Medicalização em Psiquiatria [01]

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FERNANDO PAULO

FREITAS

AMARANTE

MEDICALIZAÇÃO

PSIQUIATRIA

2* EDIÇÃO

REVISTA

FIOCRUZ

EM

Copyright O 2017 dos autores Todos os direitos desta edição reservados à OSWALDO

FUNDAÇÃO

CRUZ

/ EDITORA

1º edição: 2015 2º edição revista: 2017

Revisão Marcionílio Cavalcanti de Paiva Myilena Paiva

Normalização de referências Clarissa Bravo

Capa e projeto gráfico Carlota Rios

Editoração eletrônica Carlos Fernando Reis

Produção gráfico-editorial Phelipe Gasiglia

Catalogação na fonte Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde/Fiocruz Biblioteca de Saúde Pública

F866m

Freitas, Fernando

/

Fernando Freitas e Paulo Medicalização em Psiquiatria. Amarante. — Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 148 p. (Coleção Temas em Saúde) ISBN: 978-85-7541-498-9 1, Psiquiatria. 2. Medicalização. 3. Transtornos Mentais - terapia. 4. Diagnóstico. 5. Indústria Farmacêutica. 6. Antipsicóticos história. 7. Antidepressivos - história. IL. Amarante, Paulo. II. Título.

CDD - 22.ed.



362.2

2017

EDITORA FIOCRUZ — 1º andar — sala 112 Rio de Janeiro — RJ Tels.: (21) 3882-9039 e 3882-9041 Telefax: (21) 3882-9006 editoraQfiocruz.br www.fiocruz.br/editora

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Manguinhos Editora filiada Ô

Ú

Assoclação Brasileira das Editoras Universitárias

não há dúvida que os remédios de hoje são mais bonitos de aparência e trazem nomes tão singulares que não sei como os poetas

Mas

ainda não começaram a adotá-los nos títulos de seus livros de poemas.

Mas isso

em breve acontecerá, pois são nomes misteriosos

e ao mesmo tempo moderníssimos, que, não significando claramente

nada, sugerem a cada um mundos e mundos novos; o que éfunção artística e muito adequada neste momento em que todos estão desejando não propriamente deixar este mundo, mas trocá-lo

por

outro, na esperança de vida melhor.

Cecília Meireles

SUMÁRIO

Apresentação 1.

As Diversas Faces do Fenômeno

2. Diagnosticar Doenças

11

17 41

3.

Medicalização: incluir ou excluir

65

4.

O Mito Científico do Desequilíbrio Químico e Suas Doenças

T7

5.

Ninguém Pode Escapar

105

6.

A Desmedicalização É Possível: experiências

113

Reflexões Finais

131

Referências

135

Sugestões de Leituras e Filmes

139

APRESENTAÇÃO

Muitos são os momentos na vida em que recorremos, de uma maneira ou de outra, a um médico, um psiquiatra, psicólogo ou a outro profissional da saúde. Quando estamos doentes, evidentemente. Não haveria aí qualquer surpresa. Mas igualmente os buscamos quando queremos estar bem, ou quando queremos ficar ainda melhor. Agimos assim movidos pelo imperativo de que a “saúde é o bem-estar físico, mental e social”. E para assegurar esse estado ideal (seria o mesmo das evidências que a felicidade?!), não medimos esforços. Uma mais imediatas do que representa esse imperativo de saúde,

consagrado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a qual nos referimos anteriormente, é o lugar que o investimento em saúde ocupa em riosso orçamento. Cada vez mais dedicamos uma significativa parcela de nossos rendimentos a despesas com saúde; muito mais que nossos antepassados faziam. Estaríamos ficando cada vez mais doentes? Ou estaríamos a cada dia ficando

mais saudáveis, já que gastamos mais com saúde? O fato é que o que somos parece estar inseparável do discurso biomédico. Fomos convencidos de que essa é a via privilegiada para da existência. Afinal de que possamos enfrentar os desafios contas, nos acostumarmos a pensar que, se a educação é importante, assim como o transporte público, a segurança pública

[1

os investimentos em infraestrutura, a saúde precioso de que dispomos.

Ou

é o

bem mais

Em vista disso, não é de se estranhar que em nosso cotidia-

no dificilmente haja algo que fazemos, sentimos ou pensamos,

sem que, de uma forma ou de outra, recorramos às representações e normas que nos são incutidas a respeito do que é saudável ou patológico. Não obstante, ao mesmo tempo que nos sentimos protegidos ao incorporar em nossa rotina o discurso médico e suas práticas afins, temos a tendência a nos considerar sempre na situação de pacientes. Somos movidos pelo medo e pela esperança. Algo que até então considerávamos saudável, deixava comum, que nos

seguros de sermos normais, de uma hora para outra sofre uma mudança de valores. Diariamente somos surpreendidos com alguma notícia de que cientistas acabam de sugerir que algo considerado a ser passou como patológico ou nocivo à saúde; ou com alertas de que indicadores para diagnosticar determinada doença foram alterados. Como não nos sentir inseguros? Por que tal medicamento ou procedimento clínico, que até então eram considerados recomendados, passaram a produzir resultados iatrogênicos antes considerados irrelevantes? Por sua vez, a cada medo, criado ou revelado, há promessas de como atenuá-lo ou mestno superá-lo. Oscilamos entre o medo e a esperança de que a ciência trará melhores dias. Componentes inerentes à existência (o Dasein heideggeriano) ganham novas formulações: a angústia, por exemplo, se transforma em transtorno de ansiedade, e a finitude O serpara-morie, em transtorno com essa ou aquela designação científica. Tal processo passou a set conhecido como medicalização da existência ou medicalização da vida cotidiana.

Ou

12

]

Em se tratando do nosso imaginário e das relações de caráter especular por ele criado, somos muito diferentes dos

homens nossos antepassados. A religião e a lei, que, para os do passado, haviam desempenhado papel hegemônico, têm sido substituídas pelo imaginário biomédico. Com isso, a medicina e suas práticas discursivas afins adquirem o papel de significante-mestre a organizar nossas vidas. Em razão disso, será que estamos nos tornando mais doentes que nossos antepassados? Uma resposta muito comum é que estamos ficando mais doentes em razão de causas inerentes à civilização, entre as quais o grande vilão seria o estresse, por exemplo. Outra resposta é que a própria medicina e suas práticas afins são responsáveis pelo nosso adoecimento, ao medicalizarem as experiências mais comuns e naturais da nossa existência.

Em princípio, tudo pode ser patologizado, na medida em

sofrimento. São inerentes à que não nos faltam motivos para emocionais nossa existência as sucessivas experiências físicas ou de que não gostamos. Emum passado não remoto considerávamos tais experiências, atualmente tidas como patológicas, como experiências normais socioculturais a serem enfrentadas com os recursos naturais e de civilização. conquistados ao longo de milhares de anos vivo Segundo sabedoria popular muito conhecida, basta se estar Mas hoje em dia tudo parece ser para se sofrer disso ou daquilo. diferente. Afinal, viver seria a causa das doenças? Ou será que estamos doentes de uma epidemia ser exatamente a medicalização?

de medicalização? E.

O

que vem à

[13

À primeira vista, medicalizar sugete medicar, quer dizer, “euidar(-se) por meio de medicamentos”, ou também “exercer a medicina”. Contudo, como, teremos oportunidade de rever ao longo do livro, na verdade esse fenômeno moderno chamado medicalização é

polissêmico. Em comum, configura-se como o de transformar processo experiências consideradas indesejáveis ou perturbadoras em objetos da saúde, permitindo a transposição do que originalmente é da ordem do social, moral ou político para os domínios da ordem médica e práticas afins. Por práticas afins entendemos aqui práticas discursivas de diferentes atores que alimentam o próprio processo de medicalização. Com destaque tanto para a indústria farmacêutica e de tecnologias de saúde, com seu interesse de ampliação do mercado para seus produtos, quanto para pesquisadores que dão suporte a esse processo mediante supostas bases científicas. Estão incluídos nesse grupo também os planos e seguros de saúde, os escritórios de advocacia, os grupos organizados de pacientes e familiares, na medida em que lutam pelo aprofundamento da medicalização da própria sociedade. O propósito deste livro é apresentar ao leitor uma análise do fenômeno da medicalização e suas consequências individuais e sociais propriamente ditas. Na condição de profissionais da saúde mental, nosso foco está voltado para a psiquiatria e práticas discursivas afins. O conteúdo da obra se destina a um público leitor não necessatiamente composto apenas de profissionais da saúde. Ainda que os tópicos a serem aqui abordados sejam, em princípio, de natureza complexa, eles foram escritos em uma linguagem 14

]

acessível também ao público leigo. Nossa pretensão é que a problemática da medicalização do sofrimento psíquico seja

compreendida também por aqueles que mais padecem dela — na verdade, todos nós, quando transformados em pacientes. Portanto, retrataremos tal complexidade fazendo uso de uma linguagem simples, por vezes coloquial, com o fim de atingirmos todo tipo de público. Esperamos que aqueles leitores acostumados a uma linguagem de cunho mais científico possam partilhar desse objetivo conosco.

O modo como vamos expor a problemática da medicalização do sofrimento psíquico segue o roteiro da aliança feita entre a psiquiatria e a indústria farmacêutica. Embora os primórdios dessa aliança possam ser encontrados desde pelo menos a Grécia antiga — o que por muitos é jocosamente chamado de santa aliança ela ocorre de fato a partir da segunda metade da década de —

1950. Desde então, vivemos em uma época caracterizada pela ideia de que os problemas ora chamados de problemas mentais social de podem e devem ser curados por drogas. O mandato da ideia cura atribuído à medicina mental passa a ficar inseparável

promovida pela indústria farmacêutica de que as drogas podém comum aliviar os sintomas. Essa aliança é consumada porque em há o princípio do desequilíbrio químico no cérebro. As drogas lá ajudariam a restaurar o equilíbrio químico, uma vez que subjaz dos sintomas. o mecanismo patológico responsável pela produção Tal aliança, entretanto, ultrapassa os limites tradicionais da Antes de essa psiquiatria e da própria indústria farmacêutica. aliança se consagrar, a psiquiatria moderna já se empenhava na indústria cura dos problemas psicológicos pela via biológica, e a

Lis

farmacêutica, por sua vez, oferecia seus produtos psicotrópicos. A sociedade já chegou a acreditar no coma insulínico como terapêutico, nas terapias eletroconvulsivas (ECT), na lobotomia, na malarioterapia, no choque cardiazólico, na terapia do hormônio do sexo, nos barbitúricos, nas anfetaminas e em tantas e tantas outras intervenções bizarras que nem merecem ser aqui mencionadas. A impressão que temos hoje, ao relembrarmos tais práticas terapêuticas, é de estarmos visualizando o que foi a pré-história da psiquiatria conternporânea. Afinal, a partir da descoberta dos antipsicóticos e dos antidepressivos, na segunda metade dos anos 1950, assim como dos avanços relacionados à classificação dos transtornos mentais — até então alcançados pela psiquiatria, sobretudo com o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-IID, de 1980 —, a maioria dos profissionais da área passa a enxergar o passado e a se perguntar como pôde haver tamanha ingenuidade a ponto de não se acreditar que o que havia à época pudesse vir a produzir tão bons resultados. E mais: o que levou tantas pessoas a acreditar nessas falsas ideias? Enfim, também não será falsa a ideia atual sobre fato o de os transtornos mentais serem consequência de desequilíbrio químico no cérebro?

16

]

11

As Diversas

FACES

DO

FENÔMENO

Para melhor entendermos a forma como a medicalização foi assumindo as dimensões atuais, iniciaremos a abordagem do fenômeno por meio de uma reconstrução histórica da própria ideia de medicalização desenvolvida na literatura científica. O percurso histórico que faremos tem como eixo duas questões que consideramos essenciais para o entendimento do assunto. * Como se efetua a passagem de uma condição social ou de um comportamento individual — considerados como indesejáveis ou perturbadores — ao estatuto de patologia? *

Sobre quais bases científicas e ideológicas se apoiam os discursos que permitem a transposição do social para o que é da ordem médica e que a tornam aceitável, até mesmo desejável, aos olhos da sociedade?

O termo medicalização começou a frequentar a literatura científica desde a segunda metade do século XX. E não por acaso. À partir do fim da Segunda Guerra Mundial, a sociedade é afetada pelo impacto do que passou a ser considerada uma verdadeira revolução terapêutica: o surgimento das terapias com antibióticos e hormônios, a descoberta de vacinas e, muito particularmente, a consagração triunfal da indústria farmacêutica, Com isso, as doenças infecciosas passaram a ser menos letais, € as causas mais comuns de morte nos países desenvolvidos [17

transformaram-se em tumores e doenças cardiovasculares. À contracepção hormonal, ao ser introduzida, encontra-se também associada à revolução sexual, à normalização do aborto e ao planejamento familiar. À sociedade começa a acompanhar com avidez anúncios de descoberta de novos medicamentos, sempre com a promessa de combater doenças até então consideradas incuráveis. No campo da saúde mental, por um lado, há o boo das psicoterapias que, durante a primeira metade daquele século, estavam restritas à psicanálise e às terapias comportamentais. Por outro lado, o surgimento dos psicofármacos é recebido pela sociedade como a descoberta das pílulas milagrosas, as quais eram consideradas, à época, como a solução definitiva para os problemas psíquicos até

então considerados sem cura: as psicoses, e, em particular, as aflições psíquicas que a medicina tradicionalmente havia considerado como neuroses e objeto das terapias da palavra. O pós-Guerra fica igualmente marcado pelas mudanças nos sistemas nacionais de saúde, algo da maior relevância na história da civilização, especialmente nos países que adotaram o Estado de bem-estar social (welfare stafe, em inglês). A criação de um sistema de saúde pública de qualidade e extensivo a todos os cidadãos torna-se então uma das mais fortes reivindicações das sociedades — divididas entre ideais socialistas e capitalistas. o contexto social e político que fez com que a medicina e as práticas discursivas sobre a saúde ganhassem uma evidência nunca antes experimentada. Grosso 7rodo, eis

aspectos da problemática da medicalização serão objeto de análise crítica. Assinalaremos alguns dos aspectos que consideramos os mais relevantes. Ão tomar como referência um Diversos

18

]



limitado número de autores que se destacaram na abordagem de cada um deles, corremos o risco de omitir nomes importantes segundo esse ou aquele tópico; no entanto, acreditamos que tal lacuna não comprometerá a argumentação que iremos desenvolver. w,

O

PAPEL

Social

DO

DOENTE

O trabalho do sociólogo estadunidense Talcott Parsons (1951) é considerado pioneiro no estudo da medicalização. Embora os fundamentos de sua teoria sejam de natureza funcionalista, objeto de crítica, a abordagem feita por Parsons sobre o papel do doente em nossa sociedade ainda hoje preserva sua relevância. Ele chama a nossa atenção para o fato de existirem papéis para o doenfe que se encontram culturalmente disponíveis na sociedade e que funcionam para legitimar o desvio da norma que a doença evidencia, ao mesmo tempo que têm a função de abrir caminhos para a relação reintegradora médico-paciente. Produzir

construir seu papel na sociedade são mecanismos fundamentais para a reprodução econômica e política do sistema, pois tal produção gera lucros e garante poderes não apenas aos profissionais da saúde, mas também para outros agentes político-econômicos. O papel de doente é igualmente funcional para as interações interpessoais, sob o ponto de vista da cultura e da sociedade. E, muito particularmente, influencia na formação da subjetividade propriamente dita. O portador de uma determinada doença dá sentido a determinadas representações sociais doentes e

(cultura), reitera normas de interações existentes (sociedade) e se constitui em sujeito (subjetividade).

[18

Parsons (1951) propõe que tomemos a doença como um desvio das normas sociais, evidentemente tendo por base sua visão funcionalista — não é demais relembrar isso. Porém, é importante levar em conta que as normas sociais existem na medida em que pressupõem desvios. Com efeito, o papel de doente é atribuído àquele indivíduo que se encontra incapaz de funcionar normalmente, conforme as expectativas em uma sociedade produtiva — trabalhar, ir à escola, cuidar da casa e se envolver em atividades sociais que dão a cada indivíduo sua função social. Os denominados quatro postulados de Parsons acerca do papel do doente são bem conhecidos na sociologia e correspondem a dimensões que se manifestam inter-relacionadas: duas exceções para as responsabilidades normais e duas novas obrigações. Para que sejam mais bem analisadas, destacamos os postulados a seguir:

assume V.o primeiro postulado indica que uma pessoasociaisquenormais. o papel de doente fica isenta das obrigações

*

*

O segundo aponta que a pessoa no papel de doente fica também isenta de sua responsabilidade pelo seu próprio estado, e não se pode esperar dela que se recupere por um ato de vontade.

No terceiro postulado, a expectativa social é de que o indivíduo reconheça que estar doente é indesejável, tendo, portanto, o dever de se empenhar em sua recuperação.

*

20

]

O quarto postulado de Parsons é aquele no qual a pessoa tem a obrigação de procurar ajuda tecnicamente competente de um médico ou outro profissional da saúde e de cooperar no processo de tratamento.

7

Tendo por base esses quatro postulados, algumas consequências metodológicas se impõem. Primeiramente, a importância de se reconhecer que a díade médico-paciente está socialmente condicionada. Essa é a condição para que se possa abordar aquilo que é social por natureza — o que é socialmente construído a des—,

peito da suposta natureza objetiva da doença e da imediaticidade da relação dual médico-paciente. Outra consequência é que estar doente é em grande medida uma construção social, envolvendo percepções subjetivas e interações com o meio ambiente social imediato e mais amplo. Isso faz com que a medicina seja necessariamente medicina social. O

PaPeL

Social

DO

MÉDICO

Na linha de pensamento inaugurada por Parsons, igualmente os sociólogos começaram a analisar o papel social do médico. Quer dizer, a própria profissão médica torna-se objeto privilegiado da sociologia — a chamada sociologia das profissões. O surgimento da medicina científica confere então ao médico um poder antes desconhecido, na medida em que suas teorias e práticas passam a ser respaldadas pelas denominadas tecnociências. A medicina convencional acaba por receber uma convincente vantagem sobre outras práticas de cura tradicionalmente desenvolvidas pela sociedade. à

Será Eliot Freidson, outro sociólogo, quem fará um tipo de análise pioneira da profissão médica. É necessário entender a forma como a medicina adquire o monopólio legítimo para a abordagem e o tratamento das doenças. Freidson (1970) chamará a nossa atenção para o fato de que a profissão médica

[21

é a primeira a reivindicar a jurisdição sobre a doença e sobre qualquer coisa que a ela possa ser anexada.

A consequência metodológica importante é que se deve analisar a articulação do papel do médico em nossa sociedade na rede de poderes constituídos no sistema social. Por conseguinte, ao contrário do que quer nos fazer crer a ideologia cientificista, o papel social do médico está fundado nas relações sociais de poder constituídas e não em uma verdade da qual o médico seria o porta-voz. Não se trata simplesmente de uma suposta evolução do saber científico — objetivo, neutro e isento dos interesses e conflitos sociais. Trata-se, sobretudo, do saber médico resultante de processos de construção social de um poder sobre os indivíduos. Como bem observa Freidson (1970), os médicos foram isolados de uma avaliação externa e passaram a ficar em grande parte lívres para regular sua própria profissão. ContTRoLE

SocIAL

Ainda no começo dos anos 1970, mais precisamente em 1972, foi publicado um artigo em que, pela primeira vez, aparece explicitamente a expressão medicalização da sociedade. Escrito pelo sociólogo Eving Kenneth Zola (1972), seu título é direto:

A Medicina Seu

Como uma Instituição de Controle Social.

ponto de partida é o processo histórico pelo qual a

medicina pouco a pouco se transforma em uma instituição de controle social, tomando o lugar que tradicionalmente havia sido ocupado pela religião e pela lei. Para Zola (1972), a expressão controle social é absolutamente inseparável das relações de poder. À medicina, para Zola, se 22 ]

impõe à sociedade como um todo e aos indivíduos em suas particularidades, não porque fundamente seus imperativos em termos de virtude ou de legitimidade, como classicamente faziam a religião e as instituições da lei. Zola propõe que abordemos o fenômeno da medicalização da sociedade em quatro eixos de análise:

O

*

*

Identificar a expansão do que na vida cotidiana é considerado relevante para a prática da medicina. Descrever como, por meio do exercício do controle absoluto sobre determinados procedimentos técnicos, o poder da medicina se impõe como algo natural.

*

*

Reconstruir a história das conquistas do direito da medicina ao acesso absoluto a áreas tradicionalmente tidas como tabus. Pensar na expansão do que na medicina é reputado como boas práticas de vida.

Para expandir suas fronteiras tradicionais e conquistar, do ponto de vista minimalista, o cotidiano de cada um de nós, a medicina abandona modelos etiológicos baseados em uma concepção linear da causalidade, passando então a desenvolver modelos multicausais da doença. À reconstrução da história da medicina indica como o que já foi banido da sua competência passa a ser incorporado em suas práticas discursivas: a medicina compreensiva, a psicossomática, o placebo, a medicina dos estilos de vida etc. Não é mais necessário que o paciente se queixe de sintomas, como comumente ocotria, mas que fale dos sintomas da vida cotidiana, suas crenças e preocupações. Fronteiras do normal e do patológico são rompidas. Um dos [23

mais famosos livros de Freud (1996) tem justamente o seguinte título: Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana. Mudanças

substanciais

passam

então

a

ocorrer no

modo como o diagnóstico e o tratamento de doenças são construídos. Não se trata apenas de coletar dados da maneira mais precisa possível, mas de estes aparecerem segundo perspectivas que envolvam o próprio estilo de vida de cada

um, o que leva o médico a um exercício profissional que vai muito além das suas habilidades técnicas propriamente ditas. A medicina adquire assim o direito de determinar como se deve trabalhar, dormir, se divertir, comer, fazer amor. E de estabelecer também o modo como se deve pensar, sonhar, desejar etc. À ideia da prevenção sustenta esse processo, na medida em que se passa a pensar em prevenção com o intuito de se evitar o surgimento de qualquer tipo de doença que possa acometer a população. Com isso, formas de controle social começam a aparecer. A medicina entra em territórios antes considerados tabus. Por tais áreas entendem-se os espaços pessoais — em termos de corpo e de mente — que até então eram estritamente privados. A ideia matriz é de que nada pode escapar ao olhar da medicina, uma vez que tudo pode ser objeto desse viés investigativo em sua busca para distinguir o que é normal do que é patológico. Incorporam-se à jurisdição da medicina experiências de vida até então consideradas normais — como no caso do envelhecimento ou da gravidez. Por sua vez, a dependência de drogas ilícitas ou lícitas (como o álcool), tradicionalmente entendida como experiências de vida reveladoras de fraqueza, falta de vontade,

24 ]

condutas socialmente condenadas, acaba se constituindo em objeto de especialidades médicas. Por fim, questiona-se a forma como a medicina passa a ser o discurso dominante para orientar sobre práticas de vida mais adequadas a toda a população. Trata-se de possíveis doenças derivadas de cada estilo de vida. Cada ato praticado por nós deve ser justificado no que se relaciona à saúde ou doença, e cada vez menos em relação a virtude ou ao que seja o mais justo. À tal

ponto que os profissionais externos ao campo da saúde passam igualmente a utilizar indiscriminadamente os critérios do que é patológico ou normal, sempre segundo os ditames da medicina. O

Processo

DE

PERDA

DA

AUTONOMIA

DOS

SUJEITOS

Com a medicalização, há a perda da autonomia dos sujeitos. E essa autonomia é um forte critério normativo para se avaliar uma vida boa e bem-vivida (desde a Ética de Aristóteles). Uma referência moderna obrigatória é Ivan Hlich, que exerceu vigorosa influência para os movimentos de contracultura dos anos 1960 e 1970 do século XX. Em particular, suas análises sobre o fenômeno da medicalização da nossa sociedade repercutem até hoje entre nós. Em sua obra Nemesis Médica (Illich, 1976), o termo medicalização aparece nada menos que 48 vezes. Com tamanha frequência, temos uma boa ideia da importância que Hllich dava a esse fenômeno. À medicina revelou-se para ele um desses grandes poderes modeladores do sujeito moderno. Na introdução do livro, afirma ele que “o estabelecimento médico se tornou a maior ameaça à saúde” (Illich, 1976: 9). [ 25

Em um artigo publicado em 2002, cujo título é bastante provocativo — Medicina em Excesso? Quase que certamente (Moynihan & Smith, 2002) —, o prestigiado The British Journal of Psychiatry põe em questão o incessante crescimento da medicina em nossas vidas, deixando claro que sofremos de seu excesso. está a medicina industrializada. Morte, dor e doença são experiências que fazem parte da existência humana. Para enfrentá-las, as sociedades desenvolveram meios para ajudar as pessoas a suportar essas difíceis questões da

No foco da crítica de

Tllich

vida. Saúde pode mesmo ser definida como saber lidar satisfatotlamente com essas tais experiências. À esse respeito, a medicina

moderna tem desafortunadamente destruído tanto capacidades culturais como individuais de se lidar com elas, substituindo-as por tentativas desumanas de transformá-las em mercadorias. Para a sua reprodução, a sociedade contemporânea apresenta, como álibi, o poder de encher suas vítimas com terapias que elas foram ensinadas a desejar. O consumidor de cuidados da medicina torna-se impotente para curar-se Ou curar seus semelhantes. Partidos de direita e de esquerda rivalizam em zelo nessa medicalização da vida, e, com eles, os movimentos de libertação. (Tllich, 1976: 6)

Sobre esse assunto, o escritor e economista indiano Amartya Sen, agraciado com o prêmio Nobel de Economia em 1998, afirma algo que vai ao encontro do que desenvolveu Tllich, ao demonstrar empiricamente que quanto mais a sociedade gasta com cuidados em saúde, maior é a probabilidade de seus cidadãos olharem para si próprios como doentes (Sen, 2002). 26 ]

A medicalização está de tal forma incorporada em nossas vidas que podemos até considerá-la nossa segunda natureza. E. por ela lutamos, como

se ao lutar por mais medicalização estejamos alme-

por maiís-ser. Exemplo bastante eloquente do quanto somos ávidos por mais medicalização diz respeito ao orçamento para

Jando

a Saúde que sisternaticamente reivindicamos ao Estado, algo que desafia nossas políticas públicas. Segundo destaca Illich (1976: 37): A medicalização do orçamento é indicador de uma forma de iatrogênese social na medida em que reflete a identificação do bem-estar com o nível de saúde nacional bruta e a ilusão de que o grau de cuidados no campo da saúde é

representado pelas curvas de distribuição dos produtos da instituição médico-farmacêutica.

A “medicalização do orçamento”, expressão usada por Tllich, pode revelar o quanto a sociedade passou a ficar dependente do poder da medicina por meio exatamente da verificação do quanto ela demanda de custo orçamentário destinado à Saúde pelo país. Se uma sociedade está se desenvolvendo para garantir

um melhor bem-estar da população, quer dizer, uma melhor qualidade de vida, o que se espera disso é que existam menos doenças e, por consequência, menos doentes. É algo tão lógico como ético porque, ainda segundo Ilich, quanto menos doenças, menos gastos com saúde são necessários; por conseguinte, menos profissionais da saúde. Isso possibilitaria, por exemplo, mais profissionais da educação e investimentos mais elevados em áreas como alimentação, moradia, lazer, energias alternativas e outras. Não obstante, nossa realidade não é absolutamente essa. E

27

Mas será que o aumento das doenças e dos doentes é realmente consequência do próprio desenvolvimento da sociedade? Se assim for, melhor seria lutarmos contra esse modelo de desenvolvimento, na medida em que ele é patogênico. O senso comun costuma resolver esse paradoxo ao considerar que tal modelo de desenvolvimento é natural, inevitável, e, ao mesmo tempo, ao articular o suposto desenvolvimento científico no campo da saúde com o aumento da sensibilidade que passamos a ter para a identificação de novas enfermidades. Quer dizer, ao surgirem novas enfermidades surge também a necessidade de recursos para enfrentá-las. No entanto, graças às inúmeras informações de que dispomos atualmente, estainos mais sensíveis a enfermidades que até então desconhecíamos, aquelas de que nossos antepassados padeciam sem saber a razão. Ulich desconstrói essa articulação: quanto mais existem diferentes teorias com o poder de diagnosticar e definir um tratamento, mais razões existem para renunciar à responsabilidade de transformar o que, no meio ambiente, faz adoecer nosso amigo, e mais a doença se despolitiza. (Tlich, 1976: 96)

Contudo, como transformar nossas relações, lutar por uma sociedade diferente, não ficarmos doentes, se a própria medicalização nos rouba a capacidade de autonomia? À medicalização é operativa, já que nos isenta de assumir responsabilidades pessoais e coletivas. E sofremos... Soffemos com tantas coisas que nós mesmos produzimos. Illich afirma: “Parece-me que a medicalização progressiva da linguagem da dor, da resposta à dor e do diagnóstico do sofrimento está em vias de determinar 28 ]

condições sociais que paralisam a capacidade pessoal de dor” (1976: 110, destaque do original). A

FaBRICAÇÃo

DA

DoEnÇA

sofrer a

MENTAL

Thomas Szasz, renomado acadêmico e psiquiatra, é bastante conhecido no Brasil e no mundo. Um de seus mais famosos livros por aqui — A Fabricação da Loucura: um estudo comparativo da inquisição e do movimento de saúde mental (Szaz, 1971)



foi escrito

no início da década de 1970. Embora a medicalização seja um fenômeno cuja extensão ultrapasse em muito os domínios da psiquiatria, a investigação da forma como a psiquiatria transforma comportamentos sociais em doenças mentais nos dá a dimensão do poder que a medicina adquiriu nos tempos modernos. Em suas obras em geral, Szasz reconstrói a maneira como a sociedade historicamente se relacionou com fenômenos como a loucura, a homossexualidade, o alcoolismo e o consumo de drogas ilícitas, a pederastia, o aborto, comportamentos desviantes de crianças e adolescentes, para citar apenas alguns dos exemplos de comportamentos humanos por ele abordados. O autor demonstra como a medicalização desresponsabiliza a sociedade e os indivíduos de seus comportamentos, transformando o que é da ordem política, tmnoral e existencial em fenômenos tratados como doenças. Há que se demarcar o que é doença do que não é, como requisito para entender a dimensão da medicalização e criar condições para a própria desmedicalização. À doença mental é uma doença metafórica, eis uma das constatações fundamentais de Szasz, profícua em resultados investigativos. Por exemplo, o fato [ 29

de se afirmar que alguém tem uma vontade deferro não significa que a natureza da sua vontade seja constituída por ferro. Portanto, que fosse possível comprovar que a natureza da vontade seja de ferro, com base em sua análise química. E que, assim, fosse possível, classificar a tenacidade da vontade dos sujeitos a partir da dosagem de ferro presente em suas mentes. E poderíamos continuar a desenvolver teorias acerca da vontade de ferro em seres humanos, segundo gênero, idade, educação, classe social etc. Para Szasz, a natureza da assim chamada doença mental é o problema central da psiquiatria. Isso o levou a um minucioso exame e à refutação de duas pretensões fundamentais dos psiquiatras contemporâneos: que as doenças mentais são doenças genuínas e que a psiquiatria é uma especialidade médica autêntica.

Em seus livros, Szasz, por diversos modos, reconstrói como a ideia de doença mental surgiu e como ela funciona hoje em dia. O conceito de doença mental originou-se do fato de que é possível para uma pessoa agir e parecer como se fosse doente sem, contudo, ter uma doença corporal. Até a segunda metade do século XIX, pessoas simulavam doenças, conforme Szasz. Em outras palavras, elas reivindicavam estarem doentes sem conseguir convencer seus médicos de que sofriam de alguma doença autêntica. O que conseguiam era que fossem vistas como pessoas que fingiam estar doentes, razão pela qual então eram chamadas de simuladoras. Aqueles que imitavam médicos, que diziam curar o doente fazendo medicina, eram vistos como impostores, sendo assim tidos como charlatões. Contudo, como é que aqueles que até então não eram considerados doentes, assim como as práticas que até então 30 ]

eram não médicas acabaram fazendo parte da ordem médica? Szasz entende que tais transformações têm influência muito especial de Charcot, Janet e, sobretudo, de Freud. Tomando-os como base, afirma que pessoas que imitavam doenças passaram a ser chamadas de /histéricas, assim como seus hbipnotizadores, de psicoterapeutas. Para Szasz, essa profunda transformação conceitual foi ao mesmo tempo baseada e refletida em uma complexa alteração semântica — na qual feitiços, por exemplo, tornaram-se convulsões, e charlatães tornaram-se psicanalistas. Por mais polêmicas que sejam tais considerações de Szasz, o que não podemos perder de vista é que as tradicionais fronteiras entre a normalidade e o patológico foram desaparecendo: novos comportamentos e formas de sofrimento psíquico passam a ser incorporados ao campo da assistência em saúde, novos

fenômenos começam a constituir objeto da psiquiatria, assim como novas profissões são criadas para a intervenção nos comportamentos e experiências psíquicas. À doença mental se transforma no novo flogístico, afirma Szasz ironicamente. Sabemos que flogístico — palavra de origem grega que significa “pegar fogo” — era o nome dado, no século XVII, a uma suposta sustância que surgia durante os processos de combustão. Afirmava-se, à época, que todos os objetos inflamáveis continham essa substância material. Quando uma substância queimava, supostamente liberava seu conteúdo flogístico no ar, que se acreditava ser quimicamente inerte. Tal teoria dominou o pensamento científico por mais de um século. O que se observava é que, por exemplo, quando um pedaço de metal era queimado (oxidado), ele passava a É

31

pesar mais que antes, ao passo que para a teoria flogística ele deveria pesar menos. Ante as inconsistências do paradigma dominante — e para mantê-lo ainda em evidência —, passou-se a postular que o flogístico era um princípio imaterial e não uma substância material. Por sua vez, conjecturou-se que o flogístico tinha peso negativo. Qualquer estudante do ensino médio hoje em dia dá gargalhadas ao ler que o paradigma flogístico foi considerado como verdade científica durante décadas. Desde Lavoisier sabe-se que as reações químicas são combinações de elementos que formam novos materiais. O exemplo da teoria flogística utilizado por Szasz ilustra bem o papel do paradigma, tal como analisado por Thomas

Kuhn (2003). Um paradigma exerce seu poder para os que são incutidos a acreditar que nomes e teorias existem como parte integral de um modo de se enxergar o mundo do jeito que ele novas observações passam, então, a serem vistas por meio das lentes desse determinado paradigma. é: real. As

Atualmente, o paradigma biologicista da doença mental é predominante no campo da saúde mental. Seu pressuposto é o de que os transtornos ou distúrbios mentais, construídos como categorias de diagnóstico, têm como base material supostos desequilíbrios químicos no cérebro, disfunções psíquicas e/ou forças psíquicas inconscientes. Tais explicações do comportamento humano influenciam a lei e a política social muito mais que as explicações dos eventos do mundo natural, como a química, a física, a astronomia. Por exemplo: o paradigma biologicista do comportamento humano tem implicações muito amplas 32

]

e

profundas para cada aspecto da nossa vida cotidiana.

O que a psiquiatria e suas práticas afins fazem é dar respostas simplificadoras aos comportamentos incômodos. À origem da psiquiatria é a própria coerção da cura. À histeria como linguagem dirigida ao outro, por exemplo, é transformada em problema psíquico a ser medicalizado, assim como o controle das drogas, o suicídio, a pedofilia, a responsabilidade criminal etc. Além disso, a medicalização é melhor simplificada quando se apresenta como medicação. Vivemos hoje uma farmocracia, como bem designa Szasz (1971). A

EPiDEMIA

DAS

DROGAS

PSIQUIÁTRICAS

À epidemia das drogas psiquiátricas é um dos aspectos mais relevantes da medicalização do homem contemporâneo. É o que melhor expressa a aliança entre a medicina e a indústria farmacêutica e que ocorre, sobretudo, a partir da década de 1950. Todos os diferentes aspectos da medicalização que abordamos anteriormente parecem estar aqui amalgamados. Para que a indústria farmacêutica tenha êxito na expansão de seus negócios é imprescindível a criação de novos doentes. E para que esses novos doentes sejam criados é imperioso o papel do médico. Porém, sua presença não está limitada à relação dual com o paciente, na medida em que o médico é o intermediário, por excelência, entre a indústria farmacêutica e o doente — ou seja, o indivíduo, o conjunto de indivíduos agrupados segundo as categorias de diagnóstico e a sociedade como um todo. O monopólio legítimo para a abordagem e o tratamento das doenças passa a ser reforçado pela aliança entre quem fabrica drogas consideradas legítimas e quem tem o poder [33

para prescrevê-las. Esse laço entre a medicina e a indústria farmacêutica historicamente passa a garantir muito além do que havia no âmbito da doença e a tudo o que a ela se relaciona. À medicina se transforma na instituição com o maior poder de controle social, ocupando o lugar que tradicionalmente era ocupado pela religião e pela lei.

Na medida em que se difunde a ideia de que medicamentos supostamente inovadores prolongam e aumentam a qualidade de vida e tratam de problemas que temos dificuldades para enfrentar, há uma crescente expansão do que no cotidiano passa a ser considerado como relevante para a medicina. Ainda que os procedimentos técnicos, muito particularmente aqueles de origem farmacológica, sejam cada vez mais onerosos (não apenas financeiramente, mas em relação à perda de autonomia dos indivíduos), o poder da medicina vai se impondo como algo natural. Áreas tradicionalmente consideradas tabus são transformadas

em território para o exercício da aliança entre medicina e indústria farmacêutica, como é o caso da infância, por exemplo. E, por fim, há a espantosa propagação do que para a medicina é considerada como boas práticas de vida. Como jamais ocorreu na história da civilização, perdemos a autonomia. Tendo em vista que para sermos sujeitos nos sujeitamos ao poder médico-farmacológico, consequentemente menos sujeitos somos em relação a nosso pensamento, ao nosso modo de agir e ao que sentimos.

No que se refere à biopolítica, a aliança da medicina com farmacêutica potencializa o poder para o governo indústria a do corpo múltiplo, sejam eles grupos sociais, a população, o 34 ]

homem como ser vivente. Os fenômenos abordados pela medicina passam a constituir fenômenos de massa, seriais, de longa duração — cada vez mais fenômenos passam a ser objeto de governo. Por sua vez, mecanismos de previsão, de estimativa estatística e de medidas globais são aperfeiçoados. E, finalmente, há a regulação das interações interpessoais sem necessidade do uso da força bruta ou dos tradicionais poderes disciplinares. Controla-se o que é acidental, o aleatório, as deficiências e que, ao não estar na norma, ameaça a homeostase social idealizada — internalizada em nós na condição de bem-estar

O

físico, mental e social. Pois é no campo da saúde mental que a aliança entre medicina e indústria farmacêutica pode ser mais

bem evidenciada como medicalização da nossa existência. As análises sobre tal aliança se acumulam. Apesar da gigantesca propaganda, avaliações críticas oriundas de diferentes áreas da ciência conseguem vez ou outra romper a barreira da imposta ignorância e chegam aos meios de comunicação de massa. Como é o caso daquelas emitidas por Marcia Angell, às quais o público brasileiro teve acesso graças a um artigo seu — publicado em agosto de 2011, pela revista Piauí — que tinha o eloquente título “A epidemia da doença mental”. Angell é uma médica estadunidense, pesquisadora, autora de vários livros e artigos científicos, tendo sido editora-chefe do prestigiado periódico The New England Journal of Medicine. Sua obra A Verdade constituirá aqui nossa principal referência (Angell, 2007). Nela tomamos conhecimento da forma como, a partir das políticas neoliberais iniciadas nos governos Reagan e Thatcher, os lucros das principais empresas Sobre os Laboratórios Farmacêuticos

[ 35

que formam a indústria farmacêutica têm aumentado de maneira espetacular, a tal ponto que os principais laboratórios figuram a cada ano entre as dez empresas mais lucrativas do mundo. Tais laboratórios se concentram nos Estados Unidos e em alguns poucos países da Europa. Angell nos chama a atenção para a maneira como uma nova droga chega ao mercado. Embora se pense que as descobertas venham do investimento da indústria farmacêutica em pesquisa e desenvolvimento, a realidade é que a maioria dessas descobertas vem das universidades e laboratórios de pesquisa financiados pelo Estado. Angell denuncia que o investimento em pesquisa e desenvolvimento de fármacos é muito menor do que a indústria farmacêutica quer nos fazer crer. Ou seja, embora essa mesma indústria alardeie em sua publicidade que parte considerável do preço dos remédios sirva para compensar seus gastos com pesquisas e desenvolvimento e para garantir sua continuídade, na prática não é isso o que ocorre: significativa parcela já se encontra embutida no preço total do medicamento e se destina à publicidade e ao pagamento de uma ampla rede de atores sociais que formam sua cadeia de produção, distribuição e propaganda.

No entanto, ainda que uma expressiva parte da pesquisa básica seja feita em universidades e em laboratórios mantidos pelo poder público, a indústria farmacêutica se apropria dos resultados para suas finalidades lucrativas. Além disso, certos cientistas recebem altíssimas remunerações para direcionar suas pesquisas para objetos de interesse da indústria farmacêutica. Da mesma forma, clínicos e cientistas são pagos para fazer propaganda de produtos farmacêuticos, seja por meio de artigos 36 ]

científicos favoráveis, de entrevistas veiculadas pelos meios de comunicação, ou ainda, por participação em congressos. Existe também uma forte rede de divulgadores de fármacos (os tepresentantes de laboratórios), cuja visita cotidiana a hospitais, clínicas, consultórios particulares, tem como objetivo distribuir amostras grátis e brindes, entre outros materiais. Quanto às farmácias, recebem vultosos incentivos para que comercializem os produtos colocados no mercado, assim como também os médicos, para que os prescrevam. Como Angell nos chama a atenção, a Big Pharma (termo cunhado para se referir às maiores e mais lucrativas empresas farmacêuticas do mundo) está sempre introduzindo uma droga inovadora no mercado, embora esta seja, na maioria das vezes, produto resultante de sobra — versões maquiadas de drogas de um passado distante. Em cinco anos, de 1998 a 2002, um total de 415 novas drogas foram aprovadas pelo Food and Drug Administration (FDA). Porém, apenas 14% delas foram consideradas, de fato, novas drogas; 9%eram antigas drogas com alguma pequena mudança. E o restante, as outras 77% das drogas aprovadas? Simplesmente não passavam de antigas drogas que tiveram somente seu nome comercial alterado. Ou, segundo o próprio FDA: drogas que não eram em nada melhores do que as já existentes no mercado. Como se dá a aprovação de tais drogas por parte do FDA? Dá-se da seguinte forma: as companhias produtoras de drogas têm que provar que essas supostas novas drogas são aproveitam de um artifício da lei: na verdade, não necessitam realmente provar que tais drogas são mais efetivas que

efetivas. E. se

[37

as anteriores (ou mesmo tão efetivas quanto), mas devem, na realidade, mostrar que elas são melhores que absolutamente

nada. Pergunta-se: de que maneira isso é feito? Nas pesquisas clínicas, as supostas novas drogas são comparadas com placebos (pílulas de açúcar), em vez de o próprio tratamento ser o objeto da investigação. E o que é pior: devem apresentar apenas os resultados de duas investigações feitas pelo método do

duplo-cego.

Desse modo, bastam os resultados positivos de somente duas pesquisas, sem necessidade de serem mostradas as diversas outras cujos resultados foram negativos. Logo, o que apresentam é tão somente o que sirva aos interesses da indústria farmacêutica. Tal fato deixa a sociedade, em geral, e os pacientes de tais drogas, em particular, indefesos. Como no ditado popular, muitas vezes “compra-se gato por lebre”.

Em um dos capítulos do mencionado livro de Angell (2007), intitulado “O mercado aparece mascarado como educação”, é dito que a indústria farmacêutica educa a profissão médica e o público em geral. E nisso uma considerável parcela de médicos e instituições médicas parecem acreditar ou fingir que acreditam. O fato é que é gigantesca a soma de dinheiro investida em propaganda, mas, como em todos os negócios, as companhias de drogas afirmam que sua publicidade é também educativa. Asseveram que graças às suas campanhas educativas as pessoas aprendem sobre doenças até então desconhecidas e que uma parte considerável do investimento é dirigida aos próprios médicos, com a finalidade de se promover uma educação continuada desse profissional da saúde. E, embora uma significativa 38 ]

parcela dos médicos não acompanhe a literatura atualizada, alardeia-se ser por intermédio da indústria farmacêutica que os médicos acabam se mantendo atualizados. Outro detalhe igualmente importante: muitos medicamentos que inicialmente se destinavam a uma restrita finalidade, hoje são utilizados para finalidades não aprovadas antes pelas agências de regulação do mercado. Enfim, o poder da indústria farmacêutica é sentido em todos os níveis de governo; ela conta com poderosíssimos Jobbies junto às diversas instâncias do poder público. No Congresso, financiando campanhas de partidos políticos, nos quais se encontram vereadores, deputados e senadores. No Judiciário, por intermédio de poderosos escritórios de advocacia que defendem seus interesses. E, evidentemente, também no Executivo.

[ 39

2

A

DIAGNOSTICAR

DOENÇAS

Frcção

Como brasileiros, estamos familiarizados com o conto “O Alienista”, certamente uma das obras mais populares de Machado de Assis. À maioria o lê pela primeira vez ainda no ensino médio. Ao tornar a lê-lo, já conhecedores de um pouco da história da psiquiatria, a impressão é a de que a ficção esteja antecipando a realidade. Ao longo do conto acompanhamos o personagem dr. Simão Bacamarte, o alienista, em sua incansável busca por identificar e curar doentes mentais. É ele a afirmar que “a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas” e que “a saúde da alma é a ocupação mais digna do médico” (Assis, 2008: 254). Motivado por sua metafísica cientificista, o nosso alienista convencido de que todo comportamento e sofrimento vê se psíquico podem virtualmente ser manifestações de alguma patologia mental. O termo afieniísta foi adotado por Philippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, em 1801, em sua clássica obra Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental ou Mania. Alienismo era, portanto, o termo científico utilizado nos primórdios da medicina mental. Humanista como era, imbuído da missão de libertar os homens de seus flagelos, dr. Bacamarte não poupava esforços [ 41

para transformar a Casa Verde — nome por ele escolhido para o hospício que construiu — em uma instituição de referência para o tratamento da alienação. Aos poucos, todos os cidadãos da pequena vila de Itaguaí (isso mesmo: Machado de Assis definiu a pequena Itaguaí, no estado do Rio de Janeiro, como o cenário de seu conto antecipatório da medicalização) se tornam virtualmente pacientes psiquiátricos. Para tanto, Bacamarte lançava mão do tratamento alienista em nome da ciência, do Estado e da razão, tendo sido o pioneiro no tratamento compulsório da doença mental.

É com esse propósito em mente que Simão Bacamarte dá seus primeiros e decisivos passos para a medicalização da vida: “— À loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente” (Assis, 2008: 260). Certa vez um médico afirmou que não existiriam pessoas absolutamente normais, e sim doentes mal examinados. Poderíamos nomear a atitude medicalizante/patologizante de bacamartismo? DA

FI1cçÇão À REALIDADE:

A

NECESSIDADE

DE

CLASSIFICAR

Um dos pilares que sustentam a medicalização mental é a classificação dos chamados transtornos mentais. À bem da verdade, a própria história da psiquiatria moderna é inseparável da história da construção de diversos modelos de classificação dos fenômenos reivindicados como sendo objeto da psiquiatria. A exemplo do dr. Bacarmarte, somos todos inclinados a classificar os fenômenos com os quais convivemos, desde Adão 42 ]

no paraíso. Não obstante, é muito significativa a diferença entre nosso ato ordinário de classificar e o ato da psiquiatria de classificar, visto que nesta última o que se encontra em jogo é o poder de influenciar a sociedade, em seu todo, de maneira ampla e profunda — poder esse inexistente na linguagem ordinária. A pedra fundamental na qual a classificação psiquiátrica está O

alicerçada é a legitimidade atribuída à ciência. Historicamente, surgiram diferentes manuais de diagnóstico. Aqui, privilegiaremos um deles: o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais,

em português. Quem o produziu foi a fortíssima American Psychiatric Association, mais conhecida por sua sigla, APA.

O DSM é considerado.a bíblia da psiquiatria contemporânea. Não só pela sociedade em geral, mas, sobretudo, por um significativo número de profissionais da saúde mental (que não se restringe apenas aos psiquiatras). Essa comparação com a Bíblia é no mínimo curiosa, visto que, entre outras coisas, dá a entender que o DSM guarda semelhanças substanciais com o livro sagrado mais importante da civilização judaíco-cristã. Porém, enquanto a Bíblia, em seus mais de dois milênios de existência, nunca sofrfeu acréscimo ou supressão em qualquer parte de seu conteúdo, o DSM, em apenas cinquenta anos, já passou por várias revisões, tendo experimentado expressivas alterações a cada nova edição. Surge, então, a pergunta: tantas mudanças por quê? Para o senso comum e para relevante parcela de médicos, tais revisões não surpreendem, na medida em que supõem que [43

isso se deva ao próprio espírito científico em seu progresso tumo ao pleno domínio do conhecimento sobre a psique humana. De fato, o DSM não é a Bíblia, a despeito deste seu dogma imutável: os transtornos mentais são consequência de desequilíbrios químicos no cérebro. A influência do DSM é hoje incontestavelmente globalizada. Significa que suas influências transcendem a sociedade dos Estados Unidos, onde o Manual é produzido. Ão exportar seus conceitos e tratamentos dos transtornos mentais, aquele país igualmente exporta os processos de medicalização. Por sua vez, desde 1948 a OMS publica e edita oficialmente a Classificação Estatística Internacional de Doenças Saúde



e

Problemas Relacionados

mais conhecida como Classificação Internacional

com

a

de Doenças

que mantém uma racionalidade inseparável do DSM. Sob o bombardeio das contundentes críticas do movimento da antipsiquiatria ao longo das décadas de 1960 e 1970, a psiquiatria estava perdendo credibilidade no campo científico e aos olhos da própria sociedade. Ambos os DSM-I e DSM-I haviam fracassado em dar ao campo confiabilidade na distinção entre as diferentes patologias psiquiátricas; é o que o DSM-III se propôs fazer. (CID)

—,

Contudo, ao contrário do que o senso comum costuma acreditar, as sucessivas versões do DSM não se devem ao implacável avanço do progresso científico: cada uma delas resulta de lutas políticas, uma vez que existem fortes interesses corporativos na área da psiquiatria. Além dos da indústria farmacêutica, há também os dos grupos organizados de pacientes psiquiátricos. Para estes, O que está em questão são direitos — desde o reembolso de tratamentos até os relativos a 44 ]

benefícios previdenciários. E nisso tudo há, logicamente, atores sociais importantes, como as empresas de planos e seguros de saúde, bem como o vasto número de escritórios de advocacia, as diferentes instituições do Estado, os diversos grupos religiosos, movimentos sociais e outros. Além da defesa dos próprios interesses da corporação psiquiátrica no campo da medicina. O processo de discussão e de tomada de decisão da APA para a aprovação de cada revisão do DSM é um verdadeiro espetáculo. Mal comparando, é mais raro existirem /obbies de empresários, políticos, empresas de seguro, advogados ou de cidadãos otganizados para discutirem descobertas na astronomia, na física, na matemática, na biologia ou em outros campos. Ainda que fundamentalistas político-religiosos questionem a teoria da evolução, seria estranho a comunidade científica decidir, por meio de votação, se a teoria de Darwin deveria ou não ser excluída da ciência. Entretanto, no campo da psiquiatria isso é o que predominantemente acontece, pois quem ganha é sempre quem detém o poder de impor seus interesses e de construir alianças. Na história do DSM existem elementos nos quais se misturam ciência com política e fatos científicos com fantasias. Afinal, existem dois imperativos científicos em relação aos quais a psiquiatria tem muita dificuldade em lidar: a confiabilidade e a validade. CONFIABI LIDADE

E

VALIDADE

Confiabilidade e validade são dois problemas que acompanham o DSM em suas sucessivas edições. O Manual deve se impor por si próprio, graças à validade dos diagnósticos, ao mesmo tempo [ 45

que há que se confiar nos diagnósticos propostos. É consenso na comunidade científica psiquiátrica não haver sentido pesquisar a validade sem que o problema em questão conte com a devida confiabilidade. Quer dizer que se um número significativo de pessoas não concordar sobre quem tem determinado transtorno então as supostas propriedades de tal transtorno não poderão avaliadas. Caso isso ocorra, poderá resultar no seguinte: os ser sintomas que um pesquisador estuda em São Paulo serão distintos mental,

dos estudados por outros, seja em nessa mesma cidade ou em outra qualquer, como Boston, por exemplo. Isso nos leva à indagação: será que de fato tais sintomas serão mesmo diferentes? Se a confiabilidade estiver estabelecida, com base nela poderemos investigar se determinado constructo está ou não relacionado aos elementos que a teoria subjacente à construção afirma estar. Reconhecer as diferenças entre confiabilidade — na qualidade de consenso, na comunidade científica — e validade — como verdade que possa garantir a própria confiabilidade — é algo da maior importância para uma abordagem crítica. À validade nos remete à problemática da verdade, o que nos faz lembrar o deus romano Janus: por um lado, a verdade formal, por outro, a verdade Jactual. Por sua vez, a confiabilidade nos remete a consensos e aos processos de sua formação. Por serem resultados de um processo social de construção, as categorias de diagnóstico do DSM parecem poder ser mais bem analisadas quando as consideramos constructos, isto é, produtos de processos de construção social da realidade. A relação de um constructo com as coisas que este significa é arbitrária, conforme demonstrado pelo “construtivismo social”, 16 ]

Consequentemente, não seria necessário partir do pressuposto de que as próprias coisas existem de forma independente do constructo? Com relação à problemática aqui abordada, os fenômenos psicopatológicos não existem sem os constructos psiquiátricos? Eis uma questão incontornável. Sobre isso, tomemos como ponto de partida meia dúzia de exemplos: homossexualidade, déficit de atenção, esquizofrenia, anorexia, pederastia e transtorno de ansiedade. Embora seja

consenso que as categorias de diagnóstico psiquiátrico são resultado de processos sociais de construção conceitual, o mesmo grau de consenso deixa de existir quando se questiona se tais fenômenos aos quais tais categorias se referem existem mesmo que não haja as condições do espaço e do tempo que limitam o nosso conhecimento (do real). Ora, ao se reconstruir a história de cada uma dessas categorias de diagnóstico, verifica-se que os critérios de classificação mudam historicamente, bem como as condições morais, políticas e institucionais que permitem que essa ou aquela categoria seja incluída ou excluída dos manuais de diagnóstico.

Contudo, não são apenas os constructos que são alterados através do espaço e do tempo — algo que pode ser considerado da mais alta relevância. Com a inclusão ou a exclusão de determinadas categorias de diagnóstico, fenômenos passam a ser enquadrados de maneira distinta, ganhando novo sentido e novas normas com as quais interagimos, além de novos sujeitos sociais. Isso se opõe à perspectiva realista.

Por conseguinte, contrariamente ao senso comum, a problemúática central da assistência em saúde mental não é a oferta de pessoal especializado



psiquiatras, enfermeiros, psicólogos, as[47

sistentes sociais, terapeutas ocupacionais —, tampouco a carência de recursos materiais, ainda que tais componentes da assistência sejam importantes. Se assim pensarmos, estaremos pressupondo que os profissionais da saúde mental, assim como a estrutura e a organização das prestações de cuidado terapêutico, são atualizações mais ou menos conformes a verdades já estabelecidas. Sendo as categorias de diagnóstico constructos, cabe indagar a razão pela qual as inadequações do diagnóstico psiquiátrico

têm sido notadas com tanta frequência, ainda que consideremos apenas a história do DSM. A abordagem ortodoxa da psiquiatria se baseia em dois pressupostos básicos: que os chamados transtornos mentais podem ser divididos em um determinado número de doenças (por exemplo, a esquizofrenia e demais transtornos psicóticos, transtornos de humor, transtornos de ansiedade e outros); e que as manifestações ou sintomas não podem ser entendidos na perspectiva da psicologia dos indivíduos, já que esta última carece da objetividade do observável. Tais pressupostos foram desenvolvidos por psiquiatras em meados do século XIX e início do XX. Seus escritos acabam por

influenciar o pensamento da psiquiatria moderna. Ao contrário do que se costuma dizer, não foi Freud a figura central na história da psiquiatria, mas sim um psiquiatra alemão nascido no mesmo ano que ele, 1856. Referimos-nos a Emil Kraepelin (1856-1926), considerado o pai da psiquiatria moderna. Mas por que Kraepelin, e não Freud, Bleuler ou Jaspers — outros grandes nomes da área psi? Simplesmente porque a ele se deve a abordagem até hoje dominante para a construção 48 ]

de categorias diagnósticas. E qual a lógica aplicada por ele? À mesma da medicina em geral; aquela com a qual qualquer estudante de medicina lida desde o início de seus estudos, qual seja: processos semelhantes de doença levam a manifestações semelhantes — sob a forma de sintomas; o que, por sua vez, implica uma suposta anatomia patológica, bem como uma suposta etiologia. A considerada grande contribuição de Kraepelin pode ser assim resumida, esquematicamente: *

*

Identificar, com base nos sintomas, um discreto número de transtornos psiquiátricos. Ainda que alguns deles possam ocorrer em mais de um transtorno, cada transtorno tem uma típica configuração de sintomas. Diferentes transtornos estão associados a distintos tipos de patologia no cérebro, assim como também a etiologias correspondentes.

E aí entra algo de considerável importância: relação entre validade e consenso. O que é válido não necessariamente é consensual, sendo o contrário disso também verdadeiro. Imaginemos uma situação completamente estranha: o que seria se a humanidade parasse de concordar com a validade de argumentos matemáticos ou lógicos? É provável que caíssemos num declínio terminal, embora ninguém tivesse alguma boa razão para duvidar que cinco mais sete são doze. Por um lado temos a lógica; por outro, consensos ou acordos compartilhados intersubjetivamente. É importante que entendamos isso. Empregamos os termos válido e inválido para indicar se o argumento é apresentado de forma correta. Por forma correta [ 49

entendemos regras formais, aquelas com as quais estamos de acordo. Exemplo: todos os animais são carnívoros. Portanto, sendo a vaca um animal, ela é carnívora. Assim, podemos verificar que o argumento é válido do ponto de vista do plano formal. No entanto, a primeira premissa é falsa. Trata-se da lógica. Desde Aristóteles, aprendemos a reconhecer que as inferências partem sempre de uma premissa — supostamente verdadeira — e que, pot conseguinte, o raciocínio é conduzido a uma conclusão que se intui como verdadeira. Não obstante, para Atistóteles uma coisa é a validade formal de um raciocínio, e outra é a verdade factual das proposições que o constituem. Em outras palavras, um raciocínio pode ser válido mesmo se certas proposições que o compõem sejam falsas em termos factuais. Por exemplo: todo homem é um autômato; logo, qualquer homem é um autômato. Embora seja uma infetência logicamente válida, não é verdadeira. Consensos existem, acordos sobre a validade de uma argumentação podem estar bem consolidados ainda que a verdade esteja ausente. Retomemos o exemplo da teoria flogística mencionada no capítulo anterior. Durante mais de um século havia consenso da comunidade científica sobre o flagástico para explicar a combustão; formalmente, a teoria desenvolvida era considerada válida. Contudo, essa mesma teoria não era verdadeira, como acabou sendo demonstrado por Lavoisier tempos depois. À ciência tem uma particularidade muito própria, o que a diferencia do senso comum, da religião e da arte, por exemplo: nela, o processo de construção da validade deve ser feito 50

]

segundo regras metodológicas reconhecidas pela comunidade científica, cujos pressupostos são a liberdade de investigação, o rigor de seus procedimentos e a força da demonstração das evidências. Sem acordo científico entre os cientistas, uma ideia ou conceito não são considerados válidos. Para que algo tenha validade científica, antes que seja reconhecido pela sociedade em geral, há que se contar primeiramente com o acordo entre os membros da comunidade científica. Porém, o que numa época foi consensual — portanto, considerado válido para a ciência —, deixa de sê-lo em outra. Ingressamos, assim, na problemática do paradigma. Em um determinado momento histórico da sociedade, um paradigma pode contar com uma forte confiabilidade, ainda que sua validade seja fraca. Isso nos autoriza a questionar se a confiabilidade do paradigma que sustenta o DSM é sustentada pela validade formal

€/ou factual da sua lógica. O

PARADIGMA

O paradigma psiquiátrico criado por Pinel e fandamentado por Kraepelin trabalha em quatro campos de validade: sintomas, prognóstico, causalidade biológica e tratamento médico. Em relação a tais campos, a psiquiatria busca criar consensos. Retomemos agora dois desses quatro campos de validade, adotando como referência a esquizofrenia: a validade dos sintomas e a validade do prognóstico, a serem aqui abordados. Os outros dois campos de validade — a causa biológica e os tratamentos médicos propriamente ditos — serão tratados nos próximos capítulos. [ 51

A ênfase a ser dada à esquizofrenia se deve a três principais motivos. Primeiramente, por ser a grande referência emblemática para a própria psiquiatria. Em segundo lugar, porque a reforma psiquiátrica aqui no Brasil, bem como no exterior, ao deslocar a assistência do hospitalocentrismo para modelos extra-asilares, historicamente tem tomado igualmente como foco a esquizofrenia. E, por fim, porque a medicalização em saúde mental, ao incorporar cada vez mais fenômenos psíquicos à lógica de classificação psiquiátrica, reproduz esse movimento considerando como referência o paradigma desenvolvido para a esquizofrenia. Os

SINTOMAS

Recomendamos

ao leitor retomar o esquema apresentado an-

teriormente para ilustrar o paradigma psiquiátrico construído por Kraepelin. Há que se agrupar um conjunto de comportamentos e experiências em uma mesma categoria. Embora o próprio Kraepelin tenha realizado quase uma dezena de revisões no manual de diagnóstico por ele proposto, sempre relatou dificuldades pata demonstrar que os sintomas por ele identificados como da categoria esquizofrenia não ocorriam em outras patologias. Desde então, as evidências vêm se avolumando de modo a sinalizar que tal lógica não se aplica aos fenômenos descritos como próprios à esquizofrenia. Em 1973, a OMS comparou conjuntos de sintomas que ocorrem nas pessoas reais com os grupos produzidos pelas categorias de diagnóstico (WHO, 1973). As conclusões desse amplo estudo foi que os conjuntos descritos pelo DSM e pela CID definiam pessoas distintas e tinham êxito 52

]

em agrupá-las em grupos homogêneos; mas apenas no papel, visto que essa mesma lógica dificilmente correspondia aos diagnósticos clínicos dados aos indivíduos. Quer dizer, “pacientes diagnosticados como esquizofrênicos estão distribuídos em todos os conjuntos. Nenhum “perfil esquizofrênico” claro e objetivo foi suscitado” (WHO, 1973: 350). Desde Kraepelin e Bleuler, o que as evidências mostram é que os chamados sintomas esquizofrênicos são frequentemente encontrados em muitos outros transtornos. Os sintomas da também aparecem na categoria de diagnóstico transtorno bipolar. Ou, ainda, nos transtornos chamados de identidade dissociativa. Essa comorbidade, tecnicamente assim denominada, pode ser igualmente encontrada na depressão, no transtorno obsessivo-compulsivo, no transtorno do pânico, nos transtornos de personalidade, no abuso de substância, no transtorno de estresse pós-traumático e nos transtornos de ansiedade. Tudo esquizofrenia

isso demonstra que a validade da classificação dos sintomas em categorias — como esquizofrenia — é, no mínimo, questionável. O

PROGNÓSTICO

Não há evidências de que os prognósticos recebidos pelas pessoas sejam comuns, o que é algo bastante significativo, já que O que se espera de um diagnóstico é que com ele seja possível se fazer prognósticos com o máximo de precisão possível. No caso da esquizofrenia, diferentes pesquisas demonstram que seu diagnóstico não tem qualquer validade preditiva; que as chances de alguém com esse tipo de diagnóstico se recuperar de seu estado de softimento tem muito mais a ver com fatores psicossociais [ 53

ou institucionais. Os indicadores para bons resultados incluem desempenho no trabalho, realização acadêmica, habilidades sociais, condições econômicas, tolerância familiar. E o que é mais surpreendente ainda: os prognósticos daqueles diagnosticados como esquizofrênicos em países com menor presença do poder institucional da psiquiatria são significativamente melhores que aqueles dos países desenvolvidos com forte presença da psiquiatria em suas sociedades, como demonstrado pela própria Organização Mundial da Saúde (WHO, 1973). A

Crise

Do

PARADIGMA

CONFIABILIDADE

DO

KRAEPELIANO!

PRÓPRIO

A

FALTA

DE

DIAGNÓSTICO

À crise do paradigma kraepeliano começou a ficar bastante evidenciada desde a forte crítica da qual a psiquiatria passou a ser objeto durante as décadas de 1960 e 1970. Antipsiquiatria tornou-se a palavra de ordem a orientar diversos movimentos de contestação e questionamento da instituição psiquiátrica. Não apenas o

tratamento, mas igualmente o saber e a instituição psiquiátricos passaram a ser o foco dessas pesadas críticas, assim como a relação autoritária existente entre o médico e o paciente. Notáveis figuras, tais como David Cooper, Ronald Laing, Franco Basaglia Thomas e Szasz, viram tal relação primariamente como uma relação de poder amparada pelas próprias classificações psiquiátricas.

É importante que se leve em conta que nesse período o DSM estava ainda em suas duas primeiras versões. Por conseguinte, as pesquisas realizadas tomavam como referência o DSM- e o DSM-II. Em 1963, uma pesquisa muito interessante foi feita com leigos. Vale a pena dar destaque a tal pesquisa. 54 ]

Phillips (1963) preparou uma tabela com duas colunas, cada uma com cinco categorias, que deveriam se combinar. Da primeira coluna constavam as seguintes categorias: *

um esquizofrênico paranoide;

*

um esquizofrênico;

*

uma pessoa com depressão ansiosa; uma pessoa fóbica com traços obsessivos;

*

uma pessoa normal. assim construída: A segunda coluna *

foi

* *

nada foi acrescentado à descrição do comportamento; “quem regularmente ia ao seu pastor para falar sobre a sua situação”;

*

*

“quem regularmente ia ao seu médico para discutir a sua situação”; “quem regularmente ia ao seu psiquiatra para discutir a sua situação”;

“quem estava em um hospital psiquiátrico em razão de sua situação”. Phillips apresentou 25 categorias, que foram resultantes das

*

combinações feitas entre as duas colunas, a trezentas pessoas leigas (mulheres brancas casadas), a fim de acessar a relação entre problemas psiquiátricos e rejeição social. Os resultados são muito curiosos: não era a descrição comportamental o fator decisivo, mas a extensão do tipo de ajuda procurada. De

forma bem sintética: a pessoa normal no hospital psiquiátrico é considerada louca e socialmente rejeitada; já o esquizofrênico [ 55

paranoide que não busca ajuda é considerado normal e socialmente aceito. Seria a própria psiquiatria e o imaginário por ela criado o que constrói na sociedade, em geral, as próprias categorias com as quais se faz a distinção entre o que psiquicamente é considerado

normal ou anormal? Eis uma questão que, por diversas ocasiões e formas, tem sido objeto de investigação. Pode-se dizer que tal fato ocorre quando o diagnóstico é feito por pessoas leigas, por

quem não é um profissional da saúde mental. Sobre isso, o estudo de Temerlin (1968) oferece uma réplica devastadora. Ele pediu a um ator para representar uma pessoa normal, entrevistou-o na forma de um relato de caso e apresentou a gravação em áudio a profissionais da saúde mental: 25 psiquiatras, 25 psicólogos e 45 estudantes de psicologia. No entanto, um procedimento metodológico muito interessante foi introduzido por ele: antes de os experts escutarem a gravação, ouviram o relato de um respeitado colega em que diz como tal paciente sutilmente se fez aparentar a ele como um neurótico, quando de fato era completamente psicótico. O resultado: 15 psiquiatras acabaram por diagnosticar psicose, enquanto dez deles, neuroses; sete psicólogos o acharam psicótico, 15 o julgaram neurótico, e três o consideraram saudável; entre os estudantes, cinco o diagnosticaram psicótico, 35 como neurótico, e cinco vitam nele um homem saudável. Conclusão: a confiabilidade do diagnóstico dos profissionais é tão confiável quanto o das pessoas leigas. Pode-se pensar que tais equívocos deixariam de existir se o diagnóstico pudesse ter sido feito em um contexto favorável 56

]

como, por exemplo, no ambiente do hospital psiquiátrico, onde os psiquiatras teriam boas condições de trabalho e tempo para observar os pacientes. Uma notável pesquisa, no entanto, abateu tal pressuposto. Foi realizada por David Rosenhan (1973), professor de psicologia da Universidade de Stanford, Califórnia, e teve enorme repercussão tanto na literatura científica quanto na imprensa em geral, tendo ficado popularmente conhecida pela expressão “eu me fiz passar por louco” ou, ainda, por Experimento Rosenhan. Essa pesquisa foi publicada em 1973 na revista inglesa Science e no jornal francês Le Nouvel

Observateur.

De forma bem resumida, em que consistiram os achados de Rosenhan e que explicam essa enorme repercussão que alcançaram? Ele desejava investigar a experiência de ser internado em uma instituição psiquiátrica. Para atingir tal objetivo, orientou algumas pessoas a ir ao setor de admissão de determinados hospitais psiquiátricos dos Estados Unidos. Elas deveriam chegar à emergência psiquiátrica demandando ajuda, queixando-se de “ouvir uma voz” e de sentir um vazio existencial, um “oco”. No mais, deveriam se apresentar normalmente, tais como eram em suas vidas reais, com seus cotidianos e histórias de vida, sem qualquer outra informação que não correspondesse à verdade (a não ser ouvir vozes e ter sentimento de vazio existencial). Em outras palavras, os falsos pacientes não forjaram mais nada sobre suas vidas. Numa eventual interpretação dessas queixas poderia se considerar apenas que tais pessoas sentiam suas vidas vazias,

sem sentido, ocas! O resultado não poderia deixar de causar surpresa: sem grandes dificuldades, todos conseguiram ser internados após [ 57

receberem o diagnóstico de pacientes psicóticos. À experiência foi tão marcante que, à exceção de um dos voluntários, todos tentaram desistir e quiseram abandonar o hospital logo no primeiro dia da internação. Uma vez internados, passaram a não mais fingir nada. Pararam inclusive de queixar-se das vozes que diziam ouvir. Ou seja, durante a permanência nos hospitais psiquiátricos, os pseudopacientes se comportavam normalmente, até mesmo escrevendo suas observações para a pesquisa sem que ninguém os perguntasse nada ou incomodasse com coisa alguma. Um médico chegou a anotar que o paciente adotava o “comportamento de escrever” como sendo característica de sua patologia. Um outro paciente foi visto sentado no refeitório cerca de meia hora antes do horário da refeição (afinal, numa instituição dessa natureza — instituição total, como as denominou Erving Goffman —, os horários da alimentação são uma das poucas coisas que os internos aguardam com ansiedade, por pior que seja a comida). Esse fato, de o paciente estar no refeitório com certa antecipação, fez com que um médico constatasse que isso se tratava de uma sintomatologia oral incorporativa de sua síndrome psiquiátrica. Há ainda outro detalhe da pesquisa de Rosenhan que aqui merece destaque: os médicos explicavam as doenças tomando por base os relatos verdadeiros dos pseudopacientes. Isso significa que conforme o diagnóstico emitido por ocasião das entrevistas de admissão, os dados eram organizados de tal forma que fosse confirmado o que já havia sido concebido como conceito, como categoria de diagnóstico. 58

1]

Muitas questões sobre a confiabilidade do diagnóstico e a fragilidade do saber psiquiátrico surgiram após a divulgação dos resultados dessa pesquisa. Mas será que isso ocorria apenas quando se realizava uma falsificação do fenômeno? Existe um argumento deontológico que afirma que uma instituição de saúde não pode se recusar a atender a quem se apresenta na condição de doente. Afinal, Rosenhan fez uso de pseudopacientes em sua investigação. Então, como seria se os pacientes fossem reais? Um conhecido professor de psiquiatria questionou os resultados afirmando que, se isso tivesse se dado na instituição que dirigia, tal fato não teria acontecido. Em resposta, Rosenhan anunciou que em determinado mês seriam enviados outros voluntários pseudopacientes, a fim de se submeterem ao exame de admissão na instituição psiquiátrica universitária dirigida pelo tal professor. Mas Rosenhan não enviou ninguém. No entanto, foram identificados centenas de suspeitos de simular quadro psicótico. Os achados dessa pesquisa contribuíram ainda mais para o aumento dos questionamentos sobre a confiabilidade diagnóstica e a legitimidade da própria ciência psiquiátrica. Muitas pesquisas como essas foram feitas no período compreendido entre os anos 1960 e 1970. Pode-se bem imaginar o impacto que provocaram não apenas na opinião pública em geral, mas, sobretudo, entre os profissionais da saúde mental. A partir daí, diversas outras questões iriam aparecer. E então falso do verdadeiro? surgem as indagações: como distinguir o Constituiria um fracasso da ciência quando se busca desvendar os mistérios da psique humana? Tais erros são produzidos quando o diagnóstico não procura dar conta da complexidade do ser [ 59

humano em sua dimensão biopsicossocial? Uma entrevista mais aprofundada com o paciente, dispondo o profissional de mais tempo, não seria o caminho para um diagnóstico confiável? E algumas dessas questões naturalmente foram objeto de investigação. Por exemplo, para responder à questão sobre o papel da entrevista, Sandifer, Hordern e Green (1970) realizaram uma pesquisa que teve ampla repercussão nos meios científicos. Dessa vez, a metodologia não procurou omitir nada, sendo todos os procedimentos bem explicitados. Após gravarem entrevistas em áudio e vídeo, com casos de pacientes reais, mostraram-nas a psiquiatras com comprovada experiência clínica. O objetivo de tal pesquisa foi clara e objetivamente dito aos participantes: observar quando e como um diagnóstico é feito e quando a concordância é alcançada entre os diferentes diagnosticadores. Os resultados foram impressionantes. Chegou-se à conclusão de que, independentemente da extensão das entrevistas, a maioria dos diagnósticos é realizada logo nos primeiros minutos. E que menos da metade dos dados clínicos são usados, sendo o acordo entre os diferentes diagnosticadores muito baixo. Não causa nenhuma surpresa que a poderosa APA não tenha poupado esforços para dar uma resposta institucional a esses questionamentos tão arrasadores. Se o DSM deixa de ser confiável, ele não pode mais ser usado para distinguir as desordens mentais de outros problemas humanos. Em termos práticos, isso significaria que muitas pessoas podem ser diagnosticadas erroneamente como tendo algum transtorno e que os clínicos frequentemente entram em desacordo sobre o 60

1]

que o que está ou não correto. Chega-se a temer a extinção da carreira de psiquiatria.

Em consequência disso: *

*

*

*

*

Pessoas que de fato não têm qualquer transtorno mental, ainda que possam ter outros tipos de dificuldades, estão sendo inapropriadamente etiquetadas como doentes mentais. Pessoas que efetivamente tenham uma desordem mental e que verdadeiramente devam ser tratadas não são assim reconhecidas. Os sistemas de reembolso (de seguro saúde), atrelados às categorias de diagnóstico, passam a ser mal utilizados. Os organismos de saúde, ao anunciarem o número de indivíduos que sofrem (ou poderão vir a sofrer) de algum transtorno mental, podem estar incorrendo num grande erro ao divulgar números que possivelmente estejam incorretos. Quando medicamentos ou certos tipos de psicoterapia são especificamente direcionados para as pessoas com transtornos mentais, tais procedimentos podem ser empregados equivocadamente em pacientes errados.

A resposta dada pela APA foi promover uma ampla revisão do DSM. Assim, em 1980 é publicado o DSM-III, uma volumosa versão que rapidamente se torna Ícone, best-seller e objeto de adoração, sendo considerada a bíblia da psiquiatria. Os questionamentos, por muitos identificados, até então, como de antipsiquiatria, pareciam ter sido superados. O DSM-III acaba alcançando imenso significado para a sociedade, ao estabelecer inúmeros temas relevantes que geram enorme impacto na vida [ 61

das pessoas, como por exemplo: identificar quem é sano e quem é doente; que tipo de tratamento é o recomendado; quem deve

pagar pelo tratamento; quem deve receber benefícios por doença; quem deve ser enviado para as instituições de saúde mental, para a escola, a prisão ou outros serviços; quem deve ser demitido de um emprego; quem pode adotar uma criança ou pilotar um avião; quem está qualificado para um seguro de vida; se um assassino é criminoso ou paciente mental; e assim por diante.

Em princípio, o método introduzido pelo DSM-III é simples. A descrição de cada transtorno é acompanhada por um conjunto de critérios que lista em termos pretensamente precisos quais os sintomas o definem, quantos sintomas devem estar presentes e a sua duração. Por exemplo, um episódio de depressão maior é definido como cinco ou mais dos seguintes sintornas que devem se apresentar juntos por mais de duas semanas e que causem um significativo sofrimento ou prejuízo psíquico: humor deprimido; perda de interesse; apetite reduzido; sono alterado; fadiga; pensamento perturbado; e sentimentos de suicídio. Daí resulta que a depressão clínica não seja diagnosticada caso haja apenas quatro desses cinco sintomas, se eles estiverem presentes pot apenas uma semana, e não duas, ou se o prejuízo psíquico que os sintomas causam não seja significativo. agitação;

culpa;

Nessa edição do DSM-III foram incluídas cerca de duas centenas de conjuntos de critérios — um para cada transtorno. Eles estabelecem as fronteiras que separam os transtornos mentais um do outro e da normalidade. Assim, os clínicos conseguem alcançar um razoável acordo relacionado a seus diagnósticos quando seguem esses critérios tidos como universais. 62 ]

Após sete anos surge, em 1987, uma nova revisão do DSM (o DSM-III-R). Anos depois é publicado o DSM-IV (1994) e em 2000 o DSM-IV-TR (texto revisto). À cada versão, cresce o número de diagnósticos identificados, tendo esse aumento atingido mais de 200%entre o DSM-I e o DSM-IV-IR. Em maio de 2013 foi lançado o DSM-5, com um acréscimo de aproximadamente 12% de categorias de diagnóstico com relação à versão anterior. Essa última versão do DSM tem sido objeto de fortes críticas, muito particularmente as feitas da por cientistas de tenome ligados à própria corrente principal de da chefe equipe psiquiatria. Allen Frances, por exemplo, declarou formulou recentemente o DSM-IV, pesquisadores que que, ao contrário do que esperava quando entusiasmadamente liderou o processo de reformulação do DSM, infelizmente constatou que O DSM-IV não salvou o normal, ou até mesmo o protegeu adequadamente. Três anos após a sua publicação, os lobistas da indústria farmacêutica obtiveram uma grande vitória sobre a regulação dos medicamentos (...). Rapidamente, as ondas de rádio e as páginas da imprensa foram preenchidas com representações elogiosamente enganosas de que todos os problemas eram de fato algum transtorno psiquiátrico reconhecido. (Frances, 2012: 73, tradução nossa)

Por sua vez, a Sociedade Britânica de Psicologia (British Psychological Society — BPS) pronunciou-se recentemente, de forma oficial, confirmando que a comunidade a quem ela representa tem sérias restrições ao emprego do DSM-5. [ 63

3

MEDICALIZAÇÃO:

INCLUIR

OU

EXCLUIR

No capítulo anterior tomamos como objeto o DSM e as suas dificuldades de dar suporte científico às suas categorizações. Neste, abordaremos o processo de medicalização na perspectiva

dos movimentos sociais em suas lutas com relação às próprias categorias de diagnóstico, que viriam a medicalizar o cotidiano dos indivíduos. O DSM depende de pressões políticas. Então, qual seria o papel dos movimentos sociais de pacientes organizados? Existem dois casos históricos emblemáticos — um ilustra o movimento pela exclusão, o outro, o movimento pela inclusão: o da homossexualidade e do transtorno de estresse pós-traumático. A

HomOSSEXUALIDADE

O processo político que culminou com a eliminação do diagnóstico da homossexualidade do DSM é cheio de ensinamentos. Não podemos deixar de dar destaque ao primeiro deles, pela sua transcendente importância: para que a homossexualidade não fosse mais considerada um transtorno mental, o debate sobre o tema precisou extravasar os meios círculos exclusivos dos profissionais da saúde mental e da e

assistência psiquiátrica.

Na história da psiquiatria moderna, a homossexualidade era categorizada como um objeto da saúde. Por conseguinte, sua [ 65

problemática deveria ser resolvida por diferentes teorias e técnicas terapêuticas, que foram motivo de disputas entre os profissionais da saúde, divididos entre progressistas e conservadores. Ao longo dos anos 1970, o processo de elaboração do DSM-III foi ocasião de intensos debates, não apenas internos à comunidade científica, mas ampliados pelos movimentos organizados das comunidades de homossexuais. Que lugar a sociedade queria atribuir às relações homossexuais? O que estava em jogo era a própria heterossexualidade — considerada como norma. Sabia-se que as consequências de tal embate — de natureza eminentemente política — criariam ou não condições para a manifestação de um novo pluralismo de ideias a respeito de gênero e estilo de vida. Após mais de três décadas, o que estava em debate no início dos anos 1980 até hoje produz seus efeitos: é o casamento de pessoas do mesmo sexo; são os benefícios securitários para parceiros do mesmo sexo em união estável; é o reconhecimento da paternidade ou maternidade para filhos de casais homossexuais; é a aceitação de homossexuais nas forças armadas, e assim por diante. Na Irlanda acaba de ser aprovado pelo voto popular, por ampla Maioria, o casamento de homossexuais. O Uruguai também o aprovou recentemente, Tais fenômenos sociais contemporâneos seriam impossíveis de ser aceitos (ou sequer debatidos) pela sociedade se a homossexualidade fosse ainda interpretada como um comportamento patológico. O processo que fez com que a homossexualidade deixasse de ser classificada como doença mental é acessível a todos. As informações estão em artigos, livros e na internet, em 66 ]

todos os cantos. Isso é muito importante porque, em geral, as negociações sobre diagnósticos — como foram as recentes para o DSM-5 — são realizadas privadamente: os pareceres e os interesses de quem os produzem e a forma como são produzidos

não ficam disponibilizados para o público em geral. E o que particularmente é interessante nisso é que a disputa sobre a homossexualidade nos possibilita perceber a maneira como a APA costuma trabalhar para produzir as versões do seu Mannal. A discussão central sobre o tema da homossexualidade durante o processo de construção do DSM-II não estava pautada em dados científicos, mas baseada em crenças e valores expressos em um debate que se prolongava há, pelo menos, trinta anos. Ainda que os profissionais que formulavam diagnósticos defendessem com argumentos dos dados empíricos êo influência supostamente científicos, a que tinha menos peso nas tomadas de decisões.

da

homossexualidade

os

É importante elucidarmos o que aconteceu desde a primeira edição do DSM. Em 1952, quando o DSM foi pela primeira vez publicado pela APA, a influência da psicanálise era muito grande. Os transtornos eram classificados segundo a divisão proposta por Ereud para as chamadas desordens funcionais (não orgânicas): psicoses, neuroses e desordens da personalidade. Entre as desordens da personalidade encontravam-se os chamados sexuais, em que a homossexualidade estava situada. Ou seja, homossexualidade era um dos desvios sexuais, lado a lado com “travestismo, pedofilia, fetichismo, e sadismo sexual — desvios

incluindo estupro, agressão sexual, mutilação” (The Committee on Nomenclature..., 1952: 39).

[ 67

Um dignóstico específico para a homossexualidade surgin pela primeira vez na segunda versão do DSM, publicada em 1968. O DSM-II reiterou a homossexualidade como um dos desvios sexuais, citando-o em primeiro lugar numa lista de dez. À homossexualidade foi então catalogada pelo código 302.0. A seguir, a definição de tais desvios na Íntegra: 302

Essa categoria é para aqueles sexuais estão dirigidos cujos primariamente para objetos outros do que as pessoas do sexo oposto, para atos sexuais não usualmente associados com coito, ou para coito realizado em circunstâncias bizarras como necrofilia, pedofilia, sadismo sexual e —

Desvios

indivíduos

Sexuais.

interesses

fetichismo. Ainda que muitos considerem suas práticas desagradáveis, esses indivíduos permanecem incapazes de substituir tais comportamentos por um comportamento sexual normal. Esse diagnóstico não é apropriado para indivíduos que realizem atos sexuais desviantes potque objetos sexuais normais não estão disponíveis pata eles. (The Committee on Nomenclature..., 1968: 44)

No entanto, o DSM-I não tinha prestígio entre os profissionais da saúde mental em geral, não apenas entre

os envolvidos com o tema homossexualidade. Afinal de contas, no fim dos anos 1960, a credibilidade do diagnóstico psiquiátrico

não resistia às críticas vindas de todos os lados, como já vimos no capítulo anterior. A complexidade da problemática se tornava cada vez mais evidente diante das importantes mudanças socioculturais pelas quais a sociedade passava. Estavam nas ruas as diferentes lutas 68 ]

por direitos das minorias (expressão dominante na época),

com destaque para a luta dos negros e dos homossexuais. Uma revolução sexual vinha ocorrendo nas famílias, nas escolas, nas artes, na própria Igreja, na sociedade em geral. Ora, durante milênios a homossexualidade havia sido considerada um comportamento social desviante. Por seu turno, na modernidade, o controle social da homossexualidade vinha sendo pouco a pouco deslocado das instituições da Igreja e da lei para a medicina. À homossexualidade deixava de ser um

comportamento a ser punido, a receber tratamento da Justiça criminal, e passava a ser uma doença, um objeto de tratamento médico. Com ela ocorria algo semelhante ao que sempre ocorreu com uma boa parte dos, hoje, considerados objetos de intervenção médico-psiquiátrica — como é atualmente no Brasil o caso dramático dos usuários de drogas ditas ilegais que são submetidos ao recolhimento involuntário. Com a medicalização da homossexualidade, os tratamentos destinados aos gays e as lésbicas iam desde a intervenção cirárgica, como castração, vasectoinia, lobotomia, esterilização, clitoridectomia, histerectomia; passando por intervenções químicas (como estimulantes sexuais, injeção de hormônio, depressores sexuais); até uma gama variada de intervenções psicoterápicas (abstinência, terapia de ajustamento, psicanálise, hipnose, terapia de aversão, grupo psicoterápico, dessensibilização, terapia do grito primal, eletrochoque etc.). Em 1947, foi publicado o relatório Kinsey (Kinsey et al, 1948; Kinsey et ad, 1953), apontando que a homossexualidade era um fenômeno muito mais frequente do que a opinião [ 69

pública estadunidense admitia até então. Embora reconhecesse ser impossível determinar o número de pessoas homossexuais ou heterossexuais, Kinsey demonstrava ser possível determinar o comportamento homossexual em algum momento da vida dos sujeitos. O relatório demonstrava que em termos de comportamento, 37% dos machos haviam tido experiência de orgasmo com alguém do mesmo sexo pelo menos uma vez na vida. Por sua vez, 13% das mulheres declaravam haver tido alguma relação homossexual. É importante observar que eram evidências empíricas tiradas em um contexto de forte conservadorismo com relação à vida sexual; expor a sua própria intimidade era na época algo considerado um tabu. Não é difícil imaginar a repercussão que tais dados provocaram na sociedade estadunidense; a homossexualidade, vista como desvio sexual, era na verdade um fenômeno muito mais frequente do que até então se pensava. Por conseguinte, uma parcela significativa da sociedade dos Estados Unidos sofria desse desvio sexmal E. a ironia: entre esses doentes mentais estavam muitos psiquiatras, psicanalistas, psicólogos e até mesmo sacerdotes e freiras, autoridades políticas e judiciárias. Sendo a homossexualidade uma doença, O conveniente seria tratá-la como um problema de saúde, não é? Os profissionais da saúde lutavam para que a homossexualidade Passasse a ser interpretada como objeto do seu campo de ação, deixando de ser, consequentemente, da alçada da política e da religião. Aliados a eles, enquadrados no discurso medicalizante, diferentes gFupos gays começaram a se organizar logo após a publicação do relatório Kinsey, lutando em defesa do direito dos homossexuais 70 ]

de serem tratados no âmbito da saúde, e passaram a denunciar as diversas formas de violência da sociedade, em particular aquelas realizadas pelas autoridades das instituições da ordem pública, como policiais e juízes. Uma questão provocativa: atualmente, não é na mesma lógica medicalizante que se insere a relação com os usuários de drogas ilícitas?

A grande virada desmedicalizante da homossexualidade ocorreu a partir da famosa rebelião de Stonewall. Essa revolta despertou gays e lésbicas para o fato de que, como um grupo que eram, estavam sendo atacados. Não porque estivessem doentes, mas porque seus comportamentos expressavam estilos de vida próprios. Vale a pena destacar esse momento histórico. Foi na noite de 27

de junho de 1969, quando uma ronda policial em um ponto de encontro de gays, o Sionewall Inn, um bar localizado em uma das ruas do bairro Greenwich Village, em Manhattan, Nova York, provocou não a obediência intimidada dos seus frequentadores, como o usual, mas a fúria e a indignação incomuns. Na época, eram bastante frequentes as batidas policiais em bares gays para prender travestis e molestar os fregueses. O que fez com que essa operação policial fosse fora do comum foi a forma como os donos e fregueses do Stonewall Inn espontaneamente revidaram à agressão, lançando latas de cerveja, tijolos e qualquer coisa

era

ao alcance contra os policiais que, por sua vez, responderam com golpes de cassetete e prisão de dezenas de pessoas. Mais protestos se seguiram após esse episódio, marcando uma mudança cultural radical numa época em que as pessoas não queriam ser publicamente identificadas como homossexuais. [71

Dessa forma nasceu o forte Movimento de Liberação Gay (The Gay Liberation Front), que conquistou direitos considerados, até então, meras utopias. O lema central de suas lutas passou a ser: homossexualidade é um estilo de vida, um estilo legítimo. O movimento dos homossexuais invadiu os espaços até então reservados para os profissionais da saúde mental e cientistas que elaboravam o DSM-III: não se pode patologizar um estilo de vida, como o modo de ser homossexual! Como justificar cientificamente a homossexualidade como desvio sexual? Como justificar a presença da homossexualidade ainda no DSM entre Os transtornos psiquiátricos?

Em 1968, antes, portanto, dos dias de revolta nas ruas de Greenwich Village, ativistas gays se manifestaram durante a convenção da Associação Médica Americana (AMA), fazendo objeção ao discurso do psicanalista Charles Socarides. Em folhetos distribuídos, pediam à AMA o agendamento de palestrantes da comunidade científica que se opunham à interpretação da homossexualidade como psicopatologia, e a inclusão de representantes do que, na época, era chamada de comunidade homófila. Um protesto semelhante ocorreu no

mesmo ano na Columbia University College of Physicians, contra a palestra de Lawrence Kolb, outro expoente da psiquiatria de então e autor de um dos mais importantes tratados de psiquiatria clínica da época. Segundo as teorias de Charles Socarides e seus seguidores, a homossexualidade seria consequência de uma suposta psicodinâmica patológica do funcionamento psíquico. De acordo com Socarides, “quase metade daqueles que se envolvem em 72

1]

práticas homossexuais têm concomitantemente esquizofrenia, paranoia, esquizofrenia latente ou pseudoneurótica, ou episódios de reação manfaco-depressiva” (apud Bayer, 1987: 35). Socarides se gabava por haver desenvolvido uma cura supostamente bem elaborada, baseada nessas teorias, e afirmava sucesso em mais de 50%dos casos (Bayer, 1987).

A oposição à interpretação da homossexualidade como pstcopatologia vinha acompanhada pela reivindicação de que as pesquisas fossem conduzidas de maneira livre de valor psendocientífico. Foram anos de embates. À comunidade homossexual reivindicava transvertidos em que as pesquisas fossem feitas sem preconceitos uma roupagem científica. E conseguem no próprio meio científico e acadêmico importantes aliados para as suas reivindicações. O movimento então já não mais se denominava como movimento dos homossexuais, mas como movimento dos g2y5s. Uma mera mudança de significante? Não! Com a utilização desse novo termo, seus membros passam a se identificar como pertencentes a uma comunidade com um estilo de vida próprio. Portanto, suas diferenças devem ser aceitas e reconhecidas. Consequentemente, o movimento gay começa a se libertar da armadilha de discutir a causa e a natureza da homossexualidade, passando a insistir em seus direitos como cidadãos; sai da dimensão da medicalização da cultura e entra nas dimensões do social, da moral, da política, foi propriamente dita. O desfecho das lutas da comunidade gay veio a a supressão da homossexualidade do DSM, na edição que público em 1980. Novas epistemologias se abrem com relação ao(s) compottamento(s) homossexual(is), superando a camisa de força imposta À À

[ 73

pela medicalização. Não são nosso objeto de análise essas novas epistemologias. O fundamental para a presente argumentação é que um comportamento social deixa de ser medicalizado. A

Luta

SEQUELAS

PELA DA

INCLUSÃO!

A

MEDICALIZAÇÃO

DAS

GUERRA

Enquanto uns lutam para que essa ou aquela categoria de diagnóstico seja retirada do DSM, outros lutam para incluir uma nova categotia porque acreditam que isso traduz o reconhecimento do sofrimento. À medicalização é uma resposta para o sofrimento, mesmo que muitas vezes seja uma resposta equivocada e com efeitos deletérios. Um dos exemplos mais emblemáticos de luta por inclusão de softimento no DSM foi o caso dos veteranos da Guerra do Vietnã. Eles conseguiram introduzir um novo termo no Manual transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Esse transtorno passou a ser amplamente aceito, e é comum que se chegue a esse diagnóstico e se ouça que alguém sofre de TEPT. Como tal categoria surgiu nos Estados Unidos? Os soldados que retornaram da Guerra do Vietnã durante os anos 1960 consideravam que não estavam recebendo o devido tratamento após haverem lutado pelo país; ao contrário, eram recebidos com severas críticas e acusações por parte dos ativistas antiguerras. Muitos ex-combatentes retornavam padecendo de fortes dificuldades psicológicas, produzidas pelos brutais eventos de guerra nos quais estiveram envolvidos. Como dar conta de tantos sofrimentos? A primeira vez que tal transtorno apareceu como uma categoria de diagnóstico foi no DSM-III, em 1980. Isso foi

71]

resultado do trabalho e da luta de diversas pessoas e grupos de interesse. O processo que culminou com a inclusão do TEPT foi o oposto ao que se passou com a homossexualidade: ao exclusão da categoria de passo que no primeiro a luta foi pela diagnóstico, no segundo, foi pela inclusão.

De forma semelhante ao que havia ocorrido com o movimento da comunidade gay, a luta pelo reconhecimento do TEPT travada por seus defensores foi profundamente política e exibiu toda a sorte de negociação, lances estratégicos, solidariedade, afirmação — tanto internamente, entre as várias profissões, quanto nas ruas. Os veteranos da Guerra do Vietnã e seus aliados lutaram para qualificar o que seriam respostas normais diante das situações traumúticas. Quer dizer, o que outrora era considerado um comportamento inadmissível para um soldado do exército americano — deserções, covardia, medo, pânico etc. — passou a ser interpretado como uma resposta normal, porém patológica, tendo em vista as situações traumatizantes vivenciadas numa guerra. A exemplo do que havia ocorrido com a homossexualidade, era indispensável para o movimento dos veteranos de guerra a aliança com intelectuais do campo da saúde mental. As barbaridades cometidas pelos soldados americanos, acompanhadas por processos psicológicos de entorpecimento psíquico à própria situação e desumanização do inimigo, eram inerentes diem que os soldados estavam inseridos. Os relatos chocantes vulgados pela imprensa ganham uma dimensão sociocultural; a sociedade estadunidense deveria reconhecer em sua própria carne ÃÀo contrário os sofrimentos provocados pelo estresse da guerra. [75

da imagem da invencibilidade, a sociedade dos Estados Unidos passou a se sentir obrigada a reconhecer que os seus soldados não eram máquinas semelhantes a todo esse material tecnológico

e bélico disponível. Eles retornavam à sua pátria como sujeitos

humanos com muito sofrimento. Começam a surgir artigos na imprensa nos quais se propunha a “síndrome pós-Vietnã”. Como reconhecer as sequelas dos cidadãos estadunidenses que voltavam da guerra? Indenizações? Tratamentos médicopsiquiátricos? Reintegração à sociedade sem perder a dignidade? A princípio, o DSM-HI não planejava incluir nada a esse res-

peito. Porém, o que havia ocorrido com a homossexualidade abria espaço para novas mudanças, a partir das pressões promovidas pelos movimentos populares; e a problemática da Guerra do Vietnã estava na ordem do dia para a sociedade estadunidense. Vários eventos passaram a ser organizados. Como a famosa maratona de um dia em uma estação de rádio, com grande audiência em Nova York, reunindo entre outros, psiquiatras como Shatan e Lifton, e veteranos de guerra e seus familiares que relataram suas experiências. Sob pressão, a APA, representada por Robert Spitzer, criou o Comitê Social sobre Transtornos Reativos. E, finalmente, em 1978, foi reconhecido o transtorno de estresse pós-traurnmático.

Mais uma vez contamos com elementos da rotina política de construção do diagnóstico e da doença vindos à luz do dia.

O TEPT está no DSM-II porque um núcleo de psiquiatras e representantes do movimento popular (veteranos de guerra) trabalhou por anos, consciente e deliberadamente, para colocar esse diagnóstico no Manual. 76

]

O

M1iTo

Químico

CieNnTÍFICO E

Suas

DO

DESEQUILÍBRIO

DOENÇAS

Desde a segunda metade do século XX, milhões de pessoas no mundo inteiro passaram a utilizar medicamentos psiquiátricos para uma lista crescente de problemas. Vimos nos capítulos anteriores como essa lista de problemas — classificados como psiquiátricos — vem crescendo exponencialmente a cada nova edição do DSM. Com essa sólida aliança entre a medicina mental e a indústria farmacêutica, o que historicamente era um processo de construção social da doença foi substituído pela construção corporativa da doença. Em outras palavras, a doença passou a ser resultante dos interesses corporativos da medicina mental e da indústria farmacêutica. A estratégia mercadológica dessa aliança, que tem dado certo até hoje, é a de transformar formas de pensar, sentir e agir em fenômenos com causalidade biológica particularmente originados no cérebro. À ideia motriz é que a esquizofrenia, a depressão ou a ansiedade são doenças do cérebro. Seu fantástico êxito mercadológico, por sua vez, tem levado a estender essa lógica a tudo o que possa ser reduzido à sua noção de transtorno mental. Essa ideia está baseada na teoria de que enfermidades mentais são resultado de desequilíbrio químico no cérebro e, consequentemente, faz com que a terapêutica seja vista como a forma de possibilitar o reajuste do equilíbrio químico, o que de [77

fato aconteceria apenas por meio da prescrição de antipsicóticos, antidepressivos e ansiolíticos. Prescrição essa que é feita por psiquiatras, evidentemente; mas também por qualquer médico, seja ele profissional da atenção primária, seja cardiologista, geriatra, dermatologista, ortopedista, oftalmologista, pediatra e assim por diante. Como

o

CÉREBRO

FUNCIONA

Para melhor entendermos em que se baseia a teoria do desequilíbrio químico do cérebro, façamos um voo panorâmico sobre os aspectos básicos do funcionamento cerebral. Quando nos deparamos com um cérebro humano, numa aula de anatomia, ou mestno em sua representação por imagens, não há como deixar de se sentir intrigado com o enigma que se encontra ali diante dos nossos olhos. Como algo, é

que incontestavelmente biológico, pode ser o suporte físico para tamanha complexidade, tal como é a psique humana!? O cérebro humano é constituído por aproximadamente cem bilhões de células nervosas que chamamos de neurônios. O neurônio se assemelha muito a um fio elétrico, com muitas ramificações — dendritos. À analogia com um fio elétrico não é apenas visual, porque os neurônios igualmente transmitem impulsos elétricos. Ou seja, impulsos elétricos atravessam o

corpo de um neurônio de uma ponta a outra. Cada impulso alcança a extremidade de uma ramificação, e assim estimula o próximo neurônio, determinando se ele irá ou não disparar o impulso. O corpo celular de um neurônio ico recebe um estímulo de uma vasta rede de dendritos e envia um sinal através de um único 78

|

o

axônio, que é responsável por projetar esse sinal a uma área distante do cérebro (ou para baixo da medula espinhal). Um detalhe muitíssimo importante: os neurônios não se tocam de fato. Há lacunas cheias de líquido chamadas sinapses, que ficam entre a extremidade de um neurônio e o começo do

outro. Um único neurônio faz entre mil e dez mil conexões sinápticas, o que nos permite estimar que, no cérebro de um adulto, existam cerca de 150 trilhões de sinapses. Se entre os neurônios há essas lacunas, como se dá a transmissão dos impulsos nervosos de um neurônio para outro? Ora, os impulsos elétricos não são suficientemente fortes para atravessar essas lacunas. Com efeito, como pode ocorrer a transmissão nervosa? Isso é possível por meio de substâncias químicas chamadas de neurotransmissores, que são fabricados pelos neurônios e que transferem informação através das lacunas entre eles (as sinapses). Três neurotransmissores têm sido supostamente qualificados como os mais importantes envolvidos nos transtornos mentais: a serotonina, a dopamina e a noradrenalina. Apesar de haver outros, acredita-se que sejam esses os que podem explicar os efeitos dos desequilíbrios químicos na causalidade dos transtornos mentais — muito especialmente a esquizofrenia, os transtornos de ansiedade e os transtornos depressivos.

Em que se baseia a hipótese do desequilíbrio químico?

Após as moléculas neurotransmissoras terem influenciado chamado o disparo de um neurônio receptor (tecnicamente de neurônio pós-sináptico), algumas delas são destruídas pelas enzimas na sinapse; algumas outras são teabsorvidas

[79

pelo neurônio pré-sináptico emissor, em um processo que é chamado de recaptação; e o resto permanece no espaço entre os dois neurônios. A hipótese do desequilíbrio químico está relacionada com quantidades alteradas de serotonina, noradrenalina e/ou dopamina nas sinapses do cérebro. À complexidade da psique humana e suas formas de prazer e de sofrimento são resumidas a esse simples mecanismo de doença. Na depressão, o problema é que haveria pouca serotonina nas lacunas sinápticas, e as vias serotonérgicas no cérebro estão hipoativas. Supõe-se que os antidepressivos normalizem os níveis de serotonina nas lacunas sinápticas e, assim, permitem que as vias transmitam as mensagens em um ritmo adequado. Por sua vez, as alucinações e as vozes que caracterizam a esquizofrenia resultam de vias dopaminérgicas hiperativas. Em outras palavras, ou os neurônios pré-sinápticos bombeiam muita dopamina na sinapse, ou os neurônios-alvo têm uma anormal alta densidade de receptores de dopamina; em relação aos antipsicóticos, supõese que colocam um freio nesse sistema e assim permitem que

as vias dopaminérgicas passem a funcionar de uma maneira mais normal. O termo antipsicótico a ser adotado

passou pela indústria farmacêutica como uma estratégia de markelino, na medida em o termo original, neuroléptico, não transmitia a promessa de ser um medicamento antipsicoses, da mesma forma como era esperado dos anúbióticos, que combatem infecções, ou os antipiréticos, utilizados para combater a febre. Neste sentido, a partir de agora, o termo antipsicótico será utilizado sempre entre aspas para marcar essa importante ressalva. 8o ]

A

Invenção

DA

TeorIA

DO

DESEQUILÍBRIO

QuímICO

Quando começaram a ser empregados na década de 1950, muito pouco se conhecia a respeito de efeitos dos psicotrópicos no cérebro. À teoria do desequilíbrio da dopamina veio após o início da constatação de que um dos efeitos dos psicotrópicos era justamente o de bloquear O sistema dopaminérgico. A psiquiatria biológica deu um salto lógico, partindo das seguintes proposições: *

Se as drogas psicotrópicas curam a esquizofrenia (pre-

missa maior); *

*

E se elas também bloqueiam o sistema dopaminérgico (premissa menor); À causa da esquizofrenia é a hiperatividade do sistema dopaminérgico (conclusão).

Ora, isso é tão lógico quanto se dizer que as dores de cabeça são causadas pela falta de aspirina no corpo. Vários mitos passaram a ser construídos com a lógica baseada nas premissas da teoria biológica para as doenças mentais.

Em 1966, o neurocientista Steve Hyman, que foi diretor do National Institute of Mental Health (NTMH) de 1996 até 2001, publicou um artigo no American Journal of Psychiatry (Hyman, 1996) que sintetiza tudo o que ele havia aprendido a respeito das drogas psiquiátricas. Os “antipsicóticos”, os antidepressivos e as demais drogas psiquiátricas funcionam criando perturbações nas funções dos neurotransmissores. A pessoa submetida à medicação psiquiátrica passa a ter o seu cérebro funcionando anormalmente. [ 81

As

PsscoSES

E

OS

"AnTIPSICÓTICOS"

Com a introdução do Thorazineº na medicina asilar em 1955, nos Estados Unidos, foi iniciada uma revolução na psiquiatria, que é comparável à introdução da penicilina na medicina em geral, que virou um senso comum, O que foi dito pelos primeiros psiquiatras a experimentar a clorpromazina (Thorazine?) em sujeitos humanos? Os sujeitos passavam a manifestar os seguintes fenômenos: aparente indiferença ou demora na resposta aos estímulos externos, neutralidade emocional e afetiva, declínio tanto da iniciativa quanto da preocupação. Há duas observações muito importantes. À primeira é que a medicação não produzia alteração da consciência ou das faculdades intelectuais, o que não ocorria com os métodos tradicionais de tratamento, como o eletrochoque ou o coma insulínico, por exemplo. À segunda, relevante para a futura compreensão dos resultados a curto, médio e longo prazos, é que os melhores efeitos da clorpromazina eram encontrados nos estados de excitação, agitação e estados confusionais muito mais do que nas pessoas com esquizofrenia crônica. O

paradigma da ação dos "antipsicóticos"

Retomemos o artigo escrito por Stephen Hyman em 1966. De forma esquemática, os principais componentes do paradigma da ação dos “antipsicóticos” são: *

asmnedicações psicotrópicas “criam perturbações nas funções

dos neurotransmissores”;

82 ]

em resposta, o cérebro promove séries de adaptações compensatórias a fim “de manter o seu equilíbrio frente às alterações no ambiente ou mudanças no meio interno”;

*

a“administração crônica” das drogas então causa “alterações substanciais a longo prazo na função neural”; * após algumas semanas, o cérebro passa a funcionar de maneira do que é “qualitativa assim como quantitativamente diferente estado normal” (Hyman, 1996: 151-161, tradução nossa). Há evidências científicas de que os resultados laboratoriais e clínicos são bastante distintos, tomando como referência o uso de *

“antipsicóticos” a curto e longo prazos. Evidências laboratoriais: * a curto prazo (em média, seis semanas), as drogas reduzem os sintornas-alvo de um transtorno melhor do que placebos; *

o que nos leva a considerar que, se um sujeito em surto psicótico apresenta melhoras quando faz uso de medicação antipsicótica, ele deve continuar a ser tratado com aquilo que lhe fez bem;

*

o que parece ser confirmado: a longo prazo, existem evidências clínicas e laboratoriais de que quem deixa de tomar as drogas têm recaída em níveis mais elevados que aqueles que mantêm o uso.

Por sua vez, na perspectiva clínica, observa-se que as drogas com frequência produzem melhorias a curto prazo e abandonam que os pacientes não raras vezes recaem quando O tratamento medicamentoso. Isso corresponde ao que é constatado nas investigações dos laboratórios farmacêuticos, quando submetem seus produtos à aprovação dos órgãos de [83

controle dos medicamentos. Em geral, há indícios de que os “antipsicóticos” agem a curto prazo e que a interrupção do seu tratamento leva a recaídas, em geral piores que as iniciais. Desde Kraepelin e Bleuler, as psicoses, em geral, são supostamente incuráveis. Se os “antipsicóticos” são o trata mento adequado para agir no biológico do cérebro, deixar de fazer uso de tais drogas é criar as condições para que os seus sintomas reapareçam: essa é a crença. Supõe-se que, se um deixar de esquizofrênico tomar a sua medicação, a sua doença se manifestará de forma cada vez mais grave. O que está em jogo nessa crença? Primeiramente, não há evidências de que os medicamentos melhorem os indivíduos a longo prazo. Isso sugere que os “antipsicóticos” não curam as psicoses — em especial a própria esquizofrenia.

Em segundo lugar, estudos sobre recaída evidenciam fiscos associados aos efeitos do abandono das drogas. Contudo, nessas pesquisas não se comparam indivíduos psicóticos que passaram a fazer uso de “antipsicóticos” com o grupo de indivíduos cujo curso natural do seu transtorno foi OS

acompanhado sem uso de “antipsicóticos”. Eis aí uma diferença de metodologia de pesquisa que costuma ser negligenciada grosseiramente! Pela lógica da própria ciência esse problema metodológico deve suscitar questões importantes. Nesse Caso, o tisco sublinhado de recaída pode ser consequência justamente da alteração que o cérebro sofreu causa da exposição à

por

própria droga supostamente terapêutica. 84 ]

Em terceiro lugar, é preciso diferenciar a percepção do clínico dos resultados encontrados nas investigações dos laboratórios farmacêuticos. Isso porque o profissional médico, ao prescrever o medicamento recomendado pelo laboratório, não tem a oportunidade de saber como seria o curso dos transtornos mentais que ele está tratando sem o uso do medicamento. As percepções clínicas do médico sobre a eficácia das drogas não estão embasadas numa perspectiva de longo prazo, mas os laboratórios sugerem o consumo da droga por toda a vida.

Questões que não podemos negligenciar: * O que acontece com quem não tomou medicação antipsicótica? * *

Será que a sua doença é de fato incurável?

O fato de alguém ter episódios diagnosticados como psicóticos faz com que ele seja um esquizofrênico para o resto de sua vida?

Para tentar responder essas questões, é preciso antes de tudo conhecer as formas como esses casos eram conduzidos na época em que não existiam os “antipsicóticos”, para constrastar com a hipótese, hoje dominante, de serem eles a única maneira possível de lidar com a esquizofrenia. Diante disso, começaram a ser feitas investigações que acompanhavam o paciente por um longo período (estudos conhecidos como follow-np), comparando-se os que eram tratados com medição antipsicótica com os que não eram. Ào investigar as formas de tratamento que havia antes dos “antipsicóticos”, constatou-se que pacientes tratados com métodos psicossociais, [ 85

mesmo nos casos de internação, tinham melhor recuperação, como veremos adiante. Resultados como esses desconstroem um dos mitos criados em torno da chamada revolução psicofarmacológica iniciada nos anos 1950. Acreditava-se que tinha sido graças aos “antipsicóticos” que a desospitalização passou a ser possível. O que nos perguntamos é por que as abordagens psicossociais e suas evidências não são exploradas. O

primeiro estudo foljllow-up:

a

eficácia

do

placebo

Para avaliar a eficácia dos “antipsicóticos”, em 1967, portanto quase uma década após a administração da clorpromazina, foi realizado o primeiro estudo de follow-up, feito pelo próprio NIMH, que tinha como foco a avaliação da ação da droga a curto prazo em psicoses esquizofrênicas agudas. A pesquisa, que acompanhou um grupo de 299 pacientes psiquiátricos com alta (após serem tratados com “antipsicóticos”), avaliou o ajustamento do paciente na comunidade, os vários aspectos da história pré-mórbida e o seu ajuste comunitário subsequente.

Resultados: os pacientes que haviam recebido tratamento placebo no estudo da droga tinham menos probabilidade de serem reospitalizados do que aqueles que haviam recebido um dos três “antipsicóticos” prescritos (Schooler, 1967). A

recaída

com à

interrupção

do

tratamento

medi camentoso

Os médicos passaram a enfrentar o problema de ter que justificar a necessidade de submeter por um longo período 86

1]

os pacientes ao tratamento com “antipsicóticos”. À ingestão dessas drogas trazia desvantagens para os pacientes, tanto físicas

quanto econômicas. Eram relatadas mudanças óculo-cutâneas, discinesias (certos movimentos involuntários do corpo) persistentes e mortes súbitas, o que chamava a atenção para os potenciais perigos do uso prolongado da medicação antipsicótica imposta aos pacientes. Porém, apesar dos graves problemas que eram provocados pelo uso da medicação por um longo prazo (mais do que seis semanas), a descontinuidade do tratamento era acompanhada pela recorrência do comportamento psicótico agudo. Por um lado, eram evidentes as desvantagens físicas e econômicas acarretadas pelo uso prolongado; por outro, a interrupção abrupta da medicação vinha acompanhada por quadros de psicose aguda que até então parecia estar sob controle. Não eram ocorrência de elevadas poucos os investigadores que relataram a taxas de recaída, com a interrupção da medicação, mas também do apareciam investigadores afirmando pequena deterioração estado clínico dos pacientes. A exemplo da investigação patrocinada pelo NIMH, nesse período da segunda metade da década de 1960 o mesmo instituto deu suporte a outra investigação. O que acontece com os sujeitos Sete hospitais quando interrompem a sua medicação antipsicótica? psiquiátricos públicos participaram desse estudo, publicado 120 em 1969 (Prien, Cole & Belkin, 1969). Aproximadamente metade de esquizofrênicos crônicos, metade de homens e mulheres, foram selecionados em cada um dos hospitais. Entre os diversos resultados, observa-se que quanto maior a dose que se E

87

toma antes da interrupção do tratamento medicamentoso maior será a probabilidade de recaída, que tem como características o fetorno das alucinações, delírios e estados confusionais, ou de sintomas perturbadores, tais como extrema hostilidade, excitações e comportamento ameaçador ou destrutivo. Em suma: a probabilidade de recaída parece ser elevada demais para que se recomende a retirada da droga aos pacientes que receberam doses moderadas ou altas.

Tratamento da crise sem drogas Com relação ao tratamento com drogas, um gigantesco impasse começa a aparecer no cenário da assistência psiquiátrica. Por um lado, as boas razões: o tratamento psicofarmacológico de pacientes esquizofrênicos demonstrava ser uma política eficaz para a redução imediata de sintomas psicóticos, para aliviar a angústia dos pacientes, permitir a desospitalização e

a sua permanência na comunidade; tal tratamento dava uma base racional e efetiva com a qual o médico tinha a impressão de poder induzir as mudanças desejadas em seu paciente no contexto do modelo médico. Por outro lado, eram muitos os problemas criados pela própria terapêutica psicofarmacológica. Frequentemente se passou a reconhecer o aparecimento de efeitos colaterais nocivos do tratamento dos esquizofrênicos

com neutrolépticos, como alterações anatômicas desagradáveis, estranhas alergias e discinesias tardias. Entretanto, com o tempo passando, após a euforia inicial motivada pelos resultados imediatos da medicação, passou-se a vetificar também a relação entre o tratamento medicamentoso 88 ]

e a indução ou reforço dos chamados sintomas negativos (por exemplo: isolamento social, depressão pós-psicótica e

síndromes de perda motivacional). À atenção se volta, então, sobre para os possíveis efeitos do uso das drogas a longo prazo a modulação afetiva, a comunicação, a percepção ou outras funções do sistema nervoso central, assim como para os efeitos colaterais secundários, como o impacto no desenvolvimento de uma criança nos casos em que a sua mãe está sendo submetida uma medicação pesada por um longo período. O que acontece quando pacientes na fase aguda da esquizofrenia não são tratados com neurolépticos? Tomemos como referência para a nossa análise uma investigação realizada com pacientes em fase de crise psicótica, com ênfase 2a

no tratamento psicossocial e forte limitação do emprego de drogas (Carpenter ef al, 1977). Essa pesquisa examinou o rumo da esquizofrenia aguda de 49 pacientes do programa do NIMH que estavam em tratamento de natureza psicossocial preferencialmente sem uso de qualquer neuroléptico, de outro comparando-o com os rumos tomados pot 73 pacientes usual. Foi feito um estudo de grupo que receberam tratamento do NIMH e follow-up de um ano para os pacientes do programa de dois anos para os pacientes do tratamento convencional. Os resultados mostraram que o grupo de pacientes tratados melhora de sua pelo programa experimental do NIMH teve uma saúde superior ao grupo de pacientes tratados com terapêuticas de base medicamentosa. Em outras palavras, como os próprios autores afirmam, não apenas é possível que a crise psicótica seja

tratada com abordagem psicossocial sem medicação, [ 89

mas os resultados a longo prazo são superiores aos obtidos com pacientes que durante a sua crise foram tratados com neurolépticos. Concluindo: “De forma bastante inesperada, esses dados sugerem que as drogas psicotrópicas podem não ser indispensáveis. O seu uso estendido na atenção extra-hospitalar pode prolongar a dependência social de muitos pacientes com alta” (Carpenter et a/, 1997: 801, tradução nossa). Outra investigação merece a nossa atenção. Será que existem esquizofrênicos para os quais as drogas sejam desnecessárias ou contraindicadas? Esse é o principal questionamento norteador da investigação de Rappaport e colaboradores (1978), que iremos detalhar a seguir. Os resultados dessa pesquisa foram divididos em quatro grupos de acordo com medicação prescrita aleaoriamente, e os pacientes foram separados segundo os momentos em que foram observados, durante a hospitalização ou por três anos após a alta. Os pacientes do grupo que durante a hospitalização haviam recebido placebo e que durante os três não foram anos tratados com medicação antipsicótica tiveram tesultados significativamente melhores que os demais. Tratase de um grupo que apresentou a mais elevada melhora clínica e menos patologia durante o follow-sp, pacientes com menos

teospitalização e menos dificuldades na reinserção e reintegração social, se comparado a outros grupos. Um

follow-up de vinte anos

Harrow e Thomas (2013) levaram a cabo um estudo de follow-up durante vinte anos, com características absolutamente inovadoras na literatura científica até então. Duas questões orientaram esse 90 ]

estudo: será que todos os pacientes com esquizofrenia necessitam de tratamento contínuo com “antipsicóticos” ao longo das suas vidas? O uso por longo tempo de “antipsicóticos” para pacientes À com esquizofrenia reduz ou elimina os sintomas psicóticos? grande diferença desse estudo de follow-up para os inúmeros três outros já feitos é que ele irá acompanhar durante vinte anos subgrupos de pacientes diagnosticados como esquizofrênicos (seguindo rigorosamente os mesmos critérios): um subgrupo de pacientes esquizofrênicos que fizeram uso contínuo de “antipsicóticos”, o outro de pessoas que fizeram uso intermitente de “antipsicóticos”, e finalmente o terceiro subgrupo formando

por sujeitos diagnosticados como esquizofrênicos que nunca

fizeram uso de “antipsicóticos”. À idade média dos pacientes de quando receberam o diagnóstico de esquizofrenia era 23 anos. Às variáveis investigadas foram rigorosamente as mesmas durante o estudo de acompanhamento, quer dizer, no 2º, 4,5º, 7,5º, 10º, 15º e 20º anos. O resultado desse estudo é surpreendente: ao longo dos vinte anos, o subgrupo de pacientes que não tomaram “antipsicóticos “ou outras medicações psiquiátricas apresentou resultados de recuperação significativamente melhores que outras aqueles que tomaram “antipsicóticos” com ou sem drogas psiquiátricas. Para sermos mais precisos: no 4,5º ano, 86% dos que estavam tomando “antipsicóticos” e/ou outras drogas psiquiátricas apresentaram atividade psicótica, ao passo no 10º que apenas 23% dos sem medicação a apresentaram, finalmente, ano, 79%versus 8%; no 15º ano, 71%versus 8%; e, no 20º ano, 68%versus 8%. [91

Em termos de reospitalização, a diferença é igualmente enorme:

no 4,5º ano, 54%dos que estavam tomando “antipsicóticos” e/ ou outras drogas psiquiátricas voltaram para o hospital, contra 13% dos que não tomaram qualquer medicação; no 10º ano, 57% daqueles com medicação versus 0%dos que não tomaram qualquer medicação psiquiátrica; no 15º ano, 43%contra 0%; e, finalmente, no estudo feito no 20º ano, 50%versus 18%, Os

AnTIDEPRESSIVOS

E

OS

ANSIOLÍTICOS

A exemplo das psicoses, estamos acostumados com a ideia de que a depressão é uma doença do cérebro, um desequilíbrio químico que pode ser ajustado com uma medicação antidepressiva. Em nosso cotidiano, propagandas comerciais reforçam tal ideia e a transformam em uma verdade-mestre. Como aquela em que há a imagem de pequenos comprimidos associada com a de uma pessoa em uma sala escura incapaz de participar da festa, ou incapaz de desfrutar de um belo dia. E, então, uma voz ao fundo suavemente afirma que ali há esperança. “Que a depressão que você sofre é o resultado de desequilíbrios químicos no cérebro e, se você corrigir a química no seu cérebro, você irá se sentir melhor. Fácil! É só tomar a iniciativa: procure o seu médico”. A

epidemia da depressão Os

números disponíveis evidenciam a epidemia da medicalização da tristeza em nossa sociedade. Em 2002, 11% das mulheres e cerca de 5%dos homens, nos Estados Unidos, tomavam antidepressivos. Em 2007, os antidepressivos passaram 92

]

a ser as drogas mais frequentemente prescritas, superando os medicamentos para a pressão alta. Dados recentes vindos do

Reino Unido são alarmantes: as prescrições de antidepressivos aumentaram 9,6%em 2011, chegando a 46 milhões. Os dados

do consumo de antidepressivos aqui no Brasil são pouco conhecidos, porém, muito provavelmente, nesse aspecto o país não foge aos padrões dos chamados países desenvolvidos, como os Estados Unidos e Reino Unido. Apesar das críticas feitas aos níveis de prescrição de antidepressivos e das diretrizes recomendando que seu uso seja restrito às pessoas em graves condições, a ideia de que uma droga antidepressiva possa reverter a depressão ainda não foi seriamente desafiada. É preciso também se observar que a própria experiência da depressão não é em si patológica, embora atualmente essa relação seja constantemente estabelecida nessa aliança da psiquiatria com a indústria farmacêutica. E o que é da maior importância: os antidepressivos não são mais um assunto exclusivo da competência dos psiquiatras. Diferentes estudos nacionais e internacionais mostram que os médicos na atenção primária, com grande frequência, são os afinal de contas, qualquer que mais prescrevem antidepressivos; médico está habilitado a receitar antidepressivos. A ideia que circula entre nós é que os antidepressivos têm o poder para mudar os nossos estados de humor e que de serotonina e conseguem isso porque afetam a quantidade noradrenalina no cérebro. Um fenômeno que não pode escapar da nossa atenção é que os antidepressivos têm sido usados [ 93

não apenas para a depressão (leve ou grave), mas também para tratar de dor crônica, ansiedade, o chamado transtorno do pânico ou ainda o transtorno obsessivo-compulsivo e até mesmo transtornos alimentares. A

descoberta dos antidepressivos

O primeiro antidepressivo da era contemporânea foi uma droga chamada de iproniazida, produzida em 1951. Foi dos restos de combustível de foguete alemão que a companhia farmacêutica Hoffman-La Roche desenvolveu essa droga que inicialmente começou a ser usada para o tratamento da tuberculose (Healy, 1997). À surpresa: além de curar lesões da tuberculose, os relatos iniciais sugeriam que o comportamento geral daqueles que tomavam a iproniazida parecia ser favoravelmente afetado, com

o aumento da sensação de vitalidade e de bem-estar. À primeira avaliação clínica do uso desse medicamento foi se tratava de

que um energelizante psíquico, em pacientes psiquiátricos que eram não tuberculosos, alguns deles sofrendo de depressão. Começou, assim, a ser construída a crença que antidepressivos podem curar a depressão quimicamente. Irving Kirsch teve acesso aos dados escondidos das pesquisas que os grandes laboratórios farmacêuticos realizaram para testar os antidepressivos e ter a aprovação para a sua comercialização (Kirsch, 2010). Esse acesso foi conseguido mediante o Freedom of Information Act (Foia), lei americana que garante às "pessoas o acesso a informações do governo. A partir de suas análises, o autor percebeu que a grande maioria dos efeitos dos antidepressivos eram efeitos placebo, o que desafia a visão 94 ]

dominante acerca da depressão. Com esse e outros dados, o autor descontrói inteiramente a teoria do desequilíbrio químico. O que Kirsch demonstrou é que os efeitos químicos das drogas antidepressivas podem ser pequenos ou ainda não existentes. Porém, esses medicamentos produzem, sim, um poderoso efeito placebo — algo da maior relevância. Foram realizados vários estudos de meta-análise, e analisadas 38 pesquisas clínicas envolvendo mais de três mil pacientes deprimidos. O autor observou a melhora média durante o período do estudo em cada um dos quatro tipos de grupos — droga, placebo, psicoterapia e não tratamento — e percebeu uma substancial melhora nos grupos de droga e psicoterapia. As pessoas melhoraram quando receberam uma dessas duas formas de tratamento, e a diferença entre os dois grupos não foi significativa. As pessoas também melhoraram quando receberam placebos, e aqui também a melhora foi notavelmente grande, embora não tão grande quanto a melhora alcançada com as drogas ou a psicoterapia. Em contraste, os pacientes que não tiveram qualquer tipo de tratamento mostraram relativamente pouca melhora. A primeira coisa a ser observada nos achados de Kirsch é a diferença na melhora entre pacientes que receberam placebos e pacientes sem qualquer tipo de tratamento. A redução na depressão que as pessoas experimentaram foi não apenas causada pela passagem do tempo, pelo curso natural da depressão ou por algum dos outros fatores que podem produzir uma melhoria nas efeito placebo, pessoas não tratadas, mas foi rigorosamente pelo muito poderoso. À medida que uma ideia é aceita, ela produz efeitos concretos. [ 95

De imediato o que se pode apreender desses dados é que não fazer nada não é a melhor maneira de responder à depressão. Pode haver alguma melhoria que esteja associada com a simples passagem do tempo, mas comparado com a falta de intervenção, O tratamento — ainda que seja apenas tratamento placebo — fornece um benefício substancial. De que o efeito placebo é poderoso não há dúvida. O que surpreendeu a Kirsch foi a pequena diferença entre a resposta à droga e a resposta ao placebo. Essa diferença é o que se chama efeito droga. O relativamente pequeno efeito droga, como chama o pesquisador, foi o primeiro de uma série de surpresas que os dados dos antidepressivos analisados revelaram. Um dos meios para se entender o efeito da droga é pensar nele como apenas uma parte da melhoria que os pacientes experimentam quando tomam medicação. Uma parte da melhoria deve ser espontânea — isto é, pode ter ocorrido sem qualquer tratamento — e outra pode ser efeito placebo, o que sobra é efeito droga. De acordo com o estudo (Kirsch, 2010), a melhora nos pacientes que receberam placebo foi de cerca 75% da resposta daqueles que receberam a medicação real,

do

o que significa que apenas 25% benefício do tratamento antidepressivo foi realmente em razão do efeito químico da droga. Também significa que 50% melhora foi um efeito

da

placebo. Em outras palavras, o efeito placebo foi duas vezes mais amplo do que o efeito draga. O autor revelou que haviam acessado nesses estudos (Kirsch, 2010) uma quantidade grande de diferentes medicamentos. Assim, é possível que estivessem misturados medicamen96 ]

tos efetivos e outros inoperantes. Se isso realmente tivesse acontecido, os benefícios das drogas efetivas teriam sido subestimados. Diante disso, para se certificar que sua pesquisa estava metologicamente coerente, o autor retornou aos dados e examinou os tipos de drogas que haviam sido administradas em cada uma das pequisas clínicas de meta-análise. E percebeu que em algumas dessas pesquisas haviam sido acessados os antidepressivos tricíclicos, um antigo tipo de medicamento que era o antidepressivo mais comum nas décadas de 1960 e 1970. Em outras, o foco recaiu sobre os inibidores seletivos de captação de serotonina (SSRIs), como Prozac? (fluoxetina), as primeiras drogas da nova geração, que superaram os tricíclicos em quantidade de venda no grupo dos antidepressivos. Havia também outros tipos de antidepressivos investigados nessas pesquisas. Ao reanalisar os dados, examinando o efeito droga e o efeito placebo para cada tipo de medicação separadamente, o autor descobriu que a diversidade das drogas não havia afetado o resultado da análise. Na verdade, os dados eram visivelmente consistentes. Não apenas todas essas drogas produziram o mesmo grau de melhoria na depressão, mas também, em cada da droga. caso, apenas 25% da melhoria era em razão do efeito O resto poderia ser explicado pela passagem do tempo e o efeito placebo. Essa ausência de diferença entre uma classe de antidepressivos é agora um achado frequente na pesquisa sobre esse tipo de medicamento. Os mais novos antidepressivos (SSRÍs), por exemplo, não são mais efetivos que os medicamentos mais antcolaterais são menos gos. À sua vantagem é que os seus efeitos [97

incômodos, e, assim, os pacientes tendem a permanecer com o uso em vez de interrompê-lo. À

consistência

dos

efeitos

dos diferentes tipos de antidepressivos revela que Kirsch (2010) não havia subestimado o efeito droga dos antidepressivos. Contudo, haverá uma surpresa bem maior: alguns dos medicamentos analisados não eram absolutamente antidepressivos, ainda que eles tenham sido avaliados pelos seus efeitos na depressão. Um era um barbitúrico

um depressivo que havia sido usado como auxiliar para o sono, antes de ser substituído pelas drogas menos perigosas; outro era um benzodiazepínico — um sedativo que tem substituído amplamente os barbitúricos mais perigosos; um outro medicamento foi um hormônio sintético da tireoide que foi dado a pacientes deprimidos que não tinham transtorno da tireoide. Embora nenhuma dessas drogas sejam consideradas —

antidepressivos, seus efeitos na depressão eram tão importantes quanto os efeitos dos antidepressivos e significativamente melhores que placebos. . Continuando com o raciocínio feito por Kirsch com base nos dados da meta-análise, a pergunta que obrigatoriamente fazemos é a seguinte: por que as drogas que não são antidepressivos parecem tão eficazes quanto as antidepressivas no tratada mento depressão? Para responder a essa questão há que se responder a outras antes. O que todas essas diversas drogas têm em comum que não compartilham com os placebos inertes? O que os SSRIs têm em comum com os antigos antidepressivos cíclicos, com os outros antidepressivos menos comuns, e mesmo com os tranquilizantes e medicação para a tireoide? 98 ]

O único fator identificado era que todos esses medicamentos produzem efeitos colaterais facilmente observáveis. Placebos também podem produzir efeitos colaterais, mas não com a mesma extensão que os medicamentos ativos. E por que os efeitos colaterais são tão importantes? Não é difícil se entender. Imaginemos que tenhamos sido recrutados para participar de uma pesquisa clínica, tendo, por exemplo, a depressão como objeto de investigação. Ao sermos informados da metodologia, descobrimos que poderemos aleatoriamente estar em um dos subgrupos testados com placebo ou medicação ativa. Para assinarmos o termo de consentimento informado, nos é dito quais são os possíveis efeitos colaterais, como boca seca, tontura, diarreia, náusea, esquecimento, e que tais sintomas podem aparecer no início do tratamento e desaparecer em pouco tempo. Ao tomar o medicamento experimental, a tendência é que nossa atenção esteja voltada para a possível presença desses efeitos. A nossa expectativa é que uma droga ativa deve naturalmente apresentar efeitos mais explícitos e imediatos em nosso corpo, relativamente ao placebo. E se a droga testada é para agir sobre a depressão, os efeitos colaterais são um mal necessário para ganhar um melhor estado a médio e longo prazos. À conclusão a que ativos! chega Kirsch (2010) é que os antidepressivos são Pplacebos Contudo, os antidepressivos não funcionam apenas como de que placebos ativos. Há abundantes evidências científicas

como drogas psicoativas — produzem efeitos colaterais muito significativos na qualidade de vida de seus consumidores, alguns tragicamente devastadores. Essas drogas estão fortemente associadas ao aumento significativo de os antidepressivos



[ 99

suicídios, em particular entre crianças e adolescentes. São pílulas que removem as emoções fortes e fracas, que, de acordo com

alguns pacientes, fazem que queijo dentro de úrma caixa”

se sintám como

“se

fossem um

c

Os pacientes se preocupam menos com as consequências de seus atos, com frequência perdem a empatia para com os outros. E podem se tornar muito agressivos. Por exemplo, nas chacinas em escolas nos Estados Unidos e qualquer outro lugar, é espantoso o número de adolescentes e jovens que usavam antidepressivos. Apesar de serem consideradas pílulas da felicidade, melhor seria se fossem chamadas de Pílulas da infelicidade. De cada dez pessoas que fazem uso de antidepressivos, seis apresentam sérios distúrbios sexuais, apesar de terem uma vida sexual normal antes do início do tratamento com a medicação. Os sintomas incluem perda de libido, retardamento ou inexistência de orgasmo ou ejaculação,

disfunção eréctil. Sem dificuldades pode-se ter uma ideia dos danos produzidos para a vida dos casais em seu cotidiano. Ademais, dificultam em muito as relações interpessoais ao alterarem o modo como seus pacientes reagem emocionalmente

às situações corriqueiras, movidos que estão pela promessa de felicidade artificialmente criada. À promessa de que trazem a felicidade é um mito nefasto sociedade. Os para a

antidepressivos são tão graves para a saúde pública que o médico dinamarquês Peter Gotzsche, pesquisador e líder do Nordic Cochrane Center, instituição especializada em analisar as evidências das pesquisas realizadas no campo da medicina, recomenda que todas essas drogas antidepressivas, a exemplo das drogas psiquiátricas em 100]

geral, sejam retiradas do mercado, pela incapacidade da grande maioria dos médicos de saber lidar com elas (Goatzsche, 2015).

Ansiolíticos, tranquilizantes

ou

hipnóticos

Os historiadores identificaram a presença dos primeiros tranquilizantes há milhares de anos. À começar com os gregos e romanos na Antiguidade, quando era comum os doutores vômito e prescreverem purgantes e laxantes que induziam o a evacuação intestinal. No século XIX, eram prescritos ópio, morfina e outros alcaloides. No começo do século XX, a esses medicamentos, que já faziam parte da tradição dos tratamentos, juntaram-se os sedativos barbitúricos. O primeiro tranquilizante da nossa era foi o meprobamato, cujo nome comercial mais conhecido foi o Miltownº, além de outros três da mesma categoria sedativo-hipnótico. Suas qualidades sedativas e relaxantes fizeram dele um sucesso de vendas, ao se propor tratar a tensão e a ansiedade do dia a dia. Mittownº foi a droga mais comercializada até então nos

Estados Unidos: em 1956 de cada vinte americanos um estava tomando esse tranquilizante. No começo dos anos 1960, os benzodiazepínicos Libriumº? e Valium? foram desenvolvidos,

substituindo rapidamente o Miltownº como as drogas de mais sucesso na história farmacêutica. Seus efeitos eram

qualitativamente similares, porém eram mais potentes. Em 1969, Valiumº passou a ser a medicação mais prescrita nos Estados Unidos. Pesquisas da época indicavam que nada menos que 15 a 25% da população já haviam feito uso de algum tipo de drogas tranquilizantes. Estudos sobre o uso dessas drogas demonstram f101

que apenas cerca de um terço das prescrições eram destinadas a Pessoas com transtornos mentais de fato diagnosticados. À maior parte das prescrições era para pessoas com situações de mal-estar social, de crises naturais da vida. Embora a prescrição desses medicamentos esteja tão incorporada em nossa cultura ocidental que parece já uma prática natural, há um detalhe que não pode passar despercebido: o uso dessas drogas está muito associado às mulheres, que seriam mais propensas a experiências de ansiedade/depressão. De cada três prescrições, duas são feitas para mulheres. Até o termo coloquial para esses medicamentos ficou famoso com a música dos Rolling Stones, “Mothers fitile belper” (em português, “O ajudante da mamãe”), o que revela sua associação com a miséria normal das donas de casa, sugerindo que “embora ela não esteja de fato doente”, “as pílulas ajudam a mamãe a se acalmar, a lidar com o seu cansativo dia, a responder às demandas do marido”, e a “minimizar a sua situação”. Revistas femininas populares nos anos 1960 viam essas drogas como cooperantes na solução de problemas comuns, tais como falta de tesposta sexual, infidelidade, crianças problemáticas ou inabilidade para atrair um homem. Historiadores (Hughes, 1979; Shorter, 1997; Tone, 2009) costumam sinalizar que após esse fantástico crescimento da presença das drogas para ansiedade anos 1950 e 1960, sequências para a saúde da população começaram a evidência nas diversas investigações realizadas. Desde dências empíricas que sugeriam a forma como essas anestesiavam as reações das pessoas para problemas 102 ]

as con-

ganhar as evi-

drogas sociais,

em particular as mulheres — que estavam sendo seus principais consumidores —, até aquelas que chamavam a atenção para o fato de que tais drogas criavam dependência química, produziam efeitos colaterais adversos e tinham inclusive o potencial de causar

overdose.

Diante do volume de evidências acumuladas a respeito dos resultados iatrogênicos produzidos pelo uso massivo dos ansiolíticos, o próprio FDA, em 1980, declarou que a ansiedade ou a tensão associada com o estresse da vida cotidiana não requereria tratamento com ansiolíticos. Os próprios veículos de comunicação de massa começaram a mudar de atitude: as drogas para a ansiedade não eram as pílulas milagrosas como até então vinha sendo propagandeado. O clima cultural passou a ser contrário ao uso de tais medicamentos. Se em 1975 cerca de cem milhões de prescrições haviam sido feitas, em 1980 elas haviam caído para não mais que setenta milhões; e, segundo os dados (Tone, 2009), as suas prescrições continuaram a cair ao longo dos anos 1980. Eis que os ansiolíticos são substituídos pelos antidepressivos. As

evidências empíricas

com

relação aos ansiolíticos

Problemas semelhantes já vistos na revisão da literatura com relação ao uso de “antipsicóticos” e antidepressivos ocorrem com os ansiolíticos, especialmente os benzodiazepínicos. O problema mais grave é com relação à criação da dependência

química produzida com o seu uso contínuo. Por exemplo, já é evidenciado há muito tempo que o Diazepamº tem um alto potencial de criação de dependência química; produz tolerân[103

cia e síndrome de abstinência, isto é, após um período de uso, as pessoas sofrem de grave ansiedade quando deixam de tomar

esse medicamento. Em 1976, é publicado um artigo cujo título “Dependência de Diazepam”) (Maletzky & Klotter, 1976).

é “Addiction to Diazepan” (em português,

As pessoas costumam recorrer aos ansiolíticos porque sofrem de insônia. No começo, o uso de um benzodiazepínico ajuda a pessoa a dormir. O seu usuário tem a experiência de ter um sono tranquilo e profundo. Porém, com o passar do tempo, a dose passa a ser insuficiente, e, para garantir o

sono esperado, o paciente precisa ou aumentá-la ou mudar o medicamento ansiolítico. E quando se interrompe o tratamento medicamentoso, a ansiedade aumenta de modo muitas vezes avassalador; os pacientes frequentemente experimentam sintomas como sensação de asfixia, boca seca, calafrios, pernas moles. Às reações físicas e emocionais dos usuários de ansiolíticos quando deixam de tomar o medicamento são semelhantes às daquelas pessoas viciadas em drogas psicoativas em geral, como ansiedade de rebote, insônia, convulsões, tremores, dores de cabeça, visão turva, zumbido nos ouvidos, extrema sensibilidade ao barulho, sensações que insetos estão atacando, pesadelos, alucinações, extrema depressão e desrealização.

104]

5]

NiInGuéM

Pope

ESCAPAR

A expansão do mercado da psiquiatria e da indústria farmacêutica parece não ter limites, na medida em que são inúmeras as experiências humanas que podem ser convertidas em doenças mentais. Com muita frequência, as drogas são prescritas para usos diferentes daqueles autorizados pelas agências reguladoras. É o que em inglês é chamado de off/abel. O uso de drogas farmacêuticas para uma indicação não aprovada, um grupo etário não aprovado, uma dosagem não aprovada, e ou uma forma de administração não aprovada. Apesar da não aprovação, seu uso não é considerado ilegal, sendo, portanto, prescrito conforme o juízo do médico. O importante é que a aprovação de um medicamento seja baseada em estudo de grupos clínicos estritamente definidos. de Apesar disso, na vida real a maioria das pessoas é usuária drogas psiquiátricas prescritas para uma extensão bastante ampla de enfermidades (a chamada comotrbidade). Por exemplo, comorbidade "antipsicóticos" são prescritos para uma vasta lista de incluindo-se depressão, abuso de substância, transtornos alimentares, transtornos de personalidade, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de estresse pós-traumático e transtornos dissociativos. diagnóstica,

[105

Pessoas

TIposas

Uma parte considerável do aumento da venda de "antipsicóticos" resulta da estratégia da indústria farmacêutica de transformar o envelhecimento em doenças. Distintas pesquisas, publicadas em renomados periódicos científicos, estão de-

monstrando que indiscriminadamente as medicações psiquiátricas vêm sendo usadas em populações idosas. Estima-se que em instituições destinadas a idosos, mais de tomando esteja medicamentos "antipsicóticos" (Colenda 67 ad, 2002). As razões dadas pelos médicos, inclusive psiquiatras, para O seu uso incluem demência, delírio, psicose, agitação e transtornos afetivos.

4

E o que tem sido observado

um acelerado deslocamento dos medicamentos "antipsicóticos" da chamada primeira geração — clorpromazina, haloperidol e loxapina, por exemplo — para os novos medicamentos em moda, os chamados "antipsicóticos" da segunda geração — clozapina, olanzapina, quetiapina e rispetidona, por exemplo. é

O que dizer dos ansiolíticos? São prescritos, sobretudo, para atender às demandas das queixas de insônia. À exemplo dos

tertíveis efeitos colaterais dos "antipsicóticos" em idosos, os benzodiazepínicos (conhecidos como benzos) não são menos danosos. Há pouco tempo a Associação Psiquiátrica Americana (APA) publicou um artigo acerca dos recentes estudos veiculados pela revista British Medical Journal! (BMJ) revelando fortes ligações entre o uso a longo prazo de benzos e o aumento do mal de Alzheimer. Isso porque se tornou habitual o emprego de benzodiazepínicos por meses e anos. 106 ]

O estudo da BMJ verificou que o consumo dos benzos por três meses ou mais esteve associado com o aumento de risco maior for o — acima de 51%— para o Alzheimer e que quanto O recomendável tempo de exposição, maiores serão os riscos. é que seu uso não ultrapasse de quatro a seis semanas. Em 2012, a Associação Americana de Geriatria (AGS) atualizou a sua lista de drogas potencialmente inapropriadas para idosos, incluindo os benzodiazepínicos, precisamente por causa dos seus comprovados efeitos colaterais. Ainda segundo a AGS, os quase 50% dos idosos para os quais se prescreveram tais de drogas sem benzodiazepínicos continuam a fazer uso formal como indique que qualquer sistema de monitoramento estão respondendo a elas. As dificuldades para deixar de fazer uso das pílulas para dormir são enorines, como bem sabemos, e a maioria quando tenta interromper o seu uso é desencorajada

pelos médicos e por farmacêuticos. Os efeitos colaterais em idosos são dramáticos e já bem demonstrados na literatura científica. Por exemplo, mais de 50% das fraturas da bacia em idosos são induzidas por quedas pelo é uso de psicotrópicos. A frequência de problemas neurológicos assustadora. Um deles é a discinesia tardia, que é o mais comum do uso de drogas e sétio efeito adverso, irreversível, decorrente involuntários psiquiátricas, sendo caracterizada por movimentos dos lábios, língua e algumas vezes dos dedos das mãos, pés e 60 anos de idade tronco. Cerca de 40%dos idosos com mais de sofrem de discinesia. que tomam "antipsicóticos", por exemplo, O parkinsonismo é outro problema que pode ser induzido dificulpelo uso de drogas psiquiátricas. Os sintomas envolvem

[107

dade para falar ou engolir; perda de equilíbrio, rosto sem qualquer tipo de expressão, espasmos musculares, rigidez dos braços € das pernas, tremores, movimentos de contorção do corpo. Embora o senso comum pense que o parkinsonismo seja uma doença inevitável da velhice, uma grande proporção dos casos que aparecem em idosos é provocada pelo uso dessas drogas. E o que é ainda mais alarmante, cerca de 36%dos pacientes com parkinsonismo induzido pelas drogas começaram com drogas antiparkinsonianas para tratar a doença. Em outras palavras, como os médicos não costumam considerar a possibilidade de que uma droga por eles prescrita seja responsável pela doença (iatrogenia), preferem dizer que os pacientes sofrem da clássica doença de

Parkinson e tratam o parkinsonismo com outra droga em vez de interromper aquela que é a responsável principal pela doença. Outro efeito adverso conhecido dos benzodiazepínicos é o das pernas inquietas (akatisia): a pessoa não consegue ficar parada, caminha de um lado para outro, ou pode sentir Sraqueza e fadiga muscular. Pode ocorrer também a sedação, visto tais drogas que se são, com frequência, receitadas como pílulas idosos dormir, os para passam a ter uma queda acentuada no nível de funcionamento durante o dia. Uma observação importante: o sono dos que tomam tais medicamentos passa a ser profundamente perturbado. Há ainda os efeitos hipotensivos. a hipotensão postural (ortostática) da a ou queda pressão sanguínea ocorre quando se levanta ou

se senta subitamente, o que aumenta em muito a possibilidade de quedas; não é pouco frequente que o sujeito tenha medo de sair da posição em que se encontra, permanecendo um tempo

enorme sentado ou deitado.

108 ]

CRIANÇAS

E

ADOLESCENTES

Conforme recentes dados epidemiológicos de diferentes a países, como o Brasil, 4/4 das crianças e adolescentes tem experiência de um transtorno mental durante o ano, e !/3 de ao longo da sua infância ou adolescência. Transtornos ansiedade são as condições psiquiátricas mais comuns, seguidos de humor e por transtornos de comportamento, transtornos transtornos por abuso de substância. Para continuar ilustrando a dimensão que vem adquirindo a medicalização da infância e a adolescência, apresentamos mais alguns dados, tomando como referência uma pesquisa relativamente recente de Cooper e colaboradores (2006). Entre 1995 a 2002, ocorreram 5.762.193 consultas aos serviços de saúde mental nos Estados Unidos de crianças e adolescentes com idade entre 2 e 18 anos. Quase 1/3 (32,4%) das prescrições foram feitas por médicos não psiquiatras. Do total das prescrições, 53% foram motivadas por indicações comportamentais ou transtornos foram afetivos, condições para as quais os "antipsicóticos" crianças, prescritos, mesmo que não tenham sido estudados em

como bem lembram os autores (Cooper et a/., 2006). “Você deve tomar esse remédio para ajudá-lo a ficar melhor. dar uma Se você não tomar essa colherada nós teremos que lhe frases como essas que se injeção. O que você prefere?”. É com 5 12 anos concordem em tomar a consegue que crianças entre a número de crianças risperidona. Sob a alegação que um grande estava sendo incorretamente diagnosticado com transtorno de bipolar infantil, o DSM-5 introduziu o transtorno disruptivo mental desregulação do humor (DMDD), um novo transtorno [109

nas crianças, caracterizado pela persistente irritabilidade e graves

e frequentes crises de birra.

Na luta das empresas farmacêuticas para produzir evidências de que a droga deve ser prescrita a esse subgrupo de crianças doentes mentais, O fabricante da risperidona pagou a pesquisadores para testar drogas em um grupo de crianças hospitalizadas por faíva em um hospital de Nova York. Esse estudo não investiga se o tratamento com risperidona tem algum benefício terapêutico para as crianças, isto é, se cura ou trata DMDD ou crises de

A risperidona tem sido testada há muito tempo porque aparentemente apresenta resultados eficazes como forma de contenção química. De forma eloquente, o pesquisador que recebeu o financiamento para fazer o teste da droga, juntamente com seus colaboradores, explica: raiva.

Os objetivos deste estudo piloto foram determinar a aceitabilidade (se a criança tomaria o medicamento líquido quando está com raiva), segurança e eficácia da Risperidona líquida em explosões de raiva em geral, e em crianças com grave desregulação do humor e/ou possível transtorno bipolar em particular, e compará-la ao tratamento usual (isolamento e contenção) em termos de tempo para controle comportamental e de necessidade de uma segunda intervenção. (Carlson ef a/., 2010)

Então, quem eram as crianças submetidas ao experimento? Eram 23 crianças internadas por explosões de raíva, que tiveram três ou mais explosões durante a internação. Os dados demográficos do estudo mostram que viviam longe de seus pais, em educação com graves dificuldades de linguagem expressiva, vítimas de violência doméstica. O maior fator comum entre essas especial,

110]

crianças não eram suas experiências de vida ou estado cognitivo, mas o fato de que 21 dos 23 tomavam "antipsicóticos" atípicos em uma base diária, antes e durante a internação. PoPuLAÇÃo

CARCERÁRIA

Como consequência do uso offlabel, estão surgindo sempre novos subgrupos de pacientes tratados com drogas psiquiátricas. Isso acontece com a população carcerária, que cada vez mais é tratada com esses medicamentos, muito particularmente com os "antipsicóticos". Não tivemos acesso aos dados empíricos no Brasil, mas, de acordo com informações de profissionais que atuam em instituições prisionais, é elevadíssimo o seu uso nas cadeias para a contenção (química) dos presos. A taxa média de mulheres presas no sistema penitenciário do

Canadá que recebem medicação psiquiátrica saltou de 42%em 2001 para mais de 60%em 2012, com algumas regiões que prescrevem remédios psiquiátricos a uma taxa de até 75%, de acordo com uma investigação conjunta da imprensa canadense e da Canadian Broadcasting Corporation. Antigos presos e seus advogados têm reclamado durante anos sobre a excessiva medicação psiquiátrica dos reclusos. Por exemplo, o uso do Seroquel?, um poderoso "antipsicótico", é rotineiramente prescrito como sonífero para mulheres presas

(The Canadian Press, 2014).

[111

A

DesmenICALIZAÇÃo

E

Possível:

EXPERIÊNCIAS

A

EXPERIÊNCIA

DE

SOTERIA

É bem provável que a experiência de Soteria tenha sido a tentativa mais radical de se tratar a esquizofrenia na segunda metade do século XX. Isso pode causar estranheza de a quem se acostumou a considerar o projeto basagliano desinstitucionalização como o modelo mais drástico e que do modelo agora toma conhecimento, pela primeira vez, Soteria. Como poderemos constatar, tal experiência tem vários fatores semelhantes às experiências italianas de reforma. Há, muito no entanto, uma característica que por certo a diferencia das de Gorizia e de Trieste. O que de principal existe em comum refere-se ao atendimento fora do espaço asilar e ao

.

método aplicado. afirmava incessantemente, como procedimento mental entre metodológico, que se deveria colocar a doença parênteses. Soteria terá uma forte identidade com essa postura Soteria metodológica basagliana. Com efeito, a perspectiva de tomava como ponto de partida a noção de que a psicose deveria ser lidada frente a frente — sem os usuais impedimentos de crença e externos da teoria, instituições artificiais, sistemas práticas inculcados como condição para o pertencimento em Basaglia

corporações profissionais. [113

Entretanto, o que viria a fazer a grande diferença, a partir da década de 1970, é a negação, tanto na teoria como na prática, do papel desempenhado pelos medicamentos “antipsicóticos”.

caso,

o modelo Soteria sempre considerou que a alteração química da consciência pela via das drogas constituía-se uma barreira, quase que intransponível, para se ter acesso à experiência No

psicótica como tal, bem como para a exploração dos recursos disponíveis para a sustentação do sujeito e de sua rede social no processo de recuperação da experiência de crise aguda vivida. Assim, Soteria se recusava a oferecer soluções imediatas à que passaram a ser garantidas pelo tratamento psicofarmacológico, com seus resultados obtidos em prazo tão curto. Além das determinações socioeconômicas e culturais que levavam um sujeito a padecer de uma crise psicótica, e que deviam ser combatidas no agir da assistência, havia de se combater igualmente o recurso à verdadeira camisa de Jorça imposta pelas drogas psiquiátricas. crise,

Pacientes, equipe, familiares e redes sociais dos pacientes sabiam que o projeto coletivo era o de garantir que o curso natural da crise fosse enfrentado em conjunto. Além da negação ao manicômio para dar conta da crise, era sistematicamente negado o

recurso farmacológico como resposta imediata. À crise pessoal ou de desenvolvimento era modelo Soteria o para o termo operante, a razão para a abertura da experiência aos outros envolvidos no processo interativo. A abordagem evitava, concretamente, o modelo teórico médico e/ou modelos teóricos monológicos. As instalações consistiam em uma casa na comunidade,

em vez de algo que pudesse sugerir algum tipo especializado 114]

de unidade de saúde, como eram à época — décadas de 1960 e 1970 — os Centros Comunitários de Saúde Mental nos Estados Unidos. Utilizava-se uma equipe de não profissionais da relacionar saúde, especialmente selecionada e treinada para se e entender a loucura sem preconceitos, etiquetas, categorias, controlar, julgamentos ou a necessidade de sefazer algo para mudar, então Mas qual a suprimir ou invalidar a experiência da psicose. do modelo Soteria. E o que significa tal termo?

proposta

Background vocábulo

grego sôféria, constituindo este a raiz do significado da palavra salvação. O projeto do modelo Soteria foi concebido com base em da psicanálise — notadamente Henry Stack Sullivan O termo

soteria

deriva do

pioneiros

descreveram e Frieda Fromm-Reichmann —, de terapeutas que — como Karl À. Menninger —, O crescimento a partir da psicose

canadense dos críticos das instituições asilares — como O de psiquiatras à Erving Goffman — e, por fim, de um grupo Ronald D. Laing, David época considerados heréticos — como Cooper, Thomas Szasz e Franco Basaglia. durante O idealizador do Projeto Soteria, que ficou à sua frente Loren R. Mosher (1933os anos da experiência, foi o psiquiatra Estudos de Esquizofrenia 2004). Ele foi diretor do Centro para 1980. Só por tais credenciais no NIMH, no período de 1968 a intelectual representada por já se pode ter noção da importância Mosher à época. Mosher havia tido a oportunidade de conhecer de perto Londres, sob a a experiência de Kingsley Hall (1964-1972), em [115

coordenação de Ronald Laing. Não foi, portanto, por acaso, que a orientação básica de Soteria tenha sido de natureza existencial/ fenomenológica-interpessoal.

Soteria

no

contexto da assistência psiquiátrica

O Projeto Soteria (Mosher & Hendrix, 2004), por diversas razões, acaba destacando-se das demais experiências com base comunitária da época. A seguir, algumas dessas razões: *

*

Embora não fosse um hospital, e seu programa não fosse executado por médicos (ou enfermeiros por delegação), ele admitia apenas clientes que de outra forma teriam

sido hospitalizados. As drogas neurolépticas, usadas para o tratamento padrão da esquizofrenia, eram administradas tão

pouco

frequentemente quanto possível. Preferencialmente, não

eram usadas.

O

*

À equipe não profissional tinha a responsabilidade fundamental pelo tratamento — tinha o poder e a autoridade.

*

Diferentemente das milhares de residências terapêuticas estabelecidas no país desde meados da década de 70 — fim a de servir como recurso pós-hospitalização no percurso dos pacientes institucionalizados até as suas casas propriamente ditas —, Soteria oferecia uma altetnativa à hospitalização, em vez de ser um follow-up a ela.

cotidiano

em

Soteria

À experiência começou em abril de 1971. Dutante dez anos o financiamento da Casa Soteria foi garantido pelo NIMH, 116]

tendo sido concedido para a realização de uma pesquisa que ofereacabavam cesse respostas a algumas simples questões: pessoas que de ser identificadas como esquizofrênicas e consideradas como disfuncionais a exigir a hospitalização poderiam ser tratadas

não com sucesso em um pequeno ambiente de estilo familiar, hospitalar e sem drogas “antipsicóticas”? Daí deriva a seguinte indagação: como seriam seus fesultados clínicos em comparação àqueles tratados de forma convencional após seis semanas, seis meses, um ano, dois anos,

dez anos? Por resultados clínicos entendiam-se fatores como hospitalização, medicações, sintomas psicóticos continuados, além de níveis de funcionamento psicossocial (escola, trabalho, lazer, redes sociais). Por conseguinte, em termos investigativos, se o progresso dos grupos tratados experimental e tradicionalmente fosse do que comparável, o novo tratamento seria tão bom ou melhor definido. deveria ser a prática corrente, e assim um fenômeno estudados a fim de se entender Seus componentes poderiam ser as razões para a sua eficácia. No entanto, se o grupo experimental seria fosse pior, a investigação seria interrompida e o status quo científico, preservado. Eis aí um procedimento tigorosamente correto? Porém, apesar de os resultados terem sido visivelmente sendo abortada, já que positivos, a experiência de Soteria acaba NIMH. o suporte financeiro é suspenso pelo Desde 1984 ocorre uma pura replicação de Soteria em Berna, Zwiefalten, na Suíça. Um outro descendente estabeleceu-se em foi aberto na Alemanha, em fins da década de 90; e um terceiro em Munique, em 2003. E outros mais estão sendo implementados [117

em Hanover, também na Alemanha, e em Budapeste, na Hungria. Em planejamento encontra-se mais outro, em Auckland, Nova Zelândia. As bases de Soteria influenciaram, em muito, experiências que obtiveram sucesso nos países escandinavos, particularmente na Finlândia, como analisaremos agora. O

Proseto

FINLANDÊS

OPen DIALOGUE

literalmente, diálogo aberto. É uma abordagem com origem na Finlândia, particularmente na zona ocidental da região que abrange a Lapônia. O Diálogo Aberto tem uma longa história de inovação teórica e prática, e hoje é aplicado em diversos locais tanto da Finlândia como de outras regiões dos países escandinavos. Open Dialogue significa,

Se na década de 1980 os serviços psiquiátricos nessa região da

Finlândia estavam em péssimo estado, com as piores incidências de esquizofrenia da Europa, atualmente eles apresentam os melhores resultados de todo o Ocidente. São diversos os protagonistas do Diálogo Aberto com projeção internacional, entre os quais Jaakko Seikkula e Tom Erik Arnkil (2006). Mas, afinal, o que o Diálogo Aberto não é? Não é antipsiquiatria. À exemplo do

*

118]

que Basaglia sempre fez questão de afirmar, quando se buscava encaixar as experiências de reforma psiquiátrica na Itália no contexto mundial de críticas à psiquiatria, os atores sociais do Diálogo Aberto fazem questão de declarar que o que fazem é psiquiatria, ainda que seus princípios não sejam os mesmos da sua corrente principal.

Não é apenas uma moda. O Diálogo Aberto reivindica sólidas bases científicas para ser avaliado. E as provas se

*

estendem há mais de três décadas. Não é um método de tratamento. Não é para ser comparado com a psicanálise, com a terapia cognitivo-comportamental, com a teoria sistêmica e outras.

*

Não é um conjunto de regras a serem seguidas para se

*

conseguir uma boa prática. Portanto, sabemos agora que não se trata de um simples manual de procedimentos. Mas o que é, então, o Diálogo Aberto? * É um modo de organizar a saúde mental. Está em vigor na região da Lapônia finlandesa há aproximadamente trinta anos e certamente pode ser empregado em vários contextos, como, por exemplo, no Brasil, na enorme heterogeneidade de suas regiões. “É o sistema de base psicossocial mais pesquisado cientificamente no mundo, afinal está estabelecido há várias décadas na Finlândia. Sua prática tem sido sistematicamente avaliada. *

É também um modo de descobrir pacientes que estejam em profunda crise — cujo ponto de partida é transmitir-lhes

confiança em seus próprios recursos ao aceitar o outro incondicionalmente. Podemos dizer que diálogo, nesse contexto, é um determinado tipo de agir e de coordenar as ações. Ele requer recursos que o indivíduo já disponha em suas relações sociais — em suas [119

redes sociais. O diálogo é posto em ação não demandando absolutamente quaisquer condições sobre a maneira com que as pessoas devem se comportar, como devem olhar o mundo ou como têm de aceitar as definições que se tenha de seus problemas. A par disso, passemos então à descrição mais pormenorizada dos princípios do Diálogo Aberto: 1.

Ajuda imediata: o sistema foi elaborado para permitir que se identifiquem imediatamente, no período das primeiras 24 horas, as pessoas que se encontrem em crise. A experiência ensina que a melhor forma é iniciar o tratamento imediatamente logo após O aparecimento da crise, e não esperar que os pacientes psicóticos cheguem ao serviço mais estabilizados.

2.

Inclusão da rede social: sempre, com a frequência exigida por qualquer tipo de caso, os pacientes, suas famílias e outros membros de sua rede social são convidados para as primeiras reuniões (vizinhos, amigos, colegas de trabalho, colegas da escola etc). A definição dos problemas e como agir para atender às necessidades surgidas no cotidiano são

3.

120]

constantemente realizadas em conjunto. Flexibilidade e mobilidade: o terceiro princípio é que um bom tratamento possa ser aquele que seja flexível o suficiente para se adaptar às necessidades específicas e variáveis de cada caso, utilizando-se métodos terapêuticos que melhor se adequam especificamente a cada um. É por isso que o sistema é chamado de Diálogo Aberto. Não é um método de tratamento, mas um modo de organizar a assistência. A integração é a chave, o que inclui integrar os recursos

psicossociais de todos os envolvidos, em particular os recursos da equipe. Constantemente tentam integrar todos os métodos que têm em mãos. À assistência tem que ser móbil: ir às casas, onde os próprios recursos das pessoas são mais acessíveis. Responsabilidade: o sistema garante a responsabilidade, desde o primeiro encontro e ao longo das reuniões terapêuticas. É quando os profissionais se descobrem em um processo onde aprendem a ideia de nunca dizer não a uma família que entrou em contato com o serviço. continuidade psicológica: a equipe toma responsabilidade do tratamento ao longo de todo o tempo necessário. Isso garante a continuidade psicológica, ao integrar os vários aspectos do sistema de assistência. O que é essencial é que o sistema de assistência forma uma equipe Garantia da

de múltiplas agências para assim aumentar as possibilidades. Tolerância em relação à incerteza: apostar nos recursos psicossociais disponíveis. Essa é a condição para se aumentar a segurança, a fim de poder tolerar a insegurança existente. O fundamental é que a família não se sinta desamparada com os seus problemas. Mas a insegurança não é exclusivamente da família; pelo contrário, há que saber lidar igualmente com a insegurança dos profissionais que estão sempre ansiosos para tomar decisões antes de seus clientes. Tolerar a insegurança das interações permite tal processo em que as soluções surgem intersubjetivas, em vez de saírem de um programa.

Dialogicidade: o foco é primariamente promover o diálogo e secundariamente promover mudanças no paciente ou na [121

família.

É no pensamento do russo Mikhail Bakhtin (2010),

expressão de destaque da filosofia da linguagem, que o termo alcança vitalidade e novos significados. O diálogo é visto como um fórum por meio do qual as famílias e os pacientes são capazes de, ao discutirem os problemas, adquirir mais capacidades em suas próprias vidas. Um novo entendimento

pressupõe uma conversação dialógica. O mais importante é se lembrar da tarefa da equipe, quando as pessoas são chamadas — Os pacientes, suas famílias, os colegas dos serviços sociais, a polícia etc. —, que é o de proporcionar o diálogo a fim de entender O que aconteceu e está acontecendo. A

positividade

dos

resultados

Fá diversas pesquisas

já realizadas em todo o mundo que constatam resultados bastante positivos e promissores em relação à esmagadora maioria das experiências no mundo

ocidental. Das tantas, merece destaque e análise a produzida em âmbito nacional na Finlândia (Aaltonen, Seikkula & Alakare,

2011; Seikkula, Alakare & Aaltonen, 2001), cuja questão central foi: têm os neurolépticos lugar no tratamento das psicoses?

Em decorrência de tal pergunta a decisão tomada foi de

que três unidades assistenciais não começariam a fazer uso de “antipsicóticos” logo no início do tratamento, ou os usariam apenas caso fossem absolutamente necessários. A experiência ocorreu em dois períodos, compreendidos entre 1992 e 1997, Como principal desdobramento, dos finlandeses surgiu a ideia de transformar tal pesquisa em parte do próprio trabalho clínico. 122]

Pesquisa psicoterápica Para o Diálogo Aberto, o próprio trabalho psicoterápico é inseparável da pesquisa. Significa que a assistência e a investigação tanto dos pressupostos quanto da metodologia de trabalho são desenvolvidas de forma simultânea, tendo por objetivo verificar Nesse se, de fato, produzem os resultados clínicos esperados. sentido, a pesquisa psicoterápica, cujos resultados publicados tomamos como referência, teve as seguintes diretrizes: * aumentar o tratamento domiciliar e a informação acerca do papel dos neurolépticos; *

abordar a primeira crise psicótica (não afetiva, conforme consta do DSM-IHI-R).

Havia as entrevistas de /ollow-np ao longo de todo o processo de tratamento. O paciente era convidado, assim como a família e os integrantes da rede social tidos como importantes para o paciente, incluindo os gestores dos serviços. Todos se sentavam Jado a lado. Começava-se a ouvir a resposta dos pacientes sobre a forma como os sete princípios



descritos a seguir



foram

empregados em seu tratamento. São eles: resposta imediata; a inclusão da rede social; adaptação flexível às necessidades da específicas e variáveis; a tornada da responsabilidade; a garantia continuidade psicológica; a tolerância à incerteza; a dilogicidade. Em seguida, ouvia-se os demais presentes. Cada follownp era feito com apenas um paciente de cada vez, de forma contínua. Todos os envolvidos no tratamento deveriam ter feedback imediatamente sobre a maneira como o trabalho estava sendo feito. Cada membro da equipe atuou nesse período em pelo [123

menos duzentas entrevistas de follownp. Ouvir a forma como as famílias e a rede social de cada paciente descreviam o que ocorria, num permanente follow-np, foi considerado pelos profissionais da saúde participantes como um inestimável evento educacional. Os resultados desse estudo de cinco anos são espetaculares:

Apenas 35%dos pacientes necessitaram de drogas neurolépticas durante esse período. Ainda que a ideia

*

dominante fosse que todos, possivelmente, precisariam do medicamento durante o tempo de estudo, não existe qualquer evidência que tenha demonstrado haver tal necessidade. *

Não havia qualquer sintoma em 81%dos pacientes, estando 85% plenamente empregados após o período do estudo.

Não nos causa surpresa nenhuma que os resultados tenham sido duramente criticados. Houve quem dissesse, inclusive, que eles não eram verdadeiros, alegando finlandeses haviam que os excluído os pacientes mais difíceis. O estudo foi replicado dez anos mais tarde, acompanhando as pessoas acometidas por seu primeiro episódio psicótico. Porém, os resultados obtidos foram os mesmos. De

modo geral, o mundo ficou surpreso ao tomar conhecimento de que os novos casos de esquizofrenia e de psicose diminuíram de modo bastante acentuado: a incidência foi reduzida de 33 para dois casos por 100 mil por ano, entre 1985

quando o Diálogo Aberto foi posto em prática — e 2005, permanecendo até os dias atuais. Significa que em 2005 foram diagnosticados apenas dois únicos casos, e dados desse mesmo ano apontam que 84% retornaram ao emprego de tempo integral. 124]



Mas qual seria a razão disso? — surge a pergunta. Acreditamos sociedade. que não seja por ter havido alguma grande mudança na A hipótese mais plausível é a de que o sistema assistencial tenha se aproximado das reais necessidades das pessoas, 20 permitir uma reação imediata diante de situações de crise, ensinando as

pessoas a contatar os serviços o mais rapidamente possível. Atualmente todos os finlandeses, de modo geral, estejam aonde for — escolas, trabalho, unidades de saúde, polícia, bares e restaurantes —, sabem exatamente como proceder quando se percebem diante de pessoas com dificuldades mentais. Entram logo em contato com as equipes especificamente preparadas para cuidar desse tipo de caso. É por essa razão que na Finlândia é cada vez menor o período em que as pessoas permanecem numa fase sintomática, tendo este se reduzido a somente três semanas. Isso corrobora vários estudos na área de psiquiatria que têm demonstrado que, envolva caso não se intervenha rapidamente numa situação que crise psicótica, tais pacientes podem padecer por um a três anos talvez com esses sintomas até que possam vir a ser tratados. Isso explique por que os finlandeses tenham tão poucos pacientes

esquizofrênicos hoje em dia. de Assim, diante desses resultados absolutamente distintos motivo a qualquer outro país ocidental, fica a dúvida: por que razões A literatura aponta quatro prática dialógica é tão efetiva? atendidas: simultaneamente ser que devem fazer 1. A primeira delas diz respeito à ideia de sempre se onde há pessoas presente de forma tão rápida no local necessitando de ajuda. É a resposta imediata à crise. Esse [125

princípio está plenamente de acordo com a cultura políticosocial dos países escandinavos. O primeiro contato imediato é prioritário. E

por quê? Em uma crise, por causa das fortes

emoções, se tem acesso a temas e experiências às quais Nunca se teve acesso antes e que irão desaparecer em dois ou três dias. Seikkula costuma dizer que é como se uma janela se abrisse nas primeiras 24 a 48 horas para falar da sua

experiência. E que esse é o período crucial, benéfico para a recuperação do sentido vivido. Se não se explora isso, então se pode ter de gastar cerca de seis meses em psicoterapia para

que se encontre um meio para retornar ao mesmo assunto. Assunto sobre qual a pessoa que se encontra num momento de crise quer e deve falar. Essa oportunidade é importante não apenas para o paciente, mas para a família e a rede social,

na medida em que permite ter mais clareza de seus próprios sentimentos e reações do que até então tiveram em suas vidas.

Segunda razão: a polifonia. O Diálogo Aberto reconhece a necessidade de uma aproximação entre a família e a rede social. Há que se trabalhar conscientemente com as pessoas relevantes para o paciente. E nesse ponto se encontra uma

importante distinção, ao se comparar com a maioria das abordagens psicossociais que não costumam levar a sério o papel fundamental da família. À terceira razão é o foco no diálogo, já que se busca dar às respostas perguntas dos indivíduos não sãos, uma vez que é fator preponderante para que se sintam bem na hora da crise. À dificuldade paradoxal nas práticas dialógicas é que a resposta chega de modo muito fácil. Tão fácil que por 126]

ele é capaz vezes até se duvida do poder do diálogo e do que de fazer. No entanto, a parte mais simples é fazer com que mais do que essas pessoas sintam que foram ouvidas. Nada isso. E assim chega o reconhecimento. Em geral estamos tão ocupados com inúmeras tarefas e preocupações diárias, deixando de ouvir o outro. que acabamos simplesmente A metodologia do Diálogo Aberto é justamente oferecer condições pragmáticas para que todas as vozes possam ser ouvidas, promovendo, assim, a cooperação. 4. Por fim, a quarta e última razão é a que possivelmente explica o sucesso do Diálogo Aberto: evita-se a administração de “antipsicóticos”. Com isso, desvia-se dos aspectos perigosos já demonstrados ao longo das últimas décadas e mencionados anteriormente: o que não se limita apenas a deixar de prescrever medicamentos destinados a pacientes com distúrbios psiquiátricos, mas ter um sistema que possa garantir a segurança de modo tal que os remédios passem a de modo ser desnecessários ou evitáveis; a criar segurança tal que não haja necessidade de que o tratamento se torne um elemento de controle. À medida que isso se torna tudo passa possível, reduz-se a necessidade de medicação e não se possa a funcionar melhor, o que não significa que necessátio. prescrever medicamentos quando Em relação às dificuldades que um sistema pode enfrentar,

é na verquais seriam as do Diálogo Aberto? À resposta que, da básicas dade, ele desafia fundamentalmente premissas têm psiquiatria dominante. Com isso, muitos se negam ou dificuldade em aceitar o Diálogo Aberto, até mesmo por um T127

outro obstáculo que se apresenta: ao se confiar nos recursos pessoais dos indivíduos, teme-se que isso possa vir a ameaçar os poderes já constituídos. A

Renução

DroGas

DE

Danos

RELACIONADOS

Às

PsIQUIÁTRICAS

A tomada de consciência de que as drogas psiquiátricas não apenas são perigosas quando tomadas em doses regulares, mas também que se tornam arriscadas quando a dosagem é alterada, tem levado a iniciativas que visam a reduzir os danos causados,

que tem muito a ver com danos para drogas ilegais. O

as

experiências com a redução de

Nesse mais de meio século de convivência com as drogas psiquiátricas, numa dimensão que atinge parcelas cada vez maiores da população, o grande desafio que ora se apresenta é como libertar as pessoas desse verdadeiro Pagelo. A propaganda oficial afirma que as drogas ilegais são uma das maiores desgraças da nossa sociedade. No entanto, levando-se em consideração o número de consumidores das drogas legais compradas em farmácias, muito provavelmente são as drogas psiquiátricas aquelas que mais danos produzem.

No passado, o grande desafio dos processos de reforma

da assistência psiquiátrica era como teintegrar à comunidade aqueles milhares de pacientes que haviam passado uma significativa parte de suas vidas internados em instituições asilares. Os chamados pacientes crônicos eram, em sua maioria, pessoas que sofriam das consequências do próprio tratamento 128]

a elas oferecido. Hoje em dia, o número de pacientes crônicos,

de que, por fazer uso da medicação psiquiátrica, dependerá é tratamento medicamentoso para o resto de suas vidas, muito maior que o número de pacientes internados em manicômios. De que maneira os cronificados poderão se recuperar e levar uma vida livre dessa medicação psiquiátrica da qual dependem? Quanto a isso, diversas iniciativas têm aparecido. Como exemplo, podemos mencionar os programas de desmedicalização criados em Clínicas de Atenção Psicossocial, como bem descritos por Peter Breggin (2012), um dos pioneiros na crítica tóxica. Poderiam ao que ficou conhecido como psiquiaíria de ser instituídas no Brasil, em particular em nossos Centros Atenção Psicossocial (Caps) e na Estratégia Saúde da Família (ESP), essas e outras iniciativas, como a inovadora experiência feita por ex-pacientes psiquiátricos, que produziram cartilhas guiando usuários de drogas psiquiátricas por meio de um caminho que lhes possibilitasse ficar livres delas. O projeto Icarus merece destaque. Trata-se de uma iniciativa em parceria com o Freedom Center, uma ONG americana que elaborou uma cartilha com 52 páginas ilustradas reunindo o que há de melhor em informação disponível sobre como reduzir mais de dez os danos com drogas psiquiátricas. Baseado em da psiquiatria anos de trabalho com o apoio de sobreviventes (ex-usuários das drogas psiquiátricas), famílias, profissionais diversos idiomas, e organizações, esse guia está disponível em incluindo o português (Icarus Project, 2010).

[129



REFLEXÕES

FINAIS

SN

A tomada de consciência sobre a complexidade do fenômeno da medicalização é um desafio para a construção de estratégias existência, políticas que levem à desmedicalização da nossa tendo a medicalização em nosso cotidiano uma dimensão biopolítica

incontornável.

Embora o termo medicalização remeta diretamente à medicação e uso de medicamentos, não devemos reduzir uma ideia à outra. Medicalização é, grosso modo, um processo amplo pelo qual condições humanas e problemas ordinários passam tornandoa ser definidos e tratados como condições médicas, exclusiva ou predominantemente se, portanto, objeto de estudo médico, diagnóstico, prevenção ou tratamento. Pelas implicações

dessa lógica, trata-se de um fenômeno que é, ao mesmo tempo, de ordem cultural, política e econômica. Às experiências individuais ou coletivas de mal-estar, de sofrimento psíquico, que são são convertidas em objetos da medicalização existem de fato, reais. As expressões de ansiedade, como preocupação, dúvida, denominadas pânico, medo, assim como as de sofrimento existem também. depressão ou esquizofrenia, claramente são Aolongo do tempo, tem variado a forma como as experiências é descritas, tratadas e interpretadas. Reconhecer isso pressuposto é como determinado para se colocar entre aspas o que apresentado

[131

para se buscar maneiras distintas de se aproximar e lidar com tais experiências. cientificamente e

Em se tratando da medicalização nos tempos atuais, supostamente baseada em fundamentos científicos, é incontornável a necessidade de se reconhecer que a atual aliança entre a indústria farmacêutica e a psiquiatria tem efeitos profundos em nossa exis-

tência. Essa aliança nos interessa? Tornamo-nos mais ou menos saudáveis? De que maneira essa aliança contribui no enfrentamento dos desafios da nossa existência?

A lógica dessa aliança reduz cada vez mais o território dos normais a uma ilhota. É isso o que queremos para a existência humana? “De perto ninguém é normall”, eis aí um dos s/oagans muito caro ao nosso Movimento de Luta Antimanicomial. Sabemos que tal palavra de ordem foi, a seu

modo, apropriada pela aliança entre a psiquiatria pós-DSM-III e a indústria farmacêutica. Ao passo que o movimento criticava

a tendência da sociedade a estigmatizar os usuários dos serviços de saúde mental como pessoas anormais, a aliança da psiquiatria

com a Big Pharma impulsionava na sociedade a proposta de que todos somos, de alguma maneira, “portadores” de algum transtorno mental, mesmo que seja por um período da vida. Não faltam pesquisas evidenciando o quão nefasta é para a saúde essa aliança. Um dos nossos grandes desafios é certamente saber como prestar assistência psiquiátrica psicossocial nos serviços e dispositivos pós-manicomiais e territoriais sem criar uma população que não seja chamada de ex-paciente, sobrevivente da psiquiatria ou curado. Outros estão ligados à necessidade 132]

de se adotarem medidas que regularizem tanto a propaganda de medicamentos quanto a atuação da indústria farmacêutica na formação e atualização médicas, no apoio a congressos de pesquisas em e publicações científicas, no financiamento instituições públicas, além de tantas outras ações de transparência de saúde, e responsabilidade ética que possibilitem uma política não uma política de mercado.

[133

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138]

SUGESTÕES

DE

LEITURAS

E

FILMES

Como primeira sugestão, indicamos o livro do jornalista estadunidense Robert Whitaker, Anatomy of an Epidemic: magic bullets, psychiatric drugs, and the astonishing rise of mental illiess tn

America (New York: Broadway Books, 2011). Traduzido para

diversos idiomas, por meio dele o leitor pode ter uma visão geral do quanto a medicalização em saúde mental está produzindo o de doenças que se pode chamar de uma verdadeira epidemia mentais. Tal obra foi um dos nossos principais guias para O desenvolvimento da pesquisa que fizemos para este volume mágicas, drogas e, sob o título Anatomia de uma Epidemia: pílulas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental, foi publicada

em língua portuguesa pela Editora Fiocruz em 2017. A obra de Irving Kirsch, The Emperor's New Drugs: exploding the antidepressant myth (New York: Basic Books, 2010), que também tomamos como referência na análise dos estudos de duplo-cego para antidepressivos, é leitura obrigatória pata estudiosos do assunto. Seu conteúdo tem causado enorme desconstruir impacto na opinião pública internacional, ao fundamentos da crença nos antidepressivos. Kirsch, professor de psicologia da University of Hull, no Reino Unido, é um dos maiores especialistas mundiais em investigações sobre placebo. [139

Para um

indicamos

o

aprofundamento maior sobre a medicalização, livro

Selhng

Sickness:

bow

the

world"

biggest

Pharmaceutical companies are turning us all into patients, de Ray Moynihan e Alan Cassels (New York: Nations Books, 2005).

Os autores ressaltam de maneira didática e nada superficial a influência dos grandes laboratórios farmacêuticos na fabricação de doenças para a transformação da saúde em um grande mercado. Esses laboratórios se utilizam de seu forte poder de marketing para produzir o medo nas pessoas saudáveis ou para oferecer respostas imediatas 20 sofrimento. Para saber mais sobre o poder da indústria farmacêutica de corromper a psiquiatria e os males que ela provoca, vale a apreciação do livro recentemente publicado, de Robert Whitaker e Lisa Cosgrove, Psychiatry under the Influence: institutional corrupiion, social injury and prescribrions for reform (New York: Palgrave Macmillan, 2015). Por sua vez, no livro most powerful psychiairists

They Say You're Crazy: how the worlds

decide

whos normal

(New York: Perseu Books, 1995), a autora Paula Caplan mostra a forma como o DSM é construído. Caplan foi escolhida pela American Psychological Association como uma eminente psicóloga, com vários trabalhos importantes sobre gênero. Esse livro tem grande importância, porque, como a autora participou como consultora da elaboração do famoso DSM-III, sua experiência lhe dá autoridade para mostrar a maneira como os padrões de normalidade foram definidos, que métodos foram empregados, que evidências sustentaram as decisões sobre os diagnósticos a constarem do Mannal etc. 140]

Sobre a construção do DSM, sugerimos ainda este outro livro, certamente mais conhecido entre nós: Making us Crazy — DSM: the psychiairic bible and the creation of mental disorders (New York: Free Press, 1997), escrito por Herb Kutchins e Stuart Kirk. Entre as diversas contribuições que os autores dão para enterdermos o DSM, destacamos os vários capítulos em que são descritos os processos de aprovação da inclusão ou exclusão de categorias de diagnóstico. Na linha da crítica ao uso das drogas psiquiátricas para o tratamento dos inais diversos problemas dos nossos cotidianos, entre tantas obras de enorme importância para a abordagem crítica do modelo da psiquiatria biológica, sugerimos o livro Toxic Psychiatry, de Peter Breggin (New York: St. Martin's Press, 1991). Nessa obra pioneira, Breggin contrapõe a abordagem hoje dominante — via categorias de diagnóstico e de bioquímica farmacológica — às abordagens psicoterápicas, à empatia e ao amor, mostrando como é possível se substituir drogas, eletrochoque e teorias bioquímicas. A medicalização em saúde mental pode ser entendida como medicalização da miséria, no sentido da miséria socioeconômica evidentemente, mas também da própria miséria humana, existenciais típicas dos quer dizer, das próprias vicissitudes humanos. Encontramos esse assunto em De-Medicalizing condition (Basingstoke: Misery: psychiatry, psychology and the human Mark Rapley, Palgrave Macmillan, 2011), obra escrita por Moncrieff e Jacqui Dillon, que causou um impacto tão

Joanna

positivo que teve lançado recentemente seu segundo volume, sob o mesmo título. [141

A experiência do Diálogo Aberto iniciada na Finlândia é certamente a mais promissora nos tempos atuais, no que diz respei-

to ao tratamento com sucesso da esquizofrenia. Além da referência bibliográfica já citada, sugerimos leitura do artigo de Jaakko

a

Seikkula e colaboradores: “Five years of experience of first-episode nonaffective psychosis in open-dialoge approach: treatment principles, follow-up outcomes and two case studies”, disponível em

. Embora não seja um texto acadêmico, “O alienista”, de Machado de Assis (São Paulo: Ática, 2008), é uma fonte potente € ilimitada de reflexão sobre os dispositivos de medicalização da vida cotidiana, uma crítica à produção dos saberes científicos sobre o comportamento e sobre a própria ciência. Por reunir um conjunto importante de contribuições que Michel Foucault nos deu a respeito da medicalização, um livro fundamental para se refletir sobre o tema é Microfísica do Poder (Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979). Neste livro, se pode encontrar “O Nascimento da Medicina Social” e “A Casa dos Loucos”. Do

autor também são leituras obrigatórias O Nascimento da Clínica (Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1977) e O Poder Psiquiátrico (Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2006), em que reúne as aulas dadas no ano escolar de 1973-1974. O livro A Expropriação da Saúde: nemesis da medicina, de Ivan de Janeiro: Nova Fronteira, 1975), é um dos clássicos da literatura, que não perde nunca a sua atualidade. As obras de Thomas Szasz não podem jamais deixar de serem citadas. São muitos os seus livros publicados e traduzidos Tllich (Rio

142]

Mental (Rio de Janeiro: para o português, como O Mito da Doença Zahar, 1979) e Ideologia e Doença Mental: ensaios sobre a desumanização psiquiátrica do homem (Rio de Janeiro: Zahar, 1977).

Durante décadas, a psicanálise teve a hegemonia da medicalização da vida cotidiana, e a esse respeito é elucidativa a leitura do livro O Psicanalismo, do sociólogo francês Robert Castel (Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978). um subtítulo bem sugestivo — é um texto de Franco Basaglia (Rio de Janeiro: Garamont, 2005) que refere, pela primeira vez, que se a psiquiatria seria para prevenir, na prática ela é uma engrenagem de fabricação da própria doença. Múltipla Personalidade e as Ciências da Memória, de Ian Hacking (Rio de Janeiro: José Olympio, 2000), é um livro interessante da abordagem da porque nele se têm evidências dos resultados epistemologia construtivista para a análise de um dos transtornos mentais que esteve em moda após sua suposta identificação pelos manuais de diagnóstico psiquiátrico, o que criou inúmeros rotuladas e irreversíveis danos sociais nas pessoas que foram Carta

de Nova York: o doente artificial



como portadoras por essa categoria de diagnóstico. A respeito das influências da indústria farmacêutica na construção social do fenômeno da medicalização, não se Verdade sobre os pode deixar de ler o livro de Marcia Angell, A Laboratórios Farmacêuticos: como somos enganados e o que podemos fazer a

respeito (Rio

de Janeiro: Record, 2007).

Por sua vez, a medicalização da infância é abordada nos livros da pediatra Matia Aparecida Moysés, os quais são de grande importância para nós brasileiros. São eles: A Instituição Invisível [143

(Campinas: Mercado de Letras, 2008) e Novas Capturas, Antigos Diagnósticos na Era dos Transtornos (Campinas: Mercado de Letras, 2013), em coorganização com Cecília Collares e Monica Ribeiro. Já o livro de Maria Helena do Rego Monteiro, igualmente de grande

interesse por seu conteúdo, pode ser acessado gratuitamente em . A respeito do estigma e da forma como as diversas maneiras de estigmatizar condenam as pessoas a serem tratadas como objeto desviante, vale a pena ler Estigra: notas sobre a 7ranipulação da identidade deteriorada (Rio de Janeiro: Editora LTC, 2008), de Erving Goffman. Há muitos

interessantes que mereceriam citação, sendo que alguns não podem deixar de fazer parte da lista. O primeiro deles é um blog, Mad in Brasil, disponível em . Nele, o leitor pode acompanhar resultados de pesquisas sites

publicadas nos mais importantes periódicos científicos, bem como contribuições de notáveis professores e pesquisadores, natrativas dos sobreviventes da psiquiatria, eventos programados para a temporada, e muito mais. Sobre os efeitos para a saúde individual e pública das diversas drogas psiquiátricas e a forte problemática de como enfrentar os sintomas de abstinência após o seu uso por médio ou longo petíodo, o site RxISK () é altamente recomendado. Nele se podem trocar informações com outros usuários, com especialistas, dar seus próprios testemunhos de vida etc. Também vale umavisita à página virtual da Associação Brasileita de Saúde Mental (Abrasme) — —, em 144]

incluque se disponibilizam vários documentos sobre o assunto, sive as propostas de combate à medicalização. Open Dialogue: an alternative finnish approach to healing psychosis,

um filme de Daniel Mackler, tem uma versão legendada em português disponível no Youtube, no &nk: . Esse vídeo oferece uma panorâmica do trabalho pioneiro de tratamento da esquizofrenia e das psicoses, em geral, que tem sido desenvolvido na região norte da Finlândia, sendo considerada atualmente a abordagem com melhores resultados no mundo ocidental. O diretor é um jovem terapeuta novaiorquino responsável por vários outros documentários sobre a recuperação das psicoses e da esquizofrenia sem medicamentos. É necessário também assistir a um outro extenso documentário, que faz uma panorâmica do que vem representando, na vida do homem contemporâneo, o crescimento sem fronteiras da medicalização em saúde mental. Marketing da Loucura está acessível, com legendas em português, no Youtube, . no Ankh Promovido pela Citizens Comission on Human Rights e dividido em 18 partes, esse filme é considerado definitivo sobre a violência institucional da psiquiatria. Nele é revelada a parceria altamente lucrativa entre as companhias farmacêuticas e a psiquiatria. Até que ponto são válidos os diagnósticos psiquiátricos e seguros os seus medicamentos? O documentário Nau

dos Insensatos 3: medicalização

e

patologização

que pode ser encontrado em ,

da

educação,

[145

dirigido

por Alice Sasahara, discute pesquisas, reportagens e

que veiculam massivamente informações que apontam para um crescimento vertiginoso dos diagnósticos dos chamados transtornos de comportamento e aprendizagem, num verdadeiro processo de adoecimento da infância. sites

Por fim, o filme Geração Prozaç, com direção de Erik Skjoldbjaerg (2001), foi baseado no livro de Elizabeth Wurtrel e tem como tema principal o uso de medicamentos como forma de abafar os verdadeiros problemas. A protagonista é uma jovem que abusa do sexo e das drogas e sofre de profunda crise existencial e depressão, um protótipo das gerações psiquiatrizadas desde a década de 1980.

146]

TíTuULOS

Aids na Terceira Década Inácio Bastos

«

TEMAS

COLEÇÃO

DA



Francisco

Assistência Farmacêutica e Acesso a Medicamentos — Matia Auxiliadora

Oliveira, Jorge Antonio Zepeda Bermudez e Claudia Garcia Serpa Osório-de-Castro Bioética para Profissionais da Saúde — Sergio Rego, Marisa Palácios e Rodtigo Siqueira-Batista

Como e por que as Desigualdades Sociais Fazem Mal à Saúde — Rita

*

*

Naomar de

— Luiz Fernando Ferreira, Karl Jan Reinhard e Adauto Araújo

Paleoparasitologia

Planejamento e Gestão em Saúde: conceitos, bistória e propostas —

Francisco Javier Uribe Rivera e Elizabeth Artmann Sustentabilidade Ambiental — Cezarina Maria Nobre de Souza, André Monteiro Costa, Luiz Roberto Santos Moraes e Carlos Machado de Freitas Saúde Bucal no Brasil: muito além do — Paulo Capel Narvai e

Comunicação e Saúde — Inesita Soares de Araújo e Janine Miranda Cardoso

Paulo Frazão

Correndo

Saúde Global: uma breve história

o

Saúde Global: olhares do presente

e

Saúde: perspectivas

João Luiz Bastos e Eduardo Faerstein métodos



Educação Profissional em Saúde



Isabel Brasil Pereira e Marise Nogueira Ramos Mestrado Profissional em Saúde Pública: caminhos e identidade — Gideon

Borges dos Santos, Virginia Alonso Hortale e Rafael Arouca Obesidade

e

Saúde Pública



Luiz

Antonio dos Anjos O que é o SUS





Helena Ribeiro

Risco: uma introdução aos

Discriminação e

*



céu da boca

David Castiel, Maria Cristina Rodrigues Guilam e Marcos Santos Ferreira

*

O que é Saúde?

Barradas Barata

riscos em saúde — Luis

*

SAÚDE

Almeida Filho

Avaliação de Políticas e Programas de Saúde — Ligia Maria Vieira da Silva

*

EM

Jaitnilson Paim



Matcos Cueto Saúde Mental e Atenção Psicossocial — Paulo Amarante Saúde, Arbiente e Sustentabilidade



Carlos Machado de Freitas e Marcelo Firpo Porto Sentidos da Saúde e da Doença, Os —

Dina Czeresnia, Elvira Maria Godinho de Seixas Maciel, Rafael Antonio Malagón Oviedo Som do Silêncio da Hepatite C, O



Francisco Inácio Bastos Violência e Saúde — Maria Cecília de Souza Minayo Viroses Emergentes no Brasil — Luiz Jacintho da Silva e Rodrigo Nogueira Angerami

Formato: 12,5x 18 cm Tipologia: Letter Gothic e Garamond Papek Off Set 75g/m? (miolo)

Cartão Supremo 250g/m? (capa) CTP, impressão e acabamento. Imo's Gráfica e Editora Ltda.

Rio de Janeiro, novembro de 2017 Não encontrando nossos títulos em livrarias, contactar a Editora Fiocruz: Av. Brasil, 4036 — térreo — sala 112 — Manguinhos 21040-361 — Rio de Janeiro — RJ Tel.: (21) 3882-9039 e 3882-9041 Telefax: (21) 3882-9006 http:/ /www.fiocruz.br/editora e-mail: editora(Qfiocruz.br