Mente, Cérebro e Ciência [1 ed.] 9724416755, 9789724416755

Como é que a mente se relaciona com o cérebro? Qual deve ser a nossa posição perante a inteligência artificial? Será o c

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Mente, Cérebro e Ciência [1 ed.]
 9724416755, 9789724416755

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John Searle Mente, Cérebro e Ciência

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Blill.lOTECA DE FILOSOFJA CONTEMPORÂNEA

«O tema predominante diz respeito à relação dos seres humanos com o resto do Universo. De modo específico, diz respeito à questão de como conciliamos uma certa concepção mentalista tradicional, que temos de nós mesmos, com uma concepção aparentemente inconsciente do Universo enquanto sistema físico, ou um conjunto de sistemas físicos em interacção. Em torno deste tema, cada capítulo aborda uma questão específica: qual é a relação da mente com o cérebro? Podem os computadores digitais ter mentes só porque têm programas correctos com as entradas e saídas correctas? Quão plausível é o modelo da mente enquanto programa de computador? Qual a natureza da estrutura da acção humana? Qual é o estatuto das ciências sociais enquanto ciências? Como podemos nós conciliar, se é que podemos, a convicção da vontade livre com a nossa concepção do Universo enquanto sistema físico ou um conjunto de sistemas físicos em ínteracção?»

Aberta a todas as correntes do pensamento, integra autores modernos e textos fundamentais que vão da filosofia da linguagem à herme-

nêutica e à epistemologia.

BIBLIO TECA D E FILO SO FIA CO N TEM PO RÂNEA

1. Mente, Cérebro e Ciência,.John

Searle 2. Teoria da Interpretação, Paul Ricoeur 3. Técnica e Ciência como Ideologia, Jürgen Habermas 4. Anotações sobre as Cores, Ludwig Wittgenstein 5. Totalidade e Infinito, Emmanuel Levinas 6. As Aventuras da Diferença, Gianni Vattimo 7. Ética e Infinito, Emmanuel Levinas 8. O Discurso da Acção, Paul Ricoeur 9. A Essência do Fundamento, Martin Heidegger 10. A Tensão Essencial, Thomas Kühn 11. Fichas (Zettel), Ludwig Wittgenstein 12. A Origem da Obra de Arte, Martin Heidegger 13. Da Certeza, Ludwig Wittgenstein 14. A Mão e oEspírito,.Jean Brun 15. Adeus à Razão, Paul Feyerabend 16. Transcendência e Inteligibilidade, Emmanuel Levinas 18. Ideologia e Utopia, Paul Ricoeur 19. O Livro Azul, Ludwig Wittgenstein 20. O Livro Castanho, Ludwig Wittgenstein 21. O Que é uma Coisa, Martin Heidegger 22. Cultura e Valor, Ludwig Wittgenstein 23. A Voz e o Fenómeno, .Jacques Derrida 24. O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente, Karl R. Popper 25. A CriticaeaConvü:ção, Paul Ricoeur

26. História da Ciência e suas Reconstruções Racionais, Imre Lakatos 27. O Mito do Contexto, Karl R. Popper 28. Falsificaçiio e Metodologia dos Programas de .Investigação Científica, Imre Lakatos 29. O Fim da Idade Moderna, Romano Guardini 30. A Vida é Aprendizagem, Karl R. Popper 31. Elogio da Teoria, Hans-Georg Gadamer 32. Racionalidade e Comunicação, .Jürgen Habermas 33. Palestras, Maurice Merleau-Ponty 34. Cadernos, 1914-1916, Ludwig Wittgenstein 35. A Filosofia no Século XX, Remo Bodei 36. Os Problemas da Filosofia, Bertrand Russell 37. lttü:a da Autenticidade, Charles Taylor 38. Bios. Biopolítica e Filosofia, Roberto Esposito 39. A Luta pelo Reconhecimento, Axel Honneth 40. Amor e justiça, Paul Ricoeur 41. Vivo até à Morte seguido de Fragmentos, Paul Ricoeur 42. O Aberto. O Homem e o Animal, Giorgio Agamben 43. Temperamentos Filosôficos, Peter Sloterdijk 44. Deus, a Morte e o Tempo, Emmanuel Levinas 45. A Simbólica do Mal, Paul Ricoeur 46. A Arqueologia do Saber, Michel Foucault

Mente, Cérebro e Ciência

Título original: Minds, Brains and Science © John R. Searle, 1984 Tradução: Artur Morão Capa: FBA Depósito Legal n.• 3885.52/15

Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogação na Publicação SEARLE, John, 1932Mente, cérebro e ciência. - Reimp. - (Biblioteca de filosofia contemporânea ; 1) ISBN 978-972-44-1675-5 CDU 159

Paginação:

~ Impressão e acabamento: DPS- DIGITAL PRINTING SERVICES, LDA para EDIÇÕES70 em Fevereiro de 2019 (1987) ISBN: 978-972-44-1675-5 ISBN da l' edição: 972-44-0473-0 Direitos reservados para todos os países de Língua Portuguesa por Edições 70 EDIÇÕES 70, uma chancela de Edições Almedina, S.A. Avenida Engenheiro Arantes e Oliveira, I 1 - 3." C - 1900-221 Lisboa/ Portugal Telefs.: 213190240 - Fax 213190249 e-mail: [email protected]

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John Searle Mente, Cérebro e Ciência

ADagmar

INTRODUÇAO

Foi para mim uma grande honra ser convidado para dar as ReithLecturesde 1984. Desde que Bertrand Russell iniciou a série em 1984, estas são as primeiras dadas por um filósofo. Mas, se dar as lições é uma honra, constitui também um desafio. A série ideal das Reith Lectures devia consistir em seis unidades radiofónicas, cada uma com a duração exacta de meia hora e constituindo uma entidade autónoma que pode valer por si mesma, contribuindo, no entanto, para um todo unificado composto por seis. A série deveria fazer-se com base no trabalho prévio do conferencista, mas ao mesmo tempo deveria conter material novo e original. E, de todas as coisas, talvez a mais difícil de realizar, devia ser completamente acessível a um auditório interessado e atento cujos membros na sua maioria não têm qualquer familiaridade com o assunto, com a terminologia ou com as preocupações específicas dos seus praticantes. Não sei se todos estes objectivos são simultaneamente realizáveis, mas de qualquer modo são aquilo que eu visei. Uma das razões mais fortes

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para querer dar as Reith Lectures foi a convicção de que os resultados e métodos da moderna filosofia analítica podem pôr-se à 'disposição de um auditório muito mais vasto. Os meus primeiros planos para a versão em livro eram ampliar cada um dos capítulos de maneira a tentar vir ao encontro de todas as objecções que eu podia imaginar surgirem da parte dos meus colegas filósofos embirrentos, para não mencionar os colegas em ciência cognitiva, inteligência artificial e outros campos.~Em suma, o meu plano original era tentar transformar as Lições num livro convencional com notas de rodapé e tudo o mais. Por fim, tomei uma decisão contrária a isso precisamente porque tal destruiria o que para mim constituía uma das coisas mais apelativas da série, em primeiro lugar: a sua completa acessibilidade a quem quer que estivesse suficientemente interessado para tentar seguir os argumentos. Esses capítulos, pois, são essencialmente as Reith. Lectures tal como as realizei. Ampliei alguns em favor de uma maior clareza, mas tentei conservar o estilo, o tom e o carácter informal das conferências originais. O tema predominante da série diz respeito à relação dos seres humanos com o resto do Universo. De modo específico, diz respeito à questão de como conciliamos uma certa concepção mentalista tradicional, que temos de nós mesmos, com uma concepção aparentemente inconsciente do Universo enquanto sistema físico, ou um conjunto de sistemas físicos em interacção. Em torno deste tema, cada capítulo aborda uma questão específica: qual é a relação da mente com o cérebro? Podem os computadores digitais ter mentes só porque têm programas correctos com as entradas e saídas correctas? Quão

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plausível é o modelo da mente enquanto programa de computador? Qual a natureza da estrutura da acção humana? Qual é o estatuto das ciências sociais enquanto ciências? Como podemos nós conciliar, se é que podemos, a convicção da vontade livre com a nossa concepção do Universo enquanto sistema físico ou um conjunto de sistemas físicos em interacção? Enquanto trabalhava para a série, emergiram alguns outros temas importantes que não podiam ser plenamente desenvolvidos em virtude apenas das limitações do formato. Quero torná-los plenamente explícitas nesta Introdução e, ao fazê-lo, penso que posso ajudar o leitor a compreender os capítulos que se seguem. O primeiro tema é o escasso conhecimento que temos do funcionamento do cérebro humano e a medida significativa em que as pretensões de certas teorias dependem desse desconhecimento. Como escreveu em 1978 o neurólogo David Hubel: «O nosso conhecimento do cérebro encontra-se num estado muito primitivo. Enquanto para algumas regiões desenvolvemos uma espécie de conceito funcional, há outras, do tamanho de um pulso, acerca das quais se pode quase dizer que estamos no mesmo estado de conhecimento em que nos encontrávamos relativamente ao coração, antes de nos darmos conta de que bombeava sangue.» E, efectivamente, se o leigo interessado pegar numa meia dúzia de livros de texto estandardizados acerca do cérebro, tal como eu fiz, e os abordar com o esforço de obter respostas para os tipos de questões que imediatamente ocorreriam a qualquer pessoa curiosa, é muito provável que fique desapontado. O que é exactamente a neurofisiologia da consciência? Porque é que precisamos de dormir? Porque é que o álcool nos

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embebeda? Em que medida exacta as memórias estão armazenadas no cérebro? Na altura em que escrevo, ainda não sabemos as respostas para qualquer uma dessas questões fundamentais. Muitas das pretensões feitas a propósito da mente nas várias disciplinas, desde a psicologia freudiana até à inteligência artificial, dependem deste tipo de ignorância. Tais pretensões vivem dos buracos que existem no nosso conhecimento. Na explicação tradicional do cérebro, a explicação que toma o neurónio como a unidade fundamental do funcionamento cerebral, a coisa mais notável acerca do funcionamento do cérebro é simplesmente esta. Toda a enorme variedade de inputs que o cérebro recebe - os fotões que impressionam, a retina, as ondas sonoras que estimulam o tímpano, a pressão sobre a pele que activa as terminações nervosas para a pressão, o calor, o frio e a dor, etc. - todos estes inputs se transformam num meio comum: padrões variáveis e excitação neuronal. Além disso, e igualmente notável, estes padrões variáveis de excitação neuronal em diferentes circuitos neuronais e diferentes condições locais no cérebro produzem toda a variedade da nossa vida mental. O cheiro de uma rosa, a experiência do azul do céu, o gosto das cebolas, o pensamento de uma fórmula matemática: tudo isto é produzido por padrões variáveis de excitação neuronal, em circuitos diferentes, relativos a condições locais diferentes no cérebro. Ora, o que são exactamente estes diferentes circuitos neuronais e o que são os diversos ambientes locais que explicam as diferenças na nossa vida mental? Em pormenor, ninguém sabe, mas temos boas provas de que certas regiões do cérebro são especializadas para certos tipos de experiências. O córtex visual desempenha um papel espe-

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cífico nas experiências visuais, o córtex auditivo nas experiências auditivas, etc. Suponhamos que eram fornecidos estímulos auditivos ao córtex visual e eram fornecidos estímulos visuais ao córtex auditivo. Que aconteceria? Tanto quanto sei, ninguém alguma vez fez esta experiência, mas parece razoável supor que o estímulo auditivo seria «visto», isto é, que ele produziria experiências visuais, e o estímulo visual seria «ouvido», isto é, produziria experiências auditivas e ambos em virtude de características específicas, embora largamente desconhecidas, do córtex visual e auditivo, respectivamente. Embora esta hipótese seja especulativa, tem algum apoio independente se reflectirmos no facto de que um soco nos olhos produz um clarão visual ( «ver estrelas»), embora não seja um estímulo óptico. Um segundo tema que aparece nestes capítulos é termos herdado uma resistência cultural a tratar a mente consciente como um fenómeno biológico semelhante a qualquer outro. Isto remonta a Descartes, no século xvu. Descartes dividiu o Mundo em dois tipos de substâncias: substâncias mentais e substâncias físicas. As substâncias físicas eram o domínio próprio da ciência e as substâncias mentais eram a propriedade da religião. Existe ainda alguma aceitação desta concepção mesmo no tempo actual. Assim, por exemplo, a consciência e a subjectividade são muitas vezes consideradas tópicos inadequados para a ciência e esta relutância em lidar com a consciência e a subjectividade é parte de uma tendência objectivante persistente. As pessoas pensam que a ciência deve tratar dos fenómenos objectivamente observáveis. Ocasionalmente, em conferências que fiz a auditórios de biólogos e neurofisiólogos, encontrei muitos deles que tinham

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relutância em tratar a mente em geral e a consciência em particular como um domínio adequado de investigação científica. Um terceiro tema que percorre subliminarmente estes capítulos é o de que a terminologia tradicional, que temos para discutir esses problemas, é inadequada em várias maneiras. Dos três termos que constituem o título, Mente, Cérebro e Ciência, só o segundo se encontra bem definido. Por «Mente» entendo,justan'i.ente, as sequências de pensamentos, sentimentos e experiências, quer conscientes quer inconscientes, que constituem a nossa vida mental. Mas o uso do termo «Mente» é perigosamente habitado pelos fantasmas das velhas teorias filosóficas. É muito difícil resistir à ideia de que a Mente é uma espécie de coisa ou, pelo menos, uma arena ou, pelo menos, algum tipo de caixa preta em que todos os processos mentais ocorrem. A situação em torno da palavra «Ciência» é ainda pior. Se pudesse, dispensaria de bom grado esta palavra. «Ciência» tornou-se um termo honorífico e todos os tipos de disciplinas que são completamente dissemelhantes da Física e da Química de boa vontade se denominam a si mesmas «Ciências». Uma boa regra empírica a reter na mente é que tudo aquilo que se chama «Ciência» provavelmente não o é - por exemplo, ciência cristã, ou ciência militar e, possivelmente, também ciência cognitiva ou ciência social. A palavra «Ciência» tende a sugerir muitos investigadores de batas brancas agitando tubos de ensaio e prescrutando instrumentos. Para muitas mentes, sugere uma infalibilidade de arcano. O quadro rival que eu quero sugerir é este: o que todos nós visamos nas disciplinas intelectuais é conhecimento e compreensão. Existe apenas conhecimento e compreensão, quer o tenhamos

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na Matemática, na Crítica Literária, na História, na Física ou na Filosofia. Algumas disciplinas são mais sistemáticas do que outras, e poderíamos querer reservar para elas a palavra «Ciência». Sinto-me em dívida para um vasto número de estudantes, colegas e amigos pela sua ajuda a preparar as Reith Lectures, quer na versão radiofónica, quer na versão editorial. Quero especialmente agradecer aAlan Code, Rejane Carrion, Stephen Davies, Hubert Dreyfus, Walter Freeman, Barbara Horan, Paul Kube, Karl Pribram, Gunther Stent e Vanessa Whang. A BBC foi de uma ajuda extraordinária. George Fischer, o director do departamento de palestras, foi de grande apoio; e o meu produtor, Geoff Deehan, foi simplesmente excelente. A minha maior dívida é para com a minha esposa, Dagmar Searle, que me ajudou em todos os passos do trabalho e a quem este livro é dedicado.

I

O PROBLEMA DA MENTE-CORPO

Durante milhares de anos, as pessoas têm tentado compreender a sua relação com o resto do Universo. Por razões várias, muitos filósofos têm hoje relutância em abordar estes grandes problemas. No entanto, os problemas persistem e, neste livro, vou abordar alguns deles. Por agora, o maior problema é este: temos uma série de imagens de nós mesmos, provenientes do senso comum, enquanto seres humanos, que é muito difícil de harmonizar com a nossa total concepção «científica» do mundo físico. Pensamo-nos como agentes conscientes, livres, atentos, racionais num mundo que a ciência nos diz consistir inteiramente em partículas físicas sem mente e sem significado. Ora, como podemos nós harmonizar estas duas concepções? Como, por exemplo, pode ser possível que o Mundo contenha apenas partículas físicas inconscientes e, no entanto, que contenha também consciência? Como pode o_Universo mecânico conter seres humanos intencionalistas - isto é, seres humanos que podem representar o Mundo para si mesmos? Como, em suma, pode

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um mundo essencialmente sem significado conter significados? Tais problemas transbordam para outras questões bombasticamente mais contemporâneas: como devemos nós interpretar o trabalho recente em ciência de computadores e inteligência artificial - trabalho que visa a construção de máquinas inteligentes? De modo específico, dar-nos-á o computador digital a imagem correcta da mente humana? E porque é que as ciências sociais, em geral, não nos deram uma compreensão de nós mesmos comparável à compreensão que as ciências naturais nos deram para o resto da natureza? Qual a relação entre as explicações ordinárias, de senso comum, que aceitamos acerca da maneira como as pessoas se comportam e os modos científicos de explicação? Neste primeiro capítulo, quero mergulhar bem fundo naquilo que muitos filósofos pensam e consideram o mais difícil de todos os problemas: qual a relação das nossas mentes com o resto do Universo? Este é, como certamente reconhecerão, o problema tradicional da Mente-Corpo ou Mente-Cérebro. Na sua versão contemporânea, assume habitualmente a forma: como é que a mente se relaciona com o cérebro? Penso que o problema da Mente-Corpo tem uma solução bastante simples, e que é coerente tanto com aquilo que sabemos acerca da neurofisiologia como com a concepção do senso comum acerca da natureza dos estados mentais - dores, crenças, desejos e assim por diante. Mas, antes de apresentar esta solução, quero interrogar-me porque é que o problema da Mente-Corpo parece tão intratável. Porque é que temos ainda na Filosofia e na Psicologia, após todos estes séculos, um «problema da

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Mente-Corpo» de um modo que não temos, digamos, um «problema da digestão-estômago»? Porque é que a Mente parece mais misteriosa do que os outros fenómenos biológicos? Estou convencido de que parte da dificuldade reside em continuarmos a falar acerca de um problema do século xx com um vocabulário fora de moda e próprio do século XVII. Quando era estudante universitário, lembro-me de me sentir insatisfeito com as alternativas que aparentemente estavam disponíveis na Filosofia da Mente: poderia ser ou um monista ou um dualista. Se se fosse monista, poder-se-ia ser um materialista ou um idealista. Se se fosse um materialista, poder-se-ia ser behaviorista ou fisicalista. E assim por diante. Um dos meus objectivos para o que vai seguir-se é tentar acabar com estas velhas categorias esgotadas. Note-se que ninguém sente que deve escolher entre monismo e dualismo onde está em causa o «problema da digestão-estômago». Porque é que deveria ser diferente com o problema da Mente-Corpo? Mas, vocabulário à parte, existe ainda um problema ou família de problemas. Desde Descartes, o problema da Mente-Corpo foi abordado da seguinte forma: como podemos nós explicar as relações entre duas espécies de coisas na aparência totalmente diferentes? Por um lado, há coisas mentais, como os nossos pensamentos e sentimentos; consideramo-los subjectivos, conscientes e imateriais. Por outro, há coisas físicas; pensamos que elas têm massa, como extensas no espaço e como interagindo causalmente com outras coisas físicas. A maior parte das soluções tentadas para o problema da Mente-Corpo acabam por negar a existência ou, de algum modo, por minimizar

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o estatuto de um ou outro destes tipos de coisas. Dados os êxitos das Ciências Físicas, não causa surpresa que, no nosso estádio de desenvolvimento intelectual, a tentação seja minimizar o estatuto das entidades mentais. Assim, a maior parte das concepções materialistas da Mente de moda mais recente - como o behaviorismo, o funcionalismo e o fisicalismo - acabam por negar, implícita ou explicitamente, que há coisas como as mentes, tais como ordinariamente as pensamos. Isto é, negam que tenhamos real e intrinsecamente estados mentais subjectivos e conscientes, e que eles sejam tão reais e tão irredutíveis como qualquer outra coisa no Universo. Ora, porque é que fazem isso? Porque é que tantos teóricos acabam por negar o carácter intrinsecamente mental dos fenómenos mentais? Se pudermos responder a esta questão, creio que entenderemos porque é que o problema da Mente-Corpo pareceu, durante tanto tempo, intratável. Há quatro características dos fenómenos mentais que os impossibilitou de se inserirem na nossa concepção «científica» do Mundo enquanto feito de coisas materiais. E são estas quatro características que tornaram realmente dificil o problema da Mente-Corpo: são tão embaraçosas que levaram muitos pensadores, na Filosofia, na Psicologia e na Inteligência Artificial, a dizer coisas estranhas e implausíveis acerca da Mente. A mais importante destas características é a consciência. E, no momento em que estou a escrever isto, e vocês no momento de a lerem, somos ambos conscientes. É um facto evidente que o Mundo contém tais estados e eventos mentais conscientes, mas é dificil ver como é que meros sistemas fisicos podem ter consciência. Como pode

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tal coisa ocorrer? Como é que, por exemplo, pode essa substância cinzenta e branca dentro do meu crânio ser consciente? Penso que a existência da consciência deveria ser espantosa para nós. É bastante fácil imaginar o Universo sem ela, mas se o fizermos, veremos que imaginámos um universo verdadeiramente sem sentido. A consciência é o facto central da existência especificamente humana, porque sem ela todos os outros aspectos especificamente humanos da nossa existência- linguagem, amor, humor e assim por diante- seriam impossíveis. A propósito, penso que é algo escandaloso que as discussões contemporâneas na Filosofia e na Psicologia tenham tão pouca coisa de interessante a dizer-nos acerca da consciência. A segunda característica intratável da Mente é o que os filósofos e psicólogos chamam «intencionalidade», a característica pela qual os nossos estados mentais se dirigem a, ou são acerca de, ou se referem a, ou são de objectos e estados de coisas no mundo diferentes deles mesmos. A propósito, «intencionalidade» não se refere justamente a intenções, mas também a crenças, desejos, esperanças, temores, amor, ódio, prazer, desgosto, vergonha, orgulho, irritação, divertimento, e todos aqueles estados mentais (quer conscientes ou inconscientes) que se referem a, ou são acerca do Mundo, diverso da mente. Ora, a questão acerca da «intencionalidade» tem muita semelhança com a questão acerca da consciência. Como é que esta substância dentro da minha cabeça pode ser acerca de alguma coisa? Como é que ela se pode referir a algo? Ao fim e ao cabo, esta substância no crânio consiste em «átomos no vazio», tal como o resto da realidade material consta de átomos no vazio. Ora, como é que, em

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termos grosseiros, podem átomos no vazio representar alguma coisa? A terceira característica da Mente que parece difícil de inserir dentro de uma concepção científica da realidade é a subjectividade dos estados mentais. Esta subjectividade é assinalada por um facto como este: posso sentir as minhas dores e vocês não. Eu vejo o Mundo do meu ponto de vista; vocês vêem-no a partir do vosso ponto de vista. Eu estou ciente de mim mesmo e dos meus estados mentais internos, enquanto inteiramente distintos da individualidade e dos estados mentais das outras pessoas. Desde o século xvrr, pensámos a realidade como algo que deve ser igualmente acessível a todos os observadores competentes -isto é, que pensam que ela deve ser objectiva. Ora, como é que vamos acomodar a realidade dos fenómenos mentais subjectivos com a concepção científica da realidade enquanto totalmente objectiva? Finalmente, há um quarto problema, o problema da causação mental. Todos nós supomos, como parte do senso comum, que os nossos pensamentos e sentimentos são realmente importantes para a maneira como nos comportamos, que efectivamente têm algum efeito causal sobre o mundo físico. Decido, por exemplo, levantar o meu braço e -vejam - o meu braço levanta-se. Mas se os nossos pensamentos e sentimentos são verdadeiramente mentais, como podem eles afectar algo de físico? Como pode algo que é mental originar uma diferença física? Pensamos, supostamente, que os nossos pensamentos e sentimentos podem de algum modo produzir efeitos químicos nos nossos cérebros e no resto do nosso sistema nervoso? Como pode tal coisa ocorrer? Pensamos, supostamente, que os pensamentos podem embrulhar-se a si

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mesmos nos axónios ou sacudir as dendrites ou esgueirar-se para dentro da membrana celular e atacar o núcleo da célula? Mas, a não ser que ocorra alguma tal conexão entre a mente e o cérebro, não nos restará justamente a concepção de que a Mente não age, que é tão causalmente sem importância como a espuma da onda o é para o movimento da onda? Suponho que se a espuma fosse consciente podia pensar para si própria: «que trabalho duro é empurrar estas ondas para a praia e, depois, empurrá-las outra vez para trás durante todo o dial» Mas sabemos que a espuma não tem qualquer importãncia. Porque é que supomos que a nossa vida mental é mais importante do que uma espuma sobre a onda da realidade física? Estas quatro características, consciência, intencionalidade, subjectividade e causação Mental são o que fazem parecer tão difícil o problema da Mente-Corpo. No entanto, quero eu dizer, todas elas são características efectivas das nossas vidas mentais. Nem todo o estado mental as possui a todas. Mas qualquer explicação satisfatória da Mente e das relações Mente-Corpo deve ter em conta as quatro características. Se a teoria de alguém acaba por negar alguma delas, saiba que deve ter havido algures um erro. A primeira tese que eu quero avançar para «resolver o problema Mente-Corpo» é esta: Os fenómenos mentais, todos os fenómenos mentais, quer conscientes ou inconscientes, visuais ou auditivos, dores, cócegas, comichões, pensamentos, na realidade, toda a nossa vida mental, são causados por processos que têm lugar no cérebro.

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Para termos um vislumbre sobre o modo como isto funciona, tentemos descrever com algum pormenor os processos causais relativos a, pelo menos, uma espécie de estado men taL Por exemplo, consideremos as dores. Naturalmente, qualquer coisa que agora digamos pode parecer maravilhosamente bizarra dentro de uma geração, já que o nosso conhecimento acerca do modo como o cérebro funciona está em permanente aumento. No entanto, a forma da explicação pode permanecer válida, mesmo se os pormenores se alteram. Segundo a concepção corrente, os sinais da dor são transmitidos das terminações nervosas sensoriais para a espinal medula por, pelo menos, dois tipos de fibras - as fibras Delta A, que são especializadas para sensações de picadas, e as fibras C, que são especializadas para sensações de queimadura e dor. Na espinal medula, eles passam através de uma região chamada o tracto de Lissauer e terminam nos neurónios da espinal medula. Visto que os sinais sobem pela espinal medula, entram no cérebro por duas vias separadas: a via da dor de picada e a via da dor de queimadura; ambas as vias passam pelo tálamo, mas a dor de picada localiza-se, depois, mais no córtex sornato-sensório, ao passo que a via da dor de queimadura transmite sinais, não só para cima, para o córtex, mas também lateralmente, para o hipotálamo e outras regiões na base do cérebro. Em virtude destas diferenças, é muito mais fácil para nós localizar uma sensação de picada - podemos dizer com bastante exactidão onde alguém está a picar com um alfinete a nossa pele, por exemplo -, ao passo que as dores de queimadura e outras podem ser mais difíceis de suportar porque activam mais o sistema nervoso. A sensação concreta de dor parece ser causada pela

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estimulação das regiões basais do cérebro, especialmente o tálamo, e pela estimulação do córtex somato-sensorial, Ora, para os objectivos desta discussão, o ponto que precisamos de rebater é este: as nossas sensações de dores são causadas por uma série de eventos que começam nas terminações nervosas livres e terminam no tálamo e em outras regiões do cérebro. Na realidade, no tocante às sensações efectivas, os acontecimentos interiores ao sistema nervoso central bastam para causar dores - sabemos isto pelas dores do membro fantasma sentidas pelos amputados e pelas dores causadas mediante estimulação artificial relativa a partes do cérebro. Quero sugerir que aquilo que se verifica com a dor é também verdade a propósito dos fenómenos mentais em geral. Em termos grosseiros, e incluindo todo o sistema nervoso central como parte do cérebro na nossa presente discussão, tudo o que importa para a nossa vida mental, todos os nossos pensamentos e sentimentos, são causados por processos interiores ao cérebro. No referente aos estados mentais causantes, o passo crucial é o que ocorre dentro da cabeça, e não o estímulo externo ou periférico. E o argumento para isto é simples. Se os acontecimentos fora do sistema nervoso central ocorreram, mas nada aconteceu no cérebro, não haverá acontecimentos mentais; mas se as coisas aconteceram no cérebro como deve ser, os acontecimentos mentais ocorreriam mesmo se não houve estímulo exterior ( e a propósito, este é o princípio sobre o qual funciona a anestesia cirúrgica: o estímulo exterior é impedido de ter os efeitos relevantes no sistema nervoso central). Mas, se as dores e outros fenómenos mentais são causados por processos no cérebro, alguém quer saber: o que são, portanto, as dores? O que são elas realmente? Bem,

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no caso das dores, a resposta óbvia é que elas são espécies de sensações desagradáveis. Mas esta resposta deixa-nos insatisfeitos porque não nos diz como é que as dores se enquadram na nossa concepção global do Mundo. Mais uma vez, penso que a resposta à questão é manifesta, mas exigirá algum esforço de decifração. À nossa primeira afirmação - de que as dores e outros fenómenos mentais são causados por processos cerebrais -, precisamos de acrescentar uma segunda afirmação: As dores e outros fenómenos mentais são justamente características do cérebro (e, talvez, do resto do sistema nervoso central).

Um dos primeiros objectivos deste capítulo é mostrar como ambas as proposições podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Como pode acontecer que cérebros causem mentes e, no entanto, as mentes sejamjustamente características do cérebro? Creio que o não conseguir ver como ambas as proposições podem ser simultaneamente verdadeiras impediu a solução, durante um tempo, para o problema Mente-Corpo. Há diversos níveis de confusão que este par de ideias pode gerar. Se os fenómenos mentais e fisicos têm entre si relações de causa e efeito, como é que um pode ser uma característica do outro? Não implicará isto que a Mente se causou a si mesma - a incómoda doutrina da causa sui? Mas, no fundo da nossa perplexidade, encontra-se uma má compreensão da causação. É tentador pensar que, sempre que A causa B, devem existir dois acontecimentos discretos, um identificado como a causa, o outro identificado como o efeito; que toda a causação funciona da mesma maneira que as bolas de bilhar

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tocando umas nas outras. Este modelo grosseiro das relações causais entre o cérebro e a mente inclina-nos a aceitar uma espécie de dualismo; somos inclinados a pensar que os eventos num reino material, o «físico», causam acontecimentos num outro reino insubstancial, o «mental». Mas isto parece-me um erro. E o modo de eliminar o erro é alcançar um conceito de causação mais sofisticado. Para levar isso a cabo, afastar-me-ei, por um momento, das relações entre mente e cérebro, e irei observar algumas outras espécies de relações causais na natureza. Uma distinção comum em Física é entre as micro e as macropropriedades dos sistemas - as escalas pequenas e grandes. Consideremos, por exemplo, a secretária a que agora estou sentado ou o copo de água que está à minha frente. Cada objecto é composto de micropartículas. As micropartículas têm características ao nível das moléculas e dos átomos, como também ao nível mais baixo das partículas subatómicas. Mas cada objecto tem também certas propriedades como a solidez da mesa, o carácter líquido da água e a transparência do vidro, que são características superficiais ou globais dos sistemas físicos. Muitas destas propriedades de superfície ou globais podem explicar-se facilmente por meio do comportamento dos elementos ao micronível. Por exemplo, a solidez da mesa que está à minha .frente explica-se pela estrutura gradeada ocupada pelas moléculas de que a mesa é composta. Igualmente, o carácter líquido da água explica-se pela natureza das interacções entre as moléculas H20. Estas macrocaracterísticas são causalmente explicadas pelo comportamento dos elementos ao micronível. Quero sugerir que isto fornece um modelo perfeitamente ordinário para explicar as relações intrincadas

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entre a mente e o cérebro. No caso do carácter líquido, da solidez e da transparência, não temos nenhuma dificuldade em supor que as características de superfície são causadas pelo comportamento dos elementos ao micronível e, ao mesmo tempo, aceitamos que os fenómenos de superfície são justamente características dos sistemas em questão. Penso que a maneira mais clara de expor este ponto é afirmar que a característica de superfície é causada pelo comportamento dos microelementos e ao mesmo tempo realizada no sistema que é constituído pelos microelementos. Existe uma relação de causa e efeito mas, ao mesmo tempo, as características de superfície são justamente características de nível superior do mesmo sistema, cujo comportamento ao micronível causa essas características. Objectando contra o que foi dito, alguém poderá dizer que a liquidez, a solidez e assim por diante são idênticas às características da microestrutura. Assim, por exemplo, poderíamos justamente definir a solidez como a estrutura em grade da disposição molecular, tal como o calor muitas vezes é identificado com a energia cinética média dos movimentos moleculares. Este pormenor parece-me correcto, mas não constitui realmente uma objecção à análise que estou a propor. É uma característica do progresso da ciência que uma expressão que originalmente se define em termos de características de superfície, características acessíveis aos sentidos, seja subsequentemente definida em termos da microestrutura, que causa as características de superfície. Assim, para tomar o exemplo da solidez, a mesa que está diante de mim é sólida no sentido ordinário de que é rígida, resiste à pressão, suporta livros, não é facilmente penetrável pela maior parte dos outros

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objectos, tais como outras mesas e assim por diante. Tal é a noção de solidez própria do senso comum. E pode com um giro científico definir-se solidez,já que qualquer microestrutura causa estas características grosseiramente observáveis. Pode assim afirmar-se, então, que a solidez é justamente a estrutura em grade do sistema de moléculas em que a solidez assim definida causa, por exemplo, resistência ao tacto e à pressão. Ou pode dizer-se que a solidez consiste em características de nível superior como a rigidez e a resistência ao tacto e à pressão, e que é causável pelo comportamento dos elementos ao micronível. Se aplicarmos estas lições ao estudo da mente, parece-me que não há dificuldade em explicar as relações da mente com o cérebro em termos de funcionamento do cérebro para causar os estados mentais. Assim como a liquidez da água é causada pelo comportamento dos elementos ao micronível e, no entanto, é ao mesmo tempo uma característica realizada no sistema dos microelementos, assim também, no sentido preciso do «causado por» e «realizado em», os fenómenos mentais são causados por processos que ocorrem no cérebro, ao nível neuronal ou modular e, ao mesmo tempo, realizam-se no próprio sistema que consiste em, neurónios. E assim como necessitamos da distinção micro/macro para qualquer sistema físico, assim, pelas mesmas razões, precisamos da distinção micro/macro para o cérebro. E, embora possamos dizer que um sistema de partículas está a dez graus centígrados ou que é sólido ou líquido, não podemos dizer de qualquer partícula dada que esta partícula é sólida, esta partícula é líquida, esta partícula está a dez graus centígrados. Não posso, por exemplo, meter a mão neste copo de água, tirar uma molécula e dizer: «Esta aqui é húmida.»

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Do mesmíssimo modo, tanto quanto acerca disso sabemos alguma coisa, embora possamos dizer de um cérebro particular: «Este cérebro é consciente», ou «Este cérebro sente sede ou dor», nada podemos dizer de algum neurónio particular no cérebro: «Este neurónio tem dor, este neurónio sente sede.» Insistindo neste ponto, embora existam grandíssimos mistérios empíricos acerca do modo como o cérebro funciona em pormenor, não existem obstáculos lógicos, filosóficos ou metafísicos para explicar a relação entre a mente e o cérebro em termos que nos são totalmente familiares a partir do resto da Natureza. Nada é mais comum na Natureza do que serem as características de superfície de um fenómeno causadas por e realizadas numa microestrutura, e essas são exactamente as relações exibidas pela conexão da mente ao cérebro. Voltemos agora aos quatro problemas que, como disse, se deparam a toda a tentativa de resolver o problema da Mente-Corpo. Primeiro: como é possível a consciência? A melhor maneira de mostrar como algo é possível é mostrar como efectivamente existe. Já fornecemos um esboço de como as dores são concretamente causadas por processos neurofisiológicos que ocorrem no tálamo e no córtex sensorial. Porque é que, então, tanta gente se sente insatisfeita com este tipo de resposta? Penso que seguindo uma analogia com um problema anterior na história da ciência, podemos dissipar esta sensação de perplexidade. Durante muito tempo, muitos biólogos e filósofos pensaram que era impossível explicar a existência da vida em bases puramente biológicas. Julgavam que além dos processos biológicos deve ser necessário algum outro

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elemento, deve postular-se algum élan vital para conferir vida ao que, de outro modo, era matéria morta e inerte. É difícil, hoje, fazer uma ideia de quão intensa foi a disputa entre o vitalismo e o mecanicismo há uma geração, mas, actualmente, esses problemas já não são levados a sério. Porque não? Penso que não foi tanto por o mecanicismo ter vencido e o vitalismo ter perdido, mas porque conseguimos compreender melhor o carácter biológico dos processos que são característicos dos organismos vivos. Logo que compreendemos como as características típicas dos seres vivos têm uma explicação biológica, já não constitui para nós mistério algum que a matéria deva ser viva. Penso que considerações exactamente similares deveriam aplicar-se às nossas discussões da consciência. Em princípio, que esse pedaço de matéria, a substância cinzenta e branca do cérebro, com a textura de farinha de aveia, deva ser consciente, não deveria parecer mais misterioso do que parece misterioso que este outro pedaço de matéria, este conjunto de moléculas núcleo-proteínicas enquadradas numa estrutura de cálcio, deva ser vivo. Em suma, a maneira de eliminar o mistério é compreender os processos. Ainda não entendemos completamente os processos, mas compreendemos o seu caráctergeral, compreendemos que há certas actividades electroquímicas específicas que ocorrem entre os neurónios ou módulos neuronais e talvez outras características do cérebro, e esses processos causam a consciência. O nosso segundo problema era: como podem os átomos no vazio ter intencionalidade? Como podem eles ser acerca de alguma coisa? Relativamente à nossa primeira questão, a melhor maneira de demonstrar como algo é possível é mostrar

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como efectivamente existe. Assim, consideremos a sede. Tanto quanto sabemos alguma coisa acerca dela, pelo menos, certos tipos de sede são causados no hipotálamo por sequências de explosões nervosas. Estas explosões, por seu turno, são causadas pela acção da angiotensina no hipotálamo, e a angiotensina, por sua vez, é sintetizada pela renina, a qual é segregada pelos rins. A sede, pelo menos de um desses tipos, é causada por uma série de acontecimentos no sistema nervoso central, principalmente o hipotálamo, e é levada a efeito no hipotálamo. Ter sede é ter, entre outras coisas, o desejo de beber. A sede é, portanto, um estado intencional: tem conteúdo; o seu conteúdo determina em que condições é satisfeita e possui todas as restantes características que são comuns aos estados intencionais. Quanto aos «mistérios» da vida e da consciência, o modo de dominar o mistério da intencionalidade é descrever com o máximo pormenor que nos for possível como é que os fenómenos são causados pelos processos biológicos, ao mesmo tempo que ocorrem nos sistemas biológicos. As experiências visuais e auditivas, as sensações tácteis, a fome, a sede e o desejo sexual, são todos causados por processos cerebrais e realizam-se na estrutura do cérebro e são todos fenómenos intencionais. Não estou a dizer que devemos perder a noção dos mistérios da natureza. Pelo contrário, os exemplos que mencionei são todos espantosos num sentido. Mas estou a dizer que não são nem mais nem menos misteriosos do que outras características assombrosas do Mundo, tais como a existência da atracção gravitacional, o processo da fotossíntese ou o tamanho da Via Láctea.,

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O terceiro problema é: como inserimos nós a subjectividade dos estados mentais no interior de uma concepção objectiva do mundo real? Parece-me um erro supor que a definição de realidade tenha de excluir a subjectividade. Se «ciência» é o nome do conjunto de verdades objectivas e sistemáticas que podemos enunciar acerca do Mundo, então a existência da subjectividade é um facto científico objectivo como qualquer outro. Se uma explicação científica do Mundo tenta descrever como as coisas são, então, uma das características da explicação será a subjectividade dos estados mentais, visto que é justamente um facto óbvio que a evolução biológica produziu certos tipos de sistemas biológicos, a saber, os cérebros humanos e de certos animais, que têm características subjectivas. O meu estado presente de consciência é uma característica do meu cérebro, mas os seus aspectos conscientes são-me acessíveis de um modo que não são acessíveis a vocês. E o vosso estado presente da consciência é uma característica do vosso cérebro e os seus aspectos conscientes são-vos acessíveis de um modo que a mim não são. Assim, a existência da subjectividade é um facto objectivo da biologia. É um erro persistente tentar definir «ciência» em termos de certas características das teorias científicas existentes. Mas, logo que se percebe que este provincialismo é o preconceito que é, então qualquer domínio de factos é um tema de investigação sistemática. Assim, por exemplo, se Deus existisse, então esse facto seria um facto como qualquer outro. Não sei se Deus existe, mas não tenho dúvida alguma de que existem estados mentais subjectivos, porque estou agora num e vocês também. Se o facto da subjectividade vai contra uma certa definição de «ciência», então é a definição, e não o facto, que teremos de abandonar.

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Quarto, o problema da causação mental, para o nosso propósito presente, é explicar como é que os eventos mentais podem causar eventos físicos. Como é que, por exemplo, algo «imponderável» e «etéreo», como o pensamento, pode suscitar uma acção? A resposta é que os pensamentos não são imponderáveis e etéreos. Quando temos um pensamento, está efectivamente a ocorrer a actividade cerebral. A actividade cerebral causa movimentos corporais mediante processos fisiológicos. Ora, porque os estados mentais são características do cérebro, têm dois níveis de descrição - um nível superior em termos mentais e um nível inferior em termos fisiológicos. Os mesmos poderes causais do sistema podem descrever-se em qualquer um dos níveis. Mais uma vez, podemos utilizar uma analogia da Física para ilustrar estas relações. Consideremos o acto de pregar um prego com um martelo. O martelo e o prego têm um certo tipo de solidez. Martelos feitos de algodão em rama ou de manteiga são totalmente inúteis e martelos feitos de água ou de vapor nem sequer são martelos. A solidez é uma propriedade causal real do martelo. Mas a solidez em si é causada pelo comportamento das partículas ao micronível e realiza-se no sistema que consiste em microelementos. A existência de dois níveis causalmente reais de descrição no cérebro, uma ao macronível dos processos mentais e a outra ao micronível dos processos neuronais é exactamente análoga à existência de dois níveis causalmente reais da descrição do martelo. A consciência, por exemplo, é uma propriedade real do cérebro que pode causar coisas e a sua ocorrência. A minha tentativa consciente de levar a cabo uma acção como elevar o braço causa um movimento do braço.

O PROBLEMA DA MENTE-CORPO

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Ao nível superior da descrição, a intenção de elevar o meu braço causa o movimento do braço. Mas, ao nível inferior da descrição, uma série de explosões neuronais inicia um encadeamento de eventos que resulta na contracção dos músculos. Tal como no caso do pregar um prego, a mesma sequência de acontecimentos tem dois níveis de descrição. Ambos são causalmente reais e as características causais do nível superior são causadas por e realizadas na estrutura dos elementos do nível inferior. Resumindo: na minha concepção, a mente e o corpo interagem, mas não são duas coisas diferentes, visto que os fenómenos mentais são justamente características do cérebro. Uma maneira de caracterizar esta posição é vê-la como uma asserção do fisicalismo e do mentalismo. Suponhamos que nós definimos o «fisicalismo ingénuo» como a concepção de que tudo o que existe no Mundo são partículas físicas com as suas propriedades e relações. O poder do modelo físico da realidade é tão grande que é difícil ver como podemos contestar seriamente o fisicalismo ingénuo. E definamos, o «mentalismo ingénuo» como a concepção de que os fenómenos mentais existem realmente. Existem, de facto, estados mentais; alguns deles são conscientes; muitos têm intencionalidade; todos têm subjectividade; e muitos funcionam causalmente na determinação dos eventos físicos no Mundo. A tese do primeiro capítulo pode agora enunciar-se de uma maneira muito simples. O mentalismo e o fisicalismo ingénuos são perfeitamente coerentes entre si. Na realidade, tanto quanto sabemos algo sobre o modo como o mundo funciona, eles não só são coerentes, mas são ambos verdadeiros.

II

PODEM OS COMPUTADORES PENSAR?

No capítulo anterior, forneci, pelo menos, as leis gerais de uma solução para o chamado «problema da 'Mente-Corpo'». Embora não saibamos em pormenor como funciona o cérebro, sabemos o bastante para ter uma ideia das relações gerais entre os processos cerebrais e os processos mentais. Os processos mentais são causados pelo comportamento dos elementos do cérebro. Ao mesmo tempo, realizam-se na estrutura que é constituída por esses elementos. Penso que esta resposta se harmoniza com as abordagens biológicas correntes aos fenómenos biológicos. Sem dúvida, é uma espécie de resposta do senso comum à questão, dado o que sabemos acerca do modo como o Mundo funciona. No entanto, é um ponto de vista de uma minoria. A concepção predominante em Filosofia, Psicologia e Inteligência Artificial, é a que realça as analogias entre o funcionamento do cérebro humano e o funcionamento dos computadores digitais. Segundo a versão mais extrema desta concepção, o cérebro é justamente um 'computador digital e a mente é um

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programa de computador. Poder-se-ia resumir esta concepção - dou-lhe o nome de «Inteligência Artificial forte» ou «IA forte» - dizendo que a mente está para o cérebro tal como o programa está para o hardware do computador. Esta concepção tem a consequência de que nada existe de essencialmente biológico acerca da mente humana. Acontece que o cérebro é um de entre o número indefinidamente vasto de diferentes tipos de computadores materiais que poderiam apoiar os programas constitutivos da inteligência humana. Nesta concepção, qualquer sistema fisico que tivesse um programa correcto com as entradas e saídas correctas teria uma mente, no mesmíssimo sentido em que vocês e eu temos mentes. Assim, por exemplo, se fizéssemos um computador de velhas latas de cerveja com energia fornecida por moinhos de vento, se ele tivesse o programa correcto teria de ter uma mente. E o importante não é que ele, tanto quanto sabemos, poderia ter pensamentos e sentimentos, mas antes que deve ter pensamentos e sentimentos, porque o ter pensamentos e sentimentos consiste justamente nisto: levar a cabo o programa correcto. A maior parte dos que defendem esta concepção pensa que não projectámos ainda programas que sejam mentes. Mas existe entre eles um acordo muito geral de que é apenas uma questão de tempo até que os cientistas de computadores e os que trabalham na Inteligência Artificial projectem o hardware apropriado e os programas que serão o equivalente dos cérebros e das mentes humanas. Serão esses os cérebros e mentes artificiais que de todos os modos co,nstituem o equivalente dos cérebros e mentes humanas.

PODEM OS COMPUTADORES PENSAR?

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Muitas pessoas fora do campo da Inteligência Artificial ficam deveras espantadas por descobrir que alguém possa acreditar numa tal concepção. Assim, antes de a criticar, permitam que eu lhes forneça alguns exemplos das coisas que os que trabalham neste campo efectivamente disseram. Herbert Simon, da Carnegie-Mellon University, diz que já temos máquinas que podem literalmente pensar. Já que não é preciso esperar por alguma máquina futura, porque os computadores digitais existentes já têm pensamentos, no mesmíssimo sentido em que vocês e eu temos. Ora vejam lá! Os filósofos preocuparam-se durante séculos em saber se uma máquina podia ou não pensar e agora descobrimos que eles já têm tais máquinas na Carnegie-Mellon. O colega de Simon, Alan Newell, afirma que

1. Nenhum programa de computador é, por si só, suficiente para dar uma mente a um sistema. Os programas, em suma, não são mentes e por si mesmos não chegam para ter mentes. CONCLUSÃO

PODEM OS COMPUTADORES PENSAR?

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Ora, esta é uma conclusão muito poderosa, porque significa que o projecto de tentar criar mentes unicamente mediante projectar programas está condenado, desde o início. E é importante tornar a sublinhar que isto nada tem a ver com qualquer estado particular da tecnologia ou qualquer estado particular da complexidade do programa. É um resultado puramente formal ou lógico, a partir de um conjunto de axiomas que são aceites por todos ( ou quase por todos) os intervenientes em questão. Isto é, mesmo a maioria dos mais violentos entusiastas da Inteligência Artificial reconhece que, de facto, enquanto assunto de biologia, os processos cerebrais causam estados mentais e reconhecem também que os programas se definem de um modo puramente formal. Mas, se se juntarem todas estas conclusões com algumas outras coisas que conhecemos, então, segue-se imediatamente que o projecto de IA forte é incapaz de realização e de cumprimento. No entanto,já que obtivemos estes axiomas, vejamos o que é que podemos ainda derivar mais. Eis uma segunda conclusão: CONCLUSÃO 2. A maneira como asfunções cerebrais causam mentes não pode ser apenas em virtude da activação de um programa de computador.

E esta segunda conclusão segue-se da junção da primeira premissa com a nossa primeira conclusão. Isto é, a partir do facto de que cérebros causam mentes e que os programas não são suficientes para esse trabalho, segue-se que a maneira como os cérebros causam mentes não pode ter lugar apenas em virtude da activação de um programa de computador. Ora, também considero isto um resultado

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MENTE, CÉREBRO E CIÊNCIA

importante, porque tem a consequência de que o cérebro não é ou, pelo menos, não é justamente um computador digital. Vimos antes que qualquer coisa se pode descrever, de um modo trivial, como se fosse um computador digital, e os cérebros não são excepção. Mas a importância desta conclusão é que as propriedades computacionais do cérebro simplesmente não são suficientes para explicar o seu funcionamento para produzir estados mentais. E, efectivamente, isto deveria parecer-nos, de qualquer maneira, uma conclusão científica bastante trivial, porque tudo o que faz é lembrar-nos o facto de que os cérebros são máquinas biológicas; a sua biologia tem importância. Não é, como vários praticantes da Inteligência Artificial afirmaram, um facto irrelevante que a mente se realize em cérebros humanos. A partir da nossa primeira premissa, podemos agora também derivar uma terceira conclusão: 3. Tudo o mais que causou mentes deveria -ter poderes causais, pelo menos, equivalentes aos do cérebro. CONCLUSÃO

E esta terceira conclusão é uma consequência trivial da nossa primeira premissa. É um pouco como dizer que, se o meu motor a gasolina impele o carro a cem quilómetros por hora, então, qualquer motor a diesel que fosse capaz de fazer o mesmo deveria ter também uma saída energética, pelo menos, equivalente à do meu motor a gasolina. Decerto, algum outro sistema poderá causar processos mentais utilizando características químicas ou bioquímicas inteiramente diferentes das que o cérebro efectivamente usa. Pode ser que venha a descobrir-se que, noutros planetas ou noutros sistemas solares, exis-

PODEM OS COMPUTADORES PENSAR?

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tem seres com estados mentais que utilizam uma bioquímica inteiramente diversa da nossa. Suponhamos que os marcianos chegaram à Terra e concluímos que eles têm estados mentais. Mas suponhamos que, quando as suas cabeças fossem abertas, se descobria que tudo o que têm dentro era apenas lama verde. Pois bem, mesmo então a lama verde, se funcionasse de maneira a produzir consciência e tudo o mais que é característico da vida mental, deveria ter poderes causais iguais aos do cérebro humano. Mas agora, da nossa primeira conclusão, de que os programas não são suficientes, e da nossa terceira conclusão,' de que qualquer outro sistema deveria ter poderes causais iguais ao cérebro, segue-se imediatamente a: 4. Para qualquer artefacto que pudéssemos construir, o qual tivesse estados mentais equivalentes aos estados mentais humanos, a realização de um programa de computador não seria por si só suficiente. Antes, o artefacto deveria ter poderes equivalentes aos poderes do cérebro humano. CONCLUSÃO

O resultado desta discussão é, creio, lembrar-nos algo que já sabemos há muito: a saber, os estados mentais são fenómenos biológicos. A consciência, a intencionalidade, a subjectividade e a causação mental fazem todos parte da nossa história vital biológica, juntamente com o crescimento, a reprodução, a secreção da bílis e a digestão.



III

A CIÊNCIA COGNITIVA

Sentimo-nos perfeitamente confiantes ao afirmar coisas como esta: «Basil votou a favor dos Conservadores porque gostou da actuação da Senhora Thatcher na questão das Malvinas», mas não sabemos como proceder em afirmações de coisas como esta: «Basil votou nos Conservadores em virtude de uma condição do seu hipotálamo.» Isto é, temos explicações de sentido comum para o comportamento das pessoas em termos mentais, em termos dos seus desejos, aspirações, temores, esperanças, e assim por diante. E supomos que deve existir também um tipo neurofisiológico de explicação do comportamento das pessoas em termos de processos que têm lugar nos seus cérebros. O problema é que a primeira das explicações funciona bastante bem na prática, mas não é científica; ao passo que a segunda é certamente científica, mas não sabemos como fazê-la funcionar na prática. Ora, isto deixa-nos ficar, aparentemente, com um hiato, um hiato entre o cérebro e a mente. E alguns dos maiores esforços intelectuais do século xx foram tentativas



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MENTE, CÉREBRO E CIÊNCIA

para colmatar este hiato, para obter uma ciência do comportamento humano que não era justamente a Psicologia de senso comum da avozinha, mas também não era a neurofisiologia científica. Até ao dia de hoje, sem excepção, os esforços para colmatar essa lacuna redundaram em fiasco. O behaviorismo foi o fracasso mais espectacular, mas, durante a minha vida, vivi no meio de afirmações exageradas feitas em nome de e, eventualmente, decepcionadas pela teoria dos jogos, pela cibernética, pela teoria da informação, pelo estruturalismo, pela sociologia e várias outras. A fim de me antecipar um pouco, vou afirmar que todos os esforços para colmatar a lacuna falham porque não existe nenhuma lacuna para colmatar. Os esforços mais recentes para tapar o buraco baseiam-se em analogias entre os seres humanos e os computadores digitais. Na versão mais extrema desta concepção, que eu chamo «Inteligência Artificial forte» ou apenas «IA forte», o cérebro é um computador digital e a mente é justamente um programa de computador. É a concepção que refutei no último capítulo. Uma tentativa recente aparentada para tapar buracos é muitas vezes chamada «cognitivismo», porque procede do trabalho feito em Psicologia Cognitiva e em Inteligência Artificial e forma a corrente principal de uma nova disciplina da «Ciência Cognitiva». Tal como a IA forte, vê o computador como a imagem correcta da mente, e não apenas como uma metáfora. Mas, diferentemente da IA forte, não afirma ou, pelo menos, não tem de afirmar que os computadores têm literalmente pensamentos e sentimentos. Se se houvesse de resumir o programa de investigação do cognitivismo, soaria assim: pensar é processar informação, mas o processamento de informação é justamente

A CIÊNCIA COGNITIVA

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manipulação de símbolos. Os computadores fazem manipulação de símbolos. Assim, a melhor maneira de estudar o pensamento ( ou, como eles preferem dizer, a «cognição») é estudar os programas computacionais de manipulação de símbolos, quer existam em computadores ou em cérebros. Segundo esta concepção, pois a tarefa da ciência cognitiva é caracterizar o cérebro, não ao nível das células nervosas nem ao nível dos estados mentais conscientes, mas antes ao nível do seu funcionamento como sistema de processamento de informação. E é assim que o hiato fica colmatado. Não posso exagerar até que ponto este processo de investigação pareceu constituir um avanço importante na ciência da mente. Na realidade, segundo os seus defensores, pode mesmo ser o avanço que finalmente colocará a Psicologia numa base científica segura, agora que ela se libertou das ilusões do behaviorismo. Vou, nesta lição, atacar o cognitivismo, mas quero começar por ilustrar o seu atractivo. Sabemos que existe um nível de psicologia ingénua, de senso comum, psicologia da avozinha, e também um nível da neurofisiologia - o nível dos neurónios e dos módulos neuronais e das sinapses e dos neurotransmissores e de tudo o mais. Assim, porque é que alguém havia de supor que entre estes dois níveis existe também um nível de processos mentais que são processos computacionais? E, de facto, porque havia alguém de supor que é a este nível que o cérebro executa as funções que nós consideramos essenciais para a sobrevivência do organismo - a saber, as funções do processamento da informação? Ora bem, há várias razões: primeiro, seja-me permitido mencionar uma que é um tanto desonrosa, mas penso

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que é hoje muito influente. Porque não compreendemos muito bem o cérebro, somos constantemente tentados a usar a última tecnologia como modelo para o tentar compreender. Na minha infância, asseguravam-nos que o cérebro era um quadro telefónico. ( «O que mais poderia ser?»). Diverti-me ao ver que Sherrington, o grande neurocientista britânico, pensava que o cérebro trabalhava como um sistema telegráfico. Freud comparou muitas vezes o cérebro a sistemas hidráulicos e electromagnéticos. Leibniz comparou-o a um moinho e disseram-me que alguns dos gregos antigos pensaram que o cérebro funciona como uma catapulta. Hoje em dia, como é óbvio, a metáfora é o computador digital. E, a propósito, isto enquadra muito bem com as tolices geralmente exageradas que hoje ouvimos acerca dos computadores e dos robôs. A imprensa popular garante-nos frequentemente que estamos à beira de ter robôs domésticos que farão todo o trabalho doméstico, tomarão conta das nossas crianças, diverti-las-ão com uma conversa viva e que cuidarão de nós na velhice. Isto, naturalmente, é em grande parte pura tolice. De nenhum modo estamos à beira de conseguir produzir robôs que possam fazer quaisquer dessas coisas. E, na realidade, os robôs bem sucedidos têm sido confinados a tarefas muito restritas, em contextos muito limitados, como o das cadeias de produção da indústria automóvel. Bem, regressemos às razões sérias que as pessoas têm para supor que o cognitivismo é verdadeiro. Em primeiro lugar, supõem que efectivamente possuem alguma prova psicológica de que ele é verdadeiro. Há duas espécies de provas, a primeira provém das experiências do tempo de reacção, isto é, experiências que mostram que diferentes

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tarefas intelectuais exigem diferentes quantidades de tempo para que as pessoas as possam executar. A ideia aqui é que, se as diferenças na quantidade de tempo que as pessoas gastam são paralelas às diferenças no tempo que um computador gastará, então, isto é pelo menos uma prova de que o sistema humano trabalha com os mesmos princípios que um computador. A segunda espécie de prova procede da linguística, especialmente do trabalho de Chomsky e dos seus colegas em gramática gerativa. A ideia aqui é que as regras formais da gramática, que as pessoas seguem ao falarem uma língua, são semelhantes às regras formais que um computador segue. Não vou dizer muitas coisas acerca da prova do tempo de reacção, porque penso que qualquer um concorda que é de todo inconclusiva e sujeita a muito diferentes interpretações. Direi alguma coisa acerca da prova linguística. Contudo, subjacente à interpretação computacional de ambas as espécies de prova existe uma razão muito mais profunda e, creio, mais influente para se aceitar o cognitivismo. A segunda razão é uma tese geral que supostamente as duas espécies de prova devem exemplificar, e reza assim: porque podemos conceber computadores que seguem regras quando processam informação e porque, aparentemente, os seres humanos também seguem regras ao pensar, então, existe algum sentido unitário em que o cérebro e o computador funcionam de uma maneira semelhante - e, na realidade, talvez idêntica. O terceiro pressuposto que subjaz ao programa de investigação cognitivista é já velho. Remonta a Leibniz e, provavelmente, até mesmo a Platão. É o pressuposto de que uma realização mental deve ter causas teóricas. É o pressuposto de que se o resultado de um sistema é significativo

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no sentido de que, por exemplo, a nossa capacidade para aprender uma língua ou a nossa capacidade para reconhecer faces é uma capacidade cognitiva significativa, então, deve existir alguma teoria, internalizada de algum modo nos nossos cérebros, que está na base dessa capacidade. Por fim, há uma outra razão que leva as pessoas a aderirem ao programa de investigação cognitivista, especialmente se têm inclinação filosófica. Não conseguem ver nenhuma outra maneira de compreender a relação entre a mente e o cérebro. Visto que compreendemos a relação do programa de computador com o lado material do computador, este fornece um modelo excelente, talvez o único modelo, que nos capacitará a explicação das relações entre a mente e o cérebro. Já respondi a esta pretensão no primeiro capítulo, de maneira que não preciso agora de a discutir novamente. Bem, que iremos fazer dos argumentos a favor do cognitivismo? Não creio que tenha feito uma refutação total do cognitivismo tal como a penso ter feito da IA forte. Mas creio que, se examinarmos os argumentos que se fornecem em favor do cognitivismo, veremos que eles são muito débeis e, efectivamente, uma exposição das suas debilidades capacitar-nos-á para compreender várias diferenças importantes entre a maneira como os seres humanos se comportam e o modo como os computadores funcionam. Comecemos pela noção do seguimento de regras. Dizem-nos que os seres humanos seguem regras e que os computadores seguem regras. Mas quero afirmar que existe uma diferença crucial. No caso dos seres humanos, sempre que seguimos uma regra, somos guiados pelo

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conteúdo efectivo ou pelo significado efectivo da regra. No caso do seguimento de regras pelos humanos, os significados causam comportamento. Ora, naturalmente, não causam comportamento por si mesmos,. mas desempenham um papel causal na produção da conduta. Por exemplo, consideremos a regra: «Guie pela esquerda na Inglaterra.» Ora, sempre que venho à Inglaterra tenho que recordar esta regra. Como é que ela funciona? Afirmar que obedeço à regra é dizer que o significado desta regra, isto é, o seu conteúdo semântico, desempenha algum tipo de papel causal na produção do que eu efectivamente faço. Note-se que há muitas outras regras que descreveriam o que está a acontecer. Mas elas não são as regras que eu, na realidade, estou a seguir. Assim, por exemplo, pressupondo que eu me encontro numa via com duas faixas e que o volante está localizado no lado direito do carro, então, poder-se-ia dizer que o meu comportamento está de acordo com a regra: «Guie de maneira que o volante esteja mais perto da faixa central da via.» Ora, isto é, efectivamente, uma descrição correcta do meu comportamento, mas não é a regra que eu sigo na Inglaterra. A regra que eu sigo é: «Guie pela esquerda.» Quero que este ponto fique completamente claro. Assim, seja-me permitido fornecer ainda um outro exemplo. Quando os meus filhos foram à Oakland Driving School ensinaram-lhes uma regra para estacionar carros. A regra era: «Dirija o carro para a berma rodando inteiramente o volante para a direita até que as rodas da frente do seu carro fiquem alinhadas pelas rodas traseiras do carro que está à frente. Depois, rode inteiramente o volante para a esquerda.» Ora, note-se que se eles seguem esta regra, então o seu significado deve desempenhar

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um papel causal na produção do seu comportamento. Interessei-me em aprender esta regra porque não é uma regra que eu siga. Efectivamente, não sigo regra nenhuma quando estaciono um carro. Olho apenas para a berma e tento chegar-me a ela o mais que posso, sem amolgar os carros que estão à minha frente ou atrás de mim. Mas, atenção, podia muito bem acontecer que o meu comportamento, visto de fora, contemplado externamente, seja idêntico ao comportamento da pessoa que está a seguir a regra. No entanto, não seria verdadeiro afirmar acerca de mim que estou a seguir a regra. As propriedades formais da conduta não são suficientes para mostrar que uma regra está a ser seguida. Para que a regra seja seguida, o significado da regra tem de desempenhar algum papel causal na conduta. Ora, a moral desta discussão para o cognitivismo pode apresentar-se de um modo muito simples: no sentido em que os seres humanos seguem regras ( e, a propósito, os seres humanos seguem regras bastante menos do que pretendem os cognitivistas), nesse sentido os computadores de nenhum modo seguem regras. Apenas actuam de acordo com certos procedimentos formais. O programa do computador determina os vários passos que o maquinismo deve fazer; determina o modo como um estado será transformado num estado subsequente. E podemos falar metaforicamente como se se tratasse do seguimento de regras. Mas, no sentido literal em que os seres humanos seguem regras, os computadores não seguem regras, apenas actuam como se estivessem a seguir regras. Ora, tais metáforas são totalmente inócuas; na realidade, são até comuns e úteis na ciência. Podemos falar metaforicamente de qualquer sistema como se ele seguisse regras, por exemplo, o sistema solar.

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A metáfora só se torna prejudicial quando se confunde com o sentido literal. Está muito bem utilizar uma metáfora psicológica para explicar o computador. A confusão surge quando a metáfora se toma à letra e se usa o sentido metafórico do computador de seguir regras para tentar explicar o sentido psicológico do seguimento de regras, em que a metáfora se baseava em primeiro lugar. E estamos agora em condições de afirmar qual era o erro presente na evidência linguística a favor do cognitivismo. Se é, decerto, verdade que as pessoas seguem regras de sintaxe quando falam, isso não mostra que elas se comportem como computadores digitais, porque, no sentido em que elas seguem regras de sintaxe, o computador não segue de modo algum quaisquer regras. Executa apenas procedimentos formais. Temos assim dois sentidos do seguir regras, um literal e outro metafórico. E é muito fácil confundir os dois. Ora, eu quero aplicar estas lições à noção de processamento de informação. Creio que a noção de processamento de informação inclui uma confusão enorme semelhante. A ideia é que, uma vez que eu processo informação ao pensar e visto que a minha máquina de calcular processa informação quando toma alguma coisa como um dado inicial, o transforma e produz informação como resultado, então deve existir algum sentido unitário em que ambos estamos a processar informação. Mas isto parece-me obviamente falso. O sentido em que eu faço processamento de informação, ao pensar, é o sentido em que eu estou consciente ou inconscientemente empenhado em certos processos mentais. Mas, neste sentido do processamento da informação, a calculadora não faz processamento de informação porque não possui quaisquer processos mentais.

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Simplesmente imita ou simula as características formais dos processos mentais que eu tenho. Isto é, mesmo se os passos que a calculadora atravessa são formalmente idênticos aos passos que eu dou, isso não mostra que a máquina faz algo de semelhante ao que eu faço, pela simples razão de que a calculadora não tem fenómenos mentais. Ao somar seis e três, não sabe que o algarismo seis está em vez do número seis e que o algarismo três está em lugar do número três e que o sinal mais está em lugar da operação da adição. E isso pela simples razão de que ela não conhece coisa alguma. De facto, é essa a razão por que temos calculadoras. Podem fazer cálculos mais rapidamente e com maior exactidão do que nós podemos sem ter de fazer qualquer esforço mental para o fazer. No sentido em que nós temos de fazer o processamento de informação, elas não o fazem. Precisamos, pois, de fazer uma distinção entre os dois sentidos da noção de processamento de informação. Ou, pelo menos, dois tipos radicalmente diferentes de processamento de informação. O primeiro tipo, que eu chamarei «processamento psicológico de informação», implica estados mentais. Ou, em termos mais grosseiros: quando as pessoas realizam operações mentais, pensam efectivamente, e o pensamento implica caracteristicamente o processamento de informação de um ou de outro tipo. Mas existe um outro sentido de processamento de informação no qual não existem quaisquer estados mentais. Nestes casos, há processos como se estivesse a ocorrer algum processamento mental de informação. Chamemos a esta segunda espécie de casos de processamento de informação formas «como se» de processamento de informação. É perfeitamente inócuo usar estes dois tipos

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de atribuições mentais, contanto que não as confundamos. Contudo, o que descobrimos no cognitivismo é uma persistente confusão dos dois. Ora, uma vez que divisamos claramente esta distinção, podemos ver uma das mais profundas fraquezas do argumento cognitivista. A partir do facto de que eu faço processamento de informação ao pensar e do facto de que o computador faz processamento de informação - mesmo processamento de informação que pode simular as características formais do meu pensamento-, não se segue sem mais que exista algo de psicologicamente relevante acerca do programa de computador. De maneira a mostrar relevância psicológica, deveria haver algum argumento independente de que a forma «como se» do processamento computacional de informação é psicologicamente relevante. A noção de processamento de informação usa-se para disfarçar essa confusão, porque uma expressão é utilizada para cobrir dois fenómenos completamente distintos. Em suma, a confusão que descobrimos a propósito do seguimento de regras tem um paralelo exacto da noção do processamento de informação. Contudo, existe uma confusão mais profunda e mais subtil na noção de processamento de informação. Note-se que, no sentido «como se» do processamento de informação, qualquer sistema se pode descrever como se estivesse a fazer o processamento de informação e, na realidade, poderíamos mesmo utilizá-lo para reunir informação. Assim, não é apenas uma questão de utilizar calculadoras e computadores. Consideremos, por exemplo, a água a correr pela encosta abaixo. Ora, podemos descrever a água como se ela estivesse a fazer processamento de informação. E poderíamos mesmo utilizá-la para obter

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informação. Poderíamos utilizá-la, por exemplo, para obter informação acerca da linha de menor resistência nos contornos da encosta. Mas não se segue daí que exista alguma relevância psicológica a propósito do deslizar da água pela encosta abaixo. Não existe psicologia alguma na acção da gravidade sobre a água. Mas podemos aplicar as lições que a este respeito tirámos ao estudo do cérebro. É um facto óbvio que o cérebro tem um nível de processos psicológicos de informação efectivos. Repetindo, as pessoas pensam efectivamente e o pensamento ocorre nos seus cérebros. Além disso, há todo o tipo de coisas que têm lugar no cérebro ao nível neurofisiológico e que, de facto, causam os nossos processos de pensamento. Mas muitas pessoas supõem que, além desses dois níveis, o nível da psicologia ingénua e o nível da neurofisiologia, deve existir algum nível adicional de processamento de informação computacional. Ora, porque é que supõem isso? Creio que é, em parte, por confundirem o nível psicologicamente real de processamento de informação com a possibilidade de fornecerem descrições «como se» de processamento de informação dos processos que ocorrem no cérebro. Se se falar de água a correr pela encosta abaixo, toda a gente pode ver que isso é psicologicamente irrelevante. Mas é muito mais difícil ver que exactamente a mesma coisa se aplica ao cérebro. O que é psicologicamente relevante acerca do cérebro ç o facto de que ele contém processos psicológicos e tem uma neurofisiologia que causa e realiza esses processos. Mas o facto de podermos descrever outros processos no cérebro, a partir de um ponto de vista «como se» do processamento de informação, não fornece por si mesmo

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qualquer prova de que são psicologicamente reais ou mesmo psicologicamente relevantes. Visto que estamos a falar da parte interna do cérebro, é muito mais difícil ver a confusão, mas trata-se exactamente da mesma confusão que existe em supor que, por a água que escorre pela encosta realizar uma forma «como se» do processamento de informação, houvesse alguma psicologia oculta na água que desce pela encosta. A seguinte suposição que importa examinar é a ideia de que, por detrás de todo o comportamento significativo, deve existir alguma teoria interna. Essa suposição encontra-se em muitas áreas e não apenas na psicologia cognitiva. Assim, por exemplo, a busca de Chomsky de uma gramática universal baseia-se no pressuposto de que existem certas características comuns a todas as línguas e, se essas características são forçadas pelas características comuns do cérebro humano, então deve existir no cérebro todo um conjunto complexo de regras de gramática universal. Mas uma hipótese muito mais simples seria a de que a estrutura fisiológica do cérebro instiga gramáticas possíveis sem a intervenção de um nível intermédio de regras ou teorias. Não só esta hipótese é mais simples, mas também a existência real de características universais da língua incitadas pelas características inatas do cérebro sugere que o nível neurofisiológico da descrição é suficiente. Não precisamos de supor que existem quaisquer regras por cima das estruturas neurofisiológicas. Algumas analogias, espero, elucidarão este ponto. Constitui um facto simples acerca da visão humana que nós não podemos ver infravermelhos ou ultravioletas. Ora, acontecerá isso porque temos uma regra universal de gramática visual que diz: «Não veja infravermelhos ou

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ultravioletas?» Não, é obviamente porque o nosso aparelho visual não é sensível a esses extremos do espectro. Naturalmente, poderíamos descrever-nos a nós mesmos como se estivéssemos a seguir uma regra de gramática visual, mas, mesmo assim, não estamos. Ou, para mencionar outro exemplo, se tentássemos fazer uma análise teórica da capacidade humana em permanecer em equilíbrio ao caminhar, poderia parecer como se estivessem a ocorrer alguns processos mentais mais ou menos complexos, como se admitindo interpretações de diversos tipos resolvêssemos séries de equações quadráticas, inconscientemente é claro, e estas nos capacitassem para caminhar sem cairmos. Mas sabemos efectivamente que este tipo de teoria mental não é necessário para explicar a realização do caminhar sem cair. De facto, tem lugar em larga medida mediante fluidos no ouvido interno, que simplesmente não fazem qualquer cálculo. Se rodopiarmos o suficiente para perturbar os fluidos, é provável que caiamos. Ora bem, quero sugerir que grande parte das nossas realizações cognitivas podem muito bem ser semelhantes a esta. É o cérebro que as faz. Não temos boas razões para supor que, além do nível dos nossos estados mentais e do nível da nossa neurofisiologia, ainda tem lugar, de modo inconsciente, algum cálculo. Consideremos o reconhecimento dos rostos. Todos reconhecemos os rostos dos nossos amigos, parentes e conhecidos, mas sem esforço; e, na realidade, temos agora provas de que certas porções do cérebro são especializadas no reconhecimento dos rostos. Como é que ele funciona? Bem, suponhamos que vamos projectar um computador que, como nós, poderia reconhecer os rostos. Deveria levar a cabo uma tarefa computacional impli-

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cando uma boa dose de cálculo de características geométricas e topológicas. Mas existe alguma prova de que a maneira como a fazemos implica cálculo e computação? Observe-se que, ao caminharmos em areia molhada e deixarmos uma pegada, nem os nossos pés nem a areia fazem qualquer computação. Mas, se fôssemos a projectar um programa que deveria calcular a topologia de uma pegada a partir da informação acerca de pressões diferenciais na areia, seria uma tarefa computacional extremamente complexa. O facto de uma simulação computacional de um fenómeno natural implicar um processo complexo de processamento de informação não revela que o próprio fenómeno implique semelhante processamento. E pode até ser que o reconhecimento facial seja tão simples e tão automático como o deixar pegadas na areia. Na realidade, se prosseguirmos consistentemente na analogia do computador, descobrimos que muitas coisas ocorrem no computador que também não são processos computacionais. Por exemplo, no caso de algumas calculadoras, se perguntarmos: «Como é que a calculadora multiplica sete por três?», a resposta é: «Adiciona três a si mesmo sete vezes.» Mas se perguntarmos: «Como é que ela soma três a si mesmo?», não existe para esta pergunta qualquer resposta computacional; é simplesmente feita no hardware. Assim, a resposta à questão é: «É assim que o faz.» E quero sugerir que para muitas capacidades absolutamente fundamentais, como a nossa capacidade de ver ou a nossa capacidade de aprender uma língua, talvez não exista qualquer nível mental teórico subjacente a essas capacidades: o cérebro simplesmente fá-las. Estamos neurofisiologicamente de tal modo construídos que o assalto dos fotões às nossas células fotoreceptoras nos capacita

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para ver e estamos neurofisiologicamente de tal modo construídos que a estimulação do ouvir outras pessoas a falar e a interacção com elas nos capacita para aprender uma língua. Ora, não estou a dizer que as regras não desempenham qualquer papel no nosso comportamento. Pelo contrário, regras de linguagem ou regras de jogos, por exemplo, parecem desempenhar um papel crucial na conduta relevante. Mas afirmo que é uma questão astuciosa decidir quais as partes do comportamento que são governadas por regras e quais as que não são. E não podemos supor que todo o comportamento significativo tenha subjacente algum sistema de regras. É este talvez um bom lugar para dizer que, embora não seja optimista acerca do projecto global de investigação do cognitivismo, penso que se pode provavelmente conseguir desse esforço muitas ideias, e certamente não pretendo desencorajar quem quer que seja de tentar provar que estou enganado. E mesmo que eu tenha razão, podem conseguir-se muitas ideias a partir de projectos de investigação falhados; o behaviorismo e a psicologia freudiana são dois casos destes. No caso do cognitivismo, tenho ficado especialmente impressionado pelo trabalho de David Marr sobre a visão e pelo trabalho de outras pessoas sobre «compreensão da linguagem natural», isto é, sobre o esforço de levar os computadores a simular a produção e a interpretação da linguagem humana coloquial. Desejo concluir este capítulo com uma nota mais positiva, mencionando quais as implicações desta abordagem para o estudo da mente. Como modo de contradizer o quadro cognitivista, deixem-me apresentar uma abordagem

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alternativa à solução dos problemas que assediam as Ciências Sociais. Abandonemos a ideia de que existe um programa de computador entre a mente e o cérebro. Pensemos a mente e os processos mentais como fenómenos biológicos, que têm um fundamento biológico semelhante ao do crescimento ou digestão ou à secreção da bílis. Pensemos a nossa experiência visual, por exemplo, como o produto final de uma série de eventos que começa com o assalto de fotões na retina e acaba algures no cérebro. Ora, existirão dois níveis ordinários de descrição na explicação causal do modo como a visão ocorre nos animais. Haverá, em primeiro lugar, um nível da neurofisiologia; um nível no qual podemos discutir neurónios individuais, sinapses e potenciais de acção. Mas, dentro deste nível neurofisiológico, descobriremos níveis inferiores e superiores de descrição. Não é necessário confinarmo-nos apenas aos neurónios e às sinapses. Podemos falar do comportamento de grupos ou módulos de neurónios, como os diferentes níveis de tipos de neurónios na retina ou as colunas no córtex; e podemos falar acerca do funcionamento e acção dos sistemas neurofisiológicos em níveis de complexidade muito maiores; como, por exemplo, o papel do córtex estriado na visão ou o papel das zonas dezoito e dezanove no córtex visual, ou a relação entre o córtex visual e o resto do cérebro no processamento dos estímulos visuais. Assim, dentro de um nível neurofisiológico, haverá uma série de níveis de descrição, todos eles igualmente neurofisiológicos. Mas, além deste, encontraremos também um nível mental de descrição. Sabemos, por exemplo, que a percepção é uma função de expectativa. Se esperamos ver alguma coisa, vê-la-emos com muito maior prontidão.

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Sabemos, ademais, que a percepção pode ser afectada por vários fenómenos mentais. Sabemos que a disposição psíquica e a emoção podem afectar o modo como e aquilo que percebemos. E, mais uma vez, dentro deste nível mental, existem igualmente diferentes níveis de descrição. Podemos falar não só do modo como a percepção é afectada por crenças e desejos individuais, mas também do modo como ela é afectada por fenómenos mentais globais como as capacidades básicas da pessoa, ou a sua visão geral do Mundo. Mas, além do nível da neurofisiologia e do nível da intencionalidade, não precisamos de supor que ainda existe outro nível; um nível de processos computacionais digitais. E não existe mal algum em considerarmos o nível dos estados mentais e o nível da neurofisiologia como processamento de informação, contanto que não façamos a confusão de supor que a forma psicológica efectiva do processamento de informação é análoga à da «como se». Concluindo, pois: em que ponto nos encontramos na nossa apreciação do programa cognitivista de investigação? Bem, certamente não demonstrei que é falso. Pode muito bem vir a revelar-se verdadeiro. Julgo que as oportunidades de êxito são tão grandes como as oportunidades de êxito do behaviorismo, há cinquenta anos. Ou seja, penso que as suas oportunidades de sucesso são praticamente nulas. O que eu fiz para afirmar isto, porém, foram apenas as três coisas seguintes: primeiro, sugerir que logo que alguém traz ao de cima as suposições básicas do cognitivismo a sua implausibilidade se torna transparente. Mas essas suposições, em grande parte, encontram-se profundamente radicadas na nossa cultura intelectual, algumas delas são muito dificeis de erradicar

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ou até de se tornarem plenamente conscientes. A minha primeira asserção é que, logo que entendermos plenamente a natureza das suposições, a sua implausibilidade salta aos olhos. O segundo ponto que acentuei é que, efectivamente, não possuímos provas empíricas suficientes para supor que tais pretensões são verdadeiras, pois a interpretação das provas existentes baseia-se numa ambiguidade em torno de certas noções cruciais como as de processamento de informação e seguimento de regras. E, em terceiro lugar, apresentei uma concepção alternativa, tanto neste capítulo como no primeiro, da relação entre o cérebro e a mente; uma concepção que não exige de nós que postulemos de qualquer nível intermédio de processos computacionais algorítmicos que medeiam entre a neurofisiologia do cérebro e a intencionalidade da mente. A característica deste quadro, que é importante para a presente discussão, é que, além do nível dos estados mentais, como crenças e desejos, e um nível da neurofisiologia, não existe qualquer outro nível, não se necessita de qualquer tapa-buracos entre a mente e o cérebro, porque não existe nenhum buraco para encher. Provavelmente, o computador não é uma metáfora para o cérebro melhor ou pior do que anteriores metáforas mecânicas. Aprendemos tanto a propósito do cérebro dizendo que é um computador como ao afirmarmos que é um quadro telefónico, um sistema telegráfico, uma bomba de água ou uma máquina a vapor. Suponhamos que ninguém sabia como funcionavam os relógios. Suponhamos que era assustadoramente difícil imaginar como eles trabalhavam, porque, embora houvesse muitos à nossa volta, ninguém sabia como construir um, e os esforços para tentar saber como funcionavam

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tendiam a destruir o relógio. Ora, suponhamos que um grupo de investigadores dizia: «Havemos de entender como funciona um relógio, se projectarmos uma máquina que é funcionalmente equivalente a um relógio, que mede o tempo tal e qual como um relógio.» Assim, pois, conceberam uma ampulheta e exclamaram: «Compreendemos agora como é que um relógio funciona», ou talvez: «Se pudéssemos conseguir que a ampulheta fosse tão exacta como um relógio, então finalmente poderíamos entender como funciona um relógio.» Substituamos «cérebro» por «relógio» nesta parábola e substituamos «programa computacional digital» por «ampulheta» e a noção de inteligência pela noção de medir o tempo e teremos a situação contemporânea em muita (não toda!) da inteligência artificial e ciência cognitiva. O meu objectivo global nesta investigação é tentar responder a algumas das questões mais intrigantes acerca da maneira como os seres humanos se inserem no resto do Universo. No primeiro capítulo, tentei resolver o «problema da Mente-Corpo». No segundo, ocupei-me de algumas pretensões extremas que identificam os seres humanos com computadores digitais. No presente capítulo, suscitei algumas dúvidas a propósito do programa cognitivista de investigação. Na segunda metade do livro, quero virar a minha atenção para explicar a estrutura das acções humanas, a natureza das ciências e os problemas da liberdade de vontade.

IV

A ESTRUTURA DA ACÇAO

O objectivo deste capítulo é explicar a estrutura da acção humana. Preciso de fazer isto por várias razões: primeiro, tenho necessidade de mostrar-como é que a natureza da acção se harmoniza com a minha explicação do problema da Mente-Corpo e com a minha rejeição da Inteligência Artificial, contida nos primeiros capítulos. Preciso de explicar a componente mental da acção e mostrar como ela se relaciona com a componente física. Preciso de mostrar como é que a estrutura da acção se relaciona com a explicação da acção. E sinto necessidade de lançar um fundamento para a discussão da natureza das ciências sociais e a possibilidade da liberdade da vontade, que irei discutir nos últimos dois capítulos. Se pensarmos nas acções humanas, imediatamente descobrimos algumas diferenças notáveis entre elas e os outros acontecimentos do mundo natural. Primeiro, é tentador pensar que tipos de acções ou de comportamento se podem identificar com tipos de movimentos corporais. Mas isso é obviamente errado. Por exemplo, o mesmo

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conjunto de movimentos corporais pode constituir uma dança, ou uma sinalização, ou um exercício ou um teste dos próprios músculos, ou então nada do que foi dito, Além disso, assim como o mesmo conjunto de tipos de movimentos físicos pode constituir tipos de acções completamente diversos, assim também um tipo de acção pode ser realizado por um número de tipos muito diferente de movimentos físicos. Pense-se, por exemplo, no envio de uma mensagem a um amigo. Podemos escrevê-la numa folha de papel. Podemos escrevê-la à máquina. Podemos enviá-la por um mensageiro ou por telegrama. Ou então, podemos falar-lhe pelo telefone. E, efectivamente, cada um dos modos de enviar a mesma mensagem poderia realizar-se com uma variedade de movimentos físicos. Poderíamos escrever a nota com a mão esquerda ou a mão direita, com os dedos dos pés ou até segurando a caneta entre os dentes. Além disso, uma outra característica singular das acções que as faz diversas dos acontecimentos em geral, é que as acções parecem ter preferido descrições. Se · vou passear para Hyde Park, há muitas outras coisas que acontecem durante o meu passeio, mas as suas descrições não descrevem as minhas acções intencionais, porque, ao agir, aquilo que eu faço depende em grande parte daquilo que penso que estou a fazer. Assim, por exemplo, estou também a mover-me na direcção geral da Patagónia, sacudindo o cabelo da minha cabeça para cima e para baixo, gastando os sapatos e deslocando inúmeras moléculas de ar. No entanto, nenhuma destas outras descrições parece atingir aquilo que é essencial a propósito da acção, acerca do que a acção é. Uma terceira característica relacionada das acções é que uma pessoa está numa posição especial para saber

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o que está a fazer. Não tem de se observar a si mesmo ou encetar uma investigação para ver que acção está a realizar. Ou, pelo menos, tenta realizar. Assim, se alguém me disser: «Está a tentar ir para Hyde Park?», ou «Está a esforçar-se por se aproximar da Patagónia>», não tenho hesitação em dar uma resposta, mesmo que os movimentos físicos que faço possam ser apropriados para qualquer resposta. É também um facto notável nos seres humanos que eles sejam capazes, sem esforço algum, de identificar e de explicar o seu próprio comportamento e o das outras pessoas. Creio que esta capacidade se funda no nosso domínio inconsciente de um certo conjunto de princípios, da mesma maneira que a nossa capacidade de reconhecer algo como uma frase de inglês se baseia na posse de um domínio inconsciente dos princípios da gramática inglesa. Penso que existe um conjunto de princípios que pressupomos, ao afirmarmos coisas de sentido comum normal como, por exemplo, Basil votou nos conservadores, porque pensou que estes sanariam o problema da inflação, ou Sally veio de Birmingham para Londres porque julgou que aqui as oportunidades de trabalho seriam melhores, ou mesmo coisas tão simples como: «aquele homem além, que está a fazer movimentos estranhos, está, na realidade, a afiar o machado ou a engraxar os sapatos.» Acontece comummente que as pessoas que reconhecem a existência destes princípios teóricos deles escarneçam, dizendo que são uma teoria popular e que deveriam ser suplantados por alguma explicação mais científica do comportamento humano. Desconfio desta pretensão, tal como desconfiaria de uma afirmação que dissesse que deveríamos suplantar a nossa teoria implícita da gramática inglesa, a que adquirimos pela aprendizagem da

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língua. A razão para a minha suspeita é a mesma em cada caso: o uso da teoria implícita é parte da realização da acção, da mesma maneira que o uso das regras da gramática faz parte do falar. Assim, embora pudéssemos acrescentar ou descobrir toda a espécie de coisas adicionais interessantes a propósito da linguagem ou a propósito da conduta, é muito improvável que possamos substituir esta teoria, que está implícita e em parte constitutiva do fenómeno, por alguma explicação «científica» externa deste mesmo fenómeno. Aristóteles e Descartes sentir-se-iam plenamente familiarizados com a maior parte das nossas explicações do comportamento humano, mas não com as nossas explicações dos fenómenos biológicos e físicos. A razão habitualmente aduzida para isso é que Aristóteles e Descartes dispunham de uma teoria primitiva da Biologia e da Física, por um lado, e de uma teoria primitiva do comportamento humano, por outro; e que, enquanto progredimos na Biologia e na Física, não fizemos um avanço comparável na explicação da conduta humana. Quero sugerir uma concepção alternativa. Penso que Aristóteles e Descartes, tal como nós, já possuíam uma teoria sofisticada e complexa da conduta humana. Penso igualmente que muitas explicações supostamente científicas do comportamento humano, como a de Freud, empregam efectivamente mais do que substituem os princípios da nossa teoria implícita da conduta humana. Resumindo o que disse até agora: existem mais tipos de acção do que tipos de movimentos físicos, as acções preferiram as descrições, as pessoas sabem o que fazem sem observação, e os princípios pelos quais identificamos e explicamos a acção são também parte das acções, isto é,

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são, em parte, constitutivos das acções. Desejo agora fornecer uma breve explicação do que se poderia chamar a estrutura do comportamento. Para explicar a estrutura do comportamento humano, preciso de introduzir um ou dois termos técnicos. A noção nuclear na estrutura do comportamento é a noção de intencionalidade. Dizer que um estado mental tem intencionalidade significa apenas que ele é acerca de alguma coisa. Por exemplo, uma crença é sempre uma crença de que tal coisa acontece, ou o desejo é sempre o desejo de que tal e tal coisa deveria acontecer ou, então, ter lugar. O tencionar, no sentido comum, não tem um papel especial na teoria da intencionalidade. Tencionar fazer alguma coisa é apenas um tipo de intencionalidade juntamente com querer, desejar, esperar, temer e assim por diante. Um estado jntencional, como uma crença, ou um desejo ou uma intenção no sentido habitual, têm caracteristicamente duas componentes. Tem o que poderíamos chamar o seu «conteúdo», que faz que ele seja acerca de alguma coisa, e o seu «modo psicológico» ou «tipo». A razão por que precisamos desta distinção é que podemos ter o mesmo conteúdo em diferentes tipos. Assim, por exemplo, posso querer sair da sala, posso julgar que irei sair da sala e posso tencionar sair da sala. Em cada caso, temos o mesmo conteúdo, isto é, que eu sairei da sala; mas em diferentes modos psicológicos ou tipos: crença, desejo e intenção, respectivamente. Além disso, o conteúdo e o tipo do estado servirão para relacionar o estado mental do Mundo. Ao fim e ao cabo, é para isso que temos mentes com estados mentais: para representar o Mundo a nós próprios; para o representar como é, como gostaríamos que ele fosse, como tememos

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que ele venha a ser, o que tencionamos fazer e a seu respeito e assim por diante. Isto tem a consequência de que as nossas crenças serão verdadeiras se se harmonizam com o modo como o Mundo é; falsas, se o não fizerem; os nossos desejos serão realizados ou frustrados, as nossas intenções serão levadas ou não a cabo. Em geral, pois, estados intencionais têm «condições de satisfação». Cada estado determina em que condições é verdadeiro (se, digamos, for uma crença), ou em que condições é realizado (se, digamos, for um desejo) e sob que condições é levado a cabo (se for uma intenção). Em cada caso, o estado mental representa as suas próprias condições de satisfação. Uma terceira característica que importa notar acerca de tais estados é que, por vezes, fazem acontecer coisas. Por exemplo, se quero ir ao cinema e vou ao cinema, normalmente o meu desejo causará o genuíno evento que representa, o ir ao cinema. Em tais casos, existe uma conexão interna entre a causa e o efeito, porque a causa é uma representação do genuíno estado de coisas que origina. A causa representa e leva a cabo o efeito. Chamo a tais espécies de relações de causa e efeito casos de «causação intencional». A causação intencional, como veremos, revelar-se-á crucial para a estrutura e para a explicação da acção humana. E, de várias maneiras, inteiramente diferente das explicações da causação que surgem nos livros de textos, onde, por exemplo, uma bola de bilhar bate noutra bola de bilhar e a faz mover. Resumindo a discussão da intencionalidade, há três características que precisamos de ter em conta na nossa análise do comportamento humano: em primeiro lugar, os estados intencionais consistem num conteúdo em certo tipo mental. Em segundo lugar determinam as suas

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condições de satisfação, isto é, serão ou não satisfeitas, dependendo do facto de se o Mundo se harmoniza com o conteúdo do estado. E, em terceiro lugar, por vezes eles fazem as coisas acontecer, mediante a causação intencional para produzir uma harmonia, isto é, para produzir o estado de coisas que representam, as suas próprias condições de satisfação. Servindo-me destas ideias, retornarei agora à tarefa principal deste capítulo. Prometi fornecer uma explicação muito breve do que poderia chamar-se a estrutura da acção ou a estrutura do comportamento. Por comportamento, aqui, entendo o comportamento humano voluntário, intencional. Entendo coisas como caminhar, correr, comer, fazer amor, votar nas eleições, casar-se, comprar e vender, ir de férias, trabalhar no emprego. Não entendo coisas como digerir, envelhecer ou ressonar. Mas, mesmo restringindo-nos ao comportamento intencional, as actividades humanas apresentam-nos uma desconcertante variedade de tipos. Precisaremos de distinguir entre comportamento individual e comportamento social; entre comportamento social colectivo e comportamento individual dentro de um colectivo social; entre fazer alguma coisa por mor de outra coisa e fazer alguma coisa por mor de si mesma. E, talvez o mais difícil de tudo, precisamos de explicar as sequências melódicas do comportamento ao longo da passagem do tempo. As actividades humanas, ao fim e ao cabo, não se assemelham a uma série de instantâneos parados, mas mais ao filme da nossa vida. Não posso esperar responder a todas estas questões, mas espero, no fim, que o que digo se assemelhará a uma explicação de sentido comum da estrutura da acção. Se tenho razão, o que vou dizer parecerá obviamente acertado.

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Mas, historicamente, o que eu penso a propósito da explicação de sentido comum não pareceu evidente. Por um lado, a tradição behaviorista na filosofia e na psicologia levou muita gente a negligenciar a componente mental das acções. Os behavioristas queriam definir as acções e, de facto, toda a nossa vida mental, em termos de simples movimentos físicos. Alguém uma vez caracterizou a abordagem behaviorista, e com razão, do meu ponto de vista, como simulando a anestesia. O extremo oposto na filosofia foi afirmar que os únicos actos que realizamos são actos mentais internos de volição. Deste ponto de vista, falando estritamente, jamais elevamos os nossos braços. Tudo o que fazemos é «querer» que os nossos braços se levantem. Se se levantarem, isso é muito boa sorte, mas não acção nossa. Outro problema é que, até há pouco, a filosofia da acção era um tema bastante negligenciado. A tradição ocidental sublinhou insistentemente mais a importância do conhecer do que do fazer. A teoria do conhecimento e do significado tem sido mais central para as suas preocupações do que a teoria da acção. Quero agora tentar mostrar os aspectos mentais e físicos da acção. Uma explicação da estrutura do comportamento pode fornecer-se de um modo mais adequado, enunciando um conjunto de princípios. Estes princípios explicarão os aspectos mentais e físicos da acção. Ao apresentá-los, não discutirei de onde é que procedem as nossas crenças, desejos e assim por diante. Mas explicarei como é que eles figuram no nosso comportamento. Penso que a maneira mais simples de comunicar estes princípios é justamente enunciá-los e tentar defendê-los em seguida. Assim, aqui vão eles.

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Princípio 1: As acções consistem caracteristicamente em duas componentes, uma componente mental e uma componente fisica. Pensemos, por exemplo, em puxar um carro. Por um lado, há certas experiências conscientes do esforço quando empurramos. Se formos bem sucedidos, essas experiências resultarão no movimento do nosso corpo e no movimento correspondente do carro. Se não tivermos êxito, ainda teremos tido, pelo menos, a componente mental, isto é, ainda teremos tido uma experiência de tentar mover o carro com, pelo menos, algumas das componentes fisicas. Terá havido o esticar dos músculos, o sentimento da pressão contra o carro e assim por diante. Isto leva ao Princípio 2: A componente mental é uma intenção. Tem intencionalidade - é acerca de alguma coisa. Determina o que conta como êxito ou fracasso na acção; e se é bem sucedida, causa um movimento corporal que, por seu turno, causa os outros movimentos, como o movimento do carro, que constituem o resto da acção. Nos termos da teoria da intencionalidade, que esboçámos, a acção consiste em duas componentes; uma componente mental e uma componente física. Se é bem sucedida, a componente mental causa a componente física e representa a componente física. Chamo a esta forma de causação a «causaçâo intencional». A melhor maneira de ver a natureza das diferentes componentes de uma acção é relevar cada componente e examiná-la separadamente. E, de facto, no laboratório, é muito fácil fazer isto. Na neurofisiologia,já temos experiências feitas por Wilder Penfield, de Montreal, em que, mediante a estimulação eléctrica de uma certa parte do

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córtex motor do paciente, Penfield conseguiu causar o movimento dos membros do paciente. Ora, os pacientes ficaram invariavelmente surpreendidos com isso e caracteristicamente disseram coisas como: «Eu não fiz isso - foi você que o fez.» Num tal caso, relevámos o movimento corporal sem a intenção. Note-se que, em tais casos, os movimentos corporais poderiam ser os mesmos que são numa acção intencional, mas parece muito claro que existe uma diferença. Qual é a diferença? Bem, também já possuímos experiências que remontam a William James, onde podemos relevar a componente mental sem a correspondente componente física da acção. No caso de James, o braço de um paciente é anestesiado e mantido do seu lado numa divisão às escuras, e então mandam-lhe levantar o braço. Ele pensa que obedece à ordem, mas mais tarde fica muito surpreendido por descobrir que o seu braço não se levantou. Ora, neste caso, extirpamos a componente mental, isto é, a intenção, do movimento corporal. Na realidade, o homem teve a intenção. Isto é, podemos verdadeiramente dizer a seu respeito que tentou de facto mover o braço. Normalmente, as duas componentes andam juntas. Habitualmente, temos a intenção e o movimento corporal, mas não são independentes. O que os nossos dois primeiros princípios tentam articular é como elas se relacionam. A componente mental, enquanto parte das suas condições de satisfação, deve representar e causar a componente física. Note-se, a propósito, que temos um vocabulário bastante extenso de «tentar» e «ter êxito» e «fracassar», de «intencional» e «não intencional», de «acção» e «movimento», para descrever o funcionamento destes princípios.

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Princípio 3: O tipo de causação que é essencial à estrutura da acção e à explicação da acção é a causação intencional. Os movimentos corporais das nossas acções são causados pelas nossas intenções. As intenções são causadas porque fazem acontecer coisas; mas têm igualmente conteúdos e assim podem figurar no processo do raciocínio lógico. Podem ser causais e ter características lógicas, porque o tipo de causação de que estamos a falar é a causação mental ou a causação intencional. E, na causação intencional, os conteúdos mentais afectam o Mundo. Todo o aparelho funciona porque é realizado no cérebro, da maneira como expliquei no primeiro capítulo. A forma de causação que estamos a discutir aqui é inteiramente diferente da forma padrão de causação, tal como é descrita nos manuais filosóficos. Não se trata de uma questão de regularidades ou de leis abrangentes ou de conjunções constantes. Efectivamente, penso que está muito mais próxima da nossa noção de sentido comum de causação, em que justamente queremos dizer que algo faz acontecer algo mais. A peculariedade da causação intencional é que ela é um caso de estado mental que faz acontecer algo mais e que este algo mais é o genuíno estado de coisas representado pelo estado mental que o causa. Principio 4: Na teoria da acção, existe uma distinção fundamental entre as acções que são premeditadas, que são resultado de alguma espécie de planificação prévia, e as acções que são espontâneas, em quefazemos alguma coisa sem qualquer reflexão anterior. E, em conformidade com esta distinção, precisamos de uma distinção entre intenções anteriores, isto é, intenções formadas antes da realização da acção, e intenções na acção, que são as intenções que temos enquanto efectivamente realizamos uma acção.

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Um erro comum que existe na teoria da acção é supor que todas as acções intencionais são o resultado de alguma espécie de deliberação, que são o produto de uma cadeia de raciocínio prático. Mas, obviamente, muitas coisas que fazemos não são assim. Simplesmente fazemos algo sem qualquer reflexão prévia. Por exemplo, numa conversa normal, não se reflecte sobre o que se vai dizer a seguir, diz-se simplesmente. Em tais casos, há decerto uma intenção, mas não é uma intenção formada antes da realização da acção. É o que eu chamo uma intenção na acção. Noutros casos, porém, formamos intenções antecedentes. Reflectimos sobre o que queremos e sobre qual é a melhor maneira de o levar a cabo. Este processo de reflexão (Aristóteles chamou-lhe «raciocínio prático») resulta caracteristicamente na formação de uma intenção prévia ou, como também Aristóteles sublinhou, por vezes, resulta na própria acção. Princípio 5: A formação de intenções prévias é, pelo menos geralmente, o resultado de raciocínio prático. O raciocínio prático é sempre raciocínio acerca da melhor maneira de decidir entre desejos antagónicos. A força motriz que está por detrás da maior parte das acções humanas (e animais) é o desejo. As crenças funcionam apenas para nos capacitar a representar o melhor modo de satisfazer os nossos desejos. Assim, por exemplo, quero ir a Paris e creio que a melhor maneira, depois de considerar todas as coisas, é ir de avião, pelo que formo a intenção de ir por via aérea. Eis um processo típico e de sentido comum de raciocínio prático. Mas o raciocínio prático difere crucialmente do raciocínio teórico, do raciocínio acerca do que sejam as coisas; no raciocínio prático, porém, trata-se sempre de

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como melhor decidir entre os vários desejos antagónicos que temos. Assim, por exemplo, suponhamos que eu quero ir a Paris e que imagino que o melhor modo de ir é ir de avião. Contudo, não existe maneira de eu poder fazer isto sem frustar muitos outros desejos que tenho. Não quero gastar dinheiro; não quero entrar em filas nos aeroportos; não quero sentar-me em assentos de avião; não quero tomar refeições de avião; não quero que as pessoas ponham o seu cotovelo onde eu tento pôr o meu cotovelo; e assim por diante, indefinidamente. Porém, apesar de todos os desejos que serão frustados se for a Paris de avião, posso ainda pensar que, depois de tudo considerado, o melhor é ir a Paris de avião. Isto é não só típico do raciocínio prático, mas penso que é universal no raciocínio prático que ele diga respeito à decisão a propósito de desejos em conflito. O quadro que resulta destes cinco princípios, pois, é que a energia mental que impulsiona a acção é uma energia que opera mediante causação intencional. É uma forma de energia em que a causa, na forma de desejos ou de intenções, representa o preciso estado de coisas que causa. Ora, voltemos a alguns dos pontos acerca da acção que descortinámos no começo, porque penso termos já reunido peças suficientes para os explicar. Notámos que as acções preferiam descrições e que, efectivamente, o sentido comum nos capacitava para identificar o que eram as descrições preferidas de acções. Agora, podemos ver que a descrição preferida de uma acção é determinada pela intenção na acção. O que a pessoa realmente está a fazer ou, pelo menos, o que tenta fazer depende inteiramente do que seja a intenção com que está a actuar. Por exemplo, sei que estou a procurar ir a Hyde Park e não a tentar

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aproximar-me da Patagónia, porque esta é a intenção com que eu estou a passear. E sei isto sem qualquer observação, porque o conhecimento em questão não é conhecimento do meu comportamento externo, mas dos meus estados mentais internos. Isto explica, além disso, algumas das características lógicas acerca das explicações que fornecemos da acção humana. Explicar uma acção é fornecer as suas causas. As suas causas são estados psicológicos. Estes estados relacionam-se com a acção, quer por serem passos do raciocínio prático que levou às intenções, quer porque são as próprias intenções. A característica mais importante da explicação da acção, porém, é digna de um enunciado enquanto princípio separado, pelo que chamar-lhe-emas o Princípio 6: A explicação de uma acção deve ter o mesmo conteúdo que estava na cabeça da pessoa, quando ela realizou a acção ou quando raciocinou com vista à sua intenção de levar a cabo a acção. Se a explicação é efectivamente explanatória, o conteúdo que causa o comportamento mediante a causação intencional deve ser idêntico ao conteúdo da explicação do comportamento. Sob este aspecto, as acções diferem dos outros acontecimentos naturais do Mundo e, em conformidade, também as suas explicações diferem. Ao explicarmos um tremor de terra ou um furacão, o conteúdo da explicação apenas deve explicar o que aconteceu e porque é que aconteceu. Não deve causar o próprio acontecimento. Mas, ao explicar o comportamento humano, tanto a causa como a explicação têm conteúdos e a explanação apenas explica porque é que ela tem o mesmo conteúdo que a causa. Temos, até agora, estado a falar como se as pessoas tivessem intenções sem conhecimento prévio. Mas, natu-

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ralmente, isto é muito irrealista e precisamos agora de introduzir algumas complexidades que aproximarão, pelo menos, um pouco mais a nossa análise dos afazeres da vida real. Jamais alguém tem uma intenção por si mesmo sem mais. Por exemplo, tenho intenção de ir de carro até Oxford, a partir de Londres: posso ter isso de um modo inteiramente espontâneo mas, no entanto, devo ainda ter uma série de outros estados intencionais. Devo ter uma crença de que tenho um carro e uma crença de que Oxford está a uma distância acessível por carro. Ademais, terei caracteristicamente um desejo de que não haja muito trânsito nas estradas e que o tempo não esteja demasiado mau para a condução. Por isso ( e aqui dá-se uma aproximação maior à noção de explicação da acção), eu não conduzirei caracteristicamente até Oxford sem mais, mas irei de carro a Oxford com alguma finalidade. E se assim é, embrenhar-me-ei caracteristicamente no raciocínio prático - essa forma de raciocínio que leva, não a crenças ou a conclusões de argumentos, mas a intenções e à conduta efectiva. E quando compreendermos esta forma de raciocínio, teremos feito um grande passo em direcção à compreensão da explicação das acções. Aos outros estados intencionais que fornecem ao mesmo estado intencional o significado particular que ele tem, chamemos-lhes a todos a «rede da intencionalidade». E à guisa de uma conclusão geral, podemos chamar-lhe o Princípio 7. Qualquer estado intencional funciona apenas como parte de uma rede de outros estados intencionais. E aqui, pelo termo «funciona», entendo que ele apenas determina as suas condições de satisfação relativas a todo um conjunto de outros estados intencionais.

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Ora, quando começamos a examinar os pormenores da rede, descobrimos outro fenómeno interessante; que as actividades da nossa mente não podem consistir em estados mentais, por assim dizer, de uma ponta a outra. Antes, os nossos estados mentais só funcionam do modo como funcionam, porque funcionam sobre um fundo de capacidades, competências, habilidades, hábitos, maneiras de fazer coisas e atitudes gerais perante o Mundo que, em si mesmas, não consistem em estados intencionais. A fim de constituir a intenção de ir de carro a Oxford, devo ter a capacidade de guiar. Mas a capacidade de guiar não consiste em si num complexo total de outros estados intencionais. Exige-se mais do que um conjunto de crenças e desejos para se poder conduzir. Na realidade, tenho de ter a capacidade de o fazer. É um caso em que a minha competência cognitiva não é apenas uma questão de saber isso. Chamemos ao conjunto de habilidades, actos, capacidades, etc., com base nos quais funcionam os estados intencionais, «o pano de fundo da intencionalidade». E à tese da rede, a saber, de que todo o estado intencional só funciona como parte de uma rede, acrescentarei a tese do fundo - chamemos-lhe Princípio 8: Toda a rede da intencionalidade só funciona sobre um fundo de capacidades humanas que em si mesmas não são estados mentais.

Afirmei que muitas explicações pretensamente científicas da conduta tentam subtrair-se a ou ultrapassar este modelo de sentido comum, que tenho estado a delinear. Mas, ao fim e ao cabo, penso que não há maneira de elas o conseguirem, porque esses princípios não descrevem os fenómenos: em si mesmos constituem parcialmente os

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fenómenos. Consideremos, por exemplo, as explicações freudianas. Quando Freud elabora a sua metapsicologia, isto é, quando fornece a teoria do que está a fazer, utiliza muitas vezes comparações científicas. Há muitas analogias entre a psicologia e o elecromagnetismo ou a hidráulica e devemos pensar na mente como funcionando segundo a analogia dos princípios hidráulicos, e assim por diante. Mas, quando ele examina efectivamente um paciente e descreve a natureza da neurose de algum paciente, é surpreendente ver em que medida as explicações que fornece são explicações de senso comum. Dora comporta-se de determinada maneira porque está apaixonada pelo Herr, ou porque imita o seu primo que ficou doido com a Mariazell. O que Freud acrescenta ao senso comum é a observação de que, muitas vezes, os estados mentais que causam o nosso comportamento são inconscientes. Na realidade, são reprimidos. Muitas vezes, somos renitentes em admitir que temos certos estados intencionais, porque deles sentimos vergonha ou por qualquer outra razão. E, em segundo lugar, ele acrescenta também uma teoria das transformações dos estados mentais, sobre como um estado intencional se pode transformar num outro. Mas, com a adição deste ou de outros acrescentos, a forma freudiana de explicação é a mesma que as formas de senso comum. Sugiro que o senso comum irá provavelmente persistir, mesmo se adquirirmos outras explicações mais científicas do comportamento. Uma vez que a estrutura da explicação se deve harmonizar com a estrutura dos fenómenos explicados, os melhoramentos na explicação não possuirão, provavelmente, estruturas novas e inauditas. Neste capítulo, tentei explicar como e em que sentido o comportamento contém e é causado por estados men-

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tais internos. Talvez surpreenda que muita da psicologia e da ciência cognitiva tenha tentado negar essas relações. No capítulo seguinte, vou explorar algumas das consequências da minha visão do comportamento humano para as ciências sociais. Porque é que as ciências sociais sofreram fracassos e conseguiram os êxitos que tiveram e o que delas podemos razoavelmente esperar aprender?

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Neste capítulo, quero discutir um dos problemas intelectuais mais incómodos da era presente: porque é que os métodos das ciências naturais não nos forneceram o mesmo tipo de retorno do estudo do comportamento humano, como aconteceu na Física e na Química? E que tipo de ciências «sociais» ou «comportamentais» podemos nós sensatamente esperar de qualquer maneira? Vou sugerir que existem algumas diferenças radicais entre o comportamento humano e os fenómenos estudados nas ciências naturais. Afirmarei que essas diferenças explicam os fracassos e os êxitos que temos tido nas ciências humanas. De começo, quero chamar a atenção para uma diferença importante entre a forma das explicações de sentido comum do comportamento humano e a forma canónica da explicação científica. Segundo a teoria normativa da explicação científica, explicar o fenómeno consiste em mostrar como a sua ocorrência resulta de certas leis científicas. Essas leis são generalizações universais acerca do

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modo como as coisas acontecem. Por exemplo, se nos derem um enunciado de leis relevantes que descrevem o comportamento de um corpo em queda, e se soubermos onde ele começou, podemos efectivamente deduzir o que lhe irá acontecer. De modo semelhante, se quisermos explicar uma lei, podemos deduzir essa lei de alguma lei de nível superior. Neste caso, a explicação e a predição são perfeitamente simétricas. Podemos predizer deduzindo o que acontecerá; podemos explicar deduzindo o que aconteceu. Ora, seja qual for o mérito que este tipo de explicação possa ter nas ciências da natureza, uma das coisas que quero sublinhar neste capítulo é que ela é totalmente irrelevante para nós na explicação do comportamento humano. E não é porque tenhamos falta de leis para explicar exemplos individuais da conduta humana. É porque, mesmo se tivéssemos tais leis, elas seriam ainda inúteis para nós. Penso que facilmente posso levar os ouvintes a ver isto, pedindo-lhes que imaginem o que é que aconteceria se nós efectivamente tivéssemos uma «lei», isto é, uma generalização universal acerca de algum aspecto do nosso comportamento. Suponhamos que, nas últimas eleições, vocês votaram nos Conservadores e suponhamos que votaram nos Conservadores porque pensaram que eles fariam mais para resolver o problema da inflação do que qualquer um dos outros partidos. Suponhamos que é um facto óbvio acerca do motivo por que votaram nos Conservadores, tal como é um facto igualmente óbvio que votaram nos Conservadores. Suponhamos, além disso, que alguns sociólogos políticos apresentam uma generalização universal absolutamente sem excepção acerca de pessoas que se ajustam à descrição anterior - o mesmo estatuto sócio-económico,

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nível de rendimentos, educação, outros interesses e assim por diante. Suponhamos que a generalização absolutamente sem excepção assere que pessoas como vocês votam de modo invariável nos Conservadores. Ora, quero perguntar: o que explica a razão por que vocês votaram nos Conservadores? Será a razão que vocês sinceramente aceitam? Ou a generalização universal? Quero afirmar que nunca aceitaríamos a generalização como a explicação do nosso próprio comportamento. A generalização enuncia uma regularidade. O conhecimento de uma tal regularidade pode ser útil para a predição, mas nada explica a propósito de casos individuais da conduta humana. Na verdade, convida a ulterior explicação. Por exemplo, porque é que todas as pessoas nesse grupo votam nos Conservadores. Há uma resposta que surge espontaneamente. Votaram nos Conservadores porque estavam preocupados com a inflação - talvez haja pessoas no vosso grupo que são particularmente afectadas pela inflação e essa é a razão por que votam todas da mesma maneira. Em suma, não aceitamos uma generalização como explicação do nosso próprio comportamento ou do comportamento de quem quer que seja. Se se encontrasse uma generalização, ela exigiria uma explicação do tipo que nós procurámos em primeiro lugar. E, quando se trata do comportamento humano, o tipo de explicação que normalmente procuramos é o que especifica os estados mentais - crenças, temores, esperanças, desejos e assim por diante - que funcionam causalmente na produção da conduta da maneira por mim descrita no capítulo anterior. Regressemos à questão original: por que é que, aparentemente, não temos leis das ciências sociais no mesmo

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sentido em que temos leis das ciências naturais? Há várias respostas correntes a esta questão. Alguns filósofos sublinham que não temos uma ciência do comportamento pela mesma razão por que não temos uma ciência do mobiliário. Não podíamos ter uma tal ciência porque não há quaisquer características físicas que as cadeiras, as mesas, as secretárias e todos os outros artigos de mobiliário tenham em comum que lhes permitam integrar-se num conjunto comum de leis do mobiliário. E, além disso, não precisamos efectivamente de uma tal ciência, porque tudo o que quisermos explicar - por exemplo, porque é que as mesas de madeira são sólidas, ou porque é que o mobiliário de ferro enferruja - já pode explicar-se mediante as ciências existentes. De modo semelhante, não há quaisquer características que todas as condutas humanas tenham em comum. E, ademais, as coisas particulares que desejamos explicar podem explicar-se pela física e pela fisiologia e restantes ciências que já existem. Em argumentos com estes relacionados, alguns filósofos sublinham que talvez os conceitos para nos descrevermos a nós e a outros seres humanos não se equiparem de maneira correcta aos conceitos de ciências básicas como a física e a química. Talvez - sugerem eles - a ciência humana seja como uma ciência do tempo. Temos uma ciência do tempo, a meteorologia, mas não é uma ciência estrita porque as coisas que nos interessam acerca do tempo não se equiparam às categorias naturais que temos para o caso da física. Conceitos meteorológicos como «abertas no centro» ou «céu parcialmente nublado em Londres» não estão sistematicamente relacionados com os conceitos da física. Uma expressão poderosa desta concepção encontra-se na obra de Jerry Fodor. Sugere ele

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que ciências especiais como a geologia ou a meteorologia se ocupam das características do Mundo que podem pensar-se em física de várias maneiras e que a conexão frouxa entre a ciência especial e a ciência mais básica da física é também característica das ciências sociais. Assim como as montanhas e as trovoadas podem pensar-se em tipos diferentes de estruturas microfísicas, assim também o dinheiro pode pensar-se fisicamente como ouro, prata ou papel impresso. E estas conexões disjuntivas entre os fenómenos de ordem superior e os fenómenos de ordem inferior permitem-nos efectivamente ter ciências ricas, mas não nos facultam leis estritas, porque a forma de ligações frouxas admitirá leis que têm excepções. Outro argumento a favor da concepção de que não podemos ter leis estritas que liguem o mental e o fisico é a afirmação de Donald Davidson de que os conceitos de racionalidade, consistência e coerência são, em parte, constitutivos da nossa noção de fenómenos mentais; e essas noções não se relacionam sistematicamente com as noções da física. Como afirma Davidson, não encontram «eco» na física. Porém, esta concepção depara com uma dificuldade: existem muitas ciências que contêm noções constitutivas, as quais, de modo semelhante, não encontram eco na física, mas são apesar de tudo ciências absolutamente sólidas. A biologia, por exemplo, requer o conceito de organismo e «organismo» não encontra eco na física, mas nem por isso a biologia deixa de ser uma ciência concreta. Outra concepção, amplamente defendida, é que as inter-relações complexas dos nossos estados mentais nos impedem de alcançar um conjunto sistemático de leis que os liguem aos estados neurofisiológicos. Segundo esta

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concepção, os estados mentais ocorrem em redes complexas e inter-relacionadas e, por isso, não podem registar-se sistematicamente em tipos de estados cerebrais. Mas, mais uma vez, este argumento é inconclusivo. Suponhamos, por exemplo, que Noam Chomsky tem razão ao pensar que cada um de nós possui um conjunto complexo de regras de gramática universal programado nos nossos cérebros, à nascença. Nada há que, a propósito da complexidade ou interdependência das regras da gramática universal, as impeça de se realizarem sistematicamente na neurofisiologia do cérebro. A interdependência e a complexidade não são, em si mesmas, um argumento suficiente contra a possibilidade de leis psicofisicas estritas. Acho todas estas explicações sugestivas, mas não creio que apreendam de modo adequado as diferenças efectivamente radicais entre as ciências mentais e fisicas. A relação entre sociologia e economia, por um lado, e a fisica, por outro, é efectivamente de todo diversa das relações da, por exemplo, meteorologia, geologia, biologia e outras ciências naturais específicas, com a física; e não precisamos de tentar explicar exactamente como é que assim acontece. Idealmente, gostaria de ser capaz de fornecer um argumento, passo a passo, para mostrar as limitações a propósito das possibilidades das ciências sociais estritas e, não obstante, mostrar a natureza e o poder efectivos destas disciplinas. Penso que devemos abandonar, de uma vez por todas, a ideia de que as ciências sociais são como a física antes de Newton, e de que estamos à espera de um conjunto de leis newtonianas da mente e da sociedade. Em primeiro lugar, o que é que, em rigor, o problema supostamente deve ser? Alguém poderia dizer: «sem dúvida, os fenómenos sociais e psicológicos são tão reais

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como tudo o mais. Assim, porque é que não pode haver leis do seu comportamento?» Porque deve haver leis do comportamento das moléculas, mas não leis do comportamento da sociedade? Bem, uma das maneiras de refutar uma tese é imaginar que ela é verdadeira e, então, mostrar que essa suposição é um tanto absurda. Suponhamos que, efectivamente, tínhamos leis da sociedade e leis da História que nos capacitariam a predizer quando haveria guerras e revoluções. Suponhamos que poderíamos predizer guerras e revoluções com a mesma precisão e rigor com que podemos predizer a aceleração da queda de um corpo no vazio ao nível do mar. O problema real é este: sejam quais forem as guerras e revoluções, elas implicam muitos movimentos de moléculas. Mas isto tem a consequência de que qualquer lei estrita acerca das guerras e revoluções deveria equiparar-se perfeitamente às leis acerca dos movimentos moleculares. Para que revolução começasse em tal e tal dia, as moléculas relevantes teriam de estar a soprar na direcção correcta. Mas, se é assim, então as leis que predizem a revolução terão de fazer as mesmas predições ao nível das revoluções e dos seus participantes que as leis dos movimentos moleculares fazem ao nível das partículas fisicas. Assim, pois, a nossa questão original pode reformular-se. Porque é que as leis ao nível mais elevado, o nível das revoluções, não podem equiparar-se perfeitamente às leis do nível inferior, o nível das partículas? Mas, para vermos porque é que não podem, examinemos alguns casos em que existe de facto uma equiparação perfeita entre as leis da ordem superior e as leis da ordem inferior e, em seguida, podemos ver como é que estes casos diferem dos casos sociais.

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Um dos êxitos perenes na redução das leis de um nível às de um nível inferior é a redução das leis dos gases - a lei de Boyle e a lei de Charles - às leis da mecânica estatística. Como funciona tal redução? As leis dos gases dizem respeito à relação entre pressão, temperatura e volume dos gases. Predizem, por exemplo, que se se aumentar a temperatura de um gás num cilindro, se aumentará também a pressão sobre as paredes do cilindro. As leis da mecânica estatística dizem respeito ao comportamento das massas de pequenas partículas. Predizem, por exemplo, que se se aumentar a velocidade do movimento das partículas num gás, maior número de partículas irá embater nas paredes do cilindro e mais duramente as atingirá. A razão por que se consegue uma equiparação perfeita entre estes dois conjuntos de leis é que a explicação de temperatura, pressão e volume pode ser inteiramente dada em termos do comportamento das partículas. Ao aumentar atemperatura do gás, aumenta-se a velocidade das partículas e, ao aumentar o número e a velocidade das partículas que embatem no cilindro, aumenta a pressão. Segue-se que um aumento de temperatura produzirá um aumento de pressão. Suponhamos agora, por mor do argumento, que não era assim. Suponhamos que não havia explicação da pressão e da temperatura, em termos do comportamento das partículas mais fundamentais. Então, quaisquer leis ao nível da pressão e da temperatura seriam miraculosas, porque seria miraculoso que a maneira como a pressão e a temperatura prosseguissem coincidisse exactamente com a maneira como as partículas prosseguiam, se não houvesse nenhuma relação sistemática entre o comportamento do sistema ao nível da pressão e da temperatura e o comportamento do sistema ao nível das partículas.

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Este exemplo é um caso muito simples. Assim, tomemos o exemplo um tanto mais complexo. É uma lei da «ciência da nutrição» que a admissão de calorias iguala a saída de calorias, com mais ou menos depósito de gorduras. Não é talvez uma lei muito fantasiosa, mas, apesar de tudo, é bastante realista. Tem a consequência conhecida pela maior parte de nós de que, se se comer muito e não se fizer bastante exercício, se engorda. Ora esta lei, diferentemente das leis dos gases, não se baseia, de modo algum, no comportamento das partículas. A fundamentação não é simples - porque existe, por exemplo, uma série muito complexa de processos pelos quais o alimento se converte em depósitos de gordura nos organismos vivos. Contudo, existe ainda um fundamento - embora complexo -desta lei, em termos de comportamento de partículas mais fundamentais. Se tudo o mais se mantiver igual, quando vocês comem muito, as moléculas soprarão exactamente na direcção correcta de modo a engordarem. Podemos agora arguir no sentido da conclusão de que não haverá leis de guerras e de revoluções do modo como há leis dos gases e da nutrição. Os fenómenos do Mundo que nós abrangemos mediante conceitos como guerra e revolução, casamento, dinheiro e propriedade, não se baseiam sistematicamente no comportamento dos elementos a um nível mais básico, à semelhança dos fenómenos que abrangemos com conceitos como depósito de gorduras e de pressão, os quais se fundamentam sistematicamente no comportamento dos elementos a um nível mais básico. Note-se que é este tipo de fundamentação que caracteristicamente nos capacita para realizar maiores avanços nos níveis superiores de uma ciência. A razão por que a descoberta da estrutura do DNA é tão

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importante para a biologia ou porque a teoria bacteriana da doença é tão importante para a medicina é que, em cada caso, ela mantém a promessa de sistematicamente explicar características de nível superior, como os traços da hereditariedade e os sintomas da doença, em termos de elementos mais fundamentais. Mas, surge agora a questão: se os fenómenos sociais e psicológicos não se fundamentam assim, porque não se fundamentam? Porque é que não podiam fundamentar-se? Admitido que não se fundamentam assim, porque é que isso não acontece? Isto é, as guerras e as revoluções, como tudo o mais, consistem em movimentos moleculares. Assim, porque é que fenómenos sociais como guerras e revoluções não podem sistematicamente relacionar-se com movimentos moleculares da mesma maneira que são sistemáticas as relações entre entradas calóricas e depósitos de gordura? Para vermos porque é que isso não pode ser assim, temos de indagar quais as características que os fenómenos sociais têm que nos capacitam para os vincular em categorias. Quais os princípios fundamentais a partir dos quais categorizamos os fenómenos psicológicos e sociais? Uma característica crucial é a seguinte: para um vasto número de fenómenos sociais e psicológicos, o conceito que nomeia o fenómeno é também um constituinte do fenómeno. Para que algo surja como uma cerimónia de casamento ou um sindicato, ou propriedade, ou dinheiro, ou mesmo uma guerra ou revolução, as pessoas implicadas nessas actividades devem ter certos pensamentos apropriados. Em geral, têm de pensar que é mesmo assim. Por exemplo, para conseguirem casar-se ou comprar propriedades, vocês e outras pessoas têm de pensar no que

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estão a fazer. Ora, esta característica é importantíssima para os fenómenos sociais. Mas nada de semelhante existe nas ciências biológicas e fisicas. Algo pode ser uma árvore ou uma planta, ou alguma pessoa pode ter tuberculose, mesmo se não pensar: «Aqui está uma árvore ou uma planta ou um caso de tuberculose», e mesmo que ninguém pense seja o que for a esse respeito. Mas muitos dos termos que descrevem fenómenos sociais têm de entrar na sua constituição. E isto tem ainda o resultado de que tais termos possuem um tipo particular de auto-referencialidade. «Dinheiro» refere-se a tudo o que as pessoas usam e pensam como dinheiro. «Promessa» refere-se a tudo o que as pessoas intentam e consideram como promessas. Não estou a dizer que para terem a instituição do dinheiro as pessoas devem ter esta precisa palavra ou algum sinónimo exacto no seu vocabulário. Devem antes ter certos pensamentos e atitudes acerca de alguma coisa para que ela figure como dinheiro e esses pensamentos e atitudes são parte da própria definição do dinheiro. Há outra consequência crucial desta característica. O princípio definidor de tais fenómenos sociais não põe quaisquer limites fisicos àquilo que pode figurar como a sua realização física. E isto significa que não pode haver quaisquer conexões sistemáticas entre as propriedades físicas e sociais ou mentais do fenómeno. As características sociais em questão são em parte determinadas pelas atitudes que em relação a elas tomamos. As atitudes que a seu respeito assumimos não são constrangidas pelas características físicas dos fenómenos em questão. Por conseguinte, não pode existir qualquer equivalência entre o nível mental e o nível da física necessário para tornar possíveis leis estritas das ciências sociais.

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O passo fundamental no argumento a favor de uma descontinuidade radical entre as ciências sociais e as ciências naturais depende do carácter mental dos fenómenos sociais. E é esta característica que todas as analogias por mim antes mencionadas - isto é, entre a meteorologia, a biologia e a geologia- negligenciam. A descontinuidade radical entre as disciplinas sociais e psicológicas, por um lado, e as ciências naturais, por outro, resultam do papel da mente nessas disciplinas. Consideremos a afirmação de Fodor de que as leis sociais terão excepções, visto que os fenómenos ao nível social se inscrevem frouxamente ou de um modo disjuntivo nos fenómenos físicos. Mais uma vez, isto não explica as descontinuidades radicais para que tenho chamado a atenção. Mesmo se este tipo de disjunção se tivesse verificado até certo ponto, é sempre possível que a pessoa seguinte lhe faça de muitos modos e indefinidamente novos aditamentos. Por suposição, o dinheiro tomou sempre um âmbito limitado de formas físicas - ouro, prata, papel impresso, por exemplo. No entanto, é possível que outra pessoa ou sociedade considere mais alguma coisa como dinheiro e, efectivamente, a realização física não interessa grande coisa às propriedades do dinheiro, contanto que a realização física permita o uso do material como meio de troca. «Bem», poderá alguém objectar, «para termos ciências sociais rigorosas, não precisamos de uma equivalência estrita entre propriedades das coisas no Mundo. Tudo o que precisamos é uma equivalência estrita entre propriedades psicológicas e características do cérebro. A fundamentação efectiva da economia e da sociologia no mundo físico não reside nas propriedades dos objectos

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que encontramos à nossa volta, situa-se nas propriedades físicas do cérebro. Assim, apesar de o pensamento de que algo é dinheiro ser essencial para a sua existência como dinheiro, contudo, o pensamento de que é dinheiro pode muito bem ser e, efectivamente, na vossa própria explicação é, um processo cerebral. Deste modo, para mostrar que não pode haver quaisquer leis estritas das ciências sociais, há que demonstrar que não pode haver quaisquer correlações estritas entre tipos de estados mentais e tipos de estados cerebrais e você ainda não mostrou isso». Para vermos porque é que não podem existir tais leis, examinemos algumas áreas onde parece provável que iremos conseguir uma neuropsicologia estrita, leis estritas que correlacionam fenómenos mentais e fenómenos neurofisiológicos. Consideremos a dor. Parece razoável supor que as causas neurofisiológicas das dores, pelo menos nos seres humanos, são muito limitadas e específicas. Efectivamente, discutimos algumas delas no capítulo anterior. Em princípio, parece não haver obstáculo algum em termos uma neurofisiologia perfeita da dor. Mas, que dizer a propósito da visão? Mais uma vez, é difícil ver, em princípio, qualquer obstáculo em conseguirmos uma neurofisiologia adequada da visão. Poderíamos mesmo chegar ao ponto de conseguir descrever perfeitamente as condições neurofisiológicas para termos certos tipos de experiências visuais. A experiência de ver que algo é vermelho, por exemplo. Nada na minha explicação nos proibiria de obtermos uma tal psicologia neurofisiológica. Mas, agora, surge aqui a parte mais difícil: embora pudéssemos obter correlações sistemáticas entre a neurofisiologia e a dor ou entre a neurofisiologia e a experiência visual do vermelho, não poderíamos fornecer

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explicações semelhantes da neurofisiologia de ver que alguma coisa era dinheiro. Porque não? Admitindo que sempre que vemos que há algum dinheiro diante de nós ocorre algum processo neurofisiológico, que o impedirá de ser sempre o mesmo processo? Bem, a partir do facto de que o dinheiro pode ter um âmbito indefinido de formas físicas segue-se que pode ter um âmbito indefinido de efeitos estimulantes sobre os nossos sistemas nervosos. Mas, visto que pode ter um âmbito indefinido de padrões de estimulação sobre o nossos sistemas visuais, seria mais uma vez um milagre se todos eles produzissem exactamente no cérebro o mesmo efeito neurofisiológico. E o que vale para a visão de algo como dinheiro vale ainda com mais razão para a crença de que é dinheiro. Seria absolutamente milagroso se sempre que alguém pensasse ter falta de dinheiro, fosse em que língua e cultura ele tivesse tal crença, tivesse o mesmo tipo de realização neurofisiológica. E a única razão é que o âmbito de estímulos neurofisiológicos possíveis que poderiam produzir esta mesma crença é infinito. Paradoxalmente, o modo como o mental afecta o físico impede a existência de uma ciência estrita do mental. Note-se que, nos casos em que não temos este tipo de interacção entre os fenómenos sociais e físicos, o obstáculo a existirem ciências sociais estritas não está presente. Consideremos o exemplo que antes mencionei, o da hipótese de Chomsky de uma gramática universal. Suponhamos que cada um de nós tem programadas inatamente no nosso cérebro as regras da gramática universal. Visto que estas regras estariam no cérebro, à nascença, e seriam independentes de quaisquer relações que o organismo tivesse com o meio ambiente, nada existe no meu

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argumento que impeça a existência de leis psicofísicas estritas que liguem essas regras e as características do cérebro, por mais inter-relacionadas e complicadas que as regras possam ser. Mais uma vez, muitos animais têm estados mentais conscientes mas, tanto quanto sabemos, carecem da auto-referencialidade que acompanha as línguas humanas e as instituições sociais. Nada, no meu argumento, impedirá a possibilidade de uma ciência do comportamento animal. Por exemplo, poderão existir leis estritas que correlacionem os estados cerebrais das aves e o seu comportamento de construção dos ninhos. Fiz a promessa de tentar fornecer, pelo menos, um esboço de um argumento gradual. Vejamos até que ponto consegui cumprir a promessa. Apresentemos o argumento como uma série de passos. 1. Para que haja leis das ciências sociais, no sentido em que há leis da física, deve existir alguma correlação sistemática entre os fenómenos identificados em termos sociais e psicológicos e os fenómenos identificados em termos físicos. Pode haver uma complexidade igual à do modo como os fenómenos meteorológicos se ligam com os fenómenos da física, mas tem de existir alguma correlação sistemática. Em gíria contemporânea, deve haver alguns princípios-ponte entre os níveis inferiores e os níveis superiores. 2. Os fenómenos sociais definem-se, em grande parte, em termos de atitudes psicológicas que as pessoas tomam. O que figura como dinheiro, ou como promessa, ou casamento, é, em grande parte, uma questão do que as pessoas consideram dinheiro, ou uma promessa, ou um casamento.

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3. Do que precede, segue-se que estas categorias se mantêm indefinidamente abertas no aspecto físico. Falando de modo estrito, não existem limites para o que poderemos considerar ou estipular como dinheiro, ou uma promessa, ou uma cerimónia de casamento. 4. Isto implica que não pode haver quaisquer princípios-ponte entre as características sociais e as características físicas do Mundo, isto é, entre os fenómenos descritos em termos sociais e os mesmos fenómenos descritos em termos físicos. Não podemos sequer ter o tipo de princípios disjuntivos vagos que temos para o tempo ou a digestão. 5. Além disso, é impossível obter o tipo correcto de princípios-ponte entre os fenómenos descritos em termos mentais e os fenómenos descritos em termos neurofisiológicos, isto é, entre o cérebro e a mente. E eis a razão por que existe um âmbito indefinido de condições estimulantes para qualquer conceito social dado. E este âmbito enorme impede conceitos que não estejam incrustados em nós de se realizarem de uma maneira que sistematicamente correlaciona as características mentais e físicas. Quero concluir este capítulo com a descrição do que me parece ser o verdadeiro carácter das ciências sociais. As ciências sociais tratam em geral de vários aspectos de intencionalidade. A economia ocupa-se da produção e distribuição de bens e serviços. Note-se que o economista em acção pode simplesmente tomar como garantida a intencionalidade. Pressupõe que os empresários tentam

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fazer dinheiro e que os consumidores preferirão sair-se melhor do que pior. E as «leis da economia», em seguida, referem resultados ou consequências sistemáticas de tais suposições. Dadas certas suposições, o economista pode deduzir que empresários sensatos venderão onde o seu custo marginal iguala o rendimento marginal. Observe-se agora que a lei não prediz que o homem de negócios faz a si mesmo esta pergunta: «Irei eu vender onde o custo marginal iguala o rendimento marginal?» Não, a lei não refere o conteúdo da intencionalidade individual. Elabora antes as consequências de tal intencionalidade. A teoria da firma em microeconomia elabora as consequências de certos pressupostos acerca dos desejos e possibilidades dos consumidores e empresas empenhados na compra, produção e venda. A macroeconomia elabora as consequências de tais pressupostos para nações e sociedades inteiras. Mas o economista não tem de preocupar-se com questões como esta: «Que é o dinheiro realmente?» ou «O que é realmente um desejo?» Se for muito sofisticado na economia do bem-estar, poderá preocupar-se com o carácter exacto dos desejos dos empresários e consumidores. Mas, mesmo num caso assim, a parte sistemática da sua disciplina consiste em elaborar as consequências dos factos a propósito da intencionalidade. Visto que a economia se funda, não em factos sistemáticos acerca das propriedades físicas, como a estrutura molecular, tal como a química se baseia em factos sistemáticos acerca da estrutura molecular, mas antes em factos relacionados com a intencionalidade humana, com desejos, práticas, estados da tecnologia e estados do conhecimento, segue-se que a economia não pode imunizar-se à história ou ao contexto. A economia, enquanto

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ciência, pressupõe certos factos históricos acerca das pessoas e das sociedades que em si mesmas não são parte da economia. E quando esses factos mudam, a economia deve também mudar. Por exemplo, até há pouco, a curva de Phillips, uma fórmula que relaciona uma série de factores nas sociedades industriais, pareceu fornecer uma descrição exacta das realidades económicas nessas sociedades. Ultimamente, não tem funcionado tão bem. A maior parte dos economistas pensa que isso se deve a que ela não descrevia exactamente a realidade. Mas poderiam pensar assim: «Talvez descrevesse exactamente a realidade tal como era naquele tempo.» Porém, após as crises do petróleo e outros vários acontecimentos dos anos 70, a realidade mudou. A economia é uma ciência formalizada sistemática, mas não é independente do contexto ou imune à História. Funda-se em práticas humanas, mas essas práticas não são intemporais, eternas ou inevitáveis. Se, por alguma razão, o dinheiro tivesse de ser feito de gelo, então seria uma lei estrita da economia que o dinheiro se derrete a temperaturas superiores a zero graus centígrados. Mas esta lei funcionaria apenas enquanto o dinheiro tivesse de ser feito de gelo e, além disso, não nos diz o que nos interessa acerca do dinheiro. Viremo-nos agora para a linguística. O objectivo contemporâneo normal da linguística é estabelecer as várias regras - fonológicas, sintáticas e semânticas - que relacionam sons e significados nas várias línguas naturais. Uma ciência idealmente completa da linguística forneceria o conjunto completo de regras para todas as linguagens humanas naturais. Não tenho a certeza se é este o exacto objectivo da linguística ou mesmo se é um objectivo que é possível atingir, mas, para o propósito presente, o impor-

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tante é notar que é, uma vez mais, uma ciência de aplicada intencionalidade. De nenhum modo se assemelha à química ou à geologia. Tem a ver com a especificação dos conteúdos intencionais historicamente determinados que existem nas mentes dos falantes das várias línguas e que são efectivamente responsáveis pela competência linguística humana. Tal como na economia, a cola que aglutina a linguística é a intencionalidade humana. O resultado deste capítulo pode agora enunciar-se de uma forma muito simples. A descontinuidade radical entre as ciências sociais e as ciências naturais não procede do facto de que existe apenas uma conexão disjuntiva dos fenómenos sociais e físicos. Nem sequer procede do facto de que as disciplinas sociais têm conceitos constitutivos que não encontram eco na fisica, nem ainda da grande complexidade da vida social. Muitas disciplinas como a geologia, a biologia e a metereologia têm essas caraterísticas, mas isso não as impede de serem ciências naturais sistemáticas. Não, a descontinuidade radical resulta do carácter intrinsecamente mental dos fenómenos sociais e psicológicos. O facto de as ciências sociais serem potenciadas pela mente é a fonte da sua fraqueza em relação às ciências naturais. Mas é também precisamente a fonte da sua força como ciências sociais. O que desejamos das ciências sociais e delas conseguimos no seu ponto melhor são teorias de intencionalidade pura e aplicada.

VI

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Nestas páginas, tentei responder ao que para mim constitui algumas das questões mais incómodas sobre o modo como nós, enquanto seres humanos, nos harmonizamos com o resto do Universo. A concepção de nós mesmos como agentes livres é fundamental para toda a nossa autoconcepção. Ora, idealmente, eu gostaria de ser capaz de conservar tanto as minhas concepções de sentido comum como as minhas crenças científicas. No caso da relação entre mente e corpo, por exemplo, consegui fazer isso, mas ao abordar-se a questão da liberdade e do determinismo, sou incapaz - como muitos outros filósofos de conciliar as duas. Alguém pensará que, após mais de dois mil anos de preocupação a este respeito, o problema da liberdade da vontade estaria agora finalmente resolvido. Bem, na realidade, a maior parte dos filósofos pensa que ele já foi resolvido. Pensam que foi resolvido por Thomas Hobbes e David Hume e por outros filósofos de inclinação empírica, cujas soluções têm sido repetidas e melhoradas em

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pleno século xx. Pessoalmente, penso que não foi solucionado. Nesta lição, quero fornecer-lhes uma explicação do que o problema é e porque é que a solução contemporânea não constitui uma solução e, em seguida, concluir tentando explicar porque é que o problema certamente continuará connosco. Por outro lado, sentimo-nos inclinados a dizer que, uma vez que a natureza consiste em partículas e nas suas relações recíprocas e, dado que tudo se pode explicar em termos dessas partículas e das suas relações, não há simplesmente espaço para a liberdade da vontade. No que à liberdade humana diz respeito, não interessa se a física é determinada, como era a física newtoniana, ou se ela permite uma indeterminação ao nível da física de partículas, como o faz a mecânica quântica contemporânea. O indeterminismo ao nível das partículas na física não é, efectivamente, um apoio para qualquer doutrina da liberdade da vontade; porque, em primeiro lugar, a indeterminação estatística ao nível das partículas não mostra qualquer indeterminação ao nível dos objectos que nos afectam - corpos humanos, por exemplo. E, em segundo lugar, mesmo que exista um elemento de indeterminação no comportamento das partículas físicas - mesmo que elas sejam previsíveis só estatisticamente - apesar de tudo, isso não dá por si mesmo livre curso à liberdade humana da vontade; pois do facto de as partículas serem determinadas apenas estatisticamente não se segue que a mente humana possa forçar as partículas estatisticamente determinadas a desviarem-se do seu caminho. O indeterminismo não constitui evidência alguma de que existe ou poderia existir alguma energia mental da liberdade humana, que pode mover as moléculas para direcções

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em que de outro modo elas não se iriam mover. Assim, parece realmente como se tudo o que sabemos acerca da fisica nos forçasse a alguma forma de negação da liberdade humana. A imagem mais forte para transmitir esta concepção de determinismo é ainda a que foi formulada por Laplace: «Se um observador ideal conhecesse as posições de todas as partículas num dado instante e conhecesse todas as leis que governam os seus movimentos, poderia predizer e retrodizer toda a história do Universo.» As predições de um Laplace perito em mecânica quântica contemporânea podem ser estatísticas, mas apesar de tudo não permitiriam espaço para a liberdade da vontade. Chega de referência ao determinismo. Voltemos agora ao argumento a favor da liberdade da vontade. Como muitos filósofos salientaram, se existe um facto da experiência com que todos estamos familiarizados, é o facto simples de que as nossas próprias escolhas, decisões, raciocínios e cogitações diferem do nosso comportamento efectivo. Há toda uma série de experiências que temos da vida em que parece ser um facto da nossa experiência que, embora tenhamos feito uma coisa, temos a certeza de sabermos perfeitamente que poderíamos ter feito algo mais. Sabemos que poderíamos ter feito algo mais, porque escolhemos algo em virtude de determinadas razões. Mas tínhamos consciência de que havia também razões para escolher outra coisa e, na verdade, podíamos ter exigido por essas razões e escolhido essa outra coisa. Uma outra maneira de apresentar este ponto é dizer: constitui um facto empírico evidente que o nosso comportamento não é previsível da mesma maneira que é predizível o comportamento dos objectos rolando por um plano incli-

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nado. E a razão por que não é predizível dessa maneira é porque, muitas vezes, poderíamos ter agido de um modo diferente de como agimos efectivamente. A liberdade humana é precisamente um facto de experiência. Se desejarmos alguma prova empírica de tal facto, podemos sem mais aludir à possibilidade que sempre nos cabe de falsificarmos quaisquer predições que alguém possa ter feito acerca do nosso comportamento. Se alguém prediz que eu vou fazer alguma coisa, posso muito bem não fazer essa coisa. Ora bem, este tipo de opção não está à disposição dos glaciares que se movem pelas montanhas abaixo ou das bolas que rolam em planos inclinados, ou dos planetas que se movem em torno das suas órbitas elípticas. Estamos perante um enigma filosófico característico. Por um lado, um conjunto de argumentos muito poderosos força-nos à conclusão de que a vontade livre não existe no Universo. Por outro, uma série de argumentos poderosos baseados em factos da nossa própria experiência inclina-nos para a conclusão de que deve haver alguma liberdade da vontade, porque aí todos a experimentamos em todo o tempo. Há uma solução corrente para este enigma filosófico. Segundo essa solução, a vontade livre e o determinismo são perfeitamente compatíveis entre si. Naturalmente, tudo no Mundo é determinado mas, apesar de tudo, algumas acções humanas são livres. Dizer que são livres não é negar que sejam determinadas; é afirmar que não são constrangidas. Não somos forçados a fazê-las: assim, por exemplo, se um homem é forçado a fazer alguma coisa porque lhe apontam uma arma, ou se sofre de alguma compulsão psicológica, então, a sua conduta é

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genuinamente não livre. Mas se, por outro lado, ele age livremente, se age, como dizemos, por sua livre vontade, então, o seu comportamento é livre. Claro está, é também completamente determinado, uma vez que cada aspecto do seu comportamento é determinado pelas foreas físicas que operam sobre as partículas que compõem o seu corpo, tal como operam sobre todos os corpos no universo. Assim, a conduta livre existe, mas é apenas um cantinho do Mundo determinado - é este canto do comportamento humano determinado onde certos tipos de força e de compulsão estão ausentes. Ora bem, porque esta concepção afirma a compatibilidade da vontade livre e do determinismo recebe habitualmente o nome de «compatibilisrno». Penso que é inadequada como solução para o problema e eis porquê. O problema em torno da liberdade da vontade não se põe a propósito da existência ou não existência de razões psicológicas internas que nos levam a fazer coisas, ou também de existência de causas físicas externas e de compulsões internas. Põe-se antes a propósito de saber se as causas da nossa conduta, sejam elas quais forem, são suficientes para determinara conduta de maneira que as coisas têm de acontecer da maneira como acontecem. Existe outra maneira de apresentar este problema. Será sempre verdadeiro afirmar de outra pessoa que ela poderia ter agido de outro modo, permanecendo idênticas todas as outras condições? Por exemplo, admitindo que certa pessoa decidiu votar nos Conservadores, poderia ela ter escolhido votar num dos outros partidos, permanecendo idênticas todas as outras condições? Ora, o compatibilismo não responde a esta questão de uma maneira que permita e conceda espaço para a noção

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corrente da liberdade da vontade. O que ele afirma é que todo o comportamento é determinado de uma maneira tal que não poderia ter ocorrido de outro modo, permanecendo idênticas todas as outras condições. Tudo o que aconteceu foi efectivamente determinado. Houve coisas que foram determinadas por certos tipos de causas psicológicas internas (as que nós chamamos as nossas «razões de actuar») e não por forças externas ou convenções psicológicas. Assim, ficamos ainda com um problema. É sempre verdadeiro afirmar de um ser humano que ele poderia ter agido de outra maneira? A dificuldade que se põe acerca do compatibilismo, pois, é que ele não responde à questão - «poderíamos nós ter agido de outro modo, permanecendo idênticas todas as condições?» - de uma maneira que é coerente com a nossa crença na nossa própria livre vontade. Em suma, o compatibilismo nega a existência de livre-arbítrio, embora mantenha a sua concha verbal. Tentemos então recomeçar. Afirmei que temos uma convicção da nossa vontade livre simplesmente baseada nos factos da experiência humana. Mas até que ponto são fidedignas essas experiências? Como antes afirmei, o caso típico, muitas vezes descrito pelos filósofos, que nos inclina a acreditar na nossa própria vontade livre, é um caso em que defrontamos um conjunto de escolhas, raciocinamos acerca da melhor coisa que há a fazer, tomamos uma resolução e, em seguida, fazemos a coisa que decidimos fazer. Mas talvez a crença de que tais experiências apoiam a doutrina da liberdade humana seja ilusória. Consideremos o exemplo seguinte. Uma experiência de hipnose típica tem a seguinte forma. Sob a acção da hipnose, o

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paciente recebe uma sugestão pós-hipnótica. Pode dizer-se-lhe, por exemplo, para fazer uma coisa absolutamente trivial e inócua como, digamos, rastejar pelo soalho. Depois de o paciente sair da hipnose, pode entrar em conversação, sentar-se, beber café e então, subitamente, afirmar uma coisa como: «que soalho fascinante existe nesta sala», ou «quero examinar este tapete», ou «estou a pensar investir em coberturas de soalho e gostaria de investigar este soalho». E, em seguida, põe-se a rastejar pelo soalho. Ora, o interesse destes casos é que o paciente fornece sempre alguma razão mais ou menos adequada para fazer o que faz. Isto é, perante si mesmo, parece comportar-se livremente. Nós, por outro lado, temos boas razões para crer que o seu comportamento de nenhum modo é livre, que as razões que ele aduz para a sua decisão aparente de rastejar pelo soalho são irrelevantes, que o seu comportamento foi previamente determinado, que efectivamente está enredado numa sugestão pós-hipnótica. Quem quer que conhecesse os factos a respeito dele podia ter predito de antemão o seu comportamento. Ora, um modo de pôr o problema do determinismo ou, pelo menos, um aspecto do problema do determinismo, é: «todo o comportamento humano é assim?» Todo o comportamento humano se assemelha ao homem que age sob uma sugestão pós-hipnótica? Mas, se tomarmos o exemplo a sério, parece demonstrar ser um argumento a favor da liberdade da vontade e não contra ela. O agente pensava que agia livremente, embora na verdade o seu comportamento fosse determinado. Mas, no plano empírico, parece-me muito improvável que todo o comportamento humano seja assim. Por vezes, as pessoas sofrem sob os efeitos da hipnose e,

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por vezes, sabemos que se encontram sob a influência de impulsos inconscientes que não podem controlar. Mas serão elas sempre assim? É todo o comportamento determinado por tais compulsões psicológicas? Se tentarmos tratar o determinismo psicológico como uma afirmação factual acerca da nossa conduta, então parece ser inteiramente falso. A tese do determinismo psicológico é que as causas psicológicas prévias determinam todo o nosso comportamento da maneira como determinam o comportamento do sujeito sob hipnose ou o viciado em heroína. Para esta concepção, todo o comportamento, de um ou de outro modo, é psicologicamente compulsivo. Mas as provas disponíveis sugerem que essa tese é falsa. Na realidade, agimos normalmente com base nos nossos estados intencionais - as nossas crenças, esperanças, temores, desejos, etc. - e, nesse sentido, os nossos estados mentais funcionam causalmente. Mas esta forma de causa e efeito não é determinística. Poderíamos ter tido exactamente esses estados mentais e, apesar de tudo, não termos feito o que fizemos. Tanto quanto às causas psicológicas diz respeito, poderíamos ter agido de outra maneira. Por outro lado, os exemplos de hipnose e de comportamento psicologicamente compulsivo são habitualmente patológicos e facilmente distinguíveis da acção livre normal. Assim, psicologicamente falando, existe espaço para a liberdade humana. Mas é esta solução um avanço sobre o compatibilismo? Não estamos justamente a dizer, mais uma vez, que sim, todo o comportamento é determinado, mas que o que chamamos comportamento livre é o tipo determinado por processos racionais de pensamento? Por vezes, os processos conscientes e racionais de pensamento não

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fazem diferença alguma, como no caso da hipnose e, por vezes, fazem, como no caso normal. Os casos normais são aqueles em que dizemos que o agente é realmente livre. Mas, naturalmente, esses processos racionais e normais de pensamento são tão determinados como tudo o mais. Assim, mais uma vez, não teremos nós o resultado de que tudo o que fazemos estava inteiramente escrito num livro de história biliões de anos antes de termos nascido e, por conseguinte, nada do que fazemos é livre em qualquer sentido filosoficamente interessante? Se decidimos chamar livre ao nosso comportamento, isso é apenas uma questão de adaptar uma terminologia tradicional. Assim como continuamos a falar de «pôr do Sol», embora saibamos que o Sol literalmente não se põe, assim também continuamos a falar de «agir por livre vontade», embora não exista tal fenómeno. Uma maneira de examinar uma tese filosófica ou qualquer outra espécie de tese para este assunto é perguntar «que diferença faria? Quão diferente seria o Mundo, se esta tese fosse verdadeira, por oposição ao que seria o Mundo, se a mesma fosse falsa?» Parte da atracção do determinismo, creio eu, provém de ele parecer coerente com a maneira como o Mundo funciona realmente, pelo menos tanto quanto conhecemos algo acerca dele pela física. Isto é, se o determinismo fosse verdadeiro, então o Mundo actuaria da mesmíssima maneira como actua, e a única diferença seria que algumas das nossas crenças a propósito do seu funcionamento seriam falsas. Essas crenças são importantes para nós, porque têm a ver com a crença de que poderíamos ter feito coisas diferentemente da maneira como efectivamente as fizemos. E, por seu turno, esta crença liga-se com crenças acerca da respon-

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sabilidade moral e da nossa própria natureza como pessoas. Mas se o libertarismo, que é a tese da vontade livre, fosse verdadeiro, parece que teríamos de fazer algumas mudanças realmente radicais nas nossas crenças acerca do Mundo. Para termos uma liberdade radical, parece que deveríamos postular a existência, dentro de cada um de nós, de um si mesmo que fosse capaz de interferir com a ordem causal da natureza, isto é, parece que de certa maneira deveríamos conter alguma entidade que fosse capaz de desviar as moléculas das suas trajectórias. Não sei se uma tal concepção é sequer inteligível, mas decerto não se harmoniza com o que sabemos pela física acerca do modo como funciona o Mundo. E não existe a mínima prova para supormos que deveríamos abandonar a teoria física em favor de uma tal concepção. Até agora, pois, parece que não chegámos a lado nenhum no nosso esforço para resolver o conflito entre determinismo e a crença na liberdade da vontade. A ciência não deixa espaço para a liberdade da vontade e o indeterminismo na física não oferece para ela qualquer apoio. Por outro lado, somos incapazes de abandonar a crença na liberdade da vontade. Investiguemos ainda um pouco mais estes dois pontos. Porque é que não há espaço para a liberdade da vontade na concepção científica contemporânea? Na física, os nossos mecanismos explanatórios básicos funcionam de baixo para cima. Isto é, explicamos o comportamento das características de superfície de um fenómeno, como a transparência do vidro ou a liquidez da água, em termos do comportamento de micropartículas como as moléculas. E a relação da mente com o cérebro é um exemplo de uma tal relação. As características mentais são causadas

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por e realizadas em fenómenos neurofisiológicos, como discuti no primeiro capítulo. Mas deparamos com a causação da mente para o corpo, isto é, deparamos com a causação de cima para baixo, durante uma passagem de tempo; e deparamos com a causação de cima para baixo durante um certo tempo, porque o nível de cima e o nível inferior ocorrem simultaneamente. Assim, por exemplo, suponhamos que eu quero causar a libertação da acetilcolina neurotransmissora nas placas terminais do axónio dos meus neurónios motores; posso fazer isso mediante a simples decisão de levantar o meu braço e, em seguida, de o levantar. Aqui, o acontecimento mental, a intenção de levantar o meu braço causa o acontecimento físico, a libertação da acetilcolina - um caso de causação de cima para baixo, se é que alguma vez houve algum. Mas a causação de cima para baixo opera unicamente porque os acontecimentos mentais se baseiam na neurofisiologia para se iniciarem. Assim, em correspondência com a descrição das relações causais que vão de cima para baixo, há uma outra descrição da mesma série de acontecimentos, onde as relações causais ocorrem inteiramente no fundo, isto é, constituem totalmente uma questão de neurónios e de excitações neuronais nas sinapses, etc. Enquanto aceitarmos esta concepção do modo como a natureza opera, então não parece haver qualquer espaço para a liberdade da vontade, porque, nesta concepção, a mente pode apenas afectar a natureza enquanto é uma parte da natureza. Mas, se assim é, então, tal como o resto da natureza, as suas características são determinadas nos microníveis básicos da Física. Eis um ponto absolutamente fundamental deste capítulo, deixem-me repetir. A forma de determinismo que,

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em última análise, é incómoda não é o determinismo psicológico. A ideia de que os nossos estados da mente são suficientes para determinar tudo o que fazemos é provavelmente falsa. A forma incómoda de determinismo é mais básica e fundamental. Visto que todas as características de superfície do Mundo são inteiramente causadas por e realizadas em sistemas de microelementos, o comportamento dos microelementos é suficiente para determinar tudo o que acontece. Uma tal imagem de «pernas para o ar» do Mundo admite a causaçâo de cima para baixo (as nossas mentes, por exemplo, podem afectar os corpos). Mas a causação de cima para baixo funciona apenas porque o nível superior já está causado por e realizado nos níveis inferiores. Mui to bem, abordemos a seguinte questão óbvia. O que é que na nossa experiência nos impossibilita abandonar a crença na liberdade da vontade? Se a liberdade é uma ilusão, porque é uma ilusão que, aparentemente, somos incapazes de abandonar? A primeira coisa a observar a propósito da concepção da liberdade humana é que ela está essencialmente ligada à consciência. Apenas atribuímos liberdade aos seres conscientes. Se, por exemplo, alguém construir um robô que cremos ser totalmente inconsciente, nunca sentiríamos qualquer inclinação para dizer que ele é livre. Mesmo se achássemos o seu comportamento aleatório e impredizível, não diríamos que actua livremente no sentido em que nos pensamos a nós mesmos como agindo livremente. Se, por outro lado, alguém construir um robô acerca do qual nos convencemos de que tem consciência, tal como nós temos então, seria, pelo menos, uma questão aberta de se saber se este robô tinha ou não liberdade da vontade.

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O segundo ponto a observar é que não é qualquer estado da consciência que nos fornece a convicção da liberdade humana. Se a vida consistisse inteiramente na recepção de percepções passivas, então, parece-me que nunca conseguiríamos formar a ideia da liberdade humana. Se nos imaginássemos a nós mesmos totalmente imóveis, totalmente incapazes de nos movermos e incapazes até de determinarmos o curso dos próprios pensamentos, mas, apesar de tudo, recebendo estímulos, por exemplo, suaves sensações dolorosas periódicas, não haveria a menor inclinação para concluirmos que temos liberdade da vontade. Disse antes que a maior parte dos filósofos pensa que a convicção da liberdade humana está essencialmente ligada ao processo da decisão racional. Mas penso que isso é só parcialmente verdadeiro. De facto, ponderar razões é apenas um caso muito especial da experiência que nos fornece a convicção da liberdade. A experiência característica que nos dá a convicção da liberdade humana, e é uma experiência da qual somos incapazes de arrancar a convicção da liberdade, é a experiência de nos empenharmos em acções humanas voluntárias e intencionais. Na nossa discussão da intencionalidade, concentrámo-nos naquela forma de intencionalidade que consistia em intenções conscientes na acção, intencionalidade que é causal da maneira como a descrevi, e cujas condições de satisfação são que certos movimentos corporais ocorram e que ocorram como causados por aquela genuína intenção na acção. Esta experiência é a pedra basilar da nossa crença na liberdade da vontade. Porquê? Reflictamos com todo o cuidado no carácter das experiências que temos, quando nos empenhamos nas acções humanas normais

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da vida de cada dia. Veremos a possibilidade de cursos alternativos de acção incrustados nessas experiências. Levantemos o braço, ou atravessemos a rua, ou bebamos um copo de água e veremos que em qualquer ponto da experiência teremos um sentido de cursos alternativos de acção para nós disponíveis. Se alguém a tentasse expressar em palavras, a diferença entre a experiência de percepcionar e a experiência de agir é que, na percepção, se tem esta sensação: «Isto está a acontecer-me», e, na acção, a sensação é a seguinte: «Faço isto acontecer,» Mas a sensação de que «faço isto acontecer» traz consigo a sensação de que «poderia fazer alguma coisa mais». No comportamento normal, cada coisa que fazemos suscita a convicção válida ou inválida de que poderíamos fazer alguma coisa mais, aqui e agora, isto é, permanecendo idênticas todas as outras condições. Eis, permito-me afirmar, a fonte da nossa inabalável convicção na nossa vontade livre. É talvez importante salientar que estou a discutir a acção humana normal. Se alguém está a braços com uma grande paixão, se alguém se encontra numa cólera imensa, por exemplo, perde esse sentido da liberdade e pode mesmo surpreender-se ao descobrir o que está a fazer. Desde que atentemos nesta característica da experiência do agir, muitos dos fenómenos intrigantes que antes mencionei facilmente se explicam. Porque é que, por exemplo, o homem no caso da sugestão pós-hipnótica não está a agir livremente no sentido em que nós somos livres, mesmo que ele possa pensar que está a agir livremente? A razão é que, num sentido importante, ele não sabe o que está a fazer. A sua efectiva intenção na acção é totalmente inconsciente. As opções que ele vê dispo-

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níveis para si são irrelevantes para a motivação efectiva da sua acção. Note-se também que os exemplos compatibilistas do comportamento «forçado» implicam ainda, em muitos casos, a experiência da liberdade. Se alguém me diz para fazer algo apontando-me uma arma, mesmo em tal caso eu tenho uma experiência que tem o sentido dos cursos alternativos da acção nela incrustados. Se, por exemplo, recebo ordens para atravessar a rua com a arma a mim apontada, parte ainda da experiência é que eu sinto que literalmente me é facultado em qualquer passo fazer alguma coisa mais. Assim, a experiência da liberdade é uma componente essencial de qualquer caso do agir com uma intenção. Assim, a experiência da liberdade é uma componente essencial de qualquer caso do agir com uma intenção. Mais uma vez, podemos ver isto se contrastarmos o caso normal da acção com os casos da Penfield, onde a estimulação do córtex motor produz um movimento involuntário do braço ou da perna. Em tal caso, o paciente experimenta o movimento passivamente, como experimentaríamos um som ou uma sensação de dor. Diversamente das acções intencionais, aqui não há opções inseridas na experiência. Para vermos com clareza este ponto, tentemos imaginar que uma parte da nossa vida se assemelhava às experiências de Penfield em grande escala. Em vez de caminharmos pela sala, sentiríamos simplesmente que o nosso corpo se move através da sala; em vez de falarmos, simplesmente ouviríamos e sentiríamos que saem palavras da nossa boca. Imaginemos que as nossas experiências são as de uma boneca puramente passiva, mas consciente, e teremos imaginado a remoção da experiência da liberdade. Mas, no caso típico da acção

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intencional, não existe modo algum de erradicarmos a experiência da liberdade. Ela é uma parte essencial da experiência do agir. Isto explica também, creio eu, porque é que não podemos abandonar a nossa convicção de liberdade. Achamos fácil abandonar a convicção de que a Terra é plana, logo que compreendemos a prova para a teoria heliocêntrica do sistema solar. De modo semelhante, quando olhamos para o pôr do Sol, apesar das aparências, não nos sentimos compelidos a crer que o Sol está a pôr-se por detrás da Terra. Cremos que a aparência do pôr do Sol é simplesmente uma ilusão criada pela rotação da Terra. Em cada caso, é possível abandonar uma convicção de sentido comum, porque a hipótese que a substitui explica as experiências que levaram a essa convicção em primeiro lugar e explica igualmente um vasto conjunto de outros factos que a concepção de senso comum é incapaz de explanar. Eis porque deixámos de lado a crença numa terra plana e o «pôr do Sol» literal em favor da concepção copernicana do sistema solar. Mas não podemos de modo semelhante abandonar a convicção de liberdade, porque esta convicção está inserida em toda a acção intencional normal e consciente. E usamos esta convicção para identificarmos e explicarmos as acções. Esse sentido de liberdade não é apenas uma característica de deliberação, mas é parte de qualquer acção, seja premeditada ou espontânea. O ponto nuclear nada tem essencialmente a ver com a deliberação. A deliberação é apenas um caso especial. Não navegamos na Terra com base na suposição numa terra chata, mesmo se a Terra parece plana, mas agimos no pressuposto da liberdade. Efectivamente, não podemos agir de outra maneira senão com base na suposição

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da liberdade, pouco importando o que aprendemos acerca do modo como o Mundo funciona enquanto sistema físico determinado. Podemos agora tirar as conclusões que estão implícitas nesta discussão. Primeiro, se a preocupação a propósito do determinismo é uma preocupação porque todo o nosso comportamento é de facto psicologicamente compulsivo, então, parece que tal preocupação é injustificável. Na medida em que o determinismo psicológico é uma hipótese empírica como qualquer outra, então as provas que presentemente temos disponíveis sugerem que ela é falsa. Assim, isto fornece-nos uma forma modificada de compatibilismo. Fornece-nos a convicção de que o libertarismo psicológico é compatível com o determinismo físico. Em segundo lugar, fornece-nos mesmo um sentido do «poderia ter» em que o comportamento das pessoas, embora determinado,_é tal que nesse sentido elas poderiam ter agido de outra maneira: o sentido é simplesmente que, tanto quanto aos factores psicolôgicossúz respeito, elas poderiam ter agido de outra maneira. As noções de capacidade, do que somos capazes de fazer e do que poderíamos ter feito, são muitas vezes relativas a algum conjunto semelhante de critérios. Por exemplo, eu poderia ter votado em Carter nas eleições americanas em 1980, ainda que não o tenha feito; mas não poderia ter votado em George Washington. Ele não foi um candidato. Assim, há um sentido do «poderia ter» em que há para mim disponível um conjunto de escolhas e nesse sentido já muitas coisas que eu poderia ter feito, permanecendo iguais todas as outras coisas que eu não fiz. De modo semelhante, porque os factores psicológicos que operam em mim nem sempre, ou mesmo em geral, me impelem a comportar-me de uma

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maneira particular, muitas vezes eu, falando em termos psicológicos, poderia ter feito algo de diferente daquilo que efectivamente fiz, Mas, em terceiro lugar, esta forma de compatibilismo ainda não nos fornece nada que se assemelhe à resolução do conflito entre liberdade e determinismo, que o nosso impulso para o libertarismo radical efectivamente exige. Enquanto aceitarmos a concepção de pernas para o ar da explicação física, e é uma concepção em que se baseiam os trezentos anos passados da ciência, então os factos acerca de nós, como quaisquer outros factos de níveis superiores, são inteiramente e causalmente explicáveis em termos de e inteiramente realizáveis em sistemas de elementos ao nível microfísica fundamental. A nossa concepção da realidade física não oferece espaço à liberdade radical. Em quarto e último lugar, por razões que efectivamente não compreendo, a evolução deu-nos uma forma de experiência da acção voluntária onde a experiência da liberdade, isto é, a experiência do sentido de possibilidades alternativas, está inserida na genuína estrutura do comportamento humano consciente, voluntário e intencional. Por essa razão, creio, nem esta discussão nem qualquer outra alguma vez nos convencerá de que o nosso comportamento não é livre. O meu objectivo neste livro foi tentar caracterizar as relações entre a concepção que temos de nós mesmos como agentes racionais, livres, conscientes, atentos, e uma concepção que temos do Mundo como consistindo de partículas físicas sem mente, sem significado. É tentador pensar que, assim como descobrimos que largas porções do sentido comum não representam adequadamente o

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modo como o Mundo realmente funciona, assim poderíamos descobrir que a concepção de nós mesmos e do nosso comportamento é inteiramente falsa. Mas há limites para esta possibilidade. A distinção entre realidade e aparência não pode aplicar-se à genuína existência da consciência, pois se aparentemente sou consciente, sou consciente. Poderemos descobrir toda a espécie de coisas surpreendentes acerca de nós mesmos e do nosso comportamento; mas não podemos descobrir que não temos mentes, que elas não contêm estados mentais conscientes, subjectivos, intencionalísticos; nem poderíamos descobrir que não tentamos, pelo menos, empenharmo-nos em acções voluntárias, livres e intencionais. O problema que a mim mesmo pus não foi provar a existência dessas coisas, mas examinar o seu estatuto e as suas implicações para as nossas concepções do resto da natureza. O meu tema geral foi que, com certas excepções importantes, a concepção mentalística de sentido comum de nós mesmos é perfeitamente coerente com a nossa concepção da natureza enquanto sistema físico.

SUGESTOES PARA LEITURA

BL0CK, Ned (org.), Readings in Philosophy and Psychology, vols. 1 e 2, Cambridge: Harvard UniversityPress, 1981. DAVIDSON, Donald, Essays on Actions and Events, Oxford: Oxford University Press, 1980. DRHYFUS, Huberti L., ¾'hat Computers Can 't Do: The Limits of Artificial Intelligence, Nova Iorque: Harper & Row, 1979 (revista). F0DOR, Jerry, Representations: Philosophical Essays on the Foundations oJCognitive Science, Cambridge: MIT Press, 1983. HAUGELAND,John (org.), MindDesign, Cambridge: MIT Press, 1981. KuFFLER, Stephen W. & NICHOLAs,John G., FromNeuron to Brain: A Cellular Approach to the Function of the Nervous System, Sunderland, Mass.: Sinaurer Associates, 1976. MüRGENBESSER, Sydney & WALSH,Jambs ( orgs.), Free Will, Englewood Cliffs: Prentice-Hall, Inc., 1962. NAGEL, Thomas, Mortal Questions, Cambridge: Cambridge University Press, 1979.

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NoRMAN, Donald A. ( org.), Perspectives on Cognitive Science, Norwood: Albex Publishing Corp., 1981. PENFIELD, Wilder, The Mystery of the Mind, Princeton: Princeton University Press, 1975. RoSENZWEIG, Mark & LEIMAN, Arnold, PhysiologicalPsychology, Lexington, Mass.: D. C. Heath & Co., 1982. SEARLE, John R., Intentionaly: An Essay in the Philosophy of Mind, Cambridge: Cambridge University Press, 1983. SttEPHERD, Gordon M., Neurobiology, Oxford: Oxford University, Press, 1983. WHITE, Alan R. ( org.), The Philosophy of Action, Oxford: Oxford University Press, 1968.

INDICE

INTRODUÇÃO.....................................

9

I. O PROBLEMA DA MENTE-CORPO. . . . . . . . . . . . . .

17

II. PODEM OS COMPUTADORES PENSAR? . . . . . . . . .

37

Ili. A CIÊNCIA COGNITIVA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

57

IV. A ESTRUTURA DA ACÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

77

V. PERSPECTIVAS PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS.....

95

VI. A LIBERDADE DA VONTADE.. . . . . . . . . . . . . . . . . . 115 SUGESTÕES PARA LEITURA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

John Searle (1932)

é um dos maiores filósofos contemporâneos norte-americanos, destacando-se pelo seu contributo para a filosofia da linguagem, em especial com a sua obra seminal Actos de Fala (1969), a filosofia da mente e a filosofia social.

Fez parte dos seus estudos em Oxford, onde se doutorou, regressando posteriormente aos Estados Unidos para dar aulas na U niversidade de Berkeley.

BIBLIOTECA DE FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA 1

Como é que a mente se relaciona com o cérebro? Qual deve ser a nossa posição perante a inteligência artificial? Será o computador análogo ao cérebro humano? O livre-arbítrio continua a ser um problema filosófico? John Searle responde a todas estas questões, numa linguagem simples e clara que prova que a filosofia contemporânea pode ser acessível a um vasto público.

ISBN: 978-972-44-1675-5

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