Lógica e Música: Conceitualidade musical a partir da filosofia de Kant e Hanslick
 9788566786095

Table of contents :
Foreword 7

Introduction
Is it possible to think musically? 13

Part 1. The logical and the aesthetic

Chapter 1
Critique of pure aesthetics 33

Chapter 2
Logic as a mixed epistemological discipline 77

Part 2. Musical epistemology

Chapter 3
The logical-musical object 111

Chapter 4
Music and knowledge 157

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Lógica e Música Conceitualidade musical a partir da filosofia de Kant e Hanslick

Lógica e Música Conceitualidade musical a partir da filosofia de Kant e Hanslick

Ricardo Miranda Nachmanowicz

© Relicário Edições © Ricardo Miranda Nachmanowicz cip

–Brasil Catalogação-na-Fonte | Sindicato Nacional dos Editores de Livro, rj N122l Nachmanowicz, Ricardo Miranda. Lógica e música: conceitualidade musical a partir da filosofia de Kant e Hanslick / Ricardo Miranda Nachmanowicz. – Belo Horizonte: Relicário, 2014. 180 p. : 14 x 21 cm Inclui bibliografia. ISBN 978-85-66786-09-5 1. Hanslick, Eduard, 1825-1904. 2. Kant, Immanuel, 1724-1804. 3. Música – Filosofia e estética. I. Título. CDD-780.1

conselho editorial

Eduardo Horta Nassif (ufmg) Ernani Chaves (ufpa) Guilherme Paoliello (ufop) Gustavo Silveira Ribeiro (ufba) Luiz Rohden (unisinos) Marco Aurélio Werle (usp) Markus Schäffauer (Universität Hamburg) Patrícia Lavelle (ehess/Paris) Pedro Sussekind (uff) Ricardo Barbosa (uerj) Romero Freitas (ufop) Virgínia Figueiredo (ufmg)

Maíra Nassif Passos & diagramação Ana C. Bahia revisão Sílvia P. Barbosa revisão de provas Maria Fernanda Moreira coordenação editorial projeto gráfico

Relicário Edições www.relicarioedicoes.com [email protected]

Prefácio  7 Introdução É possível pensar musicalmente?  13 parte 1. O lógico e o Estético Capítulo 1 Crítica da estética pura  33 Capítulo 2 A lógica enquanto disciplina epistemológica mista   77 Parte 2. Epistemologia Musical Capítulo 3 O objeto lógico-musical   111 Capítulo 4 Música e conhecimento   157 Referências bibliográficas   169 Anexo   175

Prefácio

Não parece ser excessivo afirmar que a música recebeu, na história da filosofia, uma atenção consideravelmente menor do que outras de suas irmãs entre as belas artes – para empregarmos a terminologia que a tradição moderna consagrou ao tratar desse tema. É verdade que análises acerca de sua natureza podem ser encontradas entre os antigos, por exemplo em Platão e Pitágoras, e que os homens nunca deixaram de se preocupar em entender de que modo pode ser produzida. Não há, entretanto, um tratado musical que tenha exercido sobre o pensamento ocidental uma influência tão poderosa e duradoura quanto, por exemplo, a Poética de Aristóteles. Se existem diversos documentos, de diversas épocas, que se ocupam das técnicas que devem ser empregadas para fazer música, foi apenas a partir da modernidade que a pergunta acerca dos fundamentos dessa arte ganhou da filosofia um tratamento sistemático. A consolidação da estética como disciplina autônoma de investigação e o desenvolvimento do Romantismo marcam o momento em que começaram a ser formuladas de modo mais insistente as questões que hoje reconhecemos como essencialmente pertinentes a esta área de estudo: o que é música e em que ela se diferencia do som? Que lugar ocupa no sistema de todas as artes? O que a música pode nos dar a conhecer e de que modo se relaciona com a nossa vida prática? Como foi afetada pela evolução da sociedade contemporânea e da cultura de massas? O que poderia determinar de modo suficiente a sua identidade? Quando consideramos esses problemas, os nomes que surgem espontaneamente à mente são de pensadores dos séculos XIX e XX: Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Adorno e Goodman. É precisamente nessa tradição recente da história da filosofia que se inscreve a obra de Ricardo Nachmanowicz, em dois sentidos. Em 7

primeiro lugar, a questão que anima sua pesquisa diz respeito, precisamente, àquilo que torna possível a constituição de um objeto musical, e não meramente sonoro, ou seja, àquilo que faz do objeto de nossa percepção auditiva, mais do que um mero conjunto de vibrações de certas frequências, ser música. O principal autor que é mobilizado para o encaminhamento desse problema é Eduard Hanslick, cuja célebre obra Do belo musical teria proposto um terceiro caminho à compreensão da produção clássica, afastando-se, de modo complementar, tanto da teoria da Empfindsamkeit, em certo sentido tributária dos afetos do barroco, quanto do projeto programático da música absoluta. Em segundo lugar, Nachmanowicz dá um testemunho da vocação moderna de sua investigação ao privilegiar a recepção em suas análises do fenômeno musical. Para que um objeto seja música, e não simplesmente som, é necessário que seja possível ouvir música. Podemos, desse modo, responder perguntas acerca desse objeto se elucidarmos melhor o que deve ser pressuposto no ouvinte para que se dê a audição. Eis aí o caminho transcendental que sua obra abre para o leitor – termo de modo algum estranho ao período e, como se verá, ao próprio quadro filosófico que ela põe em jogo para traçá-lo. A hipótese anunciada na introdução, e defendida especialmente na segunda parte, é a de que a escuta do período clássico pressupõe um modelo epistemológico para a própria música. Trata-se, portanto, de propor uma definição de belo musical que não se apoie em nenhuma espécie de figuração ou imitação de algo externo, tampouco em uma metafísica que lhe atribuísse um papel de desvelamento ontológico menos ou mais proeminente, mas, antes, na apreensão de certas relações lógico-formais determinadas pelos próprios processos de composição. Como se vê, para Nachmanowicz, o ouvido clássico guarda uma relação essencial com o reconhecimento cognitivo de certas estruturas na obra mesma. Portanto, se Lógica e música afina-se à tradição moderna ao eleger a recepção como seu principal objeto de análise, também se distancia criticamente dessa mesma tradição ao sustentar uma relação essencial entre estética e conhecimento. Assim, faz eco a pensadores que, já no século XIX, assinalaram que a tese de uma absoluta autonomia da arte 8

deixa sem respostas muitas questões acerca do belo e do sublime quando limitada à sua formulação mais estrita, o que responde, possivelmente, por um dos aspectos mais originais do trabalho. Sua característica mais instigante reside, entretanto, na escolha do autor que dará suporte à fundamentação filosófica de tal relação. Esse autor é Kant, e por muitas razões causa, à primeira vista, surpresa que seja precisamente aquele a quem se costuma atribuir a redação do primeiro grande tratado da estética o responsável por fornecer o quadro categorial que permitirá o desenvolvimento da hipótese central de Lógica e música. Antes de qualquer coisa, pelo pouco que se fala sobre o assunto na Crítica da faculdade de julgar: a música é abordada apenas nas páginas consagradas à divisão das belas artes, ou seja, na parte final da “Analítica da faculdade de julgar estética” e, pode-se dizer, não sem alguma reserva. Kant classifica essa arte entre aquelas pertinentes “ao belo jogo das sensações”, de modo que o belo musical consistiria no mero ajuizamento de relações entre sensações, por oposição à percepção do grau de afecção da própria sensação. Nesse sentido, a música parece ocupar um lugar menos destacado nessa obra do que as artes discursivas e figurativas, as quais envolvem mais proximamente a imaginação e, portanto, os princípios mais gerais que o filósofo estabelecera nos parágrafos anteriores, quando procurara definir a arte do gênio. A grande dificuldade, contudo, não é propriamente essa, mas sim o fato de que a doutrina kantiana tem como um de seus aspectos mais fundamentais a radical separação entre estética e conhecimento. Na Crítica da faculdade de julgar, o juízo sobre o belo fundamenta-se em uma sensação de prazer que corresponde a uma relação harmoniosa entre duas faculdades transcendentais, imaginação e entendimento, percebida como vivificante para o ânimo. Como Kant ressalta em diferentes momentos de sua obra, se podemos erguer pretensões de assentimento universal para nossas avaliações estéticas, isso não decorre de modo algum da apreensão de propriedades objetivas representáveis sob a forma de um conceito, sob pena de reduzir aquilo que deveria ser propriamente estético ao domínio da filosofia teórica.

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A doutrina estética de Kant surge, desse modo, como uma ferramenta especialmente inadequada a um projeto de compreensão do belo musical que reivindica um modelo epistemológico. E Nachmanowicz é, com efeito, o primeiro a reconhecer esse problema. Como mostra sua leitura dos sucessivos momentos da “Analítica do belo”, desenvolvida ao longo do primeiro capítulo, um dos pontos centrais da Crítica da faculdade de julgar consiste “em fazer ver a separação entre conhecer e ajuizar esteticamente”. Indo além do próprio texto kantiano, o autor lança mão de várias alternativas de leitura dessa obra, vinculadas a diferentes tradições, com o intuito de mostrar a sua incompatibilidade com qualquer concepção da arte que envolva cognição. Por que Kant, então? O motivo dessa escolha se torna evidente a partir do segundo capítulo, em que Nachmanowicz se volta mais não à terceira, mas, antes, à primeira Crítica, em que o filósofo trata de modo mais sistemático as questões epistemológicas e emprega, pela primeira vez, em toda a sua abrangência, seu método de análise transcendental. Ali, Kant busca mostrar que há uma relação de necessidade entre dois tipos heterogêneos de representação, isto é, as intuições da sensibilidade e os conceitos do entendimento, que se funda nos princípios a priori de cada uma dessas duas faculdades e que funda, por sua vez, a possibilidade do conhecimento. O que caracteriza essa abordagem de modo mais evidente é explicitado pelo próprio pensador por meio da metáfora da revolução copernicana, que se tornou talvez a passagem mais célebre do prefácio que redigiu à segunda edição de sua obra: se os problemas tradicionais da metafísica não podiam ser resolvidos satisfatoriamente sob a pressuposição de que nosso ânimo deve se adequar àquilo que é conhecido, por que não inverter esse ponto de vista e procurar nos objetos aquilo que nós mesmos colocamos neles? Em última análise, esse me parece ser, como indicado acima, o método de que Nachmanowicz se serve para a solução do problema que tem diante de si, a saber: revelar as estruturas cognitivas que devem ser pressupostas a priori no sujeito para que seja possível ouvir o objeto musical clássico. Por isso, o autor passa, em seguida, a explorar detalhadamente distinções tradicionais da epistemologia kantiana, tais como espaço, tempo, juízo e apercepção, com o intuito de buscar aí 10

elementos que permitam identificar e definir tais estruturas. Destacase, nesse percurso, a função esquemática da imaginação como espécie de representação que serve de mediação entre conceitos e intuições. O esquematismo, um dos tópicos mais tortuosos de toda a filosofia de Kant, ocupará um lugar central na solução que será apresentada nos dois capítulos seguintes, já com o auxílio de Hanslick. Como se vê, o aspecto mais criativo de Lógica e música consiste nesse tenso diálogo com Kant. Reconhecendo as limitações de sua doutrina estética para o tratamento do objeto que pretende investigar, é, entretanto, nesse autor que Nachmanowicz vai buscar os princípios que lhe permitem qualificar, do ponto de vista cognitivo, a experiência da escuta clássica. Em suas páginas, o leitor que se interessa pelo debate filosófico sobre a música encontrará, desse modo, uma inestimável contribuição a uma área que, por sua própria juventude, ainda oferece muitas possibilidades para novas explorações. Por fim, o leitor de Kant poderá discernir aqui um interessante caminho a ser percorrido por aquele que deseja aprofundar-se no modo como o filósofo compreende a música. Embora Nachmanowicz não leve tão longe suas considerações, se sua descrição da escuta clássica estiver correta, isso talvez permita explicar por que essa arte ocupa um lugar tão pouco destacado na Crítica da faculdade de julgar, uma vez que seus princípios mais gerais se mostrariam incompatíveis com a exigência de um modelo epistemológico que é defendida em Lógica e música. A obra encerra, portanto, a possibilidade de novos estudos também dentro da tradição de comentários kantianos, notavelmente profícua no que diz respeito à estética a partir da segunda metade do século XX. Vladimir Vieira

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Introdução

É possível pensar musicalmente? O pensamento, se quisermos nos deter nele, não parece ser coisa do tipo que se defina. Assemelha-se mais a um ato que praticamos, enquanto o praticamos, do que a um objeto estático que possamos simplesmente contemplar. Definir o que seja o pensamento, mesmo em um contexto restrito, é, na maior parte das vezes, uma tarefa teoricamente árdua, em que falta-nos até mesmo o vocábulo necessário. A prática do pensamento, pelo contrário, flui espontaneamente em cada contexto e no curso de nossas ações. Mas, quando direcionamos nossa atenção ao que é “pensar”, deixamos de fazer o que fazíamos antes, e voltamos a nos embaraçar com nossa insuficiência teorética em dar uma definição do “pensar”. Resta apenas admitir que deparamo-nos com uma pergunta em sentido filosófico. Sendo o pensamento algum tipo de articulação e concatenação que ocorre, ora de maneira muito rápida e sutil, ora com máximas facilmente destacáveis, ora como uma ocasião em que nos encontramos sem termos uma concepção pré-formada, ora como a aplicação de um esquema a certo estado de coisas, nos perguntamos sobre o pensamento musical sem termos no horizonte uma resposta de antemão. Estamos contextualizando um certo objeto musical nas ocasiões em que os pensamos, exatamente no momento e no modo como os escutamos, enquanto perfazemos experiências musicais. Iniciamos, pois, contextualizando nosso inquérito onde ele ressoa mais diretamente, onde estabelece uma relação entre pensamento, conhecimento e música, nas palavras de Eduard Hanslick: 13

Na música há sentido e consequência, mas musical; é uma linguagem que falamos e entendemos, mas que não somos capazes de traduzir. Há um conhecimento profundo em aludir também a “pensamentos” nas obras sonoras e, como no falar, o juízo dextro distingue aqui facilmente pensamentos verdadeiros de simples palavrório. (Hanslick, 1992, p. 44)

Hanslick nos remete a relações causais, juízos assertóricos e concatenações de ideias. O caminho parece aberto, mas há ainda infinitas camadas que podem atravessar a compreensão desse fenômeno. Se observarmos a própria filosofia, ela conduziu-se historicamente por um modelo de conhecimento norteado por uma primazia do órgão da visão e de suas metáforas: iluminismo, iluminar, esclarecer, fazer ver, visão. Ver, enquanto metáfora de conhecer, de fato rendeu bons frutos: “Imagina ainda que esse homem volta à caverna1 e vai sentar-se no seu antigo lugar: não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?” (Platão, 1999, p. 227). A cena é estimulante, mas, nela, nada se escuta. Comecemos a dar atenção a um outro cenário de nosso conhecimento, por um órgão talvez não tão repleto de metáforas a ponto delas adentrarem ao vocabulário epistemológico e científico, mas que se mostram presentes, como a tão rica e pedagógica metáfora de dar ouvidos. Tal órgão não passou despercebido pelo mestre de Estagira, que reconhece e concede certo poder à audição: São inteligentes, mas incapazes de aprender, todos os animais incapacitados de ouvir os sons (por exemplo a abelha e qualquer outro gênero de animais desse tipo); ao contrário, aprendem todos os que, além da memória, possuem também o sentido da audição. (Aristóteles, 2001, 980 A)

Contudo, diferente de Aristóteles, interessa aqui menos a hierarquização de funções, e mais o alcance de uma clareza e agudez acerca de nossa capacidade cognitiva. Partimos do ato de ouvir, de escutar, em direção a um redimensionamento do conhecimento. Porém, quais vestígios e entradas nos foram deixadas? 1. Excerto retirado do livro VII da República de Platão, em que é narrato o mito, ou alegoria, da caverna.

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De certo modo, essa mesma problemática enfrenta Jean-Luc Nancy, quando se pergunta qual seria a capacidade, historicamente velada, por parte da filosofia, em compreender os fenômenos auditivos enquanto dotados de um grau de cognição, pensamento e conhecimento: Escutar é algo de que a filosofia é capaz? Ou – vamos insistir um pouco, apesar de tudo, correndo o risco de exagerar o ponto – não teria a filosofia sobreposto sobre a escuta (listening), de antemão e por necessidade, ou ainda substituído a escuta, por alguma coisa que pudesse ser mais da ordem da compreensão (understanding)? (Nancy, 2007, p. 1, tradução nossa)

A língua francesa possui uma semântica rica para o significado do termo entendre. Este pode significar entender, intencionar, ocuparse, ou mesmo escutar. No português, não há qualquer relação entre escuta e entendimento, ou escuta e conhecimento, não há uma relação prefigurada na palavra, como ocorre no francês. Deixando ressoar o apelo de Nancy, nosso itinerário inicia-se ao buscarmos uma descrição de certa experiência musical em um trajeto de compreensibilidade. Nesse percurso atestamos gradações de nossas faculdades de conhecimento naquilo que se identificam e se diferenciam em diversos estados cognitivos, variando entre os mais objetivos e os mais subjetivos. É certo que a escuta nos traz conteúdos os mais diversos, e a escuta musical ainda é capaz de contextualizar tanto mais. Porém, como descrever e nos tornarmos atentos, na escuta, a uma compreensão musical, a um entendimento musical, algo que pressupõe nitidez e consciência, quando o musical foi identificado sempre com o esotérico, o confessional e o secreto? Há, pelo menos potencialmente, mais isomorfismo entre o visual e o conceitual, mesmo que apenas em virtude do fato de que a morphé, a "forma" implícita na ideia de "isomorfismo", seja imediatamente pensada ou apreendida no plano visual. (Nancy, 2007, p. 2, tradução nossa)

O percurso histórico que culminou em termos como objeto musical, pensamento musical, fenômeno musical passa por uma série de hipóteses e noções, mas, sobretudo, por uma série de experiências musicais. 15

Percebe-se proximidade entre música e ciência quando da necessidade da organização sonora pelos músicos, mas também o contrário, pelo interesse do cientista em compreender as relações musicais (Weber, 1995). O percurso foi tal que hoje podemos fitar relações entre música e não-música sobre os mais variados contextos. Porém, retrocedendo alguns séculos, mais especificamente ao século XVIII e XIX, nosso trabalho não quer pensar na interação entre tecnologia, ciência, som e música, assunto este que já vem sendo contemplado em trabalhos musicológicos, mais especificamente na sonologia atual. Diferentemente, centramo-nos na relação que o procedimento composicional e a escuta musical estabeleceram diretamente com o conhecimento, introduzindo no debate uma perspectiva eminentemente epistemológica. No século XVIII, investigamos um ponto nodal entre o conhecimento, o pensamento e a música, em vista do trabalho de compositores em um recente sistema musical tonal, dando proeminência a um discurso musical instrumental, que resulta na primeira escola de Viena. No mesmo período, o filósofo Immanuel Kant postula uma cisão entre o lógico e o estético, e elege o estético enquanto categoria de compreensão privilegiada da arte, âmbito no qual a música se incluiria. Porém, diferente do procedimento habitual em filosofia, nossa aproximação inicial começa pelo conteúdo musical. Antes que a filosofia possa fazer alguma coisa, ligamos o que seja música ao que seja o trabalho de compositores, antes que esses apareçam representados em sistemas filosóficos. Não evitamos assim a teoria, apenas afrouxamos os laços para depois os refazer. É justamente aqui que adentramos um problema bibliográfico, afinal, músicos não se preocuparam, antes do século XX, em publicar trabalhos teóricos que contemplassem a escuta, mas apenas a feitura das obras e técnicas com as quais trabalhavam, o que não quer dizer que a escuta não ocorresse sempre implícita nesses trabalhos. O Micrologus de Guido D’Arezzo, o Le Institutioni Harmoniche, de Gioseffo Zarlino, o Der vollkommene Capellmeister, de Johann Mattheson, e o Handbuch der Harmonielehre, de Hugo Riemann, entre outros, ilustram essa bibliografia (Christensen, 2002). 16

Notamos em todos esses trabalhos algumas constantes, variações e transformações na passagem de cada período histórico. No que compete às constantes, podemos indicar que desde o medievo os trabalhos atendem aos seguintes critérios: a) a obra musical desperta certo “efeito”; b) o “efeito” musical possui vínculo causal com a organização s0nora da obra; c) é possível organizar a obra a partir de um princípio teórico geral, o tratado. A harmonia, conceito que remonta a Aristóteles, consiste, enquanto princípio de ordenação do material musical, em uma lei do movimento. A esse respeito, Aristóteles se expressava da seguinte forma: “notas que soam juntas não provocam sentimento” (Menezes, 2002, p. 28). A tradição ocidental passou a vincular o efeito artístico à ideia de obediência a uma lei da harmonia, uma ordenação. Notamos tal empresa no conceito de qualidade e afinidade (modi vocum), de D’Arezzo, em seu Micrologus, de 1026. Observamos também a relação entre ordem e efeito na ideia de proporção no importante tratado de Zarlino, Le Institutioni Harmoniche, de 1558 (Menezes, 2002, p. 28). O conceito de harmonia ampliava-se historicamente conforme o montante material a que deveria dar forma: medidas, proporções, qualidades, formas etc. Mas não apenas em relação quantitativa a um montante material, também altera-se historicamente o foco do interesse musical; aquilo que é possível de ser sistematizado pode se estender do macro ao microcosmo de um objeto musical e sonoro. Essas escolhas, e o modo de estruturá-las, denotam movimentações que, como procuraremos demonstrar, implicam uma lógica composicional e perceptiva concomitantes. Em todos os tratados examinados, há descrições sobre a qualidade intervalar, as regras escalares e a estruturação de formas. Porém, os tratados, e mesmo a interpretação dominante acerca de cada época, não se limitavam a tratar da música apenas em seu aspecto técnico: eles surgiam aliados a uma concepção de mundo que era expressada essencialmente como efeito da técnica, tipicamente em cada período histórico. Embora atualmente possamos estender o adjetivo musical a toda obra contida nessa tradição, o significado dessas obras para cada período diverge, ou seja, os valores, afetos e conhecimentos reivindicados por cada período histórico não foram os mesmos. Por exemplo, 17

no medievo, dizia-se da música que esta evocava a ordem divina, porém apenas quando sob os cuidados da palavra bíblica, já no barroco, as escalas e graus atuavam em função de uma doutrina dos afetos (Affektenlehre), e assim por diante. No classicismo, período pelo qual nos interessamos, tais estruturas do discurso sobre a música se destacam mais pela preocupação com a autonomia instrumental – sua capacidade de prescindir de outros veículos expressivos – do que pela estruturação de um efeito representável. Tal novidade foi ilustrada através de obras musicais e configurou o modelo tonal, cujo discurso, podemos destacar, passou por três momentos. O primeiro, marcado por uma certa herança dos afetos do barroco, mas que os significou por uma via naturalista: “tendeu para uma estética da música como som natural, não como obra de arte” (Dahlhaus, 1989, p. 61), resultando na teoria da Empfindsamkeit, que, de acordo com Dahlhaus, ainda se manteve presente nas décadas de 80 e 90 do século XVIII. Um segundo momento veio suplantar tal tese com o Sturm und Drang2 e sua apropriação do conceito de sublime: Assim, o conceito de sublime, assim como o de “maravilhoso” [wondrous], serviu para justificar um fenômeno que escapava às categorias da estética da imitação e dos afetos que dominavam o século dezoito. O que havia sido percebido como uma desvantagem, a indeterminação da música instrumental, foi reinterpretado como uma vantagem. (Dahlhaus, 1989, p.60)

Este caminho deságua na eleição da música instrumental, gênero que se encontrava estabelecido quando do limiar do período romântico, e cunha um dos primeiros conceitos autônomos na arte musical, a música absoluta: “desdenhando qualquer ajuda, qualquer mistura de outra arte, expressa a natureza característica da arte que é somente reconhecida no interior da música em si” (Hoffman apud Dahlhaus, 1989, p. 60). Uma vez que a música passa a prescindir de um pathos a definir a essência de sua arte, propostas pareciam ser bem vindas para preencher essa lacuna. Certamente um único conceito, a ideia de uma música absoluta, não seria suficientemente explicativo. Junto ao conceito de 2. Sturm und Drang, movimento artístico alemão considerado o precurssor do romantismo. Tem como figuras centrais Johann W. von Goethe e Friedrich Schiller.

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música absoluta, diferenciações mais radicais iam tomando forma, e a definição de um núcleo próprio à música acabou por valorar o restante das características comumente atribuídas à música, porém, como inessenciais. Originalmente a música só possuía valor enquanto arte aplicada [angewandte Kunst], isto é, era utilizada somente como expressão de sentimentos de um sujeito e foi preciso um longo tempo antes que fosse praticada como arte pura [reine Kunst], isto é, que a melodia, harmonia, etc. fossem cultivadas como jogo belo [als schönes Spiel], mesmo sem estarem ligadas a um texto ou coisas do gênero. (Videira, 2010, p. 191-192)

Porém, uma vez que essa música nova veio a ser vinculada à produção da filosofia idealista, há uma retomada do script dos antigos tratados musicais, porém associando agora o conteúdo da música com concepções metafísicas. O conteúdo instrumental autônomo era interpretado enquanto uma inexprimibilidade metafísica. Nesse ínterim, não faltaram propostas para conceber os novos elementos e significados da música instrumental absoluta. Segundo Dahlhaus, Körner introduziu entre as tendências do século XVIII uma recuperação do valor do pathos no interior do conteúdo musical autônomo. Nesse caso, o pathos é introduzido como o elemento de menor valor em uma hierarquia de valores espirituais que a música poderia alcançar, o mais alto, a saber, um ethos, que perpassaria os estados passionais. Körner visa com essa teoria o estabelecimento de um elo entre o conteúdo formal das sinfonias e um resultado perceptivo humanizado: Körner contrasta caráter (ethos) e afeto (pathos). “Dentro daquilo que chamamos de alma, distinguimos entre uma coisa persistente e algo que é transitório, entre o espírito e os movimentos do espírito, entre o caráter – ethos – e os estados passionais – pathos”. (...) a música clássica que a dialética estético-histórico-filosófica de Körner procura justificar, surge como “unidade na diversidade”: unidade de caráter em uma variedade de estados passionais. (Dahlhaus, 1989, p. 65-66)

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Havíamos aludido a três momentos das estéticas musicais do período tonal, mas uma tese mista como a de Körner não configuraria nenhum momento característico. Compreendemos que um terceiro momento serviria a uma estética que trouxesse um novo enfoque sobre a música tonal dos séculos XVIII e XIX, sem recair de algum modo nas estéticas passadas. Da teoria naturalista da Empfindsamkeit à então estarrecida conclusão do Sturm und Drang a respeito da inexprimibilidade da arte musical, a proposta estética que se segue é a de Eduard Hanslick na obra Do belo musical. Não se trata de uma teoria conciliadora ou dialética em relação à tradição passada: podemos interpretá-la melhor enquanto uma resposta à tradição. Rebate a ainda vívida teoria dos afetos, e recorre até a psicoacústica para exemplificar que tipo de estado anímico o som poderia provocar. Mas, diferente da teoria da Empfindsamkeit, Hanslick não se fixa nesses dados enquanto expressão do musical, por entender que eles são apenas suportes dos quais a música pode prescindir, e que não configuram a expressão musical ela mesma: A música, pelo contrário, pode, com os seus peculiaríssimos meios, representar de modo substancial certo domínio de ideias. Tais são, em primeiro lugar, todas as ideias que se referem a modificações audíveis do tempo, da força, das proporções, por conseguinte, as ideias do crescimento, do esmorecer, da pressa, da hesitação, do artificiosamente intrincado do simples acompanhamento e coisas semelhantes.(...) meras ideias que podem encontrar nas combinações sonoras a correspondente manifestação sensível. (...) mas ainda, costuma-se confundi-la, não poucas vezes, com as propriedades puramente musicais. (Hanslick, 2002, p. 25)

Sua análise incorporada a uma teoria musical sólida interpreta os sons sob uma perspectiva estética bastante diferente das perspectivas programáticas, na época impulsionadas pela figura de Richard Wagner, e assim se distancia da estética romântica que vinha dominando o discurso artístico de seu tempo (Dahlhaus, 1989, p. 70-71). Hanslick promovia uma filosofia crítica para a estética musical, cumprindo a estratégia de sair da perspectiva da mera crença na existência real dos 20

objetos – ou, de modo transposto, sair da perspectiva da mera crença na realidade do discurso estético aplicado à música – em direção a uma investigação das condições de possibilidades inscritas a priori em nossa subjetividade, específicas para o caso musical. Tal refreamento sobre a pretensão dos discursos vigentes produziu uma visão bastante divergente quanto às estéticas dominantes, porém convergentes em relação às decisões técnicas e estéticas do período clássico, e sobretudo no que diz respeito à sua época conquanto ao compositor Johannes Brahms, contemporâneo de Hanslick. Hanslick ressignifica a paisagem estética. A ideia de uma inexprimibilidade inerente à música, significada pelo romantismo enquanto representação do infinito, do inalcansável e, por decorrência, do transcendente, em Hanslick é postulada como um problema epistemológico que suscita uma investigação de tipo transcendental, arguindo, portanto, seus próprios limites. O inexprimível passa, assim, a delinear um corpo de investigação filosófica, que tem como metodologia inicial um exame da fenomenologia da experiência musical em questão. Para ilustrar essa nova relação, tipicamente tonal, Hanslick por vezes utiliza de analogias: Cada um de nós, como criança, ter-se-á deleitado no variável jogo de cores e formas de um caleidoscópio. A música é semelhante caleidoscópio a um nível de manifestação infinitamente mais elevado. Produz formas e cores belas em constante e progressiva alternância, ora em transição suave, ora em contraste pronunciado, sempre simétricas e em si cumuladas. (Hanslick, 2002, p. 42)

Percebe-se que o discurso da autonomia musical responde tardiamente aos problemas que a música instrumental trouxe há praticamente um século antes. O descompasso entre estética e música é evidente, e no plano do discurso foi necessário chegarmos a um ideia de inexprimibilidade metafísica e à noção de um discurso não-conceitual para, então, chegarmos a pensar na noção de uma arte não-representacional e autônoma. Se voltarmos ao exemplo do caleidoscópio, veremos que Hanslick está dando um enfoque extremamente prosaico à experiência musical, em detrimento do conteúdo metafísico e poético típico do século XIX 21

(Dahlhaus, 1989, p. 69-70). Qualquer poder metafísico da percepção musical parece se esvair com a simploriedade do caleidoscópio, que, contudo, nos remete ao modelo kantiano de belezas livres e puras, aos desenhos à la grecque e aos temas de papel de parede (Kant, 1993, p. 49). Hanslick se debruça criticamente sobre temas que pareciam já acertados na estética romântica, tais como metafísica, inexprimibilidade, sentimentos, sublime e beleza. Hanslick substituiu os objetos em voga e retraçou preocupações, ocupou-se da expressão de um domínio de ideias que os sons podem de fato nos infringir. A partir de suas conclusões criticou a manutenção da tese barroca dos afetos e de sua continuada e acrítica retomada poética por parte de um romantismo menos radical. Por último, retomou o tema da beleza, tendo, porém, criticado a superficialidade da estética musical kantiana e reintroduzido uma problemática agora ao nível do entendimento. Sua pretensão propôs uma empresa de reflexão acurada, respeitando as características artísticas do fenômeno musical em união ao aspecto técnico, o que se mostra bastante original para o período. Leva adiante o projeto da autonomia da arte musical, sem necessitar incluir a música em programas, sejam estéticos, morais, espirituais ou religiosos. Mantém-se assim filiado ao projeto clássico original de uma música instrumental autônoma, tal como as partituras já ilustravam diferentemente dos livros. Hanslick, assim, suplanta o estético pela via de uma nova diretriz estética, em vértices que ora alcançam o científico, ora circunferenciam o filosófico. A questão epistemológica O estabelecimento da música tonal e instrumental por parte da primeira escola de Viena, do ponto de vista do vínculo entre novas configurações da matéria sonora aos hábitos musicais reinantes, passou a privilegiar uma relação estranha ao jogo habitual da música: entre o objeto musical, o compositor e o ouvinte. Sua estranheza consiste na elaboração de um jogo que não lança mão de maneira tão insidiosa de discursos, estéticas e poéticas que norteavam a mente do homem culto de então. A novidade 22

da música instrumental consiste nisso, na produção de um conteúdo autônomo e não determinado extrinsecamente. Tal nexo autoimputado parece ser uma janela bastante auspiciosa quando averiguamos justamente a condição epistemológica de uma linguagem musical. O ineditismo consiste na produção de uma sequência acústica sem amparo de um poder representativo, mimético, figurativo ou textual, sem com isso abandonar o propósito de incutir beleza. Mas, afinal, o que a epistemologia haveria de fazer se debruçando sobre tal contexto? A resposta: averiguar como foi possível, em termos de estratégia composicional e em termos da estruturação de nossa cognição, um discurso musical instrumental puro, compreensível, sem contar com uma base cultural previamente legitimada. O modo de fruição e de racionalização dos materiais proposto por Carl Phillip Emmanuel Bach, Joseph Haydn, Mozart e Beethoven são de conhecimento da literatura musicológica. Porém, sacar desses últimos o modo como suas estratégias formais e dialógicas correspondem a uma elaboração intelectual, e mesmo uma reorganização de nossas aptidões cognitivas, não foi algo a que a filosofia tenha se dedicado o suficiente, e vemos que seria de grande valia à disciplina epistemológica. Sendo este um trabalho introdutório e mesmo de divulgação das possibilidades epistemológicas aplicadas à música, iniciamos nossa imersão no assunto por um autor contemporâneo dos autores da música clássica, com uma importância teórica relativa ao mesmo período musical: o filósofo Immanuel Kant. Porém, já de início, se interpõe uma questão formal, pois embora Kant de fato tenha uma teoria consistente para explicar nossas funções cognitivas e a produção de conhecimento, ele reserva ao tema específico da música uma outra ordem cognitiva, ligada ao problema do juízo estético, e não à estrutura lógica enquanto arcabouço de todo o conhecimento. Escolher Kant como nosso interlocutor implica para o objeto musical colocá-lo sob um pano de fundo que se encontra previamente cindido entre uma estética e uma lógica. A compreensão do fenômeno musical enquanto pertencente à trama total de nossa constituição lógica e aos processos mentais assim típicos depende, portanto, da demonstração de que os objetos musi23

cais não são apenas matéria de interesse para a disciplina estética ou mesmo para a faculdade do juízo estético. Essa demonstração não é fornecida por Kant, pois adota uma rígida distinção entre o lógico e o estético, provocando uma difícil interação entre esses âmbitos. Porém, para nossa sorte, a estrutura do conhecimento, como formulada por Kant, permite uma aproximação direta com o objeto musical, embora não explorada por ele no sentido que buscamos aqui. Um fundamento epistemológico em Kant: juízo determinante ou juízo reflexivo? Ter posse de um conhecimento, determinar ou atestar sua circulação, e mesmo as formas de sua transferência, envolve estados de configuração dessa informação que nomeamos conhecimento, estados que buscam se configurar mais apropriados a seus determinados fins. Para Kant, tal atividade intersubjetiva ocorre pois há um fundamento comum a toda humanidade acerca dos processos de formação de um juízo de conhecimento. Tal fundamento será sempre lógico, e todo juízo, sob qualquer configuração que dê a mostrar conhecimentos, será determinante. Juízos estéticos por sua vez não compartilham de um fundamento lógico, o que implica que sua posse, circulação ou transferência não contarão com um fundamento intersubjetivo forte – e, em verdade, não podem contar com ele, mas podemos falar apenas de um mínimo de intercomunicação desse juízo e no máximo de um sensus communis. Juízos estéticos são subjetivos e os classificamos enquanto reflexionantes. Do ponto de vista lógico, o consenso é garantido por um processo epistemológico peculiar, a recognição. Do ponto de vista estético – aquele que Kant reserva às artes e à beleza –, consegue-se algum consenso às custas da especificidade de conteúdo, abdica-se de um conteúdo preciso do juízo estético, e comunica-se aos demais sujeitos apenas a forma de um pensamento, e não um pensamento completo. Um mínimo está garantido, porém, do juízo estético nada se deduz e nada se transfere, nada se depreende, e ficamos, portanto, extasiados diante de um sentimento que não se vincula estritamente a um objeto, 24

enquanto que do juízo lógico segue-se uma cadeia à qual chamamos de pensamento e conhecimento. A recognição, principal atividade lógica, compreende a ação de subsumir uma intuição em um conceito. De acordo com Deleuze, o modelo recognitivo: “se define pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo: é o mesmo objeto que pode ser visto, tocado, lembrado, imaginado, concebido” (Deleuze, 1988, p. 221). Nossa faculdade do entendimento consiste nisso, em recognizar intuições sensíveis sob a forma de conceitos. Porém, nossa faculdade de julgar, sem as categorias e conceitos necessários a uma recognição, não é capaz de determinar um objeto e por isso passa somente a reflexionar, e quando o faz sem qualquer tipo de auxílio conceitual chamamos isso de um juízo estético puro, ou beleza, segundo Kant: A faculdade do juízo em geral é a faculdade de pensar o particular como contido no universal. No caso de este (a regra, o princípio, a lei) estar dado, a faculdade do juízo, que nele subsume o particular é determinante e assim recognitiva (o mesmo acontece se ela, enquanto faculdade de juízo transcendental, indica a priori as condições de acordo com as quais apenas naquele universal é possível subsumir). Porém, se só o particular for dado, para o qual ela deve encontrar o universal, então a faculdade do juízo é simplesmente reflexiva. (Kant, 1993, XXVI)

É intrigante o fato de que, ainda que o juízo tenha como função principal subsumir o particular no universal, como quando observamos um objeto que à primeira vista não passa de uma mancha no horizonte e então, em seguida, somos capazes de nomeá-lo, o juízo em seu modo reflexionante não contempla essa função3. Contudo, se falamos do reconhecimento da atividade musical enquanto um conhecimento, estamos requerendo a participação de uma 3. Aqui inclusive se insere uma série de trabalhos de comentadores a respeito da relação entre essses dois juízos, o determinante e o reflexionante, porém não faz parte de nosso objetivo costurar qualquer ponte que unifique, corrija ou aperfeiçoe as obras kantianas, nem abrir a tais questões que são de interesse apenas para o estrito estudioso de Kant. Dedicamos- nos a um modelo que cumpra somente com nossa questão musical, de como tratar da relação entre conhecimento e música.

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unidade conceitual para o objeto musical, que detenha: uma função recognitiva, subsunções e regramento. Tais critérios deverão se adequar àquilo que podemos acessar em uma escuta: campo harmônico, tema, desenvolvimento, intervalos, enfim, uma gama de elementos. Se há funções recognitivas presentes na atividade musical instrumental tonal, isso significa que esse conhecimento, na música, foi conseguido através de um intrincado complexo de técnicas, hipóteses e experimentações acerca da escuta, da composição e execução musical. Na tradição musical, os resultados, acúmulos e sínteses de técnicas se apresentam sob a forma de tratados, como o de Rameau, de 1722, uma das bases do tonalismo o qual Haydn formulou, a partir de estratégias composicionais, como a funcionalização do núcleo motívico e a parametrização de toda a forma musical, aquilo que veio a ser a música clássica. Seguindo-se a esse construto a representação axiomatizada das funções tonais ali exercidas, como proposto por Riemann, no século XIX. O tema parece amplo e pleno de ramificações, mas de início tratase de equacionar uma série de fatos concernentes à lide musical sob exigências lógicas. Para estreitar o leque da pesquisa, situamos nosso objeto musical no recente período tonal a que a música clássica deu forma. Notamos que a partir da ascensão da música clássica no século XVIII abriu-se um campo decisivo que se tornou preponderante – até a atualidade – para a produção instrumental. Ressoa, desde então, essa relação entre hábeis compositores e suas estratégias, e o que seja a relação entre esses sons e a sua significação: A transposição do ritornello por tonalidades [key] diferentes, e desenvolvimentos modulatórios nos episódios entre as áreas tonais [key] estáveis do ritornello, produz um arcabouço [scaffolding] formal harmonicamente baseado: um arcabouço que permite a comparação entre a música e a arquitetura, que se tornou um lugar-comum, parecer plausível. Por outro lado, partes do tema podem ser isolados, variados, ou reagrupados, de modo que emergem os princípios do processo que mais tarde, enquanto trabalho temático-motívico em Haydn e Beethoven, tornou-se a epítome da lógica musical discursiva. E a diferença entre a exposição temática ou recapitulação e o trabalho motívico está intimamente relacionada com a

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fundação tonal da forma, porque fechamentos temáticos e tonais estão relacionados um com o outro da mesma maneira como o desenvolvimento motívico e modulatório. (Dahlhaus, 1989, p. 108)

Essas premissas pretendem dar conta de uma produção artística musical, e não apenas afigurar um domínio técnico, e isso é de suma importância para a compreensão da música instrumental, como ilustrado pelo engajamento vivaz de Schlegel: “‘Toda a música pura”, escreveu Friedrich Schlegel em algum momento entre 1797 e 1801, deve ser filosófica e instrumental (música para o pensamento)” (Dahlhaus, 1989, p. 107). Em resumo, aquilo que seja a beleza de uma obra musical específica parece conter muito mais do que um mero sentimento de agrado, ou mesmo um sentimento de beleza ou de sociabilidade. A escuta caminhou de modo a abarcar mais do que sensações e sentimentos, e há ainda mais sutilezas entre eles em caracteres, juízos e ideias. A seguir, apresentamos a primeira proposta concreta, tanto ao problema kantiano quanto ao problema epistemológico musical em geral, surgida no século XIX, mais especificamente no trabalho de Eduard Hanslick. Ele, como vimos brevemente, se interessou por questões filosóficas e epistemológicas e escreveu uma breve e panorâmica obra intitulada Do belo musical, na qual insere uma problemática lógica no interior do que ele nomeia como sendo uma estética musical. Toda intuição de Hanslick – e isso é o que de fato torna seu trabalho teórico tão interessante mesmo que, em sua maior parte, ainda especulativo – consiste em trazer para sua investigação conteúdos provindos diretamente da percepção musical. Isso é o suficiente para que o autor erija perguntas-chave à questão que envolve o enlace entre percepção musical, conhecimento e gosto.

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A proposta de Hanslick Jogamos com elementos lógicos e demos mais destaque a eles nessa breve exposição sobre Kant, porém, veremos ainda que Kant desclassifica de modo a priori toda nossa contenda. Na estética de Hanslick, por sua vez – e subentende-se pelo termo “estética” uma investigação das relações lógicas dadas pela faculdade do entendimento –, a música deixa de ser um veículo privilegiado dos afetos e passa a ser compreendida autonomamente como veículo de ideias propriamente musicais. Embora os comentadores deem mais destaque ao fato de Hanslick desconsiderar a estética dos sentimentos, ou da beleza pura kantiana, ambas não contemplam as proposições fundamentais de sua tese. Hanslick se empenha por reintroduzir na estética seu sentido sensível ligado ao termo aisthesis (percepção, sensação, faculdade dos sentidos) e tomá-la menos como uma faculdade do gosto, no sentido de que o primeiro é determinante para o segundo. Sua segunda proposição fundamental seria a de que essa disciplina estética, em sentido sensível, deve ser dirigida a objetos e não a modos de sentimentos dos quais nunca se depreenderia qualquer fundamentação. Contudo, o vínculo epistemológico preciso, a teoria de base para pensarmos a música enquanto conhecimento, enquanto esforço lógico, Hanslick não nos logrou. Nos guiamos a partir de seus apontamentos e somamos esforços para tratar de seu diagnóstico, no qual a estética musical padece ainda de um discurso melancólico, sentimentalista e por vezes até mesmo patológico: “Mas a arte sonora ainda não soube apropriar-se deste ponto de vista científico e, na sua estética, ficou para trás das restantes artes” (Hanslick, 2002, p. 14). Hanslick está pondo em xeque uma tradição de estéticas/poéticas a priori que, antes mesmo de se debruçar sobre seu objeto, já postulava leis, conteúdos, regras, discursos e objetivos à música. Interessa mais a Hanslick a produção que encontra seus resultados no labor e naquela criatividade mais presa ao manejo do material, provindo de uma maturidade e experiência, em detrimento daquela externa e afastada do material, criada por referências idealmente compostas as quais a

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arte deverá se equilibrar posteriormente. A música, contudo, parece coisa ricercata. Reposicionando o princípio da aisthesis junto ao do entendimento, abre-se o terreno para o debate das técnicas musicais. Uma história das técnicas musicais pode dar lugar a dois debates distintos: um debate referente às distinções sensíveis que são demarcadas em procedimentos técnicos, e outro debate acerca do conteúdo musical. Contudo, se acompanhamos o percurso histórico, vemos que os debates acerca do conteúdo findam muitas vezes sem continuidade, enquanto que o debate acerca das distinções sensíveis mantém-se atual. Muito sucintamente, D’Arezzo denominou música como sendo o movimento dos sons. Não houve por nenhum período musical uma definição que parecesse contradizer tal assertiva, embora rapidamente se tornasse obsoleta, e assim conclui Menezes: O que importa à escuta musical é, no entanto, perceber como se motiva (do latim motus – movido) o som, aproveitando o que de essencial distingue a música da maioria das outras artes: o tempo, mas através da transformação (direcionalidade). (Menezes, 2002, p. 30)

Aos tratados, foi incumbida a tarefa de fornecer a regra de uma ordem direcional. De posse desse conhecimento para a confecção de objetos musicais, um músico pode ter segurança na composição de sua obra, organizar seus elementos segundo princípios e assim garantir uma direcionalidade compreensível. Esses trabalhos se inscrevem no campo da ciência musical e não podemos ligá-los imediatamente ao inquérito filosófico: o que é música? Respondendo tais questões no que diz respeito ao desenvolvimento harmônico de uma obra, pode-se estender tal conclusão também aos outros fenômeno da composição musical (tais como densidades, alturas, intensidades, as próprias durações, os timbres): uma obra pode ser direcional ou adirecional. Será direcional quando atrair o ouvinte a um tipo de escuta no qual este possa perceber a transformação de um estado acústico a outro, seja num determinado aspecto (fenômeno) sonoro, seja na combinação de algum destes (ao menos algum parâmetro, no entanto, não deverá

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transformar-se a fim de se evitar um acumulo negativo de informação). (Menezes, 2002, p. 30)

A técnica musical está circunscrita por capacidades que pertencem tanto ao ouvinte, em se “manter movido” pelas formas sonoras, quanto aos executantes da forma musical, em torná-las motivadoras. Sermos movidos é propriamente a atividade de escutar música, enquanto que a atividade de compor ordens e formas, ou executá-las em uma performance, é musical. Esse é um jogo restrito entre músicos e ouvintes, e nesse jogo a filosofia não possui papel. Os tratados musicais da antiguidade atestam essa relação ao não reivindicarem qualquer condição de possibilidade, ou mesmo, ao não buscarem as causas últimas dos fenômenos acústicos que nos aparecem como musicais. É essa a tarefa da qual a estética musical havia se desencubido, de acordo com Hanslick, abandonando assim o sentido crítico tão caro à filosofia. Para que uma filosofia ou uma estética musical se inicie, é necessário que se pergunte de que forma movimentos – qualidades e quantidades –, agrupados em uma percepção acumulativa, destacariam algo como um sentido, e ainda, o que esses sentidos e direcionamentos vêm a expressar. Tudo indica que a pergunta o que é o conteúdo musical? vinha sempre respondida de antemão. Porém, colocando-se socraticamente ante ao que vinha sendo facilmente respondido, Hanslick enfim pergunta: o que é música? A resposta à questão é tão inovadora quanto pouco esclarecedora: “Se se perguntar o que se há de expressar com este material sonoro, a resposta reza assim: ideias musicais” (Hanslick, 2002, p. 41). Se, por um lado, a música é uma percepção e um entendimento (Hanslick, 2002, p. 16) de qualidades e quantidades sonoras, por outro, ela é uma compreensão desses elementos que expressa um sentido próprio, assim como um pensamento estabelece argumentos e julga aqueles adequados, corretos e falsos: Mas uma ideia musical trazida inteiramente à manifestação é já um belo autônomo, é fim em si mesmo, e de modo algum apenas meio ou material para a representação de sentimentos e pensamentos outros, embora possa possuir em alto grau aquela sugestividade simbólica, reflectora

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das grandes leis cósmicas, com que deparamos em todo o belo artístico. (Hanslick, 2002, p. 41-42)

O sentido argumentativo, convincente e às vezes inferencial, foram as pistas para o perseguimento de uma orientação objetiva que, contudo, “não podia deixar de bem depressa se comunicar à pesquisa do belo” (Hanslick, 2002, p. 13). Diante do belo, a fantasia não é apenas um contemplar, mas um contemplar com entendimento, i.e., um representar e um julgar, este último decerto com tal rapidez que os processos individuais não nos chegam à consciência e surge a ilusão de que acontece imediatamente o que, na verdade, depende de múltiplos processos espirituais mediatos. (Hanslick, 2002, p. 16)

Nota-se, assim, que a dicotomia estética/lógica já não contribui para o debate, é necessário compreender a estética musical no interior de um debate mais amplo no qual lógica e estética possam se coordenar sob o ponto de vista do fenômeno musical: Os sentimentos não existem isolados na alma de modo que se possam, por assim dizer, salientar por meio de uma arte à qual está oclusa a representação das demais actividades espirituais. Pelo contrario, dependem de pressupostos fisiológicos e patológicos, são condicionados por representações, juízos, em suma, por todo o campo do pensar intelectual e racional, a que se contrapõe de tão bom grado o sentimento como algo de antitético. (Hanslick, 2002, p. 24)

Estamos, portanto, adentrando cada vez mais no detalhe do argumento, de um vínculo lógico amplo em direção aos conceitos específicos do entendimento, desses para questões técnicas e sensíveis, e enfim, para a estruturação de uma epistemologia apropriada à música. A novidade, aqui, reside menos no fato de se buscar um fundamento para descrições de percepção musical, do que no fato de se recorrer a uma epistemologia ao invés de a uma poética, a uma metafísica ou a uma ideologia. Havíamos iniciado essa incursão apelando ao órgão da escuta. Retomamos o apelo, mas, agora, redimensionado a busca por um sis31

tema cognitivo que se coloque válido tanto para os eventos sonoros e musicais quanto para os eventos visuais. A filosofia de Kant, embora não totalmente adaptada a essa disciplina, possui várias aberturas nesse sentido.

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parte 1. O lógico e o Estético A aparência e o jogo hoje já têm contra si a consciência da Arte. Esta quer cessar de ser aparência e jogo, quer tornar-se conhecimento.1

Um modelo epistemológico, o mais compatível com a prática musical clássica, em vista dos procedimentos de composição e de uma atitude de escuta típica desse período, deve se prender menos às subtilidades e se concentrar naquilo que seja considerado como constante do estilo ou da linguagem. Tal modelo nuclear pode ser encontrado no gênio e no engenho de Joseph Haydn (1732-1809), que absorve a estrutura harmônica tonal de modo integral, estrutura que remonta ao tratado de Jean-Philippe Rameau (1682-1764), e assim partilha e dá vazão ao movimento com estrutura e linguagem própria, que se desenvolve com Mozart (1756-1791) e Beethoven (1770-1827). Dada essa construção musical, que tem sede no século XVIII, e que se notabilizava por criar um discurso musical instrumental autônomo, seria necessário eleger, entre os trabalhos filosóficos do período, aquele que se adequasse sobretudo às estratégias da linguagem musical – num sentido mais próximo de uma filosofia da técnica do que de uma filosofia da cultura –, mas que representasse também um modelo epistemológico abrangente. O debate estético que vinha desde o século XVII, conhecido como sendo uma querela entre os antigos e os modernos, pouco contemplaria o enfoque e as questões que aqui levantaremos. Esse último século se notabilizara por postular regras rígidas e hegemônicas de composição, 1. Fala de Adrian Leverkühn, personagem do romance Doutor Fausto de Thomas Mann (Mann, 2000, p. 254).

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no prevalecimento do conceito de mímesis, e ainda de imputações de hábitos a contingências morais, através da retórica aplicada à música. O contexto geral provinha, em realidade, da literatura: Mas, para alguns, a revolução copernicana colocara sob júdice não apenas a filosofia, mas a própria literatura: mutatis mutandis, o espírito metodológico que caracteriza o pensamento cartesiano deveria ser aplicado também ao domínio do belo e do sublime (...). Esta inflexão acentuada sobre o método está, entretanto, longe de representar um consenso entre os grandes críticos do período. Muitos permaneceram fiéis aos princípios mais gerais do classicismo, aos quais não se ajusta perfeitamente a suposição de que a razão constitui, por si mesma, o justo padrão de medida para a avaliação e produção artística. (Bate apud Vieira, 2003, p. 21)

O século XVIII, por sua vez, caracteriza-se por uma oposição a esses preceitos: De modo análogo, ele servia aos propósitos de todos os que procuravam mobilizar forças contra as regras: boa parte dos leitores ingleses de Longinus tinha sob a mira a rigidez formal que caracteriza as vertentes racionalistas do classicismo. (Bate apud Vieira, 2003, p. 40)

De acordo com Vieira, foi a partir do conceito de sublime, introduzido por Longinus, que o discurso do século XVII pôde ser substituído por um enfoque que privilegiava as paixões suscitadas pela obra e menos por regras fixas. Isso poderia ser representado pelo movimento Je ne sais quoi, que fez introduzir a regra de que as regras pouco importavam, mas sim os efeitos passionais que uma organização poderia suscitar. Esse teria sido, segundo Vieira, o fio condutor que levou ao discurso literário romântico, no qual predominava a liberdade de criação e a evocação dos sentimentos. Observamos, dentro desse quadro que evolui pelo século XVIII, que esse discurso estético se torna hegemônico. A antiga postulação de regras e princípios poéticos que regeriam a obra, ao passar para um modelo que privilegia o efeito subjetivo, passa então a contar mais com o fundamento psicológico, em detrimento do objeto enquanto portador

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de propriedades objetivas. Esse giro subjetivo pode ser exemplificado pela obra de Edmund Burke (1993). É decerto natural que, uma vez resolvidas as questões técnicas de uma arte recém gestada, essa mesma arte abra ou conceda lugar a poéticas, e o que se observava no século XVIII era o fato de que as estéticas precedentes, sobretudo as ligadas ao afeto, ainda dominavam a concessão poética, enquanto que o interesse técnico-artístico permaneceu restrito ao músico. Já a relação entre sensação e afeto junto aos objetos da arte se colocava enquanto questão para a psicologia. Contudo, é curioso como no caso da literatura uma ambição teórica tenha aberto espaço para a consecução técnica-artística a posteriori. A virada transcendental promovida por Kant acarreta ainda outra mudança. Embora esteja situado no âmbito estético de orientação subjetiva e centralizado nos conceitos de beleza e sublimidade, Kant não constitui uma nova poética nem traz alguma contribuição técnico-artística, mas reconfigura a tese psicológica base de uma epistemologia ainda muda, que passa a ser subordinada a uma altissonante filosofia transcendental. Tratou-se de uma busca por fundamento teórico, com a incumbência de desvendar o aparato mental a priori que desse respaldo ao julgamento dos sentimentos. Assim, o juízo de gosto em geral e o juízo da beleza aparecem munidos de estruturas que haviam sido erigidas já na Crítica da razão pura e na Crítica da razão prática, porém, analisadas em seu pormenor na Crítica da Faculdade do Juízo. A solução kantiana constitui uma mudança histórica no enfoque estético. A estética havia saído de uma primazia da feitura e da postulação de princípios, os quais o artista impregna em um objeto. Ela rumou para um ponto de vista subjetivo com base psicológica, preocupado com o modo de afetação por objetos, passando, então, para um modelo de organização das faculdades que faz dividir, antes de mais nada, o enfoque estético do enfoque lógico, psicológico ou mesmo artesanal. Há, segundo Kant, estatutos2 pré-determinados aos quais temos acesso 2. Utilizamos o termo estatuto para caracterizar a composição das faculdades inerente a cada ação do juízo, seja reflexivo ou determinante, no sentido de ambos juízos prefigurarem possibilidades teóricas inscritas nas faculdades do conhecimento de modo a priori. Isso quer indicar tão somente que Kant não

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apenas em uma investigação epistemológica, que tanto condicionam a experiência de um objeto em um sentido lógico e determinante quanto condicionam a experiência de sentimentos estéticos que interessam ao discurso artístico de então, sendo, portanto, um estatuto estético e reflexionante. No capítulo que se segue, nos dedicamos a compreender de que modo, e por que razão, a cisão entre o lógico e o estético se deu na filosofia de Kant, para então esclarecer por que motivo a razão reivindicada por ele seria insuficiente. No capítulo subsequente, empreendemos o caminho inverso, investigamos como o modelo lógico kantiano é capaz de reivindicar a compreensão de objetos musicais, afastando, assim, os componentes estéticos e convertendo aquilo que seria um método insuficiente do ponto de vista kantiano em uma porta de entrada para a epistemologia musical. O objetivo é explorar um pouco as possibilidades dos modelos estético e lógico para o objeto musical.

cria novos objetos e novas faculdades além do entendimento e da razão, mas demonstra certos caminhos da cognição que fazem a distinção estético/lógico valer em uma experiência: “O campo da crítica estende-se a todas as pretensões das faculdades, para pô-las nos limites de sua legitimidade” (Kant, 1995, p. 102).

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Capítulo 1 Crítica da estética pura

O que é um juízo estético? O termo estético se refere àquilo que é da ordem sensível, das sensações e dos órgãos dos sentidos, mas, sobretudo, por obra de Alexander Gottlieb Baumgarten, o termo é estendido para a compreensão dos fenômenos da beleza e da arte. Já em Kant encontramos dois sentidos para o termo: um, identificado com as intuições puras da sensibilidade, e outro, identificado com a atividade judicativa do gosto, na qual também se insere a beleza. Podemos ainda introduzir o assunto estético kantiano por um ponto de vista negativo, sobre o que ele não é: “O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético” (Kant, 1993, p. 4). O juízo estético, enquanto um juízo não lógico, é antes de mais nada uma autonomia e, ainda veremos, se apoia em desdobramentos teóricos de um modelo presente na Crítica da Razão Pura. A faculdade do juízo, em sentido amplo e válido tanto para os juízos estéticos quanto para os juízos lógicos, é caracterizada na introdução da terceira Crítica como uma faculdade que contém o princípio da conformidade a fins formais da natureza. Conter em si um princípio de conformidade a fins, capaz de verificar a conformidade de um conceito, demonstra, de início, certa vocação da faculdade do juízo para com a matéria lógica. Porém, enquanto faculdade autônoma o juízo se ilustra enquanto a capacidade a priori que temos de julgar (independente da aplicação em um juízo lógico ou sobre um múltiplo sensível), em 37

conformidade às legalidades reivindicadas. Esse caráter autônomo da faculdade do juízo irá repercutir de forma decisiva na caracterização do juízo estético enquanto diverso do lógico. Em contexto epistemológico, a identidade do juízo estético vai se dar na medida em que o juízo estético coincide com o exercício autônomo da faculdade do juízo, sua função de conformidade a fins. Porém, em uma situação em que não há um fim, e na qual não há uma matéria a ser conformada, o juízo estético passa a reflexionar sobre si mesmo, ao invés de conferir logicidade a matérias percepcionadas. Contudo, alguns graus dessa reflexividade se revelam, e veremos que o juízo da beleza é aquele no qual a característica reflexionante da faculdade do juízo aparece de forma mais pura. É esse o sentido do juízo estético enquanto juízo da beleza e da arte, quando ele se liga à faculdade do juízo enquanto uma faculdade de gosto. O outro sentido do termo estético encontramos ainda na primeira Crítica, ligando-se à faculdade da sensibilidade, e não à faculdade do juízo, e é apresentado no contexto de um estudo acerca das principais faculdades a priori do conhecimento científico e, por decorrência, do conhecimento discursivo. Encontramos essa definição na seção “Estética transcendental”, revelando um sentido bastante diverso daquele da terceira Crítica. Na seção, o termo estética se dirige a uma conformação passiva e pré-discursiva, que segue uma cadeia de sínteses até os juízos lógicos completos. Um contexto evidentemente díspar da terceira Crítica. A diferença do significado do termo estética para as duas obras – a primeira e a terceira Críticas – é, portanto, incomensurável, não sendo possível tratar dos dois sentidos ao mesmo tempo. Em virtude desse recorte dado na obra de Kant, excluímos de nosso escopo a estética abordada enquanto disciplina que trata do conteúdo sensível da faculdade da sensibilidade, como na primeira Crítica, e tematizaremos nessa seção tão somente o estético enquanto âmbito do gosto e enquanto um juízo específico da faculdade autônoma do juízo, como descrito na terceira Crítica: “Aquilo que na representação de um objeto é meramente subjetivo, isto é, aquilo que constitui a sua relação com o sujeito e não com o objeto é a natureza estética dessa representação” (Kant, 1993, XLII). 38

Ao discorrermos sobre o juízo estético daqui em diante, estaremos portanto nos referindo a juízos de gosto que tramitam entre os sentimentos de prazer e desprazer, sentimentos eminentemente subjetivos e, por isso, incapazes de representarem-se objetivamente. Retomando a definição negativa de um juízo estético, o juízo estético é, portanto, subjetivo porque não é objetivo, e é um juízo de gosto puro, beleza, porque não é lógico, e por isso não ajuíza uma propriedade lógica de um objeto. Ele ajuíza para si mesmo de que modo seu estado interno reage a uma dada circunstância artística ou natural, inferindo ao mesmo tempo uma definição da atividade ajuizada junto, exclusivamente, à faculdade do juízo. É necessário demarcar também que, embora o juízo estético se diferencie e se demarque de modo contraditório ao lógico, não é verdade que ele se encontre epistemologicamente apartado dos elementos comuns ao juízo lógico. A explicação, em nível epistemológico, do juízo de gosto puro, da beleza, necessita de justificações que se situam ao nível de nosso aparato de conhecimento comum, que opera a partir de dados sensíveis (dados da sensibilidade) e que, comumente, opera juízos lógicos eminentemente conceituais. Um juízo como o estético e, sobretudo, o juízo estético puro, necessita justificar sua ocorrência, ou seja, de que modo ele faz com que o objeto intuído não seja subsumido a uma forma conceitual, e permaneça apenas em sentido subjetivo, dando lugar para uma operacionalidade reflexionante da faculdade do juízo, desfazendo-se da operacionalidade lógica. Em poucas palavras, Kant deverá fundamentar de que modo o juízo da beleza não se liga aos dados da intuição sensível e nem às categorias lógicas. Em vista desse curioso estatuto do juízo da beleza, tornamos nosso o inquérito kantiano: “Só que agora surge a pergunta: existe em geral uma tal representação da conformidade a fins?” (Kant, 1993, p. 33). Ou seja, existiria algo como esse juízo reflexionante, que Kant elege como representante epistemológico dos atos cognitivos, aplicado às obras de arte? A pergunta se torna pertinente tendo em vista a falta de subsunção e de função lógica no campo estético puro, definido enquanto juízo do belo. Excluir as funções lógicas e discursivas, tão caras ao conhe39

cimento, responsáveis pelas apresentações de todo o conteúdo para a apercepção, certamente gera um embaraço teórico, um problema que Kant visa sanar na primeira seção da terceira Crítica, intitulada “Crítica da faculdade do juízo estético”. Encontramos um problema a se resolver na relação que o juízo estético trava com a faculdade do entendimento. O entendimento, enquanto responsável pela síntese de formas sensíveis em formas discursivas e objetivas, parece imediatamente contrário ao estatuto que o juízo estético reivindica. Porém, como sabemos, o juízo estético dá lugar a uma conformidade a fins que se vincula à forma do conhecimento em geral, o que inclui a faculdade do entendimento. Assim, sua conformidade a fins parece não ser determinada, apenas reflexiona, e nem por isso parece estar apartada das demais faculdades: E não se chega a nenhuma solução supondo que haja objetos especiais com respeito aos quais se chegue a uma tal proporção, ou que os objetos belos devam ser realmente interpretados no pano de fundo da teoria kantiana. Assim, não é o caso que, para cada objeto dado, se siga uma outra proporção das faculdades do conhecimento. Creio ser mais provável que Kant queira dizer que, no processo de conhecimento, duas proporções entre a imaginação e o entendimento se apresentam. Em face de diferentes objetos dados intuitivamente, pode-se chegar a mais ou menos grandes disparidades de uma proporção ideal das faculdades do conhecimento. Primeiro, a existência de uma proporção ideal propícia ao conhecimento em geral permite-nos distinguir se uma representação intuitiva está sob um certo conceito. (Bradl, 1995, p. 4)

Acompanhando Bradl, temos que o juízo do belo se insere em um limite da harmonia das faculdades. O limite está traçado na inclinação diversa que o juízo de gosto toma no interior de uma estrutura geral do conhecimento. Assim, segundo Kant, embora a beleza não se referencie diretamente ao entendimento, o juízo estético puro que funda o estado da beleza cumpre, parcialmente, a estrutura do “conhecimento em geral” (Kant, 1993, §9), pois que é por alguma razão refratado e passa a agir livre de uma ação determinante, assentindo um sentimento de prazer ou desprazer: 40

A realização de toda e qualquer intenção está ligada com o sentimento do prazer e sendo condição daquela primeira uma representação a priori – como aqui um princípio para a faculdade de juízo reflexiva em geral – também o sentimento de prazer é determinado, mediante um princípio a priori e legítimo para todos. (Kant, 1993, p. 31)

O cumprimento de uma intenção parece ser uma determinação a priori. Kant nos diz que esse sentimento de prazer que se associa a essas intenções cumpridas possui também um princípio a priori. A partir disso, se monta o problema que perfaz toda a seção estética de Kant na terceira Crítica, que é o modo como o prazer e desprazer se ligam a objetos lógicos e de que maneira se ligam a objetos puramente estéticos, sendo que estético é sinônimo de gosto, e o gosto sinônimo de juízos de prazer e desprazer. Assim, para o caso da beleza dos objetos de arte, a função autônoma do juízo estético permite um desvio das determinações espaço/ temporais e conceituais comuns ao conhecimento lógico, abstendo-se de uma ortodoxia que parece ditar a vida cognitiva, a necessidade da consecução de um propósito, de um fim, e, justamente, deixar de o fazer é o que significa reflexionar, ou seja, buscar regras onde em realidade nenhuma regra ou limite prevalece ou mesmo se dispõe. O estatuto epistemológico do juízo estético puro O juízo estético puro, ou a beleza, ocupa duas seções na terceira Crítica. Ele é definido na Analítica do belo e escrutinado na Dedução dos juízos estéticos puros. Na Analítica ele é definido por comparação a quatro categorias lógicas: qualidade, quantidade, relação e modalidade. Aqui encontramos algo bastante curioso, que chama a atenção de Guyer, haja visto que ao buscar definir um estatuto não lógico, mas estético, Kant recorre a um procedimento análogo ao que procedeu na primeira Crítica, quando buscava definir o conhecimento (Guyer, 1997). Ainda mais curioso é o fato das definições kantianas pouco levarem em consideração as funções lógicas elencadas para cada propriedade do juízo estético. 41

Para a categoria da qualidade Kant define: Gosto é a faculdade de ajuizamento de um objeto ou de um modo de representação mediante uma complacência ou descomplacência independente de todo interesse. O objeto de uma tal complacência chama-se belo. (Kant, 1993, p. 16)

Estatutos epistemológicos se elencam ora de modo axiológico e ora de modo algorítmico. Quando se estruturam axiomaticamente, os seus conceitos se prestam a deduções posteriores ou regressões ao axioma para a explicação de fenômenos. Exemplos dessa estruturação vemos em: 1) a beleza é uma complacência, 2) complacência é função da faculdade do juízo de gosto que ajuíza um objeto ou modo de representação. Quando se estruturam algoritmicamente, o aparato epistemológico se organiza a partir de variáveis booleanas, como o caso aberto pelo axioma 2, dando espaço a dois caminhos que correspondem a dois circuitos epistemológicos: a) aquele que ajuíza um objeto, b) aquela que ajuíza um modo de representação. Para o caso de “a)” dá-se o nome de agrado, e para “b)” dá-se o nome de beleza (Kant, 1993, §3). A diferença entre um objeto e um modo de representação parece sutil à primeira vista, porém, diz respeito a uma distinção verificável em nível fenomenológico (consciente em primeira pessoa), que diz respeito respectivamente ao juízo de um objeto transcendente, e a um estado subjetivo de nossa consciência. Assim, escrutinando o estatuto da beleza, fica claro que esse se difere com relação aos objetos: Juízos estéticos, por sua vez, guardam com estes [lógicos] uma semelhança meramente formal: “belo” não é um conceito de objetos, e não pode ser portanto utilizado para decidir se o que é apresentado sensivelmente é ou não o seu caso. (Vieira, 2003, p. 56)

A estranheza da passagem é a seguinte. Se belo não predica a beleza de um objeto, mas, na verdade, predica uma complacência de algo formalmente semelhante a um objeto (mas de modo algum um objeto), essa mesma complacência, a beleza, é uma curiosa representação que não predica nada de objeto algum, mas que seria, por si e em si, uma representação subjetiva, encerrada em si, não objetivável. 42

Se voltamos à citação feita anteriormente – “o objeto de uma tal complacência chama-se belo” – nota-se uma utilização inadvertida do termo objeto para a designação da complacência da beleza, e poderíamos nos perguntar quais os significados de objeto implicados na passagem em questão. Num sentido válido para a lógica, e em parte para os objetos do juízo de agrado, objeto significa algo que tenha existência na realidade exterior, portanto, objetivamente orientado. Porém, no segundo sentido em que Kant se refere a objeto, incluindo o modo de representação da beleza, podemos compreendê-lo pela expressão geral = x, ou seja, um simples algo que é o sentimento da beleza e pode ser matéria abstrata, tema ou foco de uma mirada consciente. Apenas nesse segundo sentido a beleza é um objeto, na medida em que expressa um caráter desinteressado e independe da objetividade enquanto pressuposto epistemológico de sua consecução como estatuto. As soluções do estatuto do juízo de gosto quanto a sua qualidade, indicadas anteriormente com as letras a e b, pretensamente atreladas à categoria da qualidade como definido na primeira Crítica, reivindicam o critério que diz ser a beleza, independente de qualquer condicionalidade lógica, acessível apenas fenomenalmente, sob consulta íntima. Caso a qualidade dessa experiência seja tal que possua um desinteresse na objetividade, então significa que o estatuto requerido para a representação foi o do juízo do belo (Kant, 1993, §2). Disso não podemos concluir que a existência do objeto esteja ameaçada, sobretudo quando falamos em objetos musicais, objetos que têm sua forma concatenada através do tempo. Caso assim fosse, estaria destituída a possibilidade de um juízo de gosto através da continuidade temporal de um objeto. De todo modo, Kant não discursa acerca das ocasiões e modos como os objetos de arte se dão, e apenas indica o caminho estatutário que um juízo deve traçar para que tal sentimento ou tal juízo se deflagre. Por isso, a condição exata, o mecanismo que identifica a passagem do estatuto “a)” para o “b)”, não é esclarecido por Kant. A preocupação do filósofo está em detectar cada estatuto depois de sua deflagração. Para o caso do juízo de agrado não há qualquer problema entre os “circuitos” dos estatutos reivindicados, afinal, no juízo do agrado, nossa

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complacência se prostra na direção de um objeto. Porém, na beleza, é o modo de representação que assume o lugar do objeto. A implicação desse estatuto na esfera de contemplação artística encontra-se aqui no esforço do espectador em anular sua tendência a encontrar um conceito para tudo que lhe caia na sensibilidade, e deixarse passar desse estágio para um mero desfrutar formal. Para a categoria da quantidade Kant define: “Belo é o que apraz universalmente sem conceito” (Kant, 1993, p. 32). Trata-se de um único axioma acrescentado por essa categoria: a universalidade do juízo. Novamente, a categoria não expressa qualquer valor lógico nem objetivo, e por isso a universalidade aqui não consegue significar qualquer propriedade referente à categoria, não se apresenta como unidade, pluralidade ou totalidade. Universalidade, aqui, se refere tão somente a uma extensão que fazemos, no momento em que um sentimento subjetivo é sentido, a todas as demais subjetividades, extensão essa que não é lógica porque é apenas uma suposição de que todos partilhamos a mesma estrutura a priori, o que não garante que tal suposição seja necessária ou contenha algum valor de verdade (Kant, 1992, §8), mas apenas faz referência a uma provável universalidade da capacidade de todos reflexionarmos (Kant, 1993, p. 18). Mesmo que por meio de uma suposição, uma universalidade subjetiva implicaria alguma relação com o conhecimento, ao menos na estrutura de tal suposição. Novamente, Kant recua e não concede tal relação, e Bradl (1995) nos diz que se trata da mobilização de um aparato geral do conhecimento que poderia ser mensurado através de proporções na utilização das faculdades de conhecimento. Nesse caso, apenas um mínimo de parcela do entendimento estaria comprometida, na medida em que a imaginação atuaria em maior proporção na reflexão do juízo: a universalidade estética, que é conferida a um juízo, também tem que ser de índole peculiar, porque ela não conecta o predicado da beleza ao conceito do objeto, considerado em sua inteira esfera lógica, e no entanto estende o mesmo sobre a esfera inteira dos que julgam. (Kant, 1993, p. 24)

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A universalidade diz respeito à capacidade de cada um em perceber beleza, de ajuizar em referência subjetiva, reflexionante, enquanto habilidade inerente a toda a espécie, sendo provável estendermos a possibilidade desse estado subjetivo a qualquer outra pessoa, perfazendo não uma ligação inter-subjetiva real, mas a suposição dela. Essa ligação não pode ser real porque ela não pode conter um conceito, caso contrário estabelecer-se-ia um juízo lógico e não estético: “a solução deste problema é a chave da crítica do gosto e por isso digna de toda atenção” (Kant, 1993, p. 27). O estatuto do juízo estético, segundo Kant, é tal que não possui força lógica ou do entendimento: mas esta validade subjetiva universal da complacência, que ligamos à representação do objeto que denominamos belo, funda-se unicamente sobre aquela universalidade das condições subjetivas do ajuizamento dos objetos. (Kant, 1993, p. 29)

A universalidade do juízo de gosto se fundamenta em um livre jogo da faculdade do entendimento com a imaginação, respeitando uma proporção que dá peso quase que exclusivo à imaginação e praticamente nulo ao entendimento, como veremos mais à frente, quando analisarmos o esquematismo. Para a categoria da relação Kant define: “Beleza é a forma da conformidade a fins de um objeto, na medida em que ela é percebida nele sem a representação de um fim” (Kant, 1993, p. 61). A faculdade do juízo estético se diferencia da faculdade geral do juízo (em sentido algoritmo) quando toma a direção “b)”, como vimos acima. Nessa tomada de direção o juízo deixa de lado a representação de uma conformidade a fins, enquanto que, para os demais casos, o juízo continua a expressar uma relação de conformidade a fins. Esse fim é cumprido sempre que uma ideia da razão ou categoria do entendimento sintetiza um conhecimento, ou seja, toma um múltiplo indeterminado e o conforma sob conceitos. É esse o contexto da expressão finalidade sem fim. O juízo conforme a fins implica a consecução de uma finalidade, porém, no juízo da beleza, não se cumpre uma finalidade, pois nenhuma representação é atingida, ou seja, nenhum fim é subsumido, correlacionado ou visado. 45

Kant (1993, p. 33) apontava para essa condição desde o primeiro momento do juízo da beleza: “Ora, não temos sempre necessidade de descortinar pela razão (Einsicht)1 segundo sua possibilidade, aquilo que observamos”. Ou seja, de acordo com Kant uma finalidade não é um objetivo que é sempre e irrestritamente atingido, ele apenas é quando as condições necessárias são cumpridas. A categoria da relação se revela em sua negatividade máxima, na falta de relação com qualquer conceito. Para a categoria da modalidade Kant define: “Belo é o que é conhecido sem conceito como objeto de uma complacência necessária” (Kant, 1993, p. 68). A “complacência necessária” reivindicada na categoria da modalidade não acrescenta um novo axioma para o estatuto da beleza que já foi escrutinado até aqui. A necessidade reivindicada sobre a complacência apenas reforça o caráter transcendental de nossa capacidade em perceber a beleza. Justamente porque tal necessidade não pode ser elencada de modo lógico, argumentativo, ou sob qualquer coerção inter-subjetiva possível, Kant a classifica como exemplar: como necessidade que é pensada em um juízo estético, ela só pode ser denominada de exemplar, isto é, uma necessidade do assentimento de todos a um juízo que é considerado como exemplo de uma regra universal que não se pode indicar. (Kant, 1993, p. 62-63)

É porque se anuncia uma exemplaridade diante de um juízo da beleza que pressupomos um sentido comum a todos, propício a uma comunicabilidade universal desse sentimento (Kant, 1993, §21), e por isso anunciamos a todos: é belo! As quatro categorias ilustram os quatro momentos da argumentação kantiana que propõem elucidar analiticamente o estatuto do juízo da 1. Rohden (2009) escolhe o termo razão para a tradução de Einsicht, mesmo tendo alertado que o termo, traduzido como insight no inglês, não significa razão, mas sim intuição, compreensão e atos que se aproximam de uma visão clara de um objeto obscurecido. O que a passagem quer denotar é o fato do objeto, no juízo do belo, estar completamente fora do conteúdo produzido, a beleza. Tal fenômeno é possível porque essa possibilidade está assentada em condições transcendentais, embora não tão explicitadas. Kant nos diz claramente: não há necessidade de termos sempre objetos discernidos para nossa consciência.

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beleza. Montemos, então, o estatuto de forma unificada levando em consideração sua sequência lógica: um múltiplo apreendido na intuição/ uma atividade esquemática da imaginação produtiva (Kant , 1993, p. 69) / um livre jogo da imaginação com o entendimento / uma ação reflexionante do juízo a conferir desinteresse no objeto / uma falta de finalidade2 no processo reflexionante implicando no não regramento do conteúdo da imaginação / uma ação autônoma do juízo de gosto que passa a operar em exclusiva referência subjetiva ao estado das faculdades em jogo / desprendimento de um sentimento denominado beleza (atuante aqui como uma exemplaridade). A ordem do estatuto marca uma precedência do juízo reflexivo ao sentimento de beleza. Essa é uma sugestão de Kant que Guyer (1997, p. 109) interpreta como sendo dúbia e acredita que os mesmos argumentos kantianos justificariam o inverso. De outro lado, autores que seguem uma interpretação ao modo de Lyotard vão tender a conceber uma simultaneidade entre a reflexão e a beleza. Contudo, os demais momentos permaneceriam os mesmos. O conteúdo expresso no juízo da beleza Já sabemos de antemão que o conteúdo expresso no estatuto do juízo estético puro é o próprio sentimento da beleza. Mas em que consiste esse sentimento e como se relaciona aos demais conteúdos de nossa consciência veremos neste tópico. Comecemos por relacionar o conteúdo da beleza com o objeto belo real, fático. Duas questões a respeito dessa relação: a) A exclusão de toda e qualquer objetividade do juízo da beleza, no intuito de salvaguardar o prazer da beleza quanto ao prazer do agrado, deixaria o objeto da arte como um resíduo incognoscível da operação? b) A forma do objeto acarretaria algum vínculo especial para o conteúdo da beleza? 2. Esse caráter negativo do estatuto indica mesmo o processo de não subsunção, que embora não seja processo algum, se destaca de outros estatutos por se voltar para a conformidade a fins reflexionantes sem, contudo, encontrar um conceito.

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Comecemos por responder a segunda questão. Temos no conceito de aderência uma possibilidade de participação da forma do objeto (conceito) enquanto componente de um juízo de gosto. No caso das artes belas (Kant, 1993, §44), conceitos presentes na obra nos disporiam a ideias estéticas, e estas a um componente de sociabilidade e cultura inesperado. Mas a rigor o que é ajuizado como belo não pode ser computado à forma do objeto. Essa aderência funcionaria no sentido de possibilitar um contexto amplo de cultura: “Portanto, enquanto um puro e livre julgamento de gosto meramente aprecia [assesses] a harmonia da imaginação e do entendimento, o juízo sobre a beleza aderente promove a cultura dos poderes mentais [§44 (306)]” (Wetherston, 1996, p. 58). A aderência acaba exercendo esse alargamento conceitual promovendo laços culturais, o que em nível epistemológico estatutário corresponde ao conceito de ideias estéticas, fundamentada na faculdade da imaginação produtiva (Kant, 1993, p. 193). O contexto dessa função surge de uma sequência de argumentação em prol da arte bela, que se inicia no §44 e tem seu fim no §51, no interior da “Dedução dos juízos estéticos puros”. A ideia estética é um desprendimento de um conteúdo conceitual e formal no meio daquilo que não possui forma ou matéria, conceito ou objeto, o juízo da beleza. Não por acaso a argumentação kantiana inclui esses paradoxos em sua expressão: “pode-se em geral denominar a beleza (quer ela seja beleza da natureza ou da arte) a expressão de ideias estéticas, só que na arte bela esta ideia tem que ser ocasionada por um conceito do objeto” (Kant, 1993, p. 204). Na citação há dois usos do termo ideia estética, um para o juízo estético puro, e outro para o aderente. Porém, não há referência sobre o que seria o caso para o juízo estético puro, assim, trataremos do uso convencional e definido, da ideia estética enquanto estatuto de um juízo de beleza aderente. Mas há ainda que se responder de que modo a ideia estética configura um laço, um vínculo necessário, entre um conceito e o sentimento da beleza. Contextualizando, a arte bela seria aquela arte que abre uma concessão ao sentimento puro da beleza em prol de uma “representação da faculdade de imaginação que dá muito a pensar” (Kant, 1993, p. 162-163). 48

Trata-se de um sentimento da beleza na qual, em uma equalização das proporções das faculdades, o entendimento teria uma participação um pouco mais realçada. De todo modo, o paradoxo resiste; a ideia estética estando restringida, mesmo que minoritariamente, por um conceito do objeto, difere em estatuto do juízo puro que não se liga a conceito algum. Contudo, não encontramos nenhuma literatura ou passagem em Kant que especificasse a relação das ideias estéticas e a aderência com o sentimento da beleza. Também não encontramos os motivos porque seriam computadas juntas na arte bela, se seria por mera associação, coincidência ou sincronicidade, ou mesmo se haveria algum elo necessário. Contudo, quando falamos em beleza, seja para uma arte bela, uma beleza livre, ou beleza pura, fazemos referência sempre a um sentimento. O conteúdo, mesmo no caso de uma ideia estética, se quiser ser belo, deverá ser apresentado enquanto um sentimento caso queira se fundir ao juízo estético puro, caso contrário será necessária uma explicação ulterior. Tal explicação ulterior não é requerida tendo em vista o estatuto que Kant reserva para a ideia estética, contendo a sutilidade de se inscrever enquanto algo que dá a pensar. Essa noção de dar a pensar faz gravitar alguma conceitualidade sobre a arte bela, porém, tal conceitualidade parece seguir a mesma forma da reflexividade do juízo puro, impedindo a apreensão de uma objetividade, como nos mostra Silke Kapp: “Um juízo estético não envolve conceitos e, ao mesmo tempo, a conformidade objetiva a fins não pode ser percebida, apenas deduzida a partir de um conhecimento” (Kapp, 1998, p. 254). Assim, como nenhum conhecimento é de fato deduzido, o juízo permanece estético, mesmo que nos dê a pensar, uma espécie de sensação próxima de um moderno je ne sais quoi. De todo modo parece ser justo dividirmos o juízo da beleza entre aderente (aplicado à arte bela) e puro (aplicado a objetos da natureza): “na natureza bela, porém, a simples reflexão sobre uma intuição dada, sem conceito do que o objeto deva ser, é suficiente para despertar e comunicar a ideia da qual aquele objeto é considerado expressão” (Kant, 1993, p. 204). A referência dessa experiência com a natureza é tão 49

importante para Kant que toda a arte bela – obra do gênio – é aquela capaz de se “passar por natureza” (Kant, 1993, p. 180). No caso musical, Kant reserva pouco espaço para a aderência, pouco espaço para a ideia estética e pouco espaço para a beleza, ficando assim na fronteira de um mero agrado. Porém, isto que é um acessório empírico, a aderência, apenas reforça o livre jogo, e continua sem expressar um conteúdo, ou, pelo menos, o conteúdo é sempre o mesmo, o sentimento da beleza. Loparic aponta para uma interpretação diversa, na qual seria possível, mesmo estando impossibilitada a distinção da beleza no nível do prazer, pelo menos torná-la indelével por sua referência reflexiva, enquanto consciente de produzir ideias estéticas. Essa referência poderia ser decisiva no estabelecimento de uma distinção entre o prazer do agrado e o prazer da beleza, em nível fenomenológico: O sentimento estético resulta da “representação refletida” do objeto sensível, isto é, da reflexão sobre a forma do objeto dado numa representação perspectiva (percepção) que constata ser essa representação ligada ao comprazimento ou desprazimento desinteressados. (Loparic, 2001, p. 13)

A resposta à nossa segunda questão (a primeira permanece ainda em aberto) parece estar ainda impedida, o juízo estético não poderia se referir a um objeto, e no excerto de Loparic a “representação refletida”, presente na citação anterior, estaria apenas referida ao próprio ato de reflexionar, não criando uma correspondência material com o objeto. A percepção cumpriria apenas um papel de prover a imaginação de um montante de dados, ou seja, seria o combustível do processo que, contudo, não contaria mais com suas características no sentido de promover determinações desse material. Strito sensu, nenhuma representação do objeto, em qualquer sentido, pode ser reivindicada na experiência da beleza. O que é incluído no caso das ideias estéticas são montantes conceituais que se inserem no esquematismo e ali perdem sua referência objetiva e passam igualmente a reflexionar, ou seja, procuram uma regra para o todo da experiência sem a ter finalizado. O trecho de Loparic permanece ainda indeterminado, pois uma representação refletida seria uma representação consciente. Em todos os 50

casos, optamos, contrariamente a Loparic, por interpretar o sentimento da beleza enquanto o conteúdo da experiência estética pura para Kant, na qual a única diferenciação, indelével, parece correr entre o fenômeno do dar a pensar na arte bela, e da simples beleza no juízo puro. Contudo, o conteúdo do juízo da beleza sendo apenas um sentimento subjetivo puro parece ser pouco palpável para o contexto de uma descrição que pretende erigir um modelo epistemológico musical. Uma possibilidade mais aberta a uma análise estaria em focarmonos no juízo da beleza enquanto jogo. Romero Freitas entende que a falta de propositividade do juízo da beleza é devido ao jogo das faculdades, e assim a falta de referência a um objeto – interpretamos – seria substituída, de um foco objetivo para o foco de uma atividade subjetiva: Pode-se dizer que o juízo de gosto é pensado como mera atividade de ajuizamento, ou seja, como ato sensível da faculdade do juízo. O juízo de gosto não constitui uma proposição. Ele exprime apenas, ou melhor, ele é apenas a relação entre as faculdades do sujeito e um objeto natural (...). Por isto, pode-se supor que o que lhe dá um conteúdo específico é a ideia de jogo. (Freitas, 1998, p. 155)

Ainda assim não se resolve de que modo esse estatuto em jogo depreende ou se identifica com o sentimento da beleza. Não encontramos em Kant como o montante sensível desencadeia um jogo e como somos capazes de nos evadir intencionalmente da referência do objeto, pois, até onde vimos, Kant parece mostrar que o desinteresse se atrela necessariamente ao processo transcendental do juízo reflexionante. O conteúdo estético não pode ser a ideia de um jogo, mas tão somente o próprio jogo, ou, aquilo que depreende desse jogo, como parecia deixar transparecer a analítica do belo. Em realidade, as duas questões deste tópico permanecem sem resposta. A sequência dos demais tópicos carrega essa problemática e as colocam sob outros temas relacionados.

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Exibição e hipotipose: os fenômenos como surgem em nossa consciência Quando falamos em conteúdo e estatuto de um juízo estético compreendemos normalmente que um conteúdo é o resultado de um processo de um estatuto mental, e que este conteúdo pode ser acessado por nós, ou seja, ele se destaca e se exibe. Na terceira Crítica, essa função é compreendida sob o título de hipotipose. A hipotipose é uma modalidade de exibição de um conteúdo para a consciência. É comumente chamado de exibição o processo direto (esquemático) e de hipotipose o processo indireto (simbólico). Nos diz Lincoln Frias acerca da exibição: Kant pensa a exibição como um estágio necessário na preparação para a aplicação ou simples associação (como no juízo estético reflexivo) de qualquer conceito a um múltiplo da intuição, pois qualquer aplicação desse tipo requer que o conceito seja ligado a suas possíveis instanciações. Quer dizer, quando o conceito de um objeto é dado, a função do juízo no uso desse conceito para a cognição consiste na exibição, i.e., pôr ao lado do conceito uma intuição que lhe corresponda [Cf. KrV A141/B180, 146]. (Frias, 2006, p. 35)

No caso de uma exibição esquemática – juízos subsumem intuições sob conceitos –, esse processo é direto pois o conteúdo da intuição é expresso conceitualmente sob a representação da intuição. No que diz respeito aos juízos estéticos, estes se exibem por um modo peculiar, dito simbólico: “Esse processo se dá no âmbito do juízo reflexivo, quando a predicação não é sobre o objeto, mas sobre as faculdades do sujeito – e com isso, não se dá a subsunção de um particular a um universal” (Frias, 2006, p. 36). Esse processo simbólico tem que ser capaz, no juízo estético, de exibir algo que não está dado na intuição, e que ao mesmo tempo nenhum conceito subsume. A função de exibição nesse caso parece se encontrar em um caso limite, e não por acaso o processo de analogia aparece enquanto o único recurso da exibição simbólica, ou hipotipose. A exibição simbólica necessita de quatro termos, alinhados em dois pares, como toda analogia. Porém, no caso da hipotipose simbólica 52

para o juízo estético puro não temos como formar um dos pares. Isto implica a falta de um dos termos, e torna a função simbólica de exibição para o caso da beleza uma questão peculiar: Na Filosofia, porém, a analogia não é a igualdade de duas relações quantitativas, mas de relações qualitativas, nas quais, dados três membros, apenas posso conhecer e dar a priori a relação com um quarto, mas não esse próprio quarto membro; tenho sim, uma regra para o procurar na experiência e um sinal para aí o encontrar. (Kant, 1985, A 179-180)

Adiantamos-nos um pouco e trazemos um reforço da primeira Crítica, mas apenas para confirmar a relação lógica em questão. De modo geral, a analogia tem de um lado algo intuído e conceituado (primeiro par da analogia), e, de outro, um conceito “que somente a razão pode pensar” (Kant, 1993, p. 255) e que, por isso, nenhuma intuição lhe será adequada. Portanto, o segundo par contém um termo vazio de intuição. Esse termo que falta deve ser substituído a partir da relação estabelecida na analogia. Essa transposição não pode ser dada quantitativamente como na regra de três, mas preenchida qualitativamente, ou seja: “simplesmente segundo a forma da reflexão, não do conteúdo” (Kant, 1993, p. 255). Essa relação certamente funciona para a representação de uma ideia da razão, o que não faz imediatamente esclarecer o estatuto dessa exibição para o juízo da beleza. O juízo da beleza não possui intuição nem conceito, e a ideia estética é referida a uma capacidade produtiva da imaginação. Como estabelecer os pares lógicos para uma hipotipose ou exibição simbólica da beleza? A resposta de Lyotard faz coincidir os únicos elementos do juízo estético e parecem pouco propícios a uma relação de analogia, sejam eles apenas o conteúdo e o estatuto da beleza: Porque “logicamente” esta se chama faculdade de julgar, mas “psicologicamente”, se se autoriza por um instante esse uso abusivo do termo, ela é só um sentimento de prazer e desprazer. Ora, como faculdade de conhecimento, está voltada à heurística, enquanto procurando “sensações” no sentido que vamos esclarecer, revela plenamente seu caráter tautegórico, termo pelo qual designará somente este fato notável que o prazer ou o

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desprazer são ao mesmo tempo um “estado” de alma e a “informação”. (Lyotard, 1993, p. 12)

Se o prazer do belo não se confunde com qualquer outro, de acordo com Lyotard, seria justamente porque esse sentimento está intimamente ligado a uma consciência de um livre jogo. Para Lyotard, a identidade entre essas esferas confere um efeito: “a contemplação (do belo) fortifica-se e reproduz a si mesma; é um estado análogo (mas não idêntico) à Verweilung, à ‘pausa’, à ‘passividade’ que um objeto atrativo suscita no pensamento” (Lyotard, 1993, p. 14). Portanto, o que seria o simbólico para uma ideia da razão, no juízo estético puro apareceria de modo não ortodoxo, pois que strito sensu não compõe nenhum termo de um par lógico, pois não é um conceito que busca expressão sensível nem uma intuição que busca um conceito. Os dois termos do juízo da beleza (um sentimento e uma reflexão) coincidem e em verdade não se diferenciam, e não permitem assim uma analogia, pois não lhe falta qualquer representação. A partir de Lyotard, assim lemos, a exibição do juízo da beleza, sua hipotipose, surge ao modo de uma pausa. Sua referência puramente subjetiva faz desse juízo uma ocorrência singular de difícil comparação. O ato de julgar a beleza não encontra analogia, detêm-se tão somente em sua própria heurística, na consciência silenciosa de um sentimento refletido a si. O conteúdo da beleza dispensaria tanto o mecanismo de exibição simbólica quanto o esquemático, suscitando para si um modo de exibição próprio, do qual não se sabe especificamente seu estatuto de exibição junto à apercepção. A concretização do estatuto da beleza em um conteúdo belo De posse das principais vias de interpretação do que seria o conteúdo e o estatuto do juízo da beleza, nos dedicamos agora ao modo como estatuto e conteúdo se interligam na totalidade de nossas faculdades. Kant reserva a essa atividade adjetivos e predicados com uma parcela não pequena de paradoxos em seu próprio modo de expressar essas

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interligações. Alguns intérpretes acreditam serem essas formas paradoxais essenciais à descrição da beleza: Para Lyotard, portanto, o senso comum estético não é mais que a harmoniosa proporção entre entendimento e imaginação, diante do desafio de se apropriarem da forma do objeto, fonte do prazer, um jogo livre (freie Spiel) das faculdades de conhecimento, curtocircuitando as imposições do conhecimento e da moralidade. (Lopes, 2010, p. 77)

Tal ponto de vista deve ser esclarecido. O termo curtocircuito quer fazer referência a dois domínios, ao da razão enquanto faculdade da moralidade e ao entendimento enquanto faculdade do conhecimento. Porém, no texto kantiano o grande impasse vivido pelo juízo estético puro se encontra entre o livre jogo da imaginação com o entendimento. As discussões acerca do §59, “Da beleza como símbolo da moralidade”, com frequência se esquecem que o simbólico neste parágrafo trava uma relação de analogia. Nesse caso, a moralidade não se estabelece como um conteúdo do juízo de gosto, mas, apenas como Kant mesmo diz, a beleza pode servir analogamente como símbolo da moralidade, visto que essa é uma ideia da razão a qual carece de uma intuição correspondente: A consideração desta analogia é também habitual ao entendimento comum; e nós frequentemente damos a objetos belos da natureza ou da arte nomes que parecem pôr como fundamento um ajuizamento moral. Chamamos edifícios ou árvores de majestosos ou suntuosos, ou campos de risonhos e alegres, mesmo cores são chamadas de inocentes, modestas, ternas, porque elas suscitam sensações que contêm algo analógico à consciência de um estado de ânimo produzido por juízos morais. (Kant, 1993, p. 260)

A analogia, necessitando sempre de um modelo de comparação determinado, no caso da beleza, dispõe apenas da forma desse juízo a servir de símbolo para a moralidade. O próprio Lyotard, a quem Lopes recorre para legitimar sua fala, ainda nos diz: “(...) o julgamento estético manifesta a reflexão no seu estado mais ‘autônomo’, mais nu se se pode assim dizer” (Lyotard, 1993, p. 14). E bastante próximo ao texto kantiano ainda completa:

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É a relação destas entre si que, enfim, confere ao gosto a autoridade de pretender a universalidade (...). Pretensão inteiramente subjetiva, é certo, mas universal, posto que o jogo do entendimento e da imaginação a propósito da forma do objeto basta, “sem consideração de nenhum conceito, ohne Rücksicht auf einen Begriff ” para suscitar no pensamento o prazer que lhe dá, em geral, a conveniência entre essas duas faculdades de conhecer. (Lyotard, 1993, p. 12)

Não faz parte da essência do juízo da beleza conter qualquer analogia. Esta pode ser traçada apenas como uma possibilidade e não como uma marca própria de seu estatuto ou conteúdo. Detendo-nos nesta questão vemos que as distinções que Kant faz entre o juízo moral e estético são inúmeras, e superam mesmo o número de elementos comuns para a analogia. Vejamos um exemplo no §59: A liberdade da faculdade da imaginação (portanto, da sensibilidade de nossa faculdade) é representada no ajuizamento do belo como concordante com a legalidade do entendimento (no juízo moral a liberdade da vontade é pensada como concordância da vontade consigo própria segundo leis universais da razão). (Kant, 1993, p. 259)

Torna-se então essencial entender a legalidade da operação analógica. Em termos lógicos, é controverso que a relação A está para B, assim como C está para D, expresse alguma verdade. Segundo o próprio Kant: “No caso da inferência segundo a analogia, entretanto, não se exige a identidade do fundamento (por ratio)” (Kant, 2003, A 208). A inferência, para ser minimamente válida, exigiria que as espécies comparadas residissem sobre um mesmo gênero (Kant, 1993, 449), para que alguma consequência sobreviesse da analogia. Manter tal equalização requer bastante cuidado, em virtude da limitação que a analogia confere sobre a consequência dos análogos: Eu sou capaz de pensar a comunidade dos membros de uma coletividade, segundo as regras do Direito, segundo a analogia com a lei da igualdade de ação e reação [Wirkung und Gegenwirkung] na atração e repulsão recíproca dos corpos entre si, mas não de transpor aquela determinação específica (a atração material ou a repulsão) para estes a atribuí-la aos

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cidadãos, para constituir um sistema que se chama Estado. (Kant, 1993, p. 450)

Para o caso da analogia com o juízo moral se passa o mesmo, e o mesmo é apontado por Romero Freitas, que pensa uma analogia entre o juízo da beleza e o do conhecimento a partir da expressão como se. Não nos parece coerente com a filosofia kantiana querer definir o conteúdo da beleza enquanto simbólico, porém alguma interpretação poderia tender nesse sentido. Uma passagem de Verlaine Freitas pode exemplificar essa distinção entre o belo como símbolo de algo e o belo enquanto conteúdo próprio: O belo é uma apresentação simbólica do moralmente bom, em segundo lugar, por ser precisamente uma apresentação intuitiva deste, ou seja, a operação da mente que admite uma vontade sobre-humana é realizada na contemplação de formas dadas aos sentidos. (Verlaine apud Duarte, 1998, p. 98)

Se admitirmos, ao pé da letra, que belo ‘é’ uma apresentação simbólica, perdemos de vista toda a autonomia alcançada pelo juízo estético. Se contarmos com as ressalvas de Kant, ao longo do §59, sobre o uso, princípio e limite da analogia, a confusão de que a analogia seria um elemento do estatuto do juízo estético estaria facilmente desfeita. Kant nos diz que a analogia só pode dizer respeito à “forma da reflexão, não do conteúdo” (Kant, 1993, p. 255). Mais à frente ainda nos diz: “queremos mostrar alguns elementos desta analogia, sem ao mesmo tempo deixar de observar sua diferença” (Kant, 1993, p. 259), e ao fim do parágrafo: O gosto torna, por assim dizer, possível a passagem do atrativo dos sentidos ao interesse moral habitual sem um salto demasiado violento; na medida em que ele representa a faculdade da imaginação como determinável também em sua liberdade conforme a fins para o entendimento e ensina a encontrar uma complacência livre, mesmo em objetos dos sentidos e sem um atrativo dos sentidos. (Kant, 1993, p. 260, grifos nossos)

Dadas essas considerações, não é possível incluir qualquer valor moral ao conteúdo do juízo estético puro, mas é possível através da

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analogia conferir ao juízo da beleza uma transposição de sua função habitual para ocupar o lugar de símbolo de um outro processo. Fiquemos, pois, com a recomendação de Lyotard sobre a pressa em se identificar o belo ao bom: arcaico argumento, arcaico para o pensamento ocidental, segundo o qual do belo ao bem a consequência é boa e que bem sentido far-se-á bem. Mais até: fazendo sentir o belo, far-se-á bem. (...) ocultar-se-ia a diferença estética, obscurecer-se-ia um território, o das formas belas, e um desafio, o prazer puro que elas proporcionam. (Lyotard, 1993, p. 156)

Não há, na exibição simbólica do moralmente bom, qualquer violação de legalidades, pois o próprio processo não implica uma ligação da quantidade do conceito. A beleza, enquanto símbolo do moral, predica uma possibilidade de inferência, que, contudo, não é essencial para a definição de nenhum dos dois juízos. Contudo, até aqui só fizemos mostrar como o juízo da beleza não é ele mesmo uma exibição simbólica, e ainda não definimos seu tipo próprio de exibição. Uma possibilidade seria compreendê-lo como uma feliz insuficiência do entendimento, a dar lugar a uma liberdade reflexionante, prazerosa, que por sua vez é um ambiente lógico propício a ideias estéticas: ou, no segundo caso, somente com uma concordância final e sem fim – que se sobressai espontânea e acidentalmente – com a necessidade da faculdade do juízo, relativamente à natureza e às suas formas produzidas segundo leis particulares. (Kant, 1993, p. 247)

Ainda no §58, uma nova questão entra em cena, qual seja, a do estatuto estético sendo fruto de um acaso – espontânea e acidentalmente – desviado da determinação do entendimento. Seria o caso do próprio Kant compreender nosso aparato cognitivo geral enquanto construto movido para um uso lógico, mas que, por uma feliz espontaneidade e acidente, possibilita uma experiência em outro sentido. Essa passagem de uma estrutura determinante que acaba desembocando em um juízo reflexivo não está descrita enquanto uma voluntariedade, e nem enquanto uma necessidade da forma do objeto. 58

Mas como descrever tal passagem espontânea de estatutos entre o lógico e o estético? Proporíamos como possibilidade que, não sendo possível estabelecer uma contiguidade entre esses dois estatutos (lógico e estético), estando ambos tão diametralmente opostos, se faz necessário alguma mudança direcional no interior do esquematismo, uma mudança abrupta e não em graus. Ilustramos essa possibilidade como uma operação quântica3: O exemplo mais comum desta espécie de formação é a água que se congela, na qual se produzem primeiro pequenas agulhas retas de gelo, que se juntam em ângulos de 60 graus, enquanto outras igualmente se fixam a elas em cada ponto até que tudo se tenha tornado gelo; assim que durante esse período a água entre as agulhas de gelo não se torne progressivamente mais resistente, mas esteja tão completamente líquida como o estaria durante um calor muito maior e contudo possua o frio inteiro do gelo. A matéria que se separa e escapa rapidamente no instante da solidificação é um quantum considerável de matéria calórica, cuja perda, pelo fato de que ela era requerida meramente para a fluidez, não deixa este gelo atual minimamente mais frio do que a água pouco antes líquida. (Kant, 1993, p. 249-250)

Se súbita, quântica ou acidental, cabe a outros trabalhos avaliar em que medida o próprio Kant pesaria tal relação estética. Entre a beleza e a ideia estética: uma arte do inexponível Para a elaboração de um modelo epistemológico musical cremos que os elementos até aqui levantados são suficientes para um exame geral do modelo em que o fenômeno musical se mostre consonante ao paradigma estético. Tendo em vista as características do assentimento e do desinteresse, bem como das particularidades de exibição do juízo da beleza, abrimos esse tópico a traçar relações entre a teoria estética 3. Por motivos que desconhecemos e sobre os quais Kant não se ocupa, a dupla possibilidade (lógica e estética) que um estado de esquematismo abriga não contém as razões pelas quais um caminho, e não outro, será prosseguido. Em virtude disso, só podemos aludir a um salto quântico verificável, embora não compreensível.

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kantiana e uma realidade palpável referente ao objeto de arte em geral, como contraponto e condição geral de nosso exame. É fato que, acompanhando o giro copernicano de sua filosofia, Kant transporta todos os encargos dos pormenores do mundo da arte para a subjetividade de um gênio4, ao mesmo tempo em que concede poderes inalienáveis ao espectador em julgar a beleza, a par de toda e qualquer burocracia social, mas, de posse de um uso estrito das possibilidades das faculdades presentes em cada indivíduo. Com o sujeito soberano em ajuizar e produzir a arte, para a qual nenhuma instituição é capaz de dar correção normativa, o estético passa a assumir outro tipo de liberdade, para além da própria esfera da teoria moral. Inexponível é o termo que Kant utiliza para qualificar uma ideia estética, no sentido de esta não poder ser regrada, visto que o juízo estético promulga um caráter circular ante o esquematismo, fazendo com que a capacidade produtiva da imaginação se sobressaia como o motor da reflexividade pura: Ao deixar a capacidade de imaginação “alastrar-se por um grande número de representações afins, que permitem pensar mais do que se pode expressar, em um conceito determinado por palavras” (KU 195, 160) a ideia estética nos leva a pensar sobre a relação do conceito com outros; portanto, ideias estéticas aumentam os conceitos ao mostrar sua limitação. (Frias, 2006, p. 89)

Devemos lembrar que as ideias estéticas pressupõem uma aderência, o que explica essa referência ao conceito a que Frias se agarra ao interpretá-lo como um “aumento dos conceitos”. Tal concepção de aumento do conceito tem sentido figurativo, mas não demarca qualquer conteúdo nesse sentido, pois é certo que a marca inexponível dessa dinâmica excede os conceitos ali dispostos. Diferentemente, as ideias da razão, por não se adequarem a nenhuma intuição, são entendidas

4. “Gênio é o talento (dom natural) que dá a regra à arte. Já que o próprio talento enquanto faculdade produtiva inata do artista pertence à natureza, também se poderia expressar assim: Gênio é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte” (Kant, 1993, p. 181).

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como indemonstráveis. É inexponível apenas uma ideia que se assente na intuição de um objeto, mas que o entendimento não pode sintetizar. Rufinoni, por sua vez, propõe pensar a ação da imaginação na ideia estética como produtora de hipóteses, enquanto fábrica delas: E a arte, tanto do lado do artista capaz de criar ideias estéticas, quanto do sujeito que julga, passa a ser um lugar privilegiado para se buscar hipóteses de exposição do inexponível, relacionando-se, então, com a filosofia de uma maneira impensável para a crítica de gosto tradicional. (Rufinoni, 2010, p. 103)

De acordo com a autora, o estatuto conferido às obras de arte, para o caso das artes belas, possibilitaria não apenas uma liberdade criativa, mas um escopo de possibilidades tanto para o artista quanto para o espectador: A arte moderna é devedora dos juízos de Kant, portanto não tem regras externas e se deve apenas à articulação que o artista faz entre ideias estéticas. O criador moderno só pode conhecer suas regras após a feitura da obra, em uma reflexão de seus próprios meios, sendo a criação sempre pós-moderna. (Rufinoni, 2010, p. 10)

De acordo com a autora o trabalho de Kant propiciou a vazão de uma tensão presente no meio artístico da época: Nessas idas e vindas, tudo se passa como se os artistas “modernos” – sejam eles os do século XVI ou XVII – estivessem se debatendo entre uma autoridade e uma norma já consagrada e a possibilidade de abertura a outras formas, à liberdade. (Rufinoni, 2010, p. 2)

A leitura de Rufinoni é bastante histórica e cultural e não nos convencemos integralmente até que ponto uma história da arte acompanhou de fato essa estrutura. Parece-nos mais razoável compreender que o trabalho kantiano foi uma entre diversas soluções da crescente demanda da filosofia estética do período. Mas não deixa de ser necessário investigar se a articulação entre as ideias estéticas pode de fato vir a mudar o teor do conteúdo da beleza em uma experiência.

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É importante ressaltar que o romantismo e o classicismo travavam embates, e a postura classicista parece mais aflorada em Kant. Contudo, tal movimento de volta ao classicismo afetou o próprio Goethe, que diz, em 1788: “Clássico é o que é são; romântico o doentio” (Goethe, 2003, p. 47). Para proveito estrito de nossa análise, as implicações históricas indicam que a própria teoria deu o que pensar a artistas, em uma perspectiva não causal entre teoria e produção. Analisamos o modelo do juízo estético enquanto tal – não pelo quanto motivou ou inspirou obras –, mas somente em sua potência de vir a explicar um fenômeno artístico como o musical. Nesse sentido, os inquéritos culturais que Rufinoni quer ilustrar excedem nosso objetivo principal. Para um enfoque direto do objeto, encontramos mais contemporaneamente o trabalho de Thierry De Duve (2009) que, em seu artigo “A ‘improvisação’ de Kant à luz da arte minimalista”, oferece um exemplo de aplicabilidade do estatuto estético da beleza kantiana. De Duve empreende uma descrição detalhada de sua experiência com a obra de Robert Morris, L-beams, originalmente sem título. A obra L-beams foi originalmente confeccionada em compensado e depois refeita em aço inoxidável e fibra de vidro: 8 x 8 x 2 feet e data de 1965. Seu autor assim comenta sobre a obra: Uma função de espaço, luz, e do campo de visão do espectador (...) pois é o espectador quem muda a forma constantemente por sua mudança de posição em relação ao trabalho (...). Há dois termos distintos: o conhecimento constante e a variável experiência. (Morris apud McMahon)5

Morris, sobretudo nessa obra, foi muito influenciado pela fenomenologia de Merleau-Ponty. De Duve, conhecendo a natureza do estudo empreendido por Morris, claramente alicerçado em uma fenomenologia da percepção, empreende uma experiência própria, referenciada exclusivamente em Kant, porém alicerçada pelo formalismo de Greenberg: Eu imagino que já ficou claro para você que eu mesmo falo em defesa, se não do formalismo como tal (o que isto possa significar), pelo menos da 5. In:

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validade continuada da estética kantiana. O lugar mais duro e, portanto, o melhor deles para testar a validade é o discurso interpretativo dos seus detratores. (Duve, 2009, p. 282)

O texto de De Duve é de difícil aproximação, sobretudo pelo mau uso da terminologia kantiana que claramente não domina, como vemos no uso dos termos percepção, representação, síntese e imaginação, entre outros. Afora detalhes terminológicos e seu discurso bastante passional, a falar de detratores, interessa para nosso proveito a oportunidade de travarmos uma relação direta entre o estatuto da beleza e um objeto. De Duve intenta com esse artigo demonstrar que a experiênica dos Three L-beams6ou não é suficientemente artística, ou cumpre com os requisitos para um livre jogo das faculdades como descrito na terceira Crítica kantiana. De Duve conclui: O que acontece é que no caso dos Three L-beams, meu sentimento não concorda com a interpretação que se faz acerca do significado da desarmonia dos poderes cognitivos eliciados pela peça (...). Mas há o sentir que tem sempre a última palavra. (Duve, 2009, p. 290)

Quando fala em desarmonia das faculdades trata-se de um ponto de vista bastante peculiar do autor, visto que Morris diz de uma diferença entre o conhecimento e a experiência. De toda forma, De Duve julga como sendo má a obra de Morris, por esta não praticar um livre jogo, mas implicar um pensamento sob critérios notadamente físicos e conceituais, e o verdadeiro aval estético, o sentimento de prazer, não seria assim erigido. Em muitos momentos, e alicerçando-se no conceito de Greenberg – concocted –, uma maneira pejorativa de se referir ao trabalho da arte 6. De acordo com o próprio De Duve, e essa é a interpretação de Krauss e Turcke, essa obra é comumente compreendida contendo em si a ambiguidade de um objeto empírico portando um conceito lógico de sua forma, no caso, o formato de um L. Essa relação é implicada pois é referida a seu contexto espaço-temporal real e não a um jogo subjetivo como propõe Kant. Aqui, inspirado pela fenomenologia, Morris faz modificar o objeto a cada visada, sendo a experiência empírica múltipla confrontada pelo conceito que tenta entendê-los como idênticos entre si. Isso implica um tipo de experiência que excede a teoria kantiana, pois além de contar com conceito e pensamento determinado, faz referência direta a uma objetividade.

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minimalista, De Duve tende a tratar a arte minimalista inteira como um fracasso artístico justamente por não saber produzir o sentimento do belo. Novamente precisamos entrar com correções, pois como um gênero pode encerrar toda a possibilidade de beleza se o juízo estético é singular? O remédio a todo julgamento lógico aplicado sobre a beleza não pode ser a confecção de um conceito sobre um gênero artístico, mas, ao contrário, dar um passo atrás e converter não o julgamento, mas a postura lógica em uma postura subjetiva de refinamento. O tom de De Duve é certamente militante e por isto podemos desconsiderar esse tipo de enfoque sobre a arte minimalista. Não é nosso interesse definir possibilidades artísticas de gêneros inteiros. Dadas essas limitações, De Duve de fato põe o modelo kantiano em teste, e nomeia de conflito das faculdades a relação entre a igualdade dos três L-beams dada conceitualmente e a experiência empírica diferente a cada ângulo. Porém, De Duve estaria a tratar de aspectos lógicos se essa diferença se colocar realmente como um problema. Pois logicamente isso não é um problema, mas apenas uma distinção comum em desníveis de gênero, espécie e percepções concretas. Porém, se ele descreve esse descompasso como condição de assentimento e não apenas de avaliação lógica, então, perde-se a referência kantiana. De Duve vai indicar que não foi possível adentrar satisfatoriamente em um nível de livre jogo, e por isto a obra estaria invalidada. Entendemos assim que não houve nem um assentimento, o que faz com que o estético tenha se anulado. A conclusão dessa análise de De Duve é bastante dura, e realmente esbarra em questões pertinentes à história da arte. Quando a acusação de De Duve ao minimalismo não se estende a um trabalho geométrico de Kandinsky, por exemplo, faz parecer que estão em jogo dois pesos e duas medidas. Ou seja, o que aparece censurável em Morris, o uso de objetos geométricos, não vale para Kandinsky que utiliza alto grau de atrativos para os mesmos. Fica em aberto não só a capacidade de De Duve empreender uma análise desse tipo, mas, se coloca mesmo a questão de ser possível descrever uma experiência que se quer subjetiva a partir dos critérios kantianos, pois que quando descrevemos arte sempre nos colocamos a indicar experiências pertinentes a aspectos materiais de um objeto, como Hanslick indica. 64

Então, afinal, como seria possível termos acesso, em uma experiência, a um cumprimento de um estatuto epistemológico como o do juízo estético da beleza kantiano? Limites de um sistema do juízo de gosto Parece haver um descompasso entre o que os artistas fazem ao impregnar formalmente uma matéria e a subjetividade reflexiva enunciada por Kant. O estatuto da beleza precisa ainda dirimir certas contradições entre sua exigência inexponível e a constante necessidade do artista em materializar uma obra. Kant sugere que pratiquemos um ato de esvanecimento7 sistemático da referência ao objeto de arte, o que, contudo, não parece ser, intuitivamente, algo que os artistas venham a contemplar. Quando imaginamos que um objeto de arte possa vir a guardar uma mensagem, ou mesmo um conteúdo em sua forma, Kant propõe que isso, a que artistas e críticos procuravam arduamente, se encontrava o tempo todo em uma legalidade subjetiva. Ou seja, essa inscrição misteriosa só poderia ser decifrada se decifrassem a essência do próprio juízo de gosto. Dada a teoria estética kantiana e a falta de conteúdo impressa no estatuto do juízo da beleza alguns comentadores se empenharam em desvendar sob termos semânticos e sintáticos o juízo estético puro. A motivação desses pesquisadores parece muitas vezes de cunho reativo a trabalhos da filosofia analítica, mais do que propriamente um trabalho de relevo sobre a fundamentação lógica do juízo de gosto: A estranheza dos juízos de gosto vem desse “como se”, que transforma “belo” em um quase-predicado. Kant trata do mesmo assunto num outro trecho, onde diz que, num juízo estético, o “sentimento de prazer (ou desprazer)”, que acompanha a representação (percepção) do objeto, “faz as vezes do predicado” [statt Prädicats dient]. (Loparic, 2001, p. 12) 7. O esvanecimento é a mudança gradual, ao longo de repetições sucessivas, de um estímulo que controla a resposta, de maneira que a resposta eventualmente ocorre diante de um estímulo parcialmente modificado ou completamente novo, como nos aponta Deitz & Malone (1985).

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Segundo Loparic, essa característica cíclica não impossibilitaria o juízo estético de possuir denotação e sentido, dada sua definição desse juízo: “representações perceptivas das formas de objetos sensíveis ligadas a priori a sensações ou sentimentos de comprazimento (Wohlgefallen) e de desprazimento (Missfallen) desinteressados” (Loparic, 2001, p. 8). O que está sendo denotado, segundo o autor, é a própria operação da reflexão ligada ao intuído, porém de modo desinteressado, e seu sentido é propriamente o sentimento que depreende de tal operação. Antes de prosseguirmos temos que destacar o caráter especulativo do projeto de Loparic, pois que alicerçado em um princípio descartado por Kant para o caso do juízo de gosto em geral. No §37, a relação entre o juízo de gosto e o objeto, e mesmo qualquer relação semântica, está expressamente definida: O fato de que a representação de um objeto seja ligada imediatamente a um prazer somente pode ser percebido internamente e, se não se quisesse denotar nada além disso, forneceria um simples juízo empírico. (Kant, 1993, p. 149)

No juízo de gosto, portanto, a representação é tão somente o prazer, e não denota mais nada que esse sentimento interno. De toda forma, o objeto ocupa um lugar muito desconfortável na teoria kantiana e inevitavelmente provoca contradições em sua definição. Qual a justificativa da ligação a priori da forma de um objeto sensível a um sentimento que não seja a própria forma do objeto intuído mas justamente o desinteresse dele? A insistência que vemos em Loparic de querer ligar denotativamente o juízo da beleza insere-se nessa problemática. Pois por que querer reatar um resquício do intuído quando ele é justamente o que Kant parece querer subtrair? Uma solução bem mais razoável para montar essa problemática, que se esbarra em Kant sempre que ele pretende definir o estético a furtar-se do objeto, encontra-se nesta passagem de Türcke: O que Kant chama de gosto reflexivo não passa do gosto sensorial que cresceu além de si mesmo e sublimou-se: não é um estado natural, mas um estado altamente artificial do sensorium humano. Estão excluídos todos

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os que não dispõem de uma oportunidade para cultivar os seus sentidos (...). O ponto frágil de Kant está no fato dele reconhecer erroneamente nesse gosto reflexivo uma disposição natural dos homens, existente à parte. Seu ponto forte, no fato de que ele vê, graças a esse equívoco, luzir algo no privilégio social que cabe a todas as pessoas. (Türcke, 1999, p. 82)

Seu ponto de vista perfaz mesmo uma genealogia do próprio juízo de gosto. Türcke indica que o gosto reflexivo não é mais do que o produto de uma cultura situada em um momento histórico, ao mesmo tempo em que este produziu um tipo específico de gosto sensorial. Nesse sentido não é sem propósito que Kant se refere sempre a um objeto quando quer justamente abrir mão dele; Kant denega, pois, que a educação do gosto prega justamente esse exercício. Resta ver se esse tipo de exercício justificaria um estatuto que em seu modelo prega uma necessidade de desinteresse de modo a priori, pois o ato de retirar referências objetivas de um objeto poderia ser igualmente explicado enquanto ato lógico da abstração. Porém, se pretendemos caracterizar o prazer enquanto sentido semântico de algo, como quer Loparic, e descolar ele da própria percepção de um livre jogo das faculdades fazendo esse jogo de objeto denotado, então restam ainda mais questões a tratar. A análise semântica de Loparic não faz mais do que pôr em termos diferentes a mesma questão que movia Lyotard, para quem estatuto e conteúdo se identificam. A denotação pensada por Loparic faz criar um círculo, do estatuto reflexivo orientado para a intuição em um esquematismo, sendo esse o verdadeiro objeto da complacência pura da beleza. Nesse sentido, mesmo que seja duvidoso reconhecer tal processo como algo denotável, ele não é capaz de mostrar o motivo pelo qual a beleza é sacada de tal processo, por que a beleza pode se referenciar a um processo e não a um objeto. Essa ligação com o sentimento de prazer, pensa Vieira, não segue nenhum padrão já apresentado por Kant. Mas isto não está por sua vez assegurado de antemão, pois não se pode distinguir, no nível fenomenológico, “deleite”, “comprazimento” e “aprovação” – para fazer uso da terminologia proposta por Kant no §5. As diferenças entre estas três espécies de prazer só fazem sentido através de

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uma referência a determinadas relações entre as faculdades cognitivas que não se fazem presentes quando pretendemos simplesmente julgar a beleza. (Vieira, 2003, p. 66)

É justamente esse o ponto. Diante da falta de componentes essenciais para uma interpretação lógico/linguística em um modelo denotativo, o sentimento da beleza assim como postulado por Kant faz dispensar um modo de exibição seja esquemática ou simbólica, sendo sua exibição justamente um sentimento condicionado transcendentalmente que, contudo, parece difícil vir a levantar uma prova e mesmo aplicação dessa estrutura em uma experiência que poderíamos colocar em evidência. Se a estrutura do juízo da beleza não aponta para nada a não ser a própria atividade subjetiva fugindo de definições conceituais, a reflexão e seu caráter cíclico e tautológico concorrem, a nosso ver, em uma direção também contrária a qualquer relação semântica. Não é sem propósito que Lyotard classifica de pausa o que se passa com o sujeito que contempla a beleza. Kant mesmo parece não ter dado importância em fundamentar uma hipotipose para a beleza. Parece que o limite para uma arte que tenha como objetivo sacar uma experiência inexponível acaba por afastar qualidades possíveis a essa experiência e se atém em um sentimento, acompanhando Lyotard, de suspensão de todas as faculdades, uma pausa em favor de um gosto puro, subjetivamente encerrado. Torna-se assim impossível que essa experiência da beleza nos diga algo, denote ou se imponha à realidade. Se a teoria estética kantiana pôde inspirar novas formas artísticas, como quer dizer Rufinoni, foi justamente por uma teoria nada impositiva em seu sentido lógico. Porém, verificamos, altamente restritiva quanto à postura do espectador. Há, portanto, duas facetas do juízo da beleza, implicando a autonomia do juízo ao mesmo tempo em que uma nulidade do processo consciente do sujeito, mas que Lyotard caracteriza como pausa.

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Lógica e estética É certo que a teoria estética kantiana possui uma predileção e, em algum nível, até uma devoção à natureza. O papel do gênio, em fazer de um objeto uma emulação de um princípio que é autêntico na natureza, indica que a razão de ser da arte, para Kant, liga-se de forma muito essencial à forma de ser da natureza, a partir da seguinte diferença; na natureza o ser é um princípio que se organiza a si mesmo, na medida em que seu princípio de ser é sua natureza mesma, e na arte, o ser (objeto) possui uma causa interna de coerência e não é seu próprio produtor, na medida em que seu princípio é humano (Campos, 1998). Os objetos da natureza implicam uma relação teleológica, voltada a uma “conformidade a fins dos seres” (Kant, 1993, §66), o que não dispensa orientações conceituais. A beleza implica uma relação puramente estética, voltada a uma conformidade puramente subjetiva. Para o senso comum, essa conformidade puramente subjetiva é interpretada como a “intenção” do artista em colocar algo para nossa contemplação. Isso funciona de modo análogo ao que era imputado à natureza: um princípio transcendente que tem uma intenção em nos comunicar – para a nossa subjetividade – seu princípio através da beleza. Ou seja, o princípio organizacional que na natureza precisa ser imputado teleologicamente e que não diz respeito a seu ser, na obra de arte pode ser imputado realmente como intenção do artista em um ato de imitação, de tentativa, de chegar até esse princípio que não contempla nosso entendimento. Quando Kant pensa na figura do artista, pensa-o como gênio que dispõe da capacidade de imprimir aos objetos uma lei análoga a da própria natureza. Não transparece nada referente à tradição da música clássica que queremos referenciar, e cita em toda referência sobre música apenas a figura de Euler. De nossa parte, poderíamos estender essa lista a Kepler, Tartini, Mersenne, Werckmeister, Huygens, Sauveur, Rameau, entre tantos outros (Nolan, 2010). Estes eram físicos, filósofos e músicos que comumente reservavam parte de seu trabalho a escrever uma estética, sempre voltada para o caráter material e organizacional da música. O objetivo de montar um modelo epistemológico em específico 69

para a música já figurava um propósito sólido desde o século XVII, e teria sido, pela primeira vez, resolvido por Rameau em seu tratado de 1722 (Lester, 2002), na época arrancando elogios de D’Alembert: M. Rameau foi o primeiro a começar a desembaraçar o caos. Ele encontrou na ressonância do corpo sonoro a origem mais verossímil da harmonia e do prazer que ela nos causa: ele desenvolveu esse princípio, e demonstrou como os fenômenos da música nascem. (D’Alembert apud Kintzler e Malgorie, 1980, p. 26)

Um enfoque totalmente diverso é suscitado pela teoria kantiana e retomamos Lyotard para esclarecer essa oposição: entre um pensamento que via na unidade do entendimento a condição da percepção musical, e outro que via na pausa dessas mesmas faculdades a potência artística. Enfoco esta união singular e recorrente, mas sempre “nova”, que aparece cada vez pela primeira vez, como o esboço de um “sujeito” (...). Está nascendo a cada vez que existe prazer do belo. Não permanece nascente. Para que o permaneça, seria preciso pelo menos que seja possível a síntese de suas “promessas de unidade” numa unidade que persistiria idêntica a si mesma através do tempo. (Lyotard, 1993, p. 25)

Sendo assim, nossas disposições conscientes permaneceriam estagnadas, sendo o único processo educativo possível a própria tarefa de ser capaz de chegar a um estado como esse da beleza kantiana. Kant retira de vista qualquer vínculo ao paradigma mais colado à ciência do século XVII e XVIII. Em Kant, o que há de interessante no fenômeno estético é justamente fazer ver a separação entre conhecer e ajuizar esteticamente um objeto. Não se trata de apenas mais uma possibilidade de representação pictórica, de composição formal, mas sim de o sujeito experienciar uma nova disposição ativa de suas faculdades. A significação histórica do modo como essa obra instaura uma maneira radicalmente inédita de o sujeito compreender a atividade de seus poderes racionais constitui seu conteúdo. (Freitas, 2003, p. 273)

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Diferente da posição de Lyotard, e mesmo de todo um debate sobre o conteúdo do juízo estético puro, Freitas não apenas implica historicidade na contemplação artística a partir do juízo da beleza, como diz ainda incidir sobre ela uma “compreensão de novas disposições ativas”. Freitas, consciente de que questões culturais e históricas extrapolam o limite do conceito de beleza em Kant, quer demarcar uma possível função do que Lyotard chamou de pausa, interpretando como um estranhamento frente à realidade habitual. Nas palavras de Freitas: “ruptura que a arte exerce frente à realidade trivial” (Freitas, 2003, p. 275). Mas, por mais que seja aceitável, desejável e mesmo perceptível em experiências musicais, ou artísticas de modo geral, a emergência de novas disposições, de uma compreensão ou ainda de esferas ativas presentes na experiência estética, todo nosso trabalho com o texto kantiano e seus comentadores não mostraram qualquer possibilidade dessas operações. Tanto é assim que Freitas está, em verdade, a fazer uma leitura de Adorno, e pouco ou quase nada de Kant está, de fato, presente no parágrafo supracitado. Aquilo na estética kantiana que passa a ser interpretado enquanto uma abertura a demais conteúdos, muitas vezes a despeito de cláusulas pétreas presentes no texto kantiano, contribui pouco ao diálogo com experiências artísticas fáticas por constituir uma tentativa extemporânea de justificação do modelo, perpetuando, assim, inadvertidamente, as mesmas cláusulas que abordamos criticamente. Para avaliarmos um fenômeno como o musical, em que o objeto se apresenta como o sujeito real de juízos que constituem a experiência, somos obrigados a lidar com termos que não se comprometem com a teoria estética kantiana, como: percepção, juízo, pensamento, conceito, etc., que perpassam pela teoria lógica de Kant. Ao inserirmos esse novo enfoque rompemos imediatamente com a cláusula pétrea que vinculava a apreciação artística exclusivamente a juízos subjetivos.

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Delimitação do horizonte estético: o §9 A natureza e a arte, por mais paralelismos que encerrem, dispõem de diferentes causas e intenções. Assim, a natureza suscita problemas relativos à razão e ao juízo teleológico, enquanto que o objeto de arte suscita problemas relativos à imaginação e ao entendimento, ao juízo estético (como quer que o defina) e à intenção do artista. É devido a essa diferença inicial que a arte pode ter como objetivo, segundo Kant, espelhar características que só são realmente livres na natureza, pois que na natureza a “finalidade técnica se faz gratuita (contingências despojadas de fins técnicos)”, cabendo ao artista criar uma arte que dê “lugar a produtos que pareçam contingentes” (Campos, 1998, p. 105), para ativar um estado puro do gosto. É nesse sentido que Kant desmerece a intencionalidade imposta matematicamente para a forma musical e diz: “a matemática não tem certamente a mínima participação” (Kant, 1993, p. 220). Uma forma musical matematicamente composta conteria somente regularidades, e não seria capaz de assumir a forma contingencial que a arte deveria tomar de empréstimo da natureza, para conseguir sair do âmbito determinante a abrir espaço para uma função reflexiva do juízo. Ainda segundo Kant, se a arte abandona a tentativa de uma expressão contingente e livre de finalidade e passa a coordenar a expressão das sensações a partir de um princípio regulado matematicamente, ele gerará tão somente repetições e tornará a música ainda mais suscetível ao enfado (Kant, 1993, p. 221). Essa crítica à mensuração das sensações, que tanto influencia a decisão de Kant sobre a música, aponta mesmo para uma deficiência quanto à concepção kantiana da música: A estética musical kantiana enferma de uma concepção demasiado estreita da função do tempo na música, numa arte que ele concebe simplesmente “transitória”, como incessantemente evanescente, em vez de reconhecer que também acontecimentos no tempo se podem consolidar em configurações. (Dahlhaus apud Duarte, 1998, p. 145)

Mas, caso excluíssemos essas questões polêmicas de Kant e extemporaneamente as sanássemos, fazendo com que a música se incluísse 72

no hall das artes belas, isso não auxiliaria ainda nosso propósito, visto que o estatuto epistemológico do juízo de gosto parece excluir toda uma dimensão impressa em objetos, seja quais forem, e por decorrência também o objeto musical. A relação entre o objeto e a experiência artística que prevê uma guinada do estético em detrimento do lógico, o que chamamos de cláusula pétrea, não é uma decisão tomada acriticamente por Kant, que, no §9, intitulado “Se no juízo de gosto o sentimento de prazer precede o ajuizamento do objeto ou vice-versa”, argumenta e sentencia sua posição. Lyotard havia nos mostrado como o juízo reflexionante incidindo sobre as faculdades em um livre jogo ajuizava ao mesmo tempo um prazer da beleza e sua própria ação reflexiva. Bayer por sua vez localiza uma questão crucial ao §9: “o prazer e o juízo, em vez de se sucederem ou se precederem mutuamente, dão-se ao mesmo tempo, o que é absolutamente contrário às leis do tempo” (Bayer apud Passos, 1998, p. 139). Dada essa concomitância que já havíamos identificado, a beleza configura um caso sui generis em vista de toda a estrutura transcendental: Este estado de um jogo livre das faculdades de conhecimento em uma representação, pela qual um objeto é dado, tem que poder comunicar-se universalmente; porque o conhecimento como determinação do objeto, com o qual determinações dadas (seja em que sujeito for) devem concordar, é o único modo de representação que vale para qualquer um. (Kant, 1993, p. 28)

A precedência do objeto é condição comum à faculdade de conhecimento, e por isto uma condição necessária da universalidade para qualquer juízo. Essa estrutura do conhecimento em geral é somente uma estrutura e não uma função sendo exercida, não é um estatuto, mas um ambiente lógico. Este ajuizamento simplesmente subjetivo (estético) do objeto ou da representação, pelo qual ele é dado, precede, pois, o prazer no mesmo objeto e é o fundamento deste prazer na harmonia das faculdades de conhecimento. (Kant, 1993, p. 29)

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É esse o preciso momento do salto quântico da função do juízo como descrito por Kant. Segundo a citação, nossa Gemüt encontra-se totalmente ocupada por um procedimento esquemático, e nesse preciso momento não reverte seu conteúdo para o entendimento. De acordo com Kant, ela se insere numa precisa ordem do esquematismo anterior ao regramento, e, portanto, precede o objeto como também o prazer ligado a um objeto, ficando a referência ao objeto impossibilitada, “logo, aquela unidade subjetiva da relação somente pode fazer-se cognoscível através da sensação” (Kant, 1993, p. 31). Na citação, o termo sensação pode ser interpretado como o principal componente do juízo estético, assim como o conceito pode ser tomado como o principal componente do juízo lógico. Mas o que ainda não está esclarecido é o modo como a sensação é remetida ao núcleo da apercepção. Uma vez que uma sensação é percebida, isso significa que ela deve ser reconhecida por uma autoconsciência. Mas é justamente essa configuração que se mostra conflituosa, pois que não é possível apercepção sem conceito. A explicação da relação entre sensação e percepção de sensação tem poucas alternativas: a) a sensação se explicaria como uma pausa de todas as faculdades, de todo nosso sistema transcendental, em que nem mesmo um juízo opera; b) a exibição da sensação estética possui uma via de acesso fora da estrutura da apercepção. A possibilidade a estaria descartada, pois Kant afirma haver uma representação da sensação da beleza, além de interpretar o esquematismo enquanto jogo dinâmico das faculdades em movimento. A possibilidade b, contudo, permanece em uma posição difícil, visto que em um sentido a intenção de Kant era se contrapor ao circuito ordinário da apercepção, ao mesmo tempo em que tal exclusão implica uma falta de acesso absoluto ao conteúdo gerado. A condição para que uma sensação, que não predica nada de objeto algum, se exiba é que se sobreponha às condições do regramento da apercepção. Assim, a validade do modelo do juízo da beleza necessita demonstrar um uso concomitante, mas não idêntico, daqueles princípios da apercepção descritos na primeira Crítica:

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Mas uma vez que entendimento é a síntese da capacidade de imaginação ligada à apercepção (KrV A119,150), e, por isso, os conceitos puros do entendimento são regras da síntese do múltiplo à unidade originária da apercepção realizada pela capacidade de imaginação produtiva (KrV A127, 159), a exibição é um processo do entendimento apenas na medida em que ela segue as regras desse. Por outro lado, se a faculdade de julgar é a capacidade de subsumir sensações sob conceitos (KrV A132 B171, 142), é razoável supor que a exibição é função dessa faculdade somente na medida em que a subsunção implica a exibição do objeto do conceito na intuição (KU 25-6, 56; KrV A140-1 B179-80, 145-6). (Frias, 2006, p. 36-37)

Uma análise musical não tem como partir de uma sensação desligada de um objeto. Se não há predicação não há o que se experienciar, e se há uma sensação sem predicação seria o caso de se falar em uma sensação em si, o que parece muito excêntrico mesmo ao sistema kantiano. Faz-se necessário então, diferente do caminho idealista escolhido por Kant para a definição do juízo estético puro (Kant, 1993, p. 254), verificar uma via racionalista desse mesmo princípio, ou seja, pensar a ligação desse juízo com a objetividade da obra. Um modelo epistemológico musical deve levar em consideração, antes de qualquer coisa, a peculiaridade formal do objeto musical, que diz respeito não apenas ao aspecto acústico, mas sobretudo à sua constituição enquanto objeto da consciência. A estrutura kantiana para a arte bela parece não conciliar certas experiências com objetos musicais de modo a incluí-los no estatuto estético. Ao mesmo tempo, cria um modelo teórico para o juízo da beleza que muito beira o tautológico, impossibilitando uma crítica ao nível do entendimento e da apercepção de modo geral. O aspecto cíclico do juízo reflexionante aliado ao caráter autônomo do juízo de gosto faz da beleza um aspecto estranho ao critério de qualquer prazer – “o cumprimento de uma intenção” (Kant, 1993, XXXIX) –, sendo impossível distinguir o prazer da beleza da operação do juízo de gosto puro, impossibilitando assim um acesso fenomenológico da estrutura sugerida.

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Diante dessa estrutura não parece haver nenhum vínculo necessário entre o que seja um objeto de arte e o que seja o juízo da beleza, haja visto que o critério para resguardar o âmbito artístico impõe um desinteresse radical, como vemos na conclusão do §9. Sendo assim, aquilo que garantiria o acesso a uma sensação pura da beleza (objetos da natureza e da arte) acaba por ser desconsiderado nesse estado puro. O que o juízo da beleza acaba fazendo, a contragosto de alguns preceitos que tenta resguardar, é inculcar algo como uma “postura” que dá acesso a um tipo de experiência que Kant confia ser um juízo de gosto puro. A noção kantiana de que a beleza não pode ser predicada a nenhum objeto acaba por impedir, ou ao menos deixar obscura, a relação que temos entre beleza e objeto de arte ou mesmo beleza e natureza, e torna sem critério a ligação entre um sentimento de beleza e aquilo que o fez despertar. Nessa mesma proporção, podemos consequentemente inferir que qualquer espécie de fenômeno que oferecesse material para a intuição poderia vir a esquematizar, e então, por um motivo que desconhecemos, uma operação “quântica” faz com que passemos a reflexionar, podendo chegar a um sentimento puro da beleza, visto que este não será predicado do objeto em questão. Vê-se assim que abordar uma estrutura judicativa divorciada de seu objeto desmonta qualquer pretensão de ligarmos a beleza ao objeto musical. O estatuto do juízo estético puro aparenta gratuidade no sentido de não conseguir equilibrar as características estético-perceptivas dos fatos com o fundamento transcendental-estético empregado. É necessário, portanto, reaver o modelo de ajuizamento do objeto da arte, aqui representado pelo objeto musical, e então avaliar em que medida uma epistemologia pode se aproximar.

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Capítulo 2 A lógica enquanto disciplina epistemológica mista

O que é um juízo lógico ou deteminante? Em vista de um modelo epistemológico musical, passamos agora a explorar a estrutura do conhecimento como descrita na obra Crítica da Razão Pura, a primeira obra crítica de Kant. Nela, estão traçadas as condições lógicas para qualquer conteúdo e, por isso, é de se esperar que encontremos o acesso reservado ao conteúdo musical. As faculdades em questão, sensibilidade, imaginação, entendimento, julgamento e apercepção, são as mesmas que observamos na análise do juízo estético, porém, encontram-se aqui em seu estatuto original, discursivo, no qual as faculdades de conhecimento se relacionam de um modo corrente por toda a estrutura da apercepção. Tal característica dá aos juízos lógicos plena autoevidência, contudo, não faz do juízo lógico e determinante uma operação óbvia nem de pouco interesse para a epistemologia, para o conhecimento, e mesmo para a arte e o juízo da beleza. Na primeira Crítica, o juízo determinante, veremos, cumpre sua finalidade através do entrave entre as legalidades do entendimento e a sensibilidade no processo de esquematismo, ou seja, a faculdade do juízo executa um processo completo através de uma atividade compartilhada por todas as faculdades: “a faculdade de julgar é um talento especial, que não pode de maneira nenhuma ser ensinado, apenas exercido” (Kant, 1985, B 172). Notemos que, enquanto as faculdades apresentam um rigoroso formalismo estatutário, a palavra final da síntese do conhecimento se 77

baseia em uma habilidade do juízo. Ressalta-se, assim, que o conhecimento não é mero encontro mecânico de representações impressas na subjetividade, mas processo radical implicando a criação de esquemas pela imaginação e o talento das sínteses do juízo. O conhecimento é um produto criativo, fruto de uma atividade de criar regras. Veremos, no presente capítulo, a estrutura do juízo determinante, que é, sem dúvida, a atividade que em seu conjunto possui o maior número de propriedades; de um princípio conforme um fim, de um uso autônomo desse princípio, de um uso regrado, de sua aplicação como um talento, até uma estrutura hipotética do conhecimento (Kant, 1985, B 114-115). O juízo em geral, e sobretudo sua forma determinante, parece estar longe de ser uma atividade segura a ponto de sua qualificação lógica poder ser comparada a qualquer tipo de determinismo ou passividade. O juízo fica responsável por dirimir todos os necessários desacordos de uma tarefa que conta com os maiores abismos possíveis, de fundar uma objetividade a partir de um diverso captado por nossa sensibilidade. O juízo determinante, quase que colado à estrutura experimental das ciências da natureza, encerra, assim, a maior finalidade da Gemüt, a consecução de teorias que liguem os conceitos empíricos entre si e constituem um só sistema da natureza. É no interior dessa perspectiva que iniciamos uma investigação acerca do estatuto do juízo determinante. Nosso objetivo mais imediato será caracterizá-lo mediante estatutos que possam ser transpostos ulteriormente em uma estrutura epistemológica para o fenômeno musical. A apercepção enquanto autoconsciência Gemüt é o conceito mais geral que Kant reserva para a nossa disposição viva. Unidade sintética da consciência, do eu penso, da autoconsciência: “o primeiro conhecimento puro do entendimento, sobre o qual se funda todo o seu restante uso” (Kant, 1985, B 137). É um conceito que pode ser discernido em funções, e é esse o empreendimento kantiano por toda a primeira Crítica. Suas funções mais amplas podem ser descritas em 78

dois desdobramentos de seu conceito: apercepção pura e empírica. À apercepção pura damos o nome também de autoconsciência: pois que nela o saber, que o sujeito adquire de si, consiste em uma percepção e não em um ato de conhecer. A autoconsciência, em si mesma, embora esteja na base da estrutura cognitiva humana não elabora conhecimento. (Martins, 1999, p. 67)

Simplificadamente, diríamos que a autoconsciência exibe conteúdos sintetizados e atua apenas enquanto “princípio de unificação das faculdades” (Rohden, 2009, p. 7). Junto à apercepção empírica identificamos uma série de estatutos que nossa Gemüt encerra, desde a intuição até, por exemplo, um juízo determinante. O princípio supremo desta mesma possibilidade em relação ao entendimento é que todo diverso da intuição esteja submetido às condições da unidade sintética originária da apercepção. (...) na medida em que têm de poder ser ligadas numa consciência; de outro modo, nada pode, com efeito, ser pensado ou conhecido, porque as representações dadas, não tendo em comum o acto de apercepção eu penso, não estariam desse modo reunidas numa autoconsciência. (Kant, 1985, B 136-137)

A autoconsciência pensada enquanto princípio unificador de todas as faculdades aparece na citação imiscuída à própria função do entendimento. O entendimento parece então levar a cabo uma exigência direta da apercepção que acaba por se definir também por esta faculdade: “é o princípio supremo de todo uso do entendimento” (Kant, 1985, B 136). Enquanto autoconsciência pura a apercepção fundamentalmente nos dá a intuição do “eu sou”. Tal esfera representa o mais alto grau e, ao mesmo tempo, o estado mais genérico de nossa consciência. Nesse âmbito temos o quadro vivo de nossas experiências, que surgem espontaneamente como: mundo, pensamento, juízo, imagens, sensações, enfim, tudo aquilo que é exibido naturalmente. A pura apercepção não significa, portanto, o autoconhecimento de um sujeito pensante e, tampouco, o conhecimento de seus pensamentos empíricos e de seus estados mentais; pois ela apenas determina a forma

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na qual este sujeito tem conhecimentos sem ser, todavia, o saber de si que este sujeito tem e precisa ter. (Martins, 1999, p. 73)

Como não podemos falar de elementos empíricos no nível da apercepção pura temos, portanto, que descer alguns degraus para abordar a apercepção empírica. Se pudéssemos cunhar uma expressão apropriada para a apercepção empírica, em paralelo com o eu sou da apercepção pura, ilustraríamos: eu sintetizo. Enquanto máxima, ela aponta para o enfoque que na apercepção empírica passa de mera autoconsciência de conteúdos para a autoconsciência de nosso próprio processo de conhecimento. É justamente um empreendimento do porte da filosofia crítica que pode vir a traçar tal fio condutor dos processos de síntese. A autoconsciência empírica é que se apresenta enquanto hábil a desvendar o estatuto de nossas operações “para se tornar objeto para mim” (Kant, 1985, B 138). A apercepção empírica, por isso, não é apenas autopercepção, mas consciência da atividade cognitiva. Duas outras funções fundamentais de nossa Gemüt se abrem a partir da apercepção empírica, polos estes de um conflito o qual a apercepção cumpre sintetizar. São eles o entendimento e a sensibilidade. Se a apercepção é uma função de síntese, ela é propriamente síntese entre essas faculdades. A disposição das funções de nossa Gemüt se alinha hierarquicamente, e o conhecimento, uma síntese determinante, possui um lugar privilegiado na harmonia dessas estruturas, é fim de um processo bem sucedido do entendimento. Uma vez que as sínteses tenham sido bem sucedidas, elas são remetidas à apercepção pura, sendo esta justamente a culminação de toda a atividade de um complexo de faculdades, no qual se exibem os conteúdos. Dado que toda faculdade encerra um estatuto próprio, a operacionalidade de cada faculdade ao mesmo tempo encerra certa autonomia e modos próprios de processamento, e, assim, conteúdos próprios. Dada essa particularidade dos atos de cada faculdade nos focamos em

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alguns, no sentido de caracterizar essa série de atos que culminam na apercepção. São eles: síntese, atividade, representação e produto. Utilizando a definição geral de produto (Frias, 2006, p. 10) para designar os conteúdos principais das faculdades, podemos citar: intuições, conceitos, ideias, esquemas e juízos. Estes são produtos das respectivas faculdades: sensibilidade, entendimento, razão, imaginação e juízo. Distinto de um produto, temos o ato de síntese. A síntese é um ato fundamental. A possibilidade transcendental de qualquer experiência é garantida por atos especiais de síntese, e as faculdades podem ser interpretadas como legalidades sintéticas: a intuição enquanto síntese da apreensão, a imagem enquanto síntese da reprodução e o conceito enquanto síntese da recognição (Kant, 1985, A 97). Compreendidas essas classificações podemos analisar o estatuto e o conteúdo do juízo determinante. Estatuto e conteúdo do juízo determinante O juízo, quando do cumprimento de seu princípio, remete a uma síntese para a apercepção, como podemos notar nestas duas passagens: (...) um juízo mais não é do que a maneira de trazer à unidade objetiva da apercepção conhecimentos dados. (Kant, 1985, B 141) (...) segundo princípios da determinação objectiva de todas as representações, na medida em que daí possa resultar um conhecimento, princípios esses que são todos derivados do princípio da unidade transcendental da apercepção. Só assim dessa relação surge um juízo, ou seja, uma relação objetivamente válida, que se distingue suficientemente de uma relação destas mesmas representações, na qual há validade apenas subjetiva, como por exemplo a que é obtida pelas leis da associação. (Kant, 1985, B 142)

Contrariamente à associação (ligação livre), o juízo conduz a uma ligação objetivamente válida. Seu princípio a priori se cumpre na ligação entre representações e categorias do entendimento. O caso da associação pouco compete a um conhecimento, pois se um enlace não

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é estabelecido é devido à falta de determinações categoriais como a relação causal entre os objetos. Kant parece, aqui, separar o princípio causal universal das leis causais particulares tão nitidamente quanto se poderia desejar. O princípio de que todo evento B tem uma causa A certamente é a priori e necessário. No entanto, leis causais particulares – instanciações particulares (via conceitos empíricos particulares) da generalização de que todos os acontecimentos do tipo A são seguidos por acontecimentos do tipo B – ficam completamente indeterminadas pelo princípio causal. (Friedman, 2009, p. 208)

Quando Kant afirma que “há uma conexão necessária entre causa e efeito” (Friedman, 2009, p. 197), mesmo quando essa conexão é dada por um conceito puro que não pode constranger os eventos empíricos, mas tão somente os subsumir, faz superar qualquer perspectiva cética sob uma operacionalidade lógica do juízo. Por isso, o juízo é sempre caracterizado como determinante na primeira Crítica. Podemos entender agora que o estatuto do juízo está comprometido com uma função do entendimento em dar objetividade e universalidade a uma representação, demarcando uma diferença essencial entre associação e determinação. Os processos de associação, por sua vez, ligam-se à capacidade da imaginação, seja enquanto reprodutiva ou produtiva. Porém, a título de exemplificação, é mais evidente compreendermos a associação como que ligada ao processo reprodutivo da imaginação, aquele que dispõe os objetos diante de nós: “sem a presença deste na intuição” (Kant, 1985, B 151). Kant define a imaginação enquanto faculdade ligada à sensibilidade, e isto explica a relação entre associação e imaginação, pois que se situam anteriormente às sínteses do entendimento, e, portanto, associa e não determina um múltiplo da intuição. Embora os esquemas da imaginação sirvam a uma “conformidade com as categorias” (Kant, 1985, B 152), eles em sua autonomia apenas associam. Quando tomamos o exemplo da associação em Kant, o objeto citado, embora objetivo, possui um modo de ligação que se refere somente à subjetividade. A expressão se refere sempre ao modo subjetivo da ligação efetivada, diz “sinto o corpo e o peso em minha mão”, em que “corpo” e “peso” se associam a “minha mão”, sem representar ou 82

ajuizar, pois que é ainda subjetiva e não dispõe da objetividade exigida por um juízo completo. O juízo no exemplo empírico diria que esse corpo possui peso e, fundamentar-se-ia em conceitos puros, passando a carregar um valor de verdade que pode ser colocado à prova para cada caso singular, igualmente fundamentado em leis a priori de nosso entendimento, que permitem ainda o avanço para uma forma axiomática: todos os corpos são pesados. Notemos também que a associação pode tomar conceitos empíricos como base, pois como no exemplo de Kant, corpo, mão e sensação de peso são objetividades enquanto tais, ou seja, são produtos determinados, embora o juízo que os ligue o faça apenas subjetivamente. Nesse caso, o juízo que os liga não estabelece qualquer conexão necessária. A questão polêmica a respeito do juízo que expressamos quando de uma sensação subjetiva, associada a nossa mão, faz somente ressaltar a implausibilidade efetiva de tal ocorrência que serviu de exemplo, visto que duas vezes que tenhamos um objeto em nossa mão, saberíamos que o peso é defintivamente do objeto, assim indica Hume (1973)1. Porém, interessa aqui essa demarcação entre a capacidade associativa própria da imaginação em contraste com a capacidade determinante. O estatuto determinante leva a cabo uma subsunção dos conceitos puros das categorias do entendimento sobre os esquemas da imaginação, e tal elo confere aos esquemas um enlace lógico, e não meramente associativo. Essa síntese produz um conteúdo exibido pela apercepção de modo a estabelecer um conhecimento objetivamente válido. Assim, por exemplo, quando converto em percepção a intuição empírica de uma casa pela apreensão do diverso dessa intuição, tenho por fundamento a unidade necessária do espaço e da intuição sensível externa em geral e como que desenho a sua figura segundo a unidade sintética do diverso no espaço. Mas, se abstrair da forma do espaço a intuição de uma casa, esta mesma unidade sintética tem a sua sede no entendimento e é a categoria da síntese do homogêneo numa intuição em geral, ou seja, a categoria da 1. “29. Se nos for apresentado um corpo de cor e consistência parecidas às do pão, que já comemos, não temos receio de repetir a experiência, certos de que ele nos proporcionará o mesmo alimento e sustento” (Hume, 1973, p. 141).

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quantidade, à qual deverá portanto ser totalmente conforme esta síntese da apreensão, isto é, a percepção. (Kant, 1985, B 162, grifo nosso)

Kant faz questão de ressaltar a presença das categorias e das demais sínteses lógicas que se incluem em um objeto, e que temos acesso pela reflexão sobre esses objetos, o que pode ser interpretado como mais uma prova da existência de conexões a priori que determinam a condição do próprio objeto em aparecer para a apercepção: Desta maneira fica provado que a síntese da apreensão, que é empírica, tem que ser necessariamente conforme à síntese da apercepção, que é intelectual e está inteiramente contida a priori na categoria. É uma e a mesma espontaneidade, que ali sob o nome de imaginação, aqui sob o de entendimento, promove a ligação no diverso da intuição. (Kant, 1985, B 163)

A exibição esquemática e simbólica dos juízos No capítulo anterior, abordamos o tema da hipotipose para ilustrar questões concernentes à exibição do juízo reflexivo. Porém, como nos mostra Beckenkamp, o procedimento de inferência analógica que constitui a exibição simbólica foi utilizado por Kant inicialmente para caracterizar a possibilidade de uma exibição de uma ideia da razão: É claro que na mitologia posteriormente reivindicada se trata de uma “simbólica universal” (cf. K.F.A. Schelling, SW I/6, Stuttgart, Cotta, 1856, p. 571) compartilhada por todo um coletivo, enquanto em Kant a necessidade de uma simbolização das ideias decorre naturalmente da limitação da própria razão, que faz com que “tenhamos sempre necessidade de uma certa analogia com seres da natureza, a fim de nos tornar apreensíveis disposições supra- sensíveis” [Die Religion, AA VI, 65 nota]. (Beckenkamp, 2002, p. 5)

Já a exibição esquemática se confunde com a estrutura normal da apercepção e é, por isso, direta, em contraposição à simbólica, em que a exibição é indireta, assim como no caso do juízo moral, dada sua incapacidade de se exibir sensivelmente. O juízo da beleza, por sua vez, 84

não possui representação, nem direta ou indireta, seja sensível (uma imagem da intuição) ou conceitual. A exibição direta está intimamente relacionada com o processo de subsunção deliberado pelo entendimento. Segundo Guyer, a constituição lógica das categorias é tal que, uma exibição direta, comumente relacionada à exibição de objetos empíricos, pode proceder na exibição de objetos ideais. Um exemplo simples dessa interferência está na ideia da perfeição do objeto, que raramente encontramos nas medições científicas, mas que contribuem para a postulação de suas leis (Kant, 1985, A 664-666). Visto ser o juízo determinante o padrão do funcionamento das faculdades humanas, ele não requer sequer uma terminologia diferenciada como a de hipotipose para caracterizar sua exibição, pois que esta é direta, objetiva e se mostra imediatamente na apercepção. O termo hipotipose se explica apenas em um contexto no qual um ou mais termos da síntese da apercepção estejam em falta, por isso a derivação do termo da tradição retórica. Kant o ressignifica para demonstrar o processo pelo qual uma ideia moral pode tentar se representar por um meio sensível. O termo é criado para dar conta de uma situação em que o conhecimento moral não é capaz de se atrelar a um objeto, não é capaz de correspondência lógica em sentido ontológico (Kant, 1985, A 664-666), ou seja, a hipotipose, uma exibição simbólica, gera uma espécie de convencimento por um artifício analógico. Seguindo essa mesma linha interpretativa, passamos a compreender por que o inverso não se verifica. Os termo apercepção ou exibição direta não aparecem nas páginas da terceira Crítica. O entendimento: a espontaneidade do conhecimento As faculdades do conhecimento, em seu desempenho regular, fornecem experiências e erigem conhecimento. O termo utilizado para adjetivar esse trabalho é espontaneidade. A espontaneidade do conhecimento coincide com a “espontaneidade dos conceitos” (Kant, 1985, B 74) do entendimento em subsumir, ou seja, coincide com o juízo determi85

nante. A espontaneidade do entendimento indica uma capacidade de pensar o objeto da intuição e, assim, a síntese do conhecimento pode ser intepretada como uma disposição ativa e espontânea da faculdade do entendimento por sobre as representações da sensibilidade. Porém, há que se perguntar: como Kant chegou a esse formato geral das faculdades de conhecimento, limitados à ação da sensibilidade junto ao entendimento? O método de Kant consistiu em acolher um objeto qualquer, em sentido pré-filosófico, para então desvendar modos necessários desse objeto, como necessariamente se apresenta e se exibe em nossa consciência, para então derivar as instâncias transcendentais: “na Crítica da Razão Pura, procede inicialmente à análise de um conceito dado, à análise do conceito de experiência enquanto conhecimento objetivo, remontando às suas condições de possibilidade” (Esteves, 1996, p. 34). A análise pré-filosófica, que já apontava a experiência e o conhecimento como fatos, exige uma justificativa, a qual resultou na filosofia transcendental. A estrutura final a que Kant chegou se expressa na exigência de que o entendimento se incumbe em conceituar tudo o que caia sob a sensibilidade. Assim, qualquer fato observável será o resultado de uma subsunção do entendimento sob dados captados pela sensibilidade, enquanto que a fundamentação do fato como ele aparece é propriamente aquilo a que visa a filosofia transcendental, como sugere a interpretação de Dieter Heinrich (Klotz, 2007), que a caracteriza como uma filosofia analítica que faz deduzir estruturas não aparentes a partir de um fato autoevidente. Embora toda nossa vida cognitiva possa ser representada por essas duas grandes faculdades, sensibilidade e entendimento, Kant prevê diversas formas de síntese, que dependem desde nossos órgãos sensoriais até os modos específicos como conceitos podem se vincular entre si e entre matéria intuída. O resultado de tantas sínteses possíveis desencadeiam formas como o teórico, o axiomático, o nominal, o singular, a espécie e o gênero. Todas essas classificações aplicáveis a uma experiência podemos, de modo geral, denominar conceituais, mas os conteúdos

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nestes casos diferem, em virtude da complexidade dos estatutos e sua inserção em uma hierarquia de atos e funções. O produto da faculdade do entendimento Acompanhando Deleuze, temos que “faculdade designa uma fonte específica de representações” (Deleuze, 1994, p. 15). O conhecimento, porém, assenta em um antagonismo original: O nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais do espírito, das quais a primeira consiste em receber as representações (a receptividade das impressões) e a segunda é a capacidade de receber um objecto mediante estas representações (espontaneidade dos conceitos). (Kant, 1985, B 74)

A definição kantiana não está livre de certa confusão quando qualifica os dados recebidos pela sensibilidade enquanto representações. Não está claro se o sentido em que os objetos são representações guardam certa analogia com a coisa em si, ou se se trata já de compostos impressos na sensibilidade que continuariam presentes na percepção do objeto. Para os dois casos, o objeto se torna igualmente um ente representado, seja por guardar uma analogia com a coisa em si, seja por manter intactas as impressões originais da sensibilidade. Decerto, uma “desambiguação” se faz necessária para o termo representar. A espontaneidade do conhecimento se assenta na capacidade de síntese da apercepção com base nas regras do entendimento. A espontaneidade do entendimento se contrapõe à receptividade da faculdade da sensibilidade justamente pelo caráter privilegiado do entendimento em sintetizar um objeto. A sensibilidade, por sua vez, só pode aguardar que o entendimento faça tal remetimento ao nível da apercepção. Uma vez que o circuito tenha se completado, e respeitarmos a terminologia kantiana ao chamar de representação os dados das impressões, aquilo que for o resultado final, o próprio conhecimento, não poderá ser tomado como mera representação passiva de impressões, não poderá ser nomeado de representação. Independente de como Kant venha a qualificar o termo, evitamos o risco da polissemia do termo e podemos 87

tratar do objeto do conhecimento, e do próprio conhecimento, como a apresentação própria, fenomênica, ou ainda, um conteúdo pensado ativamente, diferenciando-se da mera representação: “Porém, a espontaneidade do nosso pensamento exige que este diverso seja percorrido, recebido e ligado de determinado modo para que se converta em conhecimento. A este acto dou o nome de síntese” (Kant, 1985, B 102). São justamente os atos de ligação e síntese que conferem o caráter ativo do conhecimento, distinguindo-se da passividade das impressões, e por isso é exclusivo do entendimento: “Todavia, reportar essa síntese a conceitos é uma função que compete ao entendimento e pela qual ele nos proporciona pela primeira vez conhecimento no sentido próprio da palavra” (Kant, 1985, B 103). Para qualquer relação sintética são necessários dois termos: o diverso da intuição e o conceito. Um terceiro termo é, por certo, o seu resultado, o conhecimento: Os conceitos fundam-se, pois, sobre a espontaneidade do pensamento, tal como as intuições sensíveis sobre a receptividade das impressões. O entendimento não pode fazer outro uso destes conceitos a não ser, por seu intermédio, formular juízos. (Kant, 1985, B 93)

As propriedades lógicas das categorias e os produtos das sínteses do entendimento podem ser verificados em todo espectro de nossa experiência, analisável em termos conceituais: (...) todos os corpos são divisíveis, o conceito de divisível refere-se a diversos outros conceitos; entre eles refere-se aqui, particularmente, ao conceito de corpo, e estes, por sua vez, a certos fenômenos, que se apresentam a nós. (Kant, 1985, B 93)

O conhecimento, tratando-se de coisa conceitual, é uma união entre o que quer que seja a categoria (conceito puro) com uma intuição correspondente. Nesse caso, o resultado da relação entre categoria e o diverso da intuição é expresso em um conceito empírico. Este pode vir a se acumular em sínteses subsequentes instanciando juízos sobre demais conceitos em direção à universalidade pretendida pela ciência.

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Porém, a estrutura do que seja o conceito já subsiste separadamente do produto final do conhecimento, enquanto categoria, e eis seu caráter a priori. De que modo, então, pode-se perguntar se o conceito enquanto produto do entendimento se destaca singularmente, e, também, de que maneira a condição de possibilidade, que é conceitual, cria células conceituais distintas entre si. Definimos o conhecimento como um terceiro termo, distinto da categoria e da intuição, uma síntese entre ambos. Temos, contudo, que considerar que a síntese é de incumbência do entendimento e o sintetizado, por sua vez, não passa de uma configuração singular das categorias e, nesse caso, o conhecimento parece coincidir com um esquema montado por elas: Como, porém, há em nós uma certa forma de intuição sensível a priori, que assenta na receptividade da faculdade de representação (sensibilidade), o entendimento, como espontaneidade, pode então determinar, de acordo com a unidade sintética da apercepção, o sentido interno pelo diverso da representação dada e deste modo pensar a priori a unidade sintética da apercepção do diverso da intuição sensível, como condição à qual tem de encontrar-se necessariamente submetidos todos os objetos da nossa (humana) intuição; é assim que as categorias, simples formas de pensamento, adquirem então uma realidade objetiva, isto é, uma aplicação aos objetos que nos podem ser dados na intuição, mas só enquanto fenômenos; porque só destes somos capazes de intuição a priori. (Kant, 1985, B 150-151)

Há, ainda, um segredo inerente a esse procedimento, e se encontra em uma faculdade intermediária por natureza, mediadora entre sensibilidade e entendimento, a saber, a imaginação. A imaginação possui muitas atribuições, e Kant a divide entre imaginação produtiva e reprodutiva. Em sua capacidade mais radical, a produtiva, depreende-se esquemas essenciais à ação do entendimento sobre a sensibilidade, “é portanto uma faculdade de determinar a priori a sensibilidade” (Kant, 1985, B 152). Acima havíamos grifado a expressão sentido interno, cabendo ainda algum esclarecimento do parágrafo:

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sentido interno, pelo contrário, contém a simples forma da intuição, mas sem a ligação do diverso nela inclusa, não contendo, portanto, nenhuma intuição determinada; esta só é possível pela consciência da determinação do seu sentido interno mediante o acto transcendental da imaginação (influência sintética do entendimento sobre o sentido interno) a que dei o nome de síntese figurada. (Kant, 1985, B 154)

A imaginação é comumente relacionada com sua capacidade reprodutiva, em fazer exibir em abstrato um objeto, uma imagem de nosso sentido interno. Já o seu caráter produtivo é aquele que forma esquemas essenciais à síntese de um juízo objetivo. Essa última função pode ligar a intuição ao conceito em sua ação produtiva. Especifiquemos um pouco mais a ação conceitual para, então, abordarmos o processo do esquematismo empreendido pela imaginação produtiva. Conceito: definição do termo O termo conceito é referido na obra de Kant em três sentidos: conceito empírico, conceito puro e esquema de um conceito. Esquema de um conceito seria uma espécie de abstração, não do objeto, mas de certos caracteres essenciais de um conceito, no sentido de identificá-lo facilmente em uma experiência, ou lidar com ele na imaginação. O esquema de um conceito é um corpo formal, referido apenas a uma regra de ocupação no tempo e espaço, que serve como apetrecho para identificação de um conceito na realidade de um objeto: “Ora é esta representação de um processo geral da imaginação para dar a um conceito a sua imagem que designo pelo nome de esquema deste conceito” (Kant, 1985, B 179-180). A vaguidade da explicação do esquema do conceito não significa impropriedade, visto que Kant quer significar a forma da regra e não de um objeto empírico. Não se trata ainda de uma abstração de um objeto empírico, mas, ao contrário, daquilo que possibilita sua enformação: “De fato, os nossos conceitos sensíveis puros não assentam sobre imagem dos objetos, mas sobre esquemas. Ao conceito de um triângulo em geral nenhuma imagem seria jamais adequada” (Kant, 1985, B 180). 90

Vemos, portanto, que é esse mesmo esquema que permite usos abstrativos comuns à linguagem, mas que, sobretudo, perfaz-se como capacidade a priori de nossa faculdade: O conceito de cão significa uma regra segundo a qual minha imaginação pode traçar de maneira geral a figura de certo animal quadrúpede, sem ficar restringida a uma única figura particular, que a experiência me oferece ou também qualquer imagem possível que posso representar in concreto. (Kant, 1985, B 180)

A expressão conceito sensível puro aparece empregada apenas enquanto sinônimo para o esquema de um conceito, tão facilmente representado pela imaginação de um objeto geométrico em geral: “No simples conceito de uma coisa não se pode encontrar nenhum caráter de sua existência” (Kant, 1985, B 272). O esquema de um conceito é uma forma realizada pelo trabalho da imaginação, e não pelo próprio entendimento ou pelo juízo. Seu caráter esquemático não se relaciona com o conhecimento diretamente, mas apenas com a possibilidade de corresponder intuições em conceitos. Isso dirá respeito ao esquematismo, ou seja, ao processo de subsunção de intuições em conceitos. A possibilidade está, contudo, imprimida na categoria da modalidade. A categoria da modalidade trata de uma função dos juízos, que, diferentemente das demais categorias, não visa a composição de conteúdos, trata apenas de “se referir ao valor da cópula em relação ao pensamento em geral” (Kant, 1985, B 100). A possibilidade, a realidade e a necessidade de um juízo são os conceitos da categoria da modalidade em questão. Seu caráter modal dá-se sob as seguintes condições, como pode ser observado no diagrama abaixo, em que Kant afirma que: 1. O que está de acordo com as condições formais da experiência (quanto à intuição e os conceitos) é possível. 2. O que concorda com as condições materiais da experiência (da sensação) é real.

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3. Aquilo cujo acordo com o real é determinado segundo as condições gerais da experiência é (existe) necessariamente. (Kant, 1985, B 266)

Podemos, inclusive, facilitar nossa exposição com uma interessante analogia entre necessidade, realidade e possibilidade e conceitos puros, conceitos empíricos e esquema de um conceito. Os conceitos puros dizem respeito à necessidade de um juízo. São condições necessárias de toda experiência. Não são reais, são formas puras categoriais. Sozinhas são vazias e não encerram conhecimento. Os esquemas de um conceito encerram uma possibilidade. A imaginação traça certo ordenamento. Este pode ser uma abstração de um conceito empírico ou um esquema montado para aplicação em um esquematismo. Ele mesmo não possui qualquer realidade, embora encerre necessidades. É, por isso, nem necessário nem real, mas possível. Os conceitos empíricos aliam as exigências dos conceitos puros a um diverso da intuição e, por isso, constituem uma experiência; seu ajuizamento implica uma realidade do objeto sintetizado. O conceito puro não é produto de um estatuto, mas a própria regra impressa no entendimento é uma instância a priori. Portanto, vamos nos referir aos conceitos puros daqui em diante apenas enquanto categorias. Sendo impossível a uma categoria constituir imediatamente um objeto, é necessário que uma dinâmica entre em ação e medie a atividade de regrar o intuído. A atividade em questão é o esquematismo. O esquematismo O esquematismo é uma operação condicionante da legalidade do juízo sobre um múltiplo da sensibilidade. É o processo que permite a subsunção, ou seja, enquadrar o intuído dentro de um conceito, ou, mais precisamente, representar na imaginação intuições sob esquemas para que conceitos do entendimento subsumam. Com respeito à diferença de natureza a que nosso aparato transcendental de conhecimento deve superar, ou melhor, sintetizar, o esquematismo é quem garante a mediação. O que se quer é que o esquematismo prepare o diverso da

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sensibilidade de modo que o juízo possa agir de modo determinante (Kant, 1985, B 106). O esquematismo é a atividade em que se conjuram todos os elementos, faculdades, atos e capacidades de nossa Gemüt. Para Hentz, Kant quer demonstrar com a estrutura do esquematismo que as categorias devam ser, a priori, capazes de exibir uma possibilidade para todo o sensível: “a filosofia transcendental ao mesmo tempo tem antes de expor, segundo características universais mas suficientes, as condições sob as quais objetos podem ser dados em concordância com aqueles conceitos” (Hentz, 2008, p. 16). Nesse sentido, o real intento do esquematismo seria demonstrar um uso correto das categorias, na atribuição de esquemas que orientem corretamente o juízo em sentido determinante. Essa seria a condição logicamente válida para todo o conhecimento. O esquema passa a desempenhar, contra a tese empirista, a possibilidade de determinação do dado intuído, a partir de um terceiro termo entre sensibilidade e entendimento. A operação lógica em questão, cabe salientar, “não é aquela existente entre todo e parte (subsunção lógica), devendo tomar-se o termo ‘subsunção’ como equivalente a ‘aplicação’” (Allison apud Hentz, 2008, p. 17). O que ocorre em nível transcendental é uma síntese direta entre duas naturezas que não se dispõem hierarquicamente. Esta é, pois, uma síntese originária que, nos mostra Allison, não pode ser compreendida como mera operação lógica de subsunção. Outro tipo de subsunção, como pode ocorrer entre juízos empíricos, vai operar sobre relações de espécie e gênero, contando com uma homogeneidade conceitual. Essa homogeneidade não pode ser dada em nível esquemático puro; pelo fato de não haver homogeneidade alguma é este o caso em que esquemas devem atuar. É justamente pela falta original de uma homogeneidade pré-disposta entre intuição e conceito que o esquematismo ainda introduz o tempo para sua consecução: A homogeneidade da determinação transcendental do tempo com relação à categoria se dá pelo fato de que estas determinações são tanto universais

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quanto repousam sob uma regra a priori. (...) as determinações transcendentais do tempo estão submetidas às categorias que são responsáveis pela síntese da multiplicidade da intuição em geral. (Hentz, 2008, p. 18)

Peguemos um exemplo do próprio Kant: o esquematismo é aquilo que permite que um objeto, como um prato, seja subsumido como tal, homogeneamente ao conceito de círculo. O conceito geométrico de círculo pode subsumir diversos objetos no mundo, e podemos assim pensar na capacidade do esquema em fornecer um complexo onde podemos pensar a priori a possibilidade de fenômenos. No caso de um diverso x sendo esquematizado através do tempo, ou seja, organizado segundo um princípio da unidade a que a imaginação tenta contribuir, o que está sendo traçado, ao fim, é uma possibilidade já inscrita transcendentalmente, uma regra, para a experiência de um intuído – no caso, subsumir esse x sob o conceito de círculo e somar através de outras notas individualizantes o conceito empírico de prato. Do ponto de vista estrito do esquema, “não é necessária a apresentação de uma imagem para provar a realidade objetiva de um conceito” (Hentz, 2008, p. 6), porém, para a constituição de uma experiência, se faz necessário que esse esquema se remeta a um diverso intuído. Os próprios espaço e tempo, por mais puros que sejam estes conceitos de todo o elemento empírico e por maior que seja a certeza de que são totalmente representados a priori no espírito, seriam destituídos de validade objectiva, privados de sentido e de significado se não fosse mostrado o seu uso necessário para objetos da experiência. (Kant, 1985, B 195)

É nesse sentido que o juízo estético não cumpre formalmente uma exibição, pois não se referencia ao diverso intuído e nem se recobre com as regras do entendimento. O papel reflexionante do juízo fica, portanto, assinalado como um caso excêntrico do próprio esquematismo, como um caso ainda mais crítico acerca da finalidade das faculdades, que deve sempre imprimir conhecimento sobre os objetos. Em seu papel específico, o esquematismo faz acomodar as categorias lógicas sobre o intuído. As categorias, por sua vez, são divididas entre matemáticas e dinâmicas. As categorias matemáticas possuem uma atuação imediata sobre as intuições: “através dos esquemas destas 94

categorias é possível construir na intuição pura tanto a quantidade extensiva quanto a quantidade intensiva (grau)” (Hentz, 2008, p. 8). Em uma experiência, temos acesso imediato a um objeto e a suas características, e aquela imediatidade se funda – assim Kant quer fazer entender – nas propriedades que as categorias matemáticas conferem ao intuído, garantindo a objetividade de nossa experiência. O passo seguinte para o conhecimento encontra-se na aplicação das categorias dinâmicas, que atuam sobre a existência de objetos da experiência já definidos em seu aspecto matemático. Interessa, sobretudo à ciência, uma ligação entre objetos que se paute legitimamente pela existência e exigência lógica do objeto. Diferente da matemática, a categoria dinâmica é sempre mediata: “não podem ser construídas a priori na intuição; os seus esquemas devem ser concebidos mais como uma síntese pura, a qual não pode ser posta sob imagem alguma” (Hentz, 2008, p. 9). Trata-se das categorias da relação e da modalidade, que devem aplicar seus princípios sobre objetos e não, conjuntamente, como na síntese matemática. Contudo, se quisermos especificar com mais acuidade como o esquematismo consegue de fato superar o abismo entre a sensibilidade e o entendimento, a habilidade do juízo em seu sentido mais elevado, Kant, como já havíamos destacado, deixa a seguinte mensagem: “é uma arte oculta nas profundezas da alma humana...” (Kant, 1985, B 180). As representações das faculdades em relação à síntese da apercepção Vimos que a síntese da apercepção é condição para qualquer exibição de um conteúdo. Vimos também que essa síntese consiste em uma subsunção conceitual. Vamos agora caracterizar como a função2 conceitual se torna necessária em uma relação de conhecimento e de exibição de objetividades. O faremos descrevendo três representações de nossas principais faculdades de conhecimento: a intuição, o esquema e o 2. Todas as intuições, enquanto sensíveis, assentam em afecções e os conceitos, por sua vez, em funções. Entendo por função a unidade da acção que consiste em ordenar diversas representações sob uma representação comum (Kant, 1985, B 93).

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conceito empírico. Mas, antes, veremos ainda duas atividades ligadas a essas representações, a saber, o pensamento e a síntese da apreensão. Pensamento: “um entendimento no qual todo o diverso fosse dado ao mesmo tempo pela autoconsciência seria intuitivo; o nosso só pode pensar e necessita de procurar a intuição nos sentidos.” (Kant, 1985, B 135). Ou de modo resumido: “acto de submeter à unidade a síntese do diverso” (Kant, 1985, B 145). No §21, Kant qualifica de orgânico o processo de conhecimento hierarquizado e unificado sob uma síntese. Assim todas as etapas e processos representam um e só ato da totalidade de nossa apercepção. O pensamento aparece como ato geral desse enlace com o intuído. De certo modo, poderíamos falar mesmo que o juízo pensa, o entendimento pensa, a apercepção pensa. Se atentarmos às citações o pensamento possui um sentido amplo indicando todo e qualquer ato de remetimento ou síntese, indicando o caráter mediado necessário do conhecimento. Síntese da apreensão: “a reunião do diverso em uma intuição empírica, pela qual é tornada possível uma percepção, isto é, a consciência empírica da intuição (como fenômeno)” (Kant, 1985, B 160). A síntese da apreensão é o ato da sensibilidade que funda o intuído, a partir das intuições puras do espaço e tempo. Anterior a esse ato não há nenhuma possibilidade de estarmos tratando com nenhum nível de nossas faculdades. Essa síntese, contudo, não se relaciona com a apercepção, não é síntese conceitual, tão somente sensível. Os termos percepção e consciência empírica contrapõem-se respectivamente à experiência e apercepção. Como no primeiro termo não existe nenhuma participação conceitual, não há também qualquer pensamento e, consequentemente, não pode ser remetido à apercepção. A percepção precisa de regramento para constituir uma experiência, do mesmo modo a apercepção que é uma autoconsciência precisa de uma experiência formatada para que uma mera consciência empírica (fenômeno) se exiba enquanto um conteúdo.

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A representação da sensibilidade: a intuição A intuição é assim definida por Kant: “A representação que pode ser dada antes de qualquer pensamento” (Kant, 1985, B 132). Ou seja, em seu sentido autônomo, não é autoconsciente: Por conseguinte, toda a síntese, pela qual se torna possível a própria percepção, está submetida às categorias; e como a experiência é um conhecimento mediante percepções ligadas entre si, as categorias são condições da possibilidade da experiência. (Kant, 1985, B 161)

Kant inicia o §20 com um título bastante sugestivo e esclarecedor: Todas as intuições sensíveis estão submetidas às categorias, como às condições pelas quais unicamente o diverso daquelas intuições se podem reunir numa consciência. A representação da intuição é uma percepção que, contudo, diferentemente do uso cotidiano da palavra não possui qualquer determinação do entendimento. Vamos adjetivá-la como uma representação “crua”. Queremos significar com isso que o estatuto da sensibilidade pela síntese da apreensão, que faz ligar um diverso aos conceitos puros, não é capaz de exibir seu resultado. Ele apenas serve de matéria aos demais processos: “Numa intuição dada, o diverso se encontra necessariamente submetido às categorias” (Kant, 1985, B 143). Caracteriza-se, assim, que, de acordo com a teoria kantiana, não há nenhum estágio semântico, qualquer juízo, ou consciência do intuído. Porém, mesmo que cegas, as intuições puras da sensibilidade aplicam uma ação à síntese da apreensão. Nelas, o tempo imprime uma ligação na continuidade: “Se deixasse sempre escapar do pensamento as representações precedentes e não as reproduzisse à medida que passo às seguintes, não poderia reproduzir uma representação completa” (Kant, 1985, p. 102). O espaço, por sua vez, é uma condição a priori unificadora de toda a intuição possível, sobre um espaço homogêneo e infinito (Kant, 1985, B 39-40), que implica a extensão de qualquer intuição. Parsons sinaliza para uma pré-definição kantiana desse sentido do espaço, presente já na Dissertação:

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O conceito de espaço é representação singular que compreende tudo em si, não uma noção abstrata e comum que contém tudo sob si. Pois o que chamamos diversos espaços não são senão partes de um mesmo espaço imenso, as quais se correlacionam por certa posição, e não podemos conceber um pé cúbico senão como delimitado por todos os lados por um espaço circundante (§15 B,2:402). (Parsons, 2009, p. 99)

Na síntese da apreensão, o espaço determina a forma para qualquer fenômeno, é “a condição subjetiva da sensibilidade, única que permite a intuição externa” (Kant, 1985, B 42). Portanto, o espaço perfaz a condição da exterioridade, enquanto o tempo, a condição da interioridade. O espaço é condição da forma e o tempo condição da ligação. São, contudo, apreensões do sensível. Trata-se de acoplamentos no qual são indexados propriedades do espaço e do tempo ao múltiplo apreendido. Vemos que a intuição seria uma condição necessária para a percepção de caracteres temporais e espaciais em qualquer fenômeno, incluso aqui eventos sonoros e musicais. O produto da imaginação: o esquema A imaginação é uma faculdade, mas não no sentido de conter conteúdos a priori. A imaginação enquanto faculdade encerra uma atividade e, portanto, não possui uma representação, mas tão somente uma regra: “são regras de determinação da intuição para a sua subsunção sob conceitos [KrV A141-2 B180- 1, 146]” (Frias, 2006, p. 9). A pretensão geral do tópico anterior, e também do próximo, será o tratamento das representações das faculdades. Porém, a rigor, nenhuma representação é cumprida pela imaginação. Kant vai, pois, adjetivar a imaginação enquanto uma faculdade cega (Kant, 1985, B 103). A imaginação não confere forma, conteúdo ou característica que sejam distinguíveis no conceito do objeto. Isso é explicado pelo caráter abstrato que o esquema encerra, é uma regra de confecção. Esses esquemas são somente mapas para a incidência dos conceitos do entendimento, e, em consonância com o entendimento, promovem uma síntese transcendental, constituindo esta a primeira aplicação das categorias às intuições. 98

A imaginação, em sua função produtiva, esquemática, refere-se a uma atividade livre, que não se liga a nenhum critério de verdade ou falsidade e, consequentemente, não pode reivindicar nenhuma universalidade, mas tão somente se pôr à disposição de uma confecção regrada do entendimento. A imaginação autonomamente pensada produz variações sem, contudo, projetar qualquer regra. No caso reprodutivo, é possível ligar objetos entre si, e mesmo traçar combinações de imagens em nosso sentido interno. Mas a imagem, diferentemente do esquema, não pode ser entendida enquanto uma atividade autônoma da faculdade da imaginação. Não podemos pensar uma linha sem a traçar em pensamento; nem pensar um círculo sem o descrever, nem obter a representação das três dimensões do espaço sem traçar três linhas perpendiculares entre si. (...) atentemos no acto da síntese do diverso pelo qual determinamos sucessivamente o sentido interno e, assim, na sucessão desta determinação que nele tem lugar. (Kant, 1985, B 154)

É importante apenas uma pequena ressalva sobre o “sentido interno” (Kant, 1985, B 153). O sentido interno surge como contraste ao que Kant nomeia de “sentido externo” (Kant, 1985, B 37), ou seja, a capacidade de nossa mente em representar objetos num mundo externo. O sentido interno trataria de uma representação que não se encontraria atualizada intuitivamente, é uma produção subjetiva que está amparada pela apercepção sem, contudo, promover uma síntese atual com o intuído. Uma imagem requeriu um conceito sintetizado, que, porém, requer o esquema novamente para uma exibição interna. O que se exibe não é a imaginação nem o esquema da imaginação, mas uma imagem que é garantida pelo conceito do entendimento e possibilitada pela imaginação ter impressa em sua faculdade a forma da intuição, assim, imaginamos uma imagem sem a ver de modo real. Essa relação reprodutiva fica evidenciada na prática de se escutar com o ouvido interno3 na leitura de partituras, em uma lembrança na 3. Ouvido interno é um termo usual na pedagogia musical e curiosamente diz respeito a exatamente ao que o termo kantiano sentido interno expressa, uma experiência não referenciada na sensibilidade, mas apenas sob esquemas da

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ausência de suporte material e mesmo na criação imaginativa. Nelas, uma possibilidade reprodutiva da imaginação se move a criar uma imagem musical apenas para o sentido interno. Nesses casos, usamos esquemas de experiências anteriores e os dispomos ao sabor de nossa vontade, seja para lembrar, ler ou interpretar uma partitura. O ato da imaginação não é o que determina a imagem, ela está alicerçada em conceitos anteriormente formatados, os quais a imaginação tem capacidade de dispor sem, contudo, ter uma intuição atualizada, e os remete diretamente à apercepção. Já a imaginação produtiva, enquanto mediadora entre o intuído e a objetividade, caminha por um direcionamento que é absolutamente original no sentido de abarcar uma intuição dada sem qualquer forma prévia. A representação do entendimento: o conceito O conceito é uma representação privilegiada do ponto de vista do conhecimento. Ele nos faz conhecer objetos: Desta maneira fica provado que a síntese da apreensão, que é empírica, tem que ser necessariamente conforme à síntese da apercepção, que é intelectual e está inteiramente contida a priori na categoria. É uma e a mesma espontaneidade, que ali sob o nome de imaginação, aqui sob o de entendimento, promove a ligação no diverso da intuição. (Kant, 1985, B 163)

Já distinguimos alguns sentidos do termo conceito, que pode se ligar tanto a um conceito empírico como a um conceito puro. No caso dos conceitos puros, não estaríamos tratando de representações: Os conceitos puros do entendimento relacionam-se pelo simples entendimento com objectos da intuição em geral, ficando indeterminado se imaginação. A prática de perceber música com o ouvido interno não se restringe apenas aos estudantes e suas práticas de leitura; a simples lembrança de uma música que podemos escutar internamente não é mais que um uso do ouvido interno. O termo pode significar também um aparato de nossa fisiologia, mas não estamos traçando nenhum paralelo com o órgão da audição, mas apenas tratando de nossa habilidade mental.

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se trata de nossa intuição ou de qualquer outra (sic), contanto que seja sensível; são, portanto, simples formas de pensamento, pelas quais ainda se não conhece nenhum objeto determinado. (Kant, 1985, B 150)

A representação sintetizada pela faculdade do entendimento é um conceito empírico. Conhecer um objeto é determiná-lo conceitualmente, assim, o conceito enquanto produto de conhecimento atesta um vínculo necessário entre nossas faculdades: Fora da intuição, não há outro modo de conhecer senão por conceitos. Assim, o conhecimento de todo o entendimento, pelo menos do entendimento humano, é um conhecimento por conceitos, que não é intuitivo, mas discursivo (...). O entendimento não pode fazer outro uso destes conceitos a não ser, por seu intermédio, formular juízos. (Kant, 1985, B 93)

Esse conceito aparece na primeira Crítica como o resultado de uma função do entendimento na captura de um múltiplo da intuição. Na Lógica vemos que existem ainda mais operações que determinam um conceito: Ora, se “os nossos conceitos são notas características” e “pensar é representar por meio de notas características”, então, o nosso pensamento representa por meio de conceitos [Lógica AK 58/A85]. E um conceito é gerado quanto à sua forma por meio dos três atos lógicos do entendimento: a comparação, a reflexão e a abstração. (Souza, 1996, p. 5)

O estabelecimento de um conceito empírico se condiciona às categorias matemáticas e dinâmicas, e a outros processos que são objeto da Lógica, como a comparação, reflexão e abstração. Todos eles coadunam um princípio discursivo do conhecimento ao qual podemos ter acesso nas duas distinções do conceito: Primeiro, pode-se tratar de uma distinção sensível. Esta consiste na consciência do múltiplo na intuição. Vejo, por exemplo, a Via Láctea como uma faixa esbranquiçada; os raios de luz de cada uma das estrelas que nela se encontram devem necessariamente ter chegado aos meus olhos. Mas a representação era apenas clara, e é só pelo telescópio que ela se

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torna distinta, porque agora enxergo cada uma das estrelas contidas nesta faixa leitosa. Segundo, pode-se tratar de uma distinção intelectual – a distinção em conceitos ou distinção do entendimento. Esta baseia-se no desmembramento do conceito relativamente ao múltiplo que está contido nele. É assim, por exemplo, que estão contidos no conceito de virtude, enquanto notas características, os seguintes conceitos: 1) o conceito da liberdade, 2) o conceito do apego as regras (o dever), 3) o conceito da superação da força das inclinações, na medida em que entram em conflito com essas regras. (Kant, 2003, A 44)

Essas distinções, segundo Longuenesse, têm a função de “comparar esquemas, graças aos três atos conjuntos, da comparação, da reflexão e da abstração, e acima de tudo suscitar estes esquemas na tensão mesma de suas identidades e diferenças” (Longuenesse apud Souza, 1996, p. 5). Enquanto produto final do processo de conhecimento, a representação conceitual faz cumprir a operacionalidade final da apercepção: Assim, a apreensão intuitiva ordena, a reprodução imaginativa conecta e o reconhecimento conceitual unifica (sequência cumulativa); mas a primeira está inseparavelmente ligada à segunda (KrV A102, 132), e a segunda é inútil sem a terceira (KrV A103, 132-3) [sequência pressuposicional]. (Frias, 2006, p. 47)

Nesse sentido, a recognição passa a ser o ato do conhecimento e todo conhecer um ato de recognição. Ou seja, reconhecer uma unidade a partir de igualdade e reconhecer limites a partir de diferenças.

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Limites, interferências e ultrapassagem das legalidades Uma vez que já tenhamos em mente as legalidades previstas pela epistemologia kantiana, exploraremos casos limites dos estatutos que analisamos até aqui. O exato limite, ou a ultrapassagem de um limite, pode tanto reivindicar a totalidade de um modelo quanto a impossibilidade de o exceder, definindo os casos pontuais de contrassenso, ou apontar para a insuficiência e incompletude de todo um modelo. Um exemplo de ultrapassagem do modelo kantiano, podemos conceber, estaria em incluir categorias do entendimento em um juízo puro do belo. Segundo Kant, quando predicamos beleza a partir de conceitos presentes no objeto, não estamos observando atentamente nem o estatuto e a legalidade do objeto, nem o estatuto da beleza. Seria, portanto, um contrassenso. Porém, mantendo-nos nos estreitos limites das legalidades, seria possível buscar uma imagem para uma ideia da razão? Sendo a ideia da razão uma representação abstrata e, por isso, sem qualquer representação sensível, retratar uma ideia da razão só seria possível caso uma interferência do domínio lógico fosse promovida para relacionar uma matéria intuitiva. Infelizmente, o estatuto da razão não prevê tal possibilidade, mas a relação de analogia, que não é lógica, mas associativa, é capaz de promover uma exibição de tipo simbólica. Não é uma exibição direta ou real, mas, por interferência de legalidades, permite ao menos um tipo de sensificação (Verssinlichung) desse conteúdo: A consideração desta analogia é também habitual ao entendimento comum; e nós damos frequentemente a objetos belos da natureza ou da arte nomes que parecem pôr como fundamento um ajuizamento moral. Chamamos edifícios ou árvores de majestosos ou suntuosos, ou campos de risonhos e alegres (...). (Kant, 1993, p. 260)

De modo geral, Kant parece aberto a descortinar interferências entre as legalidades, como vemos na introdução da terceira Crítica: Ora, ocorre que as nossas ações morais implicam a produção de um efeito no mundo físico; aquilo que avaliamos moralmente é algo que, causado por um agente livre, se dá entretanto na natureza segundo as categorias

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do entendimento. Deve haver, portanto, um ponto de contato necessário entre estes dois mundos – os domínios das filosofias prática e teórica – que se encontra, precisamente, no local onde a ação moral toma lugar efetivo no espaço e no tempo. (Vieira, 2003, p. 54)

A divisão de naturezas de nosso saber entre estético, lógico e moral, e a autonomia desses campos, não impede que haja certas áreas de interferência, o que não significa que Kant não as limite. O que o projeto crítico faz é delimitar as competências e limitar as pretensões, pois não se autoriza de imediato qualquer interferência. O juízo teleológico é outro caso claro de interferência entre domínios diversos, mas que atuam de maneira positiva no estabelecimento da ciência biológica: Nada é por acaso. Na verdade tampouco podem renunciar a este princípio teleológico, como em relação ao físico universal porque, assim como se se abandonasse o último não ficaria nenhuma experiência, assim também não restaria nenhum fio orientador para a observação desta espécie de coisas da natureza que já havíamos pensado teleologicamente sob o conceito de fim natural. (Kant, 1993, p. 296-297)

Não podemos nos esquecer também que o fundamento das faculdades de conhecimento reside em uma heterogeneidade original entre a natureza da sensibilidade e a natureza do entendimento, em que não há garantias de que uma síntese possa realmente se cumprir, um pano de fundo para um longo e árduo processo do conhecimento. Estabelece-se, assim, um campo de forças que demanda configurações para sua resolução: Assim, o critério da possibilidade de um conceito (não do objeto deste) é a definição, em que a unidade do conceito, a verdade de tudo o que dele pode ser imediatamente derivado e, por fim, a integralidade de tudo o que dele se extraiu, constituem o que é requerido para a elaboração de todo o conceito; do mesmo modo, também o critério de uma hipótese consiste na inteligibilidade do princípio de explicação admitido, ou na sua unidade (sem hipótese subsidiária), na verdade das consequências que dele derivam (concordância das consequências entre si e com a

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experiência) e, por fim, na integralidade do princípio explicativo em relação a estas consequências, que reconduzem a nada mais nada menos do que o que foi admitido na hipótese e reproduzem analiticamente a posteriori o que foi sinteticamente pensado a priori e com elas concorda. (Kant, 1985, B 114-115)

O ponto limite de integridade de um conhecimento encontra-se em sua forma conceitual, junto a tudo aquilo que desse complexo permita deduzir ou inferir outros conteúdos, mantendo-se sua referência e seus liames conceituais estabelecidos. Para um conceito empírico outras exigências ainda competem para seu limite, o que gera uma maior circunstância hipotética em sua construção. As confirmações empíricas, a depender de seu resultado, determinam de fora a possibilidade de se manter logicamente as representações sob um núcleo. A forma hipotética de um conceito é sempre vazia, e a possibilidade do conhecimento reside, portanto, igualmente em um intercâmbio entre esquemas conceituais e intuições. Assim, pode alguém pensar no conceito de ouro, além do peso, da cor, da tenacidade, ainda a propriedade de não enferrujar, enquanto outro talvez nada disso saiba. Utilizam-se certos caracteres apenas na medida em que são suficientes para distinguir; novas observações, por sua vez, fazem desaparecer alguns e acrescentam outros; portanto, o conceito nunca se mantém entre limites seguros. (Kant, 1985, B 756)

A condição do conhecimento sob um fundamento heterogêneo resulta em uma estrutura que não pode descartar um colapso ou mesmo fracasso dos limites estabelecidos para um conhecimento ou representação. O paralelo com a estrutura das ciências fica evidente, assim como a possibilidade última para qualquer tipo de conhecimento – dentro de um leque que vai da perfeição lógica de um objeto (Kant, 2003, A 46) até seu colapso – estar alicerçada na capacidade da apercepção em trazer sínteses ao nível de nossa consciência. Porém, achamos que o nosso pensamento sobre a relação de todo o conhecimento ao seu objeto comporta algo de necessário, pois este objeto é considerado como aquilo a que faz face; os nossos conhecimentos

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não se determinam ao acaso ou arbitrariamente, mas a priori e de uma certa maneira, porque, devendo reportar-se a um objeto, devem também concordar necessariamente entre si, relativamente a esse objeto, isto é, possuir aquela unidade que constitui o conceito de um objeto. (Kant, 1985, A 104- 105)

A unidade entre conceito e objeto é, portanto, condição de possibilidade do que se mostra na apercepção, e a respeito dessa unidade prossegue Kant: Ora esta unidade da regra determina todo o diverso e limita-o a condições que tornam possível a unidade da apercepção, e o conceito dessa unidade é a representação do objeto, que eu penso mediante predicados. (Kant, 1985, A 105)

A unidade da regra, enquanto condição da unidade da apercepção, funciona enquanto limite dessa aparição, e, sobretudo, enquanto regra que irá guiar outras apercepções de mesma espécie: Todo conhecimento exige um conceito, por mais imperfeito ou obscuro que possa ser; este conceito é, porém, quanto a forma, algo universal e que serve de regra. Assim o conceito de corpo, segundo a unidade do diverso que é pensado por seu intermédio, serve de regra ao nosso conhecimento dos fenômenos externos. (Kant, 1985, A 106)

Uma lei da natureza (e não a ideia de natureza) se apresenta não como um objeto, mas como uma teoria. Ou seja, ela não é objetiva enquanto algo presente no mundo, mas enquanto um juízo de juízos sobre uma experiência e, obviamente, corre todos os riscos de uma hipótese, como Kant ressaltou. O objeto de um conceito empírico surge para a apercepção como um objeto real, como coisa, não deixando por isso de ser um juízo: “Um juízo é a representação da unidade da consciência de diferentes representações, ou a representação da relação das mesmas, na medida em que constituem um conceito” (Kant, 2003, A 156). O caso em que um limite é descumprido coincide, pois, com a incapacidade do regramento. E esse se torna um limite ao qual todas as legalidades e exceções obedecem. Ou seja, sem determinação, sem conceituação, nenhum conteúdo se exibe. O caso de não haver 106

regramento, de não haver determinação, acarretaria a simples falta de conteúdo para a autoconsciência: “Tornar-se-ia essa relação, para nós, sem dúvida, uma intuição vazia de pensamento, mas nunca um conhecimento, portanto, tanto como nada” (Kant, 1985, A 111). Em uma descrição ainda mais dramática: “Estas, tão pouco, pertenceriam à experiência alguma; ficariam, por consequência, sem objeto e apenas seriam um jogo cego de representações, isto é, menos do que um sonho” (Kant, 1985, A 112). Temos ainda a mesma observação feita na Lógica: “Todo conhecimento bem como um todo do mesmo tem que ser conformes a uma regra. (A falta de regra é ao mesmo tempo a irrazão)” (Kant, 2003, AK 139). O limite imposto pela apercepção apresenta-se como a condição última para o sujeito. Independente de vir a confluir legalidades, a apercepção se coloca como uma condição originária. Seu cumprimento significa que um dado se enquadrou em uma de suas inúmeras possibilidades que abordamos ao longo desses dois capítulos. Seu descumprimento implica inexistência, menos que um sonho, tanto como nada. Um modelo de conhecimento para o fenômeno musical Vimos, no capítulo anterior, que o âmbito estético se preocupa com a vivência artística a partir da convicção de que essa se expresse prioritariamente por um juízo de gosto puro. Mais especificamente, para o caso da música, poderíamos oscilar entre um juízo estético puro, um juízo aderente ou uma beleza livre, como Kant quis classificar. Em todas as análises possíveis no interior da teoria estética kantiana não foi possível adicionar à experiência artística do objeto musical determinidades concernentes ao objeto, seja em sua totalidade ou em suas partes, ou mesmo sob qualquer conceito que lhe pertença, inviabilizando uma série de juízos concomitantes ou mesmo coincidentes com a experiência estética: falso-verdadeiros, compreensão-incompreensão, entendimentodesentendimento, conexão-desconexão, entre tantos outros. Se aderíssemos ao modelo do gosto puro, ficaríamos assim irremediavelmente atrelados a um estatuto que, como já avaliamos, não é 107

capaz de se exibir de modo direto, ou mesmo criar laços conceituais com predicações com base no material sonoro, basicamente tudo aquilo que se verifica na base audível da experiência musical e que poderíamos, em verdade, associar à finalidade da apercepção. Nesse sentido, nada do musical estaria sendo especificado com o juízo estético e, por decorrência, com o ajuizamento da beleza. O modelo determinante do conhecimento, seu caráter recognitivo e orientado a objetos empíricos, cumpre inicialmente a exigência geral da apercepção e nos fornece um modelo sólido e argumentável por onde o fenômeno musical pode ser explorado em concordância com a experiência habitual de seu objeto. Optando por tal via de acesso nos furtamos de certos embaraços que o juízo da beleza possui em relação à própria estrutura da apercepção como postulada na primeira Crítica. Restou à equação do juízo da beleza o esclarecimento da origem do desprendimento do sentimento puro e sua conexão com a estrutura da apercepção, impossibilitando mesmo a atrelação do objeto musical sob o sentimento referido, visto ser um estatuto que escapa de determinações objetivas. Vimos, com efeito, que os conceitos são totalmente impossíveis, e nem podem ter qualquer significado, se não for dado um objeto ou a esses próprios conceitos ou, pelo menos, aos elementos de que são constituídos e, por conseguinte, não se podem referir a coisas em si (sem considerar se nos podem ser dadas e como); vimos, além disso, que a única maneira pela qual são dados objetos é uma modificação da nossa sensibilidade e vimos que, por fim, os conceitos puros a priori devem ainda conter, além da função do entendimento na categoria, condições formais da sensibilidade (precisamente do sentido interno), que contém a condição geral pela qual unicamente a categoria pode ser aplicada a qualquer objecto. (Kant, 1993, B 178-179)

O uso autônomo do juízo de gosto, independente de toda e qualquer ação normal das faculdades entre si, em um vôo solo que diz respeito apenas a si mesmo, é decerto tão gratuito em sua conformidade que, em princípio, poderia abrir mão de qualquer fenômeno para seu desprendimento. O caso contrário ocorreria se Kant tivesse encontrado 108

o elemento que engatilha os objetos da natureza e os da arte para tal estatuto. Nesse sentido, ainda nos perguntamos se, em uma anamnese de escutas musicais, seria verdadeira uma experiência na qual tendemos a excluir os dados objetivos e cancelar os juízos que empreendemos sobre os elementos musicais e, assim, dar espaço para um juízo reflexionante. Respondendo negativamente a esse último inquérito, observa-se que a escuta, em sua constante atenção pela obra, faz com que interpretemos cada vez mais as séries de eventos de modo que cada subdivisão tome formas cada vez mais significativas para nós e a forma musical como um todo se torne cada vez mais compreensível através de um acúmulo progressivo ou paradigmático dessas escutas. Podemos tomar apenas como exemplo introdutório os trabalhos da psicologia, como os de Bigand e Pineau (1996), e de diversas disciplinas musicológicas de análise, como por exemplo em Falcón (2010). Contudo, sem qualquer interesse em soterrar a questão colocada por Kant quanto ao juízo de gosto, apenas apontamos que tal inquérito ainda necessitaria de um longo trabalho analítico conquanto uma relação entre juízo de gosto, objetos de arte e efeitos de tipo artístico. Diferente disso, nos apoiamos em uma experiência imediatamente reconhecível e de fácil reivindicação e comprovação. Porém esta regra empírica da associação, que se tem de admitir universalmente, quando diz que tudo na série de acontecimentos está de tal modo sujeito a regras, que nunca sucede alguma coisa sem que tenha sido precedida por outra a quem sempre segue, esta regra, considerada como lei da natureza, pergunto: Sobre o que repousa? Segundo os meus princípios, esta afinidade é bem compreensível. Todos os fenômenos possíveis pertencem, como representações, a toda autoconsciência possível. (Kant, 1993, A 112-113)

Enquanto um fenômeno compreendido pela autoconsciência, a música lança mão de sínteses que devem ser trazidas a uma exibição esquemática de acordo com o modelo recognitivo, o modelo clássico do conhecimento traçado na primeira Crítica. Creditamos ao estatuto do juízo determinante e seus princípios um fundamento consonante à prática musical instrumental clássica. 109

Porém a possibilidade, mesmo a necessidade destas categorias, repousa sobre a relação que toda a sensibilidade, e com ela todos os fenômenos possíveis, tem com a apercepção originária, na qual tudo necessariamente deve estar conforme as condições da unidade completa da autoconsciência, isto é, deve estar submetido às funções gerais da síntese, a saber, da síntese por conceitos, na qual unicamente a apercepção pode demonstrar a priori a sua identidade total e necessária. (Kant, 1993, A 111-112)

No primeiro capítulo, a partir dos problemas suscitados no §9 da terceira Crítica, vimos ser impossível um regramento anterior à ação do juízo de gosto puro. Contudo, pudemos observar nesse segundo capítulo que há, ainda na primeira Crítica, outras formas de concebermos representações que dispensam, e, em parte, corrigem a legalidade esboçada no estatuto da beleza. Em termos bastante gerais, falta ao estatuto estético puro a demonstração de uma legalidade que supere uma zona de des-consciência ou inconsciência de seu produto. A característica pura do estatuto também não contribui para eventuais investigações futuras, visto que desautoriza qualquer prova, indício ou correlativo de seu estatuto que não ele mesmo, em uma definição recursiva entre o sentimento e o estatuto. Na próxima seção, trataremos de demonstrar como uma experiência musical conta com todas as distinções lógicas, sínteses e exibições comuns a qualquer conhecimento trivial, e como essas relações se tornam necessárias para que venhamos a ter uma experiência qualificada enquanto tal.

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Parte 2. Epistemologia Musical Alle Gestalten sind ähnlich, und keine gleichet der andern; Und so deutet das Chor auf ein geheimes Gesetz, Auf ein heiliges Rätsel1.

A avaliação do sistema epistemológico kantiano feita até aqui demonstrou ser esse um corpo articulado entre faculdades, processos, estatutos e produtos. Vimos também que a mola propulsora desse sistema se identifica com o processo de juízo determinante, ou juízo lógico, em que há a autonomia das faculdades em uma função harmônica entre si. Cabe-nos agora passar de uma estrutura geral do conhecimento para o caso em espécie, o que demandará análises no sentido de transpôr certas características em espécie dos objetos musicais nas formas mais gerais do pensamento, demonstrando ao final a forma específica de um pensar musical. A análise recairá em apenas um obra musical, bastante simples mas também bastante representativa do período clássico musical, não em sua máxima expressão artística, mas, ao contrário, em sua máxima elementaridade. O período histórico compreendido é o da segunda metade do século XVIII, período do qual datam as principais obras de Kant. Conseguir atingir o objetivo de demonstrar um tipo de estrutura de pensamento que recaia de modo necessário sobre um determinado gênero musical, para além do ganho estrito de uma relação determinada, 1. “Todas as formas são similares e nenhuma é a mesma; e assim o coro aponta para uma lei secreta, para um enigma sagrado” (J. W. Goethe, em Die Metamorphose der Pflanzen).

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oferecerá uma porta de entrada para um empreendimento epistemológico musical que poderá ambicionar ainda outras formas de pensamento e conhecimento. A principal contribuição para o campo mais geral da epistemologia musical seria o estabelecimento das bases do conceito de objeto musical e a compreensão da relatividade dessas mesmas bases em relação aos modelos epistemológicos em vigor. Tal relação é de grande estima para a epistemologia da música, não em virtude de uma mera subordinação da atividade musical ao trabalho filosófico, nem em nome da sustentação de uma mera máxima relativista ou historicista mas, na verdade, por buscar habilitar o pesquisador em epistemologia musical na análise de sistemas, teses e modelos epistemológicos. Decorrente disso, permite que haja uma inversão da subsunção teórica, encontrando nos casos pontuais o momento no qual a teoria deve recolher ganhos que só podem ser atingidos no conhecimento do objeto musical e não no modelo epistemológico previamente visto. Foi ao pôr em prática essa dinâmica de trabalho que se tornou possível localizar no §9 da terceira Crítica kantiana o ponto nodal quanto à diferenciação entre o estético e o lógico, e, o mais importante, procurar uma resposta que não esteja dada apenas na estrutura teórica exposta, mas nos objetos que intentam representar. A consideração musical kantiana do juízo estético, ao se vincular apenas a um tipo de estado subjetivo de uma estrutura de conhecimento mais ampla, restringe a gama total de fenômenos que podem ser descritos. Inviabiliza que juízos de gosto possam ser substancialmente diferentes ao se direcionar a certas partes de um objeto musical, ou à sua totalidade. Aspectos que podemos apontar em uma partitura, e que são claramente objetivos e comunicáveis por conceitos, também deixam de ser considerados do ponto de vista meramente estético, ou mesmo desconsiderados enquanto conceituais. No capítulo que se segue, é exemplificado como o §9 da terceira Crítica atua como um crivo que torna impraticável uma ganho de extensão na investigação do objeto musical. Ao adentrarmos em aspectos que não sejam somente a identificação do objeto musical com um sentimento de prazer em-si (é belo!), nossa análise se detém em princípios lógicos tanto da primeira Crítica quanto da Lógica (2003) 112

que permitiram ampliar o campo de fenômenos descritíveis, enquanto que já eram por si perceptíveis. Não se trata de ensaiar uma união entre as esferas lógica e estética, ou descortinar o momento de passagem ou fundamentação de uma sobre a outra. Nossa tarefa é apenas a de descortinar o horizonte lógico de certos processos musicais e o modo como eles se colocam necessariamente como precedentes – em uma linha lógica prescrita pela epistemologia kantiana – a qualquer outro juízo, incluíndo o estético. O argumento central da concepção do objeto musical, enquanto contendo aspectos lógicos, está diretamente fundado no caráter de objeto que uma música assume, enquanto unidade objetiva e passível de ajuizamentos. Para Kant, toda objetividade é fruto de sínteses transcendentais, o que vincula o objeto musical diretamente à percepção, “faculdade de pensar, quer dizer, de submeter a regras as representacões dos sentidos” (Kant, 2003, A 2). Porém, quais seriam as regras implícitas na percepção de um objeto musical? Essas regras, quando são lógicas, dizem respeito a vínculos em jogo nas ligações dos elementos musicais e nos juízos que esses vínculos permitem, o que ocorre normalmente em uma audição. A lógica, de modo geral, visa o esclarecimento das ramificações do conhecimento “visto que a tarefa da lógica é, como observamos, tornar distintos os conceitos claros” (Kant, 2003, A 94). Contudo, a lógica não é o único horizonte requisitado em experiências musicais. Determinar um objeto real a partir de um único horizonte, seja lógico, prático ou estético, equivale a uma visada abstrata sobre a totalidade do objeto que é por si uma confluência de tipo complexa. Com o objeto musical se passa o mesmo. Caso em uma obra musical pese um horizonte prático, por exemplo em músicas que são direcionadas apenas a uma função política ou terapêutica, nem por isso essas obras deixam de apresentar horizontes estéticos e lógicos. Isso indica que o fracionamento do horizonte dos objetos pode de fato ser efetivado em uma experiência, no uso culturalmente orientado e sobretudo nele. Contudo, o objeto permanece enriquecido e pronto para ser compreendido. A experiência nos mostra que o objeto experienciado de modo fracionado não é menos real, porém, ele também não esgota 113

a totalidade do objeto. Um exemplo diverso pode ajudar a ilustrar essa relação: uma música dita pura, música pela música, pouco contará com a esfera prática, mas, ainda assim, seria possível lhe retirar esse horizonte de forma absoluta? Isso dificilmente seria possível. Temos que admitir que há uma idiossincrasia pertinente a cada objeto, em que cada um estabelece uma confluência específica entre horizontes, sem contudo impossibilitar a experiência de demais horizontes, e, também, sem perder de vista a característica e o peso que lhe foi infligido. Podemos então resumir os trabalhos que vêm a seguir como uma análise que diz respeito às distinções do horizonte lógico entre certos objetos musicais e, por isso, a uma distinção lógica do conteúdo sensível. O que seriam as distinções lógicas dos conteúdos sensíveis? Pensemos em atividades técnicas. Em todas elas, se as selecionarmos em um percurso histórico, terminologias especializadas emergem ao longo do tempo, enquanto algumas são modificadas e outras caem em desuso. A terminologia, ou nomenclatura, distingue aspectos sensíveis que foram destacados em distinções lógicas de conteúdos sensíveis. Esse processo que impele a nomeação desses novos objetos também os transformam em categorias tanto das coisas como de nossas ações. Tais distinções também denotam o incremento das atividades práticas que foram paulatinamente adicionando novas funções e significações. No caso musical não é diferente, sua terminologia especializada, mesmo com variantes através do tempo, atesta sempre uma especialização e distinção da escuta. Podemos, por exemplo, observar na música medieval o uso de terminologia para combinações simples entre notas: Virga (1 nota), Clivis (2 notas, descendente em grau conjunto), Pes (2 notas, salto ascendente) etc. Outro tipo de distinção ocorre na música barroca, na correspondência entre contornos melódicos e os afetos. A eleição dos modos maior e menor que ocorreu na música tonal. Temos um manancial de terminologias do exato tamanho das tradições musicais e podemos destacar inúmeros exemplos: motivo, tema, frase, seção, desenvolvimento, contratema, variação, forma etc. Longe de comprovar um vínculo conceitual através de simples paralelismo, embora bastante consequente, ilustramos critérios comuns ao meio musical que se moldam enquanto sistemas regrados, sem 114

querer com isso desvendar uma estrutura a priori da musicalidade nem discorrer uma análise sobre o conceito de música. Interessa-nos, sobretudo, a caracterização de um objeto musical fático na experiência, de seu uso empírico do conceito e sua fundamentação em comum a outros produtos das faculdades de conhecimento.

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Capítulo 3 O objeto lógico-musical

Reivindicando conceitos para uma experiência Quando falamos em conceitos, logo ligamos o papel do entendimento, e, em um sentido mais imediato, pensamos no entendimento menos enquanto faculdade com validade a priori para a experiência e mais enquanto via exclusiva de aplicabilidade para objetos empíricos (Klotz, 2007, p. 148). Certamente que referimos aos conceitos os objetos que eles pretendem ligar ou representar. A condição inicial para identificarmos conceitos em um objeto musical é que ele possa ser exibido na apercepção, seguido da possibilidade, essa sim a priori, de identificarmos e nomearmos objetos musicais e suas partes constitutivas em uma relação todo/parte. Para explorar um pouco mais esse caráter do objeto, vamos montar um rápido paralelo entre o que uma linguagem especializada faz e diz juntamente com a possibilidade de se criar e nomear objetos. Obviamente, essas linguagens surgem de maneira sui generis de acordo com as necessidades e possibilidades vigentes em um dado contexto, mas queremos apenas demonstrar certa ligação entre uma teoria do conhecimento e a nomeação de objetos no sentido de ordenar uma atividade em uma nomenclatura. Se pensarmos que a nomenclatura vem a sistematizar os objetos de uma atividade, ou, categorizar procedimentos, ela não faz nada mais nada menos do que processar uma distinção lógica, ou seja, é um componente conceitual. Compreendendo uma nomenclatura enquanto termo conceitual, vejamos como nomes e conceitos se comportam. Como nos lembra 117

Deleuze (1992), conceito, hoje, pode se referir à vanguarda da produção de bens de consumo, da moda e do design, e existe, mesmo que Deleuze discorde, um modo de pensar que legitima tal uso do termo, e, de todo, difere de outros substratos que definiriam conceito contrária ou contraditoriamente. O que nos importa aqui é que mesmo para bens de consumo, mesmo para dados sensíveis, uma nomenclatura é criada, e, independentemente do modelo epistemológico que estejamos discutindo, um modelo conceitual está sendo utilizado. Vamos tomar um exemplo de Kant, o exemplo do cão. Pensando no cão enquanto um objeto, percebemos certas características: ele é atual, único, individualizado por marcas sensíveis próprias. Tal experiência não pode ser estendida a nada mais, se não a um cão particular. Mas, em termos epistemológicos, o que significa o conceito de cão? O conceito de cão significa uma regra segundo a qual a minha imaginação pode traçar de maneira geral a figura de certo animal quadrúpede, sem ficar restringida a uma única figura particular, que a experiência me oferece ou também a qualquer imagem possível que posso representar in concreto. (Kant, 1985, B 180)

O que há de conceitual no objeto cão não diz respeito à sua individuação, mas à possibilidade de universalização. Como podemos perceber, mesmo um conceito empírico tão restrito como o de cão comporta um montante significativo de universalidades. Essa habilidade conceitual nos permite reconhecer seres como cães, e até produzir uma imagem de cão pela imaginação. O conceito possui assim um caráter de regra. O conceito, por si só, faz impregnar uma regra sob um diverso da intuição, mas não é capaz de preencher esse espaço lógico, pois o preenchimento só pode ser dado pela sensibilidade. Poderíamos pensar que o conceito seria uma espécie de fôrma na exata proporção do objeto que se exibe, e que sua massa seria dada pela sensibilidade, faculdade que como bem sabemos não é capaz de fundar uma representação. De acordo com a epistemologia dominante no seu tempo, a investigação kantiana das condições de objetividade pressupõe que os dados básicos de todo nosso conhecimento da realidade são “sensações” (...). O conceito de objeto inclui condições de constância que as sensações não têm; em

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particular, um objeto pode continuar o mesmo, enquanto que os dados que o apresentam são alterados. Além disso, a referência a objetos exige mais do que apenas a consciência de apresentações: ela visa à objetividade, distinguindo representações verídicas de “meras” representações. (Klotz, 2007, p. 148)

É, portanto, na medida em que um conceito impõe uma regra que uma objetividade é destacada, permitindo relações unificadas em gênero e espécie. Sempre quando houver tal relação de síntese determinante a apercepção terá diante de si um objeto. Podemos verificar esse mesmo mecanismo que descrevemos para o nome cão em nomenclaturas musicais, como tema, minueto, apojatura, entre outras. Porém, Kant é da opinião de que os dados sonoros sensíveis não poderiam constituir uma distinção intelectual, por um empecilho de sua própria natureza: Kant sustenta que a sensibilidade à cor ou à tonalidade é útil apenas para apreciação estética e não é útil para a cognição dos objetos da natureza em qualquer outro aspecto (embora certamente pudéssemos tergiversar aqui, no caso da cor, pelo menos). O fato de que essas suscetibilidades não são cognitivas faz com que a questão do modo como poderiam ser formais fique em aberto. Sabemos que sensações ordinárias, que não são em si formais, podem ser apreendidas em um conceito do objeto, e, assim, formalmente. Mas e a respeito de sensações não-cognitivas? (Weatherston, 1996, p. 59)

Como se vê, Kant possui uma concepção de psicologia própria a qual retira dos aspectos sensíveis musicais sua possibilidade de cognição: “Uma vez que Kant prossegue negando que a música é uma bela arte, parece que ele está assim contestando nossa capacidade de apreciar a forma de uma composição musical” (Weatherston, 1996, p. 59).

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O artigo de Weatherston se dedica mais longamente à consideração kantiana sobre o som musical2 (tom)3. Tais considerações kantianas, como vimos na citação acima, impõem um crivo bastante rígido, decorrente das características do tom definidas por Kant enquanto impossíveis de serem regradas, o que tornaria impossível percebermos uma forma musical a partir dessas características. Para Kant, nossa percepção perderia-se no decorrer do tempo e centrar-se-ia apenas nas características sensórias do timbre: Uma vez que Kant alegou que as artes do tom “estão preocupadas com nada mais do que a proporção dos diferentes graus de disposição (tensão) do sentido pertencente à sensação” [§ 51 (324)], essas diferenças inteligíveis devem então ser ligadas com as características específicas do ouvido, que podem, é claro, diferir entre os indivíduos. Estas “diferenças inteligíveis” iriam assim reduzir-se a um mero efeito, que não pode servir como base para a composição. (Weatherston, 1996, p. 60)

Kant está dizendo que não é possível pensar no tom como um fenômeno extensivo, apenas intensivo, ou seja, o tom só possui qualidade, e não uma quantidade. Enquanto princípio sintético da categoria da qualidade, a intensidade postula o seguinte: “em todos os fenômenos o real, que é o objeto de sensação, tem uma grandeza intensiva, isto é um grau” (Kant, 1985, A 166). O tom, de acordo com Kant, não seria capaz de qualquer outra determinação, constitui-se como um efeito sempre igual, diferido apenas em graus e intensidades e, mesmo que possua sua origem nas ondas mecânicas, nossa mente não seria capaz de as 2. Advertimos que o termo som abrange na verdade todo o leque perceptivo humano, de 20 Hz a 20 kHz. E desde o fim da primeira metade do século XX podemos incluir toda essa faixa dentre o material musical, independente de sua organização, escalar ou não. Diferente do século XVIII, no qual havia um rígido crivo entre os sons musicais e não-musicais. 3. Kant não define o termo Ton. “Se Kant tivesse analisado o som [tone] enquanto frequência [pitch] e timbre, ele teria achado muito mais fácil ver como as formas musicais são conscientizadas” (Weatherston, 1996, p. 64). De acordo com o autor, o próprio caráter sonoro, dividido entre nota (frequência) e timbre (harmônico) inviabilizaria a própria relação estabelecida entre cor e tom, e auxiliaria a pesquisa kantiana a reconhecer que a forma musical se dá pela inter-relação entre as notas sucessivas.

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calcular, mas apenas produzir uma sensação unificada. Tal característica impossibilitaria a categorização, conceitualização e as distinções lógicas requeridas pela recognição e, por isso, colapsaria a unidade de objeto. Weatherston acredita que a qualificação do tom musical, como mera sensação incapaz de cognição, vem no sentido de extremar o caráter não-conceitual que Kant imprimia à música. Sua justificativa estaria na própria materialidade sonora, de difícil simbolização e com grande lastro da sensação e, portanto, mais propícia ao agrado do que à beleza, embora com o auxílio da poesia ela pudesse se dignificar. Pois embora ela fale por meras sensações sem conceito, por conseguinte não deixa como a poesia sobrar algo para a reflexão, ela contudo move o ânimo de modo mais variado e, embora só passageiro, no entanto mais íntimo; mas ela é certamente mais gozo que cultura (...). (Kant, 1993, p. 218)

No que compete à nossa investigação, podemos nos apoiar tanto em tratados acústicos/musicais, como o de Helmholtz, que relaciona a percepção estética de intervalos sonoros à quantidade de parciais contidos no som (Helmholtz, 1954), quanto na própria história da teoria musical, que sempre qualificou e nomeou suas operações de modo a reconhecermos relações musicais objetivamente (Christensen, 2002). Concluímos que não se trata de um argumento suficiente a crença de que o sonoro perfaça apenas um critério qualitativo, de um percepto, que não se adeque a um critério recognitivo. O sonoro pode ser compreendido, classificado e reconhecido em especificações bastante ínfimas, incluindo as da categoria da quantidade, se adequando a um caráter recognitivo sem maiores considerações. Análise da constituição de objetos visuais Vamos agora nos ater um pouco ao paradigma do conhecimento atrelado à visão, não porque pensamos ser esse um modo logicamente privilegiado, mas, como ressaltamos na introdução, porque essa foi certamente uma via historicamente privilegiada. Comecemos por um exemplo de fácil acesso, analisando como se constitui nele a ação e o papel da sensibilidade, do entendimento e do juízo, de modo que essa 121

estrutura se mostre universalmente válida e então fique mais claro como ela acontece em objetos sonoros e, sobretudo, os musicais. Vamos considerar um conjunto de garrafas, todas produzidas em plástico, com capacidade entre 300ml e 500ml, confeccionadas para armazenar água potável. O que temos é justamente a garrafa exibida e representada (apresentada) pela apercepção. Consideremos a garrafa in concreto. Diante de nós temos uma existência em uma forma singular, admitida enquanto garrafa, conceito que pode ser aplicado a uma diversidade de objetos, como podemos observar na variedade de garrafas da imagem A4. Como foi possível a confecção transcendental desse objeto para a forma mesma como o vemos? Real, no mundo exterior, com uma forma determinada, com notas individualizantes, singular e contendo uma relação todo/parte. O objeto em questão só pode ser fruto de uma síntese entre sensibilidade e entendimento. Trata-se, portanto, do fruto de um juízo de tipo determinante, em que seus componentes se ligam lógica e necessariamente a um princípio transcendental, que subsumiu o múltiplo da sensibilidade, se concordamos com a epistemologia kantiana. Podemos com assertividade proclamar: é uma garrafa!, e estender nosso juízo a uma comunidade de falantes. Porém, por não se tratar de um conhecimento ao modo de um axioma da ciência, temos que admitir que estamos diante de um objeto empírico, portanto no uso empírico de um conceito. O conceito empírico traz em si uma pequena contrariedade, a de conter uma universalidade em uma particularidade sensível, ou seja, um objeto que corresponda a um conceito empírico terá que atender a demandas de duas faculdades em uma proporção que não é a mesma para os axiomas da ciência: Mas, se abstrair da forma do espaço a intuição de uma casa, esta mesma unidade sintética tem a sua sede no entendimento e é a categoria da síntese do homogêneo numa intuição em geral, ou seja, a categoria da quantidade. (Kant, 1985, B 162)

4. As imagens A, B e C podem ser vistas no Anexo (p. 175).

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Em um objeto o núcleo conceitual encontra-se sediado na categoria da quantidade, e aqui está assinalada sua porção conceitual. Porém, há também sua porção sensível, por se tratar de um conceito empírico: O conceito empírico origina-se dos sentidos pela comparação dos objetos da experiência e recebe mediante o entendimento unicamente a forma da universalidade. A realidade desses conceitos baseia-se na experiência efetiva, donde são hauridos quanto ao conteúdo. – Mas se há ou não conceitos puros do entendimento (conceptus puri) que enquanto tais se originam, independentemente de toda experiência, única e exclusivamente do entendimento, é uma questão que a Metafísica tem de investigar. (Kant, 2003, A 141)

Kant não nos guia a ponto de narrar uma operação passo-a-passo, portanto, nos próximos subtópicos levantaremos informações sobre a ação das categorias e dos atos lógicos mais gerais, para pensar em que medida se inserem em um objeto. Aspectos categoriais de um objeto Os aspectos categoriais dizem respeito aos conteúdos a priori inseridos na forma do objeto, e faremos um breve comentário acerca das quatro categorias. Comecemos pela categoria da quantidade. Grosso modo, essa categoria expressa o caráter universal para todo conceito (Kant, 1985, B 104), e se divide em três conceitos puros que incidem sobre objetos. Temos a unidade, generalização promovida pelo conceito que abstrai as notas individualizantes e promove uma unidade global para assim “desconsiderar as diferenças específicas entre essas instâncias” (Altmann, 2007, p. 37); a pluralidade, enquanto distingue no objeto características múltiplas que os faz pertencer a seu conceito, e não enquanto caractere presente na própria definição do conceito, “contendo em si uma multiplicidade em função da qual podem ser distinguidos de outros” (Altmann, 2007, p. 39); e, por fim, a totalidade, condição de exibição de um objeto real, contendo notas individualizantes e generalizantes, sob um conceito: “qualquer composto pode ser considerado um todo, 123

por exemplo, uma maçã” (Kant apud Altmann, 2007, p. 41), tornando o objeto um singular em nossa experiência. A categoria da qualidade determina uma relação de graus que vai de zero (negação) a um máximo possível. Sua determinação é dada por uma matéria intuitiva. O que é determinado é a sensação empírica contida num objeto, e não se trata de uma grandeza extensiva dada a priori, mas uma condição para o preenchimento de graus de sensações que perfazem uma condição de realidade do objeto empírico enquanto grandeza intensiva. A categoria da relação, categoria dinâmica, produz hierarquizações nos objetos, como a instanciação entre acidente e substância. Se observarmos uma série qualquer de garrafas, como a série da imagem A, o fato de serem diferentes não causa espanto; todas podem naturalmente ser compreendidas enquanto garrafas. Essa possibilidade é inerente a seu conceito, que consegue facilmente separar o rótulo ou a variação de cor como componentes não substanciais, subordinados à forma hierarquicamente superior da substância garrafa. Por último, a categoria da modalidade, também uma categoria dinâmica, mas que se dirige exclusivamente à ação das categorias em relação ao próprio juízo, “cuja característica consiste em nada contribuir para o conteúdo de um juízo, e apenas se referir ao valor de cópula em relação ao pensamento em geral” (Kant, 1985, A 74). Atos lógicos, gênero e espécie Além das categorias do entendimento, os atos lógicos somam a totalidade das ações conceituais a priori. São eles: comparação, reflexão e abstração. 1) a comparação , ou seja, o cotejo das representações entre si em relação com a unidade da consciência; 2) a reflexão , ou seja, a consideração do modo como diferentes representações podem ser compreendidas em uma consciência; e finalmente:

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3) a abstração , ou seja, a separação de todos os demais aspectos nos quais as representações dadas se diferenciam. (Kant, 2003, A 145)

Voltemos ao exemplo das garrafas (imagem A). Estas se dispõem em uma ordem fixa. Além de uma ordem fixa, parecem mesmo compor uma organização. Para desvendarmos qual seja essa organização devemos operar um trabalho de comparação e tal ato necessita de um critério. Tal critério só é possível por estar a garrafa previamente ordenada sob categorias. Basta agora que destaquemos nos objetos características por cada garrafa singularmente. No caso da imagem A utilizamos o seguinte critério: a forma do corpo das garrafas (imagem B). Na imagem A, se percorremos o sentido da direita para a esquerda partiremos da garrafa mais homogeneamente cilíndrica, chegando ao formato mais alongado em cima e mais curvo embaixo. Se seguirmos o caminho inverso, o fim seria a garrafa mais homogênea. Esse é um critério evolutivo, pois ele interpreta as posições como um percurso gradual da série. Interpretamos as deformações que vão acontecendo pela série como uma ocorrência advinda da necessidade de fim a que a forma inicial à direita deverá desenvolver ao fim da ordem das garrafas. Notemos também que outros dados se prestam à comparação. O padrão de curvas que adornam a garrafa caminham (da direita para a esquerda) do homogêneo em direção a variações maiores; de anéis retos, anéis curvos, anéis intercalados por espaços maiores, anéis curvos interpolados por outra forma, aparição de formas curvas não circundantes da garrafa e, enfim, triângulos (imagem A). Ainda no caso da imagem A, podemos observar que é o corpo da garrafa, abstraído de seus adornos, quem conduz a ordem: de um cilíndrico homogêneo, por um achatamento no centro do corpo, um achatamento mais agudo no centro do corpo e, enfim, um pescoço cilíndrico. Caso escolhamos os adornos como critério de ordenação das garrafas, teremos outro resultado. Assim, podemos destacar dentro do

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mesmo grupo diversos modos de comparação; por exemplo, podemos isolar as garrafas com adornos triangulares. Tais atos podem se aplicar individualmente a uma garrafa. Peguemos a imagem B. Posso estabelecer as seguintes divisões internas: tampa, bojo, corpo, base e pé. Como a garrafa é transparente, as linhas onduladas tendem a formar figuras em fase ou pelo menos em planos diferenciados. O corpo (B1) possui duas partes, um espaço liso e um estriado. A extremidade superior do corpo se iguala à extremidade inferior, porém em uma relação de inversão5 (cabeça-para-baixo) perfeitamente simétrica. A base (B2) é também delimitada (em sua parte superior) por uma linha reta, e em sua parte inferior composto por seções (pés), como pétalas em referência a um centro, moldado por um eixo na forma de uma erupção pontiaguda apontando para o interior da garrafa, em direção à tampa. Ainda constituindo a base, temos certas perturbações do material, em uma curvatura produzida pelos pés, no exato espaço entre um pé e outro, o que causa uma distorção particular da luz nessa região. O bojo (B3) se constitui como uma cúpula que é subitamente estreitada para dar forma ao que será parte da tampa. A tampa delimita fortemente uma simetria e direcionalidade para a garrafa como um todo. Há também formas maiores em que se organizam os elementos, como as que formam relação de espelhamento (B4). Podemos pensar em relações de espelhamentos mais radicais. Se compararmos todo o corpo com a base, essa relação se constituiria, talvez, mais como uma variação, visto que o tamanho da base é menor e seu limite inferior não é homogeneamente cilíndrico como o do corpo, mas constituído por gomos. A garrafa como um todo (B4), poderíamos resumir, possui variações sobre um corpo cilíndrico, variando do liso ao estriado, deste ao estriado curvado, ao liso côncavo do bojo, e ao cilíndrico estriado da tampa. Todas as regras de organização se basearam em certas notas: forma, luz, volume, textura, cor e transparências, porém, todas elas 5. Embaixo, temos a linha que subdivide o espaço liso e embaixo dessa linha uma curva. Em cima, temos a linha que subdivide o espaço liso e acima dessa linha uma curva.

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condicionadas pela categoria da qualidade. De outro lado, há a categoria da pluralidade que alinha essas notas na totalidade do objeto: Ora, levando em conta que, para Kant, o pensamento do objeto é sempre por representações parciais gerais (isto é, não há apreensão de uma essência individual enquanto individual), a “singularização” acaba sendo explicada pela “totalização”. Como observa Manley Thompson, para leitores familiarizados com Leibniz, a identificação entre individuação e categoria da totalidade deveria ser natural. Compreendemos assim a associação, mais uma vez no §12 da Crítica, entre a categoria da totalidade como conceito das coisas e a perfeição como exigência lógica do conhecimento: a perfeição, diz Kant, “consiste no fato dessa pluralidade em conjunto reconduzir à unidade do conceito, concordando inteiramente com este e com nenhum outro”. Isso só é possível na medida em que essa pluralidade forma um todo. Nas lições de Metafísica, Kant escreve que “muitos, na medida em que é um, é a totalidade. Essa coisa, na qual há a totalidade de muitas coisas, é um todo”. Escreve também que “qualquer composto pode ser considerado um todo, por exemplo, uma maçã”. (Altmann, 2007, p. 40-41)

O objeto é o lugar lógico que reúne todas as categorias junto ao dado sensível, todos esses dados a que tivemos acesso na análise das garrafas que foram concebidos pelo entendimento, e todos referenciados a um único conceito, o de garrafa. É de fato curioso que o elemento lógico da operação atue em sentido oposto à existência real e indelével do objeto, pois que ele tende a unificar objetos muito distintos entre si. Diferenças muito sutis de dados sensíveis podem modificar drasticamente o resultado da operação de síntese da apercepção, exibindo objetos claramente distintos. Porém, isso não os exime da unificação do conceito. Exemplificando de modo inverso, objetos idênticos um ao lado do outro, sem conterem nenhuma nota distinta entre si, não se confundiriam com seu conceito, embora o conceito seja exibido uniformemente sem conflito para cada objeto. Cada qual seria uma unidade em si, existente empiricamente.

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Propriedades conceituais de um objeto Compreendendo os fundamentos a priori e os atos desses princípios, passamos a uma consideração acerca das propriedades conceituais contidas em um objeto. Até aqui, descrevemos aspectos do horizonte lógico do conhecimento, “pois os conhecimentos teóricos são aqueles que enunciam, não o que deve ser, mas o que é; portanto, os que têm por objeto não um agir, mas um ser” (Kant, 2003, A 135). Porém, é fácil perceber que muito conteúdo prático preenche objetos, como observado no exemplo de uma garrafa. O que há de tipicamente determinante na forma de um conceito seria seu caráter de regra, que subsume o intuído, porém, não há uma regra explícita a ponto de podermos contar com uma instrumentalização que pudesse isolar perfeitamente as proporções dos horizontes de conhecimentos contidos em um exemplo pontual. Para a filosofia transcendental da época, há indícios fortes que aludem a uma regra implícita que nos permite identificar esse objeto, porém não possui conhecimento específico sobre a totalidade dos vínculos lógicos com os intuitivos e mesmo práticos ou estéticos. Tal caráter provisório e em formulação faz com que as disciplinas se separem drasticamente a fim de ampliar o campo analítico. Assim, podemos falar em características qualitativas e quantitativas do objeto, fruto de um conceito empírico, como podemos falar daquilo que são características ou notas que um conceito, no que diz respeito à sua forma pura, pode carregar, caso que se explicita claramente quando observamos que no conceito de peso, estão contidos analiticamente o conceito de massa e o de gravidade: 1) Características analíticas ou sintéticas. Aquelas são conceitos parciais do meu conceito real (as quais já penso nele); estas, ao contrário, são conceitos parciais do conceito inteiro meramente possível (o qual, por conseguinte, deve vir a ser constituído por meio de uma síntese de diversas partes). As primeiras são todos os conceitos da razão, as últimas podem ser conceitos da experiência.

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2) Características coordenadas ou subordinadas. Essa divisão das características diz respeito à sua conexão uma após a outra e uma sob a outra. (Kant, 2003, A 86)

A análise das garrafas descreveu características sintéticas as quais forneceram uma rica constituição de notas. As garrafas, cada uma, subordinam em seu conceito uma pluralidade de notas, enquanto as notas mesmas se coordenam, umas com as outras, no modo mesmo como destacamos, em séries e relações internas. Kant nos diz: “aquela, a agregação de características coordenadas, constitui a totalidade do conceito” (Kant, 2003, A 86). Em sentido analítico, falar em notas conceituais da garrafa implica também sua função de armazenar líquido, de ser recipiente. Tal nota conceitual é capaz de definir uma série de notas materiais sem que seja parte visível dela. Seu caráter constituinte é tal que faz determinar a feitura e forma da boca da garrafa, que nos exemplos vistos foi a única nota sem sofrer grandes variações em seu formato. A distinção lógica do conceito de garrafa nos traz uma infinidade de temas, mas é limitada no sentido de não ser possível deduzir dela maiores consequências; é ela um utensílio fabricado a partir de outros conhecimentos mais fundamentais: Obviamente, conceitos são expressos na linguagem por termos gerais. Seria tentador supor que, correlativamente, as intuições são expressas por termos singulares. Essa visão enfrenta a dificuldade de que a concepção kantiana da forma lógica do juízo não deixa lugar algum para termos singulares. Na concepção kantiana da lógica formal, os constituintes de um juízo são conceitos, e conceitos são universais. (Parsons, 2009, p. 89)

Não há por que supor que objetos não encerrem formas universais da significação e, na mesma medida, não há por que supor que não tenhamos acesso a notas individualizadas de componentes sensíveis que não se representam nos conceitos ali aderidos. Porém, quando tratamos de juízos ou atos de comparação, abstração ou reflexão, o que está em jogo são justamente aquelas propriedades ou mesmo conceitos que já estão sob condicionalidade lógica.

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Poderíamos tentar complicar a definição kantiana afirmando que o conceito de garrafa encerra várias acepções. Povos se utilizam de recipientes para guardar líquido, mas, quando sua função não é requerida, ele dá lugar a muitos outros usos. Não há dúvida de que uma moringa seja muito mais apropriada para guardar líquidos potáveis para o prazer da ingestão do que uma garrafa de plástico. Porém, a garrafa de plástico possui a praticidade de distribuição em um sistema de abastecimento global. Por outro lado, e não podemos nos abster desse dado, há uma atividade especializada, o design, voltado apenas para a elaboração de sua forma material, o que explicaria a variedade de formas que encontramos, incluindo aí o aspecto estético, pois tais utensílios visam despertar gosto. Todas essas características fazem parte do conjunto que compõe o horizonte geral do conceito de garrafa. Dos exemplos analisados podemos dizer que todas as garrafas possuem uma base de apoio, formato cilíndrico e tampa. Porém, esses formatos não podem ser considerados necessários por dois motivos. Primeiro porque o bule, a jarra, a moringa, entre outros recipientes, possuem analiticamente essas mesmas características conceituais. Segundo, em vista do seguinte problema: o que aconteceria caso uma garrafa com estrutura não cilíndrica fosse confeccionada? Assim, as determinações formais de um conceito não podem conter os dados sensíveis como notas essenciais, e, no caso, o caráter prático (e mesmo o produtivo em sentido aristotélico) do conceito de garrafa é capaz de confeccionar formas muito diversas entre si. Ao fim, o que resiste a uma busca de notas conceituais essenciais e específicas para as garrafas que analisamos seria apenas a função de armazenar líquidos, enquanto que de sua parte estética seria a de produzir agrado por sua forma e, em algum nível, beleza. E a esse conceito específico se presta uma gama de garrafas possíveis. Para os casos reais e existentes podemos igualmente dizer que há um esquema lógico capaz de reconhecer essa aplicação do conceito de garrafa em objetividades as quais descrevemos. Ele claramente se baseia na forma das garrafas existentes e é, por isso, essencialmente recognitivo.

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Objetos sonoros e musicais Passamos agora para um tópico intermediário. Vamos estabelecer aqui a condição dos objetos musicais serem contemplados pelas mesmas categorias e atos de um objeto empírico qualquer. Empreender uma análise musical significa tratar o fenômeno em questão como um objeto, porém, como o conceito de objeto musical ainda pode soar pouco ortodoxo faremos algumas considerações. Como indica Marques (2010), as condições transcendentais para interpretarmos a música como um objeto de conhecimento objetivo já estavam disponíveis na Crítica da Razão Pura. Seria devido a uma postura, posição ou interesses que se limitam à pessoa de Kant que a música não assumiu essa forma em nenhuma de suas obras. Contudo, a tradição científica do século XVIII, sobretudo no campo da matemática e da física, já lidava com a música em termos de qualidades quantificáveis e ensaiava com frequência tratados que explicassem a racionalidade orgânica implicada na música. Tradição essa que pode ser remetida até o mundo antigo (Weber, 1995). A caracterização do objeto musical do ponto de vista lógico não adiciona à matéria lógica nenhum fato novo, e pode ser remetida apenas ao senso comum certa estranheza em conceber uma música enquanto objeto. De todo modo, o conceito de objeto musical passa a ser filosoficamente viável a partir da primeira metade do século XX, fundamentado explicitamente no texto Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo, de E. Husserl, redigido em 1928, no qual ele trata de um exemplo musical e o define enquanto objeto temporal (Husserl, 1994, §7), e, depois, no trabalho de Pierre Schaeffer (1977) sobre a música concreta. Segundo este autor: Esse desconhecimento da noção de objeto sonoro se explica, enfim, por razões práticas. Até uma época muito vizinha à nossa, o objeto sonoro, evanescente, ligado ao desenrolar de um tempo irreversível e não recuperável, se apresentava como uma manifestação humana, muito mais que como um fato objetivo. (Schaeffer apud Melo, 2007, p. 60)

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Melo nos diz que Schaeffer, em seu diário de 1948-49, utilizava o termo objeto sonoro ainda em um sentido comum, designando apenas o instrumento produtor de som. Na publicação desse diário, sob o título À la recherche d’une musique concrète, a definição de objeto sonoro já se vê alterada em função de suas pesquisas em música concreta, qual seja, a gravação de um excerto sonoro disposto à manipulação técnica: A esta abordagem composicional com materiais extraídos do dado sonoro experimental, eu a denomino (...) Música Concreta, para bem marcar a dependência em que nos encontramos, não mais com relação às abstrações sonoras preconcebidas, mas sim dos fragmentos sonoros existindo concretamente, tomados como objetos sonoros definidos e inteiros. (Schaeffer apud Melo, 2007, p. 9, grifos nossos)

Nessa publicação, são feitas distinções importantes entre o objeto musical e o sonoro. O objeto musical, nos explica Melo: “é abordado, então, como o veículo da comunicação entre alguém que se expressa por seu intermédio e alguém que é sensível a ele. É o porta-voz da linguagem musical” (Melo, 2007, p. 59). O objeto sonoro seria qualquer evento de natureza sonora. Ainda no interior dessa publicação, encontra-se o texto Esquisse d’un solfège concret (1952), no qual o termo objeto sonoro passa a significar um objeto intencional, ou seja, uma unidade conceitual referida em nossa consciência. Verificamos que o termo objeto sonoro tramitou, no século XX, de uma realidade concretamente observável para uma realidade transcendentalmente composta. Tal giro acontece no momento em que Schaeffer quer definir o sonoro em detrimento do corpo instrumental que o produz. Nesse momento, o som torna-se matéria de análise e tipologia e os objetos sonoros e musicais compartilham assim da mesma objetividade de demais objetos: “este disco ou esta fita, em sua totalidade, como não admitir que eles contenham, materializado, o objeto musical?” (Schaeffer apud Melo, 2007, p. 62). Portanto, se quiséssemos, do ponto de partida do objeto sonoro, estudar as Variações Goldberg de Bach, teríamos que analisar as características acústicas de um corpo sonoro, o cravo. O objeto sonoro não apresenta nenhuma característica musical, embora o musical conte132

nha características de objetos sonoros. A denominação objeto apenas confere uma implicação objetiva e regrada para fenômenos da audição, não permitindo qualquer relação essencial entre o que seja um objeto sonoro e um musical. E, assim, nos alerta: Schaeffer comenta em um seminário: “Não caiam no mesmo erro, que foi constante no GRM [Groupe de Recherches Musicales], de tentar explicar o musical pela tipo-morfologia dos objetos sonoros”. (Pierret apud Melo, 2007, p. 2)

Para o caso musical, Schaeffer define o uso das intenções como uma certa combinação entre ouvir e uma outra intenção não ligada diretamente ao sonoro, o compreender: O estatuto particular da música localizaria-se, assim, na articulação deste par extravagante formado pelo agente e pela mensagem: a intenção de fazer música consiste em tomar sons da primeira categoria (não especializados nas linguagens) para criar uma comunicação da segunda categoria (que, contudo, não almeja dizer nada). (Chion, 1983, p. 352)

Sua característica significativa se desprende das notas do sonoro, porém, o faz por meio de uma relação entre notas, ou seja, por juízos remetidos a uma realidade audível e não apenas pela constatação tácita do audível. Ainda de acordo com Schaeffer, o objeto musical traçaria um tipo de compreensibilidade análoga ao da linguagem, pois que significativo, mas não por isso se comportando como uma linguagem. Assim, quando enfatiza que o objeto musical “não almeja dizer nada”, está ao fim comparando e o diferenciando da função típica da linguagem. Para o caso sonoro temos objetividade, porém, no caso musical temos uma relação de juízos que qualificam a objetividade sonora em conceitos de um objeto diferenciado. Seria para o caso musical a sublevação de juízos de percepção ao encontro de juízos de experiência (Kant, 2003), na qual é ajuizada a objetividade de um objeto, e não apenas o modo como somos afetados pelos sentidos.

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Objetividade e subjetividade, musical e sonora É marca dos objetos visuais estarem presentes em um mundo exterior, para nosso sentido externo. Os objetos musicais compartilham essa mesma propriedade. De modo geral, a diferença entre esses dois objetos estaria – assim é comumente compreendido – numa forma de aparição estática dos objetos visuais, em contraposição a uma forma de aparição dinâmica, através do tempo, do musical. Essa definição criou, historicamente, um embaraço na caracterização do objeto musical e sonoro diante de objetos visuais. O fato de os objetos visuais estarem dispostos permanentemente em nossa percepção faz com que sua imagem permaneça viva sem grandes recursos da memória, sendo constantemente recriada com frescor atual, ou seja, parecem se relacionar com o imediato e não com um tempo em progresso. O objeto musical e sua imagem parecem recorrer, contrariamente, com peso quase que exclusivo ao recurso da memória por uma progressão temporal. Mas, se pensamos um pouco mais nessa característica, veremos que em comparação com objetos de arte, o musical compartilharia essa característica de mutação pelo tempo com a animação, o HQ, o filme e a leitura de modo geral, aqueles que deslocam objetos a todo instante, em um sentido temporal6. Dado essas características, seria ainda válido pensar a música enquanto conteúdo subjetivo, em função de seu recurso mnemônico e temporal, e o objeto visual enquanto conteúdo caracteristicamente objetivo, em virtude da simultaneidade de seus dados fenomênicos? Para Kant, quando há somente esquema e não um preenchimento, temos apenas um pensamento e não um objeto. Ora, como observamos, ambos os objetos sonoro e musical perfazem a condição esquemática e intuitiva, e seriam assim objetivos na mesma medida: Ora, toda intuição possível para nós é sensível (estética) e, assim, o pensamento de um objeto em geral só pode converter-se em nós num co6. “Uma peça musical assemelha-se, em alguns aspectos, a um álbum fotográfico, dispondo, sob circunstâncias mutáveis, a vida de sua idéia principal: seu motivo básico” (Schoenberg, 1996, p. 58).

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nhecimento, por meio de um conceito puro do entendimento, na medida em que este conceito se refere a objetos dos sentidos. A intuição sensível ou é intuição pura (espaço e tempo) ou intuição empírica daquilo que, pela sensação, é imediatamente representado como real, no espaço e no tempo. (Kant, 1985, B 148-149)

Se há uma diferença substancial entre objetos musicais e sonoros para com os objetos visuais, devemos encontrá-la no estatuto em que esses objetos podem ser exibidos, o que conta sempre e necessariamente com as intuições puras do tempo e do espaço. Tal estatuto desabilita o debate entre sentido interno ou externo, objetivo e/ou subjetivo, visto que todo objeto é, antes de mais nada, intuído espaço e temporalmente. Mais coerente seria investigarmos de que modo cada objeto traz marcas temporais e espaciais. Relação espaço-temporal dos objetos Do ponto de vista da filosofia kantiana, o exame das relações espaçotemporais dos objetos não é mais que uma consideração a respeito do papel das intuições puras em um regramento categorial. Compreender as diferenças entre objetos da audição e da visão constitui uma diferença que se inscreve já na sensibilidade. As diferenças mais gerais entre eles residem nas disposições da sensibilidade para a caracterização de um esquema para esses fenômenos. Essa diferença é tradicionalmente compreendida na música pelo aspecto temporal, algumas vezes classificada como arte do tempo. De acordo com Kant, o tempo e o espaço são condições de possibilidade da sensibilidade para todos os fenômenos. Nesse sentido, a sensibilidade não pode abster-se de aplicar intuições para qualquer fenômeno que se mostre ulteriormente determinado. Resta verificar se há uma distribuição peculiar dessas intuições puras para o objeto auditivo que se contraponha ao visual de modo a priori. Vamos explorar alguns exemplos. Marcas visuais ou auditivas podem constituir índices e, assim, um objeto pode ser representado tanto por uma marca visual como 135

por uma marca sonora. Essa passagem do índice para o significado de um objeto é feita a partir de uma característica sensível que permita deduzir o objeto como um todo (por exemplo, o galopar do cavalo / uma pegada). Para um caso simbólico, como o da linguagem, uma marca sonora ou visual da palavra não contém, necessariamente, qualquer referência ao objeto em questão. Não se percebe qualquer peculiaridade nesse sentido, e o caráter temporal parece pouco pertinente em sua identificação na leitura ou escuta. O resultante é o significado conceitual expresso por meio de signos, aquilo que a palavra indica. No caso do ícone, as características do som enquanto som parecem estar destacadas. Percebemos, por exemplo, no som do galope certo desenrolar no tempo, de características sonoras. Da mesma maneira, em uma pegada percebemos certo formato impresso na terra, com certa profundidade. Nesse caso, a diferença entre o visto e o escutado se faz evidente conquanto suas peculiaridades espaciais e temporais. A depender do tipo de determinação que se faz de uma matéria sensível – visual ou sonora –, diferenças começam a se tornar mais relevantes. Michelle Grangaud nos deixa um interessante enigma: “Eu posso ouvir o que eu vejo: um piano, ou algumas folhas agitadas pelo vento. Mas, eu nunca posso ver o que eu ouço” (Grangaud apud Nancy, 2007, p. 10). O enigma se mostra apenas para o caso musical, pois um som, somente sonoro e não musical, pode remeter a um animal, e, de modo contrário, o pensamento ou a visão de um animal pode nos remeter a seu som. O índice veicula o som à coisa, assim como a coisa ao som em uma relação claramente conceitual. Porém, tudo indica que essa relação, que é válida para objetos sonoros e visuais não vale para as musicais. De que forma podemos pensar o objeto musical sob os conceitos de espaço e tempo? Podemos, antes de tudo, esclarecer o sentido desses termos. Em um sentido, espaço e tempo tratam de intuições puras a priori, e, em outro sentido, usamos esses mesmos termos para nos referir a aspectos de uma experiência a posteriori. No primeiro sentido, enquanto intuições puras, constituiria um contrassenso afirmar ou negar que um objeto seja apenas temporal ou 136

espacial, pois que as intuições puras são condições de possibilidade de um múltiplo, e o objeto, o resultado unitário do entendimento: “pois a permanência do que é dado no espaço e no tempo não é ela mesma dada, e sim que só pode ser pensada, justamente por conceitos de objetos” (Esteves, 1996, p. 16). No segundo sentido, diante de um objeto constituído, podemos ressaltar certas características que costumamos predicar como espaciais ou temporais. Aqui aparecem como simples expressões, usadas em um sentido que não coincide com o significado transcendental dos mesmos termos. Elas apontam para notas materiais e suas disposições no objeto. Em geral, essas predicações espaciais e temporais costumam estar relacionadas à atenção que damos a um objeto em determinado momento ou à aplicação desses conceitos em outros contextos, como o conceito de espaço da física, o qual Kant trabalhou ainda pré-criticamente na Dissertação, citado no artigo de Parsons no livro de Guyer: Pois o que chamamos de diversos espaços não são senão partes de um mesmo espaço imenso, as quais se correlacionam por certa posição, e não podemos conceber um pé cúbico senão como delimitado por todos os lados por um espaço circundante. (Kant apud Guyer, 2009, p. 71)7

Para tratar das notas espaço-temporais em objetos, em sentido empírico, tomemos novamente o exemplo visual da imagem B. Esse objeto contém um limite no espaço, de onde podemos classificar suas dimensões e marcas em sua forma espacial. Ele contém também limites no tempo, de onde podemos destacar sua perduração e movimento, sua forma temporal. Diante de qualquer objeto, podemos notar, por exemplo, que a luminosidade é constantemente alterada pela própria modificação do ambiente, pela posição que dispomos o objeto, pela mudança da posição da fonte de luz, pela permanência da luminosidade ou pela qualidade da luminosidade, se artificial ou natural. Por outro lado, em uma foto 7. Para maiores detalhes sobre a relação entre a intuição pura do espaço e sua constituição transcendental não conceitual, e o conceito de espaço na física, ver Charles Parsons em “A estética Transcendental”, no livro organizado por Paul Guyer, intitulado Kant (2009).

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não há qualquer alteração do ambiente, e nossa posição não altera em nada a imagem do objeto, desde que esse ainda se mantenha em nosso campo de visão. No objeto há uma teia de ligações causais que o fazem mais sujo, mais desgastado, entre outras alterações pelo tempo. Tal cadeia não procede no interior da imagem fotográfica. A experiência da imagem da foto nos conduz a uma conclusão: ela se encontra abstraída do tempo. Trata-se de uma metáfora, pois que o tempo é uma intuição pura e, em verdade, em nossa observação, percebemos continuadamente a foto correndo pelo tempo. Estranhamente, o objeto ali representado permanece estático na foto e o tempo parece ter sido estancado. Caso esse mesmo objeto tivesse sido filmado, teríamos uma noção de temporalidade embutida na imagem. Detenhamo-nos ainda mais na foto, agora em seus aspectos espaciais. Estes estão demarcados pela profundidade (perspectiva), largura e altura, pelas notas distintivas de cor, traços e formas. Da mesma maneira em que todos esses dados se encontram no espaço, estão perdurando no tempo. Assim, os aspectos espaciais e temporais não podem se dissociar, se excluírem ou mesmo não coexistirem em um objeto, por força de uma determinação a priori. É simplesmente impossível dissociar noções de espaço e de tempo. Seria contraditório com o princípio da sensibilidade a possibilidade de um objeto se mostrar somente espacial ou temporal. Toda constituição conceitual empírica necessita de uma constância no tempo para determinar o objeto enquanto o mesmo se constitui espacialmente. Um exemplo bastante simples do que dizemos pode ser observado inclusive no modo como nos dedicamos a contemplar uma imagem, e assim descreve Vilém Flusser: Ao vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo relações temporais entre os elementos da imagem: um elemento é visto após o outro. O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos. Assim, o “antes” se torna “depois”, e o “depois” se torna o “antes”. O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o eterno retorno. O olhar diacroniza a sincronicidade imaginística por ciclos. (Flusser, 2002, p. 7)

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Em resumo, tanto a constância no tempo (simultaneidade dos elementos espaciais) quanto a mudança no tempo (a sucessão dos elementos espaciais) são igualmente aspectos intuitivos para todo fenômeno, ao mesmo tempo em que nossa própria forma de percepção de um objeto atua em sentido a coadunar-se temporalmente ao espaço. Esta reflexão, apesar de seu caráter fragmentário, claramente descreve um dos importantes resultados intermediários do argumento da “Segunda Analogia”: embora subjetivamente todas as percepções se sucedam no tempo, ainda assim tem de ser possível distinguir por meio delas o que é uma sucessão objetiva de estados, ou seja, uma mudança nos próprios objetos, e o que é apenas a apreensão sucessiva de um estado ou objeto que permanece objetivamente inalterado no tempo. (Marques, 2010, p. 130-131)

No caso do objeto musical não pode ser diferente. A forma musical total de uma obra ou sua forma melódica e harmônica são as que mais facilmente indicam aspectos dispostos na categoria da quantidade (relações de frequência e divisão proporcional das ocorrências) em uma exibição espacial e, assim, características que tradicionalmente pareciam mais afeitas ao tempo se mostram facilmente impregnadas de espaço. Do mesmo modo, características tradicionalmente afeitas ao espaço dão lugar a notas temporais. O artigo de Marques (2010) possui uma interessante análise sobre a Segunda Analogia da Experiência aplicada a eventos temporais na música. Sua intenção é aplicar critérios lógicos/ causais de simultaneidade e sucessão para os casos musicais de acordes e melodia. Marques indica que o tempo, em primeiro lugar, não é uma relação direta com a sequência da percepção determinada pela coisa em si mas, como já indicamos, trata-se de uma indexação de um múltiplo que é por si indeterminado. A tarefa de estabelecer uma ordem objetiva é do conceito (Marques, 2010), e por isso a causalidade dos eventos sucessivos no tempo só pode ser considerada um atributo do entendimento, o que indica o exemplo kantiano do navio a subir pelo rio. Assim, por exemplo, vejo um barco impelido pela corrente. A minha percepção de sua posição à jusante do curso do rio segue-se à percepção da sua montante e é impossível que, na apreensão deste fenômeno, o

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barco pudesse ser percebido primeiro a jusante e depois a montante da corrente. A ordem da seqüência das percepções na apreensão é, pois, aqui determinada, e a ela está sujeita a apreensão. (Kant, 1985, B 237)

Para a consecussão de uma temporalidade nenhum elemento pode ser intercambiado, pois é resultado de uma determinação causal temporal necessária. Para Marques, o mesmo sucede com a melodia. Sua sucessão obedece a uma ordem concreta, objetiva e necessária, na qual não é possível intercambiar nenhum evento, com pena de se invalidar a relação causal e a realidade do objeto. No caso do acorde, o modelo interpretativo kantiano passa a ser outro, e o exemplo análogo para o caso da simultaneidade é o da casa (Kant, 1985, B 236-237). Nesse caso a regra causal, que ligou uma sequência melódica por um constrangimento lógico, não teria lugar. Para o caso da simultaneidade os elementos não disporiam de uma hierarquia temporal. É nesse sentido que Marques indica que podemos nos dedicar à escuta de qualquer nota do acorde, pois a ordem em que escutamos não dependeria de um constrangimento lógico, mas apenas de nosso interesse: “mas não há nenhuma implicação de que esta ordem esteja determinada por algo no próprio objeto, nem que as notas comecem a existir no momento em que as apreendo; assim esta ordem é puramente arbitrária” (Marques, 2010, p. 135)8. 8. Marques se interroga a respeito da possibilidade de se escutar um acorde sequencialmente, mesmo enquanto simultaneidade, dado que a escuta ocidental se habituou a escutar uma só função entre notas fundidas, com a mesma imediaticidade que escutamos uma nota. Resolvemos esse dilema mostrando que não apenas o acorde possui valor funcional, mas as notas melódicas também, porém estas agem com força e possibilidades diversas, dadas pelas condições lógicas da experiência. É possível, assim, perceber sequência tanto para a percepção de notas quanto no interior do acorde, e como Marques bem o demonstrou, o caso do acorde é passível de certo uso diferencial da causalidade de acordo com a possibilidade singular que se coloca. Eles dependem, além de fatores acústicos e do tipo de sequência visada (sequência de acordes), da estaticidade das notas simultâneas e da duração que dispomos para “variá-las”. Contudo, queremos ressaltar que uma simultaneidade estrita é dificilmente obtida, tanto em termos temporais cronometrados, como em uma experiência fenomenológica do acorde, que conta com uma hierarquia tonal. Para ouvidos treinados certamente os acordes tonais são inicialmente ouvidos a partir da fundamental.

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No momento em que Marques indica que no caso do acorde, como no caso da casa, temos um objeto exibido e podemos passar o olho ou o ouvido sobre suas características, à nossa escolha, destacamos também como essa mesma experiência – contraste temporal entre o acorde e a melodia – converte-se com facilidade em um caráter espacial. Como Marques mesmo aponta, no acorde temos diante de nós uma faixa que vai do grave ao agudo em que podemos dispor nossa atenção, ou seja, um caso no qual a organização não sequêncial nos faz perceber a relação espacial da disposição das notas. A atenção é o critério que torna o caráter espacial evidente. Se, por um lado, não há uma hierarquia sequencial que constranja as notas, não se pode dizer que elas se coloquem não-hierarquicamente, como Marques parece querer sugerir. Todas as notas do acorde se alinham em termos funcionais, sobretudo para o caso da música tonal. É comum também que haja uma nota melódica no próprio acorde. Nesse caso, a nota melódica pode, ao mesmo tempo, conter um caráter sequencial e simultâneo. O próprio acorde pode ser tomado como parte de uma progressão. Seguindo o mesmo princípio, a melodia não pode ser compreendida enquanto temporal ignorando-se o espacial. Uma sucessão temporal de notas inscreve-se, necessariamente, em uma localidade do espectro sonoro, porém, sem sucessão e sem espacialidade (extensão) não seria possível identificarmos algo enquanto melódico. Em uma sucessão melódica temos que perceber não apenas sucessão temporal, mas também mudanças de graus (Kant, 1985, B 210-213). Questões tais como seria o ritmo uma organização do tempo, ou uma delimitação do espaço? não compreendem o aspecto transcendental ou lógico dos termos espaço e tempo. Contudo, a antiga identificação da música como a arte do tempo não contempla uma observação atenta do fenômeno musical, ou de seu fundamento transcendental. Tal definição tende a ser simplesmente metafórica se não aponta para aspectos e notas materiais contidas nesses objetos. Naquilo que é imediatamente pertinente ao nosso trabalho concluímos que tanto objetos sonoros, musicais e visuais partilham de caracteres espaço-temporais de modo necessário. 141

Análise lógico-musical Passemos, agora, à análise lógica exclusiva do objeto musical. No objeto musical destacaremos regras que são condições de possibilidade e que se aliam a técnicas e procedimentos composicionais. Quando pensamos em elementos que compõem um objeto musical, vemos que esses podem vir a dizer respeito a aspectos muito distintos: série harmônica, temperamento, escala, harmonia, acorde, sons complexos, pulso, andamento, compasso, duração, ritmo, frase, série, forma, intensidades, timbres, ataques e etc. Dante Grela (1976), em seu artigo “Análise Musical: Uma proposta Metodológica”, indica, por exemplo, quais seriam as categorias elementares da articulação em geral: 1) SEPARAÇÃO: quando, entre a conclusão de uma unidade formal e o começo da seguinte, media um silêncio de qualquer magnitude; 2) JUSTAPOSIÇÃO: quando duas unidades formais se sucedem sem que exista descontinuidade sonora entre o final de uma e o começo da outra (neste caso, portanto, o fator articulatório deverá ser outro, em lugar do silêncio); 3) ELISÃO: quando o elemento ou grupo final de elementos de uma determinada unidade formal funciona ao mesmo tempo como começo da unidade seguinte (também neste caso deverão existir fatores articulatórios de outra índole que o silêncio); 4) SUPERPOSIÇÃO: quando estando constituída a textura por mais de um plano sonoro; 5) INCLUSÃO: este caso, podemos dizer que constitui fundamentalmente um modo de articulação especial mais que especificamente temporal, e se produz quando, numa textura constituída por mais de um estrato, alguns destes começam e terminam suas unidades formais dentro do tempo que abarcam as unidades em outros estratos, começando, portanto, depois e terminando antes que estas últimas.

Esses elementos se constituem enquanto condições da escuta e da feitura dos objetos, critérios com caráter de regra e de experiência e, portanto, sintetizados pelo entendimento e recorrentemente verificados de modo recognitivo. 142

Análise lógica sob um exemplo da música instrumental clássica Consideremos um exemplo de fácil assimilação, uma obra da primeira escola de Viena. Fiquemos com uma Deutscher Tanz, de Beethoven (imagem C). Como se trata de uma peça simples, fortemente demarcada por movimentos repetitivos, tratemos antes dos termos que qualificam a repetição em sentido musical, diferente da repetição sonora simplesmente paramétrica. A repetição, nos diz Schoenberg, pode ser literal ou modificada (desenvolvida): As repetições literais preservam todos os elementos e relações internas. Transposições a diferentes graus, inversões, retrógrados, diminuições e aumentações são repetições exatas se elas preservam rigorosamente os traços e as relações intervalares (...). As repetições modificadas, criadas através da variação, geram variedade e produzem novo material (formasmotivo) para utilização subseqüente. (Schoenberg, 1996, p. 37)

Utilizamos, para melhor qualificação de nosso exemplo, os termos repetição, para significar uma repetição literal, repetição semelhante, para casos de variações que preservem as mesmas relações mas varie sua função, e repetição modificada assim como Schoenberg a emprega. Para modificações mais radicais o termo repetição passa a não valer, e usamos diretamente variação ou desenvolvimento. A repetição, seja aquela impressa pelo ritornello, seja por pequenas variações ou mudanças de grau, resguarda a unidade da peça e sua linguagem particular. A repetição propicia uma familiaridade, uma possibilidade de conhecimento através do reconhecimento com o ouvinte, critério que Schoenberg nomeia de compreensibilidade: A variedade não deve obscurecer a lógica ou a compreensibilidade: esta última requer, ao contrário, a limitação da variedade, especialmente se as notas, acordes, formas-motivo e contrastes se sucederem de forma rápida. A rapidez é um obstáculo à percepção de uma ideia e, desse modo, as peças em tempo rápido exibem um grau menor de variedade. Há meios através dos quais se pode controlar a tendência ao desenvolvimento muito rápido, que é sempre consequência de uma variedade desproporciona-

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da: os mais usuais são a delimitação, a subdivisão e a repetição simples. (Schoenberg, 1996, p. 47)

Em nosso exemplo, essas repetições estão assinaladas pelo ritornello (imagem C), mas também no interior de cada seção: repetição semelhante entre as frases 1 – 1’, e frases 1a– 1’a. Repetição entre 1,1’ – 1,1’a. Na segunda seção, há uma repetição parcial na frase 2 seguida de uma variação do motivo. Por fim, há uma repetição literal do primeiro período da seção 1, que apelidamos de relembrança. A segunda seção demarca-se por uma apresentação parcial do tema (frase 2) ao qual é modulado e então variado (comp 10-14), preservando assim a familiaridade temática9. Escutando mais atentamente, mais características articulatórias se tornam conscientes, e uma hierarquia dos elementos é assim erigida; seção I e II, frase 1 (e suas variantes), frase 2 (e suas variantes), formasmotivo, acompanhamento 1 (arpejo) e 2 (acorde). A célula motívica é bastante evidente por toda a peça, compondo variações e formas-motivo10. A reiteração desse elemento cria um padrão que se torna o núcleo recognitivo da obra, servindo de base para demais atos lógicos. Todo juízo que opera no interior de uma obra, todas as ligações e funcionalizações (semelhança, dessemelhança, complementaridade, diferença, lembrança, recapitulação etc.) dizem de estados relativos às formas-motivo. Assim, todo o extrato de valores e funções que emana da peça se dá em referência a esse núcleo temático, que pode ser compreendido em uma dupla função: enquanto elemento material identificável, ou enquanto o próprio esquema de subsunção aplicado enquanto condição de possibilidade para a compreensibilidade da peça. 9. Noções como repetição, relembrança, diferenciação e familiaridade querem ressaltar os atos lógicos envolvidos, pois a repetição, a lembrança, e a comparação, para a diferenciação ou familiaridade, não são senão aplicações pontuais de distinções intelectuais (Kant, 2003, A 44). 10. “O motivo geralmente aparece de uma maneira marcante e característica ao início de uma peça. Os fatores constitutivos de um motivo são intervalares e rítmicos, combinados de modo a produzir um contorno que possui, normalmente, uma harmonia inerente . Visto que quase todas as figuras de uma peça revelam algum tipo de afinidade para com ele, o motivo básico é frequentemente considerado o ‘germe’ da idéia” (Schoenberg, 1996, p. 35).

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Até mesmo a escrita de frases simples envolve a invenção e o uso de motivos, mesmo que, talvez, inconscientemente. Usado de maneira consciente, o motivo deve produzir unidade, afinidade, coerência, lógica, compreensibilidade e fluência do discurso. (Schoenberg, 1996, p. 35)

No momento em que tal estrutura é internalizada – não necessariamente conscientizada11 – somos capazes de frutiferamente gozar de uma audição musical. O esquema tem a função de unificar um diverso, por exemplo, unificar formas-motivo em uma experiência musical. A percepção de formas-motivo constitui, por isso, prova de uma ação esquemática (Kant, 1985, B 162) segundo a epistemologia kantiana, assim, um exemplo temático-motívico (Schoenberg, 1996, p. 35) dá lugar a uma realidade concreta quando o esquema produzido é preenchido pela intuição. Sem essa capacidade lógica estaríamos surdos para as frases e consequentemente para a melodia. Segue-se, assim, um crivo para qualquer estrutura significativa em uma obra musical. Em todo o conhecimento de um objeto há a unidade do conceito, que se pode chamar unidade qualitativa na medida em que por ela é pensada só a unidade da síntese do diverso dos conhecimentos, à maneira da unidade do tema num drama, num discurso, ou numa fábula. (Kant, 1985, B 114)

Prosseguindo, no que diz respeito às conexões dadas em uma obra a partir desse núcleo conceitual, veremos que o motivo coaduna outros níveis articulatórios: A menor unidade estrutural é a frase, uma espécie de molécula musical constituída por algumas ocorrências musicais unificadas, dotada de uma certa completude e bem adaptável à combinação com outras unidades similares. (Schoenberg, 1996, p. 29).

11. O trabalho de Bigand (2005, p. 60) demonstra que a percepção de melodias, estruturas musicais, harmonias, não se restringe ao especialista: “Com base na constatação de que existem muito mais similaridades que diferenças entre os cérebros de músicos e de não-músicos, postulamos que as redes neuronais postas em jogo nas atividades musicais se desenvolvem mesmo na ausência de um aprendizado intensivo. Em outras palavras, a simples escuta (e não a prática) basta para tornar o cérebro músico”.

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A camada indeterminada de dados captados pela percepção é subsumida pelo nível articulatório da experiência, e, no caso da música clássica, o núcleo conceitual que guia a experiência se concentra nos componentes melódicos, sendo ele o resultado de subsunções do esquema motívico ao longo da escuta. O todo melódico e harmônico foi condicionado pela apreensão das partes, que é previamente esquematizada. Porém, o enlace da totalidade é dado pela apercepção que exibe uma estrutura completa e significativa. Assim, temos diante de nós imediatamente uma melodia. Concomitante a essa relação motivo/melodia, temos outras dimensões que mesmo atreladas a esse núcleo conceitual possuem autonomia, como a harmonia tonal. A harmonia tonal funcionaliza todas as notas materiais presentes em uma obra musical e, por isso, cria outra ordem de relações que atuam concomitantemente à escuta melódica. A harmonia tonal se caracteriza por conferir a toda nota musical uma função – dominante, subdominante ou tônica – e tal valoração é sempre relativa aos intervalos vigentes entre as notas. Por exemplo, a região tonal da subdominante não pode ser definida por nenhuma nota ou acorde fixado. Tal função é perceptível apenas em relação a outras notas e acordes. Ou seja, tal relação é taxada como funcional, e as notas encarnam essa função quando a condição harmônica é satisfeita. Distinguir funções tonais em meio a notas dadas empiricamente configura uma ação lógica que subsume o empírico sob regras estritas, com ação igualmente recognitiva. Voltemos ao nosso objeto (imagem C). Em termos funcionais, podemos apontar que a primeira seção como um todo se encontra na tônica, a segunda seção na subdominante e então retorna para a região da tônica. Do entrecruzamento dos padrões temáticos/melódicos com a funcionalidade harmônica emergem novas articulações e, portanto, novos juízos. Podemos descrever diferenças e igualdades não apenas enquanto características quantitativas dadas na altura das notas, mas enquanto funções harmônicas assumidas na organicidade da peça. Destaca-se, agora, uma divisão hierárquica acrescida do caráter harmônico, o que necessariamente determina e condiciona a percepção do todo.

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As frases 1 e 1’, além do conteúdo específico que possuem, encerram uma função de exposição; elas abrem a peça, expõem a tonalidade e o tema. As frases 1a e 1’a12 tendem a se apresentar como repetição, eco, pois que se seguem sem mudanças, a não ser nos compassos finais da seção I em que há uma cadência final, fazendo o último compasso encerrar a primeira seção. O ritornello repete tudo novamente, reexpõe o tema e a tonalidade, mas agora com a consciência de que se trata de uma seção, pois há um encerramento. As frases 1 e 1’ formam um só período, e a frase (1a) e (1’a) um outro período semelhante. Relações que pareciam tão simplórias começam a se tornar mais complexas no momento dos compassos finais da segunda seção (14-18), quando vemos a frase 1 e 1’ ressurgir, porém, em um momento muito diverso. A frase 1 aparece idêntica, pois que o compasso anterior fez questão de articular a frase (comp. 14) de modo que concluísse na mesma harmonia do início da seção I, com uma pausa e com uma mudança de intensidade, restabelecendo assim todas as condições iniciais da frase 1. Nesse momento, nossa percepção nos faz remeter a uma volta no tempo. Mesmo que, curiosamente, a frase 1 esteja distante temporalmente é ela mesma evocada aqui (comp. 14), com a diferença de conter uma explicação da origem de sua harmonia, o que não acontece no primeiro compasso pois que a melodia surge pela apojatura. Nesse caso (comp. 14), ela surge justificada a partir da cadência para a tônica. Temos a volta para um idêntico, ao mesmo tempo em que tal volta é impossível, pois nos encontramos espacialmente dispostos em outras articulações e em um diferente ponto no tempo. Depois de tal evento somos obrigados a novamente ressignificar as articulações. Temos uma apresentação e cadência na seção I, e depois sua repetição e sedimentação pelo ritornello. Temos o contraste introduzido na seção II pela frase 2 e suas variantes, e então subitamente um reme12. A partícula a quer destacar que as frases são idênticas quanto às determinações sonoras (frequências) determinadas na partitura, porém, se encontram em momentos temporais diversos. Essa diferença no momento de sua ocorrência temporal faz com que percebamos a frase musical antecedente e sucedente como funções diversas, sejam harmônicas ou formais. O intérprete pode reforçar essas diferenças, por exemplo, ao tocar com intensidade pp considerando a passagem como eco, sempre a depender das possibilidades inscritas na peça.

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timento ao passado a partir do compasso 14 em que as frases 1 e 1’ são reconstituídas em outro momento e 1’ é convertida em cadência final da peça. Há aqui relações harmônico/melódicas/temporais, frutos de juízos que se seguem sequencialmente. Todas essas articulações se inserem em uma forma maior, uma Deutscher Tanz.13 Sua forma musical com duas seções (ABa) e compasso 3/4 (na seção ligeira, sobretudo) configuram um gênero musical, e igualmente um gênero de dança. A partir desse gênero, compreendemos no interior da seção II o período formado pela frase 2 e suas variações, além da seção contrastante típica dessa forma (Schoenberg, 1996, p. 152). O conceito de Deutscher Tanz (dança) e o de garrafa (utensílio) compartilham de um horizonte prático vinculado ao conceito do objeto. Tal conceito coage o compasso ternariamente. A dança alemã não é um conceito de Beethoven – vemos composições de Haydn, Mozart, Schubert que seguem essa exata ordem. Trata-se de uma forma musical, ou, em termos lógicos, de um gênero, um esquema a partir do qual espécies são subsumidas. Para o caso das garrafas, podemos traçar certo contorno cilíndrico (ideal) a determinar toda e qualquer garrafa, determinando a partir do conceito a forma empírica do objeto. No caso de objetos musicais, ou da forma musical da Deutscher Tanz, há um contorno prescrito no andamento, na distribuição de compassos e seções que determinam qualquer Deutscher Tanz. Resta-nos determinar a extensão desse conceito. Para o caso do horizonte prático, a música deverá se adequar às coreografias da forma de dança homônima. Uma tocata, por sua vez, não apresentará uma uniformidade na organização de seus componentes sensíveis de maneira tão específica como da dança, porém, o peso de seu conceito prático impresso em sua definição tocata prevê um virtuosismo instrumental, que, contudo, não se encontra tão determinado como no caso da dança em geral. Formas como a sonata, a sinfonia e o quarteto, ou técnicas como cânone e fuga, não apresentam conteúdos práticos, e são tidas 13. “Uma porcentagem esmagadora de formas musicais é composta estruturalmente de três partes. A terceira parte é, por vezes, uma repetição exata (recapitulação) da primeira, mas frequentemente aparece sob a forma de uma repetição modificada” (Schoenberg, 1996, p. 151).

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como formas da música pura, ou seja, possuem apenas extensão lógica e estética. Contudo, no que tange principalmente ao horizonte estético, Kant ressalta que há um limite de intercessão, ou seja, não é possível que o estético em seu caráter puro se deixe complementar de outros horizontes. Para Kant, há características incongruentes entre as extensões lógicas e estéticas, e um equilíbrio dessas acarretaria, em verdade, um prejuízo equalizado, pois os limites de um implicariam uma zona de inoperatividade do outro: Sem dúvida, entre a perfeição estética e a perfeição lógica de nosso conhecimento persiste sempre, a rigor, uma espécie de conflito, que não pode ser totalmente superado. O entendimento quer ser instruído; a sensibilidade, animada; o primeiro deseja discernir; a segunda, apreender. Se os conhecimentos devem instruir, eles devem ser, nesta medida mesmo, elaborados a fundo; se eles devem ao mesmo tempo entreter, então também têm que ser belos. Se uma apresentação é bela, mas superficial, ela só pode agradar à sensibilidade, mas não ao entendimento; se ela é, ao invés, elaborada a fundo, mas é árida, só pode agradar ao entendimento, mas não à sensibilidade igualmente. (Kant, 2003, A 48)

A possibilidade de algo ser instruído e belo ao mesmo tempo encontra-se vetada, a partir de algo próximo da máxima expressa em um de nossos conhecidos ditos populares: por fora bela viola, por dentro pão bolorento. Ressalta-se aqui que a música tonal traçou o caminho da árida compreensão, da instrução. Porém, diferente do critério estabelecido na citação, a presença de agrado sensível, para não falar mesmo em prazer artístico, está igualmente presente nessas obras. Nenhuma determinação de nossa análise demonstrou, apontou ou vislumbrou qualquer diminuição do valor estético da obra exemplificada a partir das propriedades analisadas, muito pelo contrário. As funções lógicas que serviram como condição de recognição são as que garantem a exibição do objeto musical, seu jogo artístico, suas distinções conceituais, analogias, metáforas e, assim, qualquer outro juízo que possa recair-lhe.

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Graus de ajuizamentos sobre um objeto musical Todo objeto pode dar lugar a uma série de novas sínteses e ajuizamentos, e essa possibilidade se encontra na base de qualquer ciência, pois uma teoria requer condições empíricas que se sublevem em graus sintéticos de ordem superior, ao mesmo tempo em que a condição para as leis mais gerais é dada transcendentalmente. É nesse preciso contexto que podemos falar de uma teoria musical, ou de teorias que se associam à arte musical. A partir da segunda metade do século XX, verificamos uma retomada, por parte dos compositores, da exploração de recursos provindos tanto da ciência acústica como da psicoacústica, essa última rapidamente migrando para as práticas de composição e manuais de análise musical14. A realidade no século XVIII não era tão diferente, pois que a acústica vinha florescendo, e o sistema tonal contava com uma premissa psicoacústica, de certos efeitos perceptivos a partir de relações de tons. A teoria tonal constituída conjuga critérios de percepção, criação e sensação, todas sob regras e leis da associação entre frequências acústicas. Tais conhecimentos se acumulam e encontram uma forma axiomatizada no século XVIII15.

14. Para um entendimento histórico da relação entre a ciência e a prática musical, ver o artigo de Penélope Gouk, “The role of harmonics in the scientific revolution” (Gouk, 2002). 15. A terminologia e a lógica da teoria tonal vem a expressar-se em sua versão definitiva somente na obra de Riemann de 1898 Handbuch der Harmonielehre. Porém, o princípio tonal já havia sido proposto por Rameau – sem um princípio lógico evidente como aquele que surge no século XIX. Curioso é ver que a forma final da teoria tonal fica pronta praticamente no fim da música tonal, na virada para o século XX, quando as leis tonais passaram a ser de pouco uso para os compositores vindouros. De qualquer forma, o princípio tonal já estava exposto em Rameau em todos os seus elementos, como indica Bernstein (2002): “A implicação mais significativa da nova teoria das três harmonias primárias de Rameau é vista em sua reconceitualização da tonalidade; agora ele começa a conceber o tom [Key] em termos de relações harmônicas em torno de um centro tonal. Em sua Génération Harmonique ele superou a explicação cartesiana da tonalidade por base mecanicista baseando a tonalidade na ligação dos acordes dissonantes e consonantes a um modelo intelectual [entelechial] inspirado na teoria gravita-

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Em períodos anteriores ao clássico, regras extraídas da proporção áurea monopolizavam a composição e os critérios estéticos em geral, unificando todas as medidas de inteligibilidade para qualquer objeto. A teoria tonal, assim como a ciência moderna, possui uma estrutura teórica que imputa uma ontologia que precede a recognição da própria natureza ou da experiência musical; ela passa a ser axiomatizada, se organizar por um princípio elegante e simplificado. Resumidamente, a teoria postula: a) Todo acorde possui uma função: dominante, subdominante ou tônica (tonalidade); b) Há funções homônimas com diferença de intensidades ditos relativos e anti-relativos; c) Um acorde, seja qual for sua função, possui individualmente uma dominante e subdominante, ditos secundários. A teoria se aplica plenamente para tons organizados escalarmente, a partir de um temperamento igual (12 tons). Fica igualmente possível reproduzir efeitos iguais em qualquer instrumento que satisfaça as condições do sistema. Todo esse regramento que observamos na prática musical é resultado direto das distinções lógicas que se iniciaram em pequenas técnicas compositivas. Essas últimas devem sua criação também a experimentalismos que geraram os esquemas elementares e que, por sua vez, serão aplicadas ulteriormente em diferentes formas sonoras. Se qualquer representação particular fosse completamente alheia às demais, se estivesse como que isolada e separada das outras, nunca se produziria alguma coisa como o conhecimento, que é um todo de representações comparadas e ligadas. Se, pois, atribuo ao sentido uma sinopse, por conter diversidade na sua intuição, a essa sinopse corresponde sempre uma síntese e a receptividade, só unindo-se à espontaneidade, pode tornar possíveis conhecimentos. Esta espontaneidade é então o princípio de uma tripla síntese, que se apresenta de uma maneira necessária em todo o conhecimento, a saber, a síntese da apreensão das representações como modificações do espírito na intuição; da reprodução dessas representações na imaginação e da sua recognição no conceito. Estas três sínteses conduzem-nos às três fontes subjetivas do conhecimento que tornam possível cional de Newton. Nesse sentido a tonalidade resulta das forças de atração entre a tônica e sua harmonia dominante e subdominante” (Bernstein, 2002, p. 795).

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o entendimento e, mediante este, toda a experiência considerada como um produto empírico do entendimento. (Kant, 1985, A 97-98)

Toda essa mecânica transcendental, que evocamos na escuta de uma obra musical, busca em seu método e intento descrever estruturas universais presentes em todo sujeito humano, menos do que discutir a validade ou não de atividades humanas. As atividades são elas autojustificadas e, portanto, não cabe à teoria epistemológica promover um contra argumento contra aquilo que já existe por força, trabalho e mérito próprio. É nesse sentido que desautorizamos, em grande medida, não apenas resultados pontuais da terceira Crítica, mas seu objetivo geral de buscar um fundamento comum sem detimento nos critérios comuns das atividades estéticas ali analisadas, dando prioridade para um exame teórico puro que a Crítica da Razão Pura já desautorizava de antemão. Portanto, para o caso musical, se quisermos empreender uma epistemologia de cunho kantiano, temos que acessar sistemas musicais que se mostram capazes de estabelecer respostas comuns e congruentes ao seu sistema, para que então se deduza as estruturas comuns dos sujeitos que permitem tal compreensão da organização musical. A ideia de que um cérebro “não-músico” possa ser expert no processamento das estruturas musicais surpreende. Trata-se, no entanto, de uma conclusão apoiada em numerosos estudos feitos sobre a aprendizagem implícita, isto é, aquela de que não temos consciência (contrariamente à explícita, consciente). Essas pesquisas demonstraram a extraordinária capacidade do cérebro de interiorizar as estruturas complexas do ambiente, mesmo quando só estamos expostos a elas de maneira passiva. (Bigand, 2005, p. 59)

O objeto musical constituído enquanto objeto empírico e distinto intelectualmente, compreendido no interior de teorias musicais, encontra-se no âmbito dos fatos legitimados pela teoria da Crítica da razão pura, como todo e qualquer conteúdo regrado pelo entendimento. Mas, constituindo-se como um objeto qualquer, sem desconsiderar suas particularidades, e comparando os processos lógicos de sua percepção aos de uma garrafa de plástico, não estaríamos fazendo como Kant,

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comparando o conteúdo da música com objetos de menor valor como um papel de parede? Nossa resposta é negativa. Pois o valor de comparação que empreendemos é diverso daquele que Kant aplica na terceira Crítica. Defendemos que o que há em comum ao papel de parede, à música e à garrafa é o fato de serem objetos, fruto de um juízo determinante do entendimento. Diferente do caso da terceira Crítica, não implicamos de maneira necessária a impossibilidade da beleza conter algum juízo lógico. O que fizemos foi, justamente, incluir o objeto musical sob as condicionantes lógicas válidas para qualquer objeto, sem com isso querer igualar o conteúdo de todos os objetos, que contam com práticas, dados, meios e estatutos que os diferenciam entre si, diferença essa que se mostra imediatamente à nossa apercepção. Cópula de predicados Mostramos que o objeto musical se diferencia do objeto sonoro por concorrer com articulações que formam um todo discursivo, o qual demonstramos brevemente na análise da Deutscher Tanz de Beethoven. Dada essa condição, podemos esboçar uma definição para o objeto musical a partir de um estatuto epistemológico sujeitado ao entendimento, implicando um processo de síntese. Ora, toda síntese é produto de um juízo, que faz unir representações a partir da cópula x é y. Assim, o objeto musical deve ser o resultado de juízos sobre objetos sonoros, juízos típicos dessa atividade. Faz parte do senso comum abranger certas obras musicais em certos gêneros, e isso não perfaz nenhuma atividade especializada, pois ela só depende do conhecimento de um repertório e de um pequeno montante de determinações do gênero. Ao identificarmos certa obra musical a um gênero, o ato de subsunção, em sentido lógico, pode ser entendido de forma geral como uma cópula. Se identifico o tema musical em determinada passagem, e então identifico ou comparo esse tema a uma outra passagem em que ele aparece variado, então uma cópula é também aderida: “y é igual ou semelhante a x (variado)”. O mesmo 153

acontece quando escutamos um tema musical sendo executado por um instrumento para o qual não havíamos atinado. Podemos então ser surpreendidos e então predicar: “é o tema! aquele contrabaixo faz uma imitação!” A síntese, ou cópula, entre tema e desenvolvimento, entre contratema e demais elementos de uma peça, é portanto condizente com o verbo ser. As possibilidades categoriais de cópula no interior do objeto musical são tão múltiplas quanto a capacidade de ligação inerente aos objetos sonoros de um lado e de nossas potências inatas de outro. Decorrente disso, podemos pensar em outra classe de juízos de gosto que não somente um juízo de gosto puro, capaz de assertar volitivamente – discordando, concordando, dando assentimento, consentimento, dissentimento, desgosto, e mesmo volições mistas. O juízo de gosto pode derivar diretamente de outros juízos sem que perfaça qualquer estatuto referente ao gosto puro kantiano. Podemos ajuizar gosto ao ligar historicamente os componentes de um objeto musical presente a outros do passado. Essas classes de juízos são muito comuns na apreciação musical, e comumente ajuizamos: a ligação entre x e y é válida enquanto contraponto, a ligação entre x e y não é válida enquanto desenvolvimento, posso aceitar esse acorde apenas no compasso 31. Esse tipo de cópula e avaliação, que certamente é causa direta de prazer e desprazer, não pode ser contemplada pelo estatuto do juízo estético puro. Embora essa sensação seja de fato subjetiva, torna-se impraticável conceber esse prazer fora das distinções intelectuais em questão. Aquilo que na representação de um objeto é meramente subjetivo, isto é, aquilo que constitui sua relação com o sujeito e não com o objeto é a natureza estética dessa relação; mas aquilo que nela pode servir ou é utilizado para a determinação do objeto (para o conhecimento) é a sua validade lógica. (Kant, 1993, XLII)

Se uma música é algo de belo, se suscita prazer, podemos dizer que enquanto música só poderá ser bela, prazerosa ou agradável (enquanto música) se em suas distinções lógicas e sensíveis obtivermos 154

conhecimento do objeto em questão. Nesse sentido, inevitavelmente o fundamento da beleza passa a contar com sínteses do entendimento.

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Capítulo 4 Música e conhecimento

A tese de Hanslick A ascensão da música clássica representada pela primeira escola de Viena é um entre tantos exemplos de afloramento de uma nova forma de significação musical. Digo significação e não sistema ou técnica musical pois que essas se aliam na produção de um todo musical que se apresenta enquanto uma forma unitária e inédita a abranger e sublevar seu aparato técnico e dar lugar à compreensão e engajamento como um todo. A música instrumental foi inicialmente criticada pela falta do texto cantado e falta de compromisso com a representação das paixões. Ou seja, inicialmente foi interpretada como falha em sua capacidade de criar vínculos de sentido ou mesmo como desviante das funções culturalmente alicerçadas. Isso, por si só, já configura um quadro bastante rico para nossa análise. No contexto da tradição musical ocidental, que tem suas raízes na música medieval de contexto religioso, podemos dizer que historicamente a atividade musical veio sendo classificada como meio expressivo acessório e secundário em relação a outros conteúdos que estavam sendo prioritariamente representados. Foi no contexto do século XVIII que uma linguagem musical começou a ser edificada, conjuntamente com o seu discurso, ligando diretamente a atividade musical à escuta direta das formas sonoras, dispensando apoios extrínsecos. Uma vez que essa mudança foi se efetivando em criações musicais, a significação da escuta passou por uma mudança análoga. Houve não apenas uma 157

mudança no discurso, ou na ordem de se sobrepor ou justapor sons, mas em conjunto, uma transformação da compreensibilidade do fenômeno musical, através da transformação de seus veículos. A compreensibilidade encontrada pela música clássica liga-se aos critérios formais da organização do som, não apenas doando, mas possibilitando a forma autônoma da arte musical em um sentido não restritivo aos músicos, numa medida em que o discurso se estende de forma abrangente e fora do círculo de criação. O sistema tonal contou com uma série de personagens, porém, aquele ao qual podemos conferir o gênio da criação é, sem dúvida, Joseph Haydn. O músico erigiu um sistema de composição a partir de formas musicais simples, criando células motívicas e desenvolvendo a partir delas formas mais complexas (Dilthey, 1945). Essa técnica de composição de Haydn, aliada ao tratado musical de Rameau, deu forma ao movimento clássico e à emergência da música instrumental. O sistema tonal e o discurso instrumental deram lugar a outros movimentos e foram diretamente influentes até o início do século XX, sendo um modelo ainda estudado nos cursos de música. Em termos de repercussão, o abandono do recurso textual efetuado pela música clássica acabou por tocar em um tabu consolidado – ao qual os próprios músicos nunca pareceram muito comprometidos – na tradição ocidental. Desse tabu nem Kant abriu mão, e fez questão de ligar à dignidade musical o meio expressivo poético que o texto carrega. O caráter de tabu certamente teve sua raiz junto ao Concílio de Trento (1545-1563)16, mas se enraizou de maneiras diferenciadas até os dias de hoje. 16. Se pensarmos mais detidamente nessa questão, veremos que a ideia da música conter em si um princípio notadamente belo, estético e de pura contemplação, sem obedecer à funções sociais maiores, constitui uma revolução profunda no próprio modo como grupos humanos lidam com arte, que além do crivo da palavra dado no Renascimento, vincula-se a crivos maiores do uso cultural: “Temos aqui que nos recordar do fato sociológico de que a música primitiva foi afastada, em grande parte, durante os estágios iniciais de seu desenvolvimento, do puro gozo estético, ficando subordinada a fins práticos, em primeiro lugar sobretudo mágicos, nomeadamente apotropéicos (relativos ao culto) e exorcísticos (médicos). Com isso, ela sujeitou-se àquele desenvolvimento estereotipador ao qual toda

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Em termos epistemológicos, e no contexto da produção clássica, o abandono do texto é apenas um aspecto negativo advogado por um princípio externo. Positivamente, a música clássica aderia significações a objetos musicais de forma direta, auditiva, em um jogo de tipo artístico. Quisemos demonstrar como essa nova forma de compreensibilidade contou com recursos lógicos para a caracaterização geral do modelo clássico. Um modelo que nos dá um acesso privilegiado às percepções, juízos e conceitos em uma forma mais próxima da reflexão e dos problemas com os quais a filosofia lida. Essa aproximação, em verdade, parece ter sido experimentada pela primeira vez pela tradição idealista, a qual Dahlhaus retrata tão bem, sobretudo em relação à música romântica. Mas será Hanslick quem compreenderá o giro epistemológico presente na música clássica e fará em retrospecto – amparado pelo projeto de Brahms – a avaliação e postulação de um nova disciplina estética, em consonância com o estado da arte: a) Especificação da estética para o ramo artístico musical, o que incorre no descarte do conceito geral de beleza, para que se especifique as distinções típicas da arte individualmente. “Cada arte deve ser conhecida nas suas determinações técnicas, quer ser compreendida e julgada a partir de si própria” (Hanslick, 2002, p. 14). b) A estética (aisthesis) deve se encarregar e inquirir “o objeto belo e não o sujeito senciente” (Hanslick, 2002, p. 14). Não entraria em questão os sentimentos despertados com o objeto, mas as relações contidas no próprio objeto. c) A atividade de contemplação, “do ouvir atento, que consiste numa consideração sucessiva das formas sonoras” (Hanslick, 2002, p. 16), repercute na faculdade do entendimento, que por sua agilidade de julgamento nos aparece como se se tratasse de um processo imediato, mas que, de acordo com o próprio Hanslick, “depende de múltiplos processos espirituais mediatos” (Hanslick, 2002, p. 16). ação magicamente significativa, assim como todo objeto magicamente significativo, está inevitavelmente exposto; trata-se então de obras de arte figurativas ou de meios mímicos, recitativos, orquestrais ou relativos ao canto (ou, como frequentemente, de todos juntos) que tinham por objetivo influenciar os deuses e demônios” (Weber, 1995, p. 85).

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d) O campo geral da estética deve se limitar ao conhecimento dos objetos belos, de sua relação com a percepção e com a imaginação tanto do compositor como do ouvinte. A questão dos sentimentos ou estados emotivos seriam “mais objecto da psicologia do que da estética” (Hanslick, 2002, p. 18). Podemos dizer que o núcleo de nossa argumentação girou em torno da premissa “c” de Hanslick, a qual buscamos responder fundamentados em Kant, filósofo a que Hanslick tinha familiaridade, e de onde deriva sua interpretação dos fenômenos musicais como que ligados a ação do entendimento. A originalidade de nosso trabalho certamente não se deve à eleição das premissas, que já se encontravam dadas no trabalho de Hanslick. Nossa contribuição foi a de inserir uma análise que não se fez presente na obra de Hanslick, mas que fizemos no sentido de dar legitimidade à pretensão de Hanslick em incluir a operação do entendimento numa estética musical. Antes, vejamos ainda quais foram as análises promovidas por Hanslick: a) Representação de sentimentos: dado o caráter intelectual dos sentimentos, sua ligação com juízos – “o sentimento de esperança é inseparável da representação de um estado mais feliz que deve ocorrer e que se compara com o estado actual” (Hanslick, 2002, p. 24). Hanslick investiga que classe de sentimentos pode ser representada diretamente pela música, e conclui que eles são frutos de sugestões psicológicas mais do que do conteúdo musical. b) Representação de ideias musicais: aqui se acumulam o que de fato a música pode representar a partir de sua particularidade. “As ideias que se referem a modificações audíveis do tempo, da força, das proporções, por conseguinte, as ideias do crescimento, do esmorecer, da pressa, da hesitação, do artificiosamente intrincado do simples acompanhamento e coisas semelhantes” (Hanslick, 2002, p. 25). c) Descrição musical: a descrição dos eventos e ideias musicais fica limitada pelos termos técnicos musicais, ou mesmo a metáforas que tentam sublinhar certo conteúdo (Hanslick, 2002, p. 43). A atestação de certa incomensurabilidade entre a linguagem ordinária e a compreensão de tipo musical não configura um problema, mas sim marca a autonomia do campo de conhecimento musical. 160

d) Caráter lógico: listo algumas relações lógicas aludidas por Hanslick: causalidade: “na música, há sentido e consequência, mas musical” (Hanslick, 2002, p. 44); juízo: “há um conhecimento profundo em aludir também a ‘pensamentos’ nas obras sonoras e, como no falar, o juízo dextro distingue aqui facilmente pensamentos verdadeiros de simples palavrório.” (Hanslick, 2002, p. 44); conceitualidade: “reconhecemos de igual modo o fechamento racional de um grupo de sons, ao dar-lhe o nome de ‘frase’. É que sentimos exactamente o mesmo em qualquer período lógico, onde termina o seu sentido, embora a verdade de ambos se mantenha incomensurável” (Hanslick, 2002, p. 44). A condição sine qua non da experiência musical Para a consecução e mesmo a eleição de um modelo epistemológico, discutimos questões relativas ao trabalho de Kant. Nossa decisão, que já vinha influenciada por Hanslick, quis mesmo assim verificar os argumentos da terceira Crítica que pudessem contribuir para o modelo geral. Antes de analisar a interação possível entre os juízos determinantes e os reflexionantes, seria necessário que esses dissessem respeito às condições fáticas da experiência musical. Os objetos sonoros são sintetizados aditivamente, mas não apenas assim, pois que do simples colecionar de sons pela memória depreendese, ainda, conexões de segunda ordem como o fraseado, a progressão, a recapitulação, a modulação, a variação, entre tantas outras. Vimos que essa possibilidade de conexão sempre em direção a um grau mais elevado de juízos foi possível pela coordenação nuclear das formasmotivo em conjunto com as funções tonais. Em vista desse quadro, qual seria então a precisa operação que faz distinguir a percepção do sonoro em agrupamentos que virão a ser musicais? Identificamos essa operação enquanto lógica. Os conflitos inerentes à estrutura do juízo determinante e reflexionante implicam que tomemos uma posição a partir dos resultados coletados e que se mostram condizentes com a experiência musical analisada. Diante disso somos obrigados a considerar a existência de 161

uma condição sine qua non da experiência musical, que impõe vínculos lógicos de modo necessário, caso contrário, não superaria o âmbito meramente sensório do som. Quando dizemos isto é uma música!, significa que os atos lógicos necessários foram movidos. Essa é uma condição também requisitada a dar lastro a juízos que tomam a música como um sujeito, tais como: esta música é bela ou esta música é um bolero. Uma réplica kantiana ao nosso argumento diria ter o intuito de investigar um ato judicativo puro, não necessariamente anterior no sentido cronológico ao ato lógico. Acompanhando esse raciocínio, o fato do juízo da beleza se ancorar de modo a priori em uma autonomia da faculdade do juízo, possibilitaria uma predicação da beleza sem conter uma finalidade, independente da realidade do objeto em questão. Porém, tal possibilidade relativizaria o §9 da terceira Crítica e a legalidade dos horizontes lógico e estético assinalados na Lógica. Uma réplica consistente deveria, portanto, manter a organicidade da analítica do belo e a hierarquia das faculdades dada na terceira Crítica, mantendo a precedência da sensibilidade em sua autonomia não regrada, e sua sublevação em um estado reflexivo. Mantém-se, assim, a precedência do estatuto do juízo reflexivo a qualquer determinação, como caracterizado no §9. Sendo assim, uma réplica consistiria apenas em demonstrar a necessidade dessa estrutura e a impossibilidade do estético vir a dizer respeito ao que se encontra determinado em um objeto. Nossa tréplica, nesse sentido, consiste em colocar-nos numa posição privilegiada, no exato momento em que diante de um objeto (tendo em vista que não é possível estar diante de um nada), um sujeito recua sob seu sentido determinante, caracterizando o momento em que Kant descreve como sendo o caminho do estatuto estético. Nesse instante, aquilo que é um diverso sensível passa a seguir uma trajetória a qual introduzimos dois questionamentos: a) Todo objeto de arte, em seu mais alto grau, segundo Kant, é obra de um Gênio. O Gênio seria um sujeito capaz de impregnar um objeto de uma regra, “dá a regra à arte” (Kant, 1993, p. 181)17. Essa regra 17. Para o caso tonal essa regra está dada na funcionalidade harmônica e no núcleo lógico/temático, tomando aqui como exemplo do gênio o trabalho de Haydn, Mozart ou Beethoven.

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condiciona um objeto real, seja um quadro, uma ópera, um livro. Porém, enquanto essa obra é condição de um impulso para atingirmos o ato reflexionante do juízo, essa mesma atividade pura não conta com a obra, com o objeto ou com a regra impressa sobre ele. Kant não demonstra como um objeto é capaz de reter materialmente uma característica de impulsionar uma ação reflexionante em detrimento de sua própria constituição objetiva. Não demonstra igualmente qualquer vínculo entre uma capacidade de um objeto conter em si uma regra material, que disponha nossa faculdade a um julgamento estético, e o estatuto reflexionante do juízo. Diferente disso, o objeto é abandonado tão logo o gênio tenha sido caracterizado, e não existe qualquer comentário a respeito do produto do trabalho do gênio. Apontamos para uma lacuna na argumentação, que deveria conter, entre o gênio e o juízo de gosto puro, uma explicação dessa intermediação feita pelo objeto de arte, pois não é o caso da arte do século XVIII poder ser evocada sem um suporte. b) Segue-se desse primeiro diagnóstico uma outra questão a que a teoria deve satisfazer. Se o objeto de arte é um item necessário para a experiência estética no sentido de demandar uma atitude desinteressada, o objeto se torna uma condição imprescindível à sua própria dispensa. Concluímos que, para a estrutura do juízo de gosto puro, é necessário que se defina, sobre o objeto, se é ele que contém alguma especificidade que o faça se ligar necessariamente à estrutura do juízo de gosto puro. Ou, diferentemente disso, se seria uma atitude externa ao objeto, uma mudança de “ponto de vista” do sujeito como um todo que faz com que o estatuto lógico seja alternado para o estético puro. Feitas essas considerações esboçamos duas opções para o juízo estético kantiano: a) que o objeto seja necessário ao juízo reflexionante, enquanto contenha algo que faça atrelar-se ao juízo estético, e, b) que o objeto seja desnecessário pois que o juízo estético implica apenas uma decisão puramente subjetiva. Além da beleza natural, apenas as obras artísticas são contempladas pelo juízo estético puro. O objeto artístico, tendo a peculiaridade de ser o único objeto produzido pelo homem a suscitar o sentimento da beleza é, justamente por esse critério, censurado em sua constituição objetiva. Assim, certa qualidade especial, esperável no objeto da arte, naquela natureza impregnada pelo gênio, não 163

é capaz de especificar a escolha dos objetos artísticos para a promoção da beleza. Desse modo, a escolha de Kant em eleger uma categoria de objetos que seriam privilegiadamente belos parece mesmo arbitrária. Atentemos que o que está em jogo é uma condição para o objeto de arte, pois, se o juízo estético for completamente autônomo, ele pode vir a ajuizar independentemente de haver algum objeto. Porém, como ele lança mão de uma finalidade sem fim, é certo que algum componente sensível adentrou pelo sistema do conhecimento em geral. Mas, se o juízo estético puro é uma autonomia da faculdade do juízo, por que ele deve se reportar a objetos da arte, e não a qualquer diverso? Neste item, tenciono ainda salientar como esta mudança de perspectiva reflete a necessidade de referir o fenômeno artístico a estruturas da subjetividade presentes no receptor, e não mais a propriedades intrínsecas do próprio objeto, o que se articula com o projeto maior de um pensamento eminentemente moderno, que consistiria em considerar o que se apresenta não mais como algo que é dado em si mesmo, mas na medida em que é representado pelo sujeito. (Vieira, 2003, p. 6)

É fato que o gosto possui um âmbito subjetivo e presente no sentido interno, assim como o juízo determinante lida com conceitos do sentido externo. Se houve uma guinada no interesse de aspectos subjetivos por parte dos críticos e filósofos da arte do século XVIII, é certo que Kant não se insere meramente no contexto geral, psicologista, e por isso não se detém na subjetividade apenas, mas traça estatutos específicos para esses ajuizamentos em um discurso epistemológico. É necessário, por isso, que respondamos a algo muito mais caro do que a um mero índice subjetivo implicado por uma sensação de beleza, e, por isso, que investiguemos os fundamentos lógicos ali implicados. A garantia de uma autonomia para o juízo de gosto implica que esse se coloque de fato autônomo; e a argumentação dessa autonomia passa pela legalidade do juízo de gosto, e, este, pelo objeto de arte. É essa a problemática geral de Kant que o leva a construir um estatuto como o do juízo reflexionante e estético puro, pois que se preocupa com a autonomia do sentimento da beleza e não com sua ligação a objetos de arte. 164

Da parte de nossa análise, ouvir uma melodia implicaria uma série de regramentos atualizados pelo tempo, fazendo com que postulemos uma anterioridade lógica do objeto musical em relação a qualquer ajuizamento da beleza sobre esse mesmo objeto. A beleza de uma música deveria, ao menos, contar antes com uma melodia prefigurada no sentido externo, em que essa melodia surge como resultado de recognições temáticas e harmônicas, ao mesmo tempo em que ajuíza uma série de relações entre seus elementos sonoros a compor a compreensão da forma musical. É necessário, antes, que uma música se dê a entender em um padrão de compreensibilidade, ou não faria sentido dizer da beleza de uma obra musical. É nesse sentido que uma condição sine qua non se mostra para a experiência musical, enquanto condição lógica para qualquer outro juízo. A música clássica enquanto episteme musical A ligação entre música e processos matemáticos é certamente a que mais perdura no senso comum, e esta descende mesmo de Pitágoras, fazendose presente na máxima de Leibniz: “um exercício oculto de aritmética no qual a alma não sabe que conta” (Leibniz apud Schopenhauer, 2003, p. 228). A vinculação da matemática para relações musicais específicas como o fraseado e a harmonia é realizada inicialmente por Rameau, que consegue a façanha de operar a transposição entre uma percepção musical e uma composição físico-matemática do som. Porém, como vimos, as estratégias musicais não se encerram apenas no uso de relações matemáticas ou físicas, e se direcionou a vínculos lógicos, sobretudo para a estruturação de sua forma autônoma. Hanslick sublinhava a relação da música com termos como pensamento, conhecimento e entendimento, pois que no final do século XVIII essas confluências alargam-se de modo a dar lugar ao conceito de música absoluta, em que Hanslick destaca sempre o caráter lógico dessa nova musicalidade. Também no excerto de Schlegel transparece essa afinidade entre pensamento e música: music for thought (música para o pensamento) (Dahlhaus, 1989). Torna-se, desde então, comum associar o musical 165

ao que é lógico, como vemos em manuais do século XX, como o de Schoenberg. Apenas analisando esse contexto já vemos como o intercâmbio entre a música clássica e o ponto de vista da terceira Crítica pareceram, em grandes linhas, excludentes, sendo essa última influenciada por uma tradição que pouco se ligava às novidades trazidas pela arte musical, vinculando-se ainda à tradição clássica francesa inspirada em Boileau (Vieira, 2003). Outro descompasso notado por McCloskey (1987) mostra como os conceitos aos quais Kant se apega para caracterizar os principais sentimentos ligados à arte (belo e sublime)18 pouco diziam respeito à arte romântica que vinha despontando como movimento vigente quando da edição da terceira Crítica. De todo modo, parece mesmo ser uma tendência de nossa mente termos unidas às nossas representações afetos e sentimentos prazerosos. Para Kant, com exceção da beleza, o prazer compreende o cumprimento de uma intenção – um juízo determinante –, como consta na introdução da terceira Crítica (Kant, 1993, XXXIX). A beleza estabelece uma distinção do conteúdo do prazer, mas não uma distinção entre graus de prazer, e sim de natureza. Esse é o fundamento da análise do juízo de gosto, a localização de sentimentos que possuem estatutos diferenciados: o agradável, o sublime, o belo e o bom se diferenciam por natureza e não por graus contínuos. Contudo, não podemos afirmar com rigor que tal sentimento da beleza possa ser comprovado, ou, pelo menos, vincular as estruturas musicais que analisamos.

18. Belo e sublime eram conceitos referentes ao contexto do classicismo francês, em que a referência estética maior centrava-se no conceito de “mimesis”. Para a tradição instrumental, esses conceitos passam a ser prescindidos, uma vez que perdem sua função maior diante das categorias auditivas que fundam. A predominância da ordem da linguagem sobre o efeito faz com que mesmo em músicas de caráter programático, como vemos em Haydn, a linguagem musical e suas leis prevaleçam. Mesmo o discurso mimético, que vinha fracassando em aderir ao objeto musical, e passando a ser mimese não mais da natureza mas dos sentimentos e afetos (Rousseau, 1998, p. 189), terá maiores ressonâncias, uma vez que a técnica, o formalismo e a lógica interna do sistema de composição predominam como critérios de inteligibilidade para o ouvinte.

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Mas afinal, qual seria a utilidade de tal dicotomia lógico-estética? Perguntamos isso no sentido de uma sinfonia, enquanto objeto belo, ser acessível universalmente, ou seja, constituir um vínculo necessário àqueles que habitualmente escutam sinfonias e já são capazes de ajuizar sua forma. Podemos, inclusive, ajuizar beleza em passagens e momentos pontuais, o que vem ressaltar novamente esse vínculo entre a beleza e as determinações do objeto. Contudo, o grau de verdade para conceitos empíricos não tem como ser absoluto em nenhuma esfera. A própria ciência já vem lidando com realidades probabilísticas, nas quais a certeza da lei tem sempre que se deparar com um grau elevado de exceções. A música, a partir das regras analisadas, se apresenta ao modo de um conceito empírico, o que também não a livra de certa necessidade e certa aleatoriedade. O caráter necessário dos objetos musicais, e mesmo de qualquer juízo que se atrele a eles, como exemplificado em uma estrutura estrofe/refrão (AAB:AAB) aplicada à música comercial, também possui flutuações. Esta é uma estrutura que provoca necessariamente prazer ao ouvinte, e o fato de psicologicamente uma parcela da população preferir uma variação a outra não retira igualmente o valor da predição conferida pela estrutura estrofe/refrão para o gosto da música popular, assim como confirmada no volume de vendas dessa estrutura. Esse tipo de relação com objetos musicais fica sem paralelo no modelo kantiano da terceira Crítica. Porém, aquilo que é mais caro à técnica clássica de composição – a evolução das formas-motivo e a funcionalidade da harmonia tonal – tem na atividade recognitiva uma chave válida de compreensão musical do período, e naquelas outras baseadas em seu paradigma. É importante ressaltar que o labor artesanal dos músicos do período clássico alcançou um nível de conhecimento sobre o funcionamento da episteme humana comparável ao trabalho dos grandes teóricos do mesmo período. Eles foram capazes de estabelecer vínculos de significações bastante originais que perduraram no tempo, dignos das grandes personalidades e intelectuais da época, mas que, contudo, não tiveram seu trabalho equiparado a estes. Assim se expressa Dilthey sobre Haydn: “Al parecer, no llegó a comprender jamás el lenguaje de 167

nuestros grandes poetas y filósofos” (Dilthey, 1945, p. 291). Mais do que um grande poeta ou filósofo, Haydn e muitos outros compositores engendraram o que há de mais difícil na atividade do conhecimento: um novo campo de significações. Encerremos, então, com um incomum intérprete kantiano, Albert Einstein, ao discorrer sobre a compreensibilidade e a dificuldade intelectual concernente a essa tarefa: Uma das grandes percepções de Immanuel Kant foi que, sem esta compreensibilidade, a afirmação da existência de um mundo externo real seria destituída de sentido. Ao falar aqui de “compreensibilidade”, estamos usando o termo em seu sentido mais modesto. Ele implica: A produção de algum tipo de ordem entre as impressões sensoriais, sendo esta ordem produzida pela criação de conceitos gerais, pelas relações entre estes conceitos e por relações entre os conceitos e as experiências sensoriais, relações estas que são determinadas de todas as maneiras possíveis. É nesse sentido que o mundo de nossas experiências sensoriais é compreensível. O fato dele ser compreensível é um milagre. (Einstein, 1994, p. 65 )

Que o objeto musical seja compreensível. Que dele depreenda ou que se possa depreender um forte sentimento, para o qual utilizávamos o termo beleza, é também compreensível e autoevidente. Porém, o fato de um prazer se ligar à compreensão de um objeto parece ser igualmente e duplamente um milagre.

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anexo

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Imagem C Fotos: Monaí de Paula Antunes | Edição de imagens: Laís Kunzendorff.

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Sobre o autor

Ricardo Miranda Nachmanowicz é atualmente doutorando pela UFMG, na linha de filosofia contemporânea, professor Reuni por essa instituição e faz parte do grupo de pesquisa “Filosofia da Percepção” do CNPq. É mestre pela escola de Música da UFMG e também mestre em estética e filosofia da arte pela UFOP, ambos trabalhos dedicados à filosofia da música. Graduou-se em filosofia pela UFMG e desde então dedica-se à relação entre epistemologia e experiências perceptivas, com ênfase em contextos musicais. Em 2013 foi vencedor do prêmio “Produção Crítica em Música” pela Funarte, com o texto que o leitor tem em mãos. 

1a edição [2014] Esta obra foi composta em Minion Pro e Din sobre papel Pólen soft 80 g/m2 para a Relicário Edições.