas que nem por isso deixam de ter seus princípios distintos (poder-se-iam igualmente definir ainda outras formas de redundância, rítmicas ou gestuais, numéricas, remetendo aos outros regimes de signos). O que distingue mais essencialmente o regime significante e o regime subjetivo, tanto quanto suas respectivas redundâncias, é o movimento de desterritorialização que efetuam. Visto que o signo significante não remete mais senão ao signo, e o conjunto dos signos ao próprio significante, a-semiótica correspondente desfruta de um alto nível de desterritorialização, mas ainda relativo, expresso como frequência. Nesse sistema, a linha de fuga permanece negativa, afetada por um signo negativo. Vimos que o regime subjetivo funcionava de forma completamente diferente: justamente porque o signo rompe sua relação de significância com o signo, e começa a correr em uma linha de fuga positiva, atinge uma desterritorialização absoluta, que se expressa no buraco negro da consciência e da paixão. Desterritorialização absoluta do cogito. É por isso que a redundância subjetiva parece se enxertar na significância, e dela derivar, como uma redundância em segundo grau. E é ainda mais complicado do que dizemos. A subjetivação confere à linha de fuga um signo positivo, leva a desterritorialização ao absoluto, a intensidade ao mais alto grau,

Sobre essas duas formas de redundância, cf. o artigo “Redondance”, em Martinet, La linguistique, guide alphabétique, Denoel, p. 331-333. 27

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a redundância a uma forma refletida etc. Mas, sem recair no regime precedente, ela tem sua maneira própria de renegar a positividade que libera, ou de relativizar o absoluto que atinge. O absoluto da consciência é o absoluto da impotência, e a intensidade da paixão, o calor do vazio, nessa redundância de ressonância. Pois a subjetivação constitui essencialmente processos lineares finitos, de forma que um termina antes que o outro comece: assim como acontece com um cogito sempre recomeçado, com uma paixão ou uma reivindicação sempre retomadas. Cada consciência persegue sua própria morte, cada amorpaixão persegue seu próprio fim, atraídos por um buraco negro, e todos os buracos negros ressoando em conjunto. Com isso a subjetivação impõe à linha de fuga uma segmentaridade que não cessa de renegá-la, e impõe à desterritorialização absoluta um ponto de abolição que não cessa de barrá-la, de desviá-la. A razão disso é simples: as formas de expressão ou os regimes de signos são ainda estratos (mesmo quando considerados por eles mesmos, abstraindo as formas de conteúdo); a subjetivação não deixa de ser um estrato assim como a significância. Os principais estratos que aprisionam o homem são o organismo, mas também a significância e a interpretação, a subjetivação e a sujeição. São todos esses estratos em conjunto que nos separam do plano de consistência e da máquina abstrata, aí onde não existe mais regime de signos, mas onde a linha de fuga efetua sua própria positividade potencial, e a desterritorialização, sua potência absoluta. Ora, a esse respeito, o problema é o de fazer bascular o agenciamento mais favorável: fazê-lo passar, de sua face voltada para os estratos, à outra face voltada para o plano de consistência ou para o corpo sem órgãos. A subjetivação leva o desejo a um tal ponto de excesso e de escoamento que ele deve ou se abolir em um buraco negro ou mudar de plano. Desestratificar, se abrir para uma nova função, diagramática. Que a consciência deixe de ser seu próprio duplo e a paixão, o duplo de um para o outro. Fazer da consciência uma experimentação de vida, e da paixão um campo de intensidades contínuas, uma emissão de signos-partículas. Fazer o corpo sem órgãos da consciência e do amor. Servir-se do amor e da consciência para abolir a subjetivação: “para se tornar o grande amante, o magnetizador e o catalisador, é preciso antes de tudo viver a sabedoria de não ser senão o último dos idiotas”28. Servirse do Eu penso para

Henry Miller, Sexus, p.307. O tema do idiota é ele mesmo bastante variado. Percorre explicitamente o cogito, segundo Descartes, e o sentimento, segundo Rousseau. Mas a literatura russa o arrebata para outras vias, para além da consciência ou da paixão. 28

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um devir-animal e do amor, para um devir-mulher do homem. Dessubjetivar a consciência e a paixão. Não existiriam redundâncias diagramáticas que não se confundem com os significantes nem com os subjetivos? Redundâncias que não seriam mais nós de arborescência, mas sim retomadas e precipitações em um rizoma? Ser gago de linguagem, estrangeiro em sua própria língua, ne do ne domi ne passi ne dominez pas ne dominez paz vos passions passives ne (...). ne do dévorants ne do ne dominez pas vos rats vos rations vos rats rations ne ne...29

É como se fosse necessário distinguir três tipos de desterritorialização: umas relativas, próprias aos estratos, e que culminam com a significância; outras absolutas, mas ainda negativas e referentes aos estratos, que surgem na subjetivação (Ratio e Passio); enfim a eventualidade de uma desterritorialização positiva absoluta no plano de consistência ou corpo sem órgãos. Certamente não conseguimos eliminar as formas de conteúdo (por exemplo o papel do templo, ou a posição de uma Realidade dominante etc). Mas, em condições artificiais, isolamos um determinado número de semióticas que apresentam características bastante diversas. A semiótica présignificante, em que a “sobrecodificação” que marca o privilégio da linguagem é exercida de uma forma difusa: a enunciação é, aí, coletiva; os próprios enunciados são polívocos; as substâncias de expressão são múltiplas; a desterritorialização relativa é aí determinada pelo confronto de territorialidades e de linhagens segmentares que conjuram o aparelho de Estado. A semiótica significante: onde a sobrecodificação é plenamente efetuada pelo significante e pelo aparelho de Estado que a emite; há uniformização da enunciação, unificação da substância de expressão, controle dos enunciados em um regime de circularidade; a desterritorialização relativa é aí levada ao mais alto ponto, por uma remisão perpétua e redundante do signo ao signo. A semiótica contra-significante: a sobrecodificação é aí assegurada pelo Número como forma de expressão ou de enunciação, e pela Máquina de guerra da qual depende; a desterritorialização serve-se de uma linha de destruição ou de abolição ativa. A semiótica pós-significante, em que a sobrecodificação é assegurada pela redundância da consciência; produzse uma subjetivação da enunciação em uma linha passional que torna a organização de poder imanente, e eleva a desterritorialização

29

Gherasim Luca, Le chant de Ia carpe, p.87-94.

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ao absoluto, mesmo que de uma maneira ainda negativa. — Ora, devemos considerar dois aspectos: por um lado essas semióticas, mesmo abstraindo-se as formas de conteúdo, são concretas, mas somente à medida que são mistas, constituídas por combinações mistas. Qualquer semiótica é mista, e só funciona assim; cada uma captura obrigatoriamente fragmentos de uma ou de várias outras (mais-valias de código). Mesmo desse ponto de vista, a semiótica significante não tem qualquer privilégio do qual possa se utilizar para formar uma semiótica geral: especialmente o modo pelo qual ela se combina com a semiótica passional de subjetivação (“o significante para o sujeito”) nada implica de preferencial em relação a outras combinações, por exemplo entre a semiótica passional e a contrasignificante, ou entre a contra-significante e a própria significante (quando os nômades se fazem imperiais) etc. Não existe semiologia geral. Por exemplo, e sem privilégio de um regime em relação ao outro, podemos fazer esquemas concernentes à semiótica significante e à semiótica pós-significante, em que as possibilidades de composição mista concreta pareçam evidentes:

1. O Centro ou o Significante, rostidade de deus, do déspota; 2. O Templo ou o Palácio, com sacerdotes e burocratas; 3. A organização em círculos e o signo que remete ao signo, em um mesmo círculo ou de um círculo ao outro; 4. O desenvolvimento interpretativo do significante em significado, para restituir o significante; 5. O bode expiatório, barreira da linha de fuga; 6. O bode emissário, signo negativo da linha de fuga. Mas o outro aspecto, complementar e bastante diferente, consiste na possibilidade de transformar uma semiótica pura ou abstrata em uma outra, em virtude da traduzibilidade que deriva da sobrecodificação como caráter particular da linguagem. Dessa vez

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não se trata mais de semióticas mistas concretas, mas de transformações de uma semiótica abstrata em uma outra (mesmo se essa transformação não for abstrata por sua própria conta, isto é, efetivamente ocorra, sem ser operada por um “tradutor” como puro estudioso). Denominaríamos transformações analógicas todas aquelas que fariam com que uma semiótica qualquer passasse a um regime pré-significante; simbólicas, no regime significante; polêmicas ou estratégicas, no regime contra-significante; conscienciais ou miméticas, no regime pós-significante; diagramáticas, enfim, as que fariam eclodir as semióticas ou os regimes de signos no plano de consistência de uma desterritorialização positiva absoluta. Uma transformação não se confunde com um enunciado de uma semiótica pura; nem mesmo com um enunciado ambíguo, em que é necessária toda uma análise pragmática para saber a qual semiótica ele pertence; nem com um enunciado que pertence a uma semiótica mista (ainda que a transformação possa ter um tal efeito). Um enunciado transformacional marca, antes, a maneira pela qual uma semiótica traduz por sua conta enunciados vindos de outra parte, mas desviando-os, deixando aí resíduos intransformáveis, e resistindo ativamente à transformação inversa. E mais: as transformações não se limitam à lista precedente. É sempre por transformação que uma nova semiótica é capaz de se criar por conta própria. As traduções podem ser criativas. Formamos novos regimes de signos puros por transformação e tradução. Aí igualmente não se encontrará uma semiologia geral, mas sim uma trans-semiótica.

1. O ponto de subjetivação, substituindo o centro de significância; 2. Os dois rostos que se desviam; 3. O sujeito de enunciação, que deriva do ponto de subjetivação no desvio; 4. O sujeito de enunciado, sobre o qual se rebate o sujeito de enunciação; 5. A sucessão de processos lineares finitos, com uma nova forma de sacerdotes e uma nova burocracia; 6. Em que a linha de fuga, liberada mas ainda segmentarizada, permanece negativa e barrada.

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Nas transformações analógicas, vê-se frequentemente como o sono, a droga, a exaltação amorosa podem formar expressões que traduzem em pré-significante os regimes significantes ou subjetivos que queremos lhes impor, mas aos quais elas resistem impondo-lhes, por sua vez, uma segmentaridade e uma polivocidade imprevistas. O cristianismo sofreu estranhas traduções criativas ao passar pelos “bárbaros” ou mesmo pelos “selvagens”. A introdução dos signos monetários em certos circuitos comerciais africanos fez com que esses signos sofressem uma transformação análoga bastante difícil de manejar (a menos que, ao contrário, sejam esses circuitos os que sofram uma transformação destrutiva30). As canções dos negros americanos, inclusive e sobretudo as letras, teriam um valor ainda mais exemplar, porque se ouve nelas, antes de tudo, como os escravos “traduzem” o significante inglês, e fazem um uso pré-significante ou mesmo contra-significante da língua, misturando-a às suas próprias línguas africanas, assim como misturam a seus novos trabalhos forçados o canto de antigos trabalhos da África; em seguida se entende como, com a cristianização e com a abolição da escravatura, eles passam por um processo de “subjetivação” ou mesmo de “individuação”, que transforma sua música ao mesmo tempo em que ela transforma esse processo por analogia; como também se colocam problemas particulares de “rostidade”, quando os brancos de “face enegrecida” se assenhoram das palavras e das canções, mas os negros, por sua vez, enegrecem a fisionomia com uma camada suplementar, reconquistando suas danças e seus cantos, transformando ou traduzindo mesmo aqueles dos brancos31. Sem dúvida as transformações mais visíveis e grosseiras ocorrem no outro sentido: traduções simbólicas, quando o significante assume o poder. Os mesmos exemplos usados anteriormente, de signos monetários ou de regime rítmico, poderiam ainda nos servir invertendo-se seu sentido. A passagem de uma dança africana a uma dança branca revela frequentemente uma tradução conscienciosa ou mimética, com tomada de poder operada pela significância e pela subjetivação. (“Na África, a dança é impessoal, sagrada e obscena. Quando o falo é erigido e manipulado como uma banana, não se trata de entesar-se pessoalmente: assistimos a uma ereção tribal. (...). A dança ritual do sexo,

Por exemplo, quando os brancos introduzem o dinheiro entre os sianes da Nova Guiné, estes começam por traduzir as notas e as moedas em duas categorias de bens conversíveis. Cf. Maurice Godelier, “Economie politique et anthropologie économique”, L’Homme, setembro 1964, p.123. 30

31

Sobre essas traduções-transformações, cf. LeRoi Jones, Le peuple du blues, cap. IIIVI.

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no quadro da aldeia, é dançada em solo; e esse fato é, por si só, de uma significação assombrosa. A lei proíbe qualquer resposta, qualquer participação. Nada resta do rito primitivo, a não ser os movimentos sugestivos do corpo. E sua sugestão varia com a individualidade do observador32). Não são simples transformações linguísticas, lexicais ou mesmo sintáticas que determinam a importância de uma verdadeira tradução semiótica. Seria mesmo o contrário. Não basta um falar tresloucado. Somos forçados a avaliar, para cada caso, se nos encontramos diante da adaptação de uma velha semiótica ou diante de uma nova variedade de determinada semiótica mista, ou, antes, diante do processo de criação de um regime ainda desconhecido. Por exemplo, é relativamente fácil não dizer mais “eu”, mas sem, com isso, ultrapassar o regime de subjetivação; e inversamente, podemos continuar a dizer Eu, para agradar, e já estar em um outro regime onde os pronomes pessoais só funcionam como ficções. A significância e a interpretação têm a pele tão dura, formam com a subjetivação um misto tão aderente, que é fácil acreditar que se está fora delas enquanto ainda as secretamos. Ocorre que denunciamos a interpretação, mas apresentando-lhe um rosto de tal modo significante que a impomos ao mesmo tempo ao sujeito, que continua, para sobreviver, a se alimentar dela. Quem pode realmente acreditar que a psicanálise seja capaz de mudar uma semiótica na qual todas as trapaças se reúnem? Mudamos somente os papéis. Ao invés de um paciente que significava, e de um psicanalista intérprete, temos agora um psicanalista significante, e é o paciente que se encarrega de todas as interpretações. Na experiência antipsiquiátrica de Kingsley Hall, Mary Barnes, antiga enfermeira que se tornou “esquizofrênica”, abraça a nova semiótica da Viagem, mas para se apropriar de um verdadeiro poder na comunidade e reintroduzir o pior regime de interpretação psicanalítica como delírio coletivo (“ela interpretava tudo que se fazia para ela, ou para qualquer outro...”33). Dificilmente se acaba com uma semiótica fortemente estratificada. Mesmo uma semiótica pré-significante, ou contra-significante, mesmo um diagrama assignificante comporta nós de coincidência completamente prontos para constituir centros de significância e pontos de subjetivação virtuais. Certamente uma operação de tradução não é fácil, quando se trata de destruir uma

32

Henry Miller, Sexus, p.634.

Mary Barnes e Joseph Berke, Mary Barnes, un voyage à travers Ia folie, Ed. du Seuil, p.269. O fracasso da experiência antipsiquiátrica de Kingsley Hall parece se dever a esses fatores internos tanto quanto às circunstâncias exteriores. 33

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semiótica dominante atmosférica. Um dos interesses profundos dos livros de Castañeda, sob a influência da droga ou de outras coisas, e da mudança atmosférica, é precisamente o de mostrar como o índio chega a combater os mecanismos de interpretação para instaurar em seu discípulo uma semiótica pré-significante ou mesmo um diagrama assignificante: Chega! Você me cansa! Experimente ao invés de significar e de interpretar! Encontre você mesmo seus lugares, suas territorialidades, seu regime, sua linha de fuga! Semiotize você mesmo, ao invés de procurar em sua infância acabada e em sua semiologia de ocidental. “Don Juan afirmava que para ver era preciso necessariamente deter o mundo. Deter o mundo exprime perfeitamente determinados estados de consciência durante os quais a realidade da vida cotidiana é modificada, isso porque o fluxo das interpretações, normalmente contínuo, é interrompido por um conjunto de circunstâncias estranhas a esse fluxo”34. Em suma, uma verdadeira transformação semiótica recorre a todos os tipos de variáveis, não somente exteriores, mas implícitas na língua, interiores aos enunciados. Portanto, a pragmática já apresenta dois componentes. Podemos denominar o primeiro de gerativo, visto que mostra como os diversos regimes abstratos formam semióticas mistas concretas, com quais variantes, como se combinam e sob qual predominância. O segundo é o componente transformacional, que mostra como esses regimes de signos se traduzem uns nos outros, e sobretudo como criam novos regimes. A pragmática gerativa faz de algum modo decalques de semióticas mistas, ao passo que a pragmática transformacional faz mapas de transformação. Ainda que uma semiótica mista não implique necessariamente uma criatividade atual, mas possa se contentar com possibilidades de combinação sem uma verdadeira transformação, é o componente transformacional que dá conta da originalidade de um regime assim como da novidade dos mistos nos quais entra em determinado momento e em determinado domínio. Eis por que esse segundo componente é o mais profundo, e o único meio de medir os elementos do primeiro35. Por exemplo, perguntaremos quando é que enunciados de tipo bolchevista apareceram, e como o leninismo operou, quando da ruptura com os social-democratas, uma verdadeira transformação, criadora de uma semiótica original, mesmo se essa devesse necessariamente cair

34

Castaneda, Le voyage à Ixlan, Gallimard, p.12.

Gerativo” e “transformacional” são termos de Chomsky, para quem precisamente o transformacional é o melhor e o mais profundo meio de realizar o gerativo; mas nós empregamos esses termos em um outro sentido. 35

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na semiótica mista da organização stalinista. Em um estudo exemplar, Jean-Pierre Faye examinou detalhadamente as transformações que produziram o nazismo visto como sistema de enunciados novos em um campo social dado. Questões do tipo: não somente em que momento, mas em que domínio um regime de signos se instala? (Em todo um povo? Em uma parte desse povo? Em uma margem assinalável no interior de um hospital psiquiátrico?) Assim vimos que uma semiótica de subjetivação podia ser assinalada na história antiga dos judeus, mas também no diagnóstico psiquiátrico do século XIX — evidentemente, com profundas variações e mesmo verdadeiras transformações na semiótica correspondente — todas essas questões são da competência da pragmática. Certamente, hoje em dia, as transformações ou traduções criadoras mais profundas não passam pela Europa. A pragmática deve recusar a ideia de um invariante que poderia se abster das transformações, mesmo o invariante de uma “gramaticalidade” dominante, pois a linguagem é caso de política antes de ser caso de linguística; mesmo a apreciação dos graus de gramaticalidade é matéria política. O que é uma semiótica, isto é, um regime de signos ou uma formalização de expressão? São ao mesmo tempo mais e menos do que a linguagem. A linguagem se define por sua condição de “sobrelinearidade”; as línguas se definem por constantes, elementos e relações de ordem fonológica, sintática e semântica. E sem dúvida cada regime de signos efetua a condição da linguagem e se utiliza dos elementos da língua, mas nada além disso. Nenhum regime pode se identificar à própria condição, nem ter a propriedade das constantes. Como Foucault bem aponta, os regimes de signos são somente funções de existência da linguagem, que ora passam por línguas diversas, ora se distribuem em uma mesma língua, e que não se confundem nem com uma estrutura nem com unidades dessa ou daquela ordem, mas as cruza e as faz surgir no espaço e no tempo. É nesse sentido que os regimes de signos são agenciamentos de enunciação dos quais nenhuma categoria linguística consegue dar conta: o que faz de uma proposição ou mesmo de uma simples palavra um “enunciado” remete a pressupostos implícitos, não-explicitáveis, que mobilizam variáveis pragmáticas próprias à enunciação (transformações incorpóreas). Excluise, então, a ideia de o agenciamento poder ser explicado pelo significante, ou antes pelo sujeito, já que esses remetem, ao contrário, às variáveis de enunciação no agenciamento. É a significância ou a subjetivação que supõem um agenciamento, não o inverso. Os nomes que demos aos regimes de signos —

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“pré-significante, significante, contra-significante, pós-significante” — permaneceriam presos no evolucionismo, se não lhes correspondessem efetivamente funções heterogêneas ou variedades de agenciamento (a segmentarização, a significância e a interpretação, a numeração, a subjetivação). Os regimes de signos se definem, assim, por variáveis interiores à própria enunciação, mas que permanecem exteriores às constantes da língua e irredutíveis às categorias linguísticas. Mas, nesse ponto, tudo bascula, e as razões pelas quais um regime de signos é menos do que a linguagem se tornam razões pelas quais, igualmente, ele é mais do que a linguagem. O agenciamento só é enunciação, só formaliza a expressão, em uma de suas faces; em sua outra face inseparável, ele formaliza os conteúdos, é agenciamento maquínico ou de corpo. Ora, os conteúdos não são “significados” que dependeriam do significante de uma maneira ou de outra, nem “objetos” que estariam em uma relação de causalidade qualquer com um sujeito. Por possuírem sua formalização própria, eles não têm qualquer relação de correspondência simbólica ou de causalidade linear com a forma de expressão: as duas formas estão em pressuposição recíproca, e só se pode abstrair uma delas muito relativamente, já que essas são as duas faces do mesmo agenciamento. Eis por que é necessário chegar, no próprio agenciamento, a algo que é ainda mais profundo do que essas faces, e que dá conta ao mesmo tempo das duas formas em pressuposição: formas de expressão ou regimes de signos (sistemas semióticos), formas de conteúdo ou regimes de corpos (sistemas físicos). É o que denominamos máquina abstrata, sendo que esta constitui e conjuga todas os picos de desterritorialização do agenciamento36. E é acerca da

Michel Foucault desenvolveu uma teoria dos enunciados, segundo níveis sucessivos e que recortam o conjunto desses problemas. 1”) Em Arqueologia do Saber, Foucault distingue dois tipos de “multiplicidades”, de conteúdo e de expressão, que não se deixam reduzir a relações de correspondência ou de causalidade, mas estão em pressuposição recíproca; 2”) em Vigiar e Punir, ele busca uma instância capaz de dar conta das duas formas heterogêneas imbricadas uma na outra, e a encontra nos agenciamentos de poder ou micropoderes; 3o) mas igualmente a série desses agenciamentos coletivos (escola, exército, fábrica, asilo, prisão etc) consiste apenas em graus ou singularidades em um “diagrama” abstrato, que comporta unicamente por sua conta matéria e função (multiplicidade humana qualquer a ser controlada); 4°) a História da sexualidade vai ainda em uma outra direção, já que os agenciamentos não são aí mais relacionados e confrontados a um diagrama, mas a uma “biopolítica da população” como máquina abstrata. — Nossas únicas diferenças em relação a Foucault referir-se-iam aos seguintes pontos: Io) os agenciamentos não nos parecem, antes de tudo, de poder, mas de desejo, sendo o desejo sempre agenciado, e o poder, uma dimensão estratificada do agenciamento; 2”) o diagrama ou a máquina abstrata têm linhas de fuga que são primeiras, e que não são, em um agenciamento, fenômenos de resistência ou de réplica, mas picos de criação e de desterritorialização. 36

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máquina abstrata que se deve dizer: ela é necessariamente “muito mais” do que a linguagem. Quando os linguistas (na linha de Chomsky) chegam à ideia de uma máquina abstrata puramente de linguagem, a objeção que logo se faz é a de que essa máquina, longe de ser por demais abstrata, não o é ainda suficientemente, visto que permanece limitada à forma de expressão e a pretensos universais que a linguagem supõe. Consequentemente, fazer abstração do conteúdo é uma operação ainda mais relativa e insuficiente, do ponto de vista da própria abstração. Uma verdadeira máquina abstrata não possui qualquer meio de distinguir por si mesma um plano de expressão e um plano de conteúdo, porque traça um só e mesmo plano de consistência, que irá formalizar os conteúdos e as expressões segundo os estratos ou as reterritorializações. Mas, desestratificada, desterritorializada por si mesma, a máquina abstrata não tem forma em si mesma (muito menos substância) e não distingue em si conteúdo e expressão, ainda que presida fora de si a essa distinção, e a distribua nos estratos, nos domínios e territórios. Uma máquina abstrata em si não é mais física ou corpórea do que semiótica, ela é diagramática (ignora ainda mais a distinção do artificial e do natural). Opera por matéria, e não por substância; por função, e não por forma. As substâncias, as formas, são de expressão “ou” de conteúdo. Mas as funções não estão já formadas “semioticamente”, e as matérias não estão ainda “fisicamente” formadas. A máquina abstrata é a pura Função-Matéria — o diagrama, independentemente das formas e das substâncias, das expressões e dos conteúdos que irá repartir. Definimos a máquina abstrata pelo aspecto, o momento no qual não há senão funções e matérias. Um diagrama, com efeito, não tem nem substância nem forma, nem conteúdo nem expressão37. Enquanto a substância é uma matéria formada, a matéria é uma substância não-formada, física ou semioticamente. Enquanto a expressão e o conteúdo têm formas distintas e se distinguem realmente, a função tem apenas “traços”, de conteúdo e de expressão, cuja conexão ela assegura: não podemos mesmo mais dizer se é uma partícula ou se é um signo. Um conteúdo-matéria que apresenta tão somente graus de intensidade, de resistência, de condutibilidade, de aquecimento,

Hjelmslev propôs uma concepção bastante importante, da “matéria” ou “sentido” como não-formado, amorfo ou informe: Prolégomènes à une théorie du langage, #13; Essais linguistiques, Ed. de Minuit, p.58 sq. (e o prefácio de François Rastier, p.9). 37

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de alongamento, de velocidade ou de demora; uma expressão-função que apresenta tão somente “tensores”, como em uma escrita matemática, ou, antes, musical. Assim a escrita funciona diretamente colada no real, assim como o real escreve materialmente. E então o conteúdo mais desterritorializado e a expressão mais desterritorializada que o diagrama retém, para conjugá-los. E o máximo de desterritorialização vem ora de um traço de conteúdo, ora de um traço de expressão, que será denominado “desterritorializante” em relação ao outro, mas justamente porque ele o diagramatiza, arrastando-o consigo, elevando-o à sua própria potência. O mais desterritorializado faz com que o outro ultrapasse um limiar que possibilita uma conjunção de sua respectiva desterritorialização, uma precipitação comum. É a desterritorialização absoluta, positiva, da máquina abstrata. É nesse sentido que os diagramas devem ser distinguidos dos índices, que são signos territoriais, mas igualmente dos ícones, que são de reterritorialização, e dos símbolos, que são de desterritorialização relativa ou negativa38. Assim definida por seu diagramatismo, uma máquina abstrata não é uma infra-estrutura em última instância, tampouco é uma Ideia transcendente em suprema instância. Ela tem, antes, um papel piloto. Isso ocorre porque uma máquina abstrata ou diagramática não funciona para representar, mesmo algo de real, mas constrói um real por vir, um novo tipo de realidade. Ela não está, pois, fora da história, mas sempre “antes” da história, a cada momento em que constitui pontos de criação ou de potencialidade. Tudo foge, tudo cria, mas jamais sozinho; ao contrário, com uma máquina abstrata que opera os continuums de intensidade, as conjunções de desterritorialização, as extrações de expressão e de conteúdo. É um Abstrato-Real, que se opõe ainda mais à abstração fictícia de uma máquina de expressão supostamente pura. É um Absoluto, mas que não é nem indiferenciado nem transcendente.

A distinção dos índices, ícones e símbolos vem de Peirce, cf. Ecrits sur le ligne, Ed. du Seuil. Mas ele os distingue pelas relações entre significante e significado (contiguidade para o índice, similitude para o ícone, regra convencional para o símbolo); o que o leva a fazer do “diagrama” um caso especial de ícone (ícone de relação). Peirce é verdadeiramente o inventor da semiótica. É por isso que podemos retomar seus termos, mesmo mudando sua acepção. Por um lado, índices, ícones e símbolos nos parecem se distinguir pelas relações territorialidade-desterritorialização, e não pelas relações significante-significado. Por outro lado, o diagrama nos parece consequentemente ter um papel distinto, irredutível ao ícone e ao símbolo. Sobre as distinções fundamentais de Peirce e o estatuto complexo do diagrama, reportaremos à análise de Jakobson, “A la recherche de 1’essence du langage”, em Problèmes du langage, Gallimard, col. Diogène. 38

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Eis por que as máquinas abstratas possuem nomes próprios (e igualmente datas), que não designam mais certamente pessoas ou sujeitos, mas matérias e funções. O nome de um músico, de um cientista, é empregado como o nome de um pintor que designa uma cor, uma nuance, uma tonalidade, uma intensidade: trata-se sempre de uma conjunção de Matéria e de Função. A dupla desterritorialização da voz e do instrumento será marcada por uma máquina abstrata-Wagner, por uma máquina abstrata-Webern, etc. Falarse-á de uma máquina abstrata-Riemann em física e matemática, de uma máquina abstrata-Galois em álgebra (precisamente definida pela linha arbitrária denominada adjunção que se conjuga com um corpo de base) etc. Existe diagrama cada vez que uma máquina abstrata singular funciona diretamente em uma matéria. Eis então que, no nível diagramático ou no plano de consistência, não existem nem mesmo regimes de signos propriamente falando, já que não há mais forma de expressão que se distinguiria realmente de uma forma de conteúdo. O diagrama só conhece traços, pontas, que são ainda de conteúdo, dado que são materiais, ou de expressão, por serem funcionais, mas que arrastam uns aos outros, se alternam e se confundem em uma desterritorialização comum: signos-partículas, partignos. E isso não é surpreendente; pois a distinção real de uma forma de expressão e de uma forma de conteúdo se faz somente com os estratos, e diversamente para cada uma. É aí que surge uma dupla articulação que irá formalizar os traços de expressão por sua conta, e os traços de conteúdo por sua conta, e que irá fazer, com as matérias, substâncias formadas física ou semioticamente, com as funções das formas de expressão ou de conteúdo. A expressão constitui assim índices, ícones ou símbolos que entram em regimes ou semióticas. O conteúdo constitui assim corpos, coisas ou objetos, que entram em sistemas físicos, organismos e organizações. O movimento mais profundo que conjugava matéria e função — a desterritorialização absoluta, como idêntica à própria terra — só aparece então sob a forma de territorialidades respectivas, desterritorializações relativas ou negativas, e reterritorializações complementares. E, sem dúvida, tudo culmina com um estrato linguageiro, instalando uma máquina abstrata no nível da expressão, e que faz ainda mais abstração do conteúdo à medida que tende mesmo a destituí-lo de uma forma própria (imperialismo da linguagem, pretensão de uma semiologia geral). Em suma, os estratos substancializam as matérias diagramáticas, separam um plano formado de conteúdo e um plano formado de expressão. Tomam

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as expressões e os conteúdos, cada um por sua vez substancializado e formalizado, nas pinças de dupla articulação que asseguram sua independência ou sua distinção real, e fazem reinar um dualismo que não cessa de se reproduzir ou de se redividir. Interrompem os continuums de intensidade, introduzindo rupturas de um estrato a outro, e no interior de cada estrato. Impedem as conjunções de linha de fuga, esmagam os picos de desterritorialização, seja operando as reterritorializações que irão tornar esses movimentos completamente relativos, seja atribuindo a algumas dessas linhas um valor somente negativo, seja segmentarizando-a, barrando-a, obstruindo-a, precipitando-a em um tipo de buraco negro. Não confundiremos, especialmente, o diagramatismo com uma operação de tipo axiomático. Longe de traçar linhas de fuga criadoras e de conjugar traços de desterritorialização positiva, o axiomático barra todas as linhas, submete-as a um sistema pontual, e detém as escritas algébricas e geométricas que escapavam por todos os lados. E semelhante à questão do indeterminismo em física: um “recolocar em ordem” é feito para reconciliálo com o determinismo físico. Escritas matemáticas se fazem axiomatizar, isto é, re-estratificar, re-semiotizar; fluxos materiais se fazem re-fisicalizar. E um caso de política tanto quanto de ciência: a ciência não deve tornar-se louca... Hilbert e de Broglie foram homens políticos assim como cientistas: restauraram a ordem. Porém, uma axiomatização, uma semiotização, uma fisicalização não são um diagrama, mas sim o contrário. Programa de estrato contra diagrama do plano de consistência. O que não impede o diagrama de retomar seu caminho de fuga, e de espalhar novas máquinas abstratas singulares (é contra a axiomatização que se faz a criação matemática das funções improváveis, e contra a fisicalização que se faz a invenção material das partículas impossíveis de encontrar). Pois a ciência enquanto tal é como qualquer coisa, existe nela tanta loucura que lhe é própria assim como operações de colocar e recolocar em ordem, e o mesmo cientista pode participar dos dois aspectos, com sua própria loucura, sua própria polícia, suas significâncias, suas subjetivações, mas igualmente suas máquinas abstratas — enquanto cientista. “Política da ciência” designa essas correntes interiores à ciência, e não apenas as circunstâncias exteriores e fatores de Estado que agem sobre ela, e lhe fazem fazer, aqui, bombas atômicas, lá, programas trans-espaciais etc. Essas influências ou determinações políticas externas não seriam nada se a própria ciência não tivesse seus próprios polos, suas oscilações, seus estratos e suas desestratificações, suas linhas de fuga e suas recolocações em ordem: em suma, os

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acontecimentos no mínimo potenciais de sua própria política, toda sua “polêmica” própria, sua máquina de guerra interior (da qual fazem parte historicamente os cientistas contrariados, perseguidos ou impedidos). Não basta dizer que a axiomática não dá conta da invenção e da criação: há nela uma vontade deliberada de deter, de fixar, de se colocar no lugar do diagrama, instalando-se em um nível de abstração cristalizada, já grande demais para o concreto, pequena demais para o real. Veremos em que sentido esse é um nível “capitalista”. Não podemos, entretanto, nos contentar com um dualismo entre o plano de consistência, seus diagramas ou suas máquinas abstratas e, por outro lado, os estratos, seus programas e seus agenciamentos concretos. As máquinas abstratas não existem simplesmente no plano de consistência onde desenvolvem diagramas, elas já estão presentes, envolvidas ou “engastadas”, nos estratos em geral, ou mesmo estabelecidas nos estratos particulares onde organizam simultaneamente uma forma de expressão e uma forma de conteúdo. E o que é ilusório, nesse último caso, é a ideia de uma máquina abstrata exclusivamente linguageira ou expressiva, mas não a ideia de uma máquina abstrata interior ao estrato, e que deve dar conta da relatividade das duas formas distintas. Há, portanto, como que um duplo movimento: um, através do qual as máquinas abstratas trabalham os estratos, e não cessam de fazer aí fugir algo: o outro, através do qual elas são efetivamente estratificadas, capturadas pelos estratos. Por um lado, jamais os estratos se organizariam se não captassem matérias ou funções de diagrama, que eles formalizam do duplo ponto de vista da expressão e do conteúdo; de forma que cada regime de signos, mesmo a significância, mesmo a subjetivação, são ainda efeitos diagramáticos (mas relativizados ou negativizados). Por outro lado, jamais as máquinas abstratas estariam presentes, incluindo-se aí já nos estratos, se não tivessem o poder ou a potencialidade de extrair e de acelerar signos-partículas desestratificados (passagem ao absoluto). A consistência não é totalizante, nem estruturante, mas desterritorializante (um estrato biológico, por exemplo, não evolui por dados estatísticos, mas por picos de desterritorialização). A segurança, a tranquilidade, o equilíbrio homeostático dos estratos não são, portanto, jamais completamente garantidos: basta prolongar as linhas de fuga que trabalham os estratos, preencher os pontilhados, conjugar os processos de desterritorialização, para reencontrar um plano de consistência que se insere nos mais diferentes sistemas de estratificação, e que salta de um ao outro. Vimos, nesse sentido, como a significância e a interpretação, a consciência e a paixão poderiam se prolongar, mas ao mesmo tempo se abrir para uma experiência

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propriamente diagramática. E todos esses estados ou esses modos da máquina abstrata coexistem precisamente naquilo que denominamos agenciamento maquínico. O agenciamento, com efeito, tem como que dois polos ou vetores: um, voltado para os estratos onde ele distribui as territorialidades, as desterritorializações relativas e as reterritorializações; um outro vetor, voltado para o plano de consistência ou de desestratificação, em que ele conjuga os processos de desterritorialização e os leva ao absoluto da terra. É em seu vetor estrático que ele distingue uma forma de expressão na qual aparece como agenciamento coletivo de enunciação, e uma forma de conteúdo na qual aparece como agenciamento maquínico de corpo; e ele ajusta uma forma à outra, uma aparição à outra, em pressuposição recíproca. Mas, em seu vetor desestratificado, diagramático, não tem mais duas faces, só retém traços de conteúdo bem como de expressão, dos quais extrai graus de desterritorialização que se acrescentam uns aos outros, picos que se conjugam uns aos outros. Um regime de signos não tem apenas dois componentes. Há, de fato, quatro componentes, que constituem o objeto da Pragmática. O primeiro é o componente gerativo, que mostra como a forma de expressão, em um estrato de linguagem, recorre sempre a vários regimes combinados, quer dizer, como todo regime de signos ou toda semiótica é concretamente mista. No nível desse componente, podemos abstrair as formas de conteúdo, mas ainda melhor o faremos se acentuarmos as misturas de regimes na forma de expressão: daí não se concluirá então o predomínio de um regime que constituiria uma semiologia geral e unificaria a forma. O segundo componente, transformacional, mostra como um regime abstrato pode ser traduzido em um outro, se transformar em um outro e, sobretudo, ser criado a partir de outros. Esse segundo componente é evidentemente mais profundo, porque não existe qualquer regime misto que não suponha tais transformações de um regime a outro, sejam passadas, sejam atuais, sejam potenciais (em função de uma criação de novos regimes). Aí ainda, abstraímos ou podemos abstrair o conteúdo, já que nos detemos em metamorfoses interiores à forma de expressão, mesmo se esta não bastar para dar conta dele. Ora, o terceiro componente é diagramático: consiste em tomar os regimes de signos ou as formas de expressão para deles extrair signos-partículas que não são mais formalizados, mas constituem traços não-formados, combináveis uns com os outros. Eis aí o auge da abstração, mas igualmente o momento no qual a abstração se torna real; tudo ocorre aí, com efeito, por máquinas abstratas-reais (nomeadas e datadas). E se podemos fazer abstração das

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formas de conteúdo, é porque devemos ao mesmo tempo fazer abstração das formas de expressão, já que só retemos traços não-formados de umas e de outras. Daí o caráter absurdo de uma máquina abstrata puramente linguageira. Esse componente diagramático é evidentemente mais profundo, por sua vez, do que o componente transformacional: as transformações-criações de um regime de signos passam, com efeito, pela emergência de máquinas abstratas sempre novas. Enfim, um último componente propriamente maquínico deve mostrar como as máquinas abstratas se efetuam em agenciamentos concretos, que dão precisamente uma forma distinta aos traços de expressão, mas sem dar também uma forma distinta aos traços de conteúdo — estando as duas formas em pressuposição recíproca, ou tendo uma relação necessária não-formada, que impede uma vez mais que a forma de expressão seja tomada como suficiente (ainda que ela tenha sua independência ou sua distinção propriamente formal). A pragmática (ou esquizoanálise) pode, pois, ser representada pelos quatro componentes circulares, mas que brotam e fazem rizoma:

1. Componente gerativo: estudo das semióticas mistas concretas, de suas misturas e de suas variações; 2. Componente transformacional: estudo das semióticas puras, de suas traduções-transformações e da criação de novas semióticas; 3. Componente diagramático: estudo de máquinas abstratas, do ponto de vista das matérias semioticamente não-formadas em relação com matérias fisicamente não-formadas; 4. Componente maquínico: estudo dos agenciamentos que efetuam as máquinas abstratas, e que semiotizam as matérias de expressão, ao mesmo tempo que fisicalizam as matérias de conteúdo. O conjunto da pragmática consistiria em fazer o decalque das semióticas mistas no componente gerativo; fazer o mapa transformacional dos regimes, com suas possibilidades

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de tradução e de criação, de germinação nos decalques; fazer o diagrama das máquinas abstratas colocadas em jogo em cada caso, como potencialidades ou como surgimentos efetivos; fazer o programa dos agenciamentos que ventilam o conjunto e fazem circular o movimento, com suas alternativas, seus saltos e mutações. Consideraríamos, por exemplo, uma “proposição” qualquer, quer dizer, um conjunto verbal definido sintática, semântica e logicamente como expressão de um indivíduo ou de um grupo: “Eu te amo” ou, antes, “Eu sou ciumento”. Começaríamos por perguntar a qual “enunciado” essa proposição corresponde no grupo ou no indivíduo (pois uma mesma proposição pode remeter a enunciados completamente diferentes). Essa pergunta significa: em que regime de signos a proposição é tomada, regime sem o qual os elementos sintáticos, semânticos e lógicos permaneceriam como condições universais perfeitamente vazias? Qual é o elemento não-linguístico, a variável de enunciação que lhe dá uma consistência? Há um “eu te amo” présignificante, de tipo coletivo no qual, como dizia Miller, uma dança desposa todas as mulheres da tribo; um “eu te amo” contra-significante, de tipo distributivo e polêmico, tomado na guerra, na relação de forças, como o de Pentesiléia a Aquiles; um “eu te amo” que se dirige a um centro de significância, e faz toda uma série de significados corresponder, por interpretação, à cadeia significante; um “eu te amo” passional ou póssignificante, que forma um processo a partir de um ponto de subjetivação, depois um outro processo... etc. Da mesma forma, a proposição “eu sou ciumento” não é evidentemente o mesmo enunciado se for tomada no regime passional da subjetivação ou no regime paranoico da significância: dois delírios bastante distintos. Em segundo lugar, uma vez determinado o enunciado ao qual a proposição corresponde em tal grupo ou tal indivíduo em dado momento, procuraríamos as possibilidades não somente de composição mista, mas de tradução ou de transformação em um outro regime, nos enunciados pertencentes a outros regimes, o que funciona ou o que não funciona, o que permanece irredutível ou o que flui em uma tal transformação. Em terceiro lugar, poderíamos tentar criar novos enunciados ainda desconhecidos para essa proposição, mesmo se fossem patuá de volúpia, de físicas e de semióticas em pedaços, afectos assubjetivos, de signos sem significância, onde desabariam a sintaxe, a semântica e a lógica. Essa busca deveria ser concebida do pior ao melhor, visto que cobriria tanto regimes muito rebuscados, metafóricos e imbecilizantes, quanto gritos-sopros, improvisações ardentes, devires-animais, devires moleculares,

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transexualidades reais, continuums de intensidades, constituições de corpos sem órgãos... E esses dois polos, eles mesmos inseparáveis, em relações perpétuas de transformação, de conversão, de salto, de queda e de subida. Essa última busca colocaria em jogo as máquinas abstratas, os diagramas e funções diagramáticas, por um lado; por outro lado, ao mesmo tempo, os agenciamentos maquínicos, suas distinções formais de expressão e de conteúdo, seus investimentos de palavras e seus investimentos de órgãos em uma pressuposição recíproca. Por exemplo, o “eu te amo” do amor cortês: qual é seu diagrama, qual o surgimento de máquina abstrata e qual o novo agenciamento? Tanto na desestratificação quanto na organização dos estratos... Em suma, não existem proposições sintaticamente definíveis, ou semântica ou logicamente, que viessem transcender e sobrevoar os enunciados. Todo método de transcendentalização da linguagem, todo método para dotar a linguagem de universais, desde a lógica de Russel até a gramática de Chomsky, cai na pior das abstrações, no sentido em que sanciona um nível que já é, ao mesmo tempo, por demais abstrato mas não o é ainda suficientemente. Na verdade, não são os enunciados que remetem às proposições, mas o inverso. Não são os regimes de signos que remetem à linguagem, e tampouco a linguagem constitui por si mesma uma máquina abstrata, estrutural ou gerativa. É o contrário. É a linguagem que remete aos regimes de signos, e os regimes de signos às máquinas abstratas, às funções diagramáticas e aos agenciamentos maquínicos, que ultrapassam qualquer semiologia, qualquer linguística e qualquer lógica. Não existe lógica proposicional universal, nem gramaticalidade em si, assim como não existe significante por si mesmo. “Por detrás” dos enunciados e das semiotizações, existem apenas máquinas, agenciamentos, movimentos de desterritorialização que percorrem a estratificação dos diferentes sistemas, e escapam às coordenadas de linguagem assim como de existência. E porque a pragmática não é o complemento de uma lógica, de uma sintaxe ou de uma semântica, mas, ao contrário, o elemento de base do qual depende todo o resto. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão

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O ovo dogon e a repartição de intensidades De todo modo você tem um (ou vários), não porque ele preexista ou seja dado inteiramente feito — se bem que sob certos aspectos ele preexista — mas de todo modo você faz um, não pode desejar sem fazê-lo — e ele espera por você, é um exercício, uma experimentação inevitável, já feita no momento em que você a empreende, não ainda efetuada se você não a começou. Não é tranquilizador, porque você pode falhar. Ou às vezes

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pode ser aterrorizante, conduzi-lo à morte. Ele é não-desejo, mas também desejo. Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite. Diz-se: que é isto — o CsO — mas já se está sobre ele — arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante do deserto e nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que lutamos, lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que amamos. No dia 28 de novembro de 1947, Artaud declara guerra aos órgãos: Para acabar com o juízo de Deus, “porque atemme se quiserem, mas nada há de mais inútil do que um órgão”. É uma experimentação não somente radiofônica, mas biológica, política, atraindo sobre si censura e repressão. Corpus e Socius, política e experimentação. Não deixarão você experimentar em seu canto. O CsO já está a caminho desde que o corpo se cansou dos órgãos e quer licenciálos, ou antes, os perde. Longa procissão: — do corpo hipocondríaco, cujos órgãos são destruídos, a destruição já está concluída, nada mais acontece, “A Senhorita X afirma que não tem mais cérebro nem nervos nem peito nem estômago nem tripas, somente lhe restam a pele e os ossos do corpo desorganizado, são essas suas próprias expressões”; — do corpo paranoico, cujos órgãos não cessam de ser atacados por influências, mas também restaurados por energias exteriores (“ele viveu muito tempo sem estômago, sem intestinos, quase sem pulmões, o esôfago dilacerado, sem bexiga, as costelas quebradas, ele havia às vezes comido parcialmente sua própria laringe, e assim por diante, mas os milagres divinos haviam sempre regenerado novamente aquilo que havia sido destruído...”); — do corpo esquizo, acedendo a uma luta interior ativa que ele mesmo desenvolve contra os órgãos, chegando à catatonia; e depois o corpo drogado, esquizo experimental: “o organismo humano é de uma ineficácia gritante; em vez de uma boca e de um ânus que correm o risco de se arruinar, por que não possuir um único orifício polivalente para a alimentação e a defecação? Poder-se-ia obstruir a boca e o nariz, entulhar o estômago e fazer um buraco de aeração diretamente nos pulmões, o que deveria ter sido feito desde a origem”1; — do corpo masoquista, mal compreendido a partir da dor e que é antes de mais nada uma questão de CsO; ele se deixa costurar por seu sádico ou por sua puta, costurar os olhos, o ânus, a uretra, os seios, o nariz;

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William Burroughs, Le festin nu, Gallimard, p. 146.

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deixa-se suspender para interromper o exercício dos órgãos, esfolar como se os órgãos se colassem na pele, enrabar, asfixiar para que tudo seja selado e bem fechado. Mas por que este desfile lúgubre de corpos costurados, vitrificados, catatonizados, aspirados, posto que o CsO é também pleno de alegria, de êxtase, de dança? Então, por que estes exemplos? Por que é necessário passar por eles? Corpos esvaziados em lugar de plenos. Que aconteceu? Você agiu com a prudência necessária? Não digo sabedoria, mas prudência como dose, como regra imanente à experimentação: injeções de prudência. Muitos são derrotados nesta batalha. Será tão triste e perigoso não mais suportar os olhos para ver, os pulmões para respirar, a boca para engolir, a língua para falar, o cérebro para pensar, o ânus e a laringe, a cabeça e as pernas? Por que não caminhar com a cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre, Coisa simples, Entidade, Corpo pleno, Viagem imóvel, Anorexia, Visão cutânea, Yoga, Krishna, Love, Experimentação. Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide. “Senhora, 1) você pode me atar sobre a mesa, solidamente apertado, de dez a quinze minutos, tempo suficiente para preparar os instrumentos; 2) cem chicotadas pelo menos, com alguns minutos de intervalo; 3) você começa a costura, costura o buraco da glande, a pele ao redor deste à glande, impedindo-o de tirar a parte superior, você costura o saco à pele das coxas. Costura os seios, mas com um botão de quatro buracos solidamente sobre cada mama. Você pode reuni-los com um suspensório. Aí você passa à segunda fase: 4) você pode escolher virar-me sobre a mesa, sobre o ventre amarrado, mas com as pernas juntas, ou atar-me ao poste sozinho, os punhos reunidos, as pernas também, todo o corpo solidamente atado; 5) você me chicoteia as costas as nádegas as coxas, cem chicotadas pelo menos; 6) costura as nádegas juntas, todo o rego do eu. Solidamente com um fio duplo parando em cada ponto. Se estou sobre a mesa, você me ata então ao poste; 7) você me chicoteia as nádegas cinquenta vezes; 8) se você quiser reforçar a tortura e executar sua ameaça da última vez, enfie agulhas nas nádegas com força; 9) você pode então atar-me à cadeira, você me chibateia os seios trinta vezes e enfia agulhas menores, se você quiser, pode esquentá-las antes no fogo, todas, ou algumas.

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A amarração na cadeira deveria ser sólida e os punhos amarrados nas costas para estufar o peito. Se eu não falei sobre as queimaduras é que devo fazer em breve uma visita e leva tempo para curar.” — Isto não é um fantasma, é um programa: há diferença essencial entre a interpretação psicanalítica do fantasma e a experimentação antipsicanalítica do programa; entre o fantasma, interpretação a ser ela própria interpretada, e o programa, motor de experimentação.2² O CsO é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações. A psicanálise faz o contrário: ela traduz tudo em fantasmas, comercializa tudo em fantasmas, preserva o fantasma e perde o real no mais alto grau, porque perde o CsO. Algo vai acontecer, algo já acontece. Mas não se confundirá o que se passa sobre o CsO e a maneira de se criar um para si. No entanto, um está compreendido no outro. Daí as duas fases afirmadas na carta precedente. Por que duas fases nitidamente distintas, enquanto se trata da mesma coisa em ambos os casos, costuras e chicotadas? Uma é para a fabricação do CsO, a outra para fazer aí circular, passar algo; são, no entanto, os mesmos procedimentos que presidem as duas fases, mas eles devem ser repetidos, feitos duas vezes. O que é certo é que o masoquista fez para si um CsO em tais condições que este, desde então, só pode ser povoado por intensidades de dor, ondas doloríferas. E falso dizer que o masoquista busca a dor, mas não menos falso é dizer que ele busca o prazer de uma forma particularmente suspensiva ou desviada. Ele busca um CsO, mas de tal tipo que ele só poderá ser preenchido, percorrido pela dor, em virtude das próprias condições em que foi constituído. As dores são as populações, as matilhas, os modos do masoquista-rei no deserto que ele fez nascer e crescer. Assim também o corpo drogado e as intensidades de frio, as ondas geladas. Para cada tipo de CsO devemos perguntar: 1) Que tipo é este, como ele é fabricado, por que procedimentos e meios que prenunciam já o que vai acontecer; 2) e quais são estes modos, o que acontece, com que variantes, com que surpresas, com que coisas inesperadas em relação à expectativa? Em suma, entre um CsO de tal ou qual tipo e o que acontece nele, há uma relação muito particular de síntese ou de análise: síntese a priori onde

A oposição programa-fantasma aparece claramente em M’Uzan, a propósito de um caso de masoquismo; cf. La sexualité perverse, Payot, p. 36. Mesmo não precisando a oposição, M’Uzan serve-se da noção de programa para pôr em questão os temas de Édipo, de angústia e castração 2

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algo vai ser necessariamente produzido sobre tal modo, mas não se sabe o que vai ser produzido; análise infinita em que aquilo que é produzido sobre o CsO já faz parte da produção deste corpo, já está compreendido nele, sobre ele, mas ao preço de uma infinidade de passagens, de divisões e de sub-produções. Experimentação muito delicada, porque não pode haver estagnação dos modos, nem derrapagem do tipo: o masoquista, o drogado tangenciam estes perpétuos perigos que esvaziam seu CsO em vez de preenchêlo. Pode-se fracassar duas vezes, e, no entanto, é o mesmo fracasso, o mesmo perigo. No nível da constituição do CsO e no nível daquilo que passa ou não passa. Acreditava-se ter criado um bom CsO, tinha-se escolhido o Lugar, a Potência, o Coletivo (há sempre um coletivo mesmo se se está sozinho), e, no entanto, nada passa, nada circula, ou algo impede a circulação. Um ponto paranoico, um ponto de bloqueio ou uma lufada delirante, vê-se bem isto no livro de Burroughs Júnior, Speed. Pode-se localizar este ponto perigoso, é necessário expulsar o bloqueador, ou, ao contrário, “amar, honrar e servir o demente cada vez que ele vem à tona”? Bloquear, ser bloqueado, não é ainda uma intensidade? Em cada caso, definir o que passa e o que não passa, o que faz passar e o que impede de passar. Como no circuito da vianda segundo Lewin, algo escorre através dos canais cujas secções são determinadas por portas, com porteiros, passadores3. Abridores de portas e fechadores de armadilhas, Malabars e Fierabras. O corpo é tão-somente um conjunto de válvulas, represas, comportas, taças ou vasos comunicantes: um nome próprio para cada um, povoamento do CsO, Metrópoles, que é preciso manejar com o chicote. O que povoa, o que passa e o que bloqueia? Um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. Mas o CsO não é uma cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde aconteceria algo. Nada a ver com um fantasma, nada a interpretar. O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso. Ele não é espaço e nem está no espaço, é matéria que ocupará o espaço em tal ou qual grau — grau que corresponde às intensidades produzidas. Ele é a matéria intensa e não formada, não estratificada, a matriz intensiva, a intensidade = 0, mas nada há de negativo neste zero, não existem intensidades negativas nem contrárias. Matéria igual a energia. Produção do real como

Cf. a descrição do circuito e do fluxo da vianda em família americana Lewin, “L’ecologie psychologique”, Psychologie dynamique, PUF, pp. 228-243. 3

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grandeza intensiva a partir do zero. Por isto tratamos o CsO como o ovo pleno anterior à extensão do organismo e à organização dos órgãos, antes da formação dos estratos, o ovo intenso que se define por eixos e vetores, gradientes e limiares, tendências dinâmicas com mutação de energia, movimentos cinemáticos com deslocamento de grupos, migrações, tudo isto independentemente das formas acessórias, pois os órgãos somente aparecem e funcionam aqui como intensidades puras.4 O órgão muda transpondo um limiar, mudando de gradiente. “Os órgãos perdem toda constância, quer se trate de sua localização ou de sua função (...). órgãos sexuais aparecem por todo o lado (...). ânus emergem, abrem-se para defecar, depois se fecham, (...). o organismo inteiro muda de textura e de cor, variações alotrópicas reguladas num décimo de segundo”.5 O ovo tântrico. Finalmente, o grande livro sobre o CsO não seria a Ética? Os atributos são os tipos ou os gêneros de CsO, substâncias, potências, intensidades Zero como matrizes produtivas. Os modos são tudo o que se passa: as ondas e as vibrações, as migrações, limiares e gradientes, as intensidades produzidas sob tal ou qual tipo substancial a partir de tal matriz. O corpo masoquista como atributo ou gênero de substância, e sua produção de intensidades, de modos doloríferos, a partir de sua costura, de seu grau 0. O corpo drogado como outro atributo, com sua produção de intensidades específicas a partir do Frio absoluto = 0. (“Os viciados queixam-se sempre daquilo que chamam o Grande Frio, e eles levantam a gola de seus casacos negros e fecham os punhos contra seus pescoços magros (....). Tudo isto é puro cinema: o viciado não quer temperaturas quentes, ele deseja as temperaturas frescas, o frio, o Enorme Gelo. Mas o frio deve atingi-lo como a droga: não externamente, onde não é agradável, mas no interior dele mesmo, para que ele possa sentar-se tranquilamente, com a coluna vertebral tão ereta quanto uma alavanca hidráulica gelada e seu metabolismo caindo para o Zero absoluto...”) Etc. O problema de uma mesma substância para todas as substâncias, de uma substância única para todos os atributos, vem a ser este: existe um conjunto de todos os CsO? Mas se o CsO já é

Dalcq, L’ouef et son dynamisme organisateur, Albin Michel, p. 95: “As formas são contingentes em relação ao dinamismo cinemático. O fato de que um orifício se faça ou não no germe é acessório. Conta apenas o próprio processo da imigração, e são puras variações cronológicas e quantitativas que dão ao lugar da invaginação o aspecto de um orifício, de uma fissura ou de uma linha primitiva”. 4

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Burroughs, Le festin nu, p. 21.

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um limite, o que seria necessário dizer do conjunto de todos os CsO? O problema não é mais aquele do Uno e do Múltiplo, mas o da multiplicidade de fusão, que transborda efetivamente toda oposição do uno e do múltiplo. Multiplicidade formal dos atributos substanciais que constitui como tal a unidade ontológica da substância. Continuum de todos os atributos ou gêneros de intensidade sob uma mesma substância, e continuum das intensidades de um certo gênero sob um mesmo tipo ou atributo. Continuum de todas as substâncias em intensidades, mas também de todas as intensidades em substância. Continuum ininterrupto do CsO. O CsO, imanência, limite imanente. Os drogados, os masoquistas, os esquizofrênicos, os amantes, todos os CsO prestam homenagem a Espinosa. O CsO é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo). Cada vez que o desejo é traído, amaldiçoado, arrancado de seu campo de imanência, é porque há um padre por ali. O padre lançou a tríplice maldição sobre o desejo: a da lei negativa, a da regra extrínseca, a do ideal transcendente. Virando-se para o norte, o padre diz: Desejo é falta (como não seria ele carente daquilo que deseja?). O padre operava o primeiro sacrifício, denominado castração, e todos os homens e mulheres do norte vinham enfileirar-se atrás dele, gritando em cadência: “falta, falta, é a lei comum”. Depois, voltado para o sul, o padre relacionou o desejo ao prazer. Porque existem padres hedonistas, inclusive orgásticos. O desejo aliviar-se-á no prazer, e não somente o prazer obtido para calar um momento o desejo, mas obtê-lo já é uma maneira de interrompê-lo, de descarregá-lo no próprio instante e de descarregar-se dele. O prazer-descarga: o padre opera o segundo sacrifício denominado masturbação. Depois, voltado para o leste, ele grita: O gozo é impossível, mas o impossível gozo está inscrito no desejo. Porque assim é o Ideal, em sua própria impossibilidade, “falta-de-gozo que é a vida”. O padre operava o terceiro sacrifício, fantasma ou mil e uma noites, cento e vinte dias, enquanto os homens do leste cantavam: sim, nós seremos vosso fantasma, vosso ideal e vossa impossibilidade, os vossos e os nossos também. O padre não se havia voltado para o oeste, porque sabia que esta direção estava preenchida por um plano de consistência, mas acreditava que ela estava bloqueada pelas colunas de Hércules, sem saída, não habitada pelos homens. No entanto era ali que o desejo estava escondido, o oeste era o mais curto caminho que levava ao leste, e às outras direções redescobertas ou desterritorializadas.

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A figura mais recente do padre é o psicanalista com seus três princípios: Prazer, Morte e Realidade. Sem dúvida, a psicanálise mostrou que o desejo não se submetia à procriação nem mesmo à genitalidade. Foi este o seu modernismo. Mas ela conservava o essencial, encontrando inclusive novos meios para inscrever no desejo a lei negativa da falta, a regra exterior do prazer, o ideal transcendente do fantasma. Por exemplo, a interpretação do masoquismo: quando não é invocada a ridícula pulsão de morte, pretendese que o masoquista, como todo mundo, busca o prazer, mas só pode aceder a ele por intermédio das dores e das humilhações fantasmáticas que teriam como função apaziguar ou conjurar uma angústia profunda. Isto não é exato; o sofrimento do masoquista é o preço que ele deve pagar, não para atingir o prazer, mas para desligar o pseudoliame do desejo com o prazer como medida extrínseca. O prazer não é de forma alguma o que só poderia ser atingido pelo desvio do sofrimento, mas o que deve ser postergado ao máximo, porque seu advento interrompe o processo contínuo do desejo positivo. Acontece que existe uma alegria imanente ao desejo, como se ele se preenchesse de si mesmo e de suas contemplações, fato que não implica falta alguma, impossibilidade alguma, que não se equipara e que também não se mede pelo prazer, posto que é esta alegria que distribuirá as intensidades de prazer e impedirá que sejam penetradas de angústia, de vergonha, de culpa. Em suma, o masoquista serve-se do sofrimento como de um meio para constituir um corpo sem órgãos e depreender um plano de consistência do desejo. Que existam outros meios, outros procedimentos diferentes do masoquismo e certamente melhores é outra questão; o fato é que este procedimento convém a alguns. Por exemplo, um masoquista que não havia passado pela psicanálise: “PROGRAMA... Colocar freios à noite e atar as mãos mais estreitamente seja ao freio com a corrente, seja no cinturão desde o retorno do banho. Colocar os arreios completos, sem perder tempo, a rédea e as algemas, atar as algemas aos arreios. O falo fechado num estojo de metal. Colocar rédeas duas horas durante o dia, à noite segundo a vontade do senhor. Reclusão durante três ou quatro dias, as mãos sempre atadas, a rédea curta e estendida. O senhor nunca se aproximará de seu cavalo sem o seu chicote e dele se servirá a cada vez. Se a impaciência ou a revolta do animal se manifestasse, a rédea seria puxada mais fortemente, o senhor pegaria as rédeas e aplicaria um severo corretivo ao animal6. O que faz este masoquista? Ele parece imitar

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Roger Dupouy, “Du masochisme”, Annales médico-psychologiques, 1920, II, pp. 397405.

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o cavalo, Equus Eroticus, mas não se trata disso. O cavalo e o senhor domador, a senhora, tampouco são imagens da mãe ou do pai. É uma questão completamente diferente, um devir animal essencial ao masoquismo, uma questão de forças. O masoquista a apresenta assim: “Axioma do adestramento — destruir as forças instintivas para substituí-las pela forças transmitidas.” De fato, trata-se menos de uma destruição do que de uma troca e de uma circulação (“o que acontece ao cavalo pode acontecer também a mim”). O cavalo está domado: às suas forças instintivas o homem impõe forças transmitidas, que vão regular as primeiras, selecioná-las, dominá-las, sobrecodificá-las. O masoquista opera uma inversão de signos: o cavalo vai lhe transmitir suas forças transmitidas, para que as forças inatas do masoquista sejam por sua vez domadas. Existem duas séries: a do cavalo (força inata, força transmitida pelo homem), a do masoquista (força transmitida pelo cavalo, força inata do homem). Uma série explode na outra, cria circuito com outra: aumento de potência ou circuito de intensidades. O “senhor”, ou antes, a senhora-cavaleira, a equitadora, assegura a conversão das forças e a inversão dos signos. O masoquista construiu um agenciamento que traça e preenche ao mesmo tempo o campo de imanência do desejo, constituindo consigo, com o cavalo e com a senhora um corpo sem órgãos ou plano de consistência. “Resultados a serem obtidos: que eu esteja numa espera contínua de teus gestos e de tuas ordens, e que pouco a pouco toda oposição dê lugar à fusão de minha pessoa com a tua (...). A este respeito é preciso que ao simples ruído de tuas botas, sem mesmo confessá-lo, eu tenha medo. Desta maneira não serão mais as pernas das mulheres que me impressionarão, e se te agrada pedir-me carícias, quanto tu as tens e se me fazes senti-las, dar-me-ás a marca de teu corpo como eu nunca a tive e como jamais terei sem isto.” As pernas são ainda órgãos, mas as botas determinam tão-somente uma zona de intensidade, algo como uma marca ou uma zona sobre um CsO. Assim também, mas de uma outra maneira, seria um erro interpretar o amor cortês sob as espécies de uma lei da falta ou de um ideal de transcendência. A renúncia ao prazer externo, ou sua postergação, seu distanciamento ao infinito, dá testemunho, ao contrário, de um estado conquistado no qual ao desejo nada mais falta, ele preenche-se de si próprio e erige seu campo de imanência. O prazer é a afecção de uma pessoa ou de um sujeito, é o único meio para uma pessoa “se encontrar” no processo do desejo que a transborda; os prazeres, mesmo os mais artificiais, são reterritorializações. Mas justamente, será necessário reencontrar-se? O amor cortês não ama o eu, da mesma forma que

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não ama o universo inteiro com um amor celeste ou religioso. Trata-se de criar um corpo sem órgãos ali onde as intensidades passem e façam com que não haja mais nem eu nem o outro, isto não em nome de uma generalidade mais alta, de uma maior extensão, mas em virtude de singularidades que não podem mais ser consideradas pessoais, intensidades que não se pode mais chamar de extensivas. O campo de imanência não é interior ao eu, mas também não vem de um eu exterior ou de um não-eu. Ele é antes como o Fora absoluto que não conhece mais os Eu, porque o interior e o exterior fazem igualmente parte da imanência na qual eles se fundiram. O “joi”, o unir-se no amor cortês, a troca dos corações, o “assay”, o provar algo antes de oferecê-lo à pessoa amada: tudo é permitido desde que não seja exterior ao desejo nem transcendente a seu plano, mas que não seja também interior às pessoas. A menor carícia pode ser tão forte quanto um orgasmo; o orgasmo é apenas um fato, sobretudo incômodo em relação ao desejo que persegue seu direito. Tudo é permitido: o que conta somente é que o prazer seja o fluxo do próprio desejo, Imanência, no lugar de uma medida que viria interrompê-lo, ou que o faria depender dos três fantasmas: a falta interior, o transcendente superior, o exterior aparente.7 Se o desejo não tem o prazer por norma, não é em nome de uma falta que seria impossível remediar, mas, ao contrário, em razão de sua positividade, quer dizer, do plano de consistência que ele traça no decorrer do seu processo. Em 982-984 fez-se uma grande compilação japonesa de tratados taoístas chineses. Vê-se aí a formação de um circuito de intensidades entre a energia feminina e a energia masculina, a mulher desempenhando o papel de força instintiva ou inata (Yin), mas que o homem furta ou que se transmite ao homem, de tal maneira que a força transmitida do homem (Yang) aconteça por sua vez e torne-se tanto mais inata: aumento das potências.8 A condição desta circulação e desta multiplicação é que o homem não ejacule. Não se trata de sentir o desejo como falta interior, nem de retardar o prazer para produzir um tipo de

Sobre o amor cortês e sua imanência radical, que recusa ao mesmo tempo a transcendência religiosa e a exterioridade hedonista, cf. René Nelli, L’érotique des troubadours, 10-18, notadamente I, pp. 267, 316, 358, 370; II, pp. 47, 53, 75 (E I, p. 128: uma das grandes diferenças entre o amor cavalheiresco e o amor cortês é que, “para os cavalheiros, o valor graças ao qual se merece o amor é sempre exterior ao amor”, enquanto que no sistema cortês, a prova sendo essencialmente interior ao amor, o valor guerreiro dá lugar a um “heroísmo sentimental”: é uma mutação da máquina de guerra). 7

Van Gulik, La vie sexuelle dans Ia Chine ancienne, Gallimard; e o comentário de J.F. Lyotard, Economie libidinale, Ed. de Minuit, pp. 241-251. 8

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mais-valia exteriorizável, mas, ao contrário, de constituir um corpo sem órgãos intensivo, Tao, um campo de imanência onde nada falta ao desejo e que, assim, não mais se relaciona com critério algum exterior ou transcendente. É verdade que todo circuito pode ser rebaixado para fins de procriação (ejacular no bom momento das energias); e é assim que o confucionismo o entende. Mas isto é verdade apenas para uma face deste agenciamento de desejo, a face voltada em direção aos estratos, organismos, Estado, família... Não é verdade para a outra face, a face Tao de desestratificação que traça um plano de consistência próprio ao desejo ele mesmo. O Tao é porventura masoquista? O amor cortês é Tao? Estas questões não têm sentido. O campo de imanência ou plano de consistência deve ser construído; ora ele pode sê-lo em formações sociais muito diferentes, e por agenciamentos muito diferentes, perversos, artísticos, científicos, místicos, políticos, que não têm o mesmo tipo de corpo sem órgãos. Ele será construído pedaço a pedaço, lugares, condições, técnicas, não se deixando reduzir uns aos outros. A questão seria antes saber se os pedaços podem se ligar e a que preço. Há forçosamente cruzamentos monstruosos. O plano de consistência seria, então, o conjunto de todos os CsO, pura multiplicidade de imanência, da qual um pedaço pode ser chinês, um outro americano, um outro medieval, um outro pequeno-perverso, mas num movimento de desterritorialização generalizada onde cada um pega e faz o que pode, segundo seus gostos, que ele teria conseguido abstrair de um Eu, segundo uma política ou uma estratégia que se teria conseguido abstrair de tal ou qual formação, segundo tal procedimento que seria abstraído de sua origem. Distinguimos: 1) Os CsO que diferem como tipos, gêneros, atributos substanciais, por exemplo o Frio do CsO drogado, o Dolorifero do CsO masoquista; cada um tem seu grau 0 como princípio de produção (é a remissio); 2) o que se passa sobre cada tipo de CsO, quer dizer, os modos, as intensidades produzidas, as ondas e vibrações que passam (a latitudo); 3) o conjunto eventual de todos os CsO, o plano de consistência (a Ommitudo, às vezes chamado de CsO). — Ora, as questões são múltiplas: não somente como criar para si um CsO, mas também como produzir as intensidades correspondentes sem as quais ele permaneceria vazio? Não é de forma alguma a mesma pergunta. Mais ainda: como chegar ao plano de consistência? Como cozer junto, como esfriar junto, como reunir todos os CsO? Se é possível, isto também só se fará conjugando as intensidades produzidas sobre cada CsO, fazendo um continuum de todas as continuidades intensivas. São necessários agenciamentos para fabricar cada CsO, seria necessário

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uma grande Máquina abstrata para construir o plano de consistência? Bateson denomina platôs as regiões de intensidade contínua, que são constituídas de tal maneira que não se deixam interromper por uma terminação exterior, como também não se deixam ir em direção a um ponto culminante: são assim certos processos sexuais ou agressivos na cultura balinesa9. Um platô é um pedaço de imanência. Cada CsO é feito de platôs. Cada CsO é ele mesmo um platô, que comunica com os outros platôs sobre o plano de consistência. É um componente de passagem. Releitura de Heliogabale e de Tarabumaras. Porque Heliogábalo é Espinosa, Espinosa é Heliogábalo ressuscitado. E os Tarahumaras são a experimentação, o peyotl, este cactus, este alcalóide portador da mescalina. Espinosa, Heliogábalo e a experimentação têm a mesma fórmula: a anarquia e a unidade são uma única e mesma coisa, não a unidade do Uno, mas uma unidade mais estranha que se diz apenas do múltiplo.10 É isto que os dois livros de Artaud exprimem: a multiplicidade de fusão, a fusibilidade como zero infinito, plano de consistência, Matéria onde não existem deuses; os princípios, como forças, essências, substâncias, elementos, remissões, produções; as maneiras de ser ou modalidades como intensidades produzidas, vibrações, sopros, Números. E enfim a dificuldade de atingir este mundo da Anarquia coroada, se se fica nos órgãos, “o fígado que torna a pele amarela, o cérebro que se sifiliza, o intestino que expulsa o lixo”, e se se permanece fechado no organismo, ou em um estrato que bloqueia os fluxos e nos fixa neste nosso mundo. Percebemos pouco a pouco que o CsO não é de modo algum o contrário dos órgãos. Seus inimigos não são os órgãos. O inimigo é o organismo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos que se chama organismo. É verdade que Artaud desenvolve sua luta contra os órgãos, mas, ao mesmo tempo, contra o organismo que ele tem: O corpo é o corpo. Ele é sozinho. E não tem necessidade de órgãos. O corpo nunca é um organismo. Os organismos são os inimigos do corpo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas, com seus “órgãos verdadeiros” que devem ser compostos e colocados, ele se opõe ao organismo, à organização orgânica dos órgãos. O juízo de Deus, o sistema do juízo de Deus, o sistema

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Gregory Batenson, Vers une écologie de l’esprit, p. 125-126.

Artaud, Heliogabale, (Euvres completes VII, Gallimard, p. 50-51. É verdade que Artaud apresenta ainda a identidade do Uno e do múltiplo como uma unidade dialética, e que reduz o múltiplo reconduzindo-o ao Uno. Ele faz de Heliogábalo uma espécie de hegeliano. Mas isto é apenas maneira de falar, porque a multiplicidade ultrapassa desde o início toda oposição, e destitui o movimento dialético. 10

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teológico, é precisamente a operação Daquele que faz um organismo, uma organização de órgãos que se chama organismo porque Ele não pode suportar o CsO, porque Ele o persegue, aniquila para passar antes e fazer passar antes o organismo. O organismo já é isto, o juízo de Deus, do qual os médicos se aproveitam e tiram seu poder. O organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil. Os estratos são liames, pinças. “Atem-me se vocês quiserem”. Nós não paramos de ser estratificados. Mas o que é este nós, que não sou eu, posto que o sujeito não menos do que o organismo pertence a um estrato e dele depende? Respondemos agora: é o CsO, é ele a realidade glacial sobre o qual vão se formar estes aluviões, sedimentações, coagulação, dobramentos e assentamentos que compõem um organismo — e uma significação e um sujeito. É sobre ele que pesa e se exerce o juízo de Deus, é ele quem o sofre. E nele que os órgãos entram nessas relações de composição que se chamam organismo. O CsO grita: fizeram-me um organismo! dobraram-me indevidamente! roubaram meu corpo! O juízo de Deus arranca-o de sua imanência, e lhe constrói um organismo, uma significação, um sujeito. É ele o estratificado. Assim, ele oscila entre dois polos: de um lado, as superfícies de estratificação sobre as quais ele é rebaixado e submetido ao juízo, e, por outro lado, o plano de consistência no qual ele se desenrola e se abre à experimentação. E se o CsO é um limite, se não se termina nunca de chegar a ele, é porque há sempre um estrato atrás de um outro estrato, um estrato engastado em outro estrato. Porque são necessários muitos estratos e não somente o organismo para fazer o juízo de Deus. Combate perpétuo e violento entre o plano de consistência, que libera o CsO, atravessa e desfaz todos os estratos, e as superfícies de estratificação que o bloqueiam ou rebaixam. Consideremos os três grandes estratos relacionados a nós, quer dizer, aqueles que nos amarram mais diretamente: o organismo, a significância e a subjetivação. A superfície de organismo, o ângulo de significância e de interpretação, o ponto de subjetivação ou de sujeição. Você será organizado, você será um organismo, articulará seu corpo — senão você será um depravado. Você será significante e significado, intérprete e interpretado — senão será desviante. Você será sujeito e, como tal, fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado — senão você será apenas um vagabundo. Ao conjunto dos estratos, o CsO opõe a desarticulação (ou as n articulações) como propriedade do plano de

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consistência, a experimentação como operação sobre este plano (nada de significante, não interprete nunca!), o nomadismo como movimento (inclusive no mesmo lugar, ande, não pare de andar, viagem imóvel, dessubjetivação). O que quer dizer desarticular, parar de ser um organismo? Como dizer a que ponto é isto simples, e que nós o fazemos todos os dias. Com que prudência necessária, a arte das doses, e o perigo, a overdose. Não se faz a coisa com pancadas de martelo, mas com uma lima muito fina. Inventam-se autodestruições que não se confundem com a pulsão de morte. Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade, territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor. No limite, desfazer o organismo não é mais difícil do que desfazer os outros estratos, significância ou subjetivação. A significância cola na alma assim como o organismo cola no corpo e dela também não é fácil desfazer-se. E quanto ao sujeito, como fazer para nos descolar dos pontos de subjetivação que nos fixam, que nos pregam numa realidade dominante? Arrancar a consciência do sujeito para fazer dela um meio de exploração, arrancar o inconsciente da significância e da interpretação para fazer dele uma verdadeira produção, não é seguramente nem mais nem menos difícil do que arrancar o corpo do organismo. A prudência é a arte comum dos três; e se acontece que se tangencie a morte ao se desfazer do organismo, tangencia-se o falso, o ilusório, o alucinatório, a morte psíquica ao se furtar à significância e à sujeição. Artaud pesa e mede cada uma de suas palavras: a consciência “sabe o que é bom para ela e o que de nada lhe vale; e, portanto, os pensamentos e sentimentos que ela pode acolher sem perigo e com vantagem, assim como aqueles que são nefastos ao exercício de sua liberdade. Ela sabe sobretudo até onde vai seu ser e até onde ele ainda não foi ou não tem o direito de ir sem soçobrar na irrealidade, no ilusório, no não-feito, no não-preparado... Plano não atingido pela consciência normal mas ao qual Ciguri nos permite chegar e que é o próprio mistério de toda poesia. Mas existe no ser humano um outro plano, obscuro, informe, onde a consciência não entrou, mas que a cerca de uma espécie de prolongamento sombrio ou de uma ameaça, conforme o caso. Plano que desprende também sensações aventurosas, percepções. São os fantasmas desavergonhados que afetam a consciência doentia. Eu também tive sensações falsas, percepções falsas e nelas acreditei.”11

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Artaud, Les Tarabumaras, t. IX, p. 34-35.

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É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação, é também necessário conservar, inclusive para opô-las a seu próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações nos obrigam; e pequenas rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para poder responder à realidade dominante. Imitem os estratos. Não se atinge o CsO e seu plano de consistência desestratificando grosseiramente. Por isto encontrava-se desde o início o paradoxo destes corpos lúgubres e esvaziados: eles haviam se esvaziado de seus órgãos ao invés de buscar os pontos nos quais podiam paciente e momentaneamente desfazer esta organização dos órgãos que se chama organismo. Havia mesmo várias maneiras de perder seu CsO, seja por não se chegar a produzi-lo, seja produzindo-o mais ou menos, mas nada se produzindo sobre ele e as intensidades não passando ou se bloqueando. Isso porque o CsO não para de oscilar entre as superfícies que o estratificam e o plano que o libera. Liberemno com um gesto demasiado violento, façam saltar os estratos sem prudência e vocês mesmos se matarão, encravados num buraco negro, ou mesmo envolvidos numa catástrofe, ao invés de traçar o plano. O pior não é permanecer estratificado — organizado, significado, sujeitado — mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra. É seguindo uma relação meticulosa com os estratos que se consegue liberar as linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados, desprender intensidades contínuas para um CsO. Conectar, conjugar, continuar: todo um “diagrama” contra os programas ainda significantes e subjetivos. Estamos numa formação social; ver primeiramente como ela é estratificada para nós, em nós, no lugar onde estamos; ir dos estratos ao agenciamento mais profundo em que estamos envolvidos; fazer com que o agenciamento oscile delicadamente, fazê-lo passar do lado do plano de consistência. É somente aí que o CsO se revela pelo que ele é, conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum de intensidades. Você terá construído sua pequena máquina privada, pronta, segundo as circunstâncias, para ramificar-se em outras máquinas coletivas. Castañeda descreve uma longa experimentação (pouco importa que se trate de peyotl ou de outra coisa): retenhamos por enquanto como o índio o força primeiramente a buscar um “lugar”,

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operação já difícil, depois a encontrar “aliados”, depois a renunciar progressivamente à interpretação, a construir fluxo por fluxo e segmento por segmento as linhas de experimentação, devir-animal, devir-molecular, etc... Porque o CsO é tudo isto: necessariamente um Lugar, necessariamente um Plano, necessariamente um Coletivo (agenciando elementos, coisas, vegetais, animais, utensílios, homens, potências, fragmentos de tudo isto, porque não existe “meu” corpo sem órgãos, mas “eu” sobre ele, o que resta de mim, inalterável e cambiante de forma, transpondo limiares). No decorrer dos livros de Castañeda, pode acontecer que o leitor comece a duvidar da existência de Don Juan o índio, e de muitas outras coisas. Mas isto não tem qualquer importância. Melhor ainda se estes livros são a exposição de um sincretismo ao invés de uma etnografia, e um protocolo de experiências ao invés de um relatório de iniciação. Eis que o quarto livro, Histórias de poder, trata da distinção viva do “Tonal” e do “Nagual”. O Tonal parece ter uma extensão disparatada: ele é o organismo e também tudo o que é organizado e organizador; mas ele é ainda a significância, tudo o que é significante e significado, tudo o que é suscetível de interpretação, de explicação, tudo o que é memorizável, sob a forma de algo que lembra outra coisa; enfim, ele é o Eu, o sujeito, a pessoa, individual, social ou histórica, e todos os sentimentos correspondentes. Numa palavra, o Tonal é tudo, inclusive Deus, o juízo de Deus, visto que ele “constrói as regras por meio das quais apreende o mundo, logo ele cria o mundo, por assim dizer.” E, no entanto, o Tonal é apenas uma ilha. Porque também o nagual é tudo. E é o mesmo todo, mas em condições tais que o corpo sem órgãos substitui o organismo, a experimentação substitui toda interpretação da qual ela não tem mais necessidade. Os fluxos de intensidades, seus fluidos, suas fibras, seus contínuos e suas conjunções de afectos, o vento, uma segmentação fina, as micro-percepções substituíram o mundo do sujeito. Os devires, deviresanimal, devires-moleculares, substituem a história individual ou geral. De fato, o Tonal não é tão disparatado quanto parece: ele compreende o conjunto dos estratos, e tudo o que pode ser relacionado com os estratos, a organização do organismo, as interpretações e as explicações do significável, os movimentos de subjetivação. O nagual, ao contrário, desfaz os estratos. Não é mais um organismo que funciona, mas um CsO que se constrói. Não são mais atos a serem explicados, sonhos ou fantasmas a serem interpretados, recordações de infância a serem lembradas, palavras para significar, mas cores e sons, devires e intensidades (e quando você se torna cão não vai perguntar se o cão com o qual você

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brinca é um sonho ou uma realidade, e se é “a puta da tua mãe”, ou outra coisa ainda). Não é mais um Eu que sente, age e se lembra, é “uma bruma brilhante, um vapor amarelo e sombrio” que tem afectos e experimenta movimentos, velocidades. Mas o importante é que não se desfaz o Tonal destruindo-o de uma só vez. É preciso diminuí-lo, estreitá-lo, limpá-lo, e isto ainda somente em alguns momentos. É necessário preservá-lo para sobreviver, para desviar o ataque nagual. Porque um nagual que irrompesse, que destruísse o Tonal, um corpo sem órgãos que quebrasse todos os estratos, se transformaria imediatamente em corpo de nada, autodestruição pura sem outra saída a não ser a morte: “o Tonal dever ser protegido a qualquer preço”. Ainda não respondemos à questão: por que tantos perigos? Por que então tantas precauções necessárias? É porque não basta opor abstratamente os estratos e o CsO. Porque encontra-se CsO já nos estratos não menos do que sobre o plano de consistência desestratificado, mas de uma maneira completamente diferente. Tomemos o organismo como estrato: existe um CsO que se opõe à organização dos órgãos chamada organismo, mas há também um CsO do organismo, pertencendo a este estrato. Tecido canceroso: a cada instante, a cada segundo, uma célula torna-se cancerosa, louca, prolifera e perde sua figura, apodera-se de tudo; é necessário que o organismo a reconduza à sua regra ou a reestratifique, não somente para sobreviver, mas também para que seja possível uma fuga para fora do organismo, uma fabricação do “outro” CsO sobre o plano de consistência. Tomemos agora o estrato de significância: aí ainda, existe um tecido canceroso da significância, um corpo brotando do déspota que bloqueia toda circulação de signos, tanto quanto impede o nascimento do signo assignificante sobre o “outro” CsO. Ou então, um corpo asfixiante da subjetivação que torna ainda tanto mais impossível uma liberação porque não deixa subsistir uma distinção entre os sujeitos. Mesmo se considerarmos tal ou qual formação social, ou tal aparelho de estrato numa formação, dizemos que todos e todas têm seu CsO pronto para corroer, para proliferar, para cobrir e invadir o conjunto do campo social, entrando em relações de violência e de rivalidade tanto quanto de aliança ou de cumplicidade. O CsO do dinheiro (inflação), mas também CsO do Estado, do exército, da fábrica, da cidade, do Partido etc. Se os estratos dizem respeito à coagulação, à sedimentação, basta uma velocidade de sedimentação precipitada num estrato para que ele perca sua figura e suas articulações, e forme seu tumor específico nele mesmo, ou em tal formação, em tal aparelho. Os estratos engendram seus CsO, totalitários e fascistas, aterrorizadoras caricaturas do plano de consistência. Não basta então

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distinguir os CsO plenos sobre o plano de consistência e os CsO vazios sobre os destroços de estratos, por desestratificação exageradamente violento. É preciso considerar ainda os CsO cancerosos num estrato tornado proliferante. Problema dos três corpos. Artaud dizia que, fora do “plano”, havia este outro plano que nos cerca “com um prolongamento obscuro ou com uma ameaça segundo o caso”. É uma luta, e que não comporta jamais, por isto mesmo, uma suficiente clareza. Como criar para si CsO sem que seja o CsO canceroso de um fascista em nós, ou o CsO vazio de um drogado, de um paranoico ou de um hipocondríaco? Como distinguir os três corpos? Artaud não para de enfrentar este problema. Extraordinária composição de Pour en finir avec le jugement de Dieu [Para acabar com o Juízo de Deus]: ele começa por amaldiçoar o corpo canceroso da América, corpo de guerra e de dinheiro; denuncia os estratos que ele chama de “caca”; a isto opõe o verdadeiro Plano, mesmo que seja o riacho minúsculo dos Tarahumaras, peyotl; mas ele conhece também os perigos de uma desestratificação demasiado brutal, imprudente. Artaud não para de enfrentar tudo isto e aí sucumbe. Carta a Hitler: “Caro Senhor, eu lhe havia mostrado em 1932, no café do Ider, em Berlim, numa das noites em que nós havíamos conhecido e pouco antes de sua tomada do poder, as barragens estabelecidas sobre um mapa que era tão somente um mapa de geografia, contra mim, ação de força dirigida num certo número de sentidos que o senhor me designava. Eu levanto hoje, Hitler, as barreiras que havia colocado! Os Parisienses têm necessidade de gás. Vosso, atenciosamente A.A. — P. S. claro, estimado senhor, isto não é apenas um convite, é sobretudo uma advertência...”12. Este mapa que não é somente de geografia, é como que um mapa de intensidade CsO, onde as barragens designam limiares, e os gases, ondas ou fluxos. Mesmo que Artaud não tenha conseguido para ele mesmo, é certo que através dele algo foi conquistado para nós todos. O CsO é o ovo. Mas o ovo não é regressivo: ao contrário, ele é contemporâneo por excelência, carrega-se sempre consigo, como seu próprio meio de experimentação, seu meio associado. O ovo é o meio de intensidade pura, o spatium e não a extensio, a intensidade Zero como princípio de produção. Existe uma convergência fundamental entre a ciência e o mito, entre a embriologia e a mitologia, entre o ovo biológico e o ovo psíquico ou cósmico: o ovo designa sempre esta realidade intensiva, não indiferenciada, mas onde as coisas, os órgãos, se distinguem unicamente por gradientes, migrações, zonas de vizinhança. O ovo é o CsO. O CsO não existe “antes” do organismo, ele é adjacente, e não para de se fazer. Se ele está

12

cf. Cause commune, n° 3, outubro de 1972.

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ligado à infância, não o está no sentido de uma regressão do adulto à criança, e da criança à Mãe, mas no sentido em que a criança, assim como o gêmeo Dogon, que transporta consigo um pedaço de placenta, arranca da forma orgânica da mãe uma matéria intensa e desestratificada que constitui, ao contrário, sua ruptura perpétua com o passado, sua experiência, sua experimentação atuais. O CsO é bloco de infância, devir-, o contrário da recordação de infância. Ele não é criança “antes” do adulto, nem “mãe” “antes” da criança: ele é a estrita contemporaneidade do adulto, da criança e do adulto, seu mapa de densidades e intensidades comparadas, e todas as variações sobre este mapa. O CsO é precisamente este germe intenso onde não há e não pode existir nem pais nem filhos (representação orgânica). É o que Freud não compreendeu em Weissmann; a criança como contemporânea germinal dos pais. Assim, o corpo sem órgãos nunca é o seu, o meu... É sempre um corpo. Ele não é mais projetivo do que regressivo. É uma involução, mas uma involução criativa e sempre contemporânea. Os órgãos se distribuem sobre o CsO; mas, justamente, eles se distribuem nele independentemente da forma do organismo; as formas tornam-se contingentes, os órgãos não são mais do que intensidades produzidas, fluxos, limiares e gradientes. “Um” ventre, “um” olho, “uma” boca: Ao artigo indefinido nada falta, ele não é indeterminado ou indiferenciado, mas exprime a pura determinação de intensidade, a diferença intensiva. O artigo indefinido é o condutor do desejo. Não se trata absolutamente de um corpo despedaçado, esfacelado, ou de órgãos sem corpos (OsC). O CsO é exatamente o contrário. Não há órgãos despedaçados em relação a uma unidade perdida, nem retorno ao indiferenciado em relação a uma totalidade diferenciável. Existe, isto sim, distribuição das razões intensivas de órgãos, com seus artigos positivos indefinidos, no interior de um coletivo ou de uma multiplicidade, num agenciamento e segundo conexões maquínicas operando sobre um CsO. Logos spermaticos. O erro da psicanálise é o de ter compreendido os fenômenos de corpos sem órgãos como regressões, projeções, fantasmas, em função de uma imagem do corpo. Por isso, ela só percebia o avesso das coisas, substituía um mapa mundial de intensidades por fotos de família, recordações de infância e objetos parciais. Ela nada compreendia acerca do ovo, nem dos artigos indefinidos, nem sobre a contemporaneidade de um meio que não para de se fazer. O CsO é desejo, é ele e por ele que se deseja. Não somente porque ele é o plano de consistência ou o campo de imanência do desejo; mas inclusive quando cai no vazio da desestratificação brutal, ou bem na proliferação do estrato canceroso, ele permanece desejo. O desejo vai até aí: às vezes desejar seu

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próprio aniquilamento, às vezes desejar aquilo que tem o poder de aniquilar. Desejo de dinheiro, desejo de exército, de polícia e de Estado, desejo-fascista, inclusive o fascismo é desejo. Há desejo toda vez que há constituição de um CsO numa relação ou em outra. Não é um problema de ideologia, mas de pura matéria, fenômeno de matéria física, biológica, psíquica, social ou cósmica. Por isto o problema material de uma esquizoanálise é o de saber se nós possuímos os meios de realizar a seleção, de separar o CsO de seus duplos: corpos vítreos vazios, corpos cancerosos, totalitários e fascistas. A prova do desejo: não denunciar os falsos desejos, mas, no desejo, distinguir o que remete à proliferação de estratos, ou bem à desestratificação demasiada violenta, e o que remete à construção do plano de consistência (vigiar inclusive em nós mesmos o fascista, e também o suicida e o demente).. O plano de consistência não é simplesmente o que é constituído por todos os CsO. Há os que ele rejeita, é ele que faz a escolha, com a máquina abstrata que o traça. E inclusive num CsO (o corpo masoquista, o corpo drogado, etc). distinguir aquilo que é componível ou não sobre o plano. Uso fascista da droga, ou uso suicida, mas também a possibilidade de um uso em conformidade com o plano de consistência? Mesmo a paranoia: possibilidade de fazer parcialmente um tal uso? Quando colocávamos a questão de um conjunto de todos os CsO, tomados como atributos substanciais de uma substância única, era preciso, em sentido estrito, entender isso somente em relação ao plano. É ele que faz o conjunto de todos os CsO plenos selecionados (nada de conjunto positivo com os corpos vazios ou cancerosos). De que natureza é este conjunto? Unicamente lógica? Ou bem é necessário dizer que cada CsO em seu gênero produz efeitos idênticos ou análogos aos efeitos dos outros em seu próprio gênero? Aquilo que o drogado obtém, o que o masoquista obtém, poderia também ser obtido de outra maneira nas condições do plano: no extremo, drogar-se sem droga, embriagar-se com água pura, como na experimentação de Henry Miller? Ou bem ainda: trata-se de uma passagem real de substâncias, de uma continuidade intensiva de todos os CsO? Tudo é possível, sem dúvida. Nós apenas dizemos: a identidade dos efeitos, a continuidade dos gêneros, o conjunto de todos os CsO não podem ser obtidos sobre o plano de consistência senão por intermédio de uma máquina abstrata capaz de cobri-lo e mesmo de traçá-lo, de agenciamentos capazes de se ramificarem no desejo, de assumirem efetivamente os desejos, de assegurar suas conexões contínuas, suas ligações transversais. Senão os CsO do plano permanecerão separados em seu gênero, marginalizados, reduzidos aos meios disponíveis, enquanto triunfarão sobre “o outro plano” os duplos cancerosos ou esvaziados.

Tradução de Aurélio Guerra Neto

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Havíamos encontrado dois eixos: um de significância e outro de subjetivação. Eram duas semióticas bastante diferentes, ou mesmo dois estratos. Mas a significância não existe sem um muro branco sobre o qual inscreve seus signos e suas redundâncias. A subjetivação não existe sem um buraco negro onde aloja sua consciência, sua paixão, suas redundâncias. Como só existem semióticas mistas ou como os estratos nunca ocorrem sozinhos, havendo pelo menos dois, não devemos nos surpreender com a montagem de um dispositivo muito especial em seu cruzamento. É entretanto curioso, um rosto: sistema muro branco-buraco negro. Grande rosto com bochechas brancas, rosto de giz furado com olhos como buraco negro. Cabeça de clown, clown branco, pierrô lunar, anjo da morte, santo sudário. O rosto não é um invólucro exterior

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àquele que fala, que pensa ou que sente. A forma do significante na linguagem, suas próprias unidades continuariam indeterminadas se o eventual ouvinte não guiasse suas escolhas pelo rosto daquele que fala (“veja, ele parece irritado...”, “ele não poderia ter dito isso...”, “você vê meu rosto quando eu converso com você...”, “olhe bem para mim...”). Uma criança, uma mulher, uma mãe de família, um homem, um pai, um chefe, um professor primário, um policial, não falam uma língua em geral, mas uma língua cujos traços significantes são indexados nos traços de rostidade específicos. Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de frequência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações conformes. Do mesmo modo, a forma da subjetividade, consciência ou paixão, permaneceria absolutamente vazia se os rostos não formassem lugares de ressonância que selecionam o real mental ou sentido, tornando-o antecipadamente conforme a uma realidade dominante. O rosto é, ele mesmo, redundância. E faz ele mesmo redundância com as redundâncias de significância ou frequência, e também com as de ressonância ou de subjetividade. O rosto constrói o muro do qual o significante necessita para ricochetear, constitui o muro do significante, o quadro ou a tela. O rosto escava o buraco de que a subjetivação necessita para atravessar, constitui o buraco negro da subjetividade como consciência ou paixão, a câmera, o terceiro olho. Ou será preciso dizer as coisas de outro modo? Não é exatamente o rosto que constitui o muro do significante, nem o buraco da subjetividade. O rosto, pelo menos o rosto concreto, começaria a se esboçar vagamente sobre o muro branco. Começaria a aparecer vagamente no buraco negro. O close do rosto no cinema tem como que dois polos: fazer com que o rosto reflita a luz ou, ao contrário, acentuar suas sombras até mergulhá-lo “em uma impiedosa obscuridade”1. Um psicólogo dizia que o rosto é um percepto visual que se cristaliza a partir “de diversas variedades de luminosidades vagas, sem forma nem dimensão”. Sugestiva brancura, buraco capturador, rosto. O buraco negro sem dimensão, o muro branco sem forma já estariam, antes de tudo, presentes. E nesse sistema muitas combinações já seriam possíveis: ou os buracos negros se distribuem no muro branco, ou o muro branco se afila e vai em direção a um buraco negro que os reúne todos, precipita-os ou “aglutina-os”. Ora rostos aparecem no muro, com seus buracos; ora aparecem no buraco, com seu muro linearizado, espiralado. Conto de terror, mas o rosto é um conto de terror. É certo que

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Josef von Sternberg, Souvenirs d’un montreur d’ombres, Laffont, p. 342-343.

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o significante não constrói sozinho o muro que lhe é necessário; é certo que a subjetividade não escava sozinha seu buraco. Mas tampouco estão completamente prontos os rostos concretos que poderíamos nos atribuir. Os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de rostidade, que irá produzi-los ao mesmo tempo que der ao significante seu muro branco, à subjetividade seu buraco negro. O sistema buraco negro-muro branco não seria então já um rosto, seria a máquina abstrata que o produz, segundo as combinações deformáveis de suas engrenagens. Não esperemos que a máquina abstrata se pareça com o que ela produziu, com o que irá produzir. A máquina abstrata surge quando não a esperamos, nos meandros de um adormecimento, de um estado crepuscular, de uma alucinação, de uma experiência de física curiosa... A novela de Kafka, Blumfeld: o celibatário chega em casa à noite e encontra duas pequenas bolas de pingue-pongue que saltam sozinhas sobre o “muro” do assoalho, ricocheteiam por toda a parte, tentam até mesmo atingir-lhe o rosto, e parecem conter outras bolas elétricas ainda menores. Blumfeld consegue finalmente encerrá-las no buraco negro de um cubículo. A cena continua no dia seguinte quando Blumfeld tenta dar as bolas a um garotinho débil e a duas meninas careteiras, depois no escritório, onde ele encontra seus dois estagiários careteiros e débeis que querem se apoderar de uma vassoura. Em um admirável bale de Debussy e Nijinsky, uma pequena bola de tênis vem ricochetear na cena ao crepúsculo; uma outra surgirá da mesma forma no final. Entre as duas, dessa vez, duas jovens e um rapaz que as observam desenvolvem seus traços passionais de dança e de rosto sob luminosidades vagas (curiosidade, despeito, ironia, êxtase2). Não há nada a explicar, nada a interpretar. Pura máquina abstrata de estado crepuscular. Muro branco-buraco negro? Mas, segundo as combinações, é igualmente possível que o muro seja negro e o buraco seja branco. As bolas podem ricochetear em um muro, ou escoar em um buraco. Elas podem mesmo, em seu impacto, ter um papel relativo de buraco em relação ao muro, bem como, em seu percurso afilado, ter um papel relativo de muro em relação ao buraco para o qual elas se dirigem. Circulam no sistema muro branco-buraco negro. Nada se assemelha aqui a um rosto, e entretanto os rostos se distribuem em todo o sistema, os traços de rostidade se organizam. E entretanto ainda, essa máquina abstrata pode certamente funcionar em outra coisa que não rostos; mas não em qualquer ordem, nem sem razões necessárias.

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Sobre esse bale, cf. o Debussy de Jean Barraqué, ed. du Seuil, que cita o texto do prólogo, p. 166-171.

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A psicologia americana se ocupou bastante do rosto, principalmente na relação da criança com sua mãe, eye-to-eye contact. Máquina de quatro olhos? Relembremos certas etapas nessas pesquisas: 1) os estudos de Isakower sobre o adormecimento, onde sensações ditas proprioceptivas, manuais, bucais, cutâneas, ou mesmo vagamente visuais, remetem à relação infantil boca-seio; 2) a descoberta de Lewin de uma tela branca do sonho, comumente recoberta pelos conteúdos visuais, mas que permanece branca quando o sonho só tem como conteúdo sensações proprioceptivas (essa tela ou esse muro branco seria ainda o seio se aproximando, aumentando, se achatando); 3) a interpretação de Spitz segundo a qual a tela branca não deixa de ser já um percepto visual, implicando um mínimo de distância, e que fará aparecer, por esse motivo, o rosto materno pelo qual a criança se guia para pegar o seio, ainda mais porque não representa o próprio seio como objeto de sensação táctil ou de contato. Haveria então combinação de dois tipos de elementos bastante diferentes: as sensações proprioceptivas manuais, bucais e cutâneas; a percepção visual do rosto visto de frente sobre a tela branca, com o esboço dos olhos como buracos negros. Essa percepção visual assume rapidamente uma importância decisiva em relação ao ato de se alimentar, em relação ao seio como volume e à boca como cavidade experimentados tatilmente3 Podemos então propor a seguinte distinção: o rosto faz parte de um sistema superfície-buracos, superfície esburacada. Mas esse sistema não deve sobretudo ser confundido com o sistema volume-cavidade, próprio do corpo (proprioceptivo). A cabeça está compreendida no corpo, mas não o rosto. O rosto é uma superfície: traços, linhas, rugas do rosto, rosto comprido, quadrado, triangular; o rosto é um mapa, mesmo se aplicado sobre um volume, envolvendo-o, mesmo se cercando e margeando cavidades que não existem mais senão como buracos. Mesmo humana, a cabeça não é forçosamente um rosto. O rosto só se produz quando a cabeça deixa de fazer parte do corpo, quando para de ser codificada pelo corpo, quando ela mesma para de ter um código corporal polívoco multidimensional — quando o corpo, incluindo a cabeça, se encontra descodificado e deve ser sobrecodificado por algo que denominaremos Rosto. É o mesmo que dizer que a cabeça, que todos os elementos volume-cavidade da cabeça devem ser rostificados. Eles o serão pela tela esburacada, pelo muro branco-buraco negro, a máquina abstrata que irá produzir rosto.

Cf. Isakower, “Contribution à Ia psychopatologie des phénomènes associes à 1’endormissement”, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n° 5, 1972; Lewin, “Le someil, la bouche et 1’écran du rêve”, ibid; Spitz, De la naissance à la parole, PUF, p. 57-63. 3

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Mas a operação não para aí: a cabeça e seus elementos não serão rostificados sem que o corpo inteiro não o possa ser, não seja levado a sê-lo, em um processo inevitável. A boca e o nariz, e antes de tudo os olhos, não se tornam uma superfície esburacada sem convocar todos os outros volumes e todas as outras cavidades do corpo. Operação digna do Dr. Moreau: horrível e esplêndida. A mão, o seio, o ventre, o pênis e a vagina, a coxa, a perna e o pé serão rostificados. O fetichismo, a erotomania, etc, são inseparáveis desses processos de rostificação. Não se trata absolutamente de tomar uma parte do corpo para fazê-la assemelhar-se a um rosto, ou representar um rosto de sonho como em uma nuvem. Nenhum antropomorfismo. A rostificação não opera por semelhança, mas por ordem de razões. É uma operação muito mais inconsciente e maquínica que faz passar todo o corpo pela superfície esburacada, e onde o rosto não tem o papel de modelo ou de imagem, mas o de sobrecodificação para todas as partes descodificadas. Tudo permanece sexual, nenhuma sublimação, mas novas coordenadas. E precisamente porque o rosto depende de uma máquina abstrata que ele não se contentará em recobrir a cabeça, mas afetará as outras partes do corpo, e mesmo, se necessário, outros objetos sem semelhança. Consequentemente, a questão é a de saber em que circunstâncias essa máquina é desencadeada, produzindo rosto e rostificação. Se a cabeça, mesmo humana, não é obrigatoriamente rosto, o rosto é produzido na humanidade, mas por uma necessidade que não é a dos homens “em geral”. O rosto não é animal, mas tampouco é humano em geral, há mesmo algo de absolutamente inumano no rosto. É um erro agir como se o rosto só se tornasse humano a partir de um determinado limiar: close, aumento exagerado, expressão insólita, etc. O rosto é inumano no homem, desde o início; ele é por natureza close, com suas superfícies brancas inanimadas, seus buracos negros brilhantes, seu vazio e seu tédio. Rosto-bunker. A tal ponto que, se o homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, tornarse clandestino, não por um retorno à animalidade, nem mesmo pelos retornos à cabeça, mas por devires-animais muito espirituais e muito especiais, por estranhos devires que certamente ultrapassarão o muro e sairão dos buracos negros, que farão com que os próprios traços de rostidade se subtraiam enfim à organização do rosto, não se deixem mais subsumir pelo rosto, sardas que escoam no horizonte, cabelos levados pelo vento, olhos que atravessamos ao invés de nos vermos neles, ou ao invés de olhá-los no morno face a face das subjetividades significantes. “Eu não olho mais nos olhos da mulher que tenho em meus braços, mas os

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atravesso nadando, cabeça, braços e pernas por inteiro, e vejo que por detrás das órbitas desses olhos se estende um mundo inexplorado, mundo de coisas futuras, e desse mundo toda lógica está ausente. (...). Quebrei o muro (...)., meus olhos não me servem para nada, pois só me remetem à imagem do conhecido. Meu corpo inteiro deve se tornar raio perpétuo de luz, movendo-se a uma velocidade sempre maior, sem descanso, sem volta, sem fraqueza. (...). Selo então meus ouvidos, meus olhos, meus lábios”4. CsO. Sim, o rosto tem um grande porvir, com a condição de ser destruído, desfeito. A caminho do assignificante, do assubjetivo. Mas ainda não explicamos nada do que sentimos. Do sistema corpo-cabeça ao sistema rosto, não há evolução, não há estados genéticos. Nem posições fenomenológicas. Nem integrações de objetos parciais, com organizações estruturais ou estruturantes. Tampouco remissão a um sujeito que já estaria presente, ou seria conduzido a sê-lo, sem passar por essa máquina própria de rostidade. Na literatura do rosto, o texto de Sartre acerca do olhar e o de Lacan acerca do espelho erram ao remeter a uma forma de subjetividade, de humanidade refletida em um campo fenomenológico, ou clivado em um campo estrutural. Mas o olhar é apenas segundo em relação aos olhos sem olhar, ao buraco negro da rostidade. O espelho é apenas segundo em relação ao muro branco da rostidade. Tampouco falaremos de eixo genético, nem de integração de objetos parciais. O pensamento dos estágios na ontogênese é um pensamento de arbítrio: acreditamos que o mais rápido é primeiro, podendo servir de base ou de trampolim ao que se segue. Quanto aos objetos parciais, é um pensamento ainda pior o de um experimentador demente que decepa, corta, anatomiza em todos os sentidos, podendo costurar novamente de qualquer jeito. Pode-se fazer uma lista qualquer de objetos parciais: a mão, o seio, a boca, os olhos... Não se sai de Frankenstein. Não temos que considerar órgãos sem corpo, corpo despedaçado, mas primeiramente um corpo sem órgãos, animado por diferentes movimentos intensivos que determinarão a natureza e o lugar dos órgãos em questão, que farão desse corpo um organismo, ou mesmo um sistema de estratos do qual o organismo não é senão uma parte. De súbito, o movimento mais lento não é o menos intenso, nem o último a se produzir ou a ocorrer. E o mais rápido pode já convergir para ele, se conectar com ele, no desequilíbrio de um desenvolvimento dissincrônico de estratos entretanto simultâneos, de velocidades diferentes, sem sucessão de estágios. O corpo não é questão de objetos parciais, mas de velocidades diferenciais.

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Henry Miller, Tropique du Capricorne, ed. du Chêne, p. 177-179.

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Esses movimentos são movimentos de desterritorialização. São eles que “dão” ao corpo um organismo, animal ou humano. Por exemplo, a mão apreensora implica uma desterritorialização relativa não apenas da pata anterior, mas da mão locomotora. Ela mesma possui um correlato, que é o objeto de uso ou ferramenta: o bastão como galho desterritorializado. O seio da mulher em postura vertical indica uma desterritorialização da glândula mamaria animal; a boca da criança, dotada de lábios por arregaçamento da mucosa para o exterior, marca uma desterritorialização da goela ou da boca animais. E lábios-seios, cada um serve de correlato ao outro5. A cabeça humana implica uma desterritorialização em relação ao animal, ao mesmo tempo em que tem por correlato a organização de um mundo como meio ele mesmo desterritorializado (a estepe é o primeiro “mundo” em oposição ao meio florestal). Mas o rosto representa, por sua vez, uma desterritorialização muito mais intensa, mesmo que mais lenta. Poder-se-ia dizer que é uma desterritorialização absoluta: deixa de ser relativa, porque faz sair a cabeça do estrato de organismo — humano não menos que animal — para conectá-la a outros estratos como os de significância ou de subjetivação. Ora, o rosto possui um correlato de uma grande importância, a paisagem, que não é somente um meio mas um mundo desterritorializado. Múltiplas são as correlações rosto-paisagem, nesse nível “superior”. A educação cristã exerce ao mesmo tempo o controle espiritual da rostidade e da paisageidade: componham tanto uns como os outros, coloram-nos, completem-nos, arrangem-nos, em uma complementaridade em que paisagens e rostos se repercurtem6. Os manuais de rosto e de paisagem formam uma pedagogia, severa disciplina, e que inspira as artes assim como estas a inspiram. A arquitetura situa seus conjuntos, casas, vilarejos ou

Klaatsch, “L’évolution du genre humain”, in L’Univers et l’humanité, por Kreomer, t. II: “É em vão que tentamos encontrar um traço de contorno vermelho dos lábios nos jovens chimpanzés vivos que, no mais, assemelham-se tanto ao homem. (...). Como seria o rosto mais gracioso de uma jovem se a boca aparecesse como uma risca entre duas bordas brancas? (...). Por outro lado, a região peitoral no antropóide apresenta os dois mamilos das glândulas mamárias, mas jamais se formam aí as bolsas de gordura comparáveis aos seios”. E a fórmula de Emile Devaux, L’espèce, 1’instinct, 1’homme, ed. Le François, p. 264: “Foi a criança que fez o seio da mulher e foi a mãe que fez os lábios da criança”. 5

Os exercícios de rosto desempenham um papel essencial nos princípios pedagógicos de J.-B. de la Salle. Mas já Inácio de Loyola havia acrescentado a seu ensino exercícios de paisagem ou “composições de lugar”, referentes à vida de Cristo, ao inferno, ao mundo, etc: trata-se, como diz Barthes, de imagens esqueléticas subordinadas a uma linguagem, mas também de esquemas ativos a serem completados, coloridos, tais como serão encontrados nos catecismos e manuais religiosos. 6

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cidades, monumentos ou fábricas, que funcionam como rostos, em uma paisagem que ela transforma. A pintura retoma o mesmo movimento, mas o inverte também, colocando uma paisagem em função do rosto, tratando de um como do outro: “tratado do rosto e da paisagem”. O close de cinema trata, antes de tudo, o rosto como uma paisagem, ele se define assim: buraco negro e muro branco, tela e câmera. Mas já as outras artes, a arquitetura, a pintura, até o romance: close que os anima inventando todas as correlações. E sua mãe é uma paisagem ou um rosto? Um rosto ou uma fábrica? (Godard). Não há rosto que não envolva uma paisagem desconhecida, inexplorada, não há paisagem que não se povoe de um rosto amado ou sonhado, que não desenvolva um rosto por vir ou já passado. Que rosto não evocou as paisagens que amalgamava, o mar e a montanha, que paisagem não evocou o rosto que a teria completado, que lhe teria fornecido o complemento inesperado de suas linhas e de seus traços? Mesmo quando a pintura se torna abstrata, ela não faz senão reencontrar o buraco negro e o muro branco, a grande composição da tela branca e da fenda negra. Dilaceramento mas também estiramento da tela por eixo de fuga, ponto de fuga, diagonal, golpes de faca, fenda ou buraco: a máquina já está aí, funciona sempre, produzindo rostos e paisagens, mesmo as mais abstratas. Ticiano começava pintando preto e branco, não para formar contornos para serem preenchidos, mas como matriz de cada cor por vir. O romance — Perceval viu um vôo de gansos selvagens que a neve havia ofuscado. (...). O falcão encontrou um deles, abandonado, desse bando. Atingiu-o, chocou-se contra ele com tanta força que o derrubou. (...). E Perceval vê a seus pés a neve em que o ganso se colocara e o sangue ainda aparente. E ele se apoia em sua lança a fim de contemplar a visão do sangue e da neve juntos. Essa cor fresca lhe parece a do rosto de sua amiga. Ele esquece tudo enquanto pensa nela, pois fora exatamente assim que havia visto, no rosto de sua amada, o vermelho colocado sobre o branco como as três gotas de sangue sobre a neve surgiam. (...). Vimos um cavaleiro que dorme sentado sobre sua montaria. Está tudo aí: a redundância própria ao rosto e à paisagem, o muro branco de neve da paisagem-rosto, o buraco negro do falcão ou das três gotas distribuídas sobre o muro; ou antes, ao mesmo tempo, a linha prateada da paisagem-rosto que escoa em direção ao buraco negro do cavaleiro, profunda catatonia. E será que, em determinadas circunstâncias, o cavaleiro não poderá levar o movimento cada vez para mais longe, atravessando o buraco negro, furando o muro branco, desfazendo o rosto, mesmo se a tentativa fracassa7? Nada disso marca absolutamente

Chrétien de Troyes, Perceval ou le roman du Graal, Gallimard, Folio, p. 110-111. No romance de Malcolm Lowry, Ultramarine (Denoèl, p. 182-196), encontra-se uma cena semelhante, dominada pela “maquinaria” do barco: uma pomba se afoga na água infestada de tubarões, “folha vermelha caída em uma torrente branca” e que evocará irresistivelmente um rosto sangrento. A cena de Lowry é envolta em elementos tão diferentes, organizada tão especialmente, que não há qualquer influência, mas apenas encontro com a cena de Chrétien de Troyes. Isto é mais uma confirmação de uma verdadeira máquina abstrata buraco negro ou mancha vermelha-muro branco (neve ou água). 7

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o fim do gênero romanesco, mas nele está presente desde o início, como parte essencial. É falso ver em Dom Quixote o fim do romance de cavalaria, invocando as alucinações, os lapsos, os estados hipnóticos ou catalépticos do herói. É falso ver nos romances de Beckett o fim do romance em geral, invocando seus buracos negros, a linha de desterritorialização dos personagens, os passeios esquizofrênicos de Molloy ou do Inominável, sua perda de nome, de memória ou de projeto. Há uma evolução do romance, mas ela certamente não se situa aí. O romance não parou de se definir pela aventura de personagens perdidos, que não sabem mais seu nome, o que procuram ou o que fazem, amnésicos, atáxicos, catatônicos. São eles que fazem a diferença entre o gênero romanesco e os gêneros dramáticos ou épicos (quando o herói épico ou dramático é tomado de loucura, de esquecimento, etc... ele o é de uma maneira completamente diferente). La princesse de Clèves é um romance exatamente pela razão que pareceu paradoxal aos contemporâneos: os estados de ausência ou de “repouso”, as sonolências que se apossam dos personagens. Há sempre uma educação cristã no romance. Molloy é o início do gênero romanesco. Quando o romance começa, por exemplo com Chrétien de Troyes, começa pelo personagem essencial que o acompanhará em todo seu curso: o cavaleiro do romance cortês passa seu tempo esquecendo seu nome, o que faz, o que lhe dizem, não sabe para onde vai nem com quem fala, não para de traçar uma linha de desterritorialização absoluta, mas também de nela perder seu caminho, de se deter e de cair em buracos negros. “Ele anseia por cavalaria e aventura”. Em qualquer página de Chrétien de Troyes, encontra-se um cavaleiro catatônico sentado em seu cavalo, apoiado em sua lança, que espera, que vê na paisagem o rosto de sua bela, e que deve ser golpeado para que responda. Lancelot, diante do rosto branco da rainha, não sente seu cavalo entrar no rio; ou ele sobe em uma carroça que passa, só que é a carroça da infâmia. Há um conjunto rosto-paisagem que pertence ao romance, e no qual ora os buracos negros se distribuem sobre um muro branco, ora a linha branca do horizonte escoa em direção a um buraco negro, e os dois ao mesmo tempo.

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Teoremas de desterritorialização ou proposições maquínicas 1º teorema: Jamais nos desterritorializamos sozinhos, mas no mínimo com dois termos: mão-objeto de uso, boca-seio, rosto-paisagem. E cada um dos dois termos se reterritorializa sobre o outro. De forma que não se deve confundir a reterritorialização com o retorno a uma territorialidade primitiva ou mais antiga: ela implica necessariamente um conjunto de artifícios pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade nova ao outro que também perdeu a sua. Daí todo um sistema de reterritorializações horizontais e complementares, entre a mão e a ferramenta, a boca e o seio, o rosto e a paisagem. 2° teorema: De dois elementos ou movimentos de desterritorialização, o mais rápido não é forçosamente o mais intenso ou o mais desterritorializado. A intensidade de desterritorialização não deve ser confundida com a velocidade de movimento ou de desenvolvimento. De forma que o mais rápido conecta sua intensidade com a intensidade do mais lento, a qual, enquanto intensidade, não o sucede, mas trabalha simultaneamente sobre um outro estrato ou sobre um outro plano. É assim que a relação seio-boca já se guia por um plano de rostidade. 3° teorema: Pode-se mesmo concluir daí que o menos desterritorializado se reterritorializa sobre o mais desterritorializado. Surge aqui um segundo sistema de reterritorializações, vertical, de baixo para cima. E nesse sentido que não apenas a boca, mas o seio, a mão, o corpo inteiro, a própria ferramenta, são “rostificados”. Em regra geral, as desterritorializações relativas (transcodificação) se reterritorializam sobre uma desterritorialização absoluta em determinado aspecto (sobrecodificação). Ora, vimos que a desterritorialização da cabeça em rosto era absoluta, ainda que permanecesse negativa, visto que passava de um estrato a outro, do estrato de organismo aos de significância ou de subjetivação. A mão, o seio se reterritorializam sobre o rosto, na paisagem: eles são rostificados ao mesmo tempo que paisageificados. Mesmo um objeto de uso será rostificado: sobre uma casa, um utensílio ou um objeto, sobre uma roupa, etc, dir-se-á que eles me olham, não porque se assemelhem a um rosto, mas porque estão presos ao processo muro branco-buraco negro, porque se conectam à máquina abstrata de rostificação. O close do cinema refere-se tanto a uma faca, a uma xícara, a um relógio, a uma chaleira quanto a um rosto ou a um elemento de rosto; por exemplo, com Griffith, a chaleira que me olha. Não é lícito então dizer que há closes de romance, como quando Dickens escreve a primeira frase do Grilon du foyer: “Foi a chaleira que

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começou...”8, e, na pintura, quando uma natureza morta se torna de dentro um rostopaisagem, ou quando um utensílio, uma xícara sobre a toalha, um bule, são rostificados, em Bonnard, Vuillard? 4º teorema: A máquina abstrata não se efetua então apenas nos rostos que produz, mas, em diversos graus, nas partes do corpo, nas roupas, nos objetos que ela rostifica segundo uma ordem das razões (não uma organização de semelhança). A questão, contudo, permanece: quando é que a máquina abstrata de rostidade entra em jogo? Quando é desencadeada? Tomemos exemplos simples: o poder maternal que passa pelo rosto durante o próprio aleitamento; o poder passional que passa pelo rosto do amado, mesmo nas carícias; o poder político que passa pelo rosto do chefe, bandeirolas, ícones e fotos, e mesmo nas ações da massa; o poder do cinema que passa pelo rosto da estrela e o close, o poder da televisão... O rosto não age aqui como individual, é a individuação que resulta da necessidade de que haja rosto. O que conta não é a individualidade do rosto, mas a eficácia da cifração que ele permite operar, e em quais casos. Não é questão de ideologia, mas de economia e de organização de poder. Não dizemos certamente que o rosto, a potência do rosto, engendra o poder e o explica. Em contrapartida, determinados agenciamentos de poder têm necessidade de produção de rosto, outros não. Se consideramos as sociedades primitivas, poucas coisas passam pelo rosto: sua semiótica é não-significante, não-subjetiva, essencialmente coletiva, polívoca e corporal, apresentando formas e substâncias de expressão bastante diversas. A polivocidade passa pelos corpos, seus volumes, suas cavidades internas, suas conexões e coordenadas exteriores variáveis (territorialidades). Um fragmento de semiótica manual, uma sequência manual, se coordena sem subordinação nem unificação a uma sequência oral, ou cutânea, ou rítmica, etc. Lizot mostra, por exemplo, como “a dissociação do dever, do rito e da vida cotidiana é quase perfeita (...)., estranha, inconcebível a nossos espíritos”: em um

Eisenstein, Film Form, Meridien Books, p. 194-199: “Foi a chaleira que começou... A primeira frase de Dickens em Le grilon du foyer. O que poderia haver de mais distante dos filmes? Porém, por mais estranho que pareça, o cinema também se pôs a ferver nessa chaleira. (...). A partir do momento em que reconhece-mos aí um close típico, exclamamos: É puro Griffith, evidentemente... Essa chaleira é um close tipicamente griffitiano. Um close saturado dessa atmosfera à Dickens com a qual Griffth, com igual maestria, pôde cercar a figura austera da vida em Loin à Vest, e a figura moral congelada dos personagens, que impelia a culpada Ana sobre a superfície móvel de um bloco de gelo que bascula” (encontrase aqui o muro branco). 8

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comportamento de luto alguns dizem gracejos obscenos enquanto outros choram; ou um indiano para bruscamente de chorar para consertar sua flauta; ou todo mundo dorme 9. O mesmo ocorre com o incesto, não há proibição do incesto, há sequências incestuosas que se conectam com sequências de proibição de acordo com determinadas coordenadas. As pinturas, as tatuagens, as marcas na pele consagram a multidimensionalidade dos corpos. Mesmo as máscaras asseguram a pertença da cabeça ao corpo mais do que enaltecem um rosto. Não há dúvida de que profundos movimentos de desterritorialização se operam, agitando as coordenadas do corpo e delineando agenciamentos particulares de poder; entretanto, colocam o corpo em conexão não com a rostidade, mas com devires animais, especialmente com o auxílio de drogas. Sem dúvida não existe menos espiritualidade: pois os devires-animais referem-se a um Espírito animal, espírito-jaguar, espírito-pássaro, espírito-ocelote, espírito-tucano, que se apoderam do interior do corpo, entram em suas cavidades, preenchem os volumes, ao invés de lhe criar um rosto. Os casos de possessão expressam uma relação direta das Vozes com o corpo, não com o rosto. As organizações de poder do xamã, do guerreiro, do caçador, frágeis e precárias, são ainda mais espirituais porque passam pela corporeidade, pela animalidade, pela vegetabilidade. Quando dissemos que a cabeça humana pertencia ainda ao estrato de organismo, evidentemente não recusávamos a existência de uma cultura e de uma sociedade; dizíamos apenas que os códigos dessas culturas e dessas sociedades se referem aos corpos, à pertença das cabeças aos corpos, à aptidão do sistema corpo-cabeça para devir-, para receber almas, recebê-las como amigas e repelir as almas inimigas. Os “primitivos” podem ter as cabeças mais humanas, as mais belas e mais espirituais; eles não têm rosto e não precisam dele. A razão disso é simples. O rosto não é um universal, nem mesmo o do homem branco; é o próprio Homem branco, com suas grandes bochechas e o buraco negro dos olhos. O rosto é o Cristo. O rosto é o europeu típico, é o que Ezra Pound denominava o homem sensual qualquer, em suma o Erotômano ordinário (os psiquiatras do século XIX tinham razão em dizer que a erotomania, diferentemente da ninfomania, permanecia frequentemente pura e casta; é porque ela passa pelo rosto e pela rostificação). Não é universal, mas fades totius universi. Jesus superstar: ele inventa a rostificação de todo o corpo ea

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Jacques Lizot, Le cercle des feux, ed. du Seuil, p. 34 sq.

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transmite por toda a parte (a Paixão de Joana d'Arc, em close). O rosto é assim uma ideia completamente particular em sua natureza, o que não o impede de ter adquirido e de exercer uma função mais geral. É uma função de bi-univocização, de binarização. Existem aí dois aspectos: a máquina abstrata de rostidade, tal como é composta por buraco negromuro branco, funciona de duas maneiras: uma concerne às unidades ou elementos, a outra às escolhas. De acordo com o primeiro aspecto, o buraco negro age como um computador central, Cristo, terceiro olho, que se desloca no muro ou na tela branca como superfície geral de referência. Qualquer que seja o conteúdo que se lhe atribua, a máquina procederá à constituição de uma unidade de rosto, de um rosto elementar em correlação biunívoca com um outro: é um homem ou uma mulher, um rico ou um pobre, um adulto ou uma criança, um chefe ou um subalterno, “um x ou um y”. O deslocamento do buraco negro na tela, o percurso do terceiro olho na superfície de referência constitui tanto dicotomias e arborescências como máquinas com quatro olhos que são rostos elementares ligados dois a dois. Rosto de professora e de aluno, de pai e de filho, de operário e de patrão, de policial e de cidadão, de acusado e de juiz (“o juiz tinha um ar severo, seus olhos não possuíam horizonte...”): os rostos concretos individuados se produzem e se transformam em torno dessas unidades, dessas combinações de unidades, como esse rosto de uma criança rica no qual já se discerne a vocação militar, a nuca de um aluno da escola militar de Saint-Cyr. Introduzimo-nos em um rosto mais do que possuímos um. De acordo com o outro aspecto, a máquina abstrata de rostidade assume um papel de resposta seletiva ou de escolha: dado um rosto concreto, a máquina julga se ele passa ou não passa, se vai ou não vai, segundo as unidades de rostos elementares. A correlação binária dessa vez é do tipo “sim-não”. O olho vazio do buraco negro absorve ou rejeita, como um déspota parcialmente corrompido faz ainda um sinal de aquiescência ou de recusa. Um certo rosto de professora é percorrido por tiques e se cobre de uma ansiedade que faz com que chegue ao ponto de “não dá mais!”. Um acusado, um subalterno apresentam uma submissão tão afetada que se torna insolência. Ou antes: muito polida para ser honesta. Tal rosto não é nem o de um homem nem o de uma mulher. Ou ainda não é nem um pobre nem um rico, será um desclassificado que perdeu sua fortuna? A cada instante, a máquina rejeita rostos não-conformes ou com ares suspeitos. Mas somente em certo nível de escolha. Pois será necessário produzir sucessivamente desvios padrão de desviança para tudo aquilo que escapa às correlações biunívocas, e instaurar relações binárias entre o que é aceito em uma primeira escolha e o que não é tolerado em uma segunda, em uma terceira, etc. O muro branco não para de crescer,

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ao mesmo tempo que o buraco negro funciona várias vezes. A professora ficou louca; mas a loucura é um rosto conforme de enésima escolha (entretanto, não o último, visto que existem ainda rostos de loucos não-conformes à loucura tal como supomos que ela deva ser). Ah, não é nem um homem nem uma mulher, é um travesti: a relação binária se estabelece entre o “não” de primeira categoria e um “sim” de categoria seguinte que tanto pode marcar uma tolerância sob certas condições quanto indicar um inimigo que é necessário abater a qualquer preço. De qualquer modo, você foi reconhecido, a máquina abstrata inscreveu você no conjunto de seu quadriculado. Compreende-se que, em seu novo papel de detector de desvianças, a máquina de rostidade não se contenta com casos individuais, mas procede de modo tão geral quanto em seu primeiro papel de ordenação de normalidades. Se o rosto é o Cristo, quer dizer o Homem branco médio qualquer, as primeiras desvianças, os primeiros desvios padrão são raciais: o homem amarelo, o homem negro, homens de segunda ou terceira categoria. Eles também serão inscritos no muro, distribuídos pelo buraco. Devem ser cristianizados, isto é, rostificados. O racismo europeu como pretensão do homem branco nunca procedeu por exclusão nem atribuição de alguém designado como Outro: seria antes nas sociedades primitivas que se apreenderia o estrangeiro como um “outro”10. O racismo procede por determinação das variações de desvianças, em função do rosto Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez mais excêntricas e retardadas os traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determinado lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora para apagá-los no muro que jamais suporta a alteridade (é um judeu, é um árabe, é um negro, é um louco..., etc). Do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem. A cisão não passa mais entre um dentro e um fora, mas no interior das cadeias significantes simultâneas e das escolhas subjetivas sucessivas. O racismo jamais detecta as partículas do outro, ele propaga as ondas do mesmo até à extinção daquilo que não se deixa identificar (ou que só se deixa identificar a partir de tal ou qual desvio). Sua crueldade só se iguala a sua incompetência ou a sua ingenuidade. De uma maneira mais alegre, a pintura utilizou-se de todos os recursos do Cristorosto. Serviu-se da máquina abstrata de rostidade,

Sobre a apreensão do estrangeiro como Outro, cf. Haudricourt, “L’origine des clones et des clans”, in L’Homme, janeiro 1964, p. 98-102. E Jaulin, Cens du soi, gens de 1’autre, 10-18 (prefácio, p. 20). 10

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muro branco-buraco negro, em todos os sentidos para produzir com o rosto do Cristo todas as unidades de rosto, mas também todas as variações de desviança. Há um júbilo da pintura a esse respeito, da Idade Média ao Renascimento, como uma liberdade desenfreada. Não apenas o Cristo preside à rostificação de todo o corpo (seu próprio corpo), à paisagificação de todos os meios (seus próprios meios), mas compõe todos os rostos elementares, e dispõe de todos os desvios: Cristo-atleta de mercado, Cristo-maneirista pederasta, Cristo-negro, ou pelo menos Virgem negra à margem do muro. As maiores loucuras aparecem na tela, através do código católico. Um único exemplo dentre tantos outros: sobre o fundo branco de paisagem, e buraco azul-escuro do céu, o Cristo crucificado, tornado máquina pipa, envia, por meio de raios, estigmas a São Francisco; os estigmas operam a rostificação do corpo do santo, à imagem do de Cristo; mas igualmente os raios que trazem os estigmas ao santo são os fios pelos quais este movimenta a pipa divina. É sob o signo da cruz que se soube triturar o rosto em todos os sentidos, bem como os processos de rostificação. A teoria da informação apresenta um conjunto homogêneo de mensagens significantes totalmente prontas que já são tomadas como elementos em correlações biunívocas, ou cujos elementos são organizados de uma mensagem a outra de acordo com essas correlações. Em segundo lugar, a tiragem de uma combinação depende de um certo número de escolhas binárias subjetivas que aumentam proporcionalmente ao número de elementos. Mas a questão é: toda essa bi-univocização, toda essa binarização (que não depende apenas, como se diz, de uma maior facilidade para o cálculo) já supõem a apresentação de um muro ou de uma tela, a instalação de um buraco central ordenador, sem os quais nenhuma mensagem seria discernível, nenhuma escolha efetuável. É preciso que o sistema buraco negro-muro branco quadricule todo o espaço, delineie suas arborescências ou suas dicotomias, para que o significante e a subjetividade possam apenas tornar concebível a possibilidade das suas. A semiótica mista de significância e de subjetivação necessita singularmente ser protegida contra qualquer intrusão de fora. É preciso mesmo que não haja mais exterior: nenhuma máquina nômade, nenhuma polivocidade primitiva deve surgir, com suas combinações de substâncias de expressão heterogêneas. É preciso uma única substância de expressão como condição de qualquer traduzibilidade. Só se podem constituir cadeias significantes procedendo por elementos discretos, digitalizados, desterritorializados, com a condição de dispor de uma tela semiológica, de um muro que os proteja. Só se podem operar escolhas subjetivas entre duas cadeias ou a cada ponto de uma cadeia, com a condição de que nenhuma tempestade

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exterior arraste as cadeias e os sujeitos. Só se pode formar uma trama de subjetividades se se possui um olho central, buraco negro que capturaria tudo o que excedesse, tudo o que transformasse os afetos atribuídos não menos do que as significações dominantes. Além disso, é absurdo acreditar que a linguagem enquanto tal possa veicular uma mensagem. Uma língua está sempre presa a rostos que anunciam os enunciados dela, que os lastream em relação aos significantes em curso e aos sujeitos concernidos. É pelos rostos que as escolhas se guiam e que os elementos se organizam: a gramática comum nunca é separável de uma educação dos rostos. O rosto é um verdadeiro porta-voz. Não é portanto apenas a máquina abstrata de rostidade que deve fornecer uma tela protetora e um buraco negro ordenador, são os rostos que ela produz que traçam todos os tipos de arborescências e de dicotomias, sem as quais o significante e o subjetivo não poderiam fazer funcionar aquelas que retornam a eles na linguagem. E sem dúvida as binariedades e biunivocidades de rosto não são as mesmas que as da linguagem, de seus elementos e de seus sujeitos. Elas não se parecem absolutamente. Mas as primeiras sustentam as segundas. Na verdade, traduzindo conteúdos formais quaisquer em uma única substância de expressão, a máquina de rostidade já os submete à forma exclusiva de expressão significante e subjetiva. Ela procede ao quadriculamento prévio que torna possível discernir elementos significantes e efetuar escolhas subjetivas. A máquina de rostidade não é um anexo do significante e do sujeito, ela lhes é, antes, conexa e condicionante: as biunivocidades, as binariedades de rosto duplicam as outras, as redundâncias de rosto fazem redundância com as redundâncias significantes e subjetivas. Exatamente porque o rosto depende de uma máquina abstrata, ele não supõe um sujeito nem um significante que já estejam presentes; mas ele lhes é conexo, e lhes dá a substância necessária. Não é um sujeito que escolhe os rostos, como no teste de Szondi, são os rostos que escolhem seus sujeitos. Não é um significante que interpreta a figura mancha negra-buraco branco, ou página branca-buraco negro, como no teste de Rorschach, é essa figura que programa os significantes. Aproximamo-nos da questão: o que desencadeia a máquina abstrata de rostidade, já que ela não se exerce sempre, nem em quaisquer formações sociais? Determinadas formações sociais têm necessidade de rosto, e também de paisagem11.

Maurice Ronai mostra como a paisagem, tanto em sua realidade quanto em sua noção, remete a uma semiótica e a aparelhos de poder muito particulares: a geografia encontra aí uma de suas fontes, mas também um princípio de sua dependência política (a paisagem como “rosto da pátria ou da nação”). Cf. “Paysages”, in Herodote n” 1, janeiro 1976. 11

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É toda uma história. Produziu-se, em datas bastante diversas, um desmoronamento generalizado de todas as semióticas primitivas, polívocas, heterogêneas, jogando com substâncias e formas de expressão bastante diversas, em proveito de uma semiótica de significância e de subjetivação. Quaisquer que sejam as diferenças entre a significância e a subjetivação, qualquer que seja a prevalência de uma ou da outra nesse ou naquele caso, quaisquer que sejam as figuras variáveis de sua mixagem de fato, elas têm em comum exatamente o fato de esmagar qualquer polivocidade, de erigir a linguagem em forma de expressão exclusiva, de proceder por bi-univocização significante e por binarização subjetiva. A sobrelinearidade própria à linguagem deixa de ser coordenada por figuras multidimensionais: ela aplaina agora todos os volumes, subordina todas as linhas. Será um acaso o fato de a linguística encontrar sempre, e muito rapidamente, o problema da homonímia ou dos enunciados ambíguos de que tratará por um conjunto de reduções binárias? Mais geralmente, nenhuma polivocidade, nenhum traço de rizoma podem ser suportados: uma criança que corre, que brinca, que dança, que desenha não pode concentrar sua atenção na linguagem e na escrita, ela tampouco será um bom sujeito. Em suma, a nova semiótica tem necessidade de destruir sistematicamente toda a multiplicidade de semióticas primitivas, mesmo se mantém resíduos destas em redutos bem determinados. Entretanto, não são as semióticas que guerreiam entre si, apenas com suas armas. São agenciamentos de poder bastante particulares que impõem a significância e a subjetivação como sua forma de expressão determinada, em pressuposição recíproca com novos conteúdos: não há significância sem um agenciamento despótico, não há subjetivação sem um agenciamento autoritário, não há mixagem dos dois sem agenciamentos de poder que agem precisamente por significantes, e se exercem sobre almas ou sujeitos. Ora, são esses agenciamentos de poder, essas formações despóticas ou autoritárias, que dão à nova semiótica os meios de seu imperialismo, isto é, ao mesmo tempo os meios de esmagar os outros e de se proteger de qualquer ameaça vinda de fora. Trata-se de uma abolição organizada do corpo e das coordenadas corporais pelas quais passavam as semióticas polívocas ou multidimensionais. Os corpos serão disciplinados, a corporeidade será desfeita, promover-se-á a caça aos devires-animais, levar-se-á a desterritorialização a um novo limiar, já que se saltará dos estratos orgânicos aos estratos de significância e de subjetivação.

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Produzir-se-á uma única substância de expressão. Construir-se-á o sistema muro brancoburaco negro, ou antes deslanchar-se-á essa máquina abstrata que deve justamente permitir e garantir a onipotência do significante, bem como a autonomia do sujeito. Vocês serão alfinetados no muro branco, cravados no buraco negro. Essa máquina é denominada máquina de rostidade porque é produção social de rosto, porque opera uma rostificação de todo o corpo, de suas imediações e de seus objetos, uma paisagificação de todos os mundos e meios. A desterritorialização do corpo implica uma reterritorialização no rosto; a descodificação do corpo implica uma sobrecodificação pelo rosto; o desmoronamento das coordenadas corporais ou dos meios implica uma constituição de paisagem. A semiótica do significante e do subjetivo nunca passa pelos corpos. É um absurdo pretender colocar o significante em relação com o corpo. Ou, em todo caso, tal relação só pode ser feita com um corpo já inteiramente rostificado. A diferença entre, por um lado, nossos uniformes e roupas, e, por outro, as pinturas e vestimentas primitivas, consiste em que os primeiros operam uma rostificação do corpo, com o buraco negro dos botões e o muro branco do tecido. Até a máscara encontra aqui uma nova função, exatamente o contrário da precedente. Pois não há qualquer função unitária da máscara, a não ser negativa (em nenhum caso a máscara serve para dissimular, para esconder, mesmo mostrando ou revelando). Ou a máscara assegura a pertença da cabeça ao corpo, e seu deviranimal, como nas semióticas primitivas, ou, ao contrário, como agora, a máscara assegura a instituição, o realce do rosto, a rostificação da cabeça e do corpo: a máscara é então o rosto em si mesmo, a abstração ou a operação do rosto. Inumanidade do rosto. O rosto jamais supõe um significante ou um sujeito prévios. A ordem é completamente diferente: agenciamento concreto de poder despótico e autoritário —> desencadeamento da máquina abstrata de rostidade, muro branco-buraco negro —> instalação da nova semiótica de significância e de subjetivação, nessa superfície esburacada. É por isso que não cessamos de considerar dois problemas exclusivamente: a relação do rosto com a máquina abstrata que o produz; a relação do rosto com os agenciamentos de poder que necessitam dessa produção social. O rosto é uma política. Vimos anteriormente que a significância e a subjetivação eram semióticas completamente distintas de direito, com seu regime diferente (irradiação circular, linearidade segmentar), com seu aparelho de poder diferente (a escravatura generalizada despótica, o contrato-processo autoritário). E nenhuma das duas começa com o Cristo, com o Homem branco como universal cristão: existem formações despóticas de

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significância asiáticas, negras ou indígenas; o processo autoritário de subjetivação aparece mais puramente no destino do povo judeu. Mas, qualquer que seja a diferença dessas semióticas, elas não deixam de formar um misto de fato, e é mesmo no nível desse misto que fazem valer seu imperialismo, isto é, sua pretensão comum de esmagar todas as outras semióticas. Não há significância que não comporte um germe de subjetividade; não há subjetivação que não arraste restos de significante. Se o significante ricocheteia basicamente em uma parede, se a subjetividade escoa, basicamente, em direção a um buraco, é preciso dizer que o muro do significante já comporta buracos negros, e que o buraco negro da subjetividade arrebata ainda lascas de muro: o misto é então bem fundado na máquina indissociável muro branco-buraco negro, e as duas semióticas não param de se misturar por cruzamento, interseção, ramificação de uma sobre a outra, como entre “o Hebreu e o Faraó”. Só que ainda há mais, porque a natureza das misturas pode ser bastante variável. Se podemos datar a máquina de rostidade, atribuindo-lhe o ano zero do Cristo e o desenvolvimento histórico do Homem branco, é porque a mistura deixa então de ser uma interseção ou um entrecruzamento para se tornar uma penetração completa na qual cada elemento impregna o outro, como gotas de vinho vermelho escuro em uma água clara. Nossa semiótica de Homens brancos modernos, a mesma do capitalismo, alcançou esse estado de mistura no qual a significância e a subjetivação se prolongam efetivamente uma através da outra. É aí então que a rostidade, ou o sistema muro brancoburaco negro, adquire toda sua extensão. Devemos entretanto distinguir os estados de mixagem e a proporção variável dos elementos. Seja no estado cristão, mas também nos estados pré-cristãos, um elemento pode prevalecer sobre o outro, ser mais ou menos potente. Somos então levados a definir rostos-limites, que não se confundem com as unidades de rosto nem com os desvios de rosto definidos anteriormente. I. Aqui, o buraco negro está no muro branco. Não é uma unidade, já que o buraco negro não para de se deslocar no muro, e procede por binarização. Dois buracos negros, quatro buracos negros, n buracos negros se distribuem como olhos. A rostidade é sempre uma multiplicidade. A paisagem será povoada por olhos ou buracos negros, como em um quadro de Ernst, como em um desenho de Aloise ou de Wölfli. No muro branco inscrevem-se círculos que margeiam um buraco: por toda parte onde há um tal círculo pode-se colocar um olho. Pode-se mesmo propor como lei: quanto mais um buraco é margeado, mais o efeito de margem é o de aumentar a superfície na qual ele desliza, e o de dar a essa superfície uma força de captura. O caso mais puro talvez seja dado

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nos ornatos cilíndricos populares etíopes, que representam demônios: dois buracos negros sobre a superfície branca do pergaminho, ou do rosto retangular ou redondo que aí se delineia, mas esses buracos negros enxameam e se reproduzem, fazem redundância, e cada vez que se margeia um círculo secundário, constitui-se um novo buraco negro, coloca-se aí um olho12. Efeito de captura de uma superfície que mais se fecha quanto mais aumenta. É o rosto despótico significante, e sua multiplicação própria, sua proliferação, sua redundância de frequência. Multiplicação dos olhos. O déspota ou seus representantes estão por toda parte. É o rosto visto de frente, visto por um sujeito que, ele mesmo, não vê propriamente, mas, antes, é tragado pelos buracos negros. É uma figura do destino, o destino terrestre, o destino significante objetivo. O close de cinema conhece bem essa figura: close Griffith, sobre um rosto, um elemento de rosto ou um objeto rostificado que assumem então um valor temporal antecipatório (os ponteiros do relógio anunciam alguma coisa). II. Neste caso, ao contrário, o muro branco se afila, fio de prata que vai em direção ao buraco negro. Um buraco negro “aglutina” todos os buracos negros, todos os olhos, todos os rostos, ao mesmo tempo em que a paisagem é um fio que se enrola em sua extremidade final em torno do buraco. É sempre uma multiplicidade, mas é uma outra figura do destino: o destino subjetivo, passional, refletido. É o rosto, ou a paisagem marítima: ele segue a linha de separação do céu e das águas, ou da terra e das águas. Esse rosto autoritário está de perfil, e escorre para o buraco negro. Ou dois rostos face a face, mas de perfil para o observador, e cuja reunião já se encontra marcada por uma separação ilimitada. Ou os rostos que se desviam, sob a traição que os arrebata. Tristão, Isolda, Isolda, Tristão, na barca que os conduz até o buraco negro da traição e da morte. Rostidade da consciência e da paixão, redundância de ressonância ou de acoplamento. Dessa vez o close não tem mais por efeito o de aumentar uma superfície que ele encerra ao mesmo tempo, não tem mais por função um

Cf. Jacques Mercier, Rouleaux magiques éthiopiens, ed. du Seuil. E “Les peintures des rouleaux protécteurs éthiopiens”, Journal of Ethiopian Studies, XII, julho, 1974; “Étude stylistique des peintures de rouleaux protécteurs éthiopiens”, Objets et mondes, XIV, verão de 1974 (O olho vale para o rosto que vale para o corpo. (...). Nos espaços interiores são desenhadas pupilas (...). é por isso que é preciso falar de direções de sentidos mágicos à base de olhos e de rostos, sendo utilizados os motivos decorativos tradicionais tais como transeptos, quadriculados, estrelas de quatro pontas etc). O poder do Negus, com sua ascendência salomônica, com sua corte de mágicos, passava por olhos de carvão, agindo como buraco negro, anjo ou demônio. O conjunto dos estudos de J. Mercier representa uma contribuição essencial para qualquer análise das funções do rosto. 12

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Máquina simples

Com efeito de quatro

Máquina com multiplicação

olhos de contorno

Proliferação dos olhos por contorno multiplicado Rosto despótico significante terrestre

valor temporal antecipatório. Ele marca a origem de uma escala de intensidade, ou faz parte dessa escala, incita a linha que os rostos seguem, na medida também em que eles se aproximam do buraco negro como término: close Eisenstein contra close Griffith (o aumento intensivo da dor ou da cólera, no close do Encouraçado Potenkim)13. Vê-se, ainda aí, que todas as combinações são possíveis entre as duas figuras-limites do rosto. No Lulu de Pabst, o rosto despótico de Lulu decaída se conecta com a imagem da faca de pão, imagem de valor antecipatório que anuncia o assassinato; mas também

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Sobre a maneira pela qual o próprio Eisenstein distingue sua concepção do close e a de Griffith, cf. Film Form.

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o rosto autoritário de Jack o Estripador passa por toda uma escala de intensidades que o leva à faca e ao assassinato de Lulu.

Máquina celibatária

Máquina acoplada

Máquina complexa: 1) Linha de musicalidade. 2) Linha de picturalidade. 3) Linha de paisageidade. 4) Linha de rostidade. 5) Linha de consciência. 6) Linha de paixão. Etc. Rosto autoritário subjetivo marinho (segundo Tristão e Isolda)

Mais geralmente, serão observadas características comuns às duas figuras-limites. Por um lado, por mais que o muro branco, as grandes bochechas brancas sejam o elemento substancial do significante, e o buraco negro, os olhos, sejam o elemento refletido da subjetividade, eles estão sempre juntos, mas sob os dois modos nos quais ora os buracos negros se repartem e se multiplicam no muro branco, ora, ao contrário, o muro, reduzido à sua crista ou ao seu fio de horizonte, se precipita em direção a um buraco negro que os aglutina todos. Não há muro sem buracos negros, não há buraco sem muro branco. Por outro lado, tanto em um caso quanto no outro, o buraco negro é essencialmente margeado, e mesmo sobremargeado; tendo o contorno, como efeito, seja o de aumentar a superfície do muro, seja o de tornar mais intensa a linha; e o buraco negro jamais está nos olhos (pupila), está sempre no interior da borda, e os olhos estão sempre no interior do buraco: olhos mortos, que veem ainda melhor quando estão dentro do buraco negro14. Essas características comuns não impedem

Esse é um tema corrente do romance de terror e da ficção científica: os olhos estão no buraco negro e não o inverso (“vejo um disco luminoso emergir desse buraco negro, como se fossem olhos”). As estórias em quadrinho, por exemplo 14

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a diferença-limite das duas figuras de rosto, e as proporções segundo as quais ora uma, ora a outra, predominam na semiótica mista — o rosto despótico significante terrestre, o rosto autoritário passional e subjetivo marítimo (o deserto pode ser também mar da terra). Duas figuras do destino, dois estados da máquina de rostidade. Jean Paris apresentou o exercício desses polos na pintura, do Cristo despótico ao Cristo passional: por um lado o rosto do Cristo visto de frente, como em um mosaico bizantino, com o buraco negro dos olhos sobre fundo de ouro, sendo toda a profundidade projetada para a frente; por outro lado, os rostos que se cruzam e se desviam, de três quartos ou de perfil, como em uma tela do Quattrocento, com olhares oblíquos traçando linhas múltiplas, integrando a profundidade no próprio quadro (podem-se tomar exemplos arbitrários de transição e de mixagem: a Convocação dos apóstolos, de Duccio, em paisagem aquática, onde a segunda fórmula já conduz o Cristo e o primeiro pescador, ao passo que o segundo pescador permanece preso ao código bizantino15). Um amor de Swann: Proust soube fazer ressoar rosto, paisagem, pintura, música etc. Três momentos na história Swann-Odette. Antes de tudo, todo um dispositivo significante se estabelece. Rosto de Odette com grandes bochechas brancas ou amareladas, e olhos como buracos negros. Mas esse próprio rosto não para de remeter a outras coisas, igualmente dispostas no muro. Eis aí o esteticismo, o amadorismo de Swann: é preciso, sempre, que alguma coisa o lembre de outra coisa, em uma rede de interpretações sob o signo do significante. Um rosto remete a uma paisagem. Um rosto deve “lembrá-lo” de um quadro, de um fragmento de quadro. Uma música deve deixar escapar uma pequena frase que se conecta com o rosto de Odette, a ponto de a pequena frase não ser mais do que um sinal. O muro branco se povoa, os buracos negros se dispõem. Todo esse dispositivo de significância, em uma remissão de interpretações, prepara o segundo momento, subjetivo passional, no qual o ciúme, a querelência, a erotomania de Swann irão se desenvolver. Eis então que o rosto de Odette percorre uma linha que se precipita em direção a um único buraco negro: o da Paixão de Swann. Também as outras linhas, de paisageidade, de

Circus n.º 2, apresentam um buraco negro povoado de rostos e de olhos e a travessia desse buraco negro. Sobre a relação dos olhos com os buracos e os muros, cf. os textos e desenhos de J.L. Parant, especialmente Les yeux MMDVI, Bourgois. Cf. As análises de Jean Paris, L’espace et le regará, ed. du Seuil, I, cap. I (igualmente, a evolução da Virgem e a variação das relações de seu rosto com o do menino Jesus: II, cap. II). 15

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picturalidade, de musicalidade se precipitam em direção a esse buraco catatônico e se enrolam em torno dele, para margeá-lo por diversas vezes. Mas, terceiro momento, no fim de sua longa paixão, Swann vai a uma recepção na qual vê primeiramente o rosto dos empregados e dos convidados se desfazer em traços estéticos autônomos: como se a linha de picturalidade reencontrasse uma independência, ao mesmo tempo para além do muro e fora do buraco negro. Em seguida, é a pequena frase de Vinteuil que reencontra sua transcendência e reata com uma linha de musicalidade ainda mais intensa, a-significante, a-subjetiva. E Swann sabe que ele não ama mais Odette, e sobretudo que Odette não o amará jamais. — Seria necessária essa salvação pela arte, já que Swann, não mais do que Proust, não será salvo? Seria necessária essa maneira de atravessar o muro ou de sair do buraco, renunciando ao amor? Será que esse amor não estava corrompido desde o início, feito de significância e de ciúme? Seria outra coisa possível, considerando-se a medíocre Odette e Swann esteta? A madalena, de certo modo, é a mesma história. O narrador mastiga lentamente sua madalena: redundância, buraco negro da recordação involuntária. Como ele sairá de lá? Antes de tudo, é algo de que se deve sair, de que se deve escapar. Proust bem o sabe, ainda que seus comentadores não o saibam mais. Mas ele sairá daí através da arte, somente pela arte. Como sair do buraco negro? Como atravessar o muro? Como desfazer o rosto? Qualquer que seja a genialidade do romance francês, essa não é a sua tarefa. Ele está por demais ocupado em medir o muro, ou mesmo em construí-lo, em sondar os buracos negros, em compor os rostos. O romance francês é profundamente pessimista, idealista, “crítico da vida mais do que criador de vida”. Ele coloca seus personagens no buraco, os faz ricochetear no muro. Só concebe viagens organizadas e salvação apenas através da arte. É ainda uma salvação católica, isto é, através da eternidade. Ele passa seu tempo fazendo o ponto, ao invés de traçar linhas, linhas de fuga ativa ou de desterritorialização positiva. O romance anglo-americano é completamente diferente. “Partir, partir, evadir-se... cruzar o horizonte...16. De Thomas Hardy a Lawrence, de Melville a Miller, a mesma questão ecoa: cruzar, sair, atravessar, fazer a linha e não o ponto. Encontrar a linha de separação, segui-la ou criá-la, até a traição. É por isso que eles têm com a viagem, com a maneira de viajar, com as outras civilizações, Oriente, América do Sul, e também com a droga, com

D.H. Lawrence, Etudes sur la littérature classíque américaine, ed. du Seuil, Hermann Melville ou l’impossible retour”: o texto de Lawrence começa com uma bela distinção dos olhos terrestres e dos olhos marítimos. 16

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as viagens no mesmo lugar, uma relação completamente diferente da dos franceses. Eles sabem como é difícil sair do buraco negro da subjetividade, da consciência e da memória, do casal e da conjugalidade. O quanto se é tentado a se deixar prender aí, a se embalar aí, a se agarrar a um rosto... “Encerrada nesse buraco negro, (...). ela extraía daí um tipo de fosforescência acobreada, fundida, (...). as palavras saíam de sua boca como a lava, todo seu corpo se estirava como uma espécie de serra voraz, procurando a presa, um ponto sólido e substancial no qual se empoleirar, um asilo onde entrar e descansar por um instante. (...). Tomei isso de início como paixão, como o êxtase, (...). acreditei que havia descoberto um vulcão vivo, não me passou pela cabeça que pudesse ser um navio se abismando em um oceano de desespero, nos Sargaços da fraqueza e da impotência. Hoje em dia, quando penso nesse astro negro que irradiava pelo buraco no teto, quando penso nesse astro fixo suspenso sobre nossa célula conjugai, mais fixo, mais distante do que o Absoluto, sei que era ela, esvaziada de tudo o que a fazia ser ela mesma propriamente dita, sol negro e morto, sem aparência.”17 Fosforescência acobreada como o rosto no fundo de um buraco negro. Trata-se de sair daí, não em arte, isto é, em espírito, mas em vida, em vida real. Não me tirem a força de amar. Os romancistas ingleses americanos também sabem como é difícil atravessar o muro do significante. Muitas pessoas o tentaram depois de Cristo, a começar pelo Cristo. Mas o próprio Cristo falhou na travessia, no salto, ele ricocheteou no muro, e “como uma mola que volta bruscamente para trás, toda a imundície do fluxo negativo refluirá, todo o impulso negativo da humanidade pareceu se condensar em uma massa inerte e monstruosa para dar nascimento ao tipo do número inteiro humano, o algarismo um, a indivisível unidade” — o Rosto18. Passar o muro, os chineses talvez, mas a que preço? Ao preço de um devir-animal, de um devir-flor ou rochedo, e, mais ainda, de um estranho devir-imperceptível, de um devir-duro que não é senão o mesmo que amar19. É uma questão de velocidade, mesmo sem sair do lugar. É isso também desfazer o rosto ou, como dizia Miller, não mais olhar os olhos nem nos olhos, mas atravessá-los a nado, fechar seus próprios olhos, e fazer de seu corpo um raio de luz que se move a uma velocidade cada vez maior? Para isso são necessários, sem dúvida, todos os recursos da arte, e da mais elevada arte. É necessário toda uma linha de escrita, toda uma linha de picturalidade, toda uma linha de musicalidade... Pois é pela escrita que nos tornamos animais, é

17

Henry Miller, Tropique du Capricorn, p. 345.

18

Ibid. p. 95

19

Ibid. p. 96

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pela cor que nos tornamos imperceptíveis, é pela música que nos tornamos duros e sem recordação, ao mesmo tempo animal e imperceptível: amoroso. Mas a arte nunca é um fim, é apenas um instrumento para traçar as linhas de vida, isto é, todos esses devires reais, que não se produzem simplesmente na arte, todas essas fugas ativas, que não consistem em fugir na arte, em se refugiar na arte, essas desterritorializações positivas, que não irão se reterritorializar na arte, mas que irão, sobretudo, arrastá-la consigo para as regiões do assignificante, do a-subjetivo e do sem-rosto. Desfazer o rosto não é uma coisa à toa. Corre-se aí o risco da loucura: é por acaso que o esquizo perde ao mesmo tempo o sentido do rosto, de seu próprio rosto e do dos outros, o sentido da paisagem, o sentido da linguagem e de suas significações dominantes? É porque o rosto é uma organização forte. Pode-se dizer que o rosto assume em seu retângulo ou em seu círculo todo um conjunto de traços, traços de rostidade, que ele irá subsumir e colocar a serviço da significância e da subjetivação. Que é um tique? É precisamente a luta sempre recomeçada entre um traço de rostidade, que tenta escapar da organização soberana do rosto, e o próprio rosto que se fecha novamente nesse traço, recupera-o, barra sua linha de fuga, impõe-lhe novamente sua organização. (Na distinção médica entre o tique clônico ou convulsivo, e o tique tônico ou espasmódico, talvez seja necessário ver no primeiro caso o predomínio do traço de rostidade que tenta fugir; no segundo caso, o da organização de rosto que procura fechar novamente, imobilizar). Entretanto, se desfazer o rosto é um grande feito, é porque não é uma simples história de tiques, nem uma aventura de amador ou de esteta. Se o rosto é uma política, desfazer o rosto também o é, engajando devires reais, todo um devir-clandestino. Desfazer o rosto é o mesmo que atravessar o muro do significante, sair do buraco negro da subjetividade. O programa, o slogan da esquizoanálise vem a ser este: procurem seus buracos negros e seus muros brancos, conheçam-nos, conheçam seus rostos, de outro modo vocês não os desfarão, de outro modo não traçarão suas linhas de fuga20.

L’Analyse caractérielle de Reich (Payot) considera o rosto e os traços de rostidade como uma das primeiras peças da “couraça” de caráter e das resistências do eu (cf. “o anel ocular”, em seguida “o anel oral”). A organização desses anéis é feita em planos perpendiculares à “corrente orgonótica” e se opõe ao livre movimento dessa corrente em todo o corpo. Daí a importância de eliminar a couraça ou de “dissolver os anéis”. Cf. p. 311 sq. 20

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É por isso que devemos, mais uma vez, multiplicar as prudências práticas. Primeiramente, nunca se trata de um retorno a... Não se trata de “voltar” às semióticas pré-significantes e pré-subjetivas dos primitivos. Fracassaremos sempre em passar por negro ou indiano, mesmo por chinês, e não é uma viagem aos mares do sul, por mais duras que sejam as condições, que nos fará transpor o muro, sair do buraco ou perder o rosto. Jamais poderemos refazer em nós uma cabeça e um corpo primitivos, uma cabeça humana, espiritual e sem rosto. Ao contrário, esse será um meio de retocar as fotos, de ricochetear no muro; aí encontraremos sempre reterritorializações, oh minha pequena ilha deserta onde reencontro o recanto de lilás, oh meu oceano profundo que reflete o lago do bosque de Bolonha, oh a pequena frase de Vinteuil que me recorda um doce momento. Exercícios físicos e espirituais do Oriente, mas que são feitos a dois, como um leito conjugai que enfeitaríamos com um pano chinês: você já fez seu exercício hoje? Lawrence se interessa por Melville apenas por uma coisa: ter sabido atravessar o rosto, os olhos e o horizonte, o muro e o buraco, melhor do que ninguém soube fazê-lo, mas ao mesmo tempo ter confundido essa travessia, essa linha criadora, com um “impossível retorno”, retorno aos selvagens em Tipê, maneira de ser ainda artista, e de odiar a vida, maneira segura de manter a nostalgia pelo país natal (“Melville possuía a nostalgia de sua Casa e de sua Mãe, essas mesmas coisas das quais havia fugido para tão longe quanto os barcos puderam levá-lo. (...). Volta ao porto para enfrentar sua longa existência. (...). Recusa a vida. (...). Ele se aferra a seu ideal de união perfeita, de amor absoluto, ao passo que uma união verdadeiramente perfeita é aquela na qual cada um aceita que existam no outro grandes espaços desconhecidos. (...). Melville era no fundo um místico e um idealista. Ele se aferrou a suas armas ideais. Eu, eu abandono as minhas e digo: que as velhas armas apodreçam. Façam novas armas e dêem o tiro fatal”21). Não podemos voltar atrás. Somente os neuróticos ou, como diz Lawrence, os “renegados”, os trapaceiros, tentam uma regressão. É porque o muro branco do significante, o buraco negro da subjetividade, a máquina de rosto são impasses, a medida de nossas submissões, de nossas sujeições; mas nascemos dentro deles, e é aí que devemos nos debater. Não no sentido de um momento necessário, mas no sentido de um instrumento para o qual é preciso inventar um novo uso. É somente através do muro do significante que se fará passar as linhas de a-significância que anulam toda recordação, toda remissão, toda significação possível

21

D.H. Lawrence, ibid.

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e toda interpretação que possa ser dada. É somente no buraco negro da consciência e da paixão subjetivas que se descobrirão as partículas capturadas, sufocadas, transformadas, que é preciso relançar para um amor vivo, não subjetivo, no qual cada um se conecte com os espaços desconhecidos do outro sem entrar neles nem conquistá-los, no qual as linhas se compõem como linhas partidas. É somente no interior do rosto, do fundo de seu buraco negro e em seu muro branco que os traços de rostidade poderão ser liberados, como os pássaros; não voltar a uma cabeça primitiva, mas inventar as combinações nas quais esses traços se conectam com traços de paisageidade, eles mesmos liberados da paisagem, com traços de picturalidade, de musicalidade, eles mesmos liberados de seus respectivos códigos. Com uma tal alegria que não seria apenas a de um desejo de pintar, mas a de todos os desejos, os pintores se serviram do rosto mesmo do Cristo em todos os sentidos e em todas as direções. E quanto ao cavaleiro do romance cortês, é possível dizer que sua catatonia vem do fato de estar no fundo do buraco negro, ou por ele já cavalgar as partículas que o fazem sair daí para uma nova viagem? Lawrence, que foi comparado a Lancelote, escreve: “Estar sozinho, sem espírito, sem memória, perto do mar. (...). Tão só e ausente e presente quanto um índio, moreno sobre a areia ensolarada. (...). Longe, bem longe, como se houvesse desembarcado em um outro planeta, como um homem tomando pé após a morte. (...). A paisagem? Ele zombava da paisagem. (...). A humanidade? Não existia. O pensamento? Caído como pedra na água. O imenso, o cintilante passado? Empobrecido e usado, frágil, frágil e translúcida escama lançada na praia.”22 Momento incerto onde o sistema muro branco-buraco negro, ponto negro-praia branca, como em uma estampa japonesa, se unisse à sua própria partida, à sua própria escapada, à sua travessia. É porque vimos os dois estados bastante diferentes da máquina abstrata: ora presa nos estratos onde assegura desterritorializações somente relativas, ou desterritorializações absolutas que permanecem entretanto negativas; ora, ao contrário, desenvolvida em um plano de consistência que lhe confere uma função “diagramática”, um valor de desterritorialização positivo, como a força de formar novas máquinas abstratas. Ora a máquina abstrata, por ser de rostidade, irá rebater os fluxos sobre significâncias e subjetivações, sobre nós de arborescência e buracos de abolição; ora, ao contrário, por operar uma verdadeira “desrostificação”, libera de algum modo dispositivos rastreadores*

22 *

Lawrence, Kangourou, Gallimard.

No original, “têtes chercheuses” (literalmente, “cabeças pesquisadoras”). [N. das T.]

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que desfazem em sua passagem os estratos, que atravessam os muros de significância e iluminam buracos de subjetividade, abatem as árvores em prol de verdadeiros rizomas, e conduzem os fluxos em linhas de desterritorialização positiva ou de fuga criadora. Não há mais estratos organizados concentricamente, não há mais buracos negros em torno dos quais as linhas se enrolam para margeá-los, não há mais muros onde se agarram as dicotomias, as binariedades, os valores bipolares. Não há mais um rosto que faz redundância com uma paisagem, um quadro, uma pequena frase musical, e onde perpetuamente um faz pensar no outro, na superfície unificada do muro ou no redemoinho do buraco negro. Mas cada traço liberado de rostidade faz rizoma com um traço liberado de paisageidade, de picturalidade, de musicalidade: não uma coleção de objetos parciais, mas um bloco vivo, uma conexão de hastes na qual os traços de um rosto entram em uma multiplicidade real, em um diagrama, com um traço de paisagem desconhecido, um traço de pintura ou de música que se encontram então efetivamente produzidos, criados, segundo quanta de desterritorialização positiva absoluta, e não mais evocados nem lembrados segundo sistemas de reterritorialização. Um traço de vespa e um traço de orquídea. Quanta que marcam mutações de máquinas abstratas, umas em função das outras. Abre-se um possível rizomático, operando uma potencialização do possível, contra o possível arborescente que marcava um fechamento, uma impotência. Rosto, que horror, é naturalmente paisagem lunar, com seus poros, suas espessuras desiguais, suas partes obscuras, seus brilhos, suas brancuras e seus buracos: não há necessidade de fazer dela um close para torná-la inumana, ela é close naturalmente, e naturalmente inumana, monstruosa cogula. Forçosamente, visto que ela é produzida por uma máquina, e pelas exigências de um aparelho de poder especial que a deslancha, que leva a desterritorialização ao absoluto mantendo-a no negativo. Mas caímos na nostalgia do retorno ou da regressão quando opomos a cabeça humana, espiritual e primitiva, ao rosto inumano. Na verdade, não há senão inumanidades, o homem é somente feito de inumanidades, mas bastante diferentes, e segundo naturezas e velocidades bastante diferentes. A inumanidade primitiva, a do pré-rosto, é toda a polivocidade de uma semiótica que faz da cabeça uma pertença ao corpo, a um corpo já relativamente desterritorializado, em ramificação com devires espirituais-animais. Para além do rosto, uma inumanidade ainda completamente diferente: não mais a da cabeça primitiva, mas a das “cabeças pesquisadoras” onde os pontos de desterritorialização se tornam operatórios, as linhas de desterritorialização se tornam positivas absolutas, formando estranhos devires novos, novas

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polivocidades. Devir-clandestino, fazer rizoma por toda a parte, para a maravilha de uma vida não humana a ser criada. Rosto meu amor, mas enfim tornado cabeça pesquisadora.... Ano zen, ano ômega, ano ω... Seria então necessário concluir com não mais do que esses três estados: cabeças primitivas, rosto-cristo e cabeças pesquisadoras? Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão

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8 1874 TRÊS NOVELAS OU “O QUE SE PASSOU?”

Não é muito difícil determinar a essência da “novela”* como gênero literário: existe uma novela quando tudo está organizado em torno da questão “Que se passou? Que pode ter acontecido?”. O conto é o contrário da novela porque mantém o leitor ansioso quanto a uma outra questão: que acontecerá? Algo sempre irá se passar, irá acontecer. Quanto ao romance, nele acontece sempre alguma coisa, ainda que o romance integre, na variação de seu perpétuo presente vivo (duração), elementos da novela e do conto. Nesse aspecto, o romance policial é um gênero particularmente híbrido, visto que, muito frequentemente, alguma coisa = x, da ordem de um assassinato ou de um roubo,

Ao longo deste capítulo, os autores trabalham com diferentes acepções do termo nouvelle, que tanto pode significar “novela”, “notícia”, ou “novidade”. [N. das T.] *

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aconteceu, mas o que aconteceu será descoberto e isso no presente determinado pelo policial-modelo. Seria um erro, entretanto, reduzir esses diferentes aspectos às três dimensões do tempo. Alguma coisa aconteceu ou alguma coisa acontecerá podem designar, por sua vez, um passado tão imediato, um futuro tão próximo que não se distinguem (diria Husserl) das retenções e protensões do próprio presente. A distinção entre eles não deixa de ser menos legítima, em nome dos diferentes movimentos que animam o presente, que são contemporâneos do presente, um se movendo com ele, mas um outro colocando-o já no passado desde que presente é presente (novela), um outro arrastandoo para o futuro ao mesmo tempo (conto). Temos a sorte de dispor de um mesmo tema tratado por um contista e por um novelista: há dois amantes, e um morre subitamente no quarto do outro. No conto de Maupassant, “Uma astúcia”, tudo é direcionado para as questões: “Que acontecerá? Como o sobrevivente sairá dessa situação? O que o libertador, no caso um médico, poderá inventar?”. Na novela de Barbey d'Aurevilly, “A cortina carmesim”, tudo é direcionado para: aconteceu algo, mas o quê? Não apenas porque não se sabe verdadeiramente a causa da recente morte da fria jovem, como também não se saberá nunca por que ela se entregou ao jovem oficial, e tampouco se saberá como o libertador, no caso o coronel do regimento, pôde em seguida ajeitar as coisas1. Não se deve achar que seja mais fácil deixar tudo de modo vago: o fato de ter acontecido algo — e mesmo diversas coisas sucessivas — que jamais será conhecido, não exige menos minúcia e precisão do que no outro caso, em que o autor deve inventar detalhadamente o que será necessário saber. Nunca se saberá o que acaba de acontecer, sempre se saberá o que irá acontecer — estas são as duas inquietações diferentes do leitor, face à novela e ao conto, mas são duas maneiras pelas quais o presente vivo se divide a cada instante. Na novela, não se espera que algo aconteça, conta-se com o fato de que algo já tenha acabado de acontecer. A novela é uma última notícia, ao passo que o conto é um primeiro conto. A “presença” do contista e a do novelista são

Cf. Les Diaboliques de Barbey, 1874. Certamente, o próprio Maupassant não se limita ao conto: há em sua obra novelas, ou elementos de novelas em seus romances. Por exemplo, em Une vie, o episódio da tia Lison: “Era na época do desvario de Lison. (...). Nunca mais se falou sobre isso, e esse desvario permanecia como que envolto em uma bruma. Uma noite, Lise, que contava então vinte anos, se jogou na água sem que se soubesse o porquê. Nada em sua vida, em suas maneiras, poderia fazer pressentir essa loucura (...).”. 1

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completamente diferentes (diferente é também a presença do romancista). Mas não invoquemos demasiadamente as dimensões do tempo: a novela tem tão pouco a ver com uma memória do passado, ou com um ato de reflexão, que ela ocorre, ao contrário, a partir de um esquecimento fundamental. Ela evolui na ambiência do “que aconteceu”, porque nos coloca em relação com um incognoscível ou um imperceptível (e não o inverso: não é porque falaria de um passado que ela não poderia mais nos dar a conhecer). A rigor, nada aconteceu, mas é justamente esse nada que nos faz dizer: que pode ter acontecido para que eu esquecesse onde coloquei minhas chaves, para que não saiba mais se enviei aquela carta..., etc? Que pequena artéria no meu cérebro pode ter se rompido? Qual é esse nada que faz com que algo tenha se passado? A novela está fundamentalmente em relação com um segredo (não com uma matéria ou com um objeto do segredo que deveria ser descoberto, mas com a forma do segredo que permanece impenetrável), ao passo que o conto está em relação com a descoberta (a forma da descoberta, independentemente daquilo que se pode descobrir). Além disso, a novela põe em cena posturas do corpo e do espírito, que são como dobras ou envolvimentos, ao passo que o conto põe em jogo atitudes, posições, que são desdobramentos ou desenvolvimentos, mesmo os mais inesperados. Não é difícil compreender, em Barbey, o gosto pela postura do corpo, isto é, pelos estados nos quais o corpo é surpreendido quando algo acaba de acontecer. Barbey chega a sugerir, no prefácio de Diabólicos, que há um diabolismo das posturas do corpo, uma sexualidade, uma pornografia e uma escatologia dessas posturas, muito diferentes das que entretanto também marcam, simultaneamente, as atitudes ou as posições do corpo. A postura é como um suspense invertido. Não se trata então de remeter a novela ao passado, e o conto ao futuro, mas de dizer que a novela remete, no próprio presente, à dimensão formal de algo que aconteceu, mesmo se este algo não for nada ou permanecer incognoscível. Do mesmo modo, não se tentará fazer coincidir a diferença novela-conto com categorias como as do fantástico, do maravilhoso, etc. — este seria um outro problema e não há qualquer razão para se fixar coincidências nisso. A sequência da novela é: Que aconteceu? (modalidade ou expressão), Segredo (forma), Postura do corpo (conteúdo). Tomemos Fitzgerald, que é um contista e um novelista genial. Mas ele é novelista toda vez que pergunta: que pode ter acontecido para que se chegasse a esse ponto? Só ele soube levar tal questão a esse grau de intensidade. Não que essa seja uma questão da memória, da reflexão, nem da velhice ou da fadiga,

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ao passo que o conto seria de infância, de ação ou de elã. É entretanto verdade que Fitzgerald só coloca sua questão de novelista quando está pessoalmente esgotado, fatigado, doente, ou ainda pior. Mas, também aí, não é necessariamente esta a relação: poderia ser uma questão de vigor e de amor. E ainda o é, mesmo nessas condições desesperadas. Seria preciso, antes, conceber as coisas como uma questão de percepção: entra-se em um cômodo e se percebe algo como já presente, tendo acabado de acontecer, mesmo se ainda não se realizou. Ou então sabe-se que o que está sendo realizado já o é pela última vez, terminou. Ouve-se um “eu te amo” sabendo-se que é dito pela última vez. Semiótica perceptiva. Deus, o que pode ter acontecido, quando tudo é e permanece imperceptível, e para que tudo seja e permaneça imperceptível para sempre? Em seguida não há apenas a especificidade da novela, há a maneira específica pela qual a novela trata uma matéria universal. Pois somos feitos de linhas. Não queremos apenas falar de linhas de escrita; estas se conjugam com outras linhas, linhas de vida, linhas de sorte ou de infortúnio, linhas que criam a variação da própria linha de escrita, linhas que estão entre as linhas escritas. Pode ser que a novela possua sua maneira própria de fazer surgir e de combinar essas linhas que pertencem, entretanto, a todo mundo e a qualquer gênero. Vladimir Propp, com grande sobriedade, dizia que o conto deveria ser definido em função de movimentos exteriores e interiores que ele qualificava, formalizava e combinava de maneira específica2. Gostaríamos de mostrar que a novela se define em função de linhas vivas, linhas de carne, em relação às quais ela opera, por sua vez, uma revelação muito especial. Marcel Arland tem razão em afirmar sobre a novela: “São apenas linhas puras, até nas nuanças e isto é apenas pura e consciente virtude do verbo”3.

Primeira novela Na gaiola, Henry James, 1898 (tr. fr. Stock) A heroína, uma jovem telegrafista, tem uma vida muito demarcada, muito contabilizada, que se processa por segmentos delimitados: os telegramas que ela registra sucessivamente a cada dia, as pessoas que enviam esses telegramas, a classe social dessas pessoas que não se utilizam do telégrafo da mesma maneira, as palavras que devem ser necessariamente contadas. Além disso, sua gaiola de telegrafista

2

V. Propp, Morpbologie du conte, Gallimard.

3

M. Arland, Le Promeneur, ed. du Pavois.

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é como um segmento contíguo à mercearia vizinha, onde seu noivo trabalha. Contiguidade de territórios. E o noivo não para de planejar, de demarcar o futuro, o trabalho, as férias, a casa. Existe aí, como para cada um de nós, uma linha de segmentaridade dura em que tudo parece contável e previsto, o início e o fim de um segmento, a passagem de um segmento a outro. Nossa vida é feita assim: não apenas os grandes conjuntos molares (Estados, instituições, classes), mas as pessoas como elementos de um conjunto, os sentimentos como relacionamentos entre pessoas são segmentarizados, de um modo que não é feito para perturbar nem para dispersar, mas ao contrário para garantir e controlar a identidade de cada instância, incluindo-se aí a identidade pessoal. O noivo pode dizer à jovem: considerando-se as diferenças entre nossos segmentos, temos os mesmos gostos e somos parecidos. Sou homem e você é mulher, você é telegrafista e eu sou merceeiro, você conta as palavras e eu peso as coisas, nossos segmentos se afinam, se conjugam. Conjugalidade. Todo um jogo de territórios bem determinados, planejados. Tem-se um porvir, não um devir-. Eis uma primeira linha de vida, linha de segmentaridade dura ou molar; de forma alguma é uma linha de morte, já que ocupa e atravessa nossa vida, e finalmente parecerá sempre triunfar. Ela comporta até mesmo muita ternura e amor. Seria fácil demais dizer: “essa linha é ruim”, pois vocês a encontrarão por toda a parte, e em todas as outras. Um casal rico entra na agência de correios e traz à jovem a revelação, ou pelo menos a confirmação, de uma outra vida: telegramas múltiplos, cifrados, assinados com pseudônimos. Não se sabe mais exatamente quem é quem, nem o que significa o quê. Ao invés de uma linha dura, feita de segmentos bem determinados, o telégrafo forma agora um fluxo maleável, marcado por quanta que são como pequenas segmentações em ato, captadas em seu nascimento como em um raio de lua ou em uma escala intensiva. Graças à “sua arte prodigiosa da interpretação”, a jovem percebe o homem como possuidor de um segredo que o põe em perigo, cada vez mais em perigo, em postura de perigo. Não se trata apenas de suas relações amorosas com a mulher. Henry James chega, aqui, ao momento de sua obra em que não é mais a matéria de um segredo que lhe interessa, mesmo se ele conseguiu fazer com que essa matéria fosse completamente banal e pouco importante. O que conta agora é a forma do segredo cuja matéria nem tem mesmo mais que ser descoberta (não se saberá, haverá diversas possibilidades, haverá uma indeterminação objetiva, uma espécie de molecularização do segredo). É justamente em relação a esse homem, e diretamente com ele, que a jovem telegrafista desenvolve uma estranha cumplicidade passional, toda uma

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vida molecular intensa que nem mesmo entra em rivalidade com aquela que leva com seu próprio noivo. Que se passou, que pode mesmo ter acontecido? Essa vida, entretanto, não está na sua cabeça, e não é imaginária. Dir-se-ia, antes, que existem aí duas políticas, como a jovem o sugere em uma conversa marcante com o noivo: uma macropolítica e uma micropolítica, que não consideram absolutamente da mesma forma as classes, os sexos, as pessoas, os sentimentos. Ou, antes, que há dois tipos de relações bem distintas: os relacionamentos intrínsecos de casais que põem em jogo conjuntos ou elementos bem determinados (as classes sociais, os homens e as mulheres, determinadas pessoas), e em seguida os relacionamentos menos localizáveis, sempre exteriores a eles mesmos, que concernem, antes, a fluxos e partículas que escapam dessas classes, desses sexos, dessas pessoas. Por que esses últimos relacionamentos são relacionamentos de duplos, mais do que de casais} “Ela temia essa outra ela mesma que, sem dúvida, a esperava do lado de fora; talvez fosse ele que a esperasse, ele que era seu outro ela mesma e de quem ela tinha medo.” De qualquer modo, eis uma linha muito diferente da precedente, uma linha de segmentação maleável ou molecular, onde os segmentos são como quanta de desterritorialização. E nessa linha que se define um presente cuja própria forma é a de um algo que aconteceu, já passado, por mais próximo que se esteja dele, já que a matéria inapreensível desse algo está inteiramente molecularizada, em velocidades que ultrapassam os limiares ordinários de percepção. Entretanto, não se dirá que ela seja necessariamente melhor. É certo que as duas linhas não param de interferir, de reagir uma sobre a outra, e de introduzir cada uma na outra uma corrente de maleabilidade ou mesmo um ponto de rigidez. Em seu ensaio sobre o romance, Nathalie Sarraute louva os romancistas ingleses por não terem apenas descoberto, como Proust ou Dostoievski, os grandes movimentos, os grandes territórios e os grandes pontos do inconsciente que fazem reencontrar o tempo ou reviver o passado, mas por terem percorrido, à contracorrente, essas linhas moleculares, simultaneamente presentes e imperceptíveis. Ela mostra como o diálogo ou a conversação obedecem aos cortes de uma segmentaridade fixa, a vastos movimentos de distribuição regrada correspondendo às atitudes e posições de cada um, mas também como eles são percorridos e arrastados por micromovimentos, segmentações finas distribuídas de modo totalmente diferente, partículas inencontráveis de uma matéria anônima, minúsculas fissuras e posturas que não passam mais pelas mesmas instâncias, mesmo no inconsciente, linhas secretas de desorientação ou de desterritorialização: toda uma subconversação na

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conversação, diz ela, isto é, uma micropolítica da conversação4. Em seguida, a heroína de James, em sua segmentaridade flexível ou em sua linha de fluxo, chega a uma espécie de quantum maximum para além do qual ela não pode mais ir (mesmo se quisesse, não poderia ter ido mais longe). Essas vibrações que nos atravessam, perigo de exacerbá-las para além de nossa resistência. Dissolveu-se na forma do segredo — que se passou? — o relacionamento molecular da telegrafista com o telegrafante — já que nada aconteceu. Cada um dos dois será lançado de volta à sua segmentaridade dura: ele esposará a senhora que se tornou viúva, ela esposará seu noivo. Entretanto, tudo mudou. Ela alcançou como que uma linha nova, uma terceira, uma espécie de linha de fuga, igualmente real, mesmo que ela se faça no mesmo lugar: linha que não mais admite qualquer segmento, e que é, antes, como que a explosão das duas séries segmentares. Ela atravessou o muro, saiu dos buracos negros. Alcançou uma espécie de desterritorialização absoluta. “Ela terminou por saber tanto acerca disso que nada mais podia interpretar. Não havia, para ela, mais obscuridades que a fizessem ver mais claro, só restava uma luz crua”. Não se pode ir mais longe na vida do que nessa frase de James. O segredo mudou mais uma vez de natureza. Sem dúvida, o segredo tem sempre a ver com o amor e com a sexualidade. Porém, ora era apenas a matéria escondida, e mais escondida porque era ordinária, dada no passado, e por não sabermos mais qual forma encontrar para ela: vejam, eu me dobro ao meu segredo, vejam qual mistério opera em mim, uma maneira de me fazer de interessante, aquilo que Lawrence denominava o “segredinho sujo”, meu Édipo por assim dizer. Ora o segredo se tornava a forma de um algo cuja matéria toda era molecularizada, imperceptível, inassinalável: não um dado no passado, mas o nãodoável de “que aconteceu?”. Mas, na terceira linha, nem mesmo há forma — nada além de uma pura linha abstrata. É porque não temos mais nada a esconder que não podemos mais ser apreendidos. Tornar-se imperceptível, ter desfeito o amor para se tornar capaz de amar. Ter desfeito o seu próprio eu para estar enfim sozinho, e

Nathalie Sarraute (L’ère du soupçon, “Conversation et sous-conversation”, Gallimard) mostra como Proust analisa os menores movimentos, olhares ou entonações. Entretanto, ele os capta na recordação, atribui-lhes uma “posição”, consideraos como um encadeamento de efeitos e de causas; “raramente tentou revivê-los e fazer com que o leitor os revivesse no presente, enquanto eles se formam e à medida que se desenvolvem como dramas minúsculos, tendo cada um suas peripécias, seu mistério e seu imprevisível desenlace”. 4

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encontrar o verdadeiro duplo no outro extremo da linha. Passageiro clandestino de uma viagem imóvel. Devir como todo o mundo, mais exatamente esse só é um devir para aquele que sabe que é ninguém, que não é mais alguém. Ele se pintou cinza sobre cinza. Como diz Kierkegaard, nada distingue o cavaleiro da fé de um burguês alemão que entra em casa ou se apresenta na agência de Correios: nenhum sinal telegráfico especial emana dele, ele produz ou reproduz constantemente segmentos finitos, mas já está em uma linha diferente que não podemos nem mesmo suspeitar5. De qualquer modo, a linha telegráfica não é um símbolo e tampouco é simples. Há pelo menos três delas: de segmentaridade dura e bem talhada, de segmentação molecular e em seguida a linha abstrata, a linha de fuga, não menos mortal, não menos viva. Na primeira há muitas falas e conversações, questões ou respostas, intermináveis explicações, esclarecimentos; a segunda é feita de silêncios, de alusões, de subentendidos rápidos, que se oferecem à interpretação. Mas se a terceira fulgura, se a linha de fuga é como um trem em marcha, é porque nela se salta linearmente, pode-se enfim falar aí “literalmente”, de qualquer coisa, talo de erva, catástrofe ou sensação, em uma aceitação tranquila do que acontece em que nada pode mais valer por outra coisa. Entretanto, as três linhas não param de se misturar.

Segunda novela The crack up, F. Scott Fitzgerald, 1936 (tr. fr. Gallimard) Que aconteceu? Esta é a pergunta que Fitzgerald não para de debater no final, tendo dito que “qualquer vida é, bem entendido, um processo de demolição”. Como entender esse “bem entendido”? Pode-se dizer, antes de tudo, que a vida não para de se engajar em uma segmentaridade cada vez mais dura e ressecada. Para o escritor Fitzgerald, há a usura das viagens, com os seus segmentos bem demarcados. Há também, de segmentos em segmentos, a crise econômica, a perda da riqueza, a fadiga e o envelhecimento, o alcoolismo, a falência da conjugalidade, a ascensão do cinema, o surgimento do fascismo, do stalinismo, a perda de sucesso e de talento — aí mesmo onde Fitzgerald encontrará sua genialidade. ''Grandes impulsos súbitos que vêm ou parecem vir de fora” e que atuam por cortes demasiadamente significantes, fazendo-nos passar de um termo a outro, em “escolhas” binárias sucessivas: rico-pobre... Mesmo que a mudança se fizesse no outro sentido, nada viria compensar o

5

Kierkegaard, Crainte et tremblement, Aubier, p. 52 sq.

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endurecimento, o envelhecimento que sobrecodifica tudo o que acontece. Eis uma linha de segmentaridade dura, que põe em jogo grandes massas, mesmo se era, no início, maleável. Mas Fitzgerald diz que há um outro tipo de rachadura, seguindo uma segmentaridade totalmente diferente. Não são mais grandes cortes, mas microfissuras, como as de um prato, bem mais sutis e mais maleáveis, e que se produzem sobretudo quando as coisas vão melhor do outro lado. Se há envelhecimento também nessa linha, este não ocorre da mesma maneira: só envelhecemos aqui quando não sentimos mais isso na outra linha, e só nos apercebemos disso na outra linha quando “isso” já aconteceu nesta. Nesse momento, que não corresponde às idades da outra linha, atingimos um grau, um quantum, uma intensidade para além da qual não podemos mais ir. (Essa história de intensidades é muito delicada: a mais bela intensidade torna-se nociva quando ultrapassa nossas forças nesse momento, é preciso poder suportar, estar em boas condições). Mas o que aconteceu exatamente? Na verdade, nada de assinalável nem de perceptível; mudanças moleculares, redistribuições de desejo que fazem com que, quando algo acontece, o eu que o esperava já esteja morto, ou antes aquele que o esperaria ainda não chegou. Dessa vez, impulsos e rachaduras na imanência de um rizoma, ao invés dos grandes movimentos e dos grandes cortes determinados pela transcendência de uma árvore. A fissura “se produz quase sem que o saibamos, mas na verdade tomamos consciência dela subitamente”. Essa linha molecular mais maleável, não menos inquietante, muito mais inquietante, não é simplesmente interior ou pessoal: ela também põe todas as coisas em jogo, mas em uma outra escala e sob outras formas, com segmentações de outra natureza, rizomáticas ao invés de arborescentes. Uma micropolítica. E em seguida há ainda uma terceira linha, como uma linha de ruptura, e que marca a explosão das outras duas, sua percussão... em proveito de outra coisa? “Concluí que aqueles que haviam sobrevivido tinham realizado uma verdadeira ruptura. Ruptura quer dizer muita coisa e não tem nada a ver com ruptura de cadeia, em que estamos geralmente destinados a encontrar uma outra cadeia ou a retomar a antiga”. Fitzgerald opõe aqui a ruptura aos pseudocortes estruturais nas cadeias ditas significantes. Mas ele igualmente a distingue das ligações ou dos talos mais maleáveis, mais subterrâneos, do tipo “viagem” ou mesmo transportes moleculares. “A célebre Evasão ou a fuga para longe de tudo é uma excursão dentro de uma armadilha, mesmo se a armadilha compreende os mares do Sul, que só são feitos para aqueles que querem navegar neles ou pintá-los. Uma verdadeira ruptura é algo a

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que não se pode voltar, que é irremissível porque faz com que o passado tenha deixado de existir.” Será possível que as viagens sejam sempre um retorno à segmentaridade dura? E sempre papai e mamãe que se reencontra na viagem e, como Melville, até mesmo nos mares do Sul? Músculos endurecidos? Será preciso acreditar que a própria segmentaridade flexível torna a formar no microscópio, e miniaturizadas, as grandes figuras das quais pretendia escapar? Sobre todas as viagens, pesa a frase inesquecível de Beckett: “Que eu saiba, não viajamos pelo prazer de viajar; somos idiotas, mas não a esse ponto”. Eis que, na ruptura, não apenas a matéria do passado se volatizou, mas a forma do que aconteceu, de algo imperceptível que se passou em uma matéria volátil, nem mais existe. Nós mesmos nos tornamos imperceptíveis e clandestinos em uma viagem imóvel. Nada mais pode acontecer nem mesmo ter acontecido. Ninguém mais pode nada por mim nem contra mim. Meus territórios estão fora de alcance, e não porque sejam imaginários; ao contrário, porque eu os estou traçando. Terminadas as grandes ou as pequenas guerras. Terminadas as viagens, sempre a reboque de algo. Não tenho mais qualquer segredo, por ter perdido o rosto, forma e matéria. Não sou mais do que uma linha. Torneime capaz de amar, não de um amor universal abstrato, mas aquele que escolherei, e que me escolherá, às cegas, meu duplo, que não tem mais eu do que eu. Salvamo-nos por amor e para o amor, abandonando o amor e o eu. Não somos mais do que uma linha abstrata, como uma flecha que atravessa o vazio. Desterritorialização absoluta. Tornamonos como todo mundo, mas de uma maneira pela qual ninguém pode se tornar como todo mundo. Pintamos o mundo sobre nós mesmos, e não a nós mesmos sobre o mundo. Não se deve dizer que o gênio é um homem extraordinário, nem que todo mundo tem genialidade. O gênio é aquele que sabe fazer de todo-mundo um devir (talvez Ulisses, a ambição fracassada de Joyce, parcialmente bem-sucedida em Pound). Entramos em devires-animais, devires-moleculares, enfim em devires imperceptíveis. “Estava para sempre do outro lado da barricada. A horrível sensação de entusiasmo continuava. (...). Tentaria ser um animal tão correto quanto possível, e se vocês me jogassem um osso com bastante carne por cima, eu seria talvez até mesmo capaz de lhes lamber a mão.” Por que esse tom desesperado? A linha de ruptura ou de verdadeira fuga não teria seu perigo, ainda pior do que as outras? É tempo de morrer. De qualquer modo, Fitzgerald nos propõe a distinção de três linhas que nos atravessam e compõem “uma vida” (título à Maupassant). Linha de corte, linha de fissura, linha de ruptura. A linha de segmentaridade dura,

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ou de corte molar; a linha de segmentação maleável, ou de fissura molecular; a linha de fuga ou de ruptura, abstrata, mortal e viva, não segmentar.

Terceira novela História do abismo e da luneta, Pierrette Fleutiaux, 1976 (Julliard) Há segmentos mais ou menos aproximados, mais ou menos distanciados. Esses segmentos parecem envolver um abismo, uma espécie de grande buraco negro. Em cada segmento, há duas espécies de vigilantes: os de visão curta e os de visão ampla. O que eles vigiam são os movimentos, as manifestações súbitas, as infrações, perturbações e rebeliões que se produzem no abismo. Mas há uma grande diferença entre os dois tipos de vigilantes. Os de visão curta têm uma luneta simples. No abismo, veem o contorno de células gigantes, de grandes divisões binárias, dicotomias, segmentos eles mesmos bem determinados, do tipo “sala de aula, caserna, H.L.M.** ou até mesmo país, vistos de avião”. Veem ramos, cadeias, fileiras, colunas, dominós, estrias. Às vezes, descobrem, nas bordas, uma figura mal-feita, um contorno tremido. Então vai-se buscar a terrível Luneta de raios. Esta não serve para ver, mas para cortar, para recortar. É ela, o instrumento geométrico, que emite um raio laser e faz reinar por toda parte o grande corte significante, restaura a ordem molar por um instante ameaçada. A luneta para recortar sobrecodifica todas as coisas; trabalha na carne e no sangue, mas é apenas geometria pura, a geometria como questão de Estado, e a física dos de vista curta está a serviço dessa máquina. O que é a geometria, o que é o Estado, o que são os de vista curta? Eis aí perguntas que não têm sentido (“falo literalmente”), já que se trata, não mesmo de definir, mas de traçar efetivamente uma linha que não é mais de escritura, uma linha de segmentaridade dura em que todo mundo será julgado e retificado segundo seus contornos, indivíduos ou coletividade. Bastante diferente é a situação dos telescópios, dos de visão ampla, em sua própria ambiguidade. Eles são pouco numerosos, no máximo um por segmento. Têm uma luneta refinada e complexa. Mas certamente não são chefes. E veem uma coisa totalmente diferente do que os outros. Veem toda uma micro-segmentaridade, detalhes de detalhes, “tobogã de possibilidades”, minúsculos movimentos que não esperam para chegar às bordas, linhas ou vibrações que se esboçam bem antes dos contornos, “segmentos que se movimentam com bruscas interrupções”. Todo um rizoma, uma segmentaridade

Trata-se da sigla para habiter à loyer modéré (“habitação com aluguel acessível”), referindo-se a grandes prédios construídos para pessoas de baixa renda. (N. das T). *

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molecular que não se deixa sobrecodificar por um significante como máquina de recortar, nem mesmo atribuir a uma determinada figura, determinado conjunto ou determinado elemento. Essa segunda linha é inseparável da segmentação anônima que a produz, e que a cada instante recoloca tudo em questão, sem objetivo e sem razão: “Que aconteceu?” Os de ampla visão podem adivinhar o futuro, mas é sempre sob a forma do devir de algo que já aconteceu em uma matéria molecular, partículas inencontráveis. É como em biologia: como as grandes divisões e dicotomias celulares, em seus contornos, são acompanhadas por migrações, por invaginações, por deslocamentos, por impulsos morfogenéticos, cujos segmentos não são mais marcados por pontos localizáveis, mas por limiares de intensidade que ocorrem por baixo, mictoses em que tudo se confunde, linhas moleculares que se cruzam no interior de grandes células e de seus cortes. É como em uma sociedade: como os segmentos duros e sobrecortantes são cortados por baixo por segmentações de uma outra natureza. Mas não é nem uma nem a outra, nem biologia nem sociedade, nem semelhança das duas: “falo literalmente”, traço linhas, linhas de escrita, e a vida passa entre as linhas. Uma linha de segmentaridade maleável se destacou, mesclada à outra, mas muito diferente, traçada de uma maneira tremida pela micropolítica dos de visão ampla. Um caso de política, tão mundial quanto o outro, e ainda mais, porém, em uma escala e em uma forma não-superponível, incomensurável. Mas também um caso de percepção, pois a percepção, a semiótica, a prática, a política, a teoria, estão sempre juntas. Vemos, falamos, pensamos, nesta ou naquela escala e segundo determinada linha que pode ou não se conjugar com a do outro, mesmo se o outro é ainda eu mesmo. Se não, não se deve insistir, nem discutir, mas fugir, fugir, mesmo dizendo “de acordo, mil vezes de acordo”. Não vale a pena falar, seria necessário, em primeiro lugar, trocar os óculos, as bocas e os dentes, todos os segmentos. Não é apenas literalmente que se fala, percebe-se literalmente, vive-se literalmente, quer dizer, seguindo linhas, conectáveis ou não, mesmo quando são muito heterogêneas. E depois, em alguns casos, isso não funciona quando elas são homogêneas6.

Em uma outra novela da mesma coletânea, “Le dernier angle de transparence”, Pierrette Fleutiaux destaca três linhas de percepção, sem aplicação de um esquema preestabelecido. O herói tem uma percepção molar, que incide sobre conjuntos e elementos bem delineados, cheios e vazios bem repartidos (é uma percepção codificada, herdada, sobrecodificada pelos muros: não se sentar ao lado de sua cadeira etc). Mas ele experimenta também uma percepção molecular, feita de segmentações finas e moventes, traços autônomos em que surgem buracos no cheio, microformas no vazio, entre duas coisas, em que “tudo fervilha e se movimenta” por mil fissuras. A preocupação do herói é que ele não pode escolher entre as duas linhas, saltando constantemente de uma a outra. Viria a salvação de uma terceira linha de percepção, percepção de fuga, “direção hipotética apenas indicada” pelo ângulo das outras duas, “ângulo de transparência” que abre um novo espaço? 6

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A ambiguidade da situação dos de visão ampla é a seguinte: eles são capazes de detectar no abismo as microinfrações mais leves, que os outros não veem; mas constatam também os terríveis danos da Luneta de recortar, sob sua aparente justiça geométrica. Eles têm a impressão de prever e de estar na dianteira, já que veem a mínima coisa como já tendo acontecido; mas sabem que suas advertências não servem para nada, porque a luneta de recortar regulará tudo, sem aviso prévio, sem necessidade nem possibilidade de previsão. Ora eles sentem nitidamente que veem algo diferente dos outros; ora, que há apenas uma diferença de grau, inutilizável. Colaboram na mais dura empresa de controle, na mais cruel, mas como não experimentariam uma obscura simpatia pela atividade subterrânea que lhes é revelada? Ambiguidade dessa linha molecular, como se ela hesitasse entre duas vertentes. Um dia (que terá acontecido?) um de visão ampla abandonará seu segmento, se lançará em uma estreita passarela por cima do abismo negro, partirá pela linha de fuga, tendo quebrado sua luneta, ao encontro de um Duplo cego que avança na outra extremidade. Indivíduos ou grupos, somos atravessados por linhas, meridianos, geodésicas, trópicos, fusos, que não seguem o mesmo ritmo e não têm a mesma natureza. São linhas que nos compõem, diríamos três espécies de linhas. Ou, antes, conjuntos de linhas, pois cada espécie é múltipla. Podemos nos interessar por uma dessas linhas mais do que pelas outras, e talvez, com efeito, haja uma que seja, não determinante, mas que importe mais do que as outras... se estiver presente. Pois, de todas essas linhas, algumas nos são impostas de fora, pelo menos em parte. Outras nascem um pouco por acaso, de um nada, nunca se saberá por quê. Outras devem ser inventadas, traçadas, sem nenhum modelo nem acaso: devemos inventar nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e só podemos inventá-las traçando-as efetivamente, na vida. As linhas de fuga — não será isso o mais difícil? Certos grupos, certas pessoas não as têm e não as terão jamais. Certos grupos, certas pessoas

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não possuem essa espécie de linha, ou a perderam. A pintora Florence Julien se interessa especialmente pelas linhas de fuga: ela parte de fotos e inventa o procedimento pelo qual poderá extrair daí linhas, quase abstratas e sem forma. Mas, também aí, é todo um conjunto de linhas muito diversas: a linha de fuga de crianças que saem da escola correndo não é a mesma que a de manifestantes perseguidos pela polícia, nem a de um prisioneiro que foge. Linhas de fuga de animais diferentes: cada espécie, cada indivíduo tem as suas. Fernand Deligny transcreve as linhas e trajetos de crianças autistas, faz mapas: distingue cuidadosamente as “linhas de errância” e as “linhas costumeiras”. E isso não vale somente para os passeios, há também mapas de percepções, mapas de gestos (cozinhar ou recolher madeira), com gestos costumeiros e gestos erráticos. O mesmo para a linguagem, se existir uma. Fernand Deligny abriu suas linhas de escrita para linhas de vida. E constantemente as linhas se cruzam, se superpõem por um instante, se seguem por um certo tempo. Uma linha errática se superpôs a uma linha costumeira e aí a criança faz algo que não pertence mais exatamente a nenhuma das duas, reencontra algo que havia perdido — que aconteceu? — ou então ela salta, agita as mãos, minúsculo e rápido movimento — mas seu próprio gesto emite, por sua vez, diversas linhas7. Em suma, uma linha de fuga, já complexa, com suas singularidades; mas também uma linha molar ou costumeira com seus segmentos; e entre as duas (?), uma linha molecular, com seus quanta que a fazem pender para um lado ou para outro. Perceber, como diz Deligny, que essas linhas não querem dizer nada. É uma questão de cartografia. Elas nos compõem, assim como compõem nosso mapa. Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra. Rizoma. Certamente não têm nada a ver com a linguagem, é ao contrário a linguagem que deve segui-las, é a escrita que deve se alimentar delas entre suas próprias linhas. Certamente não têm nada a ver com um significante, com uma determinação de um sujeito pelo significante; é, antes, o significante que surge no nível mais endurecido de uma dessas linhas, o sujeito que nasce no nível mais baixo. Certamente não têm nada a ver com uma estrutura, que sempre se ocupou apenas de pontos e de posições, de arborescências, e que sempre fechou um sistema, exatamente para impedi-lo de fugir. Deligny evoca um Corpo comum no qual essas linhas se inscrevem, como segmentos, limiares ou quanta, territorialidades, desterritorializações ou reterritorializações.

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Fernand Deligny, “Voix et voir”, Cahiers de l’immuable, abril 1975.

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As linhas se inscrevem em um Corpo sem órgãos, no qual tudo se traça e foge, ele mesmo uma linha abstrata, sem figuras imaginárias nem funções simbólicas: o real do CsO. A esquizoanálise não tem outro objeto prático: qual é o seu corpo sem órgãos? quais são suas próprias linhas, qual mapa você está fazendo e remanejando, qual linha abstrata você traçará, e a que preço, para você e para os outros? Sua própria linha de fuga? Seu CsO que se confunde com ela? Você racha? Você rachará? Você se desterritorializa? Qual linha você interrompe, qual você prolonga ou retoma, sem figuras nem símbolos? A esquizoanálise não incide em elementos nem em conjuntos, nem em sujeitos, relacionamentos e estruturas. Ela só incide em lineamentos, que atravessam tanto os grupos quanto os indivíduos. Análise do desejo, a esquizoanálise é imediatamente prática, imediatamente política, quer se trate de um indivíduo, de um grupo ou de uma sociedade. Pois, antes do ser, há a política. A prática não vem após a instalação dos termos e de suas relações, mas participa ativamente do traçado das linhas, enfrenta os mesmos perigos e as mesmas variações do que elas. A esquizoanálise é como a arte da novela. Ou, antes, ela não tem problema algum de aplicação: destaca linhas que tanto podem ser as de uma vida, de uma obra literária ou de arte, de uma sociedade, segundo determinado sistema de coordenadas mantido. Linha de segmentaridade dura ou molar, linha de segmentação maleável e molecular, linha de fuga: muitos problemas se colocam. Em primeiro lugar, referentes ao caráter particular de cada uma delas. Poder-se-ia acreditar que os segmentos duros são determinados, predeterminados socialmente, sobrecodificados pelo Estado; tender-se-ia, em contrapartida, a fazer da segmentaridade maleável um exercício interior, imaginário ou fantasioso. Quanto à linha de fuga, não seria esta inteiramente pessoal, maneira pela qual um indivíduo foge, por conta própria, foge às “suas responsabilidades”, foge do mundo, se refugia no deserto, ou ainda na arte... etc. Falsa impressão. A segmentaridade maleável não tem nada a ver com o imaginário, e a micropolítica não é menos extensiva e real do que a outra. A grande política nunca pode manipular seus conjuntos molares sem passar por essas micro-injeções, essas infiltrações que a favorecem ou que lhe criam obstáculo; e mesmo, quanto maiores os conjuntos, mais se produz uma molecularização das instâncias que eles põem em jogo. Quanto às linhas de fuga, estas não consistem nunca em fugir do mundo, mas antes em fazê-lo fugir, como se estoura um cano, e não há sistema social que não fuja/escape por todas as extremidades, mesmo se seus segmentos não param de se endurecer para vedar as linhas de fuga. Nada de imaginário nem de simbólico em uma linha de fuga. Não há nada mais ativo do que uma linha

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de fuga, no animal e no homem8 E até mesmo a História é forçada a passar por isso, mais do que por “cortes significantes”. A cada momento, o que foge em uma sociedade? É nas linhas de fuga que se inventam armas novas, para opô-las às armas pesadas do Estado, e “pode ser que eu fuja, mas ao longo da minha fuga, busco uma arma”. Nas linhas de fuga os nômades varriam tudo à sua passagem, e encontravam armas novas que deixavam o Faraó estupefacto. De todas as linhas que distinguimos, pode ser que um mesmo grupo ou um mesmo indivíduo as apresentem ao mesmo tempo. Contudo, de modo mais frequente, um grupo, um indivíduo funciona ele mesmo como linha de fuga; ele a cria mais do que a segue, ele mesmo é a arma viva que ele forja, mais do que se apropria dela. As linhas de fuga são realidades; são muito perigosas para as sociedades, embora estas não possam passar sem elas, e às vezes as preparem. O segundo problema diria respeito à importância respectiva das linhas. Pode-se partir da segmentaridade dura, é mais fácil, é dado; e em seguida ver como ela é mais ou menos recortada por uma segmentaridade maleável, uma espécie de rizoma que cerca as raízes. E em seguida ver como a ela ainda se acrescenta a linha de fuga. E as alianças e os combates. Mas pode se partir também da linha de fuga: talvez seja ela a primeira, com sua desterritorialização absoluta. É evidente que a linha de fuga não vem depois, está presente desde o início, mesmo se espera sua hora e a explosão das outras duas. Então a segmentaridade maleável não seria mais do que uma espécie de compromisso, procedendo por desterritorializações relativas, e permitindo reterritorializações que bloqueiam e remetem para a linha dura. É curioso como a segmentaridade maleável está presa entre as outras duas linhas, pronta para tombar para um lado ou para o outro — essa é a sua ambiguidade. E ainda é preciso ver as diversas combinações: a linha de fuga de alguém, grupo ou indivíduo, pode muito bem não favorecer a de um outro; pode, ao contrário, barrá-la, interditá-la a ele, e lançá-lo ainda mais em uma segmentaridade dura. Ocorre bastante no amor que a linha criadora de alguém seja o aprisionamento do outro. Há um problema da composição das linhas, de uma linha com uma outra, mesmo em um mesmo gênero. Não é certo que duas linhas de fuga sejam

Henri Laborit escreveu um Eloge de la fuite (Laffont), em que mostra a importância biológica das linhas de fuga no animal. Entretanto, ele concebe essas linhas de modo demasiadamente formal; e, no homem, a fuga lhe parece ligada a valores do imaginário destinados a aumentar a “informação” do mundo 8

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compatíveis, compossíveis. Não é certo que os corpos sem órgãos se componham facilmente. Não é certo que um amor resista a isso, nem uma política. Terceiro problema: há a imanência mútua das linhas. Tampouco é fácil desenredálas. Nenhuma tem transcendência, cada uma trabalha nas outras. Imanência por toda a parte. As linhas de fuga são imanentes ao campo social. A segmentaridade maleável não para de desfazer as concreções da dura, mas ela reconstitui em seu nível tudo aquilo que desfaz: micro Édipos, microformações de poder, microfascismos. A linha de fuga faz explodir as duas séries segmentares, mas é capaz do pior: de ricochetear no muro, de recair em um buraco negro, de tomar o caminho da grande regressão, e de refazer os segmentos mais duros ao acaso de seus desvios. Alguém fez travessuras? — isso é pior do que se não tivesse se evadido, cf. aquilo que Lawrence condena em Melville. Entre a matéria de um segredinho sujo na segmentaridade dura, a forma vazia de “o que aconteceu?” na segmentaridade maleável, e a clandestinidade daquilo que não pode mais acontecer na linha de fuga, como não ver os sobressaltos de uma instância tentacular, o Segredo, que ameaça fazer tudo balançar? Entre o Par da primeira segmentaridade, o Duplo da segunda, o Clandestino da linha de fuga, tantas misturas e passagens possíveis. — Enfim ainda o último problema, o mais angustiante, referente aos perigos próprios a cada linha. Pouco há a dizer sobre o perigo da primeira, e seu endurecimento de difícil modificação. Pouco a dizer sobre a ambiguidade da segunda. Mas por que a linha de fuga, mesmo independentemente de seus perigos de recair nas outras duas, comporta, por sua vez, um desespero tão especial, apesar da sua mensagem de alegria, como se algo a ameaçasse exatamente no âmago do seu próprio empreendimento, uma morte, uma demolição, no exato instante em que tudo se esclarece? De Tchekhov, que é exatamente um grande criador de novelas, Chestov dizia: “Ele fez um esforço, não pode haver dúvida a esse respeito, e algo se partiu nele. E a causa desse esforço não foi qualquer labor penoso: ele caiu alquebrado sem ter empreendido uma exploração acima de suas forças. Em suma, foi apenas um acidente absurdo, ele deu um passo em falso, escorregou. (...). Um homem novo apareceu diante de nós, sombrio e melancólico, um criminoso”9. Que aconteceu? Mais uma vez, essa é a questão para todos os personagens de Tchekhov. Não é possível fazer um esforço, e mesmo quebrar algo, sem cair em um buraco negro de amargura e de areia? Mas será que Tchekhov

9

Leon Chestov, L’homme pris au piège, 10-18, p. 83.

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caiu verdadeiramente, não será esse um julgamento totalmente exterior? Não terá o próprio Tchekhov razão em dizer que, por mais sombrios que sejam seus personagens, ele transporta ainda “cinquenta quilos de amor”? Certamente, não há nada fácil nas linhas que nos compõem e que constituem a essência da Novela, e às vezes da Boa Nova. Quais são os seus pares, quais são os seus duplos, quais são os seus clandestinos, e as misturas entre eles? Quando um diz ao outro: ama em meus lábios o gosto do whisky como amo em teus olhos um clarão da loucura, que linhas estão se compondo ou, ao contrário, se tornando incompossíveis? Fitzgerald: “Talvez cinquenta por cento dos nossos amigos e parentes lhes dirão de boa-fé que foi minha bebida que enlouqueceu Zelda, a outra metade lhes assegurará que foi a sua loucura que me levou à bebida. Nenhum desses julgamentos significaria grande coisa. Esses dois grupos de amigos e de parentes seriam unânimes em dizer que cada um de nós se comportaria bem melhor sem o outro. Com a ironia de que jamais em nossa vida fomos tão desesperadamente apaixonados um pelo outro. Ela ama o álcool em meus lábios. Eu venero suas alucinações mais extravagantes”. “No final nada tinha verdadeiramente importância. Nós nos destruímos. Mas, com toda a honestidade, jamais pensei que nos destruímos um ao outro”. Beleza desses textos. Todas as linhas estão aí: a das famílias e dos amigos, todos aqueles que falam, explicam e psicanalizam, repartem os erros e as razões, toda a máquina binária do Par, unido ou separado, na segmentaridade dura (50%). E em seguida a linha de segmentação maleável, em que o alcoólatra e a louca extraem, como em um beijo nos lábios e nos olhos, a multiplicação de um duplo no limite do que podem suportar em seu estado, com os subentendidos que lhes servem de mensagem interna. Mas ainda a linha de fuga, tanto mais comum pelo fato de estarem separados, ou o inverso, cada um clandestino do outro, duplo tanto mais bem sucedido pelo fato de nada mais ter importância e tudo podem recomeçar, pois eles estão destruídos, mas não um pelo outro. Nada passará pela lembrança, tudo aconteceu nas linhas, entre as linhas, no E que os torna imperceptíveis, um e o outro, nem disjunção nem conjunção, mas linha de fuga que não para mais de se traçar, para uma nova aceitação, o contrário de uma renúncia ou de uma resignação, uma nova felicidade? Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão

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9 1933 MICROPOLÍTICA E SEGMENTARIDADE

As segmentaridades (o conjunto de tipos)

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Somos segmentarizados por todos os lados e em todas as direções. O homem é um animal segmentário. A segmentaridade pertence a todos os estratos que nos compõem. Habitar, circular, trabalhar, brincar: o vivido é segmentarizado espacial e socialmente. A casa é segmentarizada conforme a destinação de seus cômodos; as ruas, conforme a ordem da cidade; a fábrica, conforme a natureza dos trabalhos e das operações. Somos segmentarizados binariamente, a partir de grandes oposições duais: as classes sociais, mas também os homens e as mulheres, os adultos e as crianças, etc. Somos segmentarizados circularmente, em círculos cada vez mais vastos, em discos ou coroas cada vez mais amplos, à maneira da “carta” de Joyce: minhas ocupações, as ocupações de meu bairro, de minha cidade, de meu país, do mundo... Somos segmentarizados linearmente, numa linha reta, em linhas retas, onde cada segmento representa um episódio ou um “processo”: mal acabamos um processo e já estamos começando outro, demandantes ou demandados para sempre, família, escola, exército, profissão, e a escola nos diz: “Você já não está mais em família”, e o exército diz: “Você já não está mais na escola...” Ora os diferentes segmentos remetem a diferentes indivíduos ou grupos, ora é o mesmo indivíduo ou o mesmo grupo que passa de um segmento a outro. Mas sempre estas figuras de segmentaridade, a binária, a circular, a linear, são tomadas umas nas outras, e até passam umas nas outras, transformando-se de acordo com o ponto de vista. Os selvagens já atestam isso: Lizot mostra como a Casa comum é organizada circularmente, do exterior para o interior, numa série de coroas onde se exercem tipos localizáveis de atividades (cultos e cerimônias, em seguida troca de bens, em seguida vida familiar, em seguida detritos e excrementos); mas, ao mesmo tempo, “cada uma destas coroas é por sua vez fracionada transversalmente, sendo cada segmento reservado a uma linhagem particular e subdividido entre diferentes grupos de germanos”1. Num contexto mais geral, Lévi-Strauss mostra que a organização dualista dos primitivos remete a uma forma circular e passa também para uma forma linear, englobando “qualquer número de grupos” (pelo menos três)2. Por que voltar aos primitivos, quando se trata de nossa vida? O fato é que a noção de segmentaridade foi construída pelos etnólogos para dar conta das sociedades ditas primitivas, sem aparelho de Estado central fixo, sem poder global nem instituições

1

Jacques Lizot, I.e cercle des feux. Ed. du Seuil, p. 118.

2

Levi-Strauss, C. Anthropologie structurale. Plon, cap. VIII, “Les organisations dualistes existent-elles?”

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políticas especializadas. Os segmentos sociais têm neste caso uma certa flexibilidade, de acordo com as tarefas e as situações, entre os dois polos extremos da fusão e da cisão; uma grande comunicabilidade entre heterogêneos, de modo que o ajustamento de um segmento a outro pode se fazer de múltiplas maneiras; uma construção local que impede que se possa determinar de antemão um domínio de base (econômico, político, jurídico, artístico); propriedades extrínsecas de situação ou de relações, irredutíveis às propriedades intrínsecas de estrutura; uma atividade contínua que faz com que a segmentaridade não seja captável independentemente de uma segmentação em ato que opera por impulsos, desprendimentos, junções. A segmentaridade primitiva é, ao mesmo tempo, a de um código polívoco, fundado nas linhagens, suas situações e suas relações variáveis e a de uma territorialidade itinerante, fundada em divisões locais emaranhadas. Os códigos e os territórios, as linhagens de clãs e as territorialidades tribais organizam um tecido de segmentaridade relativamente flexível3. Parece-nos entretanto difícil dizer que as sociedades com Estado, ou mesmo nossos Estados modernos, sejam menos segmentários. A oposição clássica entre o segmentário e o centralizado afigura-se pouco pertinente4. Não só o Estado se exerce sobre segmentos que ele mantém ou deixa subsistir, mas possui sua própria segmentaridade e a impõe. Talvez a oposição que os sociólogos estabelecem entre segmentário e central tenha uma matriz biológica: o verme anelado e o sistema nervoso centralizado. Mas o cérebro central é ele próprio um verme ainda mais segmentarizado do que os outros, apesar de todas suas vicariâncias, e inclusive por causa delas. Não há oposição entre central e segmentário. O sistema político moderno é um todo global, unificado e unificante, mas porque implica um conjunto de subsistemas justapostos, imbricados, ordenados, de modo que a análise das decisões revela toda espécie de compartimentações e de processos parciais que não se prolongam uns nos outros sem defasagens ou deslocamentos. A tecnocracia procede por divisão do trabalho segmentário (inclusive na divisão internacional do trabalho). A burocracia só existe através de suas repartições e só funciona através de seus “deslocamentos de meta” e os “desfuncionamentos” correspondentes. A hierarquia não é somente piramidal: o escritório do chefe está tanto no fundo do corredor

Cf. dois estudos exemplares, in Systèmes politiques africains: o de Meyer Fortes sobre os Tallensi e o de Evans-Pritchard sobre os Nuers. 3

Georges Balandier analisa as maneiras pelas quais os etnólogos e os sociólogos definem esta oposição. Balandier, G. Anthropologie politique, P.U.F., p. 161-169. 4

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quanto no alto da torre. Em suma, tem-se a impressão de que a vida moderna não destituiu a segmentaridade, mas que ao contrário a endureceu singularmente. Mais do que opor o segmentário e o centralizado, seria preciso então distinguir dois tipos de segmentaridade: uma “primitiva” e flexível, a outra “moderna” e dura. E essa distinção viria recortar cada uma das figuras precedentes: 1) As oposições binárias (homens-mulheres, os de cima, os de baixo,etc)., são muito fortes nas sociedades primitivas, mas parece que resultam de máquinas e de agenciamentos que, no que lhes diz respeito, não são binários. A binaridade social homens-mulheres, num grupo, mobiliza regras segundo as quais cada um encontra seus respectivos cônjuges em grupos diferentes (daí três grupos, no mínimo). É nesse sentido que LéviStrauss pode mostrar como a organização dualista nunca vale por si mesma numa sociedade deste tipo. Ao contrário, é próprio das sociedades modernas, ou melhor, das sociedades com Estado, fazer valer máquinas duais que funcionam enquanto tais, procedendo simultaneamente por relações biunívocas e sucessivamente por escolhas binarizadas. As classes, os sexos, combinam de dois em dois, e os fenômenos de tripartição decorrem de um transporte do dual, mais do que o inverso. Vimos isso especialmente com respeito à máquina de Rosto, a qual nesse aspecto distingue-se das máquinas de cabeças primitivas. Parece que as sociedades modernas promoveram a segmentaridade dual ao nível de uma organização suficiente. A questão, portanto, não é saber se as mulheres ou os de baixo têm um estatuto melhor ou pior, mas de que tipo de organização tal estatuto decorre. 2) Pode-se notar que, da mesma forma, a segmentaridade circular entre os primitivos não implica necessariamente que os círculos sejam concêntricos ou que tenham um mesmo centro. Num regime flexível, os centros já procedem como nós, olhos ou buracos negros; porém não ressoam todos juntos, não caem num mesmo ponto, não convergem para um mesmo buraco negro central. Há uma multiplicidade de olhos animistas que faz com que cada um deles, por exemplo, seja afetado por um espírito animal particular (o espírito-serpente, o espírito pica-pau, o espírito-jacaré...). Cada buraco negro é ocupado por um olho animal diferente. Sem dúvida pode-se ver desenhar-se, aqui e ali, operações de endurecimento e centralização: é preciso que todos os centros passem por um só círculo que, por sua vez, não tem mais do que um centro. O xamã traça linhas entre todos os pontos ou espíritos, desenha uma constelação, um conjunto irradiante de raízes que remete a uma árvore central. Nascimento de um poder centralizado onde um sistema arborescente vem disciplinar as erupções do

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rizoma primitivo5? E a árvore, aqui, desempenha o papel de princípio de dicotomia ou de binaridade e, ao mesmo tempo, de eixo de rotação... Mas o poder do xamã é ainda totalmente localizado, estreitamente dependente de um segmento particular, condicionado pelas drogas, e cada ponto continua a emitir suas sequências independentes. Não se pode dizer o mesmo das sociedades modernas, ou até dos Estados. Certamente, o centralizado não se opõe ao segmentário, e os círculos permanecem distintos. Mas eles se tornam concêntricos, definitivamente arborificados. A segmentaridade torna-se dura, na medida em que todos os centros ressoam, todos os buracos negros caem num ponto de acumulação — como um ponto de cruzamento em algum lugar atrás de todos os olhos. O rosto do pai, do professor primário, do coronel, do patrão se põem a redundar, remetendo a um centro de significância que percorre os diversos círculos e repassa por todos os segmentos. As microcabeças flexíveis, as rostificações animais são substituídas por um macro-rosto cujo centro está por toda parte e a circunferência em parte alguma. Não se tem mais n olhos no céu ou nos devires vegetais e animais, mas sim um olho central computador que varre todos os raios. O Estado central não se constituiu pela abolição de uma segmentaridade circular, mas por concentricidade dos círculos distintos ou por uma ressonância dos centros. Existem já nas sociedades primitivas tantos centros de poder quanto nas sociedades com Estado; ou, se preferimos, existem ainda nas sociedades com Estado tantos centros de poder quanto nas primitivas. Mas as sociedades com Estado se comportam como aparelhos de ressonância, elas organizam a ressonância, enquanto que as primitivas as inibem6. 3) Enfim, do ponto de vista de uma segmentaridade linear, diríamos que cada segmento se encontra realçado, rectificado, homogeneizado no que o concerne, mas também em relação aos outros. Não só cada um tem sua unidade de medida, mas há equivalência e traduzibilidade das unidades entre si. É que o olho central tem por correlato um espaço em que ele se desloca, sendo que ele próprio

Sobre a iniciação de um xamã e o papel da árvore entre os índios Yanomamis, cf. Jacques Lizot, p. 127-135: “Entre seus pés cava-se às pressas um buraco, no qual se introduz o pé do mastro que é fincado ali. Turaewë traça no solo linhas imaginárias que irradiam ao seu redor. Ele diz: são raízes”. 5

O Estado portanto não se define apenas por um tipo de poderes, públicos, mas como uma caixa de ressonância para os poderes tanto privados quanto públicos. É nesse sentido que Althusser pode dizer: “A distinção do público e do privado é uma distinção interior ao direito burguês, e válida nos domínios subordinados onde o direito burguês exerce seus poderes. O domínio do Estado lhe escapa, pois ele está para além do Direito. (...). Ele é, ao contrário, a condição de qualquer distinção entre o público e o privado”. (“Idéologie et appareils idéologiques d’État”, La Pensée, junho 1970). 6

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permanece invariante em relação aos seus deslocamentos. Desde a cidade grega e a reforma de Clístenes, aparece um espaço político homogêneo e isótopo que vem sobrecodificar os segmentos de linhagens, ao mesmo tempo que as distintas habitações se põem a ressoar num centro que atua como denominador comum7. E, mais distante que a cidade grega, Paul Virilio mostra como o Império Romano impõe uma razão de Estado linear ou geométrica, que comporta um desenho geral dos campos e das praças fortes, uma arte universal de “demarcar por traçados”, um planejamento territorial, uma substituição dos lugares e territorialidades pelo espaço, uma transformação do mundo em cidade, em suma uma segmentaridade cada vez mais dura8. É que os segmentos, realçados ou sobrecodificados, parecem ter perdido assim sua faculdade de brotar, sua relação dinâmica com segmentações em ato, que se fazem e se desfazem. Se há uma “geometria” primitiva (protogeometria) é uma geometria operatória em que as figuras nunca são separáveis de suas afecções, as linhas de seu devir-, os segmentos de sua segmentação: há “arredondamentos”, mas não círculo, “alinhamentos”, mas não linha reta, etc. Ao contrário, a geometria de Estado, ou melhor, a ligação do Estado com a geometria, se manifestará no primado do elemento-teorema, que substitui formações morfológicas flexíveis por essências ideais ou fixas, afectos por propriedades, segmentações em ato por segmentos prédeterminados. A geometria e a aritmética adquirem a potência de um escalpelo. A propriedade privada implica um espaço sobrecodificado e esquadrinhado pelo cadastro. Não só cada linha tem seus segmentos, como também os segmentos de uma correspondem aos de outra: por exemplo, o regime salarial fará corresponder segmentos monetários, segmentos de produção e segmentos de bens consumíveis. Podemos resumir as principais diferenças entre a segmentaridade dura e a segmentaridade flexível. Sob o modo duro, a segmentaridade binária vale por si mesma e depende de grandes

J.-P. Vernant, Mythe et pensée chez les grecs, Maspero, 1.1, 3ª parte (“Tornando-se comum, edificando-se sobre o espaço público e aberto da agora, não mais no interior das moradas privadas (...)., a habitação exprime de agora em diante o centro enquanto denominador comum de todas as casas que constituem a polis”, p.210). 7

Virilio, L’insécurité du territoire. Stock, 1976, p. 120, p. 174-175. Sobre a “castrametação”: “a geometria é a base necessária para uma expansão calculada do poder do Estado no espaço e no tempo; portanto, o Estado possui em si, inversamente, uma figura suficiente, ideal, contanto que ela seja idealmente geométrica. (...). Mas Fénelon, opondo-se à política de Estado de Luiz XIV, grita: Desconfiem dos feitiços e dos atributos diabólicos da geometria!”. 8

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máquinas de binarização direta, enquanto que sob o outro modo as binaridades resultam de “multiplicidades com n dimensões”. Em segundo lugar, a segmentaridade circular tende a se tornar concêntrica, isto é, ela faz coincidir todas as habitações num só centro, o qual não para de se deslocar, mas permanece invariante em seus deslocamentos, remetendo a uma máquina de ressonância. Enfim, a segmentaridade linear passa por uma máquina de sobrecodificação que constitui o espaço homogêneo more geométrico e traça segmentos determinados em sua substância, sua forma e suas correlações. Notaremos que, a cada vez, a Árvore exprime essa segmentaridade endurecida. A Árvore é nó de arborescência ou princípio de dicotomia; ela é eixo de rotação que assegura a concentricidade; ela é estrutura ou rede esquadrinhando o possível. Mas, se opomos assim uma segmentaridade arborificada à segmentação rizomática, não é só para indicar dois estados de um mesmo processo, é também para evidenciar dois processos diferentes, pois as sociedades primitivas procedem essencialmente por códigos e territorialidades. É inclusive a distinção entre esses dois elementos, sistema tribal dos territórios, sistema de clãs das linhagens, que impede a ressonância9, ao passo que as sociedades modernas ou com Estado substituíram os códigos desgastados por uma sobrecodificação unívoca, e as territorialidades perdidas por uma reterritorialização específica (que se faz precisamente em espaço geométrico sobrecodificado). A segmentaridade aparece sempre como o resultado de uma máquina abstrata; mas não é a mesma máquina abstrata que opera no duro e no flexível. Não basta pois opor o centralizado e o segmentário. Mas tampouco basta opor duas segmentaridades, uma flexível e primitiva, a outra moderna e endurecida, pois as duas efetivamente se distinguem mas são inseparáveis, embaralhadas uma com a outra, uma na outra. As sociedades primitivas têm núcleos de dureza, de arborificação, que tanto antecipam o Estado quanto o conjuram. Inversamente, nossas sociedades continuam banhando num tecido flexível sem o qual os segmentos duros não

Meyer Fortes analisa a diferença nos Tallensis, entre “guardiões da terra” e chefes. Esta distinção de poderes é bastante geral nas sociedades primitivas; mas o que conta é que ela esteja organizada precisamente de modo a impedir a ressonância dos poderes. Por exemplo, seguindo a análise de Berthe sobre os Baduj de Java, o poder do guardião da terra é por um lado considerado como passivo ou feminino, por outro lado ele é atribuído ao primogênito: não se trata de uma “intrusão do parentesco na ordem política”, mas, ao contrário, “uma exigência de ordem política traduzida em termos de parentesco”, para impedir o estabelecimento de uma ressonância da qual decorreria a propriedade privada (cf. Louis Berthe, “Ainés et cadets, 1’alliance et la hiérarchie chez les Baduj”, L’Homme, julho de 1965). 9

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vingariam. Não se pode atribuir a segmentaridade flexível aos primitivos. Ela não é nem mesmo a sobrevivência de um selvagem em nós; é uma função perfeitamente atual e inseparável da outra. Toda sociedade, mas também todo indivíduo, são pois atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular. Se elas se distinguem, é porque não têm os mesmos termos, nem as mesmas correlações, nem a mesma natureza, nem o mesmo tipo de multiplicidade. Mas, se são inseparáveis, é porque coexistem, passam uma para a outra, segundo diferentes figuras como nos primitivos ou em nós - mas sempre uma pressupondo a outra. Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica. Consideremos conjuntos do tipo percepção ou sentimento: sua organização molar, sua segmentaridade dura, não impede todo um mundo de microperceptos inconscientes, de afectos inconscientes, de segmentações finas, que não captam ou não sentem as mesmas coisas, que se distribuem de outro modo, que operam de outro modo. Uma micropolítica da percepção, da afecção, da conversa, etc. Se consideramos os grandes conjuntos binários, como os sexos ou as classes, vemos efetivamente que eles ocorrem também nos agenciamentos moleculares de outra natureza e que há uma dupla dependência recíproca, pois os dois sexos remetem a múltiplas combinações moleculares, que põem em jogo não só o homem na mulher e a mulher no homem, mas a relação de cada um no outro com o animal, a planta, etc.: mil pequenos sexos. E as próprias classes sociais remetem a “massas” que não têm o mesmo movimento, nem a mesma repartição, nem os mesmos objetivos, nem as mesmas maneiras de lutar. As tentativas de distinguir massa e classe tendem efetivamente para este limite: a noção de massa é uma noção molecular, procedendo por um tipo de segmentação irredutível à segmentaridade molar de classe. No entanto as classes são efetivamente talhadas nas massas, elas as cristalizam. E as massas não param de vazar, de escoar das classes. Mas sua pressuposição recíproca não impede a diferença de ponto de vista, de natureza, de escala e de função (a noção de massa, assim compreendida, tem uma acepção totalmente diferente da que propõe Canetti). Não basta definir a burocracia por uma segmentaridade dura, com divisão entre as repartições contíguas, chefe de repartição em cada segmento, e a centralização correspondente no fundo do corredor ou no alto da torre. Pois há ao mesmo tempo toda uma segmentação burocrática, uma flexibilidade e uma comunicação entre repartições, uma perversão de burocracia, uma

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inventividade ou criatividade permanentes que se exercem inclusive contra os regulamentos administrativos. Se Kafka é o maior teórico da burocracia, é porque ele mostra como, num certo nível (mas qual? e que não é localizável), as barreiras entre repartições deixam de ser “limites precisos”, mergulham num meio molecular que as dissolve, ao mesmo tempo que ele faz proliferar o chefe em microfiguras impossíveis de reconhecer, de identificar, e que são tão pouco discerníveis quanto centralizáveis: um outro regime que coexiste com a separação e a totalização dos segmentos duros10. Diremos, da mesma forma, que o fascismo implica um regime molecular que não se confunde nem com os segmentos molares nem com sua centralização. Sem dúvida, o fascismo inventou o conceito de Estado totalitário, mas não há por que definir o fascismo por uma noção que ele próprio inventa: há Estados totalitários sem fascismo, do tipo estalinista ou do tipo ditadura militar. O conceito de Estado totalitário só vale para uma escala macropolítica, para uma segmentaridade dura e para um modo especial de totalização e centralização. Mas o fascismo é inseparável de focos moleculares, que pululam e saltam de um ponto a outro, em interação, antes de ressoarem todos juntos no Estado nacional-socialista. Fascismo rural e fascismo de cidade ou de bairro, fascismo jovem e fascismo ex-combatente, fascismo de esquerda e de direita, de casal, de família, de escola ou de repartição: cada fascismo se define por um microburaco negro, que vale por si mesmo e comunica com os outros, antes de ressoar num grande buraco negro central generalizado 11. Há fascismo quando uma máquina de guerra encontra-se instalada em cada buraco, em cada nicho. Mesmo quando o Estado nacional-socialista se instala, ele tem necessidade da persistência desses microfascismos que lhe dão um meio de ação incomparável sobre as “massas”. Daniel Guérin tem razão em dizer que se Hitler conquistou o poder mais do que o Estado Maior Alemão, foi porque dispunha em primeiro lugar de microorganizações que lhe davam “um meio incomparável,

Kafka, Le Château, sobretudo cap. XIV (as declarações de Barnabé). A parábola das duas repartições - molar e molecular - não Cem, assim, uma interpretação apenas física como a de Eddington, mas também uma interpretação propriamente burocrática. 10

A força do livro de Faye, Langages totalitaires, Hermann, está em ter mostrado a multiplicidade de tais focos, práticos e semióticos, a partir dos quais se constitui o nazismo. É por isso que Faye é ao mesmo tempo o primeiro a fazer uma análise rigorosa do conceito de Estado totalitário (em sua origem italiana e alemã), e também a recusar-se a definir o fascismo italiano e o nazismo alemão por esse conceito (que funciona num plano diferente do “processo subjacente”). Sobre todos esses pontos, Faye explicou-se em La critique du langage et son économie, Ed. Galilée. 11

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insubstituível, de penetrar em todas as células da sociedade”, segmentaridade maleável e molecular, fluxos capazes da banhar cada gênero de células. Inversamente, se o capitalismo acabou por considerar a experiência fascista catastrófica, se ele preferiu aliar-se ao totalitarismo estalinista, muito mais sensato e tratável para o seu gosto, é que este tinha uma segmentaridade e uma centralização mais clássicas e menos fluentes. E uma potência micropolítica ou molecular que torna o fascismo perigoso, porque é um movimento de massa: um corpo canceroso mais do que um organismo totalitário. O cinema americano mostrou com frequência esses focos moleculares, fascismo de bando, de gangue, de seita, de família, da aldeia, de bairro, de carro e que não poupa ninguém. Não há senão o microfascismo para dar uma resposta à questão global: por que o desejo deseja sua própria repressão, como pode ele desejar sua repressão? É verdade que as massas não suportam passivamente o poder; elas tampouco “querem” ser reprimidas, numa espécie de histeria masoquista e tampouco estão enganadas por um engodo ideológico. Mas o desejo nunca é separável de agenciamentos complexos que passam necessariamente por níveis moleculares, microformações que moldam de antemão as posturas, as atitudes, as percepções, as antecipações, as semióticas, etc. O desejo nunca é uma energia pulsional indiferenciada, mas resulta ele próprio de uma montagem elaborada, de um engineering de altas interações: toda uma segmentaridade flexível que trata de energias moleculares e determina eventualmente o desejo de já ser fascista. As organizações de esquerda não são as últimas a secretar seus microfascismos. É muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver o fascista que nós mesmos somos, que entretemos e nutrimos, que estimamos com moléculas pessoais e coletivas. Evitaremos quatro erros que concernem essa segmentaridade maleável e molecular. O primeiro é axiológico e consistiria em acreditar que basta um pouco de flexibilidade para ser “melhor”. Mas o fascismo é tanto mais perigoso por seus microfascismos, e as segmentações finas são tão nocivas quanto os segmentos mais endurecidos. O segundo é psicológico, como se o molecular pertencesse ao domínio da imaginação e remetesse somente ao individual ou ao interindividual. Mas não há menos Real-social numa linha do que na outra. Em terceiro lugar, as duas formas não se distinguem simplesmente pelas dimensões, como uma forma pequena e uma grande; e se é verdade que o molecular opera no detalhe e passa por pequenos grupos, nem por isso ele é menos coextensivo a todo campo social, tanto quanto a organização molar. Enfim, a diferença qualitativa

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das duas linhas não impede que elas se aticem ou se confirmem de modo que há sempre uma relação proporcional entre as duas, seja diretamente proporcional, seja inversamente proporcional. Com efeito, num primeiro caso, quanto mais a organização molar é forte, mais ela própria suscita uma molecularização de seus elementos, suas relações e seus aparelhos elementares. Quando a máquina torna-se planetária ou cósmica, os agenciamentos têm uma tendência cada vez maior a se miniaturizar e a tornar-se microagenciamentos. Segundo a fórmula de Gorz, o capitalismo mundial não tem mais como elemento de trabalho senão um indivíduo molecular, ou molecularizado, isto é, de “massa”. A administração de uma grande segurança molar organizada tem por correlato toda uma microgestão de pequenos medos, toda uma insegurança molecular permanente, a tal ponto que a fórmula dos ministérios do interior poderia ser: uma macropolítica da sociedade para e por uma micropolítica da insegurança12. No entanto, o segundo caso é mais importante ainda, dado que os movimentos moleculares não vêm mais completar, mas contrariar e furar a grande organização mundial. É o que dizia o presidente Giscard d'Estaing em sua lição de geografia política e militar: quanto mais se equilibra entre leste e oeste, numa máquina dual, sobrecodificante e superarmada, mais se “desestabiliza” numa outra linha, do norte ao sul. Há sempre um Palestino mas também um Basco, um Corso, para fazer uma “desestabilização regional da segurança”13. Assim, os dois conjuntos molares no leste e no oeste são permanentemente trabalhados por uma segmentação molecular, com fissura em ziguezague, que faz com que eles tenham dificuldade em reter seus próprios segmentos. Como se uma linha de fuga, mesmo que começando por um minúsculo riacho, sempre corresse entre os segmentos, escapando de sua centralização, furtando-se à sua totalização. Os profundos movimentos que agitam uma sociedade se apresentam assim, ainda que sejam necessariamente “representados” como um afrontamento de segmentos molares. Diz-se erroneamente (sobretudo no marxismo) que uma sociedade se define por suas contradições. Mas isso só é verdade em grande escala. Do ponto de vista da micropolítica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que são moleculares.

Sobre essa complementaridade “macropolítica da segurança - micropolítica do terror “, cf. Virilio, ibid., pp. 96, 130, 228235. Notamos frequentemente nas grandes cidades modernas essa microorganização de um “stress” permanente. 12

V. Giscard d’Estaing, discurso de Io de junho de 1976 no Institutdes Hautes Études de Défense Nationale (texto integral no Le Monde, 4 de junho de 1976). 13

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Sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação: aquilo que se atribui a uma “evolução dos costumes”, os jovens, as mulheres, os loucos, etc. Maio de 68 na França era molecular, e suas condições ainda mais imperceptíveis do ponto de vista da macropolítica. Acontece então de pessoas muito limitadas ou muito velhas captarem o acontecimento melhor do que os mais avançados homens políticos, ou que assim se acreditam do ponto de vista da organização. Como dizia Gabriel Tarde, seria preciso saber que camponeses, e em que regiões do Midi, começaram a não mais cumprimentar os proprietários da vizinhança. Um proprietário muito velho e ultrapassado pode avaliar as coisas, a esse respeito, melhor do que um modernista. Maio de 68 é a mesma coisa: todos aqueles que julgavam em termos de macropolítica nada compreenderam do acontecimento, porque algo de inassinalável escapava. Os homens políticos, os partidos, os sindicatos, muitos homens de esquerda, ficaram com raiva; eles ficavam lembrando sem parar que as “condições” não estavam dadas. É como se tivessem sido destituídos provisoriamente de toda a máquina dual que fazia deles interlocutores válidos. Estranhamente, de Gaulle e até Pompidou compreenderam muito melhor do que os outros. Um fluxo molecular escapava, minúsculo no começo, depois aumentando sem deixar de ser inassinalável... No entanto, o inverso é também verdadeiro: as fugas e os movimentos moleculares não seriam nada se não repassassem pelas organizações molares e não remanejassem seus segmentos, suas distribuições binárias de sexos, de classes, de partidos. A questão é, portanto, que o molar e o molecular não se distinguem somente pelo tamanho, escala ou dimensão, mas pela natureza do sistema de referência considerado. Talvez então seja preciso reservar as palavras “linha” e “segmentos” para a organização molar, e buscar outras palavras que convenham melhor à composição molecular. Com efeito, cada vez que se pode assinalar uma linha de segmentos bem determinados, percebe-se que ela se prolonga de uma outra forma, num fluxo de quanta. E a cada vez podese situar um “centro de poder” como estando na fronteira dos dois, e defini-lo não por seu exercício absoluto num campo, mas pelas adaptações e conversões relativas que ele opera entre a linha e o fluxo. Suponhamos uma linha monetária com segmentos. Tais segmentos podem ser determinados de diferentes pontos de vista – por exemplo, do ponto de vista de um orçamento de empresa: salários reais, lucros brutos, salários de direção, juros de capitais, reservas, investimentos..., etc. Ora essa linha de moeda-pagamento remete a todo um outro aspecto, isto é, a um fluxo de

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moeda-financiamento que não comporta mais segmentos, e sim polos, singularidades e quanta (os polos do fluxo são a criação e a destruição da moeda, as singularidades são as disponibilidades nominais, os quanta são inflação, deflação, estagflação, etc).. Foi possível falar a esse respeito de um “fluxo mutante, convulsivo, criador e circulatório”, vinculado ao desejo, sempre subjacente à linha sólida e aos segmentos que nele determinam o juro, a oferta e a demanda14. Numa balança de pagamento, reencontramos uma segmentaridade binária, que distingue, por exemplo, operações ditas autônomas e operações ditas compensatórias; mas, precisamente, os movimentos de capitais não se deixam segmentarizar assim, porque são “os mais decompostos, em função de sua natureza, de sua duração, da personalidade do credor e do devedor”, de modo que “não se sabe mais onde colocar a linha” em relação a esse fluxo15. Nem por isso deixa de haver uma perpétua correlação dos dois aspectos, pois é com a linearização e a segmentarização que um fluxo se esgota, e é delas também que parte uma nova criação. Quando se fala de um poder bancário, concentrado principalmente nos bancos centrais, trata-se justamente desse poder relativo que consiste em regular “tanto quanto” possível a comunicação, a conversão, a coadaptação das duas partes do circuito. É por isso que os centros de poder se definem por aquilo que lhes escapa, pela sua impotência, muito mais do que por sua zona de potência. Em suma, o molecular, a microeconomia, a micropolítica, não se define no que lhe concerne pela pequenez de seus elementos, mas pela natureza de sua “massa” - o fluxo de quanta, por sua diferença em relação à linha de segmentos molar16. A tarefa de fazer segmentos corresponderem aos quanta, de ajustar os segmentos de acordo com os quanta, implica mudanças de ritmo e de modo, mudanças que bem ou mal vão se fazendo, mais do que uma onipotência; e sempre escapa alguma coisa.

Sobre o “fluxo de poder mutante” e a distinção das duas moedas, cf. Bernard Schmitt, Monnaie, salaires et profits, Ed. Castella, pp. 236, 275-277. 14

15

Michel Lelart, Le dollar monnaie internationale, Ed. Albatros, p. 57.

Tomemos a análise de Foucault e o que ele chama de “microfísica do poder”, em Surveiller et punir: em primeiro lugar, trata-se efetivamente de mecanismos miniaturizados, de focos moleculares que se exercem no detalhe ou no infinitamente pequeno, e que constituem “disciplinas” igualmente na escola, no exército, na fábrica, na prisão, etc. (cf. pp. 140 e seg).. Mas, em segundo lugar, estes próprios segmentos e os focos que os trabalham em escala microfísica apresentam-se como as singularidades de um “diagrama” abstrato, coextensivo a todo o campo social, ou como quanta extraídos de um fluxo qualquer - sendo o fluxo qualquer definido por “uma multiplicidade de indivíduos” a ser controlada (cf. pp. 207 e seg).. 16

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Poderíamos tomar outros exemplos. Assim, quando se fala de um poder de Igreja, esse poder sempre esteve em relação com uma certa administração do pecado, que comporta uma forte segmentaridade: gêneros de pecado (sete pecados capitais), unidades de medida (quantas vezes?), regras de equivalência e de remissão (confissão, penitência...). Mas muito diferente, embora complementar, é aquilo que poderíamos chamar de fluxo molecular de pecabilidade: este encerra a zona linear, ele é como que negociado através dela, mas não comporta em si mesmo senão polos (pecado original - redenção ou graça) e quanta (“pecado de não atingir a consciência do pecado”, pecado da consciência do pecado, pecado da continuação da consciência do pecado)17. Poderíamos dizer o mesmo de um fluxo de criminalidade, por sua diferença em relação à linha molar de um código jurídico e suas divisões. Ou então, quando se fala de um poder militar, de um poder de exército, considera-se uma linha segmentarizável segundo tipos de guerra, que correspondem precisamente aos Estados que fazem a guerra e às metas políticas que tais Estados se propõem (da guerra “limitada” à guerra “total”). Mas, de acordo com a intuição de Clausewitz, muito diferente é a máquina de guerra, isto é, um fluxo de guerra absoluta que escoa de um polo ofensivo a um polo defensivo e não é marcado senão por quanta (forças materiais e psíquicas que são como que disponibilidades nominais da guerra). Do fluxo puro, pode-se dizer que ele é abstrato e no entanto real; ideal e no entanto eficaz; absoluto e no entanto “diferenciado”. É verdade que não se apreende o fluxo e seus quanta senão através dos índices da linha de segmentos; mas, inversamente, esta e aqueles não existem senão através do fluxo que os banha. Em todos os casos, vê-se que a linha de segmentos (macropolítica) mergulha e se prolonga num fluxo de quanta (micropolítica) que não para de remanejar seus segmentos, de agitá-los:

A: fluxo e polos a: quanta b: linha e segmentos B: centro de poder (O conjunto é um ciclo ou um período)

Sobre a “pecabilidade quantitativa”, os quanta e o salto qualitativo, nos reportaremos a toda uma microteologia constituída por Kierkegaard em Le concept d’angoisse. 17

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Homenagem a Gabriel Tarde (1843-1904): sua obra, por muito tempo esquecida, reencontrou atualidade sob influência da sociologia americana, especialmente a microssociologia. Ele tinha sido esmagado por Durkheim e sua escola (numa polêmica do mesmo gênero e tão dura quanto a de Cuvier contra Geoffroy Saint-Hilaire). É que Durkheim encontrava um objeto privilegiado nas grandes representações coletivas, geralmente binárias, ressoantes, sobrecodificadas... Tarde objecta que as representações coletivas supõem aquilo que é preciso explicar, isto é, “a similitude de milhões de homens”. É por isso que Tarde se interessa mais pelo mundo do detalhe ou do infinitesimal: as pequenas imitações, aposições e invenções, que constituem toda uma matéria sub-representativa. E as melhores páginas de Tarde são aquelas em que ele analisa uma minúscula inovação burocrática, ou linguística, etc. Os durkheimianos responderam que se tratava de psicologia ou interpsicologia, e não de sociologia. Mas isso só é verdadeiro aparentemente, numa primeira aproximação: uma microimitação parece efetivamente ir de um indivíduo a um outro. Ao mesmo tempo, e mais profundamente, ela diz respeito a um fluxo ou a uma onda, e não ao indivíduo. A imitação é a propagação de um fluxo: a oposição é a binarização, a colocação dos fluxos em binaridade; a invenção é uma conjugação ou uma conexão de fluxos diversos. E o que é fluxo, segundo Tarde? É crença ou desejo (os dois aspectos de todo agenciamento); um fluxo é sempre de crença e de desejo. As crenças e os desejos são o fundo de toda sociedade, porque são fluxos “quantificáveis” enquanto tais, verdadeiras Quantidades sociais, enquanto que as sensações são qualitativas e as representações, simples resultantes18. A imitação, a oposição, a invenção infinitesimais são, portanto, como quanta de fluxo, que marcam uma propagação, uma binarização ou uma conjugação de crenças e de desejos. Daí a importância da estatística, desde que ela se ocupe das pontas e não só da zona “estacionaria” das representações, pois, afinal de contas, a diferença não é absolutamente entre o social e o individual (ou interindividual), mas entre o campo molar das representações, sejam elas coletivas ou individuais, e o campo molecular das crenças e dos desejos, onde a distinção entre o social e o indivíduo perde todo sentido, uma vez que os fluxos não são mais

Segundo Tarde, a psicologia é quantitativa, mas na medida em que ela estuda os componentes de desejo e de crença na sensação. E a lógica é quantitativa quando não se atem às formas de representação, mas atinge os graus de crença e de desejo e suas combinações; cf. La logique sociale, Alcan, 1893. 18

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atribuíveis a indivíduos do que sobrecodificáveis por significantes coletivos. Enquanto que as representações definem de antemão grandes conjuntos ou segmentos determinados numa linha, as crenças e os desejos são fluxos marcados de quanta, que se criam, se esgotam ou se modificam, e que se somam, se subtraem ou se combinam. Tarde é o inventor de uma microssociologia, à qual ele dá toda sua extensão e alcance, denunciando por antecipação os contrassensos de que será vítima. Eis como se poderia distinguir a linha de segmentos e o fluxo de quanta. Um fluxo mutante implica sempre algo que tende a escapar aos códigos não sendo, pois, capturado, e a evadir-se dos códigos, quando capturado; e os quanta são precisamente signos ou graus de desterritorialização no fluxo descodificado. Ao contrário, a linha dura implica uma sobrecodificação que substitui os códigos desgastados e os segmentos são como que reterritorializações na linha sobrecodificante ou sobrecodificada. Voltemos ao caso do pecado original: é o próprio ato de um fluxo que marca uma descodificação relativamente à criação (com uma só ilhota conservada para a Virgem) e uma desterritorialização relativamente à terra adâmica; mas ele opera ao mesmo tempo uma sobrecodificação através de organizações binárias e de ressonância (Poderes, Igreja, impérios, ricos-pobres, homens-mulheres..., etc)., e reterritorializações complementares (na terra de Caim, no trabalho, na geração, no dinheiro...). Ora, simultaneamente: os dois sistemas de referência estão em razão inversa, no sentido em que um escapa do outro e o outro detém o um, impedindo-o de fugir mais; mas eles são estritamente complementares e coexistentes, porque um não existe senão em função do outro; e, no entanto, são diferentes, em razão direta, mas sem se corresponder termo a termo, porque o segundo não detém efetivamente o primeiro senão num “plano” que não é mais o plano do primeiro, e porque o primeiro continua seu impulso em seu próprio plano. Um campo social não para de ser animado por toda espécie de movimentos de descodificação e de desterritorialização que afeta “massas”, segundo velocidades e andamentos diferentes. Não são contradições, são fugas. Tudo é problema de massa, nesse nível. Por exemplo, por volta dos séculos X-XIV, vemos precipitarem-se os fatores de descodificação e as velocidades de desterritorialização: massas dos últimos invasores surgindo do norte, do leste e do sul; massas militares tornando-se bandos de pilhagem; massas eclesiásticas tornando-se alvo de infiéis e hereges e se propondo objetivos cada vez mais desterritorializados; massas camponesas deixando os domínios senhoriais; massas senhoriais tendo que encontrar elas próprias meios de exploração muito menos

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territoriais do que a servidão; massas urbanas separando-se do interior do país e encontrando nas cidades equipamentos cada vez menos territorializados; massas femininas desprendendo-se do antigo código passional e conjugai; massas monetárias deixando de ser objeto de entesouramento para injetar-se nos grandes circuitos comerciais19. Podese citar as Cruzadas como operando uma conexão desses fluxos, de tal modo que cada um relança e precipita os outros (inclusive o fluxo de feminilidade na “Princesa longínqua”, e também o fluxo de crianças nas Cruzadas do século XIII). Mas é ao mesmo tempo e de modo inseparável que se produzem as sobrecodificações e as reterritorializações. As Cruzadas são sobrecodificadas pelo papa, que também lhes estabelece objetivos territoriais. A Terra santa, a paz de Deus, um novo tipo de abadias, novas figuras da moeda, novos modos de exploração do camponês por arrendamento e assalariamento (ou volta à escravatura), reterritorializações de cidade, etc., formam um sistema complexo. Desse ponto de vista, portanto, devemos introduzir uma diferença entre duas noções, a conexão e a conjugação dos fluxos, pois se a “conexão” marca a maneira pela qual os fluxos descodificados e desterritorializados são lançados uns pelos outros, precipitam sua fuga comum e adicionam ou aquecem seus quanta, a “conjugação” desses mesmos fluxos indica sobretudo sua parada relativa, como um ponto de acumulação que agora obstrui ou veda as linhas de fuga, opera uma reterritorialização geral, e faz passar os fluxos sob o domínio de um deles, capaz de sobrecodificá-los. Mas é sempre exatamente o fluxo mais desterritorializado, conforme o primeiro aspecto, que opera a acumulação ou a conjugação dos processos, determina a sobrecodificação e serve de base para a reterritorialização, conforme o segundo aspecto (encontramos um teorema segundo o qual é sempre sobre o mais desterritorializado que se faz a reterritorialização). Assim a burguesia comerciante das cidades conjuga ou capitaliza um saber, uma tecnologia, agenciamentos e circuitos sob a dependência dos quais entrarão a nobreza, a Igreja, os artesãos e os próprios camponeses. É porque ela é ponta da desterritorialização, verdadeiro acelerador de partículas, que ela opera também a reterritorialização de conjunto. A tarefa do historiador é assinalar o “período” de coexistência ou de simultaneidade dos dois movimentos (de um lado, descodificação-deterritorialização e, de outro, sobrecodificação-reterritorialização). E é nesse período que se distingue o aspecto

Sobre todos estes pontos, cf. especialmente Dobb, Études sur le développement du capitalisme, Maspero; Duby, Guerriers et paysans, Gallimard. 19

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molecular do aspecto molar: de um lado as massas ou fluxos, com suas mutações, seus quanta de desterritorialização, suas conexões, suas precipitações; de outro lado, as classes ou segmentos, com sua organização binária, sua ressonância, sua conjunção ou acumulação, sua linha de sobrecodificação em proveito de uma delas20. A diferença entre uma macro-história e uma micro-história não concerne de modo algum o tamanho das durações consideradas, o grande e o pequeno, mas sistemas de referência distintos, conforme se considere uma linha sobrecodificada de segmentos ou um fluxo mutante de quanta. E o sistema duro não detém o outro: o fluxo continua sob a linha, perpetuamente mutante, enquanto a linha totaliza. Massa e classe não têm os mesmos contornos nem a mesma dinâmica, ainda que o mesmo grupo seja afetado pelos dois signos. A burguesia como massa e como classe... Uma massa não tem com as outras massas as mesmas relações que a classe “correspondente” com as outras classes. Seguramente, não há menos relações de força e de violência de um lado do que do outro. Mas, precisamente, a mesma luta assume dois aspectos muito diferentes, onde as vitórias e as derrotas não são as mesmas. Os movimentos de massa se precipitam e se revezam (ou se apagam por um longo momento, com longos torpores), mas saltam de uma classe a outra, passam por mutações, exalam ou emitem novos quanta que vêm modificar as relações de classe, questionar novamente sua sobrecodificação e sua reterritorialização, fazer passar noutro lugar novas linhas de fuga. Há sempre um mapa variável das massas sob a reprodução das classes. A política opera por macrodecisões e escolhas binárias, interesses binarizados; mas o domínio do decidível permanece estreito. E a decisão política mergulha necessariamente num mundo de microdeterminações, atrações e desejos, que ela deve pressentir ou avaliar de um outro modo. Há uma avaliação dos fluxos e de seus quanta, sob as concepções

Foi Rosa Luxemburg (Oeuvres I, Maspero) quem levantou o problema das diferenças e das relações entre massas e classes, porém de um ponto de vista ainda subjetivo: as massas como “base instintiva da consciência de classe” (cf. o artigo de Boulte et Moiroux in “Rosa Luxemburg Vivante”, Partisans, 1969). Badiou e Balmès propõem uma hipótese mais objetiva: as massas seriam “invariantes” que se opõem à forma-Estado em geral e à exploração, enquanto que as classes seriam variáveis históricas que determinam o Estado concreto e, no caso do proletariado, a possibilidade de uma dissolução efetiva (De l’idéologie, Maspero). Mas não dá para perceber, de um lado, por que as massas não são elas próprias variáveis históricas; e, de outro, por que elas são reservadas aos explorados (“massa camponesa - plebéia”), quando a palavra é igualmente adequada para as massas senhoriais, burguesas - ou até monetárias. 20

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lineares e as decisões segmentárias. Uma página curiosa de Michelet condena Francisco I por ter mal avaliado o fluxo de emigração que empurrava para a França muita gente em luta contra a Igreja: Francisco I viu nisso apenas uma afluência de possíveis soldados, ao invés de perceber aí um fluxo molecular de massa de que a França teria podido tirar proveito, assumindo a liderança de uma Reforma diferente daquela que se produziu21. Os problemas se apresentam sempre desse jeito. Boa ou má, a política e seus julgamentos são sempre molares, mas é o molecular, com suas apreciações, que a “faz”. Estamos mais aptos a desenhar um mapa. Se reatribuímos à palavra “linha” um sentido muito geral, vemos que não há somente duas linhas, mas três linhas efetivamente: 1) Uma linha relativamente flexível de códigos e de territorialidades entrelaçados; é por isso que partimos de uma segmentaridade dita primitiva, na qual as segmentações de territórios e de linhagens compunha o espaço social; 2) Uma linha dura que opera a organização dual dos segmentos, a concentricidade dos círculos em ressonância, a sobrecodificação generalizada: o espaço social implica aqui um aparelho de Estado. É um sistema outro que o primitivo, precisamente porque a sobrecodificação não é um código ainda mais forte, mas um procedimento específico, diferente daquele dos códigos (assim como a reterritorialização não é um território a mais, mas se faz num outro espaço que os territórios - precisamente, no espaço geométrico sobrecodificado); 3) Uma ou algumas linhas de fuga, marcadas por quanta, definidas por descodificação e desterritorialização (há sempre algo como uma máquina de guerra funcionando nessas linhas). Mas essa apresentação tem ainda o inconveniente de fazer como se as sociedades primitivas fossem primeiras. Na verdade, os códigos nunca são separáveis do movimento de descodificação, os territórios, dos vetores de desterritorialização que os atravessam. E a sobrecodificação e a reterritorialização tampouco vêm depois. É antes como um espaço onde coexistem as três espécies de linhas estreitamente misturadas: tribos, impérios e máquinas de guerra. Poder-se-ia dizer igualmente que as linhas de fuga são primeiras, ou os segmentos já endurecidos, e que as segmentações flexíveis não param de oscilar entre os dois. Suponhamos uma proposição como a do historiador Pirenne, a respeito das tribos bárbaras: “Não foi espontaneamente que os Bárbaros se atiraram sobre o Império; eles foram para lá empurrados pela precipitação dos hunos, que

21

Michelet, Histoire de France, Ia Renaissance.

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iria determinar toda a sequência das invasões...22 Eis de um lado a segmentaridade dura do império romano, com seu centro de ressonância e sua periferia, seu Estado, sua pax romana, sua geometria, seus campos, suas fronteiras. E, depois, no horizonte, uma linha totalmente outra, a dos nômades que saem da estepe, empreendem uma fuga ativa e fluente, levando por toda a parte a desterritorialização, lançando fluxos cujos quanta se aquecem, acionados por uma máquina de guerra sem Estado. Os Bárbaros migrantes estão efetivamente entre os dois: eles vão e vêm, passam e repassam as fronteiras, pilham ou espoliam, mas também se integram e se reterritorializam. Ora penetram no império, do qual atribuem-se tal segmento, fazem-se mercenários ou federados, fixam-se, ocupam terras, ou eles próprios delineiam Estados (os sábios Visigodos). Ora, ao contrário, passam para o lado dos nômades e a eles se associam, tornando-se indiscerníveis (os brilhantes Ostrogodos). Talvez porque jamais deixaram de ser derrotados por Hunos e Visigodos, os Vândalos, “Godos de segunda zona”, traçam uma linha de fuga que os torna tão fortes quanto seus senhores: é o único bando ou massa a transpor o mediterrâneo. Mas são eles também que fazem a mais inesperada reterritorialização: um império da África23. Parece, portanto, que as três linhas não só coexistem, mas também se transformam, passam uma nas outras. E ainda citamos apenas um exemplo sumário, no qual as linhas são ilustradas por grupos diferentes. Tanto mais plausível quando se passa no mesmo grupo, no mesmo indivíduo. Seria preferível, a partir daí, considerar estados simultâneos da Máquina abstrata. De um lado, há uma máquina abstrata de sobrecodificação: é ela que define uma segmentaridade dura, uma macrossegmentaridade, porque ela produz, ou melhor, reproduz os segmentos, opondo-os de dois em dois, fazendo ressoar todos os seus centros, e estendendo um espaço homogêneo, divisível, esfriado em todos os sentidos. Uma máquina abstrata desse tipo remete ao aparelho de Estado. Não confundimos, no entanto, esta máquina abstrata e o aparelho de Estado. Definir-se-á, por exemplo, a máquina abstrata more geométrico, ou em outras condições por uma “axiomática”; mas o aparelho de Estado não é nem a geometria nem a axiomática: ele é apenas o agenciamento de reterritorialização que efetua a máquina de sobrecodificação em tais limites e sob tais condições. Pode-se só dizer que o aparelho de Estado tende mais ou menos a identificar-se com essa máquina

22

Pirenne, Mahomet et Charlemagne, P.U.F., p. 7.

Cf. Gautier E. F., Genséric. Roi des Vandales. Payot (“exatamente porque eram os mais fracos, eternamente empurrados por trás, é que foram forçados a ir mais longe”). 23

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abstrata que ele efetua. E aqui que a noção de Estado totalitário adquire seu sentido: um Estado torna-se totalitário quando, ao invés de efetuar em seus próprios limites a máquina mundial de sobrecodificação, ele identifica-se com ela, criando as condições de uma “autarquia”, fazendo uma reterritorialização por “vaso fechado”, por confinamento, no artifício do vazio (o que nunca é uma operação ideológica, mas sim econômica e política)24. Por outro lado, no outro polo, há uma máquina abstrata de mutação que opera por descodificação e desterritorialização. E ela que traça as linhas de fuga: pilota os fluxos de quanta, assegura a criação-conexão dos fluxos, emite novos quanta. Ela própria está em estado de fuga e erige máquinas de guerra sobre suas linhas. Se a máquina abstrata de mutação constitui um outro polo, é porque os segmentos duros ou molares não param de vedar, de obstruir, de barrar as linhas de fuga, enquanto ela não para de fazê-las escoar “entre” os segmentos duros e numa outra direção, submolecular. Mas também entre os dois polos há todo um domínio de negociação, de tradução, de transdução propriamente molecular, onde ora as linhas molares já estão trabalhadas por fissuras e fendas, ora as linhas de fuga já atraídas em direção a buracos negros, as conexões de fluxos já substituídas por conjunções limitativas, as emissões de quanta convertidas em pontoscentro. E é tudo ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo as linhas de fuga conectam e continuam suas intensidades, fazem jorrar signos-partículas fora dos buracos negros; mas elas se aplicam sobre buracos negros, onde rodopiam sobre conjunções moleculares que as interrompem; e ainda entram em segmentos estáveis, binarizados, concentrizados, voltados para um buraco negro central, sobrecodificados. A questão O que é um centro ou um foco de poder? é apropriada para mostrar o emaranhamento de todas essas linhas. Fala-se de um poder de exército, de Igreja, de escola, de um poder público ou privado... Os centros de poder concernem, evidentemente, os segmentos duros. Cada segmento molar tem seu, seus centros. Pode-se objetar que os próprios segmentos supõem um centro de poder como aquilo que os distingue e os reúne, os opõe e os faz ressoar. Mas não há contradição alguma entre as partes segmentárias e o aparelho centralizado. Por um lado, a mais dura segmentaridade não impede a centralização:

O que define o totalitarismo não é a importância de um setor público, pois a economia em muitos casos permanece liberal. É a constituição artificial de “vasos fechados”, de confinamento, especialmente monetário e mesmo industrial. É antes nesse sentido que o fascismo italiano e o nazismo alemão constituem Estados totalitários, como mostra Daniel Guérin (Fascisme et Grand Capital, Maspero, cap. IX). 24

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é que o ponto central comum não age como um ponto onde os outros pontos se confundiriam, mas como um ponto de ressonância no horizonte, atrás de todos os outros pontos. O Estado não é um ponto que toma para si a responsabilidade dos outros, mas uma caixa de ressonância para todos os pontos. E mesmo quando o Estado é totalitário, sua função de ressonância para centros e segmentos distintos não muda: ela apenas se faz em condições de vaso fechado, de isolamento que aumenta seu alcance interno, ou redobra a “ressonância” através de um “movimento forçado”. Por outro lado - e inversamente - a mais estrita centralização não suprime, assim, a distinção dos centros, dos segmentos e dos círculos. A linha sobrecodificadora, efetivamente, não se traça sem assegurar a prevalência de um segmento enquanto tal sobre o outro (no caso da segmentaridade binária), sem dar a tal centro um poder de ressonância relativa em relação a outros (no caso da segmentaridade circular), sem realçar o segmento dominante pelo qual ela própria passa (no caso da segmentaridade linear). Nesse sentido, a centralização é sempre hierárquica, mas a hierarquia é sempre segmentaria. Cada centro de poder é igualmente molecular, exercendo-se sobre um tecido micrológico onde ele só existe enquanto difuso, disperso, desacelerado, miniaturizado, incessantemente deslocado, agindo por segmentações finas, operando no detalhe e no detalhe do detalhe. A análise das “disciplinas” ou micropoderes, segundo Foucault (escola, exército, fábrica, hospital, etc)., atestam estes “focos de instabilidade” onde se afrontam reagrupamentos e acumulações, mas também escapadas e fugas, e onde se produzem inversões25. Não é mais “o” professor, mas o inspetor, o melhor aluno, o cabulador de aula, o zelador, etc. Não é mais o general, mas os oficiais subalternos, os suboficiais, o soldado em mim, o encrenqueiro também, cada um com suas tendências, seus polos, seus conflitos, suas relações de força. E mesmo o ajudante-de-ordens, o zelador só estão sendo invocados para que se compreenda melhor, pois eles têm um lado molar e um lado molecular, e tornam evidente que também o general, o proprietário já tinham os dois lados. Diríamos que o nome próprio não perde seu poder, mas encontra um novo poder quando entra nessas zonas de indiscernibilidade. Para falar como Kafka, não é mais o funcionário

Foucault, Surveiller et punir, p. 32: “Tais relações vão fundo na espessura da sociedade, elas não se localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou na fronteira das classes, e não se contentam em reproduzir (...). a forma geral da lei ou do governo. (...). Elas definem inúmeros pontos de afrontamento, focos de instabilidade comportando cada um seus riscos de conflito, de lutas e de inversão ao menos transitória das relações de força”. 25

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Klamm, mas talvez seu secretário Momus ou outros Klamm moleculares, cujas diferenças, entre si e em relação a Klamm, são tão maiores que não podem mais ser assinaladas (“esses funcionários não se contentam sempre com os mesmos livros, mas eles não os mudam de lugar, eles próprios é que mudam de lugar, sendo obrigados a se esmagar uns contra os outros por causa da estreiteza da passagem...”. “Este funcionário se parece efetivamente com Klamm, e se estivesse no escritório dele, em sua escrivaninha, e com seu nome na porta, eu não duvidaria nem um instante...”, diz Barnabé, que sonharia com uma segmentaridade unicamente molar, por mais dura e terrível que fosse, como única garantia de certeza e de segurança, mas que é obrigado a perceber que os segmentos molares mergulham necessariamente nessa sopa molecular que lhes serve de alimento e faz tremer seus contornos). E não há mais centro de poder que não tenha essa micro-textura. É ela - e não o masoquismo - que explica que um oprimido possa sempre ocupar um lugar ativo no sistema de opressão: os operários dos países ricos participando ativamente da exploração do terceiro mundo, do armamento das ditaduras, da poluição da atmosfera. E não é de se espantar, pois essa textura está entre a linha de sobrecodificação, de segmentos duros, e a linha última, de quanta. Ela não para de oscilar entre os dois, ora abatendo a linha de quanta sobre a linha de segmentos, ora fazendo com que fluxos e quanta fujam da linha de segmentos. É justamente este o terceiro aspecto dos centros de poder, ou seu limite. Pois tais centros não têm outra razão a não ser a de traduzir, tanto quanto possível, os quanta de fluxo em segmentos de linha (sendo que só os segmentos são totalizáveis, de uma maneira ou de outra). Porém, encontram aí ao mesmo tempo o princípio de sua potência e o fundo de sua impotência. E, longe de se oporem, a potência e a impotência se completam e se reforçam mutuamente, numa espécie de satisfação fascinante que encontramos eminentemente entre os mais medíocres homens de Estado, e que define sua “glória”. Pois eles extraem glória de sua imprevisão, e potência de sua impotência, visto que a impotência confirma que não havia escolha. Os únicos “grandes” homens de Estado são aqueles que se conectam a fluxos, como signos-piloto, signospartículas, e emitem quanta transpondo os buracos negros: não é por acaso que esses homens só se encontram nas linhas de fuga, traçando-as, pressentindo-as, seguindo-as ou antecipando-as, mesmo que se enganem e caiam (Moisés, o Hebreu; Gensérico, o Vândalo; Gêngis Khan, o Mongol; Mao, o Chinês...). Mas não há Poder que regule os próprios fluxos. Não se domina nem mesmo o aumento de uma

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“massa monetária”. Quando se projeta aos limites do universo uma imagem de senhor, uma ideia de Estado ou de governo secreto, como se uma dominação se exercesse sobre os fluxos tanto quanto e do mesmo modo que sobre os segmentos, cai-se numa representação ridícula e fictícia. A Bolsa dá uma imagem dos fluxos e de seus quanta, melhor do que o Estado. Os capitalistas podem dominar a mais-valia e sua distribuição, mas não dominam os fluxos dos quais decorre a mais-valia. Em compensação, os centros de poder se exercem nos pontos onde os fluxos se convertem em segmentos: são permutadores, conversores, osciladores. Entretanto, isto não quer dizer que os próprios segmentos dependam de um poder de decisão. Vimos, ao contrário, como os segmentos (por exemplo, as classes) se formavam na conjunção de massas e de fluxos desterritorializados, o fluxo mais desterritorializado determinando o segmento dominante: é o caso do dólar, segmento dominante de moeda, o caso da burguesia, segmento dominante do capitalismo..., etc. Os próprios segmentos dependem, portanto, de uma máquina abstrata. Mas o que depende dos centros de poder são agenciamentos que efetuam esta máquina abstrata, isto é, que não param de adaptar as variações de massa e de fluxo aos segmentos da linha dura, em função do segmento dominante e dos segmentos dominados. Pode haver muita invenção perversa nessas adaptações. É nesse sentido que se falará, por exemplo, de um poder bancário (banco mundial, bancos centrais, bancos de crédito): se o fluxo de moeda-financiamento, moeda de crédito, remete à massa de transações econômicas, o que depende dos bancos é a conversão desta moeda de crédito criada em moeda de pagamento segmentaria, apropriada, moeda metálica ou de Estado, compradora de bens eles próprios segmentarizados (importância, nesse aspecto, da taxa de juros). O que depende dos bancos é a conversão das duas moedas, a conversão dos segmentos da segunda moeda em conjunto homogêneo e a conversão da segunda em um bem qualquer26. O mesmo poderá ser dito em relação a qualquer centro de poder. Todo centro de poder tem efetivamente estes três aspectos ou estas três zonas: 1) sua zona de potência, relacionada com os segmentos de uma linha sólida dura; 2) sua zona de indiscernibilidade, relacionada com sua difusão num tecido microfísico; 3) sua zona de impotência, relacionada com os fluxos e quanta que ele só consegue converter, e não controlar nem determinar. Ora, é sempre do fundo de sua impotência que cada centro de poder extrai sua potência:

26

Sobre estes aspectos do poder bancário, cf. Suzanne de Brunhoff, L’offre de monnaíe, Maspero, sobretudo, p. 102-131

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daí sua maldade radical e sua vaidade. Antes ser um minúsculo quantum de fluxo do que um conversor, um oscilador, um distribuidor molar! Para voltar ao exemplo monetário, a primeira zona é representada pelos bancos centrais públicos; a segunda, pela “série indefinida de relações privadas entre os bancos e os que contraem empréstimos”; a terceira, pelo fluxo desejante de moeda cujos quanta são definidos pela massa de transações econômicas. É verdade que os mesmos problemas se colocam e se reproduzem no próprio nível dessas transações, com outros centros de poder. Mas, em todos os casos, a primeira zona do centro de poder define-se no aparelho de Estado, como agenciamento que efetua a máquina abstrata de sobrecodificação molar; a segunda define-se no tecido molecular onde mergulha esse agenciamento; a terceira define-se na máquina abstrata de mutação, fluxo e quanta. Mas não podemos dizer destas três linhas que uma seja má e outra boa, por natureza e necessariamente. O estudo dos perigos em cada linha é o objeto da pragmática ou da esquizoanálise, visto que ela não se propõe a representar, interpretar nem simbolizar, mas apenas a fazer mapas e traçar linhas, marcando suas misturas tanto quanto suas distinções. Nietzsche fazia Zaratustra dizer, Castañeda faz o índio Dom Juan dizer: há três e até quatro perigos; primeiro o Medo, depois a Clareza, depois o Poder e, enfim, o grande Desgosto, a vontade de fazer morrer e de morrer, Paixão de abolição27. O medo, podemos adivinhar o que é. Tememos, o tempo todo, perder. A segurança, a grande organização molar que nos sustenta, as arborescências onde nos agarramos, as máquinas binárias que nos dão um estatuto bem definido, as ressonâncias onde entramos, o sistema de sobrecodificação que nos domina — tudo isso nós desejamos. “Os valores, as morais, as pátrias, as religiões e as certezas privadas que nossa vaidade e autocomplacência generosamente nos outorgam, são diferentes moradas que o mundo arranja para aqueles que pensam, desta forma, manter-se de pé e em repouso entre as coisas estáveis; eles nada sabem desse imenso desarranjo no qual eles próprios se vão... fuga diante da fuga28. Fugimos diante da fuga, endurecemos nossos segmentos, entregamonos à lógica binária, seremos tanto mais duros em tal segmento quanto terão sido duros conosco em tal outro segmento; reterritorializamo-nos em qualquer coisa,

27

Castañeda, L’herbe du diable et la petite fumée, p. 106-111.

28

Blanchof, L’amitié, Gallimard, p. 232.

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não conhecemos segmentaridade senão molar, tanto no nível dos grandes conjuntos aos quais pertencemos, quanto no nível dos pequenos grupos onde nos colocamos e daquilo que se passa conosco no mais íntimo ou mais privado. Tudo é concernido: a maneira de perceber, o gênero de ação, a maneira de se mover, o modo de vida, o regime semiótico. O homem que entra dizendo: “A sopa está pronta?”, a mulher que responde: “Que cara! Você está de mau humor?”, efeito de segmentos duros que se afrontam de dois em dois. Quanto mais a segmentaridade for dura, mais ela nos tranquiliza. Eis o que é o medo, e como ele nos impele para a primeira linha. O segundo perigo, a Clareza, parece menos evidente. É que a clareza, efetivamente, concerne o molecular. Aqui também tudo é concernido, até a percepção, a semiótica, só que na segunda linha. Castañeda mostra, por exemplo, a existência de uma percepção molecular que a droga nos abre (mas tantas coisas podem servir de droga): acedemos a uma micropercepção sonora e visual que revela espaços e vazios, como buracos na estrutura molar. É precisamente isto a clareza: essas distinções que se estabelecem naquilo que nos parecia pleno, esses buracos no compacto; e inversamente, lá onde víamos até há pouco arremates de segmentos bem definidos, o que há, sobretudo, são franjas incertas, invasões, superposições, migrações, atos de segmentação que não coincidem mais com a segmentaridade dura. Tudo se tornou flexibilidade aparente, vazios no pleno, nebulosas nas formas, tremidos nos traços. Tudo adquiriu a clareza do microscópio. Acreditamos ter entendido tudo e tirado todas as consequências disso. Somos os novos cavaleiros, temos até uma missão. Uma microfísica do migrante tomou o lugar da macrogeometria do sedentário. Mas essa flexibilidade e essa clareza não têm apenas seu perigo próprio, elas próprias são um perigo. Em primeiro lugar, porque a segmentaridade flexível corre o risco de reproduzir em miniatura as afecções, as afectações da dura: substituise a família por uma comunidade, substitui-se a conjugalidade por um regime de troca e de migração, mas é pior ainda, estabelecem-se micro-Édipos, os microfascismos ditam a lei, a mãe se acha na obrigação de embalar seu filho, o pai se torna mamãe. Obscura clareza que não cai de estrela alguma e que exala tanta tristeza: essa segmentaridade movediça decorre diretamente da mais dura, ela é sua compensação direta. Quanto mais os conjuntos tornam-se molares, mais os elementos e suas relações tornam-se moleculares: o homem molecular para uma humanidade molar. Desterritorializamo-nos, fazemo-nos massa, mas para atar e anular os

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movimentos de massa e de desterritorialização, para inventar todas as reterritorializações marginais piores ainda do que as outras. Mas, sobretudo, a segmentaridade flexível suscita seus próprios perigos, que não se contentam em reproduzir em miniatura os perigos da segmentaridade molar, nem em decorrer destes perigos ou compensá-los: como já vimos, os microfascismos têm sua especificidade, eles podem cristalizar num macrofascismo, mas também flutuar por si mesmos sobre a linha flexível, banhando cada minúscula célula. Uma multidão de buracos negros pode muito bem não centralizar-se, e ser como vírus que se adaptam às mais diversas situações, cavando vazios nas percepções e nas semióticas moleculares. Interações sem ressonância. Em lugar do grande medo paranoico, encontramo-nos presos por mil monomaniazinhas, evidências e clarezas que jorram de cada buraco negro e que não fazem mais sistema e sim rumor e zumbido, luzes ofuscantes que dão a qualquer um a missão de um juiz, de um justiceiro, de um policial por conta própria, de um gauleiter, um chefete de prédio ou de casa. Vencemos o medo, abandonamos as margens da segurança, mas entramos num sistema não menos concentrado, não menos organizado, um sistema de pequenas inseguranças, que faz com que cada um encontre seu buraco negro e tornese perigoso nesse buraco, dispondo de uma clareza sobre seu caso, seu papel e sua missão, mais inquietantes que as certezas da primeira linha. O Poder é o terceiro perigo, porque encontra-se nas duas linhas ao mesmo tempo. Ele vai dos segmentos duros, de sua sobrecodificação e ressonância às segmentações finas, à sua difusão e interações e vice-versa. Não há homem de poder que não salte de uma linha à outra, e que não alterne um pequeno e um grande estilo, o estilo canalha e o estilo Bossuet, a demagogia de bar e o imperialismo de alto funcionário. Mas toda essa cadeia e essa trama do poder mergulham num mundo que lhes escapa, mundo de fluxos mutantes. E é precisamente sua impotência que torna o poder tão perigoso. O homem de poder não deixará de querer deter as linhas de fuga e, para isso, tomar, fixar a máquina de mutação na máquina de sobrecodificação. Mas ele só pode fazê-lo isolando a máquina de sobrecodificação, isto é, primeiro fixando-a, contendo-a no agenciamento local encarregado de efetuá-la, em suma, dando ao agenciamento as dimensões da máquina: o que se produz nas condições artificiais do totalitarismo e do “uso fechado”, do confinamento. Mas há ainda um quarto perigo, sem dúvida aquele que mais nos interessa, porque concerne as próprias linhas de fuga. Por mais que se queira apresentar tais linhas

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como uma espécie de mutação, de criação, traçando-se não na imaginação mas no próprio tecido da realidade social, por mais que se queira lhes dar o movimento da flecha e a velocidade de um absoluto — seria muito simples acreditar que elas não temem nem afrontam outro risco senão o de se fazer recuperar apesar de tudo, de se fazer colmatar, atar, reatar, reterritorializar. Elas próprias desprendem um estranho desespero, como que um odor de morte e de imolação, como que um estado de guerra do qual se sai destroçado: é que elas mesmas têm seus próprios perigos, que não se confundem com os precedentes. Exatamente aquilo que faz Fitzgerald dizer: “Eu tinha um sentimento de estar de pé no crepúsculo num campo de tiro abandonado, um fuzil vazio na mão e os alvos abatidos. Nenhum problema a ser resolvido. Simplesmente o silêncio e o barulho único de minha própria respiração (....). Minha imolação de mim mesmo era um detonador sombrio e molhado”29. Por que a linha de fuga é uma guerra na qual há tanto risco de se sair desfeito, destruído, depois de se ter destruído tudo o que se podia? Eis precisamente o quarto perigo: que a linha de fuga atravesse o muro, que ela saia dos buracos negros, mas que, ao invés de se conectar com outras linhas e aumentar suas valências a cada vez, ela se transforme em destruição, abolição pura e simples, paixão de abolição. Tal como a linha de fuga de Kleist, a estranha guerra que ele trava e o suicídio, o duplo suicídio como saída que faz da linha de fuga uma linha de morte. Não invocamos qualquer pulsão de morte. Não há pulsão interna no desejo, só há agenciamentos. O desejo é sempre agenciado, ele é o que o agenciamento determina que ele seja. No próprio nível das linhas de fuga, o agenciamento que as traça é do tipo máquina de guerra. As mutações remetem a essa máquina, que certamente não tem a guerra por objeto, mas a emissão de quanta de desterritorialização, a passagem de fluxos mutantes (toda criação nesse sentido passa por uma máquina de guerra). Há muitas razões que mostram que a máquina de guerra tem uma outra origem, que ela é um agenciamento distinto do aparelho de Estado. De origem nômade, ela é dirigida contra ele. Um dos problemas fundamentais do Estado será o de apropriar-se dessa máquina de guerra que lhe é estrangeira, fazer dela uma peça de seu aparelho sob forma de instituição militar fixada; e nesse aspecto o Estado sempre encontrará grandes dificuldades. Mas exatamente quando a máquina de guerra não tem mais por objeto senão a guerra, quando ela substitui assim a mutação pela destruição, é que ela libera a carga mais

29

Fitzgerald, La fêlure, Gallimard, pp. 350, 354.

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catastrófica. A mutação não era absolutamente uma transformação da guerra; ao contrário, a guerra é que é como a queda ou a sequela da mutação, o único objeto que resta à máquina de guerra quando ela perdeu sua potência de mudar. Desse modo, deve-se dizer da guerra em si mesma que ela é somente o abominável resíduo da máquina de guerra, seja quando esta se fez apropriar pelo aparelho de Estado, ou, pior ainda, quando ela construiu para si um aparelho de Estado que não serve mais do que para a destruição. Então a máquina de guerra não traça mais linhas de fuga mutantes, mas uma pura e fria linha de abolição. (Sobre essa relação complexa entre a máquina de guerra e a guerra, mais adiante gostaríamos de apresentar uma hipótese). É aqui que reencontramos o paradoxo do fascismo e sua diferença em relação ao totalitarismo. Com efeito, o totalitarismo é assunto de Estado: concerne essencialmente a relação do Estado como agenciamento localizado com a máquina abstrata de sobrecodificação que ele efetua. Mesmo quando se trata de uma ditadura militar, é um exército de Estado que toma o poder e que leva o Estado ao estágio totalitário, e não uma máquina de guerra. O totalitarismo é conservador por excelência. No fascismo, entretanto, tratase de uma máquina de guerra. E quando o fascismo constrói para si um Estado totalitário não é mais no sentido de uma tomada de poder por um exército de Estado, mas, ao contrário, no sentido da apropriação do Estado por uma máquina de guerra. Uma estranha observação de Virilio nos dá a pista: no fascismo, o Estado é muito menos totalitário do que suicidário. Existe, no fascismo, um niilismo realizado. É que, diferentemente do Estado totalitário, que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma em linha de destruição e abolição puras. É curioso como, desde o início, os nazistas anunciavam para a Alemanha o que traziam: núpcias e morte ao mesmo tempo, inclusive a sua própria morte e a dos alemães. Eles pensavam que pereceriam, mas que seu empreendimento seria de toda maneira recomeçado: a Europa, o mundo, o sistema planetário. E as pessoas gritavam bravo, não porque não compreendiam, mas porque queriam esta morte que passava pela dos outros. É como uma vontade de arriscar tudo a cada vez, de apostar a morte dos outros contra a sua, e de tudo medir com “deleômetros”, com medidores de supressão. O romance de Klaus Mann, Mephisto, oferece amostras de discursos ou de conversas nazistas perfeitamente habituais: “O heroísmo patético fazia cada vez mais falta em nossa vida. (...). Na realidade, não caminhamos a passo militar, avançamos titubeando. (...). Nosso

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amado Fuhrer nos arrasta para as trevas e o nada. (...). Como nós, poetas, que mantemos relações particulares com as trevas e o abismo, não o admiraríamos por isso? (...). Raios de fogo no horizonte, valetas de sangue em todos os caminhos, e uma dança de possuído dos sobreviventes, daqueles que ainda estão poupados, em torno dos cadáveres!”.30 O suicídio não aparece como um castigo, mas como o coroamento da morte dos outros. É sempre possível dizer que se trata de um discurso confuso e de ideologia, nada mais que ideologia. Mas não é verdade: a insuficiência das definições econômicas e políticas do fascismo não implica a simples necessidade de se acrescentar a elas vagas determinações ditas ideológicas. Preferimos seguir J. P. Faye, quando ele se interroga sobre a formação precisa dos enunciados nazistas que funcionam tanto no político, no econômico, quanto na mais absurda conversa. Reencontramos sempre nesses enunciados o grito “estúpido e repugnante” Viva a morte!, até no nível econômico, onde a expansão do rearmamento substitui o aumento do consumo, e onde o investimento se desloca dos meios de produção para os meios de pura destruição. A análise de Paul Virilio parece-nos profundamente justa quando ele define o fascismo não pela noção de Estado totalitário, mas pela de Estado suicidário: a guerra dita total aparece aí menos como o empreendimento de um Estado do que de uma máquina de guerra que se apropria do Estado, fazendo passar através dele o fluxo de guerra absoluta que não terá outra saída senão o suicídio do próprio Estado. “Desencadeamento de um processo material desconhecido, realmente sem limites e sem meta. (...). Uma vez desencadeado, seu mecanismo não pode desembocar na paz, pois a estratégia indireta instala efetivamente o poder dominante fora das categorias usuais do espaço e do tempo (....). É no horror da cotidianidade e do seu meio que Hitler encontrará finalmente seu mais seguro

Klaus Mann, Mephisto, Denoël, p. 265-266. Esse gênero de declarações abunda no momento dos sucessos nazistas. Cf. as célebres fórmulas de Goebbels: “No mundo de fatalidade absoluta onde Hitler se move, nada mais tem sentido, nem o bem nem o mal, nem o tempo nem o espaço, e aquilo que os outros homens chamam de sucesso não pode servir de critério. (....). É provável que Hitler culmine na catástrofe...” (Hitler parle à ses généraux, Albin Michel). Este catastrofismo pode se conciliar com muita satisfação, com uma boa consciência e uma tranquila serenidade, como se observa, num outro contexto, em alguns suicidas. Há toda uma burocracia da catástrofe. Para o fascismo italiano, chamamos a atenção, especialmente, para a análise de M.A. Macciochi, “Sexualité féminine dans 1’idéologie fasciste”, Tel Quel n.° 66: o esquadrão feminino da morte, a encenação das viúvas e das mães enlutadas, as palavras de ordem “Caixão e Berços”. 30

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instrumento de governo, a legitimação de sua política e de sua estratégia militar, e isto até o fim, pois, longe de abater a natureza repulsiva de seu poder, as ruínas, os horrores, os crimes, o caos da guerra total normalmente só farão aumentar sua extensão. O telegrama 71 — Se a guerra está perdida, que pereça a nação — no qual Hitler decide somar seus esforços aos de seus inimigos para consumar a destruição de seu próprio povo, aniquilando os últimos recursos de seu habitat, reservas civis de toda natureza (água potável, carburantes, víveres, etc). é o desfecho normal...31. Era já essa reversão da linha de fuga em linha de destruição que animava todos os focos moleculares e os fazia interagir numa máquina de guerra, em vez de ressoar num aparelho de Estado. Uma máquina de guerra que não tinha mais objeto a não ser a guerra, e que aceitava abolir seus próprios correligionários antes do que deter a destruição. Os perigos todos das outras linhas são irrelevantes comparados a esse perigo. Tradução de Suely Rolnik

Paul Virilio, L’insecurité du territoire, cap. I. Ainda que Hannah Arendt identifique nazismo e totalitarismo, ela extraiu este princípio da dominação nazista: “Sua ideia da dominação não podia ser realizada nem por um Estado, nem por um simples aparelho de violência, mas unicamente por um movimento em constante movimento”; e até a guerra e o risco de perder a guerra intervém como aceleradores (Le système totalitaire, Ed. du Seuil, pp. 49, 124 e seg.; 140 e seg.; 207 e seg). 31

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Lembranças de um espectador. — Lembro-me do belo filme Willard (1972, Daniel Mann). Um série B, talvez, mas um belo filme impopular, pois os heróis são ratos. Minhas lembranças não são necessariamente exatas. Vou contar a história por alto. Willard vive com sua mãe autoritária na velha casa de família. Terrível atmosfera edipiana. A mãe manda-o destruir uma ninhada de ratos. Ele poupa um (ou dois, ou alguns). Depois de uma briga violenta, a mãe, que “parece” um cachorro, morre. Willard corre o risco de perder a casa, cobiçada por um homem de negócios. Willard gosta do rato principal que ele salvou, Ben, e que se revela de uma prodigiosa inteligência. Há ainda uma rata branca, a companheira de Ben. Quando volta do escritório, Willard passa todo seu tempo com eles. Eles agora proliferaram. Willard conduz a matilha de ratos, sob o comando de Ben, para a casa do homem de negócios, e o faz morrer atrozmente. Mas, ao levar seus dois preferidos para o escritório, comete uma imprudência, e é obrigado a deixar os empregados matarem a branca. Ben escapa, depois de um longo olhar fixo e duro sobre Willard. Este conhece então uma pausa em seu destino, em seu devir-rato. Com todas as suas forças, tenta ficar entre os humanos. Até aceita as insinuações de uma garota do escritório que “parece” muito uma rata, mas justamente só parece. Ora, um dia em que convida a garota, disposto a se fazer conjugalizar, re-edipianizar, ele revê Ben, que surge rancoroso. Tenta enxotá-lo, mas é a garota que ele enxotará, e desce ao porão para onde Ben o atrai. Lá, uma matilha inumerável o espera para despedaçá-lo. E como um conto, não é angustiante em momento algum. Está tudo aí: um devir-animal que não se contenta em passar pela semelhança, para o qual a semelhança, ao contrário, seria um obstáculo ou uma parada; um devir-molecular, com a proliferação dos ratos, a matilha, que mina as grandes potências molares, família, profissão, conjugalidade; uma escolha maléfica, porque há um “preferido” na matilha e uma espécie de contrato de aliança, de pacto tenebroso com o preferido; a instauração de um agenciamento, máquina de guerra ou máquina criminosa, podendo ir até a autodestruição; uma circulação de afectos impessoais, uma corrente alternativa, que tumultua os projetos significantes, tanto quanto os sentimentos subjetivos, e constitui uma sexualidade não-humana; uma irresistível desterritorialização, que anula de antemão as tentativas de reterritorialização edipiana, conjugai ou profissional (haveria animais edipianos, com quem se pode “fazer Édipo”, fazer família, meu cachorrinho, meu gatinho e, depois, outros animais que nos arrastariam,

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ao contrário, para um devir irresistível? Ou então, uma outra hipótese: o mesmo animal poderia estar tomado em duas funções, dois movimentos opostos, dependendo do caso?). Lembranças de um naturalista. — Um dos principais problemas da história natural foi o de pensar as relações dos animais entre si. É muito diferente do evolucionismo ulterior que se definiu em termos de genealogia, parentesco, descendência ou filiação. Sabese que o evolucionismo chegará à ideia de uma evolução que não se faria necessariamente por filiação. Mas, no começo, ele só podia passar pelo motivo genealógico. Inversamente, a história natural tinha ignorado esse motivo ou, pelo menos, sua importância determinante. O próprio Darwin distingue, como muito independentes, o tema evolucionista do parentesco e o tema naturalista da soma e do valor das diferenças ou semelhanças: com efeito, grupos igualmente parentes podem ter graus de diferença inteiramente variáveis em relação ao ancestral. É precisamente porque a história natural ocupa-se antes de mais nada da soma e do valor das diferenças, que ela pode conceber progressões e regressões, continuidades e grandes cortes, mas não uma evolução propriamente dita, isto é, a possibilidade de uma dependência cujos graus de modificação dependem de condições externas. A história natural só pode pensar em termos de relações, entre A e B, e não em termos de produção, de A a x. Mas é ao nível dessas relações que algo de muito importante se passa, pois a história natural concebe de duas maneiras as relações de animais: série ou estrutura. Segundo uma série, eu digo: a assemelha-se a b, b assemelha-se a c..., etc., sendo que todos esses termos remetem eles próprios, segundo seus diversos graus, a um termo único eminente, perfeição ou qualidade, como razão da série. É exatamente o que os teólogos chamavam de uma analogia de proporção. Segundo a estrutura, eu digo a está para b como c está para d, e cada uma dessas relações realiza à sua maneira a perfeição considerada: as brânquias estão para a respiração na água, como os pulmões estão para a respiração no ar; ou então, o coração está para as brânquias, como a ausência de coração está para a traqueia... É uma analogia de proporcionalidade. No primeiro caso, tenho semelhanças que diferem ao longo de toda uma serie, ou de uma série para outra. No segundo caso, tenho diferenças que se assemelham numa estrutura, e de uma estrutura para outra. A primeira forma de analogia passa por mais sensível e popular, e exige imaginação; no entanto, trata-se de uma imaginação estudiosa, que deve levar em conta

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ramos da série, preencher as rupturas aparentes, conjurar as falsas semelhanças e graduar as verdadeiras, levar em conta ao mesmo tempo progressões e regressões ou desgraduações. A segunda forma de analogia é considerada como real, porque ela exige antes todos os recursos do entendimento para fixar as relações equivalentes, descobrindo ora as variáveis independentes combináveis numa estrutura, ora os correlatos que acarretam um ao outro em cada estrutura. Mas, por mais diferentes que sejam, esses dois temas, o da série e o da estrutura, sempre coexistiram na história natural; aparentemente contraditórios, eles formam realmente compromissos mais ou menos estáveis 1 . Da mesma forma, as duas figuras de analogia coexistiam no espírito dos teólogos, com equilíbrios variáveis. É que, tanto em uma como na outra, a Natureza é concebida como imensa mimese: ora sob forma de uma cadeia de seres que não cessariam de imitar-se, progressivamente ou regressivamente, tendendo ao termo superior divino que todos eles imitam como modelo e razão da série, por semelhança graduada; ora sob forma de uma Imitação em espelho que não teria mais nada para imitar, pois seria ela o modelo que todos imitariam, dessa vez por diferença ordenada... (É essa visão mimética ou mimológica que torna impossível, naquele momento, a ideia de uma evolução-produção). Ora, não saímos absolutamente deste problema. As ideias não morrem. Não que elas sobrevivam simplesmente a título de arcaísmos. Mas, num certo momento, elas puderam atingir um estágio científico, e depois perdê-lo, ou então emigrar para outras ciências. Elas podem então mudar de aplicação e de estatuto, podem até mudar de forma e de conteúdo, mas guardam algo de essencial, no encaminhamento, no deslocamento, na repartição de um novo domínio. As ideias sempre voltam a servir, porque sempre serviram, mas de modos atuais os mais diferentes. Com efeito, as relações dos animais entre si não são, por um lado, apenas objeto de ciência, mas também objeto de sonho, objeto de simbolismo, objeto de arte ou de poesia, objeto de prática e de utilização prática. Por outro lado, as relações dos animais entre si são tomadas em relações do homem com o animal, do homem com a mulher, do homem com a criança, do homem com os elementos, do homem com o universo físico e microfísico. A dupla ideia “série-estrutura” ultrapassa num certo momento um limiar científico, mas ela

Sobre esta complementaridade série-estrutura, e a diferença em relação ao evolucionismo, cf. H. Daudin, Cuvier et L.amarck: les classes zoologiques et l’idée de série animale, e M. Foucault, Les mots et les choses, capítulo V. 1

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não vinha daí nem aí fica, ou passa para outras ciências, animando, por exemplo, as ciências humanas, para servir ao estudo dos sonhos, dos mitos e das organizações. A história das ideias nunca deveria ser contínua; deveria resguardar-se das semelhanças, mas também das descendências ou filiações, para contentar-se em marcar os limiares que uma ideia atravessa, as viagens que ela faz, que mudam sua natureza ou seu objeto. Ora, acontece que relações objetivas dos animais entre si foram retomadas em certas relações subjetivas do homem com o animal, do ponto de vista de uma imaginação coletiva, ou do ponto de vista de um entendimento social. Jung elaborou uma teoria do Arquétipo como inconsciente coletivo, onde o animal tem um papel particularmente importante nos sonhos, nos mitos e nas coletividades humanas. Precisamente, o animal é inseparável de uma série que comporta o duplo aspecto progressão-regressão, e onde cada termo desempenha o papel de um transformador possível da libido (metamorfose). Todo um tratamento dos sonhos sai daí, pois uma imagem perturbadora estando dada, trata-se de integrá-la em sua série arquetípica. Tal série pode comportar sequências femininas ou masculinas, infantis, mas igualmente sequências animais, vegetais, ou até elementares, moleculares. Diferentemente da história natural, não é mais o homem que é o termo eminente da série, pode ser um animal para o homem, o leão, o caranguejo ou a ave de rapina, o piolho, em relação a tal ato, tal função, segundo tal exigência do inconsciente. Bachelard escreve um livro junguiano muito bonito quando estabelece a série ramificada de Lautréamont, levando em conta os coeficientes de velocidade das metamorfoses e o grau de perfeição de cada termo, em função de uma agressividade pura como razão de série: a presa da cobra, o chifre do rinoceronte, o dente do cachorro e o bico da coruja, mas, cada vez mais alto, a garra da águia ou do abutre, a pinça do caranguejo, as patas do piolho, a ventosa do polvo. No conjunto da obra de Jung, toda uma mimese reúne em suas malhas a natureza e a cultura, segundo analogias de proporção onde as séries e seus termos, e sobretudo os animais que ocupam aí uma situação mediana, asseguram os ciclos de conversão natureza-cultura-natureza: os arquétipos como “representações analógicas”2. Será por acaso que o estruturalismo denunciou tão fortemente esses prestígios da imaginação, o estabelecimento das semelhanças ao longo da série, a imitação que atravessa toda série e a

Cf. Jung, principalmente Métamorphoses de l’âme et ses symboles, Libraire de l’Université, Genève. E Bachelard, Lautréamont, Corti. 2

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conduz ao termo, a identificação a esse termo último? Nada é mais explícito a esse respeito do que os célebres textos de Lévi-Strauss sobre o totemismo: ultrapassar as semelhanças externas em direção às homologias internas3. Não se trata mais de instaurar uma organização serial do imaginário, mas uma ordem simbólica e estrutural do entendimento. Não se trata mais de graduar semelhanças, e de chegar em última instância a uma identificação do Homem e do Animal no seio de uma participação mística. Trata-se de ordenar as diferenças para chegar a uma correspondência das relações, pois o animal, por sua vez, distribui-se segundo relações diferenciais ou oposições distintivas de espécies; e, da mesma forma, o homem, segundo os grupos considerados. Na instituição totêmica, não se dirá que tal grupo de homens identifica-se a tal espécie animal; será dito o seguinte: o que o grupo A é para o grupo B, a espécie A’ é para a espécie B’. Há aqui um método profundamente diferente do precedente: se dois grupos humanos são dados, tendo cada um seu animal-totem, será preciso encontrar em que os dois totens estão tomados em relações análogas às dos dois grupos — o que a Gralha é para o Falcão... O método vale igualmente para as relações Homem-criança, Homem-mulher, etc. Constatando, por exemplo, que o guerreiro tem uma certa relação espantosa com a donzela, evitaremos estabelecer uma série imaginária que os reuniria, procuraremos antes o termo que torna efetiva uma equivalência de relações. Assim, Vernant pode dizer que o casamento é para a mulher aquilo que a guerra é para o homem, donde decorre uma homologia da virgem que se recusa ao casamento e do guerreiro que se disfarça de moça4 Em suma, o entendimento simbólico substitui a analogia de proporção por uma analogia de proporcionalidade; a seriação das semelhanças por uma estruturação das diferenças; a identificação dos termos por uma igualdade das relações; as metamorfoses da imaginação por metáforas no conceito; a grande continuidade natureza-cultura por uma falha profunda que distribui correspondências sem semelhança entre as duas; a imitação de um modelo originário, por uma mimese ela mesma primeira e sem modelo. Nunca um homem pôde dizer: “Eu sou um touro, um lobo...”; mas pôde sim dizer: sou para a mulher aquilo que o touro é para uma vaca; sou para um outro homem aquilo que o lobo é para o cordeiro. O estruturalismo é uma grande revolução, o mundo inteiro torna-se mais razoável. Considerando os dois modelos, da série e da

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Lévi-Strauss, Le totémisme aujord’bui, P.U.F., p. 112.

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J.-P. Vernant, in Problèmes de Ia guerre en Grèce ancienne, Mouton, pp. 15-16.

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estrutura, Lévi-Strauss não se contenta em beneficiar a segunda com todos os prestígios de uma classificação verdadeira; ele remete a primeira ao domínio obscuro do sacrifício, que ele apresenta como ilusório e até destituído de bom senso. O tema serial do sacrifício deve ceder lugar ao tema estrutural da instituição totêmica bem compreendida. No entanto, aqui ainda, entre as séries arquetípicas e as estruturas simbólicas, muitos compromissos se estabelecem, como na história natural5. Lembranças de um bergsoniano. — Nada do que precede nos satisfaz, do ponto de vista restrito que nos ocupa aqui. Acreditamos na existência de devires-animais muito especiais que atravessam e arrastam o homem, e que afetam não menos o animal do que o homem. “Só se ouvia falar de vampiros, de 1730 a 1735...”. Ora, é evidente que o estruturalismo não dá conta desses devires, porque ele é feito precisamente para negar ou ao menos desvalorizar sua existência: uma correspondência de relações não faz um devir-. Desse modo, quando reencontra tais devires que percorrem uma sociedade em todos os sentidos, o estruturalismo vê nisso fenômenos de degradação que desviam a ordem verdadeira e que dizem respeito às aventuras da diacronia. No entanto, LéviStrauss, em seus estudos de mitos, não para de cruzar esses atos rápidos pelos quais o homem torna-se animal ao mesmo tempo que o animal torna-se... (mas torna-se o quê? torna-se homem ou torna-se outra coisa?). A tentativa de explicar esses blocos de devir pela correspondência de duas relações é sempre possível, mas seguramente empobrece o fenômeno considerado. Não seria preciso admitir que o mito, como quadro de classificação, é pouco capaz de registrar tais devires, que são, antes, como que fragmentos de conto? Não seria preciso dar crédito à hipótese de Duvignaud, segundo a qual fenômenos “anômicos” atravessam as sociedades, e não são degradações da ordem mítica, mas dinamismos irredutíveis traçando linhas de fuga, implicando formas de expressão outras que a do mito, mesmo que esse por sua vez as retome para

Sobre a oposição da série sacrificial e da estrutura totêmica, cf. Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Plon, pp. 295-302. Mas, apesar de toda sua severidade para com a série, Lévi-Strauss reconhece os compromissos dos dois temas: é que a própria estrutura implica um sentimento muito concreto das afinidades (51-52) e se estabelece por sua conta sobre duas séries entre as quais ela organiza suas homologias de relações. Sobretudo o “devir-histórico” 5

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detê-las6? Será que, ao lado dos dois modelos, o do sacrifício e o da série, o da instituição totêmica e o da estrutura, haveria ainda lugar para uma outra coisa, mais secreta, mais subterrânea: o feiticeiro e os devires, que se exprimem nos contos e não mais nos mitos ou nos ritos? Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação. Toda a crítica estruturalista da série parece inevitável. Devir não é progredir nem regredir segundo uma série. E sobretudo devir não se faz na imaginação, mesmo quando a imaginação atinge o nível cósmico ou dinâmico mais elevado, como em Jung ou Bachelard. Os devires-animais não são sonhos nem fantasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? Pois se o devir animal não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna “realmente” animal, como tampouco o animal se torna “realmente” outra coisa. O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o próprio devir-, o bloco de devir-, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. O devir pode e deve ser qualificado como devir-animal sem ter um termo que seria o animal que se tornou. O devir-animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele se torna; e, simultaneamente, o devir-outro do animal é real sem que esse outro seja real. É este ponto que será necessário explicar: como um devir não tem sujeito distinto de si mesmo; mas também como ele não tem termo, porque seu termo por sua vez só existe tomado num outro devir do qual ele é o sujeito, e que coexiste, que faz bloco com o primeiro. É o princípio de uma realidade própria ao devir (a ideia bergsoniana de uma coexistência de “durações” muito diferentes, superiores ou inferiores à “nossa”, e todas comunicantes). Enfim, devir não é uma evolução, ao menos uma evolução por dependência e filiação. O devir nada produz por filiação; toda filiação seria imaginária. O devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem da aliança. Se a evolução comporta verdadeiros devires, é no vasto domínio das simbioses que coloca em jogo seres de escalas e reinos inteiramente diferentes, sem qualquer filiação possível. Há um bloco

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Cf. J. Duvignaud, L’anomie, Ed. Anthropos

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de devir que toma a vespa e a orquídea, mas do qual nenhuma vespa-orquídea pode descender. Há um bloco de devir que toma o gato e o babuíno, e cuja aliança é operada por um vírus C. Há um bloco de devir entre raízes jovens e certos microrganismos, as matérias orgânicas sintetizadas nas folhas operando a aliança (rizosfera). Se o neoevolucionismo afirmou sua originalidade, é em parte em relação a esses fenômenos nos quais a evolução não vai de um menos diferenciado a um mais diferenciado, e cessa de ser uma evolução filiativa hereditária para tornar-se antes comunicativa ou contagiosa. Preferimos então chamar de “involução” essa forma de evolução que se faz entre heterogêneos, sobretudo com a condição de que não se confunda a involução com uma regressão. O devir é involutivo, a involução é criadora. Regredir é ir em direção ao menos diferenciado. Mas involuir é formar um bloco que corre seguindo sua própria linha, “entre” os termos postos em jogo, e sob as relações assinaláveis. O neoevolucionismo parece-nos importante por duas razões: o animal não se define mais por características (específicas, genéricas, etc)., mas por populações, variáveis de um meio para outro ou num mesmo meio; o movimento não se faz mais apenas ou sobretudo por produções filiativas, mas por comunicações transversais entre populações heterogêneas. Devir é um rizoma, não é uma árvore classificatória nem genealógica. Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a “parecer”, nem “ser”, nem “equivaler”, nem “produzir”. Lembrança de um feiticeiro, I. — Num devir-animal, estamos sempre lidando com uma matilha, um bando, uma população, um povoamento, em suma, com uma multiplicidade. Nós, feiticeiros, sabemos disso desde sempre. Pode acontecer que outras instâncias, aliás muito diferentes entre si, tenham uma outra consideração do animal: pode-se reter ou extrair do animal certas características, espécies e gêneros, formas e funções, etc. A sociedade e o Estado precisam das características animais para classificar os homens; a história natural e a ciência precisam de características para classificar os próprios animais. O serialismo e o estruturalismo ora graduam características segundo suas semelhanças, ora as ordenam segundo suas diferenças. As características animais podem ser míticas ou científicas. Mas não nos interessamos pelas características; interessamonos pelos modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de

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povoamento. Eu sou legião. Fascinação do homem dos lobos diante dos vários lobos que olham para ele. O que seria um lobo sozinho? e uma baleia, um piolho, um rato, uma mosca? Belzebu é o diabo, mas o diabo como senhor das moscas. O lobo não é primeiro uma característica ou um certo número de características; ele comporta uma proliferação, sendo, pois, uma lobiferação. O piolho é uma piolhiferação..., etc. O que é um grito, independentemente da população que ele chama ou que ele convoca como testemunha? Virgínia Woolf não se deixa viver como um macaco ou um peixe, mas como uma penca de macacos, um cardume de peixes, segundo uma relação de devir variável com as pessoas das quais ela se aproxima. Não queremos dizer que certos animais vivem em matilhas; não queremos entrar em ridículas classificações evolucionistas à Ia Lorentz, onde haveria matilhas inferiores e sociedades superiores. Dizemos que todo animal é antes um bando, uma matilha. Que ele tem seus modos de matilha, mais do que características, mesmo que caiba fazer distinções no interior desses modos. É esse o ponto em que o homem tem a ver com o animal. Não nos tornamos animal sem um fascínio pela matilha, pela multiplicidade. Fascínio do fora? Ou a multiplicidade que nos fascina já está em relação com uma multiplicidade que habita dentro de nós? Em sua obra prima, Démons et merveilles, Lovecraft conta a história de Randolph Carter, que sente seu “eu” vacilar, e que conhece um medo maior que o do aniquilamento: “uns Carter, de forma ao mesmo tempo humana e não humana, vertebrada e invertebrada, animal e vegetal, dotada de consciência e privada de consciência, e até uns Carter sem nada em comum com a vida terrestre, sobre fundos de planetas, de galáxias e de sistemas pertencentes a outros continuums cósmicos. (...). Afundar-se no nada abre um esquecimento aprazível, mas estar consciente de sua existência e, no entanto, saber que não se é mais um ser definido distinto dos outros seres”, nem distinto de todos esses devires que nos atravessam, “eis o auge indizível do pavor e da agonia”. Hofmannsthal, ou melhor lorde Chandos, sucumbe ao fascínio diante de um “povo de ratos” que agonizam; e é nele, através dele, nos interstícios de seu eu transtornado, que “a alma do animal mostra os dentes ao destino monstruoso”: não é pena, mas participação antinatureza7. Então nasce nele o estranho imperativo: ou parar de escrever, ou escrever como um rato... Se o escritor é um feiticeiro é porque escrever é um devir-, escrever é atravessado por estranhos devires que não são devires-escritor,

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Hugo von Hofmannsthal, I.ettres du voyageur à son retaur, Mercure de France.

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mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo, etc. Será preciso dizer por quê. Muitos suicídios de escritores se explicam por essas participações anti-natureza, essas núpcias antinatureza. O escritor é um feiticeiro porque vive o animal como a única população perante a qual ele é responsável de direito. O pré-romântico alemão Moritz sente-se responsável, não pelos bezerros que morrem, mas perante os bezerros que morrem e que lhe dão o incrível sentimento de uma Natureza desconhecida — o afecto8. Pois o afecto não é um sentimento pessoal, tampouco uma característica, ele é a efetuação de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu. Quem não conheceu a violência dessas sequências animais, que o arrancam da humanidade, mesmo que por um instante, e fazem-no esgaravatar seu pão como um roedor ou lhe dão os olhos amarelos de um felino? Terrível involução que nos chama em direção a devires inauditos. Não são regressões, ainda que fragmentos de regressão e sequências de regressão juntem-se a eles. Seria mesmo preciso distinguir três espécies de animais: os animais individuados, familiares familiais, sentimentais, os animais edipianos, de historinha, “meu” gato, “meu” cachorro; estes nos convidam a regredir, arrastam-nos para uma contemplação narcísica, e a psicanálise só compreende esses animais para melhor descobrir, por trás deles, a imagem de um papai, de uma mamãe, de um irmãozinho (quando a psicanálise fala dos animais, os animais aprendem a rir): todos aqueles que amam os gatos, os cachorros, são idiotas. E depois haveria uma segunda espécie, os animais com característica ou atributo, os animais de gênero, de classificação ou de Estado, tais como os grandes mitos divinos os tratam, para deles extrair séries ou estruturas, arquétipos ou modelos (Jung é, ainda assim, mais profundo que Freud). Enfim, haveria animais mais demoníacos, de matilhas e afectos, e que fazem multiplicidade, devir-, população, conto... Ou então, mais uma vez, não são todos os animais que podem ser tratados das três maneiras? Haverá sempre a possibilidade de um animal qualquer, piolho, leopardo ou elefante, ser tratado como um animal familiar, meu bichinho. E, no outro extremo, também todo animal pode ser tratado ao modo da matilha e da proliferação, que convém a nós, feiticeiros. Até o gato, até o cachorro... E que o pastor, ou o domador, o diabo, tenha o seu animal preferido na matilha, certamente não é da mesma maneira que há pouco. Sim, todo animal é ou pode ser uma matilha, mas

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Cf. J.C. Bailly, La legende dispersée, antbologie du romantisme allemand, 10-18, pp. 36-43.

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segundo graus de vocação variável, que tornam mais ou menos fácil a descoberta de multiplicidade, de teor em multiplicidade, que ele contém atualmente ou virtualmente, dependendo dos casos. Cardumes, bandos, manadas, populações não são formas sociais inferiores, são afectos e potências, involuções, que tomam todo animal num devir não menos potente que o do homem com o animal. J.L. Borges, autor renomado por seu excesso de cultura, fracassou pelo menos em dois livros, dos quais só os títulos eram bonitos: primeiro uma História universal da infâmia, porque ele não viu a diferença elementar que os feiticeiros fazem entre a trapaça e a traição (e os devires-animais já estão aí, forçosamente do lado da traição). Uma segunda vez, em seu Livro dos seres imaginários, onde ele não só faz do mito uma imagem composta e sem graça, mas elimina todos os problemas de matilha, e, para o homem, de devir-animal correspondente: “Deliberadamente, excluímos deste manual as lendas sobre as transformações do ser humano, o lobisomem, o homem-lobo, etc.” Borges só se interessa pelas características, mesmo as mais fantásticas, enquanto que os feiticeiros sabem que os lobisomens são bandos, os vampiros também, e que esses bandos transformam-se uns nos outros. Mas, justamente, o que quer dizer o animal como bando ou matilha? Será que um bando não implica uma filiação que nos levaria à reprodução de certas características? Como conceber um povoamento, uma propagação, um devir-, sem filiação nem produção hereditária? Uma multiplicidade, sem unidade de um ancestral? É muito simples e todo mundo sabe, ainda que só se fale nisso em segredo. Opomos a epidemia à filiação, o contágio à hereditariedade, o povoamento por contágio à reprodução sexuada, à produção sexual. Os bandos, humanos e animais proliferam com os contágios, as epidemias, os campos de batalha e as catástrofes. É como os híbridos, eles próprios estéreis, nascidos de uma união sexual que não se reproduzirá, mas que sempre recomeça ganhando terreno a cada vez. As participações, as núpcias anti-natureza, são a verdadeira Natureza que atravessa os reinos. A propagação por epidemia, por contágio, não tem nada a ver com a filiação por hereditariedade, mesmo que os dois temas se misturem e precisem um do outro. O vampiro não filiaciona, ele contagia. A diferença é que o contágio, a epidemia coloca em jogo termos inteiramente heterogêneos: por exemplo, um homem, um animal e uma bactéria, um vírus, uma molécula, um microrganismo. Ou, como para a trufa, uma árvore, uma mosca e um porco. Combinações que não são genéticas nem estruturais, inter-reinos, participações contra a natureza,

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mas a Natureza só procede assim, contra si mesma. Estamos longe da produção filiativa, da reprodução hereditária, que só retém como diferenças uma simples dualidade dos sexos no seio de uma mesma espécie, e pequenas modificações ao longo das gerações. Para nós, ao contrário, há tantos sexos quanto termos em simbiose, tantas diferenças quanto elementos intervindo num processo de contágio.' Sabemos que entre um homem e uma mulher passam muitos seres, que vêm de outros mundos, trazidos pelo vento, que fazem rizoma em torno das raízes, e não se deixam compreender em termos de produção, mas apenas de devir-. O Universo não funciona por filiação. Nós só dizemos, portanto, que os animais são matilhas, e que as matilhas se formam, se desenvolvem e se transformam por contágio. Essas multiplicidades de termos heterogêneos, e de co-funcionamento de contágio, entram em certos agenciamentos e é neles que o homem opera seus devires-animais. Mas, justamente, não se confundirá esses agenciamentos sombrios, que remexem em nós o mais profundo, com organizações como a instituição familiar e o aparelho de Estado. Poderíamos citar as sociedades de caça, as sociedades de guerra, as sociedades secretas, as sociedades de crime, etc. Os devires-animais a elas pertencem. Não procuraremos aí regimes de filiação do tipo familiar, nem modos de classificação e de atribuição de tipo estatal ou pré-estatal, nem mesmo estabelecimentos seriais de tipo religioso. Apesar das aparências e das confusões possíveis, os mitos não têm aí nem terreno de origem nem ponto de aplicação. São contos, ou narrativas e enunciados de devir-. Assim, é absurdo hierarquizar as coletividades mesmo animais do ponto de vista de um evolucionismo de fantasia, onde as matilhas estariam no mais baixo, dando lugar em seguida às sociedades familiares e estatais. Ao contrário, há diferença de natureza; a origem das matilhas é totalmente outra que a das famílias e dos Estados e ela não para de trabalhálas por baixo, de perturbá-las de fora, com outras formas de conteúdo, outras formas de expressão. A matilha é ao mesmo tempo realidade animal, e realidade do devir-animal do homem; o contágio é ao mesmo tempo povoamento animal, e propagação do povoamento animal do homem. A máquina de caça, a máquina de guerra, a máquina de crime acarretam toda espécie de devires-animais que não se enunciam no mito e ainda menos no totemismo. Dumézil mostrou como tais devires pertenciam essencialmente ao homem de guerra, mas à medida que era exterior às famílias e aos Estados, à medida que conturbava as filiações e as classificações. A máquina de guerra é sempre exterior ao Estado, mesmo quando o Estado

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se serve dela, e dela se apropria. O homem de guerra tem todo um devir que implica multiplicidade, celeridade, ubiquidade, metamorfose e traição, potência de afecto. Os homens-lobos, os homens-ursos, os homens-feras, os homens de toda animalidade, confrarias secretas, animam os campos de batalha. Mas também as matilhas animais, que servem os homens na batalha, ou que a seguem e dela tiram proveito. E todos juntos espalham o contágio9. Há um conjunto complexo, devir-animal do homem, matilhas de animais, elefantes e ratos ventos e tempestades, bactérias que semeiam o contágio. Um só e mesmo Furor. A guerra comportou sequências zoológicas, antes de se fazer bacteriológica. É aqui que os lobisomens proliferam, e os vampiros, com a guerra, a fome e a epidemia. Qualquer animal pode ser tomado nessas matilhas, e nos devires correspondentes; vimos gatos nos campos de batalha, e até fazer parte dos exércitos. É por isso que mais do que distinguir espécies de animais, é preciso distinguir estados diferentes, segundo eles se integrem em instituições familiares ou em aparelhos de Estado, em máquinas de guerra, etc. (e a máquina de escrita ou a máquina musical, que relação têm elas com os devires-animais?). Lembranças de um feiticeiro, II. — Nosso primeiro princípio dizia: matilha e contágio, contágio de matilha, é por aí que passa o devir-animal. Mas um segundo princípio parece dizer o contrário: por toda parte onde há multiplicidade, você encontrará também um indivíduo excepcional, e é com ele que terá que fazer aliança para devir-animal. Não um lobo sozinho talvez, mas há o chefe de bando, o senhor de matilha, ou então o antigo chefe destituído que vive agora sozinho, há o Solitário, ou ainda o Demônio. Willard tem seu preferido, o rato Ben, e só

Sobre o homem de guerra, sua posição extrínseca em relação ao Estado, à família, à religião, sobre os devires-animais, os devires-feras nos quais ele entra, cf. Dumézil, especialmente Mythes et dieux des Germains; Horace et les Curiaces; Heur et malheur du guerrier; Mythe et épopée, t. II. Remetemos também aos estudos sobre as sociedades dos homens-leopardos, etc., na África negra: é provável que essas sociedades tenham sua origem nas confrarias guerreiras. Mas, à medida que o Estado colonial proíbe as guerras tribais, elas transformam-se em sociedades de crime, preservando ao mesmo tempo sua importância política e territorial. Um dos melhores estudos a esse respeito é o de P. E. Joset, Les sociétés secrètes des hommes-léopards en Afrique noire, Payot. Os devires-animais próprios a esses grupos parecem-nos muito diferentes das relações simbólicas homem-animal tal como aparecem nos aparelhos de Estado, mas também nas instituições pré-estatais do tipo totemismo. Lévi-Strauss mostra bem como o totemismo já implica uma espécie de embrião de Estado, dado que ultrapassa as fronteiras tribais (La pensée sauvage, pp. 220 ss). 9

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devém-rato na relação com ele, numa espécie de aliança de amor, depois de ódio. Moby Dick inteiro é uma das maiores obras-primas de devir-; o capitão Ahab tem um devir-baleia irresistível, mas que justamente contorna a matilha ou o cardume, e passa diretamente por uma aliança monstruosa com o Único, com o Leviatã, Moby Dick. Há sempre pacto com um demônio, e o demônio aparece ora como chefe do bando, ora como Solitário ao lado do bando, ora como Potência superior do bando. O indivíduo excepcional tem muitas posições possíveis. Kafka, mais um grande autor dos devires-animais reais, canta o povo dos camundongos; mas Josefina, a camundonga cantora, tem ora uma posição privilegiada no bando, ora uma posição fora do bando, ora se insinua e se perde anônima nos enunciados coletivos do bando. Em suma, todo Animal tem seu Anômalo. Entendamos: todo animal tomado em sua matilha ou sua multiplicidade tem seu anômalo. Pôde-se observar que a palavra “anômalo”, adjetivo que caiu em desuso, tinha uma origem muito diferente de “anormal”: a-normal, adjetivo latino sem substantivo, qualifica o que não tem regra ou o que contradiz a regra, enquanto que “a-nomalia”, substantivo grego que perdeu seu adjetivo, designa o desigual, o rugoso, a aspereza, a ponta de desterritorialização10. O anormal só pode definir-se em função das características, específicas ou genéricas; mas o anômalo é uma posição ou um conjunto de posições em relação a uma multiplicidade. Os feiticeiros se utilizam então do velho adjetivo “anômalo” para situar as posições do indivíduo excepcional na matilha. É sempre com o Anômalo, Moby Dick ou Josefina, que se faz aliança para devir-animal. Parece mesmo haver contradição: entre a matilha e o solitário; entre o contágio de massa e a aliança preferencial; entre a multiplicidade pura e o indivíduo excepcional; entre o conjunto aleatório e a escolha predestinada. E a contradição é real: Ahab não escolhe Moby Dick, nessa escolha que o ultrapassa e que vem de outra parte, sem romper com a lei dos baleeiros que quer que se deva primeiro perseguir a matilha. Pentesiléia quebra a lei da matilha, matilha de mulheres, matilha de cadelas, quando escolhe Aquiles como inimigo preferido. No entanto, é por essa escolha anômala que cada um entra em seu devir-animal, devir-cão de Pentesiléia, devir-baleia do capitão Ahab. Nós, feiticeiros, sabemos bem que as contradições são reais, mas que as contradições reais são apenas para rir, pois toda a questão é: qual é a natureza do

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Cf. Georges Canguilhem, Le normal et le pathologique, P.U.F.,pp. 81-82.

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anômalo, ao certo? Que função ele tem em relação ao bando, à matilha? É evidente que o anômalo não é simplesmente um indivíduo excepcional, o que o remeteria ao animal familial ou familiar, edipianizado à maneira da psicanálise, a imagem de pai..., etc. Para Ahab, Moby Dick não é como o gatinho ou o cachorrinho de uma velha que o cobre de atenções e o paparica. Para Lawrence, o devir-tartaruga no qual ele entra não tem nada a ver com uma relação sentimental e doméstica. Lawrence, por sua vez, faz parte dos escritores que nos causam problema e admiração, porque souberam ligar sua escrita a devires-animais reais inauditos. Mas, justamente, recrimina-se a Lawrence: “Suas tartarugas não são reais!” E ele responde: é possível, mas meu devir o é, meu devir é real, inclusive e sobretudo se vocês não podem julgá-lo, porque vocês são cachorrinhos domésticos...11. O anômalo, o elemento preferencial da matilha, não tem nada a ver com o indivíduo preferido, doméstico e psicanalítico. Mas o anômalo não é tampouco um portador de espécie, que apresentaria as características específicas e genéricas no mais puro estado, modelo ou exemplar único perfeição típica encarnada, termo eminente de uma série, ou suporte de uma correspondência absolutamente harmoniosa. O anômalo não é nem indivíduo nem espécie, ele abriga apenas afectos, não comporta nem sentimentos familiares ou subjetivados, nem características específicas ou significativas. Tanto as ternuras quanto as classificações humanas lhe são estrangeiras. Lovecraft chama de Outsider essa coisa ou entidade, a Coisa, que chega e transborda, linear e no entanto múltipla, “inquieta, fervilhante, marulhosa, espumante, estendendo-se como uma doença infecciosa, esse horror sem nome”. Nem indivíduo, nem espécie, o que é o anômalo? É um fenômeno, mas um fenômeno de borda. Eis nossa hipótese: uma multiplicidade se define, não pelos elementos que a compõem em extensão, nem pelas características que a compõem em compreensão, mas pelas linhas e dimensões que ela comporta em “intensão”. Se você muda de dimensões, se você acrescenta ou corta algumas, você muda de multiplicidade. Donde a existência de uma borda de acordo com cada multiplicidade, que não é absolutamente um centro, mas é a linha que envolve ou é a extrema dimensão em função da qual podese contar as outras, todas aquelas que constituem a matilha em tal momento;

D.H. Lawrence: “Estou cansado de ouvir dizer que não há animais deste tipo. (...). Se eu sou uma girafa, e os ingleses ordinários que escrevem sobre mim gentis cachorrinhos bemeducados, é isso aí, os animais são diferentes. (...). Vocês não gostam de mim, vocês detestam instintivamente o animal que sou”. (Lettres choisies, Plon, t. II, p. 237). 11

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para além dela, a multiplicidade mudaria de natureza. É o que o capitão Ahab diz ao seu imediato: eu não tenho nenhuma história pessoal com Moby Dick, nenhuma vingança a tirar, como tampouco um mito a deslindar, mas tenho um devir-! Moby Dick não é nem um indivíduo nem um gênero, é a borda, é preciso que eu bata nela para atingir toda a matilha, para atingir toda a matilha e passar através. Os elementos da matilha são tão somente “manequins” imaginários, as características da matilha são apenas entidades simbólicas, só conta a borda — o anômalo. “Para mim essa baleia branca é a muralha, bem perto de mim”, o muro branco, “às vezes eu acho que para além dele não há nada, mas pouco importa!” Se o anômalo é assim a borda, pode-se compreender melhor suas diversas posições em relação à matilha ou multiplicidade que ela bordeja, e as diversas posições de um Eu fascinado. Pode-se até fazer uma classificação das matilhas sem recair nas ciladas de um evolucionismo que só veria nelas um estágio coletivo inferior, ao invés de considerar os agenciamentos particulares que elas colocam em jogo. De todo modo, haverá bordas de matilha, e posição anômala, cada vez que, num espaço, um animal encontrar-se na linha ou em vias de traçar a linha em relação à qual todos os outros membros da matilha ficam numa metade, esquerda ou direita: posição periférica, que faz com que não se saiba mais se o anômalo ainda está no bando, já fora do bando, ou na fronteira móvel do bando. Mas ora é cada animal que atinge essa linha ou ocupa essa posição dinâmica, como numa matilha de mosquitos onde “cada indivíduo do grupo desloca-se aleatoriamente até que vejam todos seus congêneres num mesmo semi-espaço; então, ele corre para modificar seu movimento de maneira a entrar no grupo, sendo a estabilidade assegurada às pressas por uma barreira12. Ora é um animal preciso que traça e ocupa a borda enquanto chefe de matilha. Ora ainda a borda é definida, ou duplicada por um ser de uma outra natureza, que não pertence mais à matilha, ou jamais pertenceu, e que representa uma potência de outra ordem, agindo eventualmente tanto como ameaça quanto como treinador, outsider..., etc. Em todo caso, não há bando sem esse fenômeno de borda, ou anômalo. É verdade que os bandos são minados também por forças muito diferentes que instauram neles centros interiores de tipo conjugai e familiar, ou de tipo estatal, e que os fazem passar a uma forma de sociabilidade totalmente diferente, substituindo os afectos de matilha por

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René Thom, Stabilité structurelle et morphogenèse, Ed. W.A. Benjamin, p. 319.

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sentimentos de família ou inteligibilidades de Estado. O centro, ou os buracos negros internos, ganham o papel principal. E aí que o evolucionismo pode ver um progresso, nessa aventura que acontece igualmente aos bandos humanos quando eles reconstituem um familialismo de grupo, ou até um autoritarismo, um fascismo de matilha. Os feiticeiros sempre tiveram a posição anômala, na fronteira dos campos ou dos bosques. Eles assombram as fronteiras. Eles se encontram na borda do vilarejo, ou entre dois vilarejos. O importante é sua afinidade com a aliança, com o pacto, que lhes dá um estatuto oposto ao da filiação. Com o anômalo, a relação é de aliança. O feiticeiro está numa relação de aliança com o demônio como potência do anômalo. Os antigos teólogos distinguiram claramente duas espécies de maldição que se exerciam sobre a sexualidade. A primeira concerne a sexualidade como processo de filiação através do qual ela transmite o pecado original. Mas a segunda a concerne como potência de aliança, e inspira uniões ilícitas ou amores abomináveis: ela difere da primeira mais ainda visto que tende a impedir a procriação, e visto que o demônio não tendo ele próprio o poder de procriar, deve passar por meios indiretos (assim, ser o súcubo fêmea de um homem para tornarse o incubo macho de uma mulher à qual ele transmite o sêmen do primeiro). É verdade que a aliança e a filiação entram em relações reguladas pelas leis de casamento, mas mesmo então a aliança guarda uma potência perigosa e contagiosa. Leach pode mostrar que, apesar de todas as exceções que parecem desmentir essa regra, o feiticeiro pertence primeiro a um grupo que é unido só por aliança àquele sobre o qual ele exerce sua eficácia: assim, num grupo matrilinear, é do lado do pai que o feiticeiro ou a feiticeira devem ser procurados. E há toda uma evolução da feitiçaria dependendo de a relação de aliança adquirir uma permanência ou tomar um valor político13. Não basta parecer um lobo ou viver como um lobo para produzir lobisomens em sua própria família: é preciso que o pacto com o diabo se acompanhe de uma aliança com uma outra família, e é o retorno dessa aliança na primeira família, a reação dessa aliança sobre a primeira família, que produz os lobisomens como por efeito de feed-back. Um belo conto de ErckmannChatrian, Hughes le loup, recolhe as tradições sobre essa complexa situação. Vemos dissolver-se cada vez mais a contradição entre os dois temas “contágio com o animal como matilha”, “pacto

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E.R. Leach, Critique de 1’anthropologie, P.U.F., pp. 40-50.

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com o anômalo como ser excepcional”. Leach pode com razão reunir os dois conceitos de aliança e de contágio, pacto-epidemia; analisando a feitiçaria kachin, ele escreve: “a influência maléfica é supostamente transmitida pelo alimento que a mulher prepara (....). A feitiçaria kachin é contagiosa mais do que hereditária, (...). ela é associada à aliança, não à descendência”. A aliança ou o pacto são a forma de expressão, para uma infecção ou uma epidemia que são forma de conteúdo. Na feitiçaria, o sangue é de contágio e de aliança. Se dirá que um devir-animal é assunto de feitiçaria: 1) porque ele implica uma primeira relação de aliança como um demônio; 2) porque este demônio exerce a função de borda de uma matilha animal na qual o homem passa ou está em devir-, por contágio; 3) porque este devir implica ele próprio uma segunda aliança, com outro grupo humano; 4) porque esta nova borda entre os dois grupos guia o contágio do animal e do homem no seio da matilha. Há toda uma política dos devires-animais, como uma política da feitiçaria: esta política se elabora em agenciamentos que não são nem os da família, nem os da religião, nem os do Estado. Eles exprimiriam antes grupos minoritários, ou oprimidos, ou proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições reconhecidas, mais secretos ainda por serem extrínsecos, em suma anômicos. Se o devir-animal toma a forma da Tentação, e de monstros suscitados na imaginação pelo demônio, é por acompanharse, em suas origens como em sua empreitada, por uma ruptura com as instituições centrais, estabelecidas ou que buscam se estabelecer. Citemos desordenadamente, não como misturas a serem feitas, mas antes como diferentes casos a serem estudados: os devires-animais na máquina de guerra, homensferas de todas as espécies, mas justamente a máquina de guerra vem de fora, extrínseca ao Estado que trata o guerreiro como potência anômala; os devires-animais nas sociedades de crime, homens-leopardos, homens-jacarés, quando o Estado proíbe as guerras locais e tribais; os devires-animais nos grupos de sublevação, quando a Igreja e o Estado encontram-se diante de movimentos camponeses com componente feiticeiro, e que irão reprimir, instaurando todo um sistema de tribunal e de direito próprio a denunciar os pactos com o demônio; os devires-animais nos grupos de ascese, o anacoreta roedor, ou besta fera, mas a máquina de ascese está em posição anômala, em linha de fuga, fora da Igreja, e contesta sua pretensão de erigir-se como instituição imperial14; os devires-animais nas sociedades de iniciação sexual do tipo

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Cf. Jacques Lacarrière, Les bommes ivres de Dieu, Fayard.

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“deflorador sagrado”, homens-lobos, homens-bodes, etc., que se valem de uma Aliança superior e exterior à ordem das famílias, enquanto que as famílias terão que conquistar contra eles o direito de ajustar suas próprias alianças, de determiná-las segundo relações de dependência complementar e de domesticar essa potência desenfreada da aliança15. Então, evidentemente, a política dos devires-animais permanece extremamente ambígua, pois as sociedades, mesmo primitivas, não deixarão de apropriar-se desses devires para caçá-los e reduzi-los a relações de correspondência totêmica ou simbólica. Os Estados não deixarão de apropriar-se da máquina de guerra, sob forma de exércitos nacionais que limitam estritamente os devires do guerreiro. A Igreja não deixará de queimar os feiticeiros, ou então de reintegrar os anacoretas na imagem abrandada de uma série de santos que não têm mais com o animal senão uma relação estranhamente familiar, doméstica. As Famílias não deixarão de conjurar o Aliado demoníaco que as corrói, para ajustar as alianças convenientes entre si. Ver-se-á os feiticeiros servirem os chefes, colocarem-se a serviço do despotismo, fazerem uma contra-feitiçaria de exorcismo, passar para o lado da família e da dependência. Mas será também

Pierre Gordon (Uinitiation sexuelle et Vévolution religieuse, P.U.F). estudou o papel dos homens-animais nos ritos de “defloração sagrada”. Esses homens-animais impõem uma aliança ritual aos grupos de filiação, pertencendo eles próprios a confrarias exteriores ou em borda, e são mestres do contágio, da epidemia. Gordon analisa a reação dos vilarejos e das cidades quando entram em luta contra esses homens-animais para conquistar o direito de operar suas próprias iniciações e de ajustar suas alianças de acordo com suas respectivas filiações (assim a luta contra o dragão). — Mesmo tema, por exemplo, para “O homem-hiena na tradição sudanesa” (cf. G. Calame-Griaule e Z. Ligers, in L’homme, maio 1961): o homemhiena vive na borda do vilarejo, ou entre dois vilarejos, e vigia as duas direções. Um herói, ou mesmo dois heróis dos quais cada um tem sua noiva no vilarejo do outro, triunfarão sobre o homem-animal. É como se fosse preciso distinguir dois estados muito diferentes da aliança: uma aliança demoníaca, que se impõe de fora, e que impõe sua lei a todas as filiações (aliança forçada com o monstro, com o homem-animal); depois, uma aliança consentida, que se conforma ao contrário à lei das filiações, quando os homens dos vilarejos venceram o monstro e organizam suas próprias relações. A questão do incesto pode ser então modificada. Pois não basta dizer que a proibição do incesto vem das exigências positivas da aliança em geral. Há antes uma aliança que é tão estranha à filiação, tão hostil à filiação, que ela toma necessariamente posição de incesto (o homem-animal está sempre em relação com o incesto). A segunda aliança proíbe o incesto porque ela só pode subordinar-se aos direitos da filiação se estabelecer precisamente entre filiações distintas. O incesto aparece duas vezes, como potência monstruosa da aliança quando esta derruba a filiação, mas também como potência proibida da filiação quando esta subordina a aliança e deve reparti-la entre linhagens distintas. 15

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a morte do feiticeiro, como aquela do devir-. Ver-se-á o devir parir apenas um grande cachorro doméstico, como na danação de Miller (“era melhor simular, fazer-se de animal, de cachorro por exemplo, agarrar o osso que jogariam para mim de tempos em tempos”) ou a de Fitzgerald (“tentarei ser um animal tão correto quanto possível, e se você me jogar um osso com bastante carne por cima, talvez serei até capaz de lamber sua mão”). Inverter a fórmula de Fausto: então era isso, a forma do Estudante ambulante? um reles cachorrinho! Lembranças de um feiticeiro, III. — Não se deve atribuir aos devires-animais uma importância exclusiva. Seriam antes segmentos ocupando uma região mediana. Aquém deles encontramos devires-mulher, devires-criança (talvez o devir-mulher possua sobre todos os outros um particular poder de introdução, e é menos a mulher que é feiticeira e mais a feitiçaria é que passa por esse devir-mulher). Para além deles, ainda, encontramos devires-elementares, celulares, moleculares, e até devires-imperceptíveis. Em direção a que nada a vassoura das feiticeiras os arrastam? E para onde Moby Dick arrasta Ahab tão silenciosamente? Lovecraft faz com que seu herói atravesse estranhos animais, mas enfim penetre nas últimas regiões de um Continuum habitado por ondas inomináveis e partículas inencontráveis. A ficção científica tem toda uma evolução que a faz passar de devires animais, vegetais ou minerais, a devires de bactérias, de vírus, de moléculas e de imperceptíveis16. O conteúdo propriamente musical da música é percorrido por deviresmulher, devires-criança, devires-animal, mas, sob toda espécie de influências que concernem também os instrumentos, ele tende cada vez mais a devir molecular, numa espécie de marulho cósmico onde o inaudível se faz ouvir, o imperceptível aparece como tal: não mais o pássaro cantor, mas a molécula sonora. Se a experimentação de droga marcou todo mundo, até os não-drogados, é por ter mudado as coordenadas perceptivas do espaço-tempo, fazendo-nos entrar num universo de micropercepções onde os devires moleculares vêm substituir os devires animais. Os livros de Castañeda mostram bem essa evolução, ou antes essa involução, onde os afectos de um devir-cachorro, por exemplo, são substituídos por aqueles de um devir-molecular, micropercepções da água, do ar, etc. Aparece um homem cambaleando de uma porta a outra e desaparecendo no ar: “tudo o que eu posso te dizer, é que nós

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Matheson e Asimov têm uma particular importância nessa evolução (Asimov desenvolveu muito o tema da simbiose).

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somos fluidos, seres luminosos feitos de fibras”17. Todas as viagens ditas iniciáticas comportam esses limiares e essas portas onde há um devir do próprio devir-, e onde mudase de devir-, segundo as “horas” do mundo, os círculos de um inferno ou as etapas de uma viagem que fazem variar as escalas, as formas e os gritos. Dos uivos animais até os vagidos dos elementos e das partículas. As matilhas, as multiplicidades não param, portanto, de se transformar umas nas outras, de passar umas pelas outras. Os lobisomens, uma vez mortos, transformam-se em vampiros. Não é de se espantar, a tal ponto o devir e a multiplicidade são uma só e mesma coisa. Uma multiplicidade não se define por seus elementos, nem por um centro de unificação ou de compreensão. Ela se define pelo número de suas dimensões; ela não se divide, não perde nem ganha dimensão alguma sem mudar de natureza. Como as variações de suas dimensões lhe são imanentes, dá no mesmo dizer que cada multiplicidade já é composta de termos heterogêneos em simbiose, ou que ela não para de se transformar em outras multiplicidades de enfiada, segundo seus limiares e suas portas. É assim que, no Homem dos lobos, a matilha dos lobos tornava-se também um enxame de abelhas, e ainda campo de ânus, e coleção de buraquinhos e ulcerações finas (tema do contágio); são também todos esses elementos heterogêneos que compunham “a” multiplicidade de simbiose e de devir-. Se imaginamos a posição de um Eu fascinado, é porque a multiplicidade em direção à qual ele se inclina, acaloradamente, é a continuação de uma outra multiplicidade que o trabalha e o distende a partir de dentro. Tanto que o eu é apenas um limiar, uma porta, um devir entre duas multiplicidades. Cada multiplicidade é definida por uma borda funcionando como Anômalo; mas há uma enfiada de bordas, uma linha contínua de bordas (fibra), de acordo com a qual a multiplicidade muda. E a cada limiar ou porta, um novo pacto? Uma fibra vai de um homem a um animal, de um homem ou de um animal a moléculas, de moléculas a partículas, até o imperceptível. Toda fibra é fibra de Universo. Uma fibra de enfiada de bordas constitui uma linha de fuga ou de desterritorialização. Vê-se que o Anômalo, o Outsider, tem muitas funções: ele não só bordeja cada multiplicidade cuja estabilidade temporária ou local ele determina, com a dimensão máxima provisória; ele não só é a condição da aliança necessária ao devir-; como conduz as transformações de devir ou as passagens de multiplicidades cada vez mais

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Castañeda, Histoires de pouvoir, Gallimard, p. 153.

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longe na linha de fuga. Moby Dick é a Muralha branca que bordeja a matilha; ela é também o Termo da aliança demoníaca; ela é enfim a terrível Linha de pesca, tendo ela própria a extremidade livre, a linha que atravessa o muro e arrasta o capitão, até onde? ao nada... O erro, do qual é preciso preservar-se, é o de acreditar numa espécie de ordem lógica nessa enfiada, nessas passagens ou transformações. Já é muito postular uma ordem que iria do animal ao vegetal, depois às moléculas, às partículas. Cada multiplicidade é simbiótica e reúne em seu devir animais, vegetais, microrganismos, partículas loucas, toda uma galáxia. Não há tampouco uma ordem lógica pré-formada entre esses heterogêneos, entre os lobos, as abelhas, os ânus e as pequenas cicatrizes do Homem dos lobos. Evidentemente, a feitiçaria não para de codificar certas transformações de devires. Tomemos um romance cheio de tradições feiticeiras, como o Meneur de loups de Alexandre Dumas: num primeiro pacto, o homem das fronteiras obtém do diabo a realização de seus desejos, com a condição de que uma mecha de seus cabelos torne-se vermelha a cada vez. Estamos na multiplicidade-cabelos, com sua borda. O próprio homem instalase na borda dos lobos como chefe de matilha. Depois, quando não tem mais um só cabelo humano, o segundo pacto o faz devir-lobo ele próprio, devir sem fim, ao menos em princípio, pois ele só é vulnerável um dia por ano. Entre a multiplicidade-cabelos e a multiplicidade-lobos, sabemos bem que uma ordem de semelhança (vermelha como o pelo de um lobo) pode sempre ser induzida, mas permanece muito secundária (o lobo de transformação será negro, com um pelo branco). De fato, há uma primeira multiplicidade-cabelos tomada num devir-pelo vermelho; uma segunda multiplicidade-lobos que toma por sua vez o devir-animal do homem. Limiar e fibra entre os dois, simbiose ou passagem de heterogêneos. É assim que operamos, nós feiticeiros, não segundo uma ordem lógica, mas segundo compatibilidades ou consistências alógicas. A razão disso é simples. É que ninguém, nem mesmo Deus, pode dizer de antemão se duas bordas irão enfileirar-se ou fazer fibra, se tal multiplicidade passará ou não a tal outra, ou se tais elementos heterogêneos entrarão em simbiose, farão uma multiplicidade consistente ou de co-funcionamento, apta à transformação. Ninguém pode dizer por onde passará a linha de fuga: ela se deixará atolar para recair no animal edipiano da família, um reles cachorrinho? ou então cairá num outro perigo, como virar linha de abolição, de aniquilamento, de autodestruição, Ahab, Ahab...? Sabemos demais dos perigos da linha de fuga, e suas ambiguidades. Os riscos estão sempre

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presentes, e a chance de se safar deles é sempre possível: é em cada caso que se dirá se a linha é consistente, isto é, se os heterogêneos funcionam efetivamente numa multiplicidade de simbiose, se as multiplicidades transformam-se efetivamente em devires de passagem. Que se tome um exemplo tão simples como: x se põe a tocar piano de novo... É um retorno edipiano à infância? E uma maneira de morrer numa espécie de abolição sonora? É uma nova borda, com uma linha ativa que vai provocar outros devires, devires inteiramente diferentes de tornar-se pianista ou de tornar a sê-lo, e que vai induzir uma transformação de todos os agenciamentos precedentes dos quais x era prisioneiro? Uma saída? Um pacto com o diabo? A esquizoanálise ou a pragmática não tem outro sentido: faça rizoma, mas você não sabe com o que você pode fazer rizoma, que haste subterrânea irá fazer efetivamente rizoma, ou fazer devir-, fazer população no teu deserto. Experimente. E fácil dizer? Mas se não há ordem lógica pré-formada dos devires ou das multiplicidades, há critérios, e o importante é que esses critérios não venham depois, que se exerçam quando necessário, no momento certo, suficientes para nos guiar por entre os perigos. Se as multiplicidades definem-se e transformam-se pela borda, a qual determina a cada vez o número de suas dimensões, concebemos a possibilidade de estendê-las num mesmo plano onde as bordas se sucedem traçando uma linha quebrada. E só aparentemente, portanto, que um tal plano “reduz” as dimensões; pois ele as recolhe todas à medida que inscrevem-se nele multiplicidades planas, e, no entanto, com dimensões crescentes ou decrescentes. E em termos grandiosos e simplificados que Lovecraft tenta enunciar esta última palavra da feitiçaria: “As Ondas aumentaram sua potência e descobriram para Carter a entidade multiforme da qual seu atual fragmento era apenas uma ínfima parte. Elas lhe ensinaram que cada figura no espaço é apenas o resultado da intersecção, num plano, de alguma figura correspondente e de maior dimensão, assim como um quadrado é a secção de um cubo, e um círculo, a secção de uma esfera. Da mesma maneira que o cubo e a esfera, figuras de três dimensões, são a secção de formas correspondentes com quatro dimensões, que os homens só conhecem através de suas conjecturas ou seus sonhos. Por sua vez, tais figuras com quatro dimensões são a secção de formas de cinco dimensões, e assim por diante, remontando até as alturas inacessíveis e vertiginosas da infinidade arquetípica...” Longe de reduzir a dois o número de dimensões das multiplicidades, o plano de consistência as recorta todas, opera sua intersecção para fazer coexistir outras tantas multiplicidades planas com dimensões quaisquer. O plano de consistência é

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a intersecção de todas as formas concretas. Assim, todos os devires, como desenhos de feiticeiras, escrevem-se nesse plano de consistência, a última Porta, onde encontram sua saída. Este é o único critério que os impede de atolar, ou de cair no nada. A única questão é: um devir vai até aí? Pode uma multiplicidade achatar assim todas as suas dimensões conservadas, como uma flor que guardaria toda sua vida até em sua secura? Lawrence, em seu devir-tartaruga, passa do dinamismo animal o mais obstinado à pura geometria abstrata das escamas e das “secções”, sem, no entanto, nada perder do dinamismo: ele leva o devir-tartaruga até o plano de consistência18. Tudo se torna imperceptível, tudo é devir-imperceptível no plano de consistência, mas é justamente nele que o imperceptível é visto, ouvido. É o Planômeno ou a Rizosfera, o Criterium (e outros nomes ainda, segundo o crescimento das dimensões). Segundo n dimensões, o chamamos de Hiperesfera, Mecanosfera. É a Figura abstrata, ou melhor, pois ela própria não tem forma, a Máquina abstrata, da qual cada agenciamento concreto é uma multiplicidade, um devir-, um segmento, uma vibração. E ela, a secção de todos. As ondas são as vibrações, as bordas movediças que se inscrevem a cada vez como abstrações no plano de consistência. Máquina abstrata das ondas. Em As ondas, Virgínia Woolf, que soube fazer de toda sua vida e sua obra uma passagem, um devir-, toda espécie de devires entre idades, sexos, elementos e reinos, mistura sete personagens, Bernard, Neville, Louis, Jinny, Rhoda, Suzanne e Perceval; mas cada um desses personagens, com seu nome, sua individualidade, designa uma multiplicidade (por exemplo, Bernard e o cardume de peixes); cada um está ao mesmo tempo nessa multiplicidade e na borda, e passa a outras. Perceval é como que o último, envolvendo o maior número de dimensões. Mas ainda não é ele que constitui o plano de consistência. Se Rhoda acredita vê-lo destacando-se do mar, não, não é ele, “quando ele repousa sobre seu joelho o cotovelo de seu braço, é um triângulo, quando ele fica de pé é uma coluna, se ele se debruça é a curva de uma fonte (...). o mar brame atrás dele, ele está para além de nossa espera”. Cada um avança como uma onda, mas, no plano de consistência, é uma só e mesma Onda abstrata, cuja vibração se propaga segundo a linha de fuga ou de desterritorialização que percorre todo o plano (cada capítulo do romance de Virgínia Woolf é precedi do de uma meditação sobre um aspecto das ondas, sobre uma de suas horas, sobre um de seus devires).

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Cf. Lawrence, o primeiro e o último poemas de Tortoises.

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Lembranças de um teólogo. — A teologia é muito estrita no seguinte ponto: não há lobisomens, o homem não pode devir animal. É que não há transformação das formas essenciais, essas são inalienáveis e só mantêm entre si relações de analogia. O diabo e a feiticeira, e seu pacto, não são menos reais, pois há a realidade de um movimento local propriamente diabólico. A teologia distingue dois casos que servem de modelo para a Inquisição, o caso dos companheiros de Ulisses e o caso dos companheiros de Diomedes: visão imaginária e sortilégio. Ora o sujeito pensa que se transformou em bicho, porco, boi ou lobo, e os observadores também acreditam nisso; mas há aí um movimento local interno que leva as imagens sensíveis em direção à imaginação e as faz ricochetear sobre os sentidos externos. Ora o demônio “assume” corpos de animais reais, mesmo que tenha que transportar os acidentes e afectos que lhes acontecem a outros corpos aparentes (por exemplo, um gato ou um lobo, assumidos pelo demônio, podem receber feridas que serão exatamente transferidas para um corpo humano19). É um modo de dizer que o homem não se torna realmente animal, mas que há no entanto uma realidade demoníaca do devir-animal do homem. Também é certo que o demônio opera transportes locais de toda espécie. O diabo é transportador, ele transporta humores, afectos ou mesmo corpos (a Inquisição não transige quanto a essa potência do diabo: a vassoura da feiticeira, ou “que o diabo te carregue”). Mas esses transportes não ultrapassam nem a barreira das formas essenciais, nem a das substâncias ou sujeitos. Há ainda um problema totalmente diferente, do ponto de vista das leis da natureza, e que não concerne mais a demonologia, mas a alquimia e sobretudo a física. É aquele das formas acidentais, distintas das formas essenciais e dos sujeitos determinados. Pois as formas acidentais são suscetíveis de mais e de menos: mais ou menos caridoso, e também mais ou menos branco, mais ou menos quente. Um grau de calor é um calor perfeitamente individuado que não se confunde com a substância ou com

Cf. o manual de Inquisição Le marteau des sorcières, reedição Plon: I, 10 e II, 8. O primeiro caso, o mais simples, remete aos companheiros de Ulisses, que pensam, e os outros também pensam, que se transformaram em porcos (ou o rei Nabucodonosor, em boi). O segundo caso é mais complicado: os companheiros de Diomedes não pensam que se transformaram em pássaros, pois estão mortos, mas os demônios pegam corpos de pássaros que eles fazem passar como sendo os dos companheiros de Diomedes. A necessidade de distinguir esse caso mais complexo explica-se pelos fenômenos de transferência de afectos: por exemplo, um senhor caçador corta a pata de um lobo e, voltando para a sua casa, encontra sua mulher, que no entanto não saiu, com a mão cortada; ou então um homem bate em gatos, e suas feridas se reproduzem exatamente em mulheres. 19

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o sujeito que a recebe. Um grau de calor pode compor-se com um grau de branco, ou com outro grau de calor, para formar uma terceira individualidade única que não se confunde com a do sujeito. O que é a individualidade de um dia, de uma estação ou de um acontecimento? Um dia mais curto ou um dia mais longo não são extensões propriamente ditas, mas graus próprios da extensão como há graus próprios do calor, da cor, etc. Uma forma acidental tem portanto uma “latitude”, constituída por outro tanto de individuações componíveis. Um grau, uma intensidade é um indivíduo, Hecceidade, que se compõe com outros graus, outras intensidades para formar um outro indivíduo. Dirão que essa latitude se explica porque o sujeito participa mais ou menos da forma acidental? Mas esses graus de participação não implicam na própria forma um borboleteamento, uma vibração que não se reduz às propriedades do sujeito? E mais, se intensidades de calor não se compõem por soma, é porque devem ser acrescentados seus respectivos sujeitos, os quais impedem justamente que o calor do conjunto se torne maior. Razão a mais para fazer repartições de intensidade, estabelecer as latitudes “disformementes disformes”, velocidades, lentidões e graus de toda espécie, correspondendo a um corpo ou a um conjunto de corpos tomados como longitude: uma cartografia20. Em suma, entre as formas substanciais e os sujeitos determinados, entre os dois, não há somente todo um exercício de transportes locais demoníacos, mas um jogo natural de hecceidades, graus, intensidades, acontecimentos, acidentes, que compõem individuações, inteiramente diferentes daquelas dos sujeitos bem formados que as recebem. Lembranças a um espinosista, I. — Criticou-se as formas essenciais ou substanciais de maneiras muito diversas. Mas Espinosa procede radicalmente: chegar a elementos que não têm mais nem forma nem função, que são portanto abstratos nesse sentido, embora sejam perfeitamente reais. Distinguem-se apenas pelo movimento e o repouso, a lentidão e a velocidade. Não são átomos, isto é, elementos finitos ainda dotados de forma. Tampouco são indefinidamente divisíveis. São as últimas partes infinitamente pequenas de um infinito atual, estendido num mesmo plano, de consistência ou de composição. Elas não se

Sobre o problema das intensidades na Idade Média, sobre a proliferação de teses a esse respeito, sobre a constituição de uma cinemática e uma dinâmica, e o papel particularmente importante de Nicolau de Oresme, cf. a obra clássica de Pierre Duhem, Le système du monde, t. VII, Hermann. 20

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definem pelo número, porque andam sempre por infinidades. Mas, segundo o grau de velocidade ou a relação de movimento e de repouso no qual entram, elas pertencem a este ou àquele Indivíduo, que pode ele mesmo ser parte de um outro Indivíduo numa outra relação mais complexa, ao infinito. Há, portanto, infinitos mais ou menos grandes, não de acordo com o número, mas de acordo com a composição da relação onde entram suas partes. Tanto que cada indivíduo é uma multiplicidade infinita, e a Natureza inteira uma multiplicidade de multiplicidades perfeitamente individuada. O plano de consistência da Natureza é como uma imensa Máquina abstrata, no entanto real e individual, cujas peças são os agenciamentos ou os indivíduos diversos que agrupam, cada um, uma infinidade de partículas sob uma infinidade de relações mais ou menos compostas. Há, portanto, unidade de um plano de natureza, que vale tanto para os inanimados, quanto para os animados, para os artificiais e os naturais. Esse plano nada tem a ver com uma forma ou uma figura, nem com um desenho ou uma função. Sua unidade não tem nada a ver com a de um fundamento escondido nas profundezas das coisas, nem de um fim ou de um projeto no espírito de Deus. É um plano de extensão, que é antes como a secção de todas as formas, a máquina de todas as funções, e cujas dimensões, no entanto, crescem com as das multiplicidades ou individualidades que ele recorta. Plano fixo, onde as coisas não se distinguem senão pela velocidade e a lentidão. Plano de imanência ou de univocidade, que se impõe à analogia. O Uno se diz num só e mesmo sentido de todo o múltiplo, o Ser se diz num só e mesmo sentido de tudo o que difere. Não estamos falando aqui da unidade da substância, mas da infinidade das modificações que são partes umas das outras sobre esse único e mesmo plano de vida. A inextricável discussão Cuvier-Geoffroy Saint-Hilaire. Ambos concordam ao menos para denunciar as semelhanças ou as analogias sensíveis, imaginárias. Mas, em Cuvier, a determinação científica incide sobre as relações dos órgãos entre si, e dos órgãos com suas funções. Cuvier faz portanto a analogia passar ao estágio científico, analogia de proporcionalidade. A unidade do plano, segundo ele, só pode ser uma unidade de analogia, portanto transcendente, que só se realiza fragmentandose em ramificações distintas, segundo composições heterogêneas, intransponíveis, irredutíveis. Baër acrescentará: segundo tipos de desenvolvimento e de diferenciação não comunicantes. O plano é um plano de organização escondida, estrutura ou gênese. Totalmente outro é o ponto de vista de Geoffroy, porque ultrapassa os órgãos e as funções em direção a elementos abstratos que ele chama de “anatômicos”, ou mesmo em direção a partículas, puros materiais que vão entrar em combinações

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diversas, formar tal órgão e tomar tal função, de acordo com seu grau de velocidade e lentidão. É a velocidade e a lentidão, o movimento e o repouso, a morosidade e a rapidez que subordinarão não só as formas de estrutura, mas os tipos de desenvolvimento. Essa direção se reencontrará ulteriormente, num sentindo evolucionista, nos fenômenos de taquigênese de Perrier, ou nas taxas de crescimentos diferenciais e na alometria: as espécies como entidades cinemáticas, precoces ou retardadas. (Mesmo a questão da fecundidade é menos de forma e de função que de velocidade; os cromossomas paternos virão cedo o bastante para serem incorporados aos núcleos?) Em todo caso, puro plano de imanência, de univocidade, de composição, onde tudo é dado, onde dançam elementos e materiais não formados que só se distinguem pela velocidade, e que entram nesse ou naquele agenciamento individuado de acordo com suas conexões, suas relações de movimentos. Plano fixo da vida, onde tudo mexe, atrasa ou se precipita. Um só Animal abstrato para todos os agenciamentos que o efetuam. Um só e mesmo plano de consistência ou de composição para o cefalópode e o vertebrado, pois bastaria o vertebrado dobrarse em dois suficientemente rápido para soldar os elementos das metades de suas costas, aproximar sua bacia de sua nuca, e juntar seus membros a uma das extremidades do corpo, tornando-se assim Polvo ou Sépia, tal “um saltimbanco que joga seus ombros e sua cabeça para trás para andar sobre sua cabeça e suas mãos”21. Plicatura. A questão não é mais absolutamente a dos órgãos e das funções, e de um Plano transcendente que não poderia presidir à sua organização senão sob relações analógicas e tipos de desenvolvimento divergentes. A questão não é a da organização, mas da composição; não do desenvolvimento ou da diferenciação, mas do movimento e do repouso, da velocidade e da lentidão. A questão é a dos elementos e partículas, que chegarão ou não rápido o bastante para operar uma passagem, um devir ou um salto sobre um mesmo plano de imanência pura. E se, com efeito, há saltos, fracassos entre agenciamentos, não é em virtude de sua irredutibilidade de natureza, mas porque há sempre elementos que não chegam a tempo, ou que chegam quando tudo acabou, tanto que é preciso passar por neblinas, ou vazios, avanços e atrasos que fazem parte eles próprios do plano de imanência. Até os fracassos fazem parte do plano. É preciso tentar pensar esse mundo onde o mesmo plano fixo, que chamaremos de imobilidade ou de movimento absolutos, encontra-se percorrido por elementos informais de

Etienne Geoffroy Saint-Hilaire, Príncipes de philosophie zoologique. E, sobre as partículas e seus movimentos, Notions synthétiques. 21

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velocidade relativa, entrando neste ou naquele agenciamento individuado, de acordo com seus graus de velocidade e de lentidão. Plano de consistência povoado por uma matéria anônima, parcelas infinitas de uma matéria impalpável que entram em conexões variáveis. As crianças são espinosistas. Quando o pequeno Hans fala de um “faz-pipi”, não é um órgão nem uma função orgânica; é antes um material, isto é, um conjunto de elementos que varia de acordo com suas conexões, suas relações de movimento e repouso, os diversos agenciamentos individuados onde ele entra. Uma menina tem um faz-pipi? O menino diz sim, e não é por analogia, nem para conjurar o medo da castração. As meninas têm evidentemente um faz-pipi, pois elas fazem pipi efetivamente: funcionamento maquínico mais do que função orgânica. Simplesmente, o mesmo material não tem as mesmas conexões, as mesmas relações de movimento e repouso, não entra no mesmo agenciamento no menino e na menina (uma menina não faz pipi de pé e nem para longe). Uma locomotiva tem um faz-pipi? Sim, num outro agenciamento maquínico ainda. As cadeiras não o têm: mas é porque os elementos da cadeira não puderam tomar esse material em suas relações, ou decompuseram a relação o bastante para que ela desse uma coisa totalmente diferente, um bastão de cadeira por exemplo. Pudemos notar que um órgão, para as crianças, sofria “mil vicissitudes”, era “mal localizável, mal identificável, ora um osso, um trequinho, um excremento, o bebê, uma mão, o coração de papai...”. Mas não é absolutamente porque o órgão é vivido como objeto parcial. É porque o órgão será exatamente aquilo que seu elementos farão dele de acordo com sua relação de movimento e repouso, e a maneira como essa relação compõe-se ou decompõe-se com a dos elementos vizinhos. Não se trata de animismo, não mais do que de mecanismo, mas de um maquinismo universal: um plano de consistência ocupado por uma imensa máquina abstrata com agenciamentos infinitos. As perguntas das crianças são mal compreendidas enquanto não se enxerga nelas perguntas-máquinas; donde a importância dos artigos indefinidos nessas questões (um ventre, uma criança, um cavalo, uma cadeira, “como é que uma pessoa é feita?”). O espinosismo é o devir-criança do filósofo. Chama-se longitude de um corpo os conjuntos de partículas que lhe pertencem sob essa ou aquela relação, sendo tais conjuntos eles próprios partes uns dos outros segundo a composição da relação que define o agenciamento individuado desse corpo. Lembranças de um espinosista, II. — Há um outro aspecto em Espinosa. A cada relação de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, que agrupa uma infinidade de partes,

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corresponde um grau de potência. Às relações que compõem um indivíduo, que o decompõem ou o modificam, correspondem intensidades que o afetam, aumentando ou diminuindo sua potência de agir, vindo das partes exteriores ou de suas próprias partes. Os afectos são devires. Espinosa pergunta: o que pode um corpo? Chama-se latitude de um corpo os afectos de que ele é capaz segundo tal grau de potência, ou melhor, segundo os limites desse grau. A latitude é feita de partes intensivas sob uma capacidade, como a longitude, de partes extensivas sob uma relação. Assim como evitávamos definir um corpo por seus órgãos e suas funções, evitamos defini-lo por características Espécie ou Gênero: procuramos enumerar seus afectos. Chamamos “etologia” um tal estudo, e é nesse sentido que Espinosa escreve uma verdadeira Ética. Há mais diferenças entre um cavalo de corrida e um cavalo de lavoura do que entre um cavalo de lavoura e um boi. Quando Von Uexkull define os mundos animais, ele procura os afectos ativos e passivos de que o bicho é capaz, num agenciamento individuado do qual ele faz parte. Por exemplo, o Carrapato, atraído pela luz, ergue-se até a ponta de um galho; sensível ao odor de um mamífero, deixa-se cair quando passa um mamífero sob o galho; esconde-se sob sua pele, num lugar o menos peludo possível. Três afectos e é tudo; durante o resto do tempo o carrapato dorme, às vezes por anos, indiferente a tudo o que se passa na floresta imensa. Seu grau de potência está efetivamente compreendido entre dois limites, o limite ótimo de seu festim depois do qual ele morre, o limite péssimo de sua espera durante a qual ele jejua. Dirão que os três afectos do carrapato já supõem características específicas e genéricas, órgãos e funções, patas e trompas. É verdade do ponto de vista da fisiologia; mas não do ponto de vista da Ética onde as características orgânicas decorrem ao contrário da longitude e de suas relações, da latitude e de seus graus. Não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que pode ele, isto é, quais são seus afectos, como eles podem ou não compor-se com outros afectos, com os afectos de um outro corpo, seja para destruí-lo ou ser destruído por ele, seja para trocar com esse outro corpo ações e paixões, seja para compor com ele um corpo mais potente. De novo recorreremos às crianças. Nota-se como elas falam dos animais e comovem-se com isso. Elas fazem uma lista de afectos. O cavalo do pequeno Hans não é representativo, mas afectivo. Ele não é o membro de uma espécie, mas um elemento ou um indivíduo num agenciamento maquínico: cavalo de tração-diligência-rua. Ele é definido por uma lista de afectos, ativos e passivos, em função desse agenciamento individuado do qual ele faz parte:

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ter os olhos tapados por viseiras, ter freio e rédeas, ser orgulhoso, ter um faz-pipi grande, puxar cargas pesadas, ser chicoteado, cair, espernear, morder..., etc. Esses afectos circulam e transformam-se no seio do agenciamento: o que “pode” um cavalo. Eles têm efetivamente um limite ótimo no topo da potência-cavalo, mas também um limiar péssimo: um cavalo cai na rua! e não pode reerguer-se sob a carga demasiadamente pesada e as chicotadas demasiadamente duras; um cavalo vai morrer! — espetáculo outrora ordinário (Nietzsche, Dostoiévski, Nijinski o lamentam). Então, o que é o devir-cavalo do pequeno Hans? Também Hans está tomado num agenciamento, a cama de mamãe, o elemento paterno, a casa, o bar em frente, o entreposto vizinho, a rua, o direito à rua, a conquista desse direito, o orgulho, mas também os riscos dessa conquista, a queda, a vergonha... Não são fantasmas ou devaneios subjetivos: não se trata de imitar o cavalo, de se “fazer” de cavalo, de identificar-se com ele, nem mesmo de experimentar sentimentos de piedade ou simpatia. Não se trata tampouco de analogia objetiva entre os agenciamentos. Trata-se de saber se o pequeno Hans pode dar a seus próprios elementos, relações de movimento e de repouso, afectos que o fazem devir cavalo, independentemente das formas e dos sujeitos. Há um agenciamento ainda desconhecido que não seria nem o de Hans nem o do cavalo, mas o do devir-cavalo de Hans, e onde o cavalo por exemplo mostraria os dentes, mesmo que Hans tivesse que mostrar outra coisa, seus pés, suas pernas, seu faz-pipi, qualquer coisa? E em que avançaria o problema de Hans, em que se abriria uma saída antes entupida? Quando Hofmannsthal contempla a agonia de um rato, é nele que o animal “mostra os dentes ao destino monstruoso”. E não é um sentimento de piedade, precisa ele, menos ainda uma identificação; é uma composição de velocidades e de afectos entre indivíduos inteiramente diferentes, simbiose, e que faz com que o rato se torne um pensamento no homem, um pensamento febril, ao mesmo tempo que o homem se torna rato, rato que range os dentes e agoniza. O rato e o homem não são absolutamente a mesma coisa, mas o Ser se diz dos dois num só e mesmo sentido, numa língua que não é mais a das palavras, numa matéria que não é mais a das formas, numa afectibilidade que não é mais a dos sujeitos. Participação anti-natureza, mas justamente o plano de composição, o plano de Natureza, é para tais participações que não param de fazer e desfazer seus agenciamentos empregando todos os artifícios. Não é nem uma analogia, nem uma imaginação, mas uma composição de velocidades e afectos nesse plano de consistência: um

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plano, um programa ou antes um diagrama, um problema, uma questão-máquina. Num texto curioso, Vladimir Slepian coloca o “problema”: tenho fome, fome o tempo todo, um homem não deve ter fome; tenho, então, que me tornar cachorro, mas como? Não se trata nem de imitar o cachorro, nem de uma analogia de relações. E preciso que eu consiga dar às partes de meu corpo relações de velocidade e lentidão que o façam tornar-se cachorro num agenciamento original que não procede por semelhança ou por analogia. Pois não posso tornar-me cachorro sem que o cachorro não se torne ele próprio outra coisa. Para resolver o problema, Slepian tem a ideia de utilizar sapatos, o artifício dos sapatos. Se minhas mãos estão calçadas, seus elementos entrarão numa nova relação donde decorrem o afecto ou o devir procurados. Mas como eu poderia amarrar o sapato em minha segunda mão, já estando a primeira tomada? Com minha boca que, por sua vez, encontra-se investida no agenciamento e que torna-se cara de cachorro à medida que a cara de cachorro serve agora para amarrar o sapato. A cada etapa do problema, é preciso não comparar órgãos, mas colocar elementos ou materiais numa relação que arranca o órgão à sua especificidade para fazê-lo devir “com” o outro. Mas eis que o devir-, que já tomou os pés, as mãos, a boca, irá fracassar assim mesmo. Ele fracassa no rabo. Teria sido preciso investir o rabo, forçá-lo a depreender elementos comuns ao órgão sexual e ao apêndice caudal, para que o primeiro fosse tomado num devir-cachorro do homem, ao mesmo tempo que o segundo o fosse num devir do cachorro, num outro devir que faria parte do agenciamento. O plano fracassa, Slepian não o alcança nesse ponto. O rabo fica de uma parte e de outra, órgão do homem e apêndice do cachorro, que não compõem suas relações num novo agenciamento. Então é aí que surge a deriva psicanalítica, e que voltam todos os clichês sobre o rabo, a mãe, a lembrança de infância na qual a mãe enfiava agulhas, todas as figuras concretas e as analogias simbólicas22. Mas Slepian, nesse belo texto, o quer assim. Pois há uma maneira pela qual o fracasso do plano faz parte do próprio plano: o plano é infinito, você pode começá-lo de mil maneiras, sempre encontrará algo que chega tarde demais ou cedo demais, e que o força a recompor todas as tuas relações de velocidade e de lentidão, todos os teus afectos, e a remanejar o conjunto do agenciamento. Empreendimento infinito. Mas há também uma outra maneira pela qual o plano fracassa; dessa vez, porque um outro plano

Vladimir Slepian, “Fils de chien”, Minuit n° 7, janeiro de 1974. A apresentação que estamos fazendo desse texto é muito simplificada. 22

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volta à força, e quebra o devir-animal, dobrando o animal sobre o animal e o homem sobre o homem, reconhecendo apenas semelhanças entre elementos e analogias entre relações. Slepian afronta os dois riscos. Queremos dizer uma coisa simples sobre a psicanálise: ela encontrou frequentemente, e desde o começo, a questão dos devires-animais do homem. Na criança, que não para de atravessar tais devires. No fetichismo e sobretudo no masoquismo, que não param de enfrentar este problema. O que se pode dizer, no mínimo, é que os psicanalistas não entenderam, Jung inclusive, ou que quiseram não compreender. Eles massacraram o devir-animal, no homem e na criança. Não viram nada. No animal, veem um representante das pulsões ou uma representação dos pais. Não veem a realidade de um deviranimal, como ele é o afecto em si mesmo, a pulsão em pessoa, e não representa nada. Não há outras pulsões que não os próprios agenciamentos. Em dois textos clássicos, Freud só encontra o pai no devir-cavalo de Hans, e Ferenczi no devir-galo de Arpad. As viseiras do cavalo é o binóculo do pai, o preto em volta da boca, seu bigode, os coices são o “fazer amor” dos pais. Nenhuma palavra sobre a relação de Hans com a rua, sobre a maneira como a rua lhe foi proibida, o que é para uma criança o espetáculo “um cavalo é orgulhoso, um cavalo cegado puxa, um cavalo cai, um cavalo é chicoteado...” A psicanálise não tem o sentimento das participações antinatureza, nem dos agenciamentos que uma criança pode montar para resolver um problema cujas saídas lhes estão sendo barradas: um plano, não um fantasma. Da mesma forma, diriam menos besteiras sobre a dor, a humilhação e a angústia no masoquismo, se vissem que são devires-animais que o conduzem e não o contrário. Aparelhos, ferramentas, apetrechos intervém sempre, sempre artifícios e coações para a Natureza maior. É que é preciso anular os órgãos, fechá-los de alguma forma, para que seus elementos liberados possam entrar em novas relações de onde decorrem o devir-animal e a circulação dos afectos no seio do agenciamento maquínico. Assim, vimos em outro lugar, a máscara, a rédea, o freio, o guarda-pênis em Equus eroticus: o agenciamento do devir-cavalo é tal que, paradoxalmente, o homem irá domar suas próprias forças “instintivas”, enquanto que o animal lhe transmite forças “adquiridas”. Reversão, participação anti-natureza. E as botas da mulher-dominadora têm por função anular a perna como órgão humano e colocar os elementos da perna numa relação conforme ao conjunto do agenciamento: “dessa maneira, não serão mais as pernas de mulheres que

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me farão efeito...”23. Mas, para quebrar um devir-animal, basta justamente extrair-lhe um segmento, abstrair-lhe um momento, não considerar as velocidades e as lentidões internas, parar a circulação dos afectos. Então não há mais do que semelhanças imaginárias entre termos, ou analogias simbólicas entre relações. Tal segmento remeterá ao pai, tal relação de movimento e de repouso à cena primitiva, etc. Sem dúvida, é preciso reconhecer que a psicanálise não basta para provocar esta quebra. Ela apenas desenvolve um risco compreendido no devir-. Sempre o risco de voltar a se “fazer” de animal, o animal doméstico edipiano, Miller fazendo Au-Au e reivindicando um osso, Fitzgerald lambendo sua mão, Slepian voltando para a mãe, ou o velhote se fazendo de cavalo ou de cachorro num cartão postal erótico de 1900 (e se “fazer” de animal selvagem não seria melhor). Os devires-animais não param de atravessar esses perigos. Lembranças de uma hecceidade. — Um corpo não se define pela forma que o determina, nem como uma substância ou sujeito determinados, nem pelos órgãos que possui ou pelas funções que exerce. No plano de consistência, um corpo se define somente por uma longitude e uma latitude: isto é, pelo conjunto dos elementos materiais que lhe pertencem sob tais relações de movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão (longitude); pelo conjunto dos afectos intensivos de que ele é capaz sob tal poder ou grau de potência (latitude). Somente afectos e movimentos locais, velocidades diferenciais. Coube a Espinosa ter destacado essas duas dimensões do Corpo e de ter definido o plano de Natureza como longitude e latitude puras. Latitude e longitude são os dois elementos de uma cartografia. Há um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma substância. Nós lhe reservamos o nome de hecceidade 24 . Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data têm uma individualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento e de repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado.

23

Cf. Roger Dupouy, “Du masochisme”, Annales médico-psychologiques, 1929,11.

Acontece de se escrever “ecceidade”, derivando a palavra de ecce, eis aqui. E um erro, pois Duns Scot cria a palavra e o conceito a partir de Haec, “esta coisa”. Mas é um erro fecundo, porque sugere um modo de individuação que não se confunde precisamente com o de uma coisa ou de um sujeito. 24

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Quando a demonologia expõe a arte diabólica dos movimentos locais e dos transportes de afectos, ela marca simultaneamente a importância das chuvas, granizos, ventos, atmosferas pestilentas ou poluídas com suas partículas deletérias, favoráveis a esses transportes. Os contos devem comportar hecceidades que não são simples arranjos, mas individuações concretas valendo por si mesmas e comandando a metamorfose das coisas e dos sujeitos. Nos tipos de civilização, o Oriente tem muito mais individuações por hecceidade do que por subjetividade e substancialidade: assim o Hai-ku deve obrigatoriamente comportar indicadores como linhas flutuantes constituindo um indivíduo completo. Em Charlotte Brontë, tudo é em termos de vento, as coisas, as pessoas, os rostos, os amores, as palavras. O “cinco horas da tarde” de Lorca, quando o amor cai e o fascismo se levanta. Que terrível cinco horas da tarde! Dizemos: que história, que calor, que vida!, para designar uma individuação muito particular. As horas do dia em Lawrence, em Faulkner. Um grau de calor, uma intensidade de branco são perfeitas individualidades; e um grau de calor pode compor-se em latitude com um outro grau para formar um novo indivíduo, como num corpo que tem frio aqui e calor ali de acordo com sua longitude. Sorvete flambado com suspiro. Um grau de calor pode compor-se com uma intensidade de branco, como em certas atmosferas brancas de um verão quente. Não é absolutamente uma individualidade pelo instante, que se oporia à individualidade das permanências ou das durações. A efeméride não tem menos tempo do que um calendário perpétuo, embora não seja o mesmo tempo. Um animal não vive necessariamente mais do que um dia ou uma hora; inversamente, um grupo de anos pode ser tão longo quanto o sujeito ou o objeto mais duradouro. Pode-se conceber um tempo abstrato igual entre as hecceidades e os sujeitos ou as coisas. Entre as lentidões extremas e as velocidades vertiginosas da geologia ou da astronomia, Michel Tournier destaca a meteorologia, onde os meteoros vivem no nosso andamento: “Uma nuvem forma-se no céu como uma imagem em meu cérebro, o vento sopra como respiro, um arco-íris liga dois horizontes, o tempo que precisa meu coração para se reconciliar com a vida, o verão escoa como as férias passam”. Mas é por acaso que essa certeza, no romance de Tournier, só pode vir a um herói gemelar, deformado e dessubjetivado, tendo adquirido uma espécie de ubiquidade25? Mesmo quando os tempos são

25

Michel Tournier, Les météores, Gallimard, capítulo XXII, “L’âme déployée”.

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abstratamente iguais, a individuação de uma vida não é a mesma que a individuação do sujeito que a leva ou a suporta. E não é o mesmo Plano: plano de consistência ou de composição das hecceidades num caso, que só conhece velocidades e afectos; plano inteiramente outro das formas, das substâncias e dos sujeitos, no outro caso. E não é o mesmo tempo, a mesma temporalidade. Aion, que é o tempo indefinido do acontecimento, a linha flutuante que só conhece velocidades, e ao mesmo tempo não para de dividir o que acontece num já-aí e um ainda-não-aí, um tarde-de-mais e um cedo-demais simultâneos, um algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se passar. E Cronos, ao contrário, o tempo da medida, que fixa as coisas e as pessoas, desenvolve uma forma e determina um sujeito. Boulez distingue na música o tempo e o não-tempo, o “tempo pulsado” de uma música formal e funcional fundada em valores, o “tempo não pulsado” para uma música flutuante, flutuante e maquínica, que só tem velocidades ou diferenças de dinâmica26. Em suma, a diferença não passa absolutamente entre o efêmero e o duradouro, nem mesmo entre o regular e o irregular, mas entre dois modos de individuação, dois modos de temporalidade. Com efeito, seria preciso evitar uma conciliação simples demais, como se houvesse de um lado sujeitos formados, do tipo coisas ou pessoas, e de outro lado, coordenadas espaço-temporais do tipo hecceidades. Pois você não dará nada às hecceidades sem perceber que você é uma hecceidade, e que não é nada além disso. Quando o rosto tornase uma hecceidade: “era uma curiosa mistura, o rosto de alguém que simplesmente encontrou o meio de se ajeitar com o momento presente, com o tempo que está fazendo, com essas pessoas que estão aí”27. Você é longitude e latitude, um conjunto de velocidades e lentidões entre partículas não formadas, um conjunto de afectos não subjetivados. Você tem a individuação de um dia, de uma estação, de um ano, de uma vida (independentemente da duração); de um clima, de um vento, de uma neblina, de um enxame, de uma matilha (independentemente da regularidade). Ou pelo menos você pode tê-la, pode consegui-la. Um enxame de gafanhotos trazido pelo vento às cinco horas da tarde; um vampiro que sai na noite, um lobisomem na lua cheia. Não se acreditará que a hecceidade consista simplesmente num cenário ou

Pierre Boulez, Par volonté et par hasard, pp. 88-91 (“os fenômenos de tempo são fenômenos que não se pode introduzir numa música calculada puramente eletronicamente, por comprimento expresso em segundos ou em minissegundos”). 26

27

Ray Bradbury, Les macbines à bonbeur, Denoèl, p. 67.

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num fundo que situaria os sujeitos, nem em apêndices que segurariam as coisas e as pessoas no chão. É todo o agenciamento em seu conjunto individuado que é uma hecceidade; é ele que se define por uma longitude e uma latitude, por velocidades e afectos, independentemente das formas e dos sujeitos que pertencem tão somente a outro plano. É o próprio lobo, ou o cavalo, ou a criança que param de ser sujeitos para se tornarem acontecimentos em agenciamentos que não se separam de uma hora, de uma estação, de uma atmosfera, de um ar, de uma vida. A rua compõe-se com o cavalo, como o rato que agoniza compõe-se com o ar, e o bicho e a lua cheia se compõem juntos. No máximo, se distinguira hecceidades de agenciamentos (um corpo que só é considerado como longitude e latitude), e hecceidades de inter-agenciamentos, que marcam igualmente potencialidades de devir no seio de cada agenciamento (o meio de cruzamento das longitudes e latitudes). Mas os dois são estritamente inseparáveis. O clima, o vento, a estação, a hora não são de uma natureza diferente das coisas, dos bichos ou das pessoas que os povoam, os seguem, dormem neles ou neles acordam. E é de uma só vez que é preciso ler: o bichocaça-às-cinco-horas. Devir-tarde, devir-noite de um animal, núpcias de sangue. Cinco horas é este bicho! Este bicho é este lugar! “O cachorro magro corre na rua, este cachorro magro é a rua”, grita Virgínia Woolf. É preciso sentir assim. As relações, as determinações espaço-temporais não são predicados da coisa, mas dimensões de multiplicidades. A rua faz parte tanto do agenciamento cavalo de diligência, quanto do agenciamento Hans cujo devir-cavalo ela abre. Somos todos cinco horas da tarde, ou uma outra hora, e antes duas horas ao mesmo tempo, a ótima e a péssima, meio-dia-meia-noite, mas distribuídas de maneira variável. O plano de consistência só contém hecceidades segundo linhas que se entrecruzam. As formas e os sujeitos não são desse mundo-aí. O passeio de Virgínia Woolf na multidão, entre os táxis, mas justamente o passeio é uma hecceidade: nunca mais Mrs. Dalloway dirá “eu sou isto ou aquilo, ele é isto, ele é aquilo”. E “ela sentia-se muito jovem, ao mesmo tempo velha de um jeito que não dava para acreditar”, rápida e lenta, já aí e ainda não, “ela penetrava como uma lâmina através de todas as coisas, ao mesmo tempo ela estava fora e olhava, (...). lhe parecia sempre que era muito, muito perigoso viver, mesmo um só dia”. Hecceidade, neblina, luz crua. Uma hecceidade não tem nem começo nem fim, nem origem nem destinação; está sempre no meio. Não é feita de pontos, mas apenas de linhas. Ela é rizoma.

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E não é a mesma linguagem, pelo menos o mesmo uso da linguagem. Pois se o plano de consistência só tem por conteúdo hecceidades, ele tem também toda uma semiótica particular que lhe serve de expressão. Plano de conteúdo e plano de expressão. Essa semiótica é sobretudo composta de nomes próprios, de verbos no infinitivo e de artigos ou de pronomes indefinidos. Artigo indefinido + nome próprio + verbo infinitivo constituem com efeito a cadeia de expressão de base, correlativa dos conteúdos minimamente formalizados, do ponto de vista de uma semiótica que se liberou das significâncias formais como das subjetivações pessoais. Em primeiro lugar, o verbo no infinitivo não é absolutamente indeterminado quanto ao tempo, ele exprime o tempo não pulsado flutuante próprio ao Aion, isto é, o tempo do acontecimento puro ou do devir-, enunciando velocidades e lentidões relativas, independentemente dos valores cronológicos ou cronométricos que o tempo toma nos outros modos. Assim, estamos no direito de opor o infinitivo como modo e tempo do devir ao conjunto dos outros modos e tempos que remetem a Cronos, formando as pulsações ou os valores do ser (o verbo “ser” é precisamente o único que não tem infinitivo, ou melhor, cujo infinitivo é apenas uma expressão vazia indeterminada, tomada abstratamente para designar o conjunto dos modos e tempos definidos28). Em segundo lugar, o nome próprio não é absolutamente indicador de um sujeito: portanto, parece-nos que é perguntar em vão se sua operação assemelha-se ou não à nominação de uma espécie, dependendo de o sujeito ser considerado de natureza distinta da Forma que o classifica, ou apenas como o ato último dessa Forma, enquanto limite da classificação29. Com efeito, se o nome próprio não indica um sujeito, não é tampouco em função de uma forma ou de uma espécie que um nome pode tomar um valor de nome próprio. O nome próprio designa

G. Guillaume propôs uma concepção muito interessante do verbo, onde ele distingue um tempo interior, envolvido no “processo”, e um tempo exterior que remete à distinção das épocas (“Epoques et niveaux temporels dans le système de la conjugaison française”, Cahiers de linguistique structurale, Canadá, 1955). Parece-nos que esses dois polos correspondem, um ao infinitivo-devir-, Aion, o outro ao presente-ser, Cronos. Cada verbo inclina-se mais ou menos para um polo ou para o outro, não só de acordo com sua natureza, mas de acordo com as nuanças de seus modos e tempos. Com exceção de “devir-” e “ser”, que correspondem a cada um dos dois polos. Em seu estudo sobre o estilo de Flaubert, Proust mostra como o tempo do imperfeito em Flaubert toma o valor de um infinitivo-devir (Chroniques, Gallimard, pp. 197-199). 28

Sobre esse problema dos nomes próprios (em que sentido o nome próprio está fora dos limites da classificação e é de outra natureza, ou está em seu limite e ainda faz parte dela?), cf. Gardiner, The Theory of Proper Names, Londres, e LéviStrauss, La pensée sauvage, cap. VII. 29

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antes algo que é da ordem do acontecimento, do devir ou da hecceidade. São os militares e os meteorologistas que têm os segredos dos nomes próprios, quando eles os dão a uma operação estratégica, ou a um tufão. O nome próprio não é o sujeito de um tempo, mas o agente de um infinitivo. Ele marca uma longitude e uma latitude. Se o Carrapato, o Lobo, o Cavalo, etc., são verdadeiros nomes próprios, não é em razão dos denominadores genéricos e específicos que os caracterizam, mas das velocidades que os compõem e dos afectos que os preenchem: o acontecimento que eles são para si mesmos e nos agenciamentos, devir-cavalo do pequeno Hans, devir-lobo do homem, devir-carrapato do Estóico (outros nomes próprios). Em terceiro lugar, o artigo e o pronome indefinidos não são indeterminados, não mais do que o verbo infinitivo. Ou melhor, só lhes falta determinação à medida que os aplicamos a uma forma ela própria indeterminada, ou a um sujeito determinável. Em compensação, nada lhes falta quando eles introduzem hecceidades, acontecimentos cuja individuação não passa por uma forma e não se faz por um sujeito. Então o indefinido se conjuga com o máximo de determinação: era uma vez, bate-se numa criança, um cavalo cai... É que os elementos postos em jogo encontram aqui sua individuação no agenciamento do qual eles fazem parte, independentemente da forma de seu conceito e da subjetividade de sua pessoa. Notamos muitas vezes a que ponto as crianças manejam o indefinido não como um indeterminado, mas, ao contrário, como um individuante em um coletivo. É por isso que nos espantamos diante dos esforços da psicanálise, que quer a todo preço que, atrás dos indefinidos, haja um definido escondido, um possessivo, um pessoal: quando a criança diz “um ventre”, “um cavalo”, “como as pessoas crescem?”, “batese numa criança”, o psicanalista ouve “meu ventre”, “o pai”, “ficarei grande como meu papai?”. O psicanalista pergunta: quem está sendo batido, e por quem30? Mas a própria linguística não está

Já encontramos este problema, a propósito da indiferença da psicanálise em relação ao emprego do artigo ou do pronome indefinidos, tal como aparece nas crianças: em Freud, e mais ainda em Melanie Klein (as crianças que ela analisa, especialmente o pequeno Richard, falam em termos de “um”, “se”, “gente”, mas Melanie Klein força a barra incrivelmente para remetê-los a locuções familiares, possessivas e pessoais). No campo da psicanálise, parecenos que só Laplanche e Pontalis tiveram o sentimento de um papel particular dos indefinidos e protestaram contra toda redução interpretativa demasiadamente rápida: “Fantasma originário...”, Temps modernes .º 215, abril 1964, pp. 1861, 1868. 30

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imune ao mesmo preconceito, dado que ela é inseparável de uma personologia; e não só ao artigo e ao pronome indefinidos, mas também à terceira pessoa do pronome pessoal, lhe parece faltar determinação de subjetividade, própria às duas primeiras pessoas, e que seria como que a condição de toda enunciação31. Pensamos, ao contrário, que o indefinido da terceira pessoa IL, ILS, em francês, não implica qualquer indeterminação desse ponto de vista, e remete o enunciado não mais a um sujeito de enunciação, mas a um agenciamento coletivo como condição. Blanchot tem razão em dizer que o ON (se) e o IL (em francês) — on meurt (morre-se), il est malheureux (é triste) — não tomam absolutamente o lugar do sujeito, mas destituem todo sujeito em proveito de um agenciamento do tipo hecceidade, que abriga ou libera o acontecimento naquilo que ele tem de não formado, e de não efetuável por pessoas (“algo lhes acontece que eles não podem restituir a não ser destituindo-se de seu poder de dizer eu”).32 O IL não representa um sujeito, mas diagramatiza um agenciamento. Ele não sobrecodifica os enunciados, não os transcende como as duas primeiras pessoas, mas, ao contrário, os impede de cair sob a tirania das constelações significantes ou subjetivas, sob o regime das redundâncias vazias. As cadeias de expressão que ele articula são aquelas cujos conteúdos podem ser agenciados em função de um máximo de ocorrências e devires. “Eles chegam como o destino... de onde eles vêm, como puderam penetrar até aqui...?”. // ou on (se), artigo indefinido, nome próprio, verbo infinitivo: UM HANS DEVIR CAVALO, UMA MATILHA CHAMADA LOBO OLHAR ELE, MORRE-SE, VESPA ENCONTRAR ORQUÍDEA, ELES CHEGAM, HUNOS.

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cios, máquinas telegráficas no plano de consistência (de novo aí, é de se pensar nos procedimentos da poesia chinesa e nas regras de tradução que propõem os melhores comentadores).33.

Cf. a concepção personalista ou subjetivista da linguagem em E. Benveniste: Problèmes de linguistique générale, caps. XX e XXI (especialmente pp. 255, 261). 31

Os textos essenciais de Maurice Blanchot valem como uma refutação da teoria dos “embreantes” e da personologia em linguística: cf. L’entretien infini, Gallimard, pp. 556-567. E, sobre a diferença entre as duas proposições “je suis malheureux” (eu sou infeliz) e “il est malheureux” (é triste), ou então “je meurs” (eu morro) e “on meurt” (morre-se), cf. La part du feu, pp. 29-30, e L’espace littéraire, pp. 105, 155, 160-161. Blanchot mostra em todos esses casos que o indefinido nada tem a ver com a “banalidade cotidiana”, que estaria mais do lado do pronome pessoal. 32

Por exemplo, François Cheng, L’écriture poétique chinoise, Ed. du Seuil: sua análise daquilo que ele chama “procedimentos passivos”, pp. 30 ss. 33

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Lembranças de um planejador. — Talvez haja dois planos, ou duas maneiras de conceber o plano. O plano pode ser um princípio oculto, que dá a ver aquilo que se vê, a ouvir aquilo que se ouve..., etc., que faz a cada instante que o dado seja dado, sob tal estado, a tal momento. Mas ele próprio, o plano, não é dado. Ele é oculto por natureza. Só se pode inferi-lo, induzi-lo, concluí-lo a partir daquilo que ele dá (simultaneamente ou sucessivamente, em sincronia ou diacronia). Um tal plano, com efeito, é tanto de organização quanto de desenvolvimento: ele é estrutural ou genético, e os dois ao mesmo tempo, estrutura e gênese, plano estrutural das organizações formadas com seus desenvolvimentos, plano genético dos desenvolvimentos evolutivos com suas organizações. São apenas matizes nessa primeira concepção do plano. Atribuir importância demasiada a esses matizes impediria que captássemos algo de mais importante. É que o plano, assim concebido ou assim feito, concerne de todo modo o desenvolvimento das formas e a formação dos sujeitos. Uma estrutura oculta necessária às formas, um significante secreto necessário aos sujeitos. Sendo assim, é forçoso que o próprio plano não seja dado. Ele só existe, com efeito, numa dimensão suplementar àquilo que ele dá (n + 1). Nesse sentido, é um plano teleológico, um desenho, um princípio mental. E um plano de transcendência. É um plano de analogia, seja porque assinala o termo eminente de um desenvolvimento, seja porque estabelece as relações proporcionais da estrutura. Pode estar no espírito de um deus, ou num inconsciente da vida, da alma ou da linguagem: ele é sempre concluído de seus próprios efeitos. E sempre inferido. Mesmo que o digamos imanente, ele só o é por ausência, analogicamente (metaforicamente, metonimicamente, etc).. A árvore está dada no germe, mas em função de um plano que não é dado. Assim como na música, o princípio de organização ou de desenvolvimento não aparece por si mesmo em relação direta com aquilo que se desenvolve ou se organiza: há um princípio composicional transcendente que não é sonoro, que não é “audível” por si mesmo ou para si mesmo. Isto permite todas as interpretações possíveis. As formas e seus desenvolvimentos, os sujeitos e suas formações remetem a um plano que opera como unidade transcendente ou princípio oculto. Poderemos sempre expor o plano, mas como uma parte à parte, um não-dado naquilo que ele dá. Não é assim que mesmo Balzac, e até Proust, expõem o plano de organização ou de desenvolvimento de sua obra, como numa metalinguagem? Mas também Stockhausen não precisa expor a estrutura de suas formas sonoras como que “ao lado” delas, na falta de fazer ouvi-la? Plano de vida, plano de música, plano de escrita, é

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igual: um plano que não pode ser dado enquanto tal, que só pode ser inferido, em função das formas que desenvolve e dos sujeitos que forma, pois ele é para essas formas e esses sujeitos. E depois há todo um outro plano, ou toda uma outra concepção do plano. Aqui não há mais absolutamente formas e desenvolvimentos de formas; nem sujeitos e formações de sujeitos. Não há nem estrutura nem gênese. Há apenas relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão entre elementos não formados, ao menos relativamente não formados, moléculas e partículas de toda espécie. Há somente hecceidades, afectos, individuações sem sujeito, que constituem agenciamentos coletivos. Nada se desenvolve, mas coisas acontecem com atraso ou adiantadas, e formam esse ou aquele agenciamento de acordo com suas composições de velocidade. Nada se subjetiva, mas hecceidades formam-se conforme as composições de potências ou de afectos não subjetivados. A este plano, que só conhece longitudes e latitudes, velocidades e hecceidades, damos o nome de plano de consistência ou de composição (por oposição ao plano de organização e de desenvolvimento). E necessariamente um plano de imanência e de univocidade. Nós o chamamos, portanto, plano de Natureza, embora a natureza não tenha nada a ver com isso, pois esse plano não faz diferença alguma entre o natural e o artificial. Por mais que cresça em dimensões, ele jamais tem uma dimensão suplementar àquilo que se passa nele. Por isso mesmo é natural e imanente. É como para o princípio de contradição: podemos igualmente chamá-lo de não-contradição. O plano de consistência poderia ser nomeado de não-consistência. É um plano geométrico, que não remete mais a um desenho mental, mas a um desenho abstrato. E um plano cujas dimensões não param de crescer com aquilo que se passa, sem nada perder de sua planitude. E, portanto, um plano de proliferação, de povoamento, de contágio; mas essa proliferação de materiais nada tem a ver com uma evolução, com o desenvolvimento de uma forma ou a filiação de formas. É menos ainda uma regressão que remontaria a um princípio. É, ao contrário, uma involução, onde a forma não para de ser dissolvida para liberar tempos e velocidades. É um plano fixo, plano fixo sonoro, visual ou escritural, etc. Fixo não quer dizer aqui imóvel: é o estado absoluto do movimento tanto quanto do repouso no qual se desenha todas as velocidades e lentidões relativas e nada além delas. Certos músicos modernos opõem ao plano transcendente de organização, que se supõe ter dominado toda a música clássica ocidental, um plano sonoro imanente, sempre dado com aquilo que ele dá, que faz perceber o imperceptível, e não abriga mais do que velocidades e lentidões diferenciais numa espécie de

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marulho molecular: é preciso que a obra de arte marque os segundos, os décimos, os centésimos de segundo34. Ou se trata antes de uma liberação do tempo, Aion, tempo não pulsado para uma música flutuante, como diz Boulez, música eletrônica onde as formas cedem lugar a puras modificações de velocidade. Foi sem dúvida John Cage o primeiro a desenvolver mais perfeitamente esse plano fixo sonoro que afirma um processo contra qualquer estrutura e gênese, um tempo flutuante contra o tempo pulsado ou o tempo, uma experimentação contra toda interpretação, e onde o silêncio como repouso sonoro marca igualmente o estado absoluto do movimento. Diríamos o mesmo do plano fixo visual: o plano fixo de cinema é efetivamente levado por Godard, por exemplo, a esse estado onde as formas se dissolvem para deixarem ver tão somente minúsculas variações de velocidade entre movimentos compostos. Nathalie Sarraute propõe por sua vez uma clara distinção de dois planos de escrita: um plano transcendente que organiza e desenvolve formas (gêneros, temas, motivos), que consigna e faz evoluir sujeitos (personagens, temperamentos, sentimentos); e um plano totalmente distinto, que libera as partículas de uma matéria anônima, faz com que elas se comuniquem através do “envoltório” das formas e dos sujeitos, e só retém entre essas partículas relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, de afectos flutuantes, de tal modo que o próprio plano é percebido ao mesmo tempo que ele nos faz perceber o imperceptível (microplano, plano molecular35). Com efeito, do ponto de vista de uma abstração bem fundada, podemos fazer como se os dois planos, as duas concepções do plano, se opusessem claramente e absolutamente. Desse ponto de vista, dir-se-á: você vê bem a diferença entre os dois tipos de proposições seguintes: 1) formas desenvolvem-se, sujeitos formam-se, em função de um plano que só pode ser inferido (plano de organização-desenvolvimento); 2) só há velocidades e lentidões entre elementos não formados, e afectos entre potências não subjetivadas, em função de um plano que é necessariamente dado ao mesmo tempo que aquilo que ele dá (plano de consistência ou de composição)36.

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Cf. as declarações dos músicos americanos ditos “repetitivos”, especialmente de Steve Reich e Phil Glass.

Nathalie Sarraute, em L’ère du soupçon, mostra como Proust, por exemplo, fica dividido entre os dois planos, dado que extrai de seus personagens “as parcelas ínfimas de uma matéria impalpável”, mas também recolhe todas as suas partículas numa forma coerente, deslizando-as para dentro do envoltório deste ou daquele personagem: cf. pp. 52, 100. 35

Cf. a distinção dos dois Planos em Artaud, dos quais um é denunciado como a fonte de todas as ilusões: Les Tarahumaras, (Euvres completes, IX, pp. 34-35 36

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Tomemos três casos maiores da literatura alemã no século XIX, Hölderlin, Kleist e Nietzsche. — A extraordinária composição de Hypérion, em Hölderlin, tal como Robert Rovini a analisou: a importância das hecceidades do tipo estações, que, ao mesmo tempo, constituem de dois modos diferentes, o “quadro da narrativa” (plano) e o detalhe do que se passa nele (os agenciamentos e inter-agenciamentos37). Mas ainda, na sucessão das estações, e na superposição de uma mesma estação de anos diferentes, a dissolução das formas e das pessoas, a liberação dos movimentos, velocidades, atrasos, afectos, como se algo escapasse de uma matéria impalpável à medida que a narrativa progride. E talvez também a relação com uma “real política”; com uma máquina de guerra; com uma máquina musical de dissonância. — Kleist: como, nele, em sua escrita como em sua vida, tudo se torna velocidade e lentidão. Sucessão de catatonias, e de velocidades extremas, de esvaecimentos e de flechas. Dormir em seu cavalo e galopar. Saltar de um agenciamento a um outro, em prol de um esvaecimento, transpondo um vazio. Kleist multiplica os “planos de vida”, mas é sempre um só e mesmo plano que compreende seus vazios e seus fracassos, seus saltos, seus tremores de terra e suas pestes. O plano não é princípio de organização, mas meio de transporte. Nenhuma forma se desenvolve, nenhum sujeito se forma, mas afectos deslocam-se, devires catapultam-se e fazem bloco, como o devirmulher de Aquiles e o devir-cadela de Pentesiléia. Kleist explicou maravilhosamente como as formas e as pessoas eram só aparências, produzidas pelo deslocamento de um centro de gravidade numa linha abstrata, e pela conjunção dessas linhas num plano de imanência. O urso lhe parece um animal fascinante, impossível de enganar, porque, com seus olhinhos cruéis, ele vê por trás das aparências a verdadeira “alma do movimento”, o Gemut ou o afecto não subjetivo: devir-urso de Kleist. Até a morte pode ser pensada tãosomente como o cruzamento de reações elementares com velocidades demasiadamente diferentes. Um crânio explode, obsessão de Kleist. Toda a obra de Kleist é percorrida por uma máquina de guerra invocada contra o Estado, por uma máquina musical invocada contra a pintura ou o “quadro”. É curioso como Goethe e Hegel têm ódio dessa nova escrita. E que, para eles, o plano tem que ser indissoluvelmente desenvolvimento harmonioso da Forma e formação regulada do Sujeito, personagem ou caráter (a educação sentimental, a solidez substancial e interior do caráter, a harmonia ou a analogia das formas e a continuidade

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Hölderlin, Hypérion, introdução de Robert Rovini, 10-18.

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do desenvolvimento, o culto do Estado, etc). E que eles têm do Plano uma concepção totalmente oposta à de Kleist. Antigoetheismo, anti-hegelianismo de Kleist, e já de Hölderlin. Goethe vê o essencial quando ele recrimina Kleist pelo fato de, ao mesmo tempo, erigir um puro “processo estacionado” tal como o plano fixo efetivamente, introduzir vazios e saltos que impedem todo o desenvolvimento de um caráter central, mobilizar uma violência de afectos que acarreta uma grande confusão de sentimentos38. Com Nietzsche acontece a mesma coisa com outros meios. Não há mais o desenvolvimento de formas nem formação de sujeitos. O que recrimina em Wagner é ter ainda preservado um excesso de forma de harmonia, e um excesso de personagens de pedagogia, de “temperamentos”: Hegel e Goethe em excesso. Bizet, ao contrário, dizia Nietzsche... Parece-nos que, em Nietzsche, o problema não é tanto o de uma escrita fragmentária. É mais o das velocidades ou lentidões: não se trata de escrever lenta ou rapidamente, mas que a escrita, e todo o resto, sejam produção de velocidades e lentidões entre partículas. Nenhuma forma resistirá a isso, nenhum caráter ou sujeito sobreviverá a isso. Zaratustra só tem velocidades e lentidões, e o eterno retorno, a vida do eterno retorno, é a primeira grande liberação concreta de um tempo não pulsado. Ecce Homo só tem individuações por hecceidades. É forçoso que o Plano, sendo assim concebido, fracasse sempre, mas que os fracassos façam parte integrante do plano: cf. a multidão de planos para A vontade de potência. Com efeito, dado um aforisma, será sempre possível, e mesmo necessário, introduzir entre seus elementos novas relações de velocidade e lentidão que o fazem verdadeiramente mudar de agenciamento, saltar de um agenciamento para um outro (a questão não é, portanto, a do fragmento). Como diz Cage, é próprio do plano que o plano fracasse39. Justamente porque não há organização, desenvolvimento ou formação, mas transmutação não voluntária. Ou Boulez: “programar a máquina para que cada vez que repassamos uma fita, ela dê características diferentes de tempo”. Então, o plano, plano de vida, plano de escrita, plano de música, etc., só pode fracassar, pois é impossível ser-lhe fiel; mas os fracassos fazem

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Utilizamo-nos de um estudo inédito de Mathieu Carrière sobre Kleist.

“De onde veio o seu título, A Year from Monday? — “De um plano que tínhamos feito com um grupo de amigos, de nos encontrarmos na cidade do México, na próxima segundafeira dentro de um ano. Estávamos reunidos num sábado, e nosso plano nunca pôde se realizar. É uma forma de silêncio. (...). Pelo próprio fato de nosso plano ter fracassado, pelo fato de que fomos incapazes de nos encontrar, nada fracassou, o plano não foi um fracasso” (John Cage, Pour les oiseaux, entrevistas a D. Charles, Belfond, p. 111). 39

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parte do plano, pois ele cresce e decresce com as dimensões daquilo que ele desenvolve a cada vez (planitude com n dimensões). Estranha máquina, ao mesmo tempo de guerra, de música e de contágio-proliferação-involução. Por que a oposição dos dois tipos de planos remete, no entanto, a uma hipótese ainda abstrata? É que não paramos de passar de um ao outro, por graus insensíveis e sem sabê-lo, ou sabendo só depois. E que não paramos de reconstituir um no outro, ou de extrair um do outro. Por exemplo, basta afundar o plano flutuante de imanência, enterrá-lo nas profundezas da Natureza em vez de deixá-lo funcionar livremente na superfície, para que ele já passe para o outro lado, e tome o papel de um fundamento que não pode mais ser senão princípio de analogia do ponto de vista da organização, lei de continuidade do ponto de vista do desenvolvimento40. É que o plano de organização ou de desenvolvimento cobre efetivamente aquilo que chamávamos de estratificação: as formas e os sujeitos, os órgãos e as funções são “estratos” ou relações entre estratos. Ao contrário, o plano, como plano de imanência, consistência ou composição, implica uma desestratificação de toda a Natureza, inclusive pelos meios os mais artificiais. O plano de consistência é o corpo sem órgãos. As puras relações de velocidade e lentidão entre partículas, tais como aparecem no plano de consistência, implicam movimentos de desterritorialização, como os puros afectos implicam um empreendimento de dessubjetivação. Mais ainda, o plano de consistência não preexiste aos movimentos de desterritorialização que o desenvolvem, às linhas de fuga que o traçam e o fazem subir à superfície, aos devires que o compõem. De modo que o plano de organização não para de trabalhar sobre o plano de consistência, tentando sempre tapar as linhas de fuga, parar ou interromper os movimentos de desterritorialização, lastreá-los, reestratificá-los, reconstituir formas e sujeitos em profundidade. Inversamente, o plano de consistência não para de se extrair do plano de organização, de levar partículas a fugirem para fora dos estratos, de embaralhar as formas a golpe de velocidade ou lentidão, de quebrar as funções à força de agenciamentos, de microagenciamentos. Mas, ainda aqui, quanta prudência é necessária para que o plano de

É por isso que pudemos tomar Goethe como exemplo de um Plano transcendente. Goethe passa, no entanto, por espinosista; seus estudos botânicos e zoológicos descobrem um plano de composição imanente, que o aproxima de Geoffroy Saint-Hilaire (essa semelhança foi assinalada inúmeras vezes). Acontece que Goethe guardará sempre a dupla ideia de um desenvolvimento da Forma e de uma formação-educação do Sujeito: por aí seu plano de imanência já passa para o outro lado, em direção ao outro polo. 40

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consistência não devenha um puro plano de abolição, ou de morte. Para que a involução não se transforme em regressão ao indiferenciado. Não será preciso guardar um mínimo de estratos, um mínimo de formas e de funções, um mínimo de sujeito para dele extrair materiais, afectos, agenciamentos? Assim, devemos opor os dois planos como dois polos abstratos: por exemplo, ao plano organizacional transcendente de uma música ocidental fundada nas formas sonoras e seu desenvolvimento, opomos um plano de consistência imanente da música oriental, feita de velocidades e lentidões, de movimentos e repouso. Mas, segundo a hipótese concreta, todo o devir da música ocidental, todo devir musical implica um mínimo de formas sonoras, e até de funções harmônicas e melódicas, através das quais se fará passar velocidades e lentidões, que as reduzem precisamente ao mínimo. Beethoven produz a mais espantosa riqueza polifônica com os temas relativamente pobres de três ou quatro notas. Há uma proliferação material que não faz senão uma com a dissolução da forma (involução), sendo ao mesmo tempo acompanhada de um desenvolvimento contínuo dessa forma. Talvez o gênio de Schumann seja o caso mais chocante, onde uma forma não é desenvolvida senão para as relações de velocidade e lentidão pelas quais ela é afetada material e emocionalmente. A música não parou de fazer suas formas e seus motivos sofrerem transformações temporais, aumentos ou diminuições, atrasos ou precipitações, que não se fazem apenas de acordo com as leis de organização e até de desenvolvimento. Os microintervalos, em expansão ou contração, atuam nos intervalos codificados. Com mais razão ainda Wagner e os pós-wagnerianos irão liberar as variações de velocidade entre partículas sonoras. Ravel e Debussy preservam da forma precisamente aquilo que é necessário para quebrá-la, afetá-la, modificá-la, sob as velocidades e as lentidões. O Bolero, caricaturizado, é o tipo de um agenciamento maquínico que conserva da forma o mínimo para levá-la à explosão. Boulez fala das proliferações de pequenos motivos, das acumulações de pequenas notas que procedem cinematicamente e afetivamente, que trazem consigo uma forma simples acrescentando-lhe indicações de velocidade, e permitem produzir relações dinâmicas extremamente complexas a partir de relações formais intrinsecamente simples. Mesmo um rubato de Chopin não pode ser reproduzido, pois terá a cada vez características diferentes de tempo41.

Sobre todos esses pontos (proliferações-dissoluções, acumulações, indicações de velocidade, papel dinâmico e afectivo), cf. Pierre Boulez, Par volante et par basard, pp. 2224, 88-91. Num outro texto, Boulez insiste sobre um aspecto desconhecido de Wagner: não só os leitmotiv liberam-se de sua subordinação aos personagens cênicos, mas as velocidades de desenvolvimento liberam-se do controle de um “código formal” ou de um tempo (“Le temps re-cherché”, em Das Rheingold Programmheft I, Bayreuth, 1976, pp. 3-11). Boulez presta homenagem a Proust, por ter sido um dos primeiros a compreender esse fator transformável e flutuante dos motivos wagnerianos. 41

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É como se um imenso plano de consistência com velocidade variável não parasse de arrastar as formas e as funções, as formas e os sujeitos, para deles extrair partículas e afectos. Um relógio que daria toda uma variedade de velocidades. O que é uma moça, o que é um grupo de moças? Ao menos Proust o mostrou de uma vez por todas: como sua individuação, coletiva ou singular, não procede por subjetividade, mas por hecceidade, pura hecceidade. “Seres de fuga”. São puras relações de velocidades e lentidões, nada além disso. Uma moça está atrasada por velocidade: ela fez coisa demais, atravessou muitos espaços em relação ao tempo relativo daquele que a esperava. Então, a lentidão aparente da moça transforma-se em velocidade louca de nossa espera. A esse respeito, e para o conjunto da Recherche du temps perdu, é preciso dizer que Swann não está absolutamente na mesma situação que o narrador. Swann não é um esboço ou precursor do narrador, a não ser secundariamente, e em raros momentos. Eles não estão absolutamente no mesmo plano. Swann não para de pensar e sentir em termos de sujeito, de forma, de semelhança entre sujeitos, de correspondência entre formas. Uma mentira de Odette é para ele uma forma cujo conteúdo subjetivo secreto deve ser descoberto, e suscitar uma atividade de policial amador. A música de Vinteuil é para ele uma forma que deve lembrar outra coisa, rebater-se sobre outra coisa, fazer eco a outras formas, pinturas, rostos ou paisagens. Enquanto que o narrador, por mais que tenha seguido os traços de Swann, não deixa de estar num outro elemento, num outro plano. Uma mentira de Albertine não tem mais conteúdo algum; ela tende, ao contrário, a confundir-se com a emissão de uma partícula saída dos olhos da amada, e que vale por ela mesma, que anda depressa demais no campo visual ou auditivo do narrador, velocidade molecular insuportável na verdade, pois indica uma distância, uma vizinhança onde Albertine gostaria de estar e já está42. Assim

Os temas de velocidade e lentidão estão particularmente desenvolvidos no La prisonnière: “Para compreender as emoções que [os seres de fuga] dão e que outros seres, mesmo mais belos, não dão, é preciso calcular que eles não estão imóveis, mas em movimento, e acrescentar à sua pessoa um signo correspondendo ao que em física é o signo que significa velocidade. (...). A estes seres, estes seres de fuga, sua natureza, nossa inquietação atribui asas.” 42

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o desempenho do narrador já não será principalmente o de um policial que interroga, mas, figura muito diferente, o de um carcereiro: como tornar-se senhor da velocidade, como suportá-la nervosamente como uma nevralgia, perceptivamente como um raio, como fazer uma prisão para Albertina? E se o ciúme não é o mesmo, quando se passa de Swann ao narrador, a percepção da música tampouco o é: Vinteuil deixa cada vez mais de ser apreendido de acordo com formas analógicas e sujeitos comparáveis, para tomar velocidades e lentidões inéditas que se acoplam num campo de consistência com variação, o mesmo plano da música e da Recherche (assim como os motivos wagnerianos abandonam qualquer fixidez de forma e qualquer atribuição de personagens). Diríamos que os efeitos desesperados de Swann para reterritorializar o fluxo das coisas (Odette num segredo, a pintura num rosto, a música no bosque de Boulogne) deu lugar ao movimento acelerado da desterritorialização, a uma acelerada linear da máquina abstrata, arrastando os rostos e as paisagens, e depois o amor, depois o ciúme, depois a pintura, depois a própria música, segundo coeficientes cada vez mais fortes que vão nutrir a Obra com o risco de dissolver tudo, e de morrer. Com efeito, o narrador, apesar das vitórias parciais, fracassará em seu projeto que não era absolutamente reencontrar o tempo nem forçar a memória, mas tornar-se senhor das velocidades, ao ritmo de sua asma. Era afrontar o aniquilamento. Uma outra saída possível, ou que Proust terá tornado possível. Lembranças de uma molécula. — O devir-animal é apenas um caso entre outros. Vemo-nos tomados em segmentos de devir-, entre os quais podemos estabelecer uma espécie de ordem ou de progressão aparente: devir-mulher, devir-criança; devir-animal, vegetal ou mineral; devires moleculares de toda espécie, devires-partículas. Fibras levam de uns aos outros, transformam uns nos outros, atravessam suas portas e limiares. Cantar ou compor, pintar, escrever não têm talvez outro objetivo: desencadear esses devires. Sobretudo a música; todo um devir-mulher, um devir-criança atravessam a música, não só no nível das vozes (a voz inglesa, a voz italiana, o contra-tenor, o castrato), mas no nível dos temas e dos motivos: o pequeno ritornelo, o rondo, as cenas de infância e as brincadeiras de criança. A instrumentação, a orquestração são penetradas de devires-animais, devires-pássaro primeiro, mas muitos outros ainda. Os marulhos, os vagidos, as estridências moleculares estão aí desde o início, mesmo se a evolução instrumental, somada a outros fatores, lhes dá uma

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importância cada vez maior, como o valor de um novo limiar do ponto de vista de um conteúdo propriamente musical: a molécula sonora, as relações de velocidade e lentidão entre partículas. Os devires-animais lançam-se em devires moleculares. Então, toda espécie de questões se coloca. De certa maneira, é preciso começar pelo fim: todos os devires já são moleculares. E que devir não é imitar algo ou alguém, identificar-se com ele. Tampouco é proporcionar relações formais. Nenhuma dessas duas figuras de analogia convém ao devir-, nem a imitação de um sujeito, nem a proporcionalidade de uma forma. Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo. Esse princípio de proximidade ou de aproximação é inteiramente particular, e não reintroduz analogia alguma. Ele indica o mais rigorosamente possível uma zona de vizinhança ou de copresença de uma partícula, o movimento que toma toda partícula quando entra nessa zona. Louis Wolfson lança-se numa empreitada estranha: esquizofrênico, ele traduz o mais rápido possível cada frase de sua língua materna em palavras estrangeiras que têm um som e um sentido semelhantes; anoréxico, ele se precipita em direção à geladeira, rasga as latas, arranca elementos com os quais empanturra-se o mais depressa possível43. Seria falso acreditar que ele toma emprestado às línguas estrangeiras palavras “disfarçadas” das quais necessita. Muito antes, ele arranca de sua própria língua partículas verbais que não podem mais pertencer à forma dessa língua, assim como ele arranca às “comidas” partículas alimentares que não mais pertencem às substâncias nutritivas formadas: as duas espécies de partículas entram em vizinhança. Pode-se dizer igualmente: emitir partículas que tomam tais relações de movimento e repouso porque entram em tal zona de vizinhança; ou: que entram em tal zona porque tomam tais relações. Uma hecceidade não é separável da neblina ou da bruma que dependem de uma zona molecular, de um espaço corpuscular. A vizinhança é uma noção ao mesmo tempo topológica e quântica, que marca a pertença a uma mesma molécula, independentemente dos sujeitos considerados e das formas determinadas.

43

Louis Wolfson, Le schizo et les langues, Gallimard.

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Schérer e Hocquenghem destacaram esse ponto essencial, quando reconsideraram o problema das crianças-lobos. Não se trata, é claro, de uma produção real como se a criança tivesse “realmente” se tornado animal; tampouco se trata de uma semelhança, como se a criança tivesse imitado animais que a teriam realmente criado; mas tampouco se trata de uma metáfora simbólica, como se a criança autista, abandonada ou perdida, tivesse apenas se tornado o “análogo” de um bicho. Schérer e Hocquenghem têm razão de denunciar esse falso raciocínio, fundado num culturalismo ou num moralismo que reivindicam a irredutibilidade da ordem humana: com efeito, segundo tal raciocínio, já que a criança não foi transformada em animal, ela estaria apenas numa relação metafórica com ele, induzida por sua enfermidade ou sua rejeição. Já os dois, por sua vez, invocam uma zona objetiva de indeterminação ou de incerteza, “algo de comum ou de indiscernível”, uma vizinhança “que faz com que seja impossível dizer onde passa a fronteira do animal e do humano”, não apenas nas crianças autistas, mas em todas as crianças, como se, independentemente da evolução que a puxa em direção ao adulto, haveria na criança lugar para outros devires, “outras possibilidades contemporâneas”, que não são regressões, mas involuções criadoras, e que testemunham “uma inumanidade vivida imediatamente no corpo enquanto tal”, núpcias anti-natureza “fora do corpo programado”. Realidade do devir-animal, sem que, na realidade, nos tornemos animal. De nada serve, sendo assim, objetar que a criança-cachorro só se faz de cachorro nos limites de sua constituição formal, e não faz nada de canino que um outro ser humano não poderia ter feito se tivesse querido, pois o que é preciso explicar, é precisamente que todas as crianças, e até muitos adultos, o façam mais ou menos, e testemunhem com o animal uma conivência inumana mais do que uma comunidade simbólica edipiana44. Não se trata de acreditar, tampouco, que as crianças que comem capim, ou terra, ou carne crua, encontrem aí apenas vitaminas ou elementos dos quais seu organismo estaria carente. Tratase de fazer corpo com o animal, um corpo sem órgãos definido por zonas de intensidade ou de vizinhança. De onde vem então essa indeterminação, essa indiscernabilidade objetiva das quais falam Schérer e Hocquenghem? Por exemplo: não imitar o cão, mas compor seu organismo com outra coisa, de tal modo que se faça sair,

René Schérer e Guy Hocquenghem, Co-ire, Recherches, pp. 76-82: sua crítica da tese de Bettelheim, que só vê nos deviresanimais da criança uma simbólica autista, exprimindo, aliás, mais a angústia dos pais do que uma realidade infantil (cf. La forteresse vide, Gallimard). 44

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do conjunto assim composto, partículas que serão caninas em função da relação de movimento e repouso, ou da vizinhança molecular nas quais elas entram. Evidentemente, essa outra coisa pode ser muito variada, e depender mais ou menos diretamente do animal em questão: pode ser o alimento natural do animal (a terra e o verme), pode ser suas relações exteriores com outros animais (tornar-se cachorro com gatos, tornar-se macaco com um cavalo), pode ser um aparelho ou prótese que o homem lhe impõe (focinheira, rédeas, etc)., pode ser algo que não tenha mais nem mesmo relação “localizável” com o animal considerado. Para este último caso, vimos como Slepian funda sua tentativa de devir-cachorro na ideia de calçar sapatos em suas mãos, amarrá-los com sua boca-cara. Philippe Gavi cita as performances de Lolito, comedor de garrafas, louças e porcelanas, de ferro, e até de bicicletas, que declara: “Considero-me metade bicho, metade homem. Mais bicho talvez do que homem. Adoro os bichos, os cachorros sobretudo, sinto-me ligado a eles. Minha dentição adaptou-se; de fato, quando não como vidro ou ferro, meu maxilar me dá coceira como o de um cachorrinho com vontade de ficar mordiscando um osso”45. Interpretar a palavra “como” à maneira de uma metáfora, ou propor uma analogia estrutural de relações (homem-ferro = cachorro-osso), é não compreender nada do devir. A palavra “como” faz parte dessas palavras que mudam singularmente de sentido e de função a partir do momento em que as remetemos a hecceidades, a partir do momento em que fazemos delas expressões de devires, e não estados significados nem relações significantes. Pode ser que um cachorro exercite seu maxilar no ferro, mas então ele exercita seu maxilar como órgão molar. Quando Lolito come ferro, é inteiramente diferente: ele compõe seu maxilar com o ferro de modo que ele próprio se torne um maxilar de cachorro-molecular. O ator De Niro, numa sequência de filme, anda “como” um caranguejo; mas não se trata, ele diz, de imitar o caranguejo; trata-se de compor com a imagem, com a velocidade da imagem, algo que tem a ver com o caranguejo46. E é isso o essencial para nós: ninguém

Philippe Gavi, “Les philosophes du fantastique”, em Liberation, 31 de março de 1977. Para os casos precedentes, seria preciso conseguir compreender certos comportamentos ditos neuróticos em função dos devires-animais, ao invés de remeter os devires-animais a uma interpretação psicanalítica desses comportamentos. Nós o vimos no caso do masoquismo (e Lolito explica que a origem de suas proezas está em certas experiências masoquistas; um belo texto de Christian Maurel conjuga um devir-macaco e um devir-cavalo num casal masoquista). Seria preciso considerar também a anorexia do ponto de vista do devir-animal. 45

46

Cf. Newsweek, 16 de maio de 1977, p. 57.

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devém-animal a não ser que, através de meios e de elementos quaisquer, emita corpúsculos que entrem na relação de movimento e repouso das partículas animais, ou, o que dá no mesmo, na zona de vizinhança da molécula animal. Ninguém se torna animal senão molecular. Ninguém se torna cachorro molar latindo, mas, ao latir, se isso é feito com bastante coração, necessidade e composição, emite-se um cachorro molecular. O homem não se torna lobo, nem vampiro, como se mudasse de espécie molar; mas o vampiro e o lobisomem são devires do homem, isto é, vizinhanças entre moléculas compostas, relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, entre partículas emitidas. É claro que há lobisomens, vampiros, dizê-mo-lo de todo coração, mas não procure aí a semelhança ou a analogia com o animal, pois trata-se do devir-animal em ato, trata-se da produção do animal molecular (enquanto que o animal “real” é tomado em sua forma e sua subjetividade molares). É em nós que o animal mostra os dentes como o rato de Hoffmanstahl, ou a flor, suas pétalas, mas é por emissão corpuscular, por vizinhança molecular, e não por imitação de um sujeito, nem proporcionalidade de forma. Albertine pode imitar uma flor o quanto quiser, mas é quando ela dorme, e compõe-se com as partículas do sono, que sua pinta e o grão de sua pele entram numa relação de repouso e movimento que a coloca na zona de um vegetal molecular: devir-planta de Albertine. E é quando está prisioneira que ela emite as partículas de um pássaro. E é quando foge, quando se lança em sua linha de fuga, que ela se torna cavalo, mesmo que seja o cavalo da morte. Sim, todos os devires são moleculares; o animal, a flor ou a pedra que nos tornamos são coletividades moleculares, hecceidades, e não formas, objetos ou sujeitos molares que conhecemos fora de nós, e que reconhecemos à força de experiência, de ciência ou de hábito. Ora, se isso é verdade, é preciso dizê-lo das coisas humanas também: há um devir-mulher, um devir-criança, que não se parecem com a mulher ou com a criança como entidades molares bem distintas (ainda que a mulher ou a criança possam ter posições privilegiadas possíveis, mas somente possíveis, em função de tais devires). O que chamamos de entidade molar aqui, por exemplo, é a mulher enquanto tomada numa máquina dual que a opõe ao homem, enquanto determinada por sua forma, provida de órgãos e de funções, e marcada como sujeito. Ora, devir-mulher não é imitar essa entidade, nem mesmo transformar-se nela. Não se trata de negligenciar, no entanto, a importância da imitação, ou de momentos de imitação, em alguns homossexuais masculinos;

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menos ainda a prodigiosa tentativa de transformação real em alguns travestis. Queremos apenas dizer que esses aspectos inseparáveis do devir-mulher devem primeiro ser compreendidos em função de outra coisa: nem imitar, nem tomar a forma feminina, mas emitir partículas que entrem na relação de movimento e repouso, ou na zona de vizinhança de uma microfeminilidade, isto é, produzir em nós mesmos uma mulher molecular, criar a mulher molecular. Não queremos dizer que tal criação seja o apanágio do homem, mas, ao contrário, que a mulher como entidade molar tem que devir-mulher, para que o homem também se torne mulher ou possa tornar-se. E certamente indispensável que as mulheres levem a cabo uma política molar, em função de uma conquista que elas operam de seu próprio organismo, de sua própria história, de sua própria subjetividade: “Nós, enquanto mulheres...” aparece então como sujeito de enunciação. Mas é perigoso rebaterse sobre tal sujeito, que não funciona sem secar uma fonte ou parar um fluxo. O canto da vida é frequentemente entoado pelas mulheres mais secas, animadas de ressentimento, de vontade de potência e de maternagem fria. Como uma criança que secou consegue fazer-se de criança melhor ainda porque não emana mais dela qualquer fluxo de infância. Não basta tampouco dizer que cada sexo contém o outro, e deve desenvolver em si mesmo o polo oposto. Bissexualidade não é um conceito melhor que o da separação dos sexos. Miniaturizar, interiorizar a máquina binária, é tão deplorável quanto exasperá-la, não é assim que se sai disso. É preciso, portanto, conceber uma política feminina molecular, que insinua-se nos afrontamentos molares e passa por baixo, ou através. Quando se interroga Virgínia Woolf sobre uma escrita propriamente feminina, ela se espanta com a ideia de escrever “enquanto mulher”. É preciso antes que a escrita produza um devir-mulher, como átomos de feminilidade capazes de percorrer e de impregnar todo um campo social, e de contaminar os homens, de tomá-los num devir-. Partículas muito suaves, mas também duras e obstinadas, irredutíveis, indomáveis. A ascensão das mulheres na escrita romanesca inglesa não poupará homem algum: aqueles que passam por mais viris, os mais falocratas, Lawrence, Miller, não pararão de captar e de emitir por sua vez essas partículas que entram na vizinhança ou na zona de indiscernibilidade das mulheres. Eles tornam-se-mulher escrevendo. É que a questão não é, ou não é apenas, a do organismo, da história e do sujeito de enunciação que opõem o masculino e o feminino nas grandes máquinas duais. A questão é primeiro a do corpo — o corpo que nos roubam para fabricar organismos oponíveis. Ora, é à menina, primeiro, que se rouba

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esse corpo: pare de se comportar assim, você não é mais uma menininha, você não é um moleque, etc. É à menina, primeiro, que se rouba seu devir para impor-lhe uma história, ou uma pré-história. A vez do menino vem em seguida, mas é lhe mostrando o exemplo da menina, indicando-lhe a menina como objeto de seu desejo, que fabricamos para ele, por sua vez, um organismo oposto, uma história dominante. A menina é a primeira vítima, mas ela deve também servir de exemplo e de cilada. É por isso que, inversamente, a reconstrução do corpo como Corpo sem órgãos, o anorganismo do corpo, é inseparável de um devir-mulher ou da produção de uma mulher molecular. Sem dúvida, a moça tornase mulher, no sentido orgânico ou molar. Mas, inversamente, o devir-mulher ou a mulher molecular são a própria moça. A moça certamente não se define por sua virgindade, mas por uma relação de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, por uma combinação de átomos, uma emissão de partículas: hecceidade. Ela não para de correr num corpo sem órgãos. Ela é linha abstrata ou linha de fuga. Por isso as moças não pertencem a uma idade, a um sexo, a uma ordem ou a um reino: elas antes deslizam entre as ordens, entre os atos, as idades, os sexos; elas produzem n sexos moleculares na linha de fuga, em relação às máquinas duais que elas atravessam de fora a fora. A única maneira de sair dos dualismos, estar-entre, passar entre, intermezzo, é o que Virgínia Woolf viveu com todas suas forças, em toda sua obra, não parando de devir-. A moça é como o bloco de devir que permanece contemporâneo de cada termo oponível, homem, mulher, criança, adulto. Não é a moça que se torna mulher, é o devir-mulher que faz a moça universal; não é a criança que torna-se adulto, é o devir-criança que faz uma juventude universal. Trost, autor misterioso, fez um retrato de moça ao qual ele liga o destino da revolução: sua velocidade, seu corpo livremente maquínico, suas intensidades, sua linha abstrata ou de fuga, sua produção molecular, sua indiferença à memória, seu caráter não figurativo — “o não figurativo do desejo” 47 . Joana d'Arc? Particularidade da moça no terrorismo russo, a moça da bomba, guardiã de dinamite? É certo que a política molecular passa pela moça e pela criança. Mas é certo também que as moças e as crianças não extraem suas forças do estatuto

Cf. Trost, Visible et invisible, Arcanes, e Librement mécanique, Minotaure: “Ela estava ao mesmo tempo em sua realidade sensível e no prolongamento ideal de suas linhas como a projeção de um grupo humano por vir”. 47

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molar que as doma, nem do organismo e da subjetividade que recebem; elas extraem todas suas forças do devir molecular que elas fazem passar entre os sexos e as idades, devir-criança do adulto como da criança, devir-mulher do homem como da mulher. A moça e a criança não se tornam, é o próprio devir que é criança ou moça. A criança não se torna adulto, assim como a moça não se torna mulher; mas a moça é o devir-mulher de cada sexo, como a criança é o devir-jovem de cada idade. Saber envelhecer não é permanecer jovem, é extrair de sua idade as partículas, as velocidades e lentidões, os fluxos que constituem a juventude desta idade. Saber amar não é permanecer homem ou mulher, é extrair de seu sexo as partículas, as velocidades e lentidões, os fluxos, os n sexos que constituem a moça desta sexualidade. É a própria Idade que é um devir-criança, como a Sexualidade, qualquer sexualidade, um devir-mulher, isto é, uma moça. — A fim de responder a questão estúpida: por que Proust fez de Alberto, Albertine? Ora, se todos os devires já são moleculares, inclusive o devir-mulher, é preciso dizer também que todos os devires começam e passam pelo devir-mulher. É a chave dos outros devires. Que o homem de guerra se disfarce de mulher, que ele fuja disfarçado de donzela, que ele se esconda como donzela, não é um incidente provisório vergonhoso em sua carreira. Esconder-se, camuflar-se, é uma função guerreira; e a linha de fuga atrai o inimigo, atravessa algo e faz fugir o que a atravessa; é no infinito de uma linha de fuga que surge o guerreiro. Mas se a feminilidade do homem de guerra não é acidental, nem por isso se pensará que ela seja estrutural, ou regulada por uma correspondência de relações. Não dá para vislumbrar como a correspondência entre as duas relações “homemguerra” e “mulher-casamento” poderia acarretar uma equivalência do guerreiro com a donzela enquanto mulher que se recusa a casar.48 Tampouco dá para vislumbrar como a bissexualidade geral, ou mesmo a homossexualidade das sociedades militares, explicariam esse fenômeno que não é mais imitativo do que estrutural, mas que representa antes uma anomia essencial ao homem de guerra. É em termos de devir que é preciso compreender o fenômeno. Vimos como o homem de guerra, por seu furor e sua celeridade, era tomado em devires-animais irresistíveis. São esses devires que encontram sua condição no devir-mulher do guerreiro, ou em sua aliança com a donzela, em seu contágio com ela.

Cf. os exemplos e a explicação estrutural proposta por J.-P. Vernant, in Problèmes de la guerre en Grèce ancienne, Mouton, pp. 15-16. 48

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O homem de guerra não é separável das Amazonas. A união da donzela e do homem de guerra não produz animais, mas produz ao mesmo tempo o devir-mulher de um e o deviranimal do outro, num só e mesmo “bloco”, onde o guerreiro torna-se animal por sua vez por contágio da donzela, ao mesmo tempo que a donzela torna-se guerreira por contágio do animal. Tudo se reúne num bloco de devir assimétrico, um ziguezague instantâneo. É na sobrevivência de uma dupla máquina de guerra, a dos gregos que irá em breve fazerse suplantar pelo Estado, e a das Amazonas que irá em breve dissolver-se, é numa série de atordoamentos, vertigens e esvaecimentos moleculares que Aquiles e Pentesiléia se escolhem, o último homem de guerra, a última rainha das donzelas, Aquiles do devirmulher e Pentesiléia do devir-cadela. Os ritos de transvestismo, de travestimento, nas sociedades primitivas onde o homem torna-se mulher, não se explicam nem por uma organização social que faria corresponder relações dadas, nem por uma organização psíquica que faria com que o homem desejasse ser mulher tanto quanto a mulher ser homem49. A estrutura social, a identificação psíquica deixam de lado demasiados fatores especiais: o encadeamento, a precipitação e a comunicação de devires que o travesti desencadeia; a potência do devir-animal que decorre disso; e, sobretudo, a pertença desses devires a uma máquina de guerra específica. É a mesma coisa para a sexualidade: esta se explica mal pela organização binária dos sexos, e não se explica melhor por uma organização bissexuada de cada um dos dois. A sexualidade coloca em jogo devires conjugados demasiadamente diversos que são como n sexos, toda uma máquina de guerra pela qual o amor passa. O que não pode ser remetido às deploráveis metáforas entre o amor e a guerra, a sedução e a conquista, a luta dos sexos e a briga de casal, ou mesmo a guerra-Strindberg: é só quando o amor acabou, a sexualidade secou, que as coisas aparecem assim. Mas o que conta é que o próprio amor é uma máquina de guerra dotada de poderes estranhos e quase terrificantes. A sexualidade é uma produção de mil sexos, que são igualmente devires incontroláveis. A sexualidade passa pelo devir-mulher do homem e pelo devir-animal do humano: emissão de partículas. Não é preciso bestialismo para isso, se bem que o bestialismo possa aparecer aí, e muitas anedotas

Sobre o transvestismo nas sociedades primitivas, cf. Bruno Bettelheim, Les blessures symboliques, Gallimard (que dá uma interpretação psicológica identificatória), e sobretudo Gregory Bateson, LA cerimonie du Naven, Ed. de Minuit (que propõe uma interpretação estrutural original) 49

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psiquiátricas dão testemunho disso de uma maneira interessante, mas simples demais, portanto deturpada, que fica boba demais. Não se trata de se “fazer” de cachorro, como um velho no cartão postal; não se trata tanto de fazer amor com os bichos. Os deviresanimais são, antes, de uma outra potência, pois eles não têm sua realidade no animal que se imitaria ou ao qual se corresponderia, mas em si mesmos, naquilo que nos toma de repente e nos faz devir-, uma vizinhança, uma indiscernibilidade; que extrai do animal algo de comum, muito mais do que qualquer domestificação, qualquer utilização, qualquer imitação: “a Besta”. Se o devir-mulher é o primeiro quantum, ou segmento molecular, e depois os devires-animais que se encadeiam na sequência, em direção a que precipitam-se todos eles? Sem dúvida alguma, em direção a um devir-im-perceptível. O imperceptível é o fim imanente do devir-, sua fórmula cósmica. Assim, O homem que encolheu, de Matheson, passa através dos reinos, desliza entre as moléculas até tornar-se uma partícula impossível de ser encontrada que medita ao infinito sobre o infinito. O Monsieur Zero, de Paul Morand, foge dos grande países, atravessa os menores, desce a escala dos Estados para constituir em Lichtenstein uma sociedade anônima só dele, e morrer imperceptível formando com seus dedos a partícula O: “Eu sou um homem que foge nadando entre duas águas e no qual todos os fuzis do mundo atiram. (...). Seria preciso não oferecer mais alvo”. Mas o que significa devir-imperceptível, ao fim de todos os devires moleculares que começavam pelo devir-mulher? Devir imperceptível quer dizer muitas coisas. Que relação entre o imperceptível (anorgânico), o indiscernível (assignificante) e o impessoal (assubjetivo)? Diríamos, primeiro: ser como todo mundo. E o que conta Kierkegaard, em sua história do “cavaleiro da fé”, o homem do devir-: por mais que o observemos, não notamos nada, um burguês, nada além de um burguês. E o que vivia Fitzgerald: quando se sai de uma verdadeira ruptura, consegue-se... realmente ser como todo mundo. E não é nada fácil, não se fazer notar. Ser desconhecido, mesmo para sua zeladora e seus vizinhos. Se é tão difícil ser “como” todo mundo, é porque há uma questão de devir-. Não é todo mundo que se torna como todo mundo, que faz de todo mundo um devir-. É preciso para isso muita ascese, sobriedade, involução criadora: uma elegância inglesa, um tecido inglês, confundir-se com as paredes, eliminar o percebido-demais, o excessivo-para-perceber. “Eliminar tudo que é dejeto, morte e superfluidade”, queixa e ofensa, desejo não satisfeito, defesa ou arrazoado, tudo que enraíza alguém (todo mundo) em si mesmo,

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em sua molaridade. Pois todo mundo é o conjunto molar, mas devir todo mundo é outro caso, que põe em jogo o cosmo com seus componentes moleculares. Devir todo mundo é fazer mundo, fazer um mundo. A força de eliminar, não somos mais do que uma linha abstrata, ou uma peça de quebra-cabeça em si mesmo abstrata. É conjugando, continuando com outras linhas, outras peças que se faz um mundo, que poderia recobrir o primeiro, como em transparência. A elegância animal, o peixe-camuflador, o clandestino: ele é percorrido por linhas abstratas que não se parecem com nada, e que não seguem nem mesmo suas divisões orgânicas; mas, assim desorganizado, desarticulado, ele faz mundo com as linhas de um rochedo, da areia e das plantas, para devir imperceptível. O peixe é como o pintor poeta chinês: nem imitativo, nem estrutural, mas cósmico. François Cheng mostra que o poeta não persegue a semelhança, como tampouco calcula “proporções geométricas”. Ele retém, ele extrai somente as linhas e os movimentos essenciais da natureza, ele procede tão-somente por meio de “traços” continuados ou superpostos50. É nesse sentido que devir todo mundo, fazer do mundo um devir-, é fazer mundo, é fazer um mundo, mundos, isto é, encontrar suas vizinhanças e suas zonas de indiscernibilidade. O Cosmo como máquina abstrata e cada mundo como agenciamento concreto que o efetua. Reduzir-se a uma ou várias linhas abstratas, que vão continuar e conjugar-se com outras, para produzir imediatamente, diretamente, um mundo, no qual é o mundo que entra em devir e nós nos tornamos todo mundo. Que a escrita seja como a linha do desenho-poema chinês, era o sonho de Kérouac, ou já o de Virgínia Woolf. Ela diz que é preciso “saturar cada átomo” e, para isso, eliminar, eliminar tudo o que é semelhança e analogia, mas também “tudo colocar”, eliminar tudo o que excede o momento, mas colocar tudo que ele inclui — e o momento não é o instantâneo, é a hecceidade, na qual nos insinuamos, e que se insinua em outras hecceidades por transparência51. Estar na hora do mundo. Eis a ligação entre imperceptível, indiscernível, impessoal, as três virtudes. Reduzir-se a uma linha abstrata, um traço, para encontrar sua zona de indiscernibilidade com outros traços e entrar, assim, na hecceidade como na impersonalidade do criador. Então se é como o capim: se fez do mundo, de todo mundo, um devir, porque se

50

François Cheng, L’écriture poétique chinoise, pp. 20 ss.

Virgínia Woolf, Journal d’un écrivain, t. I, 10-18, p. 230: “Veio-me a ideia de que o que eu queria fazer agora é saturar cada átomo”, etc. Sobre todos esses pontos, utilizamo-nos de um estudo inédito de Fanny Zavin sobre Virgínia Woolf. 51

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fez um mundo necessariamente comunicante, porque se suprimiu de si tudo o que impedia de deslizar entre as coisas, de irromper no meio das coisas. Combinou-se o “tudo”, o artigo indefinido, o infinitivo-devir e o nome próprio ao qual se está reduzido. Saturar, eliminar, colocar tudo. O movimento está numa relação essencial com o imperceptível, ele é por natureza imperceptível. E que a percepção só pode captar o movimento como uma translação de um móvel ou o desenvolvimento de uma forma. Os movimentos e os devires, isto é, as puras relações de velocidade e lentidão, os puros afectos, estão abaixo ou acima do limiar de percepção. Sem dúvida, os limiares de percepção são relativos, havendo sempre, portanto, alguém capaz de captar o que escapa a outro: o olho da águia... Mas o limiar adequado, por sua vez, só poderá proceder em função de uma forma perceptível e de um sujeito percebido, notado. Assim, por si mesmo, o movimento continua passando alhures: se constituímos a percepção em série, o movimento ocorre sempre além do limiar máximo e aquém do limiar mínimo, em intervalos em expansão ou em contração (microintervalos). É como os enormes lutadores japoneses, cujo passo é demasiadamente lento e o golpe demasiadamente rápido e repentino para ser visto: então, o que se acopla, são menos os lutadores do que a infinita lentidão de uma espera (o que vai se passar?) com a velocidade infinita de um resultado (o que se passou?). Seria preciso atingir o limiar fotográfico ou cinematográfico, mas em relação à foto, o movimento e o afecto de novo refugiaram-se abaixo ou acima. Quando Kierkegaard lança sua maravilhosa divisa “Eu olho tão somente os movimentos”, ele pode comportar-se como um admirável precursor do cinema e multiplicar as versões de um roteiro de amor, Agnes e o Tritão, segundo velocidades e lentidões variáveis. Há mais razões ainda para precisar que só há movimento do infinito; que o movimento do infinito só pode fazer-se por afecto, paixão, amor, num devir que é moça, mas sem referência a qualquer “meditação”; e que esse movimento, enquanto tal, escapa à percepção mediadora, pois ele já é efetuado a todo o momento, e que o dançarino, ou o amante, já está de novo “em pé andando”, no próprio segundo em que ele cai, e mesmo no instante em que ele salta52. Tal como a moça, enquanto ser de fuga, o movimento não pode ser percebido.

Remetemo-nos a Frygt og Baeven (Tremor e Medo), que nos parece o maior livro de Kierkegaard, por sua maneira de colocar o problema do movimento e da velocidade, não só em seu conteúdo, mas em seu estilo e sua composição. 52

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No entanto, é preciso corrigir imediatamente: o movimento também “deve” ser percebido, e só pode ser percebido; o imperceptível é também o percipiendum. Não há contradição nisso. Se o movimento é imperceptível por natureza, é sempre em relação a um limiar qualquer de percepção, ao qual é próprio ser relativo, desempenhar assim o papel de uma mediação, num plano que opera a distribuição dos limiares e do percebido, que dá a sujeitos perceptivos formas a serem percebidas: ora é esse plano de organização e de desenvolvimento, plano de transcendência que dá a perceber sem poder ser percebido, sem que ele próprio seja percebido. Mas, no outro plano, de imanência ou de consistência, é o próprio princípio de composição que deve ser percebido, que não pode senão ser percebido, ao mesmo tempo que aquilo que ele compõe ou dá. Aqui, o movimento deixa de ser remetido à mediação de um limiar relativo ao qual ele escapa por natureza ao infinito; ele atingiu, seja qual for sua velocidade ou sua lentidão, um limiar absoluto, se bem que diferenciado, que faz um com a construção desta ou daquela região do plano continuado. Diremos igualmente que o movimento para de ser o procedimento de uma desterritorialização sempre relativa, para tornar-se o processo da desterritorialização absoluta. É a diferença dos dois planos que faz com que aquilo que não pode ser percebido num deles só pode ser percebido no outro. É aí que o imperceptível torna-se o necessariamente-percebido, saltando de um plano ao outro, ou dos limiares relativos ao limiar absoluto que coexiste com eles. Kierkegaard mostra que o plano do infinito, o que ele chama de plano da fé, deve tornar-se puro plano de imanência que não para de dar imediatamente, de voltar a dar, de recolher o finito: contrariamente ao homem da resignação infinita, o cavaleiro da fé, isto é, o homem do devir-, terá a donzela, ele terá todo o finito, e perceberá o imperceptível, enquanto “herdeiro direto do mundo finito”. É que a percepção não estará mais na relação entre um sujeito e um objeto, mas no movimento que serve de limite a essa relação, no período que lhe está associado. A percepção se verá confrontada com seu próprio limite; ela estará entre as coisas, no conjunto de sua própria vizinhança, como a presença de uma hecceidade em outra, apreensão de uma pela outra ou a passagem de uma a outra: olhar apenas os movimentos. É curioso que a palavra “fé” sirva para designar um plano que vira imanência. Mas, se o cavaleiro é o homem do devir-, há cavaleiros de toda espécie. Não existe até cavaleiros da droga, no sentido em que a fé é uma droga, muito diferente do sentido em que a religião é um ópio? Esses cavaleiros pretendem que a droga, em condições de prudência e de experimentação necessárias, é inseparável da instauração

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de um plano. E nesse plano, não só conjugam-se devires-mulher, devires-animais, devires-moleculares, devires-imperceptível, mas o próprio imperceptível torna-se um necessariamente percebido, ao mesmo tempo em que a percepção torna-se necessariamente molecular: chegar a buracos, microintervalos entre as matérias, cores e sons, onde se precipitam as linhas de fuga, linhas do mundo, linhas de transparência e de secção53. Mudar a percepção; o problema está colocado em termos corretos, porque ele dá um conjunto pregnante “da” droga, independentemente das distinções secundárias (alucinatórias ou não, pesadas ou leves, etc)... Todas as drogas concernem primeiro as velocidades, e as modificações de velocidade. O que permite descrever um agenciamento Droga, sejam quais forem as diferenças, é uma linha de causalidade perceptiva que faz com que: 1) o imperceptível seja percebido, 2) a percepção seja molecular, 3) o desejo invista diretamente a percepção e o percebido. Os americanos da beat generation já tinham se engajado nessa via, e falavam de uma revolução molecular própria à droga. Depois, essa espécie de grande síntese de Castañeda. Fiedler marcou os polos do Sonho americano: emperrado entre dois pesadelos, o do genocídio indígena e o do escravagismo negro, os americanos faziam do negro uma imagem recalcada da força de afecto, de uma multiplicação de afectos, mas do índio, a imagem reprimida de uma fineza de percepção, de uma percepção cada vez mais fina, dividida, infinitamente desacelarada ou acelerada54. Na Europa, Henri Michaux tendia a livrar-se mais à vontade dos ritos e das civilizações, para erigir protocolos de experiências admiráveis e minuciosas, depurar a questão de uma causalidade da droga, cercá-la ao máximo, separá-la dos delírios e das alucinações. Mas, precisamente nesse ponto, tudo se junta: mais uma vez, o problema está bem colocado quando se diz que a droga faz perder as formas e as pessoas, faz funcionar as loucas velocidades de droga e as prodigiosas lentidões do após-droga, acopla umas às outras como lutadores, dá à percepção a potência molecular de captar microfenômenos, microoperações, e dá ao percebido a força de emitir partículas aceleradas ou desaceleradas, segundo um tempo flutuante que não é mais o nosso, e hecceidades que não são mais deste mundo: desterritorialização, “eu estava desorientado...” (percepção de coisas, de pensamentos, de

53

Carlos Castañeda, passim, e sobretudo Voyage à Ixtlan, pp. 233 ss.

Leslie Fiedler, Le retour du Peau-rouge, F.d. du Seuil. Fiedler explica a aliança secreta do americano branco com o negro ou o índio por um desejo de fugir da forma e do domínio molar da mulher americana. 54

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desejo, onde o desejo, o pensamento, a coisa invadiram toda a percepção, o imperceptível enfim percebido). Nada mais que o mundo das velocidades e das lentidões sem forma, sem sujeito, sem rosto. Nada mais que o ziguezague de uma linha, como “a correia do chicote de um carroceiro em fúria”, que rasga rostos e paisagens55. Todo um trabalho rizomático da percepção, o momento em que desejo e percepção se confundem. Esse problema de uma causalidade específica é importante. Enquanto se invoca causalidades mais gerais ou extrínsecas, psicológicas, sociológicas, para dar conta de um agenciamento, é como se não se dissesse nada. Hoje instaurou-se um discurso sobre a droga que só faz agitar generalidades sobre o prazer e a infelicidade, sobre as dificuldades de comunicação, sobre causas que vêm sempre de outra parte. Mais finge-se compreender um fenômeno quanto mais se é incapaz de captar sua causalidade própria em extensão. Sem dúvida, um agenciamento jamais comporta uma infraestrutura causal. Ele comporta, no entanto, e no mais alto ponto, uma linha abstrata de causalidade específica ou criadora, sua linha de fuga, de desterritorialização, que só pode efetuar-se em relação com causalidades gerais ou de uma outra natureza, mas que não se explica absolutamente por elas. Nós dizemos que os problemas de droga só podem ser captados no nível onde o desejo investe diretamente a percepção, e onde a percepção torna-se molecular, ao mesmo tempo que o imperceptível torna-se percebido. A droga aparece então como o agente desse devir-. É aí que haveria uma fármaco-análise que seria preciso ao mesmo tempo comparar e opor à psicanálise, pois em relação a esta há motivos para fazer dela ao mesmo tempo um modelo, um oposto e uma traição. A psicanálise, com efeito, pode ser considerada como um modelo de referência porque, em relação a fenômenos essencialmente afectivos, ela soube construir o esquema de uma causalidade própria, distinto das generalidades psicológicas ou sociais ordinárias. Mas esse esquema causal permanece tributário de um plano de organização que nunca pode ser captado por si mesmo, sempre concluído de outra coisa, inferido, subtraído ao sistema da percepção, e que recebe precisamente o nome de Inconsciente. O plano do Inconsciente permanece, portanto, um plano

Michaux, Misérable miracle, Gallimard, p. 126: “O horror estava sobretudo em eu não ser senão uma linha. Na vida normal, somos uma esfera, uma esfera que descobre panoramas. (...). Aqui apenas uma linha. (...). O acelerado linear que eu me tornara...” Cf. os desenhos lineares de Michaux. Mas é em Les grandes épreuves de l’esprit, nas oitenta primeiras páginas desse livro, que Michaux vai o mais longe na análise das velocidades, das percepções moleculares e dos “microfenômenos” ou “microoperações”. 55

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de transcendência, que deve caucionar, justificar a existência do psicanalista e a necessidade de suas interpretações. Esse plano do Inconsciente opõe-se molarmente ao sistema percepção-consciência e, como o desejo deve ser traduzido para esse plano, ele próprio é acorrentado a robustas molaridades como à face oculta do iceberg (estrutura de Édipo ou rochedo da castração). Então, quanto mais o imperceptível opõe-se ao percebido numa máquina dual, mais ele permanece imperceptível. Tudo muda num plano de consistência ou de imanência, que se encontra necessariamente percebido por conta própria ao mesmo tempo em que é construído: a experimentação substitui a interpretação; o inconsciente tornado molecular, não figurativo e não simbólico, é dado enquanto tal às micropercepções; o desejo investe diretamente o campo perceptível onde o imperceptível aparece como o objeto percebido do próprio desejo, “o não-figurativo do desejo”. O inconsciente não designa mais o princípio oculto do plano de organização transcendente, e sim o processo do plano de consistência imanente, à medida que ele aparece em si mesmo ao longo de sua construção, pois o inconsciente está para ser feito e não para ser reencontrado. Não há mais uma máquina dual consciência-inconsciente, porque o inconsciente está, ou melhor, é produzido aí onde a consciência é levada pelo plano. A droga dá ao inconsciente a imanência e o plano que a psicanálise não parou de deixar escapar (pode ser, desse ponto de vista, que o célebre episódio da cocaína tenha marcado uma virada, forçando Freud a renunciar a uma aproximação direta do inconsciente). Mas, se é verdade que a droga remete a essa causalidade perceptiva molecular, imanente, resta toda a questão de saber se ela consegue efetivamente traçar o plano que condiciona seu exercício. Ora, a linha causai da droga, sua linha de fuga, não para de ser segmentarizada na forma, a mais dura possível, da dependência, do dopar-se, da dose e do traficante. Mesmo que em sua forma flexível ela possa mobilizar gradientes e limiares de percepção de modo a determinar devires-animais, devires-moleculares, tudo se faz ainda numa relatividade de limiares que se contenta em imitar um plano de consistência em vez de traçá-lo num limiar absoluto. Para que serve perceber tão depressa quanto um pássaro rápido, se a velocidade e o movimento continuam a fugir alhures? As desterritorializações permanecem relativas, compensadas pelas reterritorializações as mais abjetas, de modo que o imperceptível e a percepção não param de perseguir-se ou de correr um atrás do outro sem nunca acoplar-se de fato. Em vez de os buracos no mundo permitirem que as próprias linhas do mundo fujam, as linhas de fuga enrolam-se e põem-se a rodopiar em buracos negros, cada drogado em seu buraco, grupo ou indivíduo, como um caramujo. Caindo mais no buraco

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do que no barato. As micropercepções moleculares são recobertas de antemão, conforme a droga considerada, por alucinações, delírios, falsas percepções, fantasmas, surtos paranoicos, restaurando a cada instante formas e sujeitos, como fantasmas ou duplos que não parariam de obstruir a construção do plano. Bem mais, é como ouvimos anteriormente na enumeração dos perigos: o plano de consistência não só corre o risco de ser traído ou desviado sob a influência de outras causalidades que intervém num tal agenciamento, mas o próprio plano engendra seus próprios perigos de acordo com os quais ele se desfaz ao longo de sua construção. Não somos mais, ele mesmo não é mais senhor das velocidades. Em vez de fazer um corpo sem órgãos suficientemente rico ou pleno para que as intensidades passem, as drogas erigem um corpo vazio ou vitrificado, ou um corpo canceroso: a linha causai, a linha criadora ou de fuga, vira imediatamente linha de morte e de abolição. A abominável vitrificação das veias, ou a purulência do nariz, o corpo vítreo do drogado. Buracos negros e linhas de morte, as advertências de Artaud e de Michaux se juntam (mais técnicas, mais consistentes do que o discurso sócio-psicológico, ou psicanalítico, ou informacional, dos centros de assistência e de tratamento). Artaud dizendo: você não evitará as alucinações, as percepções errôneas, os fantasmas descarados ou os maus sentimentos, como tantos buracos negros nesse plano de consistência, pois tua consciência irá também nessa direção cheia de armadilhas56. Michaux dizendo: você não será mais senhor de tuas velocidades, você entrará numa corrida louca do imperceptível e da percepção, que gira mais em falso ainda porque tudo aí é relativo57. Você irá inchar de si mesmo, perder o controle, estar num plano de consistência, num corpo sem órgãos, mas exatamente no lugar onde você não parará de deixá-los escapar, esvaziar, e de desfazer o que você faz, farrapo imóvel. Que palavras mais simples do que “percepções errôneas” (Artaud), “maus sentimentos” (Michaux), para dizer no entanto a coisa mais técnica: como a causalidade imanente do desejo, molecular e perceptiva, fracassa no agenciamento-droga. Os drogados não param de recair naquilo de que eles queriam fugir: uma segmentaridade mais dura à força de ser marginal, uma territorialização mais artificial ainda porque ela se faz sobre substâncias químicas, formas alucinatórias e subjetivações fantasmáticas. Os drogados podem ser considerados como precursores ou

56

Artaud, Les Tarakumaras, (Euvres completes, t. IX, pp. 34-36.

57

Michaux, Misérable miracle, p. 164 (“Rester maitre de sa vitesse”).

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experimentadores que retraçam incansavelmente um novo caminho de vida; mas mesmo sua prudência não tem as condições da prudência. Então, ou eles recaem na coorte de falsos heróis que seguem o caminho conformista de uma pequena morte e um longo cansaço. Ou então, pior ainda, eles só terão servido para lançar uma tentativa que só pode ser retomada e aproveitada por aqueles que não se drogam ou que não se drogam mais, que retificam secundariamente o plano sempre abortado da droga, e descobrem pela droga o que falta à droga para construir um plano de consistência. Seria o erro dos drogados o de partir do zero a cada vez, seja para tomar droga, seja para abandoná-la, quando se precisaria partir para outra coisa, partir “no meio”, bifurcar no meio? Conseguir embriagar-se, mas com água pura (Henry Miller). Conseguir drogar-se, mas por abstenção, “tomar e abster-se, sobretudo abster-se”, eu sou um bebedor de água (Michaux). Chegar ao ponto onde a questão não é mais “drogar-se ou não”, mas que a droga tenha mudado suficientemente as condições gerais da percepção do espaço e do tempo, de modo que os não-drogados consigam passar pelos buracos do mundo e sobre as linhas de fuga, exatamente no lugar onde é preciso outros meios que não a droga. Não é a droga que assegura a imanência, é a imanência da droga que permite ficar sem ela. É covardia, coisa de aproveitador, esperar que os outros tenham se arriscado? Antes retomar uma empreitada sempre pelo meio, mudar seus meios. Necessidade de escolher, de selecionar a boa molécula, a molécula de água, a molécula de hidrogênio ou de hélio. Não é uma questão de modelo, todos os modelos são molares: é preciso determinar as moléculas e as partículas em relação às quais as “vizinhanças” (indiscernibilidade, devires) engendram-se e se definem. O agenciamento vital, o agenciamento-vida, é teoricamente ou logicamente possível com toda espécie de moléculas, por exemplo o silício. Mas acontece que esse agenciamento não é maquinicamente possível com o silício: a máquina abstrata não o deixa passar, porque ele não distribui as zonas de vizinhança que constroem o plano de consistência58. Veremos que as razões maquínicas são totalmente diferentes das razões ou possibilidades lógicas. Não se trata de conformar-se a um modelo, mas de insistir numa linha. Os drogados não escolheram a boa molécula ou a boa linha. Toscos demais para captar o imperceptível, e para devir imperceptíveis, eles acreditaram que a droga lhes daria o plano, quando

Sobre as possibilidades do silício, e sua relação com o carbono, do ponto de vista da química orgânica, cf. o artigo “Silicium” in Encyclopedia Universalis. 58

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é o plano que deve destilar suas próprias drogas, permanecer senhor das velocidades e das vizinhanças. Lembranças do segredo. — O segredo está numa relação privilegiada, mas muito variável, com a percepção e o imperceptível. O segredo concerne primeiro certos conteúdos. O conteúdo é grande demais para sua forma... ou os conteúdos têm neles mesmos uma forma, mas tal forma é recoberta, duplicada ou substituída por um simples continente, envoltório ou caixa, cujo papel é suprimir suas relações formais. São conteúdos que achamos bom isolar, ou disfarçar, por razões elas próprias variáveis. Mas, justamente, fazer uma lista dessas razões (o vergonhoso, o tesouro, o divino, etc). não tem muito interesse, enquanto opomos o segredo e a sua descoberta, como numa máquina binária onde só haveria dois termos, segredo e divulgação, segredo e profanação. Com efeito, de um lado, o segredo como conteúdo se ultrapassa em direção a uma percepção do segredo, que não é menos secreta do que ele. Pouco importam os fins e se essa percepção tem por meta uma denúncia, uma divulgação final, um desvendamento. Do ponto de vista da anedota, a percepção do segredo é o contrário dele, mas do ponto de vista do conceito, ela faz parte dele. O que conta é que a própria percepção do segredo só pode ser secreta: o espião, o voyeur, o dedo-duro, o autor de cartas anônimas não são menos secretos do que aquilo que eles têm a descobrir, seja qual for sua meta ulterior. Haverá sempre uma mulher, uma criança, um pássaro para perceber secretamente o segredo. Haverá sempre uma percepção mais fina do que a sua, uma percepção de seu imperceptível, daquilo que há em sua caixa. Prevê-se até um segredo profissional para aqueles que estão em situação de perceber o segredo. E quem protege o segredo não está necessariamente ao par, mas também ele remete a uma percepção, pois tem que perceber e detectar aqueles que querem descobrir o segredo (contraespionagem). Há, portanto, uma primeira direção, na qual o segredo vai no sentido de uma percepção não menos secreta, uma percepção que se quereria por sua vez imperceptível. Toda espécie de figuras muito diferentes podem girar em torno desse primeiro ponto. Por outro lado, há um segundo ponto que tampouco é separável do segredo como conteúdo: a maneira pela qual ele se impõe e se espalha. Aqui ainda, sejam quais forem as finalidades ou os resultados, o segredo tem uma maneira de se espalhar que é por sua vez tomada no segredo. O segredo como secreção. É preciso que o segredo se insira, se insinue, se introduza entre as formas públicas, faça pressão sobre elas e faça agir sujeitos conhecidos (influência do tipo “lobby”, mesmo que este não seja em si mesmo uma sociedade secreta).

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Em suma, o segredo, definido como conteúdo que escondeu sua forma em proveito de um simples continente, é inseparável de dois movimentos que podem acidentalmente interromper seu curso ou traí-lo, mas fazem parte dele essencialmente: algo deve transpirar da caixa, algo será percebido através da caixa ou na caixa entreaberta. O segredo foi inventado pela sociedade, é uma noção social ou sociológica. Todo segredo é um agenciamento coletivo. O segredo não é absolutamente uma noção estática ou imobilizada, só os devires são secretos; o segredo tem um devir-. O segredo tem sua origem na máquina de guerra, é ela que traz o segredo, com seus devires-mulheres, seus devires-crianças, seus devires-animais59. Uma sociedade secreta sempre age na sociedade como máquina de guerra. Os sociólogos que se ocuparam das sociedades secretas destacaram muitas leis dessas sociedades, proteção, igualização e hierarquia, silêncio, ritual, desindividuação, centralização, autonomia, compartimentação, etc. 60 Mas talvez eles não tenham dado importância suficiente às duas principais leis que regem o movimento do conteúdo: 1) Toda sociedade secreta engloba uma sociedade encoberta ainda mais secreta, que é depositária do segredo, ou que o protege, ou que executa as sanções de sua divulgação (ora, não há qualquer petição de princípio em definir a sociedade secreta por sua sociedade secreta encoberta: uma sociedade é secreta a partir do momento em que ela comporta essa duplicação, essa seção especial); 2) Toda sociedade secreta comporta seu modo de ação, ele próprio secreto, por influência, deslizamento, insinuação, transpiração, pressão, irradiação negra, de onde nascem “as senhas” e as linguagens secretas (não há nisso contradição alguma; a sociedade secreta não pode viver fora do projeto universal de penetrar toda a sociedade, de insinuar-se em todas as formas da sociedade, desordenando sua hierarquia e sua segmentação: a hierarquia secreta conjuga-se com uma conspiração dos iguais; a sociedade secreta ordena que seus membros estejam na sociedade como peixes na água, mas ela também deve ser como a água entre os peixes; ela necessita da cumplicidade de toda uma sociedade ambiente). Vê-se bem isso em casos tão diferentes quanto o são as sociedades de gangsters nos Estados Unidos, ou as sociedades de homens-animais na África: de um lado, o modo

Luc de Heusch mostra como é o homem de guerra que traz o segredo: ele pensa, come, ama, julga e chega em segredo, enquanto que o homem de Estado procede publicamente (Le roi ivre ou l’origine de l’Etat). A ideia do segredo de Estado é tardia, e supõe a apropriação da máquina de guerra pelo aparelho de Estado. 59

60

Especialmente Georg Simmel, cf. The Sociology of Georg Simmel, Glencoe, cap. III.

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de influência da sociedade secreta e de seus chefes sobre os homens públicos ou políticos do entorno; de outro lado, o modo de duplicação da sociedade secreta numa sociedade encoberta, que pode ser feita de uma seção especial de pistoleiros ou de guardas 61. Influência e duplicação, secreção e concreção, todo segredo avança assim entre dois “discretos” que, aliás, em alguns casos, podem encontrar-se, confundir-se. O segredo de criança combina maravilhosamente esses elementos: o segredo como conteúdo numa caixa, a influência ou a propagação secreta do segredo, a percepção secreta do segredo (o segredo de criança não é feito com segredos de adulto miniaturizados, mas é necessariamente acompanhado por uma percepção secreta do segredo de adulto). Uma criança descobre um segredo... Mas o devir do segredo leva-a a não contentar-se em esconder sua forma num simples continente ou de trocá-la por um continente. E preciso agora que o segredo adquira sua própria forma como segredo. O segredo eleva-se do conteúdo finito à forma infinita do segredo. E aqui que o segredo atinge o imperceptível absoluto, ao invés de remeter a todo um jogo de percepções e reações relativas. Vamos de um conteúdo bem determinado, localizado ou passado, à forma geral a priori de um algo que se passou, não localizável. Vai-se do segredo definido como conteúdo histérico de infância ao segredo definido como forma paranoica eminentemente viril. Reencontra-se sob essa forma até os dois concomitantes do segredo, a percepção secreta e o modo de ação, a influência secreta, mas esses concomitantes tornaram-se “traços” da forma, traços que não param de reconstituí-la, reformá-la, recarregá-la. De um lado, o paranoico denuncia o complô internacional daqueles que roubam seus segredos, seus pensamentos os mais íntimos; ou então declara seu dom de perceber os segredos do outro antes que estejam formados (o ciumento paranoico não capta o outro como escapando dele, mas, ao contrário, adivinha ou prevê sua menor intenção). De outro lado, o paranoico age ou padece por irradiações que ele emite ou recebe (dos raios de Raymond Roussel aos de Schreber). A influência por irradiação e a duplicação por roubo ou eco são agora o que dá ao segredo sua forma infinita, onde as percepções como as ações passam para o imperceptível. O

P. E. Joset marca bem esses dois aspectos da sociedade secreta de iniciação, o Mambela do Congo: de um lado, sua relação de influência sobre os chefes políticos habituais, que vai até uma transferência dos poderes sociais; de outro lado, sua relação de fato com os Anioto, como sociedade secreta encoberta, de crime ou de homens-leopardos (mesmo que os Anioto tenham uma origem diferente do Mambela). Cf. Les sociétés secrètes des hommesléopards en Afrique noire, cap. V. 61

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juízo-julgamento do paranoico é como uma antecipação da percepção, que substitui as pesquisas empíricas das caixas e seu conteúdo: culpado a priori, e de todas as maneiras! (tal como a evolução do narrador em La recherche em relação a Albertine). Pode-se dizer sumariamente que a psicanálise foi de uma concepção histérica a uma concepção cada vez mais paranoica do segredo62. Psicanálise interminável: o Inconsciente recebeu a incumbência cada vez mais pesada de ser ele próprio a forma infinita do segredo, ao invés de ser apenas uma caixa de segredos. Você dirá tudo, mas, ao dizer tudo, você não dirá nada, pois é necessário toda a “arte” do psicanalista para medir seus conteúdos pela forma pura. No entanto, nesse ponto, uma aventura inevitável acontece, quando o segredo é assim elevado à forma. Quando a pergunta “O que se passou?” atinge essa forma viril infinita, a resposta é forçosamente que nada se passou, destruindo forma e conteúdo. A notícia de que o segredo dos homens não era nada, absolutamente nada na verdade, espalha-se rapidamente. Édipo, o falo, a castração, “o espinho na carne”, era isso o segredo? É de fazer rirem as mulheres, as crianças, os loucos e as moléculas. Quanto mais se faz dele uma forma organizadora estruturante, mais o segredo fica mirrado e espalhado por toda a parte, mais seu conteúdo torna-se molecular, ao mesmo tempo que sua forma se dissolve. Era realmente pouca coisa, como diz Jocasta. Nem por isso o segredo desaparece, mas ele toma agora um estatuto mais feminino. O que já havia no segredo paranoico do presidente Schreber, senão um devir feminino, um devir-mulher? É que as mulheres não têm absolutamente a mesma maneira de tratar o segredo (a não ser quando elas reconstituem uma imagem invertida do segredo viril, uma espécie de segredo de gineceu). Os homens as acusam ora por sua indiscrição, seu falatório, ora por sua falta de solidariedade, sua traição. No entanto, é curioso como a mulher pode ser secreta não escondendo nada, à força de transparência, inocência e velocidade. O agenciamento complexo do segredo, no amor cortês, é propriamente feminino e opera na maior transparência. Celeridade contra gravidade. Celeridade de uma máquina de guerra contra gravidade de um aparelho de Estado. Os homens tomam uma atitude grave, cavaleiros do segredo, “vejam sob que peso eu vergo, minha gravidade, minha discrição”, mas eles acabam dizendo tudo, e não era nada. Há mulheres, ao contrário, que dizem tudo, falam até com uma terrível tecnicidade; no entanto, no fim, não se saberá nada mais

Sobre as concepções psicanalíticas do segredo, cf. “Du secret”, Nouvelle revue de psychanalyse n” 14; e para a evolução de Freud, o artigo de Claude Girard, “Le secret aux origines”. 62

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do que no começo; terão tudo escondido por celeridade, limpidez. Elas não têm segredo, porque tornaram-se, elas próprias, um segredo. Seriam mais políticas do que nós? Ifigênia. Inocente a priori, é isto que a moça reivindica por sua vez, contra o julgamento proferido pelos homens: “Culpado a priori”... É aí que o segredo atinge um último estado: seu conteúdo é molecularizado, tornou-se molecular, ao mesmo tempo que sua forma se desfaz para tornar-se uma pura linha móvel, — no sentido em que se pode dizer de tal linha que é o “segredo” de um pintor, ou de tal célula rítmica, de tal molécula sonora, que não constitui um tema ou uma forma, que é o “segredo” de um músico. Se um escritor teve de se haver com o segredo, este foi Henry James. Ele tem toda uma evolução a esse respeito, que é como que a perfeição de sua arte. Primeiro, ele busca o segredo em conteúdos, mesmo insignificantes, entreabertos, entrepercebidos. Depois, ele evoca a possibilidade de uma forma infinita do segredo que nem precisaria mais de conteúdo e que teria conquistado o imperceptível. Mas ele só evoca essa possibilidade para colocar a pergunta: o segredo está no conteúdo ou na forma? — e a resposta já está dada: nem em um nem no outro63. É que James faz parte desses escritores tomados num devir-mulher irresistível. Ele não cessará de perseguir sua meta, e de inventar os meios técnicos necessários. Molecularizar o conteúdo do segredo, linearizar a forma. James terá explorado tudo, do devir-criança do segredo (sempre uma criança que descobre segredos, o que sabia Maisie) ao devir-mulher do segredo (um segredo por transparência, e que é tão-somente uma linha pura, mal deixando o traço de sua passagem, a admirável Daisy Miller). James está menos próximo de Proust do que se diz; é ele que faz valer o grito: “Inocente a priori!” (Daisy só pedia um pouco de estima, ela teria dado o seu amor por isso..). contra o “Culpado a priori” que condena Albertine. O que conta no segredo são menos seus três estados, conteúdo de criança, forma infinita viril, pura linha

Bernard Pingaud, apoiando-se no texto exemplar de James, “The Figure in the Carpet”, mostra como o segredo salta do conteúdo à forma, e escapa aos dois: “Du secret”, pp. 247249. Comentou-se muitas vezes esse texto de James de um ponto de vista que interessa à psicanálise; primeiramente, J.-B. Pontalis, Après freud, Gallimard. Mas a psicanálise permanece prisioneira de um conteúdo necessariamente disfarçado, assim como de uma forma necessariamente simbólica (estrutura, causa ausente..)., num nível que define ao mesmo tempo o inconsciente e a linguagem. É por isso que, em suas aplicações literárias ou estéticas, ela não consegue alcançar o segredo num autor assim como o segredo de um autor. É como para o segredo de Édipo: ocupam-se dos dois primeiros segredos, mas não do terceiro que, no entanto, é o mais importante. 63

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feminina, do que os devires que estão ligados a ele, o devir-criança do segredo, seu devirfeminino, seu devir-molecular — lá onde precisamente o segredo já não tem conteúdo nem forma; o imperceptível enfim percebido, o clandestino que nada mais tem a esconder. Da eminência parda à imanência parda. Édipo passa pelos três segredos, o segredo da esfinge cuja caixa ele desvenda, o segredo que pesa sobre ele como a forma infinita de sua própria culpabilidade, enfim o segredo em Colona que o torna inacessível e confundese com a linha pura de sua fuga e de seu exílio; ele, que nada mais tem a esconder ou que, como um velho ator do Nô, tem tão somente uma máscara de moça para cobrir sua ausência de rosto. Alguns podem falar, nada esconder, não mentir: eles são secretos por transparência, impenetráveis como a água, incompreensíveis na verdade, enquanto que os outros têm um segredo sempre desvendado, ainda que eles o cerquem com um muro espesso ou o elevem à forma infinita. Lembranças e devires, pontos e blocos. — Por que há tantos devires do homem, mas não um devir-homem? É primeiro porque o homem é majoritário por excelência, enquanto que os devires são minoritários, todo devir é um devir-minoritário. Por maioria nós não entendemos uma quantidade relativa maior, mas a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias: homem-branco, adulto-macho, etc. Maioria supõe um estado de dominação, não o inverso. Não se trata de saber se há mais mosquitos ou moscas do que homens, mas como “o homem” constituiu no universo um padrão em relação ao qual os homens formam necessariamente (analiticamente) uma maioria. Da mesma forma que a maioria na cidade supõe um direito de voto, e não se estabelece somente entre aqueles que possuem esse direito, mas se exerce sobre aqueles que não o possuem, seja qual for seu número, a maioria no universo supõe já dados o direito ou o poder do homem64. É nesse sentido que as mulheres, as crianças, e também os animais, os vegetais, as moléculas são minoritários. É talvez até a situação particular da mulher em relação ao padrãohomem que faz com que todos os devires, sendo minoritários, passem por um devirmulher. No entanto, é preciso não confundir “minoritário” enquanto devir ou processo, e “minoria” como conjunto ou estado. Os judeus, os ciganos, etc., podem formar minorias nessas ou naquelas

Sobre as obscuridades da ideia de maioria, cf. os dois temas célebres do “efeito-Condorcet” e do “teorema de decisão coletiva” de Arrow. 64

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condições; ainda não é o suficiente para fazer delas devires. Reterritorializamo-nos, ou nos deixamos reterritorializar numa minoria como estado; mas desterritorializamo-nos num devir-. Até os negros, diziam os Black Panthers, terão que devir-negro. Até as mulheres terão que devir-mulher. Mesmo os judeus terão que devir-judeu (não basta certamente um estado). Mas, se é assim, o devir-judeu afeta necessariamente o não-judeu tanto quanto o judeu..., etc. O devir-mulher afeta necessariamente os homens tanto quanto as mulheres. De uma certa maneira, é sempre “homem” que é o sujeito de um devir-; mas ele só é um tal sujeito, ao entrar num devir-minoritário que o arranca de sua identidade maior. Como no romance de Arthur Miller, Focus, ou no filme de Losey, M. Klein, é o não-judeu que se torna judeu, que é tomado, levado por esse devir-, quando ele é arrancado de seu metro padrão. Inversamente, se os próprios judeus têm que devirjudeu, as mulheres que devir-mulher, as crianças que devir-criança, os negros que devirnegro, é porque só uma minoria pode servir de termo médium ativo ao devir-, mas em condições tais que ela pare por sua vez de ser um conjunto definível em relação à maioria. O devir-judeu, o devir-mulher, etc., implicam, portanto, a simultaneidade de um duplo movimento, um movimento pelo qual um termo (o sujeito) se subtrai à maioria, e outro pelo qual um termo (o termo médium ou o agente) sai da minoria. Há um bloco de devir indissociável e assimétrico, um bloco de aliança: os dois “Monsieur Klein”, o judeu e o não judeu, entram num devir-judeu (o mesmo em Focus). Uma mulher tem que devir-mulher, mas num devir-mulher do homem por inteiro. Um judeu torna-se judeu, mas num devir-judeu do não-judeu. Um devir minoritário só existe através de um termo médium e de um sujeito desterritorializados que são como seus elementos. Só há sujeito do devir como variável desterritorializada da maioria, e só há termo médium do devir como variável desterritorializante de uma minoria. O que nos precipita num devir pode ser qualquer coisa, a mais inesperada, a mais insignificante. Você não se desvia da maioria sem um pequeno detalhe que vai se pôr a estufar, e que lhe arrasta. É porque o herói de Focus, americano médio, precisa de óculos que dão a seu nariz um ar vagamente semita, é “por causa dos óculos” que ele será precipitado nessa estranha aventura do devir-judeu de um não-judeu. No caso, qualquer coisa serve, mas o caso revela-se político. Devir-minoritário é um caso político, e apela a todo um trabalho de potência, uma micropolítica ativa. É o contrário da macropolítica, e até da História, onde se trata de saber sobretudo como se vai conquistar ou obter uma maioria. Como dizia

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Faulkner, não havia outra escolha senão devir-negro, para não acabar fascista65. Contrariamente à história, o devir não se pensa em termos de passado e futuro. Um devir-revolucionário permanece indiferente às questões de um futuro e de um passado da revolução; ele passa entre os dois. Todo devir é um bloco de coexistência. As sociedades ditas sem história colocam-se fora da história, não porque se contentariam em reproduzir modelos imutáveis ou porque seriam regidas por uma estrutura fixa, mas sim porque são sociedades de devir (sociedades de guerra, sociedades secretas, etc).. Só há história de maioria, ou de minorias definidas em relação à maioria. Mas “como conquistar a maioria” é um problema inteiramente secundário em relação aos caminhos do imperceptível. Tentemos dizer as coisas de outro modo: não há devir-homem, porque o homem é a entidade molar por excelência, enquanto que os devires são moleculares. A função de rostidade mostrou-nos de que forma o homem constituía a maioria ou, antes, o padrão que a condicionava: branco, macho, adulto, “razoável”, etc., em suma o europeu médio qualquer, o sujeito de enunciação. Segundo a lei da arborescência, é esse Ponto central que se desloca em todo o espaço ou sobre toda a tela, e que vai alimentar a cada vez uma oposição distintiva conforme o traço de rostidade retido: assim macho-(fêmea); adulto(criança); branco-(negro, amarelo ou vermelho); razoável(animal). O ponto central, ou terceiro olho, tem portanto a propriedade de organizar as distribuições binárias nas máquinas duais, de se reproduzir no termo principal da oposição, ao mesmo tempo que a oposição inteira ressoa nele. Constituição de uma “maioria” como redundância. E o homem se constitui assim como uma gigantesca memória, com a posição do ponto central, sua frequência, visto ser ele necessariamente reproduzido por cada ponto dominante, sua ressonância, dado que o conjunto dos pontos remete a ele. Fará parte da rede de arborescência toda linha que vai de um ponto a outro no conjunto do sistema molar, e definese, pois, por pontos que respondem a essas condições memoriais de frequência e de ressonância66.

Cf. Faulkner, L’Intrus, Gallimard, p. 264. Falando dos brancos do Sul depois da guerra de Secessão, não só dos pobres, mas das antigas famílias ricas, Faulkner escreve: “Estamos na situação do alemão após 1933, que não tinha outra alternativa senão a de ser nazista ou judeu”. 65

A submissão da linha ao ponto aparece bem nos esquemas de arborescência: cf. Julien Pacotte, Le réseau arborescent, Hermann; e o estatuto dos sistemas hierárquicos ou centrados segundo P. Rosenstiehl e 66

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É a submissão da linha ao ponto que constitui a arborescência. É claro que a criança, a mulher, o negro têm lembranças; mas a Memória que recolhe essas lembranças não deixa de ser sua instância viril majoritária, instância que as toma como “lembranças de infância”, como lembranças conjugais ou coloniais. Pode-se operar por conjunção ou justaposição de pontos contíguos, em vez de por relação de pontos distantes: teremos então fantasmas, no lugar de lembranças. Assim, a mulher pode ter um ponto fêmea e um ponto macho unidos, e o homem um ponto macho e um ponto fêmea. A constituição desses híbridos, no entanto, não nos faz avançar mais no sentido de um verdadeiro devir (a bissexualidade, por exemplo, como o notam os psicanalistas, não impede absolutamente a prevalência do masculino ou a maioria do “falo”). Não se rompe com o esquema de arborescência, não se atinge o devir e nem o molecular, enquanto uma linha for remetida a dois pontos distantes, ou for composta de pontos contíguos. Uma linha de devir não se define nem por pontos que ela liga nem por pontos que a compõem: ao contrário, ela passa entre os pontos, ela só cresce pelo meio, e corre numa direção perpendicular aos pontos que distinguimos primeiro, transversal à relação localizável entre pontos contíguos ou distantes67. Um ponto é sempre de origem. Mas uma

J. Petitot, “Automate asocial e systèmes acentrés” (Communications n.º 22, 1974). Poderíamos apresentar o esquema arborescente de maioria da seguinte forma:

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Linha de devir-, em relação à ligação localizável de A e B (distância), ou em relação à sua contiguidade:

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linha de devir não tem nem começo nem fim, nem saída nem chegada, nem origem nem destino; e falar de ausência de origem, erigir a ausência de origem em origem, é um mau jogo de palavras. Uma linha de devir só tem um meio. O meio não é uma média, é um acelerado, é a velocidade absoluta do movimento. Um devir está sempre no meio, só se pode pegá-lo no meio. Um devir não é um nem dois, nem relação de dois, mas entre-dois, fronteira ou linha de fuga, de queda, perpendicular aos dois. Se o devir é um bloco (blocolinha), é porque ele constitui uma zona de vizinhança e de indiscernibilidade, um no man's land, uma relação não localizável arrastando os dois pontos distantes ou contíguos, levando um para a vizinhança do outro, — e a vizinhança-fronteira é tão indiferente à contiguidade quanto à distância. Na linha ou bloco do devir que une a vespa e a orquídea produz-se como que uma desterritorialização, da vespa enquanto ela se torna uma peça liberada do aparelho de reprodução da orquídea, mas também da orquídea enquanto ela se torna objeto de um orgasmo da própria vespa liberada de sua reprodução. Coexistência de dois movimentos assimétricos que fazem bloco numa linha de fuga onde se precipita a pressão seletiva. A linha, ou o bloco, não liga a vespa e a orquídea, como tampouco as conjuga ou as mistura: ela passa entre as duas, levando-as para uma vizinhança comum onde desaparece a discernibilidade dos pontos. O sistema-linha (ou bloco) do devir opõe-se ao sistema-ponto da memória. O devir é um movimento pelo qual a linha liberase do ponto, e torna os pontos indiscerníveís: rizoma, o oposto da arborescência, livrar-se da arborescência. O devir é uma anti-memória. Sem dúvida há uma memória molecular, mas como fator de integração a um sistema molar ou majoritário. A lembrança tem sempre uma função de reterritorialização. Ao contrário, um vetor de desterritorialização não é absolutamente indeterminado, mas diretamente conectado nos níveis moleculares, e tanto mais conectado quanto mais desterritorializado: é a desterritorialização que faz “manter-se” juntos os componentes moleculares. Opõe-se desse ponto de vista um bloco de infância, ou um devir-criança, à lembrança de infância: “uma” criança molecular é produzida... “uma” criança coexiste conosco, numa zona de vizinhança ou num bloco de devir-, numa linha de desterritorialização que nos arrasta a ambos — contrariamente à criança que fomos, da qual nos lembramos ou que fantasmamos, a criança molar da qual o adulto é o futuro. “Será a infância, mas não deve ser minha infância”, escreve Virgínia Woolf. (Orlando já não operava por lembranças, mas por blocos, blocos de idades, blocos de épocas, blocos de reinos, blocos de sexos, formando igualmente

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devires entre as coisas, ou linhas de desterritorialização68) Cada vez que empregamos a palavra “lembrança” nas páginas precedentes foi, portanto, erroneamente, queríamos dizer “devir-”, diríamos devir-. Se a linha opõe-se ao ponto (ou o bloco à lembrança, o devir à memória), não é de maneira absoluta: um sistema pontual comporta uma certa utilização das linhas, e o próprio bloco atribui ao ponto funções novas. Num sistema pontual, com efeito, um ponto remete primeiro a coordenadas lineares. E não só representamos uma linha horizontal e uma linha vertical, mas a vertical desloca-se paralelamente a si mesma, e a horizontal se sobrepõe a outras horizontais, de modo que todo ponto é determinado em relação às duas coordenadas de base, mas também marcado numa linha horizontal de sobreposição, e numa linha ou num plano vertical de deslocamento. Enfim, dois pontos estão ligados quando uma linha qualquer é traçada de um ao outro. Um sistema será dito pontual enquanto as linhas forem consideradas nele como coordenadas, ou como ligações localizáveis: por exemplo, os sistemas de arborescência, ou os sistemas molares e memoriais em geral, são pontuais. A Memória tem uma organização pontual porque todo o presente remete ao mesmo tempo à linha horizontal do curso do tempo (cinemática), que vai de um antigo presente ao atual, a uma linha vertical da ordem do tempo (estratigráfica), que vai do presente ao passado ou à representação do antigo presente. Sem dúvida, é um esquema de base que não se desenvolve sem grandes complicações, mas que reencontraremos nas representações da arte formando uma “didática”, isto é, uma mnemotecnia. A representação musical traça uma linha horizontal, melódica, a linha baixa, à qual se sobrepõem outras linhas melódicas, onde pontos são determinados, que entram de uma linha à outra em relações de contraponto; de outro lado, uma linha ou um plano vertical, harmônico, que se desloca ao longo das horizontais, mas não depende mais delas, indo de cima para baixo, e fixando um acorde capaz de encadear-se com os seguintes. A representação pictural, com seus meios próprios, tem uma forma análoga: não só porque o quadro tem uma vertical e uma horizontal, mas porque os traços e as cores, cada um por sua conta, remetem a verticais de deslocamento e a horizontais de sobreposição

Virginia Woolf, Journal d’un écrivain, 10-18, t. I, p. 238. É a mesma coisa em Kafka: com ele, os blocos de infância funcionam ao contrário das lembranças de infância. O caso de Proust é mais complicado, porque ele opera uma mistura dos dois. A psicanálise está na situação de captar as lembranças ou fantasmas, mas nunca os blocos de infância. 68

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(assim, a vertical e a forma fria, ou o branco, ou a luz, ou o tonal; a horizontal e a forma quente, ou o negro, o cromático, o modal, etc). Para ficar apenas em exemplos bastante recentes, vemos isso bem nos sistemas didáticos como o de Kandinsky, de Klee, de Mondrian, que implicam necessariamente uma confrontação com a música. Resumamos as características principais de um sistema pontual: 1) tais sistemas comportam duas linhas de base, horizontal e vertical, que servem de coordenadas para a determinação de pontos; 2) a linha horizontal pode sobrepor-se verticalmente, a linha vertical deslocar-se horizontalmente, de tal maneira que novos pontos sejam produzidos ou reproduzidos, em condições de frequência horizontal e ressonância vertical; 3) de um ponto ao outro, uma linha pode (ou não) ser traçada, mas como ligação localizável; as diagonais desempenharão então o papel de ligações para pontos de nível e de momento diferentes, instaurando por sua vez frequências e ressonâncias com esses pontos da horizontal e da vertical, pontos variáveis, contíguos ou distantes69. — Estes sistemas são arborescentes, memoriais, molares, estruturais, de territorialização ou reterritorialização. A linha e a diagonal permanecem inteiramente subordinadas ao ponto, porque servem de coordenadas a um ponto, ou de ligações localizáveis para um ponto e um outro, de um ponto a outro. O que se opõe ao sistema pontual são sistemas lineares ou, antes, multilineares. Liberar a linha, liberar a diagonal: não há músico nem pintor que não tenham essa intenção. Elabora-se um sistema pontual ou uma representação didática, mas com o objetivo de fazê-los detonar, de fazer passar um abalo sísmico. Um sistema pontual será mais interessante à medida que um músico, um pintor, um escritor, um filósofo

Por exemplo, no sistema da memória, a formação da lembrança implica uma diagonal que faz passar um presente A em representação A’ em relação ao novo presente B, em A” em relação a C, etc: 69

Cf. Husserl, Leçons pour une phénoménologie de Ia conscicnce intime du temps, P.U.F.

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se oponha a ele, e até o fabrique para opor-se a ele, como um trampolim para saltar. A história só é feita por aqueles que se opõem à história (e não por aqueles que se inserem nela, ou mesmo a remanejam). Não é por provocação, mas porque o sistema pontual, que encontravam todo pronto ou que eles próprios inventavam, devia permitir essa operação: liberar a linha e a diagonal, traçar a linha em vez de coordenadas, produzir uma diagonal imperceptível, em vez de se agarrar a uma vertical e a uma horizontal mesmo que complicadas ou reformadas. Isso recai sempre na História, mas nunca veio dela. A história pode tentar à vontade romper seus laços com a memória; ela pode complicar os esquemas de memória, superpor e deslocar as coordenadas, sublinhar as ligações ou aprofundar os cortes: a fronteira, no entanto, não se encontra aí. A fronteira não passa entre a história e a memória, mas entre os sistemas pontuais “história-memória” e os agenciamentos multilineares ou diagonais, que não são absolutamente o eterno, mas sim devir-, um pouco de devir em estado puro, trans-histórico. Não há ato de criação que não seja transhistórico, e que não pegue ao contrário, ou não passe por uma linha liberada. Nietzsche opõe a história, não ao eterno, mas ao sub-histórico, ou ao sobrehistórico: o Intempestivo, outro nome para a hecceidade, o devir-, a inocência do devir (isto é, o esquecimento contra a memória, a geografia contra a história, o mapa contra o decalque, o rizoma contra a arborescência). “O que é não histórico se parece com uma atmosfera ambiente, onde só a vida pode engendrar-se, para desaparecer de novo com o aniquilamento dessa atmosfera. (...). Onde há atos que o homem tenha sido capaz de realizar sem estar primeiro envolvido nessa nuvem negra não histórica?”70 As criações são como linhas abstratas mutantes que se livraram da incumbência de representar um mundo, precisamente porque elas agenciam um novo tipo de realidade que a história só pode recuperar ou recolocar nos sistemas pontuais. Quando Boulez se faz historiador da música, é para mostrar como, cada vez de maneira bem diferente, um grande músico inventa e faz passar uma espécie de diagonal entre a vertical harmônica e o horizonte melódico. E cada vez é uma outra diagonal, uma outra técnica e uma criação. Então, nessa linha transversal que é realmente de desterritorialização, move-se um bloco sonoro, que não tem mais ponto de origem, pois ele está sempre, e já, no meio da linha; que não tem mais

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Nietzsche, Considérations intempestives, “Utilité et inconvénient des études historiques”, § 1.

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coordenadas horizontais e verticais, pois ele cria suas próprias coordenadas; que não forma mais ligações localizáveis de um ponto a outro, porque ele está num “tempo não pulsado”: um bloco rítmico desterritorializado, abandonando pontos, coordenadas e medida, como um barco bêbado que se confunde, ele próprio, com a linha, ou que traça um plano de consistência. Velocidades e lentidões inserem-se na forma musical, impelindo-a ora a uma proliferação, a microproliferações lineares, ora a uma extinção, uma abolição sonora, involução, e os dois ao mesmo tempo. O músico pode dizer por excelência: “Odeio a memória, odeio a lembrança”, e isso porque ele afirma a potência do devir-. Pode-se encontrar o quadro exemplar de uma tal diagonal, de uma linha-bloco, na escola vienense. Mas poder-se-ia dizer igualmente que a escola vienense encontra um novo sistema de territorialização, de pontos, de verticais e de horizontais que a situa na História. Uma outra tentativa, um outro ato criador vem depois. O importante é que todo músico procedeu sempre assim: traçar sua diagonal, mesmo que frágil, fora dos pontos, fora das coordenadas e das ligações localizáveis, para fazer flutuar um bloco sonoro numa linha liberada, criada, e soltar no espaço esse bloco móvel e mutante, uma hecceidade (por exemplo, o cromatismo, os agregados e notas complexas, mas já todos os recursos e possibilidades da polifonia, etc.71). Pôde-se falar de “vetores oblíquos” a propósito do órgão. A diagonal é frequentemente feita de linhas e espaços sonoros extremamente complexos. Estaria aí o segredo de uma pequena frase ou de um

Sobre todos esse temas, cf. Pierre Boulez: 1”) como, a cada vez, transversais tendem a escapar-se das coordenadas horizontais e verticais da música, traçando até por vezes “linhas virtuais”, Releves d’apprenti, Ed. du Seuil, pp. 230, 290-297, 372. 2”) Sobre a ideia de bloco sonoro ou “bloco de duração”, em relação com essa transversal, Penserla musique aujourd’huí, Gonthier, pp. 59-63; sobre a distinção dos pontos c dos blocos, dos “conjuntos pontuais” e dos “conjuntos agregativos” com individualidade variável, “Sonate que me veuxtu?”, in Médiations n” 7, 1964. O ódio à memória aparece frequentemente em Boulez: cf. “Eloge de 1’amnésie” (Musique en jeu n” 4, 1 971), “J’ai horreur du souvenir” (in Roger Desormière et son temps, Ed. du Rocher). Para ficar apenas em exemplos contemporâneos, encontraríamos declarações análogas em Stravinski, Cage, Berio. E claro que há uma memória musical ligada às coordenadas, e que se exerce nos quadros sociais (levantar, deitar, baterem retirada). Mas a percepção de uma “frase” musical apela menos a uma memória, mesmo do tipo reminiscência, do que a uma extensão ou contração da percepção do tipo encontro. Seria preciso estudar como cada músico faz funcionar verdadeiros blocos de esquecimento: por exemplo, aquilo que Barraqué diz das “fatias de esquecimento” e dos “desenvolvimentos ausentes” em Debussy (Debussy, pp. 169-171). Remetemos a um estudo geral de Daniel Charles, “La musique et l’oubli”, Traverses n” 4, 1976. 71

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bloco rítmico? Sem dúvida, então, o ponto conquista uma nova função criadora essencial: não se trata mais simplesmente do destino inevitável que reconstitui um sistema pontual; ao contrário, é agora o ponto que se encontra subordinado à linha, e é ele que marca a proliferação da linha, ou seu brusco desvio, sua precipitação, sua desaceleração, sua fúria ou sua agonia. Os “microblocos” de Mozart. Acontece até de o bloco ses reduzido a um ponto, como a uma só nota (bloco-ponto): o Si de Berg em Wozzeck, o Lá de Schumann. Homenagem a Schumann, loucura de Schumann: através do quadriculado da orquestração, o violoncelo erra, e traça sua diagonal onde passa o bloco sonoro desterritorializado; ou uma espécie de ritornelo extremamente sóbrio é “tratado” por uma linha melódica e uma arquitetura polifônica muito elaboradas. Tudo se faz ao mesmo tempo, num sistema multilinear: a linha libera-se do ponto como origem; a diagonal libera-se da vertical e da horizontal como coordenadas; da mesma forma, a transversal libera-se da diagonal como ligação localizável de um ponto a outro; em suma, uma linha-bloco passa no meio dos sons, e brota ela mesma por seu próprio meio não localizável. O bloco sonoro é o intermezzo. Corpo sem órgãos, anti-memória, que passa através da organização musical, e por isso mais sonora: “O corpo schumanniano não para no lugar. (...). O intermezzo [é] consubstanciai a toda obra. (...). No limite, só há intermezzi. (...). O corpo schumanniano só conhece bifurcações: ele não se constrói, ele diverge, perpetuamente, ao sabor de uma acumulação de intermédios. (...). A batida schumanniana é desnorteada, mas ela é também codificada; e é porque o desnorteio das batidas mantém-se aparentemente nos limites de uma língua sensata, que ele passa ordinariamente despercebido. (...). Imaginemos para a tonalidade dois estatutos contraditórios e, no entanto, concomitantes: de um lado, uma tela (...)., uma língua destinada a articular o corpo segundo uma organização conhecida (...)., de um outro lado, contraditoriamente, a tonalidade torna-se a serva hábil das batidas que num outro nível ela pretende domesticar”72. Será a mesma coisa, estritamente a mesma coisa, em pintura? Com efeito, não é o ponto que faz a linha, é a linha que arrasta o ponto desterritorializado, que o arrasta para sua influência exterior; então, a linha não vai de um ponto a outro, mas entre os pontos ela corre numa outra direção que os torna indiscerníveis. A linha tornou-se a diagonal que se libera da vertical e da horizontal; mas a diagonal já

72

Roland Barthes, “Rasch”, in Langue, discours, société, VA. du Seuil, pp. 217-228.

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deveio a transversal, a semidiagonal ou a direita livre, a linha quebrada ou angular, ou então a curva, sempre no meio delas mesmas. Entre o branco vertical e o negro horizontal, o cinza de Klee, o vermelho de Kandinsky, o violeta de Monet, cada um forma um bloco de cor. A linha sem origem, pois ela começou sempre fora do quadro que apenas a toma pelo meio; sem coordenadas, pois ela própria se confunde com um plano de consistência onde ela flutua e que ela cria; sem ligação localizável, pois ela perdeu não só sua função representativa mas toda função de cercar uma forma qualquer — a linha tornouse através disso abstrata, verdadeiramente abstrata e mutante, bloco visual, e o ponto, nessas condições, encontra de novo funções criadoras, como ponto-cor ou ponto-linha73. A linha está entre os pontos, no meio dos pontos, e não de um ponto a outro. Ela não cerca mais um contorno. “Ele não pintava as coisas, mas entre as coisas.” Não há problema mais falso em pintura do que o da profundidade e, particularmente, o da perspectiva, pois a perspectiva é tão somente uma maneira histórica de ocupar as diagonais ou transversais, as linhas de fuga, isto é, de reterritorializar o bloco visual móvel. Dizemos “ocupar” no sentido de dar uma ocupação, fixar urna memória num código, atribuir uma função. Mas as linhas de fuga, as transversais, são suscetíveis de muitas outras funções além dessa função molar. Em vez de as linhas de fuga serem feitas para representar a profundidade, são elas que inventam além do mais a possibilidade de uma tal representação, que só as ocupa um instante, em tal momento. A perspectiva, e até a profundidade, são a territorialização das linhas de fuga que, sozinhas, criavam a pintura, levando-a mais longe. A perspectiva dita central, especialmente, precipita num buraco negro pontual a multiplicidade das fugas e o dinamismo das linhas. É verdade que, inversamente, os problemas de perspectiva desencadearam todo um pululamento de linhas criadoras, todo um afrouxamento de blocos

Há muitas diferenças entre os pintores, sob todos esses aspectos, mas também um movimento de conjunto: cf. Kandinsky, Point, ligue, piau; Klee, Théorie de l’art moderne, Gonthier. Declarações como as de Mondrian, sobre o valor exclusivo da vertical e da horizontal, têm por objetivo mostrar em que condições estas bastam para lançar uma diagonal que não precisa nem mesmo ser traçada: por exemplo, porque as coordenadas de espessura desigual cortam-se no interior do quadro, e prolongam-se fora do quadro, abrindo um “eixo dinâmico” em transversal (cf. os comentários de Michel Butor, Répertoire III, “Le carré et son habitant”, Ed. de Minuit). Pode-se consultar também o artigo de Michel Fried sobre a linha de Pollock (“Trois peintres américains”, in Peindre, 10-18), e as páginas de Henry Miller sobre a linha de Nash (Virage à quatrevingts. Livre de Poche). 73

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visuais, no momento mesmo em que eles pretendiam tornar-se seus senhores. Através de cada um de seus atos de criação, terá a pintura se engajado num devir tão intenso quanto a música? Devir música. — A respeito da música ocidental (mas as outras músicas encontramse diante de um problema análogo, sob outras condições, e que elas resolvem de outro modo), tentamos definir um bloco de devir no nível da expressão, um bloco de expressão, graças às transversais que não param de escapar das coordenadas ou dos sistemas pontuais funcionando nesse ou naquele momento como códigos musicais. É claro que um bloco de conteúdo corresponde a esse bloco de expressão. Não é nem mesmo uma correspondência; não haveria bloco móvel se um conteúdo, ele próprio musical (não um sujeito nem um tema) não interferisse sem parar na expressão. Ora, o que está em causa na música, qual é seu conteúdo indissociável da expressão sonora? É difícil dizer, mas é algo como: uma criança morre, uma criança brinca, uma mulher nasce, uma mulher morre, um pássaro chega, um pássaro se vai. Queremos dizer que não há aí temas acidentais da música, mesmo que se possa multiplicar os exemplos, e menos ainda exercícios imitativos, mas sim algo de essencial. Por que uma criança, uma mulher, um pássaro? É porque a expressão musical é inseparável de um devir-mulher, um devir-criança, um devir-animal que constituem seu conteúdo. Por que a criança morre, ou o pássaro cai, como que atravessado por uma flecha? Exatamente por causa do “perigo” próprio a toda linha que escapa, a toda linha de fuga ou de desterritorialização criadora: virar destruição, abolição. Melisande, uma mulher-criança, um segredo, morre duas vezes (“é a vez agora da pobre pequena”). A música nunca é trágica, a música é alegria. Mas acontece, necessariamente, de ela nos dar o gosto de morrer, menos de felicidade do que de morrer com felicidade, desvanecer. Não em virtude de um instinto de morte que ela suscitaria em nós, mas de uma dimensão própria a seu agenciamento sonoro, à sua máquina sonora, o momento que é preciso afrontar, quando a transversal vira linha de abolição. Paz e exasperação74. A música tem sede de destruição, todos os

“Havia algo de tenso, de exasperado, algo que ia quase até uma intolerável cólera em seu peito de homem de bem, enquanto ele tocava essa fina e nobre música de paz. Quanto mais deliciosa era a música, mais ele a executava com perfeição numa completa felicidade; e, ao mesmo tempo, a louca exasperação que havia nele crescia proporcionalmente” (Lawrence, La verge d’Aaron, Gallimard, p. 16). 74

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tipos de destruição, extinção, quebra, desmembramento. Não está aí seu “fascismo” potencial? Mas, a cada vez que um músico escreve In memoriam, trata-se não de um motivo de inspiração, uma lembrança, mas, ao contrário, de um devir que afrontou tão-somente seu próprio perigo, mesmo que tenha de cair para daí renascer: um devir-criança, um devir-mulher, um devir-animal, uma vez que eles são o próprio conteúdo da música e vão até a morte. Diríamos que o ritornelo é o conteúdo propriamente musical, o bloco de conteúdo próprio da música. Uma criança tranquiliza-se no escuro, ou bate palmas, ou inventa um passo, adapta-o aos traços da calçada, ou salmodia “Fort-Da” (os psicanalistas falam muito mal do Fort-Da, querendo encontrar aí uma oposição fonológica ou um componente simbólico para o inconsciente-linguagem, quando o que se tem aí é um ritornelo). Trá lá lá. Uma mulher cantarola, “eu a ouvia cantarolando uma ária, com voz baixa, suavemente”. Um pássaro lança seu ritornelo. A música inteira é atravessada pelo canto dos pássaros, de mil maneiras, de Jannequin a Messiaen. Frrr, Frrr. A música é atravessada por blocos de infância e de feminilidade. A música é atravessada por todas as minorias e, no entanto, compõe uma potência imensa. Ritornelos de crianças, de mulheres, de etnias, de territórios, de amor e de destruição: nascimento do ritmo. A obra de Schumann é feita de ritornelos, de blocos de infância, que ele submete a um tratamento muito especial: seu próprio devir-criança, seu próprio devir-mulher, Clara. Poderíamos estabelecer o catálogo da utilização diagonal ou transversal do ritornelo na história da música, todos os Jogos de infância e os Kinderszenen, todos os cantos de pássaro. O catálogo seria inútil, porque faria supor uma multiplicação de exemplos como se fossem concernentes a temas, sujeitos, motivos, quando se trata, na verdade, do mais essencial e mais necessário conteúdo da música. O motivo do ritornelo pode ser a angústia, o medo, a alegria, o amor, o trabalho, a marcha, o território..., mas quanto ao ritornelo, ele é o conteúdo da música. Não dizemos absolutamente que o ritornelo seja a origem da música, ou que a música comece com ele. Não se sabe muito bem quando começa a música. O ritornelo seria antes um meio de impedir, de conjurar a música ou de poder ficar sem ela. Mas a música existe porque o ritornelo existe também, porque a música toma, apodera-se do ritornelo como conteúdo numa forma de expressão, porque faz bloco com ele para arrastá-lo para outro lugar. O ritornelo de criança, que não é música, faz bloco com o devir-criança da

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música: uma vez mais foi necessária essa composição assimétrica. “Ah vous diraisje maman” em Mozart, os ritornelos de Mozart. Tema em Dó seguido de doze variações: não só cada nota do tema é duplicada, mas o tema duplica-se no interior. A música submete o ritornelo a esse tratamento muito especial da diagonal ou da transversal, ela o arranca de sua territorialidade. A música é a operação ativa, criadora, que consiste em desterritorializar o ritornelo. Enquanto que o ritornelo é essencialmente territorial, territorializante ou reterritorializante, a música faz dele um conteúdo desterritorializado para uma forma de expressão desterritorializante. Que nos perdoem uma frase dessas, seria preciso que ele fosse musical, escrevê-lo em música, o que fazem os músicos. Ao invés disso, damos um exemplo figurativo: a Berceuse de Mussorgski, em Chants et danses de la mort, apresenta uma mãe extenuada que vela seu filho doente; ela se faz revezar por uma visitante, a Morte, que canta uma canção de ninar na qual cada estrofe termina por um ritornelo sóbrio obsessivo, ritmo repetitivo de uma só nota, bloco-ponto, “psiu, criancinha, dorme minha criancinha” (não só a criança morre, mas a desterritorialização do ritornelo é duplicada pela Morte em pessoa que substitui a mãe). A situação da pintura é semelhante, e de que forma? Não acreditamos absolutamente num sistema das belas-artes, mas em problemas muito diferentes que encontram suas soluções em artes heterogêneas. A Arte nos parece um falso conceito, unicamente nominal; o que não impede de fazer uso simultâneo das artes numa multiplicidade determinável. A pintura inscreve-se num “problema” que é o do rosto-paisagem. A música, num problema totalmente outro, que é o do ritornelo. Cada uma surge num certo momento e em certas condições, na linha de seu problema; mas nenhuma correspondência simbólica ou estrutural é possível entre as duas, senão quando as traduzimos em sistemas pontuais. Do lado do problema rosto-paisagem, tínhamos distinguido como que três estados: 1) semióticas de corporeidade, silhuetas, posturas, cores e linhas (estas semióticas já estão presentes e abundantes nos animais, a cabeça neles faz parte do corpo, o corpo tem por correlato o meio, o biótipo; vê-se surgir aí linhas já muito puras, como nas condutas de “galhinho”); 2) uma organização de rosto, parede branca-buracos negros, face-olhos, ou face vista de perfil e olhos oblíquos (esta semiótica de rostidade tem por correlato a organização da paisagem: rostificação de todo o corpo e paisagificação de todos os meios, ponto central europeu o Cristo); 3) uma desterritorialização dos rostos e das paisagens, em proveito

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de dispositivos rastreadores, com linhas que não delimitam mais forma alguma, que não formam mais contorno algum, cores que não distribuem mais paisagem alguma (é a semiótica pictural, fazer fugir rosto e paisagem: exemplo, o que Mondrian chama de “paisagem”, e que ele tem razão de chamar assim, pura paisagem, já que desterritorializada até o absoluto). — Para facilitar, apresentaremos três estados bem distintos e sucessivos, mas a título provisório. Não podemos decidir se os animais já não fazem pintura, embora eles não pintem sobre quadros, e mesmo quando hormônios induzem suas cores e suas linhas: mesmo aí, uma distinção bem marcada animal-homem seria pouco fundada. Inversamente, devemos dizer que a pintura não começa com a arte dita abstrata, mas recria as silhuetas e as posturas da corporeidade, e também já opera plenamente na organização rosto-paisagem (como os pintores “trabalham” o rosto do Cristo, e o fazem fugir em todas as direções fora do código religioso). A pintura nunca terá deixado de ter como meta a desterritorialização dos rostos e paisagens, seja pela reativação da corporeidade, seja pela liberação das linhas e das cores, os dois ao mesmo tempo. Há muitos deviresanimais, devires-mulher e criança na pintura. Ora, o problema da música é diferente, se é verdade que seja o do ritornelo. Desterritorializar o ritornelo, inventar linhas de desterritorialização para o ritornelo, implica procedimentos e construções que nada têm a ver com os da pintura (a não ser vagas analogias, como os pintores tentaram às vezes). Sem dúvida, aqui ainda, não é certeza que se possa fazer passar uma fronteira entre o animal e o homem: não há pássaros músicos, como o pensa Messiaen, por diferença em relação a pássaros não-músicos? Será o ritornelo do pássaro forçosamente territorial, ou será que o pássaro já se serve dele em desterritorializações muito sutis, em linhas de fuga seletivas? Não é certamente a diferença do barulho e do som que permite definir a música, nem mesmo distinguir os pássaros músicos e os pássaros não-músicos, mas sim o trabalho do ritornelo: será que ele permanece territorial e territorializante, ou é arrastado num bloco móvel que traça uma transversal através de todas as coordenadas — e todos os intermediários entre os dois? A música é precisamente a aventura de um ritornelo: a maneira pela qual a música vira de novo ritornelo (em nossa cabeça, na cabeça de Swann, nos dispositivos pseudo-rastreadores da tevê e do rádio, um grande músico como prefixo musical, ou a musiquinha); a maneira pela qual ela se apropria do ritornelo, torna-o cada vez mais sóbrio, algumas notas,

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para levá-lo numa linha criadora com isso enriquecida, da qual não se vê nem a origem, nem o fim... Leroi-Gourhan estabelecia uma distinção e uma correlação entre dois polos, “mãoferramenta” e “rosto-linguagem”. Mas tratava-se de distinguir uma forma de conteúdo e uma forma de expressão. Agora que consideramos expressões que têm seu conteúdo nelas mesmas, temos uma outra distinção: o rosto com seus correlatos visuais (olhos) remete à pintura; a voz remete à música com seus correlatos auditivos (a orelha é ela própria um ritornelo, ela tem a forma do ritornelo). A música é primeiro uma desterritorialização da voz, que se torna cada vez menos linguagem, assim como a pintura é uma desterritorialização do rosto. Ora, os traços de vocabilidade podem efetivamente ser indexados nos traços de rostidade, como quando se lê palavras no rosto; mas esses traços não têm correspondência, e cada vez menos, à medida que são levados pelos movimentos respectivos da música e da pintura. A voz está muito adiantada em relação ao rosto, muito na frente. Intitular uma obra musical Visage (rosto] parece nesse aspecto o maior paradoxo sonoro75. Sendo assim, a única maneira de “arrumar” os dois problemas, o da pintura e o da música, é tomar um critério extrínseco à ficção de um sistema das belasartes, comparando as forças de desterritorialização nos dois casos. Ora, parece que a música tem uma força desterritorializante muito maior, muito mais intensa e coletiva ao mesmo tempo, e a voz, igualmente, uma potência de ser desterritorializada muito maior. É talvez esse traço que explica a fascinação coletiva exercida pela música, e mesmo a potencialidade do perigo “fascista” do qual falávamos há pouco: a música, tambores, trombetas, arrasta os povos e os exércitos, numa corrida que pode ir até o abismo, muito mais do que o fazem os estandartes e as bandeiras, que são quadros, meios de classificação ou de reunião. Pode ser que os músicos sejam

Embora Berio dê outras indicações, parece-nos que sua obra Visage é composta segundo os três estados de rostidade: primeiro, uma multiplicidade de corpos e de silhuetas sonoras; depois, um curto momento de organização dominante e sinfônica do rosto; enfim, um arremesso de dispositivos rastreadores em todas as direções. No entanto, não se trata absolutamente de uma música que “imitaria” o rosto e seus avatares, nem de uma voz que faria metáfora. Mas os sons aceleram a desterritorialização do rosto, dando-lhe uma potência propriamente acústica, enquanto que o rosto reage musicalmente, precipitando por sua vez a desterritorialização da voz. É um rosto molecular, produzido por uma música eletrônica. A voz precede o rosto, forma-o ela mesma um instante, e sobrevive a ele, tomando cada vez mais velocidade, com a condição de ser inarticulada, a-significante, a-subjetiva. 75

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individualmente mais reacionários que os pintores, mais religiosos, menos “sociais”; mesmo assim, eles manejam uma força coletiva infinitamente superior à da pintura: “E uma ligação muito potente o coro formado pela assembleia do povo...” Pode-se sempre explicar essa força pelas condições materiais da emissão e da recepção musicais, mas o inverso é preferível, são antes essas condições que se explicam pela força de desterritorialização da música. Diríamos que a pintura e a música não correspondem aos mesmos limiares do ponto de vista de uma máquina abstrata mutante, ou que a máquina pictural e a máquina musical não têm o mesmo índice. Há um “atraso” da pintura em relação à música, como o constatava Klee, o mais músico dos pintores76. É talvez por isso que muitas pessoas preferem a pintura, ou que a estética tomou a pintura como modelo privilegiado: não há dúvida que ela dá menos “medo”. Mesmo suas relações com o capitalismo, e com as formações sociais, não são absolutamente do mesmo tipo. Sem dúvida, em todos os casos, devemos fazer funcionar ao mesmo tempo fatores de territorialidade, de desterritorialização, mas também de reterritorialização. Os ritornelos do animal e da criança parecem territoriais: é por isso que eles não são “música”. Mas quando a música se apropria do ritornelo para desterritorializá-lo, e desterritorializar a voz, quando ela se apropria do ritornelo para fazê-lo correr num bloco sonoro e rítmico, quando o ritornelo “torna-se” Schumann ou Debussy, é através de um sistema de coordenadas harmônicas e melódicas onde a música se reterritorializa nela mesma, enquanto música. Inversamente, veremos que mesmo um ritornelo animal, em certos casos, já tinha forças de desterritorialização muito mais intensas do que as silhuetas, posturas e cores animais. E preciso, portanto, levar em conta muitos fatores: as territorialidades relativas, as desterritorializações respectivas, mas também as reterritorializações correlativas, e ainda muitos tipos de reterritorializações, por exemplo intrínsecas como as coordenadas musicais, ou extrínsecas como a decadência do ritornelo em refrão, ou da música em cançãozinha. Que não haja desterritorialização sem reterritorialização especial deve nos fazer pensar de outra maneira a correlação que subsiste sempre entre o molar eo

Grohmann, Paul Klee, Flammarion: “Meio convencido, meio brincando, ele se considerava feliz, dizia, de ter quase levado (a pintura], ao menos no que se refere à forma, à altura em que Mozart tinha deixado a música antes de sua morte” (pp. 66-67). 76

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molecular: nenhum fluxo, nenhum devir-molecular escapam de uma formação molar sem que componentes molares os acompanhem, formando passagens ou referências perceptíveis para processos imperceptíveis. O devir-mulher, o devir-criança da música aparecem no problema de uma maquinação da voz. Maquinar a voz é a primeira operação musical. Sabe-se como o problema foi resolvido na música ocidental, na Inglaterra e na Itália, de duas maneiras diferentes: de um lado, a voz de cabeça da contralto, que canta “para além de sua voz”, ou cuja voz trabalha na cavidade dos selos paranasais, a parte anterior da garganta e o palato, sem apoiar-se no diafragma nem transpor os brônquios; por outro lado, a voz de ventre dos castrati, “mais forte, mais volumosa, mais lânguida”, como se eles tivessem dado uma matéria carnal ao imperceptível, ao impalpável e ao aéreo. Dominique Fernandez escreveu sobre isso um belo livro, onde, precavendose felizmente de qualquer consideração psicanalítica sobre uma ligação da música e da castração, mostra que o problema musical de uma maquinaria da voz implicava necessariamente a abolição da robusta máquina dual, isto é, da formação molar que distribui as vozes em “homem ou mulher”77. Ser homem ou mulher não existe mais em música. Não é certeza, no entanto, que o mito do andrógino invocado por Fernandez seja suficiente. Não se trata de mito, mas de devir real. É preciso que a própria voz atinja um devir-mulher ou um devir-criança. E está nisso o prodigioso conteúdo da música. Sendo assim, como o nota Fernandez, não se trata de imitar a mulher ou de imitar a criança, mesmo se é uma criança que canta. É a própria voz musical que se torna criança, mas, ao mesmo tempo, a criança se torna sonora, puramente sonora. Jamais criança alguma teria podido fazê-lo ou, se o faz, é tornando-se também outra coisa que não criança, criança de um outro mundo estranhamente celeste e sensual. Em suma, a desterritorialização é dupla: a voz desterritorializa-se num devir-criança, mas a própria criança que ela se torna é desterritorializada, inengendrada, está em devir-. “Asas deram impulso à criança”, diz Schumann. Reencontramos o mesmo movimento de ziguezague nos devires-animais da música: Mareei More mostra como a música de Mozart é atravessada por um

Dominique Fernandez, La rose des Tudors, Julliard (e o romance Porporino, Grasset). Fernandez cita a música pop como um retorno tímido à grande música vocal inglesa. Seria preciso, com efeito, considerar as técnicas de respiração circular, quando se canta inspirando e expirando, ou de filtragem de som conforme zonas de ressonância (nariz, testa, maçãs do rosto — utilização propriamente musical do rosto). 77

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devir-cavalo, ou por devires-pássaro. Mas nenhum músico se diverte “fazendo-se” de cavalo ou de pássaro. O bloco sonoro não tem por conteúdo um devir-animal sem que o animal ao mesmo tempo não se torne em sonoridade alguma outra coisa, algo de absoluto, a noite, a morte, a alegria — certamente não uma generalidade nem uma simplicidade, mas uma hecceidade, a morte que está aqui, a noite que está ali. A música toma por conteúdo um devir-animal; mas o cavalo, por exemplo, adquire aí, como expressão, as pequenas batidas de timbale, aladas como tamancos que vêm do céu ou do inferno; e os pássaros tomam expressão em grupetos (gruppeti), apojaturas, notas picadas que fazem deles almas78. O que forma a diagonal em Mozart são os acentos, primeiro os acentos. Se não seguimos os acentos, se não os observamos, recaímos num sistema pontual relativamente pobre. O homem músico desterritorializa-se no pássaro, mas é um pássaro ele mesmo desterritorializado, “transfigurado”, um pássaro celeste que entra num devir tanto quanto aquilo que entra num devir com ele. O capitão Ahab está engajado num devir-baleia irresistível com Moby Dick; mas é preciso ao mesmo tempo que o animal, Moby Dick, torne-se pura brancura insustentável, pura muralha branca resplandecente, puro fio de prata que se estende e se torna flexível “como” uma moça, ou se retorce como um chicote, ou ergue-se como um parapeito. Pode ser que a literatura alcance às vezes a pintura, e até a música? E que a pintura alcance a música? (More cita os pássaros de Klee; em compensação, ele não compreende Messiaen quanto ao canto dos pássaros). Nenhuma arte é imitativa, não pode ser imitativa ou figurativa: suponhamos que um pintor “represente” um pássaro; de fato, é um devir-pássaro que só pode acontecer à medida que o próprio pássaro esteja em vias de devir outra coisa, pura linha e pura cor. De modo que a imitação destrói a si própria, à medida que aquele que imita entra sem saber num devir que se conjuga com o devir daquilo que ele imita, sem que ele o saiba. Só se imita, portanto, caso se fracasse, quando se fracassa. Nem o pintor e nem o músico imitam um animal; eles é que entram em um devir-animal, ao mesmo tempo que o animal torna-se aquilo que eles queriam, no mais profundo de seu entendimento com a Natureza79. Que o devir funcione sempre a dois, que aquilo em que nos tornamos entra num devir tanto quanto aquele que devém, é isso

78

Marcel More, Le dieu Mozart e le monde des oiseaux, Gallimard.

Vimos que a imitação podia ser concebida como uma semelhança de termos culminando num arquétipo (série), ou como uma correspondência de relações constituindo uma ordem simbólica (estrutura); mas o devir não se deixa reduzir nem a uma nem a outra. O conceito de mimesis é não só insuficiente, mas radicalmente falso. 79

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que faz um bloco, essencialmente móvel, jamais em equilíbrio. O quadrado perfeito é o de Mondrian, que bascula numa ponta e produz uma diagonal entreabrindo seu fechamento, arrastando um e outro lado. Devir nunca é imitar. Quando Hitchcock faz o pássaro, ele não reproduz nenhum grito de pássaro, ele produz um som eletrônico como um campo de intensidades ou uma onda de vibrações, uma variação continua, como uma terrível ameaça que sentimos em nos mesmos80. E não são apenas as “artes”: as páginas de Moby Dick valem também pela pura vivência do duplo devir-, e não teriam essa beleza de outro modo. A tarantela é a estranha dança que conjura ou exorciza as supostas vítimas de uma picada de tarântula: mas, quando a vítima faz sua dança, pode-se dizer que ela está imitando a aranha, que identifica-se com ela, mesmo numa identificação de luta “agonística”, “arquetípica”? Não, pois a vítima, o paciente, o doente não se torna aranha dançante a não ser na medida em que a aranha por sua vez é suposta devir pura silhueta, pura cor e puro som, segundo os quais o outro dança81. Não se imita; constitui-se um bloco de devir-, a imitação não intervém senão para o ajuste de tal bloco, como numa última preocupação de perfeição, uma piscada de olho, uma assinatura. Mas tudo o que importa passou-se em outro lugar: devir-aranha da dança, à condição de que a aranha torne-se ela mesma som e cor, orquestra e pintura. Tomemos o caso de um herói local folclórico, Alexis o Trotador, que corria “como” um cavalo, numa velocidade extraordinária, chicoteava-se com uma bengalinha, relinchava, levantava as pernas, dava coices, curvava-se à maneira dos cavalos, rivalizando com eles em corridas, com bicicletas ou trens. Ele imitava o cavalo para fazer rir. Mas ele tinha uma zona de vizinhança ou de indiscernibilidade mais profunda. Informações revelam que ele jamais era mais cavalo do que quando tocava gaita: justamente porque não tinha mais necessidade nem mesmo de imitação secundária ou reguladora. Diz-se que ele chamava a gaita seu “derruba-beiços”, e que dublava todo mundo com esse instrumento, duplicava o tempo do acorde, impunha um tempo não humano82. Alexis tornava-se tanto mais cavalo quanto o freio

François Truffaut, Le cinema selon Hitchcock, Seghers, pp. 332-3.33 (“tomei a licença dramática de não fazer absolutamente os pássaros gritarem...”). 80

Cf. E. de Martino, La terre du remords, Gallimard, pp. 142-170. Martino mantém, no entanto, uma interpretação fundada no arquétipo, na imitação e na identificação. 81

Cf. J. C. Larouche, Alexis le trotteur, Ed. du Jour, Montreal. Testemunho citado: “Ele tocava música de boca como nenhum de nós; ele tinha uma gaita muito grande na qual não éramos nem mesmo capazes de tocar. (...). Quando tocava conosco, ele decidia de repente a nos reforçar. Ou seja, ele acompanhava o tempo do acorde; enquanto nós tocávamos um tempo, ele tocava dois, o que requeria um fôlego extraordinário” (p. 95). 82

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do cavalo tornava-se gaita, e o trote do cavalo dupla-medida. E, de novo, já é preciso dizêlo dos próprios animais, pois estes têm não só cores e sons, mas não esperam o pintor ou o músico para fazer deles uma pintura, uma música, isto é, para entrar em devirescores e devires-sons determinados (veremos isso adiante) através dos componentes de desterritorialização. A etologia está bastante avançada para ter abordado esse domínio. Não militamos absolutamente por uma estética das qualidades, como se a qualidade pura (a cor, o som, etc). contivesse o segredo de um devir sem medida, à maneira de Filebo. As qualidades puras parecem-nos ainda sistemas pontuais: são reminiscências, sejam lembranças flutuantes ou transcendentes, sejam germes de fantasma. Uma concepção funcionalista, ao contrário, só considera em uma qualidade a função que ela preenche em um agenciamento preciso, ou na passagem de um agenciamento a outro. É a qualidade que deve ser considerada no devir que dela se apodera, e não o devir em qualidades intrínsecas que teriam o valor de arquétipos ou lembranças filogenéticas. Por exemplo, a brancura, a cor, é apanhada num devir-animal, que pode ser o do pintor ou do capitão Ahab, ao mesmo tempo que num devir-cor, um devir-brancura, que pode ser o do próprio animal. A brancura de Moby Dick é o índice especial de seu devir-solitário. As cores, as silhuetas e os ritornelos animais são índices de devir-conjugal ou de devirsocial que implicam também componentes de desterritorialização. Uma qualidade só funciona como linha de desterritorialização de um agenciamento ou indo de um agenciamento a outro. É bem nesse sentido que um bloco-animal não é a mesma coisa do que uma lembrança filogenética, e que um bloco de infância não é a mesma coisa do que uma lembrança de infância. Em Kafka, jamais uma qualidade funciona por si mesma ou como lembrança, mas retifica um agenciamento no qual ela se desterritorializa, e ao qual ela dá, inversamente, uma linha de desterritorialização: assim, o sino de infância passa pela torre do castelo, toma-a no nível de sua zona de indiscernibilidade (“as ameias incertas”) para lançá-la numa linha de fuga (como se um habitante “tivesse furado” o telhado). Se é mais complicado, menos sóbrio, para Proust,

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é porque as qualidades guardam nele um ar de reminiscência ou de fantasma: no entanto, também aí são blocos funcionais agindo não como lembranças e fantasmas, mas como devir-criança, devir-mulher, como componentes de desterritorialização, passando de um agenciamento a outro. Aos teoremas de desterritorialização simples que tínhamos encontrado (por ocasião do rosto)*, podemos agora acrescentar outros, concernentes à dupla desterritorialização generalizada. Quinto teorema: a desterritorialização é sempre dupla, porque implica a coexistência de uma variável maior e de uma variável menor, que estão ao mesmo tempo em devir (num devir-, os dois termos não se intercambiam, não se identificam, mas são arrastados num bloco assimétrico, onde um não muda menos do que o outro, e que constitui sua zona de vizinhança). — Sexto teorema: a dupla desterritorialização não simétrica permite determinar uma força desterritorializante e uma força desterritorializada, mesmo que a mesma força passe de um valor ao outro conforme o “momento” ou o aspecto considerado; e mais do que isso, o menos desterritorializado sempre precipita a desterritorialização do mais desterritorializante, que reage mais ainda sobre ele. — Sétimo teorema: o desterritorializante tem o papel relativo de expressão, e o desterritorializado tem o papel relativo de conteúdo (como se vê efetivamente nas artes); ora, não só o conteúdo não tem nada a ver com um objeto ou um sujeito exteriores, pois ele faz bloco assimétrico com a expressão, mas a desterritorialização leva a expressão e o conteúdo a uma tal vizinhança que sua distinção deixa de ser pertinente, ou que a desterritorialização cria sua indiscernibilidade (exemplo: a diagonal sonora como forma de expressão musical e os devires-mulher, criança, animal como conteúdos propriamente musicais, ritornelos). — Oitavo teorema: um agenciamento não tem as mesmas forças ou as mesmas velocidades de desterritorialização que um outro; é preciso a cada vez calcular os índices e coeficientes conforme os blocos de devir considerados, e as mutações de uma máquina abstrata (por exemplo, uma certa lentidão, uma certa viscosidade da pintura em relação à música; porém, mais do que isso, não se poderá fazer passar fronteira simbólica entre o homem e o animal, podendo-se apenas calcular e comparar potências de desterritorialização). Eis que Fernandez mostrou a presença de devires-mulher, de devires-criança na música vocal. Depois ele protesta contra a ascensão da música instrumental e orquestral; ele acusa particularmente Verdi e Wagner de terem ressexualizado as vozes, de terem restaurado a máquina binária conformando-se às exigências do capitalismo, que quer que um homem seja um homem,

Quanto Ano Rostidade”). *

aos

primeiros

quatro

teoremas,

cf.

Platô

7

(“ Zero

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uma mulher uma mulher, e que cada um tenha a sua voz: as vozes-Verdi, as vozes-Wagner são reterritorializadas em homem e mulher. Ele explica o desaparecimento prematuro de Rossini e de Bellini, a retirada de um e a morte do outro, pelo sentimento desesperado de que os devires vocais da ópera não eram mais possíveis. No entanto, Fernandez não pergunta com qual benefício, e quais novos tipos de diagonal. É verdade, primeiro, que a voz deixa de ser maquinada por si mesma, com simples acompanhamento instrumental: ela deixa de ser um estrato ou uma linha de expressão valendo por si. Mas por que razão? A música transpôs um novo limiar de desterritorialização, onde é o instrumento que maquina a voz, onde a voz e o instrumento são projetados para o mesmo plano, numa relação ora de afrontamento, ora de substituição, ora de troca e de complementaridade. É talvez no lied, e sobretudo no lied de Schumann, que aparece pela primeira vez esse puro movimento que coloca a voz e o piano num mesmo plano de consistência, e faz do piano um instrumento de delírio, numa direção que prepara a ópera wagneriana. Até um caso como o de Verdi: foi dito frequentemente que sua ópera permanece lírica e vocal, apesar da destruição que ele opera do bel canto, e apesar da importância da orquestração nas obras finais; resta que as vozes são instrumentadas, e ganham singularmente em tessitura ou em extensão (produção do barítono-Verdi, do soprano Verdi). Não se trata no entanto de tal compositor, sobretudo não de Verdi, nem desse ou daquele gênero, mas do movimento mais geral que afeta a música, lenta mutação da máquina musical. Se a voz reencontra uma distribuição binária dos sexos, é em relação com os agrupamentos binários de instrumentos na orquestração. Há sempre sistemas molares na música como coordenadas; mas, quando se reencontra no nível da voz o sistema dualista dos sexos, essa distribuição pontual e molar é uma condição para novos fluxos moleculares que vão cruzarse, conjugar-se, arrebatar-se numa instrumentação e numa orquestração que tendem a fazer parte da própria criação. As vozes podem ser reterritorializadas na distribuição dos dois sexos, mas o fluxo sonoro e contínuo passa mais ainda entre os dois como numa diferença de potencial. E é esse o segundo ponto que seria preciso marcar: se, com esse novo limiar de desterritorialização da voz, o problema principal não é mais o de um devir-mulher ou um devir-criança, propriamente vocal, é porque o problema agora é o de um devir-molecular, onde a própria voz encontra-se instrumentada. Certamente, os devires-mulher e criança guardam toda sua importância, irão até descobrir para si uma nova importância,

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mas à medida que liberam uma outra verdade: o que era produzido, já era uma criança molecular, uma mulher molecular... Basta pensar em Debussy: o devir-criança, o devirmulher são intensos, mas não são mais separáveis de uma molecularização do motivo, verdadeira “química” que se faz com a orquestração. A criança e a mulher não são mais separáveis do mar, da molécula de água (Sirenes é precisamente uma das primeiras tentativas completas para integrar a voz à orquestra). Já a propósito de Wagner, e para recriminá-lo, falava-se do caráter “elementar” dessa música, de seu aquatismo, ou então da “atomização” do motivo, “uma subdivisão em unidades infinitamente pequenas”. Vê-se isso melhor ainda quando se pensa no devir-animal: os pássaros guardaram toda sua importância e, no entanto, é como se a idade dos insetos tivesse substituído o reino dos pássaros, com vibrações, estridulações, rangidos, zumbidos, estalidos, arranhões, fricções muito mais moleculares. Os pássaros são vocais, mas os insetos, instrumentais, tambores e violinos, guitarras e címbalos83. Um devir-inseto substituiu o devir-pássaro, ou faz bloco com ele. O inseto está mais próximo, o que torna audível essa verdade de que todos os devires são moleculares (cf. as ondas Martenot, a música eletrônica). É que o molecular tem a capacidade de fazer comunicar o elementar e o cósmico: precisamente porque ele opera uma dissolução da forma que coloca em relação as longitudes e latitudes as mais diversas, as velocidades e lentidões as mais variadas, e que assegura um continuum estendendo a variação muito além de seus limites formais. Redescobrir

Andrée Tétry, Les outils chez les êtres vivants, Gallimard, capítulo sobre os “instrumentos de música”, com bibliografia: o barulho pode ser um efeito do movimento ou do trabalho do animal, mas se falará de instrumentos de música a cada vez que animais dispõem de aparelhos cuja única função é produzir sons variados (o caráter musical, desde que ele se deixe determinar, é muito variável, mas o é também para o aparelho vocal dos pássaros; entre os insetos, há verdadeiros virtuoses). Desse ponto de vista, distingue-se: 1”) aparelhos estridentes, do tipo instrumentos de corda, fricção de uma superfície rígida contra uma outra superfície (insetos, crustáceos, aranhas, escorpiões, pedipalpos); 2”) aparelhos de percussão, do tipo tambor, címbalo, xilofone, ação direta de músculos numa membrana vibrante (cigarra e certos peixes). Não só a variedade dos aparelhos e dos sons é infinita, mas um mesmo animal varia seu ritmo, sua tonalidade, sua intensidade, conforme as circunstâncias ou exigências ainda mais misteriosas. “E então um canto de cólera, de angústia, de medo, de triunfo, de amor. Sob o impulso de uma viva excitação, o ritmo da estridulação varia: em Crioceris Lilii, a frequência das fricções passa de 228 batidas a 550 ou mais por minuto.” 83

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Mozart, e que o “tema” já era a variação. Varèse explica que a molécula sonora (o bloco) dissocia-se em elementos dispostos de diversas maneiras conforme as relações de velocidade variáveis, mas também como ondas ou fluxos de uma energia sônica irradiando todo o universo, linha de fuga desvairada. É assim que ele povoou o deserto de Gobi de insetos e estrelas que formavam um devir-música do mundo, uma diagonal para um cosmo. Messiaen coloca frente a frente durações cromáticas múltiplas, em coalescência, “alternando as maiores e as menores, a fim de sugerir a ideia das relações entre os tempos infinitamente longos das estrelas e das montanhas, e infinitamente curtos dos insetos e dos átomos: poder elementar, cósmico, que (...). vem antes de mais nada do trabalho rítmico84. Aquilo que faz com que o músico descubra os pássaros, o faz também descobrir o elementar e o cósmico. Um e o outro fazem bloco, fibra de universo, diagonal ou espaço complexo. A música envia fluxos moleculares. Certamente, como diz Messiaen, a música não é privilégio do homem: o universo, o cosmo é feito de ritornelos; a questão da música é a de uma potência de desterritorialização que atravessa a Natureza, os animais, os elementos e os desertos não menos do que o homem. Trata-se, antes, daquilo que não é musical no homem, e daquilo que já o é na natureza. E mais, o que os etólogos descobriam do lado do animal, Messiaen o descobria do lado da música: não há qualquer privilégio do homem, com exceção dos meios de sobrecodificar, de fazer sistemas pontuais. É até o contrário de um privilégio; através dos devires-mulher, criança, animal ou molécula, a natureza opõe sua potência, e a potência da música, àquela das máquinas do homem, tumulto das fábricas e dos bombardeiros. E é preciso ir até esse ponto, que o som não musical do homem faça bloco com o devir-música do som, que eles se afrontem ou se atraquem, como dois lutadores que não podem mais derrotar um ao outro, e deslizam numa linha de declive: “Que o coro represente os sobreviventes (....). Ouve-se o fraco rumor das cigarras. Depois os trinados de uma cotovia, depois o canto do pássaro zombeteiro. Alguém ri, uma mulher soluça convulsivamente. Um homem solta um grande grito: 'Estamos perdidos!' Uma voz de mulher: 'Estamos salvos!' Gritos explodem em toda parte: 'Perdidos! Salvos! Perdidos! Salvos!85 Tradução de Suely Rolnik

84

Gisèle Brelet, in Histoire de Ia musique, II, Pléiade, “Musique contem-poraine en France”, p. 1166.

85

Texto de Henry Miller para Varèse, Le cauchemar climatisé, Gallimard, pp. 189-199.

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11 1837 ACERCA DO RITORNELO

A máquina de gorjear

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I Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela anda, ela para, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua cançãozinha. Esta é como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos. Pode acontecer que a criança salte ao mesmo tempo que canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos a um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslocar-se a cada instante. Há sempre uma sonoridade no fio de Ariadne. Ou o canto de Orfeu. II Agora, ao contrário, estamos em casa. Mas o em-casa não preexiste: foi preciso traçar um círculo em torno do centro frágil e incerto, organizar um espaço limitado. Muitos componentes bem diversos intervém, referências e marcas de toda espécie. Isso já era verdade no caso precedente. Mas agora são componentes para a organização de um espaço, e não mais para a determinação momentânea de um centro. Eis que as forças do caos são mantidas no exterior tanto quanto possível, e o espaço interior protege as forças germinativas de uma tarefa a ser cumprida, de uma obra a ser feita. Há toda uma atividade de seleção aí, de eliminação, de extração, para que as forças íntimas terrestres, as forças interiores da terra, não sejam submersas, para que elas possam resistir, ou até tomar algo emprestado do caos através do filtro ou do crivo do espaço traçado. Ora, os componentes vocais, sonoros, são muito importantes: um muro do som, em todo caso um muro do qual alguns tijolos são sonoros. Uma criança cantarola para arregimentar em si as forças do trabalho escolar a ser feito. Uma dona de casa cantarola, ou liga o rádio, ao mesmo tempo que erige as forças anti-caos de seus afazeres. Os aparelhos de rádio ou de tevê são como um muro sonoro para cada lar, e marcam territórios (o vizinho protesta quando está muito alto). Para obras sublimes como a fundação de uma cidade, ou a fabricação de um Golem, traça-se um círculo, mas sobretudo anda-se em torno do círculo, como numa roda de criança, e combina-se consoantes e vogais ritmadas que correspondem às forças interiores da criação como às partes diferenciadas de um organismo. Um erro de velocidade, de ritmo ou de harmonia seria catastrófico, pois destruiria o criador e a criação, trazendo de volta as forças do caos. III. Agora, enfim, entreabrimos o círculo, nós o abrimos, deixamos alguém entrar, chamamos alguém, ou então nós mesmos vamos para fora, nos lançamos. Não abrimos o círculo do lado onde vêm acumular-se as antigas forças do caos, mas numa

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outra região, criada pelo próprio círculo. Como se o próprio círculo tendesse a abrir-se para um futuro, em função das forças em obra que ele abriga. E dessa vez é para ir ao encontro de forças do futuro, forças cósmicas. Lançamo-nos, arriscamos uma improvisação. Mas improvisar é ir ao encontro do Mundo, ou confundir-se com ele. Saímos de casa no fio de uma cançãozinha. Nas linhas motoras, gestuais, sonoras que marcam o percurso costumeiro de uma criança, enxertam-se ou se põem a germinar “linhas de errância”, com volteios, nós, velocidades, movimentos, gestos e sonoridades diferentes1. Não são três momentos sucessivos numa evolução. São três aspectos numa só e mesma coisa, o Ritornelo. Vamos reencontrá-los nos contos de terror ou de fadas, nos lieder também. O ritornelo tem os três aspectos, e os torna simultâneos ou os mistura: ora, ora, ora. Ora o caos é um imenso buraco negro, e nos esforçamos para fixar nele um ponto frágil como centro. Ora organizamos em torno do ponto uma “pose” (mais do que uma forma) calma e estável: o buraco negro tornou-se um em-casa. Ora enxertamos uma escapada nessa pose, para fora do buraco negro. Foi Paul Klee quem mostrou tão profundamente estes três aspectos e sua ligação. Ele diz “ponto cinza”, e não buraco negro, por razões picturais. Mas, justamente, o ponto cinza é antes o caos não dimensional, não localizável, a força do caos, feixe enredado de linhas aberrantes. Depois o ponto “salta por cima de si mesmo”, e irradia um espaço dimensional, com suas camadas horizontais, seus cortes verticais, suas linhas costumeiras não escritas, toda uma força interior terrestre (essa força aparece também, com um andamento mais solto, na atmosfera ou na água). O ponto cinza (buraco negro) saltou portanto de estado, e representa não mais o caos, mas a morada ou o em-casa. Enfim, o ponto se atira e sai de si mesmo, sob a ação de forças centrífugas errantes que se desenrolam até a esfera do cosmo: “Exercemos um esforço por impulsos para decolar da terra, mas no patamar seguinte nos elevamos realmente acima dela (...). sob o império de forças centrífugas que triunfam sobre a gravidade”2. Sublinhou-se muitas vezes o papel do ritornelo: ele é territorial, é um agenciamento territorial. O canto de pássaros: o pássaro que canta marca assim seu território... Os próprios modos gregos,

Cf. Fernand Deligny, “ Voix et voir”, Cahiers de l’immuable: a maneira pela qual uma “linha de errância”, nas crianças autistas, separa-se de um trajeto costumeiro, põe-se a “vibrar”, “estremecer”, “dar guinadas”... 1

Paul Klee, Théorie de 1’art moderne, pp. 56,27. Cf. o comentário de Maldiney, Regard, parole, espace, L’Age d’homme, pp. 149-151. 2

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os ritmos hindus são territoriais, provinciais, regionais. O ritornelo pode ganhar outras funções, amorosa, profissional ou social, litúrgica ou cósmica: ele sempre leva terra consigo, ele tem como concomitante uma terra, mesmo que espiritual, ele está em relação essencial com um Natal, um Nativo. Um “nomo” musical é uma musiquinha, uma fórmula melódica que se propõe ao reconhecimento, e permanecerá como base ou solo da polifonia (cantus firmus). O nomos como lei costumeira e não escrita é inseparável de uma distribuição de espaço, de uma distribuição no espaço, sendo assim um ethos, mas o ethos é também a Morada.3 Ora se vai do caos a um limiar de agenciamento territorial: componentes direcionais, infra-agenciamento. Ora se organiza o agenciamento: componentes dimensionais, intra-agenciamento. Ora se sai do agenciamento territorial, em direção a outros agenciamentos, ou ainda a outro lugar: interagenciamento, componentes de passagem ou até de fuga. E os três juntos. Forças do caos, forças terrestres, forças cósmicas: tudo isso se afronta e concorre no ritornelo. Do caos nascem os Meios e os Ritmos. É o assunto das cosmogonias muito antigas. O caos não deixa de ter componentes direcionais, que são seus próprios êxtases. Vimos numa outra ocasião como todas as espécies de meios deslizavam umas em relação às outras, umas sobre as outras, cada uma definida por um componente. Cada meio é vibratório, isto é, um bloco de espaço-tempo constituído pela repetição periódica do componente. Assim, o vivo tem um meio exterior que remete aos materiais; um meio interior que remete aos elementos componentes e substâncias compostas; um meio intermediário que remete às membranas e limites; um meio anexado que remete às fontes de energia e às percepções-ações. Cada meio é codificado, definindo-se um código pela repetição periódica; mas cada código é um estado perpétuo de transcodificação ou de transdução. A transcodificação ou transdução é a maneira pela qual um meio serve de base para um outro ou, ao contrário, se estabelece sobre um outro, se dissipa ou se constitui no outro. Justamente, a noção de meio não é unitária: não é apenas o vivo que passa constantemente de um meio para outro, são

Sobre o nomo musical, o ethos e o solo ou a terra, notadamente na polifonia, cf. Joseph Samson, in Histoire de la musique, Pléiade, t. I, pp. 1168-1172. Remetemos também, na música árabe, ao papel do “Maqâm”, que é ao mesmo tempo tipo modal e fórmula melódica: Simon Jargy, La musique árabe, P.U.F., pp. 55 ss. 3

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os meios que passam um no outro, essencialmente comunicantes. Os meios são abertos no caos, que os ameaça de esgotamento ou de intrusão. Mas o revide dos meios ao caos é o ritmo. O que há de comum ao caos e ao ritmo é o entre-dois, entre dois meios, ritmocaos ou caosmo: ''Entre a noite e o dia, entre o que é construído e o que cresce naturalmente, entre as mutações do inorgânico ao orgânico, da planta ao animal, do animal à espécie humana, sem que esta série seja uma progressão...”. É nesse entre-dois que o caos torna-se ritmo, não necessariamente, mas tem uma chance de tornar-se ritmo. O caos não é o contrário do ritmo, é antes o meio de todos os meios. Há ritmo desde que haja passagem transcodificada de um para outro meio, comunicação de meios, coordenação de espaços-tempos heterogêneos. O esgotamento, a morte, a intrusão ganham ritmos. Sabemos que o ritmo não é medida ou cadência, mesmo que irregular: nada menos ritmado do que uma marcha militar. O tambor não é 1-2, a valsa não é 1, 2, 3, a música não é binária ou ternária, mas antes 47 tempos primeiros, como nos turcos. É que uma medida, regular ou não, supõe uma forma codificada cuja unidade medidora pode variar, mas num meio não comunicante, enquanto que o ritmo é o Desigual ou o Incomensurável, sempre em transcodificação. A medida é dogmática, mas o ritmo é crítico, ele liga os instantes críticos, ou se liga na passagem de um meio para outro. Ele não opera num espaço-tempo homogêneo, mas com blocos heterogêneos. Ele muda de direção. Bachelard tem razão em dizer que “a ligação dos instantes verdadeiramente ativos (ritmo) é sempre efetuada num plano que difere do plano onde se executa a ação” 4. O ritmo nunca tem o mesmo plano que o ritmado. É que a ação se faz num meio, enquanto que o ritmo se coloca entre dois meios, ou entre dois entre-meios, como entre duas águas, entre duas horas, entre lobo e cão, twilight ou zwielicht, Hecceidade. Mudar de meio, reproduzindo com energia, é o ritmo. Aterrissar, amerissar, alçar voo... Por aí, saímos facilmente de uma aporia que corria o risco de trazer a medida de volta para o ritmo, apesar de todas as declarações de intenção: com efeito, como podemos proclamar a desigualdade constituinte do ritmo, quando ao mesmo tempo nos entregamos a vibrações subentendidas, repetições periódicas dos componentes? É que um meio existe efetivamente através de uma repetição periódica, mas esta não tem outro efeito senão produzir uma diferença pela qual ele passa para um outro meio. É a diferença que é

4

Bachelard, La dialectique de Ia durée, Boivin, pp. 128-129.

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rítmica, e não a repetição que, no entanto, a produz; mas, de pronto, essa repetição produtiva não tinha nada a ver com uma medida reprodutora. Esta seria a “solução crítica da antinomia”. Há um caso particularmente importante de transcodificação: é quando um código não se contenta em tomar ou receber componentes codificados diferentemente, mas toma ou recebe fragmentos de um outro código enquanto tal. O primeiro caso remeteria à relação folha-água, mas o segundo à relação aranha-mosca. Frequentemente observouse que a teia de aranha implicava no código desse animal sequências do próprio código da mosca; diríamos que a aranha tem uma mosca na cabeça, um “motivo” de mosca, um “ritornelo” de mosca. A implicação pode ser recíproca, como com a vespa e a orquídea, a boca-de-leão e a mamangava. J. von Uexkull fez uma admirável teoria dessas transcodificações, descobrindo nos componentes outras tantas melodias que se fariam contraponto, uma servindo de motivo à outra e reciprocamente: a Natureza como música5. A cada vez que há transcodificação, podemos estar certos que não há uma simples soma, mas constituição de um novo plano como de uma mais-valia. Plano rítmico ou melódico, mais-valia de passagem ou de ponte — mas ambos os casos nunca são puros, eles se misturam na realidade (como a relação da folha não mais com a água em geral, mas com a chuva...). No entanto, não temos ainda um Território, que não é um meio, nem mesmo um meio a mais, nem um ritmo ou passagem entre meios. O território é de fato um ato, que afeta os meios e os ritmos, que os “territorializa”. O território é o produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos. Dá na mesma perguntar quando é que os meios e os ritmos territorializam-se, ou qual é a diferença entre um animal sem território e um animal de território. Um território lança mão de todos os meios, pega um pedaço deles, agarra-os (embora permaneça frágil frente a intrusões). Ele é construído com aspectos ou porções de meios. Ele comporta em si mesmo um meio exterior, um meio interior, um intermediário, um anexado. Ele tem uma zona interior de domicílio ou de abrigo, uma zona exterior de domínio, limites ou membranas mais ou menos retrateis, zonas intermediárias ou até neutralizadas, reservas ou anexos energéticos. Ele é essencialmente marcado por “índices”, e esses índices são pegos de componentes de todos os meios: materiais, produtos

5

J. von Uexkull, Mondes animaux et monde humain, Gonthier.

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orgânicos, estados de membrana ou de pele, fontes de energia, condensados percepçãoação. Precisamente, há território a partir do momento em que componentes de meios param de ser direcionais para se tornarem dimensionais, quando eles param de ser funcionais para se tornarem expressivos. Há território a partir do momento em que há expressividade do ritmo. É a emergência de matérias de expressão (qualidades) que vai definir o território. Tomemos um exemplo como o da cor, dos pássaros ou dos peixes: a cor é um estado de membrana, que remete ele próprio a estados interiores hormonais; mas a cor permanece funcional e transitória, enquanto está ligada a um tipo de ação (sexualidade, agressividade, fuga). Ela se torna expressiva, ao contrário, quando adquire uma constância temporal e um alcance espacial que fazem dela uma marca territorial ou, melhor dizendo, territorializante: uma assinatura6. A questão não é a de saber se a cor retoma funções, ou cumpre novas no seio do próprio território. Isto é óbvio, mas essa reorganização da função implica primeiro que o componente considerado tenha se tornado expressivo, e que seu sentido, desse ponto de vista, seja marcar um território. Uma mesma espécie de pássaro pode comportar representantes coloridos ou não; os coloridos têm um território, enquanto que os esbranquiçados são gregários. Sabe-se o papel da urina ou dos excrementos na marcação; mas justamente, os excrementos territoriais, por exemplo do coelho, têm um odor particular devido a glândulas anais especializadas. Muitos macacos, de sentinela, expõem seus órgãos sexuais de cores vivas: o pênis tornase um porta-cores expressivo e ritmado que marca os limites do território 7. Um componente de meio torna-se ao mesmo tempo qualidade e propriedade, quale et proprium. Em muitos casos, constata-se a velocidade desse devir-, com que rapidez um território é constituído, ao mesmo tempo em que são produzidas ou selecionadas as qualidades expressivas. O pássaro Scenopoietes dentirostris estabelece suas referências fazendo, toda manhã,

K. Lorenz, L’agression, Flammarion, pp. 28-3U: “Sua roupagem esplêndida é constante. (...). A repartição das cores em superfícies relativamente grandes, vivamente contrastadas, distingue os peixes de recifes de coral não só da maioria dos peixes de água doce, mas também de quase todos os peixes menos agressivos e menos apegados a seu território. (...). Assim como as cores dos peixes de recifes de coral, o canto do rouxinol assinala de longe para todos os seus congêneres que um território encontrou um proprietário definitivo”. 6

I. Eibl-Eibesfeldt, Ethologie, Ed. Scientifiques: sobre os macacos, p. 449; sobre os coelhos, p.325; e sobre os pássaros, p. 151: “Os estrildídeos malhados que têm a plumagem de adorno muito colorida mantêm-se a uma certa distância uns dos outros, enquanto que os sujeitos esbranquiçados agacham-se mais perto”. 7

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caírem da árvore folhas que ele cortou, virando-as em seguida do lado inverso, para que sua face interna mais pálida contraste com a terra: a inversão produz uma matéria de expressão...8 O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, é a marca que faz o território. As funções num território não são primeiras, elas supõem antes uma expressividade que faz território. É bem nesse sentido que o território e as funções que nele se exercem são produtos da territorialização. A territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo, ou dos componentes de meios tornados qualitativos. A marcação de um território é dimensional, mas não é uma medida, é um ritmo. Ela conserva o caráter mais geral do ritmo, o de inscrever-se num outro plano que o das ações. Mas, agora, esses dois planos distinguem-se como o das expressões territorializantes e o das funções territorializadas. É por isso que não podemos acompanhar uma tese como a de Lorenz, que tende a colocar a agressividade na base do território: seria a evolução filogenética de um instinto de agressão que faria o território, a partir do momento em que esse instinto se tornasse intraespecífico, voltado contra os congêneres do animal. Um animal de território seria aquele que dirige sua agressividade contra outros membros de sua espécie; o que dá à espécie a vantagem seletiva de se repartir num espaço onde cada um, indivíduo ou grupo, possui seu próprio lugar9. Essa tese ambígua, com ressonâncias políticas perigosas, parece-nos mal fundada. É evidente que a função agressiva toma um novo aspecto quando se torna intra-específica. Mas essa reorganização da função supõe o território, e não o explica. No seio do território, há inúmeras reorganizações, que afetam tanto a sexualidade, como a caça, etc; há até mesmo novas funções, como construir um domicílio. Mas essas funções só são organizadas ou criadas enquanto territorializadas, e não o inverso. O fator T, fator territorizalizante, deve ser buscado em outro lugar: precisamente no devirexpressivo do ritmo ou da melodia, isto é, na emergência de qualidades próprias (cor, odor, som, silhueta...). Podemos chamar de Arte esse devir-, essa emergência? O território seria o efeito da arte. O artista, primeiro homem que erige um marco ou faz uma marca... A propriedade, de grupo ou

8

Cf. W. H. Thorpe, learning and Instinct in Animals, Methuen and Co, p. 364.

Lorenz tende constantemente a apresentar a territorialidade como um efeito da agressão intra-específica: cf. pp. 45, 48, 57, 161, etc. 9

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individual, decorre disso, mesmo que seja para a guerra e a opressão. A propriedade é primeiro artística, porque a arte é primeiramente cartaz, placa. Como diz Lorenz, os peixes de recifes de coral são cartazes. O expressivo é primeiro em relação ao possessivo, as qualidades expressivas ou matérias de expressão são forçosamente apropriativas, e constituem um ter mais profundo que o ser10. Não no sentido em que essas qualidades pertenceriam a um sujeito, mas no sentido em que elas desenham um território que pertencerá ao sujeito que as traz consigo ou que as produz. Essas qualidades são assinaturas, mas a assinatura, o nome próprio, não é a marca constituída de um sujeito, é a marca constituinte de um domínio, de uma morada. A assinatura não é a indicação de uma pessoa, é a formação aleatória de um domínio. As moradas têm nomes próprios e são inspiradas. “Os inspirados e sua morada...”, mas é com a morada que surge a inspiração. É ao mesmo tempo que gosto de uma cor, e que faço dela meu estandarte ou minha placa. Colocamos nossa assinatura num objeto como fincamos nossa bandeira na terra. Um bedel de escola carimbava todas as folhas que cobriam o chão do pátio, e as recolocava no lugar. Ele tinha assinado. As marcas territoriais são ready-made. Também aquilo que chamamos de art brut não tem nada de patológico ou de primitivo; é somente essa constituição, essa liberação de matérias de expressão, no movimento da territorialidade: a base ou o solo da arte. De qualquer coisa, fazer uma matéria de expressão. O Scenopoietes faz arte bruta. O artista é scenopoietes, podendo ter que rasgar seus próprios cartazes. Certamente, nesse aspecto, a arte não é privilégio do homem. Messiaen tem razão em dizer que muitos pássaros são não apenas virtuoses, mas artistas, e o são, antes de mais nada, por seus cantos territoriais (se um ladrão “quer ocupar indevidamente um lugar que não lhe pertence, o verdadeiro proprietário canta, canta tão bem que o outro vai embora (...). Se o ladrão canta melhor, o proprietário lhe cede o lugar”11). O ritornelo é o ritmo e a melodia territorializados, porque tornados expressivos — e tornados expressivos porque territorializantes. Não estamos girando em círculo. Queremos dizer que há um

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Sobre um primado vital e estético do “ter”, cf. Gabriel Tarde, L’opposition universelle, Alcan.

O detalhe das concepções de Messiaen acerca dos cantos de pássaros, sua avaliação de suas qualidades estéticas, seus métodos, seja para reproduzi-los, seja para deles utilizar-se como de um material, encontra-se em Claude Samuel, Entretiens avec Olivier Messiaen (Belfond) e Antoine Goléa, Rencontres avec Olivier Messiaen (Julliard). Sobre por que Messiaen não se utiliza de gravador nem de sonógrafo habitual aos ornitólogos, cf. principalmente Samuel, pp. 111-114. 11

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automovimento das qualidades expressivas. A expressividade não se reduz aos efeitos imediatos de um impulso que desencadeia uma ação num meio: tais efeitos são impressões ou emoções subjetivas mais do que expressões (como a cor momentânea que toma um peixe de água doce sob tal impulso). As qualidades expressivas, ao contrário, como as cores dos peixes de recifes de coral, são auto-objetivas, isto é, encontram uma objetividade no território que elas traçam. Qual é este movimento objetivo? O que uma matéria faz como matéria de expressão? Ela é primeiramente cartaz ou placa, mas não fica por aí. Ela passa por aí, e é só. Mas a assinatura vai tornar-se estilo. Com efeito, as qualidades expressivas ou matérias de expressão entram em relações móveis umas com as outras, as quais vão “exprimir” a relação do território que elas traçam com o meio interior dos impulsos e com o meio exterior das circunstâncias. Ora, exprimir não é pertencer; há uma autonomia da expressão. De um lado, as qualidades expressivas estabelecem entre si relações internas que constituem motivos territoriais: ora estes sobrepujam os impulsos internos, ora se sobrepõem a eles, ora fundem um impulso no outro, ora passam e fazem passar de um impulso a outro, ora inserem-se entre os dois, mas eles próprios não são “pulsados”. Ora esses motivos não pulsados aparecem de uma forma fixa, ou dão a impressão de aparecer assim, mas ora também os mesmos motivos, ou outros, têm uma velocidade e uma articulação variáveis; e é tanto sua variabilidade quanto sua fixidez que os tornam independentes das pulsões que eles combinam ou neutralizam. “De nossos cães, sabemos que eles executam com paixão os movimentos de farejar, levantar, correr, acossar, abocanhar e sacudir até a morte uma presa imaginária, sem ter fome.” Ou a dança do Esgana-gata, seu ziguezague é um motivo onde o zigue esposa uma pulsão agressiva em direção ao parceiro, o zague uma pulsão sexual em direção ao ninho, mas onde o zigue e o zague são diversamente acentuados, e mesmo diversamente orientados. Por outro lado, as qualidades expressivas entram também em outras relações internas que fazem contrapontos territoriais: desta vez, é a maneira pela qual elas constituem, no território, pontos que tomam em contraponto as circunstâncias do meio externo. Por exemplo, um inimigo se aproxima, ou irrompe, ou então a chuva começa a cair, o sol se levanta, o sol se põe... Ainda aqui os pontos ou contrapontos têm sua autonomia, de fixidez ou de variabilidade, relativamente às circunstâncias do meio externo cuja relação com o território eles exprimem, pois essa relação pode estar dada sem que as circunstâncias o estejam, assim como a relação com os impulsos pode

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estar dada sem que o impulso o esteja. Mesmo quando os impulsos e as circunstâncias estão dados, a relação é original relativamente àquilo que ela relaciona. As relações entre matérias de expressão exprimem relações do território com os impulsos internos, com as circunstâncias externas: elas têm uma autonomia na própria expressão. Na verdade, os motivos e os contrapontos territoriais exploram as potencialidades do meio, interior ou exterior. Os etólogos cercaram o conjunto destes fenômenos com o conceito de “ritualização”, e mostraram a ligação dos rituais animais com o território. Mas esta palavra não convém necessariamente a esses motivos não pulsados, a esses contrapontos não localizados; ela não dá conta nem de sua variabilidade nem de sua fixidez. Pois não é um ou outro, fixidez ou variabilidade, mas certos motivos ou pontos só são fixos se outros são variáveis, ou eles só são fixados numa ocasião para serem variáveis numa outra. Seria preciso dizer, de preferência, que os motivos territoriais formam rostos ou personagens rítmicos e que os contrapontos territoriais formam paisagens melódicas. Há personagem rítmico quando não nos encontramos mais na situação simples de um ritmo que estaria associado a um personagem, a um sujeito ou a um impulso: agora, é o próprio ritmo que é todo o personagem, e que, enquanto tal, pode permanecer constante, mas também aumentar ou diminuir, por acréscimo ou subtração de sons, de durações sempre crescentes e decrescentes, por amplificação ou eliminação que fazem morrer e ressuscitar, aparecer e desaparecer. Da mesma forma, a paisagem melódica não é mais uma melodia associada a uma paisagem, é a própria melodia que faz a paisagem sonora, tomando em contraponto todas as relações com uma paisagem virtual. E por aí que saímos do estágio da placa: pois se cada qualidade expressiva, se cada matéria de expressão considerada em si mesma é uma placa ou um cartaz, nem por isso esta consideração deixa de ser abstrata. As qualidades expressivas entram em relações variáveis ou constantes umas com as outras (é o que fazem as matérias de expressão), para constituir não mais placas que marcam um território, mas motivos e contrapontos que exprimem a relação do território com impulsos interiores ou circunstâncias exteriores, mesmo que estes não estejam dados. Não mais assinaturas, mas um estilo. O que distingue objetivamente um pássaro músico de um pássaro não-músico é precisamente essa aptidão para os motivos e para os contrapontos que, variáveis ou mesmo constantes, fazem das qualidades expressivas outra coisa que um cartaz, fazem delas um estilo, já que articulam o ritmo e harmonizam a melodia. Pode-se dizer então que o pássaro músico passa da

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tristeza para a alegria, ou que ele saúda o nascer do sol, ou que, para cantar, ele próprio se coloca em perigo, ou que ele canta melhor do que um outro, etc. Nenhuma dessas fórmulas comporta o menor perigo de antropomorfismo, nem implica a menor interpretação. Seria mais um geomorfismo. E no motivo e no contraponto que é dada a relação com a alegria e a tristeza, com o sol, com o perigo, com a perfeição, mesmo se o termo de cada uma dessas relações não está dado. É no motivo e no contraponto que o sol, a alegria ou a tristeza, o perigo, tornam-se sonoros, rítmicos ou melódicos12. A música do homem também passa por aí. Para Swann, amador de arte, a pequena frase de Vinteuil age frequentemente como uma placa associada à paisagem do bosque de Boulogne, ao rosto e ao personagem de Odette: é como se ela trouxesse para Swann a segurança de que o bosque de Boulogne foi efetivamente seu território e Odette sua posse. Há muita arte já nesta maneira de ouvir a música. Debussy criticava Wagner comparando os leitmotiv a marcos de sinalização que indicariam as circunstâncias ocultas de uma situação, os impulsos secretos de um personagem. E é assim, num nível ou em certos momentos. Mas quanto mais a obra se desenvolve, mais os motivos entram em conjunção, mais conquistam seu próprio plano, mais tomam autonomia em relação à ação dramática, aos impulsos, às situações, mais eles são independentes dos personagens e das paisagens, para tornarem-se eles próprios paisagens melódicas, personagens rítmicos que não param de enriquecer suas relações internas. Então os motivos podem permanecer relativamente constantes ou, ao contrário, aumentar ou diminuir, crescer e decrescer, variar de velocidade de desenvolvimento: nos dois casos eles pararam de ser pulsados e localizados; mesmo as constantes o são pela variação e endurecem mais ainda por serem provisórias e acabam por valorizar essa variação contínua à qual resistem 13. Proust, precisamente, foi um dos primeiros a destacar esta vida do motivo wagneriano: ao invés de o motivo estar ligado a um personagem que aparece, é cada aparição do motivo que constitui ela própria um personagem rítmico, na “plenitude de uma música que efetivamente tantas músicas preenchem, e da qual cada uma delas é um ser”. E não é por acaso que o aprendizado de

Sobre todos estes pontos, cf. Claude Samuel, Entretiens avec Olivier Messiaen, cap. IV, e, sobre a noção de “personagem rítmico”, pp. 70-74. 12

13

Pierre Boulez, “Le temps re-cherché”, in Das Rbeingold, Bayreuth, I 976, pp. 5-15.

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La Recherche persegue uma descoberta análoga a propósito das pequenas frases de Vinteuil: elas não remetem a uma paisagem, mas levam e desenvolvem em si paisagens que não existem mais fora (a branca sonata e o rubro séptuor...). A descoberta da paisagem propriamente melódica e do personagem propriamente rítmico marca este momento da arte no sentido em que ela deixa de ser uma pintura muda numa tabuleta. Talvez não seja a última palavra da arte, mas a arte passou por aí, assim como o pássaro, motivos e contrapontos que formam um autodesenvolvimento, isto é, um estilo. A interiorização da paisagem sonora ou melódica pode encontrar sua forma exemplar em Liszt, não menos que a do personagem rítmico em Wagner. De um modo mais geral, o lied é a arte musical da paisagem, a forma mais pictural da música, a mais impressionista. Mas os dois polos estão tão ligados que, também no lied, a Natureza aparece como personagem rítmico de transformações infinitas. O território é primeiramente a distância crítica entre dois seres de mesma espécie: marcar suas distâncias. O que é meu é primeiramente minha distância, não possuo senão distâncias. Não quero que me toquem, vou grunhir se entrarem em meu território, coloco placas. A distância crítica é uma relação que decorre das matérias de expressão. Trata-se de manter à distância as forças do caos que batem à porta. Maneirismo: o ethos é ao mesmo tempo morada e maneira, pátria e estilo. Vê-se isto nas danças territoriais ditas barrocas, ou maneiristas, onde cada pose, cada movimento instaura tal distância (sarabandas, allemandes, bourrées, gavotas...).14 Há toda uma arte das poses, das posturas, das silhuetas, dos passos e das vozes. Dois esquizofrênicos se falam, ou deambulam, seguindo leis de fronteira e de território que podem nos escapar. É muito importante, quando o caos ameaça, traçar um território transportável e pneumático. Se for preciso, tomarei meu território em meu próprio corpo, territorializo meu corpo: a casa da tartaruga, o eremitério do crustáceo, mas também todas as tatuagens que fazem do corpo um território. A distância crítica não é uma medida, é um ritmo. Mas, justamente, o ritmo é tomado num devir que leva consigo as distâncias entre personagens, para fazer delas personagens rítmicos, eles próprios mais ou menos distantes, mais ou menos combináveis (intervalos).

Sobre o maneirismo e o caos, sobre as danças barrocas, e também sobre a relação da esquizofrenia com o maneirismo e as danças, cf. Evelyne Sznycer, “Droit de suite baroque”, in Schizophrénie et art, de Léo Navratil, Ed. Complexe. 14

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Dois animais do mesmo sexo e de uma mesma espécie se afrontam; o ritmo de um “cresce” quando ele se aproxima de seu território ou do centro desse território, o ritmo do outro decresce quando ele se afasta do seu, e entre os dois, nas fronteiras, uma constante oscilatória se estabelece: um ritmo ativo, um ritmo sofrido, um ritmo testemunha15? Ou então o animal entreabre seu território ao parceiro do outro sexo: forma-se um personagem rítmico complexo, em duos, cantos alternados ou antifônicos, como nas pegas africanas. Mais do que isso, é preciso considerar simultaneamente dois aspectos do território: ele não só assegura e regula a coexistência dos membros de uma mesma espécie, separando-os, mas torna possível a coexistência de um máximo de espécies diferentes num mesmo meio, especializando-os. É ao mesmo tempo que os membros de uma mesma espécie compõem personagens rítmicos e que as espécies diversas compõem paisagens melódicas; as paisagens vão sendo povoadas por personagens e estes vão pertencendo a paisagens. Assim acontece com a Chronochromie, de Messiaen, com dezoito cantos de pássaros formando personagens rítmicos autônomos e realizando, ao mesmo tempo, uma extraordinária paisagem em contrapontos complexos, acordes subentendidos ou inventados. A arte não espera o homem para começar, podendo-se até mesmo perguntar se ela aparece ao homem só em condições tardias e artificiais. Observou-se várias vezes que a arte humana, por muito tempo, permanecia tomada nos trabalhos e ritos de outra natureza. No entanto, esta observação talvez tenha tão pouco alcance quanto a que faria a arte começar com o homem. Com efeito, é bem verdade que num território realizam-se dois efeitos notáveis: uma reorganização das funções, um reagrupamento das forças. De um lado, as atividades funcionais não são territorializadas sem adquirir um novo aspecto (criação de novas funções como construir uma habitação, transformação de antigas funções, como a agressividade que muda de natureza tornando-se intraespecífica). Há aqui como que o tema nascente da especialização ou da profissão: se o ritornelo territorial atravessa tão frequentemente ritornelos profissionais, é que as profissões supõem que atividades funcionais diversas se exerçam num mesmo meio, mas também que a mesma atividade não tenha outros agentes num mesmo território. Ritornelos profissionais cruzam-se no meio, como os gritos dos feirantes, mas cada um marca um território onde

Lorenz, L’agression, p.46. Sobre os três personagens rítmicos definidos respectivamente como ativo, passivo e testemunha, cf. Messiaen e Goléa, pp.90-91. 15

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não pode se exercer a mesma atividade nem ecoar o mesmo grito. No animal como no homem, são as regras de distância crítica para o exercício da concorrência: meu cantinho de calçada. Em suma, há uma territorialização das funções que é a condição de seu surgimento como “trabalhos” ou “ofícios”. É nesse sentido que a agressividade intraespecífica ou especializada é necessariamente primeiro uma agressividade territorializada, que não explica o território, porque dele decorre. Com isso, se reconhecerá que no território todas as atividades adquirem um aspecto prático novo. Mas isto não é razão para concluir que a arte não existe aí por si mesma, porque ela está presente no fator territorializante que condiciona a emergência da função-trabalho. O mesmo pode ser dito quando consideramos o outro efeito da territorialização. Este outro efeito, que não remete mais a trabalhos, mas a ritos ou religiões, consiste no seguinte: o território reagrupa todas as forças dos diferentes meios num só feixe constituído pelas forças da terra. É só no mais profundo de cada território que se faz a atribuição de todas as forças difusas à terra como receptáculo ou base. “Sendo o meio ambiente vivido como uma unidade, só dificilmente é que se poderia distinguir nessas intuições primárias o que pertence à terra propriamente dita do que é apenas manifestado através dela, montanhas, florestas, água, vegetação.” As forças do ar ou da água, o pássaro e o peixe, tornam-se assim forças da terra. Mais do que isso, se o território em extensão separa as forças interiores da terra e as forças exteriores do caos, não acontece o mesmo em “intensão”, em profundidade, onde os dois tipos de forças se enlaçam e se esposam num combate que não tem senão a terra como crivo e como o que está em jogo. No território, há sempre um lugar onde todas as forças se reúnem, árvore ou arvoredo, num corpo-a-corpo de energias. A terra é esse corpo-a-corpo. Esse centro intenso está ao mesmo tempo no próprio território, mas também fora de vários territórios que convergem em sua direção ao fim de uma imensa peregrinação (donde as ambiguidades do “natal”). Nele ou fora dele, o território remete a um centro intenso que é como a pátria desconhecida, fonte terrestre de todas as forças, amistosas ou hostis, e onde tudo se decide16. Portanto, devemos também aqui reconhecer que a religião, comum ao homem e ao

Cf. Mircea Eliade, Traité d’histoire des religions, Payot. Sobre “a intuição primária da terra como forma religiosa”, pp. 213 ss.; sobre o centro do território, pp. 324 ss. Eliade assinala bem que o centro está ao mesmo tempo fora do território e é muito difícil de atingir, mas que também está no território e ao nosso alcance imediato. 16

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animal, só ocupa o território porque ela depende do fator bruto estético, territorializante, como sua condição. E este fator que organiza as funções de meio em trabalhos e, junto com isso, liga as forças de caos em ritos e religiões, forças da terra. É ao mesmo tempo que as marcas territorializantes desenvolvem-se em motivos e contrapontos, reorganizam as funções, reagrupam as forças. Mas, com isso, o território já desencadeia algo que irá ultrapassá-lo. Somos sempre reconduzidos a esse “momento”: o devir-expressivo do ritmo, a emergência das qualidades-próprias expressivas, a formação de matérias de expressão que se desenvolvem em motivos e contrapontos. Seria preciso então uma noção, ainda que de aparência negativa, para captar esse momento, bruto ou fictício. O essencial está na defasagem que se constata entre o código e o território. O território surge numa margem de liberdade do código, não indeterminada, mas determinada de outro modo. Se é verdade que cada meio tem seu código, e que há incessantemente transcodificação entre os meios, parece que o território, ao contrário, se forma no nível de certa descodificação. Os biólogos sublinharam a importância dessas margens determinadas, mas que não se confundem com mutações, isto é, com mudanças interiores ao código: trata-se desta vez de gens duplicados ou de cromossomas em número excessivo, que não são tomados no código genético; são funcionalmente livres e oferecem uma matéria livre para a variação17. Mas que tal matéria possa criar novas espécies, independentemente de mutações, permanece muito improvável se acontecimentos de uma outra ordem não se juntarem a isso, capazes de multiplicar as interações do organismo com seus meios. Ora, a territorialização é precisamente um fator desse tipo, fator que se estabelece nas margens do código de uma mesma espécie e que dá aos representantes separados desta espécie a possibilidade de se diferenciar. É porque a territorialidade está em defasagem em relação ao código da espécie que ela pode induzir indiretamente novas espécies. Por toda parte onde a territorialidade aparece, ela instaura uma distância crítica intraespecífica entre membros de uma mesma espécie; e é em virtude de sua própria defasagem em relação às diferenças específicas que ela se torna um meio de diferenciação indireta, oblíqua. Em todos esses sentidos, a descodificação aparece efetivamente como o “negativo” do território; e a

Os biólogos frequentemente distinguiram dois fatores de transformação: uns, do tipo mutações, mas os outros, processos de isolamento ou de separação, que podem ser genéticos, geográficos ou até psíquicos; a territorialidade seria um fator do segundo tipo. Cf. Cuénot, L’espèce, Ed. Doin. 17

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mais evidente distinção entre os animais de território e os animais sem território é que os primeiros são muito menos codificados que os outros. Falamos suficientemente mal do território para avaliar agora todas as criações que tendem para ele, que se fazem nele ou que saem dele, que sairão dele. Fomos das forças do caos às forças da terra. Dos meios ao território. Dos ritmos funcionais ao devir-expressivo do ritmo. Dos fenômenos de transcodificação aos fenômenos de descodificação. Das funções de meio às funções territorializadas. Trata-se menos de evolução do que de passagem, de pontes, de túneis. Já os meios não paravam de passar uns pelos outros. Mas eis que os meios atravessam o território. As qualidades expressivas, aquelas que chamamos de estéticas, certamente não são qualidades “puras”, nem simbólicas, mas qualidades-próprias, isto é apropriativas, passagens que vão de componentes de meio a componentes de território. O território é, ele próprio, lugar de passagem. O território é o primeiro agenciamento, a primeira coisa que faz agenciamento, o agenciamento é antes territorial. Mas como ele já não estaria atravessando outra coisa, outros agenciamentos? É por isso que não podíamos falar da constituição do território sem já falar de sua organização interna. Não podemos descrever o infra-agenciamento (cartazes ou placas) sem já estarmos no intra-agenciamento (motivos e contrapontos). Não podemos tampouco dizer algo sobre o intra-agenciamento sem já estarmos no caminho que nos leva a outros agenciamentos, ou a outro lugar. Passagem do Ritornelo. O ritornelo vai em direção ao agenciamento territorial, instala-se nele ou sai dele. Num sentido geral, chamamos de ritornelo todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais (há ritornelos motores, gestuais, ópticos, etc). Num sentido restrito, falamos de ritornelo quando o agenciamento é sonoro ou “dominado” pelo som — mas por que esse aparente privilégio? Estamos agora no intra-agenciamento. Ora, ele apresenta uma organização muito rica e complexa. Ele não só compreende o agenciamento territorial, mas também as funções agenciadas, territorializadas. Seja os Trogloditidae, família de pássaros: o macho toma posse de seu território e produz um “ritornelo de caixa de música”, como um aviso contra os possíveis intrusos; ele próprio constrói ninhos nesse território, às vezes uma dúzia; quando chega uma fêmea, ele se coloca na frente do ninho, a convida a visitá-lo, deixa suas asas penderem,

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baixa a intensidade de seu canto que se reduz então a um só trinado18. Parece que a função de nidificação é fortemente territorializada, pois os ninhos são preparados pelo macho, sozinho, antes da chegada da fêmea, que não faz senão visitá-los e terminá-los; a função de “corte” é igualmente territorializada, mas num grau menor, pois o ritornelo territorial muda de intensidade para se fazer sedutor. No intra-agenciamento, intervém toda espécie de componentes heterogêneos: não só as marcas do agenciamento que reúnem materiais, cores, odores, sons, posturas, etc, mas diversos elementos deste ou daquele comportamento agenciado que entram num motivo. Por exemplo, um comportamento de parada nupcial se compõe de dança, estalidos com o bico, exibição de cores, postura do pescoço alongado, gritos, alisamento das penas, reverências, ritornelo... Uma primeira questão seria a de saber o que mantém junto todas essas marcas territorializantes, esses motivos territoriais, essas funções territorializadas, num mesmo intra-agenciamento. É uma questão de consistência: o “manter-se junto” de elementos heterogêneos. Eles não constituem inicialmente mais do que um conjunto vago, um conjunto discreto, que tomará consistência... Mas uma outra questão parece interromper esta primeira, ou cruzá-la, pois em muitos casos uma função agenciada, territorializada, adquire independência suficiente para formar ela própria um novo agenciamento, mais ou menos desterritorializado, em vias de desterritorialização. Não há necessidade de deixar efetivamente o território para entrar nesta via; mas aquilo que há pouco era uma função constituída no agenciamento territorial, torna-se agora o elemento constituinte de um outro agenciamento, o elemento de passagem a um outro agenciamento. Como no amor cortês, uma cor deixa de ser territorial para entrar num agenciamento de “corte”. Há uma abertura do agenciamento territorial para um agenciamento de corte, ou para um agenciamento social autonomizado. É o que acontece quando se dá um reconhecimento próprio do parceiro sexual, ou dos membros do grupo, que não se confunde mais com o reconhecimento do território: diz-se então que o parceiro é um Tier mit der Heimvalenz, “um animal valendo pelo em-casa”. No conjunto dos grupos ou dos casais, poder-se-á então distinguir grupos e casais de meio, sem reconhecimento individual; grupos e casais territoriais, onde o reconhecimento só se exerce no território; enfim, grupos sociais e casais amorosos, quando o reconhecimento se faz independentemente do

18

Paul Géroudet, Les passereaux, Delachaux et Niestlé, t. II, pp. 88-94.

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lugar19. A corte, ou o grupo, não fazem mais parte do agenciamento territorial, mas há autonomização de um agenciamento de corte ou de grupo — mesmo que se permaneça no interior do território. Inversamente, no seio do novo agenciamento, uma reterritorialização se faz, no membro do casal ou nos membros do grupo que valem-por (valência). Tal abertura do agenciamento territorial para outros agenciamentos pode ser analisada em detalhe, e varia muito. Por exemplo, quando não é o macho que faz o ninho, quando o macho se contenta em transportar os materiais ou imitar a construção, como entre os tentilhões-da-Austrália, ora ele corteja a fêmea com uma palhinha no bico (gênero Bathilda), ora ele utiliza um outro material que não o do ninho (gênero Neochmia), ora o galhinho só serve para as fases iniciais da corte ou mesmo antes (gênero Aibemosyne ou Lonchura), ora o galho é ciscado sem ser oferecido (gênero Emblema)20. Pode-se sempre dizer que esses comportamentos de “galhinho” não passam de arcaísmos, ou vestígios de um comportamento de nidificação. Mas é a noção de comportamento que se revela insuficiente em relação à de agenciamento, pois quando o ninho já não é feito pelo macho, a nidificação deixa de ser um componente de agenciamento territorial, decolando de certa forma do território; e mais, a própria corte, que precede então a nidificação, tornase um agenciamento relativamente autonomizado. E a matéria de expressão “galhinho” age como um componente de passagem entre o agenciamento territorial e o agenciamento de corte. Que o galhinho, então, tenha uma função cada vez mais rudimentar em certas espécies, que ele tenda a anular-se numa série considerada, não basta para fazer dele um vestígio, e menos ainda um símbolo. Jamais uma matéria de expressão é vestígio ou símbolo. O galhinho é um componente desterritorializado ou em vias de desterritorialização. Não é um arcaísmo, nem um objeto parcial, ou transicional. E um operador, um vetor. E um conversor de agenciamento. E enquanto componente de passagem, de um agenciamento a outro, que o galhinho se anula. E o que confirma este ponto de vista, é que ele não tende a anular-se sem que um componente de alternância venha tomar seu lugar e ganhe uma importância cada vez maior: a saber, o ritornelo, que

Em seu livro L’agression, Lorenz distinguiu bem os “bandos anônimos”, do tipo cardume de peixes, que formam blocos de meio; os “grupos locais”, onde o reconhecimento se faz somente dentro do território e diz respeito no máximo aos “vizinhos”; enfim, as sociedades fundadas sobre um “laço” autônomo. 19

20

K. Immelmann, Beiträge zu einer vergleichenden Biologie australiscber Prachtfinken, Zool. Jahrb. Syst., 90, 1962.

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não é mais só territorial, mas devém amoroso e social e, consequentemente, muda21. Saber por que o componente sonoro “ritornelo” tem, na constituição de novos agenciamentos, uma valência mais forte do que o componente gestual “galhinho”, é uma questão que só poderemos considerar mais tarde. O importante por ora é constatar essa formação de novos agenciamentos no agenciamento territorial, esse movimento que vai do intra-agenciamento a interagenciamentos, com componentes de passagem e de alternância. Abertura inovadora do território em direção à fêmea, ou então em direção ao grupo. A pressão seletiva passa por interagenciamentos. E como se forças de desterritorialização trabalhassem o próprio território, e nos fizessem passar do agenciamento territorial a outros tipos de agenciamento, de corte ou de sexualidade, de grupo ou de sociedade. O galhinho e o ritornelo são dois agentes dessas forças, dois agentes de desterritorialização. O agenciamento territorial não para de atravessar outros agenciamentos. Assim como o infra-agenciamento não é separável do intra-agenciamento, tampouco o intraagenciamento o é dos interagenciamentos, e, no entanto, as passagens não são necessárias; elas se fazem “dependendo do caso”. A razão disso é simples: o intra-agenciamento, o agenciamento territorial, territorializa funções e forças, sexualidade, agressividade, gregarismo, etc, e os transforma, territorializando-os. Mas essas funções e forças territorializadas podem ganhar com isso uma autonomia que as faz cair em outros agenciamentos, compor outros agenciamentos desterritorializados. A sexualidade pode aparecer como uma função territorializada no intraagenciamento; mas ela pode igualmente traçar uma linha de desterritorialização que descreve um outro agenciamento; donde as relações muito variáveis sexualidade-território, como se a sexualidade tomasse “sua distância”... A profissão, o ofício, a especialidade implicam atividades territorializadas, mas podem também decolar do território para construírem em torno de si, e entre profissões, um novo agenciamento. Um componente territorial ou territorializado pode

Eibl-Eibesfeidt, Ethologie, p. 201: “A partir do transporte de materiais para a construção do ninho, no comportamento de corte do macho, desenvolveram-se ações empregando galhinhos; em certas espécies, estas tornaram-se cada vez mais rudimentares; ao mesmo tempo, o canto desses pássaros, que primitivamente servia para delimitar o território, sofre uma mudança de função quando esses pássaros tornam-se muito sociáveis. Os machos, em substituição à corte com oferenda de galhinhos, cantam suavemente, bem perto da fêmea”. No entanto, Eibl-Eibesfeldt interpreta o comportamento de galhinho como um “vestígio”. 21

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pôr-se a germinar, a produzir: este é a tal ponto o caso do ritornelo que talvez seja preciso chamar de ritornelo tudo o que se encontra neste caso. Este equívoco entre a territorialidade e a desterritorialização é o equívoco do Natal. Ele pode ser melhor ainda compreendido se consideramos que o território remete a um centro intenso no mais profundo de si; mas, precisamente, como vimos, este centro intenso pode estar situado fora do território, no ponto de convergência de territórios muito diferentes ou muito afastados. O Natal está fora. Podemos citar um certo número de casos célebres e pertubadores, mais ou menos misteriosos, que ilustram prodigiosas decolagens de território, e nos fazem assistir a um vasto movimento de desterritorialização tomando o território por inteiro, atravessando-o de cabo a rabo: 1) as peregrinações às fontes como as dos salmões; 2) os agrupamentos supranumerários, como os dos gafanhotos, dos tentilhões, etc. (dezenas de milhares de tentilhões perto de Thoune em 19501 951); 3) as migrações solares ou magnéticas; 4) as longas marchas, como as das lagostas22 Sejam quais forem as causas de cada um desses movimentos, vê-se efetivamente que a natureza do movimento muda. Não basta mais nem mesmo dizer que há interagenciamento, passagem de um agenciamento territorial a um outro tipo; diríamos antes que se sai de todo agenciamento, que se extrapola as capacidades de todo agenciamento possível, para entrar num outro plano. E, com efeito, não é mais um movimento nem um ritmo de meio, tampouco um movimento ou um ritmo territorializantes ou territorializados; o que há agora, nesses movimentos mais amplos, é Cosmo.

Cf. L’Odyssée sous-marine de l’equipe Cousteau, film n” 36, commentaire Cousteau-Diolé,La marche des langoustes (L.R.A).: acontece às lagostas de espinho, ao longo da costa norte do Yucatán, de deixarem seus territórios. Elas se juntam primeiro em pequenos grupos, antes da primeira tempestade de inverno, e antes que um signo seja detectável na escala dos aparelhos humanos. Depois, quando a tempestade chega, elas formam longas procissões, em fila indiana, com um chefe que se reveza, e uma retaguarda (velocidade de 1 km/h em 100 km ou mais). Essa migração não parece ligada à desova, que só terá lugar seis meses mais tarde. Hernnkind, especialista em lagostas, supõe tratar-se de um “vestígio” do último período glacial (há mais de dez mil anos). Cousteau inclina-se para uma interpretação mais atual, mesmo que tenha que invocar a premonição de um novo período glacial. Com efeito, a questão de fato é que o agenciamento territorial das lagostas abrese aqui excepcionalmente para um agenciamento social; e que este agenciamento social está em relação com forças do cosmo, ou como diz Cousteau, com “as pulsações da terra”. Em todo caso “o enigma permanece inteiro”: ainda mais que essa procissão de lagostas é ocasião de um massacre por parte dos pescadores; além disso, esses animais não podem ser marcados, por causa da muda das carapaças. 22

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Os mecanismos de localização não deixam de ser extremamente precisos, mas a localização tornou-se cósmica. Não são mais as forças territorializadas, reunidas em forças da terra, são as forças reencontradas ou liberadas de um Cosmo desterritorializado. Na migração, o sol não é mais o sol terrestre que reina no território, mesmo aéreo; é o sol celeste do Cosmo, como nas duas Jerusalém, Apocalipse. Mas fora desses casos grandiosos, onde a desterritorialização se faz absoluta sem nada perder de sua precisão (pois ela esposa variáveis cósmicas), já é preciso constatar que o território não para de ser percorrido por movimentos de desterritorialização relativa, inclusive no mesmo lugar, onde se passa do intra-agenciamento a interagenciamentos, sem que haja necessidade de deixar o território, nem de sair dos agenciamentos para esposar o Cosmo. Um território está sempre em vias de desterritorialização, ao menos potencial, em vias de passar a outros agenciamentos, mesmo que o outro agenciamento opere uma reterritorialização (algo que “vale” pelo em-casa)... Vimos que o território se constituía numa margem de descodificação que afeta o meio; vemos que uma margem de desterritorialização afeta o próprio território. É uma série de desengates. O território não é separável de certos coeficientes de desterritorialização, avaliáveis em cada caso, que fazem variar as relações de cada função territorializada com o território, mas também as relações do território com cada agenciamento desterritorializado. E é a mesma “coisa” que aparece aqui como função territorializada, tomada no intraagenciamento, e lá como agenciamento autônomo ou desterritorializado, interagenciamento. É por isso que uma classificação dos ritornelos poderia se apresentar assim: 1) os ritornelos territoriais, que buscam, marcam, agenciam um território; 2) os ritornelos de funções territorializadas, que tomam uma função especial no agenciamento (a Cantiga de Ninar, que territorializa o sono e a criança, a de Amor, que territorializa a sexualidade e o amado, a de Profissão, que territorializa o ofício e os trabalhos, a de Mercado, que territorializa a distribuição e os produtos..).; 3) os mesmos, enquanto marcam agora novos agenciamentos, passam para novos agenciamentos, por desterritorialização-reterritorialização (as parlendas seriam um caso muito complicado: são ritornelos territoriais, que não se canta da mesma maneira de um bairro para outro, às vezes até de uma rua para outra; elas distribuem papéis e funções de jogo no agenciamento territorial; mas também fazem o território passar pelo agenciamento de jogo que tende, ele próprio, a devir

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autônomo23); 4) os ritornelos que colhem ou juntam as forças, seja no seio do território, seja para ir para fora (são ritornelos de afrontamento, ou de partida, que engajam às vezes um movimento de desterritorialização absoluta “Adeus, eu parto sem olhar para trás”. No infinito, esses ritornelos devem reencontrar as canções de Moléculas, os vagidos de recém-nascidos dos Elementos fundamentais, como diz Millikan. Eles deixam de ser terrestres para tornarem-se cósmicos: quando o Nomo religioso desabrocha e se dissolve num Cosmo panteísta molecular; quando o canto dos pássaros dá lugar às combinações da água, do vento, das nuvens e das brumas. “Fora o vento, a chuva...” O Cosmo como imenso ritornelo desterritorializado). O problema da consistência concerne efetivamente a maneira pela qual os componentes de um agenciamento territorial se mantêm juntos. Mas concerne também a maneira pela qual se mantêm os diferentes agenciamentos, com componentes de passagem e de alternância. Pode até ser que a consistência só encontre a totalidade de suas posições num plano propriamente cósmico, onde são convocados todos os disparates e heterogêneos. No entanto, cada vez que heterogêneos se mantêm juntos num agenciamento ou em interagenciamentos, já se coloca um problema de consistência, em termos de coexistência ou de sucessão, e os dois ao mesmo tempo. Mesmo num agenciamento territorial, é talvez o componente o mais desterritorializado, o vetor desterritorializante, como o ritornelo, que garante a consistência do território. Se levantamos a questão geral “O que faz manter junto?”, parece que a resposta mais clara, mais fácil, é dada por um modelo arborescente, centralizado, hierarquizado, linear, formalizante. Por exemplo, o esquema de Tinbergen, que mostra um encadeamento codificado de formas espaço-temporais no sistema nervoso central: um centro superior funcional entra automaticamente em ação e desencadeia um comportamento de apetência, à procura de estímulos específicos (centro de migração); por intermédio dos estímulos, um segundo centro até então inibido vê-se liberado, desencadeando um novo comportamento de apetência (centro de território); depois, outros centros subordinados,

O melhor livro de palendas, e sobre as palendas, nos parece ser Les comptines de langue française, com os comentários de Jean Beaucomont, Franck Guibat e col., Seghers. O caráter territorial aparece num exemplo privilegiado como “Pimpanicaille”, que tem duas versões distintas em Gruyères, de acordo com os “os dois lados da rua” (pp. 27-28); mas só há palenda propriamente dita quando há distribuição de papéis especializados num jogo, e formação de um agenciamento autônomo de jogo que reorganiza o território. 23

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de combate, de nidificação, de corte..., até os estímulos que desencadeiam os atos de execução correspondentes24. Tal representação, no entanto, é construída sobre binaridades demasiadamente simples: inibição-desencadeamento, inatoadquirido, etc. Os etólogos têm uma grande vantagem sobre os etnólogos: eles não caíram no perigo estrutural que divide um “terreno” em formas de parentesco, de política, de economia, de mito, etc. Os etólogos preservaram a integridade de um certo “terreno” não dividido. Mas, de tanto orientá-lo, ainda assim, com eixos de inibição-desencadeamento, de inato-adquirido, eles correm o risco de reintroduzir almas ou centros em cada lugar e a cada etapa de encadeamento. É por isso que até os autores que insistem muito no papel do periférico e do adquirido no nível dos estímulos desencadeadores não derrubam realmente o esquema linear arborescente, mesmo quando invertem os sentidos das flechas. Parece-nos mais importante destacar alguns fatores aptos a sugerir um esquema totalmente distinto, em favor de um funcionamento rizomático e não mais arborificado, que não passaria mais por estes dualismos. Em primeiro lugar, o que chamamos de centro funcional coloca em jogo não uma localização, mas a repartição de toda uma população de neurônios selecionados no conjunto do sistema nervoso central, como numa “rede de fiação”. Consequentemente, no conjunto deste sistema considerado por si mesmo (experiências em que as vias aferentes são seccionadas), falar-se-á menos do automatismo de um centro superior do que de coordenação entre centros, e de agrupamentos celulares ou de populações moleculares operando estes acoplamentos: não há uma forma ou uma boa estrutura que se impõe, nem de fora nem de cima, mas antes uma articulação de dentro, como se moléculas oscilantes, osciladores, passassem de um centro heterogêneo a outro, mesmo que para assegurar a dominância de um25. Isso exclui evidentemente a

24

Tinbergen, The Study of Instinct, Oxford University Press.

De um lado, as experiências de W.R. Hess mostraram que havia não tal centro cerebral, mas pontos, concentrados numa zona, disseminados numa outra, capazes de provocar o mesmo efeito; inversamente, o efeito pode mudar de acordo com a duração e a intensidade da excitação do mesmo ponto. De outro lado, as experiências de Von Holst com os peixes cujas vias aferentes dos nervos são seccionadas mostram a importância de coordenações nervosas centrais nos ritmos de barbatanas: interações que o esquema de Tinbergen só considera secundariamente. No entanto, é no problema dos ritmos circadianos que mais se impõe à hipótese de uma “população de osciladores”, de uma “matilha de moléculas oscilantes”, que formariam sistemas de articulações pelo interior, independentemente de uma medida comum. Cf. A. Reinberg, “La chronobiologie”, in Sciences, I, 1970; T. van den Driessche e A. Reinberg, “Rythmes biologiques”, in Encyclopedia Universalis, t. XIV, p. 572: “Não parece possível reduzir o mecanismo da ritmicidade circadiana a uma sequência simples de processos elementares”. 25

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relação linear de um centro com o outro, em proveito de pacotes de relações pilotadas pelas moléculas: a interação, a coordenação, pode ser positiva ou negativa (desencadeamento ou inibição); ela nunca é direta como numa relação linear ou numa reação química, mas se faz sempre entre moléculas com duas cabeças ao menos, e cada centro separadamente26. Há toda uma “maquínica” biológico-comportamental, todo um engineering molecular que deve nos permitir compreender melhor a natureza dos problemas de consistência. O filósofo Eugène Dupréel havia proposto uma teoria da consolidação; ele mostrava que a vida não ia de um centro a uma exterioridade, mas de um exterior a um interior, ou antes de um conjunto vago ou discreto à sua consolidação. Ora, esta implica três coisas: que haja não um começo de onde derivaria uma sequência linear, mas densificações, intensificações, reforços, injeções, recheaduras, como outros tantos atos intercalares (“não há crescimento senão por intercalação”); em segundo lugar, e não é o contrário, é preciso que haja acomodação de intervalos, repartição de desigualdades, a tal ponto que, para consolidar, às vezes é preciso fazer um buraco; em terceiro lugar, superposição de ritmos disparatados, articulação por dentro de uma inter-ritmicidade, sem imposição de medida ou de cadência27 A consolidação não se contenta em vir depois; ela é criadora. É que o começo não começa senão entre dois, intermezzo. A consistência é precisamente a consolidação, o ato que produz o consolidado, tanto o de sucessão quanto o de coexistência, com os três fatores: intercalações, intervalos e superposições-articulações. A arquitetura testemunha isso, como arte da morada e do território: se há consolidações depois-de, há também aquelas que são partes constituintes do conjunto, do tipo chave de abóboda. Porém, mais

Jacques Monod, Le hasard et Ia necessite: sobre as interações indiretas e seu caráter não linear, pp. 84-85, 90-91; sobre as moléculas correspondentes, ao menos bicéfalas, pp. 8384; sobre o caráter inibidor ou desencadeador dessas interações, pp. 78-81. Os ritmos circadianos dependeriam também dessas características (cf. quadro in Encyclopedia Universalis). 26

Dupréel elaborou um conjunto de noções originais: “consistência” (relacionado a “precariedade”), “consolidação”, “intervalo”, “intercalação”. Cf. Théorie de Ia consolidatkm, La cause et Vintervalle, La amsistance et Ia probabilité objccive, Bruxelas; Lsquisse d’une philosophie des valeurs, P.U.F.; Bachelard recorre a essas noções em La dialcctique de Ia durée. 27

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recentemente, matérias como o concreto deram ao conjunto arquitetônico a possibilidade de se libertar dos modelos arborescentes, que procediam por pilares-árvores, vigasgalhos, abóboda-folhagem. Não só o concreto é uma matéria heterogênea cujo grau de consistência varia com os elementos de mistura, mas o ferro é nele intercalado segundo um ritmo; mais ainda: ele forma nas superfícies autoportadoras um personagem rítmico complexo, no qual as “hastes” têm secções diferentes e intervalos variáveis de acordo com a intensidade e a direção da força a ser captada (armadura e não estrutura). É neste sentido também que a obra musical ou literária tem uma arquitetura: “saturar o átomo”, dizia Virgínia Woolf; ou então, segundo Henry James, é preciso “começar longe, tão longe quanto possível” e proceder por “blocos de matéria trabalhada”. Não se trata mais de impor uma forma a uma matéria, mas de elaborar um material cada vez mais rico, cada vez mais consistente, apto a partir daí a captar forças cada vez mais intensas. O que torna o material cada vez mais rico é aquilo que faz com que heterogêneos mantenham-se juntos sem deixar de ser heterogêneos; o que assim os mantém, são osciladores, sintetizadores intercalares de duas cabeças pelo menos; analisadores de intervalos; sincronizadores de ritmos (a palavra “sincronizador” é ambígua, pois estes sincronizadores moleculares não procedem por medida igualizante ou homogeneizante, e operam de dentro, entre dois ritmos). Não seria a consolidação o nome terrestre da consistência? O agenciamento territorial é um consolidado de meio, um consolidado de espaço-tempo, de coexistência e de sucessão. O ritornelo opera com os três fatores. Mas é preciso que as próprias matérias de expressão apresentem características que tornem possível tal tomada de consistência. Vimos a esse respeito sua aptidão a entrar em relações internas que formam motivos e contrapontos: as marcas territorializantes tornam-se motivos ou contrapontos territoriais, as assinaturas e placas fazem um “estilo”. Elas eram os elementos de um conjunto vago ou discreto; mas consolidam-se, tomam consistência. É nessa medida também que elas têm efeitos, como reorganizar as funções e juntar as forças. Para melhor captar o mecanismo de tal aptidão, podemos fixar algumas condições de homogeneidade e considerar, primeiro, marcas ou matérias de uma mesma espécie: por exemplo, um conjunto de marcas sonoras, o canto de um pássaro. O canto do tentilhão tem normalmente três frases distintas: a primeira, de quatro a quatorze notas, em crescendo e diminuendo de frequência; a segunda, de duas a oito notas, de frequência constante mais baixa que a precedente;

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a terceira, que termina num “floreio” ou num “ornamento” complexo. Ora, do ponto de vista da aquisição, esse canto-pleno (full song) é precedido por um sub-canto (subsong) que, em condições normais, implica efetivamente numa posse da tonalidade geral, da duração de conjunto e do conteúdo das estrofes, e até uma tendência a terminar numa nota mais alta28. Mas a organização em três estrofes, a ordem de sucessão dessas estrofes, o detalhe do ornamento não são dados; diríamos precisamente que o que falta são as articulações de dentro, os intervalos, as notas intercalares, tudo o que faz motivo e contraponto. A distinção do sub-canto e do canto-pleno poderia então ser apresentada assim: o sub-canto como marca ou placa, o canto-pleno como estilo ou motivo e a aptidão para passar de um ao outro, a aptidão de um a consolidar-se no outro. É especialmente óbvio que o isolamento artificial terá efeitos muito diferentes dependendo de ele acontecer antes ou depois da aquisição dos componentes do sub-canto. Mas o que nos ocupa por ora é sobretudo saber o que se passa quando esses componentes desenvolveram-se efetivamente em motivos e contrapontos de canto-pleno. Então, saímos necessariamente das condições de homogeneidade qualitativa que nos tínhamos dado, pois, enquanto permanecemos só nas marcas, as marcas de um gênero coexistem com as de um outro gênero, sem mais: sons coexistem com cores, com gestos, silhuetas de um mesmo animal; ou então, os sons de tal espécie coexistem com os sons de outras espécies, às vezes muito diferentes, mas localmente vizinhas. Ora, a organização de marcas qualificadas em motivos e contrapontos vai necessariamente acarretar uma tomada de consistência, ou uma captura de marcas de uma outra qualidade, uma ramificação mútua de sons-coresgestos, ou então de sons de espécies animais diferentes..., etc. A consistência se faz necessariamente de heterogêneo para heterogêneo: não porque haveria nascimento de uma diferenciação, mas porque os heterogêneos que se contentavam em coexistir ou suceder-se agora estão tomados uns nos outros, pela “consolidação” de sua coexistência e de sua sucessão. É que os intervalos, as intercalações e as articulações, constitutivos de motivos e contrapontos na ordem de uma qualidade expressiva, envolvem também outras qualidades de outra ordem, ou então qualidades da mesma ordem, mas de outro sexo ou até de outra espécie animal. Uma cor

Sobre o canto do tentilhão, e a distinção do sub-song e do full song, cf. Thorpe, Learning and Instinct in Animais, pp. 420426. 28

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vai “responder” a um som. Não há motivos e contrapontos de uma qualidade, personagens rítmicos e paisagens melódicas em tal ordem, sem constituição de uma verdadeira ópera maquínica que reúne as ordens, as espécies e as qualidades heterogêneas. O que chamamos de maquínico é precisamente esta síntese de heterogêneos enquanto tal. Visto que estes heterogêneos são matérias de expressão, dizemos que sua própria síntese, sua consistência ou sua captura, forma um “enunciado”, uma “enunciação” propriamente maquínica. As relações variadas nas quais entram uma cor, um som, um gesto, um movimento, uma posição, numa mesma espécie e em espécies diversas, formam outras tantas enunciações maquínicas. Voltemos ao Scenopoietes, o pássaro mágico ou de ópera. Ele não tem cores vivas (como se houvesse uma inibição). Mas seu canto, seu ritornelo, ouve-se de muito longe (será uma compensação ou, ao contrário, um fator primário?) Ele canta em seu poleiro (singing stick), liana ou ramo, bem acima da arena de exibição que ele preparou (display ground), marcada pelas folhas cortadas e viradas que fazem contraste com a terra. Ao mesmo tempo em que canta, ele descobre a raiz amarela de certas penas sob seu bico: ele se torna visível ao mesmo tempo que sonoro. Seu canto forma um motivo complexo e variado, tecido com suas notas próprias, e com as notas de outros pássaros que ele imita nos intervalos29. Forma-se então um consolidado que “consiste” em sons específicos, sons de outras espécies, tinta das folhas, cor de garganta: o enunciado maquínico ou o agenciamento de enunciação do Scenopoietes. Muitos são os pássaros que “imitam” o canto dos outros. Mas não há certeza de que a imitação seja um bom conceito para fenômenos que variam de acordo com o agenciamento no qual eles entram. O sub-song contém elementos que podem entrar em organizações rítmicas e melódicas distintas daquelas da espécie considerada, e fornecer assim no canto-pleno verdadeiras notas estrangeiras ou acrescentadas. Se alguns pássaros como o tentilhão parecem refratários à imitação, isso acontece porque os sons estrangeiros que sobrevêm eventualmente em seu sub-song são eliminados da consistência do cantopleno. Ao contrário, no caso em que as frases acrescentadas se encontram tomadas no canto-pleno, é talvez porque há um agenciamento interespecífico do tipo parasitismo, mas também porque o próprio agenciamento do pássaro efetua contrapontos de sua melodia. Thorpe não está errado em dizer que há aí um problema de ocupação de frequências,

29

A. J. Marshall, Bower birds, The Clarendon Press, Oxford.

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como nas rádios (aspecto sonoro da territorialidade) 30 . Trata-se menos de imitar um canto que de ocupar frequências correspondentes; pois pode ser vantajoso ora manterse numa zona bem determinada, quando os contrapontos estão assegurados por um outro lugar, ora ao contrário ampliar ou aprofundar a zona para assegurar por si mesmo os contrapontos e inventar os acordes que ficariam difusos, como na Rain-forest, onde encontramos precisamente o maior número de pássaros “imitadores”. Do ponto de vista da consistência, as matérias de expressão não devem ser remetidas apenas a sua aptidão em formar motivos e contrapontos, mas aos inibidores e aos desencadeadores que agem sobre elas, e aos mecanismos inatos ou aprendidos, herdados ou adquiridos que as modulam. Só que o erro da etologia é ficar numa repartição binária desses fatores, mesmo e sobretudo quando se afirma a necessidade de considerar os dois ao mesmo tempo, e de misturá-los em todos os níveis de uma “árvore de comportamentos”. Seria preciso, sobretudo, partir de uma noção positiva capaz de dar conta do caráter muito particular que tomam o inato e o adquirido num rizoma, e que seria como que a razão de sua mistura. Não é em termos de comportamento que a encontraremos, mas em termos de agenciamento. Alguns autores dão ênfase aos desenvolvimentos autônomos codificados em centros (inatidade); outros, aos encadeamentos adquiridos regulados por sensações periféricas (aprendizado). Mas Raymond Ruyer já mostrava que, mais do que isso, o animal estava exposto a “ritmos musicais” a “temas rítmicos e melódicos” que não se explicam nem pela codificação de um disco de fonógrafo gravado, nem pelos movimentos de execução que os efetuam e os adaptam às circunstâncias31. Seria até o contrário: os temas rítmicos ou melódicos precedem sua execução e sua gravação. Haveria, primeiro, consistência de um ritornelo, de uma musiquinha, seja sob forma de melodia mnêmica que não precisaria ser inscrita localmente num centro, seja sob forma de motivo vago que não precisaria estar já pulsado ou estimulado. Uma noção poética e musical como a do Natal — no lied, ou então em Hölderlin, ou ainda em Thomas Hardy — nos ensinaria talvez mais do que as categorias um pouco insípidas e confusas de inato ou adquirido. Com efeito, a partir do momento em que há agenciamento territorial, pode-se dizer que o inato ganha

Thorpe, p. 426. Os cantos suscitam quanto a este aspecto um problema totalmente distinto do suscitado pelos gritos, que frequentemente são pouco diferenciados e semelhantes entre várias espécies. 30

31

Raymond Ruyer, La gênese des formes vivantes, cap. VII.

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uma figura muito particular, porque ele é inseparável de um movimento de descodificação, porque ele passa à margem do código, contrariamente ao inato do meio interior; e também a aquisição ganha uma figura muito particular, porque ela é territorializada, isto é, regulada por matérias de expressão, e não mais por estímulos do meio exterior. O natal é precisamente o inato, mas o inato descodificado, e é precisamente o adquirido, mas o adquirido territorializado. O natal é esta nova figura que o inato e o adquirido ganham no agenciamento territorial. Daí o afeto próprio ao natal, tal como o ouvimos no lied, de ser sempre perdido ou reencontrado, ou tender para a pátria desconhecida. No natal, o inato tende a deslocar-se: como diz Ruyer, ele está de certo modo mais à frente, mais adiante do ato; ele diz respeito menos ao ato ou ao comportamento do que às próprias matérias de expressão, à percepção que as discerne, as seleciona, ao gesto que as erige ou que as constitui através dele mesmo (é por isso que há “períodos críticos” onde o animal valoriza um objeto ou uma situação, “impregna-se” de uma matéria de expressão, bem antes de ser capaz de executar o comportamento correspondente). No entanto, isto não quer dizer que o comportamento esteja entregue aos acasos do aprendizado, pois ele é predeterminado por esse deslocamento, e encontra em sua própria territorialização regras de agenciamento. O natal consiste, portanto, numa descodificação da inatidade e uma territorialização do aprendizado, um no outro, um com o outro. Há uma consistência do natal que não se explica por uma mistura de inato e de adquirido, já que, ao contrário, ele dá conta dessas misturas no seio do agenciamento territorial e dos interagenciamentos. Em suma, é a noção de comportamento que se revela insuficiente, linear demais em relação à de agenciamento. O natal vai daquilo que se passa no intraagenciamento até o centro que se projeta para fora, ele percorre os interagenciamentos, ele vai até as portas do Cosmo. É que o agenciamento territorial não é separável das linhas ou coeficientes de desterritorialização, das passagens e das alternâncias para outros agenciamentos. Estudouse com frequência a influência de condições artificiais no canto dos pássaros; mas os resultados variam, por um lado, de acordo com as espécies e, por outro lado, de acordo com o gênero e o momento dos artifícios. Muitos pássaros são permeáveis ao canto de outros pássaros a que são levados a ouvir durante o período crítico, e depois reproduzem esses cantos estrangeiros. No entanto, o tentilhão parece muito mais voltado para suas próprias matérias de expressão e, mesmo exposto aos sons sintéticos, guarda um sentido inato de sua própria tonalidade. Tudo depende também do momento em que se isola os pássaros, antes ou depois do período crítico, pois, no primeiro caso, os tentilhões desenvolvem um

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canto quase normal, enquanto que, no segundo, os indivíduos do grupo isolado, que têm que ficar ouvindo uns aos outros, desenvolvem um canto aberrante, não específico e, no entanto, comum ao grupo (cf. Thorpe). E que, de todo modo, é preciso considerar os efeitos da desterritorialização, da desnatalização, em tal espécie e a tal momento. Cada vez que um agenciamento territorial é tomado num movimento que o desterritorializa (em condições ditas naturais ou, ao contrário, artificiais), diríamos que se desencadeia uma máquina. E essa a diferença que queríamos propor entre máquina e agenciamento: uma máquina é como um conjunto de pontas que se inserem no agenciamento em vias de desterritorialização, para traçar suas variações e mutações. Pois não há efeitos mecânicos; os efeitos são sempre maquínicos, isto é, eles dependem de uma máquina diretamente conectada com o agenciamento e liberada pela desterritorialização. O que nós chamamos de enunciados maquínicos são esses efeitos de máquina que definem a consistência onde entram as matérias de expressão. Tais efeitos podem ser muito diversos, mas eles jamais são simbólicos ou imaginários, eles sempre têm um valor real de passagem e de alternância. De um modo geral, uma máquina liga-se ao agenciamento territorial específico e o abre para outros agenciamentos, faz com que ele passe pelos interagenciamentos da mesma espécie: por exemplo, o agenciamento territorial de uma espécie de pássaro abrese para seus interagenciamentos de corte ou de gregarismo, em direção ao parceiro ou ao “socius”. Mas a máquina pode igualmente abrir o agenciamento territorial de uma espécie para agenciamentos interespecíficos, como no caso dos pássaros que adotam cantos estrangeiros, e mais ainda no caso do parasitismo32. Ou ainda, a máquina pode extravasar todo e qualquer agenciamento para produzir uma abertura para o Cosmo. Ou então, inversamente, em vez de abrir o agenciamento desterritorializado para outra coisa, ela pode produzir um efeito de fechamento, como se o conjunto caísse e girasse numa espécie de buraco negro: é o que se produz em condições de desterritorialização precoce e brutal, e quando as vias específicas, interespecíficas e cósmicas encontram-se interceptadas; a máquina produz então efeitos “individuais” de grupo, girando em círculo, como no caso dos tentilhões precocemente isolados, cujo canto empobrecido, simplificado, só exprime a ressonância do buraco negro onde eles estão tomados. É importante reencontrar aqui essa função

Principalmente sobre as “Viúvas” (Viduinae), pássaros parasitas que têm um canto territorial específico, e um canto de corte que aprendem de seu anfitrião adotivo: cf. J. Nicolai, Der Brutparasitismus der Viduinae, Z. Tierps., XXI, 1964. 32

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“buraco negro”, porque ela é capaz de ajudar a compreender melhor os fenômenos de inibição e de romper, por sua vez, com um dualismo muito estrito inibidor-desencadeador. Com efeito, os buracos negros fazem parte dos agenciamentos tanto quanto as linhas de desterritorialização: vimos anteriormente que um interagenciamento podia comportar linhas de empobrecimento e de fixação, que conduzem a um buraco negro, com a possibilidade de serem substituídas por uma linha de desterritorialização mais rica ou positiva (como o componente “galhinho”, entre os tentilhões-da-Austrália, que cai num buraco negro e é substituído pelo componente “ritornelo”33). Assim, o buraco negro é um efeito de máquina nos agenciamentos, que se encontra numa relação complexa com os outros efeitos. Pode acontecer que processos inovadores, para se desencadearem, precisem cair num buraco negro que faz catástrofe; estases de inibição associam-se a desencadeamentos de comportamentos-encruzilhada. Em compensação, quando os buracos negros ressoam juntos, ou que as inibições se conjugam, ecoam, assistimos a um fechamento do agenciamento, como que desterritorializado no vazio, em vez de uma abertura em consistência: como nesses grupos isolados de jovens tentilhões. As máquinas são sempre chaves singulares que abrem ou fecham um agenciamento, um território. E mais, não basta fazer intervir a máquina num agenciamento territorial dado; ela já intervém na emergência das matérias de expressão, isto é, na constituição desse agenciamento e nos vetores de desterritorialização que o trabalham imediatamente. A consistência das matérias de expressão remete portanto, por um lado, à sua aptidão a formar temas rítmicos e melódicos e, por outro, à potência do natal. E há, enfim, um outro aspecto, que é sua relação muito especial com o molecular (a máquina nos coloca exatamente nessa trilha). As próprias palavras “matérias de expressão” implicam que a expressão tenha com a matéria uma relação original. À medida que tomam consistência, as matérias de expressão constituem

O modo como um buraco negro faz parte de um agenciamento aparece em inúmeros exemplos de inibição, ou de fascinação-êxtase, especialmente no pavão: “O macho abre a cauda em leque (...)., depois inclina seu leque para a frente e, de pescoço erguido, indica o chão com seu bico. A fêmea açode e cisca procurando na direção de um lugar preciso do chão onde situa-se o ponto focai determinado pela concavidade das plumas que organiza o leque da cauda. O macho, de certo modo, faz espelhar com seu leque um alimento imaginário” (EiblEibesfeldt, p. 109). Mas, assim como o galhinho do tentilhão não é um vestígio ou símbolo, o ponto focai do pavão não é um imaginário: é um conversor de agenciamento, passagem para um agenciamento de corte, aqui efetuado por um buraco negro. 33

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semióticas; mas os componentes semióticos não são separáveis de componentes materiais, e estão singularmente conectados com níveis moleculares. Portanto, a questão toda é saber se a relação molar-molecular não toma aqui uma figura nova. Com efeito, pôdese distinguir em geral combinações “molar-molecular” que variam muito, dependendo da direção seguida. Em primeiro lugar: os fenômenos individuais do átomo podem entrar em acumulações estatísticas ou probabilísticas que tendem a apagar sua individualidade já na molécula e, depois, no conjunto molar; mas podem também se complicar com interações, e preservar sua individualidade no seio da molécula, depois da macromolécula, etc, compondo comunicações diretas de indivíduos de diferentes ordens34. Em segundo lugar: vemos efetivamente que a diferença não está entre individual e estatístico; na verdade, trata-se sempre de populações, a estatística incide sobre fenômenos individuais, assim como a individualidade anti-estatística só opera através de populações moleculares; a diferença está entre dois movimentos de grupo, como na equação de Alembert, onde um grupo tende em direção a estados cada vez mais prováveis, homogêneos e equilibrados (onda divergente e potencial retardado), ao passo que o outro grupo tende em direção a estados de concentração menos prováveis (onda convergente e potencial antecipado)35. Em terceiro lugar, as forças internas intramoleculares, que conferem a um conjunto sua forma molar, podem ser de dois tipos: ou relações localizáveis, lineares, mecânicas, arborescentes, covalentes, submetidas às condições químicas de ação e reação, de reações em cadeia, ou então ligações não localizáveis, sobrelineares, maquínicas e não mecânicas, não covalentes, indiretas, que operam por discernimento ou discriminação estereoespecífica mais do que por encadeamento36. Há aqui muitas maneiras de enunciar uma mesma diferença, mas essa diferença parece muito mais ampla do que a que procuramos: ela concerne com efeito a matéria e a vida ou, já que só há uma matéria, ela concerne antes dois estados, duas tendências da matéria atômica (por exemplo, há ligações que imobilizam um em relação ao outro os átomos associados, e outras ligações que permitem uma livre rotação). Se enunciamos a diferença sob sua forma mais geral, dizemos que ela se instaura entre sistemas estratificados, sistemas de estratificação de um lado e, de outro, conjuntos consistentes,

34

Raymond Ruyer, La genèse des formes vivantes, pp. 54 ss.

35

François Meyer, Problématique de 1’évolution, P.U.F.

36

Jacques Monod, Le hasard et Ia necessite.

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autoconsistentes. Mas a consistência, justamente, longe de ser reservada a formas vitais complexas, já concerne plenamente o átomo e as partículas as mais elementares. Há sistema de estratificação codificado, toda vez que se tem, no sentido horizontal, causalidades lineares entre elementos; no sentido vertical, hierarquias de ordem entre agrupamentos; e, para que tudo se mantenha junto em profundidade, uma sucessão de formas que enquadram, sendo que cada uma informa uma substância e, por sua vez, serve de substância para a outra. Essas causalidades, essas hierarquias, esses enquadramentos constituirão tanto um estrato quanto a passagem de um estrato para outro e as combinações estratificadas do molecular e do molar. Falaremos, ao contrário, de conjuntos de consistência quando nos virmos diante de consolidados de componentes muito heterogêneos, curto-circuitos de ordem ou mesmo causalidades ao avesso, capturas entre materiais e forças de uma outra natureza, em vez de uma sucessão regrada formassubstâncias: como se um phylum maquínico, uma transversalidade desestratificante passasse através dos elementos, das ordens, das formas e das substâncias, do molar e do molecular, para liberar uma matéria e captar forças. Ora, se perguntamos qual é o “lugar da vida” nessa distinção, vemos sem dúvida que ela implica um ganho de consistência, isto é, uma mais-valia (mais-valia de desestratificação). Por exemplo, ela comporta um número maior de conjuntos autoconsistentes, de processos de consolidação, e lhes dá um alcance molar. Ela já é desestratificante, pois seu código não é repartido pelo estrato inteiro, mas ocupa uma linha genética eminentemente especializada. No entanto, a questão é quase contraditória, pois perguntar qual é o lugar da vida redunda em tratá-la como um estrato particular, que tem sua ordem e sua vez na ordem, que tem suas formas e suas substâncias. E é verdade que a vida é ambos ao mesmo tempo: um sistema de estratificação particularmente complexo, e um conjunto de consistência que conturba as ordens, as formas e as substâncias. Assim, vimos como o vivo operava uma transcodificação dos meios que pode ser considerada tanto como constituindo um estrato quanto como operando causalidades ao avesso e transversais de desestratificação. Com isso, a mesma questão pode ser levantada quando a vida não se contenta mais em revolver meios, mas agencia territórios. O agenciamento territorial implica uma descodificação, e ele próprio não é separável de uma desterritorialização que o afeta (dois novos tipos de mais-valia). Compreende-se a partir daí que a “etologia” seja um domínio molar muito privilegiado para mostrar como componentes os mais diversos, bioquímicos, comportamentais, perceptivos,

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hereditários, adquiridos, improvisados, sociais, etc, podem cristalizar em agenciamentos que não respeitam a distinção das ordens, nem a hierarquia das formas. O que mantém junto todos os componentes são as transversais, e a própria transversal é apenas um componente que assume o vetor especializado de desterritorialização. Com efeito, não é pelo jogo das formas que enquadram ou das causalidades lineares que um agenciamento se mantém, mas por seu componente mais desterritorializado, por uma ponta de desterritorialização, atualmente ou potencialmente: por exemplo, o ritornelo, mais desterritorializado do que o galhinho, o que não o impede de ser “determinado”, isto é, diretamente conectado aos componentes bioquímicos e moleculares. O agenciamento se mantém pelo componente mais desterritorializado, mas isto não quer dizer indeterminado (o ritornelo pode estar estreitamente conectado a hormônios masculinos)37. Certo componente que entra num agenciamento pode ser o mais determinado, e até mecanizado; nem por isso ele dá menos “jogo” àquilo que ele compõe, favorece a entrada de novas dimensões dos meios, desencadeia processos de discernibilidade, de especialização, de contração, de aceleração que abrem novos possíveis, que abrem o agenciamento territorial para interagenciamentos. Voltemos aos scenopoietes: seu ato, um de seus atos, consiste em discernir e fazer discernir as duas faces da folha. Esse ato é conectado ao determinismo do bico serrilhado. Com efeito, o que define os agenciamentos é tudo ao mesmo tempo: matérias de expressão que tomam consistência independentemente da relação forma-substância; causalidades ao avesso ou determinismos “avançados”, inatismos descodificados, que incidem sobre atos de discernimento ou de eleição, e não mais sobre reações em cadeia; combinações moleculares que procedem por ligações não covalentes e não por relações lineares — em suma, um novo “jeito” produzido pelo cruzamento do semiótico e do material. É neste sentido que se pode opor a consistência dos agenciamentos àquilo que era ainda a estratificação dos meios. Mas, aqui ainda, essa oposição é apenas relativa, inteiramente relativa. Assim como os meios oscilam entre um estado de estrato e um movimento de desestratificação, os agenciamentos oscilam entre um fechamento territorial que tende a reestratificá-los, e uma abertura desterritorilizante que os conecta ao contrário ao Cosmo. A partir daí, não é de se espantar que a diferença que procurávamos esteja

Fêmeas de pássaros, que normalmente não cantam, se põem a cantar quando lhes são administrados hormônios sexuais masculinos, e “reproduzem o canto da espécie à qual elas pertencem” (Eibl-Eibesfeldt, p. 241). 37

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menos entre os agenciamentos, e tampouco entre os dois limites de todo agenciamento possível, isto é, o sistema de estratos e o plano de consistência. E não se deve esquecer que é no plano de consistência que os estratos endurecem e se organizam, e que é nos estratos que o plano de consistência trabalha e se constrói, ambos peça por peça, passo a passo, de operação em operação. Fomos dos meios estratificados aos agenciamentos territorializados; e, ao mesmo tempo, das forças do caos, tais como são ventiladas, codificadas, transcodificadas pelos meios, até as forças da terra, tais como são recolhidas nos agenciamentos. Depois, fomos dos agenciamentos territoriais aos interagenciamentos, às aberturas de agenciamento seguindo linhas de desterritorialização; e, ao mesmo tempo, das forças recolhidas da terra até as forças de um Cosmo desterritorializado, ou antes desterritorializante. Como Paul Klee apresenta este último movimento que não é mais um “andamento” terrestre, mas uma “escapada” cósmica? E por que uma palavra tão enorme, Cosmo, para falar de uma operação que deve ser precisa? Klee diz que “exercemos um esforço por impulsos para decolar da terra”, que “nos elevamos acima dela sob o império de forças centrífugas que triunfam sobre a gravidade”. Ele acrescenta que o artista começa por olhar em torno de si, em todos os meios, mas para captar o rastro da criação no criado, da natureza naturante na natureza naturada; e, depois, instalando-se “nos limites da terra”, ele se interessa pelo microscópio, pelos cristais, pelas moléculas, pelos átomos e partículas, não pela conformidade científica, mas pelo movimento, só pelo movimento imanente; o artista diz que este mundo teve diferentes aspectos, que ainda terá outros, e que já tem outros em outros planetas; enfim, ele se abre ao Cosmo para captar suas forças numa “obra” (sem o que a abertura para o Cosmo não seria mais do que um devaneio incapaz de ampliar os limites da terra), e para tal obra é preciso meios muito simples, muito puros, quase infantis, mas é preciso também as forças de um povo, e é isto o que falta ainda, “falta-nos essa última força, procuramos esse apoio popular, começamos com Bauhaus, não podemos fazer mais...”38. Quando se fala de classicismo, entende-se uma relação forma-matéria, ou melhor, forma-substância, sendo a substância precisamente uma matéria enformada. Uma sucessão de formas compartimentadas,

38

Paul Klee, Théorie de Vart moderne, pp. 27-33.

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centralizadas, hierarquizadas umas em relação às outras, vem organizar a matéria, encarregando-se cada uma delas de uma parte mais ou menos importante. Cada forma é como o código de um meio, e a passagem de uma forma a outra é uma verdadeira transcodificação. Mesmo as estações são meios. Há aí duas operações coexistentes, uma através da qual a forma se diferencia de acordo com distinções binárias, outra através da qual as partes substanciais enfermadas, os meios ou estações, entram numa ordem de sucessão que pode ser a mesma nos dois sentidos. Mas, sob essas operações, o artista plástico arrisca uma aventura extrema, perigosa. Ele ventila os meios, separa-os, harmoniza-os, regulamenta suas misturas, passa de um a outro. O que ele afronta assim é o caos, as forças do caos, as forças de uma matéria bruta indomada, às quais as Formas devem impor-se para fazer substâncias, os Códigos, para fazer meios. Prodigiosa agilidade. É neste sentido que nunca foi possível traçar uma fronteira efetivamente nítida entre o barroco e o clássico39. Todo o barroco retumba no fundo do clássico; a tarefa do artista clássico é a do próprio Deus, organizar o caos, e seu único grito é Criação! a Criação! a Arvore da Criação! Uma flauta de madeira milenar organiza o caos, mas o caos ali está como a Rainha da Noite. O artista clássico procede com o Um-Dois: o um-dois da diferenciação da forma enquanto ela se divide (homem-mulher, ritmos masculinos e femininos, as vozes, as famílias de instrumentos, todas as binaridades da Ars Nova); o um-dois da distinção das partes enquanto elas respondem umas às outras (a flauta encantada e a sineta mágica). A pequena ária, o ritornelo de pássaro, é a unidade binária de criação, a unidade diferenciante do começo puro: “Primeiro o piano solitário lamentou-se, como um pássaro abandonado por sua companheira; o violino o ouviu, e lhe respondeu como de uma árvore vizinha. Era como no começo do mundo, como se só tivesse havido eles dois na terra, ou antes nesse mundo fechado para todo o resto, construído pela lógica de um criador e onde sempre estariam somente eles dois: esta sonata” 40. Se tentamos definir também sumariamente o romantismo, vê-se bem que tudo muda. Um grito novo ressoa: a Terra, o território e a Terra! É com o romantismo que o artista abandona sua ambição de uma universalidade de direito e seu estatuto de criador: ele se territorializa, entra num agenciamento territorial. As estações são agora territorializadas. E sem

39

Cf. Renaissance, maniérisme, baroque, Actes du XI£ stage de Tours, Vrin; 1ª parte, sobre as “periodizações”.

40

Proust, Du côté de chez Swann, Pléiade, I, p. 352.

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dúvida a terra não é a mesma coisa que o território. A terra é esse ponto intenso no mais profundo do território, ou então projetado fora do território como ponto focal, e onde se reúnem todas as forças num corpo-a-corpo. A terra não é mais uma força entre as outras, nem uma substância enformada ou um meio codificado, que teria sua vez e sua parte. A terra tornou-se este corpo-a-corpo de todas as forças, as da terra como as das outras substâncias, de modo que o artista não se confronta mais com o caos, mas com o inferno e com o subterrâneo, o sem-fundo. Ele não corre mais o risco de dissipar-se nos meios, mas de afundar-se longe demais na Terra, Empédocles. Ele não se identifica mais com a Criação, mas com o fundamento ou com a fundação, é a fundação que tornou-se criadora. Ele não é mais Deus, mas Herói que lança a Deus seu desafio: Fundemos, fundemos, e não mais Criemos. Fausto, sobretudo o segundo Fausto, é levado por essa tendência. Ao dogmatismo, ao catolicismo dos meios (código), substituiu-se o criticismo, o protestantismo da terra. E certamente a Terra como ponto intenso em profundidade ou em projeção, como ratio essendi, está sempre em defasagem em relação ao território; e o território, como condição de “conhecimento”, ratio cognoscendi, está sempre em defasagem em relação à terra. O território é alemão, mas a Terra é grega. E justamente essa defasagem que forja o estatuto do artista romântico, dado que ele não mais afronta a fenda do caos, mas a atração do Fundo. A musiquinha, o ritornelo de pássaro mudou: ele não é mais o começo de um mundo, ele traça na terra o agenciamento territorial. Com isso, ele não é mais feito de duas partes consonantes que se buscam e se respondem; ele se dirige a um canto mais profundo que o funda, mas também choca-se contra ele, arrasta-o consigo e o faz desafinar. O ritornelo é constituído indissoluvelmente pela canção territorial e pelo canto da terra que se eleva para cobri-lo. Assim, no fim do Canto da terra, a coexistência dos dois motivos, um melódico evocando os agenciamentos do pássaro, o outro rítmico, profunda respiração da terra, eternamente. Mahler diz que o canto dos pássaros, a cor das flores, o odor das florestas não bastam para fazer a Natureza, é preciso aí o deus Dionisos ou o grande Pan. Um Ur-ritornelo da terra capta todos os ritornelos territoriais ou outros, e todos aqueles dos meios. Em Wozzeck, o ritornelo cantiga de ninar, o ritornelo militar, o ritornelo de beber, o ritornelo de caça, o ritornelo infantil são finalmente outros tantos agenciamentos admiráveis arrastados pela potente máquina da terra, e pelas pontas dessa máquina: a voz de Wozzeck através da qual a terra torna-se sonora, o grito de morte de Maria que corre pelo charco, o Si redobrado, quando a terra urrou... É essa

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defasagem, essa descodificação, que faz com que o artista romântico viva o território, mas o viva necessariamente como perdido, e se viva a si mesmo como exilado, viajante, desterritorializado, repelido nos meios, tal como o Holandês Voador ou o rei Voldemar (enquanto que o clássico habitava os meios). Mas, ao mesmo tempo, é ainda a terra que comanda esse movimento, é a atração da Terra que provoca essa repulsa do território. O marco de sinalização só indica o caminho de onde ninguém volta. Tal é a ambiguidade do natal, que aparece no lied, mas também na sinfonia e na ópera: o lied é ao mesmo tempo o território, o território perdido, a terra vetora. O intermezzo iria tomar uma importância cada vez maior, porque ele tirava partido de todas as defasagens entre a terra e o território, intercalava-se nessas defasagens e as preenchia à sua maneira, “entre duas horas”, “meio dia-meia noite”. Desse ponto de vista, pode-se dizer que as inovações fundamentais do romantismo consistiram nisso: não havia mais partes substanciais correspondendo a formas, meios correspondendo a códigos, uma matéria em caos que se encontraria ordenada nas formas e pelos códigos. As partes eram antes como agenciamentos que se faziam e se desfaziam na superfície. A própria forma tornava-se uma grande forma em desenvolvimento contínuo, reunião das forças da terra que enfeixava todas as partes. A própria matéria não era mais um caos a ser submetido e organizado, mas a matéria em movimento de uma variação contínua. O universal havia se tornado relação, variação. Variação contínua da matéria e desenvolvimento contínuo da forma. Através dos agenciamentos, matéria e forma entravam assim numa nova relação: a matéria deixava de ser uma matéria de conteúdo para tornar-se matéria de expressão, a forma deixava de ser um código domando as forças do caos para tornar-se ela própria força, conjunto das forças da terra. Havia uma nova relação com o perigo, com a loucura, com os limites: o romantismo não ia mais longe do que o classicismo barroco, mas ele ia a outro lugar, com outros dados e outros vetores. O que mais falta ao romantismo é o povo. O território é assombrado por uma voz solitária, que a voz da terra ecoa e percute, mais do que lhe responde. Mesmo quando há um povo, ele é mediatizado pela terra, surgido das entranhas da terra, e pronto para voltar a ela: é um povo subterrâneo mais do que terrestre. O herói é um herói da terra, mítico, e não do povo, histórico. A Alemanha, o romantismo alemão, tem o gênio de viver o território natal não como deserto, mas como “solitário”, seja qual for a densidade de população; é que essa população não é senão uma emanação da terra, e vale por Um Só. O território não

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se abre em direção a um povo, ele se entreabre para o Amigo, para a Amada, mas a Amada já está morta, e o Amigo, incerto, inquietante41. Através do território tudo se passa, como num lied, entre o Um-Só da alma e o Um-Todo da terra. É por isso que o romantismo toma um outro aspecto, e até reivindica um outro nome, uma outra placa, nos países latinos e nos países eslavos onde tudo, ao contrário, passa pelo tema de um povo e das forças de um povo. Desta vez, é a terra que é mediatizada pelo povo, e só existe através dele. Desta vez, a terra pode ser “deserta”, estepe árida, ou então território desmembrado, devastado; ela nunca é solitária, mas cheia de uma população que nomadiza, se separa ou se reagrupa, reivindica ou chora, ataca ou sofre. Desta vez, o herói é um herói do povo, e não mais da terra; ele está em relação com o Um-Multidão, não mais com o Um-Todo. Certamente não se dirá que há mais ou menos nacionalismo de um lado ou de outro, pois o nacionalismo está por toda parte nas figuras do romantismo, ora como um motor, ora como um buraco negro (e o fascismo utilizou Verdi bem menos do que o nazismo, Wagner). O problema é realmente musical, tecnicamente musical, o que o torna aí tanto mais político. O herói romântico, a voz romântica do herói, age como sujeito, como indivíduo subjetivado que tem “sentimentos”; mas esse elemento vocal subjetivo se reflete num conjunto instrumental e orquestral que mobiliza ao contrário “afectos” não subjetivados, e que ganha toda sua importância com o romantismo. Ora, não se acreditará que ambos, o elemento vocal e o conjunto orquestral-instrumental, estejam numa relação simplesmente extrínseca: a orquestração impõe à voz este ou aquele papel, tanto quanto a voz envolve este ou aquele modo de orquestração. A orquestraçãoinstrumentação reúne ou separa, junta ou dispersa forças sonoras; mas ela muda e o papel da voz também muda, dependendo de essas forças serem as da Terra ou as do Povo, do UmTodo ou do Um-Multidão. Num caso, tratase de operar agrupamentos de potências que constituem precisamente os afectos; no outro caso, individuações de grupo é que constituem o afecto e são objeto da orquestração. Os agrupamentos de potência são plenamente diversificados, mas o são como as relações próprias do Universal; enquanto que

Cf. o papel ambíguo do amigo, no final do Chant de la terre. Ou então no lied de Schumann Zivielicht (in Op. 39), o poema de Eichendorff: “Se você tem um amigo cá na terra, não confie nele agora, mesmo se ele é gentil de olho e de boca, ele sonha com guerra numa paz sorrateira”. (Sobre o problema do Um-Só ou do “Ser solitário” no romantismo alemão, remeteremos à Hölderlin, “Le cours et la destination de 1’homme en general”, in Poésie n” 4). 41

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nas individuações de grupo, seria preciso invocar uma outra palavra, o Dividual, para designar esse outro tipo de relações musicais, e essas passagens intragrupo ou intergrupos. O elemento subjetivo ou sentimental da voz não tem o mesmo papel e a mesma posição dependendo de ele afrontar interiormente os agrupamentos de potência não subjetivados ou as individuações não subjetivadas de grupo, as relações do universal ou as relações do “dividual”. Debussy colocava bem o problema do Um-Multidão quando recriminava Wagner por não saber “fazer” uma multidão ou um povo: é preciso que uma multidão seja plenamente individuada, mas através de individuações de grupo, que não se reduzem à individualidade dos sujeitos que a compõem42. O povo deve individuar-se, não segundo pessoas, mas segundo os afectos que ele experimenta simultaneamente e sucessivamente. Perde-se, assim, tanto o Um-Multidão quanto o Dividual quando o povo é reduzido a uma justaposição, e quando ele é reduzido a uma potência do universal. Em suma, há como duas concepções muito diferentes da orquestração e da relação voz-instrumento, dependendo de se nos dirigimos às forças da Terra ou às forças do Povo, para torná-los sonoros. O exemplo mais simples dessa diferença seria sem dúvida WagnerVerdi, visto que Verdi dá cada vez mais importância às relações da voz com a instrumentação e a orquestração. Hoje mesmo, Stockhausen e Berio elaboram uma nova versão dessa diferença, embora afrontem um problema musical distinto daquele do romantismo (há em Berio a busca de um grito múltiplo, de um grito de população, no dividual do UmMultidão, e não de um grito da terra no universal do Um-Todo). Ora, a ideia de uma Ópera do mundo, ou de uma música cósmica, e o papel da voz mudam singularmente segundo esses dois polos da orquestração43. Para não

“O povo de Mussorgski em Bons não forma uma multidão verdadeira: ora é um grupo que canta, ora um outro e não um terceiro, cada um a seu turno, e mais frequentemente em uníssono. Quanto ao povo dos Mestres cantores, não é uma multidão, é um exército, potentemente organizado à alemã e que marcha em fila. O que eu queria é algo de mais esparso, de mais dividido, de mais desligado, de mais impalpável, algo inorgânico em aparência e no entanto ordenado no fundo” (citado por Barraqué, Debussy, p. 159). Este problema — como fazer uma multidão — se reencontra evidentemente em outras artes, pintura, cinema... Remeteremos sobretudo aos filmes de Eisenstein, que procedem por esse tipo de individuações de grupo, muito especiais. 42

Sobre as relações do grito, da voz, do instrumento e da música como “teatro”, cf. as declarações de Berio apresentando seus discos. Recorde-se o tema nietzscheano, eminentemente musical, de um grito múltiplo de todos os Homens superiores, no fim de Zaratustra. 43

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ficar só numa simples oposição Wagner-Verdi, seria preciso mostrar como a orquestração de Berlioz soube com gênio passar, ou até hesitar, de um polo ao outro, Natureza ou Povo sonoros, como uma música como a de Mussorgski soube fazer multidão (apesar do que diz Debussy), como uma música como a de Bartok pôde apoiar-se nas canções populares ou de população, para fazer populações elas próprias sonoras, instrumentais e orquestrais que impõem uma nova escala do Dividual, um novo prodigioso cromatismo44. O conjunto das vozes não wagnerianas... Se há uma idade moderna, ela é certamente a do cósmico. Paul Klee se declara antifaustiano, “os bichos e todas as outras criaturas, não as amo com uma cordialidade terrestre, as coisas terrestres me interessam menos do que as coisas cósmicas”. O agenciamento não afronta mais as forças do caos, ele não se aprofunda mais nas forças da terra ou nas forças do povo, mas abre-se para as forças do Cosmo. Tudo isto parece de uma extrema generalidade, e como que hegeliano, testemunhando um Espírito absoluto. No entanto é, deveria ser, técnica, nada mais do que técnica. A relação essencial não é mais matérias-formas (ou substâncias-atributos); mas não está tampouco no desenvolvimento contínuo da forma e na variação contínua da matéria. Ela se apresenta aqui como uma relação direta material-forças. O material é uma matéria molecularizada, que enquanto tal deve “captar” forças, as quais só podem ser forças do Cosmo. Não há mais matéria que encontraria na forma seu princípio de inteligibilidade correspondente. Trata-se agora de elaborar um material encarregado de captar forças de uma outra ordem: o material visual deve capturar forças não visíveis. Tornar visível, dizia Klee, e não trazer ou reproduzir o visível. Nessa perspectiva, a filosofia segue o mesmo movimento que as outras atividades; enquanto a filosofia romântica invocava ainda uma identidade sintética formal, que assegurava uma inteligibilidade contínua da matéria (síntese a priori), a filosofia moderna tende a elaborar um material de pensamento para capturar forças não pensáveis em si mesmas. É a filosofia-Cosmo, à maneira de Nietzsche. O material molecular é efetivamente tão desterritorializado que não se pode mais falar em matérias de expressão, como na territorialidade romântica. As matérias de expressão dão lugar a um material de captura. A partir daí, as forças a serem capturadas não são mais as da terra, que constituem ainda uma grande Forma expressiva, elas são

44

Sobre o cromatismo de Bartok, cf. o estudo de Gisèle Brelet, in Histoire de Ia musique, Pléiade, t. II, pp. 1036-1072.

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agora as forças de um Cosmo energético, informal e imaterial. Acontece ao pintor Millet de dizer que o que conta na pintura não é aquilo que o camponês carrega, objeto sagrado ou saco de batatas por exemplo, mas o peso exato daquilo que ele carrega. É a virada pós-romântica: o essencial não está nas formas e nas matérias, nem nos temas, mas nas forças, nas densidades, nas intensidades. A própria terra oscila, e tende a valer como puro material de uma força gravífica ou de gravidade. Talvez será preciso esperar Cézanne para que as rochas não existam mais senão através das forças de dobramento que elas captam, as paisagens através das forças magnéticas e térmicas, as maçãs através das forças de germinação: forças não visuais e, no entanto, tornadas visíveis. É ao mesmo tempo que as forças se tornam necessariamente cósmicas e o material molecular: uma força imensa opera num espaço infinitesimal. O problema não é mais o de um começo, tampouco o de uma fundação-fundamento. Ele se tornou um problema de consistência ou de consolidação: como consolidar um material, torná-lo consistente, para que ele possa captar essas forças não sonoras, não visíveis, não pensáveis? Mesmo o ritornelo torna-se ao mesmo tempo molecular e cósmico, Debussy... A música moleculariza a matéria sonora, mas torna-se assim capaz de captar forças não sonoras como a Duração, a Intensidade45. Tornar a Duração sonora. Lembremo-nos da ideia de Nietzsche: o eterno retorno como pequena cantilena, como ritornelo, mas que captura as forças mudas e impensáveis do Cosmo. Saímos, portanto, do canto e dos agenciamentos para entrar na idade da Máquina, imensa mecanosfera, plano de cosmicização das forças a serem captadas. Exemplar seria o procedimento de Varèse, na alvorada desta era: uma máquina musical de consistência, uma máquina de sons (não para reproduzir os sons), que moleculariza e atomiza, ioniza a matéria sonora, e capta uma energia de Cosmo46. Se essa máquina deve ter um agenciamento, será o sintetizador. Reunindo os módulos, os elementos de fonte e de tratamento, os osciladores, geradores e transformadores, acomodando os

Barraqué, em seu livro sobre Debussy, analisa o “diálogo do vento e do mar” em termos de forças, e não mais de temas: pp. 153-154. Cf. as declarações de Messiaen sobre suas próprias obras: os sons não são mais do “que vulgares intermediários destinados a tornar as durações apreciáveis” (in Golea, p. 211). 45

Odile Vivier expõe os procedimentos de Varèse para tratar a matéria sonora, Varèse, Ed. du Seuil: a utilização de sons puros que agem como um prisma (p. 36), os mecanismos de projeção num plano (p. 45, p. 50), as escalas não oitavantes (p. 75), o procedimento de “ionização” (pp. 98 ss).. Por toda parte, o tema das moléculas sonoras, cujas transformações são determinadas por forças ou energias. 46

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microintervalos, ele torna audível o próprio processo sonoro, a produção desse processo, e nos coloca em relação com outros elementos ainda, que ultrapassam a matéria sonora47. Ele une os disparates no material, e transpõe os parâmetros de uma fórmula para outra. O sintetizador, com sua operação de consistência, tomou o lugar do fundamento no julgamento sintético a priori: a síntese aqui é do molecular e do cósmico, do material e da força, não mais da forma e da matéria, do Grund e do território. A filosofia, não mais como juízo sintético, mas como sintetizador de pensamentos, para levar o pensamento a viajar, torná-lo móvel, fazer dele uma força do Cosmo (do mesmo modo se leva o som a viajar...). Essa síntese de disparates não ocorre sem equívoco. E talvez o mesmo equívoco que se encontra na valorização moderna dos desenhos de criança, dos textos loucos, dos concertos de ruídos. Acontece de se levar isso longe demais, de se exagerar, opera-se com um emaranhado de linhas ou de sons; mas então, em vez de produzir uma máquina cósmica, capaz de “tornar sonoro”, se recai numa máquina de reprodução, que acaba por reproduzir apenas uma garatuja que apaga todas as linhas, uma confusão que apaga todos os sons. Pretende-se abrir a música a todos os acontecimentos, a todas as irrupções, mas o que se reproduz finalmente é a confusão que impede todo o acontecimento. Não se tem mais do que uma caixa de ressonância fazendo buraco negro. Um material rico demais é um material que permanece “territorializado” demais, em fontes de ruído, na natureza dos objetos... (mesmo o piano preparado de Cage). Tornamos vago um conjunto, em vez de definir o conjunto vago pelas operações de consistência ou de consolidação que incidem sobre ele. Pois é isto o essencial: um conjunto vago, uma síntese de disparates só é definida por um grau de consistência que torna precisamente possível a distinção dos elementos disparatados que o constituem (discernibilidade)48. É

Cf. a entrevista de Stockhausen, sobre o papel dos sintetizadores e a dimensão efetivamente “cósmica” da música, in Le Monde, 21 de julho de 1977: “Trabalhar no interior de materiais muito limitados e integrar aí o universo através de uma transformação contínua”. Richard Pinhas fez uma excelente análise das possibilidades dos sintetizadores quanto a esse aspecto, em relação com a música pop: “Input, Output”, in Atem n” 10, 1977. 47

Com efeito, uma definição dos conjuntos vagos coloca toda espécie de problemas, porque não se pode nem mesmo invocar uma determinação local: “O conjunto dos objetos quaisquer que estão sobre esta mesa” não é evidentemente um conjunto vago. É por isso que os matemáticos que se interessam pela questão só falam de “subconjuntos vagos”, o conjunto de referência tendo que ser normal (cf. Arnold Kaufmann, Introduction à la théorie des sousensembles flous, Masson, e Hourya Sinacoeur, “Logique et mathématique du flou”, in Critique, maio de 1978). Para considerar o vago como caráter de certos conjuntos, partimos, ao contrário, de uma definição funcional e não local: o conjunto dos heterogêneos que tinham uma função territorial ou antes territorializante. Mas era uma definição nominal, que não dava conta “do que se passava”. A definição real só pode aparecer no nível dos processos que intervém no conjunto vago; um conjunto é vago quando seus elementos só lhe pertencem através de operações específicas de consistência ou de consolidação, tendo portanto elas próprias uma lógica especial. 48

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preciso que o material seja suficientemente desterritorializado para ser molecularizado e abrir-se ao cósmico, em vez de recair num amontoado estatístico. Ora, só se preenche essa condição através de uma certa simplicidade no material não uniforme: um máximo de sobriedade calculado em relação aos disparates e aos parâmetros. É a sobriedade dos agenciamentos que torna possível a riqueza dos efeitos da Máquina. Frequentemente se tem tendência demais a reterritorializar-se na criança, no louco, no ruído. Nesse caso permanecemos no vago, em vez de darmos consistência ao conjunto vago, ou de captar as forças cósmicas no material desterritorializado. É por isso que Paul Klee se enfurece muito quando se fala do “infantilismo” de seu desenho (assim como Varèse, quando se fala de ruidosidade, etc). Segundo Klee, é preciso uma linha pura e simples, associada a uma ideia de objeto, e nada mais, para “tornar visível”, ou captar Cosmo: não se obtém nada, a não ser uma confusão, uma ruidosidade visual, se multiplicamos as linhas ou tomamos todo o objeto49. Segundo Varèse, é preciso uma figura simples em movimento, e um plano ele próprio móvel, para que a projeção dê uma forma altamente complexa, isto é, uma distribuição cósmica; senão, é ruidosidade. Sobriedade, sobriedade: é a condição comum para a desterritorialização das matérias, a molecularização do material, a cosmicização das forças. Talvez a criança consiga. Mas essa sobriedade é a de um devir-criança, que não é necessariamente o devir da criança, pelo contrário; de um devir-louco, que não é necessariamente o devir do louco, pelo contrário. E óbvio que é preciso um som muito puro e simples, uma emissão ou uma onda sem harmônicos, para que o som viaje, e que viajemos em torno do som (sucesso de La Monte Young nesse aspecto). Você encontrará tanto mais disparates quanto mais você estiver numa atmosfera rarefeita. Sua síntese de disparates será tanto mais forte quanto mais você operar com um gesto sóbrio,

Paul Klee, Théorie de l’art moderne, p. 31: “A fábula do infantilismo do meu desenho deve ter sua origem em produções lineares nas quais eu tentava aliar a ideia do objeto, por exemplo um homem, à pura apresentação do elemento linha. Para mostrar o homem tal como ele é, eu teria precisado de um emaranhado de linhas inteiramente desconcertante. O resultado então não mais teria sido uma apresentação pura do elemento, mas uma tal confusão que não daria mais para se situar nisso”. 49

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um ato de consistência, de captura ou de extração que trabalhará sobre um material não sumário, mas prodigiosamente simplificado, criativamente limitado, selecionado. Pois só há imaginação na técnica. A figura moderna não é a da criança nem a do louco, e menos ainda a do artista, mas aquela do artesão cósmico: uma bomba atômica artesanal é muito simples na verdade, isso foi provado, isso foi feito. Ser um artesão, não mais um artista, um criador ou um fundador, e é a única maneira de devir cósmico, de sair dos meios, de sair da terra. A invocação do Cosmo não opera absolutamente como uma metáfora; ao contrário, a operação é efetiva desde que o artista coloque em relação um material com forças de consistência ou de consolidação. O material tem, portanto, três características principais: é uma matéria molecularizada; está em relação com forças a serem captadas; define-se pelas operações de consistência que incidem sobre ele. E evidente, enfim, que a relação com a terra, com o povo, muda, e não é mais do tipo romântico. A terra é agora a mais desterritorializada: não só um ponto numa galáxia, mas uma galáxia entre outras. O povo é agora o mais molecularizado: uma população molecular, um povo de osciladores que são outras tantas forças de interação. O artista despoja-se de suas figuras românticas, ele renuncia às forças da terra tanto quanto às forças do povo. É que o combate, se combate há, passou para outro lugar. Os poderes estabelecidos ocuparam a terra, e fizeram organizações de povo. Os meios de comunicação de massa, as grandes organizações do povo, do tipo partido ou sindicato, são máquinas de reproduzir, máquinas de levar ao vago, e que operam efetivamente a confusão de todas as forças terrestres populares. Os poderes estabelecidos nos colocaram na situação de um combate ao mesmo tempo atômico e cósmico, galáctico. Muitos artistas tomaram consciência desta situação há bastante tempo, e até antes que ela tenha se instalado (por exemplo, Nietzsche). E eles podiam tomar consciência disso porque o mesmo vetor atravessava seu próprio domínio: uma molecularização, uma atomização do material associada a uma cosmicização das forças tomadas nesse material. A partir daí, a questão era de saber se as “populações” atômicas ou moleculares de toda natureza (mass-mídia, meios de controle, computadores, armas supra-terrestres) iam continuar a bombardear o povo existente, seja para adestrá-lo, seja para controlá-lo, seja para aniquilá-lo — ou então se outras populações moleculares seriam possíveis, se poderiam insinuar-se entre as primeiras e suscitar um povo por vir. Como diz Virilio, em sua análise muito rigorosa da despopulação do povo e da desterritorialização da terra, a

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questão é: “Habitar como poeta ou como assassino?”50 O assassino é aquele que bombardeia o povo existente, com populações moleculares que não param de tornar a fechar todos os agenciamentos, de precipitá-los num buraco negro cada vez mais vasto e profundo. O poeta, ao contrário, é aquele que solta as populações moleculares na esperança que elas semeiem ou mesmo engendrem o povo por vir, que passem para um povo por vir, que abram um cosmo. E ainda aqui não se deve tratar o poeta como se ele se empanturrasse de metáforas: nada garante que as moléculas sonoras da música pop não disseminem, aqui e ali, atualmente, um povo de um novo tipo, singularmente indiferente às ordens do rádio, aos controles dos computadores, às ameaças da bomba atômica. É nesse sentido que a relação dos artistas com o povo mudou muito: o artista deixou de ser o Um-Só retirado em si mesmo, mas deixou igualmente de dirigir-se ao povo, de invocar o povo como força constituída. Nunca ele teve tanta necessidade de um povo, no entanto ele constata no mais alto grau que falta o povo — o povo é o que mais falta. Não são artistas populares ou populistas, é Mallarmé que pode dizer que o Livro precisa do povo, e Kafka, que a literatura é assunto do povo, e Klee, que o povo é o essencial, e que, no entanto, falta. O problema do artista é, portanto, que a despopulação moderna do povo desemboca numa terra aberta, e isso com os meios da arte, ou com meios para os quais a arte contribui. Em vez de o povo e a terra serem bombardeados por todos os lados num cosmo que os limita, é preciso que o povo e a terra sejam como os vetores de um cosmo que os carrega consigo; então o próprio cosmo será arte. Fazer da despopulação um povo cósmico, e da desterritorialização uma terra cósmica, este é o voto do artista-artesão, aqui e ali, localmente. Se nossos governos têm de se haver com o molecular e o cósmico, nossas artes também encontram aí seu interesse, com o mesmo desafio, o povo e a terra, com meios incomparáveis, infelizmente, e, no entanto, competitivos. O próprio das criações, perguntamos, não é operar em silêncio, localmente, buscar por toda parte uma consolidação, ir do molecular a um cosmo incerto, enquanto que os processos de destruição e de conservação trabalham no atacado, têm posição de destaque, ocupam todo o cosmo para subjugar o molecular, colocá-lo num conservatório ou numa bomba?

Virilio, L’insécurité du terriunre, p. 49. É o tema que Henry Miller desenvolvia em seu livro Rimbaud ou le temps des assassins, ou então em seu texto escrito para Varèse, “Perdidos! Salvos!”. Miller é sem dúvida o que levou mais longe a figura moderna do escritor como artesão cósmico, sobretudo em Sexus. 50

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Não se deve interpretar essas três “idades”, o clássico, o romântico e o moderno (na falta de outro nome), como uma evolução, nem como estruturas com cortes significantes. São agenciamentos, que comportam Máquinas diferentes, ou relações diferentes com a Máquina. Num certo sentido, tudo o que atribuímos a uma idade já estava presente na idade precedente. As forças, por exemplo: a questão sempre foi a das forças, marcadas como forças do caos, ou como forças da terra. Assim também, é desde sempre que a pintura se propôs a tornar visível, ao invés de reproduzir o visível, e a música a tornar sonoro, ao invés de reproduzir o sonoro. Conjuntos vagos não pararam de se constituir, e de inventar seus processos de consolidação. Já encontramos uma liberação do molecular nas matérias de conteúdo clássicas, operando por desestratificação, e nas matérias de expressão românticas, operando por descodificação. Tudo o que se pode dizer é que enquanto as forças aparecem como da terra ou do caos, elas não são captadas diretamente como forças, mas refletidas em relações da matéria e da forma. Trata-se antes, portanto, de limiares de percepção, de limiares de discernibilidade, que pertencem a este ou àquele agenciamento. É só quando a matéria é suficientemente desterritorializada que ela própria surge como molecular, e faz surgir puras forças que não podem mais ser atribuídas senão ao Cosmo. Isto já estava presente “desde sempre”, mas em outras condições perceptivas. É preciso novas condições para que aquilo que estava escondido ou encoberto, inferido, concluído, passe agora para a superfície. O que estava composto num agenciamento, o que era ainda apenas composto, torna-se componente de um novo agenciamento. Nesse sentido, não há quase história senão da percepção, enquanto que aquilo do que se faz a história é antes a matéria de um devir-, não de uma história. O devir seria como a máquina, diferentemente presente em cada agenciamento, mas passando de um para outro, abrindo um para o outro, independentemente de uma ordem fixa ou de uma sucessão determinada. Podemos, então, voltar ao ritornelo. Podemos propor uma outra classificação: os ritornelos de meios, com pelo menos duas partes, onde uma responde à outra (o piano e o violino); os ritornelos do natal, do território, onde a parte está em relação com o todo, com um imenso ritornelo da terra, seguindo relações elas próprias variáveis que marcam a cada vez a defasagem da terra em relação ao território (a cantiga de ninar, a canção para beber, a canção de caça, de trabalho, a militar, etc); os ritornelos populares e folclóricos, eles próprios em relação com um imenso canto do povo, seguindo as relações variáveis de

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individuações de multidão que trabalham ao mesmo tempo com afectos e nações (a Polonaise, a Auvergnate, a Allemande, a Magyare ou a Roumaine, mas também a Patética, a Pânico, a Vingadora..., etc); os ritornelos molecularizados (o mar, o vento) em relação com forças cósmicas, com o ritornelo-Cosmo. Pois o próprio Cosmo é um ritornelo, e a orelha também (tudo aquilo que se considerou como labirintos era ritornelos). Mas, justamente, por que o ritornelo é eminentemente sonoro? De onde vem esse privilégio da orelha quando já os animais, os pássaros nos apresentam tantos ritornelos gestuais, posturais, cromáticos, visuais? O pintor tem menos ritornelos do que o músico? Há menos ritornelos em Cézanne ou em Klee do que em Mozart, Schumann ou Debussy? Nos exemplos de Proust: o pedacinho de muro amarelo de Vermeer, ou as flores de um pintor, as rosas de Elstir, fazem menos “ritornelo” que a pequena frase de Vinteuil? Não se trata, certamente, de outorgar a supremacia a tal ou qual arte em função de uma hierarquia formal ou de critérios absolutos. O problema, mais modesto, seria o de comparar as potências ou coeficientes de desterritorialização dos componentes sonoros e dos componentes visuais. Parece que o som, ao se desterritorializar, afina-se cada vez mais, especifica-se e tornase autônomo, enquanto que a cor cola mais, não necessariamente ao objeto, mas à territorialidade. Quando ela se desterritorializa, ela tende a dissolver-se, a deixar-se pilotar por outros componentes. Vemos bem isso nos fenômenos de sinestesia, que não se reduzem a uma simples correspondência cor-som, mas onde os sons têm o papel-piloto e induzem cores que se superpõem às cores vistas, comunicando-lhes um ritmo e um movimento propriamente sonoros51. O som não deve essa potência a valores significantes ou de “comunicação” (os quais, ao contrário, a supõem), nem a propriedades físicas (as quais dariam antes o privilégio à luz). E uma linha filogênica, um phylum maquínico, que passa pelo som, e faz dele uma ponta de desterritorialização. E isto não acontece sem grandes ambiguidades: o som nos invade, nos empurra, nos arrasta, nos atravessa. Ele deixa a terra, mas tanto para nos fazer cair num buraco negro, quanto para nos abrir a um cosmo. Ele nos dá vontade de morrer. Tendo a maior força de desterritorialização, ele opera também as mais maciças

Sobre esta relação das cores com os sons, cf. Messiaen e Samuel, Entretiens, pp. 36-38. O que Messiaen recrimina nos drogados é simplificarem demais a relação, que nesse caso atua entre um ruído e uma cor, em vez de fazer intervir complexos de sons-durações e complexos de cores. 51

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reterritorializações, as mais embrutecidas, as mais redundantes. Êxtase e hipnose. Não se faz um povo se mexer com cores. As bandeiras nada podem sem as trombetas, os lasers modulam-se a partir do som. O ritornelo é sonoro por excelência, mas ele desenvolve sua força tanto numa cançãozinha viscosa, quanto no mais puro motivo ou na pequena frase de Vinteuil. E às vezes um no outro: como Beethoven tornando-se uma “vinheta sonora”. Fascismo potencial da música. Pode-se dizer a grosso modo que a música está conectada num phylum maquínico infinitamente mais potente do que o da pintura: linha de pressão seletiva. É por isso que o músico não tem com o povo, com as máquinas, com os poderes estabelecidos, a mesma relação que o pintor tem. Os poderes, especialmente, sentem uma forte necessidade de controlar a distribuição dos buracos negros e das linhas de desterritorialização nesse phylum de sons, para conjurar ou apropriar-se dos efeitos do maquinismo musical. O pintor, ao menos na imagem que se faz dele, pode ser muito mais aberto socialmente, muito mais político e menos controlado desde fora e desde dentro. É porque ele próprio tem que criar ou recriar a cada vez um phylum, e fazêlo a cada vez a partir dos corpos de luz e de cor que ele produz, enquanto que o músico dispõe, ao contrário, de uma espécie de continuidade germinal, mesmo que latente, mesmo que indireta, a partir da qual ele produz seus corpos sonoros. Não é o mesmo movimento de criação: um vai do soma ao germen, e o outro, do germen ao soma. O ritornelo do pintor é como que o avesso daquele do músico, um negativo da música. Mas, de todo modo, o que é um ritornelo? Glass harmônica: o ritornelo é um prisma, um cristal de espaço-tempo. Ele age sobre aquilo que o rodeia, som ou luz, para tirar daí vibrações variadas, decomposições, projeções e transformações. O ritornelo tem igualmente uma função catalítica: não só aumentar a velocidade das trocas e reações naquilo que o rodeia, mas assegurar interações indiretas entre elementos desprovidos de afinidade dita natural, e através disso formar massas organizadas. O ritornelo seria portanto do tipo cristal ou proteína. Quanto ao germe ou à estrutura internos, eles teriam então dois aspectos essenciais: os aumentos e diminuições, acréscimos e subtrações, amplificações e eliminações com valores desiguais, mas também a presença de um movimento retrógrado que vai nos dois sentidos, como “nos vidros laterais de um bonde andando”. O estranho movimento retrogradado de joke. É próprio do ritornelo concentrar-se por eliminação num momento extremamente breve, como dos extremos a um centro, ou, ao contrário, desenvolver-se por acréscimos que vão de um centro aos extremos, mas também percorrer estes caminhos nos dois

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sentidos52. O ritornelo fabrica tempo. Ele é o tempo “implicado” de que falava o linguista Guillaume. A ambiguidade do ritornelo aparece então melhor, pois, se o movimento retrógrado não forma senão um círculo fechado, se os aumentos e diminuições se fazem apenas por valores regulares, por exemplo do dobro ou da metade, esse falso rigor espaço-temporal deixa o conjunto exterior mais ainda vago, tendo com o germe apenas relações associativas, indicativas ou descritivas — “um depósito de inautênticos elementos para a formação de impuros cristais” —, no lugar do puro cristal que capta as forças cósmicas. O ritornelo fica num estado de fórmula que evoca um personagem ou uma paisagem, em vez de ele próprio fazer um personagem rítmico, uma paisagem melódica. Portanto, é como dois polos do ritornelo, polos que não dependem apenas de uma qualidade intrínseca, mas também de um estado de força daquele que escuta: assim, a pequena frase da sonata de Vinteuil fica associada por muito tempo ao amor de Swann, ao personagem de Odette e à paisagem do bosque de Boulogne, até que ela gire em torno de si mesma, abra-se para si mesma para revelar potencialidades até então inauditas, entrar em outras conexões, levar o amor em direção a outros agenciamentos. Não há o Tempo como forma a priori, mas o ritornelo é a forma a priori do tempo que fabrica tempos diferentes a cada vez. É curioso como a música não elimina o ritornelo medíocre ou mau, ou o mau uso do ritornelo, mas, ao contrário, arrasta-o ou serve-se dele como de um trampolim. “Ah vous dirais-je maman...”, “Elle avait une jambe de bois...”, “Frère Jacques...”. Ritornelo de infância ou de pássaro, canto folclórico, canção de beber, valsa de Viena, sinetas de vaca, a música serve-se de tudo e arrasta tudo. Não que uma música de criança, de pássaro ou de folclore se reduza à fórmula associativa e fechada de que falávamos há pouco. Conviria, antes, mostrar como um músico precisa de um primeiro tipo de ritornelo, ritornelo territorial ou de agenciamento, para transformá-lo de dentro, desterritorializá-lo, e produzir enfim um ritornelo do segundo tipo, como meta final da música, ritornelo cósmico de uma máquina de sons. De um tipo ao outro, Gisèle Brelet colocou bem o problema a propósito de Bartok: como construir, a partir das melodias territoriais e populares, autônomas, suficientes, fechadas sobre si como modos, um novo

Sobre o cristal ou o tipo cristalino, os valores adicionados ou subtraídos, o movimento retrógrado, nos reportaremos tanto aos textos de Messiaen em seus Entretiens quanto àqueles de Paul Klee em seu Journal. 52

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cromatismo que as faça comunicar, e criar assim “temas” que assegurem um desenvolvimento da Forma ou antes um devir das Forças? O problema é geral, pois, em muitas direções, ritornelos vão ser semeados por um novo germe que reencontra os modos e os torna comunicantes, desfaz o temperamento, funde o maior e o menor, põe em fuga o sistema tonal, passa através de suas malhas ao invés de romper com ele53. Pode-se dizer: viva Chabrier contra Schoenberg, como Nietzsche dizia viva Bizet, e pelas mesmas razões, com a mesma intenção musical e técnica. Vai-se do modal a um cromatismo ampliado não temperado. Não se tem necessidade de suprimir o tonal, temse necessidade de colocá-lo em fuga. Vai-se dos ritornelos agenciados (territoriais, populares, amorosos, etc). ao grande ritornelo maquinado cósmico. Mas o trabalho de criação se faz já nos primeiros, ele está ali por inteiro. Na pequena forma-ritornelo ou rondo, já são introduzidas as deformações que vão captar uma grande força. Cenas de infância, brincadeiras de criança: parte-se de um ritornelo infantil, mas a criança já tem asas, tornase celeste. O devir-criança do músico duplica-se de um devir-aéreo da criança, num bloco indecomponível. Memória de um anjo, é antes devir para um cosmo. Cristal: o devir-pássaro de Mozart não se separa de um devir-iniciado do pássaro, e faz bloco com ele54. É o trabalho extremamente profundo no primeiro tipo de ritornelos que vai criar o segundo tipo, isto é, a pequena frase do Cosmo. Num concerto, Schumann precisa de todos os agenciamentos da orquestra para fazer com que o violoncelo deambule, como uma luz se afasta ou se apaga. Em Schumann, é todo um trabalho melódico, harmônico e rítmico erudito, que desemboca

Em L’Histoire de Ia musique, Pléiade, t. II, cf. o artigo de Roland-Manuel sobre “a evolução da harmonia na França e a renovação de 1880” (pp. 867-879) e o de Delage sobre Chabrier (831-840). E, sobretudo, o estudo de Gisèle Brelet sobre Bartok: “Não é dessa antinomia da melodia e do tema que vem a dificuldade para a música erudita de utilizar a música popular? A música popular é a melodia, no mais pleno sentido, a melodia nos persuadindo que ela se basta e que ela é a própria música. Como ela não recusaria dobrar-se ao desenvolvimento erudito de uma obra musical animada por seus próprios propósitos? Muitas das sinfonias inspiradas no folclore são apenas sinfonias sobre um tema popular, em relação ao qual o desenvolvimento erudito permanece alheio e exterior. A melodia popular não poderia ser um tema verdadeiro; e é por isso que na música popular ela é a obra inteira e, uma vez terminada, não tem outro recurso senão o de se repetir. Mas a melodia não pode transformar-se em tema? Bartok resolve esse problema que se acreditava insolúvel” (p. 1056). 53

54

Marcel Moré, Le dieu Mozart et le monde des oiseaux, Gallimard, p. 168. Sobre o cristal, pp. 83-89.

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neste resultado simples e sóbrio, desterritorializar o ritornelo55. Produzir um ritornelo desterritorializado, como meta final da música, soltá-la no Cosmo, é mais importante do que fazer um novo sistema. Abrir o agenciamento a uma força cósmica. De um ao outro, do agenciamento dos sons à Máquina que torna sonora — do devir-criança do músico ao devir-cósmico da criança —, surgem muitos perigos: os buracos negros, os fechamentos, as paralisias do dedo e as alucinações do ouvido, a loucura de Schumann, a força cósmica que tornou-se má, uma nota que te persegue, um som que te transpassa. No entanto, uma já estava no outro, a força cósmica estava no material, o grande ritornelo nos pequenos ritornelos, a grande manobra na pequena manobra. Só que nunca estamos seguros de ser suficientemente fortes, pois não temos sistema, temos apenas linhas e movimentos. Schumann. Traduzido por Suely Rolnik

55

Cf. a célebre análise que Berg faz de “Rêverie”, Ecrits, Ed. du Rocher, pp. 44-64.

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12 1227 TRATADO DE NOMADOLOGIA: A MÁQUINA DE GUERRA

Carruagem nômade inteiramente em madeira, Altai, séc. V-/V a. C.

Axioma I: A máquina de guerra é exterior ao aparelho de Estado. Proposição I: Essa exterioridade é confirmada, inicialmente, pela mitologia, a epopeia, o drama e os jogos.

Georges Dumézil, em análises decisivas da mitologia indo-europeia, mostrou que a soberania política, ou dominação, possuía duas cabeças: a do rei-mago, a do sacerdote-jurista. Rex e flamen, raj e Brahma, Rômulo e Numa,

1227 – Tratado de nomadologia: a máquina de guerra

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Varuna e Mitra, o déspota e o legislador, o ceifeiro e o organizador. E, sem dúvida, esses dois polos opõem-se termo a termo, como o escuro e o claro, o violento e o calmo, o rápido e o grave, o terrível e o regrado, o “liame” e o “pacto”, etc.1 Mas sua oposição é apenas relativa; funcionam em dupla, em alternância, como se exprimissem uma divisão do Uno ou compusessem, eles mesmos, uma unidade soberana. “Ao mesmo tempo antitéticos e complementares, necessários um ao outro e, por conseguinte, 2 sem hostilidade, sem mitologia de conflito: cada especificação num dos planos convoca automaticamente uma especificação homóloga no outro, e ambos, por si sós, esgotam o campo da função.” São os elementos principais de um aparelho de Estado que procede por UmDois, distribui as distinções binárias e forma um meio de interioridade. É uma dupla articulação que faz do aparelho de Estado um estrato. Note-se que a guerra não está incluída nesse aparelho. Ou bem o Estado dispõe de uma violência que não passa pela guerra: ele emprega policiais e carcereiros de preferência a guerreiros, não tem armas e delas não necessita, age por captura mágica imediata, “agarra” e “liga”, impedindo qualquer combate. Ou então o Estado adquire um exército, mas que pressupõe uma integração jurídica da guerra e a organização de uma função militar3. Quanto à máquina de guerra em si mesma, parece efetivamente irredutível ao aparelho de Estado, exterior a sua soberania, anterior a seu direito: ela vem de outra parte. Indra, o deus guerreiro, opõe-se tanto a Varuna como a Mitra³. Não se reduz a um dos dois, tampouco forma um terceiro. Seria antes como a multiplicidade pura e sem medida, a malta, irrupção do efêmero e potência da metamorfose. Desata o liame assim como trai o pacto. Faz valer um furor contra a medida, uma celeridade contra a gravidade, um segredo contra o público, uma potência contra a soberania, uma máquina contra o aparelho. Testemunha de uma outra justiça, às vezes de uma crueldade incompreensível, mas por vezes também de uma piedade desconhecida (visto que desata os liames...).4

1

Georges Dumézil, Mitra-Varuna, Gallimard (sobre o nexum e o mutuum, o liame e o contrato, cf. pp. 118-124).

O Estado, conforme seu primeiro polo (Varuna, Urano, Rômulo), opera por liame mágico, tomada ou captura imediata: não combate, e não tem máquina de guerra, “ele liga, e isso é tudo”. Conforme seu outro polo (Mitra, Zeus, Numa), apropria-se de um exército, mas submetendo-o a regras institucionais e jurídicas que o convertem tão-somente numa peça do aparelho de Estado; por exemplo, Marte-Tiwaz não é um deus guerreiro, mas um deus “jurista da guerra”. Cf. Dumézil, Mitra-Varuna, pp. 113 ss., 148 ss., 202 ss. 2

3

Dumézil, Heur et malhem du guerrier, PUF.

Sobre o papel do guerreiro como aquele que “desliga” e se opõe tanto ao liame mágico como ao contrato jurídico, cf. Mitra-Varuna, pp. 124-132. E passim em Dumézil, a análise do furor. 4

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Dá provas, sobretudo, de outras relações com as mulheres, com os animais, pois vive cada coisa em relações de devir, em vez de operar repartições binárias entre “estados”: todo um devir-animal do guerreiro, todo um devir-mulher, que ultrapassa tanto as dualidades de termos como as correspondências de relações. Sob todos os aspectos, a máquina de guerra é de uma outra espécie, de uma outra natureza, de uma outra origem que o aparelho de Estado. Seria preciso tomar um exemplo limitado, comparar a máquina de guerra ao aparelho de Estado segundo a teoria dos jogos. Sejam o Xadrez e o Go, do ponto de vista das peças, das relações entre as peças e do espaço concernido. O xadrez é um jogo de Estado, ou de corte; o imperador da China o praticava. As peças do xadrez são codificadas, têm uma natureza interior ou propriedades intrínsecas, de onde decorrem seus movimentos, suas posições, seus afrontamentos. Elas são qualificadas, o cavaleiro é sempre um cavaleiro, o infante um infante, o fuzileiro um fuzileiro. Cada uma é como um sujeito de enunciado, dotado de um poder relativo; e esses poderes relativos combinam-se num sujeito de enunciação, o próprio jogador de xadrez ou a forma de inferioridade do jogo. Os peões do go, ao contrário, são grãos, pastilhas, simples unidades aritméticas, cuja única função é anônima, coletiva ou de terceira pessoa: “Ele” avança, pode ser um homem, uma mulher, uma pulga ou um elefante. Os peões do go são os elementos de um agenciamento maquínico não subjetivado, sem propriedades intrínsecas, porém apenas de situação. Por isso as relações são muito diferentes nos dois casos. No seu meio de interioridade, as peças de xadrez entretêm relações biunívocas entre si e com as do adversário: suas funções são estruturais. Um peão do go, ao contrário, tem apenas um meio de exterioridade, ou relações extrínsecas com nebulosas, constelações, segundo as quais desempenha funções de inserção ou de situação, como margear, cercar, arrebentar. Sozinho, um peão do go pode aniquilar sincronicamente toda uma constelação, enquanto uma peça de xadrez não pode (ou só pode fazê-lo diacronicamente). O xadrez é efetivamente uma guerra, porém uma guerra institucionalizada, regrada, codificada, com um fronte, uma retaguarda, batalhas. O próprio do go, ao contrário, é uma guerra sem linha de combate, sem afrontamento e retaguarda, no limite sem batalha: pura estratégia, enquanto

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o xadrez é uma semiologia. Enfim, não é em absoluto o mesmo espaço: no caso do xadrez, trata-se de distribuir-se um espaço fechado, portanto, de ir de um ponto a outro, ocupar o máximo de casas com um mínimo de peças. No go, trata-se de distribuir-se num espaço aberto, ocupar o espaço, preservar a possibilidade de surgir em qualquer ponto: o movimento já não vai de um ponto a outro, mas torna-se perpétuo, sem alvo nem destino, sem partida nem chegada. Espaço “liso” do go, contra espaço “estriado” do xadrez. Nomos do go contra Estado do xadrez, nomos contra polis. É que o xadrez codifica e descodifica o espaço, enquanto o go procede de modo inteiramente diferente, territorializa-o e o desterritorializa (fazer do fora um território no espaço, consolidar esse território mediante a construção de um segundo território adjacente, desterritorializar o inimigo através da ruptura interna de seu território, desterritorializar-se a si mesmo renunciando, indo a outra parte...). Uma outra justiça, um outro movimento, um outro espaço-tempo. “Eles chegam como o destino, sem causa, sem razão, sem respeito, sem pretexto...” “Impossível compreender como eles penetraram até a capital, no entanto aí estão eles, e cada manhã parece aumentar seu número...” — Luc de Heusch pôs em evidência um mito banto que nos remete ao mesmo esquema: Nkongolo, imperador autóctone, organizador de grandes obras, homem público e de polícia, entrega suas meio-irmãs ao caçador Mbidi, que primeiro o ajuda, depois vai embora; o filho de Mbidi, o homem do segredo, junta-se a seu pai, mas para retornar de fora, com esta coisa inimaginável, um exército, e matar Nkongolo, com o risco de refazer um novo Estado...5 “Entre” o Estado despótico-mágico e o Estado jurídico que compreende uma instituição militar, haveria essa fulguração da máquina de guerra, vinda de fora. Do ponto de vista do Estado, a originalidade do homem de guerra, sua excentricidade, aparece necessariamente sob uma forma negativa: estupidez, deformidade, loucura, ilegitimidade, usurpação, pecado... Dumézil analisa os três “pecados” do guerreiro na tradição indo-européia: contra o rei, contra o sacerdote, contra as leis derivadas do Estado (seja uma transgressão sexual que compromete a repartição entre homens e mulheres, seja até uma traição às leis da guerra tal como instituídas

Luc de Heusch (Le roi ivre ou 1’origine de 1’Etat) insiste no caráter público dos gestos de Nkongolo, por oposição ao segredo dos gestos de Mbidi e de seu filho: o primeiro, notadamente, come em público, enquanto os demais se ocultam durante as refeições. Veremos a relação essencial do segredo com uma máquina de guerra, tanto do ponto de vista do princípio como das consequências: espionagem, estratégia, diplomacia. Os comentadores salientaram com frequência essa relação. 5

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pelo Estado6). O guerreiro está na situação de trair tudo, inclusive a função militar, ou de nada compreender. Ocorre a historiadores, burgueses ou soviéticos, seguir essa tradição negativa, e explicar que Gêngis Khan nada compreende: ele “não compreende” o fenômeno estatal, “não compreende” o fenômeno urbano. Fácil de dizer. E que a exterioridade da máquina de guerra em relação ao aparelho de Estado revela-se por toda parte, mas continua sendo difícil de pensar. Não basta afirmar que a máquina é exterior ao aparelho, é preciso chegar a pensar a máquina de guerra como sendo ela mesma uma pura forma de exterioridade, ao passo que o aparelho de Estado constitui a forma de interioridade que tomamos habitualmente por modelo, ou segundo a qual temos o hábito de pensar. O que complica tudo é que essa potência extrínseca da máquina de guerra tende, em certas circunstâncias, a confundir-se com uma ou outra das cabeças do aparelho de Estado. Ora se confunde com a violência mágica de Estado, ora com a instituição militar de Estado. Por exemplo, a máquina de guerra inventa a velocidade e o segredo; no entanto, há uma certa velocidade e um certo segredo que pertencem ao Fitado, relativamente, secundariamente. Há, portanto, um grande risco de identificar a relação estrutural entre os dois polos da soberania política e a relação dinâmica do conjunto desses dois polos com a potência de guerra. Dumézil cita a linhagem dos reis de Roma: a relação Rômulo-Numa, que se reproduz ao longo de uma série, com variantes e alternância entre os dois tipos de soberanos igualmente legítimos; mas também a relação com um “mau rei”, Tulo Hostílio, Tarquínio o Soberbo, a irrupção do guerreiro como personagem inquietante, ilegítimo.7 Poderíamos também invocar os reis de Shakespeare: nem sequer a violência, os assassinatos e as perversões impedem a linhagem de Estado de formar “bons” reis; mas insinua-se um personagem inquietante, Ricardo III, que anuncia desde o início sua intenção de reinventar uma máquina de guerra e de impor-lhe a linha (disforme, patife e traidor, ele invoca um “objetivo secreto”, sem relação alguma com a conquista do poder de Estado, e uma relação outra com as mulheres). Em suma, a cada vez que se confunde a irrupção do poder de guerra com a linhagem de dominação de Estado, tudo se

Dumézil, Mythe et epopée, Gallimard, II, pp. 17-19: análise dos três pecados, que reencontramos no caso do deus indiano Indra, do herói escandinavo Starcatherus, do herói grego Heracles(Hércules). Cf. também Heur et malhem du guerrier. 6

Dumézil, Mitra-Varuna, p. 135. Dumézil analisa os riscos e as razões da confusão que podem provir de variantes econômicas, cf. pp. 153, 159. 7

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embaralha, e a máquina de guerra passa a ser concebida unicamente sob a forma do negativo, já que não se deixou nada de fora do próprio Estado. Porém, restituída a seu meio de exterioridade, a máquina de guerra se revela de uma outra espécie, de uma outra natureza, de uma outra origem. Dir-se-ia que ela se instala entre as duas cabeças do Estado, entre as duas articulações, e que é necessária para passar de uma a outra. Mas justamente, “entre” as duas, ela afirma no instante, mesmo efêmero, mesmo fulgurante, sua irredutibilidade. O Estado por si só não tem máquina de guerra; esta será apropriada por ele exclusivamente sob forma de instituição militar, e nunca deixará de lhe criar problemas. Donde a desconfiança dos Estados face à sua instituição militar, dado que esta procede de uma máquina de guerra extrínseca. Clausewitz tem o pressentimento dessa situação geral, quando trata o fluxo de guerra absoluta como uma Ideia, da qual os Estados se apropriam parcialmente segundo as necessidades de sua política, e em relação à qual são melhores ou piores “condutores”. Acuado entre os dois polos da soberania política, o homem de guerra parece ultrapassado, condenado, sem futuro, reduzido ao próprio furor que ele volta contra si mesmo. Os descendentes de Héracles, Aquiles, depois Ajax, têm ainda força suficiente para afirmar sua independência frente a Agamenon, o homem do velho Estado, mas nada podem contra Ulisses, o nascente homem do Estado moderno, o primeiro homem do Estado moderno. E é Ulisses quem herda as armas de Aquiles, para modificar-lhes o uso, submetê-las ao direito de Estado, não Ajax, condenado pela deusa a quem desafiou, contra quem pecou8. Ninguém melhor que Kleist mostrou essa situação do homem de guerra, ao mesmo tempo excêntrico e condenado. Com efeito, em Pentesiléia, Aquiles já está separado de sua potência: a máquina de guerra passou para o campo das Amazonas, povo-mulher sem Estado, cuja justiça, religião, amores, estão organizados de um modo unicamente guerreiro. Descendentes dos citas, as Amazonas surgem como o raio, “entre” os dois Estados, o grego e o troiano. Elas varrem tudo em sua passagem. Aquiles encontra-se diante de seu duplo, Pentesiléia, e, na sua luta ambígua, ele não pode impedir-se de esposar a máquina de guerra ou amar Pentesiléia, portanto de trair ao mesmo tempo Agamenon e Ulisses. No entanto, ele pertence já suficientemente ao Estado grego, de modo que Pentesiléia, por sua vez, não pode entrar com ele na relação passional da guerra

Sobre Ájax e a tragédia de Sófocles, cf. a análise de Jean Starobinski, Trois fureurs, Gailimard. Starobinski coloca explicitamente o problema da guerra e do Estado. 8

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sem trair, ela mesma, a lei coletiva de seu povo, esta lei de malta que proíbe “escolher” o inimigo, e de entrar num face a face ou em distinções binárias. Kleist, em toda sua obra, canta uma máquina de guerra, e a opõe ao aparelho de Estado num combate perdido de antemão. Arminius anuncia, sem dúvida, uma máquina de guerra germânica que rompe com a ordem imperial das alianças e dos exércitos, e se ergue para sempre contra o Estado romano. Mas o príncipe de Homburgo já vive tãosomente num sonho, e é condenado por ter obtido a vitória desobedecendo à lei de Estado. Quanto a Kohlhaas, doravante sua máquina de guerra só pode ser de bandidagem. Será que o destino de uma tal máquina, quando o Estado triunfa, é cair na alternativa: ou ser apenas o órgão militar e disciplinado do aparelho de Estado, ou então voltarse contra si mesma, e tornar-se uma máquina de suicídio a dois, para um homem e uma mulher solitários? Goethe e Hegel, pensadores de Estado, vêem em Kleist um monstro, e Kleist perdeu de antemão. Por que, no entanto, a mais estranha modernidade está de seu lado? É que os elementos de sua obra são o segredo, a velocidade e o afecto9. Em Kleist o segredo já não é um conteúdo tomado numa forma de interioridade; ao contrário, torna-se forma, e identifica-se à forma de exterioridade sempre fora de si mesma. Do mesmo modo, os sentimentos são arrancados à inferioridade de um “sujeito” para serem violentamente projetados num meio de pura exterioridade que lhes comunica uma velocidade inverossímil, uma força de catapulta: amor ou ódio já não são em absoluto sentimentos, mas afectos. E esses afectos são outros tantos devir-mulher, deviranimal do guerreiro (o urso, as cadelas). Os afectos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra. Velocidade de desterritorialização do afecto. Mesmo os sonhos (o do príncipe de Homburgo, o de Pentesiléia) são exteriorizados mediante um sistema de revezamentos e ramificações, de encadeamentos extrínsecos que pertencem à máquina de guerra. Anéis partidos. Esse elemento de exterioridade, que domina tudo, que Kleist inventa em literatura, que ele é o primeiro a inventar, vai dar ao tempo um novo ritmo, uma sucessão sem fim de catatonias ou desfalecimentos, e de fulgurações ou precipitações. A catatonia é “esse afecto é forte demais para mim”, e a fulguração, “a força desse afecto me arrebata”, o Eu não passando de um personagem cujos gestos e emoções estão dessubjetivados, com o que se arrisca a própria vida. Tal é a fórmula pessoal de Kleist: uma sucessão de corridas

9

Temas analisados por Mathieu Carrière num estudo inédito sobre Kleist.

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loucas e de catatonias petrificadas, onde já não subsiste qualquer inferioridade subjetiva. Há muito de Oriente em Kleist: o lutador japonês, imóvel interminavelmente, que de súbito faz um gesto rápido demais para ser percebido. O jogador de go. Na arte moderna, muitas coisas vêm de Kleist. Com relação a ele, Goethe e Hegel são homens velhos. Será possível que no momento em que já não existe, vencida pelo Estado, a máquina de guerra testemunhe ao máximo sua irrefutabilidade, enxameie em máquinas de pensar, de amar, de morrer, de criar, que dispõem de forças vivas ou revolucionárias suscetíveis de recolocar em questão o Estado triunfante? E no mesmo movimento que a máquina de guerra já está ultrapassada, condenada, apropriada, e que ela toma novas formas, se metamorfoseia, afirmando sua irredutibilidade, sua exterioridade: desenrolar esse meio de exterioridade pura que o homem de Estado ocidental, ou o pensador ocidental, não param de reduzir?

Problema I: Existe algum meio de conjurar a formação de um aparelho de Estado (ou de seus equivalentes num grupo)? Proposição II: A exterioridade da máquina de guerra é igualmente confirmada pela etnologia (homenagem à memória de Pierre Clastres).

As sociedades primitivas segmentárias foram definidas com frequência como sociedades sem Estado, isto é, em que não aparecem órgãos de poder distintos. Mas disto concluía-se que essas sociedades não atingiram o grau de desenvolvimento econômico, ou o nível de diferenciação política que tornariam a um só tempo possível e inevitável a formação de um aparelho de Estado: os primitivos, desde logo, “não entendem” um aparelho tão complexo. O primeiro interesse das teses de Clastres está em romper com esse postulado evolucionista. Clastres não só duvida que o Estado seja o produto de um desenvolvimento econômico determinável, mas indaga se as sociedades primitivas não teriam a preocupação potencial de conjurar e prevenir esse monstro que supostamente não compreendem. Conjurar a formação de um aparelho de Estado, tornar impossível uma tal formação, tal seria o objeto de um certo número de mecanismos sociais primitivos, ainda que deles não se tenha uma consciência clara. Sem dúvida, as sociedades primitivas possuem chefes. Mas o Estado não se define pela existência de chefes, e sim pela perpetuação ou conservação de órgãos de poder. A preocupação do Estado é conservar. Portanto, são necessárias instituições especiais para que um chefe possa tornarse homem de Estado, porém requer-se não menos mecanismos coletivos difusos para impedir que

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isso ocorra. Os mecanismos conjuratórios ou preventivos fazem parte da chefia, e a impedem que se cristalize num aparelho distinto do próprio corpo social. Clastres descreve essa situação do chefe cuja única arma instituída é seu prestígio, cujo único meio é a persuasão, cuja única regra é o pressentimento dos desejos do grupo: o chefe assemelha-se mais a um líder ou a uma vedete do que a um homem de poder, e corre sempre o risco de ser renegado, abandonado pelos seus. E mais: Clastres considera que, nas sociedades primitivas, a guerra é o mecanismo mais seguro contra a formação do Estado: é que a guerra mantém a dispersão e a segmentaridade dos grupos, e o guerreiro é ele mesmo tomado num processo de acumulação de suas façanhas que o conduz a uma solidão e a uma morte prestigiosas, porém sem poder10. Clastres pode então invocar o Direito natural revertendo sua proposição principal: assim como Hobbes viu nitidamente que o Estado existia contra a guerra, a guerra existe contra o Estado, e o torna impossível. Disto não se conclui que a guerra seja um estado de natureza, mas, ao contrário, que ela é o modo de um estado social que conjura e impede a formação do Estado. A guerra primitiva não produz o Estado, tampouco dele deriva. E assim como ela não se explica pelo Estado, tampouco se explica pela troca: longe de derivar da troca, mesmo para sancionar seu fracasso, a guerra é aquilo que limita as trocas, que as mantém no marco das “alianças”, que as impede de tornar-se um fator de Estado ou fazer com que os grupos se fusionem. O interesse dessa tese está, primeiramente, em chamar a atenção para alguns mecanismos coletivos de inibição. Tais mecanismos podem ser sutis, e funcionar como micro-mecanismos. Isso é nítido em certos fenômenos de bandos ou de maltas. Por exemplo, a propósito dos bandos de moleques de Bogotá, Jacques Meunier cita três meios que impedem o líder de adquirir um poder estável: os membros do bando se reúnem e conduzem sua atividade de roubo em comum, com butim coletivo, porém logo se dispersam, não permanecem juntos para dormir e comer; por outro lado, e sobretudo, cada membro do bando está emparelhado com um, dois ou três outros membros, de modo que, em caso de desacordo com o chefe, não partirá só, mas arrastará consigo seus aliados cuja partida conjugada ameaça desmanchar o bando inteiro; por último, há um limite de idade difuso que faz com que, por volta dos

Pierre Clastres, La sociétc contre 1’Etat, Ed. de Minuit; “Archéologie dela violence” e “Malhenr du guerrier sauvage”, in Libre I e II, Payot. Neste último texto, Clastres faz o retrato do destino do guerreiro na sociedade primitiva, e analisa o mecanismo que impede a concentração de poder (do mesmo modo, Mauss havia mostrado que o potlatch é um mecanismo que impede a concentração de riqueza). 10

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quinze anos, deva-se abandonar o bando obrigatoriamente, desgrudar-se dele11. Para compreender esses mecanismos, é preciso renunciar à visão evolucionista que faz do bando ou da malta uma forma social rudimentar e menos bem organizada. Mesmo nos bandos animais, a chefia é um mecanismo complexo que não promove o mais forte, porém antes inibe a instauração de poderes estáveis, em favor de um tecido de relações imanentes12. Do mesmo modo, seria possível opor, entre os homens mais evoluídos, a forma de “mundanidade” à de “sociabilidade”: os grupos mundanos estão próximos dos bandos e procedem por difusão de prestígio, mais do que por referência a centros de poder, como sucede nos grupos sociais (Proust mostrou bem essa falta de correspondência entre os valores mundanos e os valores sociais). Eugène Sue, mundano e dândi, a quem os legitimistas censuravam por frequentar a família de Orléans, dizia: “Eu não me reúno à família, reúno-me à malta”. As maltas, os bandos são grupos do tipo rizoma, por oposição ao tipo arborescente que se concentra em órgãos de poder. É por isso que os bandos em geral, mesmo de bandidagem, ou de mundanidade, são metamorfoses de uma máquina de guerra, que difere formalmente de qualquer aparelho de Estado, ou equivalente, o qual, ao contrário, estrutura as sociedades centralizadas. Não cabe dizer, pois, que a disciplina é o próprio da máquina de guerra: a disciplina torna-se a característica obrigatória dos exércitos quando o Estado se apodera deles; mas a máquina de guerra responde a outras regras, das quais não dizemos, por certo, que são melhores, porém que animam uma indisciplina fundamental do guerreiro, um questionamento da hierarquia, uma chantagem perpétua de abandono e traição, um sentido da honra muito suscetível, e que contraria, ainda uma vez, a formação do Estado. O que faz, no entanto, com que essa tese não nos convença completamente? Seguimos Clastres quando ele mostra que o Estado não se explica por um desenvolvimento das forças produtivas, nem por uma diferenciação das forças políticas. É ele, ao contrário, que torna possível o empreendimento das grandes obras, a

Jacques Meunier, Les gamins de Bogotá, Lattès, p. 159 (“chantage à la dispersion”), p. 177: em caso de necessidade, “são os outros moleques, mediante um jogo complicado de humilhações e silêncios, que o convencem de que deve abandonar o bando”. Meunier sublinha a que ponto o destino do ex-moleque está comprometido: não só por razões de saúde, mas porque integra-se mal à “quadrilha”, que para ele é uma sociedade hierarquizada e centralizada demais, demasiado centrada nos órgãos de poder (p. 178). Sobre os bandos de crianças, cf. também o romance de Jorge Amado, Capitães de areia (Capitaines des sables, Gallimard). 11

12

Cf. I.S. Bernstein, “La dominance social chez les primates”, La Kecherche n°91,jul. 1978.

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constituição dos excedentes e a organização das funções públicas correspondentes. É ele que torna possível a distinção entre governantes e governados. Não há como explicar o Estado por aquilo que o supõe, mesmo recorrendo à dialética. Parece evidente que o Estado surge de uma só vez, sob uma forma imperial, e não remete a fatores progressivos. Seu surgimento num determinado lugar é como um golpe de gênio, o nascimento de Atena. Também estamos de acordo com Clastres quando mostra que uma máquina de guerra está dirigida contra o Estado, seja contra Estados potenciais cuja formação ela conjura de antemão, seja, mais ainda, contra os Estados atuais a cuja destruição se propõe. Com efeito, a máquina de guerra é sem dúvida efetuada nos agenciamentos “bárbaros” dos nômades guerreiros, muito mais do que nos agenciamentos “selvagens” das sociedades primitivas. Em todo caso, está descartado que a guerra produza um Estado, ou que o Estado seja o resultado de uma guerra cujos vencedores imporiam desse modo uma nova lei aos vencidos, uma vez que a organização da máquina de guerra é dirigida contra a forma-Estado, atual ou virtual. Não se obtém uma explicação melhor para o Estado invocando-se um resultado da guerra, em lugar de uma progressão das forças econômicas ou políticas. Desde logo, Pierre Clastres aprofunda o corte: entre sociedades contra-o-Es-tado, ditas primitivas, e sociedades-com-Estado, ditas monstruosas, que não chegamos a apreender de modo algum como puderam se formar. Clastres é fascinado pelo problema de uma “servidão voluntária”, à maneira de La Boétie: como foi que pessoas quiseram ou desejaram uma servidão, que certamente não lhes vinha de um desfecho de guerra involuntário e infeliz? Contudo, eles dispunham de mecanismos contra o Estado: então, por que e como o Estado? Por que o Estado triunfou? Pierre Clastres, à força de aprofundar esse problema, parecia privar-se dos meios para resolvê-lo13. Tendia a fazer das sociedades primitivas uma hipóstase, uma entidade autossuficiente (insistia muito nesse ponto). Convertia a exterioridade formal

Clastres, La societé contra l’Etat, p. 170: “A aparição do Estado operou a grande partilha tipológica entre Selvagens e Civilizados, inscreveu o corte inapagável para além do qual tudo mudou, pois o tempo torna-se História”. Para dar conta dessa aparição, Clastres invocava em primeiro lugar um fator demográfico (mas “sem pensar em substituir um determinismo econômico por um determinismo demográfico...”); e também a precipitação eventual da máquina guerreira (?); ou então, de uma maneira mais inesperada, o papel indireto de um certo profetismo que, primeiramente dirigido contra os “chefes”, teria produzido um poder temível por outras razões. Mas, evidentemente, não podemos prejulgar das soluções mais elaboradas que Clastres teria dado a esse problema. Sobre o papel eventual do profetismo, reporte-se ao livro de Hélène Clastres, La terre sans mal, le prophétisme tupiguarani, Ed. du Seuil. 13

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em independência real. Dessa forma, continuava sendo evolucionista, e pressupunha um estado de natureza. Ocorre que esse estado de natureza era, segundo ele, uma realidade plenamente social, ao invés de ser um puro conceito, e essa evolução era de mutação brusca, não de desenvolvimento, pois, de um lado, o Estado surgia de um só golpe, todo pronto; de outro lado, as sociedades contra-o-Estado dispunham de mecanismos muito precisos para conjurá-lo, para impedir que surgisse. Acreditamos que essas duas proposições são boas, mas que falta o encadeamento entre elas. Existe um velho esquema: “dos clãs aos impérios”, ou “dos bandos aos reinos”... Porém, nada garante que haja uma evolução nesse sentido, visto que os bandos e os clãs não são menos organizados que os reinos-impérios. Ora, não se romperá com essa hipótese de evolução aprofundando o corte entre ambos os termos, isto é, dando uma autosuficiência aos bandos e um surgimento tanto mais milagroso ou monstruoso ao Estado. É preciso dizer que o Estado sempre existiu, e muito perfeito, muito formado. Quanto mais os arqueólogos fazem descobertas, mais descobrem impérios. A hipótese do Urstaat parece verificada, “o Estado enquanto tal remonta já aos tempos mais remotos da humanidade”. Mal conseguimos imaginar sociedades primitivas que não tenham tido contato com Estados imperiais, na periferia ou em zonas mal controladas. Porém, o mais importante é a hipótese inversa: que o Estado ele mesmo sempre esteve em relação com um fora, e não é pensável independentemente dessa relação. A lei do Estado não é a do Tudo ou Nada (sociedades com Estado ou sociedades contra o Estado), mas a do interior e do exterior. O Estado é a soberania. No entanto, a soberania só reina sobre aquilo que ela é capaz de interiorizar, de apropriar-se localmente. Não apenas não há Estado universal, mas o fora dos Estados não se deixa reduzir à “política externa”, isto é, a um conjunto de relações entre Estados. O fora aparece simultaneamente em duas direções: grandes máquinas mundiais, ramificadas sobre todo o ecúmeno num momento dado, e que gozam de uma ampla autonomia com relação aos Estados (por exemplo, organizações comerciais do tipo “grandes companhias”, ou então complexos industriais, ou mesmo formações religiosas como o cristianismo, o islamismo, certos movimentos de profetismo ou de messianismo, etc); mas também mecanismos locais de bandos, margens, minorias, que continuam a afirmar os direitos de sociedades segmentárias contra os órgãos de poder de Estado. O mundo moderno nos oferece hoje imagens particularmente desenvolvidas dessas duas direções, a das máquinas mundiais ecumênicas, mas também a de um

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neoprimitivismo, uma nova sociedade tribal tal como a descreve McLuhan. Essas direções não estão menos presentes em todo campo social, e sempre. Acontece até de se confundirem parcialmente; por exemplo, uma organização comercial é também um bando de pilhagem ou de pirataria numa parte de seu percurso e em muitas de suas atividades; ou então é por bandos que uma formação religiosa começa a operar. O que é evidente é que os bandos, não menos que as organizações mundiais, implicam uma forma irredutível ao Estado, e que essa forma de exterioridade se apresenta necessariamente como a de uma máquina de guerra, polimorfa e difusa. E um nomos, muito diferente da “lei”. A forma-Estado, como forma de interioridade, tem uma tendência a reproduzir-se, idêntica a si através de suas variações, facilmente reconhecível nos limites de seus polos, buscando sempre o reconhecimento público (o Estado não se oculta). Mas a forma de exterioridade da máquina de guerra faz com que esta só exista nas suas próprias metamorfoses; ela existe tanto numa inovação industrial como numa invenção tecnológica, num circuito comercial, numa criação religiosa, em todos esses fluxos e correntes que não se deixam apropriar pelos Estados senão secundariamente. Não é em termos de independência, mas de coexistência e de concorrência, num campo perpétuo de interação, que é preciso pensar a exterioridade e a interioridade, as máquinas de guerra de metamorfose e os aparelhos identitários de Estado, os bandos e os reinos, as megamáquinas e os impérios. Um mesmo campo circunscreve sua interioridade em Estados, mas descreve sua exterioridade naquilo que escapa aos Estados ou se erige contra os Estados.

Proposição III: A exterioridade da máquina de guerra é confirmada ainda pela epistemologia, que deixa pressentir a existência e a perpetuação de uma “ciência menor” ou “nômade”.

Há um gênero de ciência, ou um tratamento da ciência, que parece muito difícil de classificar, e cuja história é até difícil seguir. Não são “técnicas”, segundo a acepção costumeira. Porém, tampouco são “ciências”, no sentido régio ou legal estabelecido pela História. Segundo um livro recente de Michel Serres, pode-se detectar seu rastro ao mesmo tempo na física atômica, de Demócrito a Lucrécio, e na geometria de Arquimedes14. As características de uma tal ciência excêntrica

Michel Serres, La naissance de Ia phyúque dans le texte de Lucrèce. Fleuves et turbulences, Ed. de Minuit. Serres é o primeiro a destacar os três pontos que se seguem; o quarto nos parece encadear-se com eles. 14

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seriam as seguintes: 1) Teria inicialmente um modelo hidráulico, ao invés de ser uma teoria dos sólidos, que considera os fluidos como um caso particular; com efeito, o atomismo antigo é indissociável dos fluxos, o fluxo é a realidade mesma ou a consistência. 2) É um modelo de devir e de heterogeneidade que se opõe ao estável, ao eterno, ao idêntico, ao constante. É um “paradoxo”, fazer do próprio devir um modelo, e não mais o caráter segundo de uma cópia; Platão, no Timeu, evocava essa possibilidade, mas para excluí-la e conjurá-la, em nome da ciência regia. Ora, no atomismo, ao contrário, a famosa declinação do átomo proporciona um tal modelo de heterogeneidade, e de passagem ou de devir pelo heterogêneo. O clinamen, como ângulo mínimo, só tem sentido entre uma reta e uma curva, a curva e sua tangente, e constitui a curvatura principal do movimento do átomo. O clinamen é o ângulo mínimo pelo qual o átomo se afasta da reta. É uma passagem ao limite, uma exaustão, um modelo “exaustivo” paradoxal. O mesmo ocorre com a geometria de Arquimedes, onde a reta definida como “o caminho mais curto entre dois pontos” é apenas um meio para definir a longitude de uma curva, num cálculo pré-diferencial. 3) Já não se vai da reta a suas paralelas, num escoamento lamelar ou laminar, mas da declinação curvilínea à formação das espirais e turbilhões sobre um plano inclinado: a maior inclinação para o menor ângulo. Da turba ao turbo: ou seja, dos bandos ou maltas de átomos às grandes organizações turbilhonares. O modelo é turbilhonar, num espaço aberto onde as coisas-fluxo se distribuem, em vez de distribuir um espaço fechado para coisas lineares e sólidas. É a diferença entre um espaço liso (vetorial, projetivo ou topológico) e um espaço estriado (métrico): num caso, “ocupa-se o espaço sem medi-lo”, no outro, “mede-se o espaço a fim de ocupá-lo”15. 4) Por último, o modelo é problemático, e não mais teoremático: as figuras só são consideradas em função das afecções que lhes acontecem, secções, ablações, adjunções, projeções. Não se vai de um gênero a suas espécies por diferenças específicas, nem de uma essência estável às propriedades que dela decorrem por dedução, mas de um problema aos acidentes que o condicionam e o resolvem. Há aí toda sorte de deformações, transmutações, passagens ao limite, operações onde cada figura designa um “acontecimento”

Pierre Boulez distingue assim dois espaços-tempos da música: no espaço estriado, a medida pode ser irregular tanto quanto regular, ela é sempre determinável, ao passo que, no espaço liso, o corte, ou a separação, “poderá efetuar-se onde se quiser”. Cf. Penser l musique aujourd’hui, Gonthier, pp. 95-107. 15

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muito mais que uma essência: o quadrado já não existe independente de uma quadratura, o cubo de uma cubatura, a reta de uma retificação. Enquanto o teorema é da ordem das razões, o problema é afectivo e inseparável das metamorfoses, gerações e criações na própria ciência. Contrariamente ao que diz Gabriel Marcel, o problema não é um “obstáculo”, é a ultrapassagem do obstáculo, uma projeção, isto é, uma máquina de guerra. É todo esse movimento que a ciência regia se esforça por limitar, quando reduz ao máximo a parte do “elemento-problema”, e o subordina ao “elemento-teorema”16. Essa ciência arquimediana, ou essa concepção da ciência, está essencialmente ligada à máquina de guerra: os problemata são a própria máquina de guerra, e são indissociáveis dos planos inclinados, das passagens ao limite, dos turbilhões e projeções. Poderia dizer-se que a máquina de guerra se projeta num saber abstrato, formalmente diferente daquele que duplica o aparelho de Estado. Diríamos que toda uma ciência nômade se desenvolve excentricamente, sendo muito diferente das ciências regias ou imperiais. Bem mais, essa ciência nômade não para de ser “barrada”, inibida ou proibida pelas exigências e condições da ciência de Estado. Arquimedes, vencido pelo Estado romano, torna-se um símbolo17. É que as duas ciências diferem pelo modo de formalização, e a ciência de Estado não para de impor sua forma de soberania às invenções da ciência nômade; só retém da ciência nômade aquilo de que pode apropriar-se, e do resto faz um conjunto de receitas estritamente limitadas, sem estatuto verdadeiramente científico, ou simplesmente o reprime e o proíbe. É como se o “cientista” da ciência nômade fosse apanhado entre dois fogos, o da máquina de guerra, que o alimenta e o inspira, e o do Estado, que lhe impõe uma ordem das razões. O personagem do engenheiro

A geometria grega está atravessada pela oposição entre esses dois polos, teoremático e problemático, e pelo triunfo relativo do primeiro: Procius, em seus Commentaires sur le premier livre des Eléments d’Euclide (reed. Desclée de Brouwer), analisa a diferença entre os polos, e a ilustra com a oposição Espeusipo-Menecmo. A matemática sempre estará atravessada por essa tensão; assim, por exemplo, o elemento axiomático se chocará com uma corrente problemática, “intuicionista” ou “construtivista”, que propugna um cálculo dos problemas muito diferente terminou a era da jovem geometria como livre pesquisa criadora. (...). A espada de um soldado romano cortou-lhe o fio, diz a tradição. Matando a criação geométrica, o Estado romano iria construir o imperialismo geométrico do Ocidente”.da axiomática e de toda teoremática: cf. Bouligand, Le déclin des absolus mathématico-logiques, Ed. d’Enseignement supérieur. 16

17

Virilio, L’insécurité du territoire, p. 120: “Sabe-se de que modo, com Arquimedes,

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(e especialmente do engenheiro militar), com toda sua ambivalência, ilustra essa situação. Por isso, o mais importante talvez sejam os fenômenos fronteiriços onde a ciência nômade exerce uma pressão sobre a ciência de Estado, e onde, inversamente, a ciência de Estado se apropria e transforma os dados da ciência nômade. Isso é verdade da arte dos campos e da “castrametação”, que sempre mobiliza as projeções e os planos inclinados: o Estado não se apropria dessa dimensão da máquina de guerra sem submetê-la a regras civis e métricas que vão limitá-la de modo estrito, controlar, localizar a ciência nômade, e proibi-la de desenvolver suas consequências através do campo social (Vauban, a esse respeito, é como a retomada de Arquimedes, e sofre uma derrota análoga). Isso é verdade em relação à geometria descritiva e projetiva, que a ciência regia pretende transformar numa simples dependência prática da geometria analítica dita superior (donde a situação ambígua de Monge ou de Poncelet enquanto “cientistas”).18 É verdade também a respeito do cálculo diferencial: por muito tempo, este só teve um estatuto paracientífico; tratam-no de “hipótese gótica” e a ciência regia só lhe reconhece um valor de convenção cômoda ou de ficção bem fundada; os grandes matemáticos de Estado se esforçam em dar-lhe um estatuto mais firme, porém precisamente sob a condição de eliminar dele todas as noções dinâmicas e nômades como as de devir, heterogeneidade, infinitesimal, passagem ao limite, variação contínua, etc, e de impor-lhe regras civis, estáticas e ordinais (situação ambígua de Carnot a esse respeito). É verdade, enfim, a respeito do modelo hidráulico: pois, certamente, o próprio Estado tem necessidade de uma ciência hidráulica (não é preciso voltar às teses de Wittfogel concernentes à importância das grandes obras hidráulicas num império). Mas é sob uma forma muito diferente, já que o Estado precisa subordinar a força hidráulica a condutos, canos, diques que impeçam a turbulência, que imponham ao movimento ir de um ponto a outro, que imponham que o próprio espaço seja estriado e mensurado, que o fluido dependa do sólido, e que o fluxo proceda por fatias laminares paralelas. Em contrapartida, o modelo hidráulico da ciência nômade e da máquina de guerra consiste em se expandir por turbulência num espaço liso, em produzir um movimento que tome o espaço e afete simultaneamente todos os seus pontos, ao invés de ser tomado

Com Monge, c sobretudo com Poncelet, os limites da representação sensível ou mesmo espacial (espaço esfriado) são efetivamente ultrapassados, porém menos em direção a uma potência simbólica de abstração que a uma imaginação trans-espacial, ou trans-intuição (continuidade). Reporte-se ao comentário de Brunschvicg sobre Poncelet, Les étapes de la philosophie mathématique, PUF. 18

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por ele como no movimento local, que vai de tal ponto a tal outro19. Demócrito, Menecmo, Arquimedes, Vauban, Desargues, Bernoulli, Monge, Carnot, Poncelet, Perronet, etc: para cada um desses casos, é preciso uma monografia que dê conta da situação especial desses cientistas que a ciência de Estado só utiliza restringindo-os, disciplinando-os, reprimindo suas concepções sociais ou políticas. O mar como espaço liso é claramente um problema específico da máquina de guerra. É no mar, como mostra Virilio, que se coloca o problema do fleet in being, isto é, a tarefa de ocupar um espaço aberto com um movimento turbilhonar cujo efeito pode surgir em qualquer ponto. A esse respeito, os estudos recentes sobre o ritmo, sobre a origem dessa noção, não nos parecem inteiramente convincentes, pois dizem-nos que o ritmo nada tem a ver com o movimento das ondas, mas designa a “forma” em geral, e mais especialmente a forma de um movimento “mensurado, cadenciado 20. Contudo, ritmo e medida jamais se confundem. E se o atomista Demócrito é precisamente um dos autores que empregam ritmo no sentido de forma, não se deve esquecer que é em condições muito precisas de flutuação, e que as formas de átomos constituem primeiramente grandes conjuntos não métricos, espaços lisos tais como o ar, o mar ou mesmo a terra (magnae res). Há nitidamente um ritmo mensurado, cadenciado, que remete ao escoamento do rio entre suas margens ou à forma de um espaço estriado; mas há também um ritmo sem medida, que remete à fluxão de um fluxo, isto é, à maneira pela qual um fluido ocupa um espaço liso. Essa oposição, ou melhor, essa tensão-limite das duas ciências, ciência nômade de máquina de guerra e ciência regia de Estado, encontra-se em diferentes momentos, em diferentes níveis. Os trabalhos de Anne Querrien permitem detectar dois desses momentos, um com a construção das catedrais góticas no

Michel Serres (pp. 105 ss). analisa a esse respeito a oposição d’Alambert-Bernoulli. Trata-se mais geralmente de uma diferença entre dois modelos de espaço: “A bacia mediterrânea tem falta de água, e tem o poder quem drena as águas. Daí esse mundo físico onde o dreno é essencial, e o clinâmen parece a liberdade, visto que é justamente essa turbulência que nega o escoamento forçado. Incompreensível para a teoria científica, incompreensível para o senhor das águas. (...). Donde a grande figura de Arquimedes: senhor dos corpos flutuantes e das máquinas militares”. 19

Cf. Benveniste, Problèmes de linguistique générale, “La notion de rythme dans son expression linguistique”, pp. 327-375. Esse texto, com frequência considerado decisivo, nos parece ambíguo, porque invoca Demócrito e o atomismo sem levar em conta o problema hidráulico, e porque faz do ritmo uma “especialização secundária” da forma corporal. 20

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século XII, outro com a construção das pontes nos séculos XVIII e XIX21. Com efeito, o gótico é inseparável de uma vontade de construir igrejas mais longas e mais altas que as românicas. Cada vez mais longe, cada vez mais alto... Mas essa diferença não é simplesmente quantitativa, ela indica uma mudança qualitativa: a relação estática formamatéria tende a se esfumar em favor de uma relação dinâmica material-forças. É o talhe que fará da pedra um material capaz de captar e compor as forças de empuxo, e de construir abóbadas cada vez mais altas e mais longas. A abóbada já não é uma forma, porém uma linha de variação contínua das pedras. É como se o gótico conquistasse um espaço liso, enquanto o românico permanecia parcialmente num espaço estriado (onde a abóbada dependia da justaposição de pilares paralelos). Ora, o talhe das pedras é inseparável, por um lado, de um plano de projeção diretamente sobre o solo, que funciona como limite plano, e por outro, de uma série de aproximações sucessivas (esquadrejamento), ou da variação das pedras volumosas. É claro que, para fundar o empreendimento, pensou-se na ciência teoremática: as cifras e as equações seriam a forma inteligível capaz de organizar superfícies e volumes. Porém, segundo a lenda, Bernardo de Claraval renuncia a isso rapidamente, por ser “difícil” demais, e invoca a especificidade de uma geometria operatória arquimediana, projetiva e descritiva, definida como ciência menor, mategrafia mais que matelogia. Seu companheiro de confraria, o monge-maçom Garin de Troyes, invoca uma lógica operatória do movimento que permite ao “iniciado” traçar, depois cortar os volumes em profundidade no espaço, e fazer com que “o traço produza a cifra”22. Não se representa, engendra-se e percorre-se. Essa ciência não se caracteriza tanto pela ausência de equações quanto pelo papel muito diferente que estas adquirem eventualmente: em vez de serem absolutamente boas formas que organizam a matéria, elas são “geradas”, como que “impulsionadas” pelo material, num cálculo qualitativo otimizado. Toda essa geometria arquimediana terá sua mais alta expressão, mas encontrando também sua interrupção provisória, com o surpreendente matemático Desargues, no século XVII. Como a maioria de seus pares, Desargues escreve pouco; contudo, tem uma grande influência real, e deixa esboços, rascunhos, projetos sempre centrados em torno dos problemasacontecimentos: “lição das trevas”, “esboço do corte das pedras”,

Anne Querrien, Devenir fonctionnaire ou le travail de VEtat, Cerfi. Utilizamos este livro, bem como estudos inéditos de Anne Querrien. 21

22

Raoul Vergez, Les illuminés de Vart royal, Julliard.

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“esboço para enfrentar os encontros entre um cone e um plano”... Ora, Desargues é condenado pelo parlamento de Paris, combatido pelo secretário do rei; suas práticas de perspectiva são proibidas23. A ciência regia ou de Estado só suporta e se apropria do talhe das pedras por planos (o contrário do esquadregamento), em condições que restauram o primado do modelo fixo da forma, da cifra e da medida. A ciência regia só suporta e se apropria da perspectiva estática, submetida a um buraco negro central que lhe retira toda capacidade heurística e deambulatória. Mas a aventura ou o acontecimento de Desargues é o mesmo que já se havia produzido coletivamente para os “companheiros” góticos. Pois não somente a Igreja, sob sua forma imperial, havia sentido necessidade de controlar severamente o movimento dessa ciência nômade: ela confiava aos templários o cuidado de fixar-lhe os lugares e os objetos, de administrar os canteiros, de disciplinar a construção; porém, também o Estado laico, sob sua forma regia, volta-se contra os próprios templários, condena as confrarias por toda sorte de motivos, dos quais um ao menos concerne à interdição dessa geometria operatória ou menor. Anne Querrien teria razão em encontrar ainda um eco da mesma história no nível das pontes, no século XVIII? Sem dúvida, as condições são muito diferentes, visto que a divisão do trabalho é então obtida segundo as normas de Estado. Resta o fato de que, no conjunto das atividades da administração pública responsável pelas Pontes e Vias, as estradas são atribuição de uma administração bem centralizada, enquanto as pontes ainda são matéria para experimentação ativa, dinâmica e coletiva. Trudaine organiza em sua casa curiosas “assembléias gerais” livres. Perronet se inspira num modelo flexível vindo do Oriente: que a ponte não bloqueie nem obstrua o rio. À gravidade da ponte, ao espaço estriado dos apoios espessos e regulares, ele opõe o desbaste e a descontinuidade dos apoios, o rebaixe da abóbada, a leveza e a variação contínua do conjunto. Mas a tentativa choca-se rapidamente contra oposições de princípio; e segundo um procedimento frequente, ao nomear Perronet diretor da escola, o Estado mais inibe a experimentação do que a coroa. Toda a história da Escola das Pontes e Vias mostra como esse “corpo”, antigo e plebeu, será subordinado aos órgãos responsáveis pelas Minas, pelas Obras Públicas, pela Politécnica, ao mesmo tempo em que suas atividades serão cada vez mais normalizadas24. Chega-se, portanto, à questão: o que é um

Desargues, Oeuvres, Ed.. Leiber (com o texto de Michel Chasles, que estabelece uma continuidade entre Desargues, Monge e Poncelet como “fundadores de uma geometria moderna”). 23

Anne Querrien, pp. 26-27: “O Estado se constrói sobre o fracasso da experimentação? (...). O Estado não está em obras, suas obras devem ser curtas. Um equipamento é feito para funcionar, não para ser construído socialmente: desse ponto de vista, o Estado só chama para construir aqueles que são pagos para executar ou dar ordens, e que são obrigados a seguir o modelo de uma experimentação pré-estabelecida”. 24

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corpo coletivo? Sem dúvida, os grandes corpos de um Estado são organismos diferenciados e hierarquizados que, de um lado, dispõem do monopólio de um poder ou de uma função; de outro, repartem localmente seus representantes. Têm uma relação especial com as famílias, porque fazem comunicar nos dois extremos o modelo familiar e o modelo estatal, e eles mesmos vivem como “grandes famílias” de funcionários, de amanuenses, de intendentes ou de recebedores. Todavia, parece que em muitos desses corpos, alguma outra coisa está em ação, que não se reduz a esse esquema. Não se trata somente da defesa obstinada de seus privilégios. Seria preciso falar também de uma aptidão, mesmo caricatural, mesmo muito deformada, de constituir-se como máquina de guerra, opondo ao Estado outros modelos, um outro dinamismo, uma ambição nômade. Por exemplo, há um problema muito antigo do lobby, grupo de contornos flexíveis, com uma situação muito ambígua em relação ao Estado que pretende “influenciar” e a uma máquina de guerra que quer promover, sejam quais forem seus objetivos.25. Um corpo não se reduz a um organismo, assim como o espírito de corpo tampouco se reduz à alma de um organismo. O espírito não é melhor, mas ele é volátil, enquanto a alma é gravífica, centro de gravidade. Seria preciso invocar uma origem militar do corpo e do espírito de corpo? Não é o “militar” que conta, mas antes uma origem nômade longínqua. Ibn Khaldoun definia a máquina de guerra nômade por: as famílias ou linhagens, mais o espírito de corpo. A máquina de guerra entretém com as famílias uma relação muito diferente daquela do Estado. Nela, em vez de ser célula de base, a família é um vetor de bando, de modo que uma genealogia passa de uma família a outra, segundo a capacidade de tal família, em tal momento, em realizar o máximo de “solidariedade agnática”. A celebridade pública da família não determina o lugar que ocupa num organismo de Estado; ao contrário, é a potência ou virtude secreta de solidariedade, e a movência correspondente das genealogias, que determinam a celebridade num corpo de guerra.26 Há aí

25

Sobre a questão de um “lobby Colbert”, cf. Dessert e Journet, Annales, nov. 1975.

Cf. Ibn Khaldoun, La Muqaddima, Hachette. Um dos temas essenciais dessa obraprima é o problema sociológico do “espírito de corpo”, e sua ambiguidade. Ibn Khaldoun opõe a beduinidade (como modo de vida, não como etnia), e a sedentariedade ou citadinidade. Entre todos os aspectos dessa oposição, em primeiro lugar está a relação inversa do público e do secreto: não só existe um segredo da máquina de guerra beduína, por oposição à publicidade do citadino de Estado, mas no primeiro caso a “celebridade” decorre da solidariedade secreta, ao passo que, no outro caso, o segredo se subordina às exigências de celebridade. Em segundo lugar, a beduinidade joga ao mesmo tempo com uma grande pureza e uma grande mobilidade de linhagens e sua genealogia, ao passo que a citadinidade faz linhagens muito impuras, e ao mesmo tempo rígidas e fixas: a solidariedade muda de sentido, de um polo ao outro. Em terceiro lugar, e sobretudo, as linhagens beduínas mobilizam um “espírito de corpo” e se integram nele como nova dimensão: é o Açabiyya, ou então o Icktirak, de onde derivará o nome árabe do socialismo (Ibn Khaldoun insiste na ausência de “poder” do chefe de tribo, que não dispõe de constrangimento estatal). A citadinidade, ao contrário, faz do espírito de corpo uma dimensão do poder, e vai adaptá-lo à “autocracia”. 26

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algo que não se reduz nem ao monopólio de um poder orgânico nem a uma representação local, mas que remete à potência de um corpo turbilhonar num espaço nômade. Certamente é difícil considerar os grandes corpos de um Estado moderno como tribos árabes. O que queremos dizer, na verdade, é que os corpos coletivos sempre têm franjas ou minorias que reconstituem equivalentes de máquina de guerra, sob formas por vezes muito inesperadas, em agenciamentos determinados tais como construir pontes, construir catedrais, ou então emitir juízos, ou compor música, instaurar uma ciência, uma técnica... Um corpo de capitães faz valer suas exigências através da organização dos oficiais e do organismo dos oficiais superiores. Sempre sobrevêm períodos em que o Estado enquanto organismo se vê em apuros com seus próprios corpos, e em que esses, mesmo reivindicando privilégios, são forçados, contra sua vontade, a abrir-se para algo que os transborda, um curto instante revolucionário, um impulso experimentador. Situação confusa onde cada vez é preciso analisar tendências e polos, naturezas de movimentos. De repente, é como se o corpo dos notários avançasse de árabe ou de índio, e depois se retomasse, se reorganizasse: uma ópera cômica, da qual não se sabe o que vai resultar (acontece até de gritarem: “A polícia conosco!”). Husserl fala de uma protogeometria que se dirigiria a essências morfológicas vagas, isto é, vagabundas ou nômades. Essas essências se distinguiriam das coisas sensíveis, mas igualmente das essências ideais, regias, imperiais. A ciência que dela trataria, a protogeometria, seria ela mesma vaga, no sentido de vagabunda: nem inexata como as coisas sensíveis, nem exata como as essências ideais, porém anexata e contudo rigorosa (“inexata por essência e não por acaso”). O círculo é uma essência fixa ideal, orgânica,

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mas o redondo é uma essência vaga e fluente que se distingue ao mesmo tempo do círculo e das coisas arredondadas (um vaso, uma roda, o sol). Uma figura teoremática é uma essência fixa, mas suas transformações, deformações, ablações ou aumentos, todas suas variações, formam figuras problemáticas vagas e contudo rigorosas, em forma de “lentilha”, de “umbela” ou de “saleiro”. Dir-se-ia que as essências vagas extraem das coisas uma determinação que é mais que a coisidade, é a da corporeidade, e que talvez até implique um espírito de corpo27. Mas por que Husserl vê aí uma protogeometria, uma espécie de intermediário, e não uma ciência pura? Por que ele faz as essências puras dependerem de uma passagem ao limite, quando toda passagem ao limite pertence como tal ao vago? Estamos diante de duas concepções da ciência, formalmente diferentes; e, ontologicamente, diante de um só e mesmo campo de interação onde uma ciência regia não para de apropriar-se dos conteúdos de uma ciência nômade ou vaga, e onde uma ciência nômade não para de fazer fugir os conteúdos da ciência regia. No limite, só conta a fronteira constantemente móvel. Em Husserl (e também em Kant, ainda que em sentido inverso, o redondo como “esquema” do círculo), constata-se uma apreciação muito justa da irredutibilidade da ciência nômade, mas ao mesmo tempo uma preocupação de homem de Estado, ou que toma partido pelo Estado, de manter um primado legislativo e constituinte da ciência regia. Cada vez que se permanece nesse primado, faz-se da ciência nômade uma instância précientífica, ou para-científica, ou sub-científica. E sobretudo, já não se pode compreender as relações ciência-técnica, ciência-prática, visto que a ciência nômade não é uma simples técnica ou prática, mas um campo científico no qual o problema dessas relações se coloca e se resolve de modo inteiramente diferente do ponto de vista da ciência regia. O Estado não para de produzir e reproduzir círculos ideais, mas é preciso uma máquina de guerra para fazer um redondo. Portanto, seria preciso determinar as características próprias da ciência nômade, a fim de compreender a um só tempo a repressão que ela sofre e a interação na qual se “mantém”.

Os textos principais de Husserl são Idées I, § 74, Gallimard, e L’origine de la géométrie, PUF (com o comentário muito importante de Derrida, pp. 125-138). Sendo o’problema o de uma ciência vaga e contudo rigorosa, ver a fórmula de Michel Serres, comentando a figura dita Salinon: “Ela é rigorosa, anexata. E não precisa, exata ou inexata. Apenas uma métrica é exata” (Naissance de Ia physique, p. 29). O livro de Bachelard, Essai sur la connaissance approchée (Vrin), continua sendo o melhor estudo dos passos e procedimentos que constituem todo um rigor do anexato, e de seu papel criativo na ciência. 27

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A ciência nômade não tem com o trabalho a mesma relação que a ciência regia. Não que a divisão de trabalho aí seja menor, mas ela é outra. Conhece-se os problemas que os Estados sempre tiveram com as “confrarias”, os corpos nômades ou itinerantes do tipo pedreiros, carpinteiros, ferreiros, etc. Fixar, sedentarizar a força de trabalho, regrar o movimento do fluxo de trabalho, determinar-lhe canais e condutos, criar corporações no sentido de organismos, e, para o restante, recorrer a uma mão-de-obra forçada, recrutada nos próprios lugares (corvéia) ou entre os indigentes (ateliês de caridade), — essa foi sempre uma das principais funções do Estado, que se propunha ao mesmo tempo vencer uma vagabundagem de bando, e um nomadismo de corpo. Se retornamos ao exemplo gótico, é para lembrar o quanto os companheiros viajavam, construindo catedrais aqui e ali, enxameando os canteiros, dispondo de uma potência ativa e passiva (mobilidade e greve) que certamente não convinha aos Estados. O revide do Estado é gerir os canteiros, introduzir em todas as divisões do trabalho a distinção suprema do intelectual e o manual, do teórico e o prático, copiada da diferença “governantes-governados”. Tanto nas ciências nômades como nas ciências regias, encontraremos a existência de um “plano”, mas que de modo algum é o mesmo. Ao plano traçado diretamente sobre o solo do companheiro gótico opõe-se o plano métrico traçado sobre papel do arquiteto fora do canteiro. Ao plano de consistência ou de composição opõese um outro plano, que é de organização e de formação. Ao talhe das pedras por esquadrejamento opõe-se o talhe por painéis, que implica a ereção de um modelo a reproduzir. Não diremos apenas que já não há necessidade de um trabalho qualificado: há necessidade de um trabalho não qualificado, de uma desqualificação do trabalho. O Estado não confere um poder aos intelectuais ou aos conceptores; ao contrário, converte-os num órgão estreitamente dependente, cuja autonomia é ilusória, mas suficiente, contudo, para retirar toda potência àqueles que não fazem mais do que reproduzir ou executar. O que não impede que o Estado encontre dificuldades com esse corpo de intelectuais que ele mesmo engendrou, e que no entanto esgrime novas pretensões nomádicas e políticas. Em todo caso, se o Estado é conduzido perpetuamente a reprimir as ciências menores e nômades, se ele se opõe às essências vagas, à geometria operatória do traço, não é em virtude de um conteúdo inexato ou imperfeito dessas ciências, nem de seu caráter mágico ou iniciático, mas porque elas implicam uma divisão do trabalho que se opõe à das normas de Estado. A diferença não é extrínseca: a maneira pela qual uma ciência, ou uma concepção da ciência, participa na organização do campo social, e em particular induz uma divisão do trabalho, faz parte

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dessa mesma ciência. A ciência regia é inseparável de um modelo “hilemórfico”, que implica ao mesmo tempo uma forma organizadora para a matéria, e uma matéria preparada para a forma; com frequência mostrou-se como esse esquema derivava menos da técnica ou da vida que de uma sociedade dividida em governantes-governados, depois em intelectuais-manuais. O que o caracteriza é que toda a matéria é colocada do lado do conteúdo, enquanto toda forma passa para o lado da expressão. Parece que a ciência nômade é imediatamente mais sensível à conexão do conteúdo e da expressão por si mesmos, cada um desses dois termos tendo forma e matéria. É assim que para a ciência nômade a matéria nunca é uma matéria preparada, portanto homogeneizada, mas é essencialmente portadora de singularidades (que constituem uma forma de conteúdo). E a expressão tampouco é formal, mas inseparável de traços pertinentes (que constituem uma matéria de expressão). É um esquema inteiramente outro, nós o veremos. Já podemos fazer uma ideia dessa situação se pensarmos no caráter mais geral da arte nômade, onde a conexão dinâmica do suporte e do ornamento substitui a dialética matéria-forma. Assim, do ponto de vista dessa ciência que se apresenta tanto como arte quanto como técnica, a divisão do trabalho existe plenamente, mas não adota a dualidade forma-matéria (mesmo com correspondências biunívocas). Ela antes segue as conexões entre singularidades de matéria e traços de expressão, e se estabelece no nível dessas conexões, naturais ou forçadas28. É uma outra organização do trabalho, e do campo social através do trabalho. Seria preciso opor dois modelos científicos, à maneira de Platão no Timeu.29 Um se denominaria Cômpar, e o outro Díspar. O cômpar é o modelo legal ou legalista adotado

Gilbert Simondon levou muito longe a análise e a crítica do esquema hilemórfico, e de seus pressupostos sociais (“a forma corresponde a que o homem que comanda pensou em si mesmo e que deve exprimir de maneira positiva quando dá suas ordens: a forma é, por conseguinte, da ordem do exprimível”). A esse esquema forma-matéria, Simondon opõe um esquema dinâmico, matéria provida de singularidades-forças ou condições energéticas de um sistema. O resultado é uma concepção inteiramente distinta das relações ciência-técnica. Cf. L’individu et sa gênese physico-biologique, PUF, pp. 42-56. 28

No Timeu (28-29), Platão entrevê por um curto instante que o Devir não seria apenas o caráter inevitável das cópias ou das reproduções, mas um modelo que rivalizaria com o Idêntico e o Uniforme. Se ele evoca essa hipótese, é apenas para excluí-la; e é verdade que se o devir é um modelo, não somente a dualidade do modelo e da cópia, do modelo e da reprodução deve desaparecer, mas até mesmo as noções de modelo e de reprodução tendem a perder qualquer sentido. 29

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pela ciência regia. A busca de leis consiste em pôr constantes em evidência, mesmo que essas constantes sejam apenas relações entre variáveis (equações). O esquema hilemórfico está baseado numa forma invariável das variáveis, numa matéria variável do invariante. Porém o díspar, como elemento da ciência nômade, remete mais ao par materialforças do que ao da matéria-forma. Já não se trata exatamente de extrair constantes a partir de variáveis, porém de colocar as próprias variáveis em estado de variação contínua. Se há ainda equações, são adequações, inequações, equações diferenciais irredutíveis à forma algébrica, e inseparáveis por sua vez de uma intuição sensível da variação. Captam ou determinam singularidades da matéria em vez de constituir uma forma geral. Operam individuações por acontecimentos ou hecceidades, e não por “objeto” como composto de matéria e de forma; as essências vagas não são senão hecceidades. Com respeito a todos esses aspectos, há uma oposição entre o logos e o nomos, entre a lei e o nomos, que permite dizer que a lei tem ainda “um ranço demasiado moral”. Todavia, não é que o modelo legal ignore as forças, o jogo das forças. Isto se vê bem no espaço homogêneo que corresponde ao cômpar. O espaço homogêneo não é em absoluto um espaço liso, ao contrário, é a forma do espaço estriado. O espaço dos pilares. Ele é esfriado pela queda dos corpos, as verticais de gravidade, a distribuição da matéria em fatias paralelas, o escoamento lamelar ou laminar do que é fluxo. Essas verticais paralelas formaram uma dimensão independente, capaz de se transmitir a toda parte, de formalizar todas as demais dimensões, de esfriar todo o espaço em todas as direções, e dessa forma torná-lo homogêneo. A distância vertical entre dois pontos fornece o modo de comparação para a distância horizontal entre dois outros pontos. A atração universal será, nesse sentido, a lei de toda lei, na medida em que regula a correspondência biunívoca entre dois corpos; e cada vez que a ciência descobrir um novo campo, tentará formalizá-lo segundo o modelo do campo gravitacional. Mesmo a química só se torna uma ciência graças a toda uma elaboração teórica da noção de peso. O espaço euclidiano depende do célebre postulado das paralelas, mas as paralelas são primeiro gravitacionais, e correspondem às forças que a gravidade exerce sobre todos os elementos de um corpo suposto preencher esse espaço. É o ponto de aplicação da resultante de todas essas forças paralelas que permanece invariante quando se muda sua direção comum ou se faz girar o corpo (centro de gravidade). Em suma, parece que a força gravitacional está na base de um espaço laminar, estriado, homogêneo e centrado; ela condiciona

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precisamente as multiplicidades ditas métricas, arborescentes, cujas grandezas são independentes das situações e se exprimem com a ajuda de unidades ou de pontos (movimentos de um ponto a outro). Não é por preocupação metafísica, mas efetivamente científica, que no século XIX os cientistas perguntam-se, frequentemente, se todas as forças não se reduziriam à da gravidade, ou antes à forma de atração que lhe proporciona um valor universal (uma relação constante para todas as variáveis), um alcance biunívoco (cada vez dois corpos e não mais...). É a forma de interioridade de toda ciência. Inteiramente outro é o nomos ou o díspar. Não que as outras forças desmintam a gravidade ou contradigam a atração. Mas, se é verdade que não vão contra ela, nem por isso dela decorrem ou dependem, porém dão testemunho de acontecimentos sempre suplementares ou de “afectos variáveis”. Cada vez que um campo se abriu à ciência, nas condições que dele fazem uma noção muito mais importante que a de forma ou de objeto, esse campo afirmava-se inicialmente como irredutível ao da atração e ao modelo das forças gravitacionais, ainda que não as contradissesse. Ele afirmava um “a-mais” ou um suplemento, e ele mesmo instalava-se nesse suplemento, nesse desvio. A química só faz um progresso decisivo quando acrescenta à força gravitacional ligações de um outro tipo, por exemplo elétricas, que transformam o caráter das equações químicas30. Mas convém notar que as mais simples considerações de velocidade já fazem intervir a diferença entre a queda vertical e o movimento curvilíneo, ou, mais geralmente, entre a reta e a curva, sob as formas diferenciais do clinâmen ou do menor desvio, o mínimo aumento. O espaço liso é justamente o do menor desvio: por isso, só possui homogeneidade entre pontos infinitamente próximos, e a conexão das vizinhanças se faz independentemente de qualquer via determinada. E um espaço de contato, de pequenas ações de contato, táctil ou manual, mais do que visual, como era o caso do espaço estriado de Euclides. O espaço liso é um campo sem condutos nem canais. Um campo, um espaço liso

De fato, a situação é evidentemente mais complexa, e a gravidade não é a única característica do modelo dominante: o calor se acrescenta à gravidade (já na química, a combustão se junta ao peso). Mas, mesmo aí, era todo um problema saber em que medida o “campo térmico” se desviava do espaço gravitacional, ou ao contrário, integrava-se a ele. Um exemplo típico é dado por Monge: ele começa por referir o calor, a luz, a eletricidade às “afecções variáveis dos corpos”, dos quais se ocupa “a física particular”, ao passo que a física geral trata da extensão, da gravidade, do deslocamento. É só mais tarde que Monge unifica o conjunto dos campos na física geral (Anne Querrien). 30

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heterogêneo, esposa um tipo muito particular de multiplicidades: as multiplicidades não métricas, acentradas, rizomáticas, que ocupam o espaço sem “medi-lo”, e que só se pode explorar “avançando progressivamente”. Não respondem à condição visual de poderem ser observadas desde um ponto do espaço exterior a elas: por exemplo, o sistema dos sons, ou mesmo das cores, por oposição ao espaço euclidiano. Quando se opõe a velocidade e a lentidão, o rápido e o grave, Celeritas e Gravitas, não é preciso ver aí uma oposição quantitativa, mas tampouco uma estrutura mitológica (ainda que Dumézil tenha mostrado toda a importância mitológica dessa oposição, precisamente em função do aparelho de Estado, em função da “gravidade” natural do aparelho de Estado). A oposição é ao mesmo tempo qualitativa e científica, na medida em que a velocidade só é o caráter abstrato de um movimento em geral, mas encarna-se num móbil que se desvia, por pouco que seja, de sua linha de queda ou de gravidade. Lento e rápido não são graus quantitativos do movimento, mas dois tipos de movimentos qualificados, seja qual for a velocidade do primeiro, e o atraso do segundo. De um corpo que largamos e que cai, por mais rápida que seja esta queda, não diremos, em sentido estrito, que tem uma velocidade, mas antes uma lentidão infinitamente decrescente segundo a lei dos graves. Grave seria o movimento laminar que estria o espaço, e que vai de um ponto a outro; mas rapidez, celeridade, seria dito unicamente do movimento que se desvia minimamente, e toma desde logo um andamento turbilhonar que ocupa um espaço liso, traçando esse mesmo espaço liso. Nesse espaço, a matéria-fluxo já não é recortável em fatias paralelas, e o movimento não se deixa mais cercar em relações biunívocas entre pontos. Nesse sentido, a oposição qualitativa gravidade-celeridade, pesado-leve, lento-rápido, desempenha não o papel de uma determinação científica quantificável, mas de uma condição coextensiva à ciência, e que regula a um só tempo a separação e a mistura dos dois modelos, sua eventual penetração, a dominação de um ou do outro, sua alternativa. E é realmente em termos de alternativa, sejam quais forem as misturas e as composições, que Michel Serres propõe a melhor fórmula: “A física se reduz a duas ciências, uma teoria geral das vias e caminhos, uma teoria global do fluxo”31. Seria preciso opor dois tipos de ciências, ou de procedimentos científicos: um que consiste em “reproduzir”, o outro que consiste em “seguir”. Um seria de reprodução, de iteração e reiteração; o outro, de itineração, seria o conjunto das

31

Michel Serres, p. 65.

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ciências itinerantes, ambulantes. Reduz-se com demasiada facilidade a itineração a uma condição da técnica, ou da aplicação e da verificação da ciência. Mas isto não é assim: seguir não c o mesmo que reproduzir, e nunca se segue a fim de reproduzir. O ideal de reprodução, dedução ou indução faz parte da ciência regia em todas as épocas, em todos os lugares, e trata as diferenças de tempo e lugar como outras tantas variáveis das quais a lei extrai precisamente a forma constante: basta um espaço gravitacional e estriado para que os mesmos fenômenos se produzam, se as mesmas condições são dadas, ou se a mesma relação constante se estabelece entre as condições diversas e os fenômenos variáveis. Reproduzir implica a permanência de um ponto de vista fixo, exterior ao reproduzido: ver fluir, estando na margem. Mas seguir é coisa diferente do ideal de reprodução. Não melhor, porém outra coisa. Somos de fato forçados a seguir quando estamos à procura das “singularidades” de uma matéria ou, de preferência, de um material, e não tentando descobrir uma forma; quando escapamos à força gravitacional para entrar num campo de celeridade; quando paramos de contemplar o escoamento de um fluxo laminar com direção determinada, e somos arrastados por um fluxo turbilhonar; quando nos engajamos na variação contínua das variáveis, em vez de extrair dela constantes, etc. E não é em absoluto o mesmo sentido da Terra: segundo o modelo legal, não paramos de nos reterritorializar num ponto de vista, num domínio, segundo um conjunto de relações constantes; mas, segundo o modelo ambulante, é o processo de desterritorialização que constitui e estende o próprio território. “Vá à tua primeira planta, e ali observa atentamente como escoa a água que jorra a partir desse ponto. A chuva teve de transportar os grãos para longe. Segue as valas que a água escavou, assim conhecerás a direção do escoamento. Busca então a planta que, nessa direção, se encontra mais afastada da tua. Todas as que crescem entre essas duas são tuas. Mais tarde (...)., poderás ampliar teu território...”32. Há ciências ambulantes, itinerantes, que consistem em seguir um fluxo num campo de vetores no qual singularidades se distribuem como outros tantos “acidentes” (problemas). Por exemplo: por que a metalurgia primitiva é necessariamente uma ciência ambulante, que proporciona aos ferreiros um estatuto quase nômade? Pode-se objetar que, nesses exemplos, trata-se, apesar de tudo, de ir de um ponto a um outro (mesmo se são pontos singulares), por intermédio de canais, e que o fluxo continua sendo divisível em fatias. Mas isso só é verdade na medida em que os procedimentos e

32

Castaneda, L’herbe du diable et la petite fumée, p. 160.

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os processos ambulantes estão necessariamente referidos a um espaço estriado, sempre formalizados pela ciência regia que os priva do seu modelo, submete-os a seu próprio modelo, e só os deixa subsistir a título de “técnica” ou de “ciência aplicada”. Em regra geral, um espaço liso, um campo de vetores, uma multiplicidade não métrica, serão sempre traduzíveis, e necessariamente traduzidos num “cômpar”: operação fundamental pela qual instala-se e repõe-se em cada ponto do espaço estriado um espaço euclidiano tangente, dotado de um número suficiente de dimensões, e graças ao qual se reintroduz o paralelismo de dois vetores, considerando a multiplicidade como imersa nesse espaço homogêneo e estriado de reprodução, em vez de continuar seguindo-a numa “exploração progressiva”33. É o triunfo do logos ou da lei sobre o nomos. Mas, justamente, a complexidade da operação dá testemunho das resistências que ela deve vencer. Cada vez que se refere o procedimento e o processo ambulantes a seu próprio modelo, os pontos reencontram sua posição de singularidades que exclui qualquer relação biunívoca, o fluxo reencontra seu andamento curvilíneo e turbilhonar que exclui todo paralelismo de vetores, o espaço liso reconquista as propriedades de contato que já não lhe permitem ser homogêneo e estriado. Há sempre uma corrente graças à qual as ciências ambulantes ou itinerantes não se deixam interiorizar completamente nas ciências regias reprodutoras. E há um tipo de cientista ambulante que os cientistas de Estado não param de combater, ou de integrar, ou de aliar-se a ele sob a condição de lhe proporem um lugar menor no sistema legal da ciência e da técnica. Não é que as ciências ambulantes estejam mais impregnadas por procedimentos irracionais, mistério, magia. Elas só se tornam tais quando caem em desuso. E, por outro lado, as ciências regias também se cercam de muito sacerdócio e magia. O que aparece na rivalidade entre os dois modelos é, antes, o fato de que, nas ciências ambulantes ou nômades, a ciência não está destinada a tomar um poder e nem sequer um desenvolvimento autônomos. Elas carecem de meios para tal, porque subordinam todas as suas operações às condições sensíveis da intuição e da construção, seguir o fluxo de matéria, traçar e conectar o espaço liso. Tudo está tomado numa

Albert Lautman mostrou muito claramente como os espaços de Riemann, por exemplo, aceitavam uma conjunção euclidiana de tal maneira que se pudesse constantemente definir o paralelismo de dois vetores vizinhos; por conseguinte, em vez de explorar uma multiplicidade progredindo sobre essa multiplicidade, considera-se a multiplicidade “como imersa num espaço euclidiano com um número suficiente de dimensões”. Cf. Les schémas de structure, Hermann, pp. 2324, 43-47. 33

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zona objetiva de flutuação que se confunde com a própria realidade. Seja qual for sua fineza, seu rigor, o “conhecimento aproximativo” continua submetido a avaliações sensíveis e sensitivas que o impelem a suscitar mais problemas do que os que pode resolver: o problemático permanece seu único modo. Ao contrário, o que é próprio da ciência regia, do seu poder teoremático ou axiomático, é subtrair todas as operações das condições da intuição para convertê-las em verdadeiros conceitos intrínsecos ou “categorias”. Por isso, nessa ciência, a desterritorialização implica uma reterritorialização no aparelho dos conceitos. Sem esse aparelho categórico, apodítico, as operações diferenciais seriam sujeitadas a seguir a evolução de um fenômeno; bem mais, ao realizar as experimentações ao ar livre, as construções diretamente sobre o solo, jamais se disporia de coordenadas capazes de as erigir em modelos estáveis. Algumas dessas exigências são traduzidas em termos de “segurança”: as duas catedrais de Orléans e de Beauvais desmoronam no fim do século XII, e é difícil operar os cálculos de controle nas construções da ciência ambulante. Porém, ainda que a segurança seja parte fundamental das normas teóricas de Estado, bem como do ideal político, trata-se também de outra coisa. Em virtude de todos os seus procedimentos, as ciências ambulantes ultrapassam muito rapidamente as possibilidades do cálculo: elas se instalam nesse a-mais que transborda o espaço de reprodução, logo se chocam com dificuldades insuperáveis desse ponto de vista, que elas resolvem eventualmente graças a uma operação enérgica. As soluções devem vir de um conjunto de atividades que as constituem como não autônomas. Só a ciência regia, ao contrário, dispõe de um poder métrico que define o aparelho dos conceitos ou a autonomia da ciência (inclusive da ciência experimental). Donde a necessidade de atrelar os espaços ambulantes a um espaço homogêneo, sem o qual as leis da física dependeriam de pontos particulares do espaço. Mas trata-se menos de uma tradução que de uma constituição: precisamente essa constituição a que as ciências ambulantes não se propunham, e nem têm os meios de propor-se. No campo de interação das duas ciências, as ciências ambulantes contentam-se em inventar problemas, cuja solução remeteria a todo um conjunto de atividades coletivas e não científicas, mas cuja solução científica depende, ao contrário, da ciência regia, e da maneira pela qual esta ciência de início transformou o problema, incluindo-o em seu aparelho teoremático e em sua organização do trabalho. Um pouco como a intuição e a inteligência segundo Bergson, onde só a inteligência possui os meios científicos para resolver formalmente os problemas que a intuição coloca, mas

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que esta se contentaria em confiar às atividades qualitativas de uma humanidade que seguisse a matéria...34

Problema II: Existe algum meio de subtrair o pensamento ao modelo de Estado? Proposição IV: A exterioridade da máquina de guerra é confirmada finalmente pela noologia.

Acontece criticarem conteúdos de pensamento julgados conformistas demais. Mas a questão é primeiramente a da própria forma. O pensamento já seria por si mesmo conforme a um modelo emprestado do aparelho de Estado, e que lhe fixaria objetivos e caminhos, condutos, canais, órgãos, todo um organon. Haveria portanto uma imagem do pensamento que recobriria todo o pensamento, que constituiria o objeto especial de uma “noologia”, e que seria como a forma-Estado desenvolvida no pensamento. Esta imagem possui duas cabeças que remetem precisamente aos dois polos da soberania: um imperium do pensar-verdadeiro, operando por captura mágica, apreensão ou liame, constituindo a eficácia de uma fundação (muthos); uma república dos espíritos livres, procedendo por pacto ou contrato, constituindo uma organização legislativa e jurídica, trazendo a sanção de um fundamento (logos). Na imagem clássica do pensamento, essas duas cabeças interferem constantemente: uma “república dos espíritos cujo príncipe seria a ideia de um Ser supremo”. E se as duas cabeças interferem, não é só porque há muitos intermediários ou transições entre ambas, e porque uma prepara a outra, e esta se serve da primeira e a conserva, mas também porque, antitéticas e complementares, elas são mutuamente necessárias. Contudo, não se deve descartar que, para passar de uma à outra, seja preciso um acontecimento de natureza inteiramente diferente, “entre” as duas, e que se oculta fora da imagem, que ocorre fora dela35. Porém, se nos atemos à

Segundo Bergson, as relações intuição-inteligência são muito complexas, estão em perpétua interação. Convém reportar-se igualmente ao tema de Bouligand: os dois elementos matemáticos “problema” e “síntese global” só desenvolvem sua dualidade ao entrar também num campo de interação, onde a síntese global fixa em cada ocasião as “categorias” sem as quais o problema não teria solução geral. Cf. Le declin des absolus mathématico-logiques. 34

Marcel Détienne (Les maitres de vérité dans Ia Grèce archàique, Maspero) distinguiu bem esses dois polos do pensamento, que correspondem aos dois aspectos da soberania segundo Dumézil: a palavra mágico-religiosa do déspota ou do “velho do mar”, a palavra-diálogo da cidade. Não são apenas os personagens principais do pensamento grego (o Poeta, o Sábio, o Físico, o Filósofo, o Sofista..). que se situam com relação a esses polos; mas Détienne faz intervir entre os dois o grupo específico dos Guerreiros, que garante a passagem ou a evolução. 35

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imagem, constatamos que não se trata de uma simples metáfora, cada vez que nos falam de um imperium do verdadeiro e de uma república dos espíritos. É a condição de constituição do pensamento como princípio ou forma de interioridade, como estrato. Vê-se nitidamente o que o pensamento ganha com isso: uma gravidade que ele jamais teria por si só, um centro que faz com que todas as coisas, inclusive o Estado, pareçam existir graças à sua eficácia ou sanção própria. Porém, o Estado não lucra menos. Com efeito, a forma-Estado ganha algo de essencial ao desenvolver-se assim no pensamento: todo um consenso. Só o pensamento pode inventar a ficção de um Estado universal por direito, de elevar o Estado ao universal de direito. E como se o soberano se tornasse único no mundo, abarcasse todo o ecúmeno, e tratasse apenas com sujeitos, atuais ou potenciais. Já não se trata das poderosas organizações extrínsecas, nem dos bandos estranhos: o Estado torna-se o único princípio que faz a partilha entre sujeitos rebeldes, remetidos ao estado de natureza, e sujeitos dóceis, remetendo por si mesmos à forma do Estado. Se para o pensamento é interessante apoiar-se no Estado, não é menos interessante para o Estado dilatar-se no pensamento, e dele receber a sanção de forma única, universal. A particularidade dos Estados é só um fato; do mesmo modo, sua perversidade eventual, ou sua imperfeição, pois, de direito, o Estado moderno vai definir-se como “a organização racional e razoável de uma comunidade”: a única particularidade da comunidade é interior ou moral (espírito de um povo), ao mesmo tempo em que sua organização a faz contribuir para a harmonia de um universal (espírito absoluto). O Estado proporciona ao pensamento uma forma de interioridade, mas o pensamento proporciona a essa interioridade uma forma de universalidade: “a finalidade da organização mundial é a satisfação dos indivíduos racionais no interior de Estados particulares livres”. É uma curiosa troca que se produz entre o Estado e a razão, mas essa troca é igualmente uma proposição analítica, visto que a razão realizada se confunde com o Estado de direito, assim como o Estado de fato é o devir da razão 36. Na filosofia dita moderna

Há um hegelianismo de direita que continua vivo na filosofia política oficial, e que solda o destino do pensamento e do Estado. Kojève (Tyrannie et sagesse, Gallimard) e Eric Weil {Hegel et VEtat; Pbilosophie politique, Vrin) são seus representantes recentes. De Hegel a Max Weber desenvolveu-se toda uma reflexão sobre as relações do Estado moderno com a Razão, a um só tempo como racional-técnico e como razoável-humano. Se se objeta que essa racionalidade, já presente no Estado imperial arcaico, é o optimum dos próprios governantes, os hegelianos respondem que o racional-razoável não pode existir sem um mínimo de participação de todos. Mas a questão é antes de saber se a própria forma do racionalrazoável não é extraída do Estado, de maneira a dar-lhe necessariamente “razão”. 36

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e no Estado dito moderno ou racional, tudo gira em torno do legislador e do sujeito. É preciso que o Estado realize a distinção entre o legislador e o sujeito em condições formais tais que o pensamento, de seu lado, possa pensar sua identidade. Obedece sempre, pois quanto mais obedeceres, mais serás senhor, visto que só obedecerás à razão pura, isto é, a ti mesmo... Desde que a filosofia se atribuiu ao papel de fundamento, não parou de bendizer os poderes estabelecidos, e decalcar sua doutrina das faculdades dos órgãos de poder do Estado. O senso comum, a unidade de todas as faculdades como centro do Cogito, é o consenso de Estado levado ao absoluto. Essa foi notadamente a grande operação da “crítica” kantiana, retomada e desenvolvida pelo hegelianismo. Kant não parou de criticar os maus usos para melhor bendizer a função. Não deve surpreender que o filósofo tenha se tornado professor público ou funcionário de Estado. Tudo está acertado a partir do momento em que a forma-Estado inspira uma imagem do pensamento. E vice-versa. Sem dúvida, segundo as variações desta forma, a própria imagem toma contornos diferentes: nem sempre desenhou ou designou o filósofo, e nem sempre o desenhará. Pode-se ir de uma função mágica a uma função racional. O poeta pôde exercer, em relação ao Estado imperial arcaico, a função de domesticador de imagem37. Nos Estados modernos, o sociólogo pôde substituir o filósofo (por exemplo, quando Durkheim e seus discípulos quiseram dar à república um modelo laico do pensamento). Hoje mesmo, a psicanálise, num retorno à magia, tem pretensão à função de Cogitatio universalis como pensamento da Lei. F, sem dúvida há outros rivais e pretendentes. A noologia, que não se confunde com a ideologia, é precisamente o estudo das imagens do pensamento e de sua historicidade. De certa maneira, poderia dizer-se que isto não tem muita importância, e que a gravidade do pensamento sempre foi risível. Porém, ela só pede isso: que não seja levada a sério, visto que, dessa maneira, seu atrelamento pode tanto melhor pensar por nós, e continuar engendrando novos funcionários; e quanto menos as pessoas levarem a sério o pensamento, tanto mais pensarão conforme o que quer um Estado. Com efeito, qual homem de Estado não sonhou com essa tão pequena coisa impossível, ser um pensador?

Sobre o papel do poeta antigo como “funcionário da soberania”, cf. Dumézil, Servius et la Fortune, pp. 64 ss., e Détienne, pp. 17 ss. 37

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Ora, a noologia entra em choque com contra-pensamentos, cujos atos são violentos, cujas aparições são descontínuas, cuja existência através da história é móvel. São os atos de um “pensador privado”, por oposição ao professor público: Kierkegaard, Nietzsche, ou mesmo Chestov... Onde quer que habitem, é a estepe ou o deserto. Eles destroem as imagens. Talvez o Schopenhauer educador de Nietzsche seja a maior crítica que se tenha feito contra a imagem do pensamento, e sua relação com o Estado. Todavia, “pensador privado” não é uma expressão satisfatória, visto que valoriza uma interioridade, quando se trata de um pensamento do fora38. Colocar o pensamento em relação imediata com o fora, com as forças do fora, em suma, fazer do pensamento uma máquina de guerra, é um empreendimento estranho cujos procedimentos precisos pode-se estudar em Nietzsche (o aforismo, por exemplo, é muito diferente da máxima, pois uma máxima, na república das letras, é como um ato orgânico de Estado ou um juízo soberano, mas um aforismo sempre espera seu sentido de uma nova força exterior, de uma última força que deve conquistá-lo ou subjugá-lo, utilizá-lo). Há também uma outra razão pela qual “pensador privado” não é uma boa expressão: pois, se é verdade que esse contra-pensamento dá testemunho de uma solidão absoluta, é uma solidão extremamente povoada, como o próprio deserto, uma solidão que já se enlaça a um povo por vir, que invoca e espera esse povo, que só existe graças a ele, mesmo se ele ainda falta... “Falta-nos essa última força, por carecermos de um povo que nos porte. Buscamos essa sustentação popular...” Todo pensamento é já uma tribo, o contrário de um Estado. E uma tal forma de exterioridade para o pensamento não é em absoluto simétrica à forma de interioridade. A rigor, a simetria só poderia existir entre polos e focos diferentes de interioridade. Mas a forma de exterioridade do pensamento — a força sempre exterior a si ou a última força, a enésima potência — não é de modo algum uma outra imagem que se oporia à imagem inspirada no aparelho de Estado. Ao contrário, é a força que destrói a imagem e suas cópias, o modelo e suas reproduções, toda possibilidade de subordinar o pensamento a um modelo do Verdadeiro, do Justo ou do Direito (o verdadeiro cartesiano, o justo kantiano, o direito hegeliano, etc). Um “método” é o espaço estriado da cogitatio universalis, e traça um caminho que deve ser seguido de um ponto a outro. Mas a forma de exterioridade situa o pensamento num espaço liso que ele deve ocupar sem poder medi-lo, e para o qual

Cf. a análise de Foucault a propósito de Maurice Blanchot e de uma forma de exterioridade do pensamento: “La pensée du dehors”, in Critique, jun. 1966. 38

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não há método possível, reprodução concebível, mas somente revezamentos, intermezzi, relances. O pensamento é como o Vampiro, não tem imagem, nem para constituir modelo, nem para fazer cópia. No espaço liso do Zen, a flecha já não vai de um ponto a outro, mas será recolhida num ponto qualquer, para ser relançada a um ponto qualquer, e tende a permutar com o atirador e o alvo. O problema da máquina de guerra é o dos revezamentos, mesmo com meios parcos, e não o problema arquitetônico do modelo ou do monumento. Um povo ambulante de revezadores, em lugar de uma cidade modelo. “A natureza envia o filósofo à humanidade como uma flecha; ela não mira, mas confia que a flecha ficará cravada em algum lugar. Ao fazê-lo, ela se engana uma infinidade de vezes e se desaponta. (...). Os artistas e os filósofos são um argumento contra a finalidade da natureza em seus meios, ainda que eles constituam uma excelente prova da sabedoria de seus fins. Eles jamais atingem mais do que uma minoria, quando deveriam atingir todo mundo, e a maneira pela qual essa minoria é atingida não responde à força que colocam os filósofos e os artistas em atirar sua artilharia”...39. Pensamos sobretudo em dois textos patéticos, no sentido em que o pensamento é verdadeiramente um pathos (um antilogos e um antimuthos). Trata-se do texto de Artaud em suas cartas a Jacques Rivière, explicando que o pensamento se exerce a partir de um desmoronamento central, que só pode viver de sua própria impossibilidade de criar forma, apenas pondo em relevo os traços de expressão num material, desenvolvendo-se perifericamente, num puro meio de exterioridade, em função de singularidades não universalizáveis, de circunstâncias não interiorizáveis. E também o texto de Kleist, “A propósito da elaboração progressiva dos pensamentos ao falar-se”: Kleist aí denuncia a interioridade central do conceito como meio de controle, controle da fala, da língua, mas também controle dos afectos, das circunstâncias e até do acaso. Ele opõe a isso um pensamento como litígio e processo, um bizarro diálogo anti-platônico, um antidiálogo entre o irmão e a irmã, onde um fala antes de saber, e o outro já revezou, antes de ter compreendido: é o pensamento do Gemut, diz Kleist, que procede como um general deveria fazê-lo numa máquina de guerra, ou como um corpo que se carrega de eletricidade, de intensidade pura. “Eu misturo sons inarticulados, alongo os termos de transição, utilizo igualmente aposições justo onde não seriam necessárias.” Ganhar tempo, e depois talvez renunciar, ou esperar. Necessidade de não ter o controle da língua, de ser um

39

Nietzsche, Schopenhauer éducateur, § 7

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estrangeiro em sua própria língua, a fim de puxar a fala para si e “pôr no mundo algo incompreensível”. Seria essa forma de exterioridade, a relação entre o irmão e a irmã, o devir-mulher do pensador, o devir-pensamento da mulher: o Gemut, que já não se deixa controlar, que forma uma máquina de guerra? Um pensamento às voltas com forças exteriores em vez de ser recolhido numa forma interior, operando por revezamento em vez de formar uma imagem, um pensamento-acontecimento, hecceidade, em vez de um pensamento-sujeito, um pensamento-problema no lugar de um pensamentoessência ou teorema, um pensamento que faz apelo a um povo em vez de se tomar por um ministério. Será um acaso se, a cada vez que um “pensador” lança assim uma flecha, sempre há um homem de Estado, uma sombra ou uma imagem de homem de Estado que lhe dá conselho e admoestação, e quer fixar um “objetivo”? Jacques Rivière não hesita em responder a Artaud: trabalhe, trabalhe, isso se resolverá, o senhor chegará a encontrar um método, e a exprimir bem o que pensa de direito (Cogitatio uníversalis). Rivière não é um chefe de Estado, mas não é o último da revista NRF que se considera o príncipe secreto numa república das letras, ou a eminência parda num Estado de direito. Lenz e Kleist afrontavam Goethe, gênio grandioso, verdadeiro homem de Estado entre todos os homens de letras. Mas o pior ainda não é isso: o pior está na maneira como os próprios textos de Kleist, de Artaud, acabam eles mesmos transformados em monumento, e inspiram um modelo a ser recopiado, muito mais insidioso que o outro, para todas as gagueiras artificiais e os inúmeros decalques que pretendem equivaler-se a eles. A imagem clássica do pensamento, a estriagem do espaço mental que ela opera, aspira à universalidade. Com efeito, ela opera com dois “universais”, o Todo como fundamento último do ser ou horizonte que o engloba, o Sujeito como princípio que converte o ser em ser para-nós40. Imperium e república. Entre um e outro, todos os gêneros do real e do verdadeiro encontram seu lugar num espaço mental estriado, do duplo ponto de vista do Ser e do Sujeito, sob a direção de um “método universal”. Desde logo, é fácil caracterizar o pensamento nômade que recusa uma tal imagem e procede de outra maneira. É que ele não recorre a um sujeito pensante universal, mas, ao contrário, invoca uma raça singular; e não se funda numa totalidade englobante, mas, ao contrário, desenrola-se num meio sem horizonte, como espaço liso, estepe, deserto ou mar. Estabelece-se aqui outro tipo de adaptação entre a raça definida

40

Um curioso texto de Jaspers, intitulado Descartes (Alcan), desenvolve esse ponto de vista e aceita suas consequências.

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como “tribo” e o espaço liso definido como “meio”. Uma tribo no deserto, em vez de um sujeito universal sob o horizonte do Ser englobante. Kenneth White insistiu recentemente nessa complementaridade dissimétrica entre uma tribo-raça (os celtas, os que se sentem celtas) e um espaço-meio (o Oriente, o Oriente, o deserto de Gobi..).: White mostra como esse estranho composto, as núpcias do celta com o Oriente, inspira um pensamento propriamente nômade, que arrasta a literatura inglesa e constituirá a literatura americana41 Desde logo, vê-se bem os perigos, as ambiguidades profundas que coexistem com esse empreendimento, como se cada esforço e cada criação se confrontasse com uma infâmia possível, pois, como fazer para que o tema de uma raça não se transforme em racismo, em fascismo dominante e englobante ou, mais simplesmente, em aristocratismo, ou então em seita e folclore, em micro-fascismos? E como fazer para que o polo Oriente não seja um fantasma que reative, de maneira distinta, todos os fascismos, todos os folclores também, yoga, zen e karatê? Certamente não basta viajar para escapar ao fantasma; e decerto não é invocando o passado, real ou mítico, que se escapa ao racismo. Mas, ainda aí, os critérios de distinção são fáceis, sejam quais forem as misturas de fato que obscurecem em tal ou qual nível, em tal ou qual momento. A tribo-raça só existe no nível de uma raça oprimida, e em nome de uma opressão que ela sofre: só existe raça inferior, minoritária, não existe raça dominante, uma raça não se define por sua pureza, mas, ao contrário, pela impureza que um sistema de dominação lhe confere. Bastardo e mestiço são os verdadeiros nomes da raça. Rimbaud disse tudo sobre esse ponto: só pode autorizar-se da raça aquele que diz: “Sempre fui de raça inferior, (...). sou de raça inferior por toda a eternidade, (...). eis-me na praia armoricana, (...). sou um animal, um negro, (...). sou de raça longínqua, meus pais eram escandinavos”. E assim como a raça não é algo a ser reencontrado, o Oriente não é algo a ser imitado: ele só existe graças à construção de um espaço liso, assim como a raça só existe graças à constituição de uma tribo que a povoa e a percorre. Todo o pensamento é um devir, um duplo devir, em vez de ser o atributo de um Sujeito e a representação de um Todo.

41

Kenneth White, Le nomadisme intellectuel. O segundo tomo dessa obra inédita intitulase precisamente Poetry and Tribe.

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Axioma II: A máquina de guerra é a invenção dos nômades (por ser exterior ao aparelho de Estado e distinta da instituição militar). A esse título, a máquina de guerra nômade tem três aspectos: um aspecto espacial-geográfico, um aspecto aritmético ou algébrico, um aspecto afectivo. Proposição V: A existência nômade efetua necessariamente as condições da máquina de guerra no espaço.

O nômade tem um território, segue trajetos costumeiros, vai de um ponto a outro, não ignora os pontos (ponto de água, de habitação, de assembleia, etc). Mas a questão é diferenciar o que é princípio do que é somente consequência na vida nômade. Em primeiro lugar, ainda que os pontos determinem trajetos, estão estritamente subordinados aos trajetos que eles determinam, ao contrário do que sucede no caso do sedentário. O ponto de água só existe para ser abandonado, e todo ponto é uma alternância e só existe como alternância. Um trajeto está sempre entre dois pontos, mas o entredois tomou toda a consistência, e goza de uma autonomia bem como de uma direção próprias. A vida do nômade é intermezzo. Até os elementos de seu hábitat estão concebidos em função do trajeto que não para de mobilizá-los42. O nômade não é de modo algum o migrante, pois o migrante vai principalmente de um ponto a outro, ainda que este outro ponto seja incerto, imprevisto ou mal localizado. Mas o nômade só vai de um ponto a outro por consequência e necessidade de fato; em princípio, os pontos são para ele alternâncias num trajeto. Os nômades e os migrantes podem se misturar de muitas maneiras, ou formar um conjunto comum; não deixam, contudo, de ter causas e condições muito diferentes (por exemplo, os que se juntam a Maomé em Medina têm a possibilidade de escolher entre um juramento nômade ou beduíno, e um juramento de hégira ou de emigração)43. Em segundo lugar, por mais que o trajeto nômade siga pistas ou caminhos costumeiros, não tem a função do caminho

Anny Milovanoff, “La seconde peau du nômade”, in Nouvelles littéraires, 27 de julho 1978: “Os nômades Larbaâ, na orla do Saara argelino, utilizam o termo triga, que significa em geral a estrada, o caminho, para designar as tiras tecidas que servem para reforçar as ataduras das tendas às estacas de sustentação. (...). No pensamento nômade, o hábitat não está vinculado a um território, mas antes a um itinerário. Ao recusar apropriar-se do espaço que atravessa, o nômade constrói para si um ambiente em lã ou em pelo de cabra, que não marca o lugar provisório que ele ocupa. (...). Assim, a lã, matéria maleável, dá sua unidade à vida nômade. (...). O nômade limita-se à representação de seus trajetos, não à figuração do espaço que percorre. Ele deixa o espaço ao espaço (...). Polimorfia da lã”. 42

43

Cf. W. M. Watt, Mahomet à Médine, Payot, pp. 107, 293.

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sedentário, que consiste em distribuir aos homens um espaço fechado, atribuindo a cada um sua parte, e regulando a comunicação entre as partes. O trajeto nômade faz o contrário, distribui os homens (ou os animais) num espaço aberto, indefinido, não comunicante. O nomos acabou designando a lei, mas porque inicialmente era distribuição, modo de distribuição. Ora, é uma distribuição muito especial, sem partilha, num espaço sem fronteiras, não cercado. O nomos é a consistência de um conjunto fluido: é nesse sentido que ele se opõe à lei, ou à polis, como o interior, um flanco de montanha ou a extensão vaga em torno de uma cidade (“ou bem nomos, ou bem polis”44). Há, portanto, em terceiro lugar, uma grande diferença de espaço: o espaço sedentário é estriado, por muros, cercados e caminhos entre os cercados, enquanto o espaço nômade é liso, marcado apenas por “traços” que se apagam e se deslocam com o trajeto. Mesmo as lamínulas do deserto deslizam umas sobre as outras produzindo um som inimitável. O nômade se distribui num espaço liso, ele ocupa, habita, mantém esse espaço, e aí reside seu princípio territorial. Por isso é falso definir o nômade pelo movimento. Toynbee tem profundamente razão quando sugere que o nômade é antes aquele que não se move. Enquanto o migrante abandona um meio tornado amorfo ou ingrato, o nômade é aquele que não parte, não quer partir, que se agarra a esse espaço liso onde a floresta recua, onde a estepe ou o deserto crescem, e inventa o nomadismo como resposta a esse desafio 45 . Certamente, o nômade se move, mas sentado, ele sempre só está sentado quando se move (o beduíno a galope, de joelhos sobre a sela, sentado sobre a planta de seus pés virados, “proeza de equilíbrio”). O nômade sabe

. Laroche, Histoire de la racine “Nem “ en grec anaen, Klincksieck. A raiz “Nem” indica a distribuição e não a partilha, mesmo quando ambas estão ligadas. Mas, justamente, no sentido pastoral a distribuição dos animais se faz num espaço não limitado, e não implica uma partilha das terras: “O ofício de pastor, na época homérica, nada tem a ver com uma partilha de terras; quando a questão agrária, na época soloniana, passa ao primeiro plano, exprime-se num vocabulário inteiramente distinto”. Apascentar (nemô) não remete a partilhar, mas a dispor aqui e ali, distribuir os animais. Somente a partir de Sólon, Nomos vai designar o princípio das leis e do direito (Thesmoi e Dike), para depois ser identificado às próprias leis. Numa época anterior, há antes uma alternativa entre a cidade, ou polis, regida pelas leis, e os arredores como lugar do nomos. Uma alternativa semelhante encontra-se em Ibn Khaldoun: entre a Hadara como citadinidade, e a Badiya como nomos (o que não é cidade, mas campo pré-urbano, platô, estepe, montanha ou deserto). 44

Toynbee, L’Histoire, Gallimard, pp. 185-210: “Eles se lançaram na estepe, não para atravessar seus limites, mas para ali fixar-se e ali sentir-se realmente em casa”. 45

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esperar, e tem uma paciência infinita. Imobilidade e velocidade, catatonia e precipitação, “processo estacionado”, a pausa como processo, esses traços de Kleist são eminentemente os do nômade. Por isso é preciso distinguir a velocidade e o movimento: o movimento pode ser muito rápido, nem por isso é velocidade; a velocidade pode ser muito lenta, ou mesmo imóvel, ela é, contudo, velocidade. O movimento é extensivo, a velocidade, intensiva. O movimento designa o caráter relativo de um corpo considerado como “uno”, e que vai de um ponto a outro; a velocidade, ao contrário, constitui o caráter absoluto de um corpo cujas partes irredutíveis (átomos) ocupam ou preenchem um espaço liso, à maneira de um turbilhão, podendo surgir num ponto qualquer. (Portanto, não é surpreendente que se tenha invocado viagens espirituais, feitas sem movimento relativo, porém em intensidades, sem sair do lugar: elas fazem parte do nomadismo). Em suma, diremos, por convenção, que só o nômade tem um movimento absoluto, isto é, uma velocidade; o movimento turbilhonar ou giratório pertence essencialmente à sua máquina de guerra. E nesse sentido que o nômade não tem pontos, trajetos, nem terra, embora evidentemente ele os tenha. Se o nômade pode ser chamado de o Desterritorializado por excelência, é justamente porque a reterritorialização não se faz depois, como no migrante, nem em outra coisa, como no sedentário (com efeito, a relação do sedentário com a terra está mediatizada por outra coisa, regime de propriedade, aparelho de Estado...). Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização. É a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nômade aí encontra um território. A terra deixa de ser terra, e tende a tornar-se simples solo ou suporte. A terra não se desterritorializa em seu movimento global e relativo, mas em lugares precisos, ali mesmo onde a floresta recua, e onde a estepe e o deserto se propagam. Hubac tem razão de dizer que o nomadismo se explica menos por uma variação universal dos climas (que remeteria antes a migrações), que por uma “divagação dos climas locais”46. O nômade aparece ali, na terra, sempre que se forma um espaço liso que corrói e tende a crescer em todas as direções. O nômade habita esses lugares, permanece nesses lugares, e ele próprio os faz crescer, no sentido em que se constata que o nômade cria o deserto tanto quanto é criado por ele. Ele é o vetor de desterritorialização. Acrescenta o deserto ao deserto, a estepe à estepe, por uma série de operações

Cf. Pierre Hubac, Les nômades, Ia Renaissance du livre, pp. 26-29 (ainda que Hubac tenha tendência em confundir nômades e migrantes). 46

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locais cuja orientação e direção não param de variar47. O deserto de areia não comporta apenas oásis, que são como pontos fixos, mas vegetações rizomáticas, temporárias e móveis em função de chuvas locais, e que determinam mudanças de orientação dos percursos48. É nos mesmos termos que se descreve o deserto de areia e o de gelo: neles, nenhuma linha separa a terra e o céu; não há distância intermediária, perspectiva, nem contorno, a visibilidade é restrita; e, no entanto, há uma topologia extraordinariamente fina, que não repousa sobre pontos ou objetos, mas sobre hecceidades, sobre conjuntos de correlações (ventos, ondulações da neve ou da areia, canto da areia ou estalidos do gelo, qualidades tácteis de ambos); é um espaço táctil, ou antes “háptico”, e um espaço sonoro, muito mais do que visual...49 A variabilidade, a polivocidade das direções é um traço essencial dos espaços lisos, do tipo rizoma, e que modifica sua cartografia. O nômade, o espaço nômade, é localizado, não delimitado. O que é ao mesmo tempo limitado e limitante é o espaço estriado, o global relativo: ele é limitado nas suas partes, às quais são atribuídas direções constantes, que estão orientadas umas em relação às outras, divisíveis por fronteiras, e componíveis conjuntamente; e o que é limitante (limes ou muralha, e não mais fronteira) é esse conjunto em relação aos espaços lisos que ele “contém”, cujo crescimento freia ou impede, e que ele restringe ou deixa de fora. Mesmo quando sofre seu efeito, o nômade não pertence a esse global relativo onde se passa de um ponto a outro, de uma região a outra. Ele está antes num absoluto local, um absoluto que tem sua manifestação no local, e seu engendramento na série de operações locais com orientações diversas: o deserto, a estepe, o gelo, o mar. Fazer com que o absoluto apareça num lugar — não é esta uma característica das mais gerais da religião (sob a condição de, em seguida, debater a natureza

A propósito dos nômades do mar, ou de arquipélago, J. Emperaire escreve: “Eles não apreendem um itinerário em seu conjunto, mas de uma maneira fragmentada, justapondo na ordem as diferentes etapas sucessivas, de lugar de acampamento a lugar de acampamento escalonados ao longo da viagem. Para cada uma dessas etapas, avaliam a duração do percurso e as sucessivas mudanças de orientação que o marcam” (Les nômades de la mer, Gallimard, p. 225). 47

48

Thesiger, Le désert des déserts, Plon, pp. 155, 171, 225.

Cf. as duas admiráveis descrições, do deserto de areia por Wilfred Thesiger, e do deserto de gelo por Edmund Carpenter (Eskimo, Toronto): os ventos e as qualidades tácteis e sonoras, o caráter secundário dos dados visuais, especialmente a indiferença dos nômades à astronomia como ciência regia, mas toda uma ciência menor das variáveis qualitativas e dos traços. 49

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da aparição e a legitimidade ou não das imagens que a reproduzem)? Mas o lugar sagrado da religião é, fundamentalmente, um centro que repele o nomos obscuro. O absoluto da religião é essencialmente horizonte que engloba, e, se ele mesmo aparece num lugar, é para fixar ao global o centro sólido e estável. Notou-se com frequência a função englobante dos espaços lisos, deserto, estepe ou oceano, no monoteísmo. Em suma, a religião converte o absoluto. A religião, nesse sentido, é uma peça do aparelho de Estado (e isto, sob as duas formas, do “liame” e do “pacto ou aliança”), mesmo se ela tem o poder próprio de elevar esse modelo ao universal ou de constituir um Imperium absoluto. Ora, para o nômade, a questão se coloca de modo inteiramente outro: o lugar, com efeito, não está delimitado; o absoluto não aparece, portanto, num lugar, mas se confunde com o lugar não limitado; o acoplamento dos dois, do lugar e do absoluto, não consiste numa globalização ou numa universalização centradas, orientadas, mas numa sucessão infinita de operações locais. Se continuamos com esta oposição de pontos de vista, constataremos que os nômades não são um bom terreno para a religião; no homem de guerra, sempre há uma ofensa contra o sacerdote ou contra o deus. Os nômades têm um “monoteísmo” vago, literalmente vagabundo, e contentam-se com isto, com fogos ambulantes. Os nômades têm um senso do absoluto, mas singularmente ateu. As religiões universalistas que trataram com nômades — Moisés, Maomé, mesmo o cristianismo com a heresia nestoriana — sempre tiveram problemas a esse respeito, e entravam em choque com o que elas chamavam de uma obstinada impiedade. Com efeito, essas religiões eram inseparáveis de uma orientação firme e constante, de um Estado imperial de direito, mesmo e sobretudo na ausência de um Estado de fato; elas promoviam um ideal de sedentarização, e se dirigiam aos componentes migrantes mais do que aos componentes nômades. Mesmo o Islã nascente privilegia o tema da hégira ou da migração, mais do que o nomadismo; e, se conseguiu arrastar os nômades árabes ou berberes, foi antes graças a certos cismas (tal como o kharidjismo)50. Contudo, uma simples oposição de pontos de vista, religião-nomadismo, não é exaustiva. Com efeito, no mais profundo de sua tendência em projetar sobre todo ecúmeno um Estado universal ou espiritual, a religião monoteísta não é sem ambivalência nem franjas, e transborda os limites, mesmo ideais, de um Estado, até imperial, para entrar numa zona mais imprecisa, um fora dos Estados, onde tem a possibilidade de uma mutação, de uma adaptação

50

E.F. Gauticr, Le passe de VAfrique du Nord, Pnyot, pp. 267-3 16.

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muito particular. É a religião como elemento de uma máquina de guerra, e a ideia da guerra santa como motor dessa máquina. Contra o personagem estatal do rei e o personagem religioso do sacerdote, o profeta traça o movimento pelo qual uma religião torna-se máquina de guerra ou passa para o lado de uma tal máquina. Foi dito com frequência que o Islã e o profeta Maomé tinham operado essa conversão da religião, e constituído um verdadeiro espírito de corpo: segundo a fórmula de Georges Bataille, “o Islã nascente, sociedade reduzida ao empreendimento militar”. É o que o Ocidente invoca para justificar sua antipatia pelo Islã. No entanto, as Cruzadas comportaram uma aventura desse tipo, propriamente cristã. Ora, em vão os profetas condenam a vida nômade; em vão a guerra religiosa privilegia o movimento da migração e o ideal do assentamento; em vão a religião compensa sua desterritorialização específica com uma reterritorialização espiritual e até física, que, juntamente com a guerra santa, adquire o aspecto bem dirigido de uma conquista dos lugares santos como centro do mundo. Apesar disso tudo, quando a religião se constitui em máquina de guerra, mobiliza e libera uma formidável carga de nomadismo ou de desterritorialização absoluta, duplica o migrante com um nômade que o acompanha, ou com um nômade potencial que ele está em vias de tornar-se; enfim, volta contra a forma-Estado seu sonho de um Estado absoluto51. E essa reviravolta pertence à “essência” da religião tanto quanto esse sonho. A história das Cruzadas está atravessada pela mais espantosa série de variação de direções: a firme orientação dos lugares santos como centro a ser atingido parece frequentemente apenas um pretexto. Mas seria equivocado invocar o jogo das cobiças ou dos fatores econômicos, comerciais ou políticos, como se houvessem desviado a cruzada de seu puro caminho. É precisamente a ideia de cruzada que implica em si mesma essa variabilidade das direções, quebradas, cambiantes, e que possui intrinsecamente todos esses fatores ou todas essas variáveis, quando faz da religião uma máquina de guerra, e, ao mesmo tempo, utiliza e suscita o nomadismo correspondente52. Tanto é verdade que a necessidade da

Desse ponto de vista, a análise que faz Clastres do profetismo índio pode ser generalizada: “De um lado, os chefes, do outro, e contra eles, os profetas. E a máquina profética funcionaria perfeitamente bem, visto que os Karai eram capazes de arrastar atrás de si espantosas massas de índios. (...). O ato insurrecional dos profetas contra os chefes conferiam aos primeiros, por uma estranha reviravolta das coisas, infinitamente mais poder do que detinham os segundos” (La société contre L’Etat, p. 185). 51

Um dos temas mais interessantes do livro clássico de Paul Alphandéry, La chrétienté et Vidée de croisade (Albin Michel), é mostrar como as mudanças de percurso, as paragens, os desvios fazem plenamente parte da Cruzada: “... este exército de cruzados que ressuscitamos como um exército moderno, de um Luís XIV ou de um Napoleão, marchando com uma absoluta passividade, segundo o desejo de um chefe, de um gabinete de diplomacia. Um tal exército sabe aonde vai e, quando se engana, o faz com conhecimento de causa. Uma história mais atenta às diferenças aceita uma outra imagem, mais real, do exército cruzado. O exército cruzado é um exército livre e por vezes anarquicamente vivo. (...). Este exército é movido do interior, por uma complexa coerência, que faz com que nada do que se produz seja por acaso. É indubitável que a conquista de Constantinopla teve sua razão, sua necessidade, seu caráter religioso, como os demais atos de cruzada” (t. II, p. 76). Alphandéry mostra especialmente que a ideia de uma luta contra o Infiel, num ponto qualquer, aparece cedo, ao lado da ideia de uma libertação da Terra Santa (t. I, p. 219). 52

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distinção a mais rigorosa entre sedentários, migrantes, nômades, não impede as misturas de fato; ao contrário, torna-as por sua vez tanto mais necessárias. E não se pode considerar o processo geral de sedentarização que venceu os nômades sem ter cm vista também os acessos de nomadização local que arrancaram os sedentários, e duplicaram os migrantes (especialmente em favor da religião). O espaço liso ou nômade situa-se entre dois espaços esfriados: o da floresta, com suas verticais de gravidade; o da agricultura, com seu quadriculado e suas paralelas generalizadas, sua arborescência tornada independente, sua arte de extrair a árvore e a madeira da floresta. Mas “entre” significa igualmente que o espaço liso é controlado por esses dois lados que o limitam, que se opõem a seu desenvolvimento e lhe determinam, tanto quanto possível, uma função de comunicação, ou, ao contrário, que ele se volta contra eles, corroendo a floresta por um lado, propagando-se sobre as terras cultivadas, por outro, afirmando uma força não comunicante ou de desvio, como uma “cunha” que se introduz. Os nômades voltam-se primeiramente contra os florestanos e os montanheses, depois precipitam-se sobre os agricultores. Há aí como que o inverso ou o fora da forma-Estado — mas em que sentido? Essa forma, como espaço global e relativo, implica um certo número de componentes: floresta-desmoita; agricultura-quadriculado; pecuária subordinada ao trabalho agrícola e à alimentação sedentária; conjunto de comunicações cidade-campo (polis-nomos) à base do comércio. Quando os historiadores se interrogam sobre as razões da vitória do Ocidente sobre o Oriente, invocam principalmente as seguintes características desfavoráveis ao Oriente em geral: desmatamento da floresta de preferência à desmoita, donde decorrem grandes dificuldades para extrair ou mesmo conseguir a madeira; cultura do tipo “arrozal e horto” de preferência à arborescência e campo; pecuária que em grande parte escapa ao controle dos

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sedentários, de modo que a estes falta força animal e alimento em carne; escassa comunicação entre a cidade e o campo, resultando num comércio muito menos flexível53. Disso não se concluirá, certamente, que a forma-Estado não existe no Oriente. Ao contrário, é preciso uma instância mais dura para manter e reunir os diversos componentes, trabalhados por vetores de fuga. Os Estados sempre têm a mesma composição; se há uma verdade na filosofia política de Hegel, é que “todo Estado contém em si os momentos essenciais de sua existência”. Os Estados não são compostos apenas de homens, mas de florestas, campos ou hortos, animais e mercadorias. Há unidade de composição em todos os Estados, mas os Estados não têm nem o mesmo desenvolvimento nem a mesma organização. No Oriente, os componentes estão muito mais fragmentados, disjuntos, o que supõe uma grande Forma imutável para garantir que se mantenham juntos: as “formações despóticas”, asiáticas ou africanas, serão sacudidas por revoltas incessantes, secessões, mudanças dinásticas, mas que não afetam a imutabilidade da forma. No Ocidente, ao contrário, a intrincação dos componentes torna possível transformações da forma-Estado mediante revoluções. É verdade que a ideia de revolução é ela mesma ambígua; é ocidental, dado que remete a uma transformação do Estado; mas é oriental, dado que projeta uma destruição, uma abolição do Estado54. É que os

Essa confrontava» Oriente-Ocidente desde a Idade Média (ligada à questão: por que o capitalismo no Ocidente, e não em outra parte?) inspirou belas análises aos historiadores modernos. Cf. especialmente Fernand Braudel, Civi-lisation matérielle et capitalismo, Armand Colhi, pp. 108-121; Pierre Chaunu, \.’expansum eitropéenne du Xlll’’ au XV sièclc, PUF, pp. 334-339 (“Por que a Europa? por que não a China?”); Maurice Lombard, Espaces et réseaux du haut Moyen Age, Mouton, cap. VII (e p. 219: “O que no Leste chama-se desmatamento, no Oeste denomina-se desmoita; a primeira causa profunda do deslocamento dos centros dominantes do Oriente para o Ocidente é, pois, uma razão geográfica: a florestaclareira revelou ter um potencial maior que o deserto-oásis”). 53

As observavões de Marx sobre as formações despóticas na Ásia são confirmadas pelas análises africanas de Cluckman (Custam and Conflictm África, Oxford): ao mesmo tempo, imutabilidade formal e rebelião constante. A ideia de uma “transformação” do Estado parece claramente ocidental. Não obstante, a outra ideia, de uma “destruição” do Estado, remete muito mais ao Oriente, e às condições de uma máquina de guerra nômade. Por mais que se apresente as duas ideias como fases sucessivas da revolução, são diferentes demais e conciliam-se mal; elas resumem a oposição das correntes socialistas e anarquistas no século XIX. O próprio proletariado ocidental é considerado de dois pontos de vista: enquanto deve conquistar o poder e transformar o aparelho de Estado, representa o ponto de vista de uma força de trabalho, mas, enquanto quer ou quereria uma destruição do Estado, representa o ponto de vista de uma força de nomadização. Mesmo Marx define o proletariado não apenas como alienado (trabalho), mas como desterritorializado. O proletário, sob esse último aspecto, aparece como o herdeiro do nômade no mundo ocidental. Não só muitos anarquistas invocam temas nomádicos vindos do Oriente, mas sobretudo a burguesia do século XIX identifica de bom grado proletários e nômades, e assimilam Paris a uma cidade assediada pelos nômades (cf. Louis Chevalier, Classes laborieuses et classes dangerenses, LGF, pp. 602-604). 54

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grandes impérios do Oriente, da África e da América entram em choque com amplos espaços lisos que os penetram e mantêm distâncias entre seus componentes (o nomos não se torna campo, o campo não comunica com a cidade, a grande pecuária é ocupação dos nômades, etc): há confrontação direta do Estado do Oriente com uma máquina de guerra nômade. Esta máquina de guerra poderá adotar a via da integração, e proceder somente por revolta c mudança dinástica; enquanto nômade, contudo, é ela que inventa o sonho e a realidade abolicionistas. Os Estados do Ocidente estão muito mais protegidos no seu espaço esfriado, têm desde logo muito mais latitude para manter seus componentes, e afrontam os nômades só indiretamente, por intermédio das migrações que estes desencadeiam ou cuja aparência tomam55. Uma das tarefas fundamentais do Estado é esfriar o espaço sobre o qual reina, ou utilizar os espaços lisos como um meio de comunicação a serviço de um espaço esfriado. Para qualquer Estado, não só é vital vencer o nomadismo, mas controlar as migrações e, mais geralmente, fazer valer uma zona de direitos sobre todo um “exterior”, sobre o conjunto dos fluxos que atravessam o ecúmeno. Com efeito, sempre que possível o Estado empreende um processo de captura sobre fluxos de toda sorte, de populações, de mercadorias ou de comércio, de dinheiro ou de capitais, etc. Mas são necessários trajetos fixos, com direções bem determinadas, que limitem a velocidade, que regulem as circulações, que relativizem o movimento, que mensurem nos seus detalhes os movimentos relativos dos sujeitos e dos objetos. Donde a importância da tese de Paul Virilio, quando mostra que “o poder político do Estado é polis, polícia, isto é, vistoria”, e que “as portas da cidade, seus pedágios e suas alfândegas são barreiras, filtros para a fluidez das massas, para a potência de penetração das maltas migratórias”, pessoas, animais e bens”56. Gravidade, gravitas,

Cf. Lucien Musset, Les invasions, le second assaut, PUF: por exemplo, a análise das três “fases” dos dinamarqueses, pp. 135- 137. 55

Paul Virilio, Vitesse et politique, Ed. Galilée, pp. 21-22 e passim. Não só a “cidade” é impensável independentemente dos fluxos exteriores com os quais ela está em contato, e cuja circulação ela regula, mas também conjuntos arquitetônicos precisos, por exemplo, a fortaleza, são verdadeiros transformadores, graças a seus espaços interiores que permitem uma análise, um prolongamento ou uma restituição do movimento. Virilio conclui disso que o problema é menos o do internamento que o da vistoria ou do movimento controlado. Foucault já fazia uma análise nesse sentido do hospital marítimo como operador e filtro: cf. Surveiller et punir, pp. 145-147. 56

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é a essência do Estado. Não significa de modo algum que o Estado ignore a velocidade; mas ele tem necessidade de que o movimento, mesmo o mais rápido, deixe de ser o estado absoluto de um móbil que ocupa um espaço liso, para tornar-se o caráter relativo de um “movido” que vai de um ponto a um outro num espaço estriado. Nesse sentido, o Estado não para de decompor, recompor e transformar o movimento, ou regular a velocidade. O Estado como inspetor de estradas, conversor ou permutador viário: papel do engenheiro a esse respeito. A velocidade ou o movimento absolutos não são sem lei, mas essas leis são as do nomos, do espaço liso que o desenrola, da máquina de guerra que o povoa. Se os nômades criaram a máquina de guerra, foi porque inventaram a velocidade absoluta, como “sinônimo” de velocidade. E cada vez que há operação contra o Estado, indisciplina, motim, guerrilha ou revolução enquanto ato, dir-se-ia que uma máquina de guerra ressuscita, que um novo potencial nomádico aparece, com reconstituição de um espaço liso ou de uma maneira de estar no espaço como se este fosse liso (Virilio recorda a importância do tema sedicioso ou revolucionário “ocupar a rua”). É nesse sentido que a réplica do Estado consiste em estriar o espaço, contra tudo o que ameaça transbordá-lo. O Estado não se apropriou da própria máquina de guerra sem dar-lhe a forma do movimento relativo: por exemplo, com o modelo fortaleza como regulador de movimento, e que foi precisamente o obstáculo dos nômades, o escolho e a paragem onde vinha quebrar-se o movimento turbilhonar absoluto. Inversamente, quando um Estado não chega a estriar seu espaço interior ou vizinho, os fluxos que o atravessam adquirem necessariamente o aspecto de uma máquina de guerra dirigida contra ele, desenrolada num espaço liso hostil ou rebelde (mesmo se outros Estados podem introduzir aí suas estrias). Essa foi a aventura da China que, por volta do fim do século XIV, e apesar de seu alto nível técnico em navios e navegação, é apartada de seu espaço marítimo imenso, vê então os fluxos comerciais voltarem-se contra ela e fazerem aliança com a pirataria, e só pode reagir com uma política de imobilidade, de restrição em massa do comércio, que reforça a relação deste com uma máquina de guerra57.

Sobre a navegação chinesa, e árabe, as razões de seu fracasso, e a importância dessa questão no “dossiê” OcidenteOriente, cf. Braudel, pp. 305-314, e Chaunu, pp. 288-308. 57

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A situação é ainda muito mais complicada do que dizemos. O mar é talvez o principal espaço liso, o modelo hidráulico por excelência. Mas o mar é também, de todos os espaços lisos, aquele que mais cedo se tentou estriar, transformar em dependente da terra, com caminhos fixos, direções constantes, movimentos relativos, toda uma contrahidráulica dos canais ou condutos. Uma das razões da hegemonia do Ocidente foi a capacidade que tiveram seus aparelhos de Estado para estriar o mar, conjugando as técnicas do Norte e as do Mediterrâneo, e anexando o Atlântico. Mas eis que esse empreendimento desemboca no resultado o mais inesperado: a multiplicação dos movimentos relativos, a intensificação das velocidades relativas no espaço estriado, acaba reconstituindo um espaço liso ou um movimento absoluto. Como o sublinha Virilio, o mar será o lugar do fleet in being, onde já não se vai de um ponto a um outro, mas se domina todo o espaço a partir de um ponto qualquer: em vez de estriar o espaço, ele é ocupado com um vetor de desterritorialização em movimento perpétuo. E, do mar, essa estratégia moderna passará ao ar como novo espaço liso, mas também a toda a Terra considerada como um deserto ou como um mar. Conversor e capturador, o Estado não só relativiza o movimento, mas torna a produzir movimento absoluto. Não só vai do liso ao estriado, mas reconstitui um espaço liso, torna a produzir liso ao final do estriado. É verdade que esse novo nomadismo acompanha uma máquina de guerra mundial cuja organização extravasa os aparelhos de Estado, e chega aos complexos energéticos, militares-industriais, multinacionais. Isto para lembrar que o espaço liso e a forma de exterioridade não têm uma vocação revolucionária irresistível, mas, ao contrário, mudam singularmente de sentido segundo as interações nas quais são tomados e as condições concretas de seu exercício ou de seu estabelecimento (por exemplo, a maneira pela qual a guerra total e a guerra popular, ou mesmo a guerrilha, lançam mão de métodos58).

Virilio definiu muito bem o fleet in being e suas sequências históricas: “O fleet in being é a presença permanente em mar de uma frota invisível, que pode golpear o adversário em qualquer lugar e a qualquer momento (...)., é uma nova ideia da violência que já não nasce do afrontamento direto, porém de propriedades desiguais dos corpos, da avaliação das quantidades de movimentos que lhes são permitidas num elemento escolhido, da verificação permanente de sua eficiência dinâmica. (...). Não se trata mais da travessia de um continente, de um oceano, de ir de uma cidade a outra, de uma margem a outra, o fleet in being inventa a noção de um deslocamento que não teria destinação no espaço e no tempo. (...). O submarino estratégico não tem necessidade de ir a lugar algum, ele contenta-se, ao ocupar o mar, em permanecer invisível (...)., realização da viagem circular absoluta, ininterrupta, visto não comportar nem partida nem chegada. (...). Se, como pretendia Lênin, a estratégia é a escolha dos pontos de aplicação das forças, somos obrigados a considerar que esses pontos, hoje, já não são pontos de apoio geoestratégicos, uma vez que a partir de um ponto qualquer pode-se doravante atingir um outro ponto, onde quer que este se encontre. (...). A localização geográfica parece ter perdido definitivamente seu valor estratégico, e, inversamente, esse mesmo valor é atribuído á deslocalização do vetor, de um vetor em movimento permanente” (Vitesse et politique, pp. 46-49, 132-133). Os textos de Virilio apresentam, a respeito de todos esses aspectos, uma grande importância e novidade. O único ponto que para nós representa uma dificuldade é a assimilação por Virilio de três grupos de velocidade que nos parecem muito diferentes: 1º) as velocidades de tendência nômade, ou, então, a tendência revolucionária (motim, guerrilha); 2º) as velocidades reguladas, convertidas, apropriadas pelo aparelho de Estado (a “vistoria”); 3º) as velocidades liberadas por uma organização mundial de guerra total, ou então de superarmamento planetário (do fleet in being à estratégia nuclear). Virilio tende a assimilar esses grupos em razão de suas interações, e denuncia, em geral, um caráter “fascista” da velocidade. Contudo, são suas próprias análises, igualmente, que tornam possíveis essas distinções. 58

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Proposição VI: A existência nômade implica necessariamente os elementos numéricos de uma máquina de guerra.

Dezenas, centenas, milhares, miríades: todos os exércitos registrarão esses agrupamentos decimais, a ponto de, a cada vez que os encontrarmos, podermos prejulgar de uma organização militar. Não será graças à maneira pela qual o exército desterritorializa seus soldados? O exército é composto de unidades, companhias e divisões. Os Números podem mudar de função, de combinação, entrar em estratégias inteiramente diferentes, mas sempre existe essa relação do Número com uma máquina de guerra. Não é uma questão de quantidade, mas de organização ou de composição. O Estado não cria exércitos sem aplicar este princípio de organização numérica; porém, ele tão-somente retoma esse princípio, ao mesmo tempo que se apodera da máquina de guerra, pois uma ideia tão curiosa — a organização numérica dos homens — pertence, de início, aos nômades. São os hicsos, nômades conquistadores, que a trazem ao Egito; e quando Moisés a aplica a seu povo em êxodo, é por conselho de seu sogro nômade, Jetro, o queneu, e de modo a constituir uma máquina de guerra, tal como o Livro dos Números lhe descreve os elementos. O nomos é primeiramente numérico, aritmético. Quando se opõe um aritmetismo indiano-árabe ao geometrismo grego, vê-se bem que o primeiro implica um nomos oponível ao logos: não que os nômades “criem” a aritmética ou a álgebra, mas porque a aritmética e a álgebra surgem num mundo com forte teor nômade. Conhecemos até o momento três grandes tipos de organização dos homens: de linhagem, territorial e numérica.

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A organização de linhagem é a que permite definir as sociedades ditas primitivas. As linhagens clânicas são essencialmente segmentos em ato, que se fundem ou se cindem, variáveis segundo o ancestral considerado, segundo as tarefas e as circunstâncias. E decerto o número tem um papel importante na determinação da linhagem, ou na criação de novas linhagens. A terra também, visto que uma segmentaridade tribal vem duplicar a segmentaridade clânica. Mas a terra é antes de tudo a matéria onde se inscreve a dinâmica das linhagens, e o número, um meio de inscrição: as linhagens escrevem sobre a terra e com o número, constituindo uma espécie de “geodésia”. Tudo muda nas sociedades com Estado: diz-se frequentemente que o princípio territorial torna-se dominante. Do mesmo modo, seria possível falar em desterritorialização, visto que a terra torna-se objeto, em vez de ser o elemento material ativo que se combina com a linhagem. A propriedade é, precisamente, a relação desterritorializada do homem com a terra: seja porque a propriedade constitui o bem do Estado, que se superpõe à posse subsistente de uma comunidade de linhagem, seja porque ela própria se torna o bem de homens privados, que constituem a nova comunidade. Nos dois casos (e segundo os dois polos do Estado), há como que uma sobrecodificação da terra, que substitui a geodésia. Certamente, as linhagens continuam tendo uma grande importância, e os números desenvolvem a sua própria. Mas o que passa ao primeiro plano é uma organização “territorial”, no sentido em que todos os segmentos, de linhagem, de terra e de número, são tomados num espaço astronômico ou numa extensão geométrica que os sobrecodifica. Por certo não é da mesma maneira que isto sucede no Estado imperial arcaico e nos Estados modernos. É que o Estado arcaico envolve um spatium de vértice, espaço diferenciado, em profundidade e por níveis, ao passo que os Estados modernos (a partir da cidade grega) desenvolvem uma extensio homogênea, com centro imanente, partes divisíveis homólogas, relações simétricas e reversíveis. E não somente os dois modelos, astronômico e geométrico, se misturam intimamente; mesmo quando são supostos puros, cada um deles implica uma subordinação das linhagens e dos números a essa potência métrica, tal como aparece seja no spatium imperial, seja na extensio política59. A aritmética, o número, sempre

J.P. Vernant, sobretudo, analisou a relação da cidade grega com uma extensão geométrica homogênea (Mythe et pensée chez les Grecs, I, IIIª parte). O problema é necessariamente mais complicado no que diz respeito aos impérios arcaicos, ou às formações posteriores à cidade clássica. Neste caso, o espaço é muito diferente. Nem por isso há menos subordinação do número a um espaço, como Vernant sugere a propósito da cidade platônica ideal. As concepções pitagóricas ou neoplatônicas do número envolvem espaços astronômicos imperiais de um tipo diferente da extensão homogênea, mas mantêm uma subordinação do número: é por isso que os Números podem ser ideais, porém não “numerantes” propriamente ditos. 59

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tiveram um papel decisivo no aparelho de Estado: já era o caso na burocracia imperial, com as três operações conjugadas do recenseamento, do censo e da eleição. E com mais forte razão, as formas modernas do Estado não se desenvolveram sem utilizar todos os cálculos que surgiam na fronteira entre a ciência matemática e a técnica social (todo um cálculo social como base da economia política, da demo-grafia, da organização do trabalho, etc). Este elemento aritmético do Estado encontrou seu poder específico no tratamento de qualquer matéria: matérias-primas, matérias segundas dos objetos trabalhados, ou a última matéria, constituída pela população humana. O número sempre serviu, assim, para dominar a matéria, para controlar suas variações e seus movimentos, isto é, para submetê-los ao quadro espaço-temporal do Estado — seja spatium imperial, seja extensio moderna60. O Estado tem um princípio territorial ou de desterritorialização, o qual liga o número a grandezas métricas (tendo em conta métricas cada vez mais complexas que operam a sobrecodificação). Não acreditamos que o Número tenha podido encontrar aí as condições de uma independência ou de uma autonomia, ainda que aí tenha encontrado todos os fatores de seu desenvolvimento. O Número numerante, isto é, a organização aritmética autônoma, não implica um grau de abstração superior nem quantidades muito grandes. Remete somente a condições de possibilidade que são o nomadismo, e a condições de efetuação que são a máquina de guerra. E nos exércitos de Estado que se colocará o problema de um tratamento das grandes quantidades, em relação com outras matérias, mas a máquina de guerra opera com pequenas quantidades, que ela trata por meio de números numerantes. Com efeito, esses números aparecem tão logo se distribui alguma coisa no espaço, em vez de repartir o espaço ou de distribuí-lo. O número torna-se sujeito. A independência do número em relação ao espaço não vem da abstração, mas da natureza concreta do espaço liso, que é ocupado sem ser ele mesmo medido. O número já não é um meio para contar nem para medir, mas para deslocar: é em si mesmo aquilo que se

Dumézil insiste no papel do elemento aritmético nas formas mais antigas da soberania política. Ele tende até a fazer dele um terceiro polo da soberania; cf. Servius et Ia Fortune, Gallimard, e Le troisième souverain, Maisonneuve. Todavia, esse elemento aritmético tem antes por função organizar uma matéria, e, a esse título, submete a matéria a um ou a outro dos dois polos principais 60

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desloca no espaço liso. Sem dúvida, o espaço liso tem sua geometria; mas, como vimos, é uma geometria menor, operatória, do traço. Precisamente, o número é tanto mais independente do espaço quanto o espaço é independente de uma métrica. A geometria como ciência regia tem pouca importância na máquina de guerra (ela só tem importância nos exércitos de Estado, e para as fortificações sedentárias, mas conduz os generais a severas derrotas61). O número torna-se princípio cada vez que ocupa um espaço liso, e aí se desenrola como sujeito, em vez de medir um espaço estriado. O número é o ocupante móvel, o móvel no espaço liso, por oposição à geometria do imóvel no espaço estriado. A unidade numérica nômade é o fogo ambulante, não a tenda, ainda demasiado imobiliária: “O fogo leva a melhor sobre a iurta”. O número numerante já não está subordinado a determinações métricas ou a dimensões geométricas, está apenas numa relação dinâmica com direções geográficas: é um número direcional, e não dimensional ou métrico. A organização nômade é indissoluvelmente aritmética e direcional; por toda parte quantidade, dezenas, centenas, e por toda parte direção, direita, esquerda: o chefe numérico é também um chefe da direita ou da esquerda62. O número numerante é rítmico, não harmônico. Não é de cadência ou de medida: só nos exércitos de Estado, e para a disciplina e o desfile, marcha-se em cadência; mas a organização numérica autônoma encontra seu sentido em outra parte, cada vez que é preciso estabelecer uma ordem de deslocamento na estepe, no deserto — ali onde as linhagens florestais e as figuras de Estado perdem sua pertinência. “Ele progredia segundo o ritmo quebrado que imitava os ecos naturais do deserto, enganando quem estivesse alerta aos ruídos regulares do humano. Como todos os Fremen, fora educado na arte dessa marcha. Havia sido condicionado a tal ponto que já não tinha necessidade de pensar nisso, e seus pés pareciam mover-se por si sós segundo ritmos não mensuráveis”63. Com a máquina de guerra e na existência nômade, o número deixa de ser numerado

Clausewitz insiste no papel secundário da geometria, na tática e na estratégia: De Ia guerre, Ed. de Minuit, pp. 225-226 (“L’élément géométrique”). 61

Cf. um dos textos antigos mais profundos que relacionam o número e a direção na máquina de guerra, Les mémoires historiques de Sema-Ts’ien, Ed. Leroux, cap. CX (sobre a organização nômade dos Hiong-nu). 62

Franck Herbert, Les enfants de dune, Laffont, p. 22.1. Reporte-se aos caracteres propostos por Julia Kristeva para definir o número numerante: “disposição”, “repartição plural e contingente”, “infinito-ponto”, “aproximação rigorosa”, etc. (Semeiotikè, pp. 293-297). 63

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para devir Cifra, e é a esse título que ele constitui o “espírito de corpo”, inventa o segredo e as consequências do segredo (estratégia, espionagem, astúcia, emboscada, diplomacia, etc). Número numerante, móvel, autônomo, direcional, rítmico, cifrado: a máquina de guerra é como a consequência necessária da organização nômade (Moisés fará a experiência disso com todas as suas consequências). Critica-se hoje essa organização numérica de maneira apressada demais, nela denunciando-se uma sociedade militar ou mesmo concentracionária, onde os homens já não passam de “números” desterritorializados. Mas isto é falso. Horror por horror, a organização numérica dos homens certamente não é mais cruel do que a das linhagens ou dos Estados. Tratar os homens como números não é forçosamente pior do que tratá-los como árvores que se talha, ou figuras geométricas que se recorta e modela. Bem mais, o uso do número como dado, como elemento estatístico, é próprio do número numerado de listado, não do número numerante. E o mundo concentracionário opera tanto por linhagens e territórios, quanto por numeração. A questão não é, portanto, do bom e do ruim, mas da especificidade. A especificidade da organização numérica vem do modo de existência nômade e da funçãomáquina de guerra. O número numerante se opõe ao mesmo tempo aos códigos de linhagem e à sobrecodificação de Estado. A composição aritmética vai, de um lado, selecionar, extrair das linhagens os elementos que entrarão no nomadismo e na máquina de guerra; de outro lado, vai dirigi-las contra o aparelho de Estado, vai opor uma máquina e uma existência ao aparelho de Estado, traçar uma desterritorialização que atravessa a um só tempo as territorialidades de linhagem, e o território ou a desterritorialidade de Estado. O número numerante, nômade ou de guerra, tem uma primeira característica: ele é sempre complexo, isto é, articulado. Complexo de números a cada vez. Por isso mesmo não implica de modo algum grandes quantidades homogeneizadas, como os números de Estado ou o número numerado, mas produz seu efeito de imensidão graças à sua articulação fina, isto é, sua distribuição de heterogeneidade num espaço livre. Mesmo os exércitos de Estado, no momento em que tratam de grandes números, não abandonam este princípio (apesar do predomínio da “base” 10). A legião romana é um número articulado de números, de tal maneira que os segmentos tornam-se móveis, e as figuras geométricas, moventes, de transformação. E o número complexo ou articulado não compõe apenas homens, mas necessariamente armas, animais e veículos. A unidade aritmética de base é, portanto, uma unidade de agenciamento: por exemplo, homemcavalo-arco, 1x1x1, segundo a fórmula que fez o triunfo dos

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citas; e a fórmula se complica quando certas “armas” agenciam ou articulam diversos homens e animais, como a biga de dois cavalos e de dois homens, um para conduzir e o outro para lançar, 2x1x2=1; ou então, o célebre escudo de dois punhos, da reforma hoplita, que solda cadeias humanas. Por menor que seja a “unidade”, ela é articulada. O número numerante sempre está sobre várias bases ao mesmo tempo. Mas é necessário ter em conta também relações aritméticas externas, porém contidas num número, que exprimem a proporção dos combatentes entre os membros de uma linhagem ou de uma tribo, o papel das reservas e dos estoques, da manutenção de homens, coisas e animais. A logística é a arte dessas relações externas, que pertencem à máquina de guerra não menos do que as relações internas da estratégia, isto é, as composições de unidades combatentes entre si. Ambas constituem a ciência da articulação dos números de guerra. Todo agenciamento comporta esse aspecto estratégico e esse aspecto logístico. Mas o número numerante tem uma segunda característica mais secreta. Por toda parte, a máquina de guerra apresenta um curioso processo de replicação ou de reduplicação aritmética, como se ela operasse sobre duas séries não simétricas e desiguais. De um lado, com efeito, as linhagens ou tribos são organizadas e remanejadas numericamente; a composição numérica se superpõe às linhagens para fazer prevalecer o novo princípio. Mas, de outro lado, ao mesmo tempo, alguns homens são extraídos de cada linhagem para formar um corpo numérico especial, como se a nova composição numérica do corpo-linhagem não pudesse ter êxito sem constituir um corpo próprio, ele mesmo numérico. Acreditamos que este não é um fenômeno acidental, mas um constituinte essencial da máquina de guerra, uma operação que condiciona a autonomia do número: é preciso que o número do corpo tenha por correlato um corpo do número, é preciso que o número se duplique segundo duas operações complementares. O corpo social não é numerado sem que o número forme um corpo especial. Quando Gêngis Khan faz sua grande composição de estepe, ele organiza numericamente as linhagens, e os combatentes de cada linhagem, submetidos a cifras e a chefes (dezenas e decuriões, centenas e centuriões, milhares e quiliarcas). Mas também extrai de cada linhagem que é aritmetizada um pequeno número de homens que vão constituir sua guarda pessoal, isto é, uma formação dinâmica de estado-maior, de comissários, mensageiros e diplomatas (“antrustiões”)64. Um não vai

Vladimirstov, Le regime social des Mongols, Maisonneuve. O termo de que se serve Vladimirstov, “antrustiões”, é tomado de empréstimo ao regime saxão, onde o rei compõe sua companhia, “trust”, com francos. 64

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sem o outro: dupla desterritorialização, em que a segunda é a de uma potência maior. Quando Moisés faz sua grande composição de deserto, onde necessariamente está exposto à influência nômade mais que à de Jeová, ele recenseia e organiza numericamente cada tribo; mas também edita uma lei segundo a qual os primogênitos de cada tribo, naquele momento, pertencem de direito a Jeová; e como esses primogênitos evidentemente são ainda pequenos demais, seu papel no Número será transferido a uma tribo especial, a dos levitas, que fornecerá o corpo do Número ou a guarda especial da arca; e como os levitas são menos numerosos que os novos primogênitos no conjunto das tribos, esses primogênitos excedentes deverão ser comprados de volta pelas tribos, sob forma de imposto vertido (o que nos reconduz a um aspecto fundamental da logística). A máquina de guerra não poderia funcionar sem esta dupla série: é preciso ao mesmo tempo que a composição numérica substitua a organização de linhagem, mas também que conjure a organização territorial de Estado. É segundo esta dupla série que se define o poder na máquina de guerra: já não depende dos segmentos c dos centros, da ressonância eventual dos centros e da sobrecodificação dos segmentos, mas dessas relações internas ao Número, independentes da quantidade. Daí decorrem também as tensões ou as lutas de poder: entre as tribos e os levitas de Moisés, entre os “noyans” e os “antrustiões” de Gengis. Não se trata simplesmente de um protesto das linhagens, que gostariam de recuperar sua antiga autonomia, nem tampouco a prefiguração de uma luta em torno de um aparelho de Estado: é a tensão própria de uma máquina de guerra, de seu poder especial, e da limitação particular do poder do “chefe”. A composição numérica, ou o número numerante, implica portanto várias operações: aritmetização de conjuntos de partida (as linhagens); reunião dos subconjuntos extraídos (constituição de dezenas, centenas, etc); formação por substituição de um outro conjunto em correspondência com o conjunto reunido (o corpo especial). Ora, é esta última operação que implica a maior variedade e originalidade da existência nômade, a ponto de reencontrarmos o problema até nos exércitos de Estado, quando este se apropria da máquina de guerra. Com efeito, se a aritmetização do corpo social tem por correlato a formação de um corpo especial distinto, ele mesmo aritmético, pode-se compor esse corpo especial de várias maneiras: 1) com uma linhagem ou uma tribo privilegiadas, cujo predomínio adquire desde logo um novo sentido (caso de Moisés, com os levitas); 2) com representantes de cada linhagem, que, a partir daí, servem também de reféns (os primogênitos: seria antes o caso asiático ou Gengis); 3) com um

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elemento inteiramente diferente, exterior à sociedade de base, escravos, estrangeiros ou de uma outra religião (era já o caso do regime saxão, onde o rei compunha seu corpo especial com escravos francos; mas é sobretudo o caso do Islã, a ponto de inspirar uma categoria sociológica específica de “escravidão militar”: os mamelucos do Egito, escravos originários da estepe ou do Cáucaso, comprados muito jovens para o sultão, ou então os janízaros otomanos, saídos das comunidades cristãs65). Não é essa a origem de um tema importante, “nômades raptores de crianças”? Vêse bem, sobretudo no último caso, como o corpo especial é instituído como elemento determinante de poder na máquina de guerra. É que a máquina de guerra e a existência nômade têm necessidade de conjurar duas coisas ao mesmo tempo: um retorno da aristocracia de linhagem, mas também uma formação de funcionários imperiais. C) que confunde tudo é que o próprio Estado frequentemente foi obrigado a utilizar escravos como altos funcionários: veremos que não é pelas mesmas razões, e que as duas correntes se reuniram nos exércitos, mas a partir de duas fontes distintas; pois o poder dos escravos, dos estrangeiros, dos raptados, numa máquina de guerra de origem nômade, é muito diferente das aristocracias de linhagem, mas também dos funcionários e burocratas de Estado. São “comissários”, emissários, diplomatas, espiões, estrategas e logísticos, por vezes ferreiros. Sua existência não se explica pelo “capricho do sultão”. É, ao contrário, o capricho possível do chefe de guerra que se explica pela existência e a necessidade objetivas desse corpo numérico especial, dessa Cifra que só vale graças a um nomos. Há ao mesmo tempo uma desterritorialização e um devir próprios da máquina de guerra enquanto tal: o corpo especial, e particularmente o escravo-infiel-estrangeiro, é aquele que se torna soldado e crente, mesmo permanecendo desterritorializado em relação às linhagens e em relação ao Estado. Deve ter nascido infiel para tornar-se crente, deve ter nascido escravo para tornar-se soldado. Para tanto, são necessárias escolas ou instituições especiais: é uma invenção própria da máquina de guerra, que os Estados não deixarão de utilizar, de adaptar a seus fins, a ponto de torná-la irreconhecível, ou então de restituí-la sob uma forma burocrática de estado-maior, ou sob uma forma tecnocrática de corpos muito especiais,

Um caso particularmente interessante seria o de um corpo especial de ferreiros entre os tuaregues, os Enaden (os “Outros”); esses Enaden seriam na origem ou bem escravos sudaneses, ou então colonos judeus do Saara, ou ainda descendentes de guerreiros de São Luís. Cf. René Pottier, “l.es artisans sahariens du metal chez les Touareg”, in Mctaux et civilisations, 194,5-1946. 65

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ou nos “espíritos de corpo” que servem o Estado, mas também lhe resistem, ou entre os comissários que duplicam o Estado, mas igualmente o servem. É verdade que os nômades não têm história, só têm uma geografia. E a derrota dos nômades foi tal, tão completa, que a história identifica-se com o triunfo dos Estados. Assistiu-se, então, a uma crítica generalizada que negava aos nômades toda inovação, tecnológica ou metalúrgica, política, metafísica. Burgueses ou soviéticos (Grousset ou Vladimirtsov), os historiadores consideram os nômades como uma pobre humanidade que nada compreende, nem as técnicas às quais permaneceria indiferente, nem a agricultura, nem as cidades e os Estados que ela destrói ou conquista. Dificilmente se entende, contudo, como os nômades teriam triunfado na guerra se não tivessem tido uma forte metalurgia: a ideia de que o nômade recebe suas armas técnicas, e seus conselhos políticos, de trânsfugas de um Estado imperial, é, apesar de tudo, inverossímil. Dificilmente se entende como os nômades teriam tentado destruir as cidades e os Estados, não fosse em nome de uma organização nômade e de uma máquina de guerra que não se definem pela ignorância, mas por suas características positivas, seu espaço específico, sua composição própria que rompia com as linhagens e conjurava a forma-Estado. A história não parou de negar os nômades. Tentou-se aplicar à máquina de guerra uma categoria propriamente militar (a de “democracia militar”), e ao nomadismo uma categoria propriamente sedentária (a de “feudalidade”). Porém, essas duas hipóteses pressupõem um princípio territorial: seja que um Estado imperial se apodera da máquina de guerra, distribuindo terras de função a guerreiros (cleroi e falsos feudos), seja que a propriedade tornada privada estabelece ela mesma relações de dependência entre proprietários que constituem o exército (verdadeiros feudos e vassalagem66). Nos dois casos, o número é subordinado a uma organização fiscal “imobiliária”, tanto para constituir terras outorgáveis ou cedidas como para fixar as rendas devidas pelos próprios beneficiários. Sem dúvida,

A feudalidade é um sistema militar tanto quanto a democracia dita militar; mas os dois sistemas supõem com efeito um exército integrado a um aparelho de Estado qualquer (assim, para a feudalidade, a reforma fundiária carolíngia). Vladimirstov desenvolve uma interpretação feudal dos nômades de estepe, ao passo que Gryaznov (Sibérie du Sud, Nagel) inclina-se para a democracia militar. Mas um dos argumentos principais de Vladimirstov é que a organização dos nômades se feudaliza precisamente ao se decompor ou se integrar nos impérios que conquista; e observa que os mongóis, no início, não organizam em feudos, verdadeiros ou falsos, as terras sedentárias de que se apossam. 66

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a organização nômade e a máquina de guerra coincidem nesses problemas, ao mesmo tempo no nível da terra e do sistema fiscal, onde os guerreiros nômades são, diga-se o que se quiser, grandes inovadores. Mas, justamente, eles inventam uma territorialidade e um sistema fiscal “mobiliários”, que dão testemunho da autonomia de um princípio numérico: pode haver confusão ou combinação entre os sistemas, mas o próprio do sistema nômade permanece: subordinar a terra aos números que nela se deslocam e se desenrolam, e o imposto às relações internas a esses números (por exemplo, já em Moisés, o imposto intervém na relação entre os corpos numéricos e o corpo especial do número). Em suma, a democracia militar e o feudalismo, longe de explicarem a composição numérica nômade, dão, antes, testemunho daquilo que dela pode restar em regimes sedentários.

Proposição VII: A existência nômade tem por “afectos” as armas de uma máquina de guerra.

Sempre se pode distinguir as armas e as ferramentas segundo seu uso (destruir os homens ou produzir bens). Mas se essa distinção extrínseca explica certas adaptações secundárias de um objeto técnico, ela não impede uma convertibilidade geral entre os dois grupos, a ponto de parecer muito difícil propor uma diferença intrínseca entre armas e ferramentas. Os tipos de percussão, tal como Leroi-Gourhan os definiu, encontram-se de ambos os lados. “É provável que, durante várias eras sucessivas, os instrumentos agrícolas e as armas de guerra tenham permanecido idênticos.”67. Pôde-se falar de um “ecossistema”, que não se situa apenas na origem, e onde as ferramentas de trabalho e as armas de guerra trocam suas determinações: parece que o mesmo phylum maquínico atravessa umas e outras. Contudo, temos a impressão de que há efetivamente diferenças interiores, mesmo que não sejam intrínsecas, isto é, lógicas ou conceituais, e mesmo que sejam apenas aproximativas. Numa primeira aproximação, as armas têm uma relação privilegiada com a projeção. Tudo o que lança ou é lançado é em princípio uma arma, e o propulsor é seu momento essencial. A arma é balística; a própria noção de “problema” se reporta à máquina de guerra. Quanto mais mecanismos de projeção uma ferramenta comporta, mais ela mesma age como arma, potencial ou simplesmente metafórica. Ademais, as ferramentas não param de compensar os mecanismos

67

J.F. Fuller, Vinflucnce de Varmement sur Vhistoire, Payot, p. 23.

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projetivos que comportam, ou os adaptam a outros fins. É verdade que as armas de arremesso, estritamente falando, projetadas ou projetantes, não passam de uma espécie entre outras; mas mesmo as armas de mão exigem da mão e do braço um outro uso que as ferramentas, um uso projetivo de que testemunham as artes marciais. A ferramenta, ao contrário, seria muito mais introceptiva, introjetiva: ela prepara uma matéria à distância para trazê-la a um estado de equilíbrio ou adequá-la a uma forma de inferioridade. Nos dois casos, existe a ação à distância, mas num caso é centrífuga, e no outro, centrípeta. Diríamos, do mesmo modo, que a ferramenta se encontra diante de resistências, a vencer ou a utilizar, ao passo que a arma se encontra diante de revides, a evitar ou a inventar (o revide é, aliás, o fator inventivo e precipitante da máquina de guerra, desde que não se reduza apenas a um sobrelanço quantitativo, nem a uma parada defensiva). Em segundo lugar, as armas e as ferramentas não têm “tendencialmente” (aproximativamente) a mesma relação com o movimento, com a velocidade. É ainda um aporte essencial de Paul Virilio ter insistido nessa complementariedade arma-velocidade: a arma inventa a velocidade, ou a descoberta da velocidade inventa a arma (daí o caráter projetivo das armas). A máquina de guerra libera um vetor específico de velocidade, a ponto de necessitar de um nome especial, que não é apenas poder de destruição, mas “dromocracia” (= nomos). Entre outras vantagens, essa ideia enuncia um novo modo de distinção entre a caça e a guerra, pois não somente é certo que a guerra não deriva da caça, mas a própria caça não promove armas: ou bem ela evolui na esfera de indistinção e de convertibilidade armas-ferramentas, ou então utiliza em seu proveito armas já diferenciadas, já constituídas. Como diz Virilio, a guerra não aparece de modo algum quando o homem aplica ao homem a relação de caçador que tinha com o animal, mas, ao contrário, quando capta a força do animal caçado para entrar com o homem numa relação inteiramente diferente, que é a da guerra (inimigo e não mais presa). Não surpreende, pois, que a máquina de guerra seja a invenção dos nômades pecuaristas: a pecuária e o adestramento não se confundem nem com a caça primitiva, nem com a domesticação sedentária, mas são precisamente a descoberta de um sistema projetor e projétil. Ao invés de operar por uma violência a cada golpe, ou então de constituir uma violência “de uma vez por todas”, a máquina de guerra, com a pecuária e o adestramento, instaura toda uma economia da violência, isto é, um meio de torná-la duradoura e até ilimitada. “A efusão de sangue, o abate imediato são contrários ao uso ilimitado da violência, isto é, de sua

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economia. (...). A economia da violência não é a do caçador no pecuarista, mas a do animal caçado. No cavalgamento conserva-se a energia cinética, a velocidade do cavalo e não mais as proteínas, (o motor e não mais a carne). (...). Ao passo que, na caca, o caçador visava parar o movimento da animalidade selvagem por um abatimento sistemático, o pecuarista |aplica-se em| conservá-lo, e, graças ao adestramento, o cavalgante se associa a esse movimento, orientando-o e provocando sua aceleração.” O motor tecnológico desenvolverá essa tendência, mas “o cavalgamento é o primeiro projetor do guerreiro, seu primeiro sistema de armas”68. Donde o devir-animal na máquina de guerra. Significaria dizer que a máquina de guerra não existe antes do cavalgamento e da cavalaria? Não é esta a questão. A questão é que a máquina de guerra implica o desprendimento de um vetor Velocidade, tornado variável livre ou independente, o que não se produz na caça, onde a velocidade remete antes ao animal caçado. Pode muito bem acontecer que esse vetor de corrida seja liberado numa infantaria sem recorrer ao cavalgamento; bem mais, pode acontecer que haja cavalgamento, mas como meio de transporte ou mesmo de carga, sem intervir no vetor livre. Todavia, de qualquer maneira, o guerreiro toma de empréstimo ao animal a ideia de um motor, mais que o modelo de uma presa. Ele não generaliza a ideia de presa aplicando-a ao inimigo, ele abstrai a ideia de motor aplicandoa a si mesmo. Duas objeções surgem imediatamente. Conforme a primeira, a máquina de guerra comporta tanto peso e gravidade quanto velocidade (a distinção do pesado e do leve, a dissimetria da defesa e do ataque, a oposição do repouso e da tensão). Mas seria fácil mostrar como os fenômenos de “temporização”, ou mesmo de imobilidade e de catatonia, tão importantes ruis guerras, remetem em certos casos a um componente de pura velocidade. Nos outros casos, remetem às condições sob as quais os aparelhos de Estado se apoderam da máquina de guerra, em especial ordenando

Virilio, “Métempsychose du passager”, Traverses n” S. Todavia, Virilio assinala uma passagem indireta da caça à guerra: quando a mulher serve de animal “de condução ou de carga”, o que permitiria aos caçadores já entrar numa relação de “duelo homossexual” que vai além da caça. Mas parece que o próprio Virilio nos convida a distinguir a velocidade, como projetor e projétil, e o deslocamento, como transporte e carga. A máquina de guerra define-se do primeiro ponto de vista, ao passo que o segundo remete á esfera comum. O cavalo, por exemplo, não pertence à máquina de guerra enquanto servir apenas para transportar homens que apeiam para combater. A máquina de guerra define-se pela ação, não pelo transporte, mesmo que o transporte reaja sobre a ação. 68

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um espaço estriado onde forças adversas possam equilibrar-se. Acontece de a velocidade abstrair-se na propriedade de um projétil, bala ou obus, que condena à imobilidade a própria arma e o soldado (por exemplo, a imobilidade na guerra de 1914). Mas um equilíbrio de forças é um fenômeno de resistência, ao passo que o revide implica uma precipitação ou uma mudança de velocidade que rompem o equilíbrio: é o tanque que reagrupará o conjunto das operações sobre o vetor-velocidade, e voltará a dar um espaço liso ao movimento, desenterrando os homens e as armas69. A objeção inversa é mais complexa: é que a velocidade parece de fato fazer parte da ferramenta não menos que da arma, e não é absolutamente algo específico da máquina de guerra. A história do motor não é apenas militar. Mas talvez tenha-se por demais tendência a considerar as quantidades de movimento, em vez de buscar modelos qualitativos. Os dois modelos motores ideais seriam o do trabalho e o da ação livre. O trabalho é uma causa motriz que se choca contra resistências, opera sobre o exterior, se consome ou se dispende no seu efeito, e que deve ser renovado de um instante a outro. A ação livre também é uma causa motora, mas que não tem resistência a vencer, só opera sobre o próprio corpo móvel, não se consome no seu efeito e se prolonga entre dois instantes. Seja qual for sua medida ou grau, a velocidade é relativa no primeiro caso, absoluta no segundo (ideia de um perpetuum mobile). O que conta no trabalho é o ponto de aplicação de uma força resultante exercida pela fonte de ação sobre um corpo considerado como “uno” (gravidade), e o deslocamento relativo desse ponto de aplicação. Na ação livre, o que conta é a maneira pela qual os elementos do corpo escapam à gravitação a fim de ocupar de modo absoluto um espaço não pontuado. As armas e seu manejo parecem reportar-se a um modelo de ação livre, da mesma maneira que as ferramentas parecem remeter a um modelo de trabalho. O deslocamento linear, de um ponto a outro, constitui o movimento relativo da ferramenta, mas a

J.F. Fuller (L’influence de l’armament sur l’histoire, pp. 155 ss). mostra como a guerra de 1914 foi de início concebida como uma guerra ofensiva e de movimento, fundada na artilharia. Mas esta voltou-se contra si mesma, e impôs a imobilidade. Era impossível remobilizar a guerra multiplicando os canhões, visto que os buracos de obus tornavam o terreno tanto mais impraticável. A solução, da qual os ingleses e, em particular, o general Fuller participaram de maneira determinante, foi o tanque: “nau terrestre”, o tanque reconstituía em terra uma espécie de espaço marítimo ou liso, e “introduzia a tática naval na guerra terrestre”. Via de regra, o revide nunca vai do mesmo ao mesmo: é o tanque que revida à artilharia, é o helicóptero de míssil que revida ao tanque, etc. Donde um fator de inovação na máquina de guerra, muito diferente da inovação na máquina de trabalho. 69

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ocupação turbilhonar de um espaço constitui o movimento absoluto da arma. Como se a arma fosse movente, auto-movente, ao passo que a ferramenta é movida. Essa relação das ferramentas com o trabalho não é de modo algum evidente enquanto o trabalho não receber a definição motriz ou real que acabamos de lhe dar. Não é a ferramenta que define o trabalho, mas o inverso. A ferramenta supõe o trabalho. Não obstante, também as armas implicam com toda evidência uma renovação da causa, um dispêndio ou mesmo um desaparecimento no efeito, um afrontamento a resistências externas, um deslocamento da força, etc. Seria vão emprestar às armas um poder mágico oposto ao constrangimento das ferramentas: armas e ferramentas estão submetidas às mesmas leis que definem precisamente a esfera comum. Mas o princípio de toda tecnologia é mostrar como um elemento técnico continua abstrato, inteiramente indeterminado, enquanto não for reportado a um agenciamento que a máquina supõe. A máquina é primeira em relação ao elemento técnico: não a máquina técnica que é ela mesma um conjunto de elementos, mas a máquina social ou coletiva, o agenciamento maquínico que vai determinar o que é elemento técnico num determinado momento, quais são seus usos, extensão, compreensão..., etc. É por intermédio dos agenciamentos que o phylum seleciona, qualifica e mesmo inventa os elementos técnicos, de modo que não se pode falar de armas ou ferramentas antes de ter definido os agenciamentos constituintes que eles supõem e nos quais entram. É nesse sentido que dizemos que as armas e as ferramentas não se distinguem apenas de maneira extrínseca, e contudo não têm características distintivas intrínsecas. Têm características internas (e não intrínsecas) que remetem aos agenciamentos respectivos nos quais são tomados. O que efetua um modelo de ação livre não são, portanto, as armas em si mesmas e no seu ser físico, mas o agenciamento “máquina de guerra” como causa formal das armas. Por outro lado, o que efetua o modelo de trabalho não são as ferramentas, mas o agenciamento “máquina de trabalho” como causa formal das ferramentas. Quando dizemos que a arma é inseparável de um vetor-velocidade, ao passo que a ferramenta permanece ligada a condições de gravidade, só pretendemos indicar uma diferença entre dois tipos de agenciamento, mesmo que a ferramenta, no agenciamento que lhe é próprio, seja abstratamente mais “rápida”, e a arma abstratamente mais “grave”. A ferramenta está ligada essencialmente a uma gênese, a um deslocamento e a um dispêndio da força, que encontram suas leis no trabalho, ao passo que a arma concerne somente ao exercício ou à manifestação da força no espaço e no tempo, em conformidade com a ação livre. A arma não

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surge do céu, e supõe evidentemente produção, deslocamento, dispêndio e resistência. Mas esse aspecto remete à esfera comum da arma e da ferramenta, e não concerne ainda à especificidade da arma, que só aparece quando a força é considerada por si mesma, quando já é reportada unicamente ao número, ao movimento, ao espaço e ao tempo, ou quando a velocidade se acrescenta ao deslocamento 70. Concretamente, uma arma, enquanto tal, não está referida ao modelo Trabalho, mas ao modelo Ação livre, supondo-se que as condições do trabalho estão preenchidas alhures. Em suma, do ponto de vista da força, a ferramenta está ligada a um sistema gravidade-deslocamento, peso-altura. A arma, a um sistema velocidade-perpetuum mobile (nesse sentido, pode-se dizer que a velocidade é em si mesma um “sistema de armas”). O primado muito geral do agenciamento maquínico e coletivo sobre o elemento técnico vale em toda parte, tanto para as ferramentas como para as armas. As armas e as ferramentas são consequências, nada além de consequências. Notou-se com frequência que uma arma não era nada sem a organização de combate da qual fazia parte. Por exemplo, as armas “hoplíticas” só existem graças à falange como mutação da máquina de guerra: a única arma nova naquele momento, o escudo de dois punhos, é criado por esse agenciamento; quanto às demais armas, elas preexistiam, mas tomadas em outras combinações, onde não possuíam a mesma função, a mesma natureza71. Por toda parte é o agenciamento que constitui o sistema de armas. A lança e a espada só existiram desde a idade do bronze graças a um agenciamento homem-cavalo, que prolonga o punho e o venábulo, e que desqualifica as primeiras armas de infantaria, martelo e machado. O estribo impõe, por sua vez, uma nova figura do agenciamento homemcavalo, conduzindo a um novo tipo de lança e novas armas; e ainda esse conjunto homem-cavalo-estribo varia, e não tem os mesmos efeitos, conforme é tomado em condições gerais do nomadismo, ou retomado mais tarde nas condições sedentárias do feudalismo. Ora, a situação é exatamente a mesma para a ferramenta: também nesse caso tudo depende de uma organização do trabalho, e de agenciamentos variáveis entre homem, animal e coisa. Por exemplo, a charrua só existe como ferramenta específica num conjunto onde predominam os

Sobre essa distinção geral dos dois modelos, “trabalho-ação livre”, “força que se consome-força que se conserva”, “efeito real-efeito formal”, etc, cf. a exposição de Martial Guéroult, Dynamique et métaphysique leibniziennes, Les Belles Lettres, pp. 55, 119 ss., 222-224. 70

Marcel Détienne, “La phalange, problèmes et controverses”, in Problèmes de la guerre eu Grèce ancienne, Mouton: “A técnica é de algum modo interior ao social e ao mental”, p. 1.54. 71

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“campos abertos alongados”, onde o cavalo tende a substituir o boi como animal de tração, onde a terra começa a sofrer um afolhamento trienal, e onde a economia torna-se comunal. A charrua por certo pode existir antes disso, mas à margem de outros agenciamentos que não destacam sua especificidade, que deixam inexplorado seu caráter diferencial frente ao arado72. Os agenciamentos são passionais, são composições de desejo. O desejo nada tem a ver com uma determinação natural ou espontânea, só há desejo agenciando, agenciado, maquinado. A racionalidade, o rendimento de um agenciamento não existem sem as paixões que ele coloca em jogo, os desejos que o constituem, tanto quanto ele os constitui. Détienne mostrou como a falange grega era inseparável de toda uma inversão de valores, e de uma mutação passional que subverte as relações do desejo com a máquina de guerra. É um dos casos onde o homem descende do cavalo, e onde a relação homem-animal é substituída por uma relação entre homens num agenciamento de infantaria que prepara o advento do soldado-camponês, do soldado-cidadão: todo o Eros da guerra muda, um Eros homossexual de grupo tende a substituir o Eros zoossexuado do cavaleiro. E, sem dúvida, cada vez que um Estado se apropria da máquina de guerra, tende a aproximar a educação do cidadão, a formação do trabalhador, o aprendizado do soldado. Mas, se é verdade que todo agenciamento é de desejo, a questão é saber se os agenciamentos de guerra e de trabalho, considerados em si mesmos, não mobilizam primordialmente paixões de ordem diferente. As paixões são efetuações de desejo que diferem segundo o agenciamento: não é a mesma justiça, nem a mesma crueldade, nem a mesma piedade, etc. O regime de trabalho é inseparável de uma organização e de um desenvolvimento da Forma, aos quais corresponde uma formação do sujeito. É o regime passional do sentimento como “forma do trabalhador”. O sentimento implica uma avaliação da matéria e de suas resistências, um sentido da forma e de seus desenvolvimentos, uma economia da força e de seus deslocamentos, toda uma gravidade. Mas o regime da máquina de guerra é antes a dos afectos, que só remetem ao móvel em si mesmo, a velocidades e a composições de velocidade entre elementos. O afecto é a

Sobre o estribo, sobre a charrua, cf. Lynn White Júnior, Technologie médiévale et transformations sociales, Mouton, cap. I e II. Do mesmo modo, no caso da cultura seca de arroz na Ásia, pode-se mostrar como o bastão fossador, a enxada e a charrua dependem respectivamente de agenciamentos coletivos que variam com a densidade da população e o tempo da alqueiva. C) que permite a Braudel concluir: “A ferramenta, nessa explicação, é consequência, não mais causa” (Civilisation matérielle et capitalisme, p. 128). 72

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descarga rápida da emoção, o revide, ao passo que o sentimento é uma emoção sempre deslocada, retardada, resistente. Os afectos são projéteis, tanto quanto as armas, ao passo que os sentimentos são introceptivos como as ferramentas. Há uma relação afetiva com a arma, da qual dão testemunho não apenas as mitologias, mas a canção de gesta, o romance de cavalaria e cortês. As armas são afectos, e os afectos, armas. Desse ponto de vista, a imobilidade a mais absoluta, a pura catatonia, fazem parte do vetorvelocidade, apoiam-se nesse vetor que reúne a petrificação do gesto à precipitação do movimento. O cavaleiro dorme sobre sua montaria, e parte como uma flecha. Foi Kleist quem melhor compôs essas bruscas catatonias, desfalecimentos, suspenses, com as mais altas velocidades de uma máquina de guerra: então, ele nos faz assistir a um devirarma do elemento técnico e, ao mesmo tempo, a um devir-afecto do elemento passional (equação de Pentesiléia). As artes marciais sempre subordinaram as armas à velocidade, primeiramente á velocidade mental (absoluta); mas, através disso, eram também as artes do suspense e da imobilidade. O afecto percorre esses extremos. Por isso as artes marciais não invocam um código, como uma questão de Fitado, mas caminhos, que são outras tantas vias do afecto; nesses caminhos, aprende-se a “desservir-se” das armas tanto quanto servir-se delas, como se a potência e a cultura do afecto fossem o verdadeiro objetivo do agenciamento, a arma sendo apenas meio provisório. Aprender a desfazer, e a desfazer-se, é próprio da máquina de guerra: o “não-fazer” do guerreiro, desfazer o sujeito. Um movimento de descodificação atravessa a máquina de guerra, ao passo que a sobrecodificação solda a ferramenta a uma organização do trabalho e do Estado (não se desaprende a ferramenta, só é possível compensar-lhe a ausência). É verdade que as artes marciais não param de invocar o centro de gravidade e as regras de seu deslocamento. É que as vias não são todavia últimas. Por mais longe que penetrem, elas ainda são do domínio do Ser, e a única coisa que fazem é traduzir no espaço comum os movimentos absolutos de uma outra natureza — aqueles que se efetuam no Vazio, não no nada, mas no liso do vazio onde não há mais objetivo: ataques, revides e quedas “de peito ao vento”73 Ainda do ponto de vista do agenciamento, há uma relação

Os tratados de artes marciais recordam que as Vias, ainda submetidas à gravidade, devem ultrapassar-se no vazio. O Théatre des marionnettes, de Kleist, que é sem dúvida um dos textos mais espontaneamente orientais da literatura ocidental, apresenta um movimento semelhante: o deslocamento linear do centro de gravidade é ainda “mecânico”, e remete a algo mais “misterioso”, que concerne à alma e ignora a gravidade. 73

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essencial entre as ferramentas e os signos. É que o modelo trabalho, que define a ferramenta, pertence ao aparelho de Estado. Com frequência se disse que o homem das sociedades primitivas não trabalhava propriamente, mesmo se suas atividades eram muito coercitivas e regradas; e tampouco o homem de guerra enquanto tal (os “trabalhos” de Hércules supõem a submissão a um rei). O elemento técnico torna-se ferramenta quando se abstrai do território e se assenta sobre a terra enquanto objeto; mas é ao mesmo tempo que o signo deixa de inscrever-se sobre o corpo, e se escreve sobre uma matéria objetiva imóvel. Para que haja trabalho, é preciso uma captura da atividade pelo aparelho de Estado, uma semiotização da atividade pela escrita. Donde a afinidade de agenciamento signos-ferramentas, signos de escrita-organização de trabalho. É inteiramente outro o caso da arma, que se encontra numa relação essencial com as joias. Já não sabemos muito bem o que são as joias, a tal ponto sofreram adaptações secundárias. Porém, algo desperta em nossa alma quando nos dizem que a ourivesaria foi a arte “bárbara”, ou a arte nômade por excelência, e quando vemos essas obras-primas de arte menor. Essas fíbulas, essas placas de ouro e de prata, essas joias concernem a pequenos objetos móveis, não só fáceis de transportar, mas que só pertencem ao objeto à medida que este se move. Essas placas constituem traços de expressão de pura velocidade, sobre objetos eles mesmos móveis e moventes. Elas não passam por uma relação formamatéria, mas motivo-suporte, onde a terra já é tão-somente um solo, e até já nem sequer há solo algum, o suporte sendo tão móvel quanto o motivo. Elas dão às cores a velocidade da luz, avermelhando o ouro, e fazendo da prata uma luz branca. Pertencem ao arreio do cavalo, à bainha da espada, à vestimenta do guerreiro, ao punho da arma: elas decoram até aquilo que não servirá mais do que uma única vez, a ponta de uma flecha. Quaisquer que sejam o esforço e o labor que implicam, são ação livre relacionada ao puro móvel, e não-trabalho, com suas condições de gravidade, de resistência e de dispêndio. O ferreiro ambulante acresce a ourivesaria à arma e vice-versa. O ouro e o dinheiro adquirirão muitas outras funções, mas não podem ser compreendidos sem esse aporte nômade da máquina de guerra, onde não são matérias, porém traços de expressão que convém às armas (toda a mitologia da guerra não apenas subsiste no dinheiro, mas aí é fator ativo). As joias são os afectos que correspondem às armas, arrastados pelo mesmo vetor-velocidade. A ourivesaria, a joalheria, a ornamentação, mesmo a decoração não formam uma escrita, ainda que tenham uma potência de abstração que em nada lhe fica a dever. Ocorre que essa potência está diferentemente agenciada. No que respeita à escrita, os nômades

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não têm necessidade alguma de criarem uma, e a emprestam dos vizinhos imperiais sedentários, que lhes fornecem até uma transcrição fonética de suas línguas74. “A ourivesaria é a arte bárbara por excelência, as filigranas e os revestimentos dourados ou prateados. (...). A arte cita, ligada a uma economia nômade e guerreira que a um só tempo utiliza e rejeita o comércio reservado aos estrangeiros, orienta-se para esse aspecto luxuoso e decorativo. Os bárbaros não terão necessidade alguma de possuir ou criar um código preciso, por exemplo uma picto-ideografia elementar, e ainda menos uma escrita silábica, que, aliás, concorreria com as que utilizavam seus vizinhos mais avançados. Por volta do século IV e III a. C, a arte cita do Mar Negro tende assim para uma esquematização gráfica das formas, que dela faz um ornamento linear mais do que uma proto-escrita.” 75 Certamente, pode-se escrever sobre joias, placas de metal ou mesmo sobre armas; mas é no sentido em que se aplica a essas matérias uma escrita preexistente. Mais perturbador é o caso da escrita rúnica, porque, na origem, ela parece exclusivamente ligada às joias, fíbulas, elementos de ourivesaria, pequenos objetos mobiliários. Mas, precisamente, no seu primeiro período, o rúnico só tem um baixo valor de comunicação, e uma função pública muito reduzida. Seu caráter secreto fez com que, frequentemente, tenha sido interpretado como uma escrita mágica. Trata-se, antes, de uma semiótica afetiva, que comportaria sobretudo: 1) assinaturas como marcas de pertinência ou de fabricação; 2) curtas mensagens de guerra ou de amor. Formaria um “texto ornamental” mais do que escriturai, “uma invenção pouco útil, meio abortada”, um substituto da escrita. Só adquire valor de escrita num segundo período, quando aparecem as inscrições monumentais, com a reforma dinamarquesa no século IX d. C, em relação com o Estado e o trabalho76. Pode-se objetar que as ferramentas, as armas, os signos, as joias encontram-se de fato por toda parte, numa esfera comum. Mas não é este o problema, assim como não se trata de buscar uma origem em cada caso. Trata-se de estabelecer agenciamentos, isto é, determinar os traços diferenciais sob os quais um elemento pertence formalmente mais a tal agenciamento do que a tal outro.

Cf. Paul Pelliot, “Les systèmes d’écriture en usage chez les anciens Mongols”, Ásia Major 1925: os mongóis utilizavam a escrita uigur, com o alfabeto siríaco (os tibetanos farão uma teoria fonética da escrita uigur); as duas versões que nos chegaram de “a História secreta dos mongóis” são, uma, uma tradução chinesa, a outra, uma transcrição fonética em caracteres chineses. 74

75

Georges Charrière, L’art barbare scythe, Ed. du Cercle d’art, p. 185.

76

Cf. Lucien Musset, bitroduction à Ia runologie, Aubier.

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Diríamos, do mesmo modo, que a arquitetura e a cozinha estão em afinidade com o aparelho de Estado, ao passo que a música e a droga têm traços diferenciais que as situam do lado de uma máquina de guerra nômade77. Portanto, a distinção entre armas e ferramentas se funda num método diferencial, de cinco pontos de vista pelo menos: o sentido (projeção-introcepção), o vetor (velocidade-gravidade), o modelo (ação livre-trabalho), a expressão (joias-signos), a tonalidade passional ou desejante (afeto-sentimento). Sem dúvida, o aparelho de Estado tende a uniformizar os regimes, disciplinando seus exércitos, fazendo do trabalho uma unidade de base, isto é, impondo seus próprios traços. Mas não está descartado que as armas e as ferramentas entrem ainda em outras relações de aliança, se são tomadas em novos agenciamentos de metamorfose. Ocorre ao homem de guerra formar alianças camponesas ou operárias, mas, sobretudo, ocorre ao trabalhador, operário ou camponês, reinventar uma máquina de guerra. Os camponeses deram uma importante contribuição à história da artilharia durante as guerras hussitas, quando Zisca arma com canhões portáteis as fortalezas móveis feitas de carros de boi. Uma afinidade operário-soldado, arma-ferramenta, sentimento-afeto, marca o bom momento das revoluções e das guerras populares, mesmo fugidio. Há um gosto esquizofrênico pela ferramenta, que a faz passar do trabalho à ação livre, um gosto esquizofrênico pela arma, que a transforma num meio de paz, de obter a paz. A um só tempo um revide e uma resistência. Tudo é ambíguo. Mas não acreditamos que as análises de Junger sejam desqualificadas por esta ambiguidade, quando erige o retrato do “Rebelde”, como figura transhistórica, arrastando o Operário de um lado, o Soldado de outro, sobre uma linha de fuga comum, onde se diz a um só tempo “Procuro uma arma” e “Busco uma ferramenta”: traçar a linha, ou, o que dá no mesmo, atravessar a linha, passar a linha, visto que ela só é traçada quando se ultrapassa a linha de separação78. Sem

Há certamente uma cozinha e uma arquitetura na máquina de guerra nômade, porém com um “traço” que as distingue de sua forma sedentária. A arquitetura nômade, por exemplo, o iglu esquimó, o palácio de madeira huno, é um derivado da tenda; sua influência sobre a arte sedentária vem das cúpulas e semicúpulas e, sobretudo, da instauração de um espaço que começa muito baixo, como na tenda. Quanto à cozinha nômade, é uma cozinha que consiste literalmente em desjejuar (a tradição pascal é nômade). K é por esse traço que ela pode pertencer a uma máquina de guerra: por exemplo, os Janízaros têm uma marmita como centro de reunião, graus de cozinheiros, e seu gorro é atravessado por uma colher de madeira. 77

É no Traité du rebelle (Bourgois) que Junger se opõe o mais nitidamente ao nacionalsocialismo, e desenvolve certas indicações contidas em Der Arbeiter: uma concepção da “linha” como fuga ativa, e que passa entre as duas figuras do antigo Soldado e do Operário moderno, arrastando a ambos para um outro destino, num outro agenciamento (nada subsiste desse aspecto nas reflexões de Heidegger sobre a noção de Linha, no entanto dedicadas a Junger). 78

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dúvida, não existe nada mais antiquado que o homem de guerra: há muito tempo que ele se transformou num personagem inteiramente diferente, o militar. O próprio operário sofreu tantas desventuras... Contudo, homens de guerra renascem, com muitas ambiguidades; são todos aqueles que sabem da inutilidade da violência, mas que estão na adjacência de uma máquina de guerra a ser recriada, de revide ativo e revolucionário. Também renascem operários, que não acreditam no trabalho, mas que estão na adjacência de uma máquina de trabalho a ser recriada, de resistência ativa e de liberação tecnológica. Eles não ressuscitam velhos mitos ou figuras arcaicas, são a nova figura de um agenciamento trans-histórico (nem histórico, nem eterno, mas intempestivo): o guerreiro nômade e o operário ambulante. Uma sombria caricatura já os antecipa, o mercenário ou o instrutor militar móvel, e o tecnocrata ou analista transumante, CIA e IBM. Mas uma figura trans-histórica deve defender-se tanto dos velhos mitos como das desfigurações preestabelecidas, antecipadoras. “Para reconquistar um mito, não é preciso retroceder, ele ressurge quando o tempo treme até as bases sob o império do extremo perigo.” Artes marciais e técnicas de ponta só valem à medida que possibilitam reunir massas operárias e guerreiras de um tipo novo. Linha de fuga comum da arma e da ferramenta: uma pura possibilidade, uma mutação. Formam-se técnicos subterrâneos, aéreos, submarinos, que pertencem mais ou menos à ordem mundial, mas que inventam e amontoam involuntariamente cargas de saber e de ação virtuais, utilizáveis por outros, minuciosas, contudo fáceis de adquirir, para novos agenciamentos. Entre a guerrilha e o aparelho militar, entre o trabalho e a ação livre, os empréstimos sempre se fizeram nos dois sentidos, para uma luta tanto mais variada.

Problema III: Como os nômades inventam ou encontram suas armas? Proposição VIII: A metalurgia constitui por si mesma um fluxo que concorre necessariamente para o nomadismo.

Os povos da estepe são menos conhecidos em seu regime político, econômico e social do que nas inovações guerreiras

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que trazem, do ponto de vista das armas ofensivas e defensivas, do ponto de vista da composição ou da estratégia, do ponto de vista dos elementos tecnológicos (sela, estribo, ferragem, arreio...). A história sempre contesta, mas não chega a apagar os rastros nômades. O que os nômades inventam é o agenciamento homem-animal-arma, homem-cavalo-arco. Através desse agenciamento de velocidade, as idades do metal são marcadas por inovações. O machado de bronze de encaixe dos hicsos, a espada de ferro dos hititas puderam ser comparadas a pequenas bombas atômicas. Pôde-se fazer uma periodização bastante precisa das armas da estepe, mostrando as alternâncias de armamento pesado e leve (tipo cita e tipo sármata), e suas formas mistas. O sabre em aço fundido, com frequência curvo e truncado, arma de talho e oblíqua, envolve um espaço dinâmico diferente do da espada em ferro forjado, estoque e de frente: os citas o levam à índia e à Pérsia, de onde os árabes o recolherão. Admite-se que os nômades perdem seu papel inovador com o surgimento das armas de fogo, sobretudo o canhão (“a pólvora de canhão venceu a rapidez deles”). Mas não necessariamente porque não souberam utilizá-los: não só exércitos como o turco, cujas tradições nômades permanecem vivas, desenvolverão um enorme poder de fogo, um novo espaço; mas, de maneira ainda mais característica, a artilharia leve se integrava muito bem nas formações móveis de carros, nos navios piratas, etc. Se o canhão marca um limite dos nômades, é antes porque implica um investimento econômico que só um aparelho de Estado pode fazer (mesmo as cidades comerciais não serão suficientes). Resta o fato de que, para as armas brancas, e até mesmo para o canhão, reencontramos constantemente um nômade no horizonte de tal ou qual linhagem tecnológica79. Evidentemente, cada caso é controvertido: por exemplo, as grandes discussões sobre o estribo80. É que, em geral, vem a ser difícil distinguir o que corresponde aos nômades enquanto tais, o que eles recebem de um império com o qual se comunicam, que eles conquistam ou no qual se integram. Entre um exército

Lynn White, que, contudo, não é favorável ao poder de inovação dos nômades, estabelece por vezes linhagens tecnológicas amplas cuja origem é surpreendente: técnicas de ar quente e de turbinas, que viriam da Malásia (Technologie médiévale et transformations sociales, Mouton, pp. 112-113: “Desse modo, pode-se descobrir uma cadeia de estímulos técnicos a partir de algumas grandes figuras da ciência e da técnica do início dos tempos modernos, passando pelo fim da Idade Média, até as selvas da Malásia. Uma segunda invenção malásia, o pistão, sem dúvida exerceu uma influência importante no estudo da pressão do ar e de suas aplicações”). 79

80

Sobre a questão particularmente complicada do estribo, cf. Lynn White, cap. I.

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imperial e uma máquina de guerra nômade há tantas franjas, intermediários ou combinações, que, frequentemente, as coisas provêm sobretudo da primeira. O exemplo do sabre é típico e, contrariamente ao estribo, sem incerteza: se é verdade que os citas são os propagadores do sabre, e o trazem aos hindus, aos persas, aos árabes, também foram eles suas primeiras vítimas, os primeiros a ser expostos a ele; seu inventor é o império chinês dos Ts'in e dos Han, mestre exclusivo do aço fundido ou ao cadinho81. Razão a mais para assinalar, nesse exemplo, as dificuldades que encontram os arqueólogos e os historiadores modernos. Um certo ódio ou desprezo aos nômades não poupa nem sequer os arqueólogos. No caso do sabre, onde os fatos já falam suficientemente em favor de uma origem imperial, o melhor comentador acha bom acrescentar que de qualquer maneira os citas não podiam tê-lo inventado, visto que eram pobres nômades, e que o aço ao cadinho vinha necessariamente de um meio sedentário. Mas por que considerar, segundo a muito antiga versão chinesa oficial, que desertores do exército imperial teriam revelado o segredo aos citas? E o que quer dizer “revelar o segredo”, se os citas não eram capazes de utilizá-lo e nada entendiam? Os desertores são um bom pretexto. Não se fabrica uma bomba atômica com um segredo, tampouco se fabrica um sabre se não se é capaz, de reproduzi-lo e de integrá-lo sob outras condições, de fazê-lo passar a outros agenciamentos. A propagação, a difusão, fazem plenamente parte da linha de inovação; elas marcam uma virada. K mais: por que dizer que o aço ao cadinho é a propriedade necessária de sedentários ou de imperiais, quando ele é fundamentalmente uma invenção de metalúrgicos? Supõe-se que esses metalúrgicos são necessariamente controlados por um aparelho de Estado; mas também gozam, forçosamente, de uma certa autonomia tecnológica, e de uma clandestinidade social em virtude da qual, mesmo controlados, não pertencem ao Estado, sem por isso serem nômades. Não há desertores que traem o segredo, mas metalúrgicos que o comunicam, e tornam possível sua adaptação e propagação: um tipo de “traição” inteiramente diferente. Afinal de contas, o que torna as discussões tão difíceis (tanto para o caso controverso do estribo como para o caso seguro do sabre) não são apenas os preconceitos sobre os nômades, é a ausência de um conceito suficientemente elaborado de

Cf. o belo artigo de Mazaheri, “O sabre contra a espada”, Annales, 1958. As objeções que propomos abaixo não mudam em nada a importância desse texto. 81

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linhagem tecnológica (o que define uma linhagem ou continuum tecnológico, e sua extensão variável desde tal ou qual ponto de vista?). De nada serviria dizer que a metalurgia é uma ciência porque descobre leis constantes, por exemplo a temperatura de fusão de um metal em qualquer tempo, em qualquer lugar. Pois a metalurgia é, sobretudo, indissociável de diversas linhas de variação: variação dos meteoritos e dos metais brutos; variação dos minerais e das proporções de metal; variação das ligas, naturais ou não; variação das operações efetuadas num metal; variação das qualidades que tornam possível tal ou qual operação, ou que decorrem de tal ou qual operação. (Por exemplo, doze variedades de cobre discriminadas e recenseadas na Suméria, segundo os lugares de origem, os graus de refino82) Todas essas variáveis podem ser agrupadas sob duas grandes rubricas: as singularidades ou hecceidades espaço-temporais, de diferentes ordens, e as operações que a elas se conectam como processos de deformação ou de transformação; as qualidades afetivas ou traços de expressão de diferentes níveis, que correspondem a essas singularidades e operações (dureza, peso, cor, etc). Retornemos ao exemplo do sabre, ou de preferência do aço ao cadinho: ele implica a atualização de uma primeira singularidade, a fusão do ferro em alta temperatura; depois, uma segunda singularidade, que remete às descarburizações sucessivas; alguns traços de expressão correspondem a essas singularidades, não apenas a dureza, o cortante, o polido, mas igualmente as ondas ou desenhos traçados pela cristalização, resultantes da estrutura interna do aço fundido. A espada de ferro remete a singularidades inteiramente distintas, já que é forjada e não fundida, moldada, temperada e não resfriada ao ar, produzida peça por peça e não fabricada em série; seus traços de expressão são necessariamente muito diferentes, visto que ela trespassa em vez de talhar, ataca de frente e não de viés; e mesmo os desenhos expressivos são obtidos aí de uma maneira completamente diferente, por incrustação 83 . É possível falar de um phylum

82

Henri Limet, le travail du metal au pays de Sumer au temps de la IIIª dynastie d’Ur Les Belles Lettres, pp. .33-40.

Mazaheri mostra bem, nesse sentido, como o sabre e a espada remetem a duas linhagens tecnológicas distintas. Especialmente a adamascagem, que não provém em absoluto de Damasco, mas do termo grego ou persa que significa diamante, designa o tratamento do aço fundido que o torna tão duro quanto o diamante, e os desenhos que se produzem nesse aço por cristalização cementita (“o verdadeiro damasco se fazia nos centros que nunca tinham sofrido a dominação romana”). Porém, de outro lado, a damasquinagem, proveniente de Damasco, designa apenas incrustações sobre metal (ou sobre tecido), que são como desenhos voluntários que imitam a adamascagem com meios inteiramente diferentes. 83

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maquínico, ou de uma linhagem tecnológica, a cada vez que se depara com um conjunto de singularidades, prolongáveis por operações, que convergem e as fazem convergir para um ou vários traços de expressão assinaláveis. Se as singularidades ou operações divergem, em materiais diferentes ou no mesmo, é preciso distinguir dois phylums diferentes: por exemplo, justamente para a espada de ferro, proveniente do punhal, e o sabre de aço, proveniente da faca. Cada phylum tem suas singularidades e operações, suas qualidades e traços, que determinam a relação do desejo com o elemento técnico (os afectos “do” sabre não são os mesmos que os da espada). Mas sempre é possível instalar-se no nível de singularidades prolongáveis de um phylum a outro, e reunir ambos. No limite, não há senão uma única e mesma linhagem filogenética, um único e mesmo phylum maquínico, idealmente contínuo: o fluxo de matéria-movimento, fluxo de matéria em variação contínua, portador de singularidades e traços de expressão. Esse fluxo operatório e expressivo é tanto natural como artificial: é como a unidade do homem com a Natureza. Mas, ao mesmo tempo, não se realiza aqui e agora sem dividir-se, diferenciar-se. Denominaremos agenciamento todo conjunto de singularidades e de traços extraídos do fluxo — selecionados, organizados, estratificados — de maneira a convergir (consistência) artificialmente e naturalmente: um agenciamento, nesse sentido, é uma verdadeira invenção. Os agenciamentos podem agruparse em conjuntos muito vastos que constituem “culturas”, ou até “idades”; nem por isso deixam de diferenciar o phylum ou o fluxo, dividindo-o em outros tantos phylums diversos, de tal ordem, em tal nível, e introduzem as descontinuidades seletivas na continuidade ideal da matéria-movimento. Os agenciamentos recortam o phylum em linhagens diferenciadas distintas e, ao mesmo tempo, o phylum maquínico os atravessa todos, abandona um deles para continuar num outro, ou faz com que coexistam. Tal singularidade enterrada nos flancos de um phylum, por exemplo a química do carvão, será trazida à superfície por tal agenciamento que a seleciona, a organiza, a inventa, e graças ao qual, então, todo o phylum, ou parte dele, passa em tal lugar e em tal momento. Em qualquer caso será preciso distinguir muitas linhas diferentes: umas, filogenéticas, passam a longa distância por agenciamentos de idades e culturas diversas (da zarabatana ao canhão? do moinho de orações ao de hélice? do caldeirão ao motor?); outras, ontogenéticas, são internas a um agenciamento, e ligam seus diversos elementos, ou então fazem passar um elemento, frequentemente com um tempo de atraso, a um outro agenciamento de natureza diferente, mas de mesma cultura ou de mesma idade (por exemplo, a ferradura que se propaga nos

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agenciamentos agrícolas). É preciso, pois, levar em conta a ação seletiva dos agenciamentos sobre o phylum, e a reação evolutiva do phylum, sendo este o fio subterrâneo que passa de um agenciamento a outro, ou sai de um agenciamento, arrasta-o e o abre. Impulso vital? Leroi-Gourhan foi o mais longe num vitalismo tecnológico que modela a evolução técnica pela evolução biológica em geral: uma Tendência universal, encarregada de todas as singularidades e traços de expressão, atravessa meios internos e técnicos que a refratam ou a diferenciam, segundo singularidades e traços retidos, selecionados, reunidos, tornados convergentes, inventados por cada um84. Há, com efeito, um phylum maquínico em variação que cria os agenciamentos técnicos, ao passo que os agenciamentos inventam os phylums variáveis. Uma linhagem tecnológica muda muito, segundo seja traçada no phylum ou inscrita nos agenciamentos; mas os dois são inseparáveis. Portanto, como definir essa matéria-movimento, essa matéria-energia, essa matéria-fluxo, essa matéria em variação, que entra nos agenciamentos, e que deles sai? É uma matéria desestratificada, desterritorializada. Parece-nos que Husserl fez o pensamento dar um passo decisivo quando descobriu uma região de essências materiais e vagas, isto é, vagabundas, anexatas e no entanto rigorosas, distinguindo-as das essências fixas, métricas e formais. Vimos que essas essências vagas se distinguem tanto das coisas formadas como das essências formais. Constituem conjuntos vagos. Desprendem uma corporeidade (materialidade) que não se confunde nem com a essencialidade formal inteligível, nem com a coisidade sensível, formada e percebida. Essa corporeidade tem duas características: de um lado é inseparável de passagens ao limite como mudanças de estado, de processos de deformação ou de transformação operando num espaço-tempo ele mesmo anexato, agindo à maneira de acontecimentos (ablação, adjunção, projeção..).; de outro lado, é inseparável de qualidades expressivas ou intensivas, suscetíveis de mais e de menos, produzidas como afectos variáveis (resistência, dureza, peso, cor...). Há, portanto, um acoplamento ambulante acontecimentos-afetos que constitui a essência corpórea vaga, e que se distingue do liame sedentário “essência fixapropriedades que dela decorrem na coisa”, “essência formal-coisa formada”. Sem dúvida Husserl tinha tendência a fazer da essência vaga

Leroi-Gourhan, Milieu et techniques, Albin Michel, pp. 356 ss. Gilbert Simondon retomou, acerca de séries curtas, a questão das “origens absolutas de uma linhagem técnica”, ou da criação de uma “essência técnica”: Du mode d’existence des objets techniques, Aubier, pp. 41 ss. 84

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uma espécie de intermediário entre a essência e o sensível, entre a coisa e o conceito, um pouco como o esquema kantiano. O redondo não seria uma essência vaga ou esquemática, intermediária entre as coisas arredondadas sensíveis e a essência conceituai do círculo? dom efeito, o redondo só existe como afeto-limiar (nem plano nem pontudo) e como processo-limite (arredondar), através das coisas sensíveis e dos agentes técnicos, mó, torre, roda, rodinha, alvado... Mas, então, ele só é “intermediário” se o intermediário for autônomo, ele mesmo estendendo-se primeiro entre as coisas e entre os pensamentos, para instaurar uma relação totalmente nova entre os pensamentos e as coisas, uma vaga identidade entre ambos. Certas distinções propostas por Simondon podem ser aproximadas das de Husserl, pois ele denuncia a insuficiência tecnológica do modelo matéria-forma, dado que este supõe uma forma fixa e uma matéria considerada como homogênea. É a ideia de lei que garante uma coerência a esse modelo, já que são as leis que submetem a matéria a tal ou qual forma, e que, inversamente, realizam na matéria tal propriedade essencial deduzida da forma. Mas Simondon mostra que o modelo bilemórfico deixa de lado muitas coisas, ativas e afetivas. De um lado, à matéria formada ou formável é preciso acrescentar toda uma materialidade energética em movimento, portadora de singularidades ou hecceidades, que já são como formas implícitas, topológicas mais que geométricas, e que se combinam com processos de deformação: por exemplo, as ondulações e torsões variáveis das fibras de madeira, sobre as quais se ritma a operação de fendimento a cunha. De outro lado, às propriedades essenciais que na matéria decorrem da essência formal é preciso acrescentar afectos variáveis intensivos, e que ora resultam da operação, ora ao contrário a tornam possível: por exemplo, uma madeira mais ou menos porosa, mais ou menos elástica e resistente. De qualquer modo, trata-se de seguir a madeira, e de seguir na madeira, conectando operações e uma materialidade, em vez de impor uma forma a uma matéria: mais que a uma matéria submetida a leis, vai-se na direção de uma materialidade que possui um nomos. Mais que a uma forma capaz de impor propriedades à matéria, vai-se na direção de traços materiais de expressão que constituem afetos. Certamente, sempre é possível “traduzir” num modelo o que escapa a esse modelo: assim, é possível referir a potência de variação da materialidade a leis que adaptam uma forma fixa e uma matéria constante. Mas não será sem alguma distorsão, que consiste em arrancar as variáveis do seu estado de variação contínua, para delas extrair pontos fixos e relações constantes. Faz-se então

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oscilar as variáveis, muda-se até a natureza das equações, que deixam de ser imanentes à matéria-movimento (inequações, adequações). A questão não é saber se uma tal tradução é conceitualmente legítima, pois ela o é, mas apenas saber qual intuição nela se perde. Em suma, o que Simondon censura ao modelo hilemórfico é considerar a forma e a matéria como dois termos definidos cada um de seu lado, como as extremidades de duas semicadeias onde já não se entende como podem conectar-se, a exemplo de uma simples relação de moldagem, sob a qual já não se apreende a modulação contínua perpetuamente variável85. A crítica do esquema hilemórfico funda-se na “existência, entre forma e matéria, de uma zona de dimensão média e intermediária”, energética, molecular — todo um espaço próprio que desdobra sua materialidade através da matéria, todo um número próprio que estende seus traços através da forma... Voltamos sempre a essa definição: o phylum maquínico é a materialidade, natural ou artificial, e os dois ao mesmo tempo, a matéria em movimento, em fluxo, em variação, como portadora de singularidades e traços de expressão. Daí decorrem consequências evidentes: essa matéria-fluxo só pode ser seguida. Sem dúvida, essa operação que consiste em seguir pode ser realizada num mesmo lugar: um artesão que aplaina segue a madeira, e as fibras da madeira, sem mudar de lugar. Mas esta maneira de seguir não passa de uma sequência particular de um processo mais geral, pois o artesão, na verdade, é forçado a seguir também de uma outra maneira, isto é, a ir buscar a madeira lá onde ela está, e não qualquer uma, mas a madeira que tem as fibras adequadas. Ou, então, fazê-la chegar: é apenas porque o comerciante se encarrega de uma parte do trajeto em sentido inverso que o artesão pode poupar-se de fazê-lo pessoalmente. Mas o artesão só é completo se for também prospector; e a organização que separa o prospector, o comerciante e o artesão já mutila o artesão para dele fazer um “trabalhador”. O artesão será, pois, definido como aquele que está determinado a seguir um fluxo de matéria, um phylum maquínico. É o itinerante, o ambulante. Seguir o fluxo de matéria é itinerar, é ambular. É a intuição em ato. Certamente, há itinerâncias segundas onde se prospecta e se segue, já não um fluxo de matéria, mas, por exemplo, um mercado. Todavia,

Sobre a relação molde-modulação, e a maneira pela qual a moldagem oculta ou contrai uma operação de modulação essencial à matéria-movimento, cf. Simondon, pp. 28-50 (“modular é moldar de maneira contínua e perpetuamente variável”,.p. 42). Simondon mostra bem que o esquema hilemórfico não deve seu poder à operação tecnológica, mas ao modelo social do trabalho que subordina a si essa operação (pp. 47-50). 85

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é sempre um fluxo que se segue, ainda que esse fluxo não seja mais o da matéria. E, sobretudo, há itinerâncias secundárias: neste caso, são as que decorrem de uma outra “condição”, mesmo se dela decorrem necessariamente. Por exemplo, um transumante, seja agricultor, seja pecuarista, muda de terra segundo o empobrecimento desta ou segundo as estações; mas ele só segue um fluxo terrestre secundariamente, já que, primeiramente, opera uma rotação destinada desde o início a fazê-lo retornar ao ponto que deixou, quando a floresta estiver reconstituída, a terra descansada, a estação modificada. O transumante não segue um fluxo, traça um circuito, e, de um fluxo, ele segue apenas aquilo que passa dentro do circuito, mesmo que este seja cada vez mais amplo. O transumante só é itinerante, portanto, por via de consequência, ou só se torna tal quando todo seu circuito de terras ou de pastagens está esgotado, e quando a rotação está a tal ponto ampliada que os fluxos escapam ao circuito. O próprio comerciante é um transumante, pois os fluxos mercantis estão subordinados à rotação de um ponto de partida e de um ponto de chegada (ir buscar-fazer vir, importar-exportar, comprarvender). Sejam quais forem as implicações recíprocas, há grandes diferenças entre um fluxo e um circuito. O migrante, nós o vimos, é ainda outra coisa. E o nômade não se define inicialmente como transumante nem como migrante ainda que o seja por via de consequência. A determinação primária do nômade, com efeito, é que ele ocupa e mantém um espaço liso: é sob este aspecto que é determinado como nômade (essência). Só será por sua vez transumante, itinerante, em virtude das exigências impostas pelos espaços lisos. Em suma, sejam quais forem as misturas de fato entre nomadismo, itinerância e transumância, o conceito primário não é o mesmo nos três casos (espaço liso, matéria-fluxo, rotação). Ora, é somente a partir do conceito distinto que se pode julgar a mistura, quando ela se produz, e a forma sob a qual se produz, e a ordem na qual se produz. Mas, no que precede, desviamo-nos da questão: por que o phylum maquínico, o fluxo de matéria, seria essencialmente metálico ou metalúrgico? Também aí, apenas o conceito distinto é capaz de dar uma resposta, mostrando que há uma relação especial primária entre a itinerância e a metalurgia (desterritorialização). Contudo, os exemplos que invocávamos, segundo Husserl e Simondon, concerniam à madeira ou à argila tanto quanto aos metais; e, bem mais, não haveria fluxos de erva, de água, de rebanhos, que formam outros tanto phylums ou matérias em movimento? É mais fácil responder agora a essas questões, pois tudo se passa

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como se o metal e a metalurgia impusessem e elevassem à consciência algo que nas outras matérias e operações se encontra tão-somente oculto ou enterrado. É que, nos outros casos, cada operação é realizada entre dois limiares, dos quais um constitui a matéria preparada para a operação, o outro a forma a encarnar (por exemplo, a argila e o molde). Isto é o que dá ao modelo hilemórfico um valor geral, visto que a forma encarnada que assinala o final de uma operação pode servir de matéria para uma nova operação, mas numa ordem fixa que marca a sucessão dos limiares, ao passo que, na metalurgia, as operações não param de situar-se de um lado e de outro dos limiares, de sorte que uma materialidade energética transborda a matéria preparada, e uma deformação ou transformação qualitativa transborda a forma86. Assim, a tempera se encadeia com a forjadura para além da aquisição de forma, ou, então, quando há moldagem, o metalúrgico, de algum modo, opera no interior do molde. Ou, então, o aço fundido e moldado vai sofrer uma série de descarburações sucessivas. E por último, a metalurgia tem a possibilidade de refundir e de reutilizar uma matéria à qual dá uma forma-lingote: a história do metal é inseparável dessa forma muito particular, que não se confunde com um estoque nem com uma mercadoria; o valor monetário decorre daí. Mais geralmente, a ideia metalúrgica do “redutor” exprime a dupla liberação de uma materialidade com relação à matéria preparada, de uma transformação com relação à forma a encarnar. Jamais a matéria e a forma pareceram mais duras que na metalurgia; e, contudo, é a forma de um desenvolvimento contínuo que tende a substituir a sucessão das formas, é a matéria de uma variação contínua que tende a substituir a variabilidade das matérias. Se a metalurgia está numa relação essencial com a música, não é apenas em virtude dos ruídos da forja, mas da tendência que atravessa as duas artes, de fazer valer, para além das formas separadas, um desenvolvimento contínuo da forma, para além das matérias variáveis, uma variação contínua da matéria: um cromatismo ampliado arrasta a um só tempo a música

Simondon não tem atração especial pelos problemas de metalurgia. Com efeito, sua análise não é histórica, e prefere recorrer a casos de eletrônica. Mas, historicamente, não há eletrônica que não passe pela metalurgia. Donde a homenagem que lhe rende Simondon: “A metalurgia não se deixa pensar inteiramente por meio do esquema hilemórfico. A aquisição de forma não se realiza de maneira visível num único instante, mas em várias operações sucessivas; não se pode distinguir estritamente a aquisição de forma da transformação qualitativa; a forjadura e a tempera de um aço são uma anterior, a outra posterior ao que se poderia chamar aquisição de forma propriamente dita: forjadura e tempera são, no entanto, constituições de objetos” (L’individu, p. 59). 86

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e a metalurgia; o ferreiro músico é o primeiro “transformador”87. Em suma, o que o metal e a metalurgia trazem à luz é uma vida própria da matéria, um estado vital da matéria enquanto tal, um vitalismo material que, sem dúvida, existe por toda parte, mas comumente escondido ou recoberto, tornado irreconhecível, dissociado pelo modelo hilemórfico. A metalurgia é a consciência ou o pensamento da matéria-fluxo, e o metal é o correlato dessa consciência. Como o exprime o pan-metalismo, há coextensividade do metal a toda matéria, e de toda matéria à metalurgia. Mesmo as águas, as ervas e as madeiras, os animais, estão povoados de sais ou de elementos minerais. Tudo não é metal, mas há metal por toda parte. O metal é o condutor de toda matéria. C) phylum maquínico é metalúrgico, ou, ao menos, tem uma cabeça metálica, seu dispositivo de rastreamento, itinerante. E o pensamento nasce menos com a pedra do que com o metal: a metalurgia é a ciência menor em pessoa, a ciência “vaga” ou a fenomenologia da matéria. A prodigiosa ideia de uma Vida não orgânica — precisamente aquela que para Worringer era a ideia bárbara por excelência88 — é a invenção, a intuição da metalurgia. O metal não é nem uma coisa nem um organismo, mas um corpo sem órgãos. A “linha setentrional, ou gótica”, é, primeiramente, a linha mineira e metálica que delimita esse corpo. A relação da metalurgia com a alquimia não repousa, como acreditava Jung, no valor simbólico do metal e sua correspondência com uma alma orgânica, mas na potência imanente de corporeidade em toda matéria, e sobre o espírito de corpo que o acompanha. O itinerante primeiro e primário é o artesão. Mas o artesão não é o caçador, o agricultor nem o pecuarista. Tampouco é o joeireiro, nem o oleiro, que só secundariamente se dedicam a uma atividade artesanal. É aquele que segue a matéria-fluxo como produtividade pura: portanto, sob forma mineral, e não vegetal ou animal. Não é o homem da terra, nem

Não basta apenas levar em conta mitos, mas a história positiva: por exemplo, o papel dos “instrumentos de cobre” na evolução da forma musical; ou, então, a constituição de uma “síntese metálica” na música eletrônica (Richard Pinhas). 87

W. Worringer define a arte gótica pela linha geométrica “primitiva”, mas tornada viva. Ocorre que essa vida não é orgânica, como o será no mundo clássico; essa linha “não contém qualquer expressão orgânica e, contudo, é inteiramente viva. (...). Como ela não possui tonalidade orgânica alguma, sua expressão vital deve ser distinta da vida orgânica. (...). Há nessa geometria tornada viva, que anuncia a álgebra viva da arquitetura gótica, um patético do movimento que obriga nossas sensações a um esforço que não lhes é natural” (L’art gothique; Gallimard, pp. 69-70). 88

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do solo, mas o homem do subsolo. O metal é a pura produtividade da matéria, de modo que quem segue o metal é o produtor de objetos por excelência. Como o mostrou Gordon Childe, o metalúrgico é o primeiro artesão especializado, e desse ponto de vista forma um corpo (sociedades secretas, guildas, confrarias). O artesão-metalúrgico é o itinerante, porque ele segue a matéria-fluxo do subsolo. Certamente, o metalúrgico está em relação com “os outros”, os do solo, da terra ou do céu. Ele está em relação com os agricultores das comunidades sedentárias, e com os funcionários celestes do império que sobrecodificam as comunidades: com efeito, tem necessidade deles para viver, sua própria subsistência depende de um estoque agrícola imperial89. No seu trabalho, porém, está em relação com os florestanos, e depende deles parcialmente: deve instalar seus ateliês próximo à floresta, para ter o carvão necessário. No seu espaço, está em relação com os nômades, visto que o subsolo une o solo do espaço liso à terra do espaço estriado: não há minas nos vales aluviais dos agricultores imperializados; é preciso atravessar desertos, cruzar montanhas, e, no controle das minas, sempre estão implicados povos nômades; toda mina é uma linha de fuga, e que comunica com espaços lisos — hoje, haveria equivalentes nos problemas do petróleo. A arqueologia e a história mantêm-se estranhamente discretas sobre essa questão do controle das minas. Acontece de impérios com forte organização metalúrgica não possuírem minas; o Oriente Médio não tem estanho, tão necessário à fabricação do bronze. Muito metal chega sob forma de lingotes, e de muito longe (como o estanho da Espanha ou até da Cornualha). Uma situação tão complexa não implica apenas uma forte burocracia imperial e circuitos comerciais longínquos e desenvolvidos. Implica toda uma política movente, em que Estados afrontam um fora, em que povos muito diferentes se afrontam ou, então, se põem de acordo para o controle das minas, e sob tal ou qual aspecto (extração, carvão de madeira, ateliês, transporte). Não basta dizer que há guerras e expedições mineiras; nem invocar “uma síntese eurasiática dos ateliês

É um dos pontos essenciais da tese de Childe, L’Europe préhistorique (Payot): o metalúrgico é o primeiro artesão especializado, cuja subsistência é tornada possível graças a formação de um excedente agrícola. A relação do ferreiro com a agricultura não se deve unicamente às ferramentas que fabrica, mas ã alimentação que retira ou recebe. O mito dogon, tal como Griaule lhe analisou as variantes, poderia marcar essa relação em que o ferreiro recebe ou rouba os grãos, e os oculta na sua “massa”. 89

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nômades desde os arredores da China até os Finistérios ocidentais”, e constatar que desde a pré-história “as populações nômades estão em contato com os principais centros metalúrgicos do mundo antigo”90. Seria preciso conhecer melhor as relações dos nômades com esses centros, com os ferreiros que eles mesmos empregam, ou frequentam, com povos e grupos propriamente metalúrgicos que são seus vizinhos. Qual é a situação no Cáucaso e no Altai? na Espanha e na África do Norte? As minas são uma fonte de fluxo, de mistura e de fuga, que quase não têm equivalente na história. Mesmo quando são bem controladas por um império que as possui (caso do império chinês, caso do império romano), há um movimento muito importante de exploração clandestina, e alianças de mineiros seja com as incursões nômades e bárbaras, seja com as revoltas camponesas. O estudo dos mitos, e até as considerações etnográficas sobre o estatuto dos ferreiros, nos desviam dessas questões políticas. É que a mitologia e a etnologia não possuem um bom método a esse respeito. Pergunta-se com demasiada frequência como os outros “reagem” diante dos ferreiros: cai-se então em todas as banalidades concernentes à ambivalência do sentimento, diz-se que o ferreiro é ao mesmo tempo honrado, temido e desprezado, mais desprezado entre os nômades, mais honrado entre os sedentários91. Mas, desta forma, perde-se as razões dessa situação, a especificidade do próprio ferreiro, a relação não simétrica que ele mesmo entretém com os nômades e com os sedentários, o tipo de afectos que ele inventa (o afecto metálico). Antes de buscar os sentimentos dos outros pelo ferreiro, é preciso primeiramente avaliar o ferreiro ele mesmo como um Outro, e como tendo, a esse título, relações afetivas diferentes com os sedentários, com os nômades. Não há ferreiros nômades e ferreiros sedentários. O ferreiro é ambulante, itinerante. Particularmente importante a esse respeito é a maneira pela qual o ferreiro habita: seu espaço não é nem o espaço estriado do sedentário, nem o espaço liso do nômade. O ferreiro pode ter uma tenda, pode ter uma

90

Maurice Lombard, Les métaux dans Vancien monde du V* au XIe siècle, Mouton, pp. 75, 255.

A situação social do ferreiro foi objeto de análises detalhadas, sobretudo no caso da África: cf. o estudo clássico de W. Cline, “Mining and Metallurgy in Negro África” (General Series in Anthropology, 1937); e Pierre Clément, “Le forgeron en Afrique noire” (Revue de géographie humaine et d’ethnologie, 1948). Mas esses estudos são pouco conclusivos; pois tanto os princípios invocados são bem distintos, “reação depreciativa”, “aprovadora”, “apreensiva”, quanto os resultados são vagos e se misturam, como testemunham as descrições de P. Clément. 91

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casa, ele as habita à maneira de uma “jazida”, como o próprio metal, à maneira de uma gruta ou de um buraco, cabana meio subterrânea, ou completamente. São trogloditas, não por natureza, mas por arte e necessidade92. Um texto esplêndido de Elie Faure evoca a azáfama dos povos itinerantes da índia, esburacando o espaço e fazendo nascer formas fantásticas que correspondem a esses rombos, as formas vitais da vida não orgânica. “A beira do mar, no limiar de uma montanha, encontravam uma muralha de granito. Então, entravam todos no granito, viviam, amavam, trabalhavam, morriam, nasciam na obscuridade, e três ou quatro séculos depois saíam novamente, a léguas de distância, tendo atravessado a montanha. Atrás deles, deixavam a rocha vazada, as galerias cavadas em todos os sentidos, paredes esculpidas, cinzeladas, pilares naturais ou factícios escavados, dez mil figuras horríveis ou encantadoras. (...). O homem aqui consente, sem combate, à sua força e a seu nada. Não exige da forma a afirmação de um ideal determinado. Ele a extrai bruta do informe, tal como o informe quer. Utiliza as

Espaço esburacado

Cf. Jules Bloch, Les Tziganes, PUF, pp. 47-54. J. Bloch mostra precisamente que a distinção sedentários-nômades tornase secundária com relação à habitação troglodita. 92

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cavidades de sombra e os acidentes do rochedo.” 93 Índia metalúrgica. Trespassar as montanhas em vez de galgá-las, escavar a terra em vez de estriá-la, esburacar o espaço em vez de mantê-lo liso, fazer da terra um queijo suíço. Imagem do filme A greve, desenrolando um espaço esburacado onde se ergue todo um povo inquietante, cada um saindo de seu buraco como num campo minado por toda parte. O signo de Caim é o signo corporal e afectivo do subsolo, atravessando a um só tempo a terra estriada do espaço sedentário e o solo nômade do espaço liso, sem deter-se em nenhum, o signo vagabundo da itinerância, o duplo roubo ou a dupla traição do metalúrgico enquanto se afasta da agricultura e da pecuária. Será preciso reservar o nome de cainitas ou quenitas para esses povos metalúrgicos que assediam o fundo da História? A Europa pré-histórica está atravessada pelos povos-que-usavam-machados de combate, vindos das estepes, como um ramo metálico separado dos nômades, e pelos povos do Campaniforme, os povos-que-usavam-vasos em forma de cálice, provenientes da Andaluzia, ramo separado da agricultura megalítica94. Povos estranhos, dolicocéfalos e braquicéfalos que se misturam, enxameando toda a Europa. São eles que controlam as minas, esburacando o espaço europeu em todos os lados, constituindo nosso espaço europeu? O ferreiro não é nômade entre os nômades e sedentário entre os sedentários, ou semi-nômade entre os nômades, semi-sedentário entre os sedentários. Sua relação com os outros decorre de sua itinerância interna, de sua essência vaga, e não o inverso. É na sua especificidade, é por ser itinerante, c por inventar um espaço esburacado que ele se comunica necessariamente com os sedentários c com os nômades (e ainda com outros, com os florestanos transumantes). É em si mesmo, antes de tudo, que é duplo: um híbrido, uma liga, uma formação gemelar. Como diz Griaule, o ferreiro dogon não é um “impuro”, mas um “misturado”, e é por ser misturado que ele é endogâmico, que não se casa com os puros que têm uma geração simplificada, ao passo que ele próprio reconstitui uma geração gemelar95. Gordon Childe mostra que o metalúrgico se desdobra necessariamente, existe duas vezes, uma como personagem capturado e protegido pelo aparelho do

93

Klie Faure, Histoire de Vart, Vart medieval, I e Livre de poche, p. 38.

Sobre esses povos e seus mistérios, cf. as análises de Gordon Childe, L’Europe préhistorique (cap. VII, “Missionnaires, marchands et combattants de 1’Furope tcmpérée”) e 1,’aube de Ia civilisation européenne, Payot. 94

95

M. Griaule e G. Dieterlen, Le renard pâle, Institut d’ethnologie, p. 376.

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império oriental, uma outra vez como personagem muito mais móvel e livre no mundo egeu. Ora, não se pode separar um segmento do outro, referindo cada um dos segmentos apenas a seu contexto particular. O metalúrgico de império, o operário, supõe um metalúrgico-prospector, mesmo muito longínquo, e o prospector remete a um comerciante, que trará o metal ao primeiro. Bem mais, o metal é trabalhado em cada segmento, e a forma-lingote atravessa todos eles: mais do que segmentos separados, é preciso imaginar uma cadeia de ateliês móveis que constituem, de buraco em buraco, uma linha de variação, uma galeria. A relação que o metalúrgico entretém com os nômades e com os sedentários passa, pois, também pela relação que ele entretém com outros metalúrgicos96. É esse metalúrgico híbrido, fabricante de armas e ferramentas, que se comunica ao mesmo tempo com os sedentários e com os nômades. O espaço esburacado comunica-se por si mesmo com o espaço liso e com o espaço esfriado. Com efeito, o phylum maquínico ou a linha metálica passam por todos os agenciamentos; nada é mais desterritorializado que a matéria-movimento. Porém, essa comunicação de modo algum se produz da mesma maneira, e as duas comunicações não são simétricas. Worringer dizia, no domínio estético, que a linha abstrata possuía duas expressões muito diferentes, uma no gótico bárbaro, a outra no clássico orgânico. Diríamos que o phylum tem simultaneamente dois modos de ligação diferentes: é sempre conexo ao espaço nômade, ao passo que se conjuga com o espaço sedentário. Do lado dos agenciamentos nômades e das máquinas de guerra, é uma espécie de rizoma, com seus saltos, desvios, passagens subterrâneas, caules, desembocaduras, traços, buracos, etc. Mas, no outro lado, os agenciamentos sedentários e os aparelhos de Estado operam uma captura do phylum, tomam os traços de expressão numa forma ou num código, fazem ressoar os buracos conjuntamente, colmatam as linhas de fuga, subordinam a operação tecnológica ao modelo do trabalho, impõem às conexões todo um regime de conjunções arborescentes.

O livro de Forbes, Metallurgy in Antiquity, Ed. Brill, analisa as diferentes idades da metalurgia, mas também os tipos de metalúrgico na idade do minério: o “mineiro”, prospector e extrator, o “fundidor”, o “ferreiro” (blacksmith), o “metaleiro” (whitesmith). A especialização se complica ainda mais com a idade do ferro, e as divisões nômade-itinerantesedentário variam simultaneamente. 96

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Axioma III: A máquina de guerra nômade é como a forma de expressão, e a metalurgia itinerante seria a forma de conteúdo correlativa. CONTEÚDO

Substância

Espaço esburacado

EXPRESSÃO

Espaço liso

(phylum maquínico ou matéria-fluxo) Forma

Metalurgia itinerante

Máquina de guerra nômade

Proposição IX: A guerra não tem necessariamente por objeto a batalha, e, sobretudo, a máquina de guerra não tem necessariamente por objeto a guerra, ainda que a guerra e a batalha possam dela decorrer necessariamente (sob certas condições).

Encontramos sucessivamente três problemas: a batalha é o “objeto” da guerra? Mas também: a guerra é o “objeto” da máquina de guerra? Finalmente, em que medida a máquina de guerra é “objeto” do aparelho de Estado? A ambiguidade dos dois primeiros problemas vem certamente do termo objeto, mas implica sua dependência em relação ao terceiro. Contudo, é progressivamente que se deve considerar esses problemas, mesmo que sejamos forçados a multiplicar os casos. A primeira questão, a da batalha, conduz, com efeito, à distinção imediata de dois casos, aquele onde a batalha é procurada, aquele onde ela é essencialmente evitada pela máquina de guerra. Esses dois casos não coincidem de modo algum com ofensivo e defensivo. Mas a guerra propriamente dita (segundo uma concepção que culmina com Foch) parece realmente ter por objeto a batalha, ao passo que a guerrilha se propõe explicitamente à não-batalha. Todavia, o desenvolvimento da guerra em guerra de movimento, e em guerra total, coloca também em questão a noção de batalha, tanto do ponto de vista da ofensiva como da defensiva: a não-batalha parece poder exprimir a velocidade de um ataque-relâmpago, ou então a contra-velocidade de um revide imediato97. Inversamente, por outro lado, o desenvolvimento da

Um dos textos mais importantes sobre a guerrilha continua sendo o de T. E. Lawrence (Les sept piliers, Payot, cap. XXXIII, e “La science de la guérilla”, Encyclopedia Britannica) que se apresenta como um “anti-Foch”, e elabora a noção de nãobatalha. Mas a não-batalha tem uma história que não depende apenas da guerrilha: 1º) a distinção tradicional entre “batalha” e “manobra” na teoria da guerra (cf. Raymond Aron, Penser Ia guerre, Clausewitz, Gallimard, t. I, pp. 122-131); 2º) a maneira pela qual a guerra de movimento recoloca em questão o papel e a importância da batalha (já o marechal de Saxe, e a questão controversa da batalha nas guerras napoleônicas); 3º ) por fim, mais recentemente, a crítica da batalha em nome do armamento nuclear, este exercendo um papel dissuasivo, e as forças convencionais desempenhando só um papel de “teste” ou de “manobra” (cf. a concepção gaullista da não-batalha, e Guy Brossollet, Essaisur la non-bataille). O retorno recente à noção de batalha não se explica unicamente por fatores técnicos como o desenvolvimento de armas 97

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guerrilha implica um momento e formas sob as quais a batalha deve ser buscada de forma efetiva, em relação com “pontos de apoio” externos e internos. É verdade que guerrilha e guerra não param de lançar mão de métodos uma da outra, tanto num sentido como no outro (por exemplo, com frequência insistiu-se que a guerrilha em terra se inspirava na guerra marítima). Portanto, pode-se dizer apenas que a batalha e a nãobatalha são o duplo objeto da guerra, segundo um critério que não coincide com o ofensivo e o defensivo, nem sequer com a guerra de guerra e a guerra de guerrilha. Por isso que, deixando de lado a questão, perguntamos se a própria guerra é o objeto da máquina de guerra. Isso não é em absoluto evidente. Dado que a guerra (com ou sem batalha) propõe-se o aniquilamento ou a capitulação de forças inimigas, a máquina de guerra não tem necessariamente por objeto a guerra (por exemplo, a razzia, mais do que uma forma particular de guerra, seria um outro objeto). Porém, mais geralmente, vimos que a máquina de guerra era a invenção nômade, porque era, na sua essência, o elemento constituinte do espaço liso, da ocupação desse espaço, do deslocamento nesse espaço, e da composição correspondente dos homens; 6 esse seu único e verdadeiro objeto positivo (nomos). Fazer crescer o deserto, a estepe, não despovoá-los, pelo contrário. Se a guerra decorre necessariamente da máquina de guerra, é porque esta se choca contra os Estados e as cidades, bem como contra as forças (de estriagem) que se opõem ao objeto positivo; por conseguinte, a máquina de guerra tem por inimigo o Estado, a cidade, o fenômeno estatal e urbano, e assume como objetivo aniquilá-los. É aí que ela se torna guerra: aniquilar as forças do Estado, destruir a forma-Estado. A aventura Átila, ou Gêngis

nucleares táticas, mas implica considerações políticas das quais depende precisamente o papel atribuído à batalha (ou à não-batalha) na guerra.

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Khan, mostra bem essa sucessão do objeto positivo e do objeto negativo. Para falar como Aristóteles, dir-se-ia que a guerra não é nem a condição nem o objeto da máquina de guerra, mas a acompanha ou a completa necessariamente; para falar como Derrida, dir-se-ia que a guerra é o “suplemento” da máquina de guerra. Pode até ocorrer que essa suplementaridade seja apreendida numa revelação progressiva angustiada. Essa seria, por exemplo, a aventura de Moisés: saindo do Estado egípcio, lançando-se no deserto, começa formando uma máquina de guerra, sob inspiração de um antigo passado dos hebreus nômades, c a conselho do sogro, de origem nômade. É a máquina dos Justos, que já é máquina de guerra, mas que ainda não tem a guerra por objeto. Ora, Moisés percebe, pouco a pouco, e por etapas, que a guerra é o suplemento necessário dessa máquina, porque ela encontra ou deve atravessar cidades e Estados, porque, primeiro, deve enviar para lá espiões (observação armada), depois, talvez chegar aos extremos (guerra de aniquilamento). O povo judeu conhece então a dúvida e teme não ser suficientemente forte; mas Moisés também duvida, recua diante da revelação de um tal suplemento. Josué é que será encarregado da guerra, não Moisés. Para falar, enfim, como Kant, diremos que a relação da guerra com a máquina de guerra é necessária, mas “sintética” (é preciso Javé para fazer a síntese). A questão da guerra, por sua vez, é relegada e subordinada às relações máquina de guerra-aparelho de Estado. Não são os Estados que primeiro fazem a guerra: certamente, esta não é um fenômeno que se encontraria na Natureza de forma universal, enquanto violência qualquer. Mas a guerra não é o objeto dos Estados, seria antes o contrário. Os Estados mais arcaicos sequer parecem ter alguma máquina de guerra, e veremos que sua dominação repousa sobre outras instâncias (que comportam, em contrapartida, polícia e carceragem). Pode-se supor que entre as razões misteriosas do brusco aniquilamento de Estados arcaicos, porém poderosos, está precisamente a intervenção de uma máquina de guerra extrínseca ou nômade, que lhes revida e os destrói. Mas o Estado compreende rápido. Uma das maiores questões do ponto de vista da história universal será: como o Estado vai apropriar-se da máquina de guerra, isto é, constituir uma para si, conforme sua medida, sua dominação e seus fins? E com quais riscos? (Chama-se instituição militar, ou exército, não em absoluto a máquina de guerra ela mesma, mas essa forma sob a qual ela é apropriada pelo Estado). Para apreender o caráter paradoxal de um tal empreendimento, é preciso recapitular o conjunto da hipótese: 1) a

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máquina de guerra é a invenção nômade que sequer tem a guerra por objeto primeiro, mas como objetivo segundo, suplementário ou sintético, no sentido em que está obrigada a destruir a forma-Estado e a forma-cidade com as quais entra em choque; 2) quando o Estado se apropria da máquina de guerra, esta muda evidentemente de natureza e de função, visto que é dirigida então contra os nômades e todos os destruidores de Estado, ou então exprime relações entre Estados, quando um Estado pretende apenas destruir um outro ou impor-lhe seus fins; 3) porém, justamente quando a máquina de guerra é assim apropriada pelo Estado, é que ela tende a tomar a guerra por objeto direto e primeiro, por objeto “analítico” (e que a guerra tende a tomar a batalha por objeto). Em suma, é ao mesmo tempo que o aparelho de Estado se apropria de uma máquina de guerra, que a máquina de guerra toma a guerra por objeto e que a guerra fica subordinada aos fins do Estado. Essa questão da apropriação é historicamente tão variada que é preciso distinguir vários tipos de problemas. O primeiro diz respeito à possibilidade da operação: é justamente porque a guerra era só o objeto suplementário ou sintético da máquina de guerra nômade que esta encontra a hesitação que lhe será fatal, e o aparelho de Estado, em compensação, poderá apossar-se da guerra e, portanto, voltar a máquina de guerra contra os nômades. A hesitação do nômade foi frequentemente apresentada de maneira lendária: o que fazer das terras conquistadas e atravessadas? Devolvê-las ao deserto, à estepe, à grande pastagem? ou então deixar subsistir um aparelho de Estado capaz de explorá-las diretamente, sob pena de tornar-se num prazo maior ou menor uma simples nova dinastia desse aparelho? O prazo é maior ou menor porque, por exemplo, os gengiskhânidas puderam resistir por muito tempo integrando-se parcialmente aos impérios conquistados, mas também mantendo todo um espaço liso das estepes, que submetia os centros imperiais. Esse foi seu gênio, Pax mongolica. Não obstante, a integração dos nômades aos impérios conquistados foi um dos fatores mais poderosos da apropriação da máquina de guerra pelo aparelho de Estado; o inevitável perigo diante do qual os nômades sucumbiram. Mas também existe o outro perigo, o que ameaça o Estado quando este se apropria da máquina de guerra (todos os Estados sentiram o peso desse perigo, e os riscos que lhes fazia correr essa apropriação). Tamerlão seria o exemplo extremo, e não o sucessor, mas o exato oposto de Gêngis Khan: é Tamerlão que constrói uma fantástica máquina de guerra voltada contra os nômades, mas que, por isso mesmo, deve erigir um aparelho de Estado tanto mais pesado e improdutivo quanto apenas existe como a

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forma vazia de apropriação dessa máquina98. Voltar a máquina de guerra contra os nômades pode fazer o Estado correr um risco tão grande quanto aquele proveniente dos nômades dirigindo a máquina de guerra contra os Estados. Um segundo tipo de problemas diz respeito às formas concretas sob as quais se faz a apropriação da máquina de guerra: mercenários ou territoriais? Exército profissional ou exército de conscrição? Corpos especiais ou recrutamento nacional? Essas fórmulas não apenas não se equivalem, mas, entre elas, todas as combinações são possíveis. A distinção mais pertinente, ou a mais geral, seria talvez a seguinte: há tão-somente “enquistamento” da máquina de guerra, ou então “apropriação” propriamente dita? Com efeito, a captura da máquina de guerra pelo aparelho de Estado foi realizada segundo duas vias, enquistar uma sociedade de guerreiros (provenientes de fora ou saídos de dentro), ou então, ao contrário, constituí-la segundo regras que correspondem à sociedade civil como um todo. Também nesse caso, passagem e transição de uma fórmula a outra... O terceiro tipo de problemas concerne, enfim, aos meios da apropriação. Desse ponto de vista, seria preciso considerar os diversos dados que dizem respeito aos aspectos fundamentais do aparelho de Estado: a territorialidade, o trabalho ou as obras públicas, o sistema fiscal. A constituição de uma instituição militar ou de um exército implica necessariamente uma territorialização da máquina de guerra, isto é, das concessões de terras, “coloniais” ou internas, que podem tomar formas muito variadas. Mas, em consequência, regimes fiscais determinam a natureza dos serviços e dos impostos que os beneficiários guerreiros devem, e, sobretudo, o gênero de imposto civil ao qual toda sociedade ou fração dela estão submetidas, inversamente, para a manutenção do exército. Ao mesmo tempo, o empreendimento estatal dos trabalhos públicos deve reorganizar-se em função de um “arranjo do território” no qual o exército desempenha um papel determinante, não só com as fortalezas e praças de guerra, mas com as comunicações estratégicas, a estrutura logística, a infra-estrutura industrial, etc. (papel e função do Engenheiro nessa forma de apropriação99.

Sobre as diferenças fundamentais Tamerlão-Gengis Khan, cf. René Grousset, L’empire des steppes, Payot, principalmente pp. 495-496. 98

Cf. Armées et fiscalité dans le monde antique, Ed. du CNRS.: esse colóquio estuda sobretudo o aspecto fiscal, mas também os dois outros. A questão da atribuição de terras aos soldados ou às famílias de soldados encontra-se em todos os Estados, e desempenha um papel essencial. Sob uma forma particular, estará na origem dos feudos e do regime feudal. Porém, já está na origem dos “falsos-feudos” por toda parte no mundo, e especialmente do Cleros e da Cleruquia na civilização grega (cf. Claire Préaux, L’economie royale des Lagides, Bruxelles, pp. 463 ss). 99

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Que nos seja permitido confrontar o conjunto dessa hipótese com a fórmula de Clausewitz: “A guerra é a continuação das relações políticas por outros meios”. Sabe-se que essa fórmula é, ela própria, extraída de um conjunto teórico e prático, histórico e trans-histórico, cujos elementos estão ligados entre si: 1) Há um puro conceito da guerra como guerra absoluta, incondicionada, Ideia não dada na experiência (abater ou “derrubar” o inimigo, que supostamente não tem qualquer outra determinação, sem consideração política, econômica ou social); 2) O que, sim, está dado são as guerras reais, na medida em que estão submetidas aos fins dos Estados, que são mais ou menos bons “condutores” em relação à guerra absoluta, e que de toda maneira condicionam sua realização na experiência; 3) as guerras reais oscilam entre dois polos, ambos submetidos à política de Estado: guerra de aniquilamento, que pode chegar à guerra total (segundo os objetivos sobre os quais incide o aniquilamento) e tende a aproximar-se do conceito incondicionado por ascensão aos extremos; guerra limitada, que nem por isso é “menos” guerra, mas que opera uma descida mais próxima às condições limitativas, e pode chegar a uma simples “observação armada100. Em primeiro lugar, essa distinção entre uma guerra absoluta como Ideia e as guerras reais parece-nos de uma grande importância, desde que se possa dispor de um outro critério que não o de Clausewitz. A Ideia pura não seria a de uma eliminação abstrata do adversário, porém a de uma máquina de guerra que não tem justamente a guerra por objeto, e que só entretém com a guerra uma relação sintética, potencial ou suplementaria. Por isso, a máquina de guerra nômade não nos parece, como em Clausewitz, um caso de guerra real entre outros, mas, ao contrário, o conteúdo adequado à Ideia, a invenção da Ideia, com seus objetos próprios, espaço e composição do nomos. Contudo, é efetivamente uma Ideia, e é preciso conservar o conceito de Ideia pura, embora essa máquina de guerra tenha sido realizada pelos nômades. Porém, são antes os nômades que continuam sendo uma abstração, uma Ideia, algo real e não atual, por várias razões: em primeiro lugar, porque, como vimos, os elementos do nomadismo se misturam de fato com elementos de migração, de itinerância e de transumância, que não perturbam a pureza do conceito, mas introduzem objetos sempre mistos, ou combinações de espaço e de composição, que reagem já sobre

Clausewitz, De la guerre, sobretudo livro VIII. Cf. o comentário dessas três teses por Raymond Aron, Penser Ia guerra, Clausewitz,t.1 (em especial “Pourquoi les guerres de la deuxième espèce?”, pp. 139 ss). 100

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a máquina de guerra. Em segundo lugar, mesmo na pureza de seu conceito, a máquina de guerra nômade efetua necessariamente sua relação sintética com a guerra como suplemento, descoberto e desenvolvido contra a forma-Estado que se trata de destruir. Porém, justamente, ela não efetua esse objeto suplementário ou essa relação sintética sem que o Estado, de seu lado, aí encontre a ocasião para apropriar-se da máquina de guerra, e o meio de converter a guerra no objeto direto dessa máquina revirada (por isso, a integração do nômade ao Estado é um vetor que atravessa o nomadismo desde o início, desde o primeiro ato da guerra contra o Estado). A questão, pois, é menos a da realização da guerra que a da apropriação da máquina de guerra. E ao mesmo tempo que o aparelho de Estado se apropria da máquina de guerra, subordina-a a fins “políticos”, e lhe dá por objeto direto a guerra. Uma mesma tendência histórica conduz os Estados a evoluir de um triplo ponto de vista: passar das figuras de enquistamento a formas de apropriação propriamente ditas, passar da guerra limitada à guerra dita total, e transformar a relação entre o fim e o objeto. Ora, os fatores que fazem da guerra de Estado uma guerra total estão estreitamente ligados ao capitalismo: trata-se do investimento do capital constante em material, indústria e economia de guerra, e do investimento do capital variável em população física e moral (que faz a guerra e ao mesmo tempo a padece101). Com efeito, a guerra total não só é uma guerra de aniquilamento, mas surge quando o aniquilamento toma por “centro” já não apenas o exército inimigo, nem o Estado inimigo, mas a população inteira e sua economia. Que esse duplo investimento só possa fazer-se nas condições prévias da guerra limitada mostra o caráter irresistível da tendência capitalista em desenvolver a guerra total102. Portanto, é verdade que a guerra total continua

Ludendorff (La guerre totale, Flammarion) nota que a evolução da cada vez mais importância ao “povo” e à “política interna” na guerra, ao passo que Clausewitz ainda privilegiava os exércitos e a política externa. Essa crítica c globalmente verdadeira, apesar de certos textos de Clausewitz. Ela está, aliás, em Lênin e nos marxistas (embora estes, evidentemente, tenham do povo e tia política interna uma concepção inteiramente diferente da de Ludendorff). Alguns autores mostraram com profundidade que o proletariado era de origem militar e, em especial, marítima, tanto quanto industrial: por exemplo, Virilio, VITESSE et politique, pp. 50-51, 86-87. 101

Como mostra J.U. Nef, é durante o grande período de “guerra limitada” (1640-1740) que se produziram os fenômenos de concentração, de acumulação e de investimento que deviam determinar a “guerra total”: et. La guerre et le progrès humain, Ed. Alsatia. O código guerreiro napoleônico representa uma virada que vai precipitar os elementos da guerra total, mobilização, transporte, investimento, informação, etc. 102

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subordinada a fins políticos de Estado e realiza apenas o máximo das condições da apropriação da máquina de guerra pelo aparelho de Estado. Mas também é verdade que, quando o objeto da máquina de guerra apropriada torna-se guerra total, nesse nível de um conjunto de todas as condições, o objeto e o fim entram nessas novas relações que podem chegar até a contradição. Daí a hesitação de Clausewitz quando mostra, ora que a guerra total continua sendo uma guerra condicionada pelo fim político dos Estados, ora que ela tende a efetuar a Ideia da guerra incondicionada. Com efeito, o fim permanece essencialmente político e determinado como tal pelo Estado, mas o próprio objeto tornou-se ilimitado. Dir-se-ia que a apropriação revirou-se, ou, antes, que os Estados tendem a afrouxar, a reconstituir uma imensa máquina de guerra da qual já são apenas partes, oponíveis ou apostas. Essa máquina de guerra mundial, que de algum modo “torna a sair” dos Estados, apresenta duas figuras sucessivas: primeiramente, a do fascismo, que converte a guerra num movimento ilimitado cujo único fim é ele mesmo; mas o fascismo não passa de um esboço, e a figura pós-fascista é a de uma máquina de guerra que toma diretamente a paz por objeto, como paz do Terror ou da Sobrevivência. A máquina de guerra torna a formar de novo um espaço liso que agora pretende controlar, cercar toda a terra. A própria guerra total é ultrapassada em direção a uma forma de paz ainda mais terrífica. A máquina de guerra se encarregou do fim, da ordem mundial, e os Estados não passam de objetos ou meios apropriados para essa nova máquina. É aí que a fórmula de Clausewitz se revira efetivamente, pois, para poder dizer que a política é a continuação da guerra por outros meios, não basta inverter as palavras como se se pudesse pronunciá-las num sentido ou no outro; é preciso seguir o movimento real ao cabo do qual os Estados, tendo-se apropriado de uma máquina de guerra, e fazendo-o para seus fins, devolvem uma máquina de guerra que se encarrega do fim, apropria-se dos Estados e assume cada vez mais funções políticas.103 Sem dúvida, a situação atual é desesperadora. Vimos a máquina de guerra mundial constituir-se com força cada vez maior, como num relato de ficção científica; nós a vimos estabelecer como objetivo uma paz talvez ainda mais terrífica que a

Sobre essa “superação” do fascismo e da guerra total, e sobre o novo ponto de inversão da fórmula de Clausewitz, cf. toda a análise de Virilio, L’insécurité du territoire, sobretudo o cap. I. 103

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morte fascista; nós a vimos manter ou suscitar as mais terríveis guerras locais como partes dela mesma; nós a vimos fixar um novo tipo de inimigo, que já não era um outro Estado, nem mesmo um outro regime, mas “o inimigo qualquer”; nós a vimos erigir seus elementos de contra-guerrilha, de modo que ela pode deixar-se surpreender uma vez, não duas... Entretanto, as próprias condições da máquina de guerra de Estado ou de Mundo, isto é, o capital constante (recursos e material) e o capital variável humano, não param de recriar possibilidades de revides inesperados, de iniciativas imprevistas que determinam máquinas mutantes, minoritárias, populares, revolucionárias. Testemunha disso é a definição do Inimigo qualquer... “multiforme, manipulador e onipresente (...)., de ordem econômica, subversiva, política, moral, etc”, o inassinável Sabotador material ou Desertor humano sob formas as mais diversas104. O primeiro elemento teórico que importa são os sentidos muito variados da máquina de guerra, e justamente porque a máquina de guerra tem uma relação extremamente variável com a própria guerra. A máquina de guerra não se define uniformemente, e comporta algo além de quantidades de força em crescimento. Tentamos definir dois polos da máquina de guerra: segundo um deles, ela toma a guerra por objeto, e forma uma linha de destruição prolongável até os limites do universo. Ora, sob todos os aspectos que adquire aqui, guerra limitada, guerra total, organização mundial, ela não representa em absoluto a essência suposta da máquina de guerra, mas apenas, seja qual for seu poder, o conjunto das condições sob as quais os Estados se apropriam dessa máquina, com o risco de projetá-la por fim como o horizonte do mundo, ou a ordem dominante da qual os próprios Estados não passam de partes. O outro polo nos parecia ser o da essência, quando a máquina de guerra, com “quantidades” infinitamente menores, tem por objeto não a guerra, mas o traçado de uma linha de fuga criadora, a composição de um espaço liso e o movimento dos homens nesse espaço. Segundo esse outro polo, a máquina de guerra efetivamente encontra a guerra, porém como seu objeto sintético e suplementário, dirigido então contra o Estado, e contra a axiomática mundial exprimida pelos Estados. Julgamos ter encontrado nos nômades uma tal invenção da máquina de guerra. Guiava-nos a preocupação

Guy Brossolet, Essai sur la non-bataille, pp. 15-16. A noção axiomática de “inimigo qualquer” já aparece muito elaborada nos textos oficiais ou oficiosos de defesa nacional, de direito internacional e de espaço judiciário ou policial. 104

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histórica de mostrar que ela foi inventada como tal, mesmo se apresentava desde o início todo o equívoco que a fazia compor com o outro polo, e já oscilar em direção a ele. Mas, conforme a essência, não são os nômades que possuem o segredo: um movimento artístico, científico, “ideológico”, pode ser uma máquina de guerra potencial, precisamente na medida em que traça um plano de consistência, uma linha de fuga criadora, um espaço liso de deslocamento, em relação com um phylum. Não é o nômade que define esse conjunto de características, é esse conjunto que define o nômade, ao mesmo tempo em que define a essência da máquina de guerra. Se a guerrilha, a guerra de minoria, a guerra popular e revolucionária, são conformes à essência, é porque elas tomam a guerra como um objeto tanto mais necessário quanto é apenas “suplementário”: elas só podem fazer a guerra se criam outra coisa ao mesmo tempo, ainda que sejam novas relações sociais não-orgânicas. Há uma grande diferença entre esses dois polos, mesmo e sobretudo do ponto de vista da morte: a linha de fuga que cria, ou então que se transforma em linha de destruição; o plano de consistência que se constitui, mesmo pedaço por pedaço, ou então que se transforma em plano de organização e de dominação. Que haja comunicação entre as duas linhas ou os dois planos, que cada um se nutra do outro, empreste do outro, é algo que se percebe constantemente: a pior máquina de guerra mundial reconstitui um espaço liso, para cercar e clausurar a terra. Mas a terra faz valer seus próprios poderes de desterritorialização, suas linhas de fuga, seus espaços lisos que vivem e que cavam seu caminho para uma nova terra. A questão não é a das quantidades, mas a do caráter incomensurável das quantidades que se afrontam nos dois tipos de máquina de guerra, segundo os dois polos. Máquinas de guerra se constituem contra os aparelhos que se apropriam da máquina, e que fazem da guerra sua ocupação e seu objeto: elas exaltam conexões em face da grande conjunção dos aparelhos de captura ou de dominação. Tradução de Peter Pál Pelbart

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Proposição X: O Estado e seus polos. Voltemos às teses de Dumézil: 1) a soberania política teria dois polos: o Imperador terrível e mágico, operando por captura, laços, nós e redes, e o Rei sacerdote e jurista, procedendo por tratados, pactos, contratos (é o par Varuna-Mitra, Oddhin-Tyr, WotanTiwaz, Urano-Zeus, Rômulo-Numa..).; 2) uma função de guerra é exterior à soberania política e se distingue tanto de um polo quanto de outro (é Índia, ou Thor, ou Tulo Hostílio...)1.

1

O livro principal de Dumézil a esse respeito é Mitra-Varuna (encontramos aí também a análise cio “Caolho” e do “Maneta”).

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1) É um ritmo curioso que anima portanto o aparelho de Estado, e é antes de tudo um grande mistério, esse dos Deuses-atadores ou dos imperadores mágicos, Caolhos emitindo de um olho único os signos que capturam, que enlaçam à distância. Os reisjuristas são antes Manetas, que erguem a única mão como elemento do direito e da técnica, da lei e da ferramenta. Na sucessão de homens de Estado, procure sempre o Caolho e o Maneta, Horácio Cocles e Múcio Cévola (de Gaulle e Pompidou?). Não é que um tenha a exclusividade dos signos e o outro das ferramentas. O imperador terrível é já mestre de grandes trabalhos; o rei sábio carrega e transforma todo o regime de signos. E que a combinação signos-ferramentas constitui de toda maneira o traço diferencial da soberania política, ou a complementaridade do Estado2. 2) Certamente, os dois homens de Estado não param de se misturar às histórias de guerra. Mais precisamente, ou bem o imperador mágico faz com que se batam guerreiros que não são os seus, que ele coloca a seu serviço por captura; ou bem, sobretudo, ele faz cessar fogo quando surge sobre o campo de batalha, lança sua rede sobre os guerreiros, inspira-lhes por um só olho uma catatonia petrificada, “ele ata sem combate”, ele acondiciona a máquina de guerra (não se confunda, portanto, essa captura do Estado com as capturas de guerra, conquistas, prisioneiros, saques)3. Quanto ao outro polo, o rei jurista é um grande organizador da guerra; mas ele lhe dá leis, coorganiza-lhe um campo, inventa-lhe um direito, impõe-lhe uma disciplina, subordina-a a fins políticos. Ele faz da máquina de guerra uma instituição militar, apropria a máquina de guerra ao aparelho de Estado.4 Não nos apressemos em falar de abrandamento, de humanização: ao contrário, pode ser que a máquina de guerra tenha agora um único objeto, a própria guerra. A violência, encontramo-la por toda parte, mas sob regimes e economias diferentes. A violência do imperador mágico: seu nó, sua rede, seu “lance

O tema do Deus-atador e do nó mágico tem sido objeto de estudos mitológicos globais: notadamente, Mircea Eliade, Images et symboles, Gallimard, cap. III. Mas tais estudos são ambíguos, porque utilizam um método sincrético ou arquetípico. O método de Dumézil é, ao contrário, diferencial: o tema da captura ou do laço só reúne dados diversos sob um traço diferencial, precisamente constituído pela soberania política. Sobre a oposição entre esses dois métodos, ver Ortigues, Le discours et le symbole, Aubier. 2

3

Dumézil, Mitra-Varuna, pp. 113-114, 151, 202-203.

Idem, p. 150: “Há muitas maneiras de ser deus da guerra e Tiwaz define uma que se exprimiria muito mal pelas etiquetas deus guerreiro, deus combatente... Tiwaz é outra coisa: o jurista da guerra e ao mesmo tempo uma espécie de diplomata” (assim também Marte). 4

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de uma vez por todas”... A violência do rei jurista, seu recomeço a cada lance, sempre em virtude de fins, de alianças e de leis... No limite, a violência da máquina de guerra poderia parecer mais doce e mais flexível que a do aparelho de Estado: é que ela não tem ainda a guerra como “objeto”, é que ela escapa aos dois polos do Estado. E por isso que o homem de guerra, na sua exterioridade, não para de protestar contra as alianças e pactos do rei jurista, mas também de desfazer os laços do imperador mágico. Ele é desatador tanto quanto perjuro: duas vezes traidor5. Ele tem uma outra economia, outra crueldade, mas também outra justiça, outra piedade. Aos signos e ferramentas do Estado, o homem de guerra opõe suas armas e suas joias. Ainda aí, o que é melhor ou pior? É bem verdade que a guerra mata, e mutila horrivelmente. Mas ela o faz tanto mais quanto o Estado se apropria da máquina de guerra. E sobretudo o aparelho de Estado faz com que a mutilação e mesmo a morte venham antes. Ele precisa que elas estejam já feitas, e que os homens nasçam assim, enfermos e zumbis. O mito do zumbi, do morto-vivo, é um mito do trabalho e não da guerra. A mutilação é uma consequência da guerra, mas também uma condição, um pressuposto do aparelho de Estado e da organização do trabalho (donde a enfermidade nata não somente do trabalhador, mas do próprio homem de Estado, do tipo Caolho ou Maneta): “Essa exposição brutal de pedaços de carne cortada me havia consternado (...). Não era uma parte integrante da perfeição técnica e de sua embriaguez (...).? Os homens fazem a guerra desde os primeiros tempos, mas eu não me recordo em toda a Ilíada de um só exemplo em que um guerreiro tenha perdido um braço ou uma perna. O mito reservava as mutilações aos monstros, às bestas humanas da raça de Tântalo ou de Procusto (...). É uma ilusão de óptica que nos faz reunir essas mutilações ao acidente. De fato, os acidentes procedem das mutilações já submetidas aos germes de nosso mundo; e o crescimento numérico das amputações é um dos sintomas que traem o triunfo da moral do escalpelo. A perda teve lugar bem antes de ser claramente tomada em consideração...”6. É o aparelho de Estado que tem necessidade, no seu cume e na sua base, de prévios deficientes, de mutilados preexistentes ou de natimortos, de enfermos congênitos, de caolhos e de manetas. Então, haveria uma hipótese tentadora em três tempos: a máquina de guerra estaria “entre” os dois polos da

5

Idem, pp. 124-132.

6

Junger, Abeilles de verre, Bourgois, p. 182.

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soberania política, e asseguraria a passagem de um polo a outro. É bem nessa ordem, 12-3, que as coisas parecem se apresentar no mito ou na história. Vejamos duas versões do Caolho e do Maneta analisadas por Dumézil: 1) O deus Oddhin, de um olho só, ata ou liga o Lobo da guerra, pega-o em seu laço mágico; 2) mas o lobo estava desconfiado, e dispunha de toda sua potência de exterioridade; 3) o deus Tyr dá uma garantia jurídica ao lobo, ele lhe deixa uma mão na goela, para que o lobo possa cortá-la se não conseguir se desfazer do laço. — 1) Horácio Cocles, o caolho, só por seu rosto, sua careta, sua potência mágica, impede o chefe etrusco de atacar Roma; 2) o comandante decide então fazer o cerco; 3) Múcio Cévola assume o terreno político e dá sua mão como garantia para persuadir o guerreiro que mais vale renunciar ao cerco e concluir um pacto. — Num contexto bem diferente, histórico, Marcel Détienne sugere um esquema em três tempos de um tipo análogo para a Grécia antiga: 1) O soberano mágico, o “Mestre da verdade”, dispõe de uma máquina de guerra que sem dúvida não vem dele e que goza de uma relativa autonomia em seu império; 2) essa classe de guerreiros tem regras que lhe são próprias, definidas por uma “isonomia”, um espaço isótropo, um “meio” (o saque está no meio, aquele que fala coloca-se no meio da assistência): é um outro espaço, são outras regras que não as do soberano, que captura e que fala do alto; 3) a reforma hoplítica, preparada na classe guerreira, vai enxamear no conjunto do corpo social, promover um exército de soldados-cidadãos, ao mesmo tempo que os últimos restos de um polo imperial da soberania dão lugar ao polo jurídico do Estado-cidade (isonomia como lei, isotropia como espaço7). Eis que, em todos esses casos, a máquina de guerra parece intervir “entre” os dois polos do aparelho de Estado, para assegurar e obrigar a passagem de um ao outro. Não se pode, contudo, dar a esse esquema um sentido causai (e os autores invocados não o fazem). Em primeiro lugar, a máquina de guerra nada explica, pois, ou bem ela é exterior ao Estado e dirigida contra ele, ou bem ela já lhe pertence, encaixada ou apropriada, supondo-o nesse caso. Se ela intervém numa evolução do Estado é, portanto, necessariamente em conjunção com outros fatores internos. É isso que aparece em segundo lugar: se há uma evolução do Estado, é preciso que o segundo polo, o polo evoluído, esteja em ressonância com o

Marcel Détienne, I.es maítrcs de verité...; e “La phalange, problèmes et controversos” (in Problèmes de Ia guerre eu Grèce aiicienne, Mouton). Cf. também J.-P. Vernant, Les origines de Ia pensée greeque. 7

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primeiro, que ele não pare de recarregá-lo de uma certa maneira, e que o Estado tenha somente um só meio de inferioridade, ou seja, uma unidade de composição, malgrado todas as diferenças de organização e de desenvolvimento dos Estados. É preciso mesmo que cada Estado tenha os dois polos, como os momentos essenciais de sua existência, embora a organização dos dois varie. Em terceiro lugar, se chamamos “captura” essa essência interior ou essa unidade do Estado, devemos dizer que as palavras “captura mágica” descrevem bem a situação, uma vez que ela aparece sempre como já feita e se pressupondo a si mesma; mas como explicá-la desde então, se ela não se reporta a causa alguma distinta assimilável? É por isso que as teses sobre a origem do Estado são sempre tautológicas. Ora invocam-se fatores exógenos, ligados à guerra e à máquina de guerra; ora fatores endógenos, que fariam nascer a propriedade privada, a moeda, etc; ora, enfim, fatores específicos que determinariam a formação de “funções públicas”. Encontramos as três teses em Engels, segundo uma concepção da diversidade das vias da Dominação. Mas elas supõem o que está em questão. A guerra só produz Estado se uma das duas partes ao menos é um Estado prévio; e a organização da guerra só é fator de Estado se ela lhe pertence. Ou bem o Estado não comporta máquina de guerra (ele tem policiais e carcereiros antes de ter soldados), ou bem ele a comporta, mas sob forma de instituição militar ou de função pública8. Do mesmo modo, a propriedade privada supõe uma propriedade pública de Estado, ela corre através de suas malhas; e a moeda supõe o imposto. Compreende-se menos ainda como funções públicas poderiam preexistir ao Estado que elas implicam. É-se sempre reenviado a um Estado que nasce adulto e que surge de um lance, Urstaat incondicionado.

Proposição XI: O que vem primeiro?

O primeiro polo de captura será chamado de imperial ou despótico. Ele corresponde à formação asiática de Marx. A

Jacques Harmand (La guerre antique, PUF, p. 28) cita “a empresa de grandes efetivos conduzida singularmente por um funcionário civil, Ouni, sob o faraó Pepi I, por volta de 1400”. Mesmo a democracia militar, tal como Morgan a descrevia, supõe um Estado arcaico do tipo imperial, e não o explica (é o que resulta dos trabalhos de Détienne e de Vernant). Esse Estado imperial, ele mesmo, procede primeiro com carcereiros e policiais, mais que com guerreiros: cf. Dumézil, MitraVaruna, pp. 200-204. 8

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arqueologia o descobre por toda a parte, frequentemente recoberto pelo esquecimento, no horizonte de todos os sistemas ou Estados, não somente na Ásia, mas na África, na América, na Grécia, em Roma. Urstaat imemorial, desde o neolítico, e talvez mesmo antes. Segundo a descrição marxista: um aparelho de Estado se erige sobre as comunidades agrícolas primitivas, que têm já códigos de linhagem-territoriais; mas ele os sobrecodifica, submete-os ao poder de um imperador déspota, proprietário público único e transcendente, mestre do excedente ou do estoque, organizador dos grandes trabalhos (sobretrabalho), fonte de funções públicas e de burocracia. É o paradigma do laço, do nó. Tal é o regime de signos do Estado: a sobrecodificação ou o Significante. É um sistema de servidão maquínica: a primeira “megamáquina” propriamente dita, como assinala Mumford. Prodigiosa vitória de um só golpe: os outros Estados serão tão-somente abortos em relação a esse modelo. O imperador-déspota não é um rei ou um tirano; estes só existirão em função de uma propriedade já privada9. Ao passo que tudo é público no regime imperial: a posse da terra é aí comunitária, cada um só possui por ser membro de uma comunidade; a propriedade eminente do déspota é aquela da Unidade suposta das comunas; e os próprios funcionários têm apenas terras de função, mesmo que hereditárias. O dinheiro pode existir, especialmente no imposto que os funcionários devem ao imperador, mas ele não serve a uma compra e venda, uma vez que a terra não existe como mercadoria alienável. É o regime do nexum, o laço: alguma coisa é emprestada ou mesmo dada sem transferência de propriedade, sem apropriação privada, e cuja contrapartida não apresenta juro nem lucro para o doador, mas, antes, uma “renda” que ele ganha, acompanhando o empréstimo de uso ou a doação de rendimento.10

A própria ideia de uma formação despótica asiática aparece no século XVIII, especialmente em Montesquieu, mas para descrever um estado evoluído dos impérios, e em correspondência com a monarquia absoluta. Bem outro é o ponto de vista de Marx, que recria a noção para definir os impérios arcaicos. Os textos principais a esse respeito são: Marx, Grundrisse, Pléiade II, pp. 312 ss; Wittfogel, Le despotisme oriental, Ed. de Minuit (e o prólogo de Vidal-Naquet na primeira edição, mas que foi suprimido na segunda a pedido de Wittfogel); Tökei, Sur le mode de production asiatique, Studia histórica 1966; o estudo coletivo do CERM, Sur le mode de production asiatique, Ed. Sociales. 9

Varron fazia um jogo de palavras célebre entre nexum e nec suum fit (= a coisa não se torna propriedade daquele que a recebe). Com efeito, o nexum é uma forma fundamental do direito romano arcaico, onde aquilo que obriga não é um acordo entre partes contratantes, mas unicamente a palavra do emprestador ou do doador, num modo mágico-religioso. Não é um contrato (mancipatio), e não comporta nem compra e venda, mesmo ulterior, nem juro, se bem que possa, parece-nos, comportar uma espécie de renda. Cf. principalmente Pierre Noailles, Fas et jus, Les Belles Lettres; e Dumézil, que insiste sobre a relação do nexum e do laço mágico, Mitra-Varuna, pp. 118-124. 10

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Marx historiador, Childe arqueólogo, estão de acordo sobre o seguinte ponto: o Estado imperial arcaico, que vem sobrecodificar as comunidades agrícolas, supõe ao menos um certo desenvolvimento de suas forças produtivas, uma vez que é preciso um excedente potencial capaz de constituir o estoque do Estado, de sustentar um artesanato especializado (metalurgia) e de suscitar progressivamente funções públicas. É por isso que Marx ligava o Estado arcaico a um certo “modo de produção”. Todavia, não terminamos de recuar no tempo a origem desses Estados neolíticos. Ora, quando se conjetura sobre impérios quase paleolíticos, não se trata somente de uma quantidade de tempo, é o problema qualitativo que muda. Çatal-Hüyük, na Anatólia, torna possível um paradigma imperial singularmente reforçado: é um estoque de sementes selvagens e de animais relativamente pacíficos, provenientes de territórios diferentes, que opera e permite operar, primeiro ao acaso, hibridações e seleções de onde sairão a agricultura e a criação de pequeno porte11. Vê-se a importância dessa mudança para os dados do problema. Não é mais o estoque que supõe um excedente potencial, mas o inverso. Não é mais o Estado que supõe comunidades agrícolas elaboradas e forças produtivas desenvolvidas; ao contrário, ele se estabelece diretamente num meio de caçadores-coletores sem agricultura nem metalurgia preliminares, e é ele que cria a agricultura, a pequena criação e a metalurgia, primeiro sobre seu próprio solo, depois os impõe ao mundo circundante. Não é mais o campo que cria progressivamente a cidade, é a cidade que cria o campo. Não é mais o Estado que supõe um modo de produção, mas o inverso, é o Estado que faz da produção um “modo”. As derradeiras razões para se supor um desenvolvimento progressivo se anulam. É como as sementes num saco: tudo começa por uma mistura ao acaso. A “revolução estatal e urbana” pode ser paleolítica e não neolítica, como acreditava Childe. O evolucionismo foi posto em questão de múltiplas maneiras

Cf. as escavações e os trabalhos de J. Mellaart, Earliest Civilizations in the Near East, e Çatal Huyuk, Londres. A urbanista Jane Jacobs tirou daí um modelo imperial que ela chama “Nova Obsidiana” (do nome das lavas que serviam para fazer ferramentas), e que poderia remontar ao início do neolítico e mesmo muito antes. Ela insiste na origem “urbana” da agricultura e no papel das hibridações que se produzem nos estoques urbanos de sementes: é a agricultura que supõe o estoque, e não o inverso. Em um estudo a sair, Jean Robert analisa as teses de Mellaart e a hipótese de Jane Jacobs, e as utiliza em novas perspectivas: Décoloniser L’espace. 11

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(movimentos em ziguezague, etapas que faltam aqui e acolá, rupturas gerais irredutíveis). Vimos, especialmente, como Pierre Clastres havia tentado romper o quadro evolucionista, em função de duas teses: 1) as sociedades ditas primitivas não eram sociedades sem Estado, no sentido de que elas não teriam atingido um certo estágio, mas sociedades contra-o-Estado, organizando mecanismos que conjuravam a forma-Estado, que tornavam sua cristalização impossível; 2) quando o Estado surge, 6 sob a forma de um corte irredutível, uma vez que ele não é a consequência de um desenvolvimento progressivo das forças produtivas (mesmo a “revolução neolítica” não pode se definir em função de uma infraestrutura econômica12). Todavia, não se rompe com o evolucionismo traçando um corte por si mesmo: Clastres, na última fase de seu trabalho, mantinha a preexistência e a autarquia das sociedades contra-o-Estado e atribuía seu mecanismo a um pressentimento demasiado misterioso daquilo que elas conjuravam e que não existia ainda. Em geral, é surpreendente a estranha indiferença que a etnologia manifesta ainda em relação à arqueologia. Dir-se-ia que os etnólogos, fechados em seus territórios respectivos, dispõem-se a compará-los entre si de maneira abstrata, ou estrutural, na pior das hipóteses, mas não admitem confrontá-los com os territórios arqueológicos que comprometeriam sua autarquia. Eles tiram fotos de seus primitivos, mas recusam de antemão a coexistência e a superposição dos dois mapas, etnográfico e arqueológico. Çatal Hüyük teria tido, contudo, uma zona de influência de três mil quilômetros; e como deixar indeterminado o problema sempre posto da relação de coexistência entre as sociedades primitivas e os impérios, mesmo do neolítico? Enquanto não se passe pela arqueologia, a questão de uma relação etnologia-história se reduz a um confronto idealista e não se desembaraça do tema absurdo da sociedade sem história, ou de sociedade contra a história. Tudo não é Estado, justamente porque houve Estado sempre e por toda a parte. Não é somente a escrita que supõe o Estado, é a palavra, a língua e a linguagem. A autossuficiência, a autarquia, a independência, a preexistência das comunas primitivas é um sonho de etnólogo: não que essas comunas dependam necessariamente de Estados, mas coexistem com eles numa rede complexa. É verossímil que as

Clastres, La societé contre l’Etat. Vimos como, segundo Clastres, a guerra primitiva era um dos principais mecanismos conjurantes do Estado, na medida em que ela mantinha a oposição e a dispersão dos pequenos grupos segmentários. Mas também, desse ponto de vista, a guerra primitiva permanece subordinada aos mecanismos de conjuração e não se autonomiza numa máquina, mesmo quando ela comporta um corpo especializado. 12

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sociedades primitivas tenham mantido “desde o início” relações longínquas umas com as outras, e não apenas entre vizinhos, e que essas relações passavam por Estados, mesmo se estes só fizessem uma captura local e parcial delas. As próprias falas e as línguas, independentemente da escrita, não se definem por grupos fechados que se compreendem entre si, mas determinam primeiro relações entre grupos que não se compreendem: se há linguagem, é antes entre aqueles que não falam a mesma língua. A linguagem é feita para isso, para a tradução, não para a comunicação. E há nas sociedades primitivas tanto tendências que “buscam” o Estado, tanto vetores que trabalham na direção do Estado, como movimentos no Estado ou fora dele que tendem a afastar-se dele, precaver-se dele, ou bem fazê-lo evoluir, ou já aboli-lo: tudo coexiste, em perpétua interação. Um evolucionismo econômico é impossível: não se pode crer numa evolução mesmo ramificada “coletores — caçadores — criadores — agricultores — industriais”. Não é tampouco aceitável um evolucionismo etológico “nômades — seminômades — sedentários”. Nem um evolucionismo ecológico “autarquia dispersa de grupos locais — aldeias e pequenos burgos — cidades — Estados”. Basta fazer interferir essas evoluções abstratas para que todo evolucionismo desabe: por exemplo, é a cidade que cria a agricultura, sem passar pelos burgos. Por exemplo ainda, os nômades não precedem os sedentários, mas o nomadismo é um movimento, um devir que afeta os sedentários, assim como a sedentarização é uma parada que fixa os nômades: Gryaznov mostrou a esse respeito como o mais antigo nomadismo só pode ser atribuído exatamente a populações que abandonam seu sedentarismo quase urbano, ou sua itinerância primitiva, para se pôr a nomadizar13. É nessas condições que os nômades inventam a máquina de guerra, como aquilo que ocupa ou preenche o espaço nômade e se opõe às cidades e aos Estados que ela tende a abolir. Os primitivos já tinham mecanismos de guerra que concorriam para impedir a formação do Estado; mas esses mecanismos mudam quando se autonomizam numa máquina específica do nomadismo que revida aos Estados. No entanto, não se trata de inferir daí uma evolução, mesmo em ziguezague, que iria dos primitivos aos Estados, dos Estados às máquinas de guerra nômades: ou pelo menos o ziguezague não é

Segundo Gryaznov, são os agricultores sedentários que se põem a nomadizar na estepe, na idade do bronze: é o caso de um movimento em ziguezague na evolução. Cf. Sibérie du Sud, Nagel, pp. 99, 133-134. 13

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sucessivo, mas passa pelos lugares de uma topologia que define aqui sociedades primitivas, lá Estados, acolá máquinas de guerra. Mesmo quando o Estado se apropria da máquina de guerra, mudando ainda sua natureza, é um fenômeno de transporte, de transferência, e não de evolução. O nômade só existe em devir e em interação; mas o primitivo também. A história tão-somente traduz em sucessão uma coexistência de devires. E as coletividades podem ser transumantes, semisedentárias, sedentárias ou nômades, sem que isso faça delas estados preparatórios do Estado, que, aliás, já se encontra ali, alhures ou ao lado. Pode-se ao menos dizer que os coletores-caçadores são os “verdadeiros” primitivos e permanecem, apesar de tudo, como base ou como mínimo de pressuposição da formação do Estado, por mais longe que se recue esta? Só se pode ter esse ponto de vista com a condição de se fazer uma concepção muito insuficiente da causalidade. É verdade que as ciências do homem, com seus esquemas materialistas, evolucionistas, ou mesmo dialéticos, estão em atraso em relação à riqueza e à complexidade das relações causais tal como aparecem em física ou mesmo em biologia. A física e a biologia nos colocam em presença de causalidades às avessas, sem finalidade, mas que não deixam de testemunhar uma ação do futuro sobre o presente, ou do presente sobre o passado: é o caso da onda convergente e do potencial antecipado, que implicam uma inversão do tempo. Mais que os cortes ou os ziguezagues, são essas causalidades às avessas que rompem a evolução. Do mesmo modo, no campo de que nos ocupamos, não basta dizer que o Estado neolítico ou mesmo paleolítico, uma vez surgido, reage sobre o mundo circundante dos coletores-caçadores; ele já age antes de aparecer, como o limite atual que essas sociedades primitivas conjuram por sua conta, ou como o ponto para o qual elas convergem, mas que não atingiriam sem se aniquilarem. Há, ao mesmo tempo, nessas sociedades, vetores que vão em direção ao Estado, mecanismos que o conjuram, um ponto de convergência repelido, posto para fora à medida que se aproxima dele. Conjurar é também antecipar. Certamente, não é de modo algum da mesma forma que o Estado aparece à existência e que ele preexiste a título de limite conjurado; donde a contingência irredutível. Mas, para dar um sentido positivo à ideia de um “pressentimento” de algo que não existe ainda, é preciso mostrar como o que não existe já age sob uma outra forma que não aquela de sua existência. Uma vez surgido, o Estado reage sobre os coletores-caçadores, impondolhes a agricultura, a criação de animais, uma divisão acentuada do trabalho, etc: portanto, sob a forma de uma onda centrífuga ou divergente. Mas, antes de aparecer, o Estado já age sob a forma da onda convergente ou centrípeta dos

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coletores-caçadores, onda que se anula precisamente nu ponto de convergência que marcaria a inversão dos signos ou a aparição do Estado (donde a instabilidade intrínseca e funcional dessas sociedades primitivas14). Ora, é necessário, desse ponto de vista, pensar a contemporaneidade ou a coexistência de dois movimentos inversos, de duas direções do tempo — dos primitivos “antes” do Estado e do Estado “depois” dos primitivos — como se as duas ondas que nos parecem se excluir ou se suceder se desenrolassem simultaneamente em um campo molecular micrológico, micropolítico, “arqueológico”. Há mecanismos coletivos que, ao mesmo tempo, conjuram e antecipam a formação de um poder central. Este aparece, então, em função de um limiar ou de um grau tal que o que é antecipado toma consistência ou não, o que é conjurado deixa de sê-lo e acontece. E esse limiar de consistência, ou de constrangimento, não é evolutivo, ele coexiste com seu aquém. Mais do que isso, seria preciso distinguir os limiares de consistência: a cidade e o Estado não são a mesma coisa, qualquer que seja sua complementaridade. A “revolução urbana” e a “revolução estatal” podem coincidir, mas não se confundir. Nos dois casos, há um poder central, mas não é a mesma figura. Certos autores souberam distinguir o sistema imperial ou palaciano (palácio-templo) e o sistema citadino, urbano. Há a cidade nos dois casos, mas, num caso, a cidade é uma excrescência do palácio ou templo, no outro o palácio, o templo é uma concreção da cidade. Num caso, a cidade por excelência é a capital, no outro, é a metrópole. Já a Suméria testemunha uma soluçãocidade, diferente da solução imperial do Egito. Porém, mais ainda, é o mundo mediterrâneo — com os pelasgos, os fenícios, os gregos, os cartagineses — que cria um tecido urbano distinto dos organismos imperiais do Oriente15. Ainda aí não é uma questão de evolução, mas de dois limiares de consistência, eles mesmos coexistentes. As diferenças incidem sobre vários aspectos.

Jean Robert destaca essa noção de uma “inversão dos signos e das mensagens”: “Numa primeira fase, as informações circulam principalmente da periferia para o centro, mas, a partir de um certo ponto crítico, a cidade emite na direção do mundo rural mensagens cada vez mais imperativas” e se torna exportadora (Décoloniser l’espace). 14

Sobre as cidades chinesas e sua subordinação ao princípio imperial, cf. Balazs, La bureaucratie celeste, Gallimard. E Braudel, Civilisation matérielle et capitalismo, p. 403: “Na Índia, como na China, as estruturas sociais recusam de antemão a cidade, oferecendo-lhe, dirse-ia, um material de mau quilate, refratário. (...). É que a sociedade é tomada, o que se chama tomada, numa sorte de sistema irredutível, de cristalização prévia”. 15

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A cidade é o correlato da estrada. Ela só existe em função de uma circulação e de circuitos; ela é um ponto assinalável sobre os circuitos que a criam ou que ela cria. Ela se define por entradas c saídas, é preciso que alguma coisa aí entre e daí saia. Ela impõe uma frequência. Ela opera uma polarização da matéria, inerte, vivente ou humana; ela faz com que o phylum, os fluxos passem aqui ou ali, sobre as linhas horizontais. E um fenômeno de trans-consistência, é uma rede, porque ela está fundamentalmente em relação com outras cidades. Ela representa um limiar de desterritorialização, pois é preciso que o material qualquer seja suficientemente desterritorializado para entrar na rede, submeter-se à polarização, seguir o circuito de recodificação urbana e itinerária. O máximo de desterritorialização aparece na tendência das cidades comerciais e marítimas de se separarem dos subúrbios, do campo (Atenas, Cartago, Veneza...). Insistiu-se frequentemente sobre o caráter comercial da cidade, mas o comércio é aí também espiritual, como numa rede de monastérios ou de cidades-templos. As cidades são pontos-circuitos de toda natureza, que fazem contraponto sobre as linhas horizontais; elas operam uma integração completa, mas local, e de cidade em cidade. Cada uma constitui um poder central, mas de polarização ou de meio, de coordenação forçada. Daí a pretensão igualitária desse poder, qualquer que seja a forma que ele assuma: tirânica, democrática, oligárquica, aristocrática... O poder da cidade inventa a ideia de magistratura, muito diferente do funcionário de Estado16. Mas quem dirá onde está a maior violência civil? Com efeito, o Estado procede de outra forma: é um fenômeno de intraconsistência. Ele faz ressoar juntos os pontos, que não são forçosamente já cidades-polos, mas pontos de ordem muito diversa, particularidades geográficas, étnicas, linguísticas, morais, econômicas, tecnológicas... Ele faz ressoar a cidade com o campo. Ele opera por estratificação, ou seja, forma um conjunto vertical e hierarquizado que atravessa as linhas

Em todos esses sentidos, François Châtelet coloca em questão a noção clássica de Estado-cidade e duvida que a cidade ateniense possa ser assimilada a um Estado qualquer (“La Grèce classíque, la Raison, l’Etat”,in En marge,l’Occident et ses autres, Aubier). Problemas análogos se colocariam para o Islã e também para a Itália, a Alemanha e a região de Flandres a partir do século XI: o poder político não implica aí a forma-Estado. Por exemplo, a comunidade das cidades hanseáticas, sem funcionários, sem exército, e mesmo sem personalidade jurídica. A cidade é sempre tomada numa rede de cidades, mas, justamente, a “rede de cidades” não coincide com “o mosaico de Estados”: sobre todos esses pontos, cf. as análises de François Fourquet e Lion Murard, Généalogie des équipements collectifs, 10-18, pp. 79-106. 16

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horizontais em profundidade. Ele só retém, portanto, tais e tais elementos cortando suas relações com outros elementos que, então, se tornam exteriores, inibindo, retardando ou controlando essas relações; se o Estado tem ele mesmo um circuito, é um circuito interior que depende primeiro da ressonância, é uma zona de recorrência que se isola assim do resto da rede, pronto a controlar ainda mais estritamente as relações com esse resto. A questão não é saber se o que é retido é natural ou artificial (fronteiras), uma vez que de toda maneira há desterritorialização; mas a desterritorialização, nesse caso, vem de que o próprio território é tomado como objeto, como material a estratificar, a fazer ressoar. Também o poder central do Estado é hierarquizado e constitui um funcionariato; o centro não está no meio, mas no alto, uma vez que ele só pode reunir o que isola por subordinação. Certamente existe uma multiplicidade de Estados não menos que de cidades, mas não é o mesmo tipo de multiplicidade: há tantos Estados quantos cortes verticais em profundidade, cada um separado dos outros, enquanto a cidade é inseparável da rede horizontal das cidades. Cada Estado é uma integração global (e não local), uma redundância de ressonância (e não de frequência), uma operação de estratificação do território (e não de polarização do meio). Pode-se reconstituir como as sociedades primitivas conjuram ao mesmo tempo os dois limiares, antecipando-os. Lévi-Strauss mostra que as mesmas aldeias são suscetíveis de duas apresentações: uma segmentaria e igualitária, a outra englobante e hierarquizada. Há aí como que dois potenciais, um que antecipa um ponto central comum a dois segmentos horizontais, o outro, ao contrário, um ponto central exterior a uma reta17. E que às sociedades primitivas não faltam formações de poder: elas têm mesmo muitas. Mas o que impede os pontos centrais potenciais de cristalizar, de tomar consistência, são precisamente os mecanismos que fazem com que essas formações de poder não ressoem juntas no ponto superior, assim como não polarizem no ponto comum: os círculos, com efeito, não são concêntricos, e os dois segmentos têm necessidade de um terceiro pelo qual eles se comuniquem18. É nesse sentido que as sociedades primitivas permanecem aquém do limiar-cidade tanto quanto do limiar-Estado. Se consideramos agora os dois limiares de consistência, vemos bem que eles implicam uma desterritorialização com relação aos códigos territoriais primitivos. É vão

17

Lévi-Strauss, Antbropologie structurale, Plon, pp. 167-168.

Com um exemplo preciso, Louis Berthe analisa a necessidade de uma “terceira aldeia”, impedindo o circuito orientado de se fechar: “Aînés et cadets, 1’alliance et Ia hiérarchie chez les Baduj”, pp. 214-215. 18

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perguntar o que vem primeiro, a cidade ou o Estado, a revolução urbana ou estatal, uma vez que os dois estão em pressuposição recíproca. É preciso os dois para operar a estriagem do espaço, linhas melódicas das cidades, cortes harmônicos dos Estados. A única questão que se coloca é a da possibilidade de uma relação inversa no seio dessa reciprocidade, pois, se o Estado arcaico imperial comporta necessariamente cidades consideráveis, essas cidades permanecem ainda mais subordinadas a ele porque o Palácio guarda o monopólio do comércio exterior. Ao contrário, a cidade tende a se emancipar quando a própria sobrecodificação do Estado provoca fluxos descodificados. Uma descodificação se junta à desterritorialização e a amplifica: a recodificação necessária passa então por uma certa autonomia das cidades, ou diretamente por cidades comerciantes e corporativas liberadas da forma-Estado. É nesse sentido que surgem cidades que não têm mais relação com sua própria terra, porque elas garantem o comércio entre impérios ou, melhor, constituem elas mesmas com outras cidades uma rede comercial livre. Há, portanto, uma aventura própria das cidades nas zonas mais intensas de descodificação: foi assim no mundo egeu da Antiguidade, no mundo ocidental da Idade Média e da Renascença. E não se poderia dizer que o capitalismo é o fruto das cidades, e que surge quando uma recodificação urbana tende a substituir a sobrecodificação do Estado? Mas isso não seria verdadeiro. Não são as cidades que criam o capitalismo. É que as cidades comerciantes e bancárias, com sua improdutividade, sua indiferença ao subúrbio, não operam uma recodificação sem inibir também a conjugação geral dos fluxos descodificados. Se é verdade que elas antecipam o capitalismo, por sua vez elas não o antecipam sem conjurá-lo. Elas estão aquém desse novo limiar. É preciso, portanto, estender a hipótese de mecanismos ao mesmo tempo antecipadores e inibidores: esses mecanismos atuam nas cidades “contra” o Estado e “contra” o capitalismo, e não somente nas sociedades primitivas. Finalmente, é pela forma-Estado e não pela forma-cidade que o capitalismo triunfará: quando os Estados ocidentais tiverem se tornado modelos de realização para uma axiomática de fluxos decodificados, e tiverem, por essa razão, reassujeitado as cidades. Como diz Braudel, “cada vez há dois corredores, o Estado, a Cidade” — duas formas e duas velocidades de desterritorialização —, “e, ordinariamente, o Estado ganha (...)., ele disciplinou as cidades, violentamente ou não, com um encarnecimento instintivo, por onde quer que voltemos nossos olhos através da Europa inteira (...)., ele reuniu-se ao galope das cidades”19. Sob a condição

Braudel, Civilisation matérielle et capitalisme, pp. 391-400 (acerca das relações cidade-Estado no Ocidente). E, como assinala Braudel, uma das razões da vitória dos Estados sobre as cidades a partir do século XV é que só o Estado tem a faculdade de se apropriar plenamente da máquina de guerra: por recrutamento territorial de homens, investimento material, industrialização da guerra (é nas manufaturas de armas mais que nas fábricas de alfinetes que a produção em série e a divisão mecânica aparecem). As cidades comerciantes, ao contrário, têm necessidade de guerras rápidas, recorrem a mercenários, c podem tão somente acondicionar a máquina de guerra. 19

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de sofrer o mesmo, contudo: com efeito, se é o Estado moderno que dá ao capitalismo seus modelos de realização, o que se encontra assim realizado é uma axiomática independente, mundial, que é como uma só e mesma Cidade, megapólis ou “megamáquina” de que os Estados são partes, bairros. Nós definimos as formações sociais por processos maquínicos e não por modos de produção (que, ao contrário, dependem dos processos). Assim as sociedades primitivas se definem por mecanismos de conjuração-antecipação; as sociedades com Estado se definem por aparelhos de captura; as sociedades urbanas, por instrumentos de polarização; as sociedades nômades, por máquinas de guerra; as organizações internacionais, ou antes, ecumênicas, se definem enfim pelo englobamento de formações sociais heterogêneas. Ora, precisamente porque esses processos são variáveis de coexistência que constituem o objeto de uma topologia social, é que as diversas formações correspondentes coexistem. E elas coexistem de dois modos, de maneira extrínseca e de maneira intrínseca. De um lado, com efeito, as sociedades primitivas não conjuram a formação de império ou de Estado sem antecipá-la, e não a antecipam sem que ela já esteja ali, fazendo parte de seu horizonte. Os Estados não operam captura sem que o capturado coexista, resista nas sociedades primitivas, ou fuja sob novas formas, cidades, máquinas de guerra... A composição numérica das máquinas de guerra se superpõe à organização de linhagem primitiva e, simultaneamente, se opõe à organização geométrica de Estado, à organização física da cidade. É essa coexistência extrínseca — interação — que se exprime por ela mesma nos conjuntos internacionais, pois estes certamente não esperaram o capitalismo para se formar: desde o neolítico, mesmo desde o paleolítico, encontram-se os vestígios de organizações ecumênicas que dão testemunho de um comércio à longa distância e que atravessam as mais diversas formações sociais (nós o vimos no caso da metalurgia). O problema da difusão, do difusionismo, está mal colocado enquanto se pressupõe um centro a partir do qual a difusão se faria. Só há difusão pela comunicação de potenciais de ordem muito diferentes:

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toda difusão procede do meio, pelo meio, como tudo o que “brota,” do tipo rizoma. Uma organização internacional ecumênica não procede de um centro imperial que se imporia a um meio exterior para homogeneizá-lo; ela não se reduz tampouco a relações entre formações de mesma ordem, por exemplo entre Estados (SDN, ONU...). Ao contrário, ela constitui um meio intermediário entre as diferentes ordens coexistentes. Assim como ela não é econômica ou comercial exclusivamente, assim também ela é religiosa, artística, etc. É nesse sentido que chamaremos organização internacional tudo o que tem a aptidão de passar por formações sociais diversas, simultaneamente — Estados, cidades, desertos, máquinas de guerra, sociedades primitivas. As grandes formações comerciantes históricas não têm simplesmente cidades-polos, mas segmentos primitivos, imperiais, nômades, pelos quais elas passam, com a condição de sair de novo sob uma outra forma. Samir Amin está profundamente certo quando diz que não há teoria econômica de relações internacionais, mesmo quando essas relações são econômicas, e isso porque elas estão montadas sobre formações heterogêneas20. Uma organização ecumênica não parte de um Estado, mesmo imperial, o Estado imperial é que faz parte dela, e ele faz parte dela a seu próprio modo, na medida de sua ordem, que consiste em capturar dela tudo o que pode. Ela não procede por homogeneização progressiva, nem por totalização, mas por tomada de consistência ou consolidação do diverso enquanto tal. Por exemplo, a religião monoteísta se distingue do culto territorial por uma pretensão à universalidade. Mas essa pretensão não é homogeneizante, ela só vigora à força de passar por toda a parte: assim é o cristianismo, que não se torna império e cidade sem suscitar também seus bandos, seus desertos, suas máquinas de guerra21. Da mesma forma, não há movimento artístico que não tenha suas cidades e seus impérios, mas também seus nômades, seus bandos e seus primitivos. Pode-se objetar que, pelo menos com o capitalismo, as relações econômicas internacionais, e, no limite, todas as relações internacionais, tendem à homogeneização das formações sociais. Citar-se-á não somente a fria destruição concertada das sociedades primitivas, mas também a queda das últimas formações despóticas — por exemplo, o império otomano, que opunha resistência e inércia demasiadas às exigências capitalistas.

Trata-se de um tema desenvolvido com frequência por Samir Amin: “Uma vez que a teoria das relações entre formações sociais diferentes não pode ser economicista, as relações internacionais, que se situam precisamente nesse quadro, não podem dar lugar a uma teoria econômica” (Le développement inégal, Ed. de Minuit, pp. 124 ss).. 20

21

Cf. Jacques I.acarrière, I.es hommes ivres de Dicu, Fayard.

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Todavia, essa objeção só é parcialmente justa. Na medida em que o capitalismo constitui uma axiomática (produção para o mercado), todos os Estados e todas as formações sociais tendem a se tornar isomorfas, a título de modelos de realização: há tão-somente um mercado mundial centrado, o capitalista, do qual participam até mesmo os países ditos socialistas. A organização mundial, portanto, deixa de se passar “entre” formas heterogêneas, uma vez que ela assegura a isomorfia das formações. Mas haveria erro em confundir o isomorfismo com uma homogeneidade. De um lado, a isomorfia deixa subsistir ou mesmo suscita uma grande heterogeneidade dos Estados (os Estados democráticos, os totalitários, e ainda mais os Estados “socialistas,” não são fachadas). De outro lado, a axiomática capitalista internacional só assegura efetivamente a isomorfia das formações diversas lá onde o mercado interno se desenvolve e se amplia, ou seja, “no centro”. Mas ela suporta, mais que isso, exige certa polimorfia periférica, visto que ela não se satura, visto que ela repele ativamente seus próprios limites: donde a existência de formações sociais heteromorfas na periferia, que não constituem certamente sobrevivências ou formas transicionais, uma vez que elas realizam uma produção capitalista ultramoderna (petróleo, minas, plantações, bens de equipamento, siderurgia, química..)., mas que não são menos précapitalistas, ou cxtra-capitalistas, em razão de outros aspectos de sua produção, e da inadequação forçada de seu mercado interno ao mercado mundial22. Quando ela se torna axiomática capitalista, a organização internacional continua a implicar a heterogeneidade das formações sociais, ela suscita e organiza seu “terceiro mundo”. Não há somente coexistência externa das formações, há também coexistência intrínseca dos processos maquínicos. E que cada processo pode funcionar também sob uma outra “potência” que não a sua própria, ser retomado por uma potência que corresponde a um outro processo. O Estado como aparelho de captura tem uma potência de apropriação; mas, justamente, essa potência não consiste somente em que ele captura tudo o

Samir Amin analisa essa especificidade das “formações periféricas” do Terceiro Mundo e distingue duas espécies principais: a oriental c africana e a americana. “As Américas, a Ásia e o Oriente árabe, a África negra não se transformaram da mesma maneira, porque não foram integrados ao centro na mesma etapa do desenvolvimento capitalista e não desempenharam, portanto, as mesmas funções nesse desenvolvimento” (Le développement inégal, pp. 257 ss.; e L’accumulation à 1’échelle mondiale, Ed. Anthropos, pp. 373-376). Veremos, todavia, como o centro e a periferia são levados, em certas condições, a trocar seus caracteres. 22

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que pode, tudo o que é possível, sobre uma matéria definida como phylum. O aparelho de captura se apropria igualmente da máquina de guerra, dos instrumentos de polarização, dos mecanismo de antecipação-conjuração. É dizer, inversamente, quais mecanismos de antecipação-conjuração têm uma grande potência de transferência: eles não se exercem somente nas sociedades primitivas, mas também nas cidades que conjuram a forma Estado, nos Estados que conjuram o capitalismo, no próprio capitalismo quando este conjura ou repele seus próprios limites. E eles não se contentam também em passar sob outras potências, mas reformam focos de resistência e de contágio, como vimos para os fenômenos de “bando”, que têm eles mesmos suas cidades, seu internacionalismo, etc. Do mesmo modo, as máquinas de guerra têm uma potência de metamorfose, pela qual elas certamente se fazem capturar pelos Estados, mas pela qual também elas resistem a essa captura e renascem sob outras formas, com outros “objetos” que não a guerra (a revolução?). Cada potência é uma força de desterritorialização que concorre com as outras e contra as outras (mesmo as sociedades primitivas têm seus vetores de desterritorialização). Cada processo pode passar sob outras potências, mas também subordinar outros processos à sua própria potência.

Proposição XII: Captura.

Pode-se conceber uma “troca” entre grupos primitivos estrangeiros, independentemente de qualquer referência a noções como estoque, trabalho e mercadoria? Parece que um marginalismo modificado nos dá os meios para uma hipótese. Com efeito, o interesse do marginalismo não vem de sua teoria econômica, extremamente fraca, mas de uma potência lógica que faz de Jevons, por exemplo, uma sorte de Lewis Carroll da economia. Tomemos dois grupos abstratos, em que um (A) dá grãos e recebe machados, e o outro (B) inversamente. Em que se apoia a avaliação coletiva dos objetos? Ela se apoia na ideia dos últimos objetos recebidos, ou antes recebíveis, de um lado e de outro, respectivamente. Por “último” ou “marginal”, é preciso entender não o mais recente, nem o derradeiro, mas antes o penúltimo, o ante-último, ou seja, o último antes que a troca aparente perca todo o interesse para os que trocam, ou os force a modificar seu agenciamento respectivo, a entrar num outro agenciamento. Concebe-se, com efeito, que o grupo coletor-plantador A, que recebe os machados, tenha uma “ideia” sobre o número de machados que o forçaria a

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mudar de agenciamento; e o grupo fabricante B, sobre a quantidade de grãos que o forçaria a mudar de agenciamento. Dir-se-á, então, que a relação grãos-machados é determinada pela última massa de grãos (para o grupo B) que corresponde ao último machado (para o grupo A). O último, como objeto de avaliação coletiva, vai determinar o valor de toda a série. Ele marca exatamente o ponto onde o agenciamento deve-se reproduzir, recomeçar um novo exercício ou um novo ciclo, instalar-se sobre um outro território, e para além do qual o agenciamento não poderia continuar como é. Portanto, é bem um ante-último, um penúltimo, uma vez que está antes do último. O último é quando o agenciamento deve mudar de natureza: B deveria plantar os grãos excedentes, A deveria precipitar o ritmo de suas próprias plantações e permanecer sobre a mesma terra. Podemos, então, estabelecer uma diferença conceituai entre o “limite” e o “limiar”, o limite designando o penúltimo, que marca um recomeço necessário, e o limiar o último, que marca uma mudança inevitável. É um dado econômico de toda empresa comportar uma avaliação do limite além do qual a empresa deveria modificar sua estrutura. O marginalismo pretende mostrar a frequência desse mecanismo do penúltimo: não somente os últimos objetos trocáveis, mas o último objeto produzível, ou mesmo o último produtor, o produtor-limite ou marginal, antes que mude o agenciamento23. É uma economia da vida cotidiana. Assim, o que o alcoólatra chama de um último copo? O alcoólatra tem uma avaliação subjetiva do que ele pode suportar. O que ele pode suportar é precisamente o limite em função do qual, segundo ele, ele poderá recomeçar (levando-se em conta um repouso, uma pausa...). Mas, além desse limite, há ainda um limiar que lhe faria mudar de agenciamento: seja pela natureza das bebidas, seja pelos lugares e horas em que ele costuma beber; seja, pior ainda, que ele entraria num agenciamento suicida, ou bem num agenciamento médico, hospitalar, etc. Pouco importa que o alcoólatra se engane, ou que ele utilize de uma maneira bem ambígua o tema “eu vou parar”, o tema do último. O que conta é a existência de um critério marginal e de uma avaliação marginalista espontâneos que regulam o valor de toda a série de “copos”. Assim também, ter a última palavra no agenciamento-cena doméstica.

Gaëtan Pirou, Economie libérale et économie dirigée, Ed. Sedes, t. I, p. 1 17: “A produtividade do trabalhador marginal determina não somente o salário desse trabalhador marginal, mas o de todos os outros. Assim também, quando se tratava de mercadorias, a utilidade do último balde d’água ou do último saco de trigo comandava o valor não somente desse balde ou desse saco mas de todos os outros baldes ou todos os outros sacos”. (O marginalismo pretende quantificar o agenciamento, ao passo que toda espécie de fatores qualitativos agem na avaliação do “último”). 23

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Cada parceiro avalia desde o início o volume ou a densidade da última palavra que lhe daria vantagem e encerraria a discussão, marcando o fim de um exercício ou de um ciclo de agenciamento, para que tudo pudesse recomeçar. Cada um calcula suas palavras em função da avaliação dessa última palavra e do tempo vagamente estabelecido para chegar lá. E para além da última palavra (penúltima) haveria ainda outras palavras, desta vez últimas, que fariam entrar num outro agenciamento, divórcio, por exemplo, porque se teria passado das “medidas.” Dir-se-á o mesmo do último amor. Proust mostrava como um amor pode ser orientado sobre seu próprio limite, sua própria margem: ele repete seu próprio fim. Em seguida, um novo amor, de sorte que cada amor é serial e que há também uma série de amores. Mas, “para além” ainda, há o último, lá onde o agenciamento muda, lá onde o agenciamento amoroso dá lugar a um agenciamento artístico — a Obra a ser feita, o problema de Proust... A troca é somente uma aparência: cada parceiro ou cada grupo aprecia o valor do último objeto receptível (objeto-limite) e a aparente equivalência decorre disso. A igualização resulta das duas séries heterogêneas, a troca ou a comunicação resulta dos dois monólogos (palavrório). Não há nem valor de troca nem valor de uso, mas avaliação do último de cada lado (cálculo de risco aferente a uma passagem do limite), uma avaliaçãoantecipação que dá conta do caráter ritual tanto quanto utilitário, do caráter serial tanto quanto de troca. A avaliação do limite para cada um dos grupos está presente desde o início e já comanda a primeira “troca” entre os dois. Há certamente um tateamento, a avaliação não é separável de um tateamento coletivo. Mas este não se apoia de modo algum sobre a quantidade de trabalho social, ele se apoia sobre a ideia do último, tanto de um lado como de outro, e se faz com uma velocidade variável, mas sempre mais rápido que o tempo necessário para chegar efetivamente ao último objeto ou mesmo para passar de uma operação a outra24. É nesse sentido que a avaliação é essencialmente antecipante, já presente nos primeiros

Sobre a importância de uma teoria da avaliação e do tateamento no marginalismo, cf. a exposição crítica de Fradin, Les fondements logiques de la théorie néoclassique de l’échange, Maspero. Para os marxistas, há também uma avaliação tateante, mas que só pode apoiar-se na quantidade de trabalho socialmente necessário; Engels fala disso, precisamente a propósito das sociedades pré-capitalistas. Ele invoca “um processo de aproximação em ziguezague, numerosos tateamentos no escuro”, que se regulam mais ou menos a partir da “necessidade de cada um de finalmente cobrir seus gastos” (pode-se perguntar se esse último membro da frase não reconstitui uma espécie de critério marginalista). Cf. Engels, prefácio ao Capital, livro III, Ed. Sociales, pp. 32-34. 24

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termos da série. Vê-se que a utilidade marginal (aferente aos últimos objetos receptíveis dos dois lados) não é de modo algum relativa a um estoque abstratamente suposto, mas ao agenciamento respectivo dos dois grupos. Pareto ia nessa direção quando falava de “ophélimité”, de preferência a utilidade marginal. Trata-se ele uma desejabilidade como componente de agenciamento: cada grupo deseja segundo o valor do último objeto recebível, para além do qual ele seria forçado a mudar de agenciamento. E todo agenciamento tem precisamente duas faces, maquinação de corpos ou de objetos, enunciação de grupo. A avaliação do último é a enunciação coletiva à qual corresponde toda a série dos objetos, ou seja, um ciclo ou um exercício de agenciamento. Os grupos primitivos que trocam aparecem, assim, como grupos seriais. K um regime especial, mesmo do ponto de vista da violência, pois mesmo a violência pode ser submetida a um tratamento ritual marginal, ou seja, a uma avaliação da “última violência” como impregnando toda a série dos golpes (além começaria um outro regime de violência). Definimos anteriormente as sociedades primitivas pela existência de mecanismos de antecipação-cunjuração. Vemos melhor como esses mecanismos se constituem e se distribuem: é a avaliação do último como limite que constitui uma antecipação, a qual conjura ao mesmo tempo o último como limiar ou como final (novo agenciamento). O limiar está “depois” do limite, “depois” dos últimos objetos receptíveis: ele marca o momento em que a troca aparente não apresenta mais interesse. Ora, nós achamos que o estoque começa precisamente nesse momento; antes, podia haver celeiros de troca, celeiros para a troca, mas não estoque propriamente dito. Não é a troca que supõe um estoque prévio, ela supõe somente uma “elasticidade”. O estoque só começa quando a troca perdeu o interesse, a desejabilidade, dos dois lados. Mas ainda é preciso uma condição que dê um interesse próprio ao estoque, uma desejabilidade própria (senão, se destruiria, se consumiria os objetos e não se estocaria: o consumo, com efeito, para os grupos primitivos, é o meio de conjurar o estoque e de manter seu agenciamento). O próprio estoque depende de um novo tipo de agenciamento. Sem dúvida, há muita ambiguidade nessas expressões “depois”, “novo,” “dar lugar”. De fato, o limiar já está lá, mas no exterior do limite, que se contenta em colocá-lo à distância, de retê-lo à distância. O problema é saber qual é esse outro agenciamento que dá um interesse atual de estoque, uma desejabilidade de estoque. O estoque nos parece ter um correlato necessário: ou bem a coexistência de territórios

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explorados simultaneamente, ou bem a sucessão das explorações sobre um só e mesmo território. Eis que os territórios formam uma Terra, dão lugar a uma Terra. Tal é o agenciamento que comporta necessariamente um estoque e que constitui, no primeiro caso, uma cultura extensiva, no outro caso uma cultura intensiva (conforme o paradigma de Jane Jacobs). Vê-se, desde então, em que o limiar-estoque se distingue do limite-troca: os agenciamentos primitivos de caçadores-coletores têm uma unidade de exercício que se define pela exploração de um território; a lei é de sucessão temporal, porque o agenciamento só persevera mudando de território ao fim de cada exercício (itinerância, itineração); e, em cada exercício, há uma repetição ou série temporal que tende para o último objeto como “índice”, o objeto-limite ou marginal do território (iteração que vai comandar a troca aparente). Ao contrário, no outro agenciamento, no agenciamento de estoque, a lei 6 de coexistência espacial, ela concerne à exploração simultânea de territórios diferentes; ou bem, quando ela é sucessiva, a sucessão dos exercícios se apoia sobre um só e mesmo território; e, no quadro de cada exercício ou exploração, a força de iteração serial dá lugar a uma potência de simetria, de reflexão e de comparação global. Em termos somente descritivos, oporíamos, portanto, os agenciamentos seriais, itinerantes ou territoriais (que operam com códigos); e os agenciamentos sedentários, de conjunto ou de Terra (que operam com uma sobrecodificação). A renda fundiária, em seu modelo abstrato, aparece precisamente com a comparação de territórios diferentes explorados simultaneamente, ou de explorações sucessivas de um só e mesmo território. A pior terra (ou a pior exploração) não comporta renda, mas faz com que as outras comportem, “produzam” renda comparativamente25. É em função de um estoque que os rendimentos podem ser comparados (mesmas semeaduras sobre terras diferentes, semeaduras variadas sucessivamente sobre a mesma terra). A categoria do último confirma aqui sua importância econômica, mas ela mudou inteiramente de sentido: não designa mais o termo de um movimento que se completa nele mesmo, mas o centro de simetria para dois movimentos em que um decresce e o outro cresce; ela não designa mais o limite de uma série ordinal, mas o elemento mais baixo de um conjunto cardinal, o limiar do conjunto — a terra menos fértil no

Ricardo, Príncipes de léamomie politique et de Vimpõt, Flammarion, cap. II. Cf. também a análise de Marx das duas formas de “renda diferencial,” Capital, III, 6’’ seção. 25

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conjunto das terras simultaneamente exploradas 26 . A renda fundiária homogeneíza, iguala as produtividades diferentes, atribuindo a um proprietário do solo o excesso das produtividades mais fortes em relação à mais baixa: como o preço (inclusive o lucro) se estabelece a partir da terra menos produtiva, a renda capta o sobrelucro aferente às terras melhores; ela capta “a diferença obtida pelo emprego de duas quantidades iguais de capital e de trabalho”. É o tipo mesmo de um aparelho de captura, inseparável de um processo de desterritorialização relativa. A terra como objeto da agricultura implica, com efeito, uma desterritorialização, porque, em vez de os homens se distribuírem num território itinerante, são as porções de terra que se repartem entre os homens em função de um critério quantitativo comum (fertilidade igual por superfície). É por isso que a terra está no princípio mesmo de um esfriamento, procedendo por geometria, simetria, comparação — contrariamente aos outros elementos: os outros elementos, a água, o ar, os ventos, e o subsolo não podem ser esfriados, e, por isso mesmo, só produzem renda quando são determinados por sua localização, ou seja, pela terra27. A terra tem duas potencialidades de desterritorialização: suas diferenças de qualidade são comparáveis entre si, do ponto de vista de uma quantidade que vai lhes fazer corresponder porções de terra exploráveis; o conjunto das terras exploradas é apropriável, diferentemente da terra selvagem exterior, do ponto de vista de um monopólio que vai fixar o ou os proprietários do solo28. É a segunda potencialidade que

Certamente, a terra menos fecunda é também, teoricamente, a mais recente ou a última de uma série (o que permite a muitos comentadores dizer que Ricardo, na sua teoria da renda, antecipou o marginalismo). Mas isso não é uma regra, e Marx mostra que um “movimento crescente” é possível tanto quanto um “movimento decrescente”, e que um melhor terreno “pode se colocar no último lugar” (cf. Pléiade, II, pp. 1318-1326). 26

Ricardo, p. 64: “Se o ar, a água, a elasticidade do vapor e a pressão atmosférica pudessem ter qualidades variáveis e limitadas; se se pudesse, além disso, apropriar-se deles, todos esses agentes dariam uma renda, que se desenvolveria à medida que se utilizassem suas diferentes qualidades”. 27

As duas formas de rendei diferencia! são fundadas na comparação. Mas Marx mantém a existência de uma outra forma, desconhecida dos teóricos (Ricardo), e que os práticos conhecem bem, diz ele: é a renda absoluta, fundada sobre o caráter especial da propriedade fundiária enquanto monopólio. Com efeito, a terra não é uma mercadoria como as outras, porque ela não é reprodutível no nível de um conjunto determinável. Há, portanto, monopólio, o que não quer dizer “preço de monopólio” (sendo o preço de monopólio e a renda eventual correspondente questões totalmente outras). Simplificando, a renda diferenciai e a renda absoluta se distinguem da seguinte maneira: o preço do produto sendo calculado a partir do pior terreno, o empreiteiro do melhor terreno teria um sobrelucro se este não se transformasse em renda diferencial do proprietário; mas, por sua vez, a mais-valia agrícola, sendo proporcionalmente maior que a mais-valia industrial (?), o empreiteiro agrícola em geral teria um sobrelucro se este não se transformasse em renda absoluta do proprietário. A renda é, portanto, um elemento necessário à igualização ou perequação do lucro: seja igualização da taxa de lucro agrícola (renda diferencial), seja igualização dessa taxa com a do lucro industrial (renda absoluta). Certos economistas marxistas propuseram um esquema totalmente diferente da renda absoluta, mas que conserva a distinção necessária de Marx. 28

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condiciona a primeira. Mas eram as duas juntas que o território conjurava, territorializando a terra, e que se efetuam agora graças ao estoque e no agenciamento agrícola, por desterritorialização do território. A terra apropriada e comparada retira dos territórios um centro de convergência situado fora; a terra é uma ideia da cidade. A renda não é o único aparelho de captura. É que o estoque não tem somente por correlato a terra, sob o duplo aspecto da comparação das terras e da apropriação monopolista da terra; ele tem por outro correlato o trabalho, sob o duplo aspecto da comparação das atividades e da apropriação monopolista do trabalho (sobretrabalho). Com efeito, ainda aqui, é em função do estoque que as atividades do tipo “ação livre” vão ser comparadas, remetidas e subordinadas a uma quantidade homogênea e comum que se nomeia trabalho. Não somente o trabalho concerne ao estoque, seja sua constituição, seja sua conservação, seja sua reconstituição, seja sua utilização, mas o próprio trabalho é atividade estocada, assim como o trabalhador é um “ativante” estocado. E mais, mesmo quando o trabalho é bem separado do sobretrabalho, não se pode tomá-los por independentes: não há um trabalho dito necessário e um sobretrabalho. O trabalho e o sobretrabalho são estritamente a mesma coisa, um se dizendo da comparação quantitativa das atividades, o outro da apropriação monopolista dos trabalhos pelo empreiteiro (não mais pelo proprietário). Mesmo quando eles são distinguidos e separados, como vimos, não há trabalho que não passe pelo sobretrabalho. O sobretrabalho não é o que excede o trabalho; ao contrário, o trabalho é o que se deduz do sobretrabalho e o supõe. É só aí que se pode falar de um valor-trabalho, e de uma avaliação que se apoia na quantidade de trabalho social, enquanto que os grupos primitivos estavam num regime de ação livre ou de atividade de variação contínua. No sentido de que ele depende do sobretrabalho e da mais-valia, o lucro do empreiteiro constitui um aparelho de captura, tanto quanto a renda do proprietário: não é somente o sobretrabalho que captura o trabalho, e

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não é somente a propriedade que captura a terra, mas o trabalho e o sobretrabalho são o aparelho de captura da atividade, como a comparação das terras e a apropriação da terra são o aparelho de captura do território29. Haveria, enfim, um terceiro aparelho de captura, além da renda e do lucro: o imposto. Só podemos compreender essa terceira forma e seu alcance criador se determinarmos a relação interior de que a mercadoria depende. A propósito da cidade grega, e notadamente da tirania coríntia, Edouard Will mostrou como o dinheiro não vinha antes da troca, nem da mercadoria ou das exigências do comércio, mas do imposto, que é o primeiro a introduzir a possibilidade de uma equivalência moeda = bens ou serviços, e que faz do dinheiro um equivalente geral. Com efeito, a moeda é bem um correlato do estoque, ela é um subconjunto do estoque, dado que pode ser constituída por todo objeto de grande durabilidade: no caso de Corinto, a moeda metálica é primeiro distribuída aos “pobres” (enquanto produtores), que se servem dela para comprar direitos de terra; ela passa, então, às mãos dos “ricos”, com a condição de não parar, com a condição de que todos, ricos e pobres, garantam um imposto, os pobres em bens ou serviços, os ricos em dinheiro, de modo que se estabeleça uma equivalência moeda-bens e serviços30. Veremos

Bernard Schmitt (Monnaie, salaires et profit, Ed. Castella, pp. 289-290) distingue duas formas de captura ou de “captagem”, que correspondem, aliás, às duas figuras principais da caça: a espera e a perseguição. A renda seria uma captura residual ou de espera, porque depende de forças exteriores e opera por transferência; o lucro, uma captura de perseguição ou de conquista, porque decorre de uma ação específica e requer uma força que lhe é própria ou uma “criação”. Isso, contudo, só é verdadeiro com relação à renda diferencial; como assinalava Marx, a renda absoluta representa o aspecto “criador” da propriedade fundiária (Pléiade, II, p. 1366). 29

Edouard Will (Korinthiaka, Ed. De Boccard, pp. 470 ss). analisa um caso tardio, mas exemplar: o da reforma do tirano Cípselo em Corinto: a) uma parte das terras da aristocracia de linhagem é confiscada e distribuída aos camponeses pobres; b) mas, ao mesmo tempo, um estoque metálico 6 constituído, por embargo sobre os proscritos; c) esse mesmo dinheiro é distribuído aos pobres, mas para que eles o dêem como indenização aos antigos proprietários; d) estes, desde logo, pagarão imposto em dinheiro, de maneira a assegurar uma circulação ou rotação da moeda e uma equivalência com os bens e serviços. Encontram-se já figuras análogas diretamente inscritas nos impérios arcaicos, independentemente dos problemas da propriedade privada. Por exemplo, terras são distribuídas aos funcionários, que as exploram ou as arrendam. Mas, se o funcionário recebe dessa forma uma renda em trabalho e em produtos, ele deve ao imperador um imposto exigível em dinheiro. Donde a necessidade de “bancos” que, em condições complexas, asseguram a equivalência, a conversão, a circulação bens-moeda por toda a economia. Cf. Cuillaume Cardascia, “Armée et fiscalité dans Ia Babylonie aché-ménide”, in Armées et fiscalité dans le monde antique, CNRS, 1977. 30

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o que significa essa referência a ricos e a pobres no caso já tardio de Corinto. Mas, independentemente do contexto e das particularidades desse exemplo, a moeda é sempre distribuída por um aparelho de poder, e em condições tais de conservação, de circulação, de rotação, que uma equivalência bens-serviços-dinheiro possa se estabelecer. Não acreditamos, portanto, numa sucessão, onde haveria primeiro uma renda em trabalho, depois uma renda em produção, depois uma renda pecuniária. O imposto é diretamente o lugar onde se elaboram a equivalência e a simultaneidade dos três. Via de regra, é o imposto que monetariza a economia, é ele que cria a moeda, e a cria necessariamente em movimento, em circulação, em rotação, e necessariamente também a cria em correspondência com serviços e bens ao longo dessa circulação. O Estado encontrará no imposto o meio do comércio exterior, na medida em que ele se apropria desse comércio. Mas é do imposto, não do comércio, que a forma-dinheiro nasce31. E a forma-dinheiro vinda do imposto torna possível uma apropriação monopolista da troca exterior pelo Estado (comércio monetarizado). Com efeito, tudo fica diferente no regime das trocas. Não nos encontramos mais na situação “primitiva” onde a troca se faz indiretamente, subjetivamente, por igualização respectiva dos últimos objetos receptíveis (lei da procura). Certamente, a troca permanece o que ela é por princípio, ou seja, desigual, e produzindo uma igualização que resulta disso: mas desta vez há uma comparação direta, preço objetivo, igualização monetária (lei da oferta). Que os bens e os serviços sejam como mercadorias e que a mercadoria seja medida e igualada pelo dinheiro decorre, antes de tudo, do imposto. É por isso que, mesmo hoje, o sentido e o alcance do imposto aparecem no imposto dito indireto, ou seja, que faz parte do preço e influencia o valor da mercadoria, independentemente e fora do mercado32. Todavia, o imposto indireto

Autores como Will ou Gabriel Ardant mostraram que a função comercial não dava conta da origem da moeda, ligada às ideias de “retribuição”, “pagamento”, “imposição”. Provam-no, sobretudo, com o mundo grego e ocidental; mas, mesmo nos impérios do Oriente, o monopólio de um comércio monetarizado nos parece supor o imposto monetário. Cf. Kdouard Will, “Réflexions et hypothéses sur les origines du monnayage”, Revue mmusmatique, I 955; Gabriel Ardant, His-toire financière de 1’antiquité à nos jours, Gallimard (pp. 28 ss.: “os meios que deram origem ao imposto deram igualmente origem à moeda”) 31

Sobre esse aspecto do imposto indireto, cf. A. Emmanuel, l.’échange inégal, Maspero, pp. 55-56, 246 ss. (em relação ao comércio exterior). Com respeito às relações impostoscomércios, um caso histórico particularmente interessante é o do mercantilismo, analisado por Eric Alliez (Capital et pouvoir, texto inédito). 32

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é tão-somente um elemento adicional, acrescentando-se, ele próprio, aos preços, inchando-os. Ele é tão somente o índice ou a expressão de um movimento mais profundo, segundo o qual o imposto constitui a primeira camada de um preço “objetivo”; o ímã monetário ao qual os outros elementos do preço, renda e lucro, vêm juntar-se, aglutinar-se, convergir no mesmo aparelho de captura. Houve um grande momento do capitalismo quando os capitalistas perceberam que o imposto podia ser produtivo, particularmente favorável aos lucros e mesmo às rendas. Mas é como para o imposto indireto: é um caso favorável que não deve ocultar, contudo, um entendimento ainda mais profundo e mais arcaico, uma convergência e identidade de princípio entre dois aspectos de um mesmo aparelho. Aparelho de captura de três cabeças, “fórmula trinitária”, que deriva da de Marx (embora ela distribua as coisas de outro modo):

A terra (diferentemente do território) Renda a) comparação direta das terras, renda diferencial; } O Proprietário b) apropriação monopolista da terra, renda absoluta.

Estoque

O trabalho (diferentemente da atividade) Lucro a) comparação direta das atividades, trabalho; } O Empreiteiro b) apropriação monopolista do trabalho, sobretrabalho. A moeda (diferentemente da troca) Imposto a) comparação direta dos objetos trocados, mercadoria; } O Banqueiro b) apropriação monopolista do meio de comparação, emissão de moeda.

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1. O estoque tem simultaneamente três aspectos: terras e grãos, ferramentas, dinheiro. A terra é do território estocado, a ferramenta é da atividade estocada, o dinheiro é da troca estocada. Mas o estoque não vem dos territórios, das atividades ou das trocas. Ele marca um outro agenciamento, vem desse outro agenciamento; 2. Esse agenciamento é a “megamáquina”, ou o aparelho de captura, império arcaico. Ele funciona sob três modos que correspondem aos aspectos do estoque: renda, lucro, imposto. E os três modos convergem e coincidem nele, numa instância de sobrecodificação (ou de significância): o déspota, ao mesmo tempo proprietário eminente da terra, empreiteiro dos grandes trabalhos, senhor dos impostos e dos preços. É como três capitalizações de poder, ou três articulações do “capital”; 3. O que forma o aparelho de captura são as duas operações que se encontra a cada vez nos modos convergentes: comparação direta, apropriação monopolista. A comparação sempre supõe a apropriação: o trabalho supõe o sobretrabalho, a renda diferencial supõe a absoluta, a moeda de comércio supõe o imposto. O aparelho de captura constitui um espaço geral de comparação e um centro móvel de apropriação. Sistema muro branco-buraco negro, tal como vimos anteriormente constituindo o rosto do déspota. Um ponto de ressonância circula num espaço de comparação e, circulando, traça esse espaço. E bem isso que distingue o aparelho de Estado e os mecanismos primitivos, com seus territórios não coexistentes e seus centros não ressonantes. O que começa com o Estado ou aparelho de captura é uma semiologia geral, sobrecodificando as semióticas primitivas. Em vez de traços de expressão que seguem um phylum maquínico e o esposam numa repartição de singularidades, o Estado constitui uma forma de expressão que subjuga o phylum: o phylum ou matéria não passa de um conteúdo comparado, homogeneizado, igualizado, ao passo que a expressão se torna forma de ressonância ou de apropriação. O aparelho de captura, operação semiológica por excelência... (Os filósofos associacionistas não erravam, nesse sentido, ao explicar o poder político por operações do espírito dependendo da associação de ideias). Bernard Schmitt propôs um modelo de aparelho de captura que dá conta das operações de comparação e de apropriação. Sem dúvida, esse modelo é construído em função da moeda, em economia capitalista. Mas ele parece repousar sobre princípios abstratos que ultrapassam esses limites33. — A. Parte-se de um fluxo indiviso, que não é ainda nem apropriado nem comparado,

33

Bernard Schmitt, Mimnaie, salaires et profits.

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“disponibilidade pura”, “não-possessão e não-riqueza”: é precisamente o que acontece numa criação de moeda pelos bancos, mas é, de um modo mais geral, a determinação do estoque, criação de um fluxo indiviso. — B. O fluxo indiviso se divide assim que é distribuído aos “fatores”, repartido entre os “fatores”. Há um só tipo de fatores: os produtores imediatos. Pode-se chamá-los de os “pobres”, e dizer que o fluxo é repartido entre os pobres. Mas não seria exato, uma vez que não há “ricos” prévios. O que conta, o que é importante é que os produtores não adquirem ainda a posse do que lhes é distribuído, e que o que lhes é distribuído não é ainda uma riqueza: a remuneração não supõe nem comparação nem apropriação, nem compra e venda, é muito mais uma operação do tipo nexum. Há somente igualdade do conjunto B e do conjunto A, do conjunto repartido e do conjunto indiviso. Pode-se chamar salário nominal ao conjunto repartido, de modo que os salários nominais são a forma de expressão de todo o conjunto indiviso (“a inteira expressão nominal” ou, como se diz frequentemente, “a expressão de toda a renda nacional”): o aparelho de captura aparece aqui como semiológico. — C. Portanto, nem mesmo se pode dizer que o salário concebido como repartição, remuneração, seja uma compra; é, ao contrário, o poder de compra que vai decorrer dele: “A remuneração dos produtores não é uma compra, é a operação pela qual as compras são possíveis num segundo momento, quando a moeda exercerá sua nova potência...” Com efeito, é ao ser repartido que o conjunto B se torna riqueza, ou adquire um poder comparativo, com relação a uma outra coisa ainda. Essa outra coisa é o conjunto determinado dos bens produzidos e, desde então, compráveis. Primeiramente heterogênea em relação aos bens produzidos, a moeda se torna um bem homogêneo aos produtos que ela pode comprar, adquire um poder de compra que desaparece com a compra real. Ou, mais geralmente, entre os dois conjuntos, o conjunto distribuído B e o conjunto dos bens reais C, uma correspondência, uma comparação se estabelecem (“a potência de aquisição é criada em conjunção direta com o conjunto das produções reais”). — D. É aí que o mistério ou a magia residem, numa espécie de defasagem. Pois, se chamamos B' o conjunto comparativo, ou seja, o conjunto posto em correspondência com os bens reais, vemos que ele é necessariamente inferior ao conjunto distribuído. B' é necessariamente inferior a B: mesmo se supomos que o poder de compra se apoia sobre todos os objetos produzidos durante um período, há sempre um excesso do conjunto distribuído sobre o conjunto utilizado ou comparado, de sorte que os produtores imediatos só podem converter uma

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parte. Os salários reais são apenas uma parte dos salários nominais; e, do mesmo modo, o trabalho “útil” é só uma parte do trabalho, e a terra “utilizada” é tão-somente uma parte da terra distribuída. Assim, chamaremos Captura essa diferença ou esse excesso mesmo, que vão constituir o lucro, o sobretrabalho ou o sobreproduto: “Os salários nominais englobam tudo, mas os assalariados só conservam os rendimentos que eles conseguem converter em bens, e perdem os rendimentos captados pelas empresas”. Dir-se-á então que o todo estava bem distribuído aos “pobres”; mas, nessa estranha corrida de velocidade, são também os pobres que se acham extorquidos de tudo o que não conseguem converter: a captura opera uma inversão da onda ou do fluxo divisível. É precisamente a captura que é objeto de apropriação monopolista. E essa apropriação (pelos “ricos”) não vem depois: ela está incluída nos salários nominais, escapando simultaneamente aos salários reais. Ela está entre os dois, se insere entre a distribuição sem posse e a conversão por correspondência ou comparação; ela exprime a diferença de potência entre os dois conjuntos, entre B e B'. Finalmente, não há absolutamente mistério: o mecanismo de captura já faz parte da constituição do conjunto sobre o qual a captura se efetua. É um esquema muito difícil de compreender, diz seu autor, e, contudo, operatório. Consiste em destacar uma máquina abstrata de captura ou de extorsão, apresentando uma “ordem das razões” muito particular. Por exemplo, a remuneração não é por si mesma uma compra, uma vez que o poder de compra decorre dela. Como diz Schimtt, não há nem ladrão nem roubado, uma vez que o produtor só perde o que não tem e não tem chance alguma de adquirir; é como na filosofia do século XVII: há negações, mas não privação... E tudo coexiste nesse aparelho lógico de captura. A sucessão aí é somente lógica: a captura em si mesma surge entre B e C, mas existe também entre A e B, entre C e A; ela impregna todo o aparelho, age como ligação não localizável do sistema. Do mesmo modo, o sobretrabalho: como se poderia localizá-lo, uma vez que o trabalho o supõe? Ora, o Estado — o Estado imperial arcaico, em todo caso — é esse próprio aparelho. Erra-se sempre ao reclamar para o Estado uma explicação suplementar: assim empurra-se o Estado para trás do Estado, ao infinito. Mais vale colocá-lo onde ele está, desde o início, uma vez que ele existe pontualmente, para além do limite das séries primitivas. É suficiente que esse ponto, de comparação e de apropriação, seja efetivamente ocupado para que funcione o aparelho de captura, que vai sobrecodificar os códigos primitivos, substituir as séries por conjuntos ou inverter o sentido dos signos. Ocupado,

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efetuado, esse ponto o é necessariamente, porque ele existe já na onda convergente que atravessa as séries primitivas e as arrasta na direção de um limiar onde, transpondo seus limites, ela mesma muda de sentido. Os primitivos jamais existiram a não ser em sobrevida, já trabalhados pela onda reversível que os carrega (vetor de desterritorialização). O que depende de circunstâncias exteriores é somente o lugar onde se efetua o aparelho — ali onde pode nascer o “modo de produção” agrícola, Oriente. É nesse sentido que o aparelho é abstrato. Mas, em si mesmo, ele não marca simplesmente uma possibilidade abstrata de reversibilidade; marca a existência real de um ponto de inversão como fenômeno irredutível, autônomo. Donde o caráter muito particular da violência de Estado: é difícil assinalar essa violência, uma vez que ela se apresenta sempre como já feita. Não é nem mesmo suficiente dizer que a violência reenvia ao modo de produção. Marx observava no caso do capitalismo: há uma violência que passa necessariamente pelo Estado, que precede o modo de produção capitalista, que constitui a “acumulação original” e torna possível esse próprio modo de produção mesmo. Se nos instalamos dentro do modo de produção capitalista, é difícil dizer quem rouba e quem é roubado, e mesmo onde está a violência. É que o trabalhador nasce aí objetivamente todo nu e o capitalista objetivamente “vestido”, proprietário independente. O que formou assim o trabalhador e o capitalismo nos escapa, uma vez que já é operante em outros modos de produção. É uma violência que se coloca como já feita, embora ela se refaça todos os dias34. É agora ou nunca o caso

Marx insiste com frequência sobre os seguintes pontos, especialmente na sua análise da acumulação original: I”) esta precede o modo de produção, e o torna possível; 2”) ela implica, portanto, uma ação específica do Estado e do direito, que não se opõem à violência, mas, ao contrário, a promovem (“alguns desses métodos se apoiam no emprego da força bruta, mas todos, sem exceção, exploram o poder do Estado, a força concentrada e organizada da sociedade”, Pléiade, I, p. 1213); 3”) essa violência de direito aparece primeiro sob sua forma bruta, mas deixa de ser consciente à medida que o modo de produção se estabelece e parece remeter à Natureza pura e simples (“por vezes se recorre ainda ao constrangimento, ao emprego da força bruta, mas só por exceção”, I, p. I 196); 4”) um tal movimento se explica pelo caráter particular dessa violência, que não se deixa em nenhum caso reduzir ao roubo, ao crime ou à ilegalidade (cf. Notes sur Adolph Wagner, II, p. 1535: a antecipação sobre o trabalhador não é uma antecipação epidérmica, o capitalista “não se limita a antecipar ou a roubar, mas extorque a produção de uma mais-valia, o que quer dizer que ele contribui antes para criar aquilo sobre o que se fará a antecipação. (...). Há, no valor constituído sem o trabalho do capitalista, uma parte de que ele pode se apropriar de direito, ou seja, sem violar o direito correspondente à troca de mercadorias”. 34

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de dizer que a mutilação é prévia, preestabelecida. Ora, essas análises de Marx devem ser ampliadas, pois não deixa de haver uma acumulação original imperial que precede o modo de produção agrícola, longe de decorrer dele; via de regra, há acumulação original cada vez que há montagem de um aparelho de captura, com essa violência muito particular que cria ou contribui para criar aquilo sobre que ela se exerce, e por isso se pressupõe a si mesma35. O problema, portanto, seria distinguir regimes de violência. A esse respeito, podemos distinguir como regimes diferentes: a luta, a guerra, o crime e a polícia. A luta seria como o regime da violência primitiva (incluindo-se aí “guerras” primitivas): é uma violência golpe a golpe, a que não falta contudo um código, uma vez que o valor dos golpes é fixado segundo a lei das séries, a partir do valor de um último golpe trocável, ou de uma última mulher a conquistar, etc. Daí uma espécie de ritualização da violência. A guerra, pelo menos quando remete à máquina de guerra, é um outro regime, porque implica a mobilização e a autonomização de uma violência dirigida primeiro e por princípio contra o aparelho de Estado (a máquina de guerra, nesse sentido, é a invenção de uma organização nômade original que se volta contra o Estado). O crime é ainda diferente, porque é uma violência de ilegalidade que consiste em apoderar-se de alguma coisa a que não se tem “direito”, de capturar alguma coisa que não se tem o “direito” de capturar. Mas, justamente, a polícia de Estado ou violência de direito é ainda diferente, uma vez que ela consiste em capturar ao mesmo tempo em que constitui um direito de captura. É uma violência estrutural, incorporada, que se opõe a todas as violências diretas. Definiu-se com frequência o Estado por um “monopólio da violência”, mas essa definição reenvia a uma outra, que determina o Estado como “estado do Direito” (Rechtsstaat). A sobrecodificação do Estado é precisamente essa violência estrutural que define o direito, violência “policial” e não guerreira. Há violência de direito cada vez que a violência contribui para criar aquilo sobre que ela se exerce ou, como diz Marx, cada vez que a captura contribui para criar aquilo que ela captura. É muito diferente da violência de crime. É por isso também que, ao inverso da violência primitiva, a violência de direito ou de Estado parece sempre se pressupor, uma vez que ela preexiste a seu próprio exercício: o Estado pode então dizer que a violência é “original”, simples fenômeno de natureza, e pela qual ele não é responsável, ele que só exerce a

Jean Robert mostra bem, nesse sentido, que a acumulação original implica a construção violenta de um espaço homogeneizado, “colonizado”. 35

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violência contra os violentos, contra os “criminosos” — contra os primitivos, contra os nômades, para fazer reinar a paz...

Proposição XIII: O Estado e suas formas.

Partimos do Estado imperial arcaico, sobrecodificação, aparelho de captura, máquina de servidão, que comporta uma propriedade, uma moeda, um trabalho públicos — fórmula perfeita de um só golpe, mas que nada pressupõe de “privado”, que nem mesmo supõe um modo de produção prévio, uma vez que o faz nascer. É a contribuição da arqueologia, o ponto de partida que as análises precedentes nos dão. A questão é então: como o Estado, surgido, formado de uma vez, vai “evoluir”? Quais são os fatores de evolução ou de mutação, e que relações os Estados evoluídos mantêm com o Estado imperial arcaico? A razão de evolução é interna, sejam quais forem os fatores exteriores que a apoiem. O Estado arcaico não sobrecodifica sem liberar também uma grande quantidade de fluxos descodificados que vão lhe escapar. Lembremos que “descodificação” não significa o estado de um fluxo cujo código seria compreendido (decifrado, traduzível, assimilável) mas, ao contrário, num sentido mais radical, o estado de um fluxo que não é mais compreendido dentro de seu próprio código, que escapa a seu próprio código. Ora, por um lado, fluxos que as comunidades primitivas haviam relativamente codificado acham a ocasião de fugir, desde que os códigos primitivos não se ajustem mais por eles mesmos e se subordinem à instância superior. Mas, por outro lado, é a própria sobrecodificação do Estado arcaico que torna possíveis e suscita novos fluxos que lhe escapam. O Estado não cria os grandes trabalhos sem que um fluxo de trabalho independente escape à sua burocracia (notadamente nas minas e na metalurgia). Ele não cria a forma monetária do imposto sem que fluxos de moeda fujam e alimentem ou façam nascer outras potências (notadamente no comércio e no banco). E, sobretudo, ele não cria o sistema de sua propriedade pública sem que um fluxo de apropriação privada saia pelo lado e comece a correr fora de seu alcance: essa propriedade privada, ela própria, não decorre do sistema arcaico, mas se constitui marginalmente, de uma maneira mais necessária ainda, inevitável, através das malhas da sobrecodificação. Tökei foi sem dúvida quem colocou mais seriamente o problema de uma origem da propriedade privada em função de um sistema que parece excluí-la por todos os lados. Com efeito, esta não pode nascer nem pelo lado do imperador-déspota, nem pelo lado dos camponeses, cuja parte de autonomia está ligada à

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posse comunal, nem pelo lado dos funcionários que encontram a base de sua existência e de sua renda nessa forma comunal pública (“os aristocratas podem nessas condições tornar-se pequenos déspotas, mas não proprietários privados”). Mesmo os escravos pertencem à comuna ou à função pública. A questão vem a ser portanto: há gente que seja constituída no império sobrecodificante, mas constituída como excluída e descodificada necessariamente? A resposta de Tökei é: o escravo liberto. É ele que não tem mais lugar. É ele que lança suas lamentações por todo o império chinês: a queixa (elegia) foi sempre fator político. Mas é ele também que forma os primeiros germes de propriedade privada, desenvolve o comércio e inventa na metalurgia um escravo privado de quem ele será o novo senhor36. Vimos anteriormente o papel do escravo liberto, na máquina de guerra, para a formação do corpo especial. É sob uma outra forma e por razões outras que ele tem tanta importância no aparelho de Estado e na evolução desse aparelho para a formação de um corpo privado. Os dois aspectos podem se reunir, mas remetem a duas linhagem diferentes. O que conta, portanto, não é o caso particular do escravo liberto. O que conta é o personagem coletivo do Excluído. O que conta é que, de uma maneira ou de outra, o aparelho de sobrecodificação suscita fluxos eles mesmos descodificados — de moeda, de trabalho, de propriedade... Estes são o correlato daquele. E a correlação não é somente social, no interior do império arcaico, ela é também geográfica. Este seria o momento de retomar o confronto do Oriente e do Ocidente. Segundo a grande tese arqueológica de Gordon Childe, o Estado imperial arcaico implica um excedente agrícola estocado que vai tornar possível o sustento de um corpo especializado de artesãos metalúrgicos e comerciantes. Com efeito, o excedente como conteúdo próprio da sobrecodificação não deve somente ser estocado, mas absorvido, consumido, realizado. Sem dúvida, essa exigência econômica de uma absorção do excedente é um dos principais aspectos da apropriação da máquina de guerra pelo Estado imperial: desde o início, a instituição militar é um dos meios mais fortes

Tökei, “Les conditions de Ia propriété foncière dans la Chine de Pépoque Tchcou”, Acta antiqua, 1958. Marx e Engels já lembravam que só a plebe romana (parcialmente constituída de libertos públicos) tinha “o direito de consignar a propriedade do ager publicus”: os plebeus tornavam-se proprietários privados de bens fundiários, assim como de riquezas mercantis e artesanais, precisamente na medida em que eram “excluídos de todos os direitos públicos” (cf. Marx, Grundrisse, Pléiade, II, p. 319; Engels, Origine de la famille, Ed. Sociales, p. I 1 9). 36

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de absorver o excedente. Se se supõe, contudo, que as instituições militar e burocrática não são suficientes, o lugar está pronto para esse corpo especializado de artesãos não cultivadores, cujo trabalho reforçará a sedentarização da agricultura. Ora, é na Afrásia, no Oriente, que o conjunto dessas condições se encontram preenchidas e o aparelho de Estado inventado: no Oriente Próximo, Egito e Mesopotâmia, mas também no Indo (e no Extremo Oriente). É lá que se fazem o estoque agrícola e seus concomitantes burocrático e militar, mas também metalúrgico e comercial. Ocorre que essa “solução” imperial ou oriental está ameaçada por um impasse: a sobrecodificação de Estado mantém os metalúrgicos, artesãos e comerciantes dentro delimites estreitos, sob um controle burocrático potente, uma apropriação monopolista do comércio exterior e a serviço de uma classe dirigente, de modo que mesmo os camponeses usufruem pouco das inovações de Estado. Desde então, é bem verdade que a forma-Estado enxameia e que a arqueologia reencontra-a por toda parte, no horizonte da história ocidental no mundo egeu. Mas não é nas mesmas condições. Minos e Micenas são antes uma caricatura de império, Agamenon de Micenas não é o imperador da China nem o faraó do Egito, e o egípcio pode dizer aos gregos: “Vocês aí, vocês serão sempre crianças...” É que os povos egeus são ao mesmo tempo demasiado distantes para cair na esfera oriental, demasiado pobres para estocar eles mesmos um excedente, mas nem suficientemente distantes nem suficientemente desprovidos para ignorar os mercados do Oriente. E mais, era a própria sobrecodificação do Oriente que designava a seus próprios comerciantes um papel à longa distância. Eis então que os povos egeus se encontram em situação de usufruir do estoque agrícola oriental, sem ter que constituí-lo por sua conta: eles o saqueiam quando podem e, mais regularmente, obtêm para si uma parte dele em troca de matérias-primas, mesmo vindas da Europa central ou ocidental (principalmente madeira e metais). Certamente, o Oriente deve sem cessar reproduzir seus estoques; mas, formalmente, ele conseguiu um lance “de uma vez por todas”, de que o Ocidente se beneficia sem ter que reproduzi-lo. Seguese que os artesãos metalúrgicos e os comerciantes assumem no Ocidente um estatuto inteiramente diverso, uma vez. que não dependem diretamente em sua existência de um excedente acumulado por um aparelho de Estado local: mesmo se o camponês sofre uma exploração tão dura ou por vezes mais dura que no Oriente, o artesão e o comerciante gozam de um estatuto mais livre e de um mercado mais diversificado que prefiguram uma classe média. Muitos metalúrgicos e comerciantes do Oriente passarão ao mundo egeu, onde encontram essas condições ao mesmo tempo mais livres, mais variadas e mais estáveis. Em suma, os mesmos fluxos que são sobrecodificados no Oriente tendem

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a se descodificar na Europa, numa nova situação que é como o inverso ou o correlato da outra. A mais-valia não é mais uma mais-valia de código (sobrecodificação), mas torna-se uma mais-valia de fluxo. É como se o mesmo problema tivesse recebido duas soluções: a solução do Oriente, depois a do Ocidente que se enxerta sobre a primeira e a tira do impasse, ao mesmo tempo em que a supõe. O metalúrgico e o comerciante europeus ou europeizados vão se achar diante de um mercado internacional muito menos codificado, que não se limita a uma casa ou classe imperiais. E, como diz Childe, os Estados egeus e ocidentais serão tomados desde o início num sistema econômico supranacional: eles se banham nele, em vez de mantê-lo nos limites de suas próprias malhas37. E bem um outro polo de Estado que surge, e que se pode definir sumariamente. A esfera pública não caracteriza mais a natureza objetiva da propriedade, mas é antes o meio comum de uma apropriação que se tornou privada; entra-se, assim, nos mistos público-privado que constituem o mundo moderno. O laço se torna pessoal; relações pessoais de dependência, ao mesmo tempo entre proprietários (contratos) e entre propriedades e proprietários (convenções), duplicam ou substituem as relações comunitárias e de função; mesmo a escravidão não define mais a disposição pública do trabalhador comunal, mas a propriedade privada que se exerce sobre trabalhadores individuais38. O direito inteiro sofre uma mutação e se torna direito subjetivo, conjuntivo, “tópico”: é que o aparelho de Estado se encontra diante de uma nova tarefa, que consiste menos em sobrecodificar fluxos já codificados que em organizar conjunções de fluxos descodificados como tais. O regime de signos mudou, portanto: sob todos esses aspectos, a operação do “significante” imperial dá lugar a processos de subjetivação; a servidão maquínica tende a ser substituída por um regime de sujeição social. Contrariamente ao polo imperial relativamente uniforme, esse segundo polo apresenta as formas mais diversas. Mas, por mais variadas que sejam as relações de dependência pessoal, elas marcam a cada vez conjunções tópicas e qualificadas. São os impérios evoluídos, no Oriente como no Ocidente, que primeiro elaboram essa nova esfera

Cf. os dois grandes livros de V. Gordon Childe, L’Orient préhistorique e, sobretudo, L’Europe préhistorique, Payot. Em especial, a análise arqueológica permite a Childe concluir que o mundo egeu não apresenta lugares de acumulação de riquezas e de víveres comparáveis aos do Oriente, pp. 107-109. 37

Sobre as diferenças entre a “escravidão generalizada” no império arcaico e a escravidão privada, a corvéia feudal, etc, cf. Charles Parain, “Protohistoire méditerranéenne et mode de production asiatique”, in CERM, Sur le mode de production asiatique, pp. 170-173. 38

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pública do privado, em instituições como as do consilium ou do fiscus do império romano (é nessas instituições que o escravo liberto assume um poder político que duplica o dos funcionários39). Mas são também as cidades autônomas, as feudalidades... E a questão de saber se essas últimas formações respondem ainda ao conceito de Estado só pode ser colocada se se tiver em conta certas correlações: tanto quanto os impérios evoluídos, as cidades e as feudalidades supõem um império arcaico que lhes serve de fundo; elas mesmas estão em contato com impérios evoluídos que reagem sobre elas; elas preparam ativamente formas novas de Estado (por exemplo, a monarquia absoluta como resultado de um direito subjetivo e de um processo feudal40). Com efeito, no rico campo das relações pessoais, o que conta não é o capricho ou a variabilidade das pessoas, mas a consistência das relações e a adequação de uma subjetividade que pode ir até o delírio, com atos qualificados que são fontes de direitos e de obrigações. Numa bela página, Edgar Quinet sublinhava essa coincidência entre “o delírio dos doze Césares e a idade de ouro do direito romano”41. Ora, as subjetivações, as conjunções, as apropriações não impedem os fluxos descodificados de continuar a correr, e de engendrar sem cessar novos fluxos que escapam (vimos, por exemplo, no nível de uma micropolítica na Idade Média). É mesmo o equívoco desses aparelhos: ao mesmo tempo que só funcionam com fluxos descodificados, eles, contudo, não os deixam a fluir juntos, operam as conjunções tópicas que equivalem a nós ou recodificações. Donde a impressão dos historiadores, quando dizem que o capitalismo “teria podido” se produzir desde esse momento — na China, em Roma, em Bizâncio, na Idade Média — em que as condições estavam dadas, mas que elas não estavam efetuadas e nem mesmo eram efetuáveis. É que a pressão dos fluxos desenha em contorno o capitalismo, mas, para realizá-lo, é preciso toda uma integral de fluxos descodificados, toda uma conjugação generalizada que transborda e reverte os aparelhos

Cf. Boulvert, Domestique et fonctionnaire sous le haut-empire romain, Les Belles Lettres. De um modo mais geral, Paul Veyne analisou a formação de um “direito subjetivo” no império romano, as instituições correspondentes e o novo sentido público do privado. Ele mostra como esse direito romano é um “direito sem conceitos”, que procede por “tópica”, e se opõe nesse sentido à concepção moderna do direito, “axiomática”: cf. Le pain et le arque, Ed. du Seuil, cap. 111 e IV, e p. 744. 39

40

Cf. François Hincker, “La monarchie absolue française”, in CERM, Sur le féodalisme, Ed. Sociales.

41

Edgar Quinet, Le génie des religiims, (Euvres completes, Hachette, t. I.

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precedentes. Com efeito, quando se trata, para Marx, de definir o capitalismo, ele começa por invocar o advento de uma só Subjetividade global e não qualificada, que capitaliza todos os processos de subjetivação, “todas as atividades sem distinção”: “a atividade produtora em geral”, “a essência subjetiva única da riqueza...”. E esse Sujeito único se exprime agora num Objeto qualquer, não mais num tal ou qual estado qualitativo: “Com a universalidade abstrata da atividade criadora de riqueza, tem-se ao mesmo tempo a universalidade do objeto enquanto riqueza, o produto somente ou o trabalho somente, mas enquanto trabalho passado, materializado”42. A circulação constitui o capital como subjetividade adequada à sociedade inteira. Ora, justamente, essa nova subjetividade social só pode constituir-se à medida que os fluxos descodificados transbordam suas conjunções e atingem um nível de descodificação que os aparelhos de Estado não podem mais alcançar: é preciso, por um lado, que o fluxo de trabalho não seja mais determinado na escravidão ou na servidão, mas se torne trabalho livre e nu; é preciso, por outro lado, que a riqueza não seja mais determinada como fundiária, negociante, financeira, e se torne capital puro, homogêneo e independente. Sem dúvida, esses dois devires pelo menos (pois outros fluxos concorrem também) fazem intervir muitas contingências e fatores diferentes sobre cada uma das linhas. Mas é sua conjugação abstrata de uma vez que constituirá o capitalismo, fornecendo um ao outro um sujeito-universal e um objeto-qualquer. O capitalismo se forma quando o fluxo de riqueza não qualificado encontra o fluxo de trabalho não qualificado e se conjuga com ele43.É isso que as conjunções precedentes, ainda qualitativas ou tópicas, haviam sempre inibido (os dois principais inibidores eram a organização feudal do campo e a organização corporativa das cidades). É o mesmo que dizer que o capitalismo se forma com uma axiomática geral dos fluxos descodificados. “O capital é um direito ou, para ser mais preciso, uma relação de produção que se manifesta como um direito e, como tal, é independente da forma concreta que ele reveste a cada momento de sua função produtiva”44. A propriedade privada não exprime mais

42

Marx, Introdiiction géncrale a Ia critique de Véconomie politiqite, Pléiadc, I, p. 258.

Sobre a independência histórica das duas séries e seu “encontro”, cf. Balibar, em l.ire le Capital, Maspero, t. II, pp. 286289. 43

Arghiri Emmanuel, L’échange inégal, pp. 68-69 (e a citação de Sweezy: “Capital não é um simples sinônimo de meios de produção, é os meios de produção reduzidos a um fundo de valor qualitativamente homogêneo e quantitativamente comensurável”, donde a perequação do lucro). Na sua análise da acumulação original do capital, Maurice Dobb mostra bem que esta não se apoia nos meios de produção, mas nos “direitos e títulos de riqueza” conversíveis, em virtude de circunstâncias, em meios de produção (Etudes sur le développement du capitalism, Maspero, pp. 189-199). 44

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o laço da dependência pessoal, mas a independência de um Sujeito que constitui agora o único laço. É uma grande diferença na evolução da propriedade privada: quando ela mesma se apoia sobre direitos, em vez de o direito fazê-la apoiar-se sobre a terra, as coisas ou as pessoas (donde, notadamente, a célebre questão da eliminação da renda fundiária no capitalismo). Novo limiar de desterritorialização. E, quando o capital torna-se assim um direito ativo, é toda a figura histórica do direito que muda. O direito deixa de ser a sobrecodificação de costumes, como no império arcaico; ele não é mais um conjunto de tópicos, como nos Estados evoluídos, nas cidades e nas feudalidades; assume cada vez mais a forma direta e os caracteres imediatos da axiomática, como se vê em nosso “código” civil45. Quando os fluxos atingem esse limiar capitalista de descodificação e de desterritorialização (trabalho nu, capital independente), pareceria precisamente que não haveria mais necessidade de Estado, de dominação política e jurídica distinta, para assegurar a apropriação tornada diretamente econômica. A economia forma com efeito uma axiomática mundial, uma “energia cosmopolita universal que reverte toda barreira e todo laço”, uma substância móvel e convertível “tal como o valor total do produto anual”. Pode-se fazer hoje o quadro de uma enorme massa monetária dita apátrida, que circula através dos câmbios e das fronteiras, escapando ao controle dos Estados, formando uma organização ecumênica multinacional, constituindo uma potência supranacional de fato, insensível às decisões dos governos46. Mas, sejam quais forem as dimensões e quantidades atuais, é desde

Cf. a oposição marcada por certos juristas, e retomada por Paul Veyne, entre o direito romano “de tópica” e o direito moderno do tipo código civil, “axiomático”. Pode-se definir certos aspectos fundamentais que aproximam o Código civil mais de uma axiomática que de um código: 1”) a predominância da forma enunciativa sobre o imperativo e sobre as fórmulas afetivas (danação, exortação, admoestação, etc); 2”) a pretensão do Código de formar um sistema racional completo e saturado; 3”) mas, ao mesmo tempo, a relativa independência das proposições, que permite acrescentar axiomas. Sobre esses aspectos, cf. Jean Ray, hssai sur Ia structurc logique du code civil français, Alcan. Sabe-se que a sistematização do direito romano se faz muito tardiamente, nos séculos XVII e XVIII. 45

Cf. Jean Saint-Geours, Pouvoir et finance, Fayard. Saint-Geours é um dos melhores analistas do sistema monetário, mas também dos mistos “privado-público” na economia moderna. 46

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o início que o capitalismo mobilizou uma força de desterritorialização que transbordava infinitamente a desterritorialização própria ao Estado; pois este, desde o paleolítico ou o neolítico, é desterritorializante dado que faz da terra um objeto de sua unidade superior, um conjunto forçado de coexistência em lugar do livre jogo de territórios entre si e com as linhagens. Mas é precisamente nesse sentido que o Estado se diz “territorial”, ao passo que o capitalismo não é absolutamente territorial, mesmo em seus começos: sua potência de desterritorialização consiste em tomar por objeto, nem sequer a terra, mas o “trabalho materializado”, a mercadoria. E a propriedade privada não é mais a da terra ou do solo, nem mesmo dos meios de produção enquanto tais, mas a de direitos abstratos convertíveis47. É por isso que o capitalismo marca uma mutação das organizações ecumênicas ou mundiais, que tornam uma consistência em si mesmas: em vez de resultar de formações sociais heterogêneas e de suas relações, é a axiomática mundial em grande parte que distribui essas formações, fixa suas relações, organizando uma divisão internacional do trabalho. Sob todos esses aspectos, dir-se-ia que o capitalismo desenvolve uma ordem econômica que poderia passar sem o Estado. E, com efeito, ao capitalismo não falta o grito de guerra contra o Estado, não somente em nome do mercado, mas em virtude de sua desterritorialização superior. Todavia, isso é tão-somente um aspecto muito parcial do capital. Se é verdade que não empregamos a palavra “axiomática” à maneira de uma simples metáfora, é preciso lembrar o que distingue uma axiomática de todo o gênero de códigos, sobrecodificações e recodificações: a axiomática considera diretamente os elementos e as relações puramente funcionais cuja natureza não é especificada, e que se realizam imediatamente e ao mesmo tempo em campos muito diversos, enquanto os códigos são relativos a esses campos, enunciam relações específicas entre elementos qualificados, que não podem ser reconduzidos a uma unidade formal superior (sobrecodificação) a não ser por transcendência e indiretamente. Ora, a axiomática imanente, nesse sentido, encontra nos campos que atravessa modelos ditos de realização. Dir-se-á mesmo que o capital como direito, como elemento “qualitativamente homogêneo e quantitativamente comensurável”, se realiza em setores

Sobre a tendência à eliminação da renda fundiária no capitalismo, cf. Amin e Vergopoulos, La question paysanne et le capitalismo, Ed. Anthropos. Samir Amin analisa as razões pelas quais a renda fundiária e a renda mineira, de duas maneiras diferentes, guardam ou assumem um sentido atual nas regiões periféricas: La loi de la valeur et le matérialisme historique, Ed. de Minuit, cap. IV e VI. 47

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e meios de produção (ou que o “capital global” se realiza no “capital parcelizado”). Contudo, não são apenas os diferentes setores que servem de modelos de realização, são os Estados, de que cada um agrupa e combina vários setores, segundo seus recursos, sua população, sua riqueza, seu equipamento, etc. Com o capitalismo, portanto, os Estados não se anulam, mas mudam de forma e assumem um novo sentido: modelos de realização de uma axiomática mundial que os ultrapassa. Mas ultrapassar não é de modo algum passar sem... Vimos precisamente que o capitalismo passava pela forma-Estado antes que pela forma-cidade; e os mecanismos fundamentais descritos por Marx (regime colonial, dívida pública, fiscalidade moderna e imposto indireto, proteção industrial, guerras comerciais) podem ser preparados nas cidades, mas eles só funcionam como mecanismos de acumulação, de aceleração e de concentração à medida que são apropriados por Estados. Acontecimentos recentes confirmariam de uma outra forma esse mesmo princípio: a NASA, por exemplo, parecia pronta a mobilizar capitais consideráveis para a exploração interplanetária, como se o capitalismo cavalgasse um vetor que o enviasse à lua; mas o governo americano, em seguida à União Soviética — que concebia o extraterrestre mais como um cinto devendo rodear a terra tomada por “objeto” —, cortou os créditos de exploração e reconduziu o capital nesse caso a um modelo mais centrado. Assim, cabe à desterritorialização de Estado moderar a desterritorialização superior do capital e fornecer a este reterritorializações compensatórias. Mais geralmente, independente desse exemplo extremo, devemos levarem conta uma determinação “materialista” do Estado moderno ou do Estado-nação: um grupo de produtores em que trabalho e capital circulam livremente, ou seja, em que a homogeneidade e a concorrência do capital se efetuam em princípio sem obstáculos exteriores. O capitalismo sempre teve necessidade de uma nova força e de um novo direito dos Estados para se efetuar, tanto no nível do fluxo de trabalho nu, quanto no nível do fluxo de capital independente. Eis que os Estados não são mais absolutamente paradigmas transcendentes de uma sobrecodificação, mas modelos de realização imanentes para uma axiomática dos fluxos descodificados. Mais uma vez, a palavra “axiomática” é tão pouco uma metáfora aqui, que reencontramos literalmente, a propósito do Estado, os problemas teóricos suscitados pelos modelos numa axiomática; pois os modelos de realização, por mais diversos que sejam, são considerados isomorfos com relação á axiomática que eles efetuam. Todavia, levando-se em conta as variações concretas, essa isomorfia se concilia com as maiores diferenças formais. Mais ainda, uma mesma

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axiomática parece poder comportar modelos polimorfos, não só por não estar ainda “saturada”, mas por contar com esses modelos como elementos integrantes de sua saturação48. Esses “problemas” tornam-se singularmente políticos quando se pensa nos Estados modernos: 1) Não há urna isomorfia de todos os Estados modernos com relação à axiomática capitalista, a tal ponto que os Estados democráticos, totalitários, liberais, tirânicos dependem somente de variáveis concretas e da distribuição mundial dessas variáveis, que sofrem sempre remanejamentos eventuais? Mesmo os Estados ditos socialistas são isomorfos, na medida em que não há senão um só mercado mundial, capitalista. — 2) Inversamente, a axiomática capitalista mundial não comporta uma real polimorfia, ou mesmo uma heteromorfia de modelos, e por duas razões? De um lado, porque o capital como relação de produção em geral pode muito bem integrar setores ou modos de produção concretos não capitalistas. Mas, de outro lado, e sobretudo, porque os Estados socialistas burocráticos podem eles mesmos desenvolver relações de produção diferentes, que só se conjugam com o capitalismo para formar um conjunto cuja “potência” transborda a própria axiomática (seria preciso tentar determinar a natureza dessa potência, por que nós a pensamos tão frequentemente de maneira apocalíptica, que conflitos ela engendra, que chances incertas ela nos deixa...). — 3) Uma tipologia dos Estados modernos faria parte assim de uma meta-economia: seria inexato tratar todos os Estados como “se equivalendo” (mesmo a isomorfia não tem essa consequência); mas não seria menos inexato privilegiar tal forma de Estado (esquecendo que a polimorfia estabelece complementariedades estritas, por exemplo entre as democracias ocidentais e as tiranias coloniais ou neocoloniais que elas instauram ou sustentam alhures); não seria menos inexato ainda assimilar os Estados socialistas burocráticos a Estados capitalistas totalitários (negligenciando que a axiomática pode

Os livros de introdução ao método axiomático sublinham uni certo número de problemas. Considere-se o belo livro de Robert Blanché, L’axiomatique, PUF. Há, primeiramente, a questão da independência respectiva dos axiomas e da saturação ou não do sistema (§§ 14 e 15). Em segundo lugar, os “modelos de realização”, sua heterogeneidade, mas também sua isomorfia com relação à axiomática (§ 12). Depois, a eventualidade de uma polimorfia dos modelos não somente num sistema não saturado, mas mesmo numa axiomática saturada (§§ 12, 15, 26). Depois, ainda, a questão das “proposições indecidíveis” com que se choca uma axiomática (§ 20). Enfim, a questão da “potência”, que faz com que os conjuntos infinitos não demonstráveis transbordem a axiomática (§ 26 e a potência do contínuo). São todos esses aspectos que fundam a confrontação da política com uma axiomática. 48

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comportar uma real heteromorfia da qual se desprende a potência de conjunto superior, mesmo se é para o pior). O que se denomina Estado-nação, sob as formas mais diversas, é precisamente o Estado como modelo de realização. Com efeito, o nascimento das nações implica muitos artifícios: é que elas não se constituem somente numa luta ativa contra os sistemas imperiais ou evoluídos, contra as feudalidades, contra as cidades, mas elas mesmas operam um esmagamento de suas “minorias”, ou seja, de fenômenos minoritários ou que se poderia chamar “nacionalitários”, que as trabalham de dentro e que quando necessário encontravam um grau de liberdade maior nos antigos códigos. Os constituintes da nação são uma terra, um povo: “natal” que não é forçosamente inato, “popular” que não é forçosamente dado. O problema da nação se exacerba nos dois casos extremos de uma terra sem povo ou de um povo sem terra. Como fazer um povo e uma terra, ou seja, uma nação — um ritornelo? Os meios mais sangrentos e os mais frios concorrem aqui com os arrojos do romantismo. A axiomática é complexa e não lhe faltam paixões. É que o natal ou a terra, como já vimos, implica uma certa desterritorialização dos territórios (lugares comunais, províncias imperiais, domínios senhoriais, etc), e o povo implica uma descodificação da população. É sobre esses fluxos descodificados e desterritorializados que a nação se constitui, e não se separa do Estado moderno que dá uma consistência à terra e ao povo correspondentes. É o fluxo de trabalho nu que faz o povo, como é o fluxo de Capital que faz a terra e seu equipamento. Em suma, a nação é a própria operação de uma subjetivação coletiva, à qual o Estado moderno corresponde como processo de sujeição. É bem sob essa forma de Estado-nação, com todas as diversidades possíveis, que o Estado se torna modelo de realização para a axiomática capitalista, o que de modo algum equivale a dizer que as nações sejam aparências ou fenômenos ideológicos; ao contrário, as nações são as formas viventes e passionais onde primeiro se realizam a homogeneidade qualitativa e a concorrência quantitativa do capital abstrato. Distinguimos como dois conceitos a servidão maquínica e a sujeição social. Há servidão quando os próprios homens são peças constituintes de uma máquina, que eles compõem entre si e com outras coisas (animais, ferramentas), sob o controle e a direção de uma unidade superior. Mas há sujeição quando a unidade superior constitui o homem como um sujeito que se reporta a um objeto tornado exterior, seja esse objeto um animal, uma ferramenta ou mesmo uma máquina: o homem, então, não é mais componente da máquina, mas trabalhador,

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usuário..., ele é sujeitado à máquina, e não mais submetido pela máquina. Não que o segundo regime seja mais humano. Mas o primeiro regime parece remeter por excelência à formação imperial arcaica: os homens não são ali sujeitos, mas peças de uma máquina que sobrecodifica o conjunto (o que chamamos “escravidão generalizada”, por oposição à escravidão privada da Antiguidade, ou à servidão feudal). Lewis Mumford parece estar certo ao designar os impérios arcaicos sob o nome de megamáquinas, precisando que, ali também, não se trata de metáfora: “Se, mais ou menos de acordo com a definição clássica de Reuleaux, pode-se considerar uma máquina como a combinação de elementos sólidos, tendo cada um sua função especializada e funcionando sob controle humano para transmitir um movimento e executar um trabalho, então a máquina humana era bem uma verdadeira máquina”.49 Certamente, é o Estado moderno e o capitalismo que promovem o triunfo das máquinas e, notadamente, das máquinas motrizes (ao passo que o Estado arcaico tinha no máximo máquinas simples); mas estamos falando, então, de máquinas técnicas, extrinsecamente definíveis. Justamente, não se é submetido à servidão pela máquina técnica, mas, sim, sujeitado. Nesse sentido, parece que, com o desenvolvimento tecnológico, o Estado moderno substituiu a servidão maquínica por uma sujeição social cada vez mais forte. Já a escravidão antiga e a servidão feudal eram procedimentos de sujeição. Quanto ao trabalhador “livre” ou nu do capitalismo, ele leva a sujeição à sua expressão mais radical, uma vez que os processos de subjetivação não entram mais nem mesmo nas conjunções parciais que interromperiam seu curso. Com efeito, o capital age como ponto de subjetivação, constituindo todos os homens em sujeitos, mas uns, os “capitalistas”, são como os sujeitos da enunciação que formam a subjetividade privada do capital, enquanto os outros, os “proletários”, são os sujeitos do enunciado, sujeitados às máquinas técnicas onde se efetua o capital constante. O regime de salariado poderá, portanto, levar a sujeição dos homens a um ponto inaudito, e mostrar uma particular crueldade, ele não terá menos razão de soltar seu grito humanista: não, o homem não é uma máquina, nós não o tratamos como uma máquina, certamente não confundimos o capital variável e o capital constante... Mas, ao constituir uma axiomática dos fluxos descodificados é que o capitalismo aparece como uma empresa mundial de subjetivação. Ora, a sujeição social, como correlato da subjetivação, aparece muito mais nos modelos de

49

49 L. Mumford, “La première mégamachinc”, Diogène, jul. 1966.

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realização da axiomática do que na própria axiomática. É no quadro do Estado-nação, ou das subjetividades nacionais, que se manifestam os processos de subjetivação e as sujeições correspondentes. Quanto à axiomática mesma, de que os Estados são modelos de realização, ela restaura ou reinventa, sob novas formas tornadas técnicas, todo um sistema de servidão maquínica. Não é de modo algum um retorno à máquina imperial, uma vez que se está agora na imanência de uma axiomática, e não sob a transcendência de uma Unidade formal. Mas é bem a reinvenção de uma máquina da qual os homens são as partes constituintes, em vez de serem seus trabalhadores e usuários sujeitados. Se as máquinas motrizes constituíram a segunda idade da máquina técnica, as máquinas da cibernética e da informática formam uma terceira idade que recompõe um regime de servidão generalizado: “sistemas homens-máquinas”, reversíveis e recorrentes, substituem as antigas relações de sujeição não reversíveis e não recorrentes entre os dois elementos; a relação do homem e da máquina se faz em termos de comunicação mútua interior e não mais de uso ou de ação50. Na composição orgânica do capital, o capital variável define um regime de sujeição do trabalhador (mais-valia humana) tendo por quadro principal a empresa ou a fábrica; mas, quando o capital constante cresce proporcionalmente cada vez mais, na automação, encontramos uma nova servidão, ao mesmo tempo que o regime de trabalho muda, que a mais-valia se torna maquínica e que o quadro se estende à sociedade inteira. Dir-se-á mesmo que um pouco de subjetivação nos distanciava da servidão maquínica, mas que muito nos reconduz a ela. Sublinhou-se recentemente a que ponto o exercício do poder moderno não se reduzia à alternativa clássica “repressão ou ideologia”, mas implicava processos de normalização, de modulação, de modelização, de informação, que se apoiam na linguagem, na percepção,

A ergonomia distingue os sistemas “homem-máquina” (ou postos de trabalho) e os sistemas “homens-máquinas” (conjuntos comunicantes de elementos humanos e não humanos). Ora, não é somente uma diferença de grau; o segundo ponto de vista não é uma generalização do primeiro: “a noção de informação perde seu aspecto antropocêntrico”, e os problemas não são de adaptação, mas de escolha de um elemento humano ou não humano segundo o caso. Cf. Maurice de Montmollin, Les systèmes hommes-machines, PUF. A questão não é mais adaptar, mesmo sob violência, mas localizar: onde é teu lugar? Mesmo enfermidades podem servir, em vez de ser corrigidas ou compensadas. Um surdo-mudo pode ser essencial num sistema de comunicação “homens-máquinas”. 50

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no desejo, no movimento, etc, e que passam por microagenciamentos. É esse conjunto que comporta ao mesmo tempo a sujeição e a servidão, levadas aos extremos, como duas partes simultâneas que não param de se reforçar e de se nutrir uma à outra. Por exemplo: somos sujeitados à televisão na medida em que fazemos uso dela e que a consumimos, nessa situação muito particular de um sujeito do enunciado que se toma mais ou menos por sujeito da enunciação (“os senhores, caros telespectadores, que fazem a televisão...”); a máquina técnica é o meio entre dois sujeitos. Mas somos submetidos pela televisão como máquina humana na medida em que os telespectadores são não mais consumidores ou usuários, nem mesmo sujeitos que supostamente a “fabricam”, mas peças componentes intrínsecas, “entradas” e “saídas”, feed-back ou recorrências, que pertencem à máquina e não mais à maneira de produzi-la ou de se servir dela. Na servidão maquínica há tão-somente transformações ou trocas de informação das quais umas são mecânicas e outras humanas51 . Certamente, não reservaremos a sujeição ao aspecto nacional, enquanto a servidão seria internacional ou mundial, pois a informática é também a propriedade de Estados que se montam em sistemas homens-máquinas. Mas é justamente na medida em que os dois aspectos, o da axiomática e o dos modelos de realização, não param de passar um no outro e de se comunicar entre si. Resta que a sujeição social se mede pelo modelo de realização, como a servidão maquínica se estende à axiomática efetuada no modelo. Temos o privilégio de nos submeter, através das mesmas coisas e dos mesmos acontecimentos, às duas operações ao mesmo tempo. Sujeição ou servidão formam dois polos coexistentes, antes que duas fases. Podemos voltar às diversas formas de Estado do ponto de vista de uma história universal. Distinguimos três grandes formas: 1) os Estados arcaicos imperiais, paradigmas, que constituem uma máquina de servidão por sobrecodificação de fluxos já codificados (esses Estados têm pouca diversidade em razão de uma certa imutabilidade formal que vale para todos); 2) os Estados muito diversos entre si, impérios evoluídos, cidades, sistemas feudais, monarquias..., que procedem preferentemente por subjetivação e sujeição e constituem conjunções tópicas ou qualificadas de fluxos descodificados; 3) os Estados-nações modernos, que levam ainda

Um dos temas de base da ficção científica é mostrar como a servidão maquínica se combina com os processos de sujeição, mas os transborda e se distingue deles, operando um salto qualitativo; por exemplo, Bradbury: a televisão não sendo mais um instrumento que comporia o centro da casa, mas constituindo suas paredes. 51

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mais longe a descodificação e que são como os modelos de realização de uma axiomática ou de uma conjugação geral dos fluxos (esses Estados combinam a sujeição social e a nova servidão maquínica, e sua diversidade mesma concerne à isomorfia, à polimorfia ou à heteromorfia eventuais dos modelos com relação à axiomática). Há certamente toda espécie de circunstâncias exteriores que marcam cortes profundos entre esses tipos de Estado e que, antes de tudo, atingem os impérios arcaicos com um esquecimento radical, um sepultamento de que só a arqueologia os resgata. Desaparecimento brusco desses impérios, como numa catástrofe instantânea. Como a invasão dória, uma máquina de guerra se eleva e se exerce de fora, e mata a memória. Contudo, ocorre de outro modo bem diferente no interior, onde os Estados ressoam entre si todos juntos, se apropriam dos exércitos e fazem valer uma unidade de composição, malgrado suas diferenças de organização e de desenvolvimento. É certo que todos os fluxos descodificados, sejam quais forem, são aptos a formar uma máquina de guerra contra o Estado. Mas tudo muda segundo esses fluxos se conectem à máquina de guerra ou, ao contrário, entrem em conjunções ou numa conjugação geral que os apropriem ao Estado. Desse ponto de vista, os Estados modernos têm com o Estado arcaico uma espécie de unidade trans-espaço-temporal. De I a II, a correlação interna aparece mais nitidamente, dado que as formas esmigalhadas do mundo egeu pressupõem a grande forma imperial do Oriente e encontram aí, precisamente, o estoque ou o excedente agrícola que eles não têm necessidade de produzir ou de acumular por sua conta. E, na medida em que os Estados da segunda era são afinal de contas obrigados a refazer um estoque, mesmo que em virtude de circunstâncias exteriores — que Estado poderia dispensá-lo? — isso sempre ocorre reativando uma forma imperial evoluída, que encontramos ressuscitada pelo mundo grego, romano ou feudal: sempre um império no horizonte, que desempenha o papel de significante e de englobante para os Estados subjetivos. E de II a III, a correlação não é menor; pois as revoluções industriais não faltam e a diferença é tão exígua entre as conjunções tópicas e a grande conjugação dos fluxos descodificados que se tem a impressão de que o capitalismo não parou de nascer, de desaparecer e de ressuscitar, em todas as encruzilhadas da história. De III a I, a correlação é também necessária: os Estados modernos da terceira era restauram bem o império mais absoluto, nova “megamáquina”, seja qual for a novidade ou a atualidade da forma tornada imanente, realizando uma axiomática que funciona por servidão maquínica tanto quanto por

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sujeição social. O capitalismo acordou o Urstaat, e lhe dá novas forças52. Todo Estado implica, como dizia Hegel, “os momentos essenciais de sua existência enquanto Estado”. Não somente isso, mas há um único momento, no sentido de acoplamento de forças, e esse momento do Estado é captura, laço, nó, nexum, captura mágica. É preciso falar de um segundo polo, que operaria antes por pacto e contrato? Não será antes a outra força, tal que a captura forma o momento único do par? As duas forças são, pois, a sobrecodificação dos fluxos codificados e o tratamento dos fluxos descodificados. O contrato é uma expressão jurídica desse segundo aspecto: ele aparece como o processo de subjetivação, de que a sujeição é o resultado. Será preciso que o contrato vá até o fim, ou seja, que ele não se faça mais entre duas pessoas, mas entre si e si, na mesma pessoa, Ich = Ich, enquanto sujeita e soberana. Extrema perversão do contrato que restitui o mais puro dos nós. É o nó, é o laço, a captura, que atravessa assim uma longa história: primeiro o laço coletivo imperial, objetivo; depois todas as formas de laços pessoais subjetivos; enfim o Sujeito que se ata ele mesmo, e renova assim a mais mágica operação, “a energia cosmopolita que reverte toda barreira e todo laço para se colocar ela mesma como a única universalidade, a única barreira e o único laço”53. Mesmo a sujeição é apenas uma alternância para o momento fundamental do Estado, captura civil ou servidão maquínica. Seguramente o Estado não é nem o lugar da liberdade nem o agente de uma servidão forçada ou de uma captura de guerra. É preciso, então, falar de uma “servidão voluntária”? É como a expressão “captura mágica”: ela tem somente o mérito de sublinhar o aparente mistério. Há uma servidão maquínica, de que se dirá a cada vez que ela se pressupõe, que ela só aparece como já feita, e que não é mais “voluntária” do que “forçada”.

Proposição XIV: Axiomática e situação atual.

A política não é certamente uma ciência apodítica. Ela procede por experimentação, tateamento, injeção, retirada, avanços, recuos. Os fatores de decisão e de previsão são limitados. Absurdo supor um sobregoverno mundial que

Cf. Lewis Mumford, Le mythe de la machine, Fayard, t. II, pp. 319-350 (comparação da “antiga megamáquina” e da moderna: malgrado a escrita, a antiga sofria sobretudo de uma dificuldade de “comunicação”). 52

53

Marx, Economie c philosophie, Plciade, II, p. 72.

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decidiria em última instância. Não se chega nem mesmo a prever o aumento de uma massa monetária. Da mesma forma, os Estados são afetados por toda espécie de coeficientes de incerteza e de imprevisibilidade. Galbraith e François Châtelet destacam o conceito de erros decisivos e constantes, que fazem a glória dos homens de Estado não menos que suas raras avaliações bem-sucedidas. Ora, esta é uma razão a mais para reaproximar política e axiomática, pois uma axiomática em ciência não é de modo algum uma potência transcendente, autônoma e decisória que se oporia à experimentação e à intuição. Por um lado, ela tem tateamentos, experimentações, modos de intuição que lhe são próprios. Sendo os axiomas independentes uns dos outros, pode-se adicionar axiomas, e até que ponto se pode fazê-lo (sistema saturado)? Pode-se retirar axiomas, e até que ponto (sistema “enfraquecido”)? Por outro lado, é próprio da axiomática chocar-se com proposições ditas indecidíveis, ou afrontar potências necessariamente superiores, que ela não pode dominar54. Enfim, a axiomática não constitui uma ponta da ciência, mas muito mais um ponto de parada, um restabelecimento da ordem a impedir que os fluxos semióticos descodificados, matemáticos e físicos, fujam por todos os lados. Os grandes axiomatistas são homens de Estado da ciência, que colmatam as linhas de fuga tão frequentes em matemática, que pretendem impor um novo nexum, mesmo que provisório, e fazem uma política oficial da ciência. São os herdeiros da concepção teoremática da geometria. Quando o intuicionismo se opôs à axiomática, não foi somente em nome da intuição, da construção e da criação, mas em nome de um cálculo de problemas, de uma concepção problemática da ciência, que não tinha menos abstração, mas implicava uma máquina abstrata bem diferente, trabalhando no indecidível e no fugidio55. São os caracteres reais da axiomática que levam a afirmar que o capitalismo

São os dois grandes problemas da axiomática, historicamente: o encontro com proposições “indecidíveis” (enunciados contraditórios são igualmente indemonstráveis); o encontro com potências de conjuntos infinitos que escapam por natureza ao tratamento axiomático (“o contínuo, por exemplo, não pode ser concebido axiomaticamente na sua especificidade estrutural, uma vez que toda axiomática estabelecida comportará um modelo numerável”; cf. Robert Manche, p. 80). 54

A escola “intuicionista” (Brouwer, Heyting, Griss, Bouligand, etc). tem uma grande importância matemática, não porque ela fez valer os direitos irredutíveis da intuição, nem mesmo porque ela elaborava um construcionismo muito novo, mas porque desenvolve uma concepção de problemas e de um cálculo de problemas que rivaliza intrinsecamente com a axiomática e procede com outras regras (notadamente a propósito do terceiro excluído). 55

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e a política atual são literalmente uma axiomática. Mas é precisamente por essa razão que nada está determinado de antemão. A esse respeito, pode-se fazer um quadro sumário dos “dados”. 1. Adjunção, subtração — Os axiomas do capitalismo não são evidentemente proposições teóricas, nem fórmulas ideológicas, mas enunciados operatórios que constituem a forma semiológica do Capital e que entram como partes componentes nos agenciamentos de produção, de circulação e de consumo. Os axiomas são enunciados primeiros, que não derivam de um outro ou não dependem de um outro. Nesse sentido, um fluxo pode constituir o objeto de um ou vários axiomas (sendo que o conjunto dos axiomas constitui a conjugação dos fluxos); mas pode também não haver axiomas próprios, e seu tratamento ser apenas a consequência dos outros axiomas; ele pode, enfim, permanecer fora do campo, evoluir sem limites, ser deixado no estado de variação “selvagem” no sistema. Há no capitalismo uma tendência de adicionar perpetuamente axiomas. No fim da guerra de 1914-18, a influência conjugada da crise mundial e da revolução russa forçaram o capitalismo a multiplicar os axiomas, a inventar novos, no que concernia à classe trabalhadora, ao emprego, à organização sindical, às instituições sociais, ao papel do Estado, ao mercado externo e ao mercado interno. A economia de Keynes e o New Deal foram laboratórios de axiomas. Exemplos de novas criações de axiomas depois da Segunda Guerra Mundial: o plano Marshall, as formas de ajuda e de empréstimo, as transformações do sistema monetário. Não é somente em período de expansão ou de retomada que os axiomas se multiplicam. O que faz variar a axiomática, em relação aos Estados, é a distinção e a relação entre mercado externo e mercado interno. Há notadamente multiplicação de axiomas quando se organiza um mercado interno integrado que concorre com as exigências do mercado externo. Axiomas para os jovens, para os velhos, para as mulheres, etc. Poder-se-ia definir um polo de Estado muito geral, “social-democracia”, por essa tendência à adjunção, à invenção de axiomas, em relação com os domínios de investimento e de fontes de lucro: a questão não é a da liberdade ou da coerção, nem do centralismo ou da descentralização, mas da maneira que se domina os fluxos. Aqui, eles são dominados por multiplicação dos axiomas diretores. A tendência inversa não é menor no capitalismo: tendência a retirar, a subtrair axiomas. Acomoda-se a um número muito pequeno de axiomas que regulam os fluxos dominantes, sendo que os outros fluxos recebem um estatuto derivado, de consequência (fixado pelos “teoremas” que decorrem dos axiomas),

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ou são deixados num estado selvagem, que não exclui a intervenção brutal do poder de Estado, ao contrário até. É o polo de Estado “totalitarismo” que encarna essa tendência a restringir o número de axiomas, e que opera por promoção exclusiva do setor externo, apelo aos capitais estrangeiros, desenvolvimento de uma indústria voltada para a exportação de matérias brutas ou alimentares, ruína do mercado interno. O Estado totalitário não é um máximo de Estado, mas antes, segundo a fórmula de Virilio, o Estado mínimo do anarco-capitalismo (cf. Chili). No limite, os únicos axiomas mantidos são o equilíbrio do setor externo, o nível das reservas e a taxa de inflação; “a população não é mais um dado, ela se tornou uma consequência”; quanto às evoluções selvagens, elas aparecem entre outras nas variações do emprego, nos fenômenos de êxodo rural, de urbanização-favelas, etc. — O caso do fascismo (“nacional-socialismo”) se distingue do totalitarismo, tendo em vista que ele coincide com o polo totalitário por esmagamento do mercado interno e pela redução dos axiomas. Contudo, a promoção do setor externo não se faz de modo algum por apelo aos capitais externos e indústria de exportação, mas por economia de guerra, que acarreta um expansionismo estrangeiro em direção ao totalitarismo e uma fabricação autônoma de capital. Quanto ao mercado interno, ele é efetuado por uma reserva, por uma produção específica de Ersatz, de modo que o fascismo comporta também uma proliferação de axiomas, o que faz com que ele tenha sido frequentemente aproximado de uma economia keynesiana. Acontece que é uma proliferação fictícia ou tautológica, um multiplicador por subtração, que faz cio fascismo um caso muito especial56. 2. Saturação. — Pode-se distribuir as duas tendências inversas dizendo que a saturação do sistema marca o ponto de inversão? Não, pois é antes a própria saturação que é relativa. Se Marx mostrou o funcionamento do capitalismo como uma axiomática, foi sobretudo no célebre capítulo sobre a baixa

Uma das melhores análises da economia nazista parece-nos ser a de Jean-Pierre Faye, Langages totalitaires, pp. 664-676: ele mostra como o nazismo é bem um totalitarismo, precisamente por seu Estado-mínimo, sua recusa de toda estatização da economia, sua compressão dos salários, sua hostilidade em relação aos grandes trabalhos públicos; porém, mostra, ao mesmo tempo, como o nazismo procede a uma criação de capital interno, a uma construção estratégica, a uma indústria de armamento que o fazem rivalizar ou por vezes mesmo confundir-se com uma economia de tendência socialista (“alguma coisa que parece assemelhar-se aos empréstimos suecos pregados por Myrdal tendo em vista grandes trabalhos, mas que é de fato e de pronto seu contrário, escrita da economia de armamento e da economia de guerra”, e a diferença correspondente entre “o empreiteiro de trabalhos públicos” e “o fornecedor do exército”, pp. 668, 674). 56

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tendencial da taxa de lucro. O capitalismo é bem uma axiomática porque não tem leis que não sejam imanentes. Ele gostaria de fazer crer que se choca com os limites do Universo, com o limite extremo dos recursos e das energias. Mas ele se choca tão-somente com seus próprios limites (depreciação periódica do capital existente), e repele ou desloca apenas seus próprios limites (formação de um novo capital, em novas indústrias com forte taxa de lucro). É a história do petróleo e da energia nuclear, e os dois de uma só vez: c ao mesmo tempo que o capitalismo se choca com seus limites e que os desloca para colocá-los mais longe. Dir-se-á que a tendência totalitária, restringir os axiomas, corresponde ao afrontamento dos limites, enquanto que a tendência social-democrata corresponde ao deslocamento dos limites. Ora, uma não vai sem a outra, seja em dois lugares diferentes, mas coexistentes, seja em dois momentos sucessivos, mas estreitamente ligados, sempre presas uma à outra, e mesmo uma na outra, constituindo a mesma axiomática. Um exemplo típico seria o Brasil atual, com sua alternativa ambígua “totalitarismosocialdemocracia”. Via de regra, os limites são tanto mais móveis quanto mais se retirem axiomas em certo lugar, mas adicionando-os além. — Seria um erro desinteressar-se da luta no nível dos axiomas. Mas ocorre considerar-se todo axioma, no capitalismo ou num de seus Estados, como constituindo uma “recuperação”. Porém, esse conceito desencantado não é um bom conceito. Os remanejamentos constantes da axiomática capitalista, ou seja, as adjunções (enunciação de novos axiomas) e as retiradas (criação de axiomas exclusivos) são o objeto de lutas que de modo algum estão reservadas à tecnocracia. De todos os lados, com efeito, as lutas proletárias transbordam o quadro das empresas, que implicam, sobretudo, proposições derivadas. As lutas se apoiam diretamente nos axiomas que presidem as despesas públicas de Estado, ou mesmo que concernem a essa ou aquela organização internacional (por exemplo, uma firma multinacional pode planificar voluntariamente a liquidação de uma fábrica num país). O perigo, então, de uma burocracia ou de uma tecnocracia proletárias mundiais, que se encarregariam desses problemas, só pode ser ele mesmo conjurado na medida em que lutas locais tomem diretamente por alvos os axiomas nacionais e internacionais, precisamente no ponto de sua inserção no campo de imanência (potencialidade do mundo rural a esse respeito). Há sempre uma diferença fundamental entre os fluxos vivos e os axiomas que os subordinam a centros de controle e de decisão, que lhes fazem corresponder esse ou aquele segmento, que lhes medem os quanta. Mas a pressão dos fluxos vivos, e dos problemas que eles põem e impõem, deve se exercer no interior

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da axiomática, tanto para lutar contra as reduções totalitárias quanto para avançar e precipitar as adjunções, orientá-las e impedir sua perversão tecnocrática. 3. Modelos, isomorfia. — Em princípio, todos os Estados são isomorfos, ou seja, são domínios de realização do capital em função de um só e mesmo mercado mundial externo. Mas uma primeira questão seria saber se a isomorfia implica uma homogeneidade ou mesmo uma homogeneização dos Estados. Sim, como se vê na Europa atual, no que concerne à justiça e à polícia, ao código de trânsito, à circulação de mercadorias, aos custos de produção, etc. Mas isso só é verdadeiro na medida em que há tendência a um mercado interno único integrado. De outro modo, o isomorfismo de maneira alguma implica a homogeneidade: há isomorfia, mas heterogeneidade entre Estados totalitários e sociais-democratas, toda vez que o modo de produção é o mesmo. As regras gerais a esse respeito são as seguintes: a consistência, o conjunto ou a unidade da axiomática são definidos pelo capital como “direito” ou relação de produção (para o mercado); a independência respectiva dos axiomas de modo algum contradiz esse conjunto, mas vem de divisões e setores do modo de produção capitalista; a isomorfia dos modelos, com os dois polos de adjunção e de subtração, volta à distribuição em cada caso do mercado interno e do mercado externo. — Mas trata-se aí de uma primeira bipolaridade que vale para os Estados do centro, e sob o modo de produção capitalista. O centro impôs-se uma segunda bipolaridade Oeste-Leste, entre os Estados capitalistas e os Estados socialistas burocráticos. Ora, embora essa nova distinção possa retomar certos traços da precedente (os Estados ditos socialistas sendo assimilados a Estados totalitários), o problema se coloca de outro modo. As numerosas teorias de “convergência”, que tentam mostrar uma certa homogeneização dos Estados do Leste e do Oeste, são pouco convincentes. Mesmo o isomorfismo não convém: há real heteromorfia, não somente porque o modo de produção não é capitalista, mas porque a relação de produção não é o Capital (seria antes o Plano). Contudo, se os Estados socialistas são ainda modelos de realização da axiomática capitalista é em função da existência de um só e único mercado mundial externo, que permanece aqui o fator decisivo, para além mesmo das relações de produção de que ele resulta. Pode mesmo acontecer que o plano burocrático socialista tenha como que uma função parasitária com relação ao plano do capital, que revela uma criatividade maior, do tipo “vírus”. — Enfim, a terceira bipolaridade fundamental é a do centro e

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da periferia (Norte-Sul). Em virtude da independência respectiva dos axiomas, pode-se dizer com Samir Amin que os axiomas da periferia não são os mesmos que os do centro57. Ainda aí, a diferença e a independência dos axiomas de modo algum comprometem a consistência da axiomática de conjunto. Ao contrário, o capitalismo central tem necessidade dessa periferia constituída pelo terceiro mundo, no qual ele instala uma grande parte de sua indústria mais moderna, onde ele não se contenta em investir capitais, mas que lhe fornece capital. Certamente, a questão da dependência dos Estados do terceiro mundo é evidente, mas ela não é a mais importante (ela é herdeira do antigo colonialismo). É evidente que mesmo a independência dos axiomas jamais garantiu a independência dos Estados, assegurando de preferência a divisão internacional do trabalho. A questão importante, ainda aí, é a da isomorfia com relação á axiomática mundial. Ora, em grande medida, há isomorfia entre os Estados Unidos e as tiranias mais sangrentas da América do Sul (ou bem entre a França, a Inglaterra, a RFA e certos Estados africanos). Todavia, a bipolaridade centro-periferia, Estados do centro e do terceiro mundo, por mais que retome por seu turno traços distintivos das duas bipolaridades precedentes, escapalhes também e levanta outros problemas. É que, numa vasta parte do terceiro mundo, a relação de produção geral pode ser o capital; e mesmo em todo o terceiro mundo, no sentido de que o setor socializado pode se servir dessa relação, retomá-la por sua conta nesse caso. Mas o modo de produção não é necessariamente capitalista, não somente nas formas ditas arcaicas ou transicionais, mas nos setores mais produtivos e de alta industrialização. Portanto, é bem um terceiro caso, compreendido dentro da axiomática mundial: quando o capital age como relação de produção, mas em modos de produção não capitalistas. Falar-se-á então de uma polimorfia dos Estados do terceiro mundo com relação aos Estados do centro. Trata-se de uma dimensão da axiomática não menos necessária que as outras: muito mais necessária mesmo, pois a heteromorfia dos Estados ditos socialistas foi imposta ao capitalismo que a digere mal ou bem, ao passo que a polimorfia dos Estados do terceiro mundo é parcialmente organizada pelo centro, como axioma de substituição da colonização. — Reencontramos sempre a questão literal dos modelos de realização de uma axiomática mundial: a isomorfia dos modelos, em princípio, nos Estados do centro; a heteromorfia imposta pelo Estado socialista burocrático; a

57

Cf. a lista crítica dos axiomas da periferia, por Samir Amin: L’accumulation a l’écchelle mondiale pp. 373-376.

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polimorfia organizada dos Estados do terceiro mundo. Ainda aí, seria absurdo crer que a inserção dos movimentos populares em todo esse campo de imanência esteja condenada de antemão, e supor, seja que há “bons” Estados que seriam democráticos, sociais-democratas, ou socialistas no outro extremo, seja, ao contrário, que todos os Estados se equivalem e são homogêneos. 4. A potência. — Suponhamos que a axiomática desprenda necessariamente uma potência superior àquela que ela trata, ou seja, aquela dos conjuntos que lhe servem de modelos. É como uma potência do contínuo, ligada à axiomática e que, contudo, a excede. Reconhecemos essa potência imediatamente como potência de destruição, de guerra, encarnada em complexos tecnológicos militares, industriais e financeiros, em continuidade uns com os outros. Por um lado, a guerra segue evidentemente o mesmo movimento que o do capitalismo: assim como o capital constante cresce proporcionalmente, a guerra se torna cada vez mais “guerra de material”, onde o homem não representa mais nem mesmo um capital variável de sujeição, mas um puro elemento de servidão maquínica. Por outro lado, e sobretudo, a importância crescente do capital constante na axiomática faz com que a depreciação do capital existente e a formação de um novo capital assumam um ritmo e uma amplitude que passam necessariamente por uma máquina de guerra encarnada agora nos complexos: esta participa ativamente das redistribuições do mundo exigidas pela exploração de recursos marítimos e planetários. Há um “limiar” contínuo da potência que acompanha cada vez a transposição dos “limites” da axiomática; como se a potência de guerra viesse sempre sobressaturar a saturação do sistema e a condicionasse. — Aos conflitos clássicos entre Estados do centro (e colonização periférica) se juntaram, ou antes se substituíram, duas grandes linhas conflituais, entre o Oeste e o Leste, entre o Norte e o Sul, se recortando entre si e recobrindo o conjunto. Ora, não somente o sobrearmamento do Oeste e do Leste deixa subsistir inteiramente a realidade das guerras locais, e lhes dá uma nova força e novos riscos; não somente ele funda a possibilidade “apocalíptica” de um afrontamento direto segundo os dois grandes eixos; mas parece também que a máquina de guerra assume um sentido específico suplementar, industrial, político, judiciário, etc. É bem verdade que os Estados, em sua história, não deixaram de se apropriar da máquina de guerra; e era ao mesmo tempo que a guerra, em sua preparação e sua efetuação, se tornava o objeto exclusivo da máquina, mas como

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guerra mais ou menos “limitada”. Quanto ao objetivo, ele permanecia o objetivo político dos Estados. Os diferentes fatores que tenderam a fazer da guerra uma guerra “total”, notadamente o fator fascista, marcaram o início de uma inversão do movimento: como se os Estados, após o longo período de apropriação, reconstituíssem uma máquina de guerra autônoma, através da guerra que eles faziam uns contra os outros. Mas essa máquina de guerra libertada ou desencadeada continuava a ter por objeto a guerra em ato, enquanto guerra tornada total, ilimitada. Toda a economia fascista se tornava economia de guerra, mas a economia de guerra tinha ainda necessidade da guerra total enquanto objeto. Desde então, a guerra fascista permanecia sob a fórmula de Clausewitz, “continuação da política com o acompanhamento de outros meios”, embora esses outros meios se tornassem exclusivos, ou o objetivo político entrasse em contradição com o objeto (donde a ideia de Virilio segundo a qual o Estado fascista era um Estado “suicida” mais que totalitário). Foi somente após a Segunda Guerra Mundial que a automatização, depois a automação da máquina de guerra, produziram seu verdadeiro efeito. Esta, em vista dos novos antagonismos que a atravessavam, não tinha mais a guerra por objeto exclusivo, mas tomava a cargo e por objeto a paz, a política, a ordem mundial, em suma, o objetivo. É aí que aparece a inversão da fórmula de Clausewitz: é a política que se torna continuação da guerra, é a paz que libera tecnicamente o processo material ilimitado da guerra total. A guerra deixa de ser a materialização da máquina de guerra, é a máquina de guerra que se torna ela mesma guerra materializada. Nesse sentido, não havia mais necessidade de fascismo. Os fascistas tinham sido só crianças precursoras, e a paz absoluta da sobrevivência vencia naquilo que a guerra total havia falhado. Estávamos já na terceira guerra mundial. A máquina de guerra reinava sobre toda a axiomática como a potência do contínuo que cercava a “economia-mundo”, e colocava em contato todas as partes do universo. O mundo tornava a ser um espaço liso (mar, ar, atmosfera) onde reinava uma só e mesma máquina de guerra, mesmo quando ela opunha suas próprias partes. As guerras tinham se tornado partes da paz. Ainda mais, os Estados não se apropriavam mais da máquina de guerra, eles reconstituíam uma máquina de guerra de que eles mesmos eram tão-somente partes. — Entre os autores que desenvolveram um senso apocalíptico ou milenarista, coube a Paul Virilio ter sublinhado cinco pontos rigorosos: como a máquina de guerra tinha encontrado seu novo objeto na paz absoluta do terror ou da dissuasão; como ela operava uma “capitalização” técnico-científica; como essa

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máquina de guerra não era terrível em função da guerra possível que ela nos prometia como numa chantagem, mas, ao contrário, em função da paz real muito especial que ela promovia e já instalava; como essa máquina de guerra não tinha mais necessidade de um inimigo qualificado, mas, conforme as exigências de uma axiomática, se exercia contra o “inimigo qualquer”, interior ou exterior (indivíduo, grupo, classe, povo, acontecimento, mundo); como daí saía uma nova concepção da segurança como guerra materializada, como insegurança organizada ou catástrofe programada, distribuída, molecularizada58. 5. Terceiro incluído. — Que a axiomática capitalista tenha necessidade de um centro, e que esse centro se tenha constituído no Norte, em seguida a um longo processo histórico, ninguém o mostrou melhor que Braudel: “Só pode haver economia-mundo quando a rede tem malhas suficientemente cerradas e a troca é regular e volumosa o bastante para dar vida a uma zona central”59. Muitos autores consideram a esse respeito que o eixo Norte-Sul, centro-periferia, seja hoje ainda mais importante que o eixo Oeste-Leste, e mesmo o determine, principalmente. É o que exprime uma tese corrente, retomada e desenvolvida por Giscard d'Estaing: quanto mais as coisas se equilibram no centro entre o Oeste e o Leste, a começar pelo equilíbrio do sobrearmamento, mais elas se desequilibram ou se “desestabilizam” do Norte ao Sul, e desestabilizam o equilíbrio central. É claro que, nessas fórmulas, o Sul é um termo abstrato que designa o terceiro mundo ou a periferia;

Paul Virilio, L’insecurité du territoire; Vitesse et politique; Défense populaire et luttes écologiques: é precisamente para além do fascismo e da guerra total que a máquina de guerra encontra seu objeto completo, na paz ameaçadora da dissuasão nuclear. F. aí que a reversão da fórmula de Clausewitz assume um sentido concreto, ao mesmo tempo que o Estado político tende a desfalecer e que a máquina de guerra se apodera de um máximo de funções civis (“colocar o conjunto da sociedade civil sob o regime da segurança militar”, “desqualificar o conjunto do hábitat planetário, despojando os povos de sua qualidade de habitante”, “apagar a distinção de um tempo de guerra e de um tempo de paz”: cf. o papel das mídias a esse respeito). Um exemplo simples seria fornecido por certas polícias européias, quando reclamam o direito de “atirar direto”: elas deixam de ser engrenagem do aparelho de Estado para tornarem-se peças de uma máquina de guerra. 58

Braudel mostra como esse centro de gravidade se constituirá no norte da Europa, mas ao fim de movimentos que, desde os séculos IX e X, fazem concorrer ou rivalizar os espaços europeus do Norte e do Sul (esse problema não se confunde com o da forma-cidade e da forma-Estado, mas o recorta). Cf. “Naissance d’une économie-monde”, em Urbi I, set. 1979. 59

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e aliás, há Sul e terceiros mundos interiores ao centro. É claro também que essa desestabilização não é acidental, mas uma consequência (teoremática) dos axiomas do capitalismo e, principalmente, do axioma dito da troca desigual, indispensável a seu funcionamento. Também essa fórmula é a versão moderna da fórmula mais antiga que já valia para os impérios arcaicos, sob outras condições. Quanto mais o império arcaico sobrecodificava os fluxos, mais suscitava fluxos descodificados que se voltavam contra ele e o forçavam a modificar-se. Agora, quanto mais os fluxos descodificados entram numa axiomática central, mais eles tendem a escapar para a periferia e a colocar problemas que a axiomática é incapaz de resolver ou de controlar (inclusive os axiomas especiais que ela adiciona para essa periferia). — Os quatro fluxos principais que atormentam os representantes da economia-mundo ou da axiomática são: o fluxo de matéria-energia, o fluxo de população, o fluxo alimentar e o fluxo urbano. A situação parece inextricável, porque a axiomática não para de criar o conjunto desses problemas, ao mesmo tempo que seus axiomas, mesmo que multiplicados, lhe retiram os meios de resolvê-los (por exemplo, a circulação e a distribuição que tornariam possível a alimentação do mundo). Mesmo uma social-democracia adaptada ao terceiro mundo não se propõe certamente a integrar toda uma população miserável a um mercado interno, mas, muito mais, a operar a ruptura de classe que selecionará os elementos integráveis. Os Estados do centro não têm somente relação com o terceiro mundo, não têm somente cada um deles um terceiro mundo exterior, mas há terceiros mundos interiores que assomam neles e os trabalham de dentro. Dir-se-á mesmo, sob certos aspectos, que a periferia e o centro trocam suas determinações: uma desterritorialização do centro, um descolamento do centro em relação aos conjuntos territoriais e nacionais faz com que as formações periféricas se tornem verdadeiros centros de investimento, enquanto as formações centrais se periferializam. As teses de Samir Amin são ao mesmo tempo reforçadas e relativizadas. Quanto mais a axiomática mundial instala na periferia uma indústria forte e uma agricultura altamente industrializada, reservando provisoriamente ao centro as atividades ditas pós-industriais (automação, eletrônica, informática, conquista do espaço, sobrearmamento..)., mais ela instala no centro também zonas periféricas de subdesenvolvimento, terceiros mundos interiores, Sul interior. “Massas” da população abandonadas a um trabalho precário (contrato por empreitada, trabalho provisório ou biscate), e cuja subsistência oficial só é assegurada pelas alocações de Estado e salários tornados precários. Coube a pensadores como Negri, a partir do caso exemplar

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da Itália, fazer a teoria dessa margem interior, que tende cada vez mais a fundir os estudantes com os emarginati.60. Esses fenômenos confirmam a diferença entre a nova servidão maquínica e a sujeição clássica, pois a sujeição permanecia centrada sobre o trabalho e remetia a uma organização bipolar, propriedade-trabalho, burguesia-proletariado, enquanto na servidão e na dominância central do capital constante, o trabalho parece estourar em duas direções: a do sobretrabalho intensivo que nem mesmo passa mais pelo trabalho, e a de um trabalho extensivo tornado precário e flutuante. A tendência totalitária de abandonar os axiomas do emprego e a tendência social-democrata de multiplicar os estatutos podem aqui se combinar, mas sempre para operar as rupturas de classe. Acentua-se ainda mais a oposição entre a axiomática e os fluxos que ela não consegue dominar. 6. Minorias. — Nossa era torna-se a era das minorias. Vimos várias vezes que estas não se definiam necessariamente pelo pequeno número, mas pelo devir ou a flutuação, ou seja, pelo desvio que as separa desse ou daquele axioma que constitui uma maioria redundante (“Ulisses ou o europeu médio de hoje, habitante das cidades”, ou então, como diz Yann Moulier, “o Trabalhador nacional, qualificado, macho e com mais de trinta e cinco anos”). Uma minoria pode comportar apenas um pequeno número; mas ela pode também comportar o maior número, constituir uma maioria absoluta, indefinida. É o que acontece quando autores, mesmo ditos de esquerda, retomam o grande grito de alarme capitalista: em vinte anos, “os Brancos” não formarão mais que 12% da população mundial... Eles não se contentam, assim, em dizer que a maioria vai mudar, ou já mudou, mas, antes, que ela é agitada por uma minoria proliferante e não numerável que pode destruir a maioria em seu conceito mesmo, isto é, enquanto axioma. Com efeito, o estranho conceito de não-branco não constitui um

Um movimento de pesquisa marxista se formou a partir de Tronti (Ouvriers et capital, Bourgois), depois com a autonomia italiana e Antônio Negri, para analisar as novas formas de trabalho e de luta contra o trabalho. Tratava-se de mostrar ao mesmo tempo: 1º) que esse não é um fenômeno acidental ou “marginal” ao capitalismo, mas essencial à composição do capital (crescimento proporcional do capital constante); 2º) mas também que esse fenômeno engendra um novo tipo de lutas, proletárias, populares, étnicas, mundiais e em todos os domínios. Cf. Antônio Negri, passim, e notadamente Marx audelà de Marx; K.H. Roth, L’autre mouvement ouvrier en Allemagne, Bourgois; e os trabalhos atuais na França de Yann Moulier, Alain e Danièle Guillerm, Benjamin Coriat, etc. 60

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conjunto numerável. O que define então uma minoria não é o número, são as relações interiores ao número. Uma minoria pode ser numerosa ou mesmo infinita; do mesmo modo uma maioria. O que as distingue é que a relação interior ao número constitui no caso de uma maioria um conjunto, finito ou infinito, mas sempre numerável, enquanto que a minoria se define como conjunto não numerável, qualquer que seja o número de seus elementos. O que caracteriza o inumerável não é nem o conjunto nem os elementos; é antes a conexão, o “e”, que se produz entre os elementos, entre os conjuntos, e que não pertence a qualquer dos dois, que lhes escapa e constitui uma linha de fuga. Ora, a axiomática só manipula conjuntos numeráveis, mesmo que infinitos, enquanto as minorias constituem esses conjuntos “leves” não numeráveis, não axiomatizáveis, em suma, essas “massas”, essas multiplicidades de fuga ou de fluxo. — Seja o conjunto infinito dos nãobrancos da periferia, ou o conjunto reduzido dos bascos, dos corsos, etc, vemos por toda parte as premissas de um movimento mundial: as minorias recriam os fenômenos “nacionalitários” que os Estados-nações se haviam encarregado de controlar e de sufocar. O setor socialista burocrático não é certamente poupado por esses movimentos e, como dizia Amalrik, os dissidentes não são nada, ou servem somente de peões na política internacional, se se lhes abstraem as minorias que agitam a URSS. Pouco importa que as minorias sejam incapazes de constituir Estados viáveis do ponto de vista da axiomática e do mercado, uma vez que elas promovem a longo prazo composições que não passam mais pela economia capitalista que pela forma-Estado. A resposta dos Estados, ou da axiomática, pode ser, evidentemente, conferir às minorias uma autonomia regional, ou federal, ou estatutária, em suma, adicionar axiomas. Mas, precisamente, esse não é o problema: o que haveria aí seria uma operação consistindo em traduzir as minorias em conjuntos ou subconjuntos numeráveis, que entrariam a título de elementos na maioria, que poderiam ser contados numa maioria. Do mesmo modo, um estatuto da mulher, um estatuto dos jovens, um estatuto dos trabalhadores precários..., etc. Pode-se mesmo conceber, na crise e no sangue, uma reversão mais radical que faria do mundo branco a periferia de um centro amarelo; essa seria sem dúvida toda uma outra axiomática. Mas nós falamos de outra coisa, que ainda assim não seria regulada: as mulheres, os não-homens, enquanto minoria, enquanto fluxo ou conjunto não numerável, não receberiam qualquer expressão adequada ao devirem elementos da maioria, ou seja, conjunto finito numerável. Os não-brancos não receberiam qualquer expressão adequada ao devirem uma

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nova maioria, amarela, negra, conjunto numerável infinito. É próprio da minoria fazer valer a potência do não-numerável, mesmo quando ela é composta de um só membro. É a fórmula das multiplicidades. Minoria como figura universal, ou devir de todo o mundo. Um devir mulher de nós todos, quer sejamos masculinos ou femininos. Um devir nãobranco de nós todos, quer sejamos brancos, amarelos ou negros. — Ainda aí, não se trata de dizer que a luta no nível dos axiomas seja sem importância; ela é, ao contrário, determinante (nos níveis mais diferentes, luta das mulheres pelo voto, pelo aborto, pelo emprego; luta de regiões pela autonomia; luta do terceiro mundo; luta das massas e das minorias oprimidas nas regiões do Leste ou do Oeste...). Mas também há sempre um signo para mostrar que essas lutas são o índice de um outro combate coexistente. Por modesta que seja uma reivindicação, ela apresenta sempre um ponto que a axiomática não pode suportar, quando as pessoas protestam para elas mesmas levantarem seus próprios problemas e determinar, ao menos, as condições particulares sob as quais aqueles podem receber uma solução mais geral (ater-se ao Particular como forma inovadora). Ficamos sempre estupefatos com a repetição da mesma história: a modéstia das reivindicações de minorias, no começo, ligada à impotência da axiomática para resolver o menor problema correspondente. Em suma, a luta em torno dos axiomas é tanto mais importante quanto manifeste e cave ela mesma o desvio entre dois tipos de proposições: as proposições de fluxo e as proposições de axiomas. A potência das minorias não se mede por sua capacidade de entrar e de se impor no sistema majoritário, nem mesmo de reverter o critério necessariamente tautológico da maioria, mas de fazer valer uma força dos conjuntos não numeráveis, por pequenos que eles sejam, contra a força dos conjuntos numeráveis, mesmo que infinitos, mesmo que revertidos ou mudados, mesmo que implicando novos axiomas ou, mais que isso, uma nova axiomática. A questão não é de modo algum a anarquia ou a organização, nem mesmo o centralismo e a descentralização, mas a de um cálculo ou concepção dos problemas que concernem aos conjuntos não numeráveis, contra a axiomática dos conjuntos numeráveis. Ora, esse cálculo pode ter suas composições, suas organizações, mesmo suas centralizações, mas ele não passa pela via dos Estados nem pelo processo da axiomática, mas por um devir das minorias. 7. Proposições indecidíveis. — Objetar-se-á que a própria axiomática desprende a potência de um conjunto infinito não numerável: precisamente a de sua máquina de guerra.

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Contudo, parece difícil aplicá-la ao “tratamento” geral das minorias sem desencadear a guerra absoluta que ela supostamente conjura. Vimos também a máquina de guerra montar processos quantitativos e qualitativos, miniaturizações e adaptações que a tornam capaz de graduar seus ataques ou suas respostas, a cada vez em função da natureza do “inimigo qualquer” (indivíduos, grupos, povos...). Mas, nessas condições, a axiomática capitalista não para de produzir e de reproduzir o que sua máquina de guerra tenta exterminar. Mesmo a organização da fome multiplica os famintos tanto quanto os mata. Mesmo a organização dos campos, onde o setor “socialista” horrivelmente se distinguiu, não assegura a solução radical com que a potência sonha. O extermínio de uma minoria faz nascer ainda uma minoria dessa minoria. Malgrado a constância dos massacres, é relativamente difícil liquidar um povo ou um grupo, mesmo no terceiro mundo, desde que ele apresente conexões suficientes com elementos da axiomática. Sob outros aspectos ainda, pode-se predizer que os problemas imediatos da economia, consistindo em reformar o capital com relação a novos recursos (petróleo marinho, nódulos metálicos, matérias alimentares), não exigirão somente uma redistribuição do mundo que mobilizará a máquina de guerra mundial e oporá suas partes em relação aos novos objetivos; assistiremos também provavelmente à formação ou reformação de conjuntos minoritários, em relação com as regiões concernentes. — De maneira geral, as minorias tampouco recebem solução para seu problema por integração, mesmo com axiomas, estatutos, autonomias, independências. Sua tática passa necessariamente por aí; mas, se elas são revolucionárias, é porque trazem um movimento mais profundo que recoloca em questão a axiomática mundial. A potência de minoria, de particularidade, encontra sua figura ou sua consciência universal no proletário. Mas, enquanto a classe trabalhadora se define por um estatuto adquirido ou mesmo por um Estado teoricamente conquistado, ela aparece somente como “capital”, parte do capital (capital variável) e não sai do plano do capital. Quando muito o plano se torna burocrático. Em compensação, é saindo do plano do capital, não parando de sair dele, que uma massa se torna sem cessar revolucionária e destrói o equilíbrio dominante dos conjuntos numeráveis61. Não se entende bem o que seria um Estado-amazona,

É uma das teses essenciais de Tronti, que determinou as novas concepções do “trabalhador-massa” e da relação com o trabalho: “Para lutar contra o capital, a classe trabalhadora deve lutar contra ela mesma enquanto capital; é o estágio máximo da contradição, não para os trabalhadores, mas para os capitalistas. (...). O plano do capital começa a andar em sentido oposto, não mais como desenvolvimento social, mas como processo revolucionário”. Cf. Ouvriers et capital, p. 322; e o que Negri chamou a Crise de VEtat-plan, Feltrinelli. 61

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um Estado de mulheres, ou então um Estado de trabalhadores precários, um Estado do “recusado”. Se as minorias não constituem Estados viáveis, culturalmente, politicamente, economicamente, é porque a forma-Estado não convém, nem a axiomática do capital, nem a cultura correspondente. Viu-se frequentemente o capitalismo sustentar e organizar Estados não viáveis, segundo suas necessidades, e justamente para esmagar as minorias. Do mesmo modo, a questão das minorias é antes abater o capitalismo, redefinir o socialismo, constituir uma máquina de guerra capaz de responder à máquina de guerra mundial, com outros meios. — Se as duas soluções de extermínio e de integração não parecem possíveis, é em virtude da lei mais profunda do capitalismo: ele não para de colocar e repelir seus próprios limites, mas ele não o faz sem que ele próprio suscite fluxos em todos os sentidos que escapam à sua axiomática. Ele não se efetua nos conjuntos numeráveis que lhe servem de modelos sem constituir no mesmo golpe conjuntos não numeráveis que atravessam e convulsionam esses modelos. Ele não opera a “conjugação” dos fluxos descodificados e desterritorializados sem que os fluxos se dirijam ainda para mais longe, escapem tanto à axiomática que os conjuga quanto aos modelos que os reterritorializam, e tendam a entrar em “conexões” que desenham uma nova Terra, que constituem uma máquina de guerra cujo fim não é mais nem a guerra de extermínio nem a paz do terror generalizado, mas o movimento revolucionário (conexão de fluxos, composição de conjuntos não numeráveis, devir-minoritário de todo mundo). Não é uma dispersão ou um esmigalhamento: reencontramos bem mais a oposição de um plano de consistência com o plano de organização e de desenvolvimento do capital, ou com o plano socialista burocrático. Um construtivismo, um “diagramatismo”, opera em cada caso pela determinação das condições de problema e por liames transversais dos problemas entre si: ele se opõe tanto à automação dos axiomas capitalistas quanto à programação burocrática. Nesse sentido, o que chamamos “proposições indecidíveis” não é a incerteza das consequências que pertence necessariamente a todo sistema. É, ao contrário, a coexistência ou a inseparabilidade disso que o sistema conjuga e disso que não para de lhe escapar segundo linhas de fuga elas mesmas conectáveis. O indecidível é por

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excelência o gérmen e o lugar das decisões revolucionárias. Acontece invocarmos a alta tecnologia do sistema mundial de servidão; porém, ou sobretudo, essa servidão maquínica abunda em proposições e movimentos indecidíveis que, longe de reenviar a um saber de especialistas juramentados, dão armas ao devir de todo mundo, devir-rádio, devireletrônico, devir-molecular...62 Não há luta que não se faça através de todas essas proposições indecidíveis, e que não construa conexões revolucionárias contra as conjugações da axiomática. Tradução de Janice Caiafa

É um outro aspecto da situação atual: não mais as novas lutas ligadas ao trabalho e à evolução do trabalho, mas todo o domínio das chamadas “práticas alternativas” e da construção de tais práticas (as rádios livres seriam o exemplo mais simples, mas também as redes comunitárias urbanas, a alternativa à psiquiatria, etc). Sobre todos esses pontos e a ligação entre os dois aspectos, cf. Franco Berardi Bifo, Le ciel est enfin tombe sur la terre, Ed. du Seuil; e Les Untorelli, Ed. Recherches. 62

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Quilt O espaço liso e o espaço estriado, — o espaço nômade e o espaço sedentário, — o espaço onde se desenvolve a máquina de guerra e o espaço instituído pelo aparelho de Estado, — não são da mesma natureza. Por vezes podemos marcar uma oposição simples entre os dois tipos de espaço. Outras vezes devemos indicar

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uma diferença muito mais complexa, que faz com que os termos sucessivos das oposições consideradas não coincidam inteiramente. Outras vezes ainda devemos lembrar que os dois espaços só existem de fato graças às misturas entre si: o espaço liso não para de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um espaço liso. Num caso, organiza-se até mesmo o deserto; no outro, o deserto se propaga e cresce; e os dois ao mesmo tempo. Note-se que as misturas de fato não impedem a distinção de direito, a distinção abstrata entre os dois espaços. Por isso, inclusive, os dois espaços não se comunicam entre si da mesma maneira: a distinção de direito determina as formas de tal ou qual mistura de fato, e o sentido dessa mistura (é um espaço liso que é capturado, envolvido por um espaço estriado, ou é um espaço estriado que se dissolve num espaço liso, que permite que se desenvolva um espaço liso?) Há, portanto, um conjunto de questões simultâneas: as oposições simples entre os dois espaços; as diferenças complexas; as misturas de fato, e passagens de um a outro; as razões da mistura que de modo algum são simétricas, e que fazem com que ora se passe do liso ao estriado, ora do estriado ao liso, graças a movimentos inteiramente diferentes. E preciso, pois, considerar um certo número de modelos, que seriam como que aspectos variáveis dos dois espaços e de suas relações. Modelo tecnológico. — Um tecido apresenta em princípio um certo número de características que permitem defini-lo como espaço estriado. Em primeiro lugar, ele é constituído por dois tipos de elementos paralelos: no caso mais simples, uns são verticais, os outros horizontais, e ambos se entrecruzam perpendicularmente. Em segundo lugar, os dois tipos de elementos não têm a mesma função; uns são fixos, os outros móveis, passando sob e sobre os fixos. Leroi-Gourhan analisou essa figura dos “sólidos flexíveis”, tanto no caso da cestaria como da tecelagem: as montantes e as fibras, a urdidura e a trama1. Em terceiro lugar, um tal espaço estriado está necessariamente delimitado, fechado ao menos de um lado: o tecido pode ser infinito em comprimento, mas não na sua largura, definida pelo quadro da urdidura; a necessidade de um vai-e-vem implica um espaço fechado (e as figuras circulares ou cilíndricas já são elas mesmas fechadas). Enfim, um tal espaço parece apresentar necessariamente um avesso e um direito; mesmo quando os fios da urdidura e

1

Leroi-Gourhan, L’homme et la matière, Albin Michel, pp. 244 ss. (e a oposição do tecido e do feltro).

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os da trama têm exatamente a mesma natureza, o mesmo número e a mesma densidade, a tecelagem reconstitui um avesso ao deixar de um único lado os fios amarrados. Não foi em função de todas essas características que Platão pôde tomar o modelo da tecelagem como paradigma da ciência “regia”, isto é, da arte de governar os homens ou de exercer o aparelho de Estado? Porém, entre os produtos sólidos flexíveis está o feltro, que procede de maneira inteiramente diferente, como um anti-tecido. O feltro não implica distinção alguma entre os fios, nenhum entrecruzamento, mas apenas um emaranhado das fibras, obtido por prensagem (por exemplo, rodando alternativamente o bloco de fibra para frente e para trás). São os microfilamentos das fibras que se emaranham. Um tal conjunto de enredamento não é de modo algum homogêneo: contudo, ele é liso, e se opõe ponto por ponto ao espaço do tecido (é infinito de direito, aberto ou ilimitado em todas as direções; não tem direito nem avesso, nem centro; não estabelece fixos e móveis, mas antes distribui uma variação contínua). Ora, mesmo os tecnólogos que manifestam as maiores dúvidas a respeito do poder de inovação dos nômades, rendem-lhes ao menos a homenagem do feltro: esplêndido isolante, genial invenção, matéria de que é feita a tenda, a vestimenta, a armadura, entre os turco-mongóis. Os nômades da África e do Magreb, sem dúvida, tratam a lã mais como tecido. Mesmo correndo o risco de deslocar a oposição, não haveria duas concepções e até duas práticas muito diferentes da tecedura, que se distinguem um pouco como o próprio tecido e o feltro? Com efeito, no sedentário, o tecido-vestimenta e o tecido-tapeçaria tendem a anexar à casa imóvel ora o corpo, ora o espaço exterior; o tecido integra o corpo e o exterior a um espaço fechado. Ao contrário, o nômade, ao tecer, ajusta a vestimenta e a própria casa ao espaço exterior, ao espaço liso aberto onde o corpo se move. Entre o feltro e o tecido existem muitos abraçamentos, muitas misturas. Não se poderia deslocar ainda uma vez a oposição? Por exemplo, as agulhas tricotam um espaço estriado, e uma das agulhas desempenha o papel de cadeia, e a outra de trama, ainda que alternadamente. O crochê, ao contrário, traça um espaço aberto em todas as direções, prolongável em todos os sentidos, ainda que esse espaço tenha um centro. Ainda mais significativa seria a distinção entre o bordado, com seu tema ou motivo central, e a colcha de retalhos, o patchwork, com seu pedaço por pedaço, seus acréscimos de tecido sucessivos e infinitos. Claro que o bordado pode ser extraordinariamente complexo, nas suas variáveis e constantes, nos seus fixos e móveis. O patchwork, por sua vez, pode apresentar equivalentes de tema, de simetria, de ressonância que o aproximam do bordado. Não obstante, no patchwork o espaço não é de modo algum constituído da

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mesma maneira que no bordado: não há centro; um motivo de base (block) é composto por um elemento único; a repetição desse elemento libera valores unicamente rítmicos, que se distinguem das harmonias do bordado (em especial no crazy patchwork, que ajusta vários pedaços de tamanho, forma e cor variáveis, e que joga com a textura dos tecidos). “Ela trabalhava nisso havia quinze anos, levando-a consigo por toda parte numa sacola informe de brocado, que continha toda uma coleção de pedaços de tecido colorido, com todas as formas possíveis. Ela jamais conseguia decidir-se a dispô-los segundo um modelo definitivo, por isso ela mudava-os, recolocava-os, refletia, mudava-os e recolocavaos novamente, como pedaços de um jogo de paciência nunca terminado, sem recorrer às tesouras, alisando-os com seus dedos suaves...”2 E uma coleção amorfa de pedaços justapostos, cuja junção pode ser feita de infinitas maneiras: como veremos, o patchwork é literalmente um espaço riemaniano, ou, melhor, o inverso. Donde a constituição de grupos de trabalho muito particulares na própria fabricação do patchwork (a importância do quilting party na América, e seu papel do ponto de vista de uma coletividade feminina). O espaço liso do patchwork mostra bastante bem que “liso” não quer dizer homogêneo; ao contrário, é um espaço amorfo, informal, e que prefigura a op art. Uma história particularmente interessante a esse respeito seria a do acolchoado, a do Quilt. Chama-se quilt a reunião de duas espessuras de tecidos pespontados conjuntamente, entre os quais introduz-se frequentemente um enchimento. Daí a possibilidade de que não haja direito nem avesso. Ora, quando se segue a história do quilt numa curta sequência de migração (os colonos que deixam a Europa pelo Novo Mundo), percebese que se passa de uma fórmula onde o bordado domina (quilts ditos “ordinários”) a uma fórmula patchwork (“quilts de aplicações” e sobretudo “quilts de pedaços afastados”). Com efeito, se os primeiros colonos do século XVII levam seus quilts ordinários, espaços bordados e estriados de uma extrema beleza, cada vez mais desenvolvem uma técnica em patchwork no final do século XVII, primeiramente devido à penúria têxtil (restos de tecidos, pedaços de roupas usadas recuperados, utilização das sobras recolhidas no “saco de retalhos''), depois em virtude do sucesso da indumentária em algodão dos índios. K como se um espaço liso se destacasse, saísse de um espaço estriado, mas havendo uma correlação entre ambos, um retomando o outro, este atravessando aquele e, no entanto, persistindo uma diferença complexa. Em conformidade com a migração e seu grau de afinidade com o nomadismo,

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Faulkner, Sartoris, Gallimard, p. 136.

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o patchwork tomará não apenas nomes de trajetos, mas “representará” trajetos, será inseparável da velocidade ou do movimento num espaço aberto3. Modelo musical. — Foi Pierre Boulez quem primeiro desenvolveu um conjunto de oposições simples e de diferenças complexas, mas também de correlações recíprocas não simétricas, entre espaço liso e espaço estriado. Criou esses conceitos e esses termos no campo musical, e os definiu justamente em diversos níveis, a fim de dar conta ao mesmo tempo da distinção abstrata e das misturas concretas. No nível mais simples, Boulez diz que num espaço-tempo liso ocupa-se sem contar, ao passo que num espaçotempo estriado conta-se a fim de ocupar. Desse modo, ele torna sensível ou perceptível a diferença entre multiplicidades não métricas e multiplicidades métricas, entre espaços direcionais e espaços dimensionais. Torna-os sonoros e musicais. Sua obra pessoal sem dúvida é feita com essas relações criadas, recriadas musicalmente4. Num segundo nível, cabe dizer que o espaço pode sofrer dois tipos de corte: um, definido por um padrão, o outro, irregular e não determinado, podendo efetuar-se onde se quiser. Num terceiro nível ainda, convém dizer que as frequências podem distribuir-se em intervalos, entre cortes, ou distribuir-se estatisticamente, sem corte: no primeiro caso será chamada “módulo” a razão de distribuição dos cortes e intervalos, razão que pode ser constante e fixa (espaço estriado reto), ou variável, de maneira regular ou irregular (espaços estriados curvos, focalizados se o módulo for variável regularmente, não focalizados se for irregular). Mas quando não há módulo, a distribuição das frequências não tem corte: torna-se “estatística”, numa porção de espaço, por pequeno que seja; nem por isso deixa de ter dois aspectos, dependendo se a distribuição é igual (espaço liso não dirigido), ou mais ou menos raro, mais ou menos denso (espaço liso dirigido). No espaço liso sem corte nem módulo, pode-se dizer que não há intervalo? Ou, ao

Sobre essa história do quilt c cio patchwork na imigração americana, cf. Jonathan Holstein, Quilts, Musée des arts décoratifs, 1972 (com reproduções e bibliografia). Holstein não pretende que o quilt seja a fonte principal da arte americana, mas nota a que ponto pôde inspirar ou relançar certas tendências da pintura americana: de um lado, com o “branco sobre branco” dos quilts ordinários, de outro, com as composições-patchwork (“nelas encontram-se efeitos o/;, imagens em série, o emprego de campos coloridos, uma compreensão real do espaço negativo, a maneira da abstração formal, etc”, p. 12). 3

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Pierre Boulez, Penser la musique aujord’hui, Médiations, pp. 95 ss. Resumimos a análise de Boulez no parágrafo seguinte.

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contrário, tudo aí se tornou intervalo, intermezzo? O liso é um nomos, ao passo que o estriado tem sempre um logos, a oitava, por exemplo. A preocupação de Boulez é a comunicação entre dois tipos de espaço, suas alternâncias e superposições: como “um espaço liso fortemente dirigido tenderá a se confundir com um espaço estriado”, como um “espaço estriado, em que a distribuição estatística das alturas utilizadas de fato se dá por igual, tenderá a se confundir com um espaço liso”; como a oitava pode ser substituída por “escalas não oitavantes”, reproduzindo-se segundo um princípio de espiral; como a “textura” pode ser trabalhada de modo a perder seus valores fixos e homogêneos para tornar-se um suporte de deslizamentos no tempo, de deslocamentos nos intervalos, de transformações son’art comparáveis às da op art. Para voltar à oposição simples, o estriado é o que entrecruza fixos e variáveis, ordena e faz sucederem-se formas distintas, organiza as linhas melódicas horizontais e os planos harmônicos verticais. O liso é a variação contínua, é o desenvolvimento contínuo da forma, é a fusão da harmonia e da melodia em favor de um desprendimento de valores propriamente rítmicos, o puro traçado de uma diagonal através da vertical e horizontal. Modelo marítimo. — Certamente, tanto no espaço estriado como no espaço liso existem pontos, linhas e superfícies (também volumes, mas, por enquanto, deixemos essa questão de lado). Ora, no espaço estriado, as linhas, os trajetos têm tendência a ficar subordinados aos pontos: vai-se de um ponto a outro. No liso, é o inverso: os pontos estão subordinados ao trajeto. Já era o vetor vestimenta-tenda-espaço do fora, nos nômades. É a subordinação do hábitat ao percurso, a conformação do espaço do dentro ao espaço do fora: a tenda, o iglu, o barco. Tanto no liso como no estriado há paradas e trajetos; mas, no espaço liso, é o trajeto que provoca a parada, uma vez mais o intervalo toma tudo, o intervalo é substância (donde os valores rítmicos)5 No espaço liso, portanto, a linha é um vetor, uma direção c não uma dimensão ou uma determinação métrica. É um espaço construído graças às operações locais com mudanças de

Sobre esse atrelamento do dentro ao fora, nos nômades do deserto, cf. Annie Milovanoff, “La seconde.peau du nômade”. F. sobre as relações do iglu com o fora, nos nômades do gelo, Edmund Carpenter, Eskimo. 5

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direção. Tais mudanças de direção podem ser devidas à natureza mesma do percurso, como entre os nômades do arquipélago (caso de um espaço liso “dirigido”); mas podem dever-se, todavia mais, à variabilidade do alvo ou do ponto a ser atingido, como entre os nômades do deserto, que vão em direção a uma vegetação local e temporária (espaço liso “não dirigido”). Dirigido ou não, e sobretudo no segundo caso, o espaço liso é direcional, e não dimensional ou métrico. O espaço liso é ocupado por acontecimentos ou hecceidades, muito mais do que por coisas formadas e percebidas. É um espaço de afectos, mais que de propriedades. É uma percepção háptica, mais do que óptica. Enquanto no espaço estriado as formas organizam uma matéria, no liso materiais assinalam forças ou lhes servem de sintomas. É um espaço intensivo, mais do que extensivo, de distâncias e não de medidas. Spatium intenso em vez de Extensio. Corpo sem órgãos, em vez de organismo e de organização. Nele a percepção é feita de sintomas e avaliações mais do que de medidas e propriedades. Por isso, o que ocupa o espaço liso são as intensidades, os ventos e ruídos, as forças e as qualidades tácteis e sonoras, como no deserto, na estepe ou no gelo6. Estalido do gelo e canto das areias. O que cobre o espaço estriado, ao contrário, é o céu como medida, e as qualidades visuais mensuráveis que derivam dele. É aqui que se colocaria o problema muito especial do mar, pois este é o espaço liso por excelência e, contudo, é o que mais cedo se viu confrontado às exigências de uma estriagem cada vez mais estrita. O problema não se coloca nas proximidades da terra. Ao contrário, a estriagem dos mares se produziu na navegação de longo curso. O espaço marítimo foi esfriado em função de duas conquistas, astronômica e geográfica: o ponto, que se obtém por um conjunto de cálculos a partir de uma observação exata dos astros e do sol; o mapa, que entrecruza meridianos e paralelos, longitudes e latitudes, esquadrinhando, assim, regiões conhecidas ou desconhecidas (como uma tabela de Mendeleiev). Será preciso, segundo a tese portuguesa, assinalar uma guinada por volta de 1440, que teria marcado uma primeira estriagem decisiva, tornando possíveis os grandes descobrimentos? Preferimos seguir Pierre Chaunu, quando invoca uma longa duração em que o liso e o esfriado se afrontam no mar, e a estriagem se estabelece progressivamente7. Com efeito, antes da determinação

As duas descrições convergentes do espaço de gelo e do espaço de areia: E. Carpenter, Eskimo, e W. Thesiger, Le désert des déserts (no dois casos, indiferença à astronomia). 6

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Cf. a explanação de Pierre Chaunu, L’expansion européenne du XIIIe auI XV siecle, pp. 2S8-.505.

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muito tardia das longitudes, há toda uma navegação nômade empírica e complexa que faz intervir ventos, ruídos, cores e sons do mar; depois, uma navegação direcional, préastronômica e já astronômica, que procede por uma geometria operatória, baseada ainda unicamente na latitude, sem possibilidade de “assinalar o ponto”, só dispõe de portulanos e não de verdadeiros mapas, sem “generalização traduzível”; e os progressos dessa navegação astronômica primitiva, primeiro nas condições especiais de latitude do oceano Indico, depois nos circuitos elípticos do Atlântico (espaços retos e curvos)8. É como se o mar tivesse sido não apenas o arquétipo de todos os espaços lisos, mas o primeiro desses espaços a sofrer uma estriagem que o tomava progressivamente, e o esquadrinhava aqui ou ali, de um lado, depois do outro. As cidades comerciantes participaram dessa estriagem, com frequência inovaram, mas apenas os Estados podiam conduzi-la a bom termo, elevá-la ao nível global de uma “política da ciência”9. Gradualmente, instaurou-se um dimensional, que subordinava o direcional ou se superpunha a ele. Sem dúvida, é por isso que o mar, arquétipo do espaço liso, foi também o arquétipo de todas as estriagens do espaço liso: estriagem do deserto, estriagem do ar, estriagem da estratosfera (que permite a Virilio falar de um “litoral vertical” como mudança de direção). E no mar que pela primeira vez o espaço liso foi domado, e se encontrou um modelo de ordenação, de imposição do estriado, válido para outros lugares. O que não contradiz a outra hipótese de Virilio: ao término de seu esfriamento, o mar restitui uma espécie de espaço liso, ocupado pelo fleet in being e, mais tarde, pelo movimento perpétuo do submarino estratégico, extravasando todo esquadrinhamento, inventando um neo-nomadismo a serviço de uma máquina de guerra todavia mais inquietante que os Estados que a reconstituem no limite de seus estriamentos. O mar, em seguida o ar e a estratosfera ressurgem como espaços lisos, mas para melhor controlar a terra estriada, na mais estranha das reviravoltas10. O espaço liso dispõe sempre de uma potência de desterritorialização superior ao estriado. Quando há interesse pelos novos ofícios e mesmo pelas novas classes, como não interrogar-se a respeito desses técnicos militares que dia e noite vigiam

Especialmente Paul Adam, “Navigation primitive et navigation astronomique”, in Colloques d’histoire marítimo V (cf. a geometria operatória da estrela polar). 8

9

Guy Beaujouan, ibid.

Paul Virilio, l.’insecurité du territoire: sobre como o mar torna a produzir um espaço liso com o fleet in being, etc; e sobre como se destaca um espaço liso vertical, de dominação aérea e estratosférica (especialmente o cap. IV, “Le littoral vertical”). 10

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telas de radar, que habitam ou habitarão por muito tempo submarinos estratégicos e satélites, e que olhos, que ouvidos de apocalipse forjam para si, pois já mal são capazes de distinguir um fenômeno físico, um voo de gafanhoto, um ataque “inimigo” procedente de um ponto qualquer? Tudo isso não só para lembrar que o próprio liso pode ser traçado e ocupado por potências de organização diabólicas, mas para mostrar, sobretudo, independemente de qualquer juízo de valor, que há dois movimentos não simétricos, um que estria o liso, mas o outro que restitui o liso a partir do estriado. (Mesmo em relação ao espaço liso de uma organização mundial, não existiriam igualmente novos espaços lisos, ou espaços esburacados, nascidos à guisa de defensiva? Virilio invoca os começos de um hábitat subterrâneo, na “espessura mineral”, e que pode ter valores muito diversos). Voltemos à oposição simples entre o liso e o estriado, pois ainda não estamos em condições de considerar as misturas concretas e dissimétricas. O liso e o estriado se distinguem em primeiro lugar pela relação inversa do ponto e da linha (a linha entre dois pontos no caso do estriado, o ponto entre duas linhas no caso do liso). Em segundo lugar, pela natureza da linha (liso-direcional, intervalos abertos; estriado-dimensional, intervalos fechados). Há, enfim, uma terceira diferença que concerne à superfície ou ao espaço. No espaço estriado, fecha-se uma superfície, a ser “repartida” segundo intervalos determinados, conforme cortes assinalados; no liso, “distribui-se” num espaço aberto, conforme frequências e ao longo dos percursos (logos e nomos11). Porém, por mais simples que seja, não é fácil situar a oposição. Não é possível contentar-se em opor imediatamente o solo liso do pecuarista-nômade e a terra esfriada do cultivador sedentário. E evidente que o camponês, mesmo sedentário, participa plenamente do espaço dos ventos, das qualidades sonoras e tácteis. Quando os gregos antigos falam do espaço aberto do nomos, não delimitado, não repartido, campo pré-urbano, flanco de montanha, platô, estepe, não o opõem à agricultura, que, ao contrário, pode fazer parte do nomos; eles o opõem à polis, à urbe, à cidade. Quando Ibn Khaldoun fala da Badiya, da beduinidade, esta compreende tanto os cultivadores quanto os pecuaristas nômades: ele a opõe a Hadara, isto é, à “citadinidade”. Essa precisão é certamente importante; no entanto, não

E. Laroche marca bem a diferença entre a ideia de distribuição e a de partilha, entre os dois grupos linguísticos a esse respeito, entre os dois gêneros de espaço, entre o polo “província” e o polo “cidade”. 11

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muda muita coisa, pois desde os tempos mais remotos, seja no neolítico e mesmo no paleolítico, é a cidade que inventa a agricultura: é sob a ação cia cidade que o agricultor, e seu espaço estriado, se superpõem ao cultivador em espaço ainda liso (cultivador transumante, meio-sedentário ou já sedentário). Desse modo, podemos reencontrar nesse nível a oposição simples que antes recusávamos, entre agricultores e nômades, entre terra estriada e solo liso: mas passando pelo desvio da cidade, enquanto força de estriagem. Portanto, não é apenas no mar, no deserto, na estepe, no ar que está em jogo o liso e o estriado; é na própria terra, conforme se trate de uma cultura em espaço-nomos, ou de uma agricultura em espaço-cidade. Bem mais: não seria preciso dizer o mesmo da cidade? Ao contrário do mar, ela é o espaço estriado por excelência; porém, assim como o mar é o espaço liso que se deixa fundamentalmente esfriar, a cidade seria a força de estriagem que restituiria, que novamente praticaria espaço liso por toda parte, na terra e em outros elementos — fora da própria cidade, mas também nela mesma. A cidade libera espaços lisos, que já não são só os da organização mundial, mas os de um revide que combina o liso e o esburacado, voltando-se contra a cidade: imensas favelas móveis, temporárias, de nômades e trogloditas, restos de metal e de tecido, patchwork, que já nem sequer são afetados pelas estriagens do dinheiro, do trabalho ou da habitação. Uma miséria explosiva, que a cidade secreta, c que corresponderia à fórmula matemática de Thom: “um alisamento retroativo”12. Força condensada, potencialidade de um revide? Portanto, a cada vez a oposição simples “liso-estriado” nos remete a complicações, alternâncias e superposições muito mais difíceis. Mas essas complicações só fazem confirmar a distinção, justamente porque colocam em jogo movimentos dissimétricos. Por ora, seria preciso dizer simplesmente que existem dois tipos de viagem, que se distinguem segundo o papel respectivo do ponto, da linha e do espaço. Viagem-Goethe e viagem-Kleist? Viagem francesa e viagem inglesa (ou americana)? Viagem-árvore e viagemrizoma? Mas nada coincide inteiramente, e além disso tudo se mistura, ou passa de um para outro. É que as diferenças não são objetivas; pode-se habitar os desertos, as estepes ou os mares de um modo esfriado; pode-se habitar de um modo liso inclusive as cidades, ser um nômade das cidades (por exemplo, um passeio de Miller, em Clichy ou no Brooklin, é

Esta expressão aparece em René Thom, que a emprega em relação com uma variação contínua onde a variável reage sobre seus antecedentes: Modeles mathématiques de la morphogenese, 10-18, pp. 2 1 8-2 19. 12

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um percurso nômade em espaço liso, faz com que a cidade vomite um patchwork, diferenciais de velocidade, retardos e acelerações, mudanças de orientação, variações contínuas... Os beatniks devem muito a Miller, embora tenham modificado a orientação, fazendo um novo uso do espaço fora das cidades). Há muito tempo Fitzgerald dizia: não se trata de partir para os mares do Sul, não é isso que determina a viagem. Não só existem estranhas viagens numa cidade, também existem viagens no mesmo lugar; não estamos pensando nos drogados, cuja experiência é por demais ambígua, mas antes nos verdadeiros nômades. É a propósito desses nômades que se pode dizer, como o sugere Toynbee: eles não se movem. São nômades por mais que não se movam, não migrem, são nômades por manterem um espaço liso que se recusam a abandonar, e que só abandonam para conquistar e morrer. Viagem no mesmo lugar, esse é o nome de todas as intensidades, mesmo que elas se desenvolvam também em extensão. Pensar é viajar, e tentamos anteriormente erigir um modelo tecnológico dos espaços lisos e esfriados. Em suma, o que distingue as viagens não é a qualidade objetiva dos lugares, nem a quantidade mensurável do movimento — nem algo que estaria unicamente no espírito — mas o modo de espacialização, a maneira de estar no espaço, de ser no espaço. Viajar de modo liso ou estriado, assim como pensar... Mas sempre as passagens de um a outro, as transformações de um no outro, as reviravoltas. No filme No decorrer do tempo, Wenders faz com que se entrecruzem e superponham os percursos de dois personagens, um que faz uma viagem ainda goetheana, cultural, memorial, “educativa”, esfriada por toda parte, enquanto o outro já conquistou um espaço liso, feito apenas de experimentação e amnésia, no “deserto” alemão. Mas, estranhamente, é o primeiro que abre para si o espaço e opera uma espécie de alisamento retroativo, ao passo que sobre o segundo novamente formam-se estrias, tornando a fechar seu espaço. Viajar de modo liso é todo um devir, e ainda um devir difícil, incerto. Não se trata de voltar à navegação pré-astronômica, nem aos antigos nômades. É hoje, e nos sentidos os mais diversos, que prossegue o afrontamento entre o liso e estriado, as passagens, alternâncias, e superposições. Modelo matemático. — Foi um acontecimento decisivo quando o matemático Riemann arrancou o múltiplo de seu estado de predicado, para convertê-lo num substantivo, “multiplicidade”. Era o fim da dialética, em favor de uma topologia e uma topologia das multiplicidades. Cada multiplicidade se definia por n determinações, mas ora as determinações eram

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independentes da situação, ora dela dependiam. Por exemplo, pode-se comparar a extensão da linha vertical entre dois pontos e a extensão da linha horizontal entre dois outros: percebe-se como a multiplicidade aqui é métrica, ao mesmo tempo em que se deixa estriar, e que as determinações são grandezas. Em compensação, não se pode comparar a diferença entre dois sons de altura igual e intensidade distinta com dois sons de intensidade igual e de altura distinta; nesse caso só é possível comparar duas determinações se “uma é parte da outra, contentando-nos então em julgar que esta é menor que aquela, sem poder dizer em quanto”13¹³. Essas segundas multiplicidades não são métricas, e só se deixam estriar e medir por meios indiretos, aos quais não deixam de resistir. São anexatas e, contudo, rigorosas. Meinong e RusselI invocavam a noção de distância, e a opunham à de grandeza (magnitude).14 As distâncias não são, para falar com propriedade, indivisíveis: deixam-se dividir, precisamente no caso em que uma determinação está em situação de ser parte da outra. Mas, contrariamente às grandezas, elas não se dividem sem mudar de natureza a cada vez. Uma intensidade, por exemplo, não é composta por grandezas adicionáveis e deslocáveis: uma temperatura não é a soma de duas temperaturas menores, uma velocidade não é a soma de duas velocidades menores. Mas cada intensidade, sendo ela mesma uma diferença, se divide segundo uma ordem na qual cada termo da divisão se distingue do outro por sua natureza. A distância é, pois, um conjunto de diferenças ordenadas, isto é, envolvidas umas nas outras, de maneira tal que se pode avaliar qual é maior e menor, independentemente de uma grandeza exata. O movimento, por exemplo, será dividido em galope, trote e passo, mas de tal modo que o dividido mude de natureza a cada momento da divisão, sem que um desses momentos entre na composição do outro. Nesse sentido, essas multiplicidades de “distância” são inseparáveis de um processo de variação contínua, ao passo que as multiplicidades de “grandeza”, ao contrário, repartem fixos e variáveis. Por isso, parece-nos que Bergson (muito mais que Husserl, ou mesmo que Meinong e Russell) teve uma grande

Sobre a apresentação das multiplicidades de Riemann e de Helmholtz, cf. Jules Vuillemin, Philosophie de l’algèbre, PUF, pp. 409 ss. 13

Cf. Russell, The Principies of Mathematics, Allen ed., cap. XXXI. A explanação que segue não se conforma à teoria de Russell. Encontra-se uma excelente análise das noções de distância e de grandeza segundo Meinong e Russell em Albert Spaier, La pensée et Ia quantité, Alcan. 14

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importância no desenvolvimento da teoria das multiplicidades. Pois desde o Essaisur les donnces immediates, a duração é apresentada como um tipo de multiplicidade, que se opõe à multiplicidade métrica ou de grandeza. É que a duração não é de modo algum o indivisível, mas aquilo que só se divide mudando de natureza a cada divisão (a corrida de Aquiles se divide em passos, mas justamente esses passos não a compõem como grandezas)15. Em contrapartida, numa multiplicidade concebida como extensão homogênea, a divisão sempre pode ser levada tão longe quanto se quiser, sem que nada mude no objeto constante; ou então as grandezas podem variar sem outro efeito senão um aumento ou uma diminuição do espaço que esfriam. Bergson distinguia, pois, “dois tipos bem diferentes de multiplicidade”, uma qualitativa e de fusão, contínua; a outra, numérica e homogênea, discreta. É de se notar que a matéria opera uma espécie de vaivém entre as duas, ora ainda envolvida na multiplicidade qualitativa, ora já desenvolvida num “esquema” métrico que a impele para fora de si mesma. A confrontação de Bergson com Einstein, do ponto de vista da Relatividade, continua incompreensível se não for reportada à teoria de base das multiplicidades riemanianas, tal como Bergson a transforma. Sucedeu-nos com frequência encontrar todo tipo de diferenças entre dois tipos de multiplicidades: métricas e não métricas; extensivas e qualitativas; centradas e acentradas; arborescentes e rizomáticas; numerárias e planas; dimensionais e direcionais; de massa e de malta; de grandeza e de distância; de corte e de frequência; esfriadas e lisas. Não só o que povoa um espaço liso é uma multiplicidade que muda de natureza ao dividir-se — é o caso das tribos no deserto: distâncias que se modificam constantemente, maltas que não param de se metamorfosear —, mas o próprio espaço liso, deserto, estepe, mar ou gelo, é uma multiplicidade desse tipo, não métrica, acentrada, direcional, etc. Ora, poderia se pensar que o Número pertence exclusivamente ao primeiro tipo de multiplicidades, e que lhes proporciona o estatuto científico de que são privadas as multiplicidades não métricas. Mas isto só é verdade em parte. É certo que o número é o correlato da

A partir do capítulo II do Essai, Bergson emprega repetidamente o substantivo “multiplicidade”, em condições que deveriam despertar a atenção dos comentadores: a referência implícita a Riemann não nos parece oferecer dúvidas. Em Matière et ménioire, ele explicará que a corrida ou mesmo o passo de Aquiles se dividem perfeitamente em “submúltiplos”, mas que diferem em natureza daquilo que dividem; o mesmo ocorre com o passo da tartaruga; e “em ambos os casos”, a natureza dos submúltiplos é distinta. 15

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métrica: as grandezas só estriam o espaço remetendo a números e, inversamente, os números chegam a exprimir relações cada vez mais complexas entre grandezas, suscitando por essa via espaços ideais que reforçam a estriagem e a tornam coextensiva a toda a matéria. Existe, portanto, uma correlação que constitui a ciência maior, entre a geometria e a aritmética, a geometria e a álgebra, no seio das multiplicidades métricas (os autores mais profundos a esse respeito são aqueles que viram, desde as formas mais simples, que o número possuía aqui um caráter exclusivamente cardinal, e a unidade um caráter essencialmente divisível16). Diríamos, em compensação, que as multiplicidades não métricas ou de espaço liso só remetem a uma geometria menor, puramente operatória e qualitativa, onde o cálculo é necessariamente muito limitado, onde as operações locais sequer são capazes de uma tradutibilidade geral, ou de um sistema homogêneo de referência. Contudo, essa “inferioridade” é apenas aparente; pois essa independência de uma geometria quase analfabeta, amétrica, torna possível, por sua vez, uma independência do número que já não tem por função medir grandezas no espaço esfriado (ou a se esfriar). O próprio número se distribui no espaço liso, já não se divide sem mudar de natureza a cada vez, sem mudar de unidade, cada uma das quais representando uma distância e não uma grandeza. É o número articulado, nômade, direcional, ordinal, o número numerante que remete ao espaço liso, assim como o número numerado remetia ao espaço estriado. Por isso, de toda multiplicidade deve-se dizer: já é número, todavia é unidade. Mas não é o mesmo número nos dois casos, nem a mesma unidade, nem a mesma maneira pela qual a unidade se divide. E a ciência menor nunca deixará de enriquecer a maior, comunicando-lhe sua intuição, seu andamento, sua itinerância, seu sentido e seu gosto pela matéria, pela singularidade, pela variação, pela geometria intuicionista e pelo número numerante. Mas só consideramos até agora um primeiro aspecto das multiplicidades lisas ou não métricas, por oposição às métricas: como uma determinação pode estar em situação de fazer parte de uma outra, sem que se possa assinalar uma grandeza exata nem uma unidade comum, nem uma indiferença à situação. É o caráter envolvente ou envolvido do espaço liso. Porém

Cf. Bergson, Essai, Ed. du Centenaire, p. 56: se uma multiplicidade “implica a possibilidade de tratar um número qualquer como uma unidade provisória que se acrescentaria a ela mesma, inversamente, por sua vez, as unidades são verdadeiros números, tão grandes quanto se quiser, que se consideram, porém, como provisoriamente indecomponíveis para os compor entre si”. 16

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justamente o segundo aspecto é mais importante: quando a própria situação de duas determinações exclui sua comparação. Sabemos que esse é o caso dos espaços riemanianos, ou antes das porções riemanianas de espaço, uns em relação aos outros: “Os espaços de Riemann são desprovidos de qualquer espécie de homogeneidade. Cada um deles é caracterizado pela forma da expressão que define o quadrado da distância entre dois pontos infinitamente próximos. (...). Disso resulta que dois observadores vizinhos podem referir, num espaço de Riemann, os pontos que estão em sua vizinhança imediata, mas não podem, sem uma nova convenção, situar-se um em relação ao outro. Cada vizinhança é, pois, como uma pequena porção de espaço euclidiano, mas a ligação de uma vizinhança à vizinhança seguinte não está definida e pode ser feita de uma infinidade de maneiras. O espaço de Riemann mais geral apresenta-se, assim, como uma coleção amorfa de porções justapostas, que não estão atadas umas às outras”; e é possível definir essa multiplicidade independentemente de qualquer referência a uma métrica, mediante condições de frequência, ou antes de acumulação, válidas para um conjunto de vizinhanças, condições inteiramente distintas daquelas que determinam os espaços métricos e seus cortes (mesmo que disso derive uma relação entre os dois tipos de espaço17). Em suma, caso se siga esta belíssima descrição de Lautman, o espaço riemaniano é um puro patchwork. Tem conexões ou relações tácteis. Tem valores rítmicos que não se encontram em outra parte, ainda que possam ser traduzidos num espaço métrico. Heterogêneo, em variação contínua, é um espaço liso enquanto amorfo, não homogêneo. Definimos, pois, um duplo caráter positivo do espaço liso em geral: de um lado, quando as determinações que fazem parte uma da outra remetem a distâncias envolvidas ou a diferenças ordenadas, independentemente da grandeza; de outro lado, quando surgem determinações que não podem fazer parte uma da outra, e que se conectam por processos de frequência ou acumulação, independentemente da métrica. São os dois aspectos do nomos do espaço liso. Contudo, encontraremos sempre uma necessidade dissimétrica de passar do liso ao esfriado, bem como do esfriado ao liso. Se é verdade que a geometria itinerante e o número nômade dos espaços lisos não param de inspirar a ciência regia do espaço esfriado, inversamente, a métrica dos espaços esfriados (metron) é indispensável para traduzir os elementos estranhos de uma multiplicidade lisa. Ora, traduzir não é um ato simples; não basta

17

Albert Lautman, Les schémas de structure, Hermann, pp. 2.3, 34-35.

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substituir o movimento pelo espaço percorrido, é preciso uma série de operações ricas e complexas (e Bergson foi o primeiro a dizê-lo). Tampouco é um ato secundário. Traduzir é uma operação que, sem dúvida, consiste em domar, sobrecodificar, metrificar o espaço liso, neutralizá-lo, mas consiste, igualmente, em proporcionar-lhe um meio de propagação, de extensão, de refração, de renovação, de impulso, sem o qual ele talvez morresse por si só: como uma máscara, sem a qual não poderia haver respiração nem forma geral de expressão. A ciência maior tem perpetuamente necessidade de uma inspiração que procede da menor; mas a ciência menor não seria nada se não afrontasse às mais altas exigências científicas, e se não passasse por elas. Vejamos apenas dois exemplos da riqueza e necessidade das traduções, que comportam tantas oportunidades de abertura quantos riscos de fechamento ou de parada. Primeiro, a complexidade dos meios graças aos quais se traduz intensidades em quantidades extensivas ou, mais geralmente, multiplicidades de distância em sistemas de grandezas que os mensuram e os esfriam (função dos logaritmos a esse respeito). De outro lado, e sobretudo, a fineza e complexidade dos meios pelos quais as porções riemanianas de espaço liso recebem uma conjunção euclidiana (função de um paralelismo dos vetores numa estriagem infinitesimal)18 . Não se deve confundir a conexão própria das porções de espaço riemanianos (“acumulação”) com essa conjunção euclidiana do espaço de Riemann (“paralelismo”). Contudo, ambos estão ligados, se relançam. Nunca nada se acaba: a maneira pela qual um espaço se deixa estriar, mas também a maneira pela qual um espaço estriado restitui o liso, com valores, alcances e signos eventualmente muito diferentes. Talvez seja preciso dizer que todo progresso se faz por e no espaço estriado, mas é no espaço liso que se produz todo devir. Seria possível dar uma definição matemática muito geral dos espaços lisos? Parece que os “objetos fractais”, de Benoit Mandelbrot, vão nessa direção. São conjuntos cujo número de dimensões é fracionário ou não inteiro, ou então inteiro, mas com variação contínua de direção. Por exemplo, um segmento cujo terço principal é substituído pelo ângulo de um triângulo equilátero, repetindo em seguida a operação em cada um dos quatro segmentos, etc, ao infinito, segundo uma relação de homotetia — um tal segmento constituirá uma linha ou curva infinita de dimensão superior a 1, mas inferior à superfície (=2). Resultados semelhantes podem ser obtidos por esburaca-mento, suprimindo “vãos” a partir de um círculo, em

18

Sobre esta conjunção propriamente euclidiana (muito diferente do processo de acumulação), cf. Lautman, pp. 45-48.

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A curva de Van Koch: mais que uma linha, me-

A esponja de Sierpinsky: mais que uma super-

nos que uma superfície! O segmento AE (1) é

fície, menos que um volume! A lei de esvazia-

amputado de seu segundo terço, o qual é substi-

mento desse cubo é intuitiva, apreensível num

tuído pelo triângulo BCD (2). Em (3) repete-se

simples golpe de vista: cada buraco quadrado

esta operação sobre cada um dos segmentos AB,

está rodeado por oito buracos com um terço de

BC, CD e DK, separadamente. Obtém-se um tra-

sua dimensão: esses oito buracos estão rodeados

çado anguloso, onde todos os segmentos são

por outros oito buracos, também um terço me-

iguais. Sobre cada um desses segmentos repete-

nores. E assim, sucessivamente, indefinidamente.

se uma terceira vez (4) a operação anterior (2) e

O desenhista não pôde representar a infinidade

(3); e assim, sucessivamente, ao infinito. Obtém-

de buracos cada vez mais minúsculos para além

se, no limite, uma “curva” feita por um número

da quarta ordem, mas é evidente que esse cubo

infinito de pontos angulosos e que não admite

acaba sendo infinitamente oco, seu volume total

tangente em qualquer de seus pontos. O compri-

tende a zero, ao passo que a superfície total late-

mento dessa curva é infinito e sua dimensão é

ral dos esvaziamentos cresce ao infinito. A dimen-

superior a um: ela representa um espaço de di-

são desse “espaço” é 2,7268. Está, pois, “compre-

mensão 1,261859 (exatamente log 4/log 3).

endido” entre uma superfície (de dimensão 2) e um volume (de dimensão 3). O “tapete de Sierpinsky” é uma das faces desse cubo, enquanto os esvaziamentos são quadrados e a dimensão dessa “superfície” é de 1,2618. (Reproduzido de Studies in Geometry, de Leonard Blumenthal e Karl Mayer, Freeman and Company, 1970).

A propósito dos “objetos fractais” de B. Mandelbrot vez de acrescentar “cabeças” a partir de um triângulo; do mesmo modo, um cubo que se esburaca segundo um princípio de homotetia torna-se menos que um volume e mais que uma superfície (é a apresentação matemática da afinidade entre um espaço livre e um espaço esburacado). Sob outras formas ainda, o movimento browniano, a turbulência, a abóbada celeste são outros tantos “objetos fractais”. 19 Talvez dispuséssemos assim de uma nova maneira para definir os conjuntos vagos. Mas, sobretudo, o espaço liso recebe assim uma determinação geral, que explica suas diferenças e relações com o 19

Benoît Mandelbrot, Les objets fractais, Flammarion.

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estriado: 1) será chamado estriado ou métrico todo conjunto que possuir um número inteiro de dimensões, e onde se possam assinalar direções constantes; 2) o espaço liso não métrico se constitui por construção de uma linha de dimensão fracionária superior a 1, de uma superfície de dimensão fracionária superior a 2; 3) o número fracionário de dimensões é o índice de um espaço propriamente direcional (com variação contínua de direção, sem tangente); 4) o espaço liso se define desde logo pelo fato de não possuir dimensão suplementar àquela que o percorre ou nele se inscreve: nesse sentido, é uma multiplicidade plana, por exemplo uma linha, que, enquanto tal, preenche um plano; 5) o próprio espaço e o que ocupa o espaço tendem a identificar-se, ter a mesma potência, sob a forma anexata e, no entanto, rigorosa do número numerante ou não inteiro (ocupar sem contar); 6) um tal espaço liso, amorfo, se constitui por acumulação de vizinhanças, e cada acumulação define uma zona de indiscernibilidade própria ao “devir” (mais que uma linha e menos que uma superfície, menos que um volume e mais que uma superfície). Modelo físico. — Através dos diferentes modelos, uma certa ideia da estriagem se confirma: duas séries de paralelas, que se entrecruzam perpendicularmente, e das quais algumas, verticais, desempenham mais a função de fixas ou constantes, as outras, horizontais, mais a função de variáveis. Muito grosseiramente, é o caso da urdidura e da trama, da harmonia e da melodia, da longitude e da latitude. Quanto mais regular é o entrecruzamento, tanto mais cerrada é a estriagem, mais o espaço tende a tornar-se homogêneo: é nesse sentido que a homogeneidade nos pareceu ser, desde o início, não o caráter do espaço liso, mas exatamente o contrário, o resultado final da estriagem, ou a forma-limite de um espaço estriado por toda parte, em todas as direções. E se o liso e o homogêneo aparentemente se comunicam, é somente porque o estriado não chega a seu ideal de homogeneidade perfeita sem que esteja prestes a produzir novamente o liso, seguindo um movimento que se superpõe àquele do homogêneo, mas permanece inteiramente diferente dele. Em cada modelo, com efeito, o liso nos pareceu pertencer a uma heterogeneidade de base: feltro ou patchwork e não tecelagem, valores rítmicos e não harmonia-melodia, espaço riemaniano e não euclidiano — variação contínua que extravasa toda repartição entre constantes e variáveis, liberação de uma linha que não passa entre dois pontos, desprendimento de um plano que não procede por linhas paralelas e perpendiculares. Essa ligação do homogêneo com o estriado pode exprimir-se nos termos de uma física elementar, imaginária: 1) Você começa esfriando o espaço com verticais de gravidade, paralelas

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entre si; 2) Essas paralelas ou forças têm uma resultante que se aplica num ponto do corpo que ocupa o espaço, centro de gravidade; 3) A posição desse ponto não muda quando se modifica a direção das forças paralelas, quando se tornam perpendiculares à sua primeira direção; 4) Você descobre que a gravidade é um caso particular de uma atração universal, segundo linhas retas quaisquer ou relações biunívocas entre dois corpos; 5) Você define uma noção geral de trabalho, pela relação força-deslocamento numa direção; 6) Você tem assim a base física de um espaço estriado cada vez mais perfeito, não apenas na vertical e na horizontal, porém em todas as direções subordinadas a pontos. — Nem sequer é necessário invocar essa pseudo-física newtoniana. Os gregos já passavam de um espaço estriado verticalmente, de cima para baixo, a um espaço centrado, às relações simétricas e reversíveis em todas as direções, isto é, estriado em todos os sentidos de maneira a constituir urna homogeneidade. Por certo havia ali como que dois modelos do aparelho de Estado, o aparelho vertical do império, o aparelho isótropo da cidade20. A geometria está no cruzamento entre um problema físico e um assunto de Estado. Ora, é evidente que a estriagem assim constituída tem seus limites: não só quando se faz intervir o infinito, em grande e pequena escala, mas também quando se considera mais de dois corpos (“problema dos três corpos”). Examinemos, no nível mais simples, como o espaço escapa aos limites de seu esfriamento. Num polo, escapa pela declinação, isto é, pelo menor desvio infinitamente pequeno entre a vertical de gravidade e o arco de círculo ao qual essa vertical é tangente. No outro polo, escapa pela espiral ou pelo turbilhão, isto é, uma figura em que todos os pontos do espaço são ocupados simultaneamente, sob leis de frequência ou acumulação, de distribuição, que se opõem à distribuição dita “laminar” correspondente à estriagem das paralelas. Ora, do menor desvio ao turbilhão, a consequência é boa e necessária: o que se estende de um a outro é precisamente um espaço liso que tem por elemento a declinação e por povoamento a espiral. O espaço liso é constituído pelo ângulo mínimo, que desvia da vertical, e pelo turbilhão, que extravasa a estriagem. É a força do livro de Michel Serres, ter mostrado essa ligação entre o clinamen como elemento diferencial gerador, e a formação dos turbilhões e turbulências como ocupando um espaço liso engendrado; com efeito, o átomo antigo, de Demócrito a Lucrécio, sempre foi inseparável de uma

20

Sobre esses dois espaços, cf. J.P. Vernant, Mythe et pensée chez les Grecs, t. I, pp. 174-175.

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hidráulica ou de uma teoria generalizada das fluxões e dos fluxos. Nada se compreende do átomo antigo se não se vê que lhe é próprio circular e fluir. No nível dessa teoria aparece a estrita correlação entre uma geometria arquimediana, muito diferente do espaço homogêneo e estriado de Euclides, e uma física democritiana, muito diferente da matéria sólida ou lamelar21. Ora, a mesma coincidência quer que esse conjunto já não seja de modo algum ligado a um aparelho de Estado, mas a uma máquina de guerra: uma física das maltas, das turbulências, das “catástrofes” e epidemias, para uma geometria da guerra, de sua arte e suas máquinas. Serres pode assim enunciar o que lhe parece ser o objetivo mais profundo de Lucrécio: passar de Marte a Vênus, colocar a máquina de guerra a serviço tia paz22. Mas essa operação não passa pelo aparelho de Estado; ao contrário, ela exprime uma última metamorfose da máquina de guerra e se realiza em espaço liso. Já encontramos em outro lugar uma distinção entre “ação livre” em espaço liso e “trabalho” em espaço estriado. Com efeito, no século XIX prossegue uma dupla elaboração: a de um conceito físico-científico de Trabalho (peso-altura, força-deslocamento), e a de um conceito socioeconômico de força de trabalho ou de trabalho abstrato (quantidade abstrata homogênea aplicável a todos os trabalhos, suscetível de multiplicação e divisão). Havia aqui uma ligação profunda entre a física e a sociologia: a sociedade fornecia uma medida econômica do trabalho, e a física, por sua vez, uma “moeda mecânica” do trabalho. O regime do salariado tinha por correlato uma mecânica das forças. Jamais a física foi mais social, visto que em ambos os casos tratava-se de definir um valor médio constante, para uma força de elevação ou de tração exercida o mais uniformemente possível por um homem-padrão. Impor o modelo-Trabalho a toda atividade, traduzir todo ato em trabalho possível ou virtual, disciplinar a ação livre, ou então (o que dá no mesmo) rejeitála como “lazer”, que só existe por referência ao trabalho. Compreende-se desde logo porque o modelo-Trabalho fazia parte fundamentalmente do aparelho de Estado, no seu duplo aspecto físico e social. O homem-padrão foi primeiramente o dos trabalhos públicos23. Não é

Michel Serres, La naissance de La physique dans le texte de Literèce: “A física se apoia sobre um espaço vetorial, muito mais que sobre um espaço métrico” (p. 79). Sobre o problema hidráulico, pp. 104-107. 21

22

M. Serres, pp. 35, 135 ss.

Anne Querrien mostrou bem a importância das Pontes e Vias (Ponts et chaussées) nessa elaboração do conceito de trabalho. Por exemplo, Navier, engenheiro e professor de mecânica, escreve em I 8 1 9: “F. preciso estabelecer uma moeda mecânica com a qual se possa estimar as quantidades de trabalho empregadas para efetuar todo tipo de fabricação”. 23

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na fábrica de alfinetes que se colocam inicialmente os problemas do trabalho abstrato, da multiplicação de seus efeitos, da divisão de suas operações; é primeiro nos canteiros públicos, e também na organização dos exércitos (não apenas disciplina dos homens, mas também produção industrial das armas). Nada mais normal: não que a máquina de guerra implicasse ela mesma esta normalização. Mas o aparelho de Estado, nos séculos XVIII e XIX, dispunha desse novo meio para apropriar-se da máquina de guerra: submetêla antes de qualquer outra coisa ao modelo-Trabalho do canteiro e da fábrica, que se elaborava em outra parte, porém mais lentamente. For isso, a máquina de guerra talvez tenha sido a primeira a ser esfriada, a desprender o tempo de trabalho abstrato multiplicável nos seus efeitos, divisível em suas operações. É aí que a ação livre em espaço liso devia ser vencida. O modelo físico-social do Trabalho pertence ao aparelho de Estado, assim como sua invenção, por duas razões. De um lado, porque o trabalho só aparece com a constituição de um excedente, só há trabalho de estocarem, de sorte que o trabalho (propriamente dito) começa apenas com o que se denomina sobretrabalho. De outro lado, porque o trabalho efetua uma operação generalizada de estriagem do espaço-tempo, uma sujeição da ação livre, uma anulação dos espaços lisos, que encontra sua origem e seu meio no empreendimento essencial do Estado, na sua conquista da máquina de guerra. Contraprova: ali onde não há mais aparelho de Estado, nem sobretrabalho, tampouco há modelo-Trabalho. Haveria variação contínua de ação livre, que passa da fala á ação, de tal ação a tal outra, da ação ao canto, do canto à fala, da fala ao empreendimento, num estranho cromatismo, com momentos de pico ou de esforço que o observador externo pode apenas “traduzir” em termos de trabalho, surgindo este de maneira intensa e rara. É verdade que sempre se disse dos negros: “Eles não trabalham, não sabem o que é o trabalho”. É verdade que foram forçados, mais do que ninguém, a trabalhar segundo a quantidade abstrata. Também parece verdade que os índios sequer entendiam, e eram inaptos para qualquer trabalho organizado, mesmo escravagista; os americanos não teriam importado tantos negros se pudessem utilizar os índios, que preferiam deixar-se morrer. Alguns etnólogos notáveis colocaram uma questão essencial, e souberam revirar o problema: as sociedades ditas primitivas não

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são sociedades de penúria ou de subsistência, por falta do trabalho, mas, ao contrário, são sociedades de ação livre e de espaço liso, que não têm necessidade alguma de um fator-trabalho, assim como não constituem estoque24. Não são sociedades de preguiça, ainda que sua diferença com o trabalho possa exprimir-se sob a forma de um “direito à preguiça”. Essas sociedades não são sem lei, ainda que sua diferença com a lei possa exprimir-se sob a aparência de uma “anarquia”. Elas têm antes a lei do nomos, que regula uma variação contínua da atividade, com seu próprio rigor, sua própria crueldade (livrarse daquilo que não se pode transportar, anciãos ou crianças...). Mas se o trabalho constitui um espaço-tempo esfriado que corresponde ao aparelho de Estado, não é isto verdade sobretudo das formas arcaicas ou antigas? Pois é ali que o sobretrabalho é isolado, discriminado sob forma de tributo ou de corveia. É ali, portanto, que o conceito de trabalho pode aparecer em toda sua nitidez: por exemplo, as grandes obras dos impérios, os trabalhos hidráulicos, agrícolas ou urbanos, onde se impõe um escoamento “laminar” das águas por fatias supostas paralelas (estriagem). No regime capitalista, ao contrário, parece que o sobretrabalho é cada vez menos discernível do trabalho “propriamente dito”, e o impregna completamente. Os trabalhos públicos modernos não possuem o mesmo estatuto que os grandes trabalhos imperiais. Como seria possível distinguir o tempo necessário para a reprodução de um tempo “extorquido”, já que deixaram de ser separados no tempo? Essa observação certamente não vai contra a teoria marxista da mais-valia, pois Marx mostra precisamente que essa maisvalia deixa de ser localizável em regime capitalista. É até mesmo seu aporte fundamental. Marx pode tanto melhor pressentir que a própria máquina torna-se geradora de maisvalia, e que a circulação do capital recoloca em xeque a distinção entre um capital variável e um capital constante. Nessas novas condições, continua sendo verdade que todo trabalho é sobretrabalho; mas o sobretrabalho já nem sequer passa pelo trabalho. O sobretrabalho, e a organização capitalista no seu conjunto, passam cada vez menos pela estriagem de espaço-tempo correspondente ao conceito físico-social

É um lugar-comum nos relatos dos missionários: nada corresponde a uma categoria do trabalho, mesmo na agricultura transumante, onde, contudo, as atividades de desmoita são penosas. Marshall Sahlins não se contentou em assinalar a brevidade do tempo de trabalho necessário à manutenção e à reprodução, mas insiste em fatores qualitativos: a variação contínua que regula a atividade, a mobilidade ou a liberdade de movimento que exclui os estoques e se mede conforme a “comodidade de transporte do objeto” (“La première société d’abondance”, Temps modernes, out. 1968, pp. 654-656, 662663, 672-673). 24

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de trabalho. É antes como se a alienação humana fosse substituída, no próprio sobretrabalho, por uma “servidão maquínica” generalizada, de modo que se fornece uma maisvalia independentemente de qualquer trabalho (a criança, o aposentado, o desempregado, o telespectador, etc). Não só o usuário enquanto tal tende a se tornar um empregado, mas o capitalismo já não opera tanto através de uma quantidade de trabalho como através de um processo qualitativo complexo, que coloca em jogo os modos de transporte, os modelos urbanos, a mídia, a indústria do entretenimento, as maneiras de perceber e sentir, todas as semióticas. É como se, ao cabo da estriagem que o capitalismo soube levar a um ponto de perfeição inigualável, o capital circulante necessariamente recriasse, reconstituísse uma espécie de espaço liso, onde novamente se coloca em jogo o destino dos homens. Certamente, a estriagem subsiste em suas formas mais perfeitas c severas (já não é apenas vertical, mas opera em todos os sentidos); não obstante, remete sobretudo ao polo estatal do capitalismo, isto é, ao papel dos modernos aparelhos de Estado na organização do capital. Em compensação, no nível complementar dominante de um capitalismo mundial integrado (ou antes integrador), um novo espaço liso é produzido onde o capital atinge sua velocidade “absoluta”, fundada sobre componentes maquínicos, e não mais sobre o componente humano do trabalho. As multinacionais fabricam uma espécie de espaço liso desterritorializado onde tanto os pontos de ocupação como os polos de troca tornam-se muito independentes das vias clássicas de estriagem. O novo reside sempre nas novas formas de rotação. As atuais formas aceleradas da circulação do capital tornam cada vez mais relativas as distinções entre capital constante e variável, e mesmo entre capital fixo e capital circulante; o essencial está antes na distinção entre um capital estriado e um capital liso, e na maneira pela qual o primeiro suscita o segundo, através de complexos que sobrevoam os territórios e os Estados, e mesmo os diferentes tipos de Estados. Modelo estético: a arte nômade. — Várias noções, práticas e teóricas, são apropriadas para definir uma arte nômade e seus prolongamentos (bárbaros, góticos e modernos). Primeiramente, trata-se de uma “visão aproximada”, por oposição á visão distanciada; é também o “espaço tátil”, ou antes o “espaço háptico”, por diferença ao espaço óptico. Háptico é um termo melhor do que tátil, pois não opõe dois órgãos dos sentidos, porém deixa supor que o próprio olho pode ter essa função que não é óptica. Aloïs Riegl, em páginas admiráveis, foi quem deu a esse par Visão aproximadaEspaço háptico um estatuto estético fundamental. Contudo, devemos negligenciar provisoriamente os critérios propostos por Riegl (depois por

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Worringer, e atualmente por Henri Maldiney) a fim de nós mesmos arriscarmos um pouco, e servir-nos livremente dessas noções25. O Liso nos parece ao mesmo tempo o objeto por excelência de uma visão aproximada e o elemento de um espaço háptico (que pode ser visual, auditivo, tanto quanto tátil). Ao contrário, o Estriado remeteria a uma visão mais distante, e a um espaço mais óptico — mesmo que o olho, por sua vez, não seja o único órgão a possuir essa capacidade. Ademais, é sempre preciso corrigir por um coeficiente de transformação, onde as passagens entre estriado e liso são a um só tempo necessárias e incertas e, por isso, tanto mais perturbadoras. É a lei do quadro, ser feito de perto, ainda que seja visto de longe, relativamente. Pode-se recuar em relação à coisa, mas não 6 bom pintor aquele que recua do quadro que está fazendo. E mesmo a “coisa”: Cézanne falava da necessidade de já não ver o campo de trigo, de ficar próximo demais dele, perder-se sem referência, em espaço liso. A partir desse momento pode nascer a estriagem: o desenho, os estratos, a terra, a “cabeçuda geometria”, a “medida do mundo”, as “camadas geológicas”, “tudo cai a prumo”... Sob pena de que o estriado, por sua vez, desapareça numa “catástrofe”, em favor de um novo espaço liso, c de um outro espaço estriado... Um quadro é feito de perto, mesmo que seja visto de longe. Diz-se igualmente que o compositor não ouve: pois tem uma audição aproximada, enquanto o ouvinte ouve de longe. E o próprio escritor escreve com uma memória curta, enquanto se presume que o leitor seja dotado de uma memória longa. O espaço liso, háptico e de visão aproximada, caracteriza-se por um primeiro aspecto: a variação contínua de suas orientações, referências e junções; opera gradualmente. Por exemplo, o deserto, a estepe, o gelo ou o mar, espaço local de pura conexão. Contrariamente ao que se costuma dizer, nele não se enxerga de longe, e não se enxerga o deserto de longe, nunca se está “diante” dele, e tampouco se está “dentro” dele (está-se “nele”...). As orientações não possuem constante, mas mudam segundo as vegetações, as ocupações, as precipitações temporárias. As referências não possuem modelo visual capaz de permutá-las entre si e reuni-las numa espécie de inércia, que pudesse ser assinalada por um observador imóvel externo. Ao contrário, estão ligadas a tantos observadores que se pode qualificar de “mônadas”, mas que são sobretudo nômades entretendo entre si relações táteis. As junções não

Os textos principais são: A. Riegl, Spätrömisch e Kunstindusrie, Vienne; W. Worringer, Abstraction et Einfuhlung, Klincksieck; H. Maldiney, Regará, parole, espace, sobretudo “L’art et le pouvoir du fond”, e os comentários de Maldiney sobre Cézanne. 25

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implicam qualquer espaço ambiente no qual a multiplicidade estaria imersa, e que proporcionaria uma invariância às distâncias; ao contrário, constituem-se segundo diferenças ordenadas que fazem variar intrinsecamente a divisão de uma mesma distância26. Essas questões de orientação, referência e junção são dramatizadas pelas peças mais célebres da arte nômade: esses animais torcidos não têm mais terra; o solo não para de mudar de direção, como numa acrobacia aérea; as patas se orientam em sentido inverso ao da cabeça — a parte posterior do corpo revirada; os pontos de vista “monadológicos” só podem ser juntados num espaço nômade; o conjunto e as partes dão ao olho que as olha uma função que já não é óptica, mas háptica. É uma animalidade que não se pode ver sem tocá-la com o espírito, sem que o espírito se torne um dedo, inclusive através do olho. (De maneira muito mais rudimentar, é também o papel do caleidoscópio: dar ao olho uma função digital). O espaço esfriado, ao contrário, é definido pelas exigências de uma visão distanciada: constância da orientação, invariância da distância por troca de referenciais de inércia, junção por imersão num meio ambiente, constituição de uma perspectiva central. Porém, é menos fácil avaliar as potencialidades criadoras desse espaço estriado, e como, ao mesmo tempo, pode ele sair do liso e relançar o conjunto das coisas. O estriado e o liso não se opõem simplesmente como o global e o local, pois, num caso, o global é ainda relativo, enquanto, no outro, o local já é absoluto. Ali onde a visão é próxima, o espaço não é visual, ou melhor, o próprio olho tem uma função háptica e não óptica: nenhuma linha separa a terra e o céu, que são da mesma substância; não há horizonte, nem fundo, nem perspectiva, nem limite, nem contorno ou forma, nem centro; não há distância intermediária, ou qualquer distância é intermediária. Por exemplo, o espaço esquimó27. Porém, de um modo inteiramente

Todos esses pontos já remetiam a um espaço de Riemann, na sua relação essencial com as “mônadas” (por oposição ao Sujeito unitário do espaço euclidiano): cf. Gilles Chatelet, “Sur une petite phrase de Riemann”, Analytiques nº 3, maio 1979. Porém, se as “mônadas” não são mais consideradas como fechadas sobre si, e supõe-se que entretenham relações diretas entre si gradualmente, o ponto de vista puramente monadológico revela-se insuficiente, e deve ceder lugar a uma “nomadologia” (idealidade do espaço estriado, mas realismo do espaço liso). 26

Cf. a descrição do espaço do gelo, e do iglu, por Edmund Carpenter, Eskimo: “Não há distância intermediária, nem perspectiva ou contorno, o olho só pode captar milhares de plumas vaporosas de neve. (...). Uma terra sem fundo nem horda (...). um labirinto vivo com os movimentos de um povo em massa, sem que muros planos estáticos detenham o ouvido ou o olho, e o olho possa deslizar aqui, passar para lá.” 27

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outro, num contexto completamente diferente, a arquitetura árabe traça um espaço que começa muito próximo e muito baixo, que coloca embaixo o leve e o aéreo, ao passo que o sólido ou o pesado se situam em cima, numa inversão das leis da gravidade em que a falta de direção, a negação do volume, tornam-se forças construtivas. Um absoluto nômade existe como a integração local que vai de uma parte a outra, e que constitui o espaço liso na sucessão infinita das junções e das mudanças de direção. É um absoluto que se confunde com o próprio devir ou com o processo. É o absoluto da passagem, que na arte nômade se confunde com sua manifestação. Na arte nômade o absoluto é local, justamente porque nela o lugar não está delimitado. Em contrapartida, se nos reportamos ao espaço óptico e estriado, de visão distanciada, vemos que o global relativo que caracteriza esse espaço requer também o absoluto, mas de uma maneira totalmente distinta. O absoluto passa a ser o horizonte ou o fundo, isto é, o Englobante, sem o qual não haveria global ou englobado. E sobre esse fundo que se destaca o contorno relativo ou a forma. O absoluto pode ele mesmo aparecer no Englobado, mas unicamente num lugar privilegiado, bem delimitado enquanto centro, e cuja função, portanto, é rechaçar fora dos limites tudo aquilo que ameaça a integração global. Vê-se claramente como o espaço liso subsiste, mas para que dele saia o estriado, pois o deserto ou o céu, ou o mar, o Oceano, o Ilimitado, desempenha sobretudo o papel de englobante, e tende a tornar-se horizonte: a terra está, assim, rodeada, globalizada, “fundada” por esse elemento que a mantém em equilíbrio imóvel e torna possível uma Forma. E, uma vez que o próprio englobante aparece no centro da terra, ele adquire uma segunda função, que consiste dessa vez em rechaçar para um pano de fundo detestável, uma morada dos mortos, tudo o que poderia subsistir de liso ou de não mensurado28. A estriagem da terra implica como condição esse duplo tratamento do liso: de um lado, levado ou reduzido ao estado absoluto de horizonte englobante; de outro lado, expulso do englobante relativo. As grandes religiões imperiais, portanto, têm necessidade do espaço liso (do deserto, por exemplo), mas para dar-lhe uma lei que

Encontramos esses dois aspectos, o Englobante e o Centro, na análise que J.-P. Vernant faz do espaço de Anaximandro (Mythe et pensée chez les Grecs, t. I, III’’ parte). De um outro ponto de vista, essa é toda a história do deserto: sua possibilidade de tornar-se o englobante, e também de se ver rechaçado, rejeitado pelo centro, como numa inversão de movimento. Numa fenomenologia da religião, tal como Van der Leeuw soube fazê-la, o próprio nomos aparece efetivamente como o englobante-limite ou fundo, mas também como o rechaçado, o excluído, num movimento centrífugo. 28

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se opõe totalmente ao nomos, e que converte o absoluto. Talvez isso explique a ambiguidade que vemos nas belas análises de Riegl, Worringer e Maldiney. Eles apreendem o espaço háptico nas condições imperiais da arte egípcia. Definem-no pela presença de um fundohorizonte, pela redução do espaço ao plano (vertical e horizontal, altura e largura) e pelo contorno retilíneo que encerra a individualidade, subtraindo-a da mudança. Tal é a forma-pirâmide sobre fundo de deserto imóvel, que tem em todas as suas faces uma superfície plana. Mostram, em compensação, de que modo, com a arte grega (depois, na arte bizantina, e até a Renascença), distingue-se um espaço óptico que arrasta o fundo com a forma, faz com que os planos interfiram, conquista a profundidade, trabalha uma extensão voluminosa ou cúbica, organiza a perspectiva, joga com relevos e sombras, luzes e cores. Mas, dessa maneira, desde o início, deparam-se com o háptico num ponto de mutação, nas condições em que ele já serve para estriar o espaço. O óptico tornará essa estriagem mais perfeita, mais cerrada, ou melhor, diferentemente perfeita, cerrada de outro modo (não é o mesmo “querer-artista”). Resta o fato de que tudo se passa num espaço de estriagem que vai dos impérios às cidades, ou aos impérios evoluídos. Não é por acaso que Riegl tende a eliminar os fatores próprios de uma arte nômade ou mesmo bárbara; e que Worringer, no momento em que introduz a ideia de uma arte gótica no mais amplo sentido, acaba reportando essa ideia, por um lado, às migrações do Norte, germânicas e celtas, por outro, aos impérios do Oriente. Entre os dois, contudo, havia os nômades, que não se deixam reduzir aos impérios com os quais se enfrentavam, nem às migrações que desencadeavam; e precisamente os godos faziam parte desses nômades da estepe, junto com os sármatas e os hunos, vetor essencial de uma comunicação entre o Oriente e o Norte, mas também fator irredutível a uma ou outra dessas duas dimensões29. Por um lado, o Egito já tinha seus hicsos, a Ásia menor seus hititas, a China seus turco-mongóis; por outro lado, os hebreus tinham seus habiru, os germanos, os celtas e os romanos tinham seus godos, os árabes seus beduínos. Há uma especificidade nômade cujas consequências se tende a reduzir rápido demais, situando-as nos impérios ou

Sejam quais forem as interações, há uma especificidade da “arte das estepes”, que passará para os germanos da migração: apesar de todas suas reservas acerca de uma cultura nômade, René Grousset o notou bem, L’empire des steppes, Payot, pp. 42-46. É a irredutibilidade da arte cita à arte assíria, da arte sármata à arte persa, da arte huna à arte chinesa. Pode-se dizer que a arte das estepes exerceu influência mais do que recebeu (cf. especialmente a questão da arte ordos e suas relações com a China). 29

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entre os migrantes, referindo-as a um ou a outro, negando-lhes sua própria “vontade” de arte. Uma vez mais, recusa-se que o intermediário entre o Oriente e o Norte tenha tido sua especificidade absoluta, recusa-se que o intermediário, o intervalo, tenha justamente esse papel substancial. Aliás, ele não o tem enquanto “querer”, tem apenas um devir, inventa um “devir-artista”. Quando invocamos uma dualidade primordial do liso e do estriado, é para dizer que as próprias diferenças “háptico-óptico”, “visão próxima-visão longínqua”, estão subordinadas a essa distinção. Não se deve, pois, definir o háptico pelo fundo imóvel, pelo plano e pelo contorno, visto que se trata de um estado já misto, em que o háptico serve para esfriar, e só se serve de seus componentes lisos para convertê-los num outro espaço. A função háptica e a visão próxima supõem primeiramente o liso, que não comporta nem fundo, nem plano, nem contorno, mas mudanças direcionais e junções de partes locais. Inversamente, a função óptica desenvolvida não se contenta em impelir a estriagem a um novo ponto de perfeição, conferindo-lhe um valor e um alcance universais imaginários; também serve para tornar a produzir o liso, liberando a luz e modulando a cor, restituindo uma espécie de espaço háptico aéreo que constitui o lugar não limitado da interferência dos planos30. Em suma, o liso e o esfriado devem primeiramente ser definidos por eles mesmos, antes que deles decorram as distinções relativas do háptico e do óptico, do próximo e do distante. É aí que intervém um terceiro par: “linha abstrata-linha concreta” (ao lado de “háptico-óptico” e “próximo-distante”). Worringer deu uma importância fundamental a esta ideia de linha abstrata, vendo nela o próprio começo da arte ou a primeira expressão de um querer artista. A arte, máquina abstrata. Sem dúvida, também aí tenderíamos a fazer valer de antemão as mesmas objeções feitas anteriormente: para Worringer, a linha abstrata aparece a princípio sob a forma imperial egípcia, geométrica ou cristalina, a mais retilínea possível; só depois teria passado por um avatar particular, constituindo a “linha gótica ou setentrional” num sentido muito amplo31. Para nós,

30

Sobre essa questão da luz e da cor, em especial na arte bizantina, cf. Henri Maldiney, pp. 20.? ss. e 239 ss.

Riegl já sugeria uma correlação “háptico-próximo-abstrato”. Mas é Worringer que desenvolve esse tema da linha abstrata, e, se ele a concebe essencialmente sob a forma egípcia, descreve também uma segunda forma, onde o abstrato adquire uma vida intensa e um valor expressionista, permanecendo inorgânico: Abstractum et Einfuhlung, cap. V, e sobretudo L’art gothique, pp. 61-80. 31

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ao contrário, a linha abstrata é em primeiro lugar “gótica”, ou melhor, nômade, e não retilínea. Por conseguinte não compreendemos da mesma maneira a motivação estética da linha abstrata, nem sua identidade com o começo da arte. Enquanto a linha egípcia retilínea (ou “regularmente” arredondada) encontra uma motivação negativa na angústia daquilo que passa, flui ou varia, e erige a constância e a eternidade de um Em-si, a linha nômade é abstrata num sentido completamente distinto, precisamente porque é de orientação múltipla, e passa entre os pontos, entre as figuras e entre os contornos: sua motivação positiva está no espaço liso que traça, e não na estriagem que operaria para conjurar a angústia e dominar o liso. A linha abstrata é o afecto dos espaços lisos, e não o sentimento de angústia que reclama a estriagem. Por outro lado, é verdade que a arte não começa senão com a linha abstrata; mas não porque a retilínea seria a primeira maneira de romper com uma imitação da natureza, imitação não estética, da qual ainda dependeriam o pré-histórico, o selvagem, o infantil como aquilo que carece de uma “vontade de arte”. Ao contrário, se existe plenamente uma arte préhistórica, é porque ela tem o manejo da linha abstrata, embora não retilínea: “A arte primitiva começa no abstrato e mesmo no pré-figurativo, (...). no início, a arte é abstrata e não pôde ser outra em sua origem”32. Com efeito, a linha é tanto mais abstrata quanto não há escrita, seja porque a escrita ainda não existe, seja porque só existe fora ou ao lado. Quando a escrita se encarrega da abstração, como nos impérios, a linha já negada tende necessariamente a tornarse concreta e mesmo figurativa. As crianças já não sabem desenhar. Mas quando não há escrita, ou então quando os povos não necessitam de escrita pessoal, porque esta lhes é fornecida por impérios mais ou menos vizinhos (caso dos nômades), então a linha só pode ser abstrata, goza necessariamente de toda potência de abstração, que não encontra alhures qualquer outra saída. Por isso, acreditamos que os diversos grandes tipos de linha imperial, a linha retilínea egípcia, a linha orgânica assíria (ou grega), a linha englobante chinesa,

Leroi-Gourhan, Le geste et Ia parole, Albin Michel, t. I, pp. 263 ss; t. II, pp. 219 ss. (“As marcas rítmicas são anteriores às figuras explícitas.”) A posição de Worringer era muito ambígua; pois, ao pensar que a arte pré-histórica era sobretudo figurativa, ele a excluía da Arte, a um mesmo título que as “garatujas infantis”: Abstraction et Einfuhlung, pp. 83-87. Depois, sugere a hipótese de que os habitantes das cavernas talvez sejam o “último membro terminal” de uma série que teria começado com o abstrato (p. 166). Mas uma tal hipótese não forçaria Worringer a remanejar sua concepção do abstrato, e a deixar de identificá-lo ao geométrico egípcio? 32

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suprafenomênica, já transformam a linha abstrata, arrancam-na de seu espaço liso e lhe conferem valores concretos. Pode-se dizer, contudo, que essas linhas imperiais são contemporâneas à linha abstrata; nem por isso ela está menos no “começo”, visto que é o polo sempre pressuposto de todas as linhas capazes de constituir um outro polo. A linha abstrata está no começo, tanto por sua própria abstração histórica como por sua datação pré-histórica. Por isso, aparece na originalidade, na irredutibilidade da arte nômade, mesmo quando há interação, influência, afrontamento recíprocos com linhas imperiais da arte sedentária. Abstrato não se opõe diretamente a figurativo: o figurativo jamais pertence como tal a uma “vontade de arte”; tanto que não se pode estabelecer uma oposição em arte entre uma linha figurativa e uma outra que não o seria. O figurativo ou a imitação, a representação, são uma consequência, um resultado que provém de certas características da linha quando ela toma tal ou qual forma. Portanto, primeiro é preciso definir essas características. Seja um sistema onde as transversais estão subordinadas a diagonais, as diagonais a horizontais e verticais, as horizontais e verticais a pontos, mesmo que virtuais: um tal sistema retilíneo ou unilinear (seja qual for o número de linhas) exprime as condições formais sob as quais um espaço é estriado, e a linha constitui um contorno. Uma tal linha é representativa em si, formalmente, mesmo se ela nada representa. Ao contrário, uma linha que nada delimita, que já não cerca contorno algum, que já não vai de um ponto a outro, mas que passa entre os pontos, que não para de declinar da horizontal e da vertical, de desviar da diagonal mudando constantemente de direção — esta linha mutante sem fora nem dentro, sem forma nem fundo, sem começo nem fim, tão viva quanto uma variação contínua, é verdadeiramente uma linha abstrata, e descreve um espaço liso. Não é inexpressiva. É verdade, contudo, que não constitui qualquer forma de expressão estável e simétrica, fundada numa ressonância dos pontos, numa conjunção das linhas. Mas nem por isso deixa de ter traços materiais de expressão que se deslocam com ela, e cujo efeito se multiplica pouco a pouco. É nesse sentido que Worringer diz da linha gótica (para nós, a linha nômade que joga com a abstração): tem a potência de expressão e não a forma, tem a repetição como potência e não a simetria como forma. Com efeito, é graças à simetria que os sistemas retilíneos limitam a repetição, impedindo sua progressão infinita, e mantêm a dominação orgânica de um ponto central e de linhas radiadas, como nas figuras refletidas ou estelares. Mas desencadear a potência de repetição

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como uma força maquínica que multiplica seu efeito e persegue um movimento infinito é o próprio da ação livre, que procede por defasagem, descentramento, ou ao menos por movimento periférico: um politetismo defasado, mais do que um antitetismo simétrico33. Não se deve, pois, confundir os traços de expressão que descrevem um espaço liso, e que se conectam a uma matéria-fluxo, com as estrias que convertem o espaço, dele fazendo uma forma de expressão que esquadrinha a matéria e a organiza. As mais belas páginas de Worringer são aquelas em que opõe o abstrato ao orgânico. O orgânico não designa algo que seria representado, mas, antes, a forma da representação, e mesmo o sentimento que une a representação a um sujeito (einfuhlung). “No interior da obra de arte desenrolam-se processos formais que correspondem às tendências naturais orgânicas no homem.” Mas, justamente, o que se opõe nesse sentido ao orgânico não pode ser o retilíneo, o geométrico. A linha orgânica grega, que submete o volume ou a espacialidade, substitui a linha geométrica egípcia que as reduzia ao plano. O orgânico, com sua simetria, seu contorno, seu fora e seu dentro, se referem ainda às coordenadas retilíneas de um espaço esfriado. O corpo orgânico se prolonga em linhas retas que o conectam ao longínquo. Donde o primado do homem, ou do rosto, porque ele é esta forma de expressão mesma, a um só tempo organismo supremo e relação de todo organismo com o espaço métrico em geral. Ao contrário, o abstrato começa somente com o que Worringer apresenta como o avatar

Worringer opõe a potência de repetição, mecânica, multiplicadora, sem orientação fixa, e a força de simetria, orgânica, aditiva, orientada e centrada. Ele vê nessa oposição a diferença fundamental entre a ornamentação gótica e a ornamentação grega ou clássica: l.’art gothique, pp. 83-87 (“a melodia infinita da linha setentrional”). Num belo livro, Esthétiques d’Orient et d’Occident, Alcan, Laure Morgenstern desenvolve um exemplo preciso, e distingue o “antitetismo simétrico” da arte persa sassânida e o “antitetismo defasado” da arte dos nômades iranisantes (sármatas). Muitos comentadores insistiram, contudo, nos motivos simétricos e centrados da arte nômade ou bárbara. Mas Worringer respondia antecipadamente: “Em vez de uma estrela regular e geométrica sob todas essas relações, em vez da rosácea ou de outras figuras em repouso, aparece a roda que gira, a turbina ou a roda chamada sol; todos esses modelos exprimem um movimento violento; a direção do movimento não é irradiante, mas periférica”. A história tecnológica confirma a importância da turbina na vida nômade. Num outro contexto bio-estético, Gabriel Tarde opunha a repetição como potência indefinida à simetria como limitação. Com a simetria, a vida produzia um organismo, e tomava uma forma estelar, ou refletida, redobrada (Radiados e Moluscos). E verdade que nesse caso desencadeava um outro tipo de repetição, na reprodução externa; cf. L’opposition universelle, Alcan. 33

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“gótico”. Dessa linha nômade diz: é mecânica, mas de ação livre e giratória; é inorgânica, mas no entanto viva, e tanto mais viva quanto inorgânica. Distingue-se ao mesmo tempo do geométrico e do orgânico. Eleva à intuição as relações “mecânicas”. As cabeças (inclusive a do homem, que já não é rosto) se desenrolam e se enrolam em fitas num processo contínuo; as bocas se arregaçam em caracol. Os cabelos, as roupas... Essa linha frenética de variação, em fita, em espiral, em ziguezague, em S, libera uma potência de vida que o homem corrigia, que os organismos encerravam, e que a matéria exprime agora como o traço, o fluxo ou o impulso que a atravessa. Se tudo é vivo, não é porque tudo é orgânico e organizado, mas, ao contrário, porque o organismo é um desvio da vida. Em suma, uma intensa vida germinal inorgânica, uma poderosa vida sem órgãos, um Corpo tanto mais vivo quanto é sem órgãos, tudo que passa entre os organismos (“uma vez que os limites naturais da atividade orgânica foram rompidos, não há mais limites...”). Com frequência quis-se marcar uma espécie de dualidade na arte nômade, entre a linha abstrata ornamental e os motivos animalistas; ou, mais sutilmente, entre a velocidade com a qual a linha integra e arrasta traços expressivos, e a lentidão ou a paralisia da matéria animal assim atravessada. Entre uma linha de fuga sem começo nem fim, e um giro sobre si quase imóvel. Mas todos estão de acordo, finalmente, que se trata de um mesmo querer, ou de um mesmo devir34. Ora, não é porque o abstrato engendraria por acaso ou por associação motivos orgânicos. Precisamente porque nele a pura animalidade é vivida como inorgânica, ou supraorgânica, pode tão bem combinar-se com a abstração, e mesmo combinar a lentidão ou o pesadume de uma matéria com a extrema velocidade de uma linha que é unicamente espiritual. Essa lentidão pertence ao mesmo mundo da extrema velocidade: relações de velocidade e lentidão entre elementos, que de toda maneira excedem o movimento de uma forma orgânica e a determinação dos órgãos. É ao mesmo tempo que a linha escapa da geometria, graças a uma mobilidade fugitiva, e que a vida se desprende do orgânico, por um turbilhão no mesmo lugar e permutador. Essa força vital própria da Abstração é que traça o espaço liso. A linha abstrata é o afecto de um espaço

Sobre todos esses pontos, cf. o livro muito intuitivo de Georges Charrière, L’art barbare, Ed. du Cercle d’art, onde encontramos um grande número de reproduções. Sem dúvida, é René Grousset quem melhor insistiu na “lentidão” como polo dramático da arte nômade: L’empire des steppes, p. 45. 34

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liso, assim como a representação orgânica era o sentimento que presidia o espaço esfriado. Por isso, as diferenças háptico-óptico, próximo-distante, devem ser subordinadas à diferença entre a linha abstrata e a orgânica, encontrando seu princípio numa confrontação geral dos espaços. Além disso, a linha abstrata não pode ser definida como geométrica e retilínea. Daí decorre a questão: o que se deve chamar de abstrato na arte moderna? Uma linha de direção variável, que não traça qualquer contorno e não delimita forma alguma...35 Não cabe multiplicar os modelos. Sabemos, com efeito, que há muitos outros: um modelo lúdico, onde os jogos se afrontariam segundo seu tipo de espaço, e onde a teoria dos jogos não teria os mesmos princípios, por exemplo o espaço liso do go e o espaço estriado do xadrez; ou então, um modelo noológico que concerne não aos conteúdos de pensamento (ideologia), mas à forma, à maneira ou ao modo, à função do pensamento segundo o espaço mental que ele traça, do ponto de vista de uma teoria geral do pensamento, de um pensamento do pensamento. Etc. Bem mais, seria preciso levar em conta ainda outros espaços: o espaço esburacado, a maneira pela qual comunica de modo diferente com o liso e o estriado. Mas, justamente, o que nos interessa são as passagens e as combinações, nas operações de estriagem, de alisamento. Como o espaço é constantemente estriado sob a coação de forças que nele se exercem; mas também como ele desenvolve outras forças e secreta novos espaços lisos através da estriagem. Mesmo a cidade mais esfriada secreta espaços lisos:

Em seu prefácio a Abstraction et Einfuhlung, Dora Vallier tem razão de marcar a independência respectiva de Worringer e Kandinsky, e a diferença de seus problemas. Nem por isso deixa de sustentar que entre eles pode haver convergência ou ressonância. De um certo modo, toda arte é abstrata, e o figurativo apenas decorre de certos tipos de abstração. Mas, num outro sentido, se existem tipos de linha muito diferentes, geométrico-egípcia, orgânico-grega, vital-gótica, etc, trata-se de determinar qual delas permanece abstrata ou realiza a abstração enquanto tal. Pode-se duvidar que seja a linha geométrica, dado que esta traça ainda uma figura, mesmo que abstrata ou não representativa. A linha abstrata seria antes aquela que Michael Fried define a partir de certas obras de Pollock: multidirecional, sem interior nem exterior, sem forma nem fundo, não delimitando nada, não descrevendo um contorno, passando entre as manchas e os pontos, preenchendo um espaço liso, agitando uma matéria visual háptica e próxima, que “a um só tempo atrai o olho do espectador e não lhe deixa lugar algum para repousar” (“Trois peintres américains”, em Peindre, pp. 267 ss).. No próprio Kandinsky, a abstração é realizada menos pelas estruturas geométricas do que pelas linhas de marcha ou de percurso que parecem remeter a motivos nômades mongóis. 35

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habitar a cidade como nômade, ou troglodita. Às vezes bastam movimentos, de velocidade ou de lentidão, para recriar um espaço liso. Evidentemente, os espaços lisos por si só não são liberadores. Mas é neles que a luta muda, se desloca, e que a vida reconstitui seus desafios, afronta novos obstáculos, inventa novos andamentos, modifica os adversários. Jamais acreditar que um espaço liso basta para nos salvar. Tradução de Peter Pál Pelbart

Conclusão: Regras concretas e máquinas abstratas

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15 CONCLUSÃO: REGRAS CONCRETAS E MÁQUINAS ABSTRATAS MQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMMMQOO6OIOQ6OQMQOIIOO6IOIIIO|!^I^6I|I|6I6IMOMMMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQ MQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMMQMMMMOOO6I6I|II||IIIIII|!||I!|I^..!^|!|^!!^6OIQ6MMMMQMMMMMQMMQMMQMMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQ MQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMQMMMOI6II|IIII||I|||I|!|||!^^^.^!^^!.^!!^^.^.^|!I6QQMMMM6QQQOQQOQQQOQMMMQMQMMQMQMQMQMQMQM QMQMQMQMQMQMQMQMQMQMMQMQO66I6IIII||||||!||!|!|!^... ..... .^!.. ..||O6QO6II6!66QOMQOMMQQMMQMMMMMQMQMQMQMQMQMQ MQMQMQMQMQMQMQMQMQMMMO6OO6I|III|||||!!|!!!!^!^. ... . . .... ...!|^I|!!!|I||666QI66|IOQI6OI6MMMMMQMQMQMQMQM QMQMQMQMQMQMQMQMQMMMMQMO6IIII||||||!!!^^^.^.^.^... ^ . .... . . ......^.. ^!^.^^|!|I!6O6MM^O6IOQOQMMQMMQMQMQMQ MQMQMQMQMQMQMQMQMMMQMMQOII|||I|!|!!^^!.^^^^^..^ ^..!^^^....... .^..^....... . ....^.^^^!|I6QMOMMMQMMMMMMQMQMQM QMQMQMQMQMQMMMMMQMOO6II|II||||||!!^..!^.^.....^..^.^.^... ^..^!^..^... ... ..^^^^^^..^..^^!I6QMQMMQQMMMMMMQMMQ MQMQMQMQMQMQMMMMMQOI6I||I|||!|I||^!..^^.. ^^.^... ^^!!.! ^^!^^^^.^^.^... ..^..^^^...^^^^^!!^^|IOQ66MMOOMQMMMMQ MQMQMQMQMMMQMMMOOI||!||I||!||!|!!|!!.^....^. .^...|!!^^....^^^.^...^... .^....... ...^^...^.!^^.^!!6MO6MMQMMM QMQMQMQMQMMQI|||II|IIIIII|I|!!^!||!! . ^^.^^^..!^^|!^^..^|!!..^.^.^ .^........ . . .^...^...^^!|I6I|66OMQMMM QMQMQMMMMQOI||||II|||I|I||||!!!!!^|! ! !.^^||!|^!!|.^^^.!|!^^^^^ .....^^.^^.... . . .^.^!^^!|IQ6I6MMOMMQ MQMMMMM6|!!|||I|II||||||!|||!I||^!.^.. .!^^^!!.!^|||!!!I|!|!!|^^.^.^!!^^^^.. . . . .....^!!^!!|!6OIQQMQMQ MQMM6|IO|I|I|III|I|I||||!!||!|||!!!!^^^^^.^!^^^^!|I||||!!|||!!^^!|!^.!.^^ ^ .......... . ...^.!!|IO6QQQMM QMMOIIQ66III||IIIIIIIII|I||II|||!!|!!|!!.^!!! ^!^!|!||||||!|!!!!!!^^!!^^^^^^^^.^.. . ......... ^!|!6IMQMQM QMMMQO6I6|||I|I||I|II||II666III|!!|||!!^|^|!.^!!|!|||!!|!!!^!^^!!!^|!^^!^!!^!.!^^!^.. . . .^..^^ ^..^IOQMQM MQMO6I!!!|!||||III6II6I6I6IIII|IIIII||||||.!^^^!!!^!!!!^!!^^.^.^^^!!!|^!^!!!!!!|^.^^..... . .....^....^I!IIIQM MMQ!^!!|!|!||||I6I6I6OO6O6I66IIIIIII||||||!|^!^!!!!^!!^.^^..^. ^^.^...... ...^^..^.^!.. .. ...^.. ^^||I6QMM 6|!!|!|!|!!!||IIII666OOOO666I!I||II|I||!|!^!^.^^^^^^^^^^^ . . .. . . . .^.^... .... .^IO|6IQ O|!!|||!||||||||||I6I66OO6I!I!I6II|II||!!!|!^.^^^....^^..^...... . . . . . ^!.. . .... .IMQ6Q OI||II||!|||III|IIIII666II6OO6I|I|I|!!!!^!!!^^^.^.....^.^.^.^... . . . . .. ..^!^. .... . .^!!6M O|^!^||I|III||III||II6I6OOO666||III|I|I|!^!^.^...........^... ........ .^. . .. ....!!!^.. . . . . ..! 6|^^!!|I|||II|!||II6I6OOQII666OQI|I||!!!^^^^!^!!|!!!^^^^.^^.^..... ..^ .. !^ .^!^^....^.^... .^.^! !^^^^^!!|||I|II6O6I|6OQQ6OOOOI6I6666I||!..^..... .. . ...^^.......... ^.. !. ^^.. . ^..^!!^^..^.^^..^!^..^ ^^!!||||!!|III6III|II666QO|I66II66I|I||!!^^.^.^....^..^.... .....^^.^^..... ^!.^..^^|!!^..^.^^^!^...!I !^||||!|I||I|II66II66QQQO666I6OQOIII||!^!^^...^^!^^^|||||!!^!!^!^^^..... . . . . !.^^!!!^^^^.^.^^....!!I ^^!!||||!|IIII|666O66QQOOOOQOIIIIIIIII|I||!^^^^^!|!^^.^..^...... ....^!^. .^^^....^..|!^!.^^^^.^...... ^^I ^^^^^|!!|!|II|I|IIII6666O6OQO66I6III|II6I|||!^!....^.^!!!^^!.^^^^^^.^!^.^...!... . ^.^^^!!|!!!^...... . ||I^^!^!|IIIII6OI6O6OOQOQO666666O6II||I||III|I!||!^|||!|!!^^!|!!!||!!||I!!||^!.. . .. ^.^^|!!!^!^^....^... ... 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Einstein no computador

Conclusão: Regras concretas e máquinas abstratas

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E Estratos, estratificação. 3

Os estratos são fenômenos de espessamento no Corpo da terra, ao mesmo tempo moleculares e molares: acumulações, coagulações, sedimentações, dobramentos. São Cintas, Pinças ou Articulações. Tradicionalmente, distingue-se, de modo sumário, três grandes estratos: físico-químico, orgânico, antropomórfico (ou “aloplástico”). Cada estrato, ou articulação, é composto de meios codificados, substâncias formadas. Formas e substâncias, códigos e meios não são realmente distintos. São componentes abstratos de qualquer articulação. Um estrato apresenta, evidentemente, formas e substâncias muito diversas, códigos e meios variados. Portanto, possui a um só tempo Tipos de organização formal e Modos de desenvolvimento substancial diferentes, que o dividem em paraestratos e epistratos: por exemplo, as divisões do estrato orgânico. Os epistratos e paraestratos que subdividem um estrato podem, por sua vez, ser considerados como estratos (de modo que a lista jamais é exaustiva). Apesar de suas distintas formas de organização e desenvolvimento, nem por isso um estrato qualquer deixa de ter uma unidade de composição. A unidade de composição diz respeito aos traços formais comuns a todas as formas ou códigos de um estrato, e aos elementos substanciais, materiais comuns a todas as suas substâncias ou meios. Os estratos têm uma grande mobilidade. Um estrato é sempre capaz de servir de substrato a outro, ou de percutir um outro, independentemente de uma ordem evolutiva. Sobretudo, entre dois estratos ou duas divisões de estratos produzem-se fenômenos de interestratos: transcodificações e passagens de meio, misturas. Os ritmos remetem a esses movimentos interestráticos, que são, igualmente, atos de estratificação. A estratificação é como a criação do mundo a partir do caos, uma criação contínua, renovada, e os estratos constituem o Juízo de Deus. O artista clássico é como Deus, ao organizar as formas e as substâncias, os códigos e os meios, e os ritmos, ele cria o mundo. Constitutiva de um estrato, a articulação é sempre uma dupla articulação (dupla-pinça). Com efeito, articula um conteúdo e uma expressão. Se forma e

Conclusão: Regras concretas e máquinas abstratas

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substância não são realmente distintas, o conteúdo e a expressão o são. Por isso, os estratos respondem à grade de Hjelmslev: articulação de conteúdo e articulação de expressão, o conteúdo e a expressão tendo, cada um por sua conta, forma e substância. Entre ambos, entre o conteúdo e a expressão, não existe correspondência, nem relação causa-efeito, nem relação significadosignificante: há distinção real, pressuposição recíproca, e unicamente isomorfismo. Mas não é da mesma maneira que o conteúdo e a expressão se distinguem em cada estrato: os três grandes estratos tradicionais não possuem a mesma repartição entre conteúdo e expressão (por exemplo, no estrato orgânico há uma “linearização” da expressão, e nos estratos antropomórficos há uma “sobrelinearidade”). Por isso, o molar e o molecular, segundo o estrato considerado, entram em combinações muito diferentes. 3

Qual movimento, qual impulso nos conduz para fora e dos estratos (me-

e 4 taestratos)? Certamente, não há razão para pensar que os estratos físico-químicos esgotem a matéria: existe uma Matéria não formada, submolecular. Tampouco os estratos orgânicos esgotam a Vida: o organismo é sobretudo aquilo a que a vida se opõe para limitar-se, e existe vida tanto mais intensa, tanto mais poderosa quanto é anorgânica. E do mesmo modo ainda, há Devires não humanos do homem que extravasam por todos os lados os estratos antropomórficos. Mas como atingir esse “plano”, ou antes, como construir esse plano, e traçar a “linha” que nos conduz a ele? É que, fora dos estratos ou sem os estratos, já não temos formas nem substâncias, nem organização nem desenvolvimento, nem conteúdo nem expressão. Estamos desarticulados, já nem parece que os ritmos nos sustentam. Como a matéria não formada, a vida anorgânica, o devir não humano poderiam ser algo além de um puro e simples caos? Ao mesmo tempo, todos os empreendimentos de desestratificação (por exemplo, extravasar o organismo, lançar-se num devir) devem primeiro observar regras concretas de uma prudência extrema: qualquer desestratificação 6 demasiado brutal corre o risco de ser suicida, ou cancerosa, isto é, ora se abre para o caos, o vazio e a destruição, ora torna a fechar sobre nós os estratos, que se endurecem ainda mais e perdem até seus graus de diversidade, de diferenciação e de mobilidade.

Conclusão: Regras concretas e máquinas abstratas

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A Agenciamentos. 11

Os agenciamentos já são algo distinto dos estratos. Contudo, fazem-se nos estratos, mas operam em zonas de descodificação dos meios: primeiro, extraem dos meios um território. Todo agenciamento é, em primeiro lugar, territorial. A primeira regra concreta dos agenciamentos é descobrir a territorialidade que envolvem, pois sempre há alguma: dentro da sua lata de lixo ou sobre o banco, os personagens de Beckett criam para si um território. Descobrir os agenciamentos territoriais de alguém, homem ou animal: “minha casa”. O território é feito de fragmentos descodificados de todo tipo, extraídos dos meios, mas que adquirem a partir desse momento um valor de “propriedade”: mesmo os ritmos ganham aqui um novo sentido (ritornelos). O território cria o agenciamento. O território excede ao mesmo tempo o organismo e o meio, e a relação entre ambos; por isso, o agenciamento ultrapassa também o simples “comportamento” (donde a importância da distinção relativa entre animais de território e animais de meio). Mesmo territoriais, os agenciamentos continuam pertencendo aos estratos, pelo menos por um aspecto. Graças a ele, em qualquer agenciamento,

4 pode-se distinguir o conteúdo e a expressão. Em cada agenciamento é preciso encontrar o conteúdo e a expressão, avaliar sua distinção real, sua pressuposição recíproca, suas inserções fragmento por fragmento. Mas, se o agenciamento não se reduz aos estratos, é porque nele a expressão torna-se um sistema semiótica, um regime de signos, e o conteúdo, um sistema pragmático, ações e paixões. É a dupla articulação rosto-mão, gesto-fala, e a pressuposição recíproca entre ambos. Eis, portanto, a primeira divisão de todo agenciamento: por um lado, agenciamento maquínico, por outro, e ao mesmo tempo, agenciamento de enunciação. Em cada caso é preciso encontrar um e outro: o que se faz e o que se diz? E entre ambos, entre o conteúdo e a expressão, se estabelece uma nova relação que ainda não aparecia nos estratos: os enunciados ou as expressões exprimem transformações incorporais que “se atribuem” como tais (propriedades) aos corpos ou aos conteúdos. Nos estratos, nem as expressões formavam signos, nem os conteúdos pragmata, razão pela qual não aparecia essa zona autônoma de transformações

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incorporais exprimidas pelas primeiras, atribuídas aos segundos. Certamente, os regimes de signos só se desenvolvem nos estratos autoplásticos ou antropomórficos (incluindo os animais territorializados). Nem por isso deixam de atravessar todos os estratos, e os transbordam. Enquanto os agenciamentos permanecem submetidos à distinção do conteúdo e da expressão, continuam pertencendo aos estratos, e pode-se considerar que os regimes de signos, os sistemas pragmáticos, constituem, por sua vez, estratos, no sentido amplo que vimos anteriormente. Mas, desde que a distinção conteúdo-expressão toma uma nova figura, encontramo-nos já, em sentido estrito, num outro elemento que não o dos estratos. Porém, o agenciamento também se divide segundo um outro eixo. Sua territorialidade (inclusive conteúdo e expressão) é apenas um primeiro aspecto; o outro diz respeito às linhas de desterritorialização que o atravessam e o arrastam. Estas linhas são muito diversas: algumas abrem o agenciamento territorial a outros agenciamentos, e o fazem passar nesses outros (por exemplo, o ritornelo territorial do animal torna-se ritornelo de corte ou de grupo...). Outras trabalham diretamente a territorialidade do agenciamento, e o abrem para uma terra excêntrica, imemorial ou por vir (por exem11 plo, o jogo do território e da terra no lied, ou mais geralmente no artista roe 4 mântico). Outras, enfim, abrem esses agenciamentos para máquinas abstratas e cósmicas que estes efetuam. Assim como a territorialidade do agenciamento tinha origem numa certa descodificação dos meios, também se prolonga necessariamente nestas linhas de desterritorialização. O território é tão inseparável da desterritorialização quanto o era o código em relação à descodificação. Segundo essas linhas, o agenciamento já não apresenta expressão nem conteúdo distintos, porém apenas matérias não formadas, forças e funções desestratificadas. As regras concretas de agenciamento operam, pois, segundo esses dois eixos: por um lado, qual é a territorialidade do agenciamento, quais são o regime de signos e o sistema pragmático? Por outro lado, quais são as pontas de desterritorialização, e as máquinas abstratas que elas efetuam? Há uma tetravalência do agenciamento: 1) conteúdo e expressão; 2) territorialidade e desterritorialização. É o caso dos quatro aspectos no exemplo privilegiado dos agenciamentos de Kafka.

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R Rizoma. 10

Não só os estratos, também os agenciamentos são complexos de linhas. Pode-se fixar um primeiro estado, ou uma primeira espécie de linha: a linha subordinada ao ponto; a diagonal, subordinada à horizontal e à vertical; a linha faz contorno, figurativo ou não; o espaço que traça é de estriagem; a multiplicidade numerável que constitui continua submetida ao Uno na sua dimensão sempre superior ou suplementaria. As linhas desse tipo são molares, e formam

9 um sistema arborescente, binário, circular, segmentário. e1 A segunda espécie é muito diferente, molecular e do tipo “rizoma”. A diagonal se liberta, se rompe ou serpenteia. A linha já não faz contorno, e passa entre as coisas, entre os pontos. Pertence a um espaço liso. Traça um plano que não tem mais dimensões do que aquilo que o percorre; por isso, a multiplicidade que constitui não está subordinada ao Uno, mas ganha consistência em 2 si mesma. São multiplicidades de massas ou de maltas, não de classes; multi10 plicidades anômalas e nômades e não mais normais e legais; multiplicidades 12 de devir, ou de transformações, e já não de elementos numeráveis e relações e 14 ordenadas; conjuntos vagos, e não mais exatos, etc. Do ponto de vista do pathos, é a psicose e sobretudo a esquizofrenia que exprimem essas multiplicidades. Do ponto de vista da pragmática, é a bruxaria que as maneja. Do ponto de vista da teoria, o estatuto das multiplicidades é correlativo ao dos espaços e inversamente: é que os espaços lisos do tipo deserto, estepe ou mar, não são desprovidos de povo ou despovoados, mas povoados por multiplicidades de segunda espécie (as matemáticas e a música foram muito longe na elaboração dessa teoria das multiplicidades). Não basta, todavia, substituir a oposição entre o Uno e o múltiplo por uma distinção entre os dois tipos de multiplicidade. Com efeito, a distinção dos 9 dois tipos não impede sua imanência, cada um “saindo” do outro à sua maneira. Mais do que multiplicidades arborescentes e outras que não o são, há uma arborificação das multiplicidades. É o que acontece quando os buracos negros distribuídos num rizoma se põem a ressoar juntos, ou então quando os caules formam segmentos que esfriam o espaço em todos os sentidos, e o tornam comparável, divisível, homogêneo (isto foi visto

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12 especialmente no caso do Rosto). É também o que sucede quando os movimentos de “massa”, os fluxos moleculares, se conjugam sobre pontos de acumulação ou de parada que os segmentam e os retificam. Porém, inversamente, ainda que sem simetria, os caules de rizoma não param de surgir das árvores, as massas e os fluxos escapam constantemente, inventam conexões que saltam de árvore em árvore, e que desenraizam: todo um alisamento do espaço, que por sua vez reage sobre o espaço estriado. Mesmo e sobretudo os territórios são agitados por esses profundos movimentos. Ou então a linguagem: as árvores da linguagem são sacudidas por germinações e rizomas. Por isso, as linhas de rizoma oscilam entre as linhas de árvore, que as segmentarizam e até 8 as estratificam, e as linhas de fuga 8 ou de ruptura que as arrastam. e9

Portanto, somos feitos de três linhas, mas cada espécie de linha tem seus perigos. Não só as linhas de segmentos que nos cortam, e nos impõem as estrias de um espaço homogêneo; também as linhas moleculares, que já carreiam seus microburacos negros; por último, as próprias linhas de fuga, que sempre ameaçam abandonar suas potencialidades criadoras para transformar-se em linha de morte, em linha de destruição pura e simples (fascismo).

C Plano de Consistência, Corpo sem órgãos. 10

O plano de consistência ou de composição (planômeno) se opõe ao plano de organização e de desenvolvimento. A organização e o desenvolvimento dizem respeito à forma e substância: ao mesmo tempo desenvolvimento da forma, e formação de substância ou de sujeito. Mas o plano de consistência ignora a substância e a forma: as hecceidades, que se inscrevem nesse plano, são precisamente modos de individuação que não procedem pela forma nem pelo sujeito. O plano consiste, abstratamente mas de modo real, nas relações de velocidade e de lentidão entre elementos não formados, e nas de composições de afectos intensivos correspondentes (“longitude” e “latitude” do plano).

11 Num segundo sentido, a consistência reúne concretamente os heterogêneos, os disparates enquanto tais: garante a consolidação dos conjuntos vagos, isto é, das multiplicidades do tipo rizoma. Com efeito, procedendo por consolidação, a consistência necessariamente age no meio, pelo meio, e se

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opõe a todo plano de princípio ou de finalidade. Espinosa, Hölderlin, Kleist, Nietzsche são os agrimensores de um tal plano de consistência, (amais unificações, totalizações, porém consistências ou consolidações. 10

Nesse plano de consistência se inscrevem: as hecceidades, acontecimentos, transformações incorporais apreendidas por si mesmas; as essências nômades ou vagas, e contudo rigorosas; os continuums de intensidade ou variações

4, 6 contínuas, que extravasam as constantes e as variáveis; os devires, que não 7,9 possuem termo nem sujeito, mas arrastam um e outro a zonas de vizinhança ou de indecidibilidade; os espaços lisos, que se compõem através do espaço estriado. Diríamos, a cada vez, que um corpo sem órgãos, corpos sem 6 órgãos 6 (platôs) intervém: para a individuação por hecceidade, para a produção de ine 10 tensidades a partir de um grau zero, para a matéria da variação, para o meio do devir ou da transformação, para o alisamento do espaço. Poderosa vida não 14 orgânica que escapa dos estratos, atravessa os agenciamentos, e traça uma linha abstrata sem contorno, linha da arte nômade e da metalurgia itinerante. É o plano de consistência que constitui os corpos sem órgãos, ou são os corpos sem órgãos que compõem o plano? O Corpo sem Órgãos e o Plano são a mesma coisa? De qualquer maneira, o que compõe e o composto têm a mesma potência: a linha não tem dimensão superior ao ponto, a superfície não tem dimensão superior à linha, nem o volume dimensão superior à superfície, 10 mas há sempre um número de dimensão fracionária, anexato, ou que não para e 14 de crescer ou de decrescer com as partes. O plano opera a secção em multiplicidades de dimensões variáveis. A questão, portanto, é o modo de conexão entre as diversas partes do plano: em que medida os corpos sem órgãos se compõem juntos? e como se prolongam os contínuos de intensidade? em que ordem as séries de transformações se fazem? quais são esses encadeamentos alógicos que sempre se produzem no meio, e graças aos quais o plano se constrói fragmento por fragmento segundo uma ordem fracionária crescente ou decrescente? O plano é como uma fileira de portas. E as regras concretas de construção do plano só valem quando exercem um papel seletivo. Com efeito, o plano, isto é, o modo de conexão, proporciona a maneira de eliminar os corpos vazios e cancerosos que rivalizam com os corpos sem órgãos; de rejeitar 6 as superfícies homogêneas que recobrem o

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espaço liso; de neutralizar as linhas de morte e de destruição que desviam a linha de fuga. Só é retido e conservado, portanto criado, só tem consistência, aquilo que aumenta o número de conexões a cada nível da divisão ou da composição, por conseguinte, tanto na ordem decrescente como na crescente (o que não se divide sem mudar de natureza, o que não se compõe sem mudar de critério de comparação...).

D Desterritorialização. 5

A função de desterritorialização: D é o movimento pelo qual “se” abandona o território. É a operação da linha de fuga. Porém, casos muito diferentes se apresentam. A D pode ser recoberta por uma reterritorialização que a compensa, com o que a linha de fuga permanece bloqueada; nesse sentido, podemos dizer que a D é negativa. Qualquer coisa pode fazer as vezes da reterritorialização, isto é, “valer pelo” território perdido; com efeito, a reterritorialização pode ser feita sobre um ser, sobre um objeto, sobre um livro, sobre um aparelho ou sistema... Por exemplo, o aparelho de Estado é erroneamente dito territorial: na verdade ele opera uma D que, no entanto, é imediatamente recoberta por reterritorializações sobre a propriedade, o trabalho e o dinheiro (é evidente que a propriedade da terra, pública ou privada, não é territorial, mas reterritorializante). Entre os regimes de signos, o regime significante atinge certamente um alto nível de D; mas, por operar ao mesmo tempo todo um sistema de reterritorializações sobre o significado, sobre o próprio significante, ele bloqueia a linha de fuga, e só deixa subsistir uma D negativa. Um outro caso se apresenta quando a D se torna positiva, isto é, se afirma através das reterritorializações que desempenham tão somente um papel secundário, porém, não obstante, permanece relativa, pois a linha de fuga que traça está segmentarizada, dividida em “processos” sucessivos, precipita-se em buracos negros, ou até desemboca num buraco negro generalizado (catástrofe). Este é o caso do regime de signos subjetivo, com sua D passional e consciencial, que é positiva, mas só num sentido relativo. Convém notar que essas duas grandes formas de D não estão numa relação evolutiva simples: a segunda pode escapar à primeira, podendo igualmente conduzir a ela (isto ocorre em especial quando as segmentações

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9 de linhas de fuga convergentes acarretam uma reterritorialização de conjunto, ou em proveito de um dos segmentos, de modo que o movimento da fuga é detido). Há toda sorte de figuras mistas que recorrem a formas muito diversas de D. Existe uma D absoluta, e o que quer dizer “absoluto”? Seria preciso, inicialmente, compreender melhor as relações entre D, território, reterritorialização e terra. Em primeiro lugar, o próprio território é inseparável de vetores de desterritorialização que o agitam por dentro: seja porque a territorialidade é 9 flexível e “marginal”, isto é, itinerante, seja porque o próprio agenciamento tere 13 ritorial se abre para outros tipos de agenciamentos que o arrastam. Em se11 gundo lugar, a D, por sua vez, é inseparável de reterritorializações correlativas. É que a D nunca é simples, mas sempre múltipla e composta: não apenas porque participa a um só tempo de formas diversas, mas porque faz convergirem velocidades e movimentos distintos, segundo os quais se assinala a tal ou qual momento um “desterritorializado” e um “desterritorializante”. Ora, a reterritorialização como operação original não exprime um retorno ao território, mas essas relações diferenciais interiores à própria D, essa multiplicidade interior à 7 linha de fuga (cf. “teoremas de D”). Enfim, de modo algum a terra é o contrário e 10 da D: isto já é o que se vê no mistério do “natal”, onde a terra como lar ardente, 11 excêntrico ou intenso, está fora do território e só existe no movimento da D. Porém, mais ainda, a terra, o glaciário, é a Desterritorializada por excelência: 3 nesse sentido pertence ao Cosmo, e se apresenta como o material graças ao qual o homem capta forças cósmicas. Cabe dizer que, enquanto desterritorializada, a própria terra é o estrito correlato da D. A ponto de se poder nomear a D criadora da terra — uma nova terra, um universo, e já não só uma reterritorialização. Eis, portanto, o que significa “absoluto”: o absoluto nada exprime de transcendente ou indiferenciado, nem mesmo exprime uma quantidade que ultrapassaria qualquer quantidade dada (relativa). Exprime apenas um tipo de movimento que se distingue qualitativamente do movimento relativo. Um movimento é absoluto quando, sejam quais forem sua quantidade e velocidade, relaciona “um” corpo considerado como múltiplo a um espaço liso que ele 7 ocupa de maneira turbilhonar. Um movimento é relativo, sejam quais forem e 14 sua

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quantidade e velocidade, quando relaciona um corpo considerado como Uno a um espaço esfriado no qual se desloca, e que mede segundo retas pelo menos virtuais. A D é negativa ou relativa (contudo já efetiva) cada vez que opera conforme esse segundo caso, seja por reterritorializações principais que bloqueiam as linhas de fuga, seja com reterritorializações secundárias que as segmentarizam e tendem a rebatê-las. A D é absoluta, conforme o primeiro caso, cada vez que realiza a criação de uma nova terra, isto é, cada vez que conecta as linhas de fuga, as conduz à potência de uma linha vital abstrata ou traça um plano de consistência. Ora, o que complica tudo é que essa D absoluta passa necessariamente pela relativa, justamente porque ela não é transcendente. Inversamente, a D relativa ou negativa tem, ela própria, necessidade de um absoluto para conduzir sua operação: faz do absoluto um “englobante”, um totalizante que sobrecodifica a terra e que, como consequência, conjuga as linhas de fuga para detê-las, destruí-las, em vez de conectá-las para criar (nesse sentido, opúnhamos conjugação e conexão, ainda que com frequência nós as tenhamos tratado como sinônimos desde um ponto de vista muito geral). Há, 9 portanto, um absoluto limitativo que já intervém nas D propriamente negativas e 14 ou mesmo relativas. Ainda mais, nessa virada do absoluto, as linhas de fuga não são apenas bloqueadas ou segmentarizadas, mas convertem-se em linhas de destruição e de morte. É justamente aí que o negativo e o positivo estão em 11 jogo no absoluto: a terra cinturada, englobada, sobrecodificada, conjugada como objeto de uma organização mortuária e suicida que a rodeia por toda parte, ou então a terra consolidada, conectada ao Cosmo, situada no Cosmo segundo linhas de criação que a atravessam como outros tantos devires (as palavras de Nietzsche: Que a terra se torne a leve...). Portanto, são pelo menos quatro formas de D que se afrontam e se combinam, e que é preciso distinguir por regras concretas.

M Máquinas abstratas (diagrama e phylum) Num primeiro sentido, não existe a máquina abstrata, nem máquinas abstratas que seriam como Ideias platônicas, transcendentes e universais, eternas. As máquinas abstratas operam em agenciamentos concretos: definem-se pelo quarto aspecto dos agenciamentos,

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11 isto é, pelas pontas de descodificação e de desterritorialização. Traçam essas pontas; assim, abrem o agenciamento territorial para outra coisa, para agenciamentos de um outro tipo, para o molecular, o cósmico, e constituem devires. Portanto, são sempre singulares e imanentes. Contrariamente ao que se passa nos estratos, e também nos agenciamentos considerados sob seus outros aspectos, as máquinas abstratas ignoram as formas e as substâncias. Por isso são abstratas, mas também é esse o sentido rigoroso do conceito de máquina. As máquinas excedem toda mecânica. Opõem-se ao abstrato no seu sentido ordinário. As máquinas abstratas consistem em matérias não formadas e funções não formais. Cada máquina abstrata é um conjunto consolidado de maté5 rias-funções (phylum e diagrama). Isto se vê claramente num “plano” tecnológico: um tal plano não é composto simplesmente por substâncias formadas, alumínio, plástico, fio elétrico, etc, nem por formas organizadoras, programa, protótipos, etc, mas por um conjunto de matérias não formadas que só apresentam graus de intensidade (resistência, condutibilidade, aquecimento, estiramento, velocidade ou retardamento, indução, transdução..)., e funções diagramáticas que só apresentam equações diferenciais ou, mais geralmente, “tensores”. Certamente, no seio das dimensões do agenciamento, a máquina abstrata ou máquinas abstratas efetuam-se em formas e substâncias, com estados de liberdade variáveis. Mas foi preciso, simultaneamente, que a máquina abstrata se componha e componha um plano de consistência. Abstratas, singulares e criativas, aqui e agora, reais embora não concretas, atuais ainda que não efetuadas; por isso, as máquinas abstratas são datadas e nomeadas (máquina abstrata-Einstein, máquina abstrata-Webern, mas também Galileu, Bach ou Beethoven, etc). Não que remetam a pessoas ou a momentos efetuantes; ao contrário, são os nomes e as datas que remetem às singularidades das máquinas, e a seu efetuado. Mas se as máquinas abstratas ignoram a forma e a substância, o que acontece com a outra determinação dos estratos ou mesmo dos agenciamentos, o conteúdo e a expressão? Em certo sentido, pode-se dizer que essa dis3 tinção também deixa de ser pertinente em relação à máquina abstrata; e justamente porque esta não tem mais formas e substâncias que condicionem a distinção. O plano de consistência é um plano de variação contínua,

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cada máquina abstrata pode ser considerada como um “platô” de variação que coloca em continuidade variáveis de conteúdo e de expressão. O conteúdo e a expressão atingem aí, portanto, seu mais alto grau de relatividade, tornam-se os “functivos de uma mesma função” ou os materiais de uma mesma matéria. 4 Porém, num outro sentido, diremos que a distinção subsiste, e mesmo é recrie 5 ada, no estado de traços; existem traços de conteúdo (matérias não formadas ou intensidades) e traços de expressão (funções não formais ou tensores). A distinção é inteiramente deslocada, ou mesmo nova, visto que concerne agora a pontas de desterritorialização. Com efeito, a desterritorialização absoluta implica um “desterritorializante” e um “desterritorializado”, que se repartem em cada caso, um para a expressão, o outro para o conteúdo, ou inversamente, mas sempre de modo a veicular uma distinção relativa entre os dois. Por isso, a variação contínua afeta necessariamente o conteúdo e a expressão conjuntamente, mas nem por isso deixa de distribuir dois papéis dissimétricos como elementos de um só e mesmo devir, ou como os quanta de um só e mesmo fluxo. Donde a impossibilidade de definir uma variação contínua que não afetasse ao mesmo tempo o conteúdo e a expressão tornando-os indiscerníveis, mas também que não procedesse por um ou pelo outro, para determinar os dois polos relativos e móveis daquilo que se torna indiscernível. É assim que se 1,2 deve definir ao mesmo tempo traços ou intensidades de conteúdo, e traços ou 4, 10 tensores de expressão (artigo indefinido, nome próprio, infinitivo e data) que se revezam, arrastando-se uns aos outros alternadamente, no plano de consistência. É que a matéria não formada, o phylum, não é uma matéria morta, bruta, homogênea, mas uma matéria-movimento que comporta singularida12 des ou hecceidades, qualidades e mesmo operações (linhagens tecnológicas itinerantes); e a função não formal, o diagrama, não é uma metalinguagem expressiva e sem sintaxe, mas uma expressividade-movimento que sempre com4 porta uma língua estrangeira na língua, categorias não linguísticas na linguagem (linhagens poéticas nômades). Nesse caso, escreve-se diretamente com o real de uma matéria não formada, ao mesmo tempo em que essa matéria atra10 vessa e tensiona a linguagem não formal em sua totalidade: um devir-animal como os camundongos de Kafka, os ratos de Hofmannsthal, os bezerros de Moritz? Uma máquina revolucionária, tanto mais abstrata quanto é real. Um regime que não passa mais pelo significante nem pelo subjetivo.

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O que dizemos vale para as máquinas abstratas imanentes e singulares. Mas isso não impede que “a” máquina abstrata possa servir de modelo transcendente, em condições muito particulares. Neste caso, os agenciamentos concretos são referidos a uma ideia abstrata de Máquina, e são afetados por coeficientes que dão conta de suas potencialidades, de sua criatividade, segundo o modo pelo qual o efetuam. Os coeficientes que “quantificam” os agenciamentos dizem respeito aos componentes variáveis de agenciamento (território, desterritorialização, reterritorialização, terra, Cosmo); as linhas diversas entrelaçadas que constituem o “mapa” de um agenciamento (linhas molares, linhas moleculares, linhas de fuga); as diferentes relações de cada agenciamento com um plano de consistência (phylum e diagrama). Por exemplo, o componente 11 “folha de grama” pode mudar de coeficiente conforme os agenciamentos animais, de espécies ainda que muito vizinhas. Como regra geral, um agenciamento é tanto mais afinado com a máquina abstrata quanto mais apresenta 4 linhas sem contorno que passam entre as coisas, e goza de uma potência de e 10 metamorfose (transformação e transubstanciação) correspondente à matériafunção: cf. a máquina das Ondas. Consideramos, sobretudo, dois grandes agenciamentos antropomórficos e aloplásticos, a máquina de guerra e o aparelho de Estado. Trata-se de agenciamentos que não apenas diferem em natureza, mas são diferentemente quantificáveis na relação com “a” máquina abstrata. Com o phylum, com o diagrama, a relação não é a mesma; não são as mesmas linhas, nem os mesmos compo12 nentes. Esta análise dos dois agenciamentos, e de seus coeficientes, mostra e 13 que a máquina de guerra não tem por si mesma a guerra por objeto, mas passa a tê-la, necessariamente, quando se deixa apropriar pelo aparelho de Estado. É nesse ponto muito preciso que a linha de fuga, e a linha vital abstrata que esta efetua, se transformam em linha de morte e de destruição. A “máquina” de guerra (daí seu nome) está, pois, muito mais próxima da máquina abstrata do que, desta, está o aparelho de Estado, aparelho que a faz perder sua potência de metamorfose. A escrita e a música podem ser máquinas de guerra. Um agenciamento está tanto mais próximo da máquina abstrata viva quanto mais abre e multiplica as conexões, e traça um plano de consistência com seus quan1, 4 tificadores de intensidade e de consolidação. Mas se afasta dela na medida em 5, 9 que substitui as conexões criadoras por conjunções que criam bloqueios (axiomática),

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organizações que formam estrato (estratômetros), reterritorializações que produzem buraco negro (segmentômetros), conversões em linhas de morte (deleômetros). Exerce-se, assim, toda uma seleção sobre os agenciamentos, segundo sua aptidão para traçar um plano de consistência com conexões crescentes. A esquizoanálise não é apenas uma análise qualitativa das máquinas abstratas em relação aos agenciamentos; é também uma análise quantitativa dos agenciamentos em relação a uma máquina abstrata supostamente pura. Há ainda um último ponto de vista, a análise tipológica, pois existem tipos gerais de máquinas abstratas. A máquina ou as máquinas abstratas do plano de consistência não esgotam e não dominam o conjunto das operações que constituem os estratos e mesmo os agenciamentos. Os estratos “pegam” no próprio plano de consistência, nele formam espessamentos, coagulações, cinturas que vão organizar-se e desenvolver-se segundo eixos de um outro plano 3 (substância-forma, conteúdo-expressão). Mas, nesse sentido, cada estrato tem uma unidade de consistência ou decomposição que concerne inicialmente aos elementos substanciais e aos traços formais, e dão testemunho de uma máquina abstrata propriamente estrática que preside esse outro plano. E há um terceiro tipo: é que, nos estratos aloplásticos, particularmente propícios aos agenciamentos, erigem-se máquinas abstratas que compensam as desterrito9 rializações através de reterritorializações e, sobretudo, as descodificações mediante sobrecodificações ou equivalentes de sobrecodificação. Vimos, em especial, que, se é verdade que máquinas abstratas abrem os agenciamentos, são igualmente máquinas abstratas que os fecham. Uma máquina de palavras de ordem sobrecodifica a linguagem, uma máquina de rostidade sobrecodifica 4, 7 o corpo e mesmo a cabeça, uma máquina de servidão sobrecodifica ou axioe 8 matiza a terra: não se trata em absoluto de ilusões, porém de efeitos maquínicos reais. Já não podemos dizer, então, que os agenciamentos se medem numa escala quantitativa que os aproximam ou distanciam da máquina abstrata do plano de consistência. Existem tipos de máquinas abstratas que não param de trabalhar umas nas outras, e que qualificam os agenciamentos: máquinas abstratas de consistência, singulares e mutantes, com conexões multiplicadas; mas também máquinas abstratas de estratificação, que circundam o plano de consis5 tência com um outro plano; e máquinas abstratas sobrecodificadoras ou axiomáe 13 ticas, que realizam as totalizações, homogeneizações, conjunções de fechamento.

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Desse modo, toda máquina abstrata remete a outras máquinas abstratas: não apenas porque elas são inseparavelmente políticas, econômicas, científicas, artísticas, ecológicas, cósmicas — perceptivas, afetivas, ativas, pensantes, físicas e semióticas —, mas porque entrecruzam seus tipos diferentes tanto quanto seu exercício concorrente. Mecanosfera.

Tradução de Peter Pál Pelbart

ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES 1.

Sylvano Bussoti, Cinco peças para piano para David Tudor, com a amável autorização de G. Ricordi, Milão, © 1970 by G. Ricordi E. C. SPA

2.

Foto Boyer, Rastros de lobos sobre a neve, col. Viollet

3.

Foto Boyer, Lagosta, col. Viollet

4.

Fritz Lang, O testamento do doutor Mabuse (efígie do doutor Mabuse perfurada por balas)

5.

A arca da aliança com a coluna de fogo e a nuvem, Musée des arts décoratifs, col. Viollet

6.

M. Griaule e G. Dieterlan, A raposa pálida, Institut d'ethnologie, Musée de l'homme (primeiro Yala do ovo de Amma)

7.

Duccio, Vocação de São Pedro e Santo André, Nova York, col. Bulloz Rostos dos enrodilhados mágicos etíopes, segundo documentos de Jacques Mercier

8.

R. F. Outeault, Buster Brown, o pequeno carteiro, Librairie Hachette

9.

Fernand Léger, Os homens na cidade, 1919. The Solomon R. Guggenheim Museum, Nova York, foto Robert E. Mates

10.

Lobisomem da ânfora etrusca de Cerveteri, Musée du Louvre, foto Chuzeville Prato etrusco, Museu Nacional Etrusco, Roma

11.

Paul Klee, Die Zwitschermaschine, 1922, Col. Museum of Modern Art, Nova York

12.

Desenho da carruagem de madeira que se encontra no Museu do Ermitage, Leningrado Eisenstein, A greve, col. Cahiers du cinema

13.

Chomel, Dictionnaire économique, 1732, artigo “Perdrix”

14.

“Crazy” em tiras, Vermont 1865, in Jonathan Holstein, Quilts, Musée des arts décoratifs, Paris, 1972 Resumo do livro de Benoît Mandelbrot, por Lancelot Herrisman, in Science et Vie, dez. 1977

15.

Einstein no computador