A retirada dos dez mil

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Aquilino Ribeiro nasceu na Beira Alta, concelho de Sernancelhe, no ano de 1885, e morreu em Lisboa em 1963. Deixou uma vasta obra em que cultivou todos os géneros literários partilhando com Fernando Pessoa, no dizer de Oscar Lopes, o primado das letras portuguesas do século XX. Foi sócio de número da Academia das Ciências e, após o 25 de Abril, reinte­ grado, a título póstumo, na Biblioteca Nacional, condecorado com a Ordem da Liberdade e homenageado, quando do seu centenário, pelo Ministério da Cultura. Em Setembro de 2007, por votação unânime da Assembleia da República, o seu corpo foi depositado no Panteão Nacional.

Obras de Aquilino Ribeiro:

O Malhadinhas As Três Mulheres de Sansão O Servo de Deus e a Casa Roubada Geografia Sentimental A Casa Grande de Romarigães O Galante Século Xllll Um Escritor Confessa-se Romance da Raposa Aldeia: Terra, Gente e Bichos D. Quixote de La Mancha Príncipes de Portugal. Suas Grandezas e Misérias Quando os Lobos Uivam Andam Faunos pelos Bosques Arcas Encoiradas Terras do Demo Jardim das Tormentas E a Guerra A Retirada dos De^Mil

Capa: Gravura retirada da capa da primeira edição de A Retirada dos Dez Mi/, da autoria de Eduardo Faria.

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XENOFONTE

A RETIRADA DOS DEZ MIL

Trad, e prefácio de Aquilino Ribeiro

Introdução de Mário de Carvalho

BERTRAND EDITORA Lisboa 2014

Título original: A Retirada dos De% Md Autor: Xenofonte © Herdeiros de Aquilino Ribeiro e Bertrand Editora, 2014 Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, excepto Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda. Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1 1500-499 Lisboa Telefone: 21 762 60 00 Fax: 21 762 61 50 Correio electrónico: [email protected] www.bertrandeditora.pt Revisão: Catarina Araújo da capa: Ana Monteiro

Design

Pré-impressão: Fotocompográfica, Lda. Execução gráfica: Bloco Gráfico, Lda. Unidade Industrial da Maia 1.* edição: outubro de 2014 Depósito legal n.° 379 737/14 ISBN: 978-972-25-2897-9

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À CÓPIA A cópia ilegal viola os direitos dos autores. Os prejudicados somos todos nós.

INTRODUÇÃO OS GREGOS. A GUERRA. O MESTRE

Este é um dos mais movimentados e arrebatadores livros de acção que jamais se escreveram. Lê-se empolgadamente, como um romance de guerra. Trata de personagens, factos e locais verídicos, transfigurados (os especialistas dirão até que ponto) por uma pena ágil, de poderoso vigor expressivo. E possível conceber todas estas extensões da Ásia percorridas por imensos exércitos, persas e gregos, como um esplendoroso terri­ tório mágico. Desertos, rios, montes, campos, povos, nomes que res­ soam, vibrantes ou sombrios, em reverberação exótica de mitos an­ cestrais, por mais que os sábios lhes queiram deslindar a verdade geográfica ou histórica. As moedas, medidas e alcances são referidas ora em termos persas, ora gregos. Parasangas, estádios e pletros mar­ cam as distâncias. Correm avestruzes, onagros, abetardas. Ocasiões há em que falta mais o pão que a carne. Noutras, tudo falta. Das cu­ meadas dos cerros ou da margem oposta do rio ou pântano surgem hordas de povos estranhos de colorido aspecto. «— O Império dos meus pais, soldados — arengou Ciro o Jovem — estende-se para o Sul até uma zona vedada pelo calor tórrido de ser habitada pelo homem, para Norte a paragens também desertas por causa do frio ri­ goroso que lá reina; O Centro é governado por sátrapas, partidários todos de meu irmão. Eu só me quero convosco; se venço, quem há-de ir ocupar essas satrapias, se não vós»? Assim se persuadiram os soldados de fortuna gregos a alinhar, em massa, numa tentativa vio­ lenta de usurpação. Movia-os a pura cupidez, o ouro cantante, ao ser­ viço de Ciro, o Jovem, sátrapa da Lídia de vinte e três anos, aspirante

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ao trono do seu irmão mais velho, Artaxerxes II. De maneiras de ser opostas, segundo consideraram os antigos, tinham ambos em comum o serem completamente destituídos de escrúpulos. O Ciro que Xenofonte nos apresenta é um moço riquíssimo, desenvolto, ha­ bilidoso, bem-falante, valente e conhecedor da mentalidade grega e de como levá-la à certa. Noutra obra, também traduzida por Aquili­ no, o ateniense discorre sobre um ancestral homónimo deste mesmo Ciro, cognominado o Velho, ou o Antigo, adrede fantasiado, como expoente de um ideal helénico de educação do príncipe. Arregimentados de início com o pretexto (logro meio executado, para dar mais firmeza à maquinação) de uma contenda local entre satrapias, os mercenários gregos acabaram por marchar sobre Babilónia e confrontar o desmedido e variegado exército de Artaxerxes. Diz-se no remate do livro, porventura adicionado mais tarde, que percorreram mil cento e cinquenta e cinco parasangas (cada: 5520 m), e que a expedição durou quinze meses. Os estudiosos debatem, em por­ menor miúdo, a cronologia e o itinerário. A retirada tornou-se inevitá­ vel, após a morte do mandante usurpador na batalha de Cunaxa, em lance temerário. Um dardo bem arremessado atingiu Ciro na face e o jovem príncipe teve morte imediata. Os gregos aguentaram firmes, se­ nhores do terreno, mas, uma vez Ciro abatido, a vitória não lhes servia para nada. A marcha — progressão até Cunaxa, às portas de Babilónia e regresso pelas margens do Eufrates, montanhas do Curdistão, Armé­ nia e Georgia, com o sentido no Mar Negro — ficou na história como um dos mais celebrados feitos militares de todos os tempos. Xenofonte, discípulo de Sócrates, de quem escreveu uma apolo­ gia, e sobre cuja figura discorreu em Os Memoráveis, autor da Kyropeidea e de outros trabalhos históricos e, até, práticos (equitação), é sobretu­ do conhecido, fora dos meios especializados por esta Anábase, que Aquilino, em boa hora, traduziu entre nós por A Retirada dos De% Mil Foi ele um dos comandantes da marcha, após o assassinato à traição, pelos persas, das chefias anteriores. Refere-se a si próprio sempre na terceira pessoa, aprimora os dis­ cursos, de acordo com as melhores regras da retórica e não resiste a auto-elogiar-se, tendo ocasião. As vezes desvanece-se: «e foi um

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triunfo para ele», chega a comentar com indisfarçada imodéstia. Sim­ patizante das oligarquias, não consegue ocultar a parcialidade pelos espartanos que irá marcar o resto da sua vida e a um preço caro. Para muitos leitores, a sociedade espartana corresponderá a um paradigma de horror e pesadelo. Descontemos, concedendo que o mundo helé­ nico era, no geral, cruelmente escravista, e que esta obra trata, sobre­ maneira, de guerra, combates e violência. Uma excepcional narrativa que encontrou a sorte dum grande tradutor. Magnífica conjunção esta, entre o desenvolto escritor grego e o eminente autor português que também, na juventude e nas cir­ cunstâncias lembradas no seu prefácio, com uma versão latina à mão, se abalançou à Kyropeidea, a que chamou, evocando no título mais o espírito que a letra: O Príncipe Perfeito. Sou dos que consideram Aquilino Ribeiro o maior e mais com­ pleto dos escritores portugueses do século xx. Vida aventurosa e múltipla, numa afirmação de rija e digna cidadania, um exemplo de coragem e altiva resistência, e também uma presença tutelar e respei­ tada nos meios culturais de então. Na sua obra, releva o balanceio entre a cidade e o campo, a disseminação por vários géneros, roman­ ce, novela, conto, ensaio e tradução, o assomar duma cultura densíssima e multímoda, de vasta e partilhada repercussão, desde os autores clássicos remotos e estruturantes, até aos da sua contemporaneidade. Avulta, sobretudo, o esplendoroso domínio da língua portuguesa, a riqueza vocabular e imagética e também a graça, ora subtil, ora vivaz e bonacheirona, cortando de um travo popular a situação mais tensa ou a solenidade mais erudita. Assim palrariam estes arrogantes guerreiros, nos seus tratos bélicos, ou objurgatórias de caserna. Os gregos, aqui os temos em cheio. Terminada a guerra do Peloponeso, milhares de homens livres, desocupados e sem cheta, deam­ bulavam por essa Grécia fora. O ouro de Ciro, o Jovem, cantou alto e acirrou a vontade de lutar, ainda não inteiramente amortecida, duma imensidão de soldados sem eira nem beira. Para outros, como Clearco, a ambição de Ciro foi a oportunidade de exercer um puro espírito marcial, amante da guerreia pela guerreia. Ser mercenário, pelos vistos, não parecia então desonroso. Há uma Grécia de bilhete-postal, de harmoniosas colunas bran­ cas ao cimo dum declive macio, harmonizando-se com o sol-pôr,

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sobre horizontes amenos. Outra, ainda, que vence o cliché, de circunspectos filósofos e homens públicos, travando razões elevadas na ágora, no pórtico, nos jardins, nas assembleias, mormente sobre questões de ética. Em simpósios, ou banquetes, ditados pelas regras de civilidade, boas maneiras e arte de conversar, esteve presente, entre vários, o dúbio e oportunista Menão de quem Xenofonte, outro dos comensais, não consegue dizer senão mal. Estes gregos que aqui vemos em marcha não são propriamente alfenins, nem corações floridos. São tirados mais do real que da estilização idealista. Também não são de confiança. A palavra deles vale tanto como poalha de areia ao vento. Nada oferecem sem uma con­ trapartida vantajosa. Transportam consigo o produto dos saques, tudo a que puderam deitar mão, mulheres roubadas, valores, vitua­ lhas, escravos arrepanhados aqui e além. Em dada altura, a impedi­ menta arrasta mais de quatrocentos carros. Pilham, incendeiam, rou­ bam, assassinam. São bandoleiros, ratoneiros e, estando perto do mar, piratas. A matreirice vai-lhes na massa do sangue. Um discurso de Xenofonte, já no final, em terra trácia, resume todo um programa, com muito à-vontade: «como não dispomos de dinheiro, e aqui não podemos deitar mão a nada que não tenha de se pagar, se acham bem, vamos para terras em que os habitantes, menos fortes que nós, não terão remédio senão sustentar-nos». Valem-se de armamento e organização militar superiores, um poder compacto de choque a que os outros, armados à ligeira, não conseguem resistir. Tudo ali é estruturado e especializado: hoplitas — infantaria pesada; peltastas — infantaria ligeira; archeiros creten­ ses, fundibulários ródios, carreiros, corpo médico... Mesmo nos mais novos sobressai a veterania da guerra civil grega. Na ordem de bata­ lha avançam em falange, ordenadamente, com passo acertado, for­ matura estudada, entoando um canto sagrado, o péon, que levanta os ânimos e intimida os adversários. Uma nota de contrariedade: o arco dos Carducos (Curdos) cujas flechas lhes hão-de furar escudos e cou­ raças. Dizem que Alexandre Magno usará a Anábase, por um lado, como certificação das debilidades do exército persa, por outro, como referencial de itinerário e fonte de informação acerca de diversos povos.

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Ainda falta muito para, certo dia, chegarem os legionários roma­ nos, com organÍ2ação, armas, engenharias, estratégicas e tácticas ain­ da mais elaboradas. E autocontrolo. E disciplina. E sangue-frio. É que estes gregos são profundamente individualistas, fazem pela vida, não se coíbem de desobedecer, mesmo no auge duma batalha. As arruaças dentro do arraial chegam a tomar aspectos burlescos. Dádiva pessoal? Não vem ao caso. São dotados de sentido prático: é preciso queimar o trem? Queima-se. Depois reconstitui-se, pilhan­ do o inimigo. E preciso cozinhar os animais de tiro? Fazem-se fo­ gueiras com os escudos e lanças capturados ao lado de lá. E preciso passar um rio? Aceitam-se, ponderam-se e discutem-se propostas. E preciso perseguir o inimigo com uma coorte de cavaleiros? Improvisa-se a partir do que houver. Não poucos são atreitos à traição. Fogem, desertam, cindem, mentem desaforadamente. E quando é caso de fugida, nunca vão de mãos a abanar. As vezes dá-lhes para a zaragata entre si e custam a desapartar. São crentes, entranhadamente religiosos: não esboçam um passo sem tentar aliciar os deuses com holocaustos, sendo possí­ vel, abundantes. A superstição cobra os seus tributos: Um espirro a meio duma conversa, um sonho, um golpe de vento são presságios que tomam muito a sério. Não embarcam numa deliberação sem que os adivinhos consultem as entranhas dos animais. Pode dar-se mes­ mo o caso de se repetirem consultas sucessivas, até que a previsão coincida, por fim, com a decisão anteriormente tomada. Mas sobre tudo isto, e sem embargo de reservas mentais, entre os homens livres tudo se decide democraticamente. O soldado mais hu­ milde é chamado a pronunciar-se. E há assuadas, contraditório, vota­ ções. Eis — por mais cruel e desabalado que seja este mundo guer­ reiro — um traço distintivo nítido que para além das muitas terras-de-ninguém separa definitivamente estes homens dos exércitos ou hordas sanguinárias que os cercam, vigiam e lhes saem ao caminho. Entre os gregos, as grandes decisões e responsabilidades tomam-se colectivamente. É a liberdade que, nas palavras de Ciro, eles «têm como sumo bem». Esta a matriz diferenciadora que admiramos e sa­ bemos reconhecer neste nosso espaço e tempo.

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Mas também falam de igual para igual, seja qual for a posição que ocupem na hierarquia. Não raro, mostram-se recalcitrantes e, mes­ mo, inconvenientes. Xenofonte, a cavalo incita os companheiros numa subida íngreme: « — De cima do cavalo podes fanfar! — lançou-lhe um certo Sotérides de Sicião. Se fosses à pata e levasses o escudo como eu levo, não te mostravas tão farsola! Mal ouviu estas palavras, Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo, empurrou o soldado para fora da forma, e arrancando-lhe o escudo pôs-se a correr ao lado dos outros.» Em várias circunstâncias, este papel do exemplo é mais convin­ cente do que as palavras aladas. Com um frio de rachar, em plena neve arménia, Xenofonte vence os desânimos despindo-se e come­ çando a rachar lenha. Talvez todos os homens sejam contraditórios por o paradoxo lhes estar entranhado na natureza. Os gregos predadores, brigões, palradores e vociferantes são os mesmos que conseguem produzir re­ finados espectáculos de mimo, canto e música durante um banquete, aliás primorosamente descrito. E com vozes femininas também. E muito conhecida a corrida alvoroçada da tropa quando um deles avista o Mar Negro de cima duma elevação e dá voz: «Thalassa\ Thalassal» O mar, enfim, o mar! Rompe uma nova fase na atribulada marcha dos dez mil, que vão sendo cada vez menos. Mas além das coloridas reconstituições de batalhas, emboscadas, escaramuças, marchas forçadas, razias, predações, a pena ágil de Xe­ nofonte e a excelência de escrita do seu tradutor dão-nos os retratos perspicazes de Ciro e dos comandantes assassinados à traição pelo sátrapa Tissafernes; a penosa caminhada através de «desertos lisos como o mar»; o relato tenso e alternado de magotes de homens que, de um lado e outro, se precipitam para tomar as cumeadas de um monte; o sofrimento dum exército que desespera de frio, fome e doença numa paisagem nevada; a situação burlesca do mel que en­ louquece os militares que dele se apoderaram; os expedientes e falas matreiras para persuadir os soldados a fazer o que não querem; a ba­ rafunda que resulta dum levantamento interno, assaz confuso, contra os «fiscais de géneros»; a ponderação da alternativa entre constituir

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uma nova colónia ou partir; o difícil, suspicaz e conflituoso relaciona­ mento com as colónias gregas que são encontradas; o acumular de tensão em Bizâncio quando o desastre chega a estar por um triz. A riqueza e a vivacidade da narração, o encadeamento movimen­ tado de acções e reviravoltas, a sucessão de cenários e de povos, os momentos de ansiedade, os lances espectaculares, e, sobretudo, a sa­ borosa versão em português, são excelentes razões para o reencontro com este livro e com o Mestre Aquilino, numa oportunidade que gra­ tamente se saúda. Mário de Carvalho Julho de 2014

Foi em Paris, um ano antes da Grande Guerra — era eu estudante de le­ tras na Sorbona — que travei relações com Xenofonte, natural da Atica, filho dum fidalgo rural de meia-tigela, Grilos. Conhecia-o muito pela rama, dos tem­ pos em que estudei história pelo padre Alves Matoso, autor de consciência larga que principiava com os sete dias da Criação. Apresentou-mo certo francês que não era eclesiástico nem doutorado, pelos vistos, e tinha a unção e sabedoria dum velho mestre sulpiciano, M. Toumier. Este, por sua vez apareceu no meu caminho co­ mo tantos excêntricos que brotam, dir-se-ia, por geração espontânea, do solo fecun­ do de Paris, ao sabor dum comentário em sala de conferências, ao tomarmos o ca­ fé nature no Biard, à saída do metro: après vous, monsieu, que não acabou a cortesia em França. Toumier, humanista na acepção rigorosa do vocábulo, pos­ suía razoavelmente o grego e falava quase todas as línguas vivas europeias, e as que não falava lia-as com o discernimento que, à medida que se aprendem idio­ mas, se vai difundindo duns para outros como em vasos comunicantes. Devia orçar pelos setenta a setenta e cinco anos de idade e, apesar disso, como se tivesse diante de si longa vida ou experiência vasta a cometer, caprichou falar o português. Noutra qualquer pessoa seria aquele um desejo delirante e tema para considerações de ordem humorística. Neste homem, farto de letras e de anos, não. Semelhante gesto, com efeito não mais inútil que tantos outros que a gente positiva pratica a cada passo, estava nele ressalvado pela verdade, descoberta simultanea­ mente pelos sete mágicos e os sete alfaiates, de que o saber não ocupa lugar. Quis, talvez Prestar homenagem á colónia lusíada do Bairro Latino, a qual, além de o introduzir em sua familiaridade, era generosa com ele, de todo destituído dos bens deste mundo. Muitos portugueses, com efeito, publicistas, médicos, artistas, estudantes, que então faziam estágio em Paris e nas horas vagas abancavam pelos Cafés do Boulevard St. Michel, amparavam-no como podiam.

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Vontade tão singular não destoava, pois, naquela personagem, bastante mis­ teriosa, fechada como casa devoluta ou onde morreu alguém, e de que nunca se vi­ ria a conhecer o começo e o fim. Tinha parentes; tinha um endereço; onde deitava a enxerga cada noite? Nunca pudemos averiguar, tanto mais que se percebia ser o velho cioso daquela obscuridade, como se escondesse um frade evadido do conven­ to, freguês envergonhado dos asilos públicos, civilizado nómada e rebelde, que pre­ fere o deus-dará à grilheta do cidadão regular, Angelo Policiano com a capa de S. Francisco. Alto, dobrado da espinha, o que Anatole France chamava bon dos, trafia invariavelmente um casacão de pároco rural, sem cor, lufidio, eterno por acinte da própria pobreza, e calçava botinas enormes, feitas para toda a casta de joanetes, destas que o Francês, que não perdoa a ninguém nem a seu pai estas misérias, chama godasses. Embora homem simples e afável, não era daquelas fisionomias assoalhadas ás quais, desde o primeiro minuto, abrimos crédito largo: havia que superar a quarentena. Não que experimentássemos com ele o frio que revessam certas pes­ soas, ao conhecê-las pela primeira vez, f™ ^as cisternas alpendradas, de que se não enxerga o fundo. Porventura tal antecipação não representasse mais que a paragem a que obriga uma lápide cheia de caracteres que se não decifram ao imediato lance de olhos. De facto, a vida deste velho, recatada no particular, com as suas sombras melindrosas, tinha traços do maior relevo. Tomara parte na in­ surreição da Polónia contra a Rússia e como voluntário na luta do Papado contra Garibaldi; fizera a guerra de 70 e carteava-se ainda com dois combatentes ale­ mães, tendo-lhe tocado em sorte ser o seu guarda momentâneo de cativeiro. E eu todo me extasiava perante aquela galhardia dejustadores que punham a fraterni­ dade humana acima das contingências da guerra. Antigo soldado do Papa, Tournier era católico e monárquico como um chouan. Na qualidade de católico punha o maior esmero em cumprir as obri­ gações que ordena a Santa Madre Igreja. Mas a sua alma profundamente religio­ sa não ia até a reversibilidade do zçlo sobre o semelhante. O mesmo sucedia com a sua fé política, dum orleanismo inquebrantável. O realista e o cristão ampara­ vam-se, compenetrando-se segundo uma necessidade lógica do seu espírito que ás vezes lhe aprazia enunciar. Quando proferia: Monseigneur le Prince, enchia a boca e dobrava a fronte da mesma maneira que se falasse no Santíssimo Sacra­ mento. Estas qualidades antigas supunham, antes de mais nada; um patriota. Pa­ triota era-o até o reflexo mais remoto de seus pensamentos e actos. Deu provas.

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Uma ve% que se tinham passado semanas sem que o visse, não sei já porquê, deparou-se-me a subir o boulevard St. Michel em estado lamentoso. Do terraço do Café La Source pude observá-lo cercado de basbaques — as carraças de Paris — de pau no ar como haste duma cru% a cantarolar um hino sacro. O pobre ve­ lho era vítima duma excitação que o levava até o cairel da demência, assim o ju­ ravam os seus trejeitos e gatimanhos. De envolta com a salmo dia, glorificava o no­ me de Monseigneur le Prince, tratando a República de sale Marianne, com as mais facécias costumadas dos camelots du roy. A certa altura do entreme% um quidam fe^-lhe não sei que achincalhe e ele, enfurecido, mandou-lhe uma chuçada com o pau. Receando eu que o velho encontrasse neste ou noutro sujeito maior energúmeno do que ele, chamei-o e fi-lo sentar a meu lado. E estava a to­ mar uma bebida, no período de quebra e esfalfamento que têm os possessos e os afogadiços, e eu a sentir naquela enervação as muitas necessidades que o triste ha­ via padecido e transiu fiam mesmo do seu rosto descamado e exangue, veio o sujei­ to que ele defrontara e descarregou-lhe um murro pelas costas. O agravo atingia-me e peguei-me de pancada com ele. Ao cabo da desordem, eu voltei para o meu lugar, o tipo ficou encostado ao quiosque a pingar sangue das ventas, com os mirones à volta. Não queria que o velho me agradecesse a intervenção e as consequen­ tes sensaborias. Mas o que me confundiu foi que, largando-me a mim, fosse aca­ lentar o indivíduo esmurrado, se desculpasse e lhe falasse com ternura paternal. Movimento da sua alma religiosa ? E possível. Há ainda a considerar que anda­ va reloucado. Mas acima de tudo pareceu-me ver naquilo uma desafronta ao ir­ mão de raça, ao francês agravado por um métèque, como então se chamava ao estrangeiro. Fosse que não fosse, era sublimado patriota. Quando estalou a guerra, vi-lhe pela primeira vesç quebrar a linha cordata e delicada, criticando o meu sangue-frio e neutralidade. Mas para lá de todos os reticentes atributos era um sábio — sage se dfi em francês com uma significação que envolve bondade e inteligênáa das coi­ sas — humanista que me revelou em Xenofonte o verdadeiro homem de letras e de armas, pio como Eneias porém menos hipócrita, protagonista de aventura co­ mo nunca houve segunda em resistência e valor debaixo da rosa do sol. Uma tarde, depois de termos dissertado a perder de vista acerca da Grécia e dos seus génios mais representativos, e eu lhe haver manifestado o gosto que teria em ler os velhos mestres do Ocidente na língua original, ei-lo que me entra pela casa dentro com um in-fólio vasto e imponente como o Erectéion. Estou a vê-lo, sorriso malin a iluminar-lhe a cara sobre o comprido a que o cabelo ruço, cortado

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à escovinha, e a lanugem branca e rala dos queixos e da face — lanugem que não medrava, estava sempre aquilo porque a devia espontar com uma tesoura velha — eram o adequado caixilho do indigente e bom-serás. Naricç afilado, lábios fi­ nos, com o regofijo interior chamejava-lhe nas pupilas a palheta da íris, do mais fino a^ul-celeste. —Que me tra% aí, amigo e senhor Toumier? A laia de resposta escancarou o cartapácio em cima da mesa e foi correndo as folhas com a mão. Ao tempo eu habitava a Rua Dareau, tão perto do Pare de Montsouris que ouvia a música do carrocei, quando os cavalinhos tomavam o freio nos dentes com os cavaleiros em sela, e se não fora o sussurro de Paris ouvi­ ria a própria chilreada das crianças e dos pássaros. Em contraste da Avenida de Orléans, que passava no tope grulhenta e cheia de fuga, ali era regalada pasma­ ceira, um trecho, da província com jardins seculares a coberto de muros enegreci­ dos, empresa de recovagem, ferrador, pequenas tendas e casas de capela, por detrás de cujo balcão as donas mal se podiam virar. — Aqui tem a obra de Xenofonte, com boa tradução latina, à margem, de Joannes Leunclavius. Adquiri-a no cais por cinquante sous. Para uma edição seiscentista da Eutetia Parisorum, mais barato só um mergulho no Sena. Eeunclavius ou Eoemnklau, grande helenista de Amelbume, viveu na primeira meta­ de do século xvi e devem-se-lhe, além da História da Turquia, excelentes tradu­ ções do grego. Uma delas é a deste estupendo Xenofonte, philosophus et imperator clarissimus, que parece cortado pelo molde de Ulisses. Com a versão latina à banda, dentro de pouco navega no grego como uma trirreme de Eacedemónia no Helesponto. Deixemos a Ciropédia e vamos direito à Anábase que se lê tão agradavelmente como a Odisseia. Não foi só a mim que o velho Toumier começou a dar lições de grego. Deu-as a outros portugueses, à data habitantes da Rive Gauche, /d porque estas doces e inofensivas fantasias sejam contagiosas, já porque fosse aquela a maneira de se­ rem prestáveis ao velho com bizarria ao mesmo tempo que tiravam alguma vanta­ gem daquele poço de conhecimentos. Um deles foi Francisco de Serpa Pimentel, fi­ lho-família a quem não faltavam posses e tinha as suas curiosidades espirituais. Eembro-me da hora em que fui encontrá-lo no seu appartement da Rua Monge acocorado diante da banquinha turca, enterrado em tapetes de Esmima (estava então na fase do fatacacç oriental depois da viagem que ficçera através do Império Otomano) com a Vida dos Filósofos de Diógenes de Eaércio em frente. E ao

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pé, como o escriba de Ramsés ou antes como Mentor ao lado de Telémaco, tam­ bém sobre o traseiro, estava o sapientíssimo Toumier. Com afoito jeito, tal nada­ dor consumado a conduzir para o vasto oceano, um menino pela mão, assim ele lhe ensinava naquela silva filosofal os primeiros passos do grego. Aqui está como travei relações a fundo com Xenofonte, aristocrata mas sem­ pre civilista, homem de engenho e de armas, mestre na gineta e na cinegética, apai­ xonado pela acção e a aventura, e cultivando no seu retiro da Elida a lavoura e as letras. Gramática a um lado, texto de Doeivenklau a outro, segundo um pro­ cesso ousado, sui generis, do mestre, atirei-me de cabeça. Não me lembrava já quantas parasangas fizéramos através da narrativa, quando, remexendo há se­ manas no espólio que trouxe de Paris, tão rescendente que cada objecto dava lugar a uma onda de saudades que me entontecia com seus bálsamos e ressurrectas vi­ sões, encontrei dois livros tradu fidos e um terceiro começado. A certa altura da vida volta-se, que mais não seja em imaginação, aos antigos amores. Quer por in­ capacidade de criar novos, quer por um retomo misericordioso do espírito, o pano­ rama do passado empolga-nos mais os sentidos que as perspectivas risonhas do porvir. Assim me aconteceu com os cadernos que eventualmente me caíram nas mãos e me fizeram regressar ao meu Xenofonte de há vinte e cinco anos. A guerra interrompera os meus estudos do grego e o que aprendi apagou-se mais depressa que riscos na areia. Mas perdurou-me memória bem nítida do que era esta Anábase deliciosa, de linfa pura e estreme, colhida com discutível escrú­ pulo pelas mãos de mil e um tradutores. Fora devaneio puro abalançar-me a pôr pé num mundo morto, sem recessos que não tenham sido desvendados, devaneio fi­ lho do espírito de contradição, verdadeiro demónio tentador, ao sentir-me na cida­ de que é o centro vascular da vida moderna. Seria, porém, bem possível que, ain­ da sem a guerra, o meu cometimento fenecesse, como nascera, de inconsistente e alado desejo. Mas lucrei ter conhecido o homem extraordinário que é Xenofonte, tão cheio de agilidade mental e física que parece um espelho para o perfeito cida­ dão de hoje, são de espírito, bem formado do corpo, robustecido na palpara as andanças da guerra, e um punhado de homens vacados em bronze: Clearco, gene­ ral espartano, fero, recto, militarão, que parece ter ressurgido naquele Mackensen da Grande Guerra, que de uma assentada conquistou a Sérvia e Montenegro e, lançando uma ponte sobre o Danúbio, enquanto o Diabo esfrega um olho avassa­ lou a Koménia; Ciro, que tanto se parece com o imperador juliano; o impagável Heráclidas, rábula, troca-tintas, intrigante, chefe de fila da pitoresca e variada fa­ lange de gréculos em que alinha o Spendius, de Flaubert; Tissafemes, protótipo do

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espirito de insídia, felonia e maquiavelismo que vincava o carácter dos déspotas orientais; Sentes, refete trácio, astucioso e sem vergonha, etc. etc. E, mais do que estes figurantes de alto coturno, lucrei conhecer, de visu pode diverse, o grego co­ mum, heroico, resmungão, lambareiro, sensual, pio no meio dos excessos, sempre ohsequiador da beleza, com uma das mãos roubando, com a outra imprecando Zeus, pai de tudo, levado ora pelo interesse ora pela glória, e cioso, cioso como fe­ ra, da sua liberdade. A melhor fonte de energia para o grego, com efeito, pode diverse da sua vis na guerra, estava no sentimento e culto que tinha da liberdade. Mais que deusa, invocava-a como rafiio de ser e justificação da existência da própria Hélade. «Quando Xerxes — exclama Xenofonte para os soldados esmorecidos com a traição em que pereceram os capitães — marchou contra a Grécia à testa dum exército inumerável, os Gregos bateram o inimigo na terra e no mar. Por toda a parte ficaram troféus da vitória. Mas a maior prova desse triunfo consiste na li­ berdade das cidades em que viestes à luiç e fostes criados, porque nós não reconhe­ cemos outros amos além dos Deuses.» Ciro sabe que é essa a corda sensível dos Gregos e é com as seguintes palavras que os exorta antes da batalha: «Só vos peço que vos mostreis quem sois, dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e eu prefiro a todas as riquezas.» Esta liberdade era-lhe indispensável como o ar que se respira e o Grego que­ ria sentir-se livre, saber-se livre, senhor dos seus actos, árbitro do seu destino, e a cada passo, semelhante ao homem que acorda do sono e se apalpa para verificar que está desperto, tirava a prova. Essa prova pedia-a ao exercício do sufrágio. Assim, durante a célebre retirada, posto houvessem eleito chefes, sempre que se apartavam das directrices estabelecidas, convocava-se a assembleia dos soldados e deliberava-se. Deliberava-se a propósito de tudo e de nada e votava-se. Era pre­ ferível inflectir para o Norte, onde se topava mais que comer, a arrepiar caminho por onde tinham vindo, rota com certeza mais rápida; deviam seguir por mar ou continuar por terra; aceitavam a proposta do tirante que pedia uma demão mili­ tar para satisfazer os seus rancores ou ambições, em troca de tais e tais dons — assuntos eram estes de interesse geral acerca dos quais só a assembleia tinha competência para pronunciar-se. Depois que a matéria era dada como suficientemente discutida, uma vez sarada sob os seus múltiplos aspectos, escorreita de artima­ nhas após a necessária controvérsia, votava-se. Pois que desde que o mundo é mundo ainda se não descobrira melhor como expressão da vontade colectiva do

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que o sufrágio, ia-se a votos. O Grego era particularmente dialéctico e não sancio­ nava coisa alguma de olhos fechados. Ciro e depois os capitães que tomaram o co­ mando da coluna expedicionária encontraram-se com homens ciosos dos seus direi­ tos. A educação democrática do Grego persistia debaixo das armas. Rien de plus curieux — escreve Taine — que cette armée grecque, république voyageuse qui délibère et qui agit, qui combat et qui vote, sorte d’Athènes errante au milieu de 1’Asie, aves ses sacrifices, sa religion, ses assem­ bles, ses séditions, ses violences, tantôt en paix, tantôt en guerra, sur terre et sur mer, dont chaque événement éprouve et révèle une faculté et un sentiment. Foi este amor à liberdade, servido por um entendimento luminoso e aliado à boa compleição física, que deu lugar ao milagre de acção que é a marcha dos dez mil gregos através de seiscentas léguas em terra estranha, triunfando da natureza hostil à força de ânimo, e dos inimigos, bastos como gafanhotos e tão feros como traiçoeiros, à ponta de espada.

Traduzindo Anábase, que assim se chama o livro de Xenofonte, para Re­ tirada dos Dez Mil, cometemos uma infidelidade. Anábase na sua signifi­ cação léxica quer dizer marcha para o interior. A avançada estaca, porém, ao fim do livro primeiro, para os seis restantes se ocuparem com o refluxo dos merce­ nários sobre o ponto de partida. O próprio título original não condiz Por conse~ guinte, com a extensão do feito militar. Chamaram-lhe certos tradutores Expedi­ ção dos Dez Mil mais impropriamente ainda porquanto o exército que Ciro concentrou em Sardes e dirigiu contra seu irmão Artaxerxes compunha-se de cem mil bárbaros e treze mil gregos, que eram entre hoplitas e peltastas as suas tropas de choque. De todos os títulos o que assenta mais plasticamente ao sucesso é reti­ rada, tal como é denominado nos compêndios de história. A Anábase veio à luz s°b 0pseudónimo de Temistógenes, de Siracusa. Mas, além doutras razões, como não se encontrou citação segunda de tal nome, nem é crível que se tenha perdido obra deste género, está universalmente admitido que o autor é Xenofonte. Se recorreu a nome de empréstimo foi, se não para dissi­ mular a tendência apologética do escrito, para estar mais à vontade, como opina Croiset, ao falar de si próprio. Se procurássemos demarcações na Anábase, sob o ponto de vista de género literário, teríamos que até o fim do primeiro livro se trata de correspondência

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de guerra, directa, rápida, com a sua nótula acidental histórica ou mitológica, como se fa% hoje, das em diante memórias, como é também de uso clássico. De singular na segunda parte há que o memorialista desborda a tal ponto sobre os mais figurantes que estas páginas chegaram a ser classificadas de patranha deli­ ciosa. Tiveram um pouco o sestro da Peregrinação de Femão Mendes Pinto. Em verdade apareceu uma Anábase de Sofeneto de Estinfalo, em que Xenofonte ocupa um lugar do insignificante relevo, e Diodoro, da Sicília, ao historiar a retirada dos De% Mil, refere-se a ele apenas quando assume o comando em che­ fe, o que não admira dado o restrito espaço de seis páginas que consagra ao assun­ to. Quando ao encontrar-se apoucado no relato do seu camarada de armas, pondere-se que a emulação era um dos sentimentos que mais atormentavam a alma dum grego e que daí até a inveja, a inveja que não deixa medrar, não vão grandes passos. De resto, o Xenofonte negado por Durbach, primeiro, por Couvreur e Maqueray, em seguida, homem de claro entendimento e de bom senso ordenados, dialéctico hábil, simples de maneiras e ao mesmo tempo bitçarro, avisado e animo­ so no perigo, sempre valente no ataque, sobrevive á aventura dos De% Mil. É o mesmo que ressalta dos escritos vários que compôs mais tarde — e nunca estilo revelou com tanta precisão uma personalidade — mais objectivamente, ainda, o que na qualidade de estratégico de Agesilau, podíamos dfier chefe do seu estado-maior, anos depois derrotou Tissafemes e Famabasç. Discípulo de Sócrates — a dedada do mestre admirável descortina-se a cada passo no seu carácter e no seu espírito — feito às armas e à guerra, tudo concorria nele para ser o cabecilha que soube condufir os concidadãos através do formigueiro asiático assanhado. Nada, pelo contrário, antes ou depois, desmente nele essa vocação. A narrativa, para mais, sua o sangue da sinceridade. E, se o livro regurgita da própria pessoa, fá-lo no legítimo direito do mais inteligente, do mais forte, do que mais soube correspon­ der aos requisitos tácticos e morais da retirada, cérebro sempre em função, o pri­ meiro a investir e o derradeiro a fechar a marcha. Se em rigor a Anábase se pode dfier compósito, sob o ponto de vista psicoló­ gico do protagonista não menos há diversificação. Até á chegada ao Monte Santo, do alto do qual os expedicionários soltam o grito desafogado: Thálassa! Thálassa! cada episódio ressuma vontade e um optimismo salutar. Dali em diante dir-se-ia que mudou a alma dos figurantes, se não é a alma do general e cronista que mu­ dou. Em verdade, os gregos até ali sacrificavam á esperança seus ódios, suas inve­ jas, sua indisciplina, sua cupide% e agora têm a certeza de volver à sua terra. O perigo desvaneceu-se, ou assim o presumem, e os individualismos levados ao

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exagero, a vontade dum sempre mais tena^ que a vontade doutro, a opinião ciosa de não ceder ã opinião, tomam a supremacia, e perante aquele mundo tresmalhado e rendido ãs solicitações de toda a ordem, a melancolia de Xenofonte transpare­ ce. E quando não transparece a melancolia é a sua inconformidade que reage. Co­ mo não, se via o crepúsculo descer para a epopeia?!

Mas que foi a retirada dos De% Mil? Aí quatrocentos anos antes da era cristã, a Grécia não tinha ainda acabado de convalescer das feridas que lhe deixa­ ra a guerra chamada do Peloponeso, em que, durante vinte e sete anos, renhiram de morte as duas principais comunidades helénicas: Atenas e Esparta. A guerra acabou com a hegemonia de Atenas graças aos auxílios de toda a ordem que pres­ tou aos Eacedemónios Ciro, filho do rei da Pérsia, sátrapa da Eídia. O homem que durante lapso tão considerável de tempo terçara as armas dificilmente se habi­ tuava aos labores da pa%. Daí o pulularem pelas terras do Helesponto, Quersoneso e Tessália os ociosos e inadaptados, prontos a seguirem o balsão do primeiro que lhes untasse a pata. Precisamente foi entre eles que o príncipe, de que falá­ mos, mandou os seus comissários recrutar homens com o intuito de formar um exército que lhe permitisse bater o irmão e sentar-se no trono da Pérsia. Do Pelo­ poneso à Asia Menor, tanto no continente como ilhas, arrebanhou quanta gente lhe apareceu. Deste jeito conseguiu reunir tre^e mil homens de nacionalidade grega que, repartidos em hoplitas ou infantaria pesada, peltastas ou infantaria ligeira, constituíram as suas tropas de choque. Estas forças, somadas aos cem mil asiáticos de todas as armas, que tinha de­ baixo das suas ordens, romperam marcha de Sardes contra os Písidas, fe% ele constar, a fim de puni-los pelas incursões que fafiam amiúde no território do seu governo. O sátrapa vifinho, Tissafemes, é que desconfiou de aparato guerreiro tão descomunal e em desproporção com o fim que se propunha, e despediu a marchas forçadas avisar o grande-rei. A primeira parte da Anábase é isto, o avanço sobre Babilónia do exército de Ciro, jornada por jornada, com seus episódios pitorescos, tais como a parada das tropas ante a rainha Epiaxa, as lágrimas de crocodilo de Clearco, a batalha de Cunaxa, onde Ciro, valoroso mas temerário, perdeu a vi­ da. No dia seguinte ao da batalha, com os gregos vencedores mas assombrados em pleno império persa, começa a grande rapsódia da Anábase, a retirada a va­ ler. E os lances de tragédia e de farsa, de bravura e de beleza sucedem-se, temperando-se as lágrimas com o claro riso pelásgico, ás horas de provação infinita Ateneia acudindo sempre com olhar radioso a preservar os seus do desânimo letal.

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O massacre dos capitães gregos, Xenofonte nu no meio da neve a rachar lenha, o holocausto à beira do rio Centritas com homens e mulheres despidos, de roupa à cabeça, prontos para se meterem à água, em roda do sacrificador de coroa de louros na fronte; as comezainas nas aldeias arménias com a soldadesca meia ébria, fazendo-se servir por mímica, e muitos outros lances e discursos e belos di­ tos, dum aticismo saboroso, faltaram na Odisseia para a Anábase ser o segun­ do livro universal na acção e no sentimento. A retirada dos Dez MH, como muito bem futuravam os Gregos, exaltou a Grécia. «Porque não havemos de conquistar o império opulento e fabuloso, onde as riquezas andam aos pontapés, se os seus guerreiras não conseguem dominar um punhado de inimigos surpreendidos de portas adentro?» E Esparta rompe em guerra contra a Pérsia imensa. Agesilau, que tem Xenofonte como lugar-tenente, derrota a Tissafemes com a sua cavalaria no Meandro, depois a Famabaz e devasta-lhe a satrapia. Tissafemes, a perfídia personificada, é decapitado às ordens de Artaxerxes em castigo da derrota. Agesilau conquistará a Asia Menor toda. Mas eis que o chamam para defender Esparta atacada pela conjura de Atenas com as mais cidades gregas. — São trinta mil archeiros do grande-rei que me lançam fora da Asia — exclama Agesilau aludindo à efígie dos dáricos, dinheiro que a Pérsia semeara pela Grécia para mover as cidades e Atenas à luta. Neste ano da graça em que a guerra lavra aqui e além, feroz e sem respeitar património ou coisa sagrada, como velho, mulher ou criança; que a Europa está, pode dizer-se, em vigília de armas; que a defesa de povo para povo se estriba na vontade de ser e no potencial militar que não no direito, virado pela metamorfose diplomática a versicolor ou descaradíssima burla; que em cada nação se assiste ao apelo desesperado das energias mais profundas — talvez não seja descabido reme­ morar a lição que nos dá um núcleo de gregos, nossos avoengos da latinidade, em que se encontraram reunidas as virtudes que são condição de independência e au­ tonomia dos povos: robustezfisica e gosto de viver, razão clara, enraizamento no solo natal e amor ã liberdade. CruzQuebrada, Maio de 38. Aquilino Ribeiro

LIVRO PRIMEIRO

I

Deixou Dario dois filhos de Parisatis. O mais velho chamava-se Artaxerxes, o outro Ciro. Sentindo-se doente, a cismar com a morte, quis vê-los ao pé de si. Artaxerxes não arredara da corte, Ciro, po­ rém, encontrava-se longe, à testa da província de que era sátrapa, ao mesmo tempo que comandava as tropas aquarteladas, na comarca do Castólio. Este, mal recebeu aviso, pôs-se a caminho, acompanhado de Tissafernes, que considerava seu amigo, com uma escolta de tre­ zentos hoplitas gregos, comandados por Xénias, de Parrásia. Dario finou-se, mal dando tempo ao filho a beber em seus lábios de mori­ bundo as últimas vontades. Subiu ao trono Artaxerxes. Tissafernes acusou Ciro de conspirar contra o irmão. O resultado foi Ciro ser preso e, se não chegou a ser executado, foi devido à in­ tervenção da mãe junto de Artaxerxes, que dera ouvidos à denúncia. De novo enviado para o governo da satrapia, cheio de despeito, tra­ balhado pela febre da desafronta, concebeu logo não apenas eximir-se à suserania de Artaxerxes mas envidar todos os esforços para derribá-lo do trono. A bem de tal projecto contava com a mãe que sempre dera mostras de lhe ser mais afecta do que ao irmão. E tenaz, cautelosamente, encetou a obra de sapa. Quem dali em diante o pro­ curasse em nome de el-rei ficava seu partidário, tão forte era o seu encanto pessoal e envolventes a solicitude e extremos com que era acolhido. Ao mesmo tempo, esforçava-se Ciro por fazer dos Bárba­ ros soldados que se vissem, destros no manejo das armas e fiéis à sua causa pelos laços do interesse e da camaradaria. A sua preocupação imediata era formar um exército, o mais se­ cretamente possível, de modo a apanhar o irmão desprevenido. Para

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isso pôs-se a aliciar pelo Peloponeso quantos gregos se lhe ofere­ cessem, com o objectivo confesso de guarnecer as praças da Jónia ameaçadas por Tissafernes. Em verdade, as cidades daquela província tinham-se passado todas para ele, afora Mileto. Ainda Mileto Tissafer­ nes aguentava-a debaixo do jugo mediante toda a casta de violências, como executar e desterrar a granel aqueles que supunha adversários. Es­ tes, em grande número, foram-se deitar aos pés de Ciro queixosos, a regaçada cheia de promessas. A resposta foi Ciro ir assediar Mileto por mar e por terra. Semelhante assédio, antes de mais nada, servia-lhe para mascarar os preparativos bélicos. Em conformidade, ma­ nhosamente, não se esquecia de pedir a el-rei o governo daquelas cidades que repudiavam Tissafernes. Parisatis secundava-o nesta pre­ tensão. E deste jogo de astúcia e audácia sucedeu não só Artaxerxes não cobrar sombras do laço que lhe armava, mas até folgar com aquela guerra, que separava os dois sátrapas, tanto mais que Ciro continuava pontualmente, a pagar tributo pelas cidades conquistadas ao rival. No Quersoneso, para lá da região de Ábidos, recrutava Ciro ou­ tro exército. Aí as coisas passavam-se deste modo: Clearco, proscrito de Lacedemónia, tendo-se encontrado com Ciro, soubera mostrar-se tão cativante que este pôs à sua disposição a quantia de dez mil dáricos. Com o dinheiro organizou uma hoste, à testa da qual invadiu a parte da Trácia, que confinava com o Helesponto, tais serviços prestando aos Gregos que estes se prontificaram a custear-lhe as des­ pesas da campanha. Aqui tinha, pois, Ciro um corpo de exército às suas ordens, sem despertar suspeitas. Arístipo, da Tessália, hóspede de Ciro desde que o partido adver­ so teve artes de bani-lo da pátria, apresentou-se um dia a pedir-lhe cerca de dois mil soldados com três meses de soldo, parecendo-lhe chegado o ensejo de tirar desforço dos seus inimigos. Ciro forneceu-lhe imediatamente coisa de quatro mil homens, com seis meses adiantados de estipêndio, recomendando-lhe apenas que não assinas­ se a paz sem o consultar. Deste jeito tinha na Tessália um exército pronto à primeira voz. A Próxeno, da Beócia, que era seu amigo pessoal, passou palavra para que se pusesse a caminho com quantas tropas pudesse recrutar.

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a pretexto de ter de ir casdgar os Písidas que não cessavam de lhe in­ festar o território. Deu igual ordem a Sofeneto, de Estinfalo, e a So­ crates, de Acaia, seus apaniguados, com o fundamento, desta vez, de partir em guerra contra Tissafernes, de concerto com os proscritos de Mileto. Amigos e aliados responderam invariavelmente: presente. Quando os aprestos chegaram ao auge, nas vésperas de marchar, tornou mais uma vez público que partia em campanha contra os Písi­ das e que nunca tivera outro objectivo ao recrutar soldados, tanto gregos como bárbaros. Ao mesmo tempo deu ordem a Clearco para que viesse ao seu encontro com todas as forças, o mais rapidamente possível; a Arísdpo que se reconciliasse com os patrícios e lhe devol­ vesse as tropas; a Xénias, comandante da legião estrangeira, que dei­ xasse nas guarnições as forças estritamente necessárias e se despa­ chasse a vir ter com ele. Chamou o exército que sitiava Mileto, prometendo aos emigrados, caso o quisessem acompanhar, não re­ pousar um instante antes de os repor no que era legitimamente seu. Eles confiaram na palavra e concentraram-se em Sardes debaixo das suas bandeiras. Xénias chegou ali com cerca de quatro mil hoplitas, levantados nas cidades; Próxeno com mil hoplitas; Sócrates, de Acaia, com uns quinhentos, pouco mais ou menos, e Paixão, de Mégara, com os seus setecentos. Estes últimos vinham ao direito do cerco de Mileto. Tais eram as forças acampadas em Sardes às ordens de Ciro. Tissafernes veio ao conhecimento de todos estes preparativos e movimentos de tropas e julgando-os em desproporção com uma entrada em terra pisídia correu, à testa de quinhentos ginetes, a avisar o grande-rei. Este tratou logo de preparar-se para a guerra.

II

Despediu-se Ciro de Sardes à testa das forças nomeadas e, atra­ vés da Lídia, alcançou as margens do Meandro, andando em três dias vinte e duas parasangas. Tem este rio uma ponte de barças e a sua largura é de dois pletros. Daí, depois duma marcha de oito parasan­ gas num só dia pela Frigia fora, chegou a Colossas, cidade bastante povoada, grande e opulenta, em que descansou sete dias. Aí se jun­ tou a ele Menão, da Tessália, com mil hoplitas e quinhentos peltastas, dólopes, enianenses e olíntios. Dali, andando vinte parasangas em três jornadas, botou a Celenas, cidade também muito populosa, gran­ de e farta. Aqui tinha Ciro uma casa de campo com uma grande tapa­ da bem provida de feras para aprender cinegética e exercitar os cava­ los. O Meandro nascia dentro do palácio e depois de colear pela propriedade entrava na cidade. O palácio arreado, que ali se via, per­ tencia ao grande-rei; ficava junto da fonte do Mársias, logo abaixo da fortaleza. Este rio regava também a cidade e ia lançar-se no Meandro; tinha vinte pés de largura. Foi aqui, segundo se diz, que Apoio esfo­ lou vivo ao sátiro Mársias, que teve a petulância de se medir com ele em sabedoria, e pendurou a pele na gruta de que brota o manancial. Tal é a razão por que o rio tem o nome de Mársias. Há quem afirme que aqui construiu Xerxes o palácio e fortaleza depois da retirada de­ sastrosa da Grécia. Em Celenas demorou-se Ciro trinta dias. Neste entrementes apa­ receu Clearco, de Lacedemónia, à testa de mil hoplitas, oitocentos peltastas trácios e duzentos archeiros cretenses. Sósias, de Siracusa, e Sofeneto, de Arcádia, chegaram ao mesmo tempo, um com trezen­ tos, outro com mil hoplitas. Ciro mandou formar as tropas gregas na

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tapada e fez a chamada; contou onze mil hoplitas e uns dois mil peltastas. Andou, em seguida, dez parasangas em duas jornadas e assentou arraiais em Peites, cidade populosa. Esteve ali três dias, durante os quais Xénias, da Arcádia, celebrou as Lupercais com sacrifícios divi­ nos e desafios de força. O prémio distribuído consistia em escovas de oiro, miniatura das escovas de que se servem para limpar os cava­ los. Ciro gostava muito destes espectáculos. Daí, em duas jornadas de doze parasangas, chegou a Vilar de Oleiros, cidade populosa, nos confins da Mísia. A seguir, tendo andado trinta parasangas em três jornadas, deitou às portas de Caístro, cidade importante, onde se de­ morou cinco dias. Devia já mais de três meses de pré aos soldados, que se fartavam de lho pedir; Ciro ia-lhes alimentando a esperança de serem pagos brevemente, sem contudo esconder o seu embaraço. Em verdade não estava nos seus hábitos recusar a paga desde que ti­ nha dinheiro em caixa. Valeu-lhe neste apuro Epiaxa, mulher de Siénesis, rei da Cilicia, que, vindo ter com Ciro, fez-lhe presente, ao que se rosna, de respeitável pecúlio. Deste modo pôde contar aos solda­ dos quatro meses de estipêndio. Esta rainha trazia consigo uma es­ colta de cilicianos e aspendianos. Correu o rumor que Ciro se gozara das suas graças. Em duas jornadas fez duas parasangas e chegou a Timbra, cidade muito concorrida em que havia um chafariz consagrado a Midas. Com efeito, reza a lenda que foi ali que o célebre rei da Frígia conse­ guiu apanhar o sátiro, misturando vinho à água da fonte. Dali andou dez parasangas e, depois de duas altas, botou a Tireu, cidade notável, onde permaneceu três dias. A rainha da Cilicia rogou a Ciro que lhe mostrasse o exército em linha de batalha. Acedeu Ciro e mandou to­ car a reunir tanto gregos como bárbaros. Aqueles mandou ainda que formassem em coortes, como se se preparassem ao ataque, e respon­ dessem certos às vozes dos capitães. Dispostas as colunas a quatro de frente, Menão ocupou a ala direita com as suas forças, Clearco a es­ querda, os restantes chefes o centro. Ciro passou, primeiro, revista aos bárbaros, que desfilaram diante dele por esquadras. Em seguida percorreu os batalhões gregos, de carro, com Epiaxa ao lado, de ca­ deirinha. Os gregos traziam cascos de bronze, túnicas de púrpura, jarreteiras, e brilhavam-lhes nos braços os escudos polidos.

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Chegado ao extremo, Ciro parou o carro e ordenou aos generais, pelo intérprete Pigrete, que mandassem apresentar armas e avançar. Assim se fez. As trombetas deram, a seguir, sinal e as coortes rompe­ ram. Pouco a pouco foram acelerando, acelerando o passo, soltando gritos cada vez mais altos, até que desataram a correr. Corriam à ré­ dea solta, com tanta fúria que os bárbaros se assustaram. Epiaxa fu­ giu na cadeirinha e por toda a parte a multidão dos bufarinheiros, abandonando a veniaga, deu às de vila-diogo. Os gregos voltaram ao acampamento rindo a bom rir. Tranquilizada, a ciliciana não se can­ sava de admirar a ordem e brio dos soldados, ao passo que Ciro esta­ va radiante com o terror que as hostes gregas haviam inspirado aos bárbaros. Em três jornadas andou vinte parasangas, atingindo Icónio, cida­ de extrema da Frigia. Repousou ali três dias e em mais cinco percor­ reu trinta parasangas através da Licaónia. Como os habitantes des­ sem mostras de lhe serem hostis, deixou mão livre aos gregos para pilharem. Dali despachou Epiaxa para a Líbia pelo caminho mais curto, destacando Menão com a sua gente para a acompanhar. Ele rompeu Capadócia fora, e em quatro jornadas de vinte e cin­ co parasangas tocou em Dana, vasta e soberba cidade. Foi aqui que, erguendo tendas por três dias, mandou matar dois persas, um deles, Megafernes, tintureiro das púrpuras reais, o outro com patente alta de oficial, por desconfiar que andavam a traí-lo. Procurou em seguida romper pela Cilicia. O caminho, ainda que acessível aos carros, era tão acidentado que não havia maneira de um exército dar passo se encontrasse a mí­ nima resistência. Dava-se como certo que Siénesis ocupava as emi­ nências, resolvido a tolher-lhe o caminho. Perplexo, Ciro passou um dia na campina. Mas na manhã seguinte vieram dizer-lhe que Siénesis desamparara as cumeadas, depois que soubera ter Menão entrado já no seu reino, pelo caminho da serra, e que Tamão, almirante das trirremes de Lacedemónia ao serviço de Ciro, navegava ao longo das costas da Jónia direito à Cilicia. Ciro escalou a montanha sem custo e do alto, à vista do arraial dos cilicianos, dirigiu-se para uma grande planície, muito amena e sulcada por águas correntes, coberta de vinha e árvores de toda

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a casta, fértil em cevada, painço, milho, trigo e aveia, que ficava à desbanda. Cingia-a pelo lado da terra, indo fechar no mar, uma es­ carpada cordilheira. Desceu, pois, Ciro ao vale e andou vinte e cinco parasangas em quatro dias até chegar a Tarso, em plena Cilicia. Esta cidade, grande e faustosa, corte de Siénesis, era cortada em duas pelo Cidno, rio de dois pletros de largo. Os moradores, excepto aqueles que possuíam estalagem ou taberna, tinham fugido com o rei para a fortaleza dos altos. Os vizinhos de Solos e Isso, cidades marítimas, esperaram a pé quedo. Epiaxa, mulher de Siénesis, entrara em Tarso cinco dias antes de Ciro. Menão ao atravessar as serras perdera duas companhias inteiras; pretendem uns que foram trucidadas pelos Cilicianos, quando se en­ tregavam ao saque, outros que tendo-se extraviado pereceram erran­ tes, incapazes de atinar com o caminho e de alcançar a coluna. Com­ punham-se de cem hoplitas. Os mais gregos, exasperados com a perda dos companheiros, pilharam Tarso, inclusive o palácio real. Logo que Ciro entrou na cidade, chamou Siénesis à sua presença. Mas o rei negou-se, blasonando que debalde mãos mais poderosas que as de Ciro se tinham estendido para ele. A esposa, porém, acon­ selhou-o a aceder e, mercê de certas garantias, acabou por se deixar persuadir. Depois de conferenciarem os dois, Siénesis dispensou a Ciro altas quantias de dinheiro para manutenção das tropas, e Ciro fez-lhe aqueles presentes que é uso oferecerem pessoas reais persas àqueles que desejam distinguir: um cavalo de raça com freio de oiro, colar e braceletes também de oiro, cimitarra com punhos de oiro, uma túnica persa. Prometeu-lhe, além disso, que os seus campos seriam poupados e autorizou-o a recapturar os escravos que lhe tinham tomado, onde quer que os encontrasse.

Ill

Vinte dias teve Ciro arraiais em Tarso, porque os soldados se re­ cusavam a ir mais longe. Suspeitavam eles que marchavam contra o grande-rei e diziam que não fora com esse propósito que os tinham recrutado. Clearco foi o primeiro que pensou em recorrer à força pa­ ra obrigar os seus a avançar. Porém, mal deu voz de marcha, choveu sobre ele e a sua equipagem tanta pedra que pouco faltou para ser la­ pidado. Quando reconheceu que à má cara não conseguia nada, con­ vocou a soldadesca. Vieram todos e Clearco, de começo, plantou-se diante deles, hirto, sem dizer palavra, as lágrimas a rolarem-lhe pelas faces. Os soldados olhavam para ele, mudos e com espanto. Por fim, falou-lhes assim: — Soldados: não vos admireis que me mostre magoado com o que se passa; estou ligado a Ciro pelas leis da hospitalidade. Quan­ do fui banido da minha pátria, Ciro não só me acolheu com todas as honras, como me deu dez mil dáricos. Aceitei tal dinheiro não para meu gozo pessoal, mas para prover à vossa manutenção. Primeiro fiz guerra aos Trácios e convosco vinguei o povo grego, expulsando do Quersoneso uns bárbaros que queriam nem mais nem menos que es­ poliá-lo da terra que herdara dos seus maiores. Depois, Ciro cha­ mou-me e convosco me fui encontrar com ele sem outro objecto que o de lhe ser útil e mostrar-me agradecido. Agora, pois, que não que­ reis acompanhar-nos, tenho que optar por uma de duas: trair-vos, continuando amigo de Ciro, ou trair Ciro e ficar convosco. Qual é o partido mais justo não sei nem me importa saber. Dou-vos a prefe­ rência, decidido a arrostar com quantas desgraças nos possam cair

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em cima. Não quero que se diga que, tendo eu capitaneado gregos em terra estrangeira, os traí e lhes preferi bárbaros. Não, tal labéu não recairá sobre o meu nome. Já que recusais obedecer-me e seguir-me, sou eu que vos sigo. A minha sorte será a vossa. Vós é que sois a minha pátria, os meus amigos, os meus camaradas. Convosco honro-me de ser quem sou; sem vós não me julgo com dignidade bastan­ te para prestar auxílio a um amigo ou repelir a afronta dum adversá­ rio. Ficai, pois, descansados que para onde vós fordes vou eu. Assim falou Clearco. Os soldados e o resto da coluna aplaudiram-no pela resolução de não querer marchar contra o grande-rei. Mais de dois mil homens da hoste de Xénias e de Paixão ergueram arraiais e juntaram-se a ele. Ciro, enfadado com a história e preocupado a valer, chamou Clearco. Este recusou-se, mas muito à puridade mandou-lhe dizer que não desesperasse, que as coisas haviam de concertar-se a seu sa­ bor. E convidou Ciro a chamá-lo segunda vez. Anuiu Ciro e nova­ mente se negou ele a obedecer. Desta feita, porém, tocou a reunir, e à sua gente e a quantos compareceram falou assim: — Soldados, meus camaradas: Ciro, hoje, não depende mais de nós do que nós dependemos dele. Uma vez que nos negamos a se­ gui-lo, já não somos seus soldados; ele, também, não é obrigado a dar-nos o pré. Sei que se queixa de nós amargamente; que lhe hei-de fazer?! Manda-me chamar e não vou, sabeis, não vou com vergo­ nha de ter faltado à confiança que depositava em mim. Tenho medo, de resto, que me mande prender e me queira castigar pelo dano que, segundo diz, lhe estou a causar. A ocasião, bem vedes, não é para nos deitarmos a dormir de papo para o ar, confiados que não há perigo. Nada disso. Há perigo, por isso vos digo: toca a deliberar sobre a conduta a seguir e, uma vez assente, corações para trás das costas! Se decidirmos ficar, façamo-lo de modo a conjurar os riscos; se deci­ dirmos partir, haverá, não menos, que encarar todas as hipóteses da retirada e da nossa subsistência. Sem mantimentos não há soldados nem capitães que valham. Ciro é homem amigo do seu amigo a mais não poder, mas no ódio é tremendo. Tem consigo infantaria, cavala­ ria, uma frota. Sabemos muito bem com que pode contar, pois esta­ mos a vê-lo daqui. E chegada a hora de cada um dizer o que lhe pare­ cer melhor; pronunciai-vos...

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Levantaram-se uns de moto próprio, para dizer o que lhes vinha à cabeça; outros, inspirados por Clearco, para mostrar quanto seria difícil quedar ali ou irem-se embora sem a aquiescência de Ciro. Um dentre estes, muito afogueado, simulando grande ânsia em partir para a Grécia, declarou que, se Clearco não queria capitaneá-los na retira­ da, elegessem outro general. E uma vez abastecidos de víveres, que não escasseavam no campo dos bárbaros, erguessem tendas e pedis­ sem a Ciro navios que os transportassem à sua terra ou guia que lhes ensinasse o caminho. Se ele lhes não quisesse dar nem uma coisa nem outra, formassem em ordem de batalha e, antes de mais nada, corressem a ocupar os cimos, de modo a antecipar-se a Ciro e aos próprios Cilicianos, que não deixavam de estar ressabiados pela presa que lhes haviam feito, e o que fosse soaria. Clearco respondeu com estas simples palavras: — Estou ao vosso dispor para tudo o que quiserdes menos para comandar. Para isso, não. E escusado rogar-me. Mas juro-vos que obedecerei cegamente ao capitão que nomeardes e ninguém dará me­ lhor exemplo de subordinação do que eu. Um outro, a seguir, pediu a palavra e frisou a ingenuidade daque­ le que propunha se pedissem navios a Ciro, como se ele não precisas­ se deles para transporte da sua gente, ou guia seguro, quando não fa­ ziam mais que cavar a sua ruína. E, depois de desenvolver este pensamento, discorreu: — Se há que fiar-se a gente dum guia que ele nos há-de dar, por­ que não lhe pedir também que defenda por nós os cimos da serra até passarmos?! Eu, cá, não era sem apreensões que subia para as trirremes; quem me diz a mim que as não põe à nossa disposição para as meter no fundo mal soltem velas?! Quanto ao guia que lhe quereis pedir, não é também o filho de meu pai que se resigna a tal extremi­ dade sem perder a cor duas vezes, certo de que pode muito bem atirar-nos para um despenhadeiro donde nunca mais sairemos com os ossos direitos. Eu, a ter de largar, é sem que Ciro para aí seja chama­ do, o que se me afigura impraticável. Que fazer então? Tudo o que tenho ouvido é supinamente tolo, mas o que se chama tolo. Não será melhor deputar a Ciro pessoas competentes, que vão juntamente com Clearco perguntar-lhe que é o que pretende de nós? Se se trata duma expedição análoga àquela em que foi com tropas gregas, bem

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vai, e não há remédio senão segui-lo, e nada de mostrar-se a gente mais cobarde que os nossos predecessores. Se, pelo contrário, a em­ presa é doutro tomo, mais considerável pelos perigos e os trabalhos, então haverá que determinarmo-nos a segui-lo depois de ouvir as suas razões ou abandoná-lo, convencendo-o a deixar-nos partir à boa paz. Se consegue persuadir-nos, avante e cara alegre, e sejamos-lhe fiéis; se não, adeus amigo, mas façamo-lo com segurança. Os nossos delegados que vão, tragam a resposta, e veremos o que se nos ofere­ ce fixar. Prevaleceu afinal este parecer. Foram escolhidos os deputados que haviam de acompanhar Clearco. E dos próprios lábios de Ciro puderam ouvir esta resposta: «Tinham-no informado que Abrácomas, seu inimigo, estava acampado a doze dias de marcha nas mar­ gens do Eufrates. Era contra ele que marchava com o fim de lhe apli­ car o correctivo merecido, assim ele esperasse. Se não esperasse, veriam depois o que haveria a fazer.» Voltaram os mensageiros com este recado e os soldados não fica­ ram menos suspeitosos de que Ciro queria atirá-los contra o grande-rei. Decidiram, todavia, segui-lo. Como pedissem aumento de pré, Ciro prometeu pagar-lhe seis vezes mais quanto devia de atrasado e doravante ficar cada um a ganhar dárico e meio por mês em vez de um só. De resto, ninguém podia jurar saber de certa certeza que mar­ chavam contra Artaxerxes.

IV

Em duas jornadas de dez parasangas atingiu Ciro o rio Psaro, lar­ go de três pletros. E no dia seguinte, com uma caminhada de cinco parasangas, botou às margens do rio Píramo, cujo leito tem um está­ dio de largura. Dali, em duas jornadas de quinze parasangas, chegou a Isso, porto de mar na fronteira da Cilicia, muito populoso, vasto e florescente. Ficou ali três dias, durante os quais chegaram do Peloponeso trinta e cinco navios comandados por Pitágoras, de Lacedemónia. Fora seu comandante, desde Efeso, Tamos, egípcio, quando trazia ainda debaixo das suas ordens os vinte e cinco navios com que ao serviço de Ciro sitiara Mileto, cidade, como fica dito, governada por Tissafernes. Nas naus vinha, ao apelo de Ciro, Quirísofo, de Lacedemónia, com os setecentos hoplitas que já comandara antes, de­ baixo das suas ordens. A frota lançou âncoras junto das tendas de Ci­ ro. Neste lugar quatrocentos hoplitas gregos desertaram do arraial de Abrócomas, para se juntar a Ciro e marchar debaixo do seu balsão contra o grande-rei. De Isso, depois duma jornada de cinco parasangas, chegou às portas, conjuntamente, da Cilicia e da Síria. Duas muralhas erguiam-se face a face, uma cisterior defendida por um corpo de cilicianos, às ordens de Siénesis, outra ulterior, em terra síria, guarnecida, segundo era voz, por tropas de Artaxerxes. Entre ambas corria o Carso, largo de um pletro. A distância que ia duma muralha a outra era de três es­ tádios. Forçar a passagem parecia impossível, não só porque o desfi­ ladeiro era estreitíssimo, formado por penedia a pique, mas as mura­ lhas iam até o mar, impedindo o acesso por qualquer lado. Rasgadas nelas, as portas eram como fauces escancaradas.

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Graças à esquadra, dispunha-se Ciro a desembarcar hoplitas dum lado e doutro das portas, de modo a pelas armas ficar senhor do pas­ so se os inimigos persistissem em defendè-lo. Contava que Abrócomas, que dispunha de forças poderosas, o fizesse. Mas nada disso su­ cedeu. Mal soubera que Ciro estava na Cilicia, retirara-se da Fenícia e, à frente dum exército que diziam compor-se de trezentos mil ho­ mens, corria a apresentar-se ao grande-rei. Dali, pela Síria dentro, numa jornada de cinco parasangas, che­ gou a Miriandro, porto fenício, em que se viam fundeados muitos na­ vios mercantes. Esteve ali sete dias, durante os quais Xénias, de Arcá­ dia, e Paixão, de Mégara, carregando numa nau o que tinham de melhor, içaram velas e se foram. Segundo a opinião corrente, escan­ dalizara-os que Ciro deixasse a Clearco o comando daqueles soldados que um dia se tinham juntado a ele, com o propósito de retirar para suas terras. Mal os díscolos desapareceram no horizonte, começou a correr o rumor de que Ciro ia lançar contra eles as galeras rápidas. Havia quem desejasse vê-los presos como traidores; outros, porém, choravam a sorte que os esperava se fossem alcançados. Ciro, convocados os capitães, disse-lhes: — Xénias e Paixão abandonaram-me, mas saiba-se que não só não fugiram às ocultas, pois eu achei-me ao corrente dos seus desíg­ nios, mas nem a salvo se podem julgar, pois é eu querer e as trirremes não se hão-de cansar muito para alcançar o navio que os leva. E propósito meu, porém, não erguer um dedo contra eles. Ninguém me há-de lançar em rosto que me aproveito dos homens enquanto estão comigo, e os lanço às feras uma vez que se retiram do meu ser­ viço. Deixá-los ir, e que se lembrem que foram mais ruins comigo do que eu com eles. Estão em meu poder, na praça de Trálide, suas mu­ lheres e filhos. Ainda esses penhores vou-lhos mandar entregar, em prémio da maneira louvável como me serviram até o dia de hoje. Assim falou Ciro. Aqueles dos gregos que não mostravam grande simpatia pela expedição, mal tiveram conhecimento do rasgo do príncipe, passaram a segui-lo de ânimo bem disposto e decidido. Andou Ciro vinte parasangas em quatro jornadas e estacou diante do Chalo, rio de um pletro de largura. Nele tinha acolheita uma infini­ dade de peixes, muito mansos, que os Sírios alimentavam e olhavam

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como deuses, não tolerando que lhes fizessem mal, como noutras partes fazem com as pombas. Os vilares, em que ergueram campo, pertenciam a Parisatis e tinham-lhe sido dados para os alfinetes. Mais trinta parasangas e cinco altas e chegou à nascente do Dardes, largo de um pletro. Era aqui a residência real de Bélesis, governador da Sí­ ria, com a sua esplêndida fazenda, abundante em toda a espécie de novidades. Ciro arrasou os pomares e queimou o palácio. Em três jornadas de quinze parasangas chegou o exército, enfim, ao Eufrates, a alturas em que tinha quatro estádios de largo. Ali se erguia Tápsaco, cidade vasta e opulenta. Descansou-se ali cinco dias e Ciro deu a saber aos capitães que marchava sobre Babilónia, contra o grande-rei. Ao mesmo tempo re­ comendava-lhes que advertissem a tropa, mas de modo a não suscitar protestos. Os capitães mandaram formar e tornaram pública a notí­ cia. Grande assuada. Os soldados barafustaram forte e feio, acusan­ do-os de guardar segredo e coisa tão grave, estando fartos de o saber! E à uma juraram não dar um passo para a frente a não ser que tives­ sem o mesmo pré que as tropas que tempos antes haviam acompa­ nhado Ciro à corte, chamado pelo pai, dessa feita, para mais, com o simples papel de escoltá-lo e não de se bater. Os capitães foram com a requesta a Ciro que prometeu, mal chegasse a Babilónia, dar a cada homem cinco minas de prata e pagar-lhes, contado por intei­ ro, o estipêndio, até regresso à Jónia. Estas promessas conciliaram a boa vontade da maior parte dos gregos. Antes, porém, que se to­ masse uma resolução geral, Menão convocou os seus homens e fa­ lou-lhes assim: — Soldados, se tendes confiança em mim, indico-vos o modo de obter, sem riscos nem trabalhos, mais honras e proveitos que o resto das tropas. Como? Ciro pede aos gregos que o sigam contra o gran­ de-rei. Pois bem, atravessemos nós o Eufrates antes que se conheça a resposta dos nossos camaradas. Se se decidirem todos a segui-lo, cabe-nos a nós a honra de tal iniciativa. Receberemos alvíssaras por­ que Ciro há-de ficar-nos reconhecido e ninguém melhor do que ele sabe ser grato. Prevalecendo o parecer contrário, pouco nos custa fa­ zer meia volta. Mas visto que vós fostes os únicos a obtemperar

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a seus votos, tereis ganho a sua confiança e a vós, antes de mais nin­ guém, caberá ficar no comando das guarnições e das coortes. E tam­ bém vos digo que, se tiverdes mercês a pedir, Ciro fará tudo quanto possa para vos ser agradável. Mal ouviram tais palavras os soldados de Menão aprestaram-se para passar o Eufrates e fizeram-no antes dos outros. Ciro, radiante, mandou-lhes dizer por Glos: — Gregos, bravíssimo! Eu perca o nome de Ciro se muito em breve não tiverdes que vos louvar no passo que acabais de dar! Ante tais palavras, os gregos conceberam as maiores esperanças e fizeram votos pelo êxito da expedição. Há quem diga que Ciro en­ viou a Menão um rico presente. Não tardou que todos atravessassem o rio com água, em certos sítios, até à altura dos peitos. Os habitantes de Tápsaco pretendiam que ninguém até então passara o Eufrates a vau; em qualquer altura do ano que fosse, havia que recorrer a embarcações. Abrócomas, que chegara primeiro que os gregos, mandara-as queimar na esperança de tolher o passo a Ciro. Considerou-se sinal da vontade divina o rio ter baixado as águas co­ mo diante do seu futuro rei.

V

Em nove jornadas percorreu cinquenta parasangas através da Sí­ ria e chegou às margens do Áraxe. A campina estava semeada de al­ deias, fartas de cereais e vinho, e em três dias que ali se deteve abas­ teceu-se de tudo o que precisava. Dali passou à Arábia, com o Eufrates sempre à direita, e em cin­ co dias andou trinta e cinco parasangas por uns desertos lisos como o mar e cobertos de absintos. Todas as plantas que ali cresciam, fosse juncai ou mato, eram estranhamente odoríferas. Arvores não se viam. A cada passo encontravam manadas de onagros, bandos de avestru­ zes, abetardas e gamos. Os cavaleiros, umas vezes por outras, saíam a caçá-los. Os onagros desatavam a correr e, tomando boa dianteira, estacavam de súbito. Eram mais ligeiros que corcéis e, disparados, pareciam brincar. Mal os caçadores se acercavam, repetiam a mano­ bra, de modo que não era possível apanhá-los a menos que os cava­ leiros, postando-se vários de espaço a espaço, os atirassem duns para os outros. A carne dos poucos que foram apanhados parecia-se com a da corça, só era mais tenra. Avestruzes não se caçou nenhum. Sentindo-se perseguidos, bota­ vam longe graças aos pés ligeiros, ajudados pelas asas; abertas à laia de velas. Abetardas, sim, deitavam mão a quantas queriam, toda a questão era feri-las de chofre ao levantar. Estas aves têm como as perdizes o voo curto e cansam-se depressa. A carne é finíssima. Andando, andando por esta região fora, chegaram à vista do rio Mascas que não tem mais largura que um pletro. As suas águas ba­ nham Corsote, vasta cidade que os moradores haviam evacuado. Ali

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se demoraram três dias; ao cabo dos quais, bem comidos e bebidos, fizeram, em fatigantes marchas, noventa parasangas pelo deserto fo­ ra, sempre com o Eufrates à mão direita. Pelo caminho caíram-lhe com fome muitas bestas. A terra era tão árida que se não via fêvera de verde. Os habitantes desenterravam à beira do rio grandes lanchas de que faziam mós. Com o que elas lhes rendiam, vendidas em Babi­ lónia, compravam pão e era desse negócio que viviam. Os víveres acabaram por escassear no exército e se algum pão se comia era no campo lídio, entre os bárbaros que acompanhavam Ciro. Mas não o largavam senão a peso de oiro. A cápita de farinha custava quatro si­ dos. O siclo valia sete óbolos e meio e cada cápita media duas chénicas áticas. O passadio dos soldados limitava-se a carne. E cada vez faziam caminhadas mais longas com o fito de acabarem por encon­ trar água e forragem para o gado. Um dia foram dar a tal atascadeiro que não havia jeito de os car­ ros andarem para trás nem para diante. Ciro parou ali juntamente com os mais notáveis do seu séquito e deu ordem para que Glos e Pigrete fossem com um piquete de bárbaros tirar os carros do loda­ çal. Mas eles não andaram tão expeditamente como seria para desejar e, com jeito nervoso, convidou os senhores persas a dar uma demão aos homens, enterrados na lama até os joelhos. E pôde-se presenciar então um belo exemplo de sujeição. Cada um atirou a terra com o seu balandrau de púrpura e desatou a correr, como se se tratasse de desafio, pela encosta abaixo. E com suas ricas túnicas, perpontes bordados, alguns de colares ao pescoço e anéis nos dedos, deitaram mãos às rodas e aos tirantes e safaram os carros do atoleiro. Era evi­ dente que Ciro se despachava o mais que podia, detendo-se apenas para se reabastecer ou por motivos de força maior. Considerava, com efeito, que quanto mais depressa chegasse, menos tempo deixaria a el-rei para chamar tropas e defender-se. Não era preciso ser muito inte­ ligente para reconhecer que, se o império persa é poderoso pelo des­ mesurado do território e a sua grande população, aí reside, pelo facto das grandes distâncias e o dispersivo das forças, a sua própria debili­ dade; daí o ser mais vulnerável que nenhum outro a inimigo que o acometa com presteza e decisão. Na outra margem do Eufrates, frente às plagas desertas em que o exército ergueu tendas, estava uma cidade grande e rica, chamada

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Carmanda. Os soldados iam lá comprar mantimentos em jangadas feitas de peles — as mesmas peles que lhes serviam de mantas para dormir — cosidas umas às outras com ponto tão miudinho que a costura não deixava passar a água. Traziam forragens para as caval­ gaduras, vinho de palma e painço, géneros que abundavam na região. Foi nesta alta que sucedeu dois soldados, um de Menão, outro de Clearco, travarem-se de rixa. Clearco julgou que o seu tinha razão e bateu no contrário; este foi-se ter com os camaradas dorido e ge­ mebundo. E nesse mesmo dia quando aquele capitão voltava a cava­ lo da margem do rio, depois de fiscalizar a feira que os soldados ali armavam, por ser aquele o melhor ponto para a travessia, um peltasta de Menão que rachava lenha atirou-lhe com a machada. Não lhe acertou, mas logo um segundo lhe jogou uma pedra e, ao alarido que se ateou, acudiram mais em tom de arruaça. Clearco pôde acolher-se ao arraial e, bradando às armas, mandou formar os hoplitas em posi­ ção de combate, lança na mão, escudo no braço; à testa duns quaren­ ta cavaleiros, trácios na maior parte, avançou depois contra as tropas de Menão, que ao ver aquilo, um instante presas de espanto, corre­ ram às armas. A maioria, felizmente, deixava-se ficar quieta, a olhar para semelhante zafarrancho, sem saber que partido devia tomar. No entrementes chegou Próxeno com uma companhia de hoplitas que tomou posição entre as duas facções. E, fazendo-lhes baixar as ar­ mas, pediu a Clearco que serenasse. Este, que esteve vai e não vai a ser lapidado, indignou-se que Próxeno lhe falasse com tanta sem-cerimónia e intimou-o a retirar-se. Nesta altura surgiu Ciro. Tinham-lhe ido com a notícia e mal ti­ vera tempo de pôr as armas. Caindo como um relâmpago no meio dos contendores, falou-lhes assim: — Clearco, Próxeno, gregos que estais presentes, perdestes o juí­ zo ou quê? Ficai sabendo que estamos perdidos se continuais com motins! Os bárbaros que nos acompanham, assim que virem que as nossas coisas correm mal, voltar-se-ão contra nós e serão os nossos inimigos, piores inimigos ainda do que aqueles que estão do lado de lá com o meu adversário. Com estas palavras Clearco acalmou e voltou a si; os dois bandos depuseram, em seguida, as armas.

VI

O exército rompeu marcha e não tardou que encontrassem pega­ das e estrabo de cavalos, vindo a conjecturar que havia passado por ali um destacamento dos seus dois mil ginetes. Esta força ia adiante deles, queimando as forragens e destruindo tudo aquilo que pudesse ter algum préstimo. Orontas, persa de sangue real, veio, entretanto, ter com Ciro e pediu-lhe mil ginetes. Com eles propunha-se bater o corpo de incendiários que ia na dianteira e, se não conseguisse armar-lhes em­ boscada que lhos entregasse de pés e mãos, ao menos estava certo que poria cobro a seus excídios ao mesmo tempo que impediria o inimigo de levar ao rei notícia do que se passava no exército de Ci­ ro. Ciro achou bem a proposta e deu-lhe licença para tirar de todos os corpos os homens que precisava. Ora este Orontas, que passava por hábil guerreiro e depois de combater Ciro se reconciliara com ele, não buscava senão ensejo para o trair. A ocasião agora era azada e nesse sentido, mal supôs formado o esquadrão que punham às suas ordens, escreveu uma carta ao rei em que, anunciando-lhe o seu propósito, lhe exorava o recebesse co­ mo amigo. E a bem de tal intento evocava a dedicação e fidelidade com que outrora o servira. O estafeta, porém, a quem confiou a carta, em vez de levá-la ao destino, foi dá-la a Ciro. Este, uma vez inteirado do seu teor, man­ dou prender Orontas e convocar os sete principais da Corte junta­ mente com Clearco, que era de todos os gregos aquele que gozava da sua maior consideração. E com três mil hoplitas formados em cam­ po, para maior solenidade, procedeu ao julgamento do traidor. Ciro

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— contou mais tarde Clearco — abriu o conselho com estas pala­ vras: — Chamei-vos, meus amigos, para deliberardes comigo quanto ao proceder mais justo perante os Deuses e os mortais que devemos observar para com Orontas. Este homem quis meu pai que fizesse parte da minha roda. Mas como meu irmão lhe desse ordens de me combater, alega ele, rebelou-se contra mim. Embora a cidade de Sar­ des lhe estivesse nas mãos, de tal modo investi com ele que viu com prazer — vou jurá-lo — o fim das hostilidades. Estendeu-me a mão, aceitei-lha. — «Orontas — prosseguiu Ciro voltando-se para ele — cometi porventura alguma injustiça de que tenhas a acusar-me?» — Como respondesse: «Nenhuma!», tornou Ciro: «Não tendo razão de queixa da minha pessoa, como confessas, não te bandeaste com os Mísios contra mim e não talaste os agros da minha província quantas vezes pudeste?» — «E verdade.» — «Assim que te capacitaste que não eras homem para te medires comigo, não vieste assegurar-me no altar de Diana o teu arrependimento? E, ao cabo de muitos rogos e promessas, não me juraste fidelidade?» Orontas concordou nova­ mente. «Que mal te fiz eu para pela terceira vez me armares uma cila­ da, como tu próprio reconheces?» — «Nenhum» — respondeu Orontas. «Confessas então que obraste indignamente comigo?» — Não tenho outro remédio.» — «Acaso será possível tornares-te ini­ migo de meu irmão e seres-me fiel?» — «Se te dissesse que sim, não acreditavas!» Ciro, voltando-se então para os membros do conselho, disse: — Sabeis o que este homem fez e ouvistes bem o que acaba de dizer, não é verdade? Clearco, rogo que te pronuncies... Clearco proferiu: — A minha opinião é que devemos desfazer-nos desta persona­ gem o mais depressa possível, para não termos que nos acautelar dela e cuidados despendê-los com quem os merece. Os outros perfilharam unanimemente este parecer. Em seguida, por ordem de Ciro, os presentes e até os chegados a ele por parentes­ co levantaram-se e agarraram-no pela cinta, o que queria dizer que era condenado à morte.

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Levaram-no sob custódia. Vendo-o, aqueles que tinham por cos­ tume curvar-se quando ele passava, fizeram-no ainda mais uma vez, posto soubessem que o traidor caminhava para o suplício. Conduziram-no à tenda de Artápata, um dos homens verdadeiros cães de fila de Ciro. E nunca mais ninguém o viu nem soube o géne­ ro de morte que padeceu. Tão-pouco se descobriu alguma vez a sua sepultura.

VII

Pelo agro de Babilónia fora, andou doze parasangas em três jor­ nadas. Na última alta, cerca da meia-noite, Ciro passou revista às tropas, dirigindo ele próprio a formatura dos homens. Estava com pal­ pite de que no dia seguinte, ao nascer do Sol, Artaxerxes viesse oferecer-lhe batalha. Por isso encarregou Clearco de comandar a ala direita dos gregos e Menão, de Tessália, a esquerda. Na madrugada, mal raiara a aurora, os trânsfugas trouxeram-lhe notícias do exército real. Com os capitães e chefes de coorte conferenciou, então, acerca do plano que conviria adoptar na batalha. Feito o que, dirigiu-lhes es­ tas palavras de exortação: — Gregos, tomei-vos ao meu serviço não porque me faltassem bárbaros; nada disso; tomei-vos porque vos considero superiores a eles. O que vos peço agora é que vos mostreis, como sois, dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas. Deixai-me advertir-vos de que força é o inimigo que ides combater. Pela quantidade é enorme e avança soltando urros. Se lhe aguentais, porém, o ímpeto balofo, vereis logo — coro até de vergo­ nha em o dizer — que raça de gente produz esta terra. Vós que sois homens comportai-vos como tal e prometo pôr na Grécia, enriqueci­ dos com dons que não deixarão de despertar inveja, aqueles que queiram voltar; os que quiserem ficar, e espero que seja a maioria, ao meu lado hão-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam en­ contrar na sua terra. Gaulites, banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro, falou-lhe deste modo:

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— Há quem pretenda, Ciro, que hoje nos fazes muitas promes­ sas, porque te achas sob o acicate do perigo, mas que amanhã, depois da vitória, nunca mais te lembras de nós. Também não é raro ouvir-se dizer que, embora quisesses satisfazer os compromissos, não te­ rias meio de o fazer ao que são de desmesurados. Ciro respondeu-lhe assim: — O império de meus país, soldados, estende-se para o Sul até uma zona vedada pelo calor tórrido de ser habitada pelo homem, pa­ ra o Norte a paragens também desertas por causa do frio rigoroso que lá reina; o Centro é governado por sátrapas, partidários todos de meu irmão. Eu só me quero convosco; se venço, quem há-de ir ocu­ par essas satrapias, senão vós? O meu medo é que, em caso de êxito como espero, me falte gente para tais cargos. Estai, estai tranquilos que sereis recompensados; cada um de vós pode, além do mais, con­ tar com uma coroa de oiro. Os que ouviram a arenga, além de ficar cheios de entusiasmo, fo­ ram dizê-lo aos outros. E Ciro viu-se assediado por capitães e até simples soldados que lhe vinham perguntar que espécie de prémio seria o deles, em caso de vitória. A todos ele acolhia com boas pala­ vras e despedia esperançados. E eles, então, exortavam-no a não se arriscar a combates corpo a corpo, pois o seu lugar era à retaguarda, onde estava mais em segurança. Foi, não o vendo conformado com papel tão prudente, que Clearco lhe disse: —Julgas, Ciro, que teu irmão sai a cruzar o ferro contigo? — Então não?! — respondeu ele. — Como filho de Dario e de Parisatis, não deixará de cumprir o seu dever. À medida que os soldados se armavam, ia-se procedendo à con­ tagem. Gregos, havia dez mil e quatrocentos hoplitas e dois mil e quinhentos peltastas; bárbaros uns cem mil com cerca de vinte car­ ros armados de foices. O exército inimigo subia, segundo as vozes, a um milhão e duzentos mil homens com mil e duzentos carros ar­ mados de foices, sem falar nos seis mil ginetes que comandava Artagerses, postados à frente de el-rei. Eram quatro os marechais do exército real, Abrócomas, Tissafernes, Góbrias e Arbaces, dispondo cada um dum corpo de trezentos mil homens. Deste cômputo há, porém, que abater Abrócomas, que chegou da Fenícia quatro dias de­ pois da acção, com os seus trezentos mil homens e os seus cinquenta

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carros foiçadores. Ciro colheu estes dados da boca dos trânsfugas, nas vésperas da peleja, dados que os prisioneiros confirmaram de­ pois. No salto que deu à frente, de três parasangas, foi já com as tropas em formatura de batalha, tanto os gregos como os bárbaros; o seu cálculo era que el-rei o atacasse naquele mesmo dia. A meio caminho esbarrou com uma vala que cortava a planície de lés a lés até fortale­ zas da Média, comprida de doze parasangas, com cinco braças de lar­ go e três de profundidade. Além disso, quatro canais, alimentados pelo Eufrates, sulcavam a planície. Muito profundos, da largura de um pletro, eram navegáveis às barcaças que se davam ao transporte dos cereais. Distavam coisa de parasanga uns dos outros e tinham as suas pontes. Entre o Eufrates e a vala havia ainda um caminho apertadíssimo, não mais largo que vinte pés. Constituía com os canais o sistema de defesa engenhado pelo grande-rei, mal soube que ia ser atacado. Ciro passou semelhante fosso com o exército, mas nesse dia Artaxerxes não lhe ofereceu batalha. Bem se viu, porém, pelo calcadoiro de homens e cavalos e outros vestígios que rondara por ali. Ciro mandou chamar Silano, de Ambrácia, que era adivinho, e deu-lhe três mil dáricos. Com efeito, estando este homem no altar dos sacrifícios, profetizou a Ciro que antes de dez dias el-rei não lhe ofereceria bata­ lha. — Se não há batalha antes de dez dias, então nunca mais há — respondeu Ciro. — Acertes tu e tens dez talentos! Eram decorridos onze dias e ele entregava-lhe agora a quantia prometida. Em verdade, porque o inimigo não se opusera à passa­ gem do fosso, julgava ele, e com ele muitos capitães, que Artaxerxes houvesse renunciado à guerra. A marcha no dia seguinte efectuou-se com muito menos precauções.

VIII

No terceiro dia o exército marchava à vontade, Ciro, de carro, com uma pequena patrulha à frente, os batalhões a trouxe-mouxe, muitos homens com as armas dentro dos carros e ao lombo das azémolas. Era pouco mais ou menos a hora em que os mercados regur­ gitam de gente quando se viu chegar, a cavalo num corcel à rédea sol­ ta, coberto de suor, Patágias, persa muito da intimidade de Ciro. Esparvadamente clamava para uns e outros, em grego e no idioma dos bárbaros, que o monarca avançava com um exército formidável. Logo que tal se ouviu, levantou-se no campo enorme burburinho. Tanto gregos como bárbaros viam-se já acometidos de surpresa, sem ter tido tempo de se equipar para a batalha. Mas Ciro saltou abaixo do carro e, pondo a couraça e montando a cavalo, foi remediando a tudo, alinhando os esquadrões na devida forma, mandando armar os soldados. Os gregos formaram com prontidão, Clearco no corno direito, junto do Eufrates, com Próxeno e outros capitães nos flancos; Menão no corno esquerdo com a sua hoste. Perto de Clearco, à direita, formava com os peltastas gregos a cavalaria paflagónia; seriam uns mil cavalos, e Arieu, lugar-tenente de Ciro, postava-se à esquerda à testa dos bárbaros. Ciro colocou-se ao centro com seiscentos cava­ leiros, revestidos de grandes lorigas e capacetes, com excepção do príncipe que se apresentava de fronte descoberta. Dizia-se que tal era a etiqueta dos persas quando corriam os riscos da guerra. Neste es­ quadrão a cabeça e o peito dos cavalos eram protegidos por testeiras de aço e os cavaleiros estavam armados de espadas à grega.

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Bateu meio-dia e o inimigo sem dar sinal; já o Sol declinava quan­ do, enfim, se descortinou no horizonte um torvelinho de pó, seme­ lhante a nuvem branca, que pouco a pouco foi escurecendo e alastran­ do até barrar de todo a planície. Depois a cortina opaca acercou-se, percebeu-se o convulsionamento multicelular das colunas em mar­ cha, faiscaram bronzes, luziram as pontas das lanças. A esquerda avançava um corpo de cavalaria de couraça clara, comandada ao que parece por Tissafernes, seguido pelos escudeiros, portadores de adar­ gas; sucedia-lhes a infantaria pesada, armada de escudos de pau que chegavam da cabeça aos pés, tudo egipcianos, segundo se afigurava. A ilharga avançavam outras forças de ginetes, apoiadas por mangas de archeiros, em esquadras maciças, por nações. E desta floresta de guerreiros, carros de guerra saíam à desfilada: uns com gadanhas ob­ líquas, para foiçar às bandas; outros com elas projectadas da boleia para a frente de modo a ceifar tudo o que lhes tolhesse a investida. O papel deles era precipitar-se para os batalhões gregos e rompê-los. Ao contrário do que dissera Ciro quando exortou os gregos a não se apavorarem com os clamores dos bárbaros, o exército real avança­ va em silêncio, a passo medido e grave. Correndo a todo o lés dos es­ quadrões, seguido de Pigrete, o intérprete, e de três ou quatro persas, ordenou o príncipe a Clearco que atacasse ao centro que lá devia es­ tar o rei. — Se ganhamos ali — exclamou — a vitória é certa! Clearco abrangeu com o olhar a linha que devia acometer, mas pois lhe dizia que o rei estava para lá da ala esquerda dos gregos — a frente do exército real era com efeito tão extensa que, ocupando o centro, sobrepujava a ala esquerda de Ciro — não arredou do Eufrates, com medo de ser envolvido. E respondeu que ficava alerta pa­ ra que tudo corresse pelo melhor. Entretanto as forças bárbaras iam avançando na melhor ordem. As forças gregas, sem perder pé, continuavam a formar-se, os infan­ tes e ginetes ocupando, uns após outros, o lugar que lhes pertencia nas fileiras. Ciro ia de cá para lá a todo o longo da frente; e estava a comparar os dois exércitos, olhando ora para um, ora para outro, quando Xenofonte, de Atenas, que o avistara do meio do esquadrão.

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picou o cavalo para ele e perguntou se não tinha ordens especiais a dar. Ciro encarou nele e respondeu: — Podes ir dizer aos soldados que consultei as entranhas das ví­ timas e todas à uma auguraram êxito completo. Ainda estas palavras não eram ditas, certo rumor percorreu as fi­ leiras dos gregos. — Que é? — perguntou. — Estão a dar arma, pela segunda vez — respondeu Xenofonte. Ficou Ciro muito admirado que alguém tivesse dado sinal e tor­ nou: — Que vozes são? — Júpiter Salvador e Vitória! — Pois seja! — e foi colocar-se no seu posto. Não havia mais que três ou quatro estádios entre os dois exérci­ tos quando os gregos, entoando o pean, arrancaram contra o inimigo. A linha da frente, galgando o espaço, lembrava uma vaga impetuosa; à retaguarda os gregos que restavam fora das fileiras correram a unir e, ao mesmo tempo que se arremessavam à frente, de roldão, invoca­ vam como os outros; num brado altíssimo, uníssono, a Marte todo-poderoso. Para estimular os cavalos, batiam nos escudos com as lan­ ças. E lá ia o mar humano, furioso. Antes, porém, que chegassem ao alcance de tiro, a cavalaria bárbara, adversa, virou de brida e largou. Os gregos lançaram-se-lhe no encalço com toda a alma, não deixan­ do no entanto de gritar uns aos outros que não corressem dispersos, mas conservassem a formatura. Desamparados pelos aurigas, já os carros dos bárbaros rodavam à toa, arrastados uns no refluxo das próprias tropas, entrados outros pelas linhas dos gregos. Estes, mal os viam chegar, abriam alas; apenas um soldado foi colhido por eles e deu trambolhão como nos hipódromos, sem sofrer, aliás, mal al­ gum. Uma flecha feriu um homem da ala esquerda, e mais baixas não houve na arremetida. Ciro, vendo os gregos, vitoriosos, levar tudo raso diante deles, experimentou grande júbilo; já os áulicos da escolta lhe falavam co­ mo a rei. Mas ele, não se deixando embriagar pelo triunfo, não larga­ va de mão os seiscentos cavaleiros, atento ao que se passava na hoste real. Sabia que era no centro que o seu irmão se encontrava, segundo

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o estilo da estratégia persa. Com efeito, é-lhes destinada tal posição não só porque no meio das duas alas se reputam mais em segurança, como porque dali mais facilmente podem dar as suas ordens. Ora el-rei, postado deste modo no centro, excedia com as suas forças a ala esquerda do exército de Ciro. E não lobrigando inimigos diante de si, nem diante dos seis mil cavalos destacados para sua protecção, volveu sobre a direita como se procurasse contornar os gre­ gos. Temeu-se Ciro de tal movimento, de que podia resultar serem os gregos colhidos pelas costas e desbaratados, e carregou à testa dos seus seiscentos cavaleiros, com tal denodo que, derribando tudo o que se lhe ofereceu pela frente, destroçou a coorte real comandada por Artagerses, a este general, ao que se conta, ele próprio fazendo morder o chão. Aconteceu porém que, mal se sentiram vencedores, os cavaleiros de Ciro despediram cada um para seu lado na cola dos fugitivos. Ciro ficou quase sozinho, rodeado apenas daqueles a quem chamavam seus comensais. Foi nesta emergência que descobriu el-rei e a sua es­ colta. — Vejo o homem! — exclamou. E, não podendo dominar-se, precipitou-se sobre Artaxerxes e de um golpe que lhe atravessou a couraça, como atestou o médico Ctésias chamado para o tratar, feriu-o em pleno peito. No instante, po­ rém, em que deu a lançada, foi atingido abaixo do olho por um dar­ do, mandado por pulso vigoroso. Estabeleceu-se raivosa referta entre os dois irmãos e as respectivas guardas. O morticínio foi grande do lado dos persas, segundo a versão do mesmo Ctésias que acompa­ nhava el-rei. Do outro lado caiu Ciro e sobre o seu corpo vinte dos seus pares. Conta-se que Artápata, o mais fiel dos seus alferes, se lan­ çou do cavalo abaixo para cobrir o corpo do amo; que o rei o man­ dara degolar naquela posição, também se diz. Ainda correu outra ver­ são segundo a qual puxou ele próprio da cimitarra e se deu a morte. Andava, de facto, com uma cimitarra à cinta, de punhos de oiro, e trazia colar e braceletes, distintivo dos persas de primeira estirpe. Ciro tinha-o em grande apreço pela fidelidade e afeição que lhe teste­ munhava.

IX

Assim acabou Ciro; todos aqueles que o conheceram são concor­ des em dizer que foi, depois do antigo Ciro, o persa que possuiu em mais alto grau o génio e as virtudes dum rei. Desde menino que em tudo levava vantagem ao irmão e aos filhos dos grandes da Pérsia, com os quais fora criado. Porque é de lei na Pérsia receberem os ra­ pazinhos fidalgos criação às portas do Paço. Ali se formam no culto da modéstia; não ouvem nem vèem coisa que represente menos des­ primor; estão presentes quando o monarca distribui distinções ou faz censuras e, se não estão presentes, são informados do que se passa. Deste modo se habituam desde os tenros anos a obedecer e a man­ dar. Ciro era afável com os da sua idade e, quanto aos velhos, fosse embora gente da plebe, era mais respeitoso que muitos de condição inferior à sua. Gostava de cavalos e sabia de gineta à maravilha. Dava-se também aos exercícios bélicos que exigem grande esforço, co­ mo atirar ao arco, despedir o dardo, em tudo se mostrando incansá­ vel. Mal a idade lho permitiu, tornou-se um apaixonado pela caça, ávido dos perigos que se correm monteando! Um dia foi atacado por um urso; a fera arrojou-o do cavalo e feriu-o de modo que ficou mar­ cado com cicatrizes para toda a vida. Mas ele, sem perder o ânimo nem o sangue-frio, acabou por abater a fera. E ao primeiro que acu­ diu cumulou de grandes dádivas, para que fosse o arauto daquele su­ cesso feliz. Nomeado pelo pai sátrapa da Lídia, da Frigia Maior, da Capadó­ cia, e comandante das tropas mobilizáveis na planície do Castólio, re­ velou-se um bom administrador, escravo da sua palavra, tratasse-se

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de pactos, ajustes ou simples promessas. Por isso cidades e particula­ res depositavam nele inteira confiança: tratados de paz ou tréguas, assinados por ele, eram rigorosamente observados a ponto de fica­ rem fora de hipótese quaisquer surpresas desagradáveis. E aqui está porque, quando fez guerra a Tissafernes, todas as cidades, excepto Mileto, preferiram ficar na sua dependência. E Mileto, se nutria pre­ venções contra ele, era porque jurara não desamparar a causa dos exi­ lados até a última extremidade. A sua grande preocupação era sobrepujar quem lhe fizesse bem ou quem lhe fizesse dano dentro do próprio pólo moral. Ouviram-no expressar este voto: — Oxalá que os Deuses não me levem sem tornar com juros o que devo a amigos e a inimigos! Ninguém poderia acusá-lo de ser indulgente com celerados e malfeitores. Não raro se encontravam pelos caminhos estropiados de pés e mãos e até dos olhos, penitenciados da sua justiça implacá­ vel. Também nunca houve tanta segurança individual nas comarcas da sua satrapia, quem quer, grego ou bárbaro, podendo meter-se aos caminhos sem perigo algum. As maiores honras reservava-as para aqueles que se distinguiam no combate. Da primeira campanha que fez contra os Písidas e Mísios, o comandante em chefe foi ele. O governo das terras conquista­ das deu-o àqueles que sabiam arrostar com os perigos e não volta­ vam cara ao adversário; daí o serem considerados os heróis como gente de sorte e os cobardes sem outro mérito que o de serem escra­ vos daqueles. E sucedia quererem mostrar-se todos mais valentes uns do que outros, na cobiça de serem bem vistos de Ciro. No que muito caprichava era que, sob a sua governação, em tudo houvesse pontualidade e justiça. Mercê das suas recompensas valia mais ao funcionário ser exacto do que locupletar-se por meios ilíci­ tos. Assim não lhe faltava gente para toda a espécie de missões. De longe, atravessando os mares, vinham oferecer-se-lhe capitães e es­ tratégicos, e decerto o faziam não com sentido no mesquinho soldo mas no galardão que viriam a conquistar por seu zelo e lealdade. Não admira que, assim generoso e justo, não existisse no seu tempo prín­ cipe melhor servido e venerado.

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Que um governador, sem deixar de ser recto, desenvolvesse o bem-estar dos seus administrados e enriquecesse, não era ele que lhe ratinhava os proventos, se antes lhos não aumentava. Desta for­ ma trabalhavam com gosto e ninguém exorbitava do seu legítimo in­ teresse. Lucros sonegados, sim, mereciam a sua exprobração e severi­ dade. Ciro era inexcedível na arte de cultivar os amigos e aqueles que julgasse capazes de contribuir para o êxito dos seus projectos. Ninguém, a meu ver, recebeu mais presentes de admiradores e afeiçoados. Também ninguém distribuía dádivas com mão mais li­ beral, segundo os gostos e necessidades de cada um. Se lhe ofereciam ricas vestes, armas preciosas, não tardava que as desse aos da sua ro­ da, alegando que um homem não podia trazer mais que uma roupa e pôr à cinta mais que uma espada, e que os amigos bem ataviados eram o melhor ornamento do príncipe. Não espanta que levasse a melhor aos amigos em matéria de mu­ nificência, pois era mais poderoso do que eles; mais para admirar era que os excedesse na arte de ser deferente e no desejo de ser agradável ao seu próximo. Muitas vezes mandava aos amigos um garrafão de vinho, apenas encetado, com estas palavras: «Há muito tempo que não provo melhor; bebe-lhe bem com os teus e que te preste.» Também lhes mandava uma perna de ganso, pãezinhos, gulosei­ mas, com recados deste teor: «Ciro regalou-se com o petisco que aí vai; que tal?» Se não havia feno para os cavalos e os criados iam desencantá-lo onde os Deuses queriam, mandava que primeiro fossem pensadas as montadas dos seus tenentes. Quando aparecia em público, como soubesse que todos os olhares incidiam sobre ele, punha-se a praticar com aqueles que pretendia honrar, modo certo de os distinguir. Que eu saiba, nenhum homem foi mais estimado por gregos e bárbaros. A prova viu-se; sendo todos os seus governados e áulicos vassalos do grande-rei, nenhum o deixou pelo monarca. Só Orontas ousou fazê-lo, vindo a reconhecer em sua desgraça que o homem em que ele confiava lhe era menos afeiçoado do que a Ciro. Pelo contrário, mal a guerra estalou, não poucos favoritos de Artaxerxes desertaram das

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fileiras reais para as suas. A morte de Ciro forneceu ainda o argumen­ to incontestável de quanto era magnânimo e sabia prender à sua sor­ te os homens de brio e carácter, pois que sobre o seu cadáver se fize­ ram matar amigos e privados, combatendo até resto de espada em punho. Apenas Arieu teve artes de sobreviver. Comandante da cava­ laria da ala esquerda, mal soube da morte do príncipe, fugiu à testa dos esquadrões.

X

Cortaram a cabeça e a mão direita de Ciro no próprio campo de batalha. As tropas de el-rei, acossando os fugitivos, penetraram no campo adverso. Arieu não lhes ofereceu nenhuma espécie de resis­ tência, tendo largado com o arraial para aquele mesmo sítio donde pardra pela manhã, a quatro parasangas de distância. Começou o sa­ que. Artaxerxes tomou uma das amantes de Ciro, rapariga da Fócida, tida por séria além de formosa; uma outra, mais nova ainda do que esta, que era de Mileto, quando os soldados do rei lhe iam a deitar a mão, fugiu meia nua. Havia gregos de guarda ao trem e escapou-se para junto deles. Estes, quando viram as coisas mal paradas, forma­ ram em quadrado, fizeram grande matança nos ratoneiros e, não obs­ tante as baixas que sofreram, ali se aguentaram a pé firme até serem socorridos, salvando-se assim pessoas, bens e até a mocinha de Mileto. El-rei encontrava-se, então, distanciado dos gregos cerca de três estádios, e estes avançavam, levando tudo diante, como se a vitória fosse plena. Os persas, por sua vez, pilhavam o campo de Ciro, tam­ bém como se o exército deles tivesse ganho a batalha. Mas os gregos acabaram por ser informados de que el-rei lhes acometia a impedimen­ ta. Tissafernes, por sua vez, avisava el-rei de que a ala esquerda do seu exército fugia desbaratada. Artaxerxes, então, tratou de concen­ trar as suas forças, e Clearco, do seu lado, chamou Próxeno e os ca­ pitães que estavam mais perto para resolverem se deviam mandar um destacamento em socorro das equipagens ou irem todos. Entretanto viram que o rei avançava com o exército como se qui­ sesse atacá-los pela retaguarda e fizeram volta-cara. Mas ele tomou

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outro destino, retrocedendo àquela posição donde superava com o desdobramento das suas linhas a ala esquerda do inimigo. Com ele iam os trânsfugas e vieram juntar-se-lhe as tropas de Tissafernes que tinham sustentado ao longo do rio combate com o corpo de peltastas gregos. Estes que eram comandados por Epísteno, de Anfípolis, que tinha fama de capitão prudente, esperaram-no a pé firme e, uma vez ao alcance, crivaram-no com um chuveiro de dardos. Tissafernes não teve remédio senão retirar, muito provado do recontro. No recuo topou-se com as forças de el-rei. E os dois, depois de reorganizarem os esquadrões, decidiram avançar contra o campo inimigo. Foi vendo tal manobra que os gregos recearam ser tomados de flanco e, uma vez envolvidos por tão copiosas tropas, aniquilados. Hesitavam por isso se deviam ou não desdobrar a ala, apoiando-a no Eufrates. Enquanto estudavam o plano, Artaxerxes, reocupando a posição que tinha no início da batalha, veio a formar em frente de­ les. E logo os gregos, cantando de novo o pean, se lançaram ao ataque mais furiosamente do que nunca. Os bárbaros, porém, não espera­ ram o choque e fugiram para mais longe que da primeira vez. Os gre­ gos foram-lhes no encalço até uma aldeia, sobre que se alcandorava um monte em que as tropas reais tinham acabado por se agarrar e em que faziam fínca-pé. Esse monte ficou literalmente coalhado de gine­ tes, apenas ginetes, que o rei não dispunha de infantaria. Dificilmente se distinguia em tal aglomeração o que se passava. Pareceu aos gre­ gos que o guião de el-rei, uma águia de asas abertas, pairava acima do arraial. Hesitantes de princípio, acabaram os gregos por se lançar ao as­ salto da colina e logo a cavalaria inimiga começou a ceder; não de jac­ to, mas por pelotões, uns por aqui, outros por ali. Em breve não res­ tava lá um cavalo. Clearco desistiu, então, de a escalar e fez alto no sopé, destacando Lício, de Siracusa, com outro cavaleiro, a reconhe­ cer o terreno. Lício partiu a galope e voltou a dizer que a cavalaria real fugia em debandada. O Sol estava quase no ocaso. Precisados de repouso, os gregos alijaram as armas. Espantava-os que não aparecesse Ciro nem ninguém da sua parte. Mas, como igno­ ravam que caíra na batalha, futuravam que perseguisse o inimigo ou tivesse avançado mais longe com o fim de se apoderar de qualquer

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posto importante. Depois de tomar fôlego; consultaram-se uns com os outros sobre se deviam mandar vir as equipagens, para ficar onde estavam, ou se não seria melhor voltar ao arraial; decidiram voltar. Quando chegaram às tendas, eram horas de ceia. Encontraram o trem pilhado. As tropas persas tinham feito mão baixa sobre as provisões de vinho e trigo, reservadas aos gregos por Ciro, para o caso em que houvesse penúria no exército. Eram mais de quatrocentos carros. Os gregos não tinham que cear, e já não ti­ nham jantado, surpreendidos pelas tropas de Artaxerxes quando co­ meçavam a comer o rancho. Foi deste modo, com a barriga a dar ho­ ras, que se lhes pôs o Sol.

LIVRO SEGUNDO

I

Ao raiar da aurora os capitães gregos reuniram-se em conferên­ cia. E, muito admirando todos que Ciro não aparecesse, nem houves­ se dele novas nem mandados, foram concordes em levantar arraial e romper avante até o encontrar. Já nascia o Sol quando Procles, governador da Teutrânia e des­ cendente de Damarates de Lacedemónia, e Glos, filho de Tamos, vieram anunciar a morte de Ciro. Ao mesmo tempo traziam recado de Arieu que, havendo-se refugiado com os bárbaros nos lugares em que estivera entrincheirado de véspera, esperava por eles todo o dia para o caso em que quisessem ir ter com ele, mas que na manhã se­ guinte, sem falta, punha-se a caminho da Jónia. Capitães e soldados, no geral, ficaram muito penalizados com a notícia. Clearco ergueu as mãos ao céu, lastimoso: — Prouvera aos Deuses que Ciro vivesse! Mas, pois que morreu, ide anunciar a Arieu que desbaratámos o exército real e que não en­ contramos mais resistência diante de nós. Vós a chegardes e nós em ordinário de marcha! Podeis garantir a Arieu, de nossa parte, que, volte ele atrás, e nós o poremos no trono, como está no nosso bom direito de vencedores. Clearco despediu os deputados com esta mensagem e fê-los acompanhar por Quirísofo, de Lacedemónia, e Menão, de Tessália. Menão, na qualidade de amigo de Arieu e seu hóspede, arrogou-se a primazia quanto a desempenhar tal missão. Partiram os deputados e, enquanto não chegava a resposta, trataram as tropas de se alimentar. Foram-se aos bois e jumentos do trem e abateram uns tantos, depois,

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caminhando para o sítio em que a batalha fora mais encarniçada, en­ contraram grande quantidade de setas de pau, que os trânsfugas, se­ gundo a intimação, tinham despojado do ferrão de aço, escudos de verga e de madeira dos egipcianos, carroças vazias. Juntaram estes destroços todos e assaram a carne a eles. Não tiveram outro passadio aquele dia. A hora em que o forum está cheio de gente, chegaram arautos da parte do rei e de Tissafernes. Eram todos bárbaros de na­ ção, excepto Falino, grego do séquito do sátrapa, que passava por homem muito entendido na arte da guerra e no manejo das armas. Adiantando-se para o campo grego, chamaram pelos capitães e inti­ maram-nos em nome de Artaxerxes, que se considerava vitorioso com a morte de Ciro, a que entregassem as armas e fossem à sua por­ ta implorar clemência. Os gregos ficaram indignados com tais palavras. Esforçando-se por se moderar, Clearco respondeu que não pertencia a vencedores entregar as armas. E, voltando-se para os capitães, seus camaradas, como um dos impedidos o chamasse para ver as entranhas das víti­ mas, acrescentou: — Dêem a resposta que lhes parecer mais honrosa e assisada que eu volto já... Estavam, com efeito, a sacrificar quando chegaram os persas. — Antes morrer que entregar as armas! — exclamou Cleanor, de Arcádia, o mais idoso dos capitães. — Falino — pronunciou Próxeno, de Tebas, a quem competia falar em segundo lugar — estou muito surpreendido com o que nos vens representar. Artaxerxes pede-nos as armas na qualidade de ven­ cedor ou na qualidade de amigo e a título de presente? Se e na quali­ dade de vencedor, em vez de no-las pedir, porque as não vem bus­ car? Agora, se pretende havê-las às boas, que declare primeiro que é o que nós ganhamos se lhe fizermos a vontade... — El-rei considera-se vencedor — respondeu Falino — desde que matou Ciro. Em verdade, quem lhe poderia disputar o ceptro?! Quanto a vós, ninguém lhe diga que não estais em seu poder, visto que vos encontrais em pleno coração dos seus estados, entre cursos de água que é difícil transpor, e não lhe custa nada lançar contra vós tais vagas de gente que, mesmo desarmada, acabaria por levar a me­ lhor.

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— Bem vês, Falino — proferiu Xenofonte, de Atenas — que não possuímos outros bens além das armas e da coragem. Enquanto tivermos armas, a coragem não quebra; se as entregássemos, não ia jurar que conservássemos a própria vida. Não te ponhas pois a imagi­ nar que vamos privar-nos do único bem que nos resta; e que bem?! Pode até acontecer que tenhamos de servir-nos dele para nos empos­ sarmos dos vossos. — Mancebo — replicou Falino, sorrindo — gosto de te ouvir fi­ losofar e dizer assim coisas bem ditas. Mas repara que é loucura ima­ ginar que podeis resistir com vossa valentia à fortaleza ilimitada de el-rei. Alguns, que eram escassos de ânimo, observaram que se tinham sido leais com Ciro também podiam sê-lo com Artaxerxes, servindo-o igualmente. Havia mil maneiras de lhe serem úteis, tomando parte em qualquer expedição, por exemplo, contra os Egipcianos... Neste meio tempo chegou Clearco e perguntou que resposta ti­ nham dado os camaradas. — Um diz uma coisa, outro diz outra — respondeu Falino — e ninguém se entende. E a ti que te parece, Clearco? — Falino — obtemperou ele — é com o maior prazer, decerto partilhado pelos camaradas, que te vejo aqui. Não podia ser doutro modo: és grego, todos os presentes gregos são. Como tal, pedimos-te o teu parecer desinteressado quanto à situação em que nos achamos. Pelos Deuses imortais, aconselha-nos o que há-de melhor a fazer sem prejuízo da nossa honra e lembra-te que te podes cobrir de gló­ ria pela maneira como o fizeres. A tua voz ficará a ressoar na posteri­ dade, pois em toda a Grécia não deixará de vir a dizer-se: tal e tal foi o conselho de Falino, enviado aos compatriotas por Artaxerxes para que entregassem as armas. O intuito de Clearco, com linguagem tão capciosa, era levar Fali­ no a aconselhar aos gregos que não entregassem as armas, esperança­ do em que assim lhes levantaria o ânimo. Mas Falino ladeou e res­ pondeu-lhe nestes termos contra a sua expectativa. — Se tendes uma probabilidade contra mil de vencer a Artaxer­ xes, digo-vos que não entregueis as armas. Agora, se não vedes salva­ ção possível na resistência, então o melhor é lançar mão dos meios que se vos oferecem.

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— É esse o teu pensamento? — retorquiu Clearco. — Agora ou­ ve o nosso e vai com ele a Artaxerxes: temos ou não temos de ser amigos dele? Se temos, ser-lhe-emos mais úteis conservando as ar­ mas. Se não temos, melhor combateremos conservando-as do que privando-nos delas. — Bem, nós vamos inteirar el-rei da vossa resolução. Estamos ainda incumbidos de vos dizer que, ficando vós aqui, há tréguas; avançando ou recuando, há guerra. Respondei-me, eu vos peço: ficais aqui, preferindo tréguas? ou devo dizer que recomeçam as hostilida­ des...? — Comunicai a Sua Alteza que somos absolutamente do seu pa­ recer. — Que quer isso dizer? — Se ficamos, há tréguas; se avançamos ou recuamos, guerra. — Mas, afinal, que hei-de anunciar? — Paz, se ficamos; guerra, se avançamos ou recuamos. E esquivou-se a dar mais explicações.

II

Quando Falino e os arautos se retiraram, apareceram Procles e Quirísofo, de volta do campo de Arieu. Menão ficara com ele. — Arieu — disseram eles — respondeu-nos que havia muitos persas, mais ilustres pelo sangue do que ele, que nunca se resignariam a aceitá-lo como rei. Está decidido a retirar; se quereis a sua compa­ nhia, muito bem; espera por vós esta noite. Amanhã, de manhãzinha, parte infalivelmente. Clearco, para lhe não dar a conhecer os seus planos, respondeu deste modo: — Entendido. Se lá aparecermos, aparecemos. Se não aparecer­ mos, que proceda como melhor entender. Ao pôr do Sol mandou reunir os mais capitães e comandantes de coorte e falou-lhes assim: — Camaradas, mandei sacrificar para saber se podia marchar contra o rei Artaxerxes, e as entranhas das vítimas nada pressagiaram de bom. Acabo de saber que o rio que está de permeio entre nós e Artaxerxes só se passa de barca e nós não temos barças. Ficar aqui é impossível porque estamos de todo sem mantimentos. Agora os augúrios que tenho aconselham-nos a juntarmo-nos aos amigos de Ciro. E o que temos a fazer. Por hoje, toca a recolher às tendas e em matéria de papança cada um governe-se conforme puder. Ao primei­ ro sinal da trombeta, todos a pé; ao segundo, mochila às costas; ao terceiro, marche, em formatura, trem à frente, pela margem do rio, coberto pelos hoplitas.

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Capitães e comandantes de coorte retiraram-se com estas instru­ ções que executaram pontualmente. Desde aquela hora Clearco assu­ miu o comando supremo e as tropas obedeceram, embora o não ti­ vessem eleito, por verem nele o único com as qualidades mibtares dum chefe, quanto mais não fosse, falhos todos os outros de expe­ riência. Segundo os melhores cálculos, desde Éfeso, na Jónia, até o cam­ po de batalha, o exército tinha andado quinhentas e trinta parasangas ou seja seis mil e cinquenta estádios com noventa e três altas. Daí a Babilónia avaliavam o trajecto em trezentos e sessenta estádios. As primeiras horas da noite desertou Miltocites, da Trácia, pas­ sando a Artaxerxes, com quarenta cavaleiros e cerca de trezentos in­ fantes, da sua nação. Como ficara assente, Clearco pôs-se à testa do exército e por volta da meia-noite chegou ao acampamento de Arieu. Capitães e comandantes de coorte, mal as forças bivacaram, foram em peso ter com o general dos bárbaros. Solenemente, gregos, Arieu e graduados do exército juraram ser aliados fiéis uns dos outros e não usar de nenhuma espécie de traição entre eles; os bárbaros juraram, além disso, ser guias leais. Antes de começar o juramento imolaram um javali, um touro, um lobo e um aríete. O sangue das vítimas foi apanhado para um escudo e os gregos molharam nele as pontas das espadas e os bárbaros as hastes dos chuços. Depois de trocarem tais penhores de fidelidade, Clearco proferiu: — Arieu, uma vez que vamos fazer a retirada juntos, que itinerá­ rio vai ser o nosso? Voltamos por onde viemos ou conheces melhor caminho? — Se voltamos por onde viemos — respondeu Arieu — morre­ mos todos à fome. Nas dezassete últimas jornadas que fizemos, o país, que já era pobre por natureza, ficou esburgado até o osso. Talvez valha a pena tomar outro caminho, mais comprido, sim, mas onde encontraremos que comer. Nos primeiros dias de marcha have­ rá que unir fileiras e andar depressa de modo a pormo-nos longe do exército de Artaxerxes. Se nos apanhamos com dois ou três dias de avanço, pode-nos assobiar ao rabo. Com forças reduzidas, não vai atrás de nós com as forças todas, o seu andar é vagaroso. Talvez lhe faltem também mantimentos. Aqui está o que eu penso.

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Não visava semelhante plano mais que a escapar a Artaxerxes e a fugir; a fortuna comprouve-se em guiar as tropas pelo melhor cami­ nho. Puseram-se em marcha, orientando-se de modo que o Sol ao nascer lhes batesse pela direita. Contavam estar à noitinha em aldeias de Babilónia e não se enganaram. Pela tarde, todavia, pareceu-lhes lo­ brigar ao longe cavalaria inimiga; os soldados que iam fora de forma correram aos seus lugares. Arieu, que seguia de carro por causa duma ferida, apeou-se e envergou a couraça, bem como todos quantos o acompanhavam. Enquanto se armavam, voltaram os corredores enviados em reconhecimento. O que passara ao longe e eles haviam tomado por ginetes eram animais de carga. Artaxerxes, no entanto, não devia andar longe. Distinguia-se fumo aqui e ali de bivaque. Clearco, fosse como fosse, não estava para investir com o inimigo. Sabia muito bem como as tropas andavam enfadadas, quase em je­ jum, e que se fazia tarde. Mas também não virou de rédea, para não dar ares de quem foge; antes, pelo contrário, rompeu direito, sempre em frente, e ao pôr do Sol acampava com a vanguarda nuns povos de que as tropas de Artaxerxes tinham levado tudo, até a madeira das casas. Os primeiros que chegaram puderam aboletar-se sossegadamen­ te; mas os da retaguarda, com a noite escura, alojaram-se a trouxe-mouxe, e fizeram grande aranzel a chamar uns pelos outros. Tão grande aranzel que os soldados inimigos que, por estarem mais perto, ouviram tal bulha, deitaram a fugir. Mas só no dia seguinte deram conta; olhando para todos os lados, no horizonte, não lobrigaram nem bestas de tiro, nem tendas, nem fumo de arraial militar; Artaxer­ xes, ao que se concluiu, ficara atarantado com a marcha do exército. Durante a noite, os gregos deixaram-se tomar dum princípio de pânico. O rumor e balbúrdia, como acontece em sobressaltos deste género, foram indescritíveis. Clearco tinha por acaso ali ao pé Tólmides, da Élida, o melhor porteiro do seu tempo. Por boca dele mandou que estivessem cala­ dos e anunciou que receberia um talento de prata aquele que viesse dizer quem cometera o despautério de soltar o burro no arraial. Gra­ ças a esta proclamação, compreenderam os soldados que o seu terror

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era infundado e que nada de mau acontecera aos capitães. Ao raiar da manhã Clearco ordenou que os gregos se armassem e formassem em batalhões, como tinham feito na antevéspera quando marcharam contra Artaxerxes.

Ill

Não fora rebate falso ter-se Artaxerxes inquietado com a marcha do exército grego. Com efeito, ele, que na véspera intimava a que lhe entregassem as armas, mal nasceu o Sol enviou arautos entabular ne­ gociações. Estes arautos, chegados que foram às guardas avançadas do acampamento, pediram para falar aos capitães. Clearco, que na­ quele momento passava revista às tropas, mandou-lhes dizer para es­ perar, que logo que os pudesse receber o faria. E, alinhando as tropas em colunas cerradas de modo a apresentar uma frente que impressio­ nasse, metidos para trás os soldados que não tinham armas, ao passo que mandava entrar os delegados saía-lhes ao encontro escoltado de luzida e bem armada escolta. E, assim procedendo, convidou os ou­ tros capitães a seguir-lhe o exemplo. Quando chegou ao pé dos delegados perguntou-lhes ao que vi­ nham. Responderam que vinham para negociar tréguas e que a sua missão, portanto, era comunicar aos gregos a vontade de el-rei e le­ var a el-rei a resposta dos gregos. — Pois ide dizer a Sua Alteza que antes de mais nada temos de travar combate. No nosso campo não há nada que comer e, a menos que nos abasteçam, é irrisório falar de tréguas. Os arautos retiraram com esta resposta e não tardou que voltas­ sem, sinal de que Artaxerxes estava perto ou alguém por ele, que o representava. — Sua Alteza — disseram os deputados — acha a proposta justa e, se estais decididos a assinar tréguas, já aqui estão os guias que vos hão-de conduzir a sítio onde nada vos falte.

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— A trégua diz respeito apenas aos negociadores ou compreende as tropas em geral? — Compreende as tropas em geral, e dura até que Sua Alteza se pronuncie sobre as vossas propostas. Clearco chamou os camaradas a conselho e assentou-se concluí­ rem imediatamente o armistício e dirigirem-se à boa paz para os luga­ res em que lhes ofereciam géneros. Em vez, porém, de darem res­ posta pronta aos delegados, diferiram-na de modo a deixar-lhes ensejo a recear que a trégua fosse rejeitada, não lhes parecendo nada mau que os soldados gregos nutrissem, por instantes, a mesma apreensão. A trégua foi, pois, concluída e logo lhes disse Clearco: — Vamos aos víveres! Puseram-se a caminho, os arautos à frente, atrás as tropas em formatura de combate. O próprio Clearco comandava a falange da retaguarda. No caminho encontraram fossos e canais cheios de água, que não houve meio de vadear; e foi necessário improvisar pontes, utilizando as palmeiras que havia derrubadas pelo chão e outras, que deitaram abaixo. Nesta conjuntura se patenteou à evidência a força de Clearco como chefe. Na mão esquerda trazia uma lança, na direita o bastão. Se algum dos homens, empregados na construção das pon­ tes, dava indícios de calacear, chegava-lhe pancada e substituía-o por outro mais activo. Ele próprio, com lama até o joelho, trabalhava co­ mo operário. E, só de vê-lo, todos tinham vergonha de não pôr na­ quela empreitada o alento máximo. Para este trabalho tinham sido destinados os gregos de trinta anos para baixo; mas perante o exem­ plo de Clearco, até os mais velhos puseram mãos à obra. Clearco queria despachar-se, suspeitoso que aquelas valas e canais nem sem­ pre assim estivessem cheios de água. Com efeito, não sendo a sazão de irrigar a campina, presumia que Artaxerxes, abrindo os diques, ti­ nha em vista, pelo menos, mostrar aos gregos os inumeráveis obstá­ culos que lhes estorvariam a marcha. Aberto caminho, chegaram finalmente aos vilares que os guias davam como bem providos de mantimentos. De facto, encontraram ali trigo em abundância, vinho de palma e certa bebida ácida que ex­ traem das tâmaras. E, quanto a tâmaras, eram tantas que as davam

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aos criados iguais àquelas que apareciam na Grécia; à mesa dos se­ nhores apenas iam escolhidas, admiráveis pelo tamanho e pelo sabor. Tinham cor de âmbar tostado. Secavam-nas para sobremesa; mas eram tão adocicadas que causavam enjoo. Foi também aqui, pela pri­ meira vez, que os soldados provaram palmitos, achando divertida a sua forma e sabor. Mas, do mesmo modo que as tâmaras, agonia­ vam ao que eram de açucarados. A palmeira, uma vez que lhe cortem aquele grelo, seca completamente. Ficaram ali três dias. Tissafernes, entretanto, veio ter com eles, acompanhado do irmão da rainha e de três persas de categoria, acaudatado de escravos em barda. Os capitães gregos foram ao seu en­ contro e Tissafernes dirigiu-se-lhes, nestes termos, por meio do intér­ prete: — Gregos, bem sabeis que o meu Estado é vizinho da Grécia. Em face dos males e trabalhos que vos perseguem, o meu gosto é, com licença de el-rei, reconduzir-vos sãos e salvos à vossa terra. Pen­ so deste modo alcançar o vosso reconhecimento e o dos vossos compatriotas. Movido por esta ideia, eu vos digo, fui-me ter com el-rei e representei-lhe quanto era justo conceder-me aquela graça. Fo­ ra eu o primeiro que lhe dera notícia da expedição de Ciro; ao mes­ mo tempo que o prevenia, trazia-lhe o auxílio das minhas forças; de todos quantos entraram na batalha contra vós, eu fui o único que não arredei pé; juntei-me a ele no vosso campo, depois que Ciro pereceu, enfim, com as tropas que comandei e lhe são particularmente afectas acossei os bárbaros de Ciro. Invoquei todas estas razões e el-rei ficou de pesá-las. Mas, prometendo-mo, mandou-me saber por que motivo pegastes em armas contra ele. Quer sabê-lo e, se aceitais o meu con­ selho, respondei com moderação e verdade, de forma a eu poder im­ petrar de Sua Alteza para convosco tratamento favorável. Os gregos apartaram-se a conferenciar e pela boca de Clearco responderam: — Nós não nos concertámos para fazer guerra a Artaxerxes, nem sabíamos sequer que marchávamos com esse fim. Ciro, deves sabê-lo, fartou-se de inventar pretextos e embustes de toda a ordem para vos colher de surpresa e a nós arrastar-nos consigo. Verdade se

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diga, quando o vimos em perigo, tivemos vergonha à face dos Deu­ ses e dos homens de abandoná-lo, quando em hora melhor nos tí­ nhamos aproveitado das suas liberalidades. Agora que esse príncipe já não existe, não pretendemos nada, nem disputar o ceptro a el-rei, nem atentar contra a conservação dos seus estados, nem infestar-lhe os domínios, mas voltar bem quietos a nossas casas se ninguém se meter connosco. Agora se nos hostilizarem, com a ajuda dos Deuses, cá estamos para repelir a afronta. Dado, porém, que sejam generosos connosco, saberemos corresponder... — Eu transmito a el-rei as vossas palavras — proferiu Tissafernes — e a resposta tê-la-eis. Até lá, as tréguas continuam. Os merca­ dos estão abertos... Tissafernes não apareceu no dia seguinte, o que causou apreen­ sões aos gregos. Mas voltou três dias depois a dizer que tinha alcan­ çado de el-rei autorização para os gregos voltarem livremente à sua terra, em despeito da oposição de muitos persas que consideravam indigno do monarca deixar escapar homens que haviam pegado em armas contra ele. — Enfim — rematou — juramos que ninguém se meterá con­ vosco de regresso à Grécia e que os mercados, por onde passardes, vos estão francos. Onde não houver mercados, ficais autorizados a requisitar o que vos for preciso. De vossa parte, jurai-nos que atra­ vessareis as terras do império sem causar dano, pagando os víveres onde os haja à venda, e requisitando-os, apenas, naqueles lugares on­ de não apareçam no mercado... O pacto foi sancionado. Dum lado Tissafernes e o cunhado de el-rei, do outro os capitães e comandantes de coorte juraram obser­ var as estipulações e se deram as mãos. — Agora vou encontrar-me com el-rei — disse Tissafernes. — Assim que tenha ultimado os meus negócios, volto com tudo pronto para vos guiar e, ao mesmo tempo, ir tomar de novo posse do meu governo.

IV

Mais de vinte dias esperaram os gregos e Arieu, que acampava ao lado deles, por Tissafernes. Entretanto recebeu Arieu a visita dos ir­ mãos e doutros parentes; passaram também outros persas pelo seu arraial, que tranquilizaram os soldados e lhes prometeram de parte de el-rei que não seriam punidos por terem empunhado armas a favor de Ciro e que o passado seria olvidado. Foi desde então que se afigu­ rou ter Arieu e a soldadesca bárbara menos deferência para com os gregos. Muitos destes, descontentes, foram-se ter com Clearco e os outros capitães: — Que estamos nós aqui a fazer? — disseram. — Temos acaso dúvidas que Artaxerxes não tenha a peito perder-nos, que mais não seja com o fim de incutir medo aos gregos, para que amanhã lhe não façam guerra? O seu empenho, está-se a ver, é segurar-nos aqui porque as suas forças, por enquanto, estão dispersas. Logo que este­ jam concentradas, lança-se sobre nós. Quem sabe se não está a cavar fossos, erguer muralhas, de modo a fechar-nos o caminho? Não nos iludamos, só à viva força poderá admitir que regressemos à Grécia, pois só os tolos não compreendem que as nossas pessoas por onde forem publicarão a derrota que lhe infligimos, um contra cem, e que, perdidos no calcanhar dos seus estados, conseguimos voltar a nossas casas depois de mangar com ele. — Não é outra a minha cisma — respondeu Clearco. — Não deixo porém de reflectir que, se abalamos nesta ocasião, vão dizer que o fizemos com propósito de romper o armistício e recomeçar a guerra. E então adeus feiras e mercados que se nos abrem por agora!

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Ninguém mais nos dispensará um celamim de pão; guias, também, onde ir buscá-los? Arieu larga-nos in continenti. Não ficamos com um só amigo e aqueles que dantes pareciam sê-lo ferram-nos os dentes em primeiro lugar. Não sei quantos rios temos a atravessar; a respeito do Eufrates, ignora alguém que é impossível passá-lo, opondo-se o inimigo? Além disso, se tivermos de combater, falta-nos cavalaria, enquanto a dos Persas é excelente além de numerosa. E que é o que viria a acontecer? Vencedores, era impossível fazermos-lhes mal; vencidos, não escapava um. Não vejo, por outro lado, porque é que Artaxerxes, que dispõe de mil maneiras de dar cabo de nós se for esse o seu intento, se abalance, depois de assinar a paz connosco e dar-nos a sua mão, a incorrer de caso fito no perjúrio, pecado tão detestado dos Deuses, e a tornar doravante suspeita a sua palavra a Gregos e Bárbaros! E durante muito tempo desenvolveu este tema paradoxal. Tissafernes chegou, porém, com as suas forças, pronto, dir-se-ia, a partir para os estados, e com ele Orontas. Este trazia consigo a fi­ lha de Artaxerxes que acabava de desposar. Marcharam dali, Tissafer­ nes, na vanguarda, para mandar franquear os mercados aos gregos, Arieu logo após, com o exército bárbaro, nas altas fazendo arraial co­ mum com as tropas de Tissafernes e de Orontas. Os gregos, que des­ confiavam, marchavam à parte na peugada dos guias, e acampavam longe deles uma parasanga. Em verdade, o olhar que se deitavam dum exército para o outro era de poucos amigos. Arraigavam-se cada vez mais as suspeitas. Quando se encontravam a fazer provisões de lenha ou de víveres, jogavam a pancada. Daí ódio recíproco. De três jornadas chegaram às muralhas da Média. Eram todas de tijolo e betumilha, largas de vinte pés, altas de cem. O seu comprimento deitava a vinte parasangas, ao que se dizia. Babilónia não ficava muito longe. Andaram oito parasangas em duas jornadas e passaram dois ca­ nais, um pela ponte firme, outro por uma ponte de sete barças. Estes canais tinham sua nascença no Tigre e ramificavam-se em muitas va­ las, maiores e menores, as quais por sua vez acabavam em valados como aqueles de que se servem na Grécia para regar as leiras de pain­ ço. Chegaram ao Tigre, perto do qual se erguia Sítace, cidade imensa

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e populosa. Os gregos acamparam no subúrbio, à vista duma bela e vasta tapada, cheia de arvoredo. Os bárbaros, esses, passaram o rio e perderam-se de vista. Próxeno e Xenofonte deambulavam casualmente, depois da ceia, adiante do arraial, quando viram chegar um homem às guardas avan­ çadas. Perguntava por Próxeno ou Clearco; e não perguntou por Menão, embora viesse da parte de Arieu, seu comensal. A Próxeno, que se adiantara, o homem disse: — Mandam-me aqui Arieu e Artabaz, fiéis a Ciro, como é do vosso conhecimento, e que só querem o vosso bem... Dizem para es­ tardes de atalaia esta noite que pode muito bem acontecer serdes ata­ cados pelos bárbaros. Na tapada que ali vedes há muita tropa. Avisam-vos, também, que deveis mandar postar sentinelas junto da ponte do Tigre. Tissafernes parece estar disposto a cortá-la para vos impedir de ir mais longe e engarrafar-vos assim entre o rio e o canal. Próxeno e Xenofonte levaram o homem a Clearco, que ficou so­ bressaltado com o que lhe referiu. Dentre os gregos presentes, um jovem guerreiro observou que «cortar a ponte e serem atacados não eram coisas consentâneas». — Se os bárbaros nos atacam — argumentou ele — ou nos ven­ cem ou são vencidos. Se são vencedores que necessidade têm de cor­ tar a ponte? Muitas mais que fossem, não havia maneira de escapar­ mos. Pelo contrário, se somos nós os vencedores, com a ponte em terra, perdem eles a possibilidade de retirar e ser socorridos pelas for­ ças numerosas que têm na margem de lá. Em virtude deste raciocínio, perguntou Clearco ao mensageiro que extensão podia ter pouco mais ou menos a comarca situada entre o Tigre e o canal e qual a sua natureza. Respondeu ele que era vasta, semeada de aldeias sem conto e com muitas cidades importantes. E mercê desta resposta inferiram logo que fora por manha que os bárbaros haviam enviado aquele emissário, no receio de que os gre­ gos cortassem a ponte e ficassem senhores da ilha, defendidos dum lado pelo Tigre, do outro pelo canal. A região, de resto, sendo larga, fértil e povoada de agricultores, ter-lhes-ia fornecido mantença sufi­ ciente e uma base segura para hostilizar Artaxerxes. Ficaram tranquilos; no entanto, não deixaram de destacar uma guarda para a ponte. Mas ninguém a atacou; não apareceu mesmo

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sombra de inimigo. No dia seguinte, ao romper da alba, atravessaram o Tigre por essa mesma ponte, que era formada por trinta e sete bar­ ças, depois de tomarem as precauções da lei. Gregos que estavam com Tissafernes preveniram que poderiam ser acometidos durante a travessia. O aviso era destituído de fundamento. Mostrou-se apenas Glos com alguns bárbaros quando estavam a passar. Limitaram-se a observar e, depois que todos os gregos tomaram pé na outra mar­ gem, viraram rédea e desapareceram a galope. Do Tigre ao Fisco há umas vinte parasangas que percorreram em quatro dias. A beira do rio, que é atravessado por uma ponte e não tem mais que um pletro de largura, fica a grande cidade de Ópis, cer­ ca da qual os gregos se encontraram com um irmão natural de Ciro e de Artaxerxes, que avançava de Susa e de Ecbátana à testa dum exército numeroso em socorro de Artaxerxes. Mandando parar o seu exército, o príncipe ficou-se a ver desfilar os gregos. Estes, por or­ dem de Clearco, fizeram-no a dois de frente, detendo-se a bater o passo às vozes de alto de quando em quando. Parava uma coorte, paravam todas, de forma que o exército deu uma impressão de garbo e força que impressionou o príncipe. Dali, em seis jornadas, andaram trinta parasangas através dos de­ sertos da Média e alcançaram as aldeias de Parisatis, mãe de Ciro e de Artaxerxes. A laia de insulto à memória de Ciro, Tissafernes permitiu que os gregos as pilhassem mas sem fazerem escravos. Ali toparam trigo e gado que farte, além do mais. Percorreram a seguir vinte para­ sangas em pleno deserto, com o Tigre à mão esquerda. Na primeira alta estiveram à vista de Ceneia, cidade considerável sobre a outra margem do Tigre, cujos habitantes lhes vieram oferecer, em jangadas de coiro, pão, queijo e vinho.

V

Chegados ao rio Zábato, largo de quatro pletros, fizeram alta de três dias, durante os quais tiveram suspeitas de que lhes armavam qualquer cilada, mas sem acharem provas a que se agarrar. Receoso que a desconfiança não fosse por lá degenerar em guerra, Clearco tentou prevenir tal extremidade, avistando-se com Tissafernes. Pediu-lhe, pois, para o receber, ao que ele acedeu sem demora. — Tissafernes — disse-lhe ele — não esqueço que jurámos, mão na mão, não nos fazermos reciprocamente nenhuma maldade. Ob­ servo, no entanto, que te temes de nós, como se fôssemos teus inimi­ gos figadais, e que nós te tememos também a ti como se nosso inimi­ go fosses. Por minha parte, aqui te declaro: nada descobri que me autorize a acusar-te de nos querer fazer mal. Em compensação, pos­ so-te jurar por tudo, também, que os gregos não acalentam nenhuma ideia ruim contra ti. Aqui está porque te pedi uma conferência: ver se conseguimos desvanecer esta absurda suspicácia. Não ignoro que, por medo da calúnia ou da suspeita, cujos efeitos são para aborrecer, ao querer preveni-los, muitas vezes se vai causar um dano irreparável a pessoas que não tinham tenção nem vontade de fazer mal. Persua­ dido que uma explicação franca pode acabar com mal-entendidos, antes de mais nada quero provar-te que não tens razão para descon­ fiar de nós. A primeira razão é que os juramentos que trocámos não permitem que sejamos inimigos. Infeliz daquele que tem sobre a consciência o peso de ter ludibriado os Deuses! Para fugir à sua vingança, nenhum passo lhe é suficientemente veloz e nenhuma noi­ te bastante escura. Também não há cidadela que possa abrigá-lo con­ tra a divina cólera, que mais tarde ou mais cedo o há-de fulminar.

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Ora nós contraímos o nosso pacto de amizade sob o patrocínio dos Deuses imortais. Eles, em nossa consciência, respondem por cada um de nós, e aí está porque eu digo que não podemos ser inimigos. Baixando a considerações apenas humanas, quero dizer-te ainda que reputo a tua amizade como a nossa boa estrela na hora presente. Contigo qualquer caminho está franco; os rios são fáceis de vadear; não saberemos o que é fome. Sem ti, avançamos às escuras, pois que não conhecemos um palmo do caminho; todos os rios são ma­ res; qualquer ajuntamento de gente nos aterra, e a solidão muito mais ainda, porque solidão quer dizer míngua de tudo. Se o furor cego nos levasse a dar-te a morte, que outro resultado teríamos senão chamar sobre as nossas cabeças o braço vingador do rei dos reis? Mas dá li­ cença que te exponha quantas esperanças eu próprio destruiria se chegasse a fazer-te dano... Busquei a amizade de Ciro porque julguei ver nele o homem, no seu tempo, mais apto quanto a obrigar um amigo. Hoje aqui estás tu que juntaste o governo dele ao teu, gozas pacificamente dos teus domínios, apoiado naquele poder imperial que Ciro pretendeu combater. Em tais condições, quem seria tão in­ sensato que não desejasse ser teu amigo? Acalento a esperança de que tu também o queiras ser nosso, e eu te digo porquê... Sei que os Mísios te são importunos; com as nossas tropas, juntas às tuas, ser-te-á brinquedo submetê-los. O mesmo digo dos Písidas e doutros povos que, a cada passo, vão perturbar o bem-estar dos teus gover­ nos; queiras tu e nós poremos termo à sua turbulência. Sei que te preocupam, também, os Egípcios, e não vejo melhor que as nossas forças para te ajudarem a dar-lhes o ensino que merecem. A nossa amizade ser-te-á preciosa na qualidade de vizinhos e se alguém ousasse afrontar-te, connosco ao teu lado, tinhas a certeza de lavar a afronta. Acredita, os gregos dispõem-se a servir-te não somente com mira na recompensa, mas pelo justo sentimento de gratidão para com o ho­ mem que mais contribuiu para a sua salvação. Quando me ponho a considerar todas as razões, fico tão espantado com a tua descon­ fiança que tenho pena de não ser bastante eloquente para te persua­ dir que não nutrimos maus desígnios a teu respeito. — As tuas palavras — respondeu Tissafernes — calaram no fun­ do do meu coração. Depois de te ouvir falar, sim, estou convencido

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de que todo o mal que me fizesses contra ti próprio se voltava. Agora ouve o que te vou dizer, e fixa-o bem para que, daqui em diante, nunca mais desconfies da minha palavra ou da de el-rei. Se tivésse­ mos na ideia aniquilar-vos, julgas que não tínhamos suficiente cavala­ ria, infantaria e armas para o fazer sem correr o menor risco? Acaso te passa pela cabeça que ainda não encontrámos lugar propício a tal cometimento? Ah, estas planícies, que tão estafantemente trilhais, não estão com a sua imensidade a conjurar-se contra vós? Muitos dos montes que tendes de subir não podíamos nós ocupá-los antes de embargar os desfiladeiros? E os rios acaso não podemos nós atravessá-los a todos, com tropas, com bagagens, o que importa para combater um inimigo, enquanto a muitos deles vós só os podereis passar mediante o nosso concurso?!... Mas admitamos que todos es­ tes meios falhavam. Pergunto eu: resistem ao fogo os frutos da terra? E nós não podíamos queimar adiante de vós tudo o que serve para alimentação dos homens e dos animais, opondo-vos a fome? Se po­ díamos! Vá-se lá lutar com um inimigo desses, por muito bravo que se seja! Como é que, tendo ao nosso alcance tantas maneiras de vos combater, íamos escolher a mais ímpia e desonrosa, má fé com os homens, perjúrio com os Deuses, própria apenas de gente sem recur­ sos, no fim, na extremidade do desespero?! Não, Clearco, não somos tão dementados como isso! Quereis saber porque é que, tendo nós mil ocasiões de vos exterminar, o não fizemos? Por isto, porque o meu propósito é granjear a amizade dos gregos e regressar ao meu governo, certo de ter conciliado pela boa vontade a simpatia das tro­ pas que Ciro arrastou até a Ásia Inferior a troco de estipêndio. Quan­ to aos lucros que posso tirar deste entendimento, alguns já mencio­ naste. Faltou-te um muito importante: o rei é a única pessoa que tem o direito de pôr tiara na cabeça; com a vossa ajuda outro pode permitir-se trazê-la, pelo menos, no coração. Pareceu a Clearco que tal linguagem era sincera e disse ainda: — Merecem os maiores tormentos aqueles que pela calúnia ou pela inveja tentarem acender a guerra entre nós, quando são tão im­ periosas as razões que temos para ser amigos. — Não há dúvida — tornou Tissafernes. — Por minha parte, es­ tou pronto a apontar os capitães e os comandantes de coorte que vos

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acusam de conspirar contra mim e contra o meu exército, assim eles venham à minha presença. — Pois está dito, virão todos os capitães e comandantes de coor­ te à tua presença e eu, por meu lado, denunciar-te-ei também aqueles dos teus que me vierem predispor contra ti. Tissafernes reteve Clearco nesse dia, dando-lhe de cear e cumu­ lando-o de amabilidades. De volta ao campo, depois de referir o que se tinha passado com o sátrapa, disse que era conveniente compare­ cerem os oficiais superiores diante de Tissafernes e não haver outro remédio senão punir como traidores e inimigos aqueles dos gregos que fossem convencidos de calúnia. Suspeitava que Menão fosse a alma danada da intriga, havendo apurado que ele e Arieu tinham tido uma entrevista secreta com o sá­ trapa. Para mais, não se arvorara em cabecilha dum partido contra ele, intrigando forte e feio de modo a pôr o exército por sua banda?! E com que intuito, senão tornar-se recomendável a Tissafernes?! Clearco, por outro lado, tinha em mente acabar com dissídios no exército, jugulando aqueles dos rivais que o importunavam. Quando se tratou de saber quem havia de ir na representação, suscitaram-se certos reparos. Alguns soldados foram de parecer que, sendo Tissa­ fernes homem de má fé, era grande imprudência irem ter com ele to­ dos os capitães e oficiais superiores. Mas Clearco insistiu energi­ camente e ficou decidido que cinco generais e vinte comandantes de coorte se desempenhassem da missão; cerca de duzentos soldados acompanhá-los-iam de longe; fingindo que se dirigiam para o mercado. Mal a comitiva chegou à tenda de Tissafernes, os capitães Próxeno, da Beócia, Menão, da Tessália, Agias e Sócrates, de Acaia, Clear­ co, de Lacedemónia, entraram; ficaram fora os comandantes de coor­ te. Instantes decorridos, a um sinal dado, eram presos os capitães e agarrados os gregos que estavam à porta. Quase ao mesmo tempo a cavalaria bárbara varria a campina, trucidando quantos gregos en­ contrava, quer livres quer escravos. Do arraial os gregos presencia­ ram o massacre, transidos e perplexos. Mas Nícarco, da Arcádia, veio a fugir, com as tripas na mão, e contou o que se passara. Os gregos correram às armas, transtornados de todo, convenci­ dos de que o acampamento ia ser assaltado. Em vez dos bárbaros eis.

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porém, que vêem avançar Arieu, Artabaz e Mitridates, que tinham si­ do dos mais dilectos de Ciro. O intérprete dos gregos advertiu que entre os bárbaros reconhecia, sem dúvida alguma, o irmão de Tissafernes. Vinham escoltados por uns trezentos couraceiros persas. Quando chegaram às imediações do campo, pediram que um capitão ou comandante de coorte chegasse ali a receber as ordens de el-rei. Rodeando-se de todas as cautelas, saíram do campo Cleanor, de Orcómeno, Sofeneto, de Estinfalo; Xenofonte, de Atenas, foi atrás de­ les, com tenção de pedir notícias de Próxeno. Quirísofo tinha ido a uma aldeia próxima, no serviço de reabastecimento. Quando chega­ ram ao alcance da voz, Arieu bradou-lhes: — Gregos, Clearco, convencido de ter violado os juramentos e ter transgredido o tratado, sofreu o castigo que merecia: está morto. Próxeno e Menão, que puseram a claro a sua perfídia, receberam grandes honras. El-rei ordena-vos que amanhã, sem falta, entregueis as armas; alega Sua Alteza que lhe pertencem, pois eram de Ciro seu súbdito. Pela boca de Cleanor responderam os gregos: — Arieu, rei dos bandalhos, e vós que vos dizíeis amigos de Ciro, não respeitais mais lei nem santidade?!... Não respeitais, não; doutro modo, depois de ter jurado tratar como amigos ou inimigos aqueles que se comportassem connosco como tais, não teríeis maquinado a nossa perdição de gorra com Tissafernes, o mais infame e celerado dos homens. Mas uma vez que tão cobardemente assassinastes uns e traístes outros, o vosso lugar só podia ser esse, de peito malvado contra nós, feitos com o inimigo! — Provou-se que Clearco conspirava contra Tissafernes, contra Orontas e contra todos aqueles dentre nós que andavam na compa­ nhia destes chefes — replicou Arieu. — Se com desprezo dos juramentos Clearco faltou à sua palavra, já pagou — proferiu Xenofonte. — E justo que os perjuros morram. Mas fazei-nos o favor de nos restituir Próxeno e Menão, que são os nossos estratégicos, uma vez que tanto vos louvais neles. Além disso, como são nossos amigos e vossos, não deixarão de dar aos dois exér­ citos conselhos salutares. Depois de conferenciar durante bastante tempo, sozinhos, os bárbaros retiraram-se sem dar resposta.

VI

Os capitães presos foram levados a Artaxerxes que os mandou degolar. Clearco passava aos olhos dos que o conheciam por possuir em alto grau o talento militar aliado ao amor do mester. Enquanto Lacedemónia andou em guerra com Atenas, esteve ao serviço da sua nação; uma vez assinada a paz, persuadiu os concidadãos que os Trácios oprimiam os Gregos. E, sabendo insinuar-se no ânimo dos éforos, pôde aparelhar uma esquadra para ir bater os Trácios que habita­ vam a parte norte do Quersoneso e de Perinto. Os éforos, depois de ele ter levantado ferro, arrependeram-se e chamaram-no do istmo; mas ele recusou-se a obedecer e fez-se à vela para o Helesponto. Deu lugar esta desobediência a que fosse condenado à morte pelos magis­ trados de Esparta. Exilado, foi-se procurar Ciro e soube conciliar a sua simpatia. Ciro pusera à sua disposição dez mil dáricos. Com es­ te dinheiro, em vez de se entregar à ociosidade, levantou um exército e fez guerra aos Trácios. Tinha-os derrotado em batalha campal e an­ dava a pilhar e talar-lhes o território quando Ciro teve necessidade das tropas. E com ele partiu na expedição temerária. Pela simples enumeração destes feitos se vê, parece-me bem, quanto este homem tinha a paixão das armas. Estando no seu bom direito viver em paz, preferiu a guerra; renunciou aos doces lazeres pelas canseiras das marchas; podia gozar a fortuna sem riscos, sacrifi­ cou-a a empresas de ordem militar. Nisso gastou os cabedais com tanto gosto como outros os desbaratam com mulheres. A sua paixão associava-se verdadeiro temperamento militari Gos­ tava do perigo; e no entanto, nas ocasiões arriscadas, fosse de noite.

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fosse de dia, era prudente como comprovaram quantas iam com ele. Passava por possuir o dom de comandar em função precisamente das suas grandes qualidades. Em verdade, se era capaz de parafusar e tornar a parafusar na imaginação até descobrir o meio de abastecer as suas tropas, sabia inculcar a disciplina e impô-la, se preciso fosse, pela severidade. Tinha o olhar duro, a voz rude. Quando castigava, fazia-o sempre com rigor, algumas vezes com ira, acontecendo não raro mostrar-se arrependido. Era, todavia, por princípio que aplicava penalidades, professando a teoria de que a disciplina constitui o pri­ meiro elemento de força dum exército. Ter-lhe-iam ouvido dizer, ao que consta, que o soldado deve te­ mer mais o capitão que o inimigo, trate-se bem embora de defender uma posição, proteger um país aliado, investir. Por isso, nos riscos, preferiam-no como chefe a qualquer outro. Então a rudeza da sua fi­ sionomia abrandava; a sua taciturnidade tinha o ar de repousada for­ taleza, temerosa apenas para o inimigo. Os soldados reviam-se nele como num seguro paládio. Mas, dissipado o perigo, se os soldados ti­ vessem ensejo de mudar de capitão, faziam-no em peso. A bondade faltava, com efeito, a Clearco. Aos soldados mostrava sempre cara dura e fera. Ninguém seguia a sua bandeira por amizade ou inclinação, mas ninguém como ele sabia domar homens. Debaixo do seu comando foram-se acostumando a vencer, e à força de expe­ riência, hábito da intrepidez, porventura com o temor da punição só­ brios, exactos e disciplinados, tornaram-se admiráveis guerreiros. Clearco, sendo assim de uma só peça quando comandava, não gosta­ va ao que parece de sentir-se comandado. Morreu com cinquenta anos. Próxeno, da Beócia, aspirava desde a infância a seu autor de grandes feitos. Formaram-no em tal cobiça as lições de Geórgias Leontino. Mal se viu na força da idade e com predicados próprios dignos de merecer a estima dos grandes, associou-se à aventura de Ciro. Esperava adquirir nome, importância... e fortuna. Nutrindo tal cobiça, nunca pensou, porém, satisfazê-la por meios menos legíti­ mos, mas sim pela direitura e hombridade. Não lhe faltavam dotes para capitanear homens destemidos e bem-intencionados; não sabia inspirar, porém, aos subalternos,

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nem respeito nem temor. Tinha mais o ar de respeitar os soldados que comandava, do que de ser respeitado por eles. E a causa era que temia mais tornar-se odioso, que eles desobedecerem-lhe. Estava ca­ pacitado de que, para bem comandar e ter a concomitante fama, bas­ tava louvar os valentes e dirigir censuras a quem se portava mal. Acontecia, entre os seus subordinados, morrerem por ele os bons e os probos e conspirarem contra ele os perversos, que o supunham bom de enganar. Desapareceu com cerca de trinta anos. Menão, de Tessália, não escondia de ninguém a sua insaciável cu­ pidez. Aspirava a comandar unicamente com mira de arranjar pecúnia; e, se armava à amizade dos grandes, era apenas para permanecer impune em suas enormidades. O perjúrio, a falsidade, a felonia eram, a seu ver, caminhos rectos para quem quer chegar a um fim. Para ele lhaneza e verdade eram bacoquice pura. Não tinha verdadeira afeição a ninguém e pouco lhe custava armar a sua cilada àqueles a quem chamava amigos. Não fazia pouco dum adversário, mas das pessoas com quem privava nunca costumava falar sem misturar zombaria. Não buscava apropriar-se dos bens dum inimigo, porque sabia quan­ to custa conseguir-se tal desiderato do homem que está atento; mas julgava só ele ter descoberto quanto é fácil espoliar o amigo sem des­ confiança. Temia, como se se tratasse de gente aguerrida, aqueles que não põem escrúpulos em serem perjuros e maus; dos bons e temen­ tes aos Deuses abusava como de pusilânimes. Certos homens honram-se da franqueza, direitura e das virtudes que praticam; Menão fazia gala do seu talento para a trapaça, o logro, a picardia aos amigos, e tinha por néscio quem não usasse de manha. Se aspirava a alcançar lugar proeminente junto dum grande, tratava de denegrir os que faziam parte da sua roda, como se fosse necessá­ rio tirar os tais para se meter ele. Para tornar-se obedecido dos solda­ dos, o seu processo era fazer-se cúmplice de seus desvarios. Preten­ dia fazer-se honrado e benquisto, mostrando que ninguém como ele tinha a faculdade de poder fazer mal; se alguém se afastava dele, julgava-o em dívida para consigo pelo facto de não o ter jogado às feras tendo podido fazê-lo. Estava na flor da idade quando obteve o comando das forças es­ trangeiras ao serviço de Arístipo. O resto da adolescência passou-o

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no convívio íntimo de Arieu, homem bárbaro, perdido e achado por mancebos bem-parecidos. Ele próprio, quase imberbe, concebeu paixão violenta por Taripas, levemente mais velho do que ele. Aqui está o seu currículo de rapaz. Quando os capitães gregos foram degolados às ordens de Artaxerxes, não teve a mesma sorte, posto se tivesse conduzido como eles. Mas não foi menos punido e morreu, não decapitado como Clearco e os restantes, género de morte tido pelo mais honroso, mas um ano de­ pois, durante o qual Artaxerxes lhe aplicou todos os suplícios empre­ gados para com os malfeitores. Ágias e Sócrates, de Acaia, foram também executados. Irrepreen­ síveis com os amigos, ninguém poderia acoimá-los de cobardes na guerra. A idade deles orçava pelos trinta e cinco anos.

LIVRO TERCEIRO

I

Uma vez presos os capitães e trucidados os comandantes de coorte e quantos iam com eles, os gregos caíram em grande abati­ mento. Viam-se às portas da capital, no meio de povos e cidades hostis; ninguém lhes forneceria víveres; não podiam contar com um só guia que fosse, achando-se, por desgraça, a mais de dez mil está­ dios da Grécia. O caminho era cortado por inúmeras correntes de água invadeáveis, e até aqueles dos bárbaros que pertenciam ao exér­ cito de Ciro lhes voltaram a cara. Além de isolados, não dispunham de cavalaria que lhes cobrisse a retirada. Vencedores, sentiam-se inca­ pazes de deitar mão a um fugitivo; vencidos, não escapava um. Mergulhados em desânimo, poucos dentre eles cearam e acende­ ram lume essa noite; nenhum se prestou a fazer plantão. Cada qual se deixou ficar onde estava, indiferente a tudo, sem poder dormir, tra­ balhado pela amargura e as saudades da terra natal, dos pais, mulhe­ res e filhos, seres queridos que nunca mais tornariam a ver. Ora no exército ia um ateniense, chamado Xenofonte, que não era soldado, mas tão-pouco tinha posto de oficial. Fora convidado por uma carta de Próxeno, seu amigo e conhecido, que se alistara, se­ duzido pela promessa de fazer fortuna e alcançar as boas graças de Ciro. Antes de aceder, porém, aconselhou-se com Sócrates, de Ate­ nas. O filósofo, com receio de que fosse tornar-se suspeito aos Ate­ nienses pelo facto de ligar-se a Ciro, o qual sustentara outrora os Lacedemónios na guerra contra eles, persuadiu-o a ir a Delfos consultar o oráculo. Obedeceu Xenofonte e, a primeira pergunta que fez ao oráculo foi para saber a que Deuses devia sacrificar e oferecer os seus

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votos de modo a tomar parte da maneira mais digna e frutuosa na ex­ pedição que se lhe oferecia e a regressar, depois, à sua terra, são e sal­ vo, assinalado por altos feitos. Respondeu Apoio que sacrificasse aos Deuses que estavam naturalmente indicados. De volta a Atenas, deu parte a Sócrates da resposta que lhe dera Apoio. O filósofo repreendeu-o por não ter perguntado ao Deus, an­ tes de mais nada, se devia ir ou ficar, em vez de consultá-lo quanto à forma de tornar a aventura fácil, já determinado a tomar parte nela. — Andaste mal, agora o melhor remédio é proceder como te manda o oráculo — acabou por dizer. Xenofonte, depois de sacrificar aos Deuses como lhe inculcara Apoio, tomou um navio para Sardes, onde se encontrava Próxeno, prestes a marchar para a Ásia. Aí foi apresentado a Ciro que o aco­ lheu com afabilidade. Alistou-se, pois, Xenofonte para uma expedição que se dizia diri­ gida contra os Písidas. Logrado como foi, não culpou disso Próxeno. Nenhum capitão, afora Clearco, sabia que marchavam contra Artaxerxes. Na Cilicia, apenas, se veio a divulgar o objectivo. Os gregos, na maioria, temiam a distância do percurso; mas, em respeito de si próprios e de Ciro, não queriam que os chamassem cobardes e foram adiante. Naquela noite, depois do morticínio dos gregos, Xenofonte re­ cordava todas as circunstâncias da sua ligação com Ciro e não podia pregar olho. Sobre o tarde adormeceu, por fim, e teve um pesadelo. Em sonho ouviu ribombar o trovão e viu um raio abater-se sobre a casa paterna, que se incendiava. Xenofonte acordou transido de horror. Se por um lado tinha que considerar o sonho propício, pois vira coruscar a luz celeste, por outro era grande a sua perplexidade: pois que o sonho vinha de Júpiter, rei, o facto de ver tudo em labare­ das à sua volta não queria dizer que jamais sairia dos estados de Artaxerxes? Obstáculos de toda a ordem não o envencilhariam de manei­ ra invencível? Após o sonho tremendo, Xenofonte esfregou os olhos e foram estas as ideias que primeiro acudiram ao seu espírito: — Porque estou eu deitado? A noite vai dobando e é de calcular que, com os primeiros alvores do dia, o inimigo se lance sobre nós.

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Se caímos nas mãos de Artaxerxes, quem poderá obstar a que, depois de infligir-nos os maiores tormentos e vexames, nos dê morte afron­ tosa? Em volta do nosso campo não há sentinelas, nem rondas, nem a menor defesa. Estamos a descansar, como se o descanso fosse um dos nossos mais legítimos direitos. Falta-nos um capitão... Mas em que parte desencantar o homem providencial? Quantos anos quero eu ainda viver?... Pois não vou longe se me deixo catrafilar pelos per­ sas. Com estas reflexões amargas, Xenofonte ergueu-se. Chamou pri­ meiro os comandantes das coortes de Próxeno. — Camaradas — disse-lhes ele — não posso dormir nem des­ cansar com o quadro que tenho diante da vista, e a vós sucede com certeza a mesma coisa. E claro como a água que o inimigo não rom­ peria connosco se não se julgasse preparado. E nós que fazemos, que meios adoptamos para nos defender? Se por desmazelo caímos em poder desse rei, que cometeu a barbaridade de mandar cortar a cabe­ ça e a dextra do próprio irmão, depois de morto, e de arvorá-las nu­ ma cruz, que sorte imaginamos que nos espera a nós que marchámos contra ele para o reduzir à escravidão ou matá-lo, se estivesse no nos­ so querer? Não irá recorrer aos maiores suplícios, à morte infamante, de forma que espante o mundo e faça perder aos exaltados a vontade de o guerrear? Camaradas, a nossa obrigação é fazer tudo para lhe não cairmos nas garras. Deixai que vos diga: grandes foram as mi­ nhas penas como grego, enquanto duraram as tréguas. Fazia-me in­ veja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vasti­ dão e a fertilidade da terra, a sua fartura, a cópia de escravos, de gado, de oiro, de tudo muito. Mas, logo a seguir, quando atentava na situação dos nossos soldados, que não podiam gozar-se de tantos bens senão à força de espórtula, e que poucos eram os que estavam em condições de fazê-lo, tolhendo-os os juramentos de empregar ou­ tros meios, quando atentava em tudo isto, a paz impacientava-me mais do que hoje me atemoriza a guerra. Uma vez que romperam o pacto, não é verdade que implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escrúpulos? Os bens que estes Persas usu­ fruem são como que um prémio ao mais nobre. Entre eles e nós, os Deuses declarar-se-ão em nosso favor. E como não se os bárbaros os

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provocaram com seus perjúrios, enquanto que nós, com mil tenta­ ções à volta, nos mantivemos fiéis a nossos juramentos e aos Deuses imortais?! A meu ver, podemos sair mais confiados que eles a com­ bate. Pela compleição dos nossos corpos, estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio, ao calor e aos trabalhos. As nossas almas são também de têmpera mais rija; e com a ajuda dos Deuses, sob o nosso braço, os homens deles hão-de cair como tordos, mais débeis e me­ nos resistentes em tudo do que nós. O que eu penso outros o terão pensado igualmente. Em nome dos Deuses, não percamos, porém, tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos! Dêmos, antes de mais ninguém, o exemplo de coragem que todos devem imitar! E vós mostrai que sois oficiais valentes, mais dignos de ser capitães que os próprios capitães. Quanto a mim, para onde vós fordes vou eu; se me quiserdes para chefe, respondo: presente! Não darei por escusa os meus poucos anos, já que me acho com força bastante para arcar com as responsabilidades. Assim falou Xenofonte. Inflamados por estas palavras, os co­ mandantes de coorte incitaram-no, todos à uma, a pôr-se à testa do exército. Um tal Apolónides, que falava um dialecto da Beócia, saiu-se a dizer que era rematada loucura supor que havia outro meio de salvação além de apiedar el-rei, se era possível. Ao mesmo tempo tra­ çava o painel das dificuldades que os assoberbavam. Mas Xenofonte interrompeu-o: — O homem estupendo, para que queres os olhos, se não sabes ver, e a memória, se és saco roto? Tu és testemunha como Artaxerxes, ancho de todo com a morte do irmão, nos intimou a entregar as armas; em vez de lhas entregarmos, cingimo-nos com elas e assim fo­ mos acampar junto dele. Que não fez então para obter a paz? Não te lembras que nos mandou embaixadores e nos forneceu víveres até que selou connosco o tratado de aliança, que foi ele o primeiro a soli­ citar? Agora, dize, não foi confiados na fé jurada, sem armas, como tu desejarias ver-nos logo, que os nossos estratégicos e comandantes se foram encontrar com eles...? E onde é que estão os nossos cama­ radas? Tu sabes tudo isto e chamas insensatos aos que preconizam a defesa e aconselhas-nos a implorar a comiseração de Artaxerxes!? A minha opinião, camaradas, é que este homem deve ser expulso da

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nossa companhia, riscar-se da coorte e deitar-se-lhe a faxina às cos­ tas; um grego deste estofo é a vergonha da Grécia! — Este homem — declarou Agásias, de Estinfalo — nada tem de comum com a Beócia nem mesmo com a Grécia; vi-lhe com estes que a terra há-de comer as orelhas furadas como os Lídios. Verificou-se que assim era e expulsaram-no. Quantos ali estavam foram, em seguida, pelo campo fora chamar os capitães e, à falta des­ tes, os tenentes, e se o tenente não era vivo, o comandante de coorte que tinha escapado à açougada. E, quando todos foram presentes, assentaram-se à frente das armas em número de cem. Jerónimo, de Elida, veterano das coortes de Próxeno, foi o pri­ meiro a usar da palavra: — Camaradas, a nossa situação é crítica e torna-se indispensável que se examine entre todos. Xenofonte, faze o favor de repetir o que nos expuseste há pouco... — Todos vós sabeis — disse ele — que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos não prenderam e mataram é que não puderam; é tam­ bém fora de dúvida que hão-de procurar armar a rede aos que restam e dar cabo de nós todos, só se não acharem maneira. O problema, pois, consiste em escapar-lhes das unhas e, se é possível, fazer-lhes a eles o que pensam fazer-nos a nós. Ora eu creio que tal contingên­ cia depende, sobretudo, da vossa vontade. Os soldados têm os olhos nos seus oficiais: se os virem abatidos, admira que procedam como cobardes! Se os acharem porém resolutos, dispostos a enfrentar com o inimigo, dado que os exortem com alma, sem dúvida que se porta­ rão com brio e heroicidade. De resto, é a vossa obrigação. Sois estra­ tégicos, taxiarcos, chefes de falange, diferentes pois do soldado raso. Em tempo de paz tínheis direito a maior soldo e a maiores honras: agora, que estamos em guerra, tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor à soldadesca; deveis, se tanto for necessário, assi­ nalar-vos pela previdência e a bravura. Primeiro que tudo, se quereis desde já prestar bom serviço à vossa causa, tratai de substituir os ca­ pitães que baquearam. Sem chefes nada de definitivo e de útil se po­ de conseguir, mormente na guerra. A disciplina é a boa saúde do exército; a indisciplina a sua perda certa. Elegei superiores e a primei­ ra coisa que há a fazer é reanimar a coragem dos soldados. Há que

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convocá-los e falar-lhes. Decerto observastes, como eu, com que de­ sânimo pegaram ontem à noite das armas e com que moleza as senti­ nelas se dirigiram para os plantões. Soldados assim não prestam para nada. Se houvesse maneira de distrair-lhes o pensamento para outro objecto; se em vez de se ocuparem exclusivamente com a ideia do mal que pode acontecer-lhes, se ocupassem, de preferência, com a ideia do mal que podem fazer ao inimigo, porventura se lhes desse volta ao ânimo. Bem sabeis que na guerra não é a multidão e a força que arrancam a vitória e que o embate do inimigo se quebra sempre contra a hoste que lhe oferece, com a ajuda dos Deuses, uma fronte tersa e inquebrantável. Tenho notado igualmente que, nas refregas, aquele que procura a todo o custo salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha; aquele que pensa que a morte é uma só e que, a morrer, mais vale morrer de pé e vendendo caro a vi­ da tem boas probabilidades de sair da peleja com a saúde toda e go­ zar da existência através duma feliz e provecta idade. Persuadidos co­ mo estamos todos da sabedoria destas máximas, não temos outro remédio senão ter coragem e dar exemplo aos mais. Xenofonte sentou-se após estas palavras e Quirísofo dirigiu-se-lhe nestes termos: — Antes de te ouvir falar, não fazia nenhuma ideia de ti, Xeno­ fonte. Sabia apenas que eras ateniense. Não posso deixar de aplaudir-te de todo o coração, e se todos fossem como tu o mal estava conju­ rado. Mas vamos ao que importa: separemo-nos e aqueles dentre vós que não tenham capitães tratem de nomeá-los; dirijam-se depois to­ dos para meio do campo; temos que convocar as tropas; o arauto Tólmides que não saia do pé de mim. Proferidas estas palavras, Quirísofo ergueu-se a fim de que não diferissem o cumprimento das suas instruções. Elegeram-se logo os capitães: Timasião, de Dardânia, em lugar de Clearco; Xanticles, de Acaia, em lugar de Agias; Filésio, de Acaia, em lugar de Menão; Xe­ nofonte, de Atenas, sucedeu a Próxeno.

II

Estava a romper a manhã quando, terminada a eleição, os capi­ tães se dirigiram para o centro do arraial. Antes de tocar a reunir, postaram sentinelas para lá das portas do campo. Quirísofo, ante a soldadesca apinhada a seus pés, falou assim: — Soldados, a perda que acabámos de sofrer de estratégicos, de comandantes de coorte e de simples camaradas, torna a nossa situa­ ção difícil. Para mais, fomos traídos pelas tropas de Arieu, ontem nossas aliadas. Mas para tudo há remédio e temos que nos safar do atoleiro, como gente de brio que somos. Em vez de nos deixarmos desmoralizar, tentemos com ânimo denodado a fortuna das armas. Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro. A seguir teve a palavra Cleanor, de Orcómeno: — Estão bem patentes, soldados, o perjúrio do rei Artaxerxes e a sua impiedade, e bem patente, igualmente, a perfídia de Tissafernes. Depois de nos dizer que, na qualidade de vizinho, dnha o maior em­ penho em nos salvar; depois de nos jurar paz e dar a mão, mandou prender os nossos capitães. Nem mesmo temeu Júpiter Hospitaleiro; para melhor nos enganar sentou Clearco à sua mesa. E este Arieu, que nós quisemos elevar ao trono, que trocou connosco a fé jura­ da, que assumiu connosco o compromisso de jamais nos separarmos, este Arieu, sem temor dos Deuses nem respeitar a memória de Ciro que o cumulou de honras, passa-se para os inimigos ferozes desse príncipe e procura perder-nos a nós, amigos dele! Oxalá os Deuses castiguem os celerados! Testemunhas desta felonia, toda a nossa cau­ tela é pouca contra eles! Mas avante! Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses!

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Xenofonte ergueu-se a seguir, revestido de belas roupagens e das armas mais magníficas que pôde encontrar. Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitória uma bela indumentária não ficava mal aos vencedores e que, se houvessem de sucumbir, tão-pouco ha­ veria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado da sua pessoa. Encabeçou o discurso nestes termos: — Falou-vos Cleanor dos perjúrios e da perfídia dos bárbaros. Presumo que estais bem inteirados. Se se tratasse, em nossas delibe­ rações, de nos reconciliar com eles, necessariamente teríamos que de­ salentar ao pensamento da injúria que sofreram os nossos capitães, os quais, fiados na palavra dada, foram ter com os seus algozes sem a mínima cautela. Mas se propomos vingarmo-nos, de armas na mão, do mal que praticaram connosco, temos, com a ajuda dos Deuses, es­ perança de passar este transe com honra e glória. Enquanto Xenofonte falava, aconteceu um grego espirrar. To­ dos, imediatamente, deram graças ao Deus que lhes mandava tal presságio. E Xenofonte exclamou: — Pois que no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvação, Júpiter Salvador nos augura bom êxito, façamos voto de lhe oferecer um holocausto, a ele em particular e aos outros Deuses imortais segundo a devoção de cada um, mal se chegue a terra amiga. Aqueles que estiverem de acordo, ergam o braço... Todos o ergueram. Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean. E após o preito à Divindade, Xenofonte prosseguiu: — Dizia eu que temos esperança de passar este transe com honra e glória... Primeiro, porque somos observadores dos juramentos em que tomámos os Deuses como testemunhas, enquanto os nossos ini­ migos violaram com a maior desfaçatez a religião da fé jurada. Conte­ mos, portanto, que os Deuses combatam por nós, eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes, guardando-os do perigo. E já que falo de perigo, vou lembrar-vos aquele que correram os nossos maiores, para que fiqueis edificados quanto ao interesse que há em vos comportardes com valentia, mediante a qual e o so­ corro do Céu não há fortaleza inimiga que prevaleça. Quando os Per­ sas e os aliados vieram à testa dum exército formidável investir Ate­ nas, os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram. Tinham feito

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promessa de imolar a Diana tantas cabras quantos inimigos mordes­ sem o pó. Não lhes sendo possível encontrar número bastante, resol­ veram sacrificar todos os anos quinhentas e o voto ainda se cumpre à data de hoje. Quando, em seguida, Xerxes, que tinha reunido um exército inumerável, marchou contra a Grécia, os nossos maiores ba­ teram o inimigo na terra e no mar. Por toda a parte restam troféus da vitória. Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em que viestes à luz e fostes criados, porque nós não reconhecemos outros amos além dos Deuses. Eram assim os antepassados de que proce­ deis. Não direi que tenham que corar de vós, pois não há muitos dias, postos em linha de combate em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais, destroçastes com a ajuda dos Deuses tropas muito superiores em número. Então combatíeis com valor e era para colocar Ciro no trono; hoje, que se trata da vossa sal­ vação, impõe-se que redobreis de denodo e de coragem. Precisais de atacar com a mais audaz confiança. Então não conhecíeis a natureza do inimigo e todavia, em despeito da sua multidão, ousastes acometê-lo com a bravura que herdastes. Agora, instruídos pela experiência de que os bárbaros, por muito numerosos que sejam, não ousam me­ dir-se convosco, seria razoável temê-los? Quanto à traição das tropas de Ciro, não imagineis que ficámos mais fracos pelo facto de nos dei­ xarem. Ainda são mais cobardes que as de Artaxerxes. Não tenhamos pena; mais vale que estejam com o inimigo do que connosco tropas que têm de ser sempre as primeiras a fugir. Se algum de vós desespe­ ra porque não temos cavalaria, enquanto o inimigo a tem numerosa, considere que dez mil cavaleiros não são mais que dez mil homens. Nunca ninguém morreu numa batalha da dentada ou do coice dum cavalo; os homens é que marcam o destino das batalhas. O infante teve sempre melhor supedâneo que o cavaleiro. Içado acima da mon­ tada, não só tem de se acautelar dos golpes que lhe vêm de baixo, mas não pode perder de vista o cavalo: duas inquietações. O infante está escorado na terra firme e, como tal, o seu golpe não pode deixar de ser mais rijo e certeiro. O cavaleiro apenas lhe leva uma superiori­ dade: fugir com mais certeza de pôr o corpo no seguro. Após um instante de circunspecção, Xenofonte continuou:

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— Suponhamos agora que, confiados na força do vosso braço, vos apoquentais, no entanto, com a ideia de que falta Tissafernes pa­ ra nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os mercados. E que tem lá isso? Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem, esse Tissafernes que não pensava noutra coisa senão na maneira de nos desgraçar, ou por pessoas da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem? E quanto a manti­ mentos, não vale mais, em vez de pagá-los do nosso rico bolsinho, tomá-los onde os há e quantos nos dê na gana? Como visse o ar aprovativo dos soldados, foi adiante: — Há os rios, os grandes rios a atravessar, sem dúvida. Sim, mas os rios tanto nos prejudicam a nós como aos bárbaros. E os cursos de água, se não se passam mais em baixo, passam-se mais em cima, sem molhar mesmo o artelho. A questão é remontar à nascente. Mas fosse a sua passagem impraticável, seria razão para esmorecer? Ora ouvi: toda a gente sabe que os Mísios, que não são mais valentes do que nós, estão à fina força dentro dos estados de Artaxerxes; aqui fundaram cidades consideráveis, e daqui não mexem. O mesmo acontece com os Písidas. Não vimos os Licaónios ocupar as posições que dominam a planície, de modo a poderem cultivá-la e recolher os frutos, e não se aguentam ali e ali vivem?! Pois bem, se o caminho para a nossa terra se tornasse impossível, começaria por vos aconse­ lhar a que não mostrásseis grande empenho em voltar à Grécia, antes tomásseis tais e tais disposições, próprias de quem assenta domicílio. E por isto, porque sei que Artaxerxes está pronto a dar tudo, guias, reféns, aos Mísios se quiserem ir-se embora. Mandava até abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se de quadriga! Claro está procede­ ria da mesma maneira connosco, se nos visse inclinados a ficar. Mas ficar era ainda o menos. O meu receio é que, habituando-nos a viver na ociosidade e na abundância, gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas, que são de belo parecer e bem fornecidas de carnes, não acabássemos, como os comedores de loto, por esquecer o cami­ nho que leva à pátria. Antes de mais nada tratemos de voltar à Gré­ cia, que mais não seja para mostrar aos nossos concidadãos que se vi­ vem na pobreza é porque querem, pois os bens nesta terra andam aos pontapés e só esperam pelo conquistador.

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Calou-se um instante. Em todas as fisionomias, abertas e como que esclarecidas duma luz nova, leu Xenofonte a aprovação do que dizia. E prosseguiu: — Resta-me expor a maneira, quanto a mim, de marcharmos pe­ lo seguro e combater, se tanto for preciso, com vantagem. Sou de opinião, primeiro, que se queimem os carros, para termos o passo desembaraçado e metermos para onde for mister. Depois, que se queimem as tendas. As tendas são uma maçada, e não é com elas que procuramos víveres ou combatemos melhor. Temos ainda que alijar a bagagem que nos é supérflua e guardar apenas as armas com que combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho. E a maneira de ter mais gente nas linhas e menos gente no trem. E há que mos­ trar cara alegre. Bem sabeis que os vencidos não têm nada de seu. Se formos nós os vencedores, os inimigos levarão às costas a nossa ba­ gagem e em tudo serão os nossos escravos. Ficaremos assim indem­ nizados do sacrifício de hoje. Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou: — Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto, esse muito importante, o mais importante de todos. Reparastes que os persas não se atreveram a recomeçar com hostilidades senão depois de ter prendido os nossos capitães. Irá imaginar que nós lhes éramos superiores enquanto tínhamos chefes e que, sem eles, a desordem que viria a lavrar não deixaria de causar a nossa perda. Pois bem, é preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes que os an­ teriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados e mais dóceis do que até aqui. Se cada soldado ajudar o seu capitão a manter a disciplina e a castigar os desobedientes, as esperanças dos persas desvanecer-se-ão ao vento. E como não só, a partir deste dia, vão ter pela frente não um Clearco, mas dez mil Clearcos interessa­ dos em que nenhum grego dê mostras de poltrão?! E, tempo de aca­ bar; o inimigo não tarda aí. Aqueles que aprovam o que acabo de di­ zer manifestem-no; se alguém tiver alguma sugestão a fazer, venha ela do mais simples soldado raso, que não se acobarde. Assim o exige a salvação de todos. — Se alguém tem alguma coisa a acrescentar — disse Quirísofo — fale, mas fale depressa. Penso que o melhor que temos a fazer

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é dar a nossa aprovação incondicional ao que Xenofonte acaba de propor. Aqueles que são desta opinião levantem a mão... Todos a levantaram. Xenofonte voltou então a dizer: — Camaradas, temos de estar preparados para determinada con­ tingência, ides ver. Não se discute que o nosso caminho é por aque­ les lugares em que haja que trincar. Ora, eu ouço dizer que, a pouco menos de vinte estádios, há povos fartos de tudo. Para lá metemos. Agora muito me espantaria que o inimigo não aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda, semelhante aos cachorros cobardes que correm atrás do passante, mordem-lhe as canelas se podem, e deitam a fugir se pega duma pedra. E, nestas condições, a melhor ordem na marcha é, penso eu, formar com os hoplitas uma coluna de alas tão afastadas que dentro delas caibam a impedimenta e tudo o que não é combatente de primeira linha. Que dizeis? Se desde já nomeásse­ mos aqueles que devem comandar a hoste, frente, flancos e retaguar­ da, não teríamos que preocupar-nos com tal matéria quando o inimi­ go nos acometesse... E, como todos se calassem, desassombradamente proferiu: — Pode haver melhor táctica? Se há, vejamos. Se não há, que Quirísofo comande a vanguarda, pois é de Lacedemónia; os dois mais antigos estratégicos tenham a seu cargo os flancos; eu e Timasião, como mais novos de todos, ficamos por agora na retaguarda. O tempo dirá as alterações que convém adoptar. Repito: se alguém tem melhor, que fale... Ninguém o contraditou e concluiu: — Agora, toca a fazer o que ficou decidido e em marcha. Aque­ les que desejam voltar para o pé dos seus apenas têm um meio: com­ bater com a coragem toda. Aqueles que têm amor à vida que tratem de alcançar a vitória. O vencedor mata, o vencido morre. O mesmo se pode dizer aos que são cobiçosos de riqueza: vencendo-se, salva­ ge o que é nosso e toma-se o que é do vencido.

Ill

Terminados os discursos, a primeira coisa que fizeram foi quei­ mar carros e tendas. Quanto à bagagem supérflua, distribuíram parte por aqueles que precisavam dela, a outra parte inutilizaram-na. Em seguida, comeram. Estavam no meio da refeição chegou Mitridates numa escolta de trinta e cinco ginetes e, chamando os capitães ao al­ cance da voz, disse-lhes: — Gregos, deveis saber que me conservei sempre fiel a Ciro e que tenho simpatia por vós. Por isso trago a vida em contínuo so­ bressalto. Visse eu que tomáveis por caminho seguro e passar-me-ia com toda a minha gente para o vosso lado. Pode-se saber que inten­ ções são as vossas? Escusado dizer-vos que estais a falar com um amigo, que só zela o vosso bem e está pronto a auxiliar-vos. Depois de deliberar, os capitães deram esta resposta pela boca de Quirísofo: — Resolvemos, se nos deixarem voltar à nossa terra, atravessar estes estados causando o menos dano; se nos embargarem o cami­ nho, fazer a guerra com unhas e dentes. Procurou demonstrar-lhes Mitridates que era impossível escapa­ rem, a não ser que el-rei o consentisse. E por estas e outras palavras se suspeitou que estava ali com recado encomendado, tanto mais que na companhia dele vinha um dos familiares de Tissafernes que devia ter por missão vigiá-lo. A partir daquela hora compreenderam os ca­ pitães que não havia outra saída senão a guerra, uma guerra sem tré­ guas nem quartel, exclusiva, para que os bárbaros não viessem abandalhar os soldados. Nicarco, da Arcádia, passara-se para o inimigo, durante a noite, com vinte homens.

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As tropas, depois de comer, atravessaram o Zábato segundo a or­ dem prefixa: impedimenta, reserva e gente sem armas entre as alas da coluna. Não tinham dado grandes passos, reapareceu Mitridates com os seus duzentos ginetes e uns quatrocentos archeiros e fundibulários, arma muito ágil e expedita. Aproximou-se dos gregos, fingindo-se amigo, mas desde que se encontrou à distância de tiro, arcos e fundas dispararam a um tempo. Muitos gregos ficaram feridos, mormente na retaguarda, mais susceptível ao ataque. As flechas dos cretenses não alcançavam tão longe como as dos persas e para mais, armados à ligeira, eram obrigados a manter-se no meio dos batalhões, cobertos pelos hoplitas. E os lançadores de dar­ do muito menos poderiam competir com os fundibulários. Vendo is­ so, afoitou-se Xenofonte a acometer o inimigo à testa duma coorte formada por hoplitas e peltastas da retaguarda. Mas a investida não deu resultado; para dá-lo, havia de ser feita com ginetes, força de que não dispunham. A infantaria cansava-se antes de atingir a tropa de pé dos persas, que retirava de longe, e sem deixar de apoiar-se no grosso da hoste. Ao contrário, os cavaleiros bárbaros, mesmo a fugir, dispa­ ravam os arcos por cima da gampa dos cavalos; com marcha tão pro­ vada, os gregos não puderam caminhar naquele dia mais que vinte e cinco estádios, e só à noite entraram nas aldeias. Novamente o de­ sânimo invadiu a todos. Quirísofo e os capitães mais reputados cen­ suraram a Xenofonte a táctica que o levara a apartar-se da coluna pa­ ra carregar o inimigo, expondo-se sem vantagem alguma. Xenofonte reconheceu que as críticas deles eram acertadas e que o próprio de­ senrolar dos acontecimentos as justificava. — Agora — concluiu ele — se me resolvi a investir é porque me pareceu que, permanecendo nós na passividade, o inimigo nos mo­ lestava cada vez mais, julgando que o podia fazer a salvo. E alguma coisa se lucrou: chegar-se in loco ao convencimento em que estais, porquanto não há dúvida que, acometendo, não se ganhou nada e a retirada foi dura. Valeu-nos o inimigo não estar em grande força, se­ não o dano podia ser maior. Mas, Deuses louvados, ficámos a conhe­ cer a nossa inferioridade: impossível contrabater os arcos e as fundas dos bárbaros que atingem mais longe que as flechas e dardos dos nossos homens; se os acossarmos, não poderemos ir longe, porque

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não é em pequeno espaço que um infante, por muito ágil que seja, pode alcançar outro que lhe leva a dianteira dum tiro de arco. Se não queremos ser inquietados durante a marcha, não há outro remédio senão opor ao inimigo um corpo de ginetes e de archeiros à altura. Constou-me que há para aí ródios que são muito destros no manejo da funda; que são capazes de mandar a pedra o dobro da lonjura dos persas, que carregam muito e alcançam pouco; que mesmo estes ró­ dios se servem de balas de chumbo. Se nós tratássemos de indagar quais são os soldados que têm fundas, lhes déssemos boa recompen­ sa, estipendiássemos outros que tivessem jeito para fabricar mais e engenhássemos a maneira de não correrem grandes perigos, não se­ ria possível formar a falange que nos falta? Quanto à cavalaria ainda nos restam cavalos: alguns até me pertencem, outros deixou-os Clearco; uns tantos andam à carga. Pois o que há a fazer é proceder a uma escolha desses cavalos, indo buscá-los onde os há, dando aos donos deles outras cavalgaduras; uma vez bem aparelhados, monta­ dos por quem saiba gineta, aí temos o esquadrão que nos é preciso para perseguir o inimigo na retirada. Adoptou-se este alvitre. Durante a noite pôde formar-se um cor­ po dos seus duzentos fundibulários; na manhã seguinte escolheram-se cinquenta corcéis, cinquenta cavaleiros, deu-se peliça e couraça a cada um, e pôs-se à sua frente Lício, de Atenas, filho de Polístrato.

IV

Ficaram ali aquele dia, mas na manhã seguinte, muito cedo, abala­ ram. Havia um barrocal a passar e estavam com receio de serem ata­ cados durante o trajecto. Aconteceu, porém, já estarem para o lado de lá quando reapareceu Mitridates com mil ginetes e cerca de quatro mil archeiros e fundibulários. Tal era a força que lhe dispensou Tissafernes ante a afirmação de que era quanto precisava para vencer os gregos. Como no último recontro, com pequenas forças, lhes causara grandes estragos, ou assim o supunha, sem sofrer uma só baixa, vi­ nha cheio de farronca, com grande desprezo pelo inimigo. Estavam já os gregos a oito estádios da ravina quando Mitridates a atravessou à testa da sua gente. Foi dada ordem a umas tantas fa­ langes de hoplitas e peltastas de deixarem aproximar o inimigo, o mais cerca possível, e carregarem depois a fundo. A cavalaria devia secundar o movimento, acossando os fugitivos; forças suficientes fo­ ram designadas para cobertura das tropas empenhadas na manobra. Assim sucedeu. Mal o exército de Mitridates chegou ao alcance de tiro, a trombeta deu sinal; a infantaria pesada arrancou a passo do­ brado e logo in continenti os ginetes. Os bárbaros não sustentaram o choque e fugiram destroçados para o barrocal. Na debandada perde­ ram muita infantaria e foram aprisionados dezoito cavaleiros. A fim de inspirar terror ao inimigo, os gregos, sem ninguém lhes mandar, mutilaram os cadáveres. Os inimigos retiraram-se com este escarmento. Os gregos, tendo caminhado todo o dia sem ser incomodados, chegaram ao anoitecer às margens do Tigre. Havia ali uma grande cidade, mas deserta,

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chamada Larissa, antigamente habitada pelos Medos. As muralhas tinham vinte e cinco pés de espessura, cem de altura e uma circunfe­ rência de duas parasangas. No tempo em que os Persas suplantaram os Medos no império da Ásia, o rei da Pérsia pôs cerco a esta cidade. Não havia maneira de a fazer capitular até que um mago tapou o Sol com uma nuvem e os habitantes alarmados abriram as portas. Nos arredores erguia-se uma pirâmide de pedra com a altura de dois pletros; cada pano da base media um pletro de largo. Muita gente das al­ deias vizinhas tinha vindo refugiar-se dentro dela. O exército fez uma jornada de seis parasangas e chegou a uma grande fortaleza abandonada, junto da cidade de Méspila, outrora ha­ bitada pelos Medos. A muralha, na base, era de pedra lavrada, incrus­ tada de conchas, para cima de tijolo, cada uma das partes medindo cinquenta pés de alto e outros tantos de largo. O seu âmbito era de seis parasangas. Conta-se que a rainha Medeia se tinha refugiado aqui quando os Persas subjugaram os Medos. Também o rei da Pérsia si­ tiou esta cidade, que não pôde dominar pela força nem à míngua de recursos. Zeus, porém, mandou uma horrível trovoada que feriu os moradores de assombro, e a praça rendeu-se. Dali, os gregos andaram quatro parasangas numa só jornada. Du­ rante o trajecto, surgiu Tissafernes à testa dos seus ginetes, acompa­ nhado das tropas de Orontas, que esposara a princesa real, dos bárba­ ros de Ciro, das tropas que o irmão bastardo de Artaxerxes trouxera em seu socorro, e de forças várias, vindas daqui e dali, de modo que o conjunto era formidando. Quando chegou perto, mandou postar o exército à retaguarda e nos flancos dos gregos. Mas não ousou investir e não quis correr os riscos da batalha; limitou-se a dar ordens aos archeiros e fundibulários de atirar. Mas os ródios, em linha de atiradores, e os cretenses responderam, e na multidão densa do inimigo não perderam um tiro. Ante o descalabro, retirou-se Tissafernes fora do alcance das fundas e arcos, seguido das mais tropas. O resto do dia passaram-no assim, os gregos marchando à frente, os bárbaros no encalço, jogando-lhes dardos e flechas que não atingiam o alvo, pois o tiro dos ródios e cre­ tenses continha-os a respeitosa distância. Ainda, como os arcos dos persas eram muito grandes, as flechas que lançavam eram utilizadas

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pelos cretenses que lhas devolviam, tendo acabado por despedi-las longe e certeiras, depois de se exercitarem a fazê-lo de mais elevado ângulo. Dali em diante nunca mais deixaram ficar a corda e o chum­ bo que encontravam pelas aldeias, pois lhes eram precisos para as fundas. Aquele dia os gregos acamparam numas aldeias que encontraram em caminho; os bárbaros, porque ainda não estivessem refeitos da derrota, deixaram-nos em paz. Ali passaram todo o dia seguinte a descansar e a reabastecer-se nas tulhas que estavam cheias. Levan­ taram ao terceiro dia, planície fora, seguidos por Tissafernes que os zargunchava de longe. Foi então que os gregos reconheceram que a marcha dum exército em rectângulo equilateral não é boa marcha, quando se traz o inimigo aos calcanhares. Com efeito, sempre que as alas eram forçadas a aproximar-se, quer se estreitasse a estrada, quer penetrasse em desfiladeiro ou ponte, inevitavelmente acontecia que os hoplitas se acotovelavam e que, marchando com dificuldade ou à pressa, se embaraçavam e se trilhavam uns aos outros. Ora gente em desordem não serve para nada. Depois, quando as alas voltavam à distância normal, sucedia natu­ ralmente que os homens que há pouco se esmagavam, afastando-se, davam origem a um vazio ao centro que permitia ao soldado ver-se a marchar sozinho, o que não é do melhor moral quando o inimigo vem no encalço. Estava, pois, tirada a prova. Sempre que havia ponte a passar era uma balbúrdia; cada qual queria passar à frente; o inimi­ go tinha ali naquele momento fáceis reses de matadoiro. Reconhecendo todos estes inconvenientes, formaram os capitães seis falanges de cem homens cada uma, nomeando para as comandar centuriões, pentecontarcas e enomotarcas. Em marcha, quando as alas se chegavam uma à outra, à passagem por exemplo de desfiladei­ ro, os centuriões ficavam à retaguarda; uma vez vencido o embaraço, voltavam a ocupar o seu posto, nos flancos da coluna. Quando, pelo contrário, as alas eram obrigadas a apartar-se para lá do espaço regu­ lamentar, para cumular o vazio as tropas marchavam por centúrias, pelotões de cinquenta, manípulos de vinte e cinco homens, consoan­ te as dimensões do vazio, partindo da menor área para a maior.

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Diante de ponte ou desfiladeiro não havia já confusão possível; as centúrias marchavam umas após outras. Tornava-se urgente formar em linha de batalha: enquanto se abre a mão e se fecha, as tropas dis­ punham-se na ordem oportuna. Ao quinto dia de marcha, os gregos avistaram um palácio, e aqui e ali muitas aldeias. Para chegar até lá, tinham de passar vários oiteiros que nasciam da serra, em cujo sopé ficava situado o primeiro povo. Com regozijo se encontraram os gregos perante terreno mon­ tanhoso, no qual a cavalaria do inimigo não teria facilidade de movi­ mentos. Mas quando desceram a primeira colina e se dispuseram a trepar a segunda, os bárbaros fizeram sua aparição crivando-os de al­ to com dardos, pedras e flechas. Ficaram feridos muitos gregos e as tropas ligeiras tiveram que ir abrigar-se entre os hoplitas. Nesse dia, archeiros e fundibulários, misturados com o pessoal do trem, não pu­ deram fazer um tiro sobre o inimigo. Os gregos, assim fustigados, resolveram investir com os persas; mas, por causa das armas pesadas, só lentamente alcançavam os ci­ mos e, uma vez lá, o inimigo havia desaparecido. Voltar, em seguida, tinha os seus espinhos. Ao descer uma segunda ladeira sofreram os gregos novo percalço. Numa terceira, decidiram que os hoplitas não se mexessem dali e pelo flanco direito da coluna mandaram sair os peltastas, que se puseram a escalar o monte donde dominariam o ini­ migo. Assim que alcançaram o coruto, os bárbaros, temendo ser en­ volvidos, desistiram de os inquietar. Marcharam todo o dia com esta disposição, uns cortando pelos contrafortes, outros serra acima, até chegarem às povoações. Aí formaram uma companhia de saúde com oito médicos, por serem muitos os feridos. Demoraram-se ali três dias, não só por causa dos feridos, como por os convidarem a esse ripanço os mantimentos que eram em pro­ fusão: farinha de trigo, vinho e um grande depósito de cevada para os cavalos. Todas estas provisões estavam reservadas para o sátrapa da província. Ao quarto dia, os gregos romperam marcha pela planí­ cie. Tissafernes foi-lhes na peugada e obrigou-os a acampar na pri­ meira aldeia que se lhes ofereceu, impossibilitados de combater du­ rante a marcha. Muitos deles — feridos, maqueiros, os que levavam as armas duns e doutros — decerto o não podiam fazer. Mas, apenas

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se instalaram na aldeia, levaram a melhor aos bárbaros que se adian­ taram a escaramuças, assim se demonstrando que não é pequena a di­ ferença que vai entre fazer uma surtida para repelir um ataque e resis­ tir, em ordem de marcha, às acometidas do inimigo. Descia a noite e os persas, que nunca acampavam a menos de sessenta estádios de distância com receio de ser atacados na escuri­ dão, retiraram prudentemente. O exército persa, durante a noite, é duma fragilidade inacreditável. Costumam prender os cavalos uns aos outros e mesmo deitar-lhes peias com medo de que fujam. A pri­ meira voz de alerta, o cavaleiro tem de desprender o cavalo, selá-lo e pôr-lhe o freio, montá-lo depois, revestido já da couraça, operações nada cómodas de executar no escuro e a meio da balbúrdia. Era esta a razão por que iam bivacar sempre longe dos gregos. Assim que estes deram conta que os persas começavam a retirada nocturna, uma trombeta tocou a preparar. Mas foram observados e o inimigo deteve-se em expectativa durante um certo tempo. Depois, como se fizesse tarde, abalou. Os gregos, então, levantaram tendas, atrelaram animais e puseram-se em marcha. Fizeram de uma assenta­ da sessenta estádios. Tocando-lhe sempre, alcançaram tal dianteira ao inimigo — que nem no dia seguinte, nem dois dias depois os pôde alcançar. No quarto dia, embora tivessem passado a noite em mar­ cha, surgiu-lhes pela frente em eminência que era forçoso passarem. Não havia outro caminho. Vendo a crista da serra ocupada, Quirísofo mandou dizer a Xenofonte, que estava à retaguarda, que avançasse com os peltastas. Mas Xenofonte não tocou naquela força, ao ver Tissafernes que se acercava com o grosso do exército. Correndo, porém, ao encontro de Quirísofo, bradou-lhe: — Que me desejas? — Levanta os olhos — respondeu Quirísofo. — O inimigo ocu­ pou o cabeço antes de nós e não há remédio senão empurrá-lo dali para fora. Porque não trouxeste os peltastas? — Não podia desguarnecer a retaguarda, uma vez que é ali que o inimigo vai atacar. — Pois sim, mas como desalojar o inimigo dos altos? — replicou Quirísofo.

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Xenofonte, tendo-se posto a examinar a serra que dominava o exército grego, descobriu um carreiro que levava ao cume. — O que há a fazer — disse para Quirísofo — é trepar por ali acima, custe o que custar, e de uma arrancada. Se conseguirmos pôr lá pé, o inimigo não se sustenta onde está. Se te parece, fica aqui, eu vou tentar a escalada. Se não, vai tu, e fico eu. — Escolhe... Redarguiu então Xenofonte que, sendo ele o mais novo, a ele competia a diligência. Mas, como trazer tropas da retaguarda levava o seu tempo, pediu que lhas desse da frente. Deu-lhe Quirísofo tro­ pas, que tratou de substituir por unidades do centro, e, em reforço, após ele mandou um esquadrão de trezentos homens, gente escolhi­ da que ele próprio comandava. O destacamento rompeu a passo dobrado pela encosta acima. Mal os inimigos, porém, perceberam o objectivo que os levava, deita­ ram a correr para ocupar o cimo primeiro que eles. E foi de parte a parte uma corrida de velocidade, no meio de grande gritaria, os gre­ gos que se animavam uns aos outros, os de Tissafernes que exorta­ vam os bárbaros. Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel, inci­ tando os gregos: — Camaradas, coragem! Lembrai-vos que é agora que se decide se tornais a ver a Grécia, vossas mulheres e filhos. Mais um arranco, e o resto do caminho é brincadeira. Alma! Alma! — De cima do cavalo podes fanfar! — lançou-lhe um certo Sotérides, de Sicião. — Se fosses à pata e levasses o escudo como eu levo, não te mostravas tão farsola! Mal ouviu estas palavras, Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo, empurrou o soldado para fora da forma, e arrancando-lhe o escudo pôs-se a correr ao lado dos outros. Mas como trazia a couraça em de­ mais, não admirava que começasse a fraquejar. Nem por isso deixava de animar os que iam à frente a prosseguir no avanço, e os que vi­ nham atrás a passar adiante, sem se importarem com ele. Os solda­ dos, entretanto, repararam no absurdo, e, depois de acotovelar Sotérides, injuriá-lo e jogar-lhe pedradas, obrigaram-no a tirar o escudo

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a Xenofonte. Xenofonte, então, saltou de novo para cima do cavalo e lá foi, exortando uns, advertindo outros, enquanto o caminho era praticável. Depois, lançando as rédeas, correu a pé com as suas for­ ças. E assim conseguiram os gregos firmar pé no topo antes do ini­ migo.

V

Os bárbaros que ocupavam a serra destroçaram cada um para seu lado. E, como Xenofonte ocupasse os pontos estratégicos, Tissafernes e Arieu tiveram de retirar por um caminho transversal, enquanto Quirísofo avançava para a planície muito à sua vontade, indo acam­ par numa aldeia farta de mantimentos. Ao longo do Tigre havia mui­ tas outras, não menos abastecidas de tudo. Sobre a tarde o inimigo apareceu, de improviso, fazendo em postas uns tantos gregos, que andavam separados na pilhagem. Os gregos, entretanto, apoderaram-se de rebanhos vários, quan­ do a toda a pressa os pastores os tangiam para passar o rio. As al­ deias, ao longe, começavam a arder. Era Tissafernes e os seus que lhes deitavam fogo, tendo adoptado aquela táctica extrema. E outra vez os gregos se deixaram invadir pelo desânimo, receosos que da­ quele jeito não encontrassem no seu itinerário coisa para que erguer os olhos. Mas Quirísofo chegou de socorrer os gregos que se entre­ gavam ao saque; Xenofonte desceu a serra. — Gregos — disse ele para os soldados — estais a ver que os persas consideram já esta região como nossa. No tratado que assina­ ram connosco, tinha-se estipulado que nós não deitássemos fogo às terras de Artaxerxes. Ora são eles que as incendeiam como território que já lhes não pertence. Mas estai descansados, eles hão-de deposi­ tar víveres em certos sítios para sua subsistência. Pois bem, esses de­ pósitos nós lhe deitaremos a mão. Lembro, Quirísofo, que se caia a fundo sobre os incendiários, como se a comarca nos pertencesse. — Eu sou de opinião contrária — contestou Quirísofo. — Deitemo-nos também a incendiar; hão-de se cansar primeiro do que nós.

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Capitães e comandantes da coorte reuniram-se, enquanto os sol­ dados se ocupavam com o abastecimento. A situação era embaraço­ sa: viam-se entre altas montanhas, dum lado; o rio de que não encon­ travam pé, sondando com as lanças, doutro. Estavam perplexos quando um ródio se apresentou a dizer: — Encarrego-me de passar quatro mil hoplitas de cada vez, com a condição de me fornecerdes certos materiais... E haveis de me dar um talento de recompensa. — Que precisas? — Preciso de dez mil odres. Há para aí carneiros, cabras, burros, em barda. Matam-se e da pele fazem-se os odres necessários. Preciso também de sogas para ligar uns aos outros. Seguro-os por meio de pedras lançadas no fundo do rio à laia de âncoras, por cima deito fa­ xinas que cubro com terra; só me resta ligar as extremidades em cada margem para ter uma ponte. Os capitães tiveram a invenção como engenhosa, mas de difícil realização. Como lançar a espia do outro lado com a cavalaria inimiga? No dia seguinte, os gregos retrocederam sobre os passos, em direcção contrária a Babilónia. Entraram em aldeias não incendiadas e incendiaram-nas quando se iam embora. A cavalaria persa deixou-os em paz; viu-se bem que estavam espantados, não podendo adivinhar aonde iam e o que queriam. A certa altura, enquanto os soldados fo­ ram à cata de víveres, os capitães e oficiais superiores reuniram-se em conselho e mandaram vir à presença os prisioneiros. Interrogados com inteligência, declararam que o caminho na direcção sul levava à Média e à Babilónia, donde tinham vindo; a oriente, levava a Susa e Ecbátana, onde el-rei, ao que se dizia, passava a estação calmosa; que passando o rio e cortando a ocidente, ia-se dar à Lídia e Jónia; enfim que ao norte, para lá das cordilheiras, se encontravam os Carducos. Estes povos, acrescentaram, habitavam nas serras, eram extre­ mamente belicosos, e não admitiam a autoridade real. Dum exército de cento e vinte mil homens que outrora fora mandado contra eles não escapara um só homem. No entanto, quando estavam em paz com o sátrapa que governava as comarcas da planície, havia comér­ cio regular entre as duas nações.

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Colhidos estes informes, os capitães mandaram apartar os prisio­ neiros que conheciam a região, sem declarar que caminho iam tomar. O parecer unânime foi que se metesse pelas terras dos Carducos fo­ ra. Os prisioneiros tinham-nos informado, com efeito, que uma vez fora deles estariam na Arménia, nação vasta e fértil, em que governa­ va Orontas. Dali facilmente transitariam para onde quisessem, re­ montando o Tigre até a nascente. Fizeram, logo a seguir a esta resolução, sacrifícios aos Deuses, de modo a estarem prontos a partir à hora que lhes conviesse. O receio deles era que o inimigo se antecipasse a ocupar os desfiladeiros. E deram instruções aos soldados para, depois da ceia, repousarem sobre as armas, prontos à primeira voz.

LIVRO QUARTO

I

No último quarto da madorra, os capitães deram sinal de levantar e partir o mais escoteiro possível. Atravessaram a planície a favor das trevas e ao romper da manhã estavam nas serranias. Quirísofo ia à frente com a sua divisão. Xenofonte à retaguarda com hoplitas ape­ nas na persuasão de que o exército, em marcha ascensional, dificil­ mente seria atacado por aquele lado. Atingiu Quirísofo as alturas antes de ser pressentido. A partir daí avançou mais devagar, em direcção às aldeias que se avistavam espa­ lhadas pelas lombas e os côncavos dos montes, seguido a distância pelo grosso do exército. Os carducos, ao avistá-los, fugiam para os picotos com mulheres e filhos, desamparando as casas. Havia géneros por toda a parte e as moradias estavam bem apetrechadas com utensílios de estanho. Mas os gregos não tiraram uma só vasilha nem perseguiram os habitantes, na esperança de que lhes permitissem atravessar o território como amigos. Quanto a víveres, a necessidade obrigou-os a fazer mão bai­ xa sobre o que encontravam. Convidados a vir parlamentar com eles, os carducos não só não acederam, antes deram logo mostras de dis­ posições nada pacíficas. Quando os últimos gregos acabaram de descer das serras para a aldeia, já era noite fechada. Tinham gasto muito tempo no caminho ao que era de íngreme e apertado. Ao sabor das sombras, um bando de carducos pôde chegar à retaguarda e chacinar alguns homens e fe­ rir outros à pedrada e azagaia. Não foram muitos, pois os gregos ti­ nham aparecido em suas portelas inesperadamente. Se fossem mais, boa parte do exército arriscava-se a ser dizimada.

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Os gregos pernoitaram nos povos, vendo os montes à roda coroarem-se de fogueiras que os carducos acendiam, modo de comuni­ car uns com os outros. De madrugada os capitães e oficiais tiveram consulta, resolvendo ficar apenas com as cavalgaduras indispensáveis, para o que seriam escolhidas as melhores, e soltar os prisioneiros, fei­ tos mais recentemente, empregados na carretagem. A grande profu­ são de animais de carga e os prisioneiros entravavam-lhes o passo; muitos soldados não faziam outra coisa senão guardá-los; além disso, quanto mais elevado era o número de bocas a alimentar, maior a quanti­ dade de víveres a descobrir e a transportar. Tomada tal deliberação, os pregoeiros gritaram-na pelo campo. Puseram-se a caminho depois da primeira refeição e mal chegaram a uma Canada, os capitães, postando-se na passagem, obrigaram os soldados a deitar fora os objectos que ti­ nham teimado em guardar e lhes eram inúteis. Não houve ninguém que desobedecesse; um ou outro teve artes, quando muito, de passar em candonga o seu fanchono ou mocinha idolatrada. Levaram o dia a cami­ nhar, afora as curtas paragens em que tomavam fôlego ou tinham de sa­ cudir o inimigo, dando-lhe uma saltada. No dia seguinte foram surpreendidos por uma forte trovoada, mas não tiveram remédio senão romper adiante, pois lhes escassea­ vam os mantimentos. Quirísofo ia à testa; como sempre Xenofonte à cauda. Chovia a cântaros e iam por um carreiro apertadíssimo, quando os carducos caíram sobre eles, desfechando quase à queima-roupa suas pedras e setas. Obrigados a fazer-lhes frente a cada pas­ so, os gregos não podiam andar depressa. Ao sentir-se atacados, Xenofonte comandava: Alto! E duma ponta à outra, a coluna estacava. Uma vez, porém, em vez de parar, Quirísofo tratou de avançar com a sua gente o mais rapidamente que pôde. Alguma coisa se passava. Mas Xenofonte não podia naquele instante distrair-se para averiguar qual a causa de marcha tão precipitada. E as tropas da retaguarda lar­ garam a correr empós, com tal desatino como só em fuga. Os cardu­ cos não deixaram passar em falso tal confusão e acometeram ousada­ mente. Ali perderam a vida Cleónimo, de Lacedemónia, e Básias, de Arcádia. O primeiro era um bravo soldado que caiu com uma flecha que se lhe cravou na vazia depois de atravessar o escudo e a veste; um dardo trespassou a cabeça ao segundo, de lado a lado.

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Mal Xenofonte conseguiu alcançar Quirísofo, censurou-o por não ter esperado, forçando-o a sustentar em más condições, como eram as duma retirada em marchas forçadas, combate com o inimigo. Por essa razão tinham sucumbido dois soldados dos mais valentes e nem os corpos lhes pudera dar à terra. — Olha lá para cima — respondeu Quirísofo, apontando a serra­ nia. — É inacessível, não? Pois nós não temos outro caminho senão este por onde vamos, e o meu intento foi aviar-me antes que o inimi­ go ocupasse os altos. Cheguei tarde, desgraçadamente. No dizer dos guias, há que passar pelo píncaro... — Tenho ali dois carducos. Foram apanhados há pouco, quando nos atacavam à má cara, na cilada que lhes armei. Foi o que nos va­ leu. Além dos dois prisioneiros e matarmo-lhes uns poucos de ho­ mens, ficámos com o terreno desafrontado. Queres interrogá-los? Separaram um prisioneiro do outro e submeteram-nos a pergun­ tas. Um, em despeito das ameaças, respondeu que não conhecia me­ lhor caminho. Como chegassem à conclusão que nada se podia tirar dele, trouxeram-no à presença do companheiro e ali o degolaram. O outro prometeu ensinar-lhes um segundo caminho, nada mau, aces­ sível às próprias cavalgaduras. E explicou que o seu patrício tinha para aqueles sítios uma filha casada, por isso resolvera não abrir boca. — E por esse lado não há barroca que seja custosa de passar? — Há uma para o cimo da serra. Se não estiver guardada, bem passam... Resolveu-se deitar bando se não haveria homens de boa vontade entre os comandantes de coorte que se oferecessem para cometer um lance que exigia, sobretudo, audácia e decisão. Ofereceram-se, pri­ meiro, dois oficiais de hoplitas, árcades, Aristónimo, de Metrídia, e Agásias, de Estinfalo. Um outro, Calímaco, de Parrásia, não lhes quis ficar atrás e ofereceu-se para ir com aqueles que o quisessem acompanhar — e ninguém como ele para levar de rompante gente nova e denodada. Convinha que fosse ainda um destacamento de in­ fantaria ligeira com o seu taxiarco. Alguém se oferecia? Arísteas, de Quio, que mais de uma vez se singularizara em conjunturas arrisca­ das, deu um passo à frente.

II

O Sol declinava no horizonte, quando, engolido o rancho, à voz do comando os expedicionários romperam marcha, com o guia, de mãos algemadas, à frente. Fora combinado que, chegando a ocupar os cumes, ali se mantivessem durante a noite. Mal amanhecesse, toca­ vam a trombeta a dar sinal e cairiam sobre o inimigo postado de sen­ tinela ao caminho, ao passo que o exército o investiria de frente. A coluna, que se compunha duns dois mil homens, avançou debaixo de chuva torrencial. Para cobrir a manobra e desviar a atenção dos carducos. Xenofonte meteu pelo caminho velho com as forças, co­ mo se prosseguisse na jornada. Ao chegar, porém, à ravina sobre que deitava alto e escarpado cabeço, os bárbaros desataram a rolar por ci­ ma deles pedregulhos de toda a ordem, alguns grandes como mós. Tais pedras, topando de supetão nos rochedos, lascavam em mil esti­ lhaços, os quais espirrando à roda, mais céleres que despedidos por fundas, impediam-nos de avançar um passo. Fizeram simulacro al­ guns comandantes de coorte de querer tornejar por outro lado, mas logo os carducos acudiram, fazendo chover a fragada. Neste jogo: passa-se, não se passa, se consumiu o resto do dia. Quando o escuro permitiu a Xenofonte retirar sem ser visto, voltou para o arraial. Al­ guns soldados da retaguarda não tinham o dia todo metido uma só dentada de pão à boca. Cearam com prazer e, durante a ceia e pela noite fora, o inimigo não cessou um instante de rolar pedras das es­ carpas, a avaliar pela restolhada que faziam. Entretanto a coluna de voluntários, dirigida pelo guia, trepou à serra e conseguiu, após muitas voltas e reviravoltas, surpreender

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a guarda dos visos, assentada à roda duma fogueira. E lançando-se sobre ela, mataram uns, atiraram outros para o precipício, e assim se apoderaram da posição. Não estavam, porém, senhores de toda a cu­ meada, ao contrário do que a princípio julgaram. Acima deles havia ainda outro picoto, guarnecido pelo inimigo, ligado àquele por um carreiro que ia serpenteando serra fora. Passaram a noite ali mesmo e, mal alvoreceu, avançaram para o inimigo em silêncio e na melhor ordem. Estava nevoeiro e a favor de tal cortina puderam chegar quase ao pé sem ser pressentidos. De­ pois, a um breve sinal da trombeta, abandonaram as precauções e precipitaram-se sobre os bárbaros soltando seus gritos de guerra. Mas eles, colhidos de surpresa, não esperaram a acometida, e fugiram de escantilhão cada um para sua banda. Como eram muito ágeis, poucos lhes ficaram nas mãos. Mal ouviu soar a trombeta, Quirísofo rompeu adiante pelo cami­ nho velho, à frente das suas tropas. Outros capitães lançaram-se com a sua gente pela serra acima a corta-mato. Tudo lhes servia de apoio e, a pé, de gatas, estendendo as lanças uns aos outros, juntaram-se à coluna que ocupava os píncaros da cordilheira. Xenofonte, por sua vez, tomou a rota que na véspera levaram os voluntários, por ser essa a mais cómoda, senão a única acessível a animais de carga. Tinha disposto o trem a meio da coluna como se tivesse obstáculos a vencer. E alguns teve. A breve trecho, deparou-se-lhe o caminho dominado por um oiteiro em que pululavam os inimigos. Não havia outro remédio, para não ficar cortado do exérci­ to, senão romper avante custasse o que custasse. Romperam, forma­ dos em pequenas colunas, e não em linha envolvente, para o inimigo se deixar tentar pela fuga. De facto, vendo os gregos avançar intrépi­ dos, os carducos largaram, sem despedir um só dardo. Desafogado aquele passo, os gregos encontraram-se perante um segundo morro, sobranceiro ao caminho, também defendido pelo inimigo. Para que os bárbaros não voltassem atrás e não fizessem al­ gum estrago na impedimenta, a qual por causa da estreiteza do caminho se alongava numa fila sem fim, Xenofonte postou ali três coortes, sob o comando de Quefisodoro, de Atenas, filho de Quefisofonte, Anfícrates, também de Atenas, filho de Anfidemos, e Archágoras,

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exilado de Argos. Ele, à testa das forças, avançou contra o segundo cabeço, que tomou de modo idêntico ao primeiro. Restava agora, mais à frente, um último cerro alcantilado, que sobrepujava o lugar em que na véspera a patrulha de voluntários surpreendera os carducos a aquecer-se ao fogo. Com espanto de todos, o inimigo desampa­ rou-o sem combate. Estavam em supor que o tivesse feito com re­ ceio de ser cercado quando, olhando à retaguarda, deram conta que o inimigo caía em peso sobre a cauda da coluna. Xenofonte, perante tal emergência, ordenou às coortes que fos­ sem avançando devagar de modo a dar tempo a que o grosso das forças se desembaraçasse dos carducos. Ao chegar a uma clareira, que luzia adiante à borda do caminho, deviam parar e formar em ti­ nha de batalha. Estava ainda a dar as suas instruções quando chegou todo esbaforido o argiano Archágoras. Anunciava que tinham sido desalojados do morro, e Quefisodoro e Anfícrates mortos com todos os gregos que não se tinham decidido a abandonar a eminência e a fugir para a retaguarda. Entretanto os carducos, realizada a proeza, corriam a ocupar o oiteiro que ficava defronte do picoto em que, no momento, estava Xenofonte. Lembrou-se, então, este de lhes propor um armistício, pelo intérprete, ao mesmo tempo que pedia lhe dessem os mortos para os sepultar. Eles responderam que sim, contanto que não incen­ diasse as povoações. Xenofonte aquiesceu. Neste entrementes, en­ quanto se entabulavam negociações, os carducos iam-se apinhando no oiteiro. Mal os gregos começaram a descer para se ir juntar aos outros, que haviam deposto as armas no chão, avançaram eles em chusma e com grande alarido. E assim que se apanharam em cima voltaram a rolar pedregulhos pela vertente. Um deles partiu a perna dum homem. No tumulto que se estabeleceu, Xenofonte viu-se abandonado pelo soldado que lhe segurava o escudo. Mas Euríloco, de Lúsio, árcade e hoptita, deu conta e correu a protegê-lo com o seu broquel. Deste modo, movimentadamente, a retaguarda se juntou ao grosso do exército, formado em tinha de batalha na timpaça. Avança­ ram dali para uma povoação e essa noite ficaram debaixo de telha e não lhes faltou trincadeira. Armazenado em grandes cisternas de pedra e betumilha havia vinho à farta. Afi trocaram o guia contra os

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corpos dos camaradas caídos na escaramuça, aos quais prestaram as honras fúnebres devidas a homens de coragem. Na manhã seguinte, romperam adiante. Esforçadamente tentou o inimigo atrancar-se-lhes no caminho, frechando-os dos altos, cor­ rendo à frente a ocupar as gargantas em que forçosamente tinham de passar. Quando a vanguarda ia emperrar com alguma resistência, Xenofonte levantava do couce com uma força, escalava os montes, e por longe ia sacudir dos topos o inimigo encarniçado. Quirísofo executava a mesma manobra em relação à retaguarda, quando o ata­ que era por ali. Desta forma se prestavam auxílio, e a coluna avan­ çava sempre, com maior ou menor lentidão. Acontecia os bárbaros inquietar muito as tropas quando volviam de suas ascensões estraté­ gicas. Como eram muito ágeis não havia forma de apanhá-los, embo­ ra só fugissem a poucos passos dos gregos. Permitia-lhes ainda tal facilidade de movimentos o pouco peso das armas que traziam: um arco e uma funda. Excelentes archeiros eram eles. Os arcos mediam perto de três côvados e as flechas mais de dois. Disparavam-nas especando-se no pé esquerdo à medida que retesavam a corda. As suas setas trespassavam os escudos e as couraças. Os gregos apanhavam-nas do chão e, atando-lhes correias no conto, serviam-se delas como de dardos. Nestas serranias, prestaram grandes serviços os cretenses. Comandava-os Estrátocles, de Creta.

Ill

Naquele dia bivacaram nas aldeias que ficam da parte de cima da planície regada pelo Centritas. Este rio, largo de dois pletros, separa a Arménia da terra dos Carducos, e não distava dali mais de sete está­ dios. Foi com alívio que os gregos se viram naqueles lugares, bem pro­ vidos de víveres, com perspectiva de melhor caminho. Estavam qua­ se exaustos, depois de sete dias de jornada através de serras, sempre de armas na mão, acabrunhados de trabalhos que deixavam a perder de vista aqueles que a perfídia de Tissafernes e a força do grande-rei lhes haviam infligido. Livres do pesadelo, dormiram consoladamente a sono solto. Mal, porém, abriu a manhã, para lá do Centritas descorti­ naram um esquadrão de cavalaria armado dos pés à cabeça, de guar­ da ao rio, e, logo atrás; a infantaria disposta em linha de batalha. Eram as forças de Orontas e de Artuco, constituídas por mercenários da Arménia, da Migdónia e da Caldeia, postadas ali com o objectivo de lhes impedir a entrada na Arménia. Os Caldeus passavam por ser um povo livre e aguerrido, que habitava na nascente do Eufrates. Traziam como armamento grandes escudos de verga e lança. Estas tropas ocupavam uma eminência, a uns três ou quatro ple­ tros do rio, sem outra via de acesso que um íngreme caminho de pé posto. Havia que desalojá-los, e os gregos avançaram para o rio na­ quela direcção e entraram na água. Mas não tardou que ela lhes che­ gasse aos peitos, e reconhecessem ao mesmo tempo quanto a corren­ te era rápida e o leito coalhado de seixos escorregadios. Passar armado era impossível, e despir-se e levar as armas à cabeça expor-se.

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irremediavelmente, às setas e dardos dos inimigos. E força lhes foi voltar para trás e assentar arraial nas margens do rio. De repente, os montes em que tinham acampado na noite ante­ rior cobriram-se dum formigueiro de gente armada. Eram os carducos. E os gregos foram tomados de grande desalento, ao ver diante deles o rio caudaloso, com forças consideráveis na margem de lá a vedar-lhes a passagem, os carducos, às espaldas, prontos a atacá-los mal cometessem o trânsito difícil. Estiveram aquela noite e a seguinte em consultas, mergulhados na maior perplexidade. Mas Xenofonte teve um sonho: sonhou que, estando com os pés atados, as peias caíam por si e ficava com a fa­ culdade de ir onde lhe apetecesse. Mal rompeu a aurora foi ter com Quirísofo e contou-lhe o sonho que tivera e que devia ser interpreta­ do como sinal propício. Folgou Quirísofo com a comunicação e, mal o dia clareou, os dois com os mais capitães celebraram sacrifícios aos Deuses. Logo à primeira vítima, as entranhas apresentaram indícios favoráveis. Por isso, mal o holocausto terminou, capitães e coman­ dantes deram ordens aos soldados para tomar depressa a refeição, que se ia partir. Estava Xenofonte a comer, vieram ter com ele, a to­ da a pressa, dois jovens soldados. Sempre que se tratasse de qualquer coisa importante, os homens podiam dirigir-se-lhe não importa em que altura, estando mesmo a dormir. Os dois vinham comunicar uma descoberta que tinham feito... Quando andavam, já longe dali, aos chamiços para fazer lume, despertara-lhes a atenção um grupo de pessoas, velho, mulher e duas raparigas, que se mostraram nos cachopos do rio, rente à margem de lá. Essa gente trazia trouxas às costas que procurava esconder nas lorgas dos penedos. Foi obser­ vando-lhes o manejo que repararam ser aquele sítio nada mau para o exército atravessar, pois do outro lado, com a penedia, não eram os ginetes do inimigo que lhes punham empeço. E assim que tal ideia lhes veio à cabeça trataram de se desenganar. Despiram-se e com uma faca nos dentes meteram ao rio, dispostos a atravessá-lo a nado. Mas não foi necessário: de cachopo em cachopo, como sobre alpoldras, quase sem molhar os pés, chegaram à outra banda. Em sua exultação Xenofonte fez uma libação aos Deuses. E, mandando deitar vinho aos bons mensageiros, junto com eles conju­ rou-os, já que lhe haviam mandado o sonho auspicioso, e agora tão

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esplêndidos sinais, a levá-los a porto de salvamento. Conduziu, de­ pois, os mancebos a Quirísofo que jubilosamente bebeu à boa nova. E desde logo, enquanto os soldados levantavam tendas, mandou convocar os oficiais para assentarem no plano que havia a seguir. De­ cidiram atravessar o Centritas naquele vale pela ordem seguinte: Qui­ rísofo à frente com metade do exército; a seguir a impedimenta com a gente não armada; no couce o resto, sob o comando de Xenofonte. O exército, à voz de marche, rompeu ao longo do rio guiado pe­ los dois soldados. Doutro lado, paralelamente, pôs-se a avançar a ca­ valaria inimiga. Uns quatro estádios andados chegaram ao vau. Depu­ seram armas no chão; Quirísofo tirou a roupa e todos lhe seguiram o exemplo. Depois, cingindo a fronte com uma coroa de loiros, a meio do exército formado em batalhões, imolou vítimas aos Deu­ ses. Enquanto estavam no santo sacrifício, os inimigos fizeram cho­ ver sobre eles pedras e flechas, sem nenhuma os atingir. E, como o augúrio lhes fosse favorável, os soldados entoaram o pean a plena voz e soltaram gritos de guerra, a que responderam as mulheres em coro. Muitos soldados, com efeito, traziam consigo as amantes. Quirísofo meteu-se ao rio com a divisão. Simultaneamente Xenofonte, à testa dos soldados mais ágeis da retaguarda, deitou a correr pela margem até aquele ponto que ficava em frente à garganta dos montes arménios, no jeito de tentar o vau para colher a cavalaria pe­ las traseiras. E esta, consoante tinham imaginado, mal viu a coluna de Quirísofo atravessar o Centritas com tanta facilidade, e Xenofonte avançar sobre o seu flanco, receou de facto ser envolvida. E lançou-se a galope pelo caminho que levava à serra. Lício, que comandava os ginetes gregos, e Esquines, comandante dos peltastas da divisão de Quirísofo, mal a viram largar à rédea solta, foram-lhe no encalço. A infantaria, por seu lado, requeria em altos gritos para tomar parte na perseguição. Quirísofo, mal deitou pé na outra margem, não se distraiu a correr empós dos ginetes. Sem perda dum instante formou as tropas e lançou-se contra a ribanceira, ao alto da qual estavam pos­ tados os inimigos em peso. Estes, porém, vendo os cavaleiros que fu­ giam e os hoplitas que avançavam contra eles, abandonaram a posi­ ção.

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Quando Xenofonte notou que na outra margem tudo corria à maravilha — Quirísofo ocupara os cimos e Lício, à testa do seu pu­ nhado de homens, acabava de tomar a impedimenta do inimigo, no meio da qual se encontrou uma riquíssima vestiaria e taças para vi­ nho preciosas — voltou à pressa ao vau por onde o exército estava a passar. Já os carducos corriam na planície com tenções de cair so­ bre a retaguarda. Pouco faltava para o trem dos gregos e a gente de­ sarmada estarem quase por completo do outro lado do rio. Xenofon­ te, então, ordenou meia volta às suas tropas de modo a ficarem de face para os carducos. Deu instruções, em seguida, para que as coor­ tes formassem em manípulos, os quais se desdobrariam à esquerda, oficiais do lado do inimigo, chefes de fila do lado da ribeira. Os carducos — assim que viram o trem da banda de lá e a reta­ guarda reduzidíssima, pelo facto de muitos soldados se terem retira­ do preocupados com as cavalgaduras, a bagagem ou as amantes — acometeram, entoando seus hinos bárbaros. Quirísofo, porém, quando se viu em segurança, destacou logo em socorro de Xenofonte peltastas, fundibulários e até archeiros. E já estas forças desciam a ribancei­ ra quando Xenofonte lhes mandou dizer: que esperassem formados na margem e que apenas se metessem à água no instante em que eles, por seu turno, começassem a passar; que deviam fazê-lo de modo a parecer que investiam pelos dois flancos, a mão na correia do dar­ do, a flecha no arco; mas que não valia a pena levar o simulacro mui­ to longe, avançando pelo rio dentro. Ao mesmo tempo deu ordens aos soldados para que, mal as pe­ dras começassem a crepitar em seus escudos, entoassem o pean e car­ regassem a fundo o inimigo; que, uma vez ele destroçado, ao toque da trombeta fariam meia volta e deitariam a correr para a ribeira, os chefes de fila à frente. Sem hesitar tomariam o vau, cada unidade de per si para se não embaraçarem umas contra as outras. — O soldado mais valente — disse finalmente — é aquele que chegar primeiro à outra margem. Tudo correu como fora previsto. Os carducos, iludidos com o pequeno número de gregos que viam do seu lado, atacaram deno­ dadamente, descarregando sobre eles fundas e arcos. Mas os gregos, soltando o hino de guerra, contra-atacaram. Armados, como todos

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os montanheses, à ligeira, modo admirável para acometer e fugir, mas não para esperar a pé firme, os carducos não puderam aguentar o choque e debandaram. Eles a debandar e mais a trombeta tocava na sua peugada; mais a trombeta tocava, e mais céleres eles fugiam. Num ápice, depois, os gregos deram meia volta e velozes como ga­ mos atravessaram o rio. Raros foram os carducos que repararam na manobra e mais raros ainda aqueles que, volvendo a tempo, puderam lançar uma ou outra flecha que foi bater nos retardatários. Já os gre­ gos estavam todos a são e salvo na outra banda e ainda se viam os bárbaros dar às de vila-diogo pela planície fora. As tropas, que se ti­ nham postado na margem, deixando-se, num rapto de entusiasmo, ir mais longe do que convinha, chegaram a repassar o rio. Ficaram feri­ dos alguns soldados.

IV

Cerca do meio-dia os gregos puseram-se em marcha, formados, pela terra arménia fora, através de vales e colinas sucedendo-se em ondulações suaves. Nesse dia andaram nada menos de cinco parasangas, visto não encontrarem aldeias em que aboletar-se, muito despo­ voada a região por causa da guerra contínua que lavrava entre persas e carducos. Finalmente, chegaram a uma grande localidade, onde o sátrapa tinha palácio e a maior parte das casas era coroada por tor­ res. Não faltou que comer. Dali, andaram dez parasangas em duas jornadas deitando além da nascente do Tigre. Depois, em três jornadas de quinze parasangas, al­ cançaram o Teléboas, ribeira de água límpida. Viam-se muitas aldeias espalhadas pelas margens. Chamava-se à comarca Arménia Ocidental e governava-a Tiribaz. Tinha este homem sabido insinuar-se no âni­ mo de Artaxerxes a ponto de ser um dos seus primeiros favoritos. Quando se encontrava na Corte, ele é que tinha a honra de lhe segu­ rar o estribo para montar. Ora Tiribaz, tendo rumor de que os gregos atravessavam o terri­ tório, saiu-lhes ao encontro, seguido de cavalaria, depois de lhes mandar um parlamentário a pedir uma conferência. Anuíram os gre­ gos e, adiantando-se tanto quanto era preciso para serem ouvidos, perguntaram o que desejava. Respondeu que propor aos gregos o se­ guinte: liberdade de atravessarem o território e tomar os víveres que necessitassem, contanto que não deitassem fogo a nada. Tais condi­ ções satisfaziam aos gregos e o tratado de paz foi concluído de parte a parte.

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Andaram, em seguida, quinze parasangas em três jornadas, sem­ pre em terra chã, com o exército de Tiribaz a marchar de soslaio, par a par com eles, a uns dez estádios de distância. Chegados a uma re­ gião coalhada de aldeias, em que el-rei tinha um grande palácio que servia de armazém de géneros, acamparam ao ar livre. Mas durante a noite caiu tanta neve, que no dia seguinte viram-se na necessidade de se aboletar nas localidades, certos de não correr perigo, defendi­ dos de surpresas pelo próprio nevão. Foram encontrar gado, trigo, vinho — até do velho e perfumado — passas, legumes de toda a or­ dem; uma fartura. Uns soldados, porém, que foram longe na ratonice, voltaram a dizer que tinham enxergado o clarão de muitas foguei­ ras que pareciam ser bivaque de exército. Em vista da informação, os capitães acharam perigoso que as tropas estivessem dispersas pelas aldeias e, tocando a reunir, montaram arraial. Durante a noite continuou a cair neve em tal quantidade que co­ briu os homens e as armas ensarilhadas junto deles. Os animais de carga estavam tão enregelados que era um castigo fazê-los levantar da sepultura branca. O mesmo sucedia com a gente. E não deixava de ser um espectáculo admirável, se bem que angustioso para os solda­ dos, ver o lençol que tudo cobria e nivelava. Xenofonte sacudiu o torpor e pôs-se nu a rachar lenha. Os solda­ dos, ao vê-lo, seguiram-lhe o exemplo. E não tardou que todos, à uma, se levantassem do leito enliçador e, acendendo fogueiras, de­ satassem a friccionar-se com as drogas várias que encontraram: ba­ nha, óleo de sésamo, de amêndoa e de terebinto, que fazia as vezes de azeite. Extraídas destes produtos, depois de rectificados, depararam-se-lhes ainda pomadas aromáticas com que era um regalo prote­ ger a pele contra o cieiro. A inclemência do tempo excedia tudo o que se pode imaginar e de novo resolveram que as tropas buscassem boleto pelas aldeias. Os soldados receberam esta ordem com gritos de alegria; cada um correu para debaixo de telha, onde já estivera, lamentando-se aqueles que tinham deitado fogo às casas, que os haviam agasalhado, de o ter feito, obrigados agora, se não a dormir ao sete-estrelo, a procurar de­ baixo de frio rigoroso outro tugúrio. Durante a noite, uma patrulha, sob o comando de Demócrates, de Témeno, foi explorar os sítios em que os soldados da roubalheira

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pretendiam ter divisado lumes de bivaque. Este homem era tido pela verdade em pessoa, por isso o destacaram para aquela missão melin­ drosa. Pois o homem foi, rondou, e volveu a dizer que não tinha des­ cortinado fogueira nenhuma. Pudera, no entanto, deitar a mão a um homem que andava armado com arco semelhante ao dos persas, alja­ va e uma machadinha como usam as amazonas. Interrogado respon­ deu que era persa, de facto, e só afastara do campo de Tiribaz à bus­ ca de víveres. Quanto às forças de que aquele dispunha, declarou que além das próprias trazia ao serviço muitos mercenários cálibes e táocos, e ser intenção sua atacar os gregos no desfiladeiro, única portela para se sair daqueles montes. Depois do que ouviram, os capitães foram unânimes quanto à necessidade de romper adiante. E assim fizeram, guiados pelo pri­ sioneiro, depois de deixarem à retaguarda um destacamento coman­ dado por Sofeneto, de Estinfalo, com a missão de recolher os arredios e retardatários e prover aos múltiplos inconvenientes que sempre re­ sultam de partidas precipitadas. Depois de transpor os montes, os peltastas que iam à frente avistaram o campo de Tiribaz. E sem um minuto de hesitação, sem esperar a infantaria pesada, acometeram com grande vozearia. Não foi preciso mais para os bárbaros deitarem a fugir. Mataram-lhes, não obstante, alguns homens, e apoderaram-se de vinte cavalos e da tenda de Tiribaz, com seus padeiros e copeiros, e a mobília riquíssima, leito com pés de prata, vasos de vária ordem. Entretanto o campo podia ser acometido, e os capitães dos hoplitas deram sinal de retirar.

V

Na manhã seguinte, trabalhados pelo receio de que Tiribaz con­ centrasse as tropas e ocupasse o desfiladeiro antes de eles passarem, puseram-se em marcha, resolutamente, com a terra coberta de neve. Tinham bons guias a ensinar-lhes o caminho, de modo que nesse mesmo dia acamparam para lá das serras em que seria perigoso que Tiribaz os esperasse. A seguir, sempre à beira do Eufrates, percorre­ ram quinze parasangas em três jornadas. Passaram o rio, cuja nascen­ te diziam perto, com água até o umbigo. E dali andaram quinze para­ sangas em três dias, através da planície adormecida sob a grande camada de neve. O terceiro dia fora particularmente duro para os soldados. O vento fustigava-os de frente, trespassando-lhes as carnes até os ossos. Um arúspice sugeriu que se fizessem sacrifícios ao Ven­ to. Imolaram-se vítimas e todos puderam notar que a nortada abran­ dara de violência. A camada de neve tinha uma órgia de altura. Morre­ ram muitos animais, muitos escravos e uns trinta soldados. A noite passaram-na em volta de grandes fogueiras. Havia fartura de lenha e queimavam sem dó. Os últimos a chegar é que já pouca encontravam. Para que os deixassem aquecer davam pão e outros co­ mestíveis que traziam. No sítio onde acendiam as fogueiras ficavam grandes covas escuras, rebordadas de neve. Por elas mediam a espes­ sura do nevão, que era prodigiosa. Marcharam todo o dia seguinte pela neve fora; muitos gregos fo­ ram atacados de bulimia; Xenofonte ao princípio não percebeu que mal era aquele; mal soube do que se tratava, correu ao trem e man­ dou repartir pelos infelizes, prostrados sem forças, o que havia que

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comer. Desde que tomavam algum alimento, os soldados erguiam-se e punham-se a marchar. Chegou Quirísofo a uma aldeia ao cair da noite e encontrou na fonte, junto das portas, muitas mulheres e raparigas que estavam à espera de vez para encher os cântaros. Perguntaram aos gregos quem eram. Responderam eles pela boca do intérprete que tropas que o grande-rei mandava ao sátrapa. E elas disseram que o sátrapa não se encontrava ali, mas obra de uma parasanga mais longe. E co­ mo já fosse tarde conduziram-nos à presença do regedor, que era a autoridade principal da terra. Este forneceu-lhe alojamento e a to­ dos quantos vinham com ele. Mas os retardatários passaram a noite sem lume e sem comer e alguns não puderam resistir. Na peugada dos gregos ia um bando de ratoneiros que não só davam caça aos que se deixavam ficar para trás como faziam mão baixa sobre tudo o que lhes vinha a talho, especialmente as azémolas cansadas. Pela posse delas batiam-se, em seguida, uns com os outros, a calhau e fa­ ça. Também ficavam para trás aqueles que a oftalmia, provocada pela neve, enceguecera, e ainda muitos a quem o frio gangrenara os dedos dos pés. Para evitar a ofuscação que causava a neve, punham diante dos olhos uma espécie de pala ou sarrafo preto, sobretudo quando iam de marcha; para que os pés se não enregelassem, não paravam um instante, andando de cá para lá, a correr ou em rodopio, e descal­ çavam-se antes de se deitar. Se adormeciam calçados, as correias en­ travam na carne e as sandálias gelavam à roda do pé. E acontecia as­ sim porque eram de coiro de vaca recentemente esfolada, tendo gasto há muito as de cabedal curtido. Era martirizados por tais trabalhos que alguns soldados se deixa­ vam ficar para trás. Mal viam um pedaço de terra negra, naqueles lu­ gares em que a neve se fundira sob a acção da água de fonte, aninha­ vam-se, recusando-se a ir mais longe. Xenofonte, que comandava como sempre a retaguarda, fazia tudo para convencê-los a prosse­ guir, entre outras razões representando-lhes o fantasma do inimigo que marchava no rasto deles sanguinário e fero. — Podem-nos matar; não damos mais um passo! — diziam. Xenofonte, então, considerou que a maneira de livrar os pobres sol­ dados exaustos das mãos do inimigo era cair sobre o inimigo e fazê-lo

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em postas. E pôs-se de emboscada. Fazia já escuro e os bárbaros avançavam às cegas, fazendo grande assuada e despicando-se uns com os outros por causa das presas. Os gregos, então, atacaram-nos pela frente e pelas costas; para dar a impressão de grandes forças e semear o pânico, os próprios doentes soltavam gritos e batiam com as lanças nos escudos de bronze. Tomados de terror, os bárbaros lar­ gavam em todas as direcções, numa fuga louca, e, nas sombras da noite, o seu tropel foi esmorecendo, esmorecendo, até se perder ao longe no silêncio da terra, calafetada de neve. Depois de prometer aos doentes e estafados que no dia seguinte viriam buscá-los, Xenofonte e os seus puseram-se de novo em mar­ cha. Não tinham percorrido quatro estádios quando encontraram mais soldados estendidos na neve, enroscados no capote, sem uma vedeta sequer a protegê-los. Mandaram-nos erguer; obedeceram; mas um deles observou que toda a coluna se encontrava deitada no chão, nas mesmas condições. Xenofonte mandou os peltastas mais robus­ tos explorar o terreno em roda a ver se era verdade. Era verdade, voltaram eles a dizer. Xenofonte, em vista disso, postou sentinelas aos quatro ângulos e bivacou ao pé dos seus, entanguido de frio e sem comer. Mal raiou a manhã, deu ordem para que os soldados mais novos e fortes levantassem os doentes e os ajudassem de qual­ quer modo a seguir para diante. Foi neste entretanto que chegou a força encarregada por Quirísofo de averiguar o que se passava. Saudaram-na como se lhes trouxes­ se a salvação. Tomou conta dos doentes e foi com mais ânimo que os outros percorreram os vinte estádios até chegar ao povo em que se aboletara Quirísofo. Pareceu aos capitães que não havia perigo em alojar-se o exército pelas aldeias. O problema era a distribuição. Deitaram-se sortes, e ca­ da qual marchou à testa da sua companhia para a localidade que lhe coube. Antes, Polícrates, de Atenas, um dos graduados, veio oferecer-se para ir à frente, persuadido de que o não faria debalde. Aceita­ ram e, à testa dum punhado de soldados ágeis como ele, correu à al­ deia que competira a Xenofonte, e foi surpreender os habitantes em seus afazeres, com o administrador, a filha, casada de nove dias, sem contar dezassete potros que estavam a criar e representavam o tribu­ to pago anualmente a el-rei. Ao genro do administrador valeu ter ido

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à caça das lebres, senão teria sido apanhado na ratoeira como os mais. As casas eram debaixo da terra; entrar para elas era o mesmo que para um poço, embora o interior fosse espaçoso. Os animais entra­ vam por corredores em declive, rasgados, no solo; os homens des­ ciam por escadas. Nesta espécie de antros havia cabras, ovelhas, bois, galináceos e criação miúda. O gado era sustentado a feno. Também se encontrava ali em profusão trigo, cevada, legumes, e cerveja em ta­ lhas. Os grãos de cevada nadavam à superfície e dentro delas mergu­ lhavam canas furadas, umas mais grossas, outras mais delgadas. Para beber, levavam a cana à boca e chupavam. Tal bebida era muito forte e agradável depois de se estar acostumado. Xenofonte pôs o administrador a cear ao pé de si, ao mesmo tempo que se dava a tranquilizá-lo, prometendo-lhe que, se guiasse o exército até outro povo sem haver novidade, não só o não privaria dos filhos como lhe encheria a casa de coisas boas para o recompen­ sar do que agora lhe comiam. O arménio prometeu servi-los com li­ sura e, por sinal, revelou o sítio onde estava o vinho escondido. Os soldados, aboletados naquele povo, passaram a noite comendo-lhe bem e bebendo-lhe melhor, sem deixar de ter de olho o administra­ dor e os filhos. Na manhã seguinte Xenofonte chamou o administrador e foi-se apresentar com ele a Quirísofo. De caminho, se acontecia passar per­ to duma aldeia, torcia um pouco para visitar os homens nela aquarte­ lados e a todos ia encontrar em folgança e comezaina. Aqui, além, não o deixavam partir, sem primeiro se haver sentado à mesa com eles. E nada ali faltava: cabrito, porco, vitela, frangãos e pãezinhos de trigo e de cevada. Tinha também de beber com uns e outros. Levavam-no às talhas, metiam-lhe a cana na boca e toca a sorver cerveja como um boi sorve água duma pia. Insistiam igualmente com o ad­ ministrador para comer e beber. Mas ele, discreto e grave, abanava a cabeça que não. Parecia, de resto, um mosca-morta. Animava-se, apenas, quando via algum parente e então pedia licença a Xenofonte para o chamar para o pé de si. Chegado à localidade em que se instalara Quirísofo, depararam-se-lhe grupos de soldados, de fronte cingida por coroas de feno se­ co, fazendo-se servir por jovens arménios, vestidos à barbaresca.

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E era por sinais, como a surdos-mudos, que lhes indicavam o que ti­ nham a fazer. Depois de trocadas as saudações de estilo, perguntou Quirísofo ao administrador, por meio dum língua, em que país estavam. — Na Arménia — respondeu ele. Perguntaram-lhe depois a quem se destinavam os poldros, res­ pondendo que ao rei, a quem eram pagos como tributo. E de bom grado forneceu todas as informações quanto à terra limítrofe, que era habitada pelos Cálibes, e qual o caminho que deviam levar para lá. Depois de interrogado, Xenofonte foi levá-lo à família. Deu-lhe um cavalo escanzelado que trazia, recomendando-lhe que o engor­ dasse para o imolar ao Sol, tendo averiguado que os Persas o haviam consagrado àquela divindade. Em compensação levou os poldros, que distribuiu pelos capitães e seus lugares-tenentes. Os cavalos indí­ genas eram mais pequenos que os dos Persas; mas eram mais genero­ sos. O administrador ensinou aos gregos como deviam fazer para, quando houvesse neve, estes cavalinhos se não enterrarem nela até o ventre. Era meter-lhes as patas em saquinhos atados ao jarrete.

VI

Já lá ia uma semana quando Xenofonte entregou o administrador a Quirísofo para o utilizar como guia, depois de soltar a família toda, excepto o filho, que entrava apenas na idade da puberdade e ficou a cargo de Epístenes, de Anfípolis. Era uma espécie de refém que ali tinha para ser restituída ao pai no caso de este guiar o exército com lealdade e acerto. Depois de lhe rechearem a casa com tudo o que traziam e podiam dispensar, puseram-se em marcha, o administrador à frente, através dos campos cobertos de neve, sem nenhuma quali­ dade de liames. A terceira alta, Quirísofo tratou-o mal, muito irritado com ele porque não encaminhava o exército pelas povoações. E em­ bora teimasse em dizer que atravessavam um descampado, sem po­ vos alguns, o capitão grego bateu-lhe. Bateu-lhe, mas deixou-o solto como dantes. E o que aconteceu foi escapar-se na noite seguinte, abandonando o filho à sua sorte. Deu isto causa à única cizânia que, durante a longa retirada, houve entre Xenofonte e Quirísofo, não po­ dendo aquele levar a bem a brutalidade e a imprevidência com que este se conduziu para com o guia. Quanto ao mocinho, Epístenes gostou tanto dele que o levou para a Grécia e nunca teve que se quei­ xar da sua fidelidade. Com mais sete jornadas de cinco parasangas, deitaram às mar­ gens do Faso, rio com um pletro de largura. Andaram mais dez para­ sangas em duas jornadas e, quando se preparavam para transpor uma serra, surgiram-lhe pela frente os cálibes com seus aliados táocos e fasianos. A uns trinta estádios de distância, Quirísofo mandou parar e formar por colunas. E chamando os capitães e mais oficiais, disse-lhes:

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— Como vedes, o inimigo ocupa os cimos da serra. Vejamos o que temos de melhor a fazer. Por mim sou da opinião que se toque a rancho e, entretanto, assentemos se é hoje ou amanhã que devemos atacar o inimigo... — Eu sou de opinião — interveio Cleanor — que os soldados ranchem e se dê logo a seguir ordem de ataque. O inimigo tem os olhos em nós; se adiamos para amanhã, não deixará de ganhar ousio e juntar mais forças. — Quereis saber o que eu penso?... — disse Xenofonte. — E preciso combater? Vamos a isso com toda a alma. Agora se o nos­ so objectivo é somente passar, tratemos de fazê-lo, sacrificando o menos gente possível. A cordilheira tem mais de sessenta estádios de extensão e inimigos, de vigia, apenas se vêem os do alto. Não vale mais ir por qualquer portela que não esteja defendida, sem o inimigo dar conta, que atacar um lugar fortificado por natureza e onde se concentram forças dispostas a resistir?! Sobe-se mais facilmente um monte escarpado, sem inimigos a combater, do que se palmilha um terreno plaino, quando o inimigo nos acomete por todos os lados. Vê-se melhor de noite onde se põe o pé, quando nada há a temer, do que de dia, lutando; e cansamo-nos menos a trilhar um chão pedre­ goso, quando se vai sem inquietude de espécie alguma, do que quan­ do o nosso rico corpo está em perigo. Neste nosso caso, não me pa­ rece impossível passar-se a gente à socapa, sem dar cavaco, muito mais se estivermos dispostos a fazer um bom rodeio. De resto, pode­ mos simular um ataque aos cimos, de modo a atrair quantas tropas haja pelas serranias. Mas, agora reparo, atrevi-me a falar da possibili­ dade de nos passarmos para o lado de lá, pela sorrelfa, diante dum lacedemónio como é Quirísofo!? Que heresia a minha! Não é verdade que desde meninos sois educados na escola do furto ou da destreza, que é a mesma coisa? Os latrocínios, que a lei de Esparta não proíbe, são para vós motivo de glória em vez de vitupério. Para chegardes a mestres na arte de escamotear e pordes-vos ao fresco sem ninguém dar conta, apanhais a vossa chicotada, se a lição não foi bem aprendi­ da. Eis chegado o ensejo, Quirísofo, de nos mostrares os frutos da educação que recebeste. Tem cuidado que não sejamos surpreendi­ dos a fraudar o inimigo ou trabalha o arrocho.

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— Também não é novidade para ninguém — replicou Quirísofo — que os Atenienses são exímios a roubar o erário público, por mui­ to grandes que sejam os riscos a correr, e que os mais distintos são os que se mostram consumados em tal arte, se é certo que na vossa Re­ pública elegeis para magistrados os mais distintos. Portanto, Xenofonte, tens tanto como eu belíssima ocasião para mostrar as tuas ha­ bilidades. — Está dito — tornou Xenofonte. — Logo que se ceie estou pronto a ir com uma força enganar o inimigo, roubá-lo em seus cál­ culos, ocupando-lhe a posição que não esteja guardada. Pude deitar a mão a alguns dos larápios que vinham no nosso rasto. Por eles sei que há vários caminhos para atravessar a serra. Vão e vêm por eles das pastagens rebanhos de cabras e manadas de vacas. Qualquer por­ tela, de resto, nos serve para passar. Estou em crer que mal o inimigo nos aviste num dos cimos, larga, e abre-nos passagem, pois não se há-de sentir com forças para se medir connosco em rasa campina. — Mas porque hás-de ser tu que vais e deixas a retaguarda?! Des­ taca uma força, dado que se não apresentem voluntários — objectou Quirísofo. Ofereceram-se logo Aristónimo, de Metídria, com os seus hoplitas, e Arísteas, de Quio, e Nicómaco, de Eta, com os peltastas. As­ sentou-se que mal chegassem ao alto dessem sinal por meio duma fo­ gueira. Tudo determinado, cearam. E Quirísofo, para dar a impressão de que o ataque era por aquele lado, mandou avançar o exército até dez estádios do inimigo. Já noite fechada, o destacamento abalou, tomou pé nos altos, en­ quanto o exército, como fora combinado, ficava no campo, sem bu­ lir. O inimigo teve indícios de que os gregos subiam a serra, mas, não sabendo por onde, limitou-se a acender fogueiras e a redobrar de vi­ gilância. Na manhã seguinte, depois de fazer holocausto aos Deuses, Quirísofo pôs-se em marcha. Enquanto o destacamento, que durante a noite se apoderara dos cimos, avançava pela cumeada, ele avançava pelo caminho velho. O inimigo atirou-se sem hesitar contra o desta­ camento e rija peleja se travou. Os gregos levaram os bárbaros de vencida, que fugiram destroçados para todos os lados. Ao mesmo tempo Quirísofo assaltava com os hoplitas o alto da serra, que era

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a posição principal do inimigo. Mas desmoralizado com a derrota so­ frida pouco antes, não aguardou o embate. Debandou, não sem que deixasse no caminho muitos mortos e feridos. Nos despojos encon­ traram os gregos grande quantidade de escudos, que foram destruí­ dos para não voltarem mais a aproveitá-los. Uma vez no coruto da serra, sacrificaram aos Deuses e ali elevaram uma memória. Meteram, em seguida, para a planície, em que não faltavam povoações bem abastecidas de tudo.

VII

Ao cabo de cinco jornadas de trinta parasangas, chegaram ao país dos Táocos. Não havia que comer, pois estes bárbaros moravam dentro de praças fortificadas, ali tendo suas adegas e celeiros. Depois dum extensíssimo ermo, despido de todo de povos e de casas, o exér­ cito chegou a um castelo dentro do qual se tinha refugiado com os gados grande bandada de homens e de mulheres. A necessidade dos gregos era grande e Quirísofo mandou atacar. Sucessivamente três divisões romperam ao assalto, mais depressa se cansando que vencen­ do a íngreme ladeira ao alto da qual se erguia a cidadela de rocha. En­ tretanto chegava Xenofonte com os peltastas e hoplitas da retaguarda. — Vens a propósito — disse Quirísofo. — Vês esta fortaleza...? Se não conseguimos tomá-la, morremos todos à fome. — Qual a razão por que se não há-de tomar? — observou Xeno­ fonte. — Só tem este mau acesso. Mal as tropas dão um passo, aqueles malditos deitam pedras a rolar por ali abaixo que esborracham quem apanham. Queres ver? Mostrou-lhe dois gregos que estavam num feixe, costelas e per­ nas partidas. — Se gastarem as pedras que têm, haverá outros obstáculos que nos impeçam de lhes tomar o castelo? — inquiriu Xenofonte. — Homens armados vejo apenas uma meia dúzia. O espaço exposto às pedras não mede mais, como se está vendo, de um pletro e meio, dois terços do qual estão a pinhal. Se os homens se abrigassem por detrás das árvores, decerto não eram atingidos pelas pedras, tanto as

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que os inimigos atiram de lapada como as que deitam de corricão. Fi­ caria assim, como espaço perigoso, coisa de meio pletro que teríamos de atravessar num rufo, mal as pedras deixassem de chover. — Mas até chegarmos ao pinhal, quem nos livra delas? — objectou Quirísofo. — Ouve, quantas mais pedras nos lançarem daqui até o pinhal, menos têm para nos lançar depois. Tudo se resume, em seguida, em ir desde o pinhal até as muralhas. Nas muralhas devemos ir direito ao ponto que nos ficar mais perto, tanto menor sendo desta forma o es­ paço, quer para assaltarmos, quer para bater em retirada. Quirísofo e Xenofonte escalaram, de concerto com Calímaco, de Parrásia, que nesse dia comandava as coortes da retaguarda, a encosta abrupta, a meio da qual o terreno era arborizado. Uma vez aí, procu­ raram abrigar-se com as árvores. Seriam setenta homens e começa­ ram a avançar não em monte, mas um a um, cada qual olhando por si o mais que podia. Agásias, de Estinfalo, e Aristónimo, de Metídria, oficiais da retaguarda, tinham ficado à desbanda, pois as árvores não podiam servir de amparo a mais de uma coorte. Calímaco, entretanto, suspendera a marcha e por detrás duma ár­ vore pusera-se a negacear com os bárbaros. Dava dois, três passos à frente, jogavam-lhe uma saraivada de pedras, e ele num ápice metia-se detrás do tronco. Repetiu muitas vezes o estratagema e de cada vez era uma carrada de pedras, que voavam por cima dele. Quando Agásias viu que Calímaco, alvo de todos os olhares, acabaria por esgotar os projécteis que havia na praça, receou que não fosse ele o primeiro a entrar os muros, e sem chamar ninguém, nem mesmo Aristónimo, que estava ao lado dele, e Euríloco, de Lúsio, seus ca­ maradas, lançou-se ao assalto. Calímaco, porém, vendo-o passar, agarrou-o pelo bordo do escudo. Entretanto Aristónimo, seguido de Euríloco, passou-lhes adiante. E, excitados pela emulação, todos os guerreiros se precipitaram para a cidadela e de arranco a entraram e tomaram. Assistiram então a um espectáculo terrível. As mulheres lança­ vam os filhos do alto do rochedo e precipitavam-se logo após, segui­ das dos homens. Eneias, de Estinfalo, avistou um bárbaro, luxuosa­ mente vestido, que corria com o desígnio de se atirar ao abismo. Quis segurá-lo. O bárbaro, porém, deu um empuxão, ambos caíram.

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e lá foram, saltando de penedo em penedo, até o fundo do precipí­ cio. Poucos prisioneiros fizeram. O gado que encontraram é que foi em abundância. Em sete dias andaram sete parasangas através da terra dos Cálibes, povo belicoso, com o qual mais de uma vez tiveram de lutar. Usavam couraças de linho que lhes desciam até o quadril, com franja de corda ao redor; traziam capacete, safões e um estoque à cinta no género do dos Lacedemónios. Com ele degolavam os prisioneiros, cujas cabeças levavam como troféus, cantando e dançando quando sabiam que eram lobrigados pelo inimigo. Andavam, ainda, com uma lança ao ombro, dos seus dois côvados e tal de comprimento. Ha­ viam-se trancado nas suas povoações muradas e, apenas viam os gre­ gos passar adiante, saíam a persegui-los; contra-atacados, recolhiam às praças fortes, em que faziam recolha, ao mesmo tempo, dos pro­ dutos do solo. Os gregos atravessaram a sua terra, não tendo mais que comer além das reses que tinham pilhado aos Táocos. Dali deitaram ao rio Hárpaso, com quatro pletros de largo. En­ traram, em seguida, na terra dos Citas, andando vinte parasangas em quatro jornadas, sempre planície, e durante três dias tiveram arraial em aldeias fartas de tudo. Sempre para a frente, em vinte parasangas alcançaram a cidade de Gímnias, tão opulenta como populosa. O go­ vernador ofereceu um guia aos gregos, o qual tomou o compromis­ so, sob pena de lhe cortarem a cabeça, de levá-los num prazo de cin­ co dias a sítio donde veriam o mar. Puseram-se a marchar com essa esperança, mas o homem levou-os através dum povo que andava de rixa com o dele, e o seu primeiro cuidado foi incitá-los a destruir e incendiar a comarca. Donde se viu que se se prestava a servir os gregos não era por amizade, mas para utilizá-los como instrumento, no ódio que tinha aos daquela raça. Ao quinto dia chegaram ao monte santo denominado Teches. Os primeiros que subiram ao cimo romperam em grande clamor. Ao ou­ vi-los, Xenofonte, que estava à retaguarda, supôs que novos inimigos investissem com a testa da coluna. Traziam à perna, com efeito, os habitantes a que tinham incendiado as searas. Já armando-lhes em­ boscada, as forças da retaguarda haviam matado uns, aprisionado ou­ tros, tomando-lhes uns vinte escudos de verga, recobertos de coiro de vaca com o pêlo para fora.

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Os gritos aumentavam de intensidade à medida que mais solda­ dos chegavam ao pino do monte. E, chamados por aqueles, outros deitavam para lá a correr, em bandos, singularmente, e mais a assuada recrudesceu. Xenofonte teve de admitir que alguma coisa de ex­ traordinário se passava; montou a cavalo e, fazendo sinal a Lírio, lan­ çou-se, seguido do seu esquadrão de ginetes, oiteiro acima, à rédea solta. Não tardou que percebesse as vozes: o mar! o mar! ao passo que os soldados se abraçavam uns aos outros, ébrios de alegria. Então o resto do exército, infantaria, cavaleiros, trem, deitou a correr em peso para o pino do monte. E à vista do mar sem fim, foi um delírio. Os soldados pulavam, cantavam, punham-se a chorar como crianças. Beijavam os capitães e oficiais, e a exultação não tinha limites. De re­ pente, sem que ninguém desse ordem, cada qual correu a buscar pe­ dras; com elas elevaram um montículo, sobre que depuseram, em guisa de oferenda aos Deuses, muitos coiros de vaca ainda por tanar, bastões e escudos de verga conquistados ao inimigo. O guia, à medi­ da que os gregos ajuntavam estes troféus, ia-os fazendo em bocados e exortava a todos a fazerem o mesmo, para que não tivessem mais préstimo. Ofereceram a este homem, do monte comum, um cavalo, uma taça de prata, uma roupa à persa e dez dáricos. Do que mais se agradou foi de anéis, e muitos soldados deram-lhe os que traziam nos dedos. Ensinou, ainda, aos gregos uma aldeia em que podiam acam­ par e o caminho que conduzia à terra dos Macrões, e, quando baixou a noite, fez os seus adeuses e despediu.

VIII

Andaram dez parasangas em três jornadas pela terra dos Macrões dentro. Logo no primeiro dia chegaram à ribeira que faz estrema en­ tre eles e os Citas. A mão direita estendia-se um terreno áspero e bas­ tante íngreme, à esquerda serpenteava o rio em que vinha lançar-se o riacho que servia de raia entre os dois povos. Nas margens, er­ guiam-se processionalmente duas filas de árvores altas, delgadas e bastas. Os gregos, para passar, puseram-se a cortá-las com grande desembaraço, na pressa em que estavam de sair dali para fora. Do outro lado do riacho os macrões esperavam-nos, formados em linha de batalha, armados de lanças e escudos de verga, e com baios de cri­ na. Encorajavam-se uns aos outros e iam lançando pedras por cima do rio. Mas as fundas não tinham alcance bastante para as pedras chegarem a ser perigosas. Foi então que um peltasta, que diziam ter sido escravo em Ate­ nas, veio ter com Xenofonte e disse-lhe que conhecia a língua do gentio. — Ou eu muito me engano ou estamos na terra em que nasci — acrescentou. — Se não achas mal, vou falar com estes bárbaros. — A vontade — respondeu-lhe Xenofonte. — Vê se sabes que espécie de gente são. Fala-lhes já daqui... O soldado formulou a pergunta na aravia, que presumiu ser a de­ les, e eles responderam que eram macrões. — Porque é que pegam em armas contra nós? — tornou a dizer Xenofonte. — Porque lhe invadimos o território — volveu a dizer o soldado depois de falar com eles.

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— Afiança-lhes que não temos vontade nenhuma de lhes fazer mal. Só temos um empenho depois de ter feito guerra a Artaxerxes: voltar à Grécia. Após muitas perguntas e respostas, inquiriram os macrões se os gregos estavam dispostos a dar um penhor das suas boas intenções. E como se lhes respondesse que estavam prontos a dar e a receber, os macrões entregaram aos gregos uma lança, que tal era a etiqueta quando se juravam paz. Dos dois lados se invocou o testemunho das divindades. Concluído o tratado, os macrões cortaram de sociedade com os gregos as sebes que era preciso para lhes dar caminho. E, não recean­ do mais ver-se no meio deles, forneceram-lhes por dinheiro quantos mantimentos quiseram e guiaram-nos, durante três dias de marcha, até os montes da Cólquida. Foi num destes montes, alto embora acessível, que os colcos apareceram formados em linha de batalha. Os gregos dispuseram-se em falanges, prestes a escalar o cerro e cair sobre o inimigo, mas, antes, os capitães acharam por bem ventilar a táctica que convinha adoptar. Xenofonte foi de parecer que se avançasse contra o inimigo por manípulos, dada a dificuldade que ha­ via, com o terreno acidentado, em manter outra espécie de formatu­ ra. Podia acontecer ainda que, avançando em profundidade, fossem envolvidos pelo inimigo, que dispunha de muita gente. Oferecendo frente muito vasta, não eram também pequenos, por outro lado, os inconvenientes. Podia a linha ser cortada, o que não seria para admi­ rar com a profusão de inimigos, tendo a possibilidade de arremessar chuveiros e chuveiros de dardos. E se a ruptura se desse, toda a linha da hoste se ressentiria indubitavelmente. A táctica mais recomendá­ vel para o caso consistia, portanto, em lançar ao assalto colunas de infantaria, espaçadas o que basta para ultrapassar pelos extremos as alas do inimigo. Deste modo poderiam envolvê-lo e as melhores tropas gregas de choque desenvolver toda a sua vis. Infiltrarem-se os bárbaros por entre as colunas não lhe parecia possível; seria sujeita­ rem-se a ser atacados de flanco pelos dois lados. E cortarem eles as colunas, projectadas em cunha, muito menos. Admitindo que uma das colunas cedesse, outra lhe prestaria apoio. E desde que a primeira unidade tivesse atingido os cimos, fatalmente o inimigo era desaloja­ do da serra.

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Adoptaram este plano e a hoste foi distribuída em colunas. Xenofonte, antes de a trombeta dar o sinal, foi dumas para as outras, di­ zendo: — Camaradas, aquela gente é o último empecilho que nos resta a vencer. Temos que fazê-los em estilhas. Ordenadas as colunas, contaram-se oitenta, cada uma de cem ho­ mens, tudo infantaria pesada. Os peltastas e archeiros formaram em três corpos; a um foi destinada a ala direita do inimigo; a outro, a ala esquerda; ao terceiro, o centro. Cada corpo compunha-se duns seis­ centos homens. Os capitães invocaram os Deuses; de pean na boca os soldados abalaram a passo dobrado. Quirísofo e Xenofonte, à testa dos peltas­ tas, romperam em acelerado a contornar as alas do inimigo. Este, vendo-os, precipitou-se ao seu encontro, inflectindo parte sobre a di­ reita, parte sobre a esquerda, deste modo se cavando ao centro um vazio imenso. Foi por isso que aos peltastas árcades, comandados por Esquines, de Acarnânia, se figurou que os colcos fugiam em de­ bandada. E correr pela serra acima, entre altos gritos, foi obra dum instante. Foram eles os primeiros que chegaram ao alto. Seguiram-se-lhes os hoplitas árcades, sob o comando de Cleanor, de Orcómeno. Apavorados com arremetida tão intrépida, os bárbaros vacilaram um instante e lançaram-se em fuga desabalada. Na serra havia muitas aldeias, ricas e fartas. Os gregos alojaram-se nelas e o que mais os espantou foi a grande quantidade de enxa­ mes de abelhas que havia pelas quebradas. E como se pusessem a co­ mer os favos à boca cheia, veio-lhes grande desmancho do corpo, acompanhado de delírio. Vómitos e disenterias enfraqueceram-nos tanto que mal se podiam ter nas pernas. Aqueles que se tinham limi­ tado a provar pareciam ébrios; os que tinham comido à farta davam ideia de loucos furiosos e de quem ia, dum momento para o outro, exalar o último sopro. Os soldados deitavam-se no chão ao compri­ do, como depois duma derrota, tomados de desfalecimento. No dia seguinte ao da ingestão dos favos, ninguém, porém, tinha morrido e o delírio cessou quase à mesma hora em que tinha começado na véspera. No terceiro e quarto dia levantaram-se fatigados, como se acabassem de tomar grande medicina.

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Dali, andaram sete parasangas em duas jornadas e chegaram a Trebizonda, cidade grega, sobre o Ponto Euxino, na Cólquida. Era uma das colónias de Sinope, e aí acamparam coisa de mês, pilhando no interior. Os trebizondinos, que à chegada lhes trouxeram de pre­ sente muitos bois, farinha de cevada, vinhos, costumavam ir feirar dentro do arraial. Por isso fácil lhes foi servirem de intermediários entre os gregos e os colcos, que acabaram por oferecer, em sinal de hospitalidade, os bois da praxe. Os gregos, a certa altura, trataram de preparar o holocausto que tinham prometido à divindade. Tinham bois de sobra para sacrificar a Zeus, salvador, a Hércules, que tão bem os guiara, e aos outros Deuses benignos. Realizariam também jogos de força, e Dracôncio, de Esparta, foi encarregado de preparar as corridas e presidir à luta. Este grego tinha sido banido da sua terra, desde criança, por ter invo­ luntariamente matado um amiguinho da sua idade, brincando com um punhal. No dia determinado, celebrou-se o holocausto. As peles das víti­ mas foram dadas a Dracôncio, após o que levou os corredores para a pista designada. — Aqui? — observaram-lhe, ante o terreno que era irregular e arborizado. — Aqui, pois então. Melhor sítio não podia haver para se correr em qualquer direcção. Quem cair, melhor sentirá a queda. Mocinhos, na maior parte prisioneiros, tomaram parte nas corri­ das; cretenses em número superior a sessenta inscreveram-se na cor­ rida do dólico-, outros jogavam as lutas, o pugilato e o pancrácio. O espectáculo decorreu com entusiasmo, galhardia, e a maior e mais leal emulação. Houve ainda corridas de cavalos; os cavaleiros desciam a escarpa abrupta e na orla da praia, junto do altar, viravam de rédea. Quando desciam, uns rolavam por cima dos outros; a subir era a pas­ so e impando que os cavalos o faziam. De todos os lados se ouviam gritos, risos, imprecações, uns que exortavam, outros que escarne­ ciam.

LIVRO QUINTO

I

Os soldados reuniram-se em assembleia para decidir o rumo que deviam dar à vida. Antileão, de Túrio, foi o primeiro a ter a palavra: — A minha opinião, camaradas, é que estou farto de andar com a mochila às costas, de marchar, de correr, de carregar as armas, an­ dar na forma, fazer guardas, batalhar. Uma vez que estamos à beira-mar, porque não hei-de tomar um navio e chegar à Grécia como Ulisses, deitado na tolda, de papo para o ar? Estas palavras levantaram grande algazarra; os soldados gritavam: — Assim é que é! Vamos por mar! Um segundo orador abundou nos votos de Antileão, de modo mais concreto ainda. Aplaudiram todos. Quirísofo ergueu-se depois e disse: — Gregos, sou amigo de Anaxíbio, que ocupa agora o posto de almirante. Se assim o entenderdes, vou ter com ele de vossa parte, e espero voltar com as trirremes e transportes necessários. Uma vez que quereis embarcar, só vos digo que espereis o meu regresso; con­ to demorar-me pouco. Os soldados deram palmas e assentaram que Quirísofo se puses­ se de velas o mais cedo possível. Após ele falou Xenofonte: — Enquanto Quirísofo vai buscar os navios, bem entendido que ficamos aqui. Por isso, quero falar-vos do que convém fazer neste meio tempo. Primeiro que tudo, temos que ir procurar mantimentos por essas terras inimigas, onde os haja. O que aparece no mercado não basta, e poucos são dentre vós os que estão nas condições de pagar

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com o rico dinheirinho do seu bolso. Se fôssemos por mantimentos, sem tomar as devidas precauções, é natural que nos saísse caro. Sou de parecer, pois, que se pilhe o vizinho, que se vá pela comarca den­ tro até onde seja mister, mas que com outros fins ninguém arrede pa­ ra longe, já que tais digressões nos podem ser funestas. Pilhar, sim, mas em bando. O alvitre foi aprovado. E Xenofonte tornou: — Ouvi: ides à pilhagem, pois que não há outro remédio. Para desejar, porém, é que todos aqueles que se proponham fazê-lo previ­ nam os seus capitães e digam aonde vão. Deste modo ficaremos de atalaia para o que der e vier. Em caso de necessidade saberemos aon­ de acudir. Por outra, pode acontecer que algumas cabeças esturradas e sem experiência maquinem qualquer empreendimento arriscado; é bom que antes ouçam os conselhos e advertências de quem os po­ de dar. Portanto, nada de dissimulações... Este segundo alvitre foi aprovado também. E Xenofonte prosse­ guiu: — Considerai agora o seguinte: o inimigo pode cair sobre o nos­ so campo e fazer as presas que puder; está no seu direito. Fomos nós os primeiros que pilhámos o que era dele. Mora nos altos, é-lhe fácil, pois nós estamos cá nos baixos. Por isso é absolutamente necessário postar sentinelas em volta do campo. Se estivermos de alerta, poucas probabilidades ficarão ao inimigo de nos colher de surpresa. Outro ponto ainda para que chamo a vossa atenção: se tivéssemos a certeza de que Quirísofo voltava com os navios suficientes para nos trans­ portar, bem ia. Mas suponhamos que não. Neste caso há toda a van­ tagem em arranjarmos nós mesmos o maior número de navios que nos for possível. Se Quirísofo traz alguns, com os que cá estejam, poder-se-á fazer o transporte do exército à vontade e comodamente. Se não traz, remediar-nos-emos com os nossos. Ora, daqui vêem-se passar muitos navios ao largo da costa. A questão é que Trebizonda ponha à nossa disposição algumas naus de guerra. Com elas iríamos caçar os navios mercantes, e guardá-los-íamos aqui, tirando-lhes os lemes, até que tivéssemos número suficiente. Que dizeis? Aprovaram incondicionalmente tal alvitre. — E uma vez que estais de acordo — proferiu — parece-me equitativo que os gastos de alimentação com a tripulação dos navios,

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que venhamos a requisitar, sejam custeados por nós e se fixe de ante­ mão o salário que os homens hão-de ganhar na travessia para a Gré­ cia; eles para que não percam, nós para que saibamos com que temos a contar. Sou ainda de parecer que, para o caso em que não se apa­ nhem os navios mercantes necessários, se convidem as cidades marí­ timas a consertar as estradas que estão em mau estado. O terror que inspiramos e o desejo de se verem livres de nós levá-las-ão a anuir ao nosso pedido. Puseram-se todos a gritar que não era preciso consertar os cami­ nhos. Xenofonte reconheceu quanto havia de cegueira naquela assuada, mas não recorreu à votação. Em segredo soube mover as cidades marítimas a empreender o arranjo necessário das estradas, persuadin­ do-as de que quanto mais depressa elas estivessem reparadas mais depressa se desembaraçavam deles. Trebizonda pôs às suas ordens um navio de cinquenta remos, cujo comando confiaram a Dexipo, da Lacónia. Mas este, mal se apanhou a bordo, desertou do Ponto Euxino. Teve mais tarde o prémio que merecia. Envolvido numa intriga da corte de Seutes, na Trácia, foi morto por Nicandro, seu compa­ triota. Além daquela nau, conseguiram os gregos que lhes fornecessem outra de trinta remos. Ficou a comandá-la Polícrates, de Atenas, que arrebanhou não poucos navios para Trebizonda. Tiraram-lhes a carga, que desembarcaram e puseram a bom recato; com os navios cru­ zavam, por sua vez, ao longo da costa. Entretanto, os soldados saíam a pilhar, com êxito umas vezes, outras voltando com as mãos a abanar. Cleeneto tentou uma opera­ ção deste género com gente sua e a dum oficial seu amigo. O posto inimigo era de difícil acesso, e ali deixou a vida e muitos dos gregos que o acompanhavam.

II

Como faltassem mantimentos e fosse impossível aos soldados ir por eles e voltar no mesmo dia, Xenofonte tomou guias em Trebizonda e, deixando metade do exército no campo, dirigiu-se com a outra metade contra os Drilas. Era forçado a tomar estas disposi­ ções porque os Colcos, expulsos de suas casas, ao primeiro descuido cairiam sobre o arraial. Os guias não lhes ensinavam lugares perto, onde seria fácil abastecerem-se, por esses lugares fazerem parte de território amigo, mas de boa vontade os levaram aos Drilas, de quem tinham razões de queixa. De todos os povos ribeirinhos do Ponto Euxino eram estes os mais belicosos; a região era acidentada e agreste. Os gregos atravessaram a raia e logo os Drilas começaram a reti­ rar, ao mesmo tempo que iam queimando tudo atrás deles. Um pou­ co de gado, porcos e, mormente, bois, foi tudo quanto puderam salvar do incêndio. Mas os Drilas tinham a sua capital, onde se re­ fugiavam e depositavam as riquezas, e os gregos deitaram-se lá. Dir-se-ia uma praça forte, protegida por uma ravina bastante profun­ da e abrupta. Precisamente, estavam eles a recolher dentro de muros as manadas de gado e os carretos de coisas mais preciosas, quando apareceram os peltastas. Estes tinham-se adiantado os seus cinco ou seis estádios da coluna e, assim que viram toda aquela azáfama na metrópole dos Drilas, não estiveram com meias medidas. Atiraram-se para a frente e toca a assaltar a praça. Seriam, ao todo, com os doríforos, ou carregadores de saque, obra de seus dois mil homens, for­ ça insuficiente para o cometimento, pois se tratava duma espécie de

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cidadela, com fosso, e tranqueira de paus flanqueada de torres de ma­ deira. Tanto assim que, depois de ter passado a ravina, pensaram em retirar. Mal porém viravam costas, os Drilas saltavam-lhes às canelas; fugir, mesmo, não podiam por o caminho até a ravina ser tão estreito que não cabia mais que um de frente. A situação tornava-se crítica e mandaram recado a Xenofonte que marchava com os hoplitas. O mensageiro foi a correr e disse àquele capitão: — A infantaria ligeira está às portas da praça, cheia como um ovo de víveres e coisas boas. Mas não pode avançar, porque não se sente com forças para isso. Ainda o pior de tudo é que, se não pode avançar muito menos pode retroceder, que os Drilas não deixam. Xenofonte, depois de se informar circunstanciadamente do que ocorria, levou a sua gente até a borda do fosso. Uma vez ali mandou descansar armas e com os oficiais apenas passou a ravina. Entre eles perguntavam-se qual era preferível: mandar retirar os peltastas ou avançar com a infantaria pesada e acometer a fortaleza. Parecia im­ possível recuar sem perder muita gente, enquanto que tomar a praça não se afigurava aos oficiais coisa do outro mundo. Xenofonte foi também deste parecer, tanto mais que as vítimas, consultadas pelos arúspices, davam bom vaticínio, embora houvesse luta. Em cumpri­ mento de tal resolução, os oficiais de hoplitas ocuparam-se em fazer atravessar a ravina à sua gente enquanto Xenofonte reagrupava os peltastas, fazendo-lhes marcar passo ao pé de si. Assim que a infanta­ ria pesada chegou, mandou que cada um dos oficiais dispusesse a sua coluna pela maneira que lhe parecesse mais eficaz, com isso queren­ do estimular-lhes a emulação e espírito de iniciativa. E, enquanto tal disposição se efectivava, deu voz aos peltastas para que avançassem, a mão na correia do dardo, aos archeiros que tivessem a seta sobre a corda, aos gimnetos de terem a patrona bem cheia de pedras, de modo a poderem arremessá-las sobre o inimigo à primeira voz. Ultimados os preparativos, oficiais e soldados a postos, à vista to­ dos uns dos outros por a conformação do terreno lhes impor a for­ matura em crescente, cantaram o pean. A trombeta, seguidamente, deu sinal e as tropas lançaram-se à frente a passo dobrado, soltando gritos de guerra. Dardos, setas, pedras de funda e pedras jogadas à mão riscaram o ar como chuva torrencial. E não faltaram tições in­ flamados atirados para as torres.

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XENOFONTE

Perante tão intensa acometida, o inimigo desamparou tranqueira e torres, e Agásias, de Estinfalo, e Filoxeno, de Péleno, despiram a couraça para poderem saltar dentro; outros seguiram-lhes o exem­ plo, içando-se ao ombro uns dos outros. Assim puderam penetrar na cidadela. Uma vez ali, sem esperar mais sinal, lançaram-se de roldão, acutilando e deitando a unha ao que encontravam. A título de prudência, Xenofonte conservara-se às portas, segurando consigo o maior nú­ mero possível de soldados. Em verdade, não tardou muito que gran­ de clamor soasse. Ao mesmo tempo, os soldados fugiam de dentro, uns carregados, outros sem nada, muitos deles feridos. Que era, que não era, apurou-se que havia um reduto no interior da praça; do qual tinha irrompido inesperadamente contra os gregos grande e alentada força de inimigos. Xenofonte, então, mandou publicar pelo arauto Tólmides que todos aqueles que quisessem exercer o direito do saque, podiam fa­ zê-lo; entrada franca. E logo uma vaga de gente se precipitou para dentro da praça, fazendo recuar os fugitivos e empurrando os perse­ guidores na sua dianteira até refluírem para onde vieram. Tudo o que havia fora do fortim foi pilhado numa volta de mão, continuando acertadamente os hoplitas postados nos caminhos e a guardar a tran­ queira. Entretanto, Xenofonte e os oficiais inquiriram se havia ou não maneira de tomar o reduto. Se havia, era a retirada assegurada a são e salvo; se não, a retirada afigurava-se-lhes extremamente peri­ gosa. Depois de demorado exame concluíram que não havia nada a fazer, e trataram de preparar a retirada. Arrancaram as estacas da tranqueira e mandaram adiante os gregos que já ali não eram de ne­ nhum préstimo, as pessoas carregadas com o saque, e a maior parte dos hoplitas. Ficaram apenas aqueles em que os oficiais depositavam inteira confiança pela valentia e robustez. Mal começou a retirada, os inimigos caíram sobre eles; eram mui­ tos, armados de escudos de verga, lanças, grevas e capacetes paflagónios. Uns atacaram a peito descoberto, outros subiram para as casas e de lá atiravam sobre os gregos bocados de trave e caibros. Deste modo, embora num volta-cara os pudessem encurralar novamente no reduto, havia tanto perigo em ficar como em retroceder. A noite,

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no entretanto, baixou, redobrando com isso a inquietação dos gre­ gos. E achavam-se perplexos, tomados de ansiedade, quando os Deuses os iluminaram. Uma casa, à direita deles, subitamente incen­ diou-se sem que se visse criatura humana a pegar-lhe lume. Mal dessa casa os telhados vieram abaixo, quantos bárbaros estavam naquele correr de moradias deitaram a fugir. Xenofonte aproveitou-se de li­ ção tão providencial e mandou chegar fogo às casas da esquerda. Eram de madeira e não levaram muito tempo a flamejar; os bárbaros que se tinham alojado dentro delas, por sua vez, evacuaram-nas. Res­ tavam os inimigos que atacavam de frente. Xenofonte mandou juntar no meio do caminho quanta lenha e madeira pôde haver. E, uma vez a rima feita, aproximou o lume. Dali a pouco tudo estava reduzido a cinzas, casas, tranqueiras, torres, salvo a cidadela, propriamente dita. No dia seguinte os gregos retiraram para o campo com os manti­ mentos que tinham podido arrebatar. Mas como receassem a descida para Trebizonda, por ser muito em declive e apertada, imaginaram uma falsa cilada. Um mísio chamou dez cretenses e foi esconder-se num bosque, fingindo ter-se acachapado sem que o inimigo desse conta. Mas pelos reflexos dos capacetes, filtrados através da ramaria, bem se via ao longe que lá estavam. Os inimigos contavam ali, pois, com uma emboscada. Quando o mísio viu o exército a coberto de más surpresas, passou sinal aos seus para se porem ao fresco. Os cre­ tenses largaram a fugir pelo mato fora, dizendo depois que não faltou muito para serem apanhados, e chegaram a salvo ao campo. O mísio meteu pela estrada e teve que bradar por socorro. Acudiram-lhe, mas ninguém o livrou de ficar ferido. Os soldados, que saíram em seu au­ xílio, tiveram que retirar às arrecuas debaixo da lança dos inimigos, enquanto alguns cretenses os protegiam, disparando os arcos. Deste modo conseguiram chegar os gregos ao arraial sem ter perdido um só homem.

Ill

Quirísofo não voltava; os mantimentos iam escasseando; os na­ vios eram insuficientes para transportar as tropas todas e não havia maneira de arranjar mais. Resolveu-se partir. Embarcaram os doentes e inválidos, os soldados de mais de quarenta anos, crianças e mulhe­ res e toda a impedimenta dispensável. Entregaram a direcção de tudo a Filésio e Sofeneto, os capitães mais idosos, e a frota largou velas. O restante exército pôs-se em marcha por terra. Tinham sido repara­ dos os caminhos. Em três dias deitaram a Cerasunte, cidade grega da Cólquida, porto de mar e colónia de Sinope. Estiveram ali acampados dez dias e os capitães passaram revista às tropas. O exército montava a oito mil e seiscentos homens. A este número estava reduzido o exército de mais de dez mil homens com as baixas sofridas em combate e causadas pelas intempéries ou por doença. Repartiram o dinheiro proveniente da venda dos prisioneiros de­ pois de tirarem o dízimo que competia a Apoio e a Diana de Efeso. Cada um dos capitães foi encarregado de guardar uma parte da quan­ tia pertencente às divindades; a de Quirísofo foi entregue a Neão, de Asineia. Xenofonte tinha prometido consagrar a Apoio todo o di­ nheiro que lhe pertencesse; assim fez, entregando-o à tesouraria de Delfos e inscrevendo com o seu nome, na lista dos doadores, o no­ me de Próxeno, de quem fora hóspede e amigo, vítima de Artaxerxes. Quanto à parte de Diana, no momento em que deixou a Ásia com Agesilau, a caminho da Beócia, entregou-a a Megabiso, tesourei­ ro da Deusa, com esta recomendação: devolver-lha no caso em que

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sobrevivesse aos perigos que ia arrostar; convertê-la na oferenda que se lhe afigurasse mais grata à Deusa, se soubesse que tinha morrido. Aconteceu que estando Xenofonte, exilado da pátria, a residir em Cilonte, cidade edificada pelos Lacedemónios, perto de Olímpia, Megabiso veio assistir aos jogos Olímpicos, e encontraram-se. Confor­ me fora estipulado, o tesoureiro restituiu-lhe o dinheiro. Com ele comprou Xenofonte uma terra que consagrou a Diana, regada pelo Seleno, rio que tem o mesmo nome que um outro que corre em Efeso, junto do templo da Deusa. Em ambos os rios se encontram pei­ xes e mariscos; mas na propriedade de Cilonte há caça de toda a qua­ lidade. Com o dinheiro do voto erigiu ainda Xenofonte um templo à Deusa com altar próprio, no qual anualmente lhe oferece um sacri­ fício, custeado pelo dízimo tirado do produto das colheitas. Concorre meio mundo, de Cilonte e dos arredores, homens e mulheres, em tra­ jes de festa. A Deusa oferece aos romeiros pãezinhos de cevada, vi­ nho, frutas secas, carne das vítimas engordadas nos pastos sagrados, e caça. Para o dia, com efeito, os filhos de Xenofonte fazem uma ca­ çada em que toma parte todo o bicho-careta. Quer ali na fazenda, quer nas coutadas de Fóloa, abatem muitos javalis, veados e cabritos monteses. Fóloa fica no caminho de Olímpia para Esparta, a cerca de vinte estádios do templo de Júpiter. Na cerca, que se dilata por mon­ tes e vales, há grandes pradarias em que se cria toda a espécie de ga­ do. Quem vai às festas aproveita para se abastecer. Em volta do tem­ plo plantaram um pomar de boa e excelente fruta. O edifício parece a miniatura do de Efeso e a própria estátua da Deusa, de madeira, lembra também a de Éfeso, tanto quanto o pau de cipreste se pode parecer com o oiro. Ali perto ergue-se uma coluna com esta inscri­ ção: Estas terras são foro de Diana. Quem as possuir e cultivar tem que pagar o dízimo para a festividade. Tem ainda obrigação de cuidar do templo. Se o não ficçer, a Deusa se vingará.

IV

De Cerasunte, em que vieram a encontrar-se, uns continuaram a viagem por mar, outros por terra. Estes, uma vez chegados à fron­ teira dos Mossínecos, deputaram-lhes Timesiteu, de Trebizonda, que se dava muito com eles, a perguntar se, ao atravessarem o território, deviam fazê-lo como amigos ou inimigos. Responderam, fiados na força das suas praças de guerra, que não davam licença de passar. Timesiteu informou então que os Mossínecos de Oeste andavam em guerra com aqueles, e os gregos lembraram-se de propor-lhes aliança ofensiva e defensiva. Timesiteu foi-lhes despachado como ne­ gociador e tão bem se soube haver que voltou com os chefes da tri­ bo. Na reunião que tiveram, presentes todos os capitães, Xenofonte disse-lhes, servindo Timesiteu de língua: — Mossínecos: é intenção nossa voltar à Grécia por terra, por­ que não temos navios suficientes para toda a gente. Os patrícios com quem andais em guerra não querem deixar-nos passar às boas. Se que­ reis aliar-vos connosco, tendes uma magnífica ocasião para vos vingar­ des dos ultrajes e prejuízos que tendes recebido deles. Reflecti... O chefe dos Mossínecos respondeu que aceitavam a aliança. — Bem; vejamos agora que espécie de auxílio nos prestais... — Estamos prontos a tomar o inimigo de revés e mandar-vos uma esquadra com gente que pode muito bem servir-vos de tropa auxiliar. Selado o pacto com juramentos de parte a parte, os chefes bárba­ ros partiram para as suas terras. No dia seguinte voltaram com

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trezentas canoas, cavadas num só tronco, cada uma com três ho­ mens. Desembarcaram dois, o terceiro ficou para dirigir o barco. Uma vez em terra, formaram em colunas de cem homens. Tra­ ziam escudo de verga, recoberto de coiro de vaca branca, pêlo para o exterior, em forma de folha de hera, e empunhavam chuços de seis côvados de comprimento, com haste de ferro, por conto uma bola. As túnicas mal lhes chegavam aos joelhos e eram de estopa; cobriam-se com capacetes de coiro à paflagónia, encimados por uma espiral de crina, que lhes dava ares de tiara. Pendia-lhes da cinta uma afiada machadinha. Assim que formaram, um deles lançou certa invocação aos Deu­ ses, e os outros responderam com grande cantoria. E, rompendo marcha, atravessaram entre os gregos, perfilados em linha de batalha, e a passo cadenciado avançaram para um dos fortins do inimigo. Era por uma questão de supremacia que andavam de rixa uns com os ou­ tros. Havia uma fortaleza, considerada de capital importância. Quem a ocupasse era tido como dono do país. Os de Ocidente, mais fora de mão, contestavam, alegando pertencer-lhes em comum e dando-se, portanto, como esbulhados de seus direitos. Avançaram, pois, os Mossínecos de Oeste contra os seus irmãos de Leste, acompanhados, sem autorização dos oficiais, daqueles gre­ gos a quem sorria a esperança de saque. Os outros, sem bulir, deixa­ ram-nos aproximar. Só quando os viram chegados à beira do forte é que caíram sobre eles. E fizeram-no com tanta fúria que os destro­ çaram, matando-lhes muitos homens, entre eles uns poucos de gre­ gos, seus acólitos. Foi o exército grego, que, marchando imediata­ mente em socorro dos aliados, os impediu de dar caça aos fugitivos. Os vencedores cortaram a cabeça aos mortos e mostraram-nas aos Mossínecos ocidentais e aos gregos, dançando e cantando hinos heroicos. Com tal facto muito se contristaram os gregos, não só por o inimigo vir a tomar ousio com o lance, mas por terem visto os companheiros voltar a cara, coisa nunca sucedida desde o começo da expedição. Foi por via disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse: — Camaradas, não desanimeis com o que acaba de acontecer. Em última análise vereis que ainda ganhámos mais do que perdemos.

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Primeiramente, ficámos a saber que de facto os Mossínecos andam em guerra uns com os outros; segundo, aqueles que se não importa­ ram com as nossas advertências reiteradas e lhes pareceu que a com­ panhia dos bárbaros também podia convir foram bem castigados. Pa­ ra outra vez, esses que têm o pé alceiro não se afastarão para tão longe do campo. Agora, temos de mostrar aos bárbaros, que fizeram aliança connosco, que valemos mais do que eles, e aos adversários que vão ter pela frente gente diversa daquela com que se mediram há pouco. O dia passou-se mais ou menos em preparativos. No dia seguin­ te, depois dum holocausto aos Deuses, em que se leu bom agoiro nas entranhas das vítimas, o exército tomou a sua refeição matinal e co­ meçou logo a formar em colunas. Os bárbaros foram dispostos tam­ bém em colunas, na ala esquerda. Nos intervalos das colunas, a fila da frente um pouco aquém dos hoplitas, foram postados archeiros para combater os fundibulários inimigos que eram ágeis a correr e ti­ nham a mão certa. E, de facto, mal o exército se pôs em marcha, aí apareceram eles, provocantes e audaciosos. Mas os archeiros e os peltastas repeliram-nos. O exército avançou para o ponto em que na véspera os Mossíne­ cos de Oeste tinham sido desbaratados. Esperavam ali em linha de batalha. Os primeiros a atacá-los foram os peltastas e de verdade o inimigo aguentou menos mal o embate. Apareceram porém os ho­ plitas, e debandaram. Os peltastas foram-lhes na peugada e subiram de ímpeto a encosta que levava à metrópole. Os hoplitas, esses, avan­ çaram mais lentamente, sempre em ordem de batalha. Ao atingir as primeiras casas, os bárbaros concentraram-se e volveram ao comba­ te, disparando sobre os gregos toda a espécie de projécteis, atacando-os cara a cara, para o que se serviam dos longos chuços que um ho­ mem mediano teria dificuldade em mover. Os gregos, porém, em vez de afrouxar, apertaram cada vez mais com eles. E foi tal a investida que os Mossínecos se puseram em fuga, desamparando a praça. O rei residia numa torre de madeira edi­ ficada no alto do monte. Intimado a entregar-se, preferiu morrer queimado. Da mesma maneira pereceram os homens que defendiam o reduto. A cidade foi posta a saque. Nas casas foram encontrados

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grandes depósitos de pães que, segundo dizem, os Mossínecos trans­ mitem como herança de pais para filhos. Havia lá também muito tri­ go ainda na espiga. A maior parte era da espécie denominada espelta. Em talhas, às postas, deparou-se-lhes golfinho salgado; noutras, ba­ nha do mesmo cetáceo, empregada pelos Mossínecos como o azeite pelos Gregos. Viam-se os celeiros repletos de castanhas, que costu­ mavam comer cozidas e lhes faziam as vezes de pão. E não faltava vinho, um vinho rascão quando bebido puro, perfumado e agradável se se lhe misturava água. Depois de comer e beber e entregar a praça aos seus amigos e aliados, os gregos romperam de novo à frente. Outras praças en­ contraram no caminho, umas desamparadas, outras que se entrega­ vam sem resistência. Não distavam umas das outras mais do que oi­ tenta estádios e, graças às condições acústicas do terreno, mercê duma disposição especial de côncavos e cerros, podia-se falar dumas para as outras. Assim a palavra de rendição percorreu a nação inteira. Quando os gregos entraram no território dos aliados, estes mos­ traram-lhes meninos da gente rica, criados a castanhas cozidas. Eram quase tão largos como altos, flácidos de carne e brancos de tez. Ti­ nham as costas pintaroladas de várias tintas e pela frente tatuagens de flores. Ali mesmo em público pretenderam os Mossínecos gozar-se das mulheres que os gregos traziam com eles; tal era a cortesia da terra. Mais selvagens do que estes povos e mais afastados dos costumes helénicos, não tinham ainda os gregos encontrado durante toda a ex­ pedição. A vista de toda a gente faziam o que outros costumam prati­ car à parte e, inversamente, quando estavam sós entregavam-se a actos como se estivessem em sociedade: assim falavam para si próprios, riam, e a cada passo se punham a dançar na atitude de quem mostra a espectadores invisíveis suas prendas coreográficas.

V

Os gregos gastaram oito dias a atravessar a terra dos Mossínecos, amigos e inimigos, e chegaram à dos Cálibes. Povo pequeno, pagava tributo aos Mossínecos e vivia da extracção do ferro. Em seguida a este, pisaram a terra dos Tibarenos, com seu imen­ so agro e praças fortes à beira-mar, mal defendidas. Os capitães re­ solveram tomá-las pelas armas, a fim de dar alguma coisa que pilhar aos soldados; por isso não aceitaram os presentes que lhes traziam, a título de boas-vindas, dizendo que os deixassem primeiro sacrificar aos Deuses e conhecer a divina vontade. Celebrado um grande holo­ causto, todos os adivinhos foram concordes em ler nas entranhas das vítimas que os Deuses não aprovavam semelhante guerra. Os gregos aceitaram, então, os presentes e como amigos passaram adiante, em dois dias de jornada deitando a Cotiora, cidade grega, colónia de Si­ nope, situada ainda na nação dos Tibarenos. Ali se quedaram quarenta e cinco dias. Neste meio tempo fize­ ram sacrifícios solenes aos Deuses e organizaram, povo por povo, procissões votivas. Simultaneamente cultivavam o adetismo e ginásti­ ca. Mantimentos iam buscá-los à Paflagónia e pilhavam-nos nas fa­ zendas dos Cotioritas. Estes não só se tinham negado a feirar com eles como a receber os doentes de portas adentro da cidade. Entrementes chegaram representantes de Sinope. Preocupava-os não só a cidade de Cotiora, que lhes era tributária, como o mais terri­ tório que, segundo se dizia, ia ser posto a saque. Pela boca de Hecatónimos, que passava por hábil orador, dirigiram-se assim aos gregos: — Soldados, estamos aqui enviados pela cidade de Sinope para vos felicitar, na qualidade de gregos, pelas vitórias que alcançastes

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sobre os bárbaros e vos manifestar o nosso regozijo por vos encon­ trardes entre nós sãos e salvos, depois de tão estupendos trabalhos. Na qualidade de vossos irmãos de raça, temos esperança de receber de vós demonstrações de amizade, e de modo algum agravos, tanto mais que não nos pesa na consciência ter procedido mal para con­ vosco. Ora os Cotioritas são colonos nossos e fomos nós que lhes demos a terra, conquistada aos bárbaros; por isso mesmo nos pagam, bem como os povos de Cerasunte e Trebizonda, um determinado tri­ buto. Nestas condições, o mal que lhes possais fazer, a Sinope o fa­ zeis. Com vivo desagrado soubemos que entrastes na cidade à força, que muitos exigiram boleto aos habitantes, e que vos apossais pelas hortas e pomares daquilo que vos é preciso. Não, actos desses não podemos deixar de reprová-los e se persisds, mau grado nosso, sere­ mos obrigados a coligar-nos com Córilas, os Paflagónios, e quantos aparecerem. Depois de ouvir a admonenda, Xenofonte levantou-se e respon­ deu assim em nome do exército: — Sinopenses, também nós nos congratulamos por nos vermos aqui, rijos, feros e de armas na mão. Sem isso, ser-nos-ia impossível combater o inimigo e proceder à necessária pilhagem. Enfim, eis-nos em terra grega e com gente da nossa raça. Em Trebizonda, franquea­ ram-nos o mercado e tudo o que precisávamos pagámo-lo com o nosso rico dinheiro. Em troca das honras que nos prestaram e dos presentes que nos ofereceram, prodigalizámos-lhes as nossas ho­ menagens, indo até poupar o território dos bárbaros que lhes eram afectos e combater os inimigos, contra os quais eles próprios nos hão encaminhado, fazendo-lhes quanto dano estava em nossa mão. In­ formai-vos junto dos moradores de Trebizonda com que espécie de gente estiveram a lidar. Encontram-se aí aqueles que a cidade, amicalmente, nos ofereceu por guias. Consultai-os! Mas desde já ficai sa­ bendo que nas terras em que passámos, quer de bárbaros, quer de gregos, se requisitámos víveres fizemo-lo por necessidade e não pelo prazer de vexar ninguém. Os Carducos, os Táocos, os Caldeus, não obedecem a rei nem roque; pois, apesar de serem temíveis, não tive­ mos dúvidas em pô-los contra nós pelo simples facto de precisarmos de comer e eles não quererem fornecer-no-lo às boas. Pelo contrário, os Macrões, embora incultos, puseram à nossa disposição aquilo que

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precisávamos e passámos pelo território deles como verdadeiros ami­ gos, sem nada lhes tirar pela força. Quanto aos Cotioritas, que dizeis ser vossos vassalos, que se queixem apenas de suas más cabeças. Não se comportaram connosco como amigos. Fecharam-nos as portas na cara; obstinaram-se não só em nos não receber dentro de portas co­ mo em não nos vender coisa alguma fora delas. Verdade seja que acusaram o vosso harmosta de ser o autor do procedimento adoptado contra nós. Quanto à insinuação de que nos aboletámos à viva força em casa dos vizinhos, eu vos digo: pedimos que recebessem os nossos doentes debaixo de telha. Como se não prontificassem a abrir as portas, tomámos o caminho que estava indicado, e sem praticar nenhum acto de violência fomos instalar os doentes nas casas dos moradores, onde vivem à nossa custa. Lá sentinelas às portas postá­ mos, sim, para não estarem à mercê do vosso harmosta e podermos tirá-los dali quando nos apetecer. O resto do exército, como estais a ver, dorme ao sereno e na melhor ordem, pronto a render mal com mal e bem com bem. Quanto à ameaça de vos coligardes com Córilas e os Paflagónios, paciência! Se for preciso levantar a espada contra vós, levanta-se. Já vimos pela frente inimigos mais poderosos. Mas pode acontecer que nos dê na gana de fazer dos Paflagónios amigos — nós estamos ao corrente do modo como cobiçam não apenas a vossa cidade mas os vossos portos — e não desdenharemos de ne­ nhum meio para lhes ser agradáveis. Não foi difícil de ver, depois destas palavras, quanto os colegas de Hecatónimos estavam descontentes com o seu porta-voz. Um de­ les, adiantando-se, pronunciou: — Nós não viemos para vos declarar guerra, mas sim para vos mostrar que somos vossos amigos. Se fordes a Sinope, é com os dons da hospitalidade que sereis recebidos. Desde já vamos dar or­ dem à gente daqui para vos fornecer tudo o que puderem, pois reco­ nhecemos que tendes razão. Assim se passou o entremez com Sinope. Em verdade, os Cotio­ ritas enviaram os costumados presentes da hospitalidade e os capi­ tães gregos trataram os delegados com as honras que se conferem a hóspedes de qualidade. Cordialmente conferenciaram acerca dos negócios respectivos, do itinerário e dos serviços que se podiam prestar de parte a parte.

VI

No dia seguinte os capitães mandaram tocar a reunir. Parecia-lhes bem que se deliberasse de comum acordo com os Sinopenses. Com efeito, se continuassem por terra, precisavam que eles, conhecedores a fundo da Paflagónia, lhes fornecessem guias capazes; se decidissem ir por mar, precisavam em sumo grau do porto de Sinope. Apenas ali poderiam encontrar os navios precisos para o transporte. Convida­ ram por isso os delegados para a assembleia, representando-lhes que o primeiro serviço a prestar a compatriotas era mostrarem-se bem-intencionados e dar-lhes bons conselhos. Hecatónimos foi o primeiro a usar da palavra e a sua primeira preocupação foi justificar-se de ter dito que Sinope se coligaria com os Paflagónios. O que tinha querido dizer não era que Sinope, coliga­ da com aqueles povos, fizesse guerra aos gregos, mas que, podendo ter os bárbaros como amigos, Sinope preferia-lhes a amizade dos gre­ gos. Depois, como o solicitassem a dar um conselho, invocou os Deuses e disse: — Se vos aconselho o que em minha consciência reputo o me­ lhor, que eu seja muito feliz; ao contrário, se o faço por malícia, que caiam sobre mim todos os flagelos. O que vou dizer-vos é como se fosse sagrado. Sei muito bem que, se o meu conselho sai bom, me cobrireis de bênçãos, ao contrário, não faltarão pragas. Também sei que, se eu vos disser que deveis regressar por mar, causo sérios con­ tratempos à minha terra. É ela que terá de vos dispensar os navios, enquanto que, se fordes por terra, lá vos arranjareis como puderdes. Mas o meu dever é dizer-vos o que penso, porque eu conheço por

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experiência a situação e poderio dos Paflagónios. Sei bem qual o ca­ minho que sereis obrigados a tomar. Esse caminho tanto atravessa belas planícies como cordilheiras. A certa altura mete pelo maciço fo­ ra, tão comprido que parece nunca mais ter fim. Basta um punhado de homens nos picos e ninguém, muito menos um exército, transita­ rá pelos desfiladeiros. Se duvidais, vinde comigo e eu vo-lo mostro. Aqui está o que vos sucederia na serrania. E na planície? Para a planí­ cie dispõem os Paflagónios duma cavalaria que os próprios Persas consideram superior à deles. Ainda não há muito se negou, ao ser chamada por el-rei, a acudir à sua voz. O seu comandante é cheio de opinião. Mas, dando de barato que chegais a atravessar as serras, obrando de surpresa ou mais ligeiros que o inimigo; que uma vez na planície não só venceis a célebre cavalaria, como a infantaria que so­ be a mais de cento e vinte mil homens, tendes os rios pela frente. Pri­ meiro o Termodonte, que mede três pletros de largura. Suponho que tereis a vossa dificuldade em o passar, com um inimigo numeroso pela frente e pela espalda. Em segundo lugar o íris, igualmente largo de três pletros; em terceiro lugar o Hális, que não mede menos de três estádios e que não é possível transpor sem barcos. Quem vos fornece os barcos? Depois do Hális, se conseguis passá-lo, tendes o Parténio, que também não é vadeável. Como vedes, a rota não é apenas difícil, é impraticável. Se, pelo contrário, ides por mar, não precisais de tocar mais que em Sinope, depois em Heracleia, sempre ao longo da costa. De Heracleia em diante não tendes dificuldade, tanto pela via terrestre como pela marítima; navios ali não faltam. Assim discorreu Hecatónimos. Suspeitaram uns que falava assim por simpatia por Córilas, de quem era hóspede; outros que na espe­ rança de receber presentes; ainda uns tantos que com o fim de impe­ dir que os gregos, indo por terra, causassem prejuízo no território sinopense. Fosse como fosse, os gregos assentaram que se fosse por mar. Xenofonte tomou a seguir a palavra: — Sinopenses, o exército acaba de pronunciar-se a favor da rota que vós lhe aconselhais. Mas nestas condições: se conseguirmos na­ vios suficientes, de modo que nem um só homem fique por embar­ car, vamos por mar; se, porém, acontece que uns tenham de ficar pa­ ra outros ir, não pomos pé nos navios. Sabemos à saciedade que,

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conservando-nos unidos e fortes, não se mete connosco o inimigo, e não só teremos as vidas salvas; mas não nos faltará que comer. Que o inimigo nos encontre divididos, mais fracos do que ele, e a escravi­ dão é a sorte que nos espera. Depois de ouvir estas palavras, Hecatónimos e os colegas acon­ selharam os gregos a mandar uma representação a Sinope. Foram es­ colhidos para esse fim Calímaco, de Arcádia, Aristonte, de Atenas, e Sâmolas, de Acaia. Entretanto Xenofonte, vendo aquela profusão de hoplitas, de peltastas, de archeiros, de fundibulários, de cavaleiros, que se tinham tornado excelentes soldados pela prática das armas, à beira do Ponto Euxino, onde só à custa de muitos capitais se poderia ter concentra­ do tropa tão numerosa, pensou no lustre que haveria em fundar ali uma colónia grega, ampliando assim o território nacional e o seu po­ der. Figurava-se-lhe que tal empreendimento estava votado ao mais franco êxito, dada a cópia de gente que tinha consigo, e as possibili­ dades que ofereciam aquelas paragens. Antes de manifestar a alguém o seu intento, chamou Silano, de Ambrácia, que tinha sido arúspice de Ciro, e ofereceu um sacrifício aos Deuses. Mas este, receoso que tal projecto fosse por diante, foi logo divulgá-lo. Em verdade, tinha pressa de voltar à Grécia, rico como se via com os três mil dáricos que Ciro lhe dera quando vaticinou não se travar batalha antes de dez dias, soma que conservava intacta. Ao espalhar-se tal rumor, houve ainda soldados que acharam bem fixarem-se ali; a maior parte, po­ rém, foi de parecer contrário. Aproveitando-se do boato, Timasião, de Dardânio, e Toraz, da Beócia, foram dizer aos mercadores de Sinope e de Fleracleia, pre­ sentes naquela altura, que «se não dessem um subsídio às tropas de modo a adquirir mantimentos para a viagem, arriscavam-se a vê-las ficar ali para todo o sempre. A ideia de Xenofonte era que, mal os navios chegassem ao porto, se dissesse aos soldados: comes e bebes para a travessia não há; coisa com que presenteardes a família, muito menos; mas, se quereis, temos aí navios e num ápice saltamos naque­ le ponto da costa que nos der na gana. Uma vez lá, quem quiser ficar, fica; quem não quiser, navega para a sua terra.» Os mercadores foram com a notícia à cidade, acompanhados de Eurímaco e Toraz por ordem de Timasião. E não tardou que, em

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resposta, este recebesse a promessa de ter o dinheiro que era preciso para abastecer os gregos e a frota que os havia de levar. Por isso, sa­ tisfeito com o ardil, saiu a dizer aos soldados que convocou para uma reunião: — Camaradas, não vale a pena pensar em erguer aqui casa. Nada iguala a nossa querida terra. Ouço dizer que há entre nós gregos que, sem nos consultar, acalentam tão estapafúrdio projecto e que fizeram sacrifícios aos Deuses nesse sentido. Nada, nada! Se vos decidis a embarcar antes da lua nova, garanto-vos um ciziceno de soldo por mês. Daqui vamos a Tróada, que é a minha terra; tenho a certeza que me hão-de receber de braços abertos e que nada vos há-de faltar. Da­ li posso encaminhar-vos para certos lugares onde se enche o saco. Tróada, Eólida, Frigia, a satrapia inteira de Farnabaz, todas estas re­ giões conheço-as como os meus dedos, à uma porque sou de lá, à outra porque as palmilhei palmo a palmo, na hoste de Clearco e Dercílidas. A seguir levantou-se para falar Toraz, da Beócia, que sempre in­ vejara a Xenofonte o comando supremo: — Camaradas, ficar aqui, para quê? Logo para lá do Ponto Euxino temos o Quersoneso, região fértil e opulenta, onde quem quiser estabelecer-se, estabelece-se, quem não quiser, segue adiante. Agora não deixa de ser patusco que se vão procurar terras entre os Bárbaros quando a Grécia as oferece incomparavelmente melhores. Por minha parte, responsabilizo-me do mesmo modo que Timasião pelo soldo que vos prometem. Xenofonte tinha-se conservado silencioso. Vendo o seu mutis­ mo, Filésio e Liconte, ambos aqueus, ergueram-se para significar a sua estranheza que alguns gregos, em particular Xenofonte, fossem de parecer que se ficasse ali e fizessem sacrifícios propiciatórios aos Deuses sem, antes disso, consultar o exército. Assim alvejado, Xeno­ fonte ergueu-se e disse: — Soldados, não nego que fiz sacrifícios aos Deuses e farei quantos puder no vosso interesse e no meu para que tanto os meus pensamentos como os actos redundem apenas em glória e vantagem de nós todos. Precisamente, não há muito que eu sacrificava para sa­ ber se devia pôr-vos, antes de mais nada, ao corrente dos meus projectos, ou não vos dizer palavra. Silano respondeu-me — e peço-vos

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para fixar este ponto, que é importante — que as entranhas das víti­ mas me eram favoráveis. Teve de me dizer a verdade porque sabe muito bem que, à força de assistir aos holocaustos, estou prático em matéria de adivinhação. Mas o mesmo acrescentou que nas entranhas havia sinais de insídia e conjura contra mim. E como não havia ele de estar certo do vaticínio se era o próprio que se preparava para me ca­ luniar junto de vós? Ele, só ele, propalou o boato de que eu me pro­ punha realizar os meus desígnios sem os submeter à vossa aprova­ ção. Deixai que vos diga, foi meditando na extremidade em que nos encontramos que me veio ao pensamento apoderarmo-nos duma ci­ dade qualquer, donde quem quisesse largar largava, quem não quises­ se esperaria hora melhor. Agora, uma vez que Sinope e Heracleia oferecem navios e um soldo a partir da lua nova, às mil maravilhas. Por minha parte, declaro que os meus projectos não têm mais razão de ser. Digo-o bem alto àqueles que andavam entusiasmados com eles. Mas ouvi: enquanto estiverdes unidos, como agora, bem vai; se­ reis respeitados e não vos faltarão víveres, porque, desde que o mun­ do é mundo, esta é a condição para empalmar aquilo que é do próxi­ mo. Se vos dividis e dispersais as forças, haveis de passar grandes necessidades e não hão-de faltar perigos no vosso caminho. Penso como vós: voltemos para a Grécia e castigue-se aquele que procure fugir ou demover os outros desta resolução, antes que o exército não chegue a porto seguro. Quem aprovar, erga o braço... Ergueram todos o braço. Silano, porém, rompeu a barafustar que não havia nada mais justo que deixar ir embora quem assim o dese­ jasse. Os soldados não estiveram para o ouvir e ameaçaram-no para o caso em que tivesse a veleidade de se pôr ao fresco sem os mais. Tempos depois os cidadãos de Heracleia, havendo-se certificado da decisão tomada, mandaram navios, mas quanto ao soldo prometi­ do não sopraram qualquer palavra. Timasião e Toraz, que tinham fei­ to promessas solenes, ficaram aterrorizados. Chamaram os capitães que, salvo Neão, de Asineia, substituto de Quirísofo, estavam a par das suas diligências, e foram ter com Xenofonte. Disseram-lhe que estavam arrependidos de ter discordado do seu modo de ver e que, de facto, já que não faltavam navios, o melhor era demandar a terra dos Fasianos, em que reinava o neto de Eeta, e tomar posse dela.

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— Está muito bem — respondeu Xenofonte — mas comigo não contem para fazer semelhante proposta aos soldados. Convoquem-nos, se lhes parecer, e falem-lhes. Timasião lembrou que, em vez de se convocar o exército, cada um tratasse de preparar a sua coorte para tal efeito. E separaram-se com este propósito.

VII

Chegou aos ouvidos dos soldados o que se passava. Neão dizia à boca cheia que Xenofonte, depois de ter embaído os outros capi­ tães, estava com a ideia ferrada de voltar atrás à conquista do país dos Fasianos, levando os soldados ao engano. Quando tal ouviram, os soldados deram por paus e por pedras. Pouco a pouco formaram-se ajuntamentos, vozes sediciosas soaram aqui e além, de modo que não seria para admirar que viessem a repetir-se aqueles motins duran­ te os quais foram apedrejados os emissários dos Colcos e os fiscais de géneros; com efeito, uns ficaram com a cabeça partida, outros ti­ veram que se atirar ao mar, para não ter igual sorte. Xenofonte, advertido destes pródromos de revolta, decidiu con­ vocar o exército antes que ele se reunisse de moto próprio. O arauto deitou bando e logo os soldados acorreram em chusma ao lugar indi­ cado. E Xenofonte, evitando pôr em causa os capitães que tinham ido ter com ele, disse: — Camaradas, ao que me consta dizem para aí que ando a ar­ mar-vos uma estrangeirinha que me permita levar-vos contra os Fa­ sianos. Em nome dos Deuses peço-vos que me deis atenção! Se es­ tou culpado, não me deixeis sair daqui sem sofrer o justo castigo; se, pelo contrário, se demonstrar que fui caluniado, tratai os meus detractores como eles merecem. Todos vós sabeis de que lado nasce o Sol e de que lado se põe; que tomamos a ocidente se queremos ir para a Grécia, e a oriente se pretendemos voltar ao país dos Bárba­ ros. Haverá alguém que possa passar-vos o conto do vigário, fazen­ do-vos crer que o oriente é do lado em que se põe o Sol e o ocidente

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do lado em que nasce?! Sabeis, toda a gente sabe que o vento norte atira os navios para fora do Ponto Euxino em direcção ao país dos Fasianos... Não é verdade dizer-se a cada passo, quando sopra o ven­ to norte: que belo tempo para a gente fazer-se de vela para a Grécia! Caberia na cabeça de alguém levar-vos a embarcar com vento sul? Mas suponhamos que se embarcava com calmaria. Neste caso, eu ia num navio e vós em cem, pelo menos. Como poderia eu forçar-vos ou iludir-vos se não fosse da vossa vontade navegar na minha com­ panhia? Admitamos que, mercê dos meus artifícios ou por obra de feitiçaria, vos arrastava até a terra dos Fasianos? Naturalmente de­ sembarcávamos, não? E que acontecia? A primeira coisa que aconte­ cia era vós dardes conta que não estáveis na Grécia. E eu que vos ti­ nha intrujado encontrava-me no meio de dez mil gregos, ou pouco menos, armados até os dentes. Quem era o louco que assim metia a cabeça na boca do lobo? Calou-se um instante, como a dar tempo a que meditassem no que acabava de dizer, e prosseguiu: — Não, tudo isso são invencionices de cretinos que me têm in­ veja porque vós usais para comigo duma certa consideração. E, no entanto, não dou motivos a esses estúpidos zelos. Acaso tapo a boca a alguém, se esse alguém é capaz de emitir um parecer favorável ao exército, ou estorvo alguém de combater, se lhe dá na gana para velar pela conservação própria e a de nós todos? Quando elegestes os vos­ sos chefes, atravessei-me no caminho de alguém? Estou pronto a ce­ der o meu lugar a outro. Venha ele! Será com o maior gosto que lhe passo o comando, desde que se prontifique a trabalhar de corpo e al­ ma a bem do exército. Mas não vale a pena gastar mais palavras com casos de lana-caprina. Se algum de vós imagina que podia deixar-se lograr por semelhantes mentiras, ou mesmo, que algum de vós se deixou lograr, que o diga e o demonstre. E já que aqui estamos, em­ bora vos pese, há uma coisa grave que vos quero comunicar. O exér­ cito começa a enfermar dum mal que pode acarretar consequências funestas. É tempo de meter cada um a mão na consciência, e delibe­ rarmos no meio de lhe pôr cobro, para que mais tarde não nos cha­ mem os mais celerados e reles dos viventes à face de Deus e dos ho­ mens, quer amigos quer inimigos.

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Os soldados ficaram muito intrigados ao ouvir aquelas palavras e instaram com Xenofonte para que se explicasse. Ele então reatou: — Ninguém desconhece que por essas serras fora há muitas al­ deias bárbaras, enfeudadas aos Cerasuntinos, tanto assim que os ha­ bitantes vinham vender-nos gado e os frutos dos seus hortos. Uns tantos dos nossos estiveram, ao que me consta, numa delas, essa que nos fica mais perto, a fazer compras. Pois bem, o sargento Clearato, informado que a povoação era pequena e dormia desprevenida, con­ fiada nas boas relações que mantinha connosco, foi assaltá-la de noi­ te, em segredo, no intuito de a pôr a saque. A tenção do homem era, caso a expedição tivesse êxito, não aparecer mais no arraial, e ir to­ mar, distante daqui, em certo ponto da costa, o navio que uns tantos camaradas seus, feitos com ele, teriam à espera, pondo-se, depois, ao fresco com o produto da pilhagem sem dar mais cavaco. Aconteceu, porém, que só puderam alcançar a aldeia em questão de manhãzinha e os moradores deram fé e tocaram a rebate. E defenderam-se tão bem ou tão mal do alto dos seus oiteiros que Clearato perdeu a vida no combate e com ele muitos dos que o acompanhavam. Outros pu­ deram fugir e chegaram a Cerasunte. Isto passou-se no dia em que viemos para aqui. Muitos dos nossos não tinham levantado âncoras a tempo e encontravam-se ainda no porto. Para ali deputou a aldeia tão afrontosamente atacada três dos seus anciães principais com o fim de se nos queixar da agressão havida. Como não nos encon­ trassem, levaram a deprecada aos Cerasuntinos que lhes asseguraram ter sido a agressão de que eram vítimas um acto singular, de que o exército grego lavava as mãos. Satisfeitos com tal resposta, dispu­ nham-se a embarcar para aqui com o intuito de dizer o que se passa­ ra e dar-nos todas as facilidades para o caso em que quiséssemos en­ terrar os mortos. Mas encontraram-se com alguns daqueles que tinham ido na desgraçada expedição e deviam a vida à velocidade das pernas. E, pronto, vêem-se corridos à pedra por eles e por todos os mais energúmenos que se lhes juntam, excitados por suas vozes. E quereis saber o resto? Esses três velhos que vinham ter connosco na qualidade de embaixadores morreram lapidados! Ao cabo duma pausa, Xenofonte continuou: — Estavam estes factos a ser-nos relatados pelos cerasuntinos, que tinham vindo de propósito falar connosco, e nós consternados

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a mais não poder ser, quando ouvimos no interior do acampamento grande assuada e vozes mais altas: «Mata! Mata!» Levantámo-nos a ver e não tardou que víssemos chegar muitos soldados esbaforidos, carregados uns de pedras, outros a apanharem-nas do chão. Os cerasuntinos, aterrorizados, fugiram para os navios sem esperar por mais. Era para isso; estou em dizer que alguns dos capitães também não ganharam para o susto. O que havia a fazer era deitar água na fervura e foi essa a minha intenção quando me dirigi a uns dos arruaceiros. «Que foi? Que foi?» A maior parte deles ignoravam-no mas isso não os impedia de estarem carregados de pedras. Afinal sempre topei um que me disse terem-se levantado contra os fiscais dos géneros que eram uns ladrões refinados. Enquanto o soldado me falava, aconte­ ceu passar à distância o fiscal Zelarco, que se dirigia para o cais. Um segundo soldado que parara a ouvir a nossa conversa avistou-o e, sol­ tando um grito, deitou a correr atrás dele. E eis que três, cinco, dez alucinados se lançam em perseguição do diabo, do homem, uns por aqui, outros por ali, a vozear e a correr, como na montaria a um java­ li. Os cerasuntinos que vêem isto julgam que é com eles e atiram-se ao mar. No terror pânico que se estabelece, alguns dos nossos são também empurrados para a água, e os que não sabem nadar não vol­ tam a comer mais pão. Aqui estão os bonitos feitos! Imaginai agora com que cara ficaram os cerasuntinos! Por mais que procurassem, não achavam culpas de que fossem réus contra nós. E inevitavelmen­ te deviam ser levados à conclusão de que o exército grego tinha sido tomado dum ataque de fúria como sucede aos cães danados. Agora, camaradas, peço-vos que considereis no que podem dar tropas regi­ das por semelhante disciplina. Nunca mais estareis em condições de fazer a guerra ou votar a paz, se vos aprouver tomar tais resoluções em conjunto. Não há mais vontade colectiva, mas a do atrevido que souber soprar o seu mau intento às tropas. Se vierem emissários com propostas de paz ou de qualquer outra natureza, quem quiser pode assassiná-los e ficareis assim na ignorância dos motivos que os tra­ ziam. Os capitães que nomeastes perderam a autoridade toda. Quem quer se fará vosso general e gritando «Mata! Mata!» se encontra des­ vairados que o secundem, pode mandar para o outro mundo quem

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muito bem lhe apetecer, general ou soldado raso, sem outra forma de processo. Peço-vos que mediteis um pouco quanto às obrigações em que estais para com os chefes, que são fruto da vossa vontade. Se Zelarco estava culpado, conseguiu com o despropósito pôr-se a salvo, largando velas a toda a pressa. Depois que os deputados foram lapi­ dados, que segurança podemos encontrar em Cerasunte, a menos que não estejamos de armas na mão?! Os bárbaros, que tinham mata­ do os nossos, vinham perguntar-nos se os queríamos enterrar. Hoje, depois do que se passou, ninguém poderá fazê-lo, ainda mesmo com o caduceu em punho. E quem teria coragem para desempenhar o pa­ pel de arauto? Lastimável é dizê-lo, mas não houve remédio senão pedir aos Cerasuntinos que inumassem eles os nossos infelizes com­ patriotas. Se vos parece bem, se estes feitos são dignos, dizei-o clara­ mente e aprovai-os para que, na iminência de que venham a repetir-se, cada um trate de fazer-se custodiar por uma guarda particular e arme a tenda em lugar apto a defender-se de assassinos. Se, pelo contrário, vos parecem feitos de puro banditismo, fazei-os condenar e tratemos de tomar providências de forma a que se não repitam. Doutro modo, como podemos com mãos sujas por tais abominações sacrificar ao grande Zeus! Com que consciência combateremos o ini­ migo se nos devoramos uns aos outros? Que cidade nos receberá co­ mo amigos quando assim abusamos da hospitalidade? Quem ousará vir ao nosso arraial vender mantimentos, quando souber que falta­ mos aos respeitos mais sagrados? E quanto à glória com que estáva­ mos a contar, quem poderá enaltecer celerados como nós? Porque ouvi, nós próprios trataríamos de celerados homens que se compor­ tassem como nós nos comportamos. Os soldados levantaram-se a dizer que assim não podiam conti­ nuar, de facto; que era preciso castigar severamente os cabeças de motim; e que dali em diante quem se tornasse réu de semelhantes fei­ tos fosse passado pelas armas. E ficou decidido que os capitães fizes­ sem julgar todos os actos criminosos, praticados desde a morte de Ciro até então, sendo juízes os comandantes de coorte. Em seguida a uma proposta de Xenofonte, apoiada pelos adivinhos, procedeu-se à purificação do exército.

VIII

Resolveu-se que os capitães prestassem contas da maneira como tinham procedido até então. Feito o inquérito, Filésio e Xânticles foram condenados a entrar com a quantia de vinte talentos, que a tanto subia o desfalque cometido na caixa dos navios que estavam sob a sua jurisdição, Sofeneto a uma multa de dez talentos, por falta de zelo no exercício do seu mando. Xenofonte, por sua vez, foi acu­ sado de ter maltratado e exercido sevícias nos soldados. Quando tal ouviu, Xenofonte levantou-se do seu lugar e perguntou ao primeiro queixoso: — Bati-te; em que ponto do nosso caminho te bati eu? Podes precisar? — Foi naquela altura em que estávamos enterrados na neve e mortos de frio. — Se tal fiz — respondeu Xenofonte — numa ocasião em que nos faltava tudo, não havia côdea de pão nos bornais nem gota de vi­ nho nas borrachas, a alma a rastos, o inimigo à perna, confesso, sou mais burro que os próprios burros, cuja asnidade não sofre cobro com os trabalhos que padecem. Mas hás-de explicar porque te bati?... Negaste-me alguma coisa que te pedisse e eu, de raiva, levantei a mão? Foi por causa do pagamento de dívida em atraso? Na disputa entrou história particular de ciúmes? Olha lá, estaria eu bêbado? O soldado respondeu que não tinha sido por nenhuma daquelas razões e Xenofonte tornou: — És hoplita? — Não.

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— E peltasta? — Também não. Embora homem livre, conduzia à rédea um macho, de acordo com os meus camaradas de tenda. — Não eras tu que transportavas o doente? — perguntou de sú­ bito Xenofonte, caindo na lembrança do homem. — Era eu mesmo. Para transportar o doente, atiraste-me com tu­ do o que era dos parceiros ao chão. — Atirei, não; reparti as porcarias que levavas por outros, com ordem terminante de me serem apresentadas quando eu as pedisse. Foi assim ou não foi? Tu entregavas-me o doente e eu restituía-te as mas coisas. Assim é que é. Mas ouçam a história que vale a pena. Ti­ nham deixado atrás um soldado que se não aguentava nas pernas. Tudo o que sabia a respeito dele é que era um dos nossos. Reparo neste homem que aqui está e mando-lhe que leve o infeliz, sem o que nunca mais se levantava do chão. Se bem me lembro, o inimigo vi­ nha-nos na peugada... — E verdade — conveio o queixoso. — Mandei-te ir à frente com ele — volveu Xenofonte. — Eu continuei atrás, na retaguarda. Mas, eis senão quando, vou dar com este maganão a cavar uma cova, e ao lado o soldado estendido com os olhos fechados. Paro a louvar-lhe a caridade, mas eis que o homem, para quem fazia a sepultura, mexe com uma perna. «Ainda está vi­ vo!», exclamam todos. «Pois deixá-lo viver, eu é que o não levo mais», respondeste tu. Foi então que eu te bati; tu sabias muito bem, quando começaste a abrir a cova, que ele estava vivo. — Pois sim, mas lá se viu se escapou! — redarguiu o queixoso. — Não escapou, é verdade; à morte ninguém escapa e todos te­ remos a nossa hora; mas isso é razão suficiente para sermos enterra­ dos vivos? A uma disseram todos que o queixoso não recebera tantas panca­ das quantas merecia. Em seguida a este, Xenofonte propôs-se res­ ponder às várias acusações de que era alvo, para o que perguntou aos queixosos por que razão ele os maltratara. Como não quisessem res­ ponder, aquele capitão proferiu: — Sim, camaradas, confesso que bati nestes homens por terem cometido faltas graves de disciplina; quereis saber quais? Enquanto

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marcháveis em linha e aguentáveis o embate do inimigo, eles faziam-vos o favor de se deixar salvar por vós. A cada passo quebravam a formatura para correr adiante onde lhes cheirasse a rapina. Quando se tratava de saquear, sim, eram mais audaciosos do que vós e vol­ viam com as mãos mais cheias do que vós. Mas eu vos digo, se os fôsseis imitar, hoje não estava aqui um só grego, porque todos teriam perecido. Bati nesses e bati ainda num ou outro retardatário, que es­ tava desmoralizado de todo, com vontade de se entregar ao inimigo, e obriguei-o a ir para a frente. Sabia o que isso era, a hora negra e fa­ tal. Uma vez que, trespassado pelo frio, me detive a esperar que os soldados botassem mochila às costas, senti esse torpor venenoso, não me apetecendo nada de nada erguer-me dali, nem submeter o corpo à maçada do movimento. Em verdade custava pôr-se a gente em pé e andar. Mas tudo era questão de vontade e a máquina huma­ na obedecia. Assim, advertido pela experiência do perigo que havia em estar parado, quando avistava um homem sem se mexer, com ares de mosca morta, espertava-o e fazia-o caminhar adiante de mim. Com o exercício, os membros readquiriam elasticidade e a resistência que lhes é própria. Pelo contrário, a imobilidade era causa a que o sangue gelasse e os dedos se tolhessem com gangrena, como acon­ teceu a muitos homens. Pode dar-se o caso que tenha aplicado o meu cachação a este e àquele que, ralaços na marcha, impediam a coluna de levar, da vanguarda à retaguarda, um passo invariavelmente ginás­ tico, com o fim ainda de poupá-los à lança do bárbaro. Agora que lhes salvei a vida podem exigir-me contas dos castigos iníquos que lhes infligi. Se tivessem caído em poder do inimigo, a quem iriam pedir contas da pouca sorte? Falo-vos de coração nas mãos. Se puni um grego para seu bem, parece-me que mereço a penalidade em que in­ corre um pai quando castiga os filhos ou um mestre quando corrige os discípulos. Os médicos não lancetam e não cauterizam para salvar o enfermo? Agora se imaginais que procedi assim por uma questão de mau génio, o que sucedia ontem com muito mais razão se devia repetir hoje que, graças aos Deuses, me sinto plenamente à vontade, dentro do meu ser, bebendo a minha pingoleta. Mas dizei: não achas­ tes que eu tinha razão? Achastes, sim, pois, dispondo cada um de es­ pada, já que não de voto, não vi que a desembainhassem para socor­ rer os díscolos. É verdade que não me ajudastes também a meter na

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ordem os transgressores da disciplina. E quereis saber o que resul­ tou? Tornarem-se os cobardes insolentes. O fenómeno repete-se ho­ je, e se não reparai: os que na hora difícil se mostravam mais poltrões são os que hoje se permitem falar com mais arrogância. Vejam Boiscos, por exemplo, o pugilista tessálio; a pretexto de que se achava doente, não queria nem a cacete carregar com as armas; pois acabo de saber que é um dos pés-frescos mais atrevidos a pilhar o paisano de Cotiora. Se quereis usar para com este ratoneiro do tratamento que merece, é preciso fazer-lhe o contrário do que se faz aos cães de fila: prendê-lo de noite e soltá-lo de dia. O que me espanta é que, tendo eu agravado um ou outro de vós, apareçam esses tais a lavrar testemunho do agravo, e que dentre os muitos que protegi contra o frio, salvei das manápulas do inimigo, amparei na doença e na hora adversa, nem um só se mostre lembrado! Dos belos feitos que cele­ brei, e das recompensas que distribuí a este e àquele valente na medi­ da das minhas possibilidades, também ninguém guardou memória?! Pois é dever sagrado, dever primacial, lembrar-se o homem mais dos benefícios que das injúrias que lhe fazem. A estas palavras muitos gregos levantaram-se a proclamar as fine­ zas e obrigações que tinham para com Xenofonte. E foi um triunfo para ele a maneira como o debate terminou.

LIVRO SEXTO

I

Durante a estadia em Cotiora, os soldados viviam, uns do que compravam no mercado, outros do que pilhavam nos agros de Paflagónia. Os Paflagónios davam-lhes caça sempre que os apanhavam a jeito, mormente de noite àqueles que dormiam fora do arraial. Daí, rixa pegada duns com os outros. Foi neste estado de coisas que Córilas, governador da Paflagónia, enviou uma luzida embaixada, com­ posta de cavaleiros com corcéis ricamente ajaezados, a dizer que, se os gregos lhe respeitassem o território, ele por sua vez deixaria de os hostilizar. Os capitães responderam que semelhante proposta tinha de ser submetida à deliberação do exército e que para esse fim o iam convocar. Entretanto tratariam de honrá-los como hóspedes de qua­ lidade. Depois de ter imolado aos Deuses bois e outros animais to­ mados ao inimigo, foi dado um banquete que não pareceu desmere­ cer da magnificência grega. Os convivas estavam reclinados em camas de folhas e bebiam por canecas de chifre, à moda da terra. Depois que trocaram os brindes do estilo e entoaram o pean, os trácios foram os primeiros que se ergueram e, armados, executaram suas danças ao som da flauta. Saltavam ao ar e meneavam-se com grande agilidade, chocando os gládios uns contra os outros. Ao fim, um dos dançarinos feriu o seu par e todos julgaram que tinha sido a valer, tanto a cena fora mimada com arte. Os paflagónios chegaram mesmo a soltar um grito de horror. O vencedor, entretanto, despoja­ va o vencido das armas e saía cantando o sitalca. Logo a seguir, outros trácios retiravam o fingido defunto da liça, em perfeita saúde, como todos haviam acabado por compreender.

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Em seguida enienses executaram com magnetas, revestidos das armas, a pantomima da sementeira. A dança consistia no seguinte: o figurante que representava o papel de lavrador despia as armas e punha-as por terra; semeava o campo; pegava do arado e começava a lavrar, voltando-se a cada passo como alguém que tem medo. Sur­ gia o ladrão. O lavrador, mal dava conta dele, lançava mão das armas e batia-se denodadamente pelos bois. Todos os seus movimentos obedeciam a uma cadência determinada, regida pela flauta. Por fim, o ladrão amarrava o lavrador e fugia com a junta de bois, quando não era o contrário: o lavrador subjugava o bandoleiro e, mãos atrás das costas, prendia-o com a soga à canga e assim entrava com ele em casa. Seguiu-se um mísio, com uma rodela em cada braço. Dançava, manobrando-as, como se tivesse que defender-se ora de dois adver­ sários a um tempo, ora de um só. Por vezes rodopiava sobre os cal­ canhares; dava um salto de alta fantasia, cabeça para a frente, sem lar­ gar as armas, e tão depressa se deitava de joelhos como se erguia, tudo com ritmo apropriado, ao compasso da flauta. Acabou pela dança persa, percutindo os escudos um contra o outro. Este número foi dos que mais agradaram. Sucedeu-lhe um grupo de mantinenses e árcades. Tinham endos­ sado belas armaduras e fizeram a sua entrada ao som das flautas que executavam uma marcha guerreira. Entoaram o pean e puseram-se a dançar consoante é de rigor na imprecação aos Deuses. O que mais assombrava os paflagónios era vê-los a dançar revestidos das armas. O mísio apercebeu-se de tal estranheza e pediu a um árcade, cuja es­ crava era bailarina, que a deixasse vir ao tablado. Acedeu ele e a rapa­ riga vestiu-se o mais graciosamente que pôde e apareceu de adaga na mão. Com grande destreza dançou a pírrica, e os aplausos crepitaram de todos os lados. Perguntaram então os paflagónios aos gregos se as mulheres combatiam ao seu lado. E responderam-lhes: — Ora essa! Foram elas que correram o rei da Pérsia do campo para fora. Ficaram por ali naquele dia os divertimentos. No dia seguinte, os deputados foram admitidos à assembleia dos soldados. Deliberou-se que daquela data em diante não se cometeria mais nenhuma espécie

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de hostilidade de parte a parte. Concluído o pacto, os deputados par­ tiram para a sua terra e os gregos, julgando que tinham navios em nú­ mero suficiente, embarcaram e fizeram-se à vela com vento de fei­ ção, a costa de Paflagónia à mão esquerda. No dia seguinte molhavam em Harmena, porto que serve Sinope. Esta cidade é colónia de Mileto e fica nos confins da Paflagónia. Os habitantes mandaram aos gregos como presente de hospitalidade três mil moios de farinha de cevada e quinhentas ânforas de vinho. Quirísofo, inesperadamente, apareceu numa trirreme. Os soldados ficaram muito esperançados quando o viram, mas breve se lhes dissipou o contentamento. Vinha, apenas, anunciar que o almirante Anaxíbio e os seus oficiais celebravam em alta voz a gesta do exército e que lhes pagariam um soldo, desde que saíssem do Ponto. Ficaram cinco dias naquele porto. Como davam conta que se acercavam da Grécia, preocupavam-se com a ideia de não voltar de mãos a abanar. Cismaram então que valia a pena eleger um chefe úni­ co, que se faria obedecer melhor do que muitos, seria mais rápido a tomar uma deliberação, e ficaria em condições de poder tirar parti­ do das boas oportunidades que se oferecessem, dispensando confe­ rências, consultas e o infalível voto. E, trabalhados por esta ideia, lançaram os olhos para Xenofonte. Foram os comandantes de coorte os primeiros a vir ter com ele e a pô-lo a par dos desígnios do exército. Pessoalmente, depois, cada um lhe testemunhou a sua simpatia e o conjurou a aceitar o comando. Xenofonte esteve tentado a anuir. Era a maneira de dar mais lustre ao seu nome, sendo de crer que o exército lhe ficasse a dever novas finezas. Mas, sentindo-se por um lado propenso a aceitar o alto pos­ to, por outro, como a ninguém é dado ler no futuro, receava vir a perder a glória já adquirida. Daí grande perplexidade. Foi neste es­ tado de espírito que se decidiu a consultar os Deuses. Ofereceu duas vítimas a Júpiter Rei, ao qual o oráculo de Delfos lhe tinha aconse­ lhado fazer holocaustos. Era também crença sua que fora ele, o To­ nante, que lhe inspirara o sonho que tivera quando o investiram com outros do mando de capitão a fim de conduzir os gregos para fora da Pérsia. Lembrava-se que, ao partir de Efeso para ser apresentado a Ciro, ouvira à sua direita o grasnido duma águia pousando em terra.

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O adivinho que então o acompanhava vaticinou-lhe logo ali que tal sinal lhe augurava um papel distinto e glorioso embora cheio de espi­ nhos, porquanto todas as demais aves apenas se atrevem a tocar na águia quando está no chão. Não eram todavia riquezas — acrescen­ tou o adivinho — que lhe prometia aquele augúrio, uma vez que é apenas no voo que a águia faz preia. Celebrou pois Xenofonte o sacrifício divino, e Júpiter advertiu-o manifestamente que não só não devia apetecer o comando supremo, mas lhe cumpria rejeitá-lo se fosse eleito. Entretanto o exército insta­ va unanimemente pela eleição dum chefe e o nome de Xenofonte andava na boca de todos. Quando se tornou evidente que, ao proceder-se à eleição, o seu nome seria votado, Xenofonte pronunciou o dis­ curso seguinte: — Soldados, a honra com que me quereis distinguir sensibiliza-me extremamente, como homem que sou. Obrigado pois e aos Deuses peço que me forneçam ensejo de vos ser útil. Não julgo, po­ rém, que vos convenha a vós nem a mim ser eu eleito generalíssimo, quando há aqui um lacedemónio. Bem vedes que em tais circunstân­ cias os Lacedemónios seriam menos inclinados a prestar-vos auxílio para o caso em que viésseis a precisar. Por minha parte, não sei mes­ mo se deveria acautelar-me contra o seu possível ressentimento. É sabido que só puseram fim à guerra contra a minha pátria quando es­ ta aceitou a sua inteira hegemonia. Só depois é que cessaram as hosti­ lidades e levantaram o cerco de Atenas. Ciente destes factos, não se­ ria atentar contra a sua autoridade, aceitando um lugar proeminente com prejuízo dum lacedemónio? Quanto à opinião comum de que a disciplina melhorará de modo considerável sob o comando único, plenamente de acordo. Por minha parte prometo subordinação abso­ luta ao chefe que elegerdes, porquanto, na guerra, qualquer acto de rebeldia equivale a conjurar-se o rebelde contra a própria salvação. Agora, se me nomeásseis vosso chefe, não estou certo que todos pensassem da mesma maneira. Em resposta a estas palavras, levantaram-se muitos a dizer que Xenofonte é que devia ser eleito chefe. Agásias, de Estinfalo, decla­ rou que achava ridículo o pretendido privilégio dos lacedemónios, e que, por esse caminho, deviam também ficar melindrados se nos

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banquetes não pusessem também um compatriota a presidir. Em vir­ tude de tal princípio, eles, que eram árcades, não tinham mesmo o di­ reito de ser comandantes de coorte. Estas palavras foram coroadas de vivos aplausos. Xenofonte capacitou-se de que era obrigação sua voltar à carga. Tomando a pala­ vra disse: — Camaradas, pois que é preciso falar-vos franco, seja. Em no­ me de todos os Deuses e Deusas da corte celestial juro-vos que, des­ de que pressenti os vossos desígnios, consultei as entranhas das víti­ mas no holocausto divino. De modo tão categórico, que um leigo se não deixaria iludir, declararam que não devia aceitar o comando. Elegeram Quirísofo. A eleição terminada, este avançou para o meio da assembleia e proferiu: — Soldados, quero dizer-vos que se a vossa escolha recaísse nou­ tro nome, podia contar também com a minha inteira obediência. Acabais, inegavelmente, de prestar um grande serviço a Xenofonte. Ainda não há muito que ouvi Dexipo estar a comprometê-lo junto de Anaxíbio, e todas as razões que invoquei não foram suficientes para lhe calar a boca. Teimava que Xenofonte teria mais gosto em ver o exército comandado por Timasião, da divisão de Clearco, que era dárdano, do que por mim, por ser da Lacedemónia! Enfim, já que me elegestes, tratarei de me desempenhar de tão difícil cargo o melhor que puder. Preparem-se todos para amanhã de manhã embarcarem para Heracleia. Uma vez ali se verá o que cumpre fazer.

II

No dia seguinte os gregos puseram-se de vela com vento favorá­ vel e durante dois dias navegaram ao longo da costa. De passagem viram com vivo interesse o promontório de Jasão, onde, segundo é fama, abordou o navio «Argo», e a foz de vários rios, Termodonte, Hális, e por último o Parténio. Adiante deste, toparam Heracleia, ci­ dade grega, colónia de Mégara, situada na nação dos Mariandinos, e lançaram âncora perto da península de Aquerúsia. Foi aqui, ao que reza a tradição, que Hércules desceu aos infernos para açaimar Cérbero. Um precipício que ali há de mais de dois estádios de profundidade é apontado como vestígio certo da sua proeza. A planí­ cie é regada pelo rio Lico, largo duns dois pletros. Os habitantes de Heracleia mandaram logo aos gregos os costumados presentes de hos­ pitalidade, três mil moios de farinha de cevada, duas mil ânforas de vinho, vinte bois e cem carneiros. Havia certa perplexidade quanto à via que deviam tomar para sair do Ponto: seguir por terra ou continuar por mar, e os soldados reuniram-se para dirimir tal problema. Liconte, de Acaia, foi o primeiro que pediu a palavra e disse: — Camaradas, estou muito admirado que os nossos capitães continuem de braços cruzados, sem se preocuparem com angariar os recursos que nos são precisos. Os presentes de Heracleia chegam pa­ ra três dias, se tanto, e depois? Sou de opinião que se reclamem da ci­ dade de Heracleia três mil cizicenos, pelo menos. — Qual três mil — exclamou outro — dez mil não é de mais. O que temos a fazer é eleger os emissários que hão-de ir com a re­ presentação.

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Trataram de eleger as pessoas em questão e o primeiro nome proferido foi o de Quirísofo na qualidade de generalíssimo. Alguém pronunciou também o nome de Xenofonte. Tanto um como outro recusaram-se terminantemente a título de que não eram de opinião que se lançasse tributo de guerra a uma cidade grega. Elegeram, em consequência, para tal missão, Liconte, de Acaia, Calímaco, de Parrásia, e Agásias, de Estinfalo. E os três lá foram à cidade. Liconte che­ gou a proferir certas ameaças, caso não fosse dada satisfação ao exér­ cito. Em resposta, os Heraclenses pediram um prazo para deliberar. E à lufa-lufa mandaram acoitar dentro da cidade gados e pessoas que andavam pelos campos e fecharam as portas. Ao mesmo tempo, ao alto das muralhas mostraram-se homens armados até os dentes. Em seguida a tão estrondoso insucesso, os seus causadores não acharam nada melhor que imputá-lo aos capitães. Os árcades e aqueus, estremando-se do resto do exército, trataram de assentar no que lhes convinha fazer. Eram seus cabecilhas Calímaco, de Parrásia, e Licon­ te, de Acaia. Todos acharam que era uma vergonha um ateniense, que não trouxera tropas nenhumas consigo, comandar gente de Lacedemónia e do Peloponeso; os trabalhos eram para eles, o galardão para os outros, e se os gregos ali estavam não o deviam a mais nin­ guém. Não constituíam árcades e aqueus mais de metade do exér­ cito? O que havia a fazer, se quisessem proceder com juízo, era con­ tinuar a rota sozinhos, nomeando chefes e fazendo presas onde se lhes proporcionasse. O parecer foi adoptado e quanta gente havia de Acaia ou Arcádia na divisão de Quirísofo e de Xenofonte apartou-se para se juntar aos dissidentes. Em seguida elegeram dez capitães e tomaram todas as mais resoluções compatíveis com os seus planos. Deste modo, foi Quirísofo deposto do comando, sete dias depois de receber a investi­ dura. Xenofonte tentou ainda segurar os díscolos, persuadido de que não havia nada a ganhar em marcharem divididos. Mas Neão aconse­ lhou, por sua vez, a Quirísofo a fazer grupo à parte, uma vez que Cleandro, harmosta de Bizâncio, lhe tinha prometido vir buscá-lo com as galeras ao porto de Calpe. Daquele modo havia todas as

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possibilidades de ele e as suas tropas encontrarem o necessário trans­ porte. Quirísofo, enfadado depois do que se passara, com a sua pon­ tinha de despeito contra o exército, não soube resistir à voz da sereia. Xenofonte esteve meio tentado a abandonar as tropas e partir so­ zinho por mar. Tendo, porém, feito um sacrifício a Hércules, guia de desgarrados, para saber se devia ir-se embora ou ficar com a solda­ desca, o Deus fez-lhe sinal nas entranhas das vítimas para se manter onde estava. O exército repartiu-se, assim, em três corpos: aqueus e árcades, a um lado, ou seja cerca de quatro mil e quinhentos ho­ mens, todos hoplitas; mil e quatrocentos hoplitas e à volta de sete­ centos peltastas a outro, sob o mando de Quirísofo. Eram quase to­ dos trácios, recrutados por Clearco. Enfim, mil e setecentos hoplitas e trezentos peltastas formavam a coluna de Xenofonte. Só ele tinha cavalaria, um pequeno esquadrão com uns quarenta ginetes. Os árcades, tendo conseguido que Heracleia lhes dispensasse na­ vios, foram os primeiros a pôr-se de vela com o pensamento de cair de improviso na Bitínia e saquear à vara larga. Calpe, em plena Trácia, foi o porto escolhido para desembarcar. Quirísofo meteu a corta-mato pelo interior, logo nas abas de Heracleia. Mas assim que atin­ giu a Trácia, pôs-se a seguir a linha da costa, pois se sentia doente. Xenofonte, esse, mal puseram navios suficientes à sua disposição, fez-se à vela até os confins da Trácia e do território de Heracleia, e dali em diante seguiu a rota terrestre.

Ill

Os árcades desembarcaram de noite no porto de Calpe e, sem perda de tempo, marcharam sobre as aldeias próximas, as quais fica­ vam a uns trinta estádios de distância. Ao amanhecer dividiram-se, cada capitão lançando a sua gente sobre uma localidade. Se esta tinha ares de importante, em vez de uma coorte eram duas a atacá-la. Co­ mo ponto de concentração fixaram determinada colina. Depois de assim assentarem, os gregos investiram as aldeias, sen­ do a tal ponto inesperada a sua irrupção que além de se apoderarem de muito gado fizeram não poucos prisioneiros. Muitos dos trácios puderam, todavia, fugir a tempo, outros esca­ param-se, já presos, das mãos dos hoplitas, cujas armaduras pesadas lhes atavam os movimentos. E, armados à ligeira, em bando, caíram sobre a coorte de Esmicres, que se dirigia para o sítio aprazado, car­ regada de saque. Durante algum tempo os gregos puderam conter o inimigo, avançando sempre; mas à passagem dum barrocal, a sua resistência quebrou-se, e soldados e chefes foram passados a fio de espada. Sorte quase igual teve a coluna de Hegesandro, um dos no­ vos capitães; desta voltaram ainda oito homens. Quanto às mais, lá compareceram no lugar marcado, uns com boa maquia, outros com as mãos a abanar. Durante todo o resto do dia, os trácios chamaram-se uns aos ou­ tros de oiteiro para oiteiro, exaltados pelos êxitos obtidos. E, tendo-se juntado em grande força peltastas e cavaleiros, ao nascer do dia puseram cerco ao monte em que estavam acampados os gregos. O número deles crescia hora a hora e era impunemente que assalta­ vam os hoplitas, que não tinham tropas ligeiras em que se apoiar.

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E faziam-no acercando-se a galope das linhas gregas, despedindo os dardos e pondo-se a coberto de qualquer riposta com duas esporadas nos filhais dos cavalos. Deste modo feriam os gregos sem receber uma só lançada. E estes acabaram por não poder bulir do lugar onde estavam, nem abastecer-se de água, diante de cujo manancial os trácios se haviam atravessado já. Nesta conjuntura crítica, lançou-se a ideia de tréguas. Os trácios não estiveram, porém, de acordo quanto a entregar reféns, como queriam os gregos, e a situação perdurou assim tensa e delicada todo aquele dia... Entretanto Quirísofo chegava pelo caminho da beira-mar a Calpe sem ser molestado e Xenofonte, leva que leva pelo interior, encon­ trava-se com uns velhos a quem dirigiu a palavra. Que era feito dum outro exército grego, que tinha cortado para aquelas bandas? Sabiam? Responderam eles que esse exército estava cercado e envolvido de to­ dos os lados pelos trácios numa colina daquela comarca. Depois de re­ ferir tudo o mais que sabiam, foram entregues a uma escolta para, em caso de necessidade, os utilizarem como guias. Xenofonte, depois de postar vedetas dali em fora, convocou a sua gente e disse-lhe: — Soldados, uma parte dos árcades foi trucidada, outra parte es­ tá em riscos de perecer cercada pelos trácios. Quanto a mim penso que, se deixamos morrer esses homens, mal vai para nós, que vamos ter à perna um inimigo terrível pelo número e inchado pelo triunfo. E o melhor que temos a fazer é correr em defesa deles; se ainda é tempo, e juntarmos as forças para não ficarmos, isolados uns dos outros, tão expostos ao perigo. Em marche, pois, até a hora de ran­ cho: acampamos a seguir. Timasião; vai tu à frente com a cavalaria, batendo o terreno, sem saíres, porém, da nossa vista. Ao mesmo tempo que dava estas ordens, destacava os homens mais ágeis, tirados das tropas ligeiras, para os flancos da coluna, com ordem de irem de banda, pelos montes, a deitar o lume a tudo o que fosse susceptível de arder, e informar do que descobrissem de singu­ lar. E aos soldados foi-os exortando com estes dizeres: — E escusado pensar em retirada, por muitas razões: Heracleia fica-nos longe; Crisópolis, mais longe ainda e pela nossa frente, isto é, no caminho do inimigo. O lugar mais perto é Calpe, onde Quiríso­ fo se encontra a estas horas se os Deuses não lhe faltaram com a sua

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graça. Mas em Calpe não há navios que nos levem, nem víveres para a tropa se aguentar ali um dia só que seja. Nestas condições, deixar sucumbir os árcades para nos irmos juntar à gente de Quirísofo não me parece o melhor parddo. Vale mais romper adiante e libertar os nossos compatriotas que é o mesmo que defender as nossas vidas. Avante pois, resolvidos a cair gloriosamente ou a assinalarmo-nos por um feito heroico, como é a salvação de tantos gregos. Quem sa­ be se não anda aqui o dedo da Providência que se apraz em humilhar os soberbos e magnificar-nos a nós que respeitamos os seus desíg­ nios! Avante, e atenção às ordens que forem dadas. Xenofonte pôs-se à testa da coluna. A cavalaria, na vanguarda, os peltastas, nos flancos, iam queimando tudo o que encontravam. As mais tropas praticavam igual devastação sempre que lhes era possível. E a região em fogo anunciava o trânsito de numeroso exército. A hora própria, as tropas subiram para uma colina donde avista­ ram os fogos do inimigo, que devia encontrar-se a uma distância de quarenta estádios. Acenderam também tantas fogueiras quantas lhes foi possível, acamparam, incharam, extinguiram de pronto todo e qualquer lume e, postando guardas avançadas, cada um se acomo­ dou conforme pôde para dormir. Ao lusco-fusco da aurora as tropas fizeram as suas preces e marcharam à frente a passo estugado. Timasião, que ia à testa da coluna com a cavalaria e os guias, encontrou-se sem o esperar no cabeço em que os árcades tinham sido assediados. Mas, não descobrindo amigos nem inimigos, correu a advertir Xeno­ fonte. No sítio quanto restava de vivo era meia dúzia de velhas e ve­ lhos, uns carneiros tinhosos e umas tantas vacas. Pelos homens veio a averiguar-se que os trácios tinham retirado na véspera à noite e os gregos na manhã; não souberam dizer, porém, em que direcção. Colhidos estes informes, Xenofonte deu ordem para que se co­ messe o rancho. E logo após se puseram de jornada com a esperança de apanhar os outros gregos dali até o porto de Calpe. A certa altura, descobriram o rasto dos aqueus e dos árcades, cujo itinerário era pre­ cisamente o que eles iam seguindo. Apertaram o passo e, quando os alcançaram, abraçaram-se fraternalmente com grande regozijo de parte a parte. Perguntaram os árcades aos soldados de Xenofonte

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porque é que tinham apagado as fogueiras. Com efeito, ante a escuri­ dão súbita que se fizera, futuraram que se propunham atacar os trácios. Estes, por sua vez, deviam ter o mesmo pensamento, porque, tomados de medo, debandaram para longe. Por outro lado, como as tropas de Xenofonte não chegassem e o tempo urgisse, concluíram que tinham ficado intimidadas ao ter conhecimento da situação deles e que houvessem retirado para as bandas do mar. Eles, também, ha­ viam decidido não ficar atrás, e eis porque vinham de espora fita por aquele caminho.

IV

Passaram o dia acampados à beira-mar, sobre a restinga. Chamavam-lhe ali porto de Calpe, e o território fazia parte da Trácia asiáti­ ca. Esta nação estende-se desde a entrada do Ponto Euxino até Heracleia, e fica à mão direita dos que navegam para o Ponto. Gasta-se um dia inteiro para ir dali até Bizâncio em galera a remos. No inter­ valo não existe cidade grega ou mesmo aliada dos Gregos. Os habi­ tantes chamavam-se Trácios-Bitínios, tão inimigos dos Gregos que se apanham algum a jeito — e não é raro que ali dêem à costa por nau­ frágio ou acidente análogo — fazem-lhe sofrer os mais cruéis trata­ mentos, ao que se diz. O porto de Calpe fica a meio caminho entre Heracleia e Bizâncio para quem tomou o navio. Pelo mar dentro avança um espigão de terra, cuja ponta de rocha viva se alcandora mais de vinte órgias sobre as ondas. O istmo tem quatro pletros de largura, se tanto, todo o promontório podendo comportar uma po­ voação de dez mil almas. Fica a enseada à sombra do alcantil, com a praiazinha voltada pa­ ra o poente. Ali brota uma fonte de água doce, abundantíssima. Cres­ cem ali árvores de toda a casta, que dão madeira empregada nas construções navais. O solo vai-se empinando e formando montanha que se prolonga para o interior mais de vinte estádios; mas enquanto a faixa à beira-mar desaparece sob o copado e viridente arvoredo, pa­ ra o alto o solo é nu, embora pouco pedregoso. O resto da comarca é fértil, muito extenso e povoado. Produz cevada, trigo, toda a espécie de legumes, painço, sésamo e figo à farta. Nas encostas a videira dá-se bem e o vinho é maduro. Em suma, medra ali toda a árvore de pomar, excepto a oliveira. Aqui está o que era a região.

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Os gregos levantaram tendas à beira-mar, tendo evitado fazê-lo no sítio onde estava indicado erguer-se uma cidade, para frisar a sua animadversão por um projecto que lhes parecia andar no ar. Em ver­ dade, não fora a necessidade que obrigara a maior parte dos gregos a alistar-se no exército de Ciro. Tinham ouvido falar na sua generosi­ dade e, um pouco ao desfastio, outro pouco por aventura, ainda com esperança de ganhar a grande vaza, decidiram-se a atravessar o mar. Agora o que desejavam acima de tudo era regressar à Grécia sãos e salvos. Um dia depois de se haverem encontrado, Xenofonte celebrou um holocausto para saber o que deviam fazer, visto que a estada ali se tornava precária. Era preciso arranjar víveres a todo o custo; além disso era preciso dar sepultura aos mortos. Os vaticínios não foram nada maus e os árcades prontificaram-se a acompanhar Xenofonte. Tiveram que enterrar os mortos no próprio local em que sucumbi­ ram, pois, jazendo insepultos há cinco dias, estavam em adiantada decomposição. Mas limitaram-se a levantar os dos caminhos e a to­ dos se fizeram exéquias tão solenes como foi possível. Quanto aos que faltavam e não houve modo de encontrar os despojos, ergueram um vasto cenotáfio e nele foram depostas muitas coroas. Uma vez cumprido este dever, voltaram ao arraial para comer o rancho e go­ zar o repouso bem merecido. No dia, seguinte houve assembleia, a rogo de Agásias, de Estinfalo, e Jerónimo, da Elida, ambos comandantes de coorte e velhos ve­ teranos da Arcádia. Propuseram e foi votado que dali em diante fosse punido com pena de morte aquele que pretendesse criar divisões no exército. Deliberou-se mais que cada um voltasse a ocupar o posto que tinha anteriormente e fossem investidos no comando os antigos capitães. Quirísofo acabava de morrer com uma poção que tomara para combater a febre; em seu lugar foi eleito Neão, de Asineia. Na mesma reunião Xenofonte usou da palavra nos termos se­ guintes: — E claro como a água que temos de continuar o caminho a pé visto que não dispomos de navios. E há que dar já o sinal de partida, se não queremos morrer à fome. Por isso vos digo: celebremos o sa­ crifício aos Deuses, e cada um prepare-se para combater com mais bravura do que nunca. O inimigo está a impar de bazófia.

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Imolaram-se as vítimas na presença de Arexionte, de Arcádia, o adivinho. Silano, de Ambrácia, esse, tinha fretado uma galera em Heracleia e desaparecido sem dar rumor. As entranhas não deram bons sinais e adiou-se a partida para o dia seguinte. E tanto bastou para muitos murmurarem que o intento de Xenofonte era fundar ali uma cidade e subornara o adivinho. Foi por isso que aquele capitão mandou publicar por um arauto que quem quisesse podia assistir no dia seguinte ao holocausto das vítimas e observar as entranhas. As­ sim, quando se deu início à cerimónia, havia muitas pessoas à roda do altar. Foram sacrificadas três vítimas, a seguir umas às outras, sem se deparar sinal propício. Os soldados estavam inconsoláveis, tanto mais que tinham consumido os mantimentos e não aparecia nada a vender. Reunia-se de novo o exército e Xenofonte disse: — Bem vedes, camaradas, que continua a perseguir-nos a má sorte. Agora, como não há que comer, sacrifiquemos novamente pa­ ra que os Deuses imortais se amerceiem de nós. — Compreende-se — proferiu uma voz — que as entranhas das vítimas nos sejam desfavoráveis. Ontem abordou aqui um navio e a um marinheiro ouvi eu que Cleandro, harmosta de Bizâncio, devia estar a chegar com trirremes e navios de transporte. Em face da notícia, foram todos de opinião que se esperasse. Mas como arranjar que comer? Novamente se imolaram vítimas e to­ das três deram sinais funestos. Os soldados iam ter com Xenofonte e gritavam que tinham fome. Ele respondia que contra a vontade dos Deuses não daria um passo para fora do arraial. Celebrou-se novo sacrifício no dia seguinte; as tropas todas, mo­ vidas de ansiedade, formavam círculo em volta do altar. Novamente as vítimas responderam negativamente. Os capitães persistiam em não levar as tropas à pilhagem, mas não houve remédio senão falar-lhes. — Não há dúvida — disse Xenofonte — que o inimigo está-se concentrando para nos atacar e que o combate é inevitável. Se dei­ xássemos aqui a impedimenta, debaixo de guarda, e nos limitássemos a dar batalha, talvez os presságios nos fossem propícios... — Não, não! — exclamaram muitas vozes a um tempo. — Nada de fazer aqui castro! Volte-se a sacrificar!

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Já não havia gado miúdo; abateram-se bois. Xenofonte, para o caso em que o vaticínio fosse afirmativo, recomendara a Cleanor que tivesse tudo a postos para a surtida. Mas os presságios mais uma vez foram contrários. Neão, que sucedera a Quirísofo no posto de capitão, vendo a pe­ núria geral, quis tornar-se agradável às tropas. Apareceu-lhe um habi­ tante de Heracleia a dizer que conhecia muito bem certos povos, não longe dali, onde não custava nada ir buscar víveres. E logo ele, apro­ veitando a deixa, mandou deitar bando pelo pregoeiro que quem qui­ sesse sair a forragear se apresentasse que ele seria o comandante. Cerca de dois mil homens, armados apenas de dardos, mas munidos de sacos, odres e de toda a espécie de recipientes, marcharam atrás dele. Ora, mal pisaram nas aldeias, deu sobre eles a cavalaria de Farnabaz. Tinha vindo em socorro dos Bitínios com o fim de se opor à passagem dos gregos para a Frigia. Nada menos de quinhentos gregos foram passados a fio de espada; os restantes fugiram para os montes. Trouxe um dos fugitivos a má notícia ao arraial. Como os sacrifí­ cios tinham ainda esse dia sido aziagos, Xenofonte imolou um boi, por falta de melhor, e marchou com os soldados de menos de trinta anos em socorro dos gregos. Estava já o Sol a pôr-se quando os ex­ pedicionários, muito desalentados, se puseram a comer alguma coisa. Imprevistamente, os bitínios vieram por detrás dos bosques e caíram sobre eles, matando as guardas avançadas e afugentando os outros para o campo. Quando de tal se aperceberam, os gregos soltaram um grito terrível e correram às armas. Mas era perigoso perseguir o ini­ migo em região tão acidentada e selvática e não arredaram dali, pas­ sando a noite, porém, de prevenção.

V

No dia seguinte fortificou-se o lugar. Abriu-se um fosso no istmo de lés a lés, guarneceu-se duma tranqueira, deixando-se três portas por único acesso. Ali se acoitou a impedimenta toda e o exército pôde respirar. Depois deu-se a circunstância benéfica de chegar de Heracleia um navio carregado de farinha de cevada, de gado e de vinho. Xenofonte, que andava a pé desde a alba, sacrificou aos Deuses para obter deles licença de sair do castro. Logo à primeira vítima, os sinais foram de bom augúrio. Ao fim do sacrifício, Arexionte, de Parrásia, adivinho, avistou uma águia, indício certo de bom presságio, e conjurou Xenofonte a pôr-se à testa das tropas. Os arautos foram pelo campo e publicaram esta ordem: «Que os soldados, logo depois do almoço, saíssem do castro, armados, mas que a gente sem armas, bem como os escravos, não era autorizada a sair.» Veio tudo, salvo Neão, ao qual se confiou a guarda do campo, como posto de honra. Os soldados e comandantes de coorte não queriam, porém, ficar com ele. Tinham vergonha de não acompanharem os mais ao com­ bate. E resolveu-se que ficassem de guarda ao campo todos aqueles que tivessem mais de quarenta e cinco anos. O resto abalou. Andados quinze estádios, começaram a encontrar mortos. A frente da coluna fez meia volta, e os da retaguarda incumbiram-se de sepultar os cadáveres. A manobra repetiu-se tantas vezes quantas foi preciso até chegar à entrada da aldeia, onde os cadáveres eram aos montes. Juntaram-nos todos e inumaram-nos numa grande cova. Já passava do meio-dia quando as tropas começaram a desembo­ car das aldeias, carregadas de rapina. Subitamente lobrigaram o inimi­ go a descer a ladeira, que lhes ficava de tope, formado por tropas de

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infantaria e de cavalaria em linha já de combate. Eram Esfitridates e Rátines à testa duma força considerável, mandada por Farnaba2. Por sua vez, assim que estas tropas avistaram os gregos, pararam; es­ tariam a quinze estádios de distância pouco mais ou menos. Arexionte, adivinho dos gregos, imolou imediatamente aos Deuses e logo as entranhas da primeira vítima auguraram sucesso feliz. Xenofonte dis­ se então para os mais capitães: — Proponho que à retaguarda da coluna de ataque postemos companhias de reserva, prontas a acudir aos pontos críticos. Se não forem precisas para esta manobra, estando frescas e debaixo de for­ ma, podem facilmente após o primeiro embate transformar a confu­ são do inimigo em desbarato. Concordaram todos e Xenofonte acrescentou: — Vá, toca a atacar a fundo imediatamente que o inimigo está a observar-nos. Eu sigo-vos, é só questão de dispor as reservas no seu lugar. Os capitães avançaram com a haste a passo mesurado. Entretanto Xenofonte, retendo os três últimos batalhões, que eram de duzentos homens cada um, formou três corpos: um que marcharia no couce da ala direita, à distância de um pletro, sob o comando de Sâmolas, de Acaia; outro, sob o comando de Pírrias, de Arcádia, que avançaria ao centro nas mesmas condições; finalmente o terceiro, que constituiria o reforço da ala esquerda, às ordens de Frásias, de Atenas. O exército ia marchando quando a guarda avançada esbarrou com uma ravina, difícil de passar, e fez alto. Na dúvida se convinha ou não romper adiante, foram passando palavra para que os capitães e comandantes de coorte se pronunciassem. Xenofonte, dando conta da paragem súbita, ficou muito intrigado e lançou-se para a frente à rédea solta. Sofeneto, que era o mais velho dos capitães, estava na­ quele momento precisamente a dizer que não via meio de transpor o barrocal. Xenofonte não o deixou acabar: — Bem sabeis, camaradas, que não tenho prazer nenhum em ex­ por-vos ao perigo. Mas, agora, não se trata de dar mais provas de va­ lentia, que já destes até de mais, mas de salvarmos a vida. Notai bem: nós não podemos voltar atrás sem combater. Se não vamos de cara

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para o inimigo, é ele que virá contra nós e nos atacará pelas costas. Dizei-me: qual vale mais, atacar de frente, ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressão? Bem sabeis que se não há estímulo al­ gum em retirar diante do inimigo, acossá-lo dá alma até aos cobardes. Por isso eu preferia saltar-lhe às canelas, com metade das tropas que levamos, a redrar com forças duas vezes mais numerosas. De resto, podeis ter a certeza que não é gente para aguentar o embate, mas que, se nos vêem recuar, tornar-se-ão tremendos a perseguir-nos. Uma vez atravessada esta barroca, não será também esta uma óptima posição para oferecer combate? Não é a segurança pela espalda? Por minha parte sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao ad­ versário para a retirada e que o acidentado dos lugares era, ainda e sempre para nós, a lição certa de que só na vitória podemos encon­ trar salvação. Espanta-me que este desfiladeiro vos inspire mais ter­ ror do que tantos outros que não tiveram a propriedade de deter-vos um só momento. Mas, digam-me lá, se não batermos a cavalaria que além se vê, seremos capazes de dar um passo na planície? E como havemos de tornar a passar os montes, que já conheceis, com tantos peltastas aos calcanhares? Dando de barato que alcançamos o mar sem gravame de maior, o Ponto Euxino não é um escolho bem mais sério, onde não só não teremos navios que nos levem, como não te­ remos alimentos que não nos deixem morrer de fome!? Se fugimos para lá, forçosamente teremos de sair e sem perda de tempo, picados pelas necessidades da vida. Não, soldados, vale mais oferecer batalha hoje, bem comidos e bebidos, que amanhã em jejum. Os sacrifícios, o voo das aves, as vítimas pressagiam-nos um grande sucesso. Avan­ te! Seria o cúmulo que o inimigo, depois de nos pôr a vista em cima, jantasse com a comodidade toda e armasse tendas onde lhe desse a gana. Os comandantes de coorte instaram então com Xenofonte para comandar a coluna. Ele pôs-se à frente, recomendando que ao atra­ vessar a cova não quebrassem a forma e cada um avançasse sempre a direito onde quer que estivesse. Era persuasão sua que as tropas deste modo atravessariam mais depressa do que desfilando pela pon­ te que havia por cima daquela grande baixa. E assim foi. Uma vez do lado de lá, Xenofonte exortou novamente o exército:

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— Camaradas, lembrai-vos das horas difíceis de que, com a ajuda dos Deuses, pudestes sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate. Não esqueçais que es­ tamos às portas da Grécia! Invocai Hércules nosso Guia, e animai-vos chamando uns pelos outros. Nada mais bonito que ser louvado amanhã por aqueles que vos ouvirem contar os feitos que praticastes. Xenofonte percorreu a cavalo a frente de batalha, proferindo vo­ zes assim de estímulo. Finalmente os peltastas foram colocados nas duas alas. E, de lança ao ombro à espera que a trombeta desse sinal de carregar, avançaram a passo ginástico para o inimigo. Quando pe­ las filas soou arma com as palavras consagradas Júpiter Salvador, Hércu­ les nosso Guia, o inimigo, confiado na sua posição, esperou a pé firme. Assim que se viram perto, os peltastas, sem esperar ordens, soltaram o seu grito de guerra e lançaram-se à carga. Saiu a fazer-lhes frente a cavalaria e o grosso da infantaria bitínia e destroçaram. Mas a infan­ taria grega avançou em linha e a passo dobrado. A trombeta saltou o seu clangor, os hoplitas entoaram o pean, seguido da vozearia cos­ tumada, e enristaram lanças. E ante a investida impetuosa o inimigo fraquejou e despediu em debandada. Timasião foi em sua perseguição com a cavalaria. Feriu e matou tantos quantos podia um esquadrão tão diminuto. A ala esquerda do inimigo, que ficava em oposição aos ginetes, foi logo pulverizada; a ala direita, não tendo sofrido investida tão rude, fez alto numa lom­ ba. Vendo-a, consideraram os gregos que nada mais fácil e menos pe­ rigoso que investir com ela naquela ocasião. E cantando segunda vez o pean, lançaram-se ao assalto. O inimigo, porém, vergou ante a aco­ metida e fugiu. Deram no seu encalço os peltastas e só o largaram quando o viram dispersar aos quatro pontos. Não obstante o pânico de que se tomou o inimigo, não foram muitos os seus mortos. E a razão estava em que os gregos temiam-se da cavalaria bitínia que era numerosa. Mesmo assim, vendo ao largo os cavaleiros de Farnabaz voltar a ordenar-se e postarem-se de atalaia no alto dum morro, assentaram desde logo que não deviam deixá-los refazer-se e tomar fôlego. E eis que, voltando a formar em linha de batalha, deram sobre eles ousadamente. A sua aproximação, o inimi­ go precipitou-se do morro para baixo, para o lado de lá, desaparecen­ do da vista, como se tivesse cavalaria inimiga à garupa. E meteu para

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um desfiladeiro que os gregos não conheciam. Mas estes suspende­ ram a perseguição, que começava o dia a declinar. De passagem pelo lugar da primeira refeita erigiram uma memória; em seguida, punha-se o Sol, cortaram em direcção ao mar. Estavam a sessenta estádios, pouco mais ou menos, do castro.

VI

Escarmentado da peleja, o inimigo tratou de retirar para lugar seguro pessoas e bens. Os gregos, entretanto que esperavam Cleandro, saíam quotidianamente a forragear. E voltavam, escravos e ca­ valgaduras, carregados de trigo, cevada, vinho, legumes, painço e fi­ gos. Na comarca havia de tudo, afora azeite, e nenhum perigo se corria em fazer mão baixa sobre a propriedade do Bitínio. Os solda­ dos, depois de ensarilhadas as armas no castro, podiam ir à pilha­ gem para onde muito bem lhes apetecesse e o que apanhavam era seu; quando, pelo contrário, o exército partia em expedição, se al­ gum era apanhado desgarrado com o saco cheio, o que levava per­ tencia à colectividade. No arraial havia fartura; das cidades gregas chegavam a cada passo comes e bebes; os próprios navios que pas­ savam à vista com prazer vinham molhar em Calpe, ao rumor de que andava ali em construção uma cidade com o seu porto. Já os inimigos das vizinhanças, ouvindo contar que Xenofonte fundara uma colónia, mandavam emissários a requerê-lo de amizade. Ele apresentava-os aos soldados. Cleandro chegou neste meio tempo; vinha com duas trirremes, mas nada de navios de transporte. A hora em que desceu em terra, o exército tinha saído do castro e alguns soldados, isoladamente, ha­ viam-se abalançado à pilhagem pelas serranias e tomado muito gado. Receosos, segundo o regulamento estabelecido, que lhes fosse con­ fiscado, pediram a Dexipo, aquele que tinha largado de Trebizonda com um navio de cinquenta remos, que lhes guardasse o saque, sob promessa de lhe darem parte.

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Já os soldados, à volta de tão copiosa presa, diziam que aquilo era de todos quando Dexipo apareceu. E como procurasse debalde de­ sinteressar os soldados, foi queixar-se a Cleandro de que lhe queriam roubar o gado. — Traz-me o ladrão — disse Cleandro. Dexipo deitou a mão a um dos gregos mais recalcitrantes e le­ vou-o. Mas no caminho encontrou-se com Agásias que lhe arrancou o preso das mãos, por acaso soldado da sua coorte. A cena, porém, foi presenciada por muitos outros soldados que romperam à pedrada a Dexipo e lhe chamavam traidor. Os marinheiros, espantados com a assuada, deitaram a fugir para o cais. E o próprio Cleandro viu-se obrigado a fugir. Xenofonte e os outros capitães acudiram ao alvoro­ ço e logo intervieram explicando a Cleandro que o incidente não ti­ nha importância e que fora ocasionado por se ter desrespeitado uma decisão do exército. Mas Cleandro, incitado por Dexipo, no fundo aborrecido consigo próprio por ter dado mostras de terror, estava em grande exaltação e falava nada menos do que em fazer-se de vela e dar aquela gente como inimiga, proibindo às cidades gregas que os acolhessem dentro de portas. Nessa altura os Lacedemónios davam cartas em toda a Grécia. Os gregos, vendo o mau caminho que o negócio podia tomar, trataram de abrandar Cleandro. Mas ele mostrou-se inflexível, a me­ nos que lhe não entregassem o primeiro que atirara pedras e aquele que tinha arrancado o preso das mãos de Dexipo. Ora um daqueles que Cleandro reclamava era Agásias, dos amigos leais de Xenofonte, e era por isso mesmo que Dexipo o acusava. Para resolver sobre o momentoso caso, convocaram o exército. Havia uns que não liga­ vam importância ao caso, mas outros não escondiam a sua inquieta­ ção. No número destes estava Xenofonte, que disse perante as tropas reunidas: — De modo algum nos pode ser indiferente que Cleandro se vá embora nas disposições que nos anuncia. Estamos a dois passos das cidades gregas e bem sabeis que na Grécia hoje quem domina são os Lacedemónios. O poder deles é tal que basta um indivíduo ser da­ quela nação para fazer o que muito bem lhe apeteça. Se Cleandro

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começa por nos fechar as portas de BÍ2âncio e leva em seguida os outros harmostas a recusarem-nos abrigo, a pretexto de que somos gente sem lei nem santidade e não acatamos a autoridade de Lacedemónia, se uma tal fama chega aos ouvidos do almirante Anaxíbio, co­ mo os Lacedemónios tanto mandam em terra como no mar, eis-nos entre a espada e a parede, nem embarcar nem poder ficar em terra. Ora não é legítimo que por mor de uma ou duas pessoas se vá tão longe no sacrifício, como seria fecharmo-nos as portas da Grécia. E o meu parecer é: dê-se satisfação aos Lacedemónios. As vilas em que somos nados não lhes juraram obediência? Disseram-me que Dexipo afirmara a Cleandro que para Agásias assim proceder é por­ que recebera ordens minhas. Pois bem, se Agásias for capaz de dizer que sou eu o autor da assuada, aqui está quem assume a responsabili­ dade. Se incitei um só grego a atirar pedras ou a cometer qualquer outra violência, mereço o último suplício e estou pronto a sofrê-lo. Resta-me acrescentar que, se outro é acusado, tem de entregar-se a Cleandro para que o julgue. Não tinha pés nem cabeça que nas cir­ cunstâncias em que nos achamos, com esperança de sermos honra­ dos e glorificados na Grécia, nem sequer fôssemos tratados como os mais concidadãos, e as cidades gregas nos fossem interditas como a pestíferos. Agásias levantou-se e disse: — Camaradas, juro por todos os Deuses e Deusas da Corte Ce­ lestial que nem Xenofonte nem nenhum de vós me aconselhou a li­ bertar o homem. Revoltou-me ver um dos soldados mais valentes da minha coorte ser levado preso por Dexipo, que nos traiu, e não me contive, confesso... Mas não é preciso que me entregueis a Cleandro; vou eu próprio entregar-me, e que Cleandro faça o que entender. Não, daqui não há-de surgir a guerra entre vós e os Lacedemónios. Nem a terra me comia se aceitasse que por minha causa vos fosse cerceada a liberdade de ir onde vos apeteça. Agora uma coisa vos pe­ ço: mandai emissários comigo para que falem por mim se eu não me expressar bem. Deu-se a Agásias a faculdade de escolher as pessoas que deviam acompanhá-lo. Escolheu os capitães. Estes foram pois falar a Clean­ dro, de companhia com Agásias e o homem arrancado à força das mãos de Dexipo. Um dos capitães falou assim:

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— O exército delegou-nos junto de ti, Cleandro, para te rogar, se é ele que está em causa, de julgares e de decidires segundo os ditames da ma consciência. Se é apenas um, dois ou três dos nossos que acu­ sas, todos nós somos de opinião que venham entregar-se para que, também, os julgues. Nenhum dos gregos que fa2em parte do nosso exército se esquivará à ma justiça com o nosso consentimento. Então Agásias adiantou-se e disse: — Sou eu, Cleandro, o homem que arrancou o preso das mãos de Dexipo e que disse para lhe baterem. O preso sabia eu que era um soldado às direitas e também sabia muito bem que Dexipo, escolhido para comandar o navio de cinquenta remos que pedimos aos Trebizondinos, fugiu às escondidas, traindo os companheiros com quem tinha atravessado tantos riscos. Daqui resultou ser a cidade de Trebizonda espoliada dum rico navio e a nossa boa reputação sair diminuí­ da. Pouco faltou ainda para nos perder a todos e, em boa verdade, é responsável como se tal acontecera, porque ouviu dizer, como nós ouvimos, que era impossível, que mais não fosse por causa dos rios que havia a atravessar, voltar à Grécia por via terrestre. Aqui está de que estofo é o homem a quem arranquei o meu soldado. Se fosse preso à ordem dum outro, tu ou pessoa enviada por ti, juro-te que o facto não teria acontecido. Faze o que quiseres; manda-me matar se achas bem, mas assenta na consciência que matas um homem honra­ do por causa dum cobarde e dum velhaco. Depois de ter ouvido aquelas razões, Cleandro declarou que não aprovava Dexipo se soubesse que fora essa a sua conduta, mas que não julgava ninguém autorizado a usar de violência para com aquele lacedemónio, mesmo que se provasse ser o mais abominável dos pa­ tifes. O que tinham a fazer era julgá-lo como agora pediam que se lhes fizesse a eles e dar-lhe punição conforme fosse de justiça. Po­ diam retirar-se e ficar só Agásias. Comparecessem para ouvir a sen­ tença quando fossem chamados. E pois que um homem se apresen­ tava como culpado, não havia mais razões para acusar o exército ou qualquer grego, indeterminadamente. O soldado, causa do incidente, disse: — Hás-de julgar, Cleandro, que eu estava culpado pois que Dexi­ po me prendeu. De modo algum. Nem atirei pedras, nem bati em

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ninguém. O que eu dizia era que os carneiros pertenciam ao exército, já que estava assente que sempre que o exército fizesse uma surtida e um homem fosse à pilhagem, o que se lhe apanhasse pertencia a to­ dos. Aqui está o que eu dizia. Foi isso o que desagradou a Dexipo que estava feito com os da pilhagem para dizer que tudo aquilo era dele e receber uma parte. Cleandro em resposta pronunciou: — Já que és o homem do barulho, fica que também temos con­ tas a ajustar. Cleandro e os seus foram jantar. No entretanto Xenofonte man­ dou tocar a reunir e propôs que o exército mandasse uma representa­ ção a Cleandro a pedir-lhe a graça dos presos. Deputaram-lhe os ca­ pitães, os comandantes de coorte, Dracôncio, de Esparta, e todos aqueles que por alguma circunstância dessem esperança de vergar-lhe o ânimo. Iam autorizados a lançar mão de todos os recursos para ob­ ter o perdão dos dois. — Harmosta — disse-lhe Xenofonte, que também estava no nú­ mero dos emissários — os acusados estão-te nas mãos e podes fazer deles o que te apetecer. O exército manda-nos, porém, pedir-te, por tudo o que é sagrado, que nos resdtuas os nossos companheiros. Me­ recem essa graça pelos grandes esforços que fizeram para a salvação comum. O exército, se lhe prestas este favor, te será reconhecido. Se queres pôr-te à sua frente e os Deuses te são propícios, tens aqui sol­ dados para te acompanhar até o cabo do mundo. Põe à prova, dum lado os gregos, doutro lado Dexipo, e verás quem tem carácter. Ouvindo estas palavras, Cleandro exclamou: — Por Júpiter, a minha resposta ei-la: restituo-vos os dois ho­ mens e, se os Deuses o consentem, quem vos conduz para a Grécia sou eu. Disseram-me que tínheis em vista nada mais nada menos que empurrar para a defecção o exército de Lacedemónia; reconheço que foi insídia. Depois de agradecerem, voltaram os gregos ao castro com os dois homens. Cleandro tomou-se de amizade com Xenofonte e, as­ sim que viu o exército manobrar na parada, nada lhe pareceu mais digno de ambição que ser o seu comandante em chefe. Mas em três sacrifícios que fez aos Deuses, os vaticínios foram desfavoráveis. Em vista disso chamou os capitães e disse-lhes:

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— Não conteis comigo para tirar o exército daqui para fora. Os presságios são contra. Mas não desanimeis. A vós somente, ao que parece, cabe desempenhar tal missão. A caminho pois! Quando che­ gardes a Bizâncio, lá estou para vos receber. As tropas decidiram presenteá-lo com os carneiros que havia em curral e eram de todos. Ele aceitou para não fazer desfeita, mas antes de se fazer à vela, restituiu-os. O exército largou dali Bitínia fora, de­ pois de se desfazer do trigo acumulado e de muitas coisas que lhe es­ torvariam a marcha. Mas como tomassem a direito pelo trilho ordi­ nário não encontraram nada a que deitar a mão. Por isso, a certa altura, arrepiaram caminho durante um dia e uma noite. E fizeram muitos escravos e apoderaram-se de gado em profusão. Ao sexto dia de jornada chegaram a Crisópolis, na Calcedónia. Ali se demoraram sete dias a negociar a rica presa que levavam.

LIVRO SÉTIMO

I

Farnabaz, receoso que o exército grego lhe devastasse a comarca, mandou uma deputação a Anaxíbio, que se encontrava em Bizâncio. Pretendia ele que o almirante dos Lacedemónios pusesse aqueles ho­ mens da Ásia para fora, em troco de cuja fineza estava pronto a cor­ responder com o que estivesse ao seu alcance. Anaxíbio mandou chamar os capitães e comandantes de coorte a Bizâncio e prometeu dar pré aos soldados desde que atravessassem para o lado de lá do es­ treito. Os capitães ficaram de conferenciar com as tropas e dar res­ posta. Xenofonte, esse, anunciou que estava disposto a separar-se do exército e embarcar para a Grécia. Anaxíbio rogou-lhe que o não fi­ zesse antes de o exército passar o Bósforo e Xenofonte acedeu. Por seu lado, Seutes, da Trácia, enviou Medósade a Xenofonte com a mesma deprecada, prometendo-lhe mundos e fundos. Res­ pondeu Xenofonte: — Podes ficar certo que o exército sai da Ásia. Quanto a recom­ pensas, Seutes nada deve, nem a mim, nem a outrem. Eu, assim que vir os gregos do lado de lá, despeço-me. Para o mais que precisar, di­ rija-se aos outros capitães. O exército passou a Bizâncio. Contra o que fora pactuado, Ana­ xíbio não deu pré aos soldados. Um pregoeiro, pelo contrário, inti­ mou-os a que tinham de sair imediatamente da cidade com armas e bagagens, deixando sentir que ia fazer-se a chamada para depois se­ rem licenciados. Os soldados receberam semelhante ordem com cara de poucos amigos, tanto mais que não tinham dinheiro para a jorna­ da, e quanto a deitar correias às costas foram diferindo.

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Xenofonte, que estava muito grato a Cleandro, foi despedir-se dele. — Não, agora não deixes a tropa — disse-lhe o harmosta. —Já te acusam para aí de seres o responsável da má vontade e vagar com que o exército sai da cidade. — Lavo daí as mãos — respondeu Xenofonte. — Os soldados mostram pouca diligência a obedecer porque os querem sacudir sem lhes dar com que voltar às suas terras. Até fome passam! — Em todo o caso acho bem que os não deixes por enquanto. Tens prestígio, leva-os até fora de portas. Depois, sim, farás como entenderes. — Vamos falar a Anaxíbio e lá se resolve — disse Xenofonte. Foram ter com o almirante que instou com Xenofonte para se­ guir o conselho de Cleandro. E acrescentou que os soldados que se demorassem a sair da cidade e a comparecer à revista depois não se queixassem. O exército saiu, capitães à frente. Estariam quase todos os ho­ mens fora, com excepção de meia dúzia deles, e já Eteónico se plan­ tara à porta, pronto a deitar-lhe as trancas, mal o último acabasse de passar. Anaxíbio dirigiu-se aos capitães e oficiais e disse-lhes: — Abastecei-vos por essas aldeias da Trácia fora; não falta lá na­ da. Quando tiverdes o necessário, dirigi-vos para o Quersoneso. Quinisco tem lá o soldo que vos prometi. Levadas por algum oficial ou ouvidas pelos soldados, estas pala­ vras correram pelas tropas. E tanto bastou para as açular. Entretanto que os capitães procuravam saber se Seutes devia ser considerado co­ mo inimigo ou aliado e, portanto, se convinha passar pelo Monte Santo ou contorná-lo, metendo mais para o interior da Trácia, os sol­ dados, terçando armas, correram para as portas com o propósito de penetrar na cidade. Eteónico estava de atalaia e fechou-as a tempo. Os soldados romperam à pancadaria a elas, gritando que era um cri­ me sem nome atirá-los à margem, deixando-os à mercê do inimigo. Mas outros foram pelo lado do mar e saltando o molhe entraram na cidade. E os que se haviam atrasado dentro de muros, tendo conhe­ cimento do que ocorria, cortaram as trancas à machadada e escanca­ raram os batentes. Como uma vaga, o exército precipitou-se para dentro da cidade.

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Xenofonte, medindo num relance o que se passava, teve medo que as tropas se entregassem à pilhagem e resultasse um desastre irre­ parável para a cidade e para todos. O seu primeiro movimento foi correr ao mais aceso do motim. Os habitantes, vendo os soldados ir­ romper de roldão, deitavam a fugir das mas e praças para dentro das casas e dos navios; os que estavam dentro de casa, pelo contrário, saíam para o exterior, sobressaltadamente; outros puxavam as trirremes para a água e dispunham-se a fugir por mar; todos se julgavam perdidos, como se a cidade acabasse de ser tomada pelo inimigo. Eteónico refugiou-se na cidadela. Para lá mandou também remar Anaxíbio, que teve artes de chegar ao cais e saltar para dentro do bar­ co dum pescador. Uma vez ali, a primeira coisa que fez foi requisitar um destacamento da guarnição de Calcedónia. Já se não julgava sufi­ cientemente seguro com as tropas que estavam na fortaleza. Os soldados mal avistaram Xenofonte correram para ele: — Hoje é que se vai ver se és homem ou o que és, Xenofonte. Aí tens tudo, cidade, naus, riquezas, gente às ordens. Guia-nos, e serás poderoso. — Não desejo outra coisa — respondeu Xenofonte. — Estou ao vosso dispor. E já que assim o quereis, toca a formar e armas em terra. Xenofonte falava-lhes em tom meio de comando, meio de fami­ liaridade, forma de os acalmar, dando-lhes a impressão de estar de acordo com eles. Ao mesmo tempo incitava os outros capitães a seguir-lhe o exemplo. Formaram os hoplitas em linha, a oito de pro­ fundidade, os peltastas nas alas. Estavam na praça de Trácia, boa pa­ ra manobrarem os batalhões, ao que era de vasta e plaina. Assim que Xenofonte viu as tropas em linha e os ânimos mais aplacados, falou-lhes assim: — Soldados, a vossa ira não me espanta, como não me espanta que considereis uma infâmia o logro que vos armaram. Se nos deixar­ mos, porém, dominar pela raiva e, para lavrar vingança dos lacedemónios com quem tratámos, saquearmos esta cidade que não tem culpa nenhuma, que futuro nos espera? Imediatamente passamos a ser inimigos declarados dos Lacedemónios e imaginai agora, vós que andais há mais de ano em guerra, que guerra se vai seguir! Quan­ do Atenas rompeu guerra com Esparta, tinha ao menos trezentas

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trirremes, seja na água, seja nas dársenas; um tesouro na cidadela, sem falar na receita anual de mil talentos, provenientes da Ática e ter­ ras anexadas. Dominava em todas as ilhas, numa grande quantidade de cidades, tanto da Europa como da Ásia, e até nesta Bizâncio em que nos encontramos agora; pois bem, não obstante tudo isso, Ate­ nas acabou por sucumbir. Que imaginais que nos iria acontecer, hoje que os Lacedemónios têm como aliados não apenas os Aqueus, mas os Atenienses e os antigos aliados destes? Acrescentai-lhes, ainda, Tissafernes e os Bárbaros, nossos inimigos figadais. E será bom contar com o pior de todos, aquele contra quem marchámos para lhe tirar co­ roa e vida, se estivesse na nossa mão, o grande-rei. Haverá alguém tão insensato que imagine termos nós forças para nos medirmos com uma coalizão destas? Pelos Deuses imortais, não levemos a loucura tão longe; não cavemos a nossa destruição, levantando o ferro contra a pátria, amigos e próximos! Não haverá cidade que não se erga para nos dar combate, e até certo ponto não será sem razão. Então nós ti­ vemos repugnância em conservar uma só cidade bárbara, de tantas que conquistámos, e na primeira cidade de nação grega em que entrá­ mos, havíamos de pô-la a saque? Antes estar debaixo da terra, a cem pés de profundidade, que ver-vos praticar semelhante desatino. Sois gregos, como tal sou de conselho que vos submetais aos chefes da Grécia e procureis às boas obter tratamento equitativo. Supondo que vos era recusado, preferíeis por causa duma injustiça que as portas da pátria vos fossem fechadas para sempre? Quereis um alvitre? Mandai dizer a Anaxíbio que não estamos aqui para cometer nenhuma espé­ cie de violência, mas para salientar as nossas reclamações e fazer-lhe saber que sairemos de Bizâncio não como gente que se deixa lograr, mas que se submete. O alvitre foi aceite. Deputaram a Anaxíbio Jerónimo, da Elida, Euríloco, da Arcádia, e Filésio, de Acaia. Depois que eles partiram, chegou-se aos soldados, sentados por terra, um tal Cirátades, de Tebas. Não obstante não andar proscrito, era homem que corria as sete partidas, oferecendo os seus serviços a este e àquele, com a esperança de que alguma hora o pusessem à testa dum exército. Pois Cirátades, metendo fala com os soldados, prontificou-se a conduzi-los a certa

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região da Trácia, chamada o Delta, onde encontrariam tudo o que há de precioso, e que até lá punha à discrição os víveres necessários. Os soldados estavam a ouvir o que ele dizia quando voltaram os delegados com a resposta de Anaxíbio. O almirante afiançava-lhes que não teriam que se arrepender de lhe prestarem obediência, que ia dar conta da sua atitude aos magistrados de Esparta, e quanto a si ha­ via de fazer-lhes o bem que pudesse. Os gregos, em vista disso, acei­ taram Cirátades como capitão e saíram de Bizâncio. Desde que trans­ puseram as muralhas, Anaxíbio mandou trancar as portas e publicar por um pregoeiro que todo o soldado que fosse encontrado na cida­ de seria vendido como escravo. No dia seguinte Cirátades apareceu no campo dos gregos com vítimas e um adivinho. Seguiam-no vinte homens carregados de farinha; outros vinte com odres de vinho; três com azeite. Um trazia uma tal carga de alhos que mal podia com o peso; outro vinha ajoujado com réstias de cebolas. Cirátades man­ dou pôr tudo no chão e celebrar o sacrifício. Xenofonte pediu a Cleandro que lhe viesse falar. Desejava poder entrar em Bizâncio a fim de embarcar para a Grécia e incumbia o amigo de obter de Anaxíbio a competente autorização. Cleandro, depois de ter dado andamento ao pedido, disse a Xenofonte: — O homem a princípio mostrou-se relutante. Lá lhe parecia pe­ rigoso que tu estivesses em Bizâncio, com o exército acampado rente às muralhas e com as facções em que a cidade está dividida. Mas, em suma, deferiu com uma condição: ires na minha companhia. Xenofonte despediu-se dos soldados e atravessou as portas de braço dado com Cleandro. No primeiro dia não houve modo de Cirátades obter presságios favoráveis e não deu nada aos gregos. No segundo dia, estavam já as vítimas junto do altar e Cirátades dispunha-se a fazer o holocausto, de coroa na cabeça, quando apareceram Timasião, Neão e Cleanor a dizer que era inútil fazer o sacrifício, pois não era o exército que aceitava como chefe um homem que, tendo os géneros à mão, o dei­ xava passar fome. Cirátades ordenou que a distribuição se fizesse. Mas como as vitualhas não chegassem sequer para fartar o exército durante um dia, retirou-se levando as vítimas. Deste modo renunciou ao bastão de generalíssimo.

II

Neão, de Asineia, Frinisco, de Acaia, e Timasião, de Dardânio, fi­ caram a capitanear o exército. O primeiro cuidado foi aboletarem-se nas aldeias trácias em frente de Bizâncio. Mas cedo deram mostras de se não entender. Cleanor e Frinisco pretendiam pôr o exército às or­ dens de Seutes, que soubera conciliar-lhes a estima, convidando um com um cavalo, outro com uma mulher. O gosto de Neão era encaminhá-lo para o Quersoneso, persuadido de que, em país dependente de Lacedemónia, fatalmente lhe seria confiado o comando supremo. Timasião, esse estava morto por tornar para a Ásia, na esperança de mais facilmente poder regressar à sua terra; era também o que os sol­ dados desejavam. O tempo no entanto foi dobando: muitos soldados venderam as armas e arranjaram passagem a bordo sabem os Deuses como; outros deixaram-nas em casa dos camponeses e foram viver para as cidades. Anaxíbio esfregou as mãos de contente quando lhe disseram que o exército grego se tinha esboroado; era a maneira de dar satisfação a Farnabaz, sem ter a menor quebreira de cabeça. A caminho da Grécia Anaxíbio encontrou-se em Cízico com Aristarco que ia substituir Cleandro nas funções de harmosta de Bi­ zâncio. Foi ele que levou a notícia de que Polo, o novo almirante, es­ tava a chegar ao Helesponto dum dia para o outro. Conferenciando acerca dos negócios da cidade, Anaxíbio deu-lhe ordem para que vendesse todos os soldados de Ciro que se encontrassem dentro de muros. Cleandro não tinha vendido nenhum. Cheio de comiseração pelos doentes, mandara-os tratar e forçara os habitantes a dar-lhes agasalho. Aristarco, apenas chegou, vendeu qualquer coisa como uns

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quatrocentos. O navio que levava Anaxíbio fez escala por Pário e o almirante aproveitou para mandar recado a Farnabaz que se não es­ quecesse dos compromissos. Mas o sátrapa, quando soube que Aris­ tarco tinha chegado a Bizâncio como harmosta e que Anaxíbio já não era o chefe supremo das forças do mar, não fez caso e renovou com os novos governantes as estipulações que já subscrevera quanto às tropas de Ciro. Quando Anaxíbio soube disto, fez grandes instâncias junto de Xenofonte até convencê-lo a seguir para a Trácia a toda a pressa rea­ grupar o exército e avançar com ele sobre Perinto, que era o ponto ideal quanto a atravessarem para a Ásia. E pôs à sua disposição uma nau de trinta remos e credenciais, ao mesmo tempo que o mandava acompanhar por um homem que levava ordens expressas para que em Perinto fornecessem a Xenofonte os cavalos necessários à jorna­ da. Xenofonte fez a viagem sem novidade e, metendo ao direito pela Propôntida, alcançou o campo dos gregos. Os soldados receberam-no com grandes demonstrações de júbilo, pondo-se logo às suas or­ dens, pressurosos de passar para a Ásia. Seutes, quando soube que Xenofonte se encontrava de novo à testa dos gregos, expediu-lhe Medósade, numa nau rápida, com grandes promessas se lhe desse ajuda militar. Xenofonte respondeu-lhe redondamente que não. Marcharam para Perinto e aí Neão apar­ tou-se com oitocentos homens e ergueu tendas em separado. Xenofonte tratou de arranjar navios que transportassem as tropas para a outra banda. Andava nisso, chegou o harmosta de Bizâncio em duas trirremes. Criatura toda de Farnabaz, proibiu aos armadores que transportassem as tropas, depois, dirigindo-se ao campo grego, proibiu também aos soldados que atravessassem para a outra mar­ gem. Xenofonte, em resposta, invocou as ordens de Anaxíbio. — Anaxíbio já não é o comandante da esquadra e eu é que sou o harmosta. Nau que se atreva a embarcá-los vai ao fundo. E sem dizer mais palavra, Aristarco voltou para Bizâncio. No dia seguinte, porém, mandou convocar a palácio os capitães e coman­ dantes de coorte. Estavam a entrar as portas, alguém segredou a Xe­ nofonte: — Não vás, que quer mandar-te prender e entregar a Farnabaz.

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Xenofonte, a pretexto de que tinha um sacrifício a fazer, voltou para trás. E de facto sacrificou aos Deuses com o propósito de saber se autorizavam ou não dar ajuda militar a Seutes. Via o perigo que os ameaçava em atravessar para a outra margem, com o estreito coalha­ do de trirremes. Também não tinha grande empenho em meter-se no Quersoneso, onde havia escassez de tudo. De resto, era mister obe­ decer ao harmosta da península e sem utilidade. Estava ainda hesitan­ te, quando os capitães e oficiais regressaram da conferência com Aristarco. Não tinham, afinal, chegado a deliberar. O harmosta man­ dava-os voltar à noitinha. Tornavam-se assim mais manifestas as suas intenções sinistras. Em vista disso e dos sinais lidos nas entranhas das vítimas, capacitou-se Xenofonte de que o partido mais prudente era aceitar a proposta de Seutes. Chamou Polícrates, de Atenas, co­ mandante de coorte, e pediu aos capitães, excepto Neão, que lhe des­ se cada um seu homem de confiança. E partiu de noite para o acam­ pamento de Seutes que ficava a uns sessenta estádios dali. Uma vez lá, encontrou as fogueiras sem ninguém. Mas pelos rumores e o aler­ ta das sentinelas, transmitido dumas para as outras na escuridão, compreendeu que aquilo era estratagema trácio de modo a verem quem vinha sem serem vistos. O intérprete foi à frente anunciar que estava ali Xenofonte e desejava falar a Seutes. As sentinelas quando ouviram o recado exclamaram: — O quê? Está aí o ateniense Xenofonte, o capitão dos gregos? — Está aí, sim, senhor. Correram a levar a notícia e não tardou que aparecesse uma força de duzentos peltastas para conduzir Xenofonte e a comitiva até o lo­ cal em que estava Seutes. Dormia dentro duma torre, fechado a sete trancas, e com um esquadrão de ginetes à volta. Levava-o a tomar aquelas precauções o receio de ser surpreendido, como seu avô Te­ res, que não sofrera apenas grande morticínio dos seus, mas chegara a ficar sem as equipagens, levadas pelos Tinos, que têm fama de ser os mais belicosos dos Trácios e muito atrevidos de noite. Por isso ti­ nha ali aquela força de cavalos em pé de guerra, pronta ao que desse e viesse. Dali não bulia mal descia a noite; de dia é que os cavaleiros levavam as montadas a pastar.

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Seutes mandou entrar Xenofonte com dois dos seus homens à escolha. Depois de se apresentarem os cumprimentos do estilo, tro­ caram ainda saúdes bebendo por cornos cheios de vinho à moda trácia. Ao lado de Seutes estava Medósade que era o universal embaixa­ dor daquele príncipe. — Seutes — disse Xenofonte, tomando a palavra — mandaste -me uma primeira vez Medósade a Calcedónia com o fim de eu tra­ zer o exército da Ásia para a Europa, prometendo recompensar-me. Está aí ao teu lado o próprio que me não deixa mentir. Medósade acenou com a cabeça afirmativamente. — O mesmo veio em teu nome ter segunda vez comigo a Perinto, quando voltei para o exército, prometendo-me, se te prestasse ajuda militar, não só tratares-me como amigo e irmão, mas ceder-me as cidades marítimas que estão em teu poder. E verdade ou não, Me­ dósade? Medósade, novamente, confirmou aquelas palavras. — Agora — volveu Xenofonte — peço-te o favor de repetir a Seutes o que te respondi em Calcedónia... — Respondeste que o exército ia passar para Bizâncio e que por isso não te deviam nada; nem a ti nem a outrem; que era de resto in­ tenção tua separares-te do exército mal se efectuasse a travessia. Que falaste verdade, viu-se... — E que foi que te disse quando vieste a Selímbria! — tornou Xenofonte. — Que nada havia a fazer, uma vez que vos dirigíeis a Perinto com o fim de voltar para a Ásia. — Pois bem — disse Xenofonte — hoje venho eu para negociar contigo, acompanhado de Frinisco, aqui ao meu lado, um dos nossos capitães, e PoHcrates, também aqui presente, comandante de coorte. Lá fora estão homens de confiança, delegados por cada um dos capi­ tães, salvo Neão, de Lacónia. Se te parece e queres dar maior peso às negociações, manda-os entrar... Polícrates vai dizer-lhes que, ordeno eu, deixem as armas à porta. Tu podes também deixar lá a espada. A estas palavras Seutes exclamou que não desconfiava dos ate­ nienses, gente leal, gente da sua raça, pois corria-lhe sangue ateniense nas veias. Quando os mais gregos entraram, Xenofonte perguntou a Seutes para que expedição pedia ele auxílio.

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— Meu pai — respondeu o trácio — chamava-se Mésades e ti­ nha por vassalos os Melandeptos, os Tinos e os Tranispas. Mas os negócios dos Odrísios correram mal, meu pai foi expulso dos seus estados e foi morrer no exílio acabrunhado de desgostos e de enfer­ midades. Eu fiquei órfão e fui criado na corte de Médoco, que reina presentemente. Ao chegar, porém, à adolescência, não pude confor­ mar-me com a ideia de viver toda a vida às sopas dum estrangeiro. Um dia que el-rei me fizera sentar ao seu lado, supliquei-lhe que me desse tropas com que me vingar daqueles que nos haviam espoliado, de modo a poder, ao mesmo tempo, libertar-me da sua dependência generosa. Deu-mas; amanhã as vereis. Por agora vamos vivendo das presas que temos feito nas terras dos meus. Se me auxiliais, espero, com a ajuda dos Deuses, entrar na posse do reino. Aqui está para que cometimento eu solicitei o vosso concurso. — Se ficarmos ao teu serviço — tornou Xenofonte — que paga queres dar aos soldados, aos oficiais e aos capitães? Seutes prometeu um ciziceno aos soldados, o duplo aos oficiais, o quádruplo aos capitães. Além disso ficariam com quanta terra qui­ sessem, juntas de bois com a sua apeiragem, e uma praça forte à bei­ ra-mar. — E se os nossos esforços se quebrarem com uma intervenção, suponhamos, dos Lacedemónios, és homem para receber nas tuas terras aqueles que te peçam refúgio? — Tratá-los-ei como irmãos e tudo o que for meu é deles. Quan­ to a ti, Xenofonte, dou-te uma das minhas filhas e, se tens uma, compro-ta, como é costume entre os Trácios, e para residência ofereço-te Bizanto, a jóia das minhas cidades marítimas.

Ill

Trocaram o aperto de mão em sinal de amizade e os gregos vol­ taram para o acampamento. Chegaram ainda com noite e in continenti cada um foi dar conta do que se passara ao seu capitão. Ao amanhe­ cer, Aristarco chamou de novo os capitães e oficiais. Em vez, porém, de acederem à chamada, convocaram os soldados. Vieram todos, com excepção dos que formavam às ordens de Neão, que estavam acampados obra de dez estádios dali. Xenofonte disse-lhes: — Soldados, se quisermos embarcar, Aristarco, com as galeras, não nos deixa ir para onde muito bem entendermos. Não pensemos pois em atravessar a Propôntida; seria mais que arriscado. O que ele pretende já vós sabeis: empurrar-nos para o Quersoneso, onde não haverá outro remédio senão abrir caminho à ponta de espada através do Monte Santo. Em paga, promete não vos vender como tem feito até aqui, dar-vos pré e abastecer-vos de mantimentos de modo a não terdes mais necessidades. Aqui está o que oferece Aristarco. Seutes, por seu lado, toma os compromissos que são notórios, dado que lhe presteis auxílio. Agora, vede bem se vos quereis pronunciar mesmo já aqui ou se vos parece mais assisado ir deliberar em sítio onde haja que comer. Como não dispomos de dinheiro, e aqui não podemos deitar mão a nada que não tenha de se pagar, se acham bem, vamos para terras em que os habitantes, menos fortes do que nós, não terão remédio senão sustentar-nos. Aí estaremos em melhores condições para nos decidirmos pelas condições dum ou doutro. Quem aprova, levante o braço...

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Levantaram todos o braço. — Então, toca a preparar e, ao primeiro sinal, em marcha. Xenofonte pôs-se à frente dos soldados e romperam. Debalde Neão e outros indivíduos mandados por Aristarco pretenderam dis­ suadir as tropas. Ninguém lhes deu ouvidos. Tinham andado já uns vinte estádios, Seutes saiu-lhes ao caminho. Xenofonte fez-lhe sinal de que se chegasse bem para o pé das tropas de modo a que todos ouvissem, e proferiu: — O nosso fito é ir acampar onde haja que comer. Uma vez lá, teremos vagar para examinar as propostas que tu nos fazes e aquelas que nos faz Aristarco e decidir. Queres tu ensinar-nos uma região farta e onde seja fácil encontrar mantimentos? Se o fizeres, conside­ rar-nos-emos ligados à tua pessoa pelos laços da hospitalidade. — Sei duma corda de povos, onde encontrareis o que é preciso — respondeu Seutes. — A caminhada a fazer é apenas o que basta para almoçardes com mais apetite. — Então guia-nos — disse Xenofonte. Por volta do meio-dia chegaram ao dito lugar. Seutes, em segui­ da, falou assim às tropas: — Soldados, mais uma vez vos digo: vinde comigo. Cada um de vós ganhará um ciziceno por mês; os oficiais e capitães o que é de lei que ganhem. Independentemente do soldo, não deixarei de recom­ pensar aqueles que o mereçam. Quanto a comes e bebes, a região vo-los fornecerá como agora; da venda da presa que se fizer há-de sair o vosso pré. Tenho tropas bastantes para bater e perseguir o inimigo; vós seríeis a reserva... para o caso em que viesse a encontrar qualquer resistência inesperada. — Até que distância do mar calculas tu que será preciso auxiliar-te? — perguntou Xenofonte. — Nunca mais de sete dias de jornada — respondeu Seutes. Quem quer podia usar da palavra. Muitos soldados foram de pa­ recer que as propostas do trácio eram aceitáveis; que se estava no In­ verno; que a estação não era própria para embarcar; que era impossí­ vel quedar em país amigo desde que se tivesse de pagar a ração; que parecia menos perigoso acampar em terra hostil feitos com Seutes do que independentemente dele; e que uma vez que ele oferecia um esti­ pêndio era ouro sobre azul. Xenofonte pronunciou:

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— Se alguém tem alguma objecção a fazer, diga; de contrário, vai-se votar. Ninguém pediu a palavra e o pacto com Seutes foi aprovado. Xenofonte anunciou a Seutes que o exército recebia as suas ordens. Foi por companhias que os soldados se alojaram. Seutes convi­ dou os capitães e oficiais a jantar com ele na aldeia próxima que lhe pertencia. Quando chegaram às portas, esbarraram com um certo Heráclidas, de Maroneia, que dizia duas palavras em tom meio de confidência, meio de cortesania àqueles que supunha em condições de oferecer presentes a Seutes. Primeiro dirigiu-se a uns indivíduos de Pário que vinham negociar um tratado de aliança entre a sua na­ ção e Médoco, rei dos Odrísios, e traziam prendas para o rei e a rai­ nha. — Esses presentes — representou-lhes Heráclidas — deveis dá-los a Seutes, e eu vos digo porquê... Médoco reina na Trácia Superior, a doze dias do mar, e Seutes, dentro em breve, com os auxiliares que aí vedes, será senhor da margem toda de Propôntida. Ele é que ficará em condições, como ninguém, de vos fazer bem ou vos fazer mal. Parece-me, portanto, que tereis mais vantagem em exercer a vossa li­ beralidade com ele do que com um príncipe que fica no calcanhar do mundo. E eles, persuadidos com o palavreado, levaram o presente a Seu­ tes. Heráclidas, em seguida, abordou Timasião, de Dardânio, que passava por dono de vasos preciosos e de ricos tapetes persas. E com voz curial certificou de que era uso os convivas de Seutes fazerem-lhe presentes. — Bem sabes que os não deitas em saco roto. Quando entrar na posse do reino, está na sua mão pôr-te na Grécia ou fazer-te um rica­ ço, se te quiseres estabelecer nestes sítios. A todos ia com a sábia parlenda. A Xenofonte não deixou de di­ zer: — Tu és filhote da cidade mais importante da Grécia e Seutes faz de ti uma alta ideia. Pensas, talvez, em possuir nesta nação terras e bens como muitos dos teus compatriotas...? Não deixes de conciliar as simpatias de Seutes com um presente que encha o olho. Dou-te este conselho para teu bem. E fica certo que, quanto mais deres, mais terás a receber.

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Xenofonte ficou embaraçado com a léria do sujeito. Em verdade tudo quanto trouxera para a Europa fora um mocito e o viático sufi­ ciente para a jornada. Foi servido o jantar. Eram convivas os trácios mais importantes do séquito de Seutes, os capitães e oficiais gregos, e uns tantos repre­ sentantes das cidades. Sentaram-se todos em redondo e trouxeram umas vinte mesas de pé-de-galo ajoujadas dè carne partida aos bo­ cados e de pães fermentados. Conforme a pragmática, estas tripodezinhas eram colocadas de preferência diante dos estrangeiros, que ficavam assim com o encargo de distribuir as iguarias. Seutes deu o exemplo. Pegou dos pães e foi-os partindo aos pedaços e atirando a este e àquele. Fez o mesmo com as carnes, limitando-se a provar. Um certo árcade, que tinha nomeada de grande comilão, chamado Aristos, é que não esteve para cerimónias: pegou dum pão de três chénicas, abriu-o ao meio, entalou dentro uma boa fatia de carne e pôs-se a manducar. O vinho era servido em cornos e cada um recebia semelhante ta­ ça das mãos dos escudeiros. Quando chegou a vez de Aristos, este proferiu, sem deixar de mastigar, vendo Xenofonte que já não comia: — Dá a esse capitão, que tem vagar; eu ainda não tenho. Seutes, ante o tom facecioso, perguntou o que dizia o homem. O escudeiro sabia grego e traduziu a pilhéria; desataram todos a rir. Estavam nas libações, entrou um trácio com um cavalo branco à rédea. Pegou dum corno cheio de vinho e disse: — Seutes, bebo à tua saúde e trago-te aqui este cavalo com o qual não há inimigo que não alcances ou inimigo que não fujas. Um outro trouxe um rapazinho e ofereceu-o a Seutes com o mesmo ritual. Um terceiro ofereceu-lhe vestes para a mulher. Timasião bebeu também à saúde de Seutes e deu-lhe uma taça de prata e um tapete que valia dez minas. Gnésipo, ateniense, ergueu-se e disse que achava admirável que os ricos honrassem o rei, à maneira antiga, com dádivas, contanto que o rei, por sua vez, repartisse com os que não tinham nada. E voltando-se para Seutes completou: — Se queres que te preste homenagem, habilita-me primeiro. Xenofonte sentia-se um pouco comprometido, tanto mais que estava no lugar de honra, ao pé de Seutes. Eleráclidas indicou ao es­ cudeiro que lhe chegasse o vinho.

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Xenofonte que já tinha bebido um pouco, erguendo o corno com ousadia, proferiu: — Pois eu, Seutes, que te hei-de oferecer? Ofereço-me eu pró­ prio, com os meus camaradas, para teus fiéis amigos. Eis-nos, todos te servimos de vontade; o que desejamos, todos uns mais que os ou­ tros, é fazer-te feliz. Estamos prontos, pela tua causa, a correr os maiores riscos e trabalhos. Se os Deuses quiserem, connosco ao lado, entrarás em posse do que era de teus avoengos, acrescido de grandes e belas conquistas. Não te faltarão cavalos, escravos, mulheres boni­ tas; e não hão-de ser presa que tu faças, mas presentes ou entregas voluntárias. Seutes levantou-se, bebeu ao mesmo tempo que Xenofonte, e derramou o resto do vinho no chão. Entraram em seguida no recinto do festim uns cerasuntinos que tocavam em flautas e canudos de coiro uma ária marcial, produzindo um som harmonioso e cadenciado como se utilizassem a mágade. Seu­ tes, de arrebatamento, levantou-se e, soltando um grito de guerra, deu um salto, furtando, a seguir, agilmente o corpo para o lado como se quisesse esquivar uma lançada. A seguir começaram os bufões com as partes gagas. O Sol estava perto do ocaso e os gregos falaram da necessidade de postar sentinelas em volta do campo. Pediram, ao mesmo tempo, a Seutes que não autorizasse os trácios a entrar nele, durante a noite, «pois que amigos e inimigos todos eram trácios, e de princípio não era fácil distinguir». Fora, Seutes, que não tinha nada o ar embriaga­ do, disse para os capitães: — O inimigo ainda não está a par da nossa aliança. O que temos a fazer é cair já sobre ele antes que tenha tempo de se concentrar e defender. E ainda o processo mais eficaz para fazer uma boa presa. Os capitães acharam bem e responderam que podia ser naquela mesma noite. Ele então pronunciou: — Pois ide e aprontai-vos que eu não me demoro. Quando vir que é tempo, lá apareço com os meus peltastas e as outras tropas. E, se os Deuses quiserem, o inimigo nem sabe para onde se há-de virar. — Visto que a marcha é de noite — observou Xenofonte — peço-te que consideres um pouco se não vale a pena adoptar a nossa

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táctica de preferência à vossa. De dia, a natureza do terreno é que de­ cide do género de tropas que devem constituir a vanguarda da colu­ na. De noite, a regra seguida pelos gregos é que são os hoplitas que vão à frente, como tropas de movimentos mais pesados. Deste modo é raro que a coluna se quebre. Os soldados não podem arredar, sem que sejam vistos, para fora da forma. Sabes, muitas vezes, tropas que se separam são lançadas umas contra as outras e, enquanto se não re­ conhecem, não pouco dano se fazem. — A vossa reflexão é acertada — tornou Seutes — e desde já de­ claro que adopto a táctica grega. De resto, vou pôr à vossa frente pa­ ra vos guiar pessoas batidas no terreno. Eu próprio com a cavalaria formarei a retaguarda. Dali, posso evolucionar para onde seja mister. Despediram-se naquele propósito e foram descansar. A palavra de passe seria Ateneia. Cerca da meia-noite, Seutes veio ter com eles à testa da cavalaria pesada e dos peltastas com equipamento de cam­ panha. Apresentaram-se os guias; os hoplitas marcharam-lhes no ras­ to; a seguir os peltastas, no couce os ginetes. Ao amanhecer, Seutes deu uma saltada à frente e celebrou a táctica grega dizendo: — Não há dúvida, com a marcha de noite sucede que a cavalaria se afasta da infantaria, trate-se bem embora de pequenas forças. Eis-nos juntos, como se acabássemos de sair do campo. Admirável! Eu vou em exploração e já volto. Picou o cavalo e desapareceu num carreiro que levava pela serra fora. Chegado a certo sítio onde havia muita neve, tratou de exami­ nar se se não descobriam pegadas de homem, voltadas na sua direcção ou na inversa. Como a estrada estivesse lisa e sem mostrar ne­ nhuma espécie de vestígios, arrepiou prontamente caminho e veio dizer: — Palpita-me que com a graça dos Deuses tudo há-de correr pe­ lo, melhor. O inimigo ainda não deu fé de nós. Eu vou tomar a dian­ teira com a cavalaria, que é o modo de não deixar escapar ninguém. Vinde no meu encalço. Se vos atrasardes, guiai-vos pelo rasto dos ca­ valos. No alto das serras há aldeias riquíssimas. Era cerca de meio-dia quando Seutes alcançou os altos; voltou à rédea solta dar as suas instruções:

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— Eu vou atirar a cavalaria para o vale e mandar ocupar as al­ deias pelos peltastas. Marchai acelerado de modo a apoiar estas for­ ças, dado que encontrem resistência. Xeno fonte, que tal ouviu, apeou-se da montada. — Homem, tu descavalgas, quando é preciso ir depressa? — ob­ servou Seutes. — Sim, porque sei muito bem que não é apenas de mim que tu precisas. Os hoplitas hão-de correr mais e com melhor disposição se me virem a pé ao seu lado. Seutes adiantou-se, levando consigo o pequeno esquadrão grego de quarenta ginetes comandados por Timasião. Xenofonte, tendo da­ do voz aos homens de trinta anos para sair das linhas e formar em volta dele, precipitou-se à frente. Cleanor comandou o resto das tropas gregas. Uma vez nas aldeias, Seutes veio ter com eles à frente duns trinta ginetes e disse a Xenofonte: — Aconteceu como tu previas: os habitantes caíram no laço, mas a cavalaria dispersou-se atrás dos fugitivos, cada cavaleiro para seu la­ do, e tenho medo que o inimigo, recobrando-se mais adiante, não lhes arme alguma. Há que deixar forças nas aldeias que estão cheias de gente. — Eu vou ocupar o cimo da serra — disse Xenofonte. — Clea­ nor que estenda a sua gente diante das aldeias em cortina. Executada a manobra, colheram-se duma assentada mil prisionei­ ros, mil bois, e dez mil cabeças de gado miúdo. O exército passou a noite no local.

IV

No dia seguinte, Seutes deitou fogo às aldeias; não ficou uma ca­ sa intacta. O seu objectivo era, semeando o terror, fazer sentir aos habitantes a sorte que os esperava se não se apressassem a fazer acto de submissão. Voltando atrás, enviou Heráclidas a Perinto vender a presa para arranjar dinheiro que lhe permitisse pagar o pré dos sol­ dados. E com os gregos foi acampar na várzea dos Tinos. Os habi­ tantes assim que os avistaram deixaram tudo e refugiaram-se nos montes. A neve era muita; estava um tempo tão frio que a água que iam buscar às fontes para fazer a comida gelava no caminho. Gelou tam­ bém o vinho nas ânforas e muitos gregos apareceram com o nariz e orelhas queimadas. Aí estava porque é que os trácios encafuavam na cabeça barretes de pele de raposa que não deixavam ver as ore­ lhas, usavam umas vestimentas que não só lhes protegiam o peito mas as coxas das pernas, e a cavalo envergavam uns capotões que os cobriam todos dos pés ao toutiço. Seutes soltou uns tantos prisionei­ ros e mandou-os ir pelas serras avisar os patrícios que se não voltas­ sem para suas casas, decididos a aceitar a sua autoridade, lhes quei­ mava as aldeias e os celeiros, e haviam de perecer à míngua de recursos. Com esta cominação, apresentaram-se os velhos, as mulhe­ res e as crianças. Tudo, porém, que estava na flor da idade, ficou nas aldeias dos cerros. Seutes, quando o soube, disse a Xenofonte que o seguisse com os hoplitas. Puseram-se em marcha durante a noite; ao romper da aurora estavam em frente das aldeias montesinhas; a maior parte dos trácios, tendo ventos da acometida, escapou-se

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a tempo; a montanha, com efeito, era grande e acidentada. Seutes mandou frechar todos aqueles que fossem apanhados. Entre eles es­ tava um mocinho de boa aparência, apenas púbere, ainda com o bro­ quel no pulso, e um tal Epístenes, de Olinto, que era homossexual, viu-o e enamorou-se dele. Daí o correr a Xenofonte e conjurá-lo por tudo o que havia no mundo a que salvasse o pequeno. Xenofonte foi ter com Seutes e, modo de amenizar a requesta, contou-lhe que Epís­ tenes, chamado um dia a organizar uma falange, o primeiro requisito a que atendia era o donaire dos homens. Pois sendo tudo rapazes bo­ nitos, dera à testa deles provas de alto valor. Seutes mandou chamar Epístenes e interpelou-o: — És homem para dar a vida pelo mocinho? — Sou, mas primeiro há-de consultar-se o mocinho. Que, ao me­ nos, me diga adeus. Seutes, então, perguntou ao adolescente se achava bem que aque­ le homem morresse em lugar dele. Ele respondeu que de modo al­ gum e rogou ao rei que poupasse a vida aos dois. Ao ouvir a sua res­ posta, Epístenes agarrou-o pela cintura exclamando: — Agora se o quiseres, Seutes, hás-de te bater comigo. Seutes desatou a rir e mudou de assunto. Foi de opinião que o exército acampasse ali para impedir os trácios de se abastecerem. Ele iria para a planície. Xenofonte ficou pois no píncaro da serra, alojando-se nas casas desamparadas com o melhor das suas tropas. O resto dos gregos acampava a pequena distância, mas já no território da Trácia Alta. Poucos dias andados, os trácios desceram das suas portelas a pe­ dir tréguas e oferecer reféns. Xenofonte apareceu quase ao mesmo tempo a representar a Seutes que a posição era melindrosa no coruto da serra; valia mais a pena acamparem em sítio forte por natureza do que na aldeia com os inimigos a rondar à volta. Seutes riu-se das suas cautelas e mostrou-lhe os reféns. Trácios da montanha apareceram a rogar a Xenofonte que intercedesse junto de Seutes para lhes serem concedidas tréguas. Ele prometeu-lhes que não lhes aconteceria mal algum se se submetessem; o fim deles, porém, não era negociar a paz, mas espiar. Na noite seguinte, com efeito, os tinos vieram atacar a aldeia. O escuro era cerrado, de modo que para cada casa traziam, como

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guia o dono dela. Mas cada uma das moradias tinha à volta a sua pali­ çada de estacas, para segurança dos rebanhos. Os assaltantes, encon­ trando as cancelas fechadas, lançaram os seus dardos, bateram com as mocas, puseram fogo aqui e ali. E em altas vozes gritavam a Xenofonte: — Se és valente, salta cá para fora! Cá ao largo é que se vêem os homens! Ai não, então vais morrer estorricado! E pegaram lume à choupana. A chama ateou-se, desenvolveu-se, já chegava aos telhados, e Xenofonte e os mais gregos que estavam ali alojados pegaram das armas para sair. Mas Silano, de Macesto, de dezoito anos, lembrou-se de tocar a trombeta. Tocou com quanto alento tinha. E logo, de todas as bandas, os soldados começaram a sair das casas de espada em punho. Os incendiários deitaram a fu­ gir, cobertos, segundo o seu costume, com os escudos. Alguns foram apanhados ao pretender saltar por cima da paliçada, envencilhados nas estacas; outros caíram quando procuravam a saída sem atinar com ela. O inimigo foi acossado até fora da aldeia. Mesmo assim alguns tinos voltaram ao ataque, a favor da escuri­ dão. Agachados nas trevas, orientando a pontaria pelas labaredas das casas em que continuava a lavrar o incêndio, atiraram os dardos e fe­ riram Jerónimo, Euódias e Teógenes, da Lócrida, comandantes de coorte. Além disto não houve mais danos que a perda de algumas mochilas, devoradas pelo fogo. Seutes acudiu com uma força de sete ginetes, por mais não ter à mão. Entre eles vinha um clarim trácio, que tocou, sem parar. Com tal fanfarra, algum tanto, também, se de­ via ter intimidado o inimigo. Seutes imaginava, no que se enganou re­ dondamente, que se ia encontrar perante uma hecatombe de gregos. Xenofonte pediu-lhe que lhe entregasse os reféns e propôs-lhe avançarem para os picotos a acabar com a resistência dos trácios. Se não queria vir, que lhe desse licença de ir ele com os gregos. Seutes mandou no dia seguinte entregar-lhe os reféns; eram os velhos mais importantes da serra, ao que se dizia. Ele próprio veio com forças três vezes mais numerosas. Muitos odrísios, com efeito, tinham vin­ do juntar-se-lhe ao rumor das suas vitórias. Quando os tinos viram dos cumes tantos hoplitas, tantos peltastas e cavalaria junta, vieram para baixo e pediram paz. Prometiam submissão inteira e ofereciam

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reféns. Seutes mandou chamar Xenofonte, comunicou-lhe o que se passava dizendo que não concederia a capitulação antes de aquele chefe ter dito a sua palavra quanto ao castigo que desejava aplicar aos agressores da noite transacta. — Já estão bem castigados — respondeu Xenofonte — em caí­ rem da liberdade na escravidão. No entanto, aconselhou a Seutes a tomar gente nova como re­ féns e a deixar os velhos em paz. O tratado foi selado por quantos habitantes havia na nação.

V

Partiram em campanha contra os trácios que habitam da parte de cima de Bizâncio na comarca chamada Delta. Estes povos não fa­ ziam parte do reino de Mésades, mas tinham sido, outrora, vassalos de Tereu, príncipe odrísio. Entretanto, apareceu Heráclidas com o di­ nheiro das presas. Ao mesmo tempo que procedia ao pagamento, Seutes mandou trazer três parelhas de mulas e várias juntas de bois. Apontando as muares, disse para Xenofonte: — Tira; o que não quiseres, dá-os aos capitães e oficiais. — Não quero nada para mim — respondeu Xenofonte. — Para os capitães e oficiais, sim, aceito. Timasião, Cleanor e Frinisco receberam cada um a sua parelha de mulas. Repartiram os bois pelos oficiais. Estava vencido um mês de soldo, mas Seutes não pagou mais que vinte dias. Heráclidas respon­ deu às reclamações que lhe faziam dizendo que as presas não tinham rendido mais. — Zelas mal os interesses do teu amo — proferiu Xenofonte, de má catadura. — Outro fosses tu e terias arranjado para pagar o que é de direito. Se a venda não deu a quantia necessária, pedias dinheiro emprestado. Eu nos teus casos teria vendido a roupa que trouxesse no corpo. Heráclidas sentiu-se agravado com aquelas palavras e a partir de então, receoso de perder as boas graças de Seutes, tratou de intrigar Xenofonte junto do amo. Os soldados tornavam Xenofonte respon­ sável por não terem recebido a paga por inteiro e Seutes não podia levar a bem que aquele capitão exigisse com firmeza o cumprimento

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do ajustado. E ele, que dantes não se cansava de repetir que breve lhe daria a posse de Bizanto, Gano e Castelo Novo, nunca mais lhe to­ cou em tal pardcular. Ainda aqui andava o dedo de Heráclidas que insinuara a Seutes quanto era perigoso pôr um homem que dispunha de tropa à testa de praças de guerra. Entretanto Xenofonte hesitava se devia ou não dar o seu apoio ao projecto de nova campanha. Heráclidas chamou os outros capi­ tães, convencido que dirigiriam as operações tão bem como Xeno­ fonte. Mas Timasião foi categórico: — Ainda que me pagasses cinco meses adiantados de soldo, não daria um passo sem Xenofonte. Frinisco e Cleanor deram resposta equivalente. Seutes, então, re­ preendeu Heráclidas por não ter charruado Xenofonte e mandou pe­ dir a este que lhe viesse falar. Xenofonte acedeu, mas como conhecia bem que sorte de intrigante e traiçoeiro era Heráclidas, foi com os capitães e os oficiais. Reconciliaram-se e a expedição prosseguiu se­ gundo o plano traçado. O exército, deixando à direita o Ponto Euxino, atravessou o país dos Trácios Melinófagos e alcançou Salmidesso. Acontece ser muito frequente encalharem na costa, com os parcéis de que está semeada, os navios que pretendem entrar no Ponto. Os habitantes destas paragens chamam-nos seus e cada um tem uma zona delimitada por estacarias em que exerce a sua jurisdição. Antes de chegarem a este acordo, matavam-se como cães à vista dos navios sinistrados. A costa vêm dar baús, camas, livros e toda a espécie de salvados. Submetida a comarca, voltou-se pelo mesmo caminho. A este tempo Seutes dispunha já dum exército mais numeroso que o dos gregos, engrossado dia a dia pelos odrísios e os trácios recentemente subjugados. Foram acampar numa planície acima da Selímbria, a cer­ ca de trinta estádios do mar. Já se não falava em soldo; os soldados andavam furiosos com Xenofonte. Seutes, também, já não o tratava com a familiaridade cordial dos primeiros tempos. Sempre que o ca­ pitão lhe queria falar, havia de inventar pretextos para não o receber.

VI

Dois meses eram quase decorridos quando chegaram Carmindo, de Lacónia, e Polínico, enviados por Timbrão. Tinha estalado a guer­ ra de Lacedemónia com Tissafernes e vinham convidar o exército grego a tomar parte na campanha, sob promessa de um dárico por mês a cada soldado, dois aos oficiais e quatro aos capitães. Heráclidas, quando o soube, correu a dizer a Seutes que estava com sorte. Se aos Lacedemónios era indispensável o exército grego, ele dispensava-o à maravilha. Abrindo mão, uns ficar-lhe-iam obriga­ dos e outros não o importunariam mais com a macarena do soldo por pagar, ao mesmo tempo que desarvoravam do território. Foi o que bastou para Seutes chamar à sua presença os deputa­ dos de Esparta. Deram estes conta do recado, respondendo ele que lhes entregava o exército com todo o prazer, porquanto a sua ambi­ ção era ser amigo e aliado dos Lacedemónios. E em testemunho de amizade convidou-os para um festim, que foi sumptuoso, em que não figuraram Xenofonte nem nenhum dos capitães. Foi aí que os la­ cedemónios lhe perguntaram que espécie de homem era Xenofonte. — Não é má pessoa — respondeu ele — mas traz os soldados nas palmas das mãos e não ganha nada com isso. — Tem então grande ascendente sobre os soldados? — Ah, sim. — Nesse caso, é capaz de os não deixar vir connosco?... — Não me parece. O que tendes a fazer é convocá-los e ofere­ cer-lhes um soldo. Vereis como lhe viram as costas e vão atrás de vos.

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— E como havemos nós de convocá-los? — Eu vou convosco. Amanhã de manhã cedo, vos levarei ao campo dos gregos. Ides ver; dito e feito. No dia seguinte Seutes e Heráclidas foram ensinar o campo dos gregos aos dois lacedemónios. O exército reuniu imediatamente. Um deles disse: — Esparta decidiu fazer guerra a Tissafernes, esse sátrapa que vos fez tanto mal. Se estais dispostos a tomar parte na expedição, contai com um dárico mensal, para cada soldado, o duplo para cada oficial e o quádruplo para cada capitão. Ouviram os soldados esta proposta com manifesto prazer. Um árcade aproveitou para declamar contra Xenofonte. Seutes, que per­ cebeu, aproximou-se para ouvir melhor. Estava ao pé dele o grego, além de que percebia a língua sofrivelmente. — Lacedemónios, há muito que estaríamos a vosso lado se Xe­ nofonte não nos tivesse persuadido a tomar este rumo. Passámos um inverno, dos mais terríveis invernos de que temos memória, em guer­ ra aberta sem tirar nenhum lucro, enquanto que ele está a gozar do suor do nosso rosto e que Seutes, que lhe untou a pata, nos nega o pré. Cá por mim dava-me por bem recompensado de tudo se visse Xenofonte lapidado e punido pelas desgraças a que nos arrastou. Levantou-se um segundo grego e não foi outro o som do choca­ lho. Um terceiro, idem. Xenofonte, então, levantou-se e proferiu: — Cem anos que eu viva já nada me espanta, pois que me vejo hoje acusado precisamente daquilo — juro-vos na minha consciência — que tratei com o maior zelo e isenção, para bem vosso. Bem sa­ beis que me achava já a caminho de casa quando voltei atrás e, por Júpiter, não foi para participar da vossa prosperidade. Tinha-me che­ gado notícia do transe em que vos encontráveis e não ouvi senão a voz do meu coração: valer-vos, se me fosse possível. Mal acabava de chegar ao pé de vós, Seutes, aqui presente, mandou-me um pró­ prio com promessas de encher o olho, para o caso em que lhe pres­ tássemos ajuda militar. Não lhe dei ouvidos, como é notório, e encaminhei-vos para o porto donde facilmente passaríamos para a Ásia. Era o que vós ambicionáveis e o que, em realidade, se me afigurava preferível. Neste entretanto apareceu-nos Aristarco com o seu ulti­ mato: «não penseis em atravessar a Propôntida. As minhas galeras lá

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estão para vos tirar as teimas.» Ao mesmo tempo aconselhava-nos a meter para o Quersoneso. Que fazer? Chamei-vos para deliberar. Entre a intimação dum e a proposta doutro, destes os vossos sufrá­ gios ao trácio. Agora, pergunto eu: cometi um crime, capitaneando-vos numa empresa que vós próprios resolvestes abraçar? Se, porém, eu houvesse tomado o partido de Seutes depois que anda a mangar convosco, a fazer gato-sapato, não nego que merecia o vosso ódio e as vossas repreensões. Se porém eu vos disser que, depois de ser um dos seus melhores amigos, hoje estou de relações, pode dizer-se, cortadas com ele, é justo que me lanceis em cara precisamente aquilo que foi a causa do nosso desaguisado? Pode ser que vos passe pela cabeça que Seutes me deu o dinheiro que representa o soldo que vos é devido e que a minha atitude a seu respeito não passa de artifício. Mas, sendo assim, não salta aos olhos da cara que não foi intenção sua desembolsar aquele dinheiro e continuar a ser o vosso devedor? E então só se compreende que me tenha dado a mim uma parte do que vos devia, para se dispensar de vos dar a quantia por inteiro. Mas neste caso, há uma maneira de desatar a conjura, ficando nós ambos, que a tramámos, a chuchar no dedo: é exigir-lhe o pré. Se eu recebi algum dinheiro, ficai certos que ele não se incomodará muito para mo pedir, tanto mais que não se realizou a condição que deveria ter sido prevista, ficardes vós calados. Mas ouvi, tudo isto é bom raciocí­ nio, mas inútil. Juro-vos por todos os Deuses e Deusas da corte ce­ lestial que não vi um óbolo do que vos pertence. Nada daquilo que me cabia recebi, tão-pouco. Seutes, que está a ouvir-nos, que me des­ minta se é capaz. Mas digo-vos mais e sob juramento: recebi muito menos que os outros capitães, menos ainda que os oficiais. Como ex­ plicar semelhante procedimento? Eu vos digo, contava que, parti­ lhando com Seutes as dificuldades em que se via, mais direitos alcan­ çaria à sua amizade para a hora em que recorresse a ela. Enganei-me? Sim, enganei-me; mas só agora, que está na prosperidade, é que mos­ tra bem o barro de que é feito. «Não tens vergonha — poderão di­ zer-me — de te deixares tão estupidamente lograr?» De facto, era pa­ ra corar de vergonha se fosse um inimigo que tivesse feito pouco de mim com tal requinte. Mas não, tinha-o por amigo. E, entre amigos, mais vale ser enganado que enganar. De resto, se precauções há a to­ mar com amigos, ninguém as toma melhor do que vós. Destes-lhe

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acaso, por algum acto, pretexto a faltar à palavra? Não, ninguém lhe deu uma só razão de queixa. Levou-nos a combater para a direita... para a esquerda, e nunca lhe manifestámos má vontade nem demos provas de temor ou cobardia. Dir-me-eis que seria conveniente ter tomado penhores, de modo a não nos enganar ainda que o tivesse no ânimo. Ides ouvir... ides ouvir aquilo que eu nunca seria capaz de proferir na presença de Seutes se não tivésseis mostrado há pouco a vossa ingratidão. Estais lembrados da extremidade a que vos achá­ veis reduzidos, quando vos levei para debaixo da bandeira de Seutes?! Não acabava Aristarco de vos fechar as portas de Perinto com penas terríveis para os recalcitrantes? Não acampáveis fora de muros, ao se­ reno? Não era no pino do inverno? Se queríeis comer uma côdea de pão, não tínheis que a pagar? Mesmo com dinheiro, havia géneros que chegassem? Mas havia dinheiro? Da Trácia para fora não podíeis bulir, pois que as galeras vigiavam o estreito. Mas, quedar ali era que­ dar em país inimigo, com forças consideráveis de cavalaria e infanta­ ria pesada às canelas. Tínhamos hoplitas, é verdade. Caindo de repe­ lão sobre esta e aquela aldeia, poderíamos apanhar uns sacos de trigo; dispúnhamos de tropas capazes de perseguir o inimigo, fazer-lhe pri­ sioneiros, arrancar-lhe gado, em suma, fazer boa presa? Bem deveis estar certos que, ao voltar ao exército, já não encontrei cavalaria nem peltastas ou coisa que se pareça. Supondo que, em face do transe que atravessáveis, eu me dvesse bandeado, sem exigir soldo, com Seutes, que, esse, tinha cavalaria e peltastas, parece-vos que teria sido contra o vosso interesse? Desde que vos juntastes às tropas dele, os Trácios não quiseram mais saber do que era seu. Fugiram às sete partidas e deixaram-vos nas mãos trigo, que nunca mais vos faltou, escravos, e gado de que sempre vos tocou uma parte. Depois que a cavalaria de Seutes fez causa comum convosco, nunca mais o inimigo se apre­ sentou de cara, quando antes, a cada passo, os seus cavaleiros e pel­ tastas não nos deixavam respirar um instante. Indigna-vos que o ho­ mem a quem ficastes a dever tal mudança de situação tenha sido pouco exacto nas contas convosco; sim, tendes razão. Mas não vale nada a segurança de que gozastes? E o contratempo foi tão grande que deva eu pagá-lo com a vida? E agora dizei-me: em que circuns­ tâncias vos ides embora? Depois de passar o inverno na fartura, não

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levais ainda o que Seutes já vos deu em conta? Vivestes em país hos­ til, à custa do inimigo, a comer e beber à barba longa, e não obstante não morreu um só homem nosso, nem um só caiu prisioneiro. Isso não tem valor? Não vos resta ainda a glória que granjeastes na Ásia a combater os Bárbaros e na Trácia da Europa a reduzir à obediência populações indómitas? Ah, tenho o desassombro de o proclamar, graças, graças aos Deuses, é que deveis dar pelo benefício, que come­ teram para convosco, desses mil infortúnios de que me tornais res­ ponsável. A vossa situação é nítida. Pelos Deuses imortais rogo-vos agora que repareis para a minha. Quando embarquei para a Grécia, deixava a todos as melhores recordações; tínheis-me cumulado de louvores; cria-me com direito a desfrutar alguma glória na minha ter­ ra. Além disso, gozava da confiança dos Lacedemónios, sem o quê não teriam instado comigo para voltar ao exército. Hoje, retiro-me, diminuído junto dos Lacedemónios, odiado, por vossa causa, odiado de Seutes, o homem de quem eu esperava, mercê da aliança, conciliar estima bastante para encontrar junto dele refúgio digno para mim e meus filhos, se viesse a tê-los! E que direi do vosso procedimento para comigo, por causa de quem granjeei inimigos encarniçados, mais poderosos do que eu, por causa de cujos interesses, neste próprio instante, o meu espírito está atribulado! Aqui estou; não sou dos que fogem; fazei de mim o que vos aprouver; ficai, porém, sabendo que, se dais andamento aos vossos instintos, sacrificais o homem que ve­ lou pela vossa segurança mais do que era legítimo pedir-lhe; sofreu mil fadigas e correu mil perigos à vossa frente; ergueu, com a graça divina, troféus inúmeros nas terras dos Bárbaros; matou-se para im­ pedir que cada um de vós se tornasse inimigo figadal do seu irmão de raça! Hoje podeis ir para qualquer lado que vos apeteça, por terra ou por mar, sem que ninguém se vos atravesse no caminho. Pois bem, é nesta altura, quando o dia de amanhã se vos anuncia próspero e o povo mais poderoso da Grécia solicita o vosso concurso, que me to­ mais para vítima? Nas horas de perigo, outro era o vosso pensamen­ to, ó homens de boa memória! Então chamáveis-me pai e juráveis lembrar-vos de mim como do primeiro benfeitor. Só direi mais uma palavra para vos frisar uma coisa: os homens que aí estão decerto não

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são desprovidos de consciência. O meu medo é que fiquem forman­ do a vosso respeito um juízo pouco favorável, vendo-vos proceder para comigo de maneira tão pouco airosa. Xenofonte sentou-se e teve a palavra Carmindo, de Lacedemónia: — Soldados, não me parece que sejam justas as razões que invo­ cais contra este homem. Se dais licença, aí vai um testemunho em seu favor. Quando eu e Polínico perguntámos a Seutes que espécie de in­ divíduo era, o que nos apresentou como qualidade depreciativa foi precisamente a sua afeição exagerada pelos soldados. Se bem li nas suas palavras, tal circunstância prejudicá-lo-ia no nosso conceito co­ mo no dele. Seguiu-se no uso de palavra Euríloco, de Lúsio, na Arcádia: — A minha opinião, lacedemónios, é que o vosso primeiro acto, na qualidade de nossos chefes, seja obrigar Seutes a pagar o que nos deve, e que antes disso não devemos sair daqui para fora. Polícrates, ateniense, pediu a palavra e proferiu: — Camaradas, estou a ver daqui Heráclidas. Foi ele que recebeu a presa, destinada a recompensar os nossos trabalhos. Vendeu-a e não entregou a importância nem a nós nem a Seutes. Guardou-a o gatuno. O que temos a fazer é prendê-lo. Este sujeito não é trácio; é grego como nós e envergonha-nos a nação. Heráclidas, ao ouvir aquele discurso, ficou fulminado de terror. Aproximando-se de Seutes, disse-lhe: — O mais sensato é irmo-nos embora. Repara que quem manda aqui são os gregos. Montaram nos corcéis e abalaram à rédea solta. Uma vez em se­ guro, Seutes despachou o intérprete Abrozelmo a Xenofonte a con­ vidá-lo a ficar ao seu serviço com mil hoplitas sob promessa de lhe dar as cidades marítimas e o mais que fora ajustado. A puridade avisava-o de que ouvira dizer a Polínico que Timbrão propunha-se dar-lhe morte desde que o tivesse nas mãos. Várias pessoas, depois dis­ so, vieram preveni-lo que se acautelasse que a calúnia lhe abocanhava o nome. Xenofonte imolou duas vítimas a Júpiter para saber o que mais lhe convinha: ficar com Seutes, aceitando as suas condições, ou acompanhar o exército! O Deus significou-lhe que devia sair daquela terra.

VII

Seutes mudou o campo mais para o interior. Os gregos, esses, er­ gueram tendas naquelas aldeias, donde lhes era fácil alcançar a costa, depois de se abastecerem dos mantimentos necessários. Estas aldeias tinham sido oferecidas por Seutes a Medósade. Foi por isso que este, vendo os gregos consumir tudo quanto havia nas localidades, veio ter com eles à frente de trinta ginetes, trazendo em sua companhia o ho­ mem mais importante dos Odrísios que tinha vindo das serras, abra­ çado a causa de Seutes. Uma vez à vista do arraial dos gregos, cha­ mou Xenofonte de parte. Este, seguido dalguns oficiais e pessoas qualificadas para o encontro, apressou-se em corresponder ao desejo de Medósade. — Saqueias as aldeias, Xenofonte — disse o trácio — e assim praticas actos que nos são hostis e não podem ser-nos indiferentes. Por isso eu, em nome de Seutes, e este odrísio, em nome de Médoco, rei da Trácia Superior, te intimamos a pôr cobro a tais excessos; se não acederes, não imagines que o farás impunemente. Fica sabendo: se continuas a infestar o nosso território, conta connosco como ini­ migos. — O que tu merecias — replicou Xenofonte — pela maneira co­ mo te diriges a mim era que virasse as costas e te não respondesse. Mas vou-te responder em atenção a este jovem odrísio, para que sai­ ba quem vós sois e quem nós somos. Antes de ser aliados, circuláva­ mos por esta comarca como muito bem queríamos, pilhando onde encontrávamos que pilhar, deitando fogo onde houvesse represálias a cometer. Das vezes que te delegaram como deputado junto de nós.

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queixaste-te alguma vez e, até, pelo contrário, não te davas por muito feliz em poder dormir a sono solto nó nosso acampamento? Dantes não eras tu nem os teus que punham o pé nesta região; e se púnheis, era com as precauções todas, fogos acesos, cavalos selados, como em terra de inimigo mais forte do que vós. Foi com o nosso apoio que ficastes senhores da comarca; e, sendo assim, é preciso topete para pretender expulsar-nos dum lugar que não conquistastes, repito, se­ não mercê do nosso braço e do qual o inimigo era impotente para nos rechaçar. E, em vez de nos vir apresentar despedidas com votos amicais e presentes, em sinal de reconhecimento pelo que nos deveis, querias impedir-nos de assentar aqui arraial de caminho para o por­ to?! E não tens medo de proferir tais ameaças à face dos Deuses?! E não tens vergonha de vir com baboseiras semelhantes diante deste mancebo que te vê rico e soberbo quando, antes da nossa aliança, le­ vavas, como tu próprio confessaste, a vida atribulada dum bandolei­ ro?! Olha lá e porque é que vens ter comigo em vez de te dirigir aos lacedemónios, que são hoje quem manda aqui, e a quem entregaste o exército grego com carta branca para o levarem para a Ásia, sem ter consideração por mim, chamando-me, como seria justo, a desatar um tratado para de algum modo recuperar a simpatia que possivel­ mente tivesse perdido aliando-me convosco?! Ditas aquelas palavras o jovem odrísio exclamou: — Depois do que acabo de ouvir, tenho vontade de me meter debaixo do chão onde ninguém me veja. Se tivesse sabido como as coisas eram, não te teria acompanhado, Medósade. Mas vou-me já embora. Médoco, meu real amo, nunca me perdoaria que tivesse co­ laborado de alguma forma na expulsão dos nossos benfeitores. E, sem outras palavras, montou a cavalo e partiu a galope segui­ do dos mais cavaleiros, à excepção duns quatro que ficaram com Me­ dósade. Este teimou em levar a sua reclamação por diante e pediu para chamarem os lacedemónios. Xenofonte transmitiu este desejo a Carmindo e Polínico, acrescentando: — Chegou a ocasião de se conseguir que paguem o que devem ao exército. E questão de lhes dizerdes que os soldados exigem o pa­ gamento a bem ou a mal; que prometeram ir convosco desde que a dívida lhes seja satisfeita e, pois que têm toda a razão, tomastes

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o compromisso de os não levar daqui para fora antes de estarem completamente reembolsados. Os lacedemónios concordaram e, mal se viram em presença do trácio, rompeu Carmindo: — Tens alguma coisa a dizer-nos? Se tens, dize. Senão, temos nós. — Seutes e eu — respondeu em tom humilde — vimos pedir­ mos para não praticar depredações nesta comarca, que se nos tornou afeiçoada depois que é nossa. — Quereis que nos vamos dela para fora? Vamos, mas primeiro tendes de pagar o soldo àqueles que vos ajudaram a conquistá-la. De contrário, se faltais à palavra dada e lhes fazeis algum mal, connosco é que tereis de vos haver. Xenofonte disse: — Medósade, proponho-vos o seguinte, uma vez que tendes esta comarca por afeiçoada: decidir por um plebiscito se somos nós ou vós quem deve sair daqui... Medósade dissentiu da proposta e convidou os lacedemónios a dirigirem-se a Seutes, que decerto não deixaria de dar resposta fa­ vorável à reclamação, ou de mandar com ele Xenofonte. Entretanto rogava que dessem ordens para poupar a região o mais possível. Xenofonte foi, pois, delegado junto de Seutes, com aqueles gre­ gos que ofereciam mais idoneidade para o desempenho de semelhan­ te missão. Uma vez diante do rei dos Trácios, Xenofonte disse: — Não venho, Seutes, pedir-te nada pessoalmente mas, sim, fa­ zer-te sentir que não tinhas direito a pôr-te de mal comigo por ter exigido o soldo das tropas. Sempre supus e continuo a supor que ti­ nhas tanto interesse em pagar como elas em receber. Graças a elas, depois dos Deuses, é que te tornaste senhor de vastos territórios e de numerosas populações, atingindo uma altura em que nenhum dos teus actos, bons ou maus, podem passar despercebidos. Nessa posi­ ção eminente, não te convém ganhares fama de despedires os leais servidores sem a recompensa devida; tens também toda a vantagem em ser louvado pela boca de seis mil homens que te serviram e, so­ bretudo, de não deixar pôr em dúvida a tua palavra. Tenho notado que a palavra dos homens sem carácter é vã, sem eco, sem poder, en­ quanto a dos homens honrados vale como o oiro e tem força como

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o gládio. Lembras-te ou é preciso lembrar-te que nada nos deste adiantadamente quando contraímos aliança? Nada nos deste, tam­ bém nada te pedimos. Foi confiados na tua dignidade que de armas na mão te ajudámos a conquistar um império que vale incomparavel­ mente muito mais que os trinta talentos que nos deves e te reclama­ mos como dívida sagrada. Agora dite: essa confiança, que te valeu um reino, queres aliená-la por semelhante preço? Hem? Lembra-te a paixão que te movia à conquista deste reino! Quem te dera então ser senhor dele a troco de somas e somas bem mais taludas! Suponho que seria antes para ti maior desgraça e maior desdouro perder esta conquista do que tê-la feito, como antes é mais molesto volver de ri­ co a pobre do que ficar sempre pobre, e mais desanimador tornar a simples particular, depois de ser rei, do que nunca ter empunhado o ceptro. Ouve: tu sabes muito bem que se estes povos se mostram submissos, não é por afecto, mas por coacção. Tens dúvidas que não tentariam novo esforço para recuperar a liberdade se não estivessem tolhidos de medo?! Se virem, porém, as nossas tropas dispostas a fi­ car às tuas ordens, ou pelo menos a acudir em teu auxílio, em caso de necessidade; se ouvirem falar de ti com respeito, não crês que o teu império fica melhor cimentado do que pelo terror? Ou achas preferí­ vel que saibam que, em virtude do teu procedimento, ninguém mais virá socorrer-te, mas que pelo contrário nós estamos em melhores disposições para com eles do que para contigo?! De resto, se os Trácios foram subjugados, não foi por serem inferiores em força, mas por lhes faltarem de todo chefes. Ora não é de temer que venham buscá-los entre estes gregos, que se acham lesados por ti, ou que se façam capitanear pelos Lacedemónios, mais poderosos ainda, que te­ rão todo o empenho em ser agradáveis aos gregos para que aqueles se decidam a acompanhá-los na expedição? Também não há dúvida que os próprios Trácios marchariam de mais boa mente contra ti do que a teu favor. E, por isso, a tua vitória reforça os fuzis das algemas com que os escravizas; a tua derrota libertá-los-ia. Se te julgas na obrigação de zelar pelo bem-estar dos povos que conquistaste, fica certo que a comarca será mais bem tratada retirando-nos nós pacificamente do que ocupando-a a prazo indefinido. E quanto a dinheiro não te valerá mais pagar já o que deves, do que ficar a dever e ter de

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estipendiar tropas consideráveis? Heráclidas acha a quantia avultada; já mo declarou. Mas não te será hoje mais fácil levantá-la e pagar do que te era ontem arranjar a décima parte? Uma quantia, aliás, é gran­ de ou é pequena apenas em relação com as faculdades de quem paga e de quem cobra. Os teus proventos de um ano, hoje, valem mais do que quanto tu possuías ontem. Digo-te estas coisas com toda a fran­ queza para que te mostres digno dos bens que os Deuses te dispensa­ ram e não me deixes ficar mal colocado na opinião dos soldados. Em verdade, se eu hoje quisesse vingar-me dum inimigo ou prestar-te no­ vamente ajuda, não o conseguiria no estado de espírito em que se acha o exército a meu respeito. E, todavia, tomo-te por testemunha, tu e os Deuses imortais a quem nada é oculto, em como nada recebi da tua mão pelos serviços que os soldados te prestaram, bem como nunca te reclamei nada daquilo que me prometeste. E posso jurar que se te tivesses prontificado a satisfazer para comigo os compro­ missos, eu só aceitaria depois de o exército ter sido pago do que lhe devias. Consideraria como infamante ocupar-me dos meus negócios e pôr os dele de banda, mormente honrando-me os soldados com a sua confiança. Que um Heráclidas imagine que os maiores bens do mundo são as riquezas, entesouradas seja por que meios for, vá; mas tu, Seutes, como príncipe, tens obrigação de pensar que os bens mais estimáveis são a virtude, a justiça e a equanimidade. Quem os possui, estando em alto, vê-se rodeado de amigos. Se está na prosperidade, congratulam-se com ele; resvala na adversidade, correm em seu so­ corro. Se pelos meus actos não cheguei a convencer-te de que era teu amigo sincero, se as minhas palavras não iluminaram o teu espírito, presta ao menos ouvidos ao que dizem os soldados. Ouviste as acu­ sações de que fui alvo. Acusaram-me diante de Carmindo e Polínico de me importar mais contigo do que com os Lacedemónios e com o exército, e de estar mais atento aos teus interesses do que ao dos soldados. Não chegaram a pretender que me vendi à tua pessoa? Dize: se eu não tivesse dado sempre provas de zelo em tudo o que te dizia respeito era possível que me tornasse objecto de semelhante suspei­ ta? Também penso que é opinião unanimemente admitida que a gen­ te deva mostrar-se dedicada àqueles de quem recebeu dons. Antes que eu te tivesse prestado qualquer serviço particular tu tratavas-me

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com a mais larga bizarria. Pelas tuas palavras, pelos teus gestos, ao chegar ao pé de ti, sentia que era bem-vindo. E, quanto a promessas, não me prometeste tu este mundo e o outro? Agora que realizaste as mas ambições e que fiz quanto pude para te tornar poderoso, não te pesa ver-me desacreditado aos olhos dos soldados?! E, vê lá tu, não duvido que mais hora, menos hora venhas a pagar-lhes. O tempo há-de curar-te e estou certo de que acabarás por não fazer orelhas mou­ cas às queixas dos que te prestaram serviços inestimáveis. Paga-lhes, paga-lhes, peço-te, que quero ver-me tratado por eles com aquela confiança e estima com que se dignavam honrar-me antes de entrar ao teu serviço! Seutes, que não perdera uma palavra do discurso, arrenegou do homem por culpa do qual os gregos ainda não tinham sido embolsa­ dos do soldo que lhes era devido; e toda a gente ficou a julgar que se referia a Heráclidas. — Nunca pensei em ficar com esse dinheiro — protestou ele. — Vou pagar. — Pois que dizes que vais pagar, obsequeias-me muito se o fize­ res por minha mão — proferiu Xenofonte. — Por causa de ti desci na opinião dos soldados; não é legítimo que pela mesma via torne a reabilitar-me? — É legítimo e não serei eu quem queira o teu prejuízo. Disse e repito: fica com mil hoplitas e terás as praças fortes e mais bens que te prometi... — Impossível. Se dás licença, retiramo-nos. — Homem, fica. Não te há-de faltar nada. Estás mais seguro aqui... — Agradeço-te muito as atenções, mas está decidido. Podes, de resto, ficar certo que por onde vá não serei eu que te faça más ausên­ cias... Seutes, perante aquela resolução peremptória, acrescentou então: — Não tenho grande dinheiro; mas dou-te o que há: um talento. Em compensação ponho seiscentos bois, cerca de quatro mil carnei­ ros e uns cento e vinte escravos. Toma tudo, toma também os reféns dos trácios que te atacaram, e vai... Xenofonte disse sorrindo:

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— Se a venda de tudo isso não chega para pagar o pré, para quem é o talento? Não te parece que, nesse caso, vale mais dá-lo do que correr o perigo de ser lapidado? Xenofonte ficou ali o resto do dia. Na manhã seguinte, Seutes entregou aos deputados o que havia prometido e mandou gente en­ caminhar o gado para o arraial dos gregos. Já se dizia à boca cheia que Xenofonte lhes roera a corda e o que quisera fora ir ter com Seu­ tes para lá ficar. Por isso, assim que o viram aparecer, ficaram admi­ rados e correram para ele. Xenofonte dirigiu-se para onde estavam Carmindo e Polínico e disse: — Aqui está o que com a vossa firmeza conseguistes para os sol­ dados. Fazei o favor de vender e repartir o produto por eles. Fez-se a venda em hasta, não isenta de recriminações. Xenofonte conservou-se sempre de parte. Via-se que se dispunha a partir para a sua pátria, pois ao tempo ainda não fora objecto de ostracismo. Os amigos que tinha ali, no entretanto, vieram pedir-lhe que ficasse ao menos até entregar o exército a Timbrão.

VIII

Tomaram navios e foram desembarcar a Làmpsaco. Xenofonte encontrou-se ali com Euclides, de Fliunte, filho de Cleágoras que pintou os Sonhos para o Liceu, e vaticinava. Ao mesmo tempo que o amigo o felicitava por ter escapado a tantos perigos dizia: — Deves estar rico, Xenofonte? — Mais pobre do que nunca. Se agora quisesse voltar a Atenas, não tinha para pagar a passagem, a não ser que me desfizesse do ca­ valo e das armas. Euclides não queria crer. Tendo-se, porém, dado o caso que os moradores de Làmpsaco trouxessem a Xenofonte os presentes da hospitalidade, celebrou um sacrifício em louvor de Apoio e colocou Euclides ao seu lado. Este, depois de atentar para as entranhas das ví­ timas, disse a Xenofonte: — Sim, convenço-me de que não trouxeste nada da expedição; mas, daqui para o futuro, mesmo que a sorte te bafeje, não saberás aproveitá-la. — Sim, isso é pecha velha. — E Júpiter Melíquio que te é adverso. Querem ver que nunca mais lhe ofereceste holocaustos, como eu costumava fazer em Ate­ nas, em nome de todos? Xenofonte confessou que depois que saíra da pátria nunca mais imolara em honra de Júpiter Melíquio, Euclides aconselhou-o a fazê-lo e veria como a divindade se amercearia dele. No dia seguinte, Xenofonte foi a Ofrínio e, segundo o rito ate­ niense, queimou em holocausto porcos inteiros, e os presságios se

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lhe apresentaram propícios. No mesmo dia Bitão, que trazia dinheiro para o exército, apresentou-se a Euclides. Hospedados na mesma ca­ sa, dentro de pouco estavam íntimos de Xenofonte. Assim, como soubessem que ele vendera o cavalo por cinquenta dáricos num mo­ mento de dificuldade, reembolsaram o comprador e forçaram aquele capitão a aceitá-lo como presente. De Lâmpsaco, meteram através da Tróada. Passaram o monte Ida e a primeira povoação que encontraram foi Antandros, donde, costeando o mar, chegaram à planície de Tebas. Dali, depois de passar Adramíteo e Certónio, penetraram, perto de Atarne, no vale do Caíco, seguindo o qual, sempre em frente, atingiram Pérgamo, na Mísia. Xenofonte recebeu alojamento em casa de Hela, mulher de Gônjilo, de Erétria, e mãe de Gorgionte e de Gônjilo. Foi ela que infor­ mou encontrar-se Asidates, grande magnate persa, cerca dali, no vale. De noite, pela calada, não seria difícil apanhá-lo com a mulher e fi­ lhos e os tesouros, que eram consideráveis. Como a empresa fosse de tentar, Xenofonte ofereceu primeiro um sacrifício aos Deuses. Básias, da Elida, que era adivinho e foi chamado para assistir, declarou que as entranhas apresentavam sinais favoráveis e que Xenofonte deitaria a mão a Asidates. Xenofonte, em consequência, pôs-se a ca­ minho depois de ceia. Tinha a guiá-lo Dafnágoras, primo de Hela, que era criatura de confiança. Como tropas levava as companhias que sempre lhe foram dedicadas, as quais queria associar à boa vaza. Além disso, no couce, contra a sua vontade, saíram do arraial mais de seiscentos homens. Mas os oficiais, não querendo repartir com tanta gente uma presa que julgavam segura, deitaram a correr, deixando-os ficar muito para trás. Chegaram ao sítio à volta da meia-noite. Não andaram, porém, tão escoteiros que não fossem pressentidos, podendo escapar-se os escravos, que dormiam à volta do castelo, com a maior parte dos ani­ mais. Mas os gregos o que pretendiam era apoderar-se de Asidates e família com o tesouro e não fizeram caso. Assaltaram o castelo, mas este era uma alta e sólida torre, com ameias e gente a postos a impedir a escalada, e tentaram miná-la. A muralha tinha uma espes­ sura de oito tijolos; mesmo assim ao romper da manhã haviam-lhe

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aberto brecha, o suficiente para se entrar. Mas um dos sitiados atra­ vessou com um espeto a coxa do grego que se ia a adiantar, e os ou­ tros intimidaram-se. Os bárbaros, também, faziam chover flechas so­ bre aquele ponto, tornando o acesso perigosíssimo. Aos gritos que soltaram, aos fogos que acenderam a dar sinal, Itabélio marchou em socorro do castelo com as forças que pôde reunir. Acudiram também os hoplitas assírios destacados na Comânia, uns oitenta ginetes da Hircânia a soldo do rei, e perto de oitocentos peltastas. De reforço, ainda, saiu a cavalaria de Parténio, de Apolónia e das localidades limí­ trofes. Era tempo de bater em retirada. Os gregos arrebanharam quan­ tos escravos, bois e carneiros puderam e meteram-nos no meio da coluna. Não que ligassem importância de maior à presa. Mas deste modo a retirada deixava de ter ar de fuga e nem os gregos desanima­ vam nem o inimigo cobraria fumaças de vencedor. Voltavam, pois, com a tomadia, e Gônjilo, vendo-os assediados por tropas incompa­ ravelmente superiores, saiu em socorro deles, não obstante a oposi­ ção da mãe. Procles, descendente de Damarato, acorreu também em auxílio dos gregos com as forças de Halisarna e da Teutrânia. A hoste de Xenofonte tinha formado em círculo de modo a po­ der cobrir-se com os escudos do chuveiro de flechas e de pedras, e, não sem custo, pôde deste modo atravessar o Calco. Foi neste passo que ficou ferido Agásias, de Estinfalo, que sempre combateu com denodo. Mais de metade dos gregos ficou também ferida. Graças ao auxílio chegado, os gregos puderam alcançar o campo, tendo conser­ vado cerca de duzentos prisioneiros e muito gado miúdo, que se pro­ puseram sacrificar aos Deuses. Na noite seguinte, depois do holocausto, Xenofonte pôs-se à tes­ ta do exército em direcção à Lídia para que Asidates se tranquilizasse e adormecesse sobre as precauções tomadas. Ele, porém, soubera que Xenofonte voltara a sacrificar com o intuito de renovar o ataque, sem dúvida, e para maior segurança deixou o seu castelo e dirigiu-se para o Parténio. Nas povoações das cercanias Xenofonte armara-lhe, porém, uma emboscada com forças retiradas em segredo do grosso do exército. E ele, mulher, filhos, escravos, cavalos e tudo o mais que possuía caiu nas mãos dos gregos. Assim se cumpriu o presságio. O exército dali retrocedeu para Pérgamo e Xenofonte felicitou-se

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por ter imolado a Júpiter Melíquio. Com efeito, não só os Lacedemónios, como os capitães e oficiais, foram unânimes em obrigá-lo a esco­ lher da presa, além de cavalos e juntas de bois, o que mais lhe agradas­ se. Xenofonte viu-se, desta feita, em condições de poder obsequiar um amigo. Timbrão chegou por aquela altura e, tomando o comando das tropas, incorporou-as no exército com que fez guerra a Tissafernes e Farnabaz. Governavam as províncias atravessadas pelos gregos os seguintes sátrapas: Artimas na Lídia; Artácamas na Frigia; Mitridates na Lacaónia e Capadócia; Siénesis na Cilicia; Dernes na Fenícia e na Arábia; Bélesis na Síria e Assíria; Roparas em Babilónia; Arbaces na Média; Tiribaz na terra dos Fasianos e dos Hespéritos. Carducos, Cálibes, Caldeus, Macrões, Colcos, Mossínecos, Cetos, Tibarenos eram povos autónomos. Córilas governava na Paflagónia, Farnabaz na Bitínia e os Trácios da Europa eram vassalos de Seutes. O total do percurso, avanço e retirada, montava a mil cento e cinquenta e cinco parasangas, ou seja trinta e quatro mil seiscentos e cinquenta estádios. A ex­ pedição durou quinze meses.

GLOSSÁRIO DOS TERMOS GREGOS CONSERVADOS NA TRADUÇÃO

Cápita, medida de capacidade, equivalente a 2,19 1. Carducos, povos hoje chamados Curdos. Chénica, medida de capacidade, equivalente a 1,09 1. Citpceno, moeda de Cízico que valia pouco mais ou menos 28 dracmas, ou seja, uma libra e quatro xelins. Dárico, moeda de oiro persa que valia pouco menos duma libra de hoje. Doríforos, carregadores do saque. Estádio, medida de comprimento grega equivalente a 184,0625 m. Harmosta, governador de Esparta nas cidades conquistadas. Hoplita, soldado grego da infantaria pesada. Melinófagos, que se alimentam de milho miúdo. Mina, moeda dos Gregos que valia 100 dracmas. Orgia, medida de comprimento (1,85 m). Parasanga, medida itinerária dos Persas (5,520 kg). Pean, canto dos Gregos, de princípio em honra de Apoio ou Ártemis e consagrado depois como canto de guerra. Peltasta, soldado grego da infantaria ligeira. Pletro, medida de comprimento (30,83 m). Sitalca, canto de guerra entre os Trácios com o nome do rei a quem foi consagrado.

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