Libertação da teologia

Table of contents :
ÍNDICE
Catalogação bibliográfica
Introdução
1. O círculo hermenêutico
2. Em busca da sociologia
3. A opção política
4. As ideologias e a fé
5. Ideologias, igreja e escatologia
6. Ideologias e relatividade
7. Teologia para a religião do povo
8. Um evangelho para minorias

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LIBERTAÇÃO DA TEOLOGIA

CIP-Brcuil. Catalogação-na-Fonte C4mara Brasileira do Liuro, SP S459L

Segundo, Juan Lufs. IJbertaçio da t.eologia / Juan Luis Segundo; (tradução de Benno Brod). - São Paulo: Ed. Loyola, 19'78. 1. Igreja e problemas sociais - Amd­ rlca Latina. 2. SOciologia cristã. 3. Teologia da libertação I. Titulo.

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CDD-261.8 -261 -261.8098

lndk:ea para catálogo sistemdtico: 1. 2. 3. ,.

América Latina: Problemas sócio-econômicos: Teologia social 261. 8098 América Latina: Teologia da libertação: Cristianismo 261.8098 Sociologia cristã: Teologia social 261 TeolOiia da libertação: Cristianismo 261.8

JUAN LUIS SEGUNDO

LIBERTAÇÃO DA TEOLOGIA

EDIÇôES LOYOLA SÃO PAULO

1978

Título do original castelhano: LIBERACION

DE LA TEOLOGIA

C uademos latinoamericanos /17 Ediciones Carlos Lohlé, Buenos Aires - México 1975

TRADUÇÃO:

BEN NO BROD

CAPA:

G. V.ALPJ!:TERIS

COM AS D EVIDAS LICENÇAS

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Introdução O que restará, daqui a certo tempo, da Teologia da Libertação? Esta pergunta pode parecer pessimista e pode dar a tmpressao de que essa teologia foi uma moda superficial e passageira. a certo que não foi, nem é i. no próprio momento em que pretendem abrir-se a ela. Esta contradição os bloqueia. Literalmente, não compreendem uma só palavra do que lêem. E eu não ataco esta incompreensão em nome de algum objetivo burguês, mas em nome do próprio marxismo: rejeitarão e condenarão com tanto maior força,

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:t: evidente que existem exceções nest.e panorama. Lúkacs, Schaff, Althusser, ou marxistas independentes como o próprio Sartre, Gold· man, Lefebvre e outros, são exceções que se dão, tanto na Europa como na América Latina, 19 mas as exceções não constituem a vida diária de uma ciência e nosso ponto de vista aqui supõe a continua colaboração de uma sociologia e de uma t.eologia a braços com a mesma tarefa libertadora. Os dois pontos estudados na sociologia marxista, acrescentados à descrição feita por Verón da sociologia de tipo americano, colocam, pois, um sério problema à teologia da libertação, e as conseqüências de não ter podido resolvê-lo satisfatoriamente se verão no próximo capitulo. Mas nossa busca de uma sociologia para a teologia da liber­ tação não deve terminar com esta revista de expectativas frustradas. 4.

ANTE A NECESSIDADE DE VERIFICAR

:t: provável que tenhamos estado a buscar uma quimera quando procuramos basear nossas suspeitas teológico-humanas em verifica­ ções científicas proporcionadas pela sociologia. Talvez nos tenha deslumbrado, por um instante, a tentativa weberiana como um cami­ nho maravilhoso, e nos chocou, por isSo, profundamente a advertên­ cia de que não havia prova empirica nenhuma de sua verdade. Claro que não era para menos. Pois se se demonstra negativa. mente - nem que seja soment.e isso - que ao primitivo calvinismo refutarão tanto mais vitoriosamente, quando souberem primeiro o que con­ denam e o que refutam" Cib., p. 35). Esta é, muitas vezes, a impressão que tem o teólogo. E que não é completamente descabida, prova-o o que o próprio Engels escrevia ao sublinhar, numa carta a K. Schmidt, a relativa autonomia da superestrutura: "A concepção materialista da história tam­ bém tem agora muitos daqueles amigos para os quais ela não I mais do que um pretexto para não estudar história. . . J!l preciso estudar de novo toda a história, investigar detalhadamente as condições de vida das diversas fonnações sociais, antes de põr-se a deduzir delas as idéias pollticas, do direito privado, estéticas, filosóficas, religiosas etc., que a elas correspon­ dem" (obra cit., pp. 488-489). 19. Por exemplo, Frank Hinkelammert no plano teórico, com sua obra Ideologias del desarrollo 71 dwllctica de la historia.. Num plano mais prático, cabe assinalar os trabalhos da aociologia marxlata latino-americana acerca dos conteúdos ideológicos veiculados pelos meios de comunic:açio de massa. Sirvam como exemplo: ARKAND MATrELART, La comunicacfón massiva en el proceso de liberación, Ed. Sigla XXI, Buenos Aires 1973; Armand Mattelart, Carmen Castillo e Leonardo Castillo, La fdeologfa de la dominación en una sociedad dependiente, Ed. Signos, Buenos Aires 1970; Arfei Dorfman, Superman 11 sus amigos del alma, Ed. Galerna, Buenos Aires 1974; Ariel Dorfman e Armand Mattelart, Para leer al Pato Donald, Ed. Universitarlas, Univ. Cat. de Valparafso, 1971.

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não se pode imputar nenhuma relação com as conseqüências desuma­ nas que Weber lhe imputa - e ainda que para ele isto não seja um Jufzo de valor, para nós o é -, e se se tivesse que admitir que a ciência não nos diz absolutamente nada sobre uma possível influên­ cia do calvinismo sobre atitudes conduzentes ao socialismo, por exem­ plo, então toda nossa possibilidade de suspeita e de formulação de novas perguntas à Escritura também cai por terra. A teologia se nos converte em uma interpretação cada vez mais cientifica e intem­ poral de um livro cada vez mais velho. . . E isto é tudo. Contudo, talvez tenbamns saltado rapidamente demais da com­ provação de que era impossível uma verificação quantitativa, à con­ clusão de que era impossível qualquer verificação racional, cienti­ fica ou não, segundo se fi2r entrar ou não, no conceito de clentt/ico, a verificação quantitativa. Ezaminemos, portanto, os casos de dois cientistas e a corres­ pondente possibilidade de verificar suas teorias - Teilhard de Char­ din e o mesmo Max Weber. A teoria da evolução universal, ligada nestes últimos tempos de maneira demasiadamente estreita a Teilhard de Chardin, se baseia em um tipo de verificação que não é fácil de determinar, e ao qual o próprio Teilhard dedica bastante atenção. Por exemplo, podemos provar empiricamente, no rúvel dos ani­ mais, que os melhores resultados da tendência a adaptar-se ao meio ambiente, e a meios ambientes complexos e mutáveis, supõem sínteses complicadas de energia ou, o que é o mesmo, distribuições complexas dela. Por outra parte, podemos igualmente provar expe­ rimentalmente que o grau de complexidade de tais sínteses é acom­ panhado de um grau correspondente de crescente esforço, um esfor­ ço que, a partir de certos animais, é mensurável empírica e direta­ mente. Pois bem, a teoria da evolução urúversal supõe, para ser coe­ rente, que os elementos distintivos de um rúvel se encontram, em maiores proporções e em caracteres mais perceptivets, nos rúveis mais altos, e, em menores proporções e com caracteres muito menos perceptiveis, nos rúveis baixos. Segundo a concepção de Teilhard, nada pode aparecer como decisivo num dado momento da evolução que não pertença também, ainda que em formas muito dissimuladas e imperceptiveis, a todos os niveis anteriores. 20 3». Se Tellhard chega alguma vez a resumir até certo ponto O fenfnneno humano, d quando escreve: "E aqui se ouve o motivo sobre o qual d cons-

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Uma dificuldade séria deveria ser então o fato de que no nfvel da matéria ffsico-qufmica não encontramos, ao que parece, o menor traço de esforço. Encontramos, isso sim, a matéria disposta em moléculas mais ou menos ricas e complexas, e comprovamos que quanto mais nos aproximamos das moléculas vivas, tal riqueza e com­ plexidade é notavelmente maior. Porém, onde pode estar aqui o es­ forço? Teilhard alude a dois "sinais" de esforço neste nível. O primeiro é o esforço de flsicos e qufmicos por obter em seus laboratórios esse mesmo tipo de molécula, à medida que sua com­ plexidade se aproxima do nível vital. Trata-se de moléculas "diflceis", pelo menos para os cálculos e os mecanismos experimentais. O se­ gundo é a escassez de ditas moléculas com respeito à esmagadora maioria de matéria inorgânica disposta na forma mais simples. Como se vê, nada prova emplrica e quantitativamente que a energia material "se esforce" em criar moléculas mais ricas e com­ plexas. O que experimentamos, no sentido mais estrito da palavra, no nível animal, não podemos experimentá-lo igualmente no nível ffsico-qulmico. Mas existem sinais de uma inegável analogia. Por teoria já sabíamos que não iriamos encontrar o mesmo em menores quantidades nos níveis inferiores. Sablamos que os caracteres essen­ ciais da vida deveriam estar presentes na pré-vida mas de uma forma dissimulada, menos perceptlvel, análoga. � óbvio, portanto, que só a percepção de tais analogias entre todas as coisas e todos os níveis do cosmos - dificuldade e dificul· dade, esforço e esforço - pode abrir nossas mentes para elaborar hipóteses que nunca poderão ser provadas ou verificadas quantitati­ vamente, porque tratam de explicar coisas em distintos níveis da realidade, sujeitos por sua vez a ciências cuja qualificação depende de diferentes instrumentos, não susceptlveis de reduzir-se aos mesmos parâmetros. Teilhard de Chardin está perfeitamente consciente de que não tem sentido elaborar hipóteses que nunca podem ser verificadas. Mas crê firmement.e que existe essa possibilidade de verificação, dada a unidade e a convergência de todas as coisas no universo. A com­ partimentação que impede, não só a verificação das mais dec1sivas hipóteses, mas a criação das técnicas naturais e humanas mais tmtruldo este livro: No Mundo, nada poderd mantfeatar-se um dia como fiMl, atravéa doa vdrtos ltmtnarea (por mata crftu:os que sejam} sucesat­ vamente tranapostos pela Evoluç&,, que ntJo tenha stdo antea obscuramente primordial" (O Fenômeno Humano, trad. port., Editora Herder, São Paulo 1965, p. 54}.

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portantes para tal convergência, deve ser vencida com a unidade do entendimento humano. Isto o leva a fazer da analogia, o par4metro, quer ctmer, a medida comum de todas as coisas. E assim escreve ele em O fenômeno humano: "A aparente res­ trição do fenômeno de consciência às formas superiores da Vida ser­ viu muito tempo de pretexto à Ciência para eliminá-lo das suas construções do Universo. Exceção estranha, função aberrante, epife­ nõmeno: sob qualquer destes termos, arrumavam o Pensamento para dele se desembaraçarem. Mas o que teria sido feito da Física mo­ derna se se houvesse simplesmente classificado o Rádio entre os corpos 'anormais'? Evidentemente que a atividade do Rádio não foi, nem podia ser descurada, porque, sendo mensurável, abria o seu caminho no tecido exterior da Matéria, ao passo que a consciência, essa, para ser integrada num sistema do Mundo, nos obriga a en­ carar a existência de uma face ou dimensão nova no Estofo do Uni­ verso. Hesitamos em fazer esse esforço. Mas quem é que não vê, num caso e noutro, que se põe aos investigadores um problema idêntico, que deve ser resolvido pelo mesmo método: descobrir o universal sob o excepcional?". 21 E continua: "De sobejo o experimentamos ultimamente para ainda podermos duvidar que uma anomalia natural nunca é senão o exagero, até se tomar sensível, de uma propriedade espalhada por toda a parte em estado inapreensível. Bem observado, seja num único ponto, um fenômeno tem necessariamente, em virtude da unidade fundamental elo Mundo, um valor e raízes ubiqüistas". 22 Poderíamos ctmer, portanto, ainda que isso não ajude muito para o momento, que é só questão de tempo que a epistemologia apure os critérios de uma verificação que é real, que já se aplica e reconhece, ainda que seja de maneira vaga e confusa e que, não por ser cientifica, deixa de alcançar a. esfera humana e o nível das condutas sociais. Pois bem, se consideramos a famosa hipótese de Max Weber sobre a relação entre o protestantismo e o espírito do capitalismo, comprovaremos que aqui também funciona uma espécie de analogia entre diferentes medidas, próprias de diferentes ciências, no caso a teologia e a economia. E assim como era impossível descobrir quantitativamente o equivalente exato do esforço animal no nível da matéria fisico-quimica, assim é impossível aqui sonhar com uma 21. 22.

Ib., pp. 34-35. Ib., p. 35.

prova estatística que mostre que a maioria dos homens que tiveram êxito econômico no período inicial do capitalismo nos Estados Uni­ dos, tinham também um alto grau de participação nas cerimônias e nas crenças da Igreja calvinista. Se a prova quantitativa requer a abolição das barreiras que exis­ tem entre os instrumentos para medir, vigentes em ciências diferen­ tes, podemos concluir que não existirá nunca tal prova quantitativa. Mas se até o quantitativo num rúvel mostra analogias com o quan­ titativo em outro rúvel, mesmo que não possamos falar de prova quantitativa propriamente dita, podemos e devemos, crer, falar de uma prova cientifica. Porque, ainda que a ciência não tenha por en­ quanto elaborado uma teoria clara e operativa a respeito de tais verificações, tem levado o homem a compreender o fundamento de tal prova: a unidade funda.mental do universo. Não é casual a fascinação que a hipótese de Max Weber tem causado sobre os sociólogos. Podemos e devemos sugerir que a razão para isso é uma espécie de verificação, não certamente quantitativa em sentido direto, mas relacionada indiretamente com a quantidade de observações tomadas possíveis pela hipótese. Podemos afirmar que a teoria de Max Weber tem sido verificada pelos seguintes elementos. Primeiro, pela evidente analogia interna que pode ser percebida - uma vez que tivermos feito nossa a teoria - entre certas atitudes econômicas demonstráveis e certas crenças religiosas igualmente demonstráveis. Segundo, pela inesperada rique­ za de tal hipótese para explicar, em tudo ou em parte, outros fatos psicológicos e sociológicos em outros rúveis e períodos. Não devemos esquecer, além disso, que o mesmo Weber investigou, por exemplo, as possibilidades mais ou menos semelhantes para o começo do ca­ pitalismo em nações tão distantes como os Estados Unidos e China, com as diferenças religiosas existentes em tais nações. Terceiro, por um elemento que, nestes campos, não pode ser deixado de lado: a verificação de uma hipótese pela contrária. Basta pensar, por exem­ plo, na influência da doutrina católica sobre a graça, em atitudes econômicas como as do começo do capitalismo, para que rejeitemo& imediatamente, mesmo antes de conhecer e estudar a Weber, a hipó­ tese de qualquer influência eficaz entre ambas as coisas. l!': claro que, ao tratar tão rapidamente as provas que, a rigor, tanto Teilhard como Weber podem aduzir para suas respectivas teo­ rias, não temos feito mais que indicar uma pista. Não resolvemos o problema das relações e da colaboração entre sociologia e teologia.

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Temos, portanto, que deixar a questão aberta, como realmente está. Não temos razões válidas para nos resignarmos a uma sepa­ ração irracional, mesmo dentro dos cânones científicos mais moder­ nos. Mas também podemos torcer a história a nosso bel-prazer e obter uma cooperação onde ela efetivamente não existe. Por enquanto, o próprio teólogo, salvo exceções, deve realizar a tarefa de introduzir os elementos mais ricos das ciências sociais em sua tarefa de fazer teologia. Ninguém pode negar que isto seja um desafio temivel, na ordem pessoal. Mas as conseqüências mais im­ portantes para a teologia são as que examinaremos no capitulo se­ guinte e que poderíamos resumir com uma única palavra mais ou menos tabu: polftica.

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CAPfl'ULO III

A opção política

Se supomos que uma autêntica interpretação teológica da Escri­ tura deve continuamente realizar o circulo hermenêutico e se supo­ mos, por outra parte, que isto significa um compromisso de mudar o mundo de acordo com uma análise sempre nova da realidade oculta sob os instrumentos ou mecanismos ideológicos, a busca da sociologia não podia logicamente evitar-se. Com efeito, mudar o mundo supõe ter a certeza de que a nova imagem que dele fazemos como projeto é melhor do que aquela que hoje funciona e, além disso, que ela é possível. Em segundo lugar, descobrir quais são os mecanismos que ocultam e dão valor à rea­ lidade presente supõem realizar uma análise ideológica séria e, por­ tanto, verificar nossas hipóteses de maneira cientifica. Pois bem, dentro das condições da ciência sociológica que temos analisado no capitulo anterior, só nos resta que, ou temos que negar à t.eologia que ela nos oriente diante de hipóteses ou opções liberta­ doras, e assim temos que reduzi-la a suas velhas certezas abstratas, ou passamos adiante sem certezas sociológicas suficientemente cien­ tificas e a teologia cai no polltico. Com efeito, ainda que isso contradiga a um dos mais evidentes fatos da etimologia, a linguagem comum distingue muito bem entre sociologia e polltica. O fato de que a palavra societas seja a tradu­ ção latina da palavra grega poHs, não diz nada. A linguagem real ignora as etimologias e se aferra ao uso. E o uso descobriu que ao lado de certos cientistas que se chamam sociólogos e que nunca emitem uma opinião sem prova dela, existem os pollticos cuja capa­ cidade está precisamente em tomar opções decisivas sem provas cientificas que as apóiem. Ora, se o que temos proposto no capitulo anterior é certo, então nenhuma opção decisiva pode ser feita sem ter em conta os mecani&-

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mos ideológicos. Por outra parte, nenhuma análise ideológica pode permitir-se ao luxo de pedir à sociologia uma cobertura cientifica. A polltica está, portanto, crucüicada pela sua necessidade de optar, por uma parte, por aquilo que ela supõe de risco assumido, e pela necessidade de carecer, por outra parte, de uma base cientifica que possa justificar tal decisão. Isto pode explicar a mistura sutil de respeito e desconfiança que um político inspira. Essa conotação pejorativa da palavra pozttico é ainda moderna quando se trata daqueles cuja vocação, considerada afinal necessária, é a política. Mas o sentido pejorativo se acentua, a ponto de tornar-se franca repulsa, quando o político se acrescente a disciplinas que se supõe que deveriam manter-se alheias a esse tipo de problemas. E parece que este é o caso da teologia. Um dos mais poderosos opositores da teologia da libertação na América Latina, o P. Roger Vekemans, deu como titulo a um de seus livros: César e Deus. 1 Por César entende, está claro, a política; por Deus, a religião e sua teologia; e, ao reafirmar a suposta distinção dos dois planos feita por Jesus no Evangelho, alude diretamente à confusão feita pela Teologia da Libertação neste terreno. Tal con­ fusão, segundo Vekemans, aparece claramente na vida de muitos sa­ cerdotes e pastores da América Latina que ignoram "·a abismal dis­ tância entre a Igreja e a política". O paradoxal é que esta afirmação nos vem de um dos sacerdotes mais significativa e conspicuamente comprometidos com a política na América Latina: Por outra parte, Vekemans, com sua grande eru­ dição européia (vejam-se suas notas ao pé das páginas de César e Deus), não ignora que existe na Europa uma muito respeitável e cientifica "teologia política", o que deveria fazer a um teólogo sus­ peitar que talvez não exista a tal de abismal distância entre Igreja e política. Poder-se-ia igualmente esperar de alguém que faz semelhante observação que explicasse certos fatos da tradição dogmática como as intervenções políticas e bélicas dos papas ou, mais em profun­ didade, o fato teológico, por exemplo, da canonização de Joana D'Arc, cuja vocação divina foi exclusivamente política. Será que a Igreja, 1. Esse é, pelo menos, o titulo da versão inglesa, única que pude consultar: Caesar and God, Orbls Books, Nova York 1972. O P. Vekemans combat.e slstematicament.e a t.eologta da libertação latino-americana em cada número de sua revista Tierra Nueva (Bogotá), da qual, além disso, é colaborador assfduo Mona. Alfonso Lópes Trujlllo, secretário geral do CELAM e Conferência Epfsc:opal latino-Americana).

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com essa canonização, sanciona sua polltica? Ou, ao menos, sua concepção da união entre religião e uma determinada polltica muito discutivel, mas sem julgar a esta última? Não se pode deixar de pensar, ante tais fatos, que o recente tabu de misturar teologia e política, que não só Vekemans, mas também muitos outros - todos, porém, a partir de uma posição definida no leque político - pretendem impor, esconde outros mecanismos que não os exclusivamente teológicos, ou, ao menos, parte de uma teo­ logia com fundamentos muito obscuros, por mais acadêmicos que pareçam. 1.

AS RESERVAS TEOLôGICAS DIANTE 00 POUTICO

Comecemos por certos fatos conhecidos. Podemos presumir, por exemplo, que Gustavo Gutiérrez previa este tipo de argumentos quan­ do observa em seu livro Teologia da Libertação: "A teologia é re­ flexão, ·atitude crítica ... A teologia vem depois, é ato segundo. Pode dizer-se da teologia o que da filosofia afirmava Hegel: só se levanta ao crepúsculo". 2 Veremos depois que temos aqui um principio essen­ cial para tratar do problema da relação entre teologia e polltica. Mas precede dade". 3 fé, deve segundo

perguntemos primeiro: Qual é o ato primeiro, aquele que a teologia? Gutiérrez responde: "O compromisso de cari­ Isso parece coerente, pois se a teologia é reflexão sobre a ser reflexão sobre a fé verdadeira, quer dizer aquele que, São Paulo, "opera no amor" (Gál 5,6).

Ora, que relação tem este ato primeiro - sobre o qual atua o ato segundo da teologia - com a política? Gutiérrez o expressa da seguinte maneira: "A razão humana tomou-se razão polltica. Para a consciência histórica contemporânea, a polltica já não é algo a que se dê atenção nos momentos livres que sobram da vida privada, nem sequer uma região bem delimitada da existência humana ... J!l o lugar do exercício de uma liberdade critica que se conquista ao longo da história. J!': o condicionamento global e o campo coletivo da realização humana ... Nada escapa à política assim entendida ... As próprias relações pessoais adquirem cada vez maior dimensão polltica. Os homens entram em contato entre si através da medi&­ ção do polltico".' 2.

3.

4.

Obra cit., p. Ib. Ib., p. 51.

24.

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Seja qual for a opinião que se tenha da posição ou neutralidade politica de Jesus, 11 parece evidente que seu mandamento do amor e os inúmeros exemplos e conselhos que nos dá no Evangelho sobre ele devem ser traduzidos para uma época onde o amor real tomou formas políticas. Assim como seria não compreender o Evangelho o declarar que as máquinas não têm relação com ele, já que não se fala de máquinas no Novo Testamento; e assim como seria uma de­ formação do Evangelho o sugerir que a esmola continua constituin­ do, em nossa sociedade atual, a resposta cristã ao problema do di­ nheiro e de sua relação com o amor (cf. Vaticano II, Gaudium et Spes, n.• 30), assim o seria também hoje um amor apolitico, suposta, além disso, a possibilidade de que se possa efetivamente ser apolitico quando a fundamental dimensão humana é justamente a politica. Uma vez descoberta, além disso, como víamos, a possibilidade e a necessidade, para a teologia libertadora, de uma análise ideoló­ gica que não pode apoiar-se em provas totalmente científicas, pelo lado da sociologia, a necessidade de uma relação entre teologia e politica se toma necessária e mesmo decisiva. Tendo em conta esses dados, não nos pode causar surpresa o fato de que os últimos documentos emanados do Vaticano em ma­ téria social sejam, de fato, políticos. Desde a Mater et Magistra até a Octogesima Adveniens, as encíclicas pontifícias que deveriam cor­ responder à chamada "doutrina social da Igreja", sem mudar de nome - por que não? -, passaram a ser muito mais a "doutrina política da Igreja", pois que neles já não se trata tanto do problema das classes sociais, salários e condições de trabalho, mas das estru­ turas políticas tanto nacionais como internacionais. :t: interessante e digno de estudo, entretanto, o fato de que (salvo algumas exceções extemporâneas que diante da Populorum Progres5. De acordo com o pensamento implicito de Gutiérrez, deveriamos dizer que se, "para a consciência histórica contempor4nea a polftica não é apenas uma região bem delimitada da existência humana. . . Mas o condicionamento global e o campo coletivo da realização humana", cons­ titui um anacronismo perguntar qual pode ter sido a posição de Jesus sobre este descobrimento contempor4neo, e, concretamente, sobre sua re­ lação com o Império Romano ou com os zelotes. J!: mais certo ter em conta que a opressão concreta, diária, estruturada, que Jesus enfrentou em seu tempo não aparecia como "politica" - no sentido moderno da palavra -, mas antes como "religiosa". Quem determinava a estrutura sociológica de Israel eram, mais que os oficiais do Império, a autoridade religiosa de escribas, fariseus e saduceus. Que Jesus tenha tido atritos com essa autoridade realmente politica, prova-o o fato de que o interesse de eliminar fisicamente a Jesus, enquanto ameaça para o status quo, tenha vindo não dos representantes do Império Romano, que só deram um aval desinteressado e formal, mas das autoridades supostamente "religiosas".

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sio, por exemplo, falaram de "marxismo requentado"), não se tenha acusado os sumos pontífices de misturar religião e política. Talvez, para explicar este fato, possa valer um exemplo bastante diferente. Um ano antes da conferência de Medellín, um grupo de quinze bispos do Terceiro Mundo escreveram um documento que teve repercussão internacional. Nele escreviam, entre outras coisas: "A Igreja nunca se solidariza, naquilo que ela tem de essencial, de per­ manente, isto é, sua fidelidade e sua comunhão com Cristo no Evan­ gelho, com nenhum sistema politico, econômico e social. Desde que um sistema cesse de assegurar o bem comum em beneffcio do tnte. resse de alguns, deve ela não somente denunciar a injustiça, mas li­ bertar-se do sistema iníquo, pronta a colaborar com outro sistema

mais bem adaptado às necessidades do tempo e mais justo". 11

Até aqui a afirmação dos bispos se parece demais com as afir­ mações da doutrina social geral da Igreja para poder suscitar rea,. ções demasiadamente vivas. Não obstante, podemos desde já assi­ nalar um ponto critico de que nos deveremos ocupar. Com que meio ou instrumento científicos pode a Igreja decidir quando um sistema cessou - supõe-se que definitivamente - de promover o bem comum, e como pode estar cientificamente certa da existência de outro mais justo, antes de fazer a correspondente prova? A reação virá justamente quando os bispos, tomando a sério sua própria afirmação geral, passarem aos fatos e tomarem uma decisão diante deles. Isso é o novo, e o escandaloso, no magistério da Igreja. Os principios eram toleráveis enquanto se deixassem a cada fiel o CUidado de efetuar com eles um juizo concreto. Porém, os bispos afirmam: "Levando em conta certas necessidades para alguns pro­ gressos materiais, a Igreja há um século tolerou o capitalismo com o empréstimo a juro legal e seus outros usos pouco conformes à moral dos profetas e do Evangelho. Mas ela só se pode alegrar ven­ do surgir na Humanidade outro sistema •social menos afastado dessa moral. . . Os cristãos devem mostrar 'que o verdadeiro socialismo é o cristianismo integralmente vivido, a justa divisão dos bens e a igualdade fundamental'". 1 Aqui sim enfrentamos o tabu político em toda a sua força. E é necessário reconhecer que uma coisa muito diferente, é anunciar princípios abstratos para a política, e outra entrar em polltica. Sem 6. Mensagem dos bispos do Terceiro Mundo. De ampla divulgação. Citamo-lo segundo a Revista Eclesiástica Brasileira 27 (1967), pp. 989-997. Aqui, p. 991. 7. Ib., p. 993.

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dúvida, os mencionados bispos do Terceiro Mundo fizeram esta últi­ ma coisa. Nio apenas formularam princípios políticos, mas optaram politicamente. Entre duas posições existentes escolheram wna, esco­ lheram-na como política - e nio só como moral 8 - e, finalmente, a impuseram como tal aos fiéis em nome do Evangelho. Não resta dúvida de que estamos diante de algo que não nos é familiar. Pelo menos nessa forma. Estão os bispos realmente fazen­ do política? E, no caso afirmativo, qual é o julgamento teológico que isso merece, se deixamos de lado as reações emocionais? Para responder a estas perguntas, nos pode servir uma passagem muito importante e significativa de Rahner que Vekemans cita em seu livro. Refere-se, precisamente, a pronunciamentos do magistério eclesiástico sobre temas tão concretos que caem dentro das frontei­ ras do conhecimento sociológico e político. A passagem de Rahner é esta: "Aqui é que o problema se torna, de repente, terrível: Como pode a Igreja conhecer o contexto de sua ·ação, sendo que, eviden­ temente, esse tipo de conhecimentos não pode ser deduzido direta­ mente àa revelação? . .. Querendo ou não, ao fazê.lo, a Igreja se tor­ na dependente de fontes e métodos de conhecimento que estão parcia.un,ente tora de seu controle.. . Estamos diante de wn proble­ ma ao qual, que eu saiba, a epistemologia eclesiástica não prestou suficiente atenção ... Como pode a Igreja, em tais matérias fazer pronunciamentos que envolvem obrigação? Em tal contexto, como pode a Igreja evitar o perigo, seja de afirmar coisas óbvias, que serão ditas melhor em qualquer outra parte, seja de aventurar-se a fazer juízos que podem ser refutados por especialistas em análise sociológica ...?". 9 J!: fácil imaginar, suponho, o que significam tais perguntas para R teologia da libertação. Se se chegar a provar ou a constatar que os problemas mais agudos do homem pertencem todos a esse tipo de contexto, deverá calar-se a teologia para não se ver rebatida por especialistas científicos? Um caso evidente em que este problema se coloca, é o dos bis­ pos acima mencionados. Jt óbvio que, para a imensa maioria dos 8. Trata-se, de fato, segundo as próprias palavras da passagem, da escolha de um "sistema social, polltico ou econõmico", subsumido, na 1iDguagem comum, na expressão de sistema polttico. 9. VsKDUNs, obra cU., p. 30. Tratando-se de wna citação de Rahner, cujo contexto não pudemos controlar, devemos arriscar-nos a fazer uma análise dele de acordo Dlo a seu contexto natural mas ao contexto em que figura na obra de Vekemans. A critica vai, portanto, em primeiro lugar dirlgida a este último, e só hipoteticamente ao próprio Rahner.

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latino-americanos, a eleição entre o sistema capitalista e o socialis­ ta aparece como uma das opções possíveis e decisivas, ainda que nin­ guém tenha ilusões de que com tal escolha se acabem os problemas. Mas, como pode a Igreja decidir nesta questão, se o futuro histórico pode desmenti-la e se não tem meios científicos de prever esse futuro? l!l claro que os bispos não estão totalmente desarmados diante deste tipo de objeções. "A História mostra - escrevem - que cer­ tas revoluções eram necessárias e se libertaram de sua anti-religião momentânea, produzindo bons frutos. Ninguém mais contesta a re­ volução que em 1789, na França, permitiu a afirmação dos direitos do homem." 10 Não obstante, os teólogos parecem rejeitar esse recurso à histó­ ria por duas razões diferentes e opostas. A primeira vem do campo sociológico, ainda que se apresente teologicamente: a Revolução Francesa é um fato singular, e não pro­ va nada, a menos que se admita um determinismo histórico que faça de toda revolução uma boa revolução. Não se pode pretender fazer uma avaliação cientifica da revolução socialista baseada nas boas conseqüências da Revolução Francesa no passado. A história não é o eterno retomo do mesmo. A segunda objeção, mais teológica, toma o argumento ao contrá­ rio. Como a história parece ter uma tendência muito clara às re­ petições, podem-se ter previsões humanas sobre o futuro desenvolvi­ mento dela. Só que tais previsões, quanto mais cientificas ou fun­ dadas forem, tanto mais humanas e menos espaço deixam ao futuro escatológico, ao de Deus. Assim atacava, por exemplo, Gaston Fessard a "Nova Teologia" dos anos quarenta, acusando-a de ter decidido quais deveriam ser suas relações com o comunismo, segundo o modelo da Revolução Francesa, quer dizer, com uma previsão hu­ mana do acontecer histórico. 11 O que Fessard não diz, nem parece perceber, é que toda a decisão de reformar a situação presente, muito mais, a de deixá-la como está, não contém um miligrama menos de previsão humana que a de adaptar-se à mudança histórica prevendo o futuro. O não escolher 10. Obra cit., p. 990. 11. Cf. GASTON F'EsSARD, De l'actualité histortque, Desclée, Paris 1959, t. II, pp. 63-65. Veja-se também nossa crftlca à posição de Fessard em Teologia aberta para o leigo adulto, t. V, Evolução e culpa, trad. port., Edições Loyola, São Paulo 1977, nota 2 do Cap. III.

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algo por ser humano, é uma escolha tão humana como o que se pretende evitar. Terminemos, portanto, este primeiro parágrafo deixando estabe­ lecidos três fatos básicos a partir dos quais trataremos de continuar nossa análise das relações entre teologia e política. 1. Toda teologia é política, também aquela que não fala ou não pensa em termos políticos. A influência da política na teologia e nos demais campos de cultura, assim como a influência da teolo­ gia na política e em qualquer outro nivel de atitudes humanas, não se pode, de maneira nenhuma, evitar. E deixar a teologia cum­ prir essa função inconscientemente é a pior das políticas, já que essa forma de politica vai sempre associada com o status quo. 2. A teologia da libertação aceita consciente e explicitamente suas relações com a política. Em primeiro lugar, introduz em sua própria metodologia a análise ideológica, situada nas fronteiras entre sociologia e política. E quanto à política direta, evita a Cfa1sa, imparcialidade do acadêmico com maior empenho do que o tomar partido e dar, assim, pretexto para que a tachem de parcial. 3. Quando a teologia acadêmica acusa a teologia da libertação de ser política e de fazer política, pretendendo ignorar sua própria relação com o status quo, o que está realmente buscando é um bode expiatório para seu próprio complexo de culpabilidade. 2.

A TEOLOGIA VEM DEPOIS ...

Se retivermos esses três dados na mente, talvez possamos colo­ car de maneira mais realista e profunda o problema da opção polí­ tica em teologia. Duas análises, uma fenomenológica e outra exegética, nos podem ajudar nesta recolocação. A primeira análise tem relaç_ão com a ordem em que as pergun­ tas se colocam. Basta pensar nesta ordem para começar a sentir algo bastante estranho na clássica colocação feita por Rahner no texto anteriormente citado. Recordemos que a pergunta essencial era: Como pode a Igreja conhecer o contexto de sua ação, sendo que, evidentemente, esse tipo de conhecimento não pode ser deduzido in­ teiramente da revelação? Qualquer um que prestar atenção à pergunta, deverá sentir o extravagante, o radicalmente ln-humano da colocação. Mas ainda,

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não é fora de propósito assegurar que a passagem foi citada por Vekemans precisamente porque, se a pergunta tem sentido, o pro­ blema não terá nunca solução, Quod erat demonstrandum... Está suposto que o primeiro que a Igreja, cada grupo e cada homem conhecem é precisamente "o contexto de sua ação" e Jus­ tamente porque o conhecem e aceitam os desafios dele, se pergun­ tam sobre o que terá que ser feito em tal contexto. Rahner parece crer que a Igreja sabe o que t.em que fazer mas que não conhece seu contexto. Como pode ser isso? As últimas palavras da citação nos oferecem a chave. Segundo Rahner, podemos deduzir conheci­ mentos certos sobre o que fazer, perguntando à revelação indepen­ dentemente de todo contexto. E a revelação responde, ao que parece, prevendo deduções sobre aquilo que é eternamente cristão na con­ duta. Mas como a conduta depende pardalmente de conhecimentos sobre o contexto que não pode ser deduzido da revelação, o pro­ blema consiste em saber se temos que nos arriscar a deixar certezas totais por certezas parciais. Em outras palavras, o problema está em saber se a teologia pode razoavelmente abandonar o terreno em que tem respostas, para se achegar a outro onde pode ser refutada, pelo menos naquilo que não diz respeito diretamente à revelação mas ao conhecimento do contexto histórico. Pois bem, a situação humana, válida para todos os homens e inclusive para o teólogo, é exatamente a oposta. Vamos supor, só para fazer o argumento mais claro e evidente, que os homens pos­ suam na teologia da Igreja um conjunto de certezas científicas intem­ porais, do tipo das certezas matemáticas. Pois bem, e nesse mesmo caso artificialmente forjado, as opções humanas dependem do co­ nhecimento do contexto e devem ser tomadas antes que as certezas cientificas da teologia tenham algo a dizer. Com efeito, os principais problemas humanos de nenhuma ma,. neira se tomam num certo plano de certezas, para depois duvidar se devem ser colocados também num determinado contexto histórico. Pelo contrário, o homem vive e luta em melo de decisivos conflitos contextuais sem que a ciência lhe possa dar pronta nenhuma opção. Uma vez que optou em forma genérica, a ciência pode indicar-lhe a instrumentalidade correspondente a sua opção. O mais que se pode dizer é que a opção depende indiretamente da ciência no sentido e medida em que ninguém deseja optar por quimeras e se informa previamente da possibilidade fáctica de realizar seu ideal. Mas, ainda assim, a certeza cientifica é instrumental e não diz nada sobre o V&­ lor decisivo.

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Escapa a teologia a esta lei universal? Certamente não. Em pri­ meiro lugar, a aceitação da teologia, como também a da própria revelação, supõe uma prévia opção que só é concebível como o desafio de um contexto determinado e bem conhecido. Somente a partir dessa opção contextual começa a teologia a ser significativa e sempre em relação com esse contexto real. Em outras palavras, a teologia não é escolhida por razões teológicas. Pelo contrário, o ún1co verdadeiro problema é determinar se situa melhor o homem para optar e mudar politicamente o mundo. � óbvio, portanto, que o problema de saber se temos que per­ manecer ou não no terreno das certezas teológicas deduzidas da re­ velação não é um problema nem, portanto, pode ter jamais solução. � isso, sem dúvida, o que Gustavo Gutiérrez tinha em vista no texto citado no parágrafo anterior, ao dizer que "a teologia vem depois... ".

Caberia perguntar como uma observação tão óbvia pode chegar a constituir um ponto decisivo da teologia da libertação. A única explicação possível é que a irrealidade chegou a dominar a tal ex­ tremo os métodos da teologia acadêmica, que é difícil encontrar um teólogo, mesmo sumamente inteligente como o é sem dúvida alguma Rahner, que não inverta a ordem real das coisas e dos problemas. Além desta análise fenomenológica da conduta humana e da fnfiuência do cientifico nela, uma análise exegética pode ser útil e mesmo decisiva neste ponto. � interessante e instrutivo observar, nos Evangelhos, a metodo­ logia que separa a teologia de Jesus da dos fariseus. Geralmente a exegese aponta uma diferença de conteúdo s que aliás é evidente. Porém, deixa de lado o problema de saber qual é o método que Jesus usa para fazer teologia diante do contexto que lhe é comum com os fariseus. Nos sinóticos é evidente que os fariseus, diante dos atos de Jesus, se colocam quase a mesma pergunta que aparecia na passa­ gem citada de Rahner: Como pode a sinagoga conhecer e julgar o contexto histórico que se lhe oferece, com Jesus dentro, já que o co­ nhecimento (valorativo) desse contexto não pode ser deduzido intei­ ramente da revelação? Que esta seja, de alguma maneira muito precisa, a colocação teológica dos fariseus, mostram-no inúmeras tentativas de encerrar Jesus em atitudes em que tivesse que se enfrentar totalmente com a revelação. Mais ainda, tem que se partir do pressuposto de uma

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básica boa fé no começo desta busca teológica: os farise1.1s foram formados para ela. Sua intenção é desembaraçar o fenômeno de todos os dados que não podem ser inteiramente deduzidos da reve­ lação, a fim de evitar o expor-se a errar ou a ser rebatidos por especialistas em outros níveis. Releiamos, por exemplo, a seguinte passagem de Marcos: "En­ trou Jesus na sinagoga e estava ai um homem que tinha uma mão seca. E o observavam para ver se o curaria, sendo que era sábado, a fim de o poderem acusar. E ele disse ao homem que tinha a mão seca: 'Vem cá'. E depois lhes disse: 'li: licito fazer bem ou mal aos sábados? Salvar a vida ou matar?'. Mas eles ficavam calados. E olhando em volta com ira, contristado pelo endurecimento de seus corações, disse ao homem: 'Estende a mão' ..." (Me 3,1 s). A metodologia teológica dos fariseus é por demais clara. Não sabem como fazer chegar suas certezas teológicas ao fenômeno Jesus porque este não entra perfeitamente dentro de categorias "teológi­ cas". Não se encaixa nelas. li: algo novo sobre o qual nada se diz expressamente na revelação ou nada de certo se pode "deduzir" dela. Em tal caso, qualquer juízo teológico sobre Jesus corre o perigo de ser rebatido por todos os que conhecem bem o fenômeno. A ocasião é, portanto, única: Jesus mesmo se coloca em um contexto em que a lei revelada por Deus permitirá julgá-lo imediatamente e sem dis­ cussão: o sábado. o sábado permitirá à teologia, sem sair de seu próprio campo de certezas, julgar teologicamente a Jesus. Mas, inesperadamente, Jesus nega a possibilidade de começar um juízo concreto a partir do nível teológico, a partir de certezas de­ duzidas da revelação. J!l isso, exatamente, o que significa aquela pergunta que deixa calados os fariseus. li: uma pergunta puramente humana, na aparência, onde não sobressai o sábado, como se este fosse exatamente um dia qualquer: Pode-se fazer o bem aos sá­ bados ou fazer o mal? Eles estavam preparados para responder à pergunta clássica da teologia, à pergunta formal, àquela que não toma em conta o homem mas o puro sábado: Pode-se fazer algo aos sábados? Por isso, diante da pergunta de Jesus não têm critério teológico nenhum, e permanecem calados. Jesus aponta, com sua pergunta, para um nivel prévio a todas as perguntas teológicas: ao nível onde o ser humano decide suas opções centrais, o coração. E como a teologia pôs de lado o coração, como se não significasse nada ante critérios e certezas mais elevados, Jesus trata com ira e tristeza esse silêncio. Uma vez mais, para usar as palavras de Gutiérrez, "a teologia vem depois ..." na metodologia teológica de Jesus, e antes na dos fariseus.

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No mesmo capitulo d.e Marcos lemos: "Os escribas que tinham descido de Jerusalém diziam: 'Está possuido de Belzebu e expulsa os demônios com o poder do príncipe dos demônios'. E, tendo-os chamado, lhes dizia em parábolas: 'Como pode Satanás expulsar a Satanás? Se um reino estiver dividido contra si mesmo, esse reino não pode subsistir. E se uma casa estiver dividida contra si mesma, essa casa não pode subsistir. E se Satanás se levantou contra si mesmo, e estiver dividido, não poderá subsistir; antes, seu fim está próximo' " (Me 3,23 s). Mais uma vez, os fariseus tratam d.e aplicar a Jesus critérios teo­ lógicos puros. O problema é que Jesus está curando enfermos, o que supõe, na teologia deles, que está expulsando demônios. Fica­ •lhes, portanto, uma certeza teológica que ninguém poderá desmen­ tir teologicamente, ou ao menos é o que eles esperam: a dúvida a respeito do poder que Jesus tem sobre os demônios. Se não é possível fazer um juízo positivo sobre Jesus pelo menos é possí­ vel um Juízo negativo muito importante: ninguém pode saber se Jesus não expulsa os demônios por ter em suas mãos um poder demoníaco. Mas, novamente, Jesus recoloca a pergunta para dentro do único nível em que pode ter uma resposta positiva: o nível do que é bom para o homem. Praticamente, sua resposta pode ser tra­ duzida assim: pouco importa quem liberta o homem, se é verdade que o homem é efetivamente libertado. Porque, direta ou indireta­ mente, atrás de toda libertação está Deus. A pergunta feita a partir das alturas da teologia não tem sentido e nem, por conseguinte, res­ posta. Toda pergunta teológica começa com a situação humana. E, mais uma vez, "a teologia vem depois ... ". O critério último na teologia d.e Jesus é o remédio, por mais temporal e provisório que seja, de uma dor humana. Poderíamos multiplicar esse tipo de exemplos. Mas julgo que é melhor terminar trazendo simplesmente um terceiro exemplo que alude a um conceito que se tomou decisivo para a teologia da liber­ tação: os sinais dos tempos. J!l também em Marcos que encon­ tramos a seguinte passagem: "Os fariseus começaram a discutir com ele pedindo-lhe um sinal do céu, para o tentar. E ele, suspirando profundamente em seu espírito, lhes disse: 'Por que esta geração pede um sinal? Na verdade vos digo que a esta geração não será dado sinal algum'" (Me 8,11-12). Lucas indica um ponto importante do contexto desta petição: "Estava Jesus expulsando um demônio que era mudo, e ao sair o demônio o homem mudo falou, e o povo se maravilhou ... Outros... lhe pediam algum sinal elo céu" (Lc 11,14-16).

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Também Lucas e Mateus explicam a causa que Jesus deu para sua negativa. Segundo Mateus: "Ele lhes respondeu: 'Ao cair da tar­ de dizeis: fará tempo bom, porque o céu está vermelho. E de manhã: vai haver temporal porque o céu está vermelho escuro. Assim, sabeis distinguir o aspecto da atmosfera, mas não podeis distinguir os sinais dos tempos'" (Mt 16,2-3). Este último exemplo mostra exatamente o mesmo esquema dos dois anteriores. Em primeiro lugar, outra tentativa dos fariseus para situar a Jesus antes critérios puramente teológicos: exigir-lhe um sinal do céu. Em segundo lugar, a mesma tendência dos fariseus de f� char a teologia a todo critério proveniente da relatividade histórica: por isso não basta um sinal dos tempos como a libertação de um mudo. Em terceiro lugar, a mesma negativa de Jesus de prestar-se a essa manobra teológica, mostrando-lhes que devem deixar entrar em sua teologia o relativo, o provisório e o incerto dos critérios com que o homem se guia na história quando tem o coração aberto ao que ocorre a seu redor. Mas, além disso, Jesus os acusa de hipócritas. Na atualidade, só nos atreveríamos a acusar essa teologia de ser por demais aca­ dêmica. Jesus dá um passo a mais, e esse passo é tipicamente politico. Com efeito, se os fariseus sabem muito bem como guiar-se historicamente dentro do incerto, a busca de uma autoridade teoló­ gica não se deve a uma insuportável ansiedade ante os acontecimen­ tos. Deve-se a seu intento de impor aos demais uma autoridade sem apelação. E essa autoridade passa do religioso à estrutura sócio-po­ litica de Israel, determinada muito mais por eles do que pelos roma­ nos (cf. Mt 23,4-7). A possibilidade contrária, a que pareceria a mais lógica mas que, em certos assuntos, é a mais difícil, consiste em fazer da teologia e de suas certezas um serviço aos seres humanos que buscam, diri­ gidos por intrincados sinais dos tempos, como amar mais e melhor e como comprometer-se com tal amor. Em outras palavras, fazer com que "a teologia venha depois ... ", para utilizar uma vez mais as palavras de Gutiérrez e descrever com elas a metodologia teológica de Jesus. Segundo Lucas, Jesus responde finalmente aos fariseus que, em lugar de buscar um sinal do céu, "julguem por si mesmos, o que é reto". Podemos supor que a resposta dos fariseus, pelo menos a que internamente deram a esse conselho, foi que necessitavam de maior certeza. Mas a teologia de Jesus diz precisamente o contrário: que quando se parte de certezas teológicas, as certezas teológicas se nos ,

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desfazem entre os dedos, porque não estão feitas para suprir a re­ tidão do coração humano como fonte primeira de todo jufzo histórico. Ora, se recordamos como Gutiérrez mostrava inapelavelmente que tal retidão e abertura do coração tem que ser buscada, nos tem­ pos presentes, em uma dimensão polftica (que por outra parte não está ausente, como vimos, da teologia de Jesus), compreenderemos que uma teologia libertadora não pode colocar-se seriamente o pro­ blema de baixar de suas certezas puras ao terreno movediço da história, da sociologia e da polftica, porque essa é precisamente a teologia desqualificada por Jesus. O único problema é deixar-se in­ vadir pelo humano em todas as suas dimensões e, a partir dessas opções fundamentais, formular perguntas à revelação. Longe de existir "uma abismal distância entre a Igreja e a polf­ tlca", como deveria pretendê-lo uma teologia farisaica, a união entre o plano da sensibilidade e o compromisso polftico de uma parte, e a reflexão teológica de outra parte é uma condição decisiva de toda metodologia que quer imitar a criatividade libertadora do método teológico de Jesus. "Ninguém se deve deixar intimidar - escreviam os bispos mexicanos - por aqueles que, aparentemente zelosos pela 'pureza• e 'dignidade' da ação sacerdotal e religiosa, tacham de "po­ lftica' tal intervenção da Igreja. Com freqüência, tão falso zelo en­ cobre a intenção de impor a lei do silêncio quando urge, pelo con­ trário, dar voz aos que sofrem a injustiça e é urgente desenvolver a responsabilidade social e polftica do povo de Deus." 12 3.

O COMPROMISSO VEM ANTES

Se o que foi dito até agora é correto, a teologia latino-americana da libertação redescobriu um caráter essencial da teologia cristã e está em condições de criticar seriamente a teologia acadêmica neste ponto central. Mas ainda, a teologia polftica aparecida na Europa não tem muita coisa a ver com nossa colocação, posto que deriva a polftica das fontes teológicas, enquanto que a teologia de Jesus de­ riva a teologia da abertura do coração aos mais urgentes problemas do homem, ao ponto de sugerir que não se pode reconhecer a Cristo nem conhecer, por conseguinte, a Deus, senão a partir de um certo compromisso com o oprimido. Em outras palavras, se Jesus tivesse sido reconhecido por um sinal do céu, simplesmente não teria sido reconhecido, nem Deus nele. 12. Tato que me chegou através da versão inglesa de Signos de rena, IICICfdn: Between honesty and hope, issued by Peruvian bishops' Commission for Social Actlon, Maryknoll, Nova York 1970, p. 115.

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E isto nos leva a wn novo problema. Começamos desculpando a teologia por fazer política, ao optar, sem fundamento cientifico verificável, por sistemas que, em último termo, devem chamar-se políticos. Mas o argumento nos envolveu e nos levou ainda mais longe. Porque se é certo o que ficou dito até aqui, cabe perguntar, com vários teólogos latino-americanos, se é passivei reconhecer a mensagem libertadora do Evangelho sem wn compromisso libertador prévio, o que, por outra parte, não é mais do que wna nova versão de circulo hermenêutico examinado no primeiro capitulo. Só que o que lá aparecia como certa condição teórica, aqui aparece com toda a sua importância concreta. Comecemos por prestar a devida atenção a uma estranha propor­ ção que o Evangelho nos mostra e que, talvez, deva ser generalizada: quanto menos certezas teológicas tinham os contemporâneos de Jesus, tanto mais fácil lhes era reconhecer a Deus em suas obras e doutrina. Em outras palavras, as certezas teológicas prévias pare­ cem cerrar o coração e o entendimento, para dar wn valor absoluto aos sinais que permitem reconhecer a Jesus pelo que realmente é. l!: um fato histórico que os melhor informados da revelação de Deus no Antigo Testamento, deixaram passar a Jesus sem reconhecer nele a nova e definitiva revelação divina. Pelo contrário, a mensa­ gem cristã chegou até nós por meio dos amaretz de Israel, quer di­ zer, por aqueles que, por uma ou por outra causa, tinham ficado fora do interesse da lei e de sua compreensão. será que este fato histórico, esta proporção decisiva no passado, tem valor em nosso presente? Esta pergunta abstrata, a teologia da libertação na América Latina teve que fazê.la a si mesma, em forma muito concreta, diante de fatos, que como veremos, saltam à vista e que foram decisivos em nossa história continental. Poderiamas descrever esta problemática em três etapas: Primeiro: têm os cristãos wna contribuição especifica para o processo libertador de nossa sociedade? No caso em que não a tive­ rem, não valeria a pena ser cristão se nos atemos à teologia de Jesus. Segundo: supondo que os cristãos têm essa contribuição especi­ fica, devem eles, pelo menos em termos gerais, renunciar a conhecer essa contribuição, antes de comprometer-se concretamente com os problemas da libertação histórica? J!: preciso admitir que os fariseus puderam perfeitamente preparar uma "teologia da libertação" na lei mesmo. Mas, ainda assim, devemos supor que, ao põ-la diante de

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outros critérios mais humanos, essa teologia não lhes teria tampouco permitido reconhecer a Jesus, precisamente por constituir um cri­ tério prévio aos dados e valores humanos concretos. Terceiro: por ventura quer isto dizer que quanto menos os cris­ tãos souberem de cristianismo tanto melhor garantia terão de entrar em um autêntico processo de libertação e de descobrir, a partir dele, a verdadeira mensagem evangélica? Ou, em outras palavras, será que para ter uma verdadeira educação cristã, devemos, em primeiro passo, substituir tal educação por um compromisso libertador, den­ tro do qual acharemos a chave para descobrir e transmitir o cris­ tianismo sem deformações?

Falando em termos muito gerais, parece haver três classes de argumentos que nos levam a dar uma resposta afirmativa às três perguntas fwidamentais que acabamos de apresentar. 1. O primeiro argumento vem da foi o objeto do parágrafo anterior. De com maior ou menor profundidade, as lise exegética são, assim, compreendidas

mesma teologia bíblica que uma ou de outra maneira, linhas gerais de nossa aná­ e valorizadas.

Supomos que também é possível encontrar uma ingênua teologia da libertação que crê poder deduzir do Evangelho todo o seu con­ teúdo para qualquer situação. O próprio Gustavo Gutiérrez se per­ mite, num dado momento de sua exposição, afirmar o seguinte: "Numa perspectiva de fé, o que move, em última análise, os cristãos a participar na libertação dos povos oprimidos e das classes sociais exploradas é a convicção da radical incompatibilidade das exigências evangéltcas com uma sociedade injusta e alienante". :ia Esta frase, isolada do resto do livro, poderia aparecer como o modelo de uma certa teologia fwidamentalista da libertação. Parece, de fato, supor que as palavras simples do Evangelho bastam para fazer ver a um cristão que a manutenção das atuais estruturas sociais não é com­ patível com sua fé. Mas isso está longe de ser evidente. E milhões de cristãos escutam o Evangelho sem tirar de modo algum tal conclusão. Mas, como dizia, só tirando esta frase do contexto da obra de Gutiérrez é que ela pode ser interpretada desta forma. É interes­ sante assinalar, a este respeito, que a edição espanhola do livro, apesar de ser em geral uma reprodução da edição feita pela CEP (Lima 1971 ), agrega um esclarecimento essencial à seguinte frase ori­ ginal: "O anúncio evangélico tem pois função conscientizadora ou,

13. Obra ctt., p. 123.

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em outros termos, politizadora". O esclarecimento é o seguinte: "Isto, porém, só se torna real e significativo vivendo e anunciando o Evangelho a partir do compromisso pela libertação; só na solida­ riedade concreta e efetiv a com os homens e as classes exploradas, só participando em suas lutas podemos compreender. . . essas tmplf­ cações da mensagem evangélica". u Assim, o circulo se torna evidente. E que isso corresponda a algo central no pensamento de Gustavo Gutiérrez, mostra.o sua colo­ cação na Semana Teológica Latino-americana celebrada no Escorial em 1972.11 Este inverter a ordem dos termos aparece pelo menos duas vezes claramente nos Documentos de Medellin. Em sua "Mensagem aos Povos da América Latina", os bispos escrevem: "A luz da fé que professamos como fiéis, fizemos um esforço para descobrir o plano de Deus 'nos sinais de nossos tempos'. Interpretamos que as aspi­ rações e clamores da América Latina são sinais que revelam a orien­ tação do plano divino ... ". 1a Além deste texto, sumamente claro e direto, a Introdução aos diferentes documentos é ainda mais explicita sobre a ordem de prio­ ridades teológica: "A Igreja Latino-americana... não se 'desviou', mas se 'voltou' para o homem, consciente de que 'para conhecer a Deus é necessário conhecer o homem' ... Assim como Israel, o an­ tigo Povo, sentia a presença salvífica de Deus quando da libertação do Egito, da passagem pelo Mar Vermelho e conquista da Terra Prometida, assim também nós, o Novo Povo de Deus, não podemos deixar de sentir seu passo que salva quando se dá o verdadeiro desenvolvimento". 11 Poderiamos também citar, além destas duas passagens, uma frase em que o Documento sobre a Educação comenta a carta de São Paulo aos Romanos (8,29): "Por isto, todo 'crescimento em humanidade' capacita-nos a 'reproduzir a imagem do Filho, para que ele seja o primogênito entre muitos irmãos' ". 18 Reproduzir a tma­ gem do Filho não compreenderá também, como é lógico, conhecer melhor essa imagem? Se assim é, o "crescimento em humanidade" 14. Ib., pp, 223-224. 15. Cf. "Evangelio y praxis de liberación", em Fe crfstfana 11 cambio social... , obra ctt., pp. 231-245, especialmente pp. 241-244. 16. CELAM, A Igreja na atual transformação da América Latina cl luz do Concilio. Conclusões de MedeUfn. Edlt. Vmes, Petrópolis 19'7()1, p. :fl. 17. Números 1 e 6, tb., pp. 41 e 42. 18. Número 9, tb., p. 75.

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se torna condição prévia para um autêntico conhecimento de Cristo e sua mensagem. E temos novamente a condição circular de toda hermenêutica. Na mesma medida em que estes textos oficiais do episcopado latino-americano propõem como necessário o compromisso ( politico) para um autêntico conhecimento do Evangelho e de suas exigências, logicamente desacreditam como insuficientemente critica toda herme­ nêutica que pretender chegar a tal conhecimento pelo caminho da ciência, poupando - e mesmo desqualificando como inconveniente a passagem prévia pelo compromisso libertador em todos os planos. Em outras palavras, a todos esses diálogos entre eruditos acerca da possivel contribuição dos cristãos à luta politica ou à revolução, as passagens citadas antepõem um elemento decisivo: não é possível conhecer tal contribuição pelo simples recurso ao Evangelho, pois a interpretação deste variará segundo for olhado de fora ou de dentro do compromisso libertador. Se, como diz Gutiérrez, "a teologia vem depois", o problema prévio de saber qual possa ser a contribuição especifica do cristão à libertação em que trabalham homens de todas as crenças religiosas, começa a aparecer sem sentido e, por conse­ guinte, sem resposta. 2. Por isso, ainda que pareça estranho e mesmo chocante, vários teólogos latino-americanos chegaram à conclusão de que é impossível conhecer qual é o específico da contribuição cristã à libertação antes de se comprometer com ela. Assim, por exemplo, J. P. Richard escreve: "Não são os chamados 'valores evangélicos' que dão sentido à práxis social, mas dá-se o in­ verso. Somente por este caminho pode a teologia superar a inversão sujeito-objeto, que é o ponto em que se situa o caráter ideológico do cristianismo, caráter que não lhe permite assumir a práxis social da libertação. Os cristãos não devem redefinir a práxis social começando do evangelho, mas, vice-versa, devem achar a significação histórica do evangelho partindo da práxis social".1 9 Isto talvez seja fácil de dizer, mas choca com a. tremenda reali­ dade da práxis eclesiástica. Com efeito, muitos anos antes de um cris­ tão decidir se vai ou não engrossar as fileiras dos grupos libertado­ res, já estava recebendo por todas as partes uma determinada imagem 19. O artigo que citamos é provavelmente "Racionalldad socialista y verificación histórica dei cristianismo", aparecido em Cuadernos de la reaHdad nacional (Santiago de Chile), abril de 1972. Citado sem referên­ cia por Adolfo Ham, "Introduction to the theology of llberation", em Communio vuitorum (Praga), verão de 1973.

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de Cristo e de sua mensagem. Quase se poderia dizer que, na medida em que a teologia da libertação se tomou uma idéia viva e forte em muitos grupos cristãos na América Latina, isso se deveu a que, em um dado momento dessa educação cristã, os sacerdotes ou cate­ quistas começaram a tirar conseqüências novas, inéditas, da própria mensagem evangélica. Em outras palavras, o êxito pastoral da teolo­ gia da libertação tem consistido em passar do Evangelho à libertação e não, certamente, da libertação ao Evangelho. Contudo, a força dos argumentos nos leva nesta segunda direção. Dois tipos de argumentos, sobretudo, apontam para ela. O primeiro, mais teórico, foi desenvolvido amplamente pela teo­ logia européia, ainda que sempre se tenha sido timido em tirar as últimas conseqüências, talvez porque, sem uma perspectiva liberta­ dora, tais conseqüências pareciam meramente destruidoras. A exegese européia, começando pela protestante e continuando com a católica, descobriu, no espaço destes dois últimos séculos, que era impossível chegar, de maneira certa, ao Jesus htstónco. Tomando o termo histórico no sentido cientifico e moderno da palavra. Em outras palavras, os Evangelhos, mais do que testemunhos do que Jesus realmente foi, fez e disse, são testemunhos da fé pós-pascal da primi­ tiva comunidade cristã. Ou seja, eles testemunham como aquela co­ munidade via e interpretava a Jesus. Portanto, nossa própria fé em Jesus deve passar, pelo menos, por uma interpretação teológica: a dos Evangelhos, intérpretes de uma comunidade determinada, confrontada a determinados problemas his­ tóricos, muito pouco parecidos com os nossos. Isto não significa, é claro, que Jesus seja um mito ou que a in­ terpretação da primeira comunidade cristã não seja digna de fé ao f·alar da pessoa histórica de Jesus. Mas seria verdadeiramente incrível que, nesta mesma recordação do Senhor, essa comunidade histórica determinada não tivesse feito passar, mesmo sem o perceber, muitos elementos consubstanciais a sua própria situação histórica. Mais ainda, temos provas de que certas parábolas de Jesus, por exemplo, aparecem nos Evangelhos como destinadas às autoridades da Igreja, sendo assim que seus destinatários originais não puderam ser senão as autoridades religiosas de Israel. 20 Podemos ir mais além e afirmar, com Bultmann, que a primitiva comunidade cristã viu a Jesus destacado sobre o pano de fundo da 20. Assim o mostrou, entre outros, Jeremias, em sua conhecida obra sobre as parábolas evangélicas.

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mitologia própria da época: céu-inferno, intervenções de Deus na his­ tória por meio de milagres, vozes, ressurreição de Jesus dentre os mortos etc. A teologia - e a práxis - latino-americana desconfia mais dos elementos tdeOlógfcos que, sem dúvida alguma, tiveram que estar pre­ sentes nessa primeira comuniaade cristã que interpretou Jesus e nos deu dele sua própria versão nos Evangelhos. Como o notava James Cone nas passagens que dele citamos no capitulo primeiro, não é de modo algum certo que Jesus, diante da escravidão de Israel no Egito, tivesse corrigido as antigas exigências de Deus, dizendo, por exemplo: oferece a outra face. Como é, então, que essas palavras parecem sintetizar o pensa­ mento e a mensagem de Jesus no Evangelho? A resposta mais lógica seria presumir que a comunidade à qual se dirigiu Jesus com tais palavras estava numa situação muito diferente daquela que corres­ pondeu aos israelitas no Egito. OU, pelo menos, que essa situação diferente era a dos cristãos da primitiva Igreja. Mais ainda, se prolongamos este argumento, chegaremos à con­ clusão de que o problema não é saber se Jesus disse ou não exata­ mente essas palavras nesse determinado contexto. Porque também ele pertenceu a um contexto histórico determinado e pensou e falou em relação com tal contexto. OU seja que, ainda que pudéssemos chegar até um disco gravado dele, nos ficaria contudo a tarefa de des­ cobrir o que nele devemos atribuir às circunstâncias da mensagem. Compreende-se assim a sensata afirmação de Cone: todo literalismo (cientifico, marxista etc.) é essencialmente conservador. Pois bem, se, frente ao Evangelho, começamos a trabalhar com a suspeita ideológica, onde iremos parar? A dificuldade pode parecer teórica, mas afeta o núcleo mesmo de nossas certezas religiosas e se converte em terror psicológico. Não obstante tudo isto, a única res­ posta coerente ao problema é admitir que quanto mais desideologi­ zada tivermos nossa mente, tanto mais livraremos a mensagem de Jesus de suas capas ideológicas e nos acercaremos mais a sua ver­ dade mais profunda e eterna. Jesus não é um monumento histórico. Se vivesse e atuasse hoje, diria coisas muito diferentes das que f� há vinte séculos. E nós hoje devemos descobrir sem ele, mas não sem seu Espirito, o que diria para nos libertar se vivesse em nossa época. A tarefa de desideologizar nossa mente para acudir à mensagem evangélica não é um trabalho meramente intelectual. Exatamente como no tempo de Jesus, os desideologizados eram os que não tinham

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entraves teológicos para reconhecer uma necessidade e uma opressão humana onde quer que aparecesse, assim hoje somente o tomar efeti­ vamente partido pelos oprimidos da terra pode desideologizar e li­ bertar nossa mente para o Evangelho. A teologia vem depois. Não se pode começar por perguntar a ela qual é a contribuição especifica cristã ao processo histórico libertador. 3. Mas, como disse, existe outro caminho que leva os teólogos latino-americanos à mesma conclusão: a da experiência histórica. Como acabamos de mostrar no primeiro parágrafo deste capitulo, a Igreja aparece e se pensa a si mesma como um nivel privilegiado de certezas emanadas ou deduzidas da revelação divina. Só com muita cautela se anima a baixar de tais certezas a terrenos mais espinhosos e incertos, sabendo que qualquer opção discutivel, técnica ou cientifi­ camente, não pode ser imposta a toda a Igreja. Em lugar de ser acei­ ta como palavra de Deus, o único que faria seria dividir os cristãos por coisas que Deus não se dignou revelar, sem dúvida porque não as creu importantes. Um primeiro passo para a correção desta situação o dá, por exemplo, Moltmann ao escrever: "Quando os cristãos tomam posição na luta política, não estarão deixando de lado o amor universal de Deus pelos homens? Essa é a questão essencial. Eu não penso assim. A finalidade do universalismo cristão só pode ser alcançada pela dialé­ tica de optar pelos oprimidos". 21 Ainda que não seja. fácil à Igreja aceitar as afirmações de Molt· mann, devido a uma eclesiologia que depois teremos ocasião de es­ boçar, demos por assentado que o impact.o da teologia da libertação leva a valorizar mais a opção libertadora que a unidade inoperante dos cristãos sem sentido libertador. Ainda assim, uma segunda pergunta aparece imediatamente: O que significa concretamente optar pelos oprimidos? Sem dúvida, fazer todo o possível por eles. Mas, uma vez mais, o que é "t.odo o pos­ sível"? Aqui entramos necessariamente no assunt.o dos meios. Nor­ malmente, um cristão e um marxista não têm a mesma idéia do que é fazer todo o possfvel pelos oprimidos. Provavelmente o leitor pensa logo no problema da violência. Mas não creio que seja o principal. Como teremos ocasião de mostrar. 21. "Dieu dans la révolution", em Dtscussfon sur "la tMologje de la révolution" (J. Moltmann, Dom Helder Cl.mara, D. A. Seeber, 114. Lotz, H.

Gollwitzer, R. Weth, A. Rich, W. Dirks, H. Assmann, A. Bezerra de Melo), trad. franc., Cerf-Mame, Paris 1972, pp. 70-71.

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a Unha mais marcada nesta questão dos meios passa pela necessidade ou não de manipular as massas humanas, de instrumentalizá-las antes de poder conscientizá-las. De qualquer modo, o mais importante não é tanto determinar onde se produzirão os encontros ou os conflitos, mas que, na discussão dos meios, o cristão crê saber de antemão quais os meios que lhe per­ mite ou lhe proibe sua fé. Por exemplo, no famoso diálogo de Salzburgo entre marxistas e cristãos, Dominique Dubarle afirma, como ideal de coexistência, o se­ g,rlnte: "Para libertar o Estado... de toda suspeita... não basta, afinal de contas, inscrever na Constituição o principio da liberdade individual de opinião e de religião. Também é necessário: 1 > conceder às diferentes comunidades confessionais possibilidades razoáveis de orgaruzação interna, de expressão e de exercicio político que todo o mundo deve outorgar se pretende respeitar a pessoa e a liberdade dos demais: isto é, toler4ncia civil; 2) neutralizar o funcionamento administrativo do Estado com respeito às preferências ideológicas ou religiosas dos governantes, dito em outras palavras, não permitir em absoluto que nenhum tipo de medidas administrativas do Estado se ponha a serviço preferencial de nenhuma espécie de convicção ou de ideologia e, muito especialment.e, ao serviço das que prevale­ cem entre os homens ou partidos governantes: isto é, imparcialidade política". n Já começa a ser interessante que este tipo de ideal, certo, ainda que utópico, se reserve para um diálogo com os marxistas e não se mpllcite na mesma forma e com a mesma energia e claridade quan­ do se trata de qualquer outro Estado ocidental, cristão ou não, como aquele que Dubarle conhece em seu próprio pais e que, certamente, não respeita nenhuma dessas duas condições. Quando um cristão fala assim, a gente não pode deixar de escutar esse ideal contras­ tando-o com a supressão violenta e o não-reconhecimento, pela lei, dos partidos políticos e ideologias marxistas na maioria dos paise5 que ostensivamente se chamam cristãos. Porém sigamos com as afirmações de Dubarle: "No atual estado de realizações politlcas do marxismo, o homem religioso não pode resignar-se a suportar a forma em que tem que viver sua própria convicção e sua própria comunidade". Pouca dúvida pode haver, na minha opinião, de que Dubarle se refira a fatos certos e que estejam 22. "L'avenir humain et la permanence du fait religieux", em Mar:tis­ tes et Chrcfttens. Entrettens de Salzbourg (1965), trad. franc., Paris 1968, pp. 115-116.

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à vista de todos. Talvez cantaria outro galo se Dubarle investigasse mais a fundo qual é, na realidade, a concepção predominante e, por conseguinte, a influência politica de tais comwúdades religiosas nos países em que o Estado se proclama manasta. Mas não há dúvida de que, por wna ou por outra causa, mesmo cristãos de inspiração revolucionária e libertadora se vêem cortados na expressão pública e política de sua fé. Vamos agora ao ponto prmc1pal, que é a conclusão que Dubarle tira aepolS de ter comparaao assun o 1cit,a1 com a reaucaaae: "De maneira que, enquanto nao tiver oa.vido um arranjo politico mais satisfatório do problema político de suas convicções, a determinação d.o cristão é a de lutar contra todo novo estabelecunento de l!.:staclos marxistas contemporâneos se lhe apresentam, neste aspecto, como msatisfatórios". n Para explicar como se desenvolve esse estranno processo mental - auas tao freqüente - que poae levar a aec1Soes �ao rawca1s, fwi­ damenUldaS naquuo que se convenciona chamar "um só aspecto" do processo, e um aspecto que admite diversas medidas nos diversos sistemas, é ID1Ster, creio, compreender três fatores. Primeiro. Todo o arrazoado está feito previamente e fora do pro­ cesso hlswrwo. l;0111 e1e!ro, a prô�r.1.11, Udlull!,;11.0 do iáeal \que de­ pois se torna condição pratica dec1S1va, mostra que quem a faz nao é um poutico enfrentando proo1emas concretos. l:'arece ev!dente que toda avaliaçao global de um processo deve ser feita tendo em conta e valorizando o homem novo que, supoe-se, pode e c:hlve surg.u­ dele. Todos os aspectos parciais, precisamente enquanto aspecL-.ii;, ticam relativizados (não p.Jiminadns) pelo processo inteiro e não po­ dem converter-se em condições para entrar nele.

Segundo. Normalmente uma avaliação religiosa - e cristã -, feita previamente e fora do processo histórico, pressupõe que a lei­ tura e o conhecimento do Evangelho fornecem ao homem certezas absolutas. Dai que, em lugar de relativizar o aspecto religioso do processo, relativiza o processo em nome de um Evangelho suposta­ mente conhecido e bem interpretado- Não se colocam, por exem­ plo, na balança, os sofrimentos, a burnDbaçAo e a morte frente aos resultados, limitados e humanos, é claro, que se podem esperar do processo. Terceiro. Sistematicamente, ao declarar absoluto o ideal tirado do Evangelho previamente e fora do processo histórico, os aspectos 23.

n,.

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minoritários, tais como a liberdade de pensamento, de religião e mesmo de atividade política cristã, aparecem superestimados em comparação com os fatores mais revolucionários, Já que afetam as grandes massas humanas em um extremo do processo: fome, misé­ ria, ignorância, doença e morte. Deste modo, todo regime consoli­ dado, na medida em que outorga mais e mais possibilidades de liberdade às minorias, será sistematicamente preferido, por este tipo de teologia, a qualquer movimento revolucionário de massas.

4.

O PROBLEMA DA CONTRIBUIÇÃO CRISTA ESPECtFICA

Chegados a este ponto podemos dar um passo a mais, e estudar assim as conseqüências políticas concretas que a problemática da contribuição cristã especifica à libertação costuma ter. Hugo Assmann, em um de seus escritos, admite que o uso de títulos cristãos para movimentos pollticos de esquerda como, por exemplo, o "Movimento de esquerda cristã" no Chile, pode "ter algum sentido - tático e transitório" - para quebrar "o uso do cristianis­ mo pela direita". u Porém, saindo do tático e transitório, é evidente para Assmann que o compromisso normal do cristão com a esquerda não deve ser concebido como "algo que se realizará entre 'cristãos revolucionários' por um lado, e 'os demais revolucionários' por outro. Não existe esse tipo de 'cristão isolado' com sua especificidade e sua 'contribui­ ção especifica' isolável do resto". J!: claro, Assmann não pode contentar-se com esta resposta, Já que, se o cristão não tem nada especifico com que contribuir à libertação, para que ser cristão, afinal de contas? Por isso Assmann começa de novo e se explica melhor: "Isso não anula em nada um sentido válido da expressão "contribuição cristã"; o que certamente está superado é a maneira tradicional de colocar esse problema, que consistia em conceber a 'contribuição cristã' como uma especificidade alienante e freadora" porque a especifici­ dade cristã era "pensada como uma espécie de a priori doutrinário que se antepunha e opunha aos fatos revolucionários". Encontramos até agora, nas passagens citadas de Assma.nn, dois elementos dignos de consideração. Primeiro, que os cristãos, antes 24. Prólogo a Habla Ftdel Castro sobre los cristianos revolucionarias, Tierra Nueva, Montevidéu 1972.

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de seu contato e de seu compromisso com a revolução, pensam possuir já princípios cristãos decisivos para ela. Segundo, que os fatos revolucionários desmentem tais prlnciplos. Mas Assmann continua: "Termina-se com a 'contribuição cristã' como conta ideológica cobrada antecipadamente, como algo definido 'antes' e 'fora' do concreto processo revolucionário. Este tipo de cobrança se opunha perigosa e ldealistlcamente à ineludivel media­ ção da práxis unitária no único processo revolucionário e era a fonte clássica dos conhecidos 'tercelrismos' e dos caminhos próprios e paralelos, fatalmente instrumentaUMdos pela reação". n Outros dois elementos dignos de consideração surgem desta ci­ tação, e devem ser somados aos primeiros. Terceiro, que normalmen­ te os cristãos não experimentam na realidade a doutrina cristã sobre a revolução e seus meios, mas a deduzem diretamente da revelação. Quarto, que quando as regras pragmáticas da revolução rejeitam as exigências cristãs idealistas, a contribuição cristã tende a tornar-se autônoma e a buscar saldas por "tercelrismos" a melo caminho entre o status quo e a revolução, terminando fatalmente reabsorvidas pelo primeiro. Em outras palavras, os cristãos que começaram simpati­ zando com a revolução, mas pondo-lhe condições "evangélicas", ter­ minam, em nome do mesmo Evangelho, lutando nas fileiras antl-re­ volucionárias. Penso que o fenômeno do terceirlsmo é um profundo desafio metodológico da libertação e a última conseqüência de wn modo errado de colocar o problema das relações entre teologia e politlca. Talvez o exemplo mais claro deste processo no continente latino­ .americano no-lo ofereça a origem e desenvolvimento da Democracia Cristã no Chile. Há várias décadas que um grupo de jovens cristãos se separava do Partido Conservador e fundava um movimento politico que levou primeiro o nome de "Falange". Já isto é significativo. Em primeiro lugar, mostra que até há pouco tempo a posição politica considera­ da "normal" em um cristão era sua pertença aos partidos conserva­ dores, o que coloca já um interessante problema teológico. Em se­ gundo lugar, que o desmembramento tenha sido feito em nome de exigências cristãs, coloca mais uma vez o problema hermenêutico de uma interpretação politlca do cristianismo tirada do próprio Evan­ gelho. 25.

lb.,

pp. 22-2'.

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De fato, a Falange e em seguida a Democracia Cristã encontra­ ram já feita tal interpretação do Evangelho na chamada "Doutrina Social da Igreja". Pois bem, como se sabe, tal doutrina foi uma tentativa da hierarquia católica para determinar a "contribuição cristã especWca" ao melhoramento da realidade social, especialmen­ te na área dos pafses europeus. Suas regras foram ora deduzidas da revelação, ora fundadas em um suposto direito natural, baseado, por sua vez, em uma eterna lei natural das coisas. 28 Na realidade, a "Doutrina Social da Igreja" começou orientando os cristãos para viver uma vida social conforme o Evangelho dentro das estruturas capitalistas existentes. Quando apareceu a primelra grande enciclica social .Rerum Novarum, o socialismo era apenas uma idéia. O mundo concreto ao qual se dirigia a enciclica e dentro do qual pensava instaurar uma conduta moral cristã mais coerente, estava todo ele debaixo do regime da propriedade privada dos meios de produção. O socialismo foi condenado como idéia abstrata opos­ ta ao direito natural de todos os homens à propriedade privada. Pode ser interessante notar, de passagem, que o imaginar uma sociedade sem a propriedade privada dos meios de produção, iina­ ginação esta que constitui a base do argumento, é sumamente irreal. Supõe que, se essa idéia se realizasse, o homem perderia a possibi­ lidade mesma de realizar-se como tal. Enciclicas mais recentes, tra­ tando do mesmo tema, se viram na obrigação, por uma parte, de manter a condenação e, por outra, de admitir que a situação de um empregado da burocracia ocidental se acha equiparada em quase todos os aspectos à de uma sociedade sem propriedade privada dos meios de produção, sem que isso traga consigo a impossibilidade de viver uma vida humana. Mas o que mais nos interessa neste momento é seguir os passos da Democracia Cristã chilena. Pode-se dizer que ela nasce e se ciesenvolve sob esta condição irreal: modificar um sistema econô­ mico por meio de uma pregação moral, ou seja, sem mudar suas regras materiais de jogo. Nesta situação, a Democracia Cristã estava naturalmente desti­ nada a ocupar o centro do palco politico, como terceira posição entre partidos socialistas e conservadores, e a atrair para si, cada vez mais, a adesão de uma classe média temerosa de ambos os extremismos. 26. Ver, na .Rerum Novarum, o argumento da lei natural no parágrafo 7, e o da revelação (baseado na maldição subseqüente ao pecado orig1nal) no parágrafo 12.

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Mas o que é extremamente interessante é que Democracia Cristã é assim levada pouco a pouco a situações de mais e mais poder, não tanto por sua intrfnseca doutrina politica, mas pelos fracassos - extrínsecos a ela - dos partidos de direita e de esquerda. Mais ainda, que este caráter extrinseco de sua crescente força politica era percebido, demonstr&ro o fato de que, quanto mais se aproxima ao poder, a Democracia Cristã sente mais e mais a necessidade de elaborar uma plataforma politica própria, deixando de lado incrlveis cliscussões doutrinais, restos de sua antiga dissidência com respeito ao partido Conservador. Tomava-se, assim, cada vez mais manifesto que a Doutrina Social da Igreja não podia passar por programa politico, nem para o eleitorado nem, sobretudo, para os eventuais govem-a.ntes. A pre­ gação de uma moral econômico-social não pode substituir, de ma­ neira realista, uma polltica coerente e eficaz. Dito em outras pala­ vras, se a Democracia Cristã tinha que se diferenciar politicamente da extrema direita e da extrema esquerda, tinha que fazer algo mais do que um sermão: tinha que introduzir alguma modificação coe­ rente na lei da oferta e da procura. Durante esse tempo, contudo, a "Doutrina Social da Igreja" ti­ nha evoluído. Seu caráter de terceira posição se tinha tomado ainda mais claro. Com efeito, uma pregação moral contra os males parti­ culares do capitalismo, junto com uma condenação total do socia­ lismo, encobriu durante bastante tempo seu caráter terceirista. A doutrina social em questão foi considerada como capitalista, posto que nunca atentou contra o principio intrlnseco do sistema: a pro­ priedade privada dos meios de produção e a lei da oferta e da pro­ cura como base do jogo econômico. A evolução a que me refiro consistiu em apelar, por uma parte, a uma maior e mais radical "socialização" (a palavra socialismo foi evitada) dos meios de produção, e em condenar, por outra parte, claramente o capitalismo como sistema baseado na busca da ganân­ cia privada. Sob essas condições, a Democracia Cristã chilena chega às elei­ ções decisivas com dois grandes slogans: "propriedade comunitária" e "revolução em liberdade". Claro, ambos os slogans revelam um inconfundível ideal cristão. Se são ou não são realizáveis, é outra questão. Por uma parte, a propriedade comunitária era uma clara terceira posição que pretendia evitar ao mesmo tempo os males da propriedade privada sob a lei da oferta e da procura e, por outro, os males da propriedade estatal desumanizadora. Por outra parte, a

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revolução em liberdade era, ainda mais sutilmente, uma terceira po­ sição entre a maneira de exercer o poder sem revolução dos partidos conservadores, e a ditadura do proletariado pregada pelo socialismo como primeira etapa necessária para uma mudança radical do sis­ tema econômico-polltico. O que talvez seja mais importante é pensar um pouco por que a ninguém terá ocorrido antes a idéia desta panacéia universal. A única resposta possível, e além disso óbvia, consiste em admitir que, outra vez, ainda que em forma mais sutil, estamos aqui diante de um ideal "evangélico". Tanto as possibilidades da propriedade co­ munitária como as de uma revolução em liberdade dependem da possibilidade de converter o coração das pessoas afetadas pela mu­ dança, como devia experimentá-lo mais tarde a tentativa de Allende por realizar, finalmente, uma revolução em liberdade. A Democracia Cristã, levada ao poder por essas eleições, demons­ trou, ao contrário, sua posição terceirista, quando renunciou, ante as reais dificuldades históricas internas e externas, a transpor a pro­ priedade à comunidade e a revolucionar o sistema econômico capi­ talista. Não é nenhuma prova disso o fato de que a reforma agrá­ ria, única realização evidente da Democracia Cristã, não só não apa­ reça incompatível com o sistema capitalista, mas que seja exigida por ele. Paradoxalmente, o fracasso da Democracia Cristã em ambos os planos converteu realmente o coração dos chilenos ·ao socialismo, que venceu, relativamente, nas eleições seguintes com uma coalisão de partidos dirigida pelo Presidente eleito, Salvador Allende. Talvez seria mais exato dizer que o que deu o triunfo a Allende foi o fracio­ namento da classe média que deixou de ter confiança na Democracia Cristã devido à campanha presidencial, singularmente parecida à de Allende, do candidato democrat&reristão Radomiro Tomic. Ou seja, que, por um inStante, desvaneceu-se, aparentemente, o caráter ter­ ceirista, e a Democracia Cristã apareceu voltada para a esquerda. Que isso tenha sido um fenômeno temporário, devido ou não à má. política de Tomic, o demonstram os seguintes fatos. Durante o governo de Allende, a Democracia Cristã mostrou, matematicamen­ te falando, seu caráter terceirista. Aliou-se sistematicamente com a direita, obtendo assim maiorias decisivas contra a polltica da es­ querda. Mais ainda, mostrou claramente que, para ela, falar de "re­ volução em liberdade" e em "propriedade comunitária" era só uma maneira de dizer que não estava com a esquerda, nem sequer quan­ do a esquerda realizava tais objetivos. Finahnente a Democracia

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Cristã, direta (por convênios) ou indiretamente (paralisando o pa.fs graças à classe média) entregou o governo à ditadura militar. J!: difícil encontrar, na evolução histórica de um partido "cristão", uma confirmação mais indubitável da hipótese de Assmann: as con­ dições "evangélicas" prévias postas à revolução se convertem em terceiras posições e, finalmente, - se a revolução se torna possivel historicamente - em anti-revolução. E assim chegamos ao fim deste capitulo, deixando uma questão aberta. Começando pelo exame do que seria uma opção polltica feita em nome da teologia cristã, chegamos ao extremo oposto: não existe teologia cristã nem interpretação cristã do Evangelho sem opção polltica prévia. Somente esta torna possível aquela. A questão que fica pendente é a seguinte, no plano prático: Quer isso dizer que é necessário esperar que seja possível uma opção politica, e que esta se faça em sentido favorável, para começar s conhecer e a utilizar o Evangelho?

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CAP1TULO IV

As ideologias e a fé

Do que ficou dito até aqui deve ter ficado bastante claro que a teologia da libertação lida com problemas perigosos. Perigosos pelo menos do ponto de vista das autoridades da Igreja e de suas estruturas. com efeito, se o que foi dito é uma conseqüência lógica da teo­ logia aceita em Medellin, necessita-se de um novo tipo de autorida­ de na Igreja, uma nova estrutura eclesial, um novo tipo de pasto­ ral da fé e um novo papel para o laicato, mesmo na definição da autêntica fé cristã. compreender-se-á, por uma parte, o alarme das autoridades ante as conseqüências inesperadas do que aceitaram em Medellln como autêntica interpretação do Vaticano II para a América Latina, e, por outra, o desconcerto de muitos importantes grupos leigos cris­ tãos ante um magistério que, desde então, não cessa de dar marcha à ré com respeito ao afirmado naquele momento. Não obstante tudo isso, algo estranho ocorre quando se exami­ nam as últimas conseqüências do argumento de Assmann. Pareceria que as conclusões ultrapassam em algo as premissas aduzidas. JC mis­ ter aceitar, e nosso circulo hermenêutico se baseava nisso, que uma opção politica de mudança em prol da libertação é um elemento intrfnseco e desideologizador da fé. Em outras palavras, só teremos uma fé autêntica quando estivermos comprometidos numa luta au­ têntica que nos abra os olhos a novas possibilidades e significados da palavra de Deus. Será que disso segue logicamente que quanto menos se souber de antemão sobre tal palavra, tanto mais autêntico será o com­ promisso, e, por conseguinte, mais autêntica a primeira leitura da palavra de Deus? Nossa opinião é de que a realidade é mais com­ plem e que, na medida em que aquela hipótese representa o pen-

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samento de Assmann, nessa mesma medida seria necessário corrigi­ -lo. De qualquer modo, deve ficar claro que o argumento vale, pelo menos, como garantia de continuidade do circulo hermenêutico. O leitor recordará sem dúvida que, ao falar dele no primeiro capi­ tulo, supúnhamos ser ele um método hermenêutico em continuo movimento em direção a uma verdade mais autêntica traduzida em uma práxis mais e mais libertadora. O último ponto que está aqui em discussão é o do começo

absoluto. Em outras palavras, mais clássicas, o do initium /tdei, ou

seja o do começo da fé. 1.

AS IDEOLOGIAS PRltVIAS AO COMPROMISSO

O primeiro ponto que deveria ser discutido aqui tem muita se­ melhança com outro ponto parecido no circulo hermenêutico de Bultmann. Para compreender a palavra de Deus dirigida ao homem, este deve começar por compreender sua própria existência, já que Deus lhe fala dela. Se cada palavra de Deus não aludir a uma ex­ periência humana, sua palavra dirigida a nós sena algo assim como uma mensagem redigida em uma língua desconhecida. O problema se torna mais complicado, entretanto, porque o ho­ mem comum tem wna visão muito superficial e inautêntica de sua própria existência e isso o faz passar por alto grande parte da men­ sagem divina. Para utilizar outro exemplo, sucede aqui que, ainda que a língua seja a mesma, uma profunda obra de arte requer uma equivalente profundidade no conhecimento de nossa própria lingua­ gem. E esta última profundidade está intimamente ligada com a profundidade de nossas experiências, ligadas, por sua vez, com as palavras de nossa língua. Dai vem que, para chegar à autenticidade e profundidade exis­ tencial necessárias para compreender cada vez mais profundamente a palavra de Deus, Bultmann propõe como método a análise exis­ tencial de Heidegger. 1 Este se torna assim pré-requisito para a in­ terpretação da Escritura. 1. Bultmann, em sua teologia, se refere sempre k filosofia daquele que, apesar de seus protestos, continua sendo chamado de "primeiro Heidegger", ou seja, o Heidegger conhecido através de Sein und Zeit. Nesta primeira fase de seu pensamento, ou, ao menos, atendo-nos a esta obra somente, Heidegger parecia mais interessado em analisar as categorias com as quais o homem pensa necessariamente, de maneira explicita ou implfcita, sua existência, do que em chegar a aproximar-se ao ser dos entes. Sein und Zeit oferecia assim, mais que uma filosofia especial, uma certa

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Sabe-se que isso deu lugar a uma acirrada controvérsia. Pergun­ ta-se a Bultmann com que direito ele estabelece, entre muitos outros possíveis, um método especial, como pré-requisito para a compreen­ são da libérrima palavra de Deus. O mesmo se poderia perguntar a Assrnann. De fato, a autentici­ dade da experiência prática que aqui se requer, está associada por Assmann a uma determinada opção politica. Assim, por exemplo, re­ jeita o problema prévio da "contribuição cristã especifica" porque n concebe "como uma espécie de a priori doutrinário" oposto aos "fatos revolucionários"; isso dá a entender que existem fatos revolu­ ciOnários reconhecíveis independentemente de qualquer doutrina que se tenha sobre a revolução. Esta suposição volta a aparecer com freqüência. Assmann fala no singular e com artigo definido de "o concreto processo revolu­ cionário" e faz do compromisso com ele o pré-requisito para a com­ preensão da mensagem evangélica. Tudo isso faz supor que, inde­ pendentemente dessa compreensão e de outra doutrina qualquer, o processo revolucionário se dá a conhecer concretamente e apela ao compromisso concreto. Finalmente, e com termos que recordam Bultmann, Assmann fala da "necessária mediação da práxis unitária no único processo revolucionário". O pré-requisito se torna aqui ain· da mais claro: existe um processo revolucionário, uma práxis revo­ lucionária que falam por si e exigem compromisso. Compreende-se, portanto, que tem sentido dirigir a Assmann a mesma pergunta que a Bultmann: por que privilegiar uma deter­ minada opção política como condição necessária "ineludivel" da com­ preensão da mensagem divina na Escritura? Pode-se supor, é claro, que a resposta de Assmann tomaria o mesmo rumo que a de Bultmann. Para este, com efeito, o método de Heidegger não tem em si mesmo, intemporalmente, nenhuma ga­ ranti'a de ser o mais apropriado para levar o homem à compreensão profunda de sua própria existência e, por conseguinte, à da palavra linguagem básica da existência. Bultmann, com toda a lógica, resistiu sempre a admitir que se baseava em "uma filosofia" detenninada, afir. mando, pelo contrário, que assim como a intelecção da palavra de Deus depende da intelecção da linguagem em geral, assim depende, em maior grau ainda, da posse de uma linguagem profunda e rica no que se refere ao básico da existência humana. De acordo com a tradução castelhana de Sein und Zeit: Ser 'li tiempo, feita por José Gaos, F.C.E., México 1951, deverfamos falar aqui, ao citar a hermenêutica bultmannlana, de análise eristenclária (ou categorial) e não de análise eristencial (ou fáctica), de acordo com a distinção que o próprio Heidegger faz entre e:riatenzfal e e:riatenttell.

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de Deus. Mas, para o mOmento, ê o melhor. Se, depois, aparecer outro melhor, a única coisa coerente a fazer, seria adotá-lo. Algo semelhante pode, sem dúvida, responder Assmann. Assim como se requer um juízo filosófico para escolner, entre os metodos 1uosoficos, o mais capaz de consegwr uma compreensao Jlbertadora e autentica da existêncta, assim também se requer um juízo político para escolller entre os processos e movunentos pollticos aque1e que 'biais se presta a oferecer uma autenticiàade lloertadora a mente uaquele que nele se compromete. Tampouco Assmann faz ao pro­ cesso revolucionário uma garantia magica ou eterna. Em outras palavras, o argumento se apresentaria assim: Em cada pais latino-americano se pOC1em encontrar grupos sumamente conscientes da opressão que sofrem nossos povos e aecu:liaos a em­ pregar os meios necessários e eticazes para quebrar tal servidão. A esses grupos, ainda que alfll'am em suas táticas de ·acordo com as cU'cunstanmas locais, se pode cnamar de "um umco processo revo­ iucionario". � os cr1Stãos, em lugar a.e se porem a conswtar o ..l!..vangeJ.no sobre como a.eve ser 1e1ta uma revoluçao e com que meios, w:vt:nwn unll'-se a T.ais grupos tl, a pd.l'tir a.a 1u1,1:1,, re.11:lr o ..i:.,vangelho d.e manell'a criadora. lVlas o que fazem mw.tas vezes é regawar ,sua, participaçao, conaicionanao-a a eX.LSwncia a.e que :se cwl.Lpra um ,t;vangemo, tido e compreendld.o previamente ao comprom!sso e à experiéncia histórica. Apesar de a resposta parecer bastante lógica e aceitável, creio que simplifica em excesso a realidaae ao processo revo1ucionário. Uma distinção sumamente realista d.e Mannneim pode ajudar-nos a compreender este ponto. se damos por pacifico que as atuais estruturas sócio-políticas da América Latina constituem uma "situação de pecado", como o afir­ mam os Documentos de Medellin, então, de acordo com a termino­ logia de Mannheim, a práxis dos cristãos deverá ser "utópica" e não "ideológica". Mannheim explica sua distinção nos seguintes termos: "Um estado de espirita é utópico quando está em incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorre". 2 E depois con­ tinua: "Iremos referir como utópicas somente aquelas orientações que, transcendendo a realidade, tendem, se transformarem em conduta, a abalar. . . a ordem de coisas que prevaleça no momen­ to". 8 "As ideologias são as idéias situacionalmente transcendentes 2. Obra cit., p. 216.

3.

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Ib.

que jama4s conseguem de fato a realização de seus contelidos pre­ tendidos ... A idéia do amor fraterno cristão, por exemplo, perma­ nece, em uma sociedade baseada na servidão, uma idéia irrealizável e, neste sentido, uma idéia ideológica, mesmo quando o significado pretendido constitui, em boa fé, um motivo da conduta do indi­ viduo."• Pois bem, creio que é sumamente interessante e decisivo, para entender a situação política latino-americana atual, tal como se apre­ senta a diversos grupos comprometidos na ação política, o dar-se conta de que o caráter revolucionário de uma opção não está no contelido, mas, primariamente, na capacidade real de romper a es­ trutura atual, ou seja, de não ser reabsorvida pelo sistema. Ora, o panorama político latino-americano, mesmo em situações tão claras como a que pareceu privilegiar o Chile durante o governo Allende, constitui um tremendo desafio neste preciso aspecto. Todos os grupos libertadores, mesmo os mais revolucionários em sua pla­ taforma política, devem, se são sinceros, confessar que não estão absolutamente seguros de não estar servindo, involuntariamente é claro, para reforçar o sistema. Uma vez ainda, o exemplo chileno é eloqüente. Se se têm em conta os dois regimes, o que precedeu e o que seguiu a Allende, não resta dúvida de que, sem querer, este último ofereceu objetivamente ao sistema os inStrumentos, pretextos e mecanismos que necessitava para adquirir um poder imensamen­ te superior. J!: claro que o problema não é simples. Cabe perguntar, entre outras coisas, se não se deveria correr o risco; se os resultados mais a longo prazo não poderia mostrar talvez que o sistema hoje, apesar de seu poder exoorno, está profundamente mais minado do que ontem etc. Todas estas perguntas e muitas outras são reais, merecem exame, e não é fácil responder-lhes. Nós tampouco preten­ demos fazê.lo. O único que queremos é mostrar a dificuldade real de toda análise politica que pretenda dizer: por aqui passa o único processo revolucionário. A realidade é que dezenas de grupos, movimentos e partidos pretendem possuir a única chave que abr:e as portas da revolução. Ninguém pode, sem se basear em sua ideologia ou em sua fé, decidir que sua práxis esteja incluída na práxis unitária do único processo revolucionário. E decidi-lo à base dessa ideologia ou dessa 4.

Ib., p. 218.

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fé não passa, segundo as palavras de Lúkacs, de um idealismo vo­

luntartsttco.

Minha in�nção aqui não é, de maneira alguma, desacreditar a boa fé revolucionária de inumeráveis grupos e movimentos, ou pre­ tender que a revolução seja impossível, ainda que muito mais diffcil do que aparece em qualquer manual revolucionário. O que simples­ mente deveria ficar claro é que propor como primeiro passo o unir­ -se às fileiras do único processo revolucionário como condição ne­ cessária para uma autenticidade na práxis que depois se há de traduzir em autenticidade hermenêutica, é supor o impossível. Na realidade, o compromisso revolucionário vem precedido de uma ideologia, tirada de Marx, do Livro Vermelho, do Evangelho ou de qualquer outro lugar. Mais adiante veremos se convém ou não chamar de fé a essa ideologia. Mas o certo é que existem na práxis infinidade de processos mais ou menos revolucionários, e que esco­ lher um ou outro deles depende de uma motivação e de uma con­ cepção do processo, ambas provenientes de prévios condicionamen­ tos na mente. Em outras palavras, Assmann pode preferir que quem chega ao processo revolucionário traga uma fé marxista em lugar de uma fé cristã; o que não se pode pensar é que é melhor que comece sim­ plesmente sendo revolucionário, porque isso não é possível. Esta constatação nos deve levar a examinar melhor o problema dos começos, em outras palavras, o problema da fé ou da ideologia

inicial.

2. ORIGEM COMUM DE FJ!: E IDEOLOGIAS Pareceria que do argumento de Assmann surgiria claramente que o perigo de pôr condições irreais à realidade procede da fé cristã precisamente por ser fé, isto é, por procurar as possíveis soluções numa fonte que não é a realidade mesma ou, pelo menos, não a realidade histórica mesma. Pois bem, se o que foi dito no parágrafo anterior é certo, nin­ guém pode entrar no processo revolucionário sem "fazer-se uma idéia" do fim e dos meios apropriados para esse processo. Para simplificar nossa linguagem, chamaremos tal idéia, daqui para fren­ te, de teleologia, ainda que em um sentido diferente do sentido pejo­ rativo que empregamos no primeiro capitulo. Aqui aludimos unica-

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mente ao sistema de fins e meios que é condição necess4ria para a opção e a ação humanas. Não é necessário, portanto, em nossa terminologia, que a ideologia que leva ao compromisso tenha um nome reconhecido ou se encaixe num lugar predefinido de uma pra­ teleira ideológica. Pode ser uma ideologia "clássica" como o mar­ Xismo ou o capitalismo, uma ideologia improvisada e até uma ideo­ logia saída de um cérebro doente. A única coisa que pretendemos é que "entrar no único processo revolucionário" supõe uma ideologia prévia para identificá-lo. Ora, se fazemos funcionar juntos os termos recém-definidos de fé e ideologia, veremos que a dificuldade a que alude Assmann deve provir da fé e não das ideologias. Em outras palavras, supõe que o cristão não distingue entre sua fé e sua ideologia, ou que pede ideologias a sua fé. Pareceria que as ideologias, quando são verda­ deiramente ideologias, não cobram "contas antecipadas" à revolução, mas se adaptam a suas necessidades históricas através de um pro­ cesso de maturação. Por outro lado, quando uma ideologia está ba­ seada, sem o saber, em uma fé, adquire caracteres absolutos e con­ diciona todo o resto, pretendendo forçar a história. Não se trata, é claro, de solucionar problema profundos por meio de definições verbais. Mas não resta dúvida de que algo de certo há nas últimas afirmações. A fé cristã nos faz remontar o curso da história à fonte de uma revelação de Deus. Trazemos, assim, do passado, respostas dotadas de uma garantia absoluta. Para não fazer-lhes perder tal garantia, involuntariamente sentimos a necessidade de aplicá-las o mais fiel e, por conseguinte, o mais literalmente possível à realidade com que nos defrontamos hoje. Dai o difícil problema metodológico para uma teologia da libertação: Que relação eziste entre fé e ideologias? Que este é um problema real para a teologia latino-americana, o mostra a experiência cotidiana da linguagem. "A fé não é uma ideologia" - é um lugar comum nas exortações mais recentes contra a teologia da libertação feitas pela hierarquia eclesiástica. "Ãfeiiãõ-é uma ideologia - e nós precisamos justamente uma ideologia", tão é a exigência, cada vez mais clara, de uma grande parte da juventude cristã, desorientada por não achar no Evangelho - ao qual se lhes diz que se há de recorrer sempre - a orientação suficiente para seu compromisso politico libertador.

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"A fé não é uma ideologia, e por isso temos uma fé cristã e uma ideologia marxista", - tal é a atitude de grupos crescentes de cris­ tãos, mais ou menos marginais, na América Latina. Tudo isto, e a suspeita de que uma fé prévia à ideologia neces­ sária para o compromisso histórico tem uma influência conservadora sobre a dita ideologia, nos obriga a começar pelo começo e a per­ guntar-nos onde nascem ambas, fé e ideologias. Talvez seja útil, nesta investigação, começar recordando a implí­ cita análise fenomenológica feita por Albert Camus em sua obra de teatro Calfgula. De saída, a hipótese de Calígula é que a maioria dos homens não estão satisfeitos porque não chegam, durante o termo de suas vidas, a alcançar o ideal que se tinham proposto. Ao não alcançá-lo e ao estarem sempre no árduo da subida, é lógico que nunca estejam sa­ tisfeitos e que a morte os encontre na mesma situação. Pois bem, se a pergunta é por que os homens não costumam alcançar o ideal que se tinham proposto na vida, a resposta não é que esta seja muito curta, mas que os homens não são nunca coerentes em se­ guir o ideal proposto. Solicitados por mil afetos diferentes, se dis­ traem de mil maneiras e o resultado é que, no fim da vida, só se dedicaram alguns dias, ou semanas, ou meses, à busca efetiva do ideal. Não é estranho, portanto, que nunca cheguem a ter a expe­ riência de quanto seria satisfatória a existência humana se a gente fosse suficientemente lógico na busca do ideal proposto. Como imperador de Roma, Calígula está em insuperáveis con­ dições para tentar a aventura e ensinar assim aos demais homens o caminho da liberdade, isto é, da vontade de que chegue a seu fim, isto é, à felicidade. Porque Calfgula se deu conta de que as distrações na prossecução do ideal vêm com ataduras ffsicas e afetivas e é delas que sofre a liberdade. Como imperador, Calígula pode mini­ mizar as primeiras (as ataduras físicas): é quase onipotente. Só lhe restam as segundas (as afetivas). E para vencê-las, empreende um duro caminho. Deve desarraigar amor, amizade, sentimentos mo­ rais, numa palavra, tudo o que chamamos afetividade. E quando. ao fim, crê tê-lo conseguido, aconteceu que já nenhum ideal lhe inte­ ressa e, por outra parte, a sua inumana busca de liberdade lhe atrai a morte. A "parábola" de Calígula é clara, pelo menos num ponto, essen­ cial para nossa análise: nenhum ser humano pode experienciar viva­ mente se e como a vida vale a pena ser vivida. Em outras pa-

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lavras, ninguém pode fazer uma viagem exploratória até a realiza. ção de um ideal humano, experimentar se é satisfatória e depois co­ meçar: o caminho real até ele. A experiência para cada ser humano supõe a eleição não empirica de um ideal supostamente satisfatório. E é precisamente esse ideal que organiza esse sistema de meios o fins com o qual se atua, e que temos chamado ideologia. O problema principal, não obstante, continua sendo o mesmo: como escolhem os homens seus ideais, sem possibilidade alguma em­ pírica de comprovar seu possível valor satisfatório? A resposta so­ ciológica é, em realidade, muito simples. Tudo se reduz a escolher um modelo de vida, a fazer para si, com elementos humanos, uma imagem da vida que pareça satisfatória e possível ao mesmo tempo. O que esta resposta de senso comum nos diz é que tal constru­ ção começa muito cedo na vida dos homens, e que os elementos à mão para tal imaginação são, nesse momento, muito reduzidos. Em outras palavras, mais do que diante de um edificio imaginário, estamos, em realidade, diante de um problema de fé. Não teológico, mas humano. Começa.se tendo fé nas pessoas reais muito próximas, considerando-as oniscientes e satisfeitas com os valores que mostram. Cristãos ou não, todos os seres humanos começam sua elabora­ ção de valores confiando em outras pessoas humanas. Para as crianças, os valores dignos de fé estão encarnados nas pessoas de quem mais dependem afetiva e efetivamente. Normalmente, os pais. Talvez, em circunstâncias conflitivas, um mestre, um assistente so­ cial, um irmão maior, um amigo protetor... Tomemos a criança considerada cristã. O teólogo que tratasse de encontrar nela as características que os manuais ensinam como essenciais da fé, ficaria decepcionado. A relação com Cristo é muito distante. Muito menos aparece a concepção de Cristo como revelação de Deus. E de nenhuma maneira aparece a autoridade de Deus que re­ vela. Na realidade, a criança cristã tem fé em sua mãe, em seu pai, ou em ambos, e isso é tudo. Se se chama a si mesma de cristã, é por­ que seus pais qualificam assim o sistema de valores que possuem. Se os pais mudam de nome e chamam seu sistema de valores de "budismo" ou de "ateismo", a criança mudará igualmente de nomo sem maiores problemas. A preocupação pela "ortodoxia" é aqui de tipo psicológico: a ortodoxia da criança é sua i dentificação com os valores paternos. Precisamente porque neles está sua "fé". 1: interessante observar que, pelo menos neste estágio, não se observa distinção alguma entre /é e ideologia. Se comparamos uma

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criança cristã com wna criança marxista, descobrimos que, em am­ bas, a mola propulsora é uma /é - humana, é claro - e que o resul­ tado é wna ideologia - quer dizer, um sistema lógico de valores inter-relacionados. Com a adolescência, com suas crises e os novos problemas que afrontar, com o descobrimento da própria personalidade, com a fas­ cinação de outras figuras não parentais, como heróis ou seres mito­ lógicos, a fé ou a ideologia infantil se transforma. De saída, decresce rapidamente a fé nos pais como condutores de valores e satisfações perfeitas ou mesmo suficientes. Mas nem por isso desaparece a necessidade de uma imagem hu­ mana em que confiar para se orientar numa vida mais e mais com­ plexa. Em outras palavras, a liberdade de ação para escolher ima­ gens é muito mais ampla, mas não decresce em nada a necessidade de construir, com pessoas vivas, uma imagem aceitável da felici­ dade possivel. Suponhamos que a eleição do adolescente caia em Cristo ou em Che Guevara: o que acontece com a fé e com a ideologia? Ora, nossa resposta deve ser a seguinte: ainda não acontece nada de sig­ nificativo. O Cristo da adolescência, ainda que possua mais traços saídos diretamente do Evangelho, não é ainda o fiel revelador de um Deus revelador. Tampouco o Che Guevara da adolescência, ain­ da que possua traços marxistas caracterlsticos, é já o ortodoxo dis­ cipulo de Marx. Isso quer. dizer que, uma vez mais, voltaremos a encontrar aqui /é e ideologia inseparavelmente misturadas. A ideo­ logia marxista de Che Guevara é adotada porque se tem fé em que essa figura humana não mentiu em mostrar como o mais satisfatório possivel uma existência regida por tais valores. E tem-se fé em Cristo, porque sua vida inteira aparece estruturada - ideologia em forma tão perfeita, que mesmo sua cruz e sua morte aparecem como a maneira mais satisfatória de viver uma vida humana. Esta análise fenomenológica que nos mostra inseparavelmente unidas fé e ideologia, é importante, não só porque é precisamente na adolescência que se tJOmam as opções básicas pró ou contra a libertação, mas também porque a imensa maioria dos chamados cristãos ou marxistas, ou seja o que for, não ultrapassa, no resto de suas vidas, este nivel. Viver a fé ou a ideologia conscientemente e até suas últimas conseqüências respectivas é o caso de poucas pessoas maduras. D 5. Mais ainda, pretendemos que, por mais que uma vida madura dife­ rencie a orientação da fé e a orientação da ideologia, não pode, sem dimi-

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Mas esta análise é importante, sobretudo, porque introduz uma discussão capital no problema colocado por Assmann. A concepção da "contribuição especifica cristã" prévia ao compromisso aparecia como fonte de terceirismos e de atitudes finalmente anti-revolucioná­ rias. Pois bem, será que se trata da contribuição cristã que não dis­ tingue entre fé e ideologia, ou da que distingue? O primeiro proble­ ma é sociológico. Somente o segundo é propriamente teológico, pois só o segundo tem a ver algo com a fé cristã. O primeiro trata de elementos culturais associados com o cristianismo. Duas conclusões importantes podem ser tiradas desta distinção, para o plano em que muitos "cristãos" não distinguem entre fé e ideologia, assim como muitos marxistas tampouco distinguem entre fé numa figura histórica e análise ou ideologia marxista. A primeira conclusão é que, sociologicamente falando, pode ser certo que esse tipo de cristianismo, que não chega a uma fé madura, quer dizer, capaz de diferenciar a figura histórica de Cristo do con­ texto histórico em que teve lugar sua mensagem, seja sempre con­ servador ou, pelo menos, conservador dentro da revolução. Mani­ pular massas "cristãs" em sentido revolucionário pode ser um erro perigoso, porque a figura histórica de Cristo só se presta para acom­ panhar um processo revolucionário quando se relativiza seu contex­ to, e isso só é possível com o amadurecimento da fé. Deste problema tomaremos a nos ocupar mais adiante. A segunda conseqüência é que uma dificuldade semelhante, ainda que não exatamente a mesma, pode ter um processo revolucionário nuição de sua hwnanidade, esquecer que são complementares, se não idên­ ticas. Tomemos, por exemplo, esses dois "fracassos" que assinalamos em dois casos históricos: o de Cristo e o de Che Guevara. Ante um fracasso, uma mente madura e lúcida faz doo tipos de perguntas. Uma dessas dire­ ções vai averiguar se o fracasso - mantendo os valores em jogo - não poderia ter sido evitado por uma mais eficaz disposição de meios e fins intermédios. Em outras palavras, á a direção ideológica. Outra das dire­ ções vai averiguar se o fracasso concreto á só falta de eficd.cia ou se possui uma significação e um valor como acontecimento humano. Em outras pa­ lavras, á a direção da fé. Do que ficou dito atá aqui pode ficar claro que as dimensões de eficácia e de significação estio intimamente relacio­ nadas sem se confundirem. Quem se preocupa pela significação excluindo a eficácia - tentação de cristãos infantis - e quem se preocupa pela eficácia descuidando a significação - tentação de tácnicos, politicos ou não -, perdem uma dimensão humana essencial. O manter ambas unidas não é fácil, entre outras causas porque ambas dimensões têm diferentes regras de jogo mesmo no uso da linguagem. Um homem cabal deve falar duas linguagens. Mais ainda, deve conectá-las sem confusão e sem desna• turalizar nenhuma delas. Eis aqui um dos desafios maiores de nossa cul• tura técnica ou, como alguns pretendem, pós-industrial.

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com ideologias revolucionárias que vivem ainda a etapa da fé. Pre­ cisamente por não relativizarem o contexto em que as fontes ideo­ lógicas conceberam o processo revolucionário, muitos marxistas, por exemplo, levarão tal processo ao fracasso. Em outros termos, o ter­ ceirismo não é o inimigo único da revolução. Esta tem seus pró· prios inimigos internos, dado que o processo revolucionário não é um processo único e as opções de acierismo a ele levam consigo, no nível que estudamos, o absolutismo próprio da fé e a incapacidade de analisar, de maneira criativa, as circunstâncias históricas, relati­ vizando as fontes ideológicas. Que este seja um elemento decisivo para uma revolução o mostram todas as tentativas revolucionárias ocorridas no último século na América Latina. Temos que chegar, portanto, ao nível em que fé e ideologia se distinguem, seja qual for a resposta que dermos ao pr.oblema de suas mútuas relações. 3.

ptg SEM IDEOLOGIAS: ptg MORTA

Um elemento importante e talvez decisivo na distinção final entre fé e ideologia é o acento posto no absoluto ou no relativo de nossos sistemas existenciais. Reconhecemos uma ideologia por suas não-pretensões a um va­ lor absoluto objetivo. Em outras palavras, uma ideologia vale o que valem as razões ou argumentos em que se apóia. Esta é, po:,; outra parte, uma característica que diferencia os fundadores de ideo­ logias dos fundadores de religiões. Os primeiros procuram conven­ cer; os segundos apelam à posse de um valor absoluto. J!: claro que o fato de que uma ideologia se apóie em argumentos de valor rela,. tivo não tira o fato de que subjetivamente a gente a viva como valor absoluto. Mas, no homem maduro, existe um tácito acordo de que, ainda que uma ideologia valha o suficiente para dar a vida por ela, não vale mais que seus próprios argumentos e desaparece se desaparecer a força desres argumentos. Reconhecemos, por outro lado, uma fé por suas pretensões a um valor objetivo. Em outras palavras, na fé se tem um encontro com a fonte objetiva de toda verdade. Esse encontro se pode aceitar com graus muito distintos de certeza subjetiva. Em outros termos, um marxista pode morrer por sua ideologia enquanto que um cris­ tã.o pode negar sua fé; mas não se deve confundir o grau subjetivo de adesão com as pretensões a uma fonte absoluta de verdade objetiva.

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:m evidente que o encontro, na fé, com a fonte objetiva de toda a verdade se faz num processo de busca ideológica e tem imediatas conseqüências ideológicas. Ninguém se une com a verdade absoluta senão numa tentativa de dar ve:rtlade e valor a sua própria existência, quer dizer, com uma intenção ideológica. Porém, tem-se a impressão de que o fato da fé relativizaria não a necessidade geral de ideo­ logias para orientar a vida, mas sim tal ou qual ideologia. Não tem sentido ter fé se isso não me leva a orientar minha vida. Entretanto, a orientação que minha fé dá a minha vida é relativizada por essa mesma fé. Minha situação ante uma crise deveria variar. ideológica varia. Ou, pelo menos, objetivamente Quando uma ideologia, mais ou menos ligada com minha fé, se mos­ tra inoperante ou fundada em suposições não certas, o valor objeti­ vamente absoluto de minha fé deveria logicamente levar-me a novo encontro com essa revelação absoluta. Em outros termos, minhas crises ideológicas me fazem voltar ao Evangelho, se sou cristão. Está suposto que, se sou marxista, na medida em que continuo tendo subjetivamente confiança em Marx, cada crise ideológica me tomará a levar às fontes marxistas para tratar de descobrir o erro sem negar os princípios. Uma vez mais, fé e ideologias podem obter os mesmos resultados. Supõem, entretanto, um equilíbrio diferente dos fatores subjetivos e objetivos com os quais se orienta a vida humana em direção à verdade, e a uma verdade realizada e valori­ zada na práxis. A irracionalidade, porém, aparece como uma ameaça, nos ex­ tremos de ambos os equilíbrios. Irracionalidade, por exemplo, de ater-se a Marx, quando Marx mesmo nunca pretendeu valer mais do que seus argumentos e aplicou tais argumentos à análise das condições revolucionárias existentes numa época muito diferente da nossa. Que sentido tem declarar autêntica ou não autenticamente marxista uma análise que introduz novos fatos, novas constantes e novas conclusões? Irracionalidade, também, de nos referir a uma fonte objetiva de verdade que só fala através de ideologias. . . Porque isso é, de fato, a fé cristã. Cristo, revelação de Deus, nos mostra uma forma determinada de estruturar a vida para o amor. Se é certo que com ela não corrige a que levou os israelitas para fora da escravidão do Egito, devemos concluir que Cristo nos põe em contato com a verdade absoluta e objetiva medtante uma ideoloila relativa. De fato, o que me diz, concretamente, a fé? Qual é seu conteúdo de verdade? Se sou coerente até as últimas conseqüências com os

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princípios estabelecidos, minha resposta a tal pergunta deve ser: nada. Pelo menos, se me perguntam o que é que, do meu encontro com a fé, tirei a limpo como verdade absoluta, válida para orientar concretamente minha vida, minha resposta deverá ser: nada. Contudo, estamos levando o equilibrio da fé a um extremo irra­ cional: o de um encontro com a fonte objetiva de verdade absoluta. Se na realidade, se tratasse somente de um encontro, o problema não teria solução: a verdade absoluta ficaria totalmente oculta atrás da ideologia exibida nesse encontro histórico. E na história é claro que só se podem ter encontros históricos, quer dizer, ligados a con­ textos relativos. Esta reductio ad absurdum nos leva a redescobrir a importância decisiva do alcance (histórico) da Bíblia. Durante vinte séculos, dife­ rentes encontros de fé tiveram lugar entre os homens e a fonte objetiva da verdade absoluta. Todos esses encontros foram histó­ ricos e cada um deles foi, por conseguinte, relativo, ligado a um contexto preciso e mutável. O que se conhece cada vez, �m cada encontro, é uma ideologia. Mas o que se aprende não é essa ideo­ logia. Através do processo se aprende a aprender com as ideologias. Esta aprendizagem em segundo grau tem seu próprio conteúdo, e quando digo que Jesus tinha duas naturezas, uma divina e outra humana, estou dizendo algo do conteúdo dessa aprendizagem: Mas esses conteúdos não podem traduzir-se em tal ou qual ideologia, por­ que pertencem ao segundo grau ou à segunda potência do conheci­ mento: são essencialmente símbolos metodológicos. Por uma parte, não têm tradução ideológica imediata, e por outra parte, não têm outra função do que a de serem traduzidos em ideologias. Do que ficou dito até aqui, deveria, pelo menos, ficar claro que a pretensão, muitas vezes manifesta, da hierarquia eclesiástfca, de manter, não só a distinção, mas a separação entre fé e ideologias, para proteger melhor aquela, não tem sentido algum em teologia. A fé não é uma ideologia, é certo, mas só tem sentido como fun­ dadora de ideologias. Sobre a tentativa de separar a fé das ideologias, poderiamos citar a seguinte passagem de um artigo de T. W. Ogletree: "O homem deve responder pelo que faz. Mas esta capacidade de responder pelo que faz não se pode identificar com a capacidade de alguém medir-se a si mesmo de acordo com medidas preestabelecidas. A abertura do processo histórico significa uma continua erosão da au­ toridade de tad.s medidas, a não ser que elas se apresentem numa forma altamente abstrata, como por exemplo, 'lealdade ao ser' ou

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'fazer o que o amor (ágape) requer'. Dado que a abstração de tais fórmulas faz problemática sua aplicabilidade a situações concretas, é óbvio que nio existe um mecanismo preciso que possa medir o valor da conduta humana. . . Não há maneira de evitar o risco moral nas ações humanas, em parte porque ninguém pode conhecer total­ mente a natureza de sua situação ou as passiveis conseqüências de seus atos, mas em paru!' também porque a tarefa apropriada frente a um determinado contexto pode ser inovar, dar origem a novas possibilidades que não podem ser compreendidas nos termos de valores e conhecimentos pr.évios". e Como o leitor terá sem dúvida percebido, a passagem de Ogle­ tree não se refere explicitamente a uma leitura cristã do Evangelho, ou à diferença entre a fé e as ideologias, mas pode perfeitamente aplicar-se a tais campos. A fé cristã, ainda que provida de um valor absoluto, carece de todo tnstrumento preciso para medir a vida histórica dos cristãos de acordo com standards preestabelecidos. E como, por outra parte, tampouco, as ciências humanas oferecem tais standards de valor, os cristãos não podem fugir da necessidade de encher com algo o espaço que medeia entre sua fé e suas opções históricas. Não podem, numa palavra, evitar o risco das ideologias. O problema está evidentemenbe no fato de estarmos acostumados a conceber a fé como um plano de certezas eternas destinadas a serem professadas, por uma parte, e a serem traduzidas em atos, por outra. Mas, como adverte Rubem Alves citando a Ebeling, "existem elementos na consciência da comunidade de fé. . . que suge­ rem que não é somente possivel mas verdadeiramente necessário entender a fé justamente num sentido oposto, como um modo radi­ cal de ser, como a 'aceitação da existência verdadeiramente histórica'. Se o caso é este, então sua linguagem deve expressar o esplrito da ltberdade para o histórico, ele gosto pelo futuro, de abertura para o provisório e o relativo". 7 1: interessante observar, como uma prova a mais do poderoso ecumenismo implfclto na metodologia da teologia da libertação, que certas passagens do Vaticano II em sua Constituição sobre A Igreja no mundo ele hoje só podem ser lidas de maneira lógica nesta pe111pectlva. 6. "From amiety to responsability: the shifting focus of theologlcal reflection", em Chicago theological seminaTJI register, março de 1968. Tam· bém publicado em New theologr, n. 6, p. 61. 'I. Rel�: Opio o instrumento de Hberacfdn?, trad. cast. de A theo­ lo(/11 of human hope, Ed. Tierra Nueva, Mont.evfdw 19'10, p. 106.

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A primeira passagem se refere à. orientação da fé não em dire­ ção a certezas do outro mundo, mas em direção aos problemas his­ tóricos e suas soluções, sempre relativas e provisórias dentro do processo da história: "A fé ilumina tudo com nova luz e manifesta o plano divino sobre a inteira vocação do homem. Por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas" ("Gaudium et Spes", n. 11). Teremos que supor, então, que a fé possui tais soluções? inespe­ radamente, o concilio descarta esta interpretação óbvia para a teo­ logia clássica, e afirma: "A fidelidade a esta consciência une os cristãos com os demais homens para buscar a verdade e resolver com acerto os numerosos problemas que se apresentam ao individuo e à. sociedade" C"Gaudium et Spes", n. 16). Esta passagem em si mesma, e mais ainda quando, como é óbvio, colocada em relação com a anterior, obriga a conceber a verdade re­ velada não como uma verdade final, por mais absoluta que seja, mas como um elemento fundamental para a busca da verdade. Em outras palavras, verifica-se o que dizíamos sobre a fé como um aprender a aprender, como uma aprendizagem em segundo grau que, por mais elevado que seja, sempre está a serviço da solução histórica de outros problemas, ainda que esta deva ser sempre provisória e incomplet1a. Em outras palavras, a fé é um processo libertador, e se converte assim em liberdade para a história, isto é, liberdade

para as ideologias.

4.

Fl!l E IDEOLOGIAS NA REVELAÇÃO BlBLICA

O que foi dito até aqui merece um exame final de vários ele­ mentos bíblicos essenciais para verificar nosso caminho em direção à afirmação que acabamos de fazer. Interessa-nos especialmente um ponto central: a relação da revelação de Jesus com seu próprio momento histórico, o qual, se olharmos bem, nos leva a dizer que nos interessa elucidar a relação entre fé e ideologias nesse fato central para o cristianismo que é a vida e a doutrina de Jesus err. um momento determinado do processo histórico geral. 1. Do ponto de vista de seu conteúdo, é bem conhecida a pre­ ferência e parcialidade da teologia da libertação pelo Antigo Testa­ mento em geral e pelo l!:xodo em particular. A razão desta preferência ou parcialidade é bastante óbvia. O Antigo Testamento e em especial o lbtodo, mostram dois elementos centrais totalmente fundidos em um só: o Deus libertador e o pro-

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cesso politico de libertação que leva Israel desde a escravidão do Egito até a terra prometida. Em nenh� outra parte da Escritura o Deus libertador se revela em relação mais estreita com o plano politico da existência. Jí: sabido, além disso, que, a partir do Exílio na Babilônia, a lite­ ratura biblica, na parte que pode chamar-se sapiencial, se torna individualista, interior e apolitica em grande medida, se não total­ mente. Mais ainda, o Novo Testamento pareceria à primeira vista desprezar ou até descartar, mesmo falando de libertação, toda rela­ ção desta com a politica. Pareceria que Jesus centraliza sua mensagem numa libertação das relações interpessoais, esquecendo quase por completo - e tal­ vez excluindo - a libertação com respeito à opressão política. 8 A mesma coisa acontece com São Paulo 9 e praticamente com todos os escritores do Novo Testamento. A teologia da libertação tem aqUi um problema pastoral de pri· meira grandeza: se uma preocupação e um compromisso constituem os elementos fundamentais de um encontro com o Evangelho, o re­ sultado pode ser, e é freqüentemente, desastroso. Precisamente por­ que os Evangelhos aparecem situando o interesse de Jesus num plano apolítico. :li: certo que muitas vezes se previne o jovem cristão de que deve "traduzir" a linguagem de Jesus a dimensões políticas. Mas, prescindindo de isso não ser fácil, o primeiro contato costuma desanimar. Esta é uma das razões práticas, e nlo das menores, para preferir passagens do Antigo Testamento e, especialmente, do 2xodo. Jí: certo que, nos últimos tempos, vários exegetas, tanto na Am� rica Latina como na Europa, 10 trataram de ler nas entrelinhas dos Evangelhos uma suposta atividade de Jesus, estreitamente ligada à dos zelotes. Penso pessoalmente que tais interpretações são força­ das, além de não resolverem o problema que acabamos de levantar em termos pastorais. Mais sensato, ainda que também não resolva o problema, é cons­ tatar que fazemos um anacronismo quando pensamos que o plano político decisivo - precisamente em termos políticos - era o da 8. Cf. mais acima a nota 5 do capitulo III. 9. Ver, por exemplo, Ef 8,5; Col 3,22; Tit 2,9 e Fllêmon, onde se adver­ te sobre a obediência devida pelos escravos a seus senhores, ou, como em Col 3,11; 1 Cor 7,21•22; 12,13; Gál 3,28, se minimfza, sem rejeitá-lo, o fato da escravidlo, diante da novidade de Cristo. 10. Cf. GuSTA90 G'U'rmlRIZ, obra cU., pp 192 e segufntes.

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oposição Judéta,.Império Romano. Talvez seja mais exato dizer que, se é verdade que existiam então os que pensavam assim, por exemplo os zelotes, a realidade política que realmente estruturava Israel e determinava os papéis e as relações dentro da sociedade, não era cer.tamente o Império Romano mas a teocracia judaica, baseada nas autoridades que manejavam a lei sagrada. Já vimos como Jesus destruiu o fundamento de tal estrutura opressora de poder ao ensinar ao povo a desprezar seus fundamentos teológicos. Isso constituiu a tal ponto uma ameaça política, que as autoridades de Israel se vale­ ram da autoridade romana para terminar com um perigoso adver­ sário político. Porque isso, e não outra coisa, foi Jesus. Mas o que me parece mais importante assinalar é que, seja ou não verdadeira esta última hipótese, e mesmo supondo que não o fosse e que Jesus, por várias razões válidas, 11 tivesse decidido não interessar-se pessoalmente por uma libertação de tipo polltico, te­ mos sempre que explicar uma ou outra atitude por uma teleologia, quer dizer, pela necessidade de combinar meios e fins frente a uma situação concreta, inatacável em outros termos que não sejam igual· mente concretos. Mais interessante, para o fim que nos propomos no capitulo, é ter em conta as duas explicações que se dão, em termos teológicos, da preferência por certas passagens da revelação ou, se se quiser, por certas ideologias expressadas em seu conteúdo. Creio que existem duas explicações em nfvel teológico. A prtmet­

ra, e mais ingênua, consiste em pretender que o l!:xodo possui a

chave para a interpretação de toda a Escritura, inclusive para a dos Evangelhos e todo o Novo Testamento. 12 Chamo de ingênua a esta primeira tentativa de explicação, porque é demasiado fácil a uma 11. Valeria a pena assinalar uma, e da máxima lmportAncia. Toda libertação, libertação politica, por exemplo, com sua concreta limitação histórica, teria dlmfnuido consideravelmente a tllliversidade da mensa­ gem de Cristo sobre a libertação total, válida para todos os tempos e para todos 08 planos da existência humana. Evidentemente é lmpcssivel falar de libertação sem exercer libertações concretas, se se pretende ter credi­ bilidade Jesus se submeteu a essa lei. Mas a necessidade de convocar para uma libertação tllliversal, junto com um testemunho de libertação concreta, é o que explica essa estranha dialética com a qual Jesus aponta primeiro às libertações práticas que realiza, e trata depois de apartar delas a aten­ ção para centrá-las numa mensagem mais ampla e profunda. � esta, a meu ver, e não a dada pela exegese liberal, a explicação do impropria­ mente chamado "segredo messl.Anico", sobretudo em Marcos. 12. A mais profunda e cientifica tentativa neste sentido me parece a de Severino Croatto, Lfberaclón 'li Hbertad. Pautas hermentuticas, Ed. Nue­ vo Mundo, Buenos Aires 19'73.

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teologia biblica de caráter cientifico deitar por terra tais pretensões. Em primeiro lugar, o �odo é uma reconstrução histórica muito un­ portante, certamente, mas que nem sequer pode competir com as reflexões vivas frente à proximidade, à previsão e finalmente à rea­ lidade do Exilio, para não dar senão um só exemplo. 11 Por outra parte, o �odo não é certamente o eixo da literatura sapiencial a qual corresponde, ao contrário, a uma época de dominação em que a vocação histórica de Israel ou se perde ou se projeta escatlologica,. mente. Menos ainda pode ser o eixo do Novo Testamento, a menos que opere neste uma terrivel mutilação pela qual o único tema seria o da libertação, mas num nível de terrivel abstração. E com isto tocamos o segundo argumento contra esta pretensão ingênua: ela equivale, na realidade, a suprimir a riqueza das expe­ riências biblicas e a substitui-las por um resumo abstrato. Com isto, como já temos dito, se perde a intenção pedagógica do processo escriturístico total e, certamente, se deixa de entender o para quê de tanto conteúdo concreto quando uma palavra pode valer tanto como todo o detalhado processo histórico. A segunda explicação, mais complexa e, pelo menos à primeira vista, mais imune às criticas cientificas, é que o principio pedagó­ gico de toda a Escritura não só justifica mas exige parcialidade. De fato, Deus se revela a homens preocupados por sua situação con­ creta. Somente tendo em conta esta situação, podemos entender a revelação de Deus. Somente em relação com os problemas que f� guram na pergunta da comunidade podemos compreender o que é esse Deus que responde. O desconhecimento do primeiro leva ao desconhecimento do segundo. Assim, o que pode parecer uma contradição em termos de res­ posta e revelação divinas, se ilumina descobrindo as diferentes si­ tuações e, por conseguinte, as diferentes perguntas dirigidas a Deus em diversas situações históricas. Esta explicação, mais complexa, faz justiça ao principio peda­ gógico da revelação. Com efeito; tomemos como exemplo um pro­ cesso educativo qualquer, o de uma criança. Se queremos compren­ der esse processo e não temos acesso direto às palavras ou ao mé­ todo do educador - e este é nosso caso, evidentemente -, devemos inferir a orientação educativa a partir do que nos diz a própria crian­ ça sobre mil coisas diferentes e em diversas ocasiões ao longo de 13. Cf., entre muitos outros, Von Rad., Teologia del Antiquo Teatamen• to, trad. cast., Ed. Sigueme, Se.Jarnaoca 19'12, t. II, livro II.

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um certo período de tempo. Pois bem, a primeira coisa que devemos fazer. é ter em conta que aquilo que a criança diz não é o que o educador mesmo pensa. O educador dirige a criança, e mesmo os erros da criança lhe servem para sua pedagogia. Mas isso supõe conhecer a cada momento a situação da criança, pois este é o con­ tinuo ponto de partida da educação. Que a criança, num dado mo. mento, afirme a existência real do Chapeuzinho Vermelho não diz nada sobre um possível erro educativo. Nesse momento, e frente à situação real, o educador entendeu que não tinha sentido discutir com a criança sobre esse tema, e sim sobre os ensinamentos desse conto. E assim por diante. Podemos supor que o povo de Israel, nas Escrituras, recolheu para nós um processo educativo dirigido por Deus. S6 que Deus não aparece na .. gravação", mas s6 o que, em cada época, se podia dizer que era o resulta4o dos próprios pensamentos e respostas desse povo ao ensino divino. 2. Tudo isso nos leva a um segundo problema. Qual é então, a relação exata que existe, por exemplo, entre a revelação de Jesus no Novo Testamento e a revelação de Deus no Antigo? Ainda que pareça mentira, esta pergunta tio simples e essencial está longe de ter recebido uma resposta clara ao longo dos vinte séculos de vida do cristianismo. E isso condicionou a teologia inteira. As respostas se orientam em duas direções opostas. Uma acentua o fato de que Jesus constitUi um elo a mais na cadeia que compreen­ de uma só revelação, fundamentalmente, e toda ela, verdadeira. Jesus mesmo dá azo para essa interpretação quando diz, segundo Mateus: "Não penseis que vim para ab-rogar a lei ou os profetas; não vim para ab-rogar mas para cumprir. Porque em verdade vos digo que enquanto não passarem os céus e a terra, nem um Jota nem um ponto desaparecerá da lei, até que tudo seja cumprido" (Mt 5,17-18). Tendo em conta que a expressão .. a lei e os profetas" não se refere expressamente aos aspectos legais da revelação, mas que é o titulo comumente dado naquele tempo às Sagradas Escrituras existentes, quer dizer, ao que hoje chamamos de Antigo Testamento, Jesus, com estas palavras pareceria apresentar-se como um elemento a mais, em direta e positiva continuidade com o anteriormente revelado. O que a passagem parece significar é que as Escrituras, mais que uma lei em sentido moderno, expressam um plano divino a lon­ go prazo. Jesus vem, não para modificar esse plano, mas para levá-lo a cabo. Se entendemos esse plano como um plano educativo, tere­ mos que concluir que Jesus se insere nele, não o desloca. Por exem-

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pio, o único que faz nos versículos seguintes, encabeçados pelo "eu porém vos digo" é refinar os termos, ainda muito grosseiros, mar­ nos e materiais, da lei moral veterotestamentária. Outros elementos nos levam, contudo, em direção oposta. Mos­ tram-nos uma solução de continuidade, um saldo qualit-ativo dificil de precisar, no ensino ou revelação de Jesus com respeito à anterior. Em todo o caso, esse salto qualitativo parece aproximar-se mais à idéia de correção que à de continuidade. O próprio Mateus assinala, por exemplo, no final do que se cos­ tuma chamar de Sermão da Montanha, que: "Quando Jesus terminou estas palavras, as multidões estavam atônitas por causa de sua dou­ trina, porque lhes ensinava como quem tem autoridade, e não como os escribas" (Mt 7,28-29). :t: certo que esta especial autoridade, em comparação com a dos escribas, poderia interpretar-se como uma renovação, num Israel por longo tempo sem profetismo, da autori­ dade profética. Não resta dúvida que Jesus mesmo se apresentou e foi desde o princípio compreendido como um profet-a. Entretanto, no que toca a nosso problema, nunca ocorreu aos profetas desafiar o conteúdo mesmo da lei. E esse é, apesar da declaração anterior­ mente citada de Mateus, o caso de Jesus. Marcos, pelo menos, o entendeu assim quando, num parêntese, admite que Jesus, contra­ riamente a uma lei bem explicita e longamente comentada na Escri­ tura, declarou puros todos os alimentos (Me 7,19). Mais ainda, se se tivesse que entender ao pé da letra, isto é, como autênticos preceitos morais, as expressões autoritárias de Jesus sobre a gratuidade do amor (Lc 6,27-36), que Paulo sintetiza em sua carta aos Romanos: "Não pagueis a ninguém mal por mal ... não te deixeis vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem" ( Rom 12,17. 21 >, Jesus certamente corrigiria passagens que o Antigo Testa­ mento atribui ao próprio Deus e que mandam, por exemplo no Deu­ teronômio, exterminar os povos vizinhos que podem constituir uma ameaça para a liberdade e a religião de Israel (Dt 7,14s, por exemplo). Entre as teorias da continuação e da correção, esteve em moda, faz um certo tempo, sobretudo em círculos católicos, a teoria que se chamou de teoria "do sentido mais pleno" - sensus plenior segundo a qual a revelação de Jesus revela, "para trás", o verdadeiro sentido da antiga revelação, sentido que não foi compreendido nem mesmo por aqueles que a puseram por escrito. Em outras palavras, Jesus, com sua revelação, proporciona uma luz nova para compreen­ der o verdadeiro significado de pessoas, doutrinas e acontecimentos

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do Antigo Testamento. Assim por exemplo, Jesus permite compreen­ der o verdadeiro sentido de Moisés e da lei, de Adão e do pecado. Ainda que estejamos sempre obrigados a admitir, de um modo ou de outro, um sentido mais pleno na revelação posterior de Deus, esta teoria, como explicação das contradições que assinalávamos, tem duas dificuldades muito sérias. Em primeiro lugar a não ser que se recorra cientificamente - quer dizer como processo herme­ nêutico cientifico - ao milagre devemos supor que o sentido mais pleno se estende também às diferentes etapas do Antigo Testamento. Neste caso se pergunta se se pode sustentar por exemplo que o verdadeiro sentido do �odo está mais claro na interpretação mais espiritualista e subjetiva da literatura sapiencial que no próprio livro do 1:xodo muito mais antigo. Em segundo lugar, de qualquer maneira a grande dificuldade desta teoria reside em que não soluciona o dilema correção-conti­ nuação. De fato, a interpretação espiritualista que faz a literatura sapiencial do lh:odo supõe ou não que, em circunstâncias análogas, os israelitas deveriam atuar de outra maneira? Pergunta essencial para uma teologia libertadora. Mais ainda, para referir-nos ao Novo Testamento, Paulo pode ser chamado um representante deste "sentido mais pleno". Com efei­ to, ao examinar Moisés e sua lei à luz de Cristo, crê descobrir o verdadeiro sentido de tal revelação: a lei não era uma condição res­ tritiva imposta por Deus à promessa incondicional feita a Abraão, mas uma preparação de Cristo, mediante a revelação do pecado e de sua força avassaladora. Mas, logicamente, esta revelação do sentido mais pleno da lei leva Paulo a declarar que, com Cristo o homem deixa de estar sujeito à lei, a tal ponto que já não ten, sentido perguntar ante uma dúvida moral: é ou não lícito faznr isto? Em outras palavras, o novo sentido se toma correção das an­ tigas atitudes. Devemos, portanto, voltar à pergunta decisiva: existe uma uni­ dade de fé quando existe uma radical correção na revelação divina? Podemos nós, os cristãos, dizer que temos fé na revelação do Antigo Testamento, na revelação do �xodo, por exemplo? Vale a pena re­ ferir-se à lei de Moisés, quando seu sentido está declarado e 11ua existência mesma abolida no pensamento neotestamentário? E que sentido pode �r neste caso preferir o lh:odo ao Novo Testamento como fundamento de uma teologia da libertação? 3. A primeira resposta desta teologia ao problema colocado consiste em voltar à idéia de uma continuidade de toda a revelação,

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distinguindo nela dois elementos: um permanente e único: a fé, e outro mutável e variado segundo as diferentes circunstâncias histó­ ricas: as ideologias. Se a revelação de Deus nunca se apresenta pura, mas encarnada em ideologias histnricas, já não podemos invocar o Jesus histórico para rejeitar as soluções do Antigo Testamento. Se as exigências circunstanciais são decisivas, Jesus, ao dizer que ofereçamos a outra face, não corrigiu de modo algum o Deuteronômio, que mandava exterminar fisicamente determinados povos. Esta teoria supõe, com efeito, que há um vazio entre a con• cepção de Deus (que recebemos na fé) e os problemas que nos vêm de uma história sempre em processo de mudança. Isso nos obriga a construir uma ponte entre essa concepção de Deus e os problemas históricos. A essa ponte, a esse sistema de meios e fins, provisório mas necessário, chamamos de ideologia. Claro está que cada ideo­ logia presente na Escritura é um elemento humano, ainda que, num processo de intensa unidade psicológica, pareça ser a tradução sim­ ples e imediata da concepção de Deus revelada. Exterminar os inimigos foi concretamente, para os israelitas que chegavam à terra prometida, a maneira mais evidente de conceber o que Deus era e o que Deus pedia frente a tais problemas histó­ ricos. Podemos, portanto, dizer que exterminar foi a ideologia que adotou espontânea ou criticamente a fé nesse momento. Mas, se formos lógicos, devemos afirmar o mesmo do Evangelho. Quando Jesus fala do amor gratuito e de não resistir ao mau, estamos frente à m� necessidade de encher o vazio entre a concepção de Deus que Cristo tinha ou que a primeira comunidade cristã tinha., e OS! problemas que se enfrentavam em sua época. E isto quer dizer que se trata de outT&. ideologia, e não do conteúdo mesmo da fé. O fato de considerar assim as coisas dá à teologia da libertação uma liberdade maior para se mover, em princípio, dentro das Escri­ turas e em relação com a fé. Por outra parte, é esta, na realidade, a maneira científica com que a exegese enfrenta o conteúdo de ambos os Testamentos: como uma sucessão de ideologias religiosas, cada uma relacionada com seu contexto e compreensível somente em relação a ele. A ciência bíblica, enquanto ciência, se interessa muito menos com a unidade de todo este conjunto. Ni\o decide, por exemplo, se uma orientação determinada é herética - isto é, incom­ patível com o resto - ou não. Evidentemente, entre o :&:xodo e Jesus a ciência admite certa unidade, já que se trata de um processo dado num mesmo mundo cultural, diferente de outros mundos cul-

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turais contemporâneos, mas se nega a fazer um Jufzo de valor teológico - acerca da questão se uma dessas ideologias é superior à outra. Cada uma desempenha sua função histórica. J!l claro, uma teologia da libertação não pode aceitar e fazer sua tal imparcialidade, porque seu interesse não está em descobrir o acontecido, mas em decidir diante de novos problemas não tratados pelas Escrituras ou tratados dentro de contextos totalmente dife­ rentes. Nestas circunstancias, a teologia tem dois caminhos para rela­ cionar a fé com as novas situações históricas, por exemplo com o fenômeno da opressão sócio-politica nos países latino-americanos. Uma das opções consiste em buscar as situações biblicas mais pare­ cidas às nossas hoje e assumir como resposta correta da fé a ideo­ logia que a Escritura apresenta em relação com tal situação. Se se prova, por exemplo, que a relação entre a situação do !:xodo e a nossa hoje é mais estreita que a relação entre o povo de Israel no tempo de Cristo e nossa situação atual, então o !:xodo, e não o Evangelho, deve ser a fonte de inspiração para encontrar a ideologia atual mais de acordo com a fé. A outra opção consiste em inventar o que poderia ser hoje a ideologia empregada por um Evangelho contemporâneo. Que teria dito hoje, diante de nossos problemas, o Cristo que aparece nos Evangelhos de dois mil anQS atrás? Se a fé é uma só, apesar da diversidade histórica, deve existir hoje, como no passado, uma ideo­ logia que a expresse estendendo uma ponte entre ela e nossa situação. A dificuldade destas duas opções, e não parece haver outra, é que a primeira se toma cada vez mais irreal e anticientífica à me­ dida em que passa o tempo. Com efeito, a busca de situatões se. melhantes em culturas distantes de trinta a vinte séculos, tendo em conta além disso a aceleração da história, perde significação dia a dia. A segunda opção apela, certamente, a uma criatividade atual; mas os cristãos se dão cada vez mais conta de que se se deve pensar qual seria o Evangelho hoje, a imaginação e inventiva secula­ res são mais apropriadas e ricas. 4. Estas dificuldades nos levam a dar um passo a mais e a perguntar se o conteúdo da fé nos pode dar essa precisão que nos falta. Pois bem, definim0S anteriormente as ideologias por seu con­ teúdo. A dificuldade começa quando queremos fazer o mesmo com a fé. Que é, com efeito, a fé em termos objetivos, em termos de

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informação, e não somente como atitude subjetiva? Fica alguma coisa na escritura quando uma vez tivermos descartado dela o ele­ mento ideológico? Seria demasiado fácil dizer que o que fica é precisamente a con­ cepção de Deus que atravessa as gerações e a qual as ideologias se encarregam de conectar com as variáveis realidades históricas. E dizemos que seria demasiado fácil, porque tal idéia ou concepção de Deus nunca se apresenta separada das ideologias que interpre­ tam o que Deus é ao traduzir suas exigências na história. Ambas as operações estão inextrincavelmente misturadas e não se pode des­ cartar uma sem esvaziar a outra de conteúdo. Em outras palavras, a idéia de um Deus libertador não pode separar-se dos meios históricos, como a matança dos primogênitos, porque, fora desse fato histórico, não se conhece nenhum Deus li­ ber.tador. Por isso, na obra já amplamente citada, James Cone es­ creve: "No momento da libertação não há verdades universais; a única verdade é a da libertação mesma". 14 E, prevendo as criticas diante de semelhante afirmação, escreve: "Nas afirmações preceden­ tes, alguns leitores objetarão a ausência da 'nota universal' e per­ guntarão: 'Como concilia o senhor a falta de universalismo com respeito à natureza humana com um Deus universal?' A primeira res­ posta consiste em negar que em verdade exista um 'Deus universal' no sentido corrente do conceito". u Se é certo que esta concepção nos livra da obrigação de reduzir a Biblia inteira a uma única concepção da realidade em nome da unidade da fé, pouco adiantamos no que se refere à tarefa de fazer da fé a orientação que os cristãos necessitam para solucionar seus problemas históricos. Contudo, quando falamos de um conteúdo objetivo da fé e pre­ tendemos dissociá-lo do conteúdo das ideologias, como se uma e ou­ tras disputassem o mesmo terreno, não estariamas confundindo dois níveis simultâneos, ainda que diferentes, do aprender, quer di· zer, uma proto-aprendizagem com uma dêutero-aprendizagem, para empregar. a linguagem da teoria da comunicação aplicada à ciber­ nética, à biologia, à psicologia etc.? Não estariamos confundindo, para empregar uma linguagem mais simples, um simples aprende,· 14. Obra cit., p. 180. 15. Ib,, p. 156.

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com um a.prender a a.prender, Isto é, com um aprender em segun­ do grau? 18 Por exemplo, nos famosos experimentos de Pavlov, os cães apren­ dem que o som de uma campainha significa comida, e suas glândulas salivares começam a trabalhar desde que a campainha soa. l!: evi­ dente que se trata aqui de um simples aprender. Aprende-se a rea­ gir a wn detenninado estimulo, e nada mais. Pode aprender-se com o mesmo método a reagir igualmente diante de um segundo estimulo, por exemplo, uma luz que se acende. Agora, o mais característico deste nlvel é que nele a informação se soma ou se subtrai. A infor­ mação sobre dois estímulos, por exemplo, deixa o cão sem a menor informação sobre um terceiro estimulo possivel, por exemplo o olfatório. Um erro constitui uma subtração. Simplificando, poderia­ mos dizer que se a um cão se oferece comida. cem vezes depois do som da campainha, e outras cem vezes soa a campainha sem que ocorra nada, a informação, no fim deste processo, equivale a zero. Em mvel humano, todos experimentamos mil vezes a presença de uma aprendizagem de segundo grau, cuja caracteristica principal é que as novas informações multiplicam ou dividem o resultado das anteriores. Tomemos, por exemplo, o caso da matemática. Suponha­ mos que, depois de um certo periodo de ensino, o aluno é capaz de resolver determinada• classe de problemas. Mas de repente obser­ vamos que ele resolve um que não é uma mera cópia ou soma dos anteriores. Podemos, supor, entre outras hipóteses convergentes, que, no transcurso da aprendizagem matemática, não só adquiriu respos­ tas isoladas a problemas isolados, mas uma bibliografia, que lhe permite, diante de um problema novo, consultar o livro indicado e assim resolvê-lo. A informação que tem esse aluno não é uma sim­ ples soma dos problemas aprendidos e a bibliografia acumulada: é uma multiplicação entre esses dois fatores. Em outras palavras, tem informação objetiva que lhe permite solucionar problemas novos, inesperados e não estudados. Uma bibliografia inadequada e deso­ rientadora, pelo contrário, não é uma mera subtração de informa­ ção: é uma divisão no sentido de que objetivamente anula grande parte do aprendido antes. Por outro lado, os próprios erros, quando entram no processo e não desorientam, não são nem uma subtração nem uma soma: constituem uma multiplicação da informação. 16.

Sobre este deutero-learning em diferentes planos cientfficos, cf.

Gregory Bateson, Stepa to an ecology of mind, Ballantine Books, Nova York 1974, e especialmente a II, V e VI partes.

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O que neste aspecto se deve ter mais presente é que o simples aprender e o aprender a aprender não se disputam domínios de conteúdo informativo. Assim por exemplo, a bibliografia não é uma fórmula matemática. As fórmulas matemáticas que o aluno é capaz de reter ou de construir são, ao mesmo tempo, dependentes da bi­ bliografia, mas não competitivas com a bibliografia. Talvez este exemplo da bibliografia não seja o mais adequado para compreender com precisão as relações entre fé e ideologias, pelo fato de que a bibliografia permanece exterior ao conhecimento matemático mesmo. O exemplo mais apto seria o de um aluno ver­ dadeiramente criador em matemática. Uma vez em processo de aprendizagem, adquire não só fórmulas particulares, mas a possibi­ lidade de criá-las frente a novos problemas. A relação entre a sim­ ples aprendizagem e o aprender a aprender se toma mais estreita, os conteúdos de ambos os planos mais difíceis de distinguir, mas tudo que dissemos da bibliografia vale também aqui: há um nível em que a informação se soma e há outro nível em que a informação se multiplica. Podemos, sem temor de nos enganar, dizer que as ideologias presentes nas Escrituras pertencem ao primeiro plano: são as res­ postas aprendidas frente a determinadas situações históricas. A fé, por sua vez, é um processo total ao qual o homem se entrega, e esse processo é uma aprendizagem, através das ideologias, para criar as ideologias necessárias para novas e inéditas situações históricas. As próprias Escrituras podem e devem ser vistas e estudadas a partir de ambos os pontos de vista, já que ambos estão nela e não se disputam seu conteúdo. Em outros termos, o sair lutando da escravidão é uma experiên­ cia, como o oferecer a outra face é outra experiência. Quem fez ambas as experiências e refletiu sobre elas, aprendeu a aprender, multiplicou sua informação de fé e de maneira alguma a reduzir a zero. 5.

A FÉ EM FUNÇÃO DAS IDEOLOGIAS

Dois problemas fundamentais para a teologia da libertação pe­ dem, com o que precede, ser, se não resolvidos, pelo menos com­ preendidos melhor. O primeiro problema é o da continuação da revelação. Parece claro que, no pensamento de João, a revelação está destinada a con­ tinuar depois da desaparição física de Jesus. A teologia clássica, por

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sua vez, fala da revelação como de um "depósito", fechado com a morte da última testemunha da doutrina de Jesus. No quarto Evangelho, Jesus, ao se despedir, diz a seus discípulos: "Ainda tenho muitas coisas a dizer-vos, mas agora não as podeis entender. Quando vier o Espírito de verdade, ele vos guiará para a verdade total ... Tomará do que é meu e vo-lo anunciará'' (Jo 16,12-14). Segundo João, Jesus afirma que lhe ficam muitas coisas por diZer e que essas coisas serão ditas, ainda que de outra maneira. O Espirita de verdade tomará muitas coisas que Jesus não disse e as fará serem compreendidas, obviamente como pertencentes à mesma revelação divina. A linguagem é muito clara e aponta, não para uma melhor: compreensão do já dito, mas a uma aprendizagem de coisas novas. Podemos, neste caso, substituir o nome de coisas pelo de ideolo. gias? Já mostramos que as respostas concretas dadas por Israel ou pela comunidade cristã em cada momento "pedagógico" constituem necessariamente ideologias. Pois bem, aqui temos exatamente o mes­ mo quadro. Há coisas que Jesus não pode dizer, porque não qua­ dram na situação histórica em que vivem os discípulos: não as po­ deríeis entender agora. No momento, portanto, em que forem ditas pelo Espírito, se converterão automaticamente em ideologias ligadas a uma situação histórica que as faz compreensíveis e úteis. Pois bem, que relação terão essas novas ideologias com a fé, quer dizer, com uma revelação que supõe reconhecer o revelador? A resposta lógica é que o anterior revelador, Cristo, é substituído pelo Espírito. Mas o Espírito não é um revelador visível e identi­ ficável, o que pareceria indicar que só se pode ter fé realmente na revelação passada. A única hipótese coerente é voltar outra vez à noção de uma dêutero.aprendizagem, de uma aprendizagem em se­ gundo grau, ou, se se preferir, de um aprender a aprender. Como este segundo nível do aprender é, por definição, o contrário de um depósito, isto é, cons!ste em um processo interminável de novas informações que multiplicam as anteriores, o único sinal visível é a presença ou não de um mestre exterior ao aluno. Em um momento dado do processo, o mestre exterior desaparece da cena, e, não obs­ tante, o processo interno de aprendizagem continua, baseado na experimentação exterior. Pois bem, esse é o sentido óbvio da promessa de Jesus. O Es­ pírito de verdade não é um mestre exterior como o foi o próprio

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Cristo. Ou seja, nenhum mestre exterior depois de Cristo acrescen­ tará alguma informação ao processo educativo. Este se desenvol­ verá a partir de dentro, enfrentando a realidade com novas ideolo­ gias. Em outras palavras, Jesus dá por terminada uma etapa do processo mas promete que o processo poderá continuar caminhando por seus próprios meios, e esses meios não são outr.os do que a sucessão de ideologias frente aos problemas históricos. Em resumo, depois de Cristo a história mesma é a encarregada de continuar o processo; o Espírito de Cristo, quer dizer, o resultado dinâmico e interno do processo de educação reveladora, assegura o processo que conduz à verdade completa. O segundo problema, intimamente relacionado com o anterior, á o mesmo que vimos tratando desde o começo do capitulo. Do que acabamos de ver parece deduzir-se claramente que não tem o menor sentido cristão o querer separar as ideologias da fá, a fim de pre­ servar esta última. Sem ideologias, a fá estd. tão morta como a fá a que se refere a carta de São Tiago (2,17) e pela mesma razão: sua total impraticidade. Deste ponto de vista pode ser interessante resumir em breves palavras a interpretação que faz Paulo, ainda antes da redação atual dos Evangelhos Sinóticos, das obrigações morais cristãs à luz da revelação de Jesus. a) Só o amor concreto dá sentido e valor a qualquer tipo de lei existente no universo (Rom 13,8-10). b) As leis de toda classe, ao mostrarem relações mais ou menos constantes entre coisas e pessoas, são elementos decisivos de uma conduta cristã, mas não como leis morais (Rom 14,14), e sim como cons­ tantes ao serviço dos projetos de amor das pessoas humanas (1 Cor 6,12s; 10,23s), dado que oferecem a esses projetos critérias do que é conveniente ou não para sua reaJlqção (1 Cor 10,23-29; Rom 14, 7-9). e) Ao dessacralizar desta maneira a lei como um estático ques­ tioruirio acerca da moralidade intrinseca de tais ou quais questões, a conduta do cristão tem que mudar de base e passar da lei para a fé para lançar-se a uma aventura da qual depende o próprio destino, mas para a qual não existem crltário& fixos de antemão, o que sig­ nifica que é necessário aceitar o risco de projetos sempre provisó­ rios e muitas vezes errados (Gál 5,6 e paadm; Rom 14,ss). d) Esta fé não consiste, portanto, na adesão intelectual a um certo conteúdo revelado como solução definitiva para problemas teóricos ou práticos, assim como também não na confiança da própria salvação por causa dos méritos de Cristo, senão da liberdade para aceitar um processo de educação que chega a sua madureza e abandona o pedagogo para

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aventurar-se no relativo e provisório da história (Gál 4,1 s; Rom 8, 19-23; 1 Cor 3,11-15). A fé, portanto, não é um conteúdo resumido, universal e atem­ poral, da revelação uma vez que se desembaraçou a esta das ideolo­ gias. Pelo contrário, é a madureza para as ideologias, é a possibili­ dade de desempenhar plena e conscientemente a tarefa ideológica da qual depende a libertação real dos homens.

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CAP1TULO V

Ideologias, igreja e escatologia

Como acontece com freqüência, os problemas que alguém pre­ tende resolver num capitulo se voltam contra a gente no capitulo seguinte. Pode ter ficado claro, por exemplo, do capitulo passado algo sumamente paradoxal: por um lado era impossível superar o nível das ideologias, todas provisórias e parciais; por outro lado, a fé, como um segundo nível de ensino, transcende claramente as ideo­ logias particulares. Creio que é importante, para tudo o que segue, manrer esta t.ensão. Com fé ou sem ela, sempre estamos diante de situações iné­ ditas que exigem de nós respostas limitadas por nossa situação e nossas possibilidades históricas e que, por conseguinte, darão sempre lugar a respostas parciais, a ideologias. Por outro lado, todo homem normal, com fé ou sem ela, tem a possibilidade de atacar cada si­ tuação histórica sem se deixar levar por um fiuxo de impressões caótico, meramente relativista. J!: próprio do homem aprender a aprender, mediante a experiência histórica. Uma série de privilegia­ das experiências históricas, como são as que constituem nossa Escri­ tura, 1 só aumentam no homem essa aprendizagem em segundo grau, 1. De acordo com a problemática levantada na nota 22 do capitulo I, estai longe de ser evidente para muit.os leitores anglo-suões que a volta hermenêutica se tenha que fazer precisamente para as fontes "cristls", em outros termos, para as próprias escrituras blblicas. Creio que o que com isto se questiona é a possibilidade mesma da fé, partindo do pressuposto de Bultmann de que deve ter-se por mltica toda intervenção divina no Ambito dos fenômenos. Claro estl. que qualquer "revelação" em sentido estrito tem, por isso mesmo, que ser conaiderada mltica. Aaaim, ainda que Bultmann pretenda que seu pressuposto é compatlvel com a fé cristã, a lógica deveria obrigá-lo a dar, então, uma nova definição de fé ou de cristianismo, J4 que o revelador divino fica ausente da mensagem "cristl" e o menos que se pode deduzir é que qualquer outra mensagem na história, mesmo contr4ria à "cristã", não possui menor direito à credibilidade. Ainda que não possamos insistir aqui na solução de um problema que,

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essa capacidade objetiva para levantar sempre novos problemas sem se deixar levar, pela novidade, à desorientação ou à marcha ré em busca de segurança no estático. Agora, se já essa dêutero-aprendim,gem em rúvel secular requer uma comunidade, muito mais o requer o uso de uma determinada tradição de fé, relacionada com a interpretação de um privilegiado núcleo de experiências históricas. Essa comunidade da fé é o que chamamos de Igreja. Cabe perguntar, ent"ão: Qual é a capacidade da Igreja para viver permanentemente essa tensão entre a unidade dinâmica da fé e a pluralidade histórica das ideologias que a fé suscita e requer? Pode a Igreja manter ativo esse processo revela­ tório sem explodir em mil pedaços, tantos quantas são as ideologias que parecem ser necessárias para realizar historicamente a fé? Por outro lado, toda ideologia sofre, na história, um processo semelhante: nasce como protesto ante a ineficácia ou os limites da ideologia anterior, cresce com um entusiasmo em que parece per­ der-se a transcendência e termina enquistando-se e negando-se a morrer ante a nova ideologia nascente. Em outras palavras, é di­ fícil que as ideologias possam atuar: sem levantar desmesuradas esperanças: mas tais esperanças, precisamente pelo seu desmesurado tamanho, se convertem em cabeçudice e opressão histórica. Parece­ ria que a noção cristã de escatologia, quer dizer, de transcendência de todo o histórico, ligada à função da Igreja, estivesse precisamen­ te destinada a desideologizar a atitude humana, a fazê-la mais fle­ xível, a libertá-la de suas pretensões a-históricas. Fica, entretanto, a dúvida de se esta permanente função desideologizadora não é, por sua vez, opressora da criatividade ideológica, precisamente por es­ grimir uma inStãncia critica ainda antes de as ideologias terem tem­ po e entusiasmo humano para serem eficazes. Que este seja um problema sério para a teologia da libertação o diz claramente o fato de que os maiores ataques contra ela vêm de uma concepção determinada da Igreja e de sua função, assim como de uma determinada concepção do escatológico, do que Deus constrói para além da história e de sua correspondente função frencomo tal, não se apresenta à teologia latino-americana, cremos que o dua­ lismo transcendência-mundo fenomênico de Bultmann pertence aos falsos dualismos que caracterizaram o século XIX e a todo o pensamento evolu­ tivo de então: ou espfrito ou matéria, ou imanência ou transcendência, ou instinto ou razão etc. O que fez Teilhard no sentido de mostrar como tais dualismos podiam ser superados conservando sua verdade, vale tam­ bém, se se olha bem, para este problema de uma revelação histórica, e em especial o texto citado na nota 20 do capitulo II.

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te às ideologias históricas. Trataremos sucessivamente estes dois problemas, decisivos para a teologia da libertação. 1.

POSIÇÃO ANTI-IDEOU)GICA NA IGREJA CATOLICA

Com respeito à Igreja católica latino-americana, pode-se dizer que foi a primeira a lançar-se resolutamente pelo novo caminho aber­ to pelo Concilio Vaticano II. Esse caminho, como vimos, supunha que a fé tinha como função orientar a mente em direção a soluções plenamente humanas na história, soluções que a Igreja não possuia, mas para as quais contava com elementos revelados por Deus, ele­ mentos que não a preservavam das ideologias, mas que, ao contrário, lhe exigiam o buscar a verdade nas soluções, sempre provisórias, dos problemas colocados pelo processo histórico. Medellln constituiu o resultado desta tendência espontânea e entusiasta da primeira época que sucedeu ao Vaticano II. Talvez pareça estranho que uma Igreja que participou muito pouco na preparação profunda do Concilio, tenha sido a primeira e a mais radical em tirar conseqüências dele. Mais ainda, é interes­ sante observar uma certa "imprudência" eclesiástica nos Documen­ tos de Medellin. Para expressá-lo nos termos tirados da passagem citada de Rahner, um dos pensadores que mais influenciaram o Vaticano II, a Igreja se expôs a ser rebatida descendo a descrições sociológicas que os especialistas em tais matérias podem julgar ex­ cessivas, não suficientemente fundadas ou até claramente errôneas. Como pretender levar a todos os cristãos - entre os quais há especialistas em matérias sociais ou pessoas que podem recorrer a tais especialistas - por um caminho que não depende inteiramen­ te da fé? Pretender explicar esta "imprudência" seria dificil se não tivés­ semos em conta um dado sociológico importante e talvez decisivo: à diferença da situação mais ou menos competitiva da Igreja em outros continentes, a Igreja latino-americana se sente esmagador&­ mente segura de sua freguesia. O fato de que, apesar de todos os pesares e prognósticos, e em meio a uma sociedade majoritariamente urbana, mais de noventa por cento dos latino--americanos continuem se chamando católicos, pode, num momento de euforia, levar a come­ A imprudência a que me refiro não ter imprudências de cálculo. consiste, evidentemente, em misturar fé e ideologias, porque isso se fez sempre, e não podia fazer outra coisa se nossa análise for exata. O que distingue o passado do novo é que no passado se ado-

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tou ideologias que, por estar imersas no status quo, passavam não por ideologias mas por senso comum. Desta vez, ao contrário, ao se adotar ideologias contrárias ao status quo, se permitiu por pri­ meira vez a um número muito grande de cristãos perceber a mis­ tura e, não estando de acordo, denunciá-la. Contudo, desde bastante tempo, em meios pastorais latino-america­ nos se era muito mais prudente, e mesmo pessimista, nos cálculos. Com efeito, muitos pastores começaram a perceber cada vez mais clara­ ment.e, e muitos sociólogos a explicar cada vez mais inquestionavel­ mente, que a situação religiosa do continente estava mudando num ritmo cada vez mais rápido. Numa palavra, fez-se cada vez mais evidente que uma civilização urbana moderna como aquela que está vivendo a metade da popu­ lação latino-americana, era incompativel com o grande instnunent.o que utilizou durante séculos e séculos a Igreja para transmitir a fé; a pressão de ambientes fechados, quer dizer, unanimemente cristãos. Ao desaparecerem os ambientes fechados desaparece a possibilidade, para a Igreja, de a tarefa de transmitir o cristianismo de uma tal situação, os "ambientes cristãos" já não não são cristãos.

na sociedade urbana, entregar à sociedade geração a outra. Em são ambientes ou já

De fato, se se trata de transmitir de uma geração a outra não sentimentos vagos, mas uma verdadeira concepção de vida, o am­ biente deve possuir uma homogeneidade e uma força persuasiva que só se consegue se se mantiver fechado a outras influências. Isso já não é possível para nenhum ambiente em uma sociedade moderna latino-americana, sob o impacto das migrações, dos meios de comu­ nicação de massas, da pluralidade de valores e ideologias que pene­ tram em qualquer tipo de ambientes. Em tal caso, o cristianismo que se recebe é totalmente diferente do cristianismo recebido dentro de ambientes fechados. Enquanto nestes últimos o cristianismo sig­ nifica uma imagem coerente do mundo, dos valores últimos, dos pa­ péis sociais e da conduta e suas regras, nos ambientes abertos não passa de um sentimento vago de pert.ença. Ou seja, que os censos não refletem em nada a mudança ocorrida no "cristianismo" das novas gerações. Uma terrivel hipótese pastoral afeta cada dia mais a Igreja na América Latina. As cifras dos censos e mesm.o as da assistência à missa e freqüência de sacramentos não refletem, como antes, um pensamento e uma orientação cristã da vida. Diversas motivações

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- mais ou menos ligadas com a busca de segurança - podem continuar levando as pessoas para a missa, mas talvez a concepção de vida dessa gente não tenha quase nada a ver com a missa e esteja em mudança muito mais deteMDioada por fatores como a tl!levisão ou papéis sociais. Em outras palavras, os ambientes deixaram, im· perceptível mas rapidamente, de transmitir o cristianismo de uma geração a outra. Ma.is a.inda, torna-se impensável reconstruir a pressão dos am­ bientes cristãos, porque iSSo Dão de�náe áe uma moral ma.ia ou menos estrita. ou lua., mas áe fatores socw-econõmicos impermea­ veis à pregação. Já nao se pode pedu aos pai& ou à escola. que ofereçam o que, eVidentemente, nao podem oferecer. Isso faz que cada vez soem mais falsas, e saidas talvez do deses­ pero, afirmações como aquela dos biSpos das Filipinas: "O fervor rellgioso d.Q povo 11J.lpmo é um rico te1>0uro. Ainda que motivações subjacentes nao se1am sempre claras, pelo menos a pratica. faz supor que nosso povo esta. aberto a Deus". Quando se sai de um engano como este, deve-se reconhecer que a Igreja, mesmo na America. Latina, está freme a um tremendo de­ sa.no: o de renuncl&l" a contl&l" nos lioIIlOientes e começar a trans­ uutu o :t.:vangelho a cactoi pessoa. Como diz o sociólogo belga K.erkhof, estamos perante "consumidores voluntários de religião". Já não se poae convencer uma pessoa atr11.ves ae seu amoien�: e preciso cnegar à própria pessoa. Pois bem, a principal descoberta. pastoral nesta. mudança nova de preocupações e realizações, é que os passiveis consumidores estão muito mais interessados em ideologias viáveis do que na fé. Quase se poderia dizer que somente quando as ideologias fracassam siste­ maticamente, começa a surgir um interesse por algo que as trans­ cenda e as oriente melhor, quer dizer, por uma fé. Enquanto as ideologias funcionam, o atrativo pessoal pela fé se mostra extrema­ mente débil. Será que teremos que esperar, então, uma crise ideo­ lógica para que a /é adquira. significação e possamos realizar a t&­ refa evangelizadora nos novos termos exigidos pela nova situação sociológica? O problema assim colocado nos leva para muito perto do pro­ blema central das refieii:ões de Bonhoeffer na prisão. Mais ainda, tal· vez os termos em que o apresenta.mos aqui sejam mais eu.tos que os empregados pelo próprio Bonhoeffer e mais fiéis a seu pensa­ mento mais profundo. Se nos recusamos, como Bonhoeffer a nos aproveitar da debilidade, da crise, das enfermidades e da morte

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dos seres humanos para fazê-los religiosos, temos que nos tor­ nar capazes de proclamar a fé a pessoas em pleno processo criador. Mas não se trata de enganar a essas pessoas com a linguagem disfarçada da fé, quer dizer, com uma linguagem secular que esconde uma linguagem de fé, como muitas vezes parece ser a interpretação mais corrente da orientação de Bonhoeffer. A solução que apresentamos aqui é deixar que a fé se encarne em ideologias humanas e provisórias. Desta maneira a fé não se toma uma "graça barata" ou abaratada pela crise. Afinal de contas, temos no Evangelho um fato ao qual a exegese corrente, ou teologia biblica, não prestou talvez suficiente atenção. Jesus começa o anún­ cio de seu Evangelho pronunciando a mágica palavra Reino. Como para nós um "reino" só pode ter hoje um sentido metafórico, e, por conseguinte, puramente religioso, esquecemos que essa palavra era portadora da mais explosiva ideologia no tempo de Jesus. Jesus conhecia perfeitamente o fato. Estava consciente da am­ bigtlidade que a ideologia do Reino ia conferir à sua mensagem. Estava talvez consciente da periculosidade que levava consigo tal ambigüidade e que, pouco mais tarde, lhe traria a morte. Mas sabia que não poderia jamais exigir fé dirigindo-se -a. pessoas humanas com palavras incolores e neutras. Que não podia exigir fé, como nós pretendemos tantas vezes fazer, independentemente das ideologias que a fé veicula. Para medir a diferença entre a atitude de Jesus e a da Igreja na atualidade, o Chile pode, mais uma vez, servir-nos de exemplo. Quando a coalisão de partidos socialistas chamada Unidade Popular chegou ao poder, nem por isso ficou esclarecido o panorama politico chileno. Por uma parte, ninguém podia duvidar da legalidade com que um partido votado por pouco mais de um terço da população, acedia ao poder ou, mais precisamente, ao poder executivo. Já que os outros dois partidos não tinham formado u'ma frente única con­ tra a Unidade Popular, declaravam com isso que não julgavam de primeira importância impedir a realização dos fins que figuravam na plataforma política de Allende. Portanto, é falso que a minoria do governo eUendista, comparada com a suposta maioria dos outros dois partidos, fosse uma distorção política. Por outra parte, se é certo que a Unidade Popular se comprometia a levar o Chile, por vias �gais, ao socialismo, não podia ignorar que as estruturas chilenas continuavam sendo capitalistas e que o poder executivo não era, por si só, capaz de mudá-las se não se chegasse a obter maiorias absolutas no parlamento. De fato, tais maiorias absolutas somente

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poderiam ser conseguidas, pelo menos num primeiro período, se o grupo político majoritariamente católico, a Democracia Cristã, che­ gasse a pensar que tinha mais afinidades com a construção do socia­ lismo do que com a extrema direita. O juízo politico feito pelos cristãos se tornava assim decisivo para esclarecer o futuro chileno. Um elemento que podia influir neste juízo decisivo dos cristãos era que os biSpos do Chile, em várias ocasiões e especialmente no começo dos anos 60, denunciaram a profunda injustiça do sistema capitalista estabelecido. Com estatísticas oficiais mostraram, entre outras coisas, que noventa por cento do ingresso nacional se dístrl­ buia numa classe social que abarcava somente dez por cento da população. Assim, enquanto o ingresso per capita da imensa maioria da população estava situado ao redor de quarenta e cinco dólares anuais, o desse dez por cento de privilegiados chegava à quantidade média de três mil e quinhentos por ano. Pois bem, os mesmos bispos, com poucas exceções, se enfrentam, dez anos mais tarde, com esse panorama político que acabamos de descrever e no qual o ·juizo político dos cristãos será decisivo. Du­ rante o primeiro ano do governo de Allende < quando ainda não po­ diam entrar em jogo muitos elementos perturbadores da serenidade que depois se puseram a descoberto), os bispos chilenos enviaram às comunidades cristãs um documento de trabalho intitulado "Evan­ gelho, politica e socialismos". Não é possível resumir aqui um longo documento que certamen­ te pode fazer história nas relações entre fé e ideologia na Igreja latino-americana. Assinalemos, portanto, um fato capital e estranho que deve ter passado despercebido aos autores: afirma-se, por uma parte, que a Igreja não pode optar e, por outra, que o socialismo não é no Chile uma alternativa para o capitalismo existente. 2 A ex2. A primeira afirmação é expressa assim: "Ela (a Igreja) opta por Jesus Cristo ressuscitado" (p. 67). "Hoje em dia se coloca no Chile a alternativa entre capitalismo e socialismo. l!': importante recordar, antes de mais nada, que estas possibilidades não são as únicas - já que nada impede de intentar outra via - e que existem, além do mais, muitas formas e graus de capitalismos e socialismos" (p. 68). "Por isso, per­ manecendo unidos em nossa opção absoluta e fundamental por Jesus Cristo ressuscitado, podemos, na prática, chegar a opções politicas diferentes" (p. 69). "Se tomamos a palavra 'optar' em seu sentido próprio - quer dizer, de escolher um grupo excluindo a outro - isso significaria que a pergunta que se coloca procede de uma visão dualista e simplista da rea­ lidade, que pretende dividir os homens no grupo dos 'bons' e no dos 'maus', que quereria nos arrastar a pronunciar-nos a favor de um destes grupos e, com isto, contra o outro... Diante dos diferentes grupos humanos a Igreja não opta. Em e com Jesus Cristo, a Igreja se decide por aqueles

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pllcação desta manifesta contradição tem muito que ver com a re­ lação fé-ideologias. Com efeito, se a Igreja não pode escolher, segundo os bispos, é porque escolher significa, na prática, deixar fora da Igreja a uma parte do povo cristão que optou pelo contrário, e a Igreja, segundo eles, pertence a todo o povo do Chile. Isto equivale a dizer que não se deve põr a fé única ao serviço das ideologias que são várias pOl7 definição. Pois bem, este ponto já é sumamente importante, porque supõe coisas decisivas. Em primeiro lugar, é uma confissão de que as ideo­ logias são de fato, ainda que não devessem sê-lo, mais atraentes do que a fé para o povo cristão, de tal modo que separariam da fé, ou pelo menos de uma fé prática, a uma boa parte dos fiéis. Ou seja que, por um lado, se afirma o que devia ser: é mais importante a fé que nos une do que as ideologias que nos separam, por outra parte se admite que esta não é a disposição real dos cristãos. Em segundo lugar, isto supõe uma concepção teológica da fé, concepção que julga a fé como o mais importante, independentemente das opções ideológicas que se tomarem por fidelidade a ela. Cabe a per­ gunta: para que é mais importante? Não parece que se possa res­ ponder a tal pergunta com as orientações do Concilio que dão à fé a função de levar a mente a soluções plenamente humanas. A fé é declarada o mais importante, precisamente com relação às diferentes e mesmo contrárias soluções que se dêem aos problemas históricos. Pode-se supor que os bispos, apesar do Concilio, continuam conce­ bendo a fé como um meio direto de salvação eterna, e as ideologias, pelo contrário, como opções humanas que podem ameaçar esse ou­ tro valor superior. pelos quais o próprio Jesus Cristo se decidiu: por todo o povo do Chile..." (p. 65). A segunda afirmação (apoiada por inumeráveis arrazoados funda­ dos em experiências históricas, e que nio podemos transcrever aqui) diz o seguinte: "Por isso ... as reaUr.ações concretas do socialismo marxista exis­ tente até agora nio podem ser aceitas como uma alternativa verdadeira frente ao capitalismo..." (p. 82). Como indicamos anteriormente, este do­ cumento pode encontrar-se em uma recopilação publicada pelo episcopado chileno à maneira de um Livro Branco que pretende ser "um testemunho histórico da ação ..." (p. 6) do dito episcopado durante os anos do governo de Allende. J!': triste e causa mesmo mal-estar constatar, entretanto, que o último documento ai apresentado foi aprovado finalmente por uma sessão do episcopado "do dia 13 de setembro deste ano [1973], acrescentando-se, porém, algumas observações" (p. 177). Os leitores nio ignoram que o golpe militar no Chile, com a morte de Allende, tinha sucedido dois àfas antes. Quando seus partidários eram perseguidos e muitos deles mortos nas ruas, os bispos chilenos estavam reunidos fazendo as últimas observa­ ções a um documento que condenava os "crist.ios para o socialismo" (p. 205).

Mas, como dizia, talvez o mais importante é que os bispos, que pretendem nio poder optar, sustentem que, tal como se dão as coiSaS, o socialismo não pode ser uma alternativa no Chile para o capitalismo existente. Pode-se perguntv: através de que estranho processo mental chegam os bispos a se persuadir de que não optam . ao fuer semelhante afirmação? Partamos do prlncfplo de que os bispos sustentam que não é poulvel optar entre ideologias. Não lhes ocorre negar que a fé seja uma opção. O que afirmam é que a opção da fé deve ficar desem­ baraçada de qualquer outro elemento que não seja a própria fé. Em outras palavras, mna opção ideológica não deve ser condicionan­ te da opção da fé. Por isso, imediatamente depois de dizer que a IsreJa chilena não pode optar por um grupo (ideológico) contra outro, os bispos continuam: "a Igreja opta por Cristo ressuscitado". Esta frase, um pouco estranha em tal contexto, tem sua perfeita razão de ser na concepção que os bispos t"êm da fé. Optar por Cristo ressuscitado equivale a fazer uma opção possível a partir de todos os Angulos ideológicos. Se assim é - dir-se-á -, como é que os bispos terminam optan­ do pela ideologia capitalista contra a socialista? A resposta eviden• temente é que, ao dizer que o socialismo não é uma alternativa para o capitalismo existente, os bispos não têm absolutamente consciên­ cia de optar entre ideologias. Ainda que pareça estranho, com tal afirmação crêem evitar uma opção ideológica. O mecanismo mental é por demais claro. A realidade existente não é, para os bispos, uma ideologia: é simplesmente a realidade. Que deva ser corrigida, disso não lhes fica dúvida; mas, segundo sua mentalidade, a reall• dade, por si mesma, não divide a fé. Enquanto não surgirem ideo­ logias dessa realidade, a fé não tem nada que temer do fato de que existam seres humanos extremamente ricos e seres humanos extre­ mante pobres, oprimidos e opressores. O problema apenas começa quando uma ideologia desafia essa realidade. Em outras palavras, o grande pecado dos "cristãos para o socialismo" é que não existem "cristãos para o capitalismo". Bem, em realidade existem sim, mas não precisam chamar-se assim, aparecer como tais, para cumprir sua tarefa e exercer sua influência. Por outro lado, toda mudança radi­ cal de estruturas tem que apresentar-se como ideologia e bater à porta dos cristãos em nome de sua relação com os valores da fé. J!l preciso compreender a linguagem dos bispos para compreen­ der sua mentalidade e sua teologia. Ao dizer que o socialismo não .S uma alternativa para o capitalismo existente, não estão dizendo que os cristãos socialistas sejam hereges. Podem perfeitamente con-

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tinuar sendo cristãos apesar de seu erro. Porque este não é dog­ mático mas prático. Devem, porém, admitir que a realidade existente é suficiente para a fé. O não admiti-lo leva a relativizar a fé, a con­ dicioná-la a que as estruturas mudem, a que se aceite uma ideolo­ gia dessa mudança. O documento dos bispos apela a uma espécie de senso comum cristão, quer dizer a reconhecer que o decisivo, a fé, é possivel em qualquer circunstAncia e, sendo, como é, o elemento decisivo, não pode ser subordinado a tais circunstAncias e a suas correspondentes ideologias. Que isso é o grande pecado de uma ideologia mostra-o o tipo de análise que os bispos fazem da ideologia socialísta. Os passos dessa análise são muito claros. O primeiro é que num caminho para o socialismo os cristãos serio minoria e a ideologia socialista deverá ser chamada por seu verdadeiro nome, isto é, marl:ista. O segundo passo é relacionar o ateismo - que é o elemento do mar­ xismo que parece ter mais direta relação com a fé - com todos os defeitos históricos e elementos desumaoizadnres que as sociedades , em que triunfou o marxismo, ainda mostram. :t: interessante que os bispos, levados por seu entusiasmo anti-ideológico, esqueçam que denunciaram os mesmos elementos desumanizadores na realidade ca­ pitalista, independentemente de seu atefsmo ou de sua religiosidade. E é interessante observar que os elementos assim esquecidos na aná­ lise são precisamente os que relacionam fé e ideologias. Assim, por exemplo, esquecem a necessidade que tem, segundo seus mesmos documentos anteriores, a fé cristã de mudar substancialmente a dis­ tribuição do ingresso nacional chileno entre a população. Também esquecem a doutrina oficial da Igreja que, através de João XXIII, ensina que a visão que a fé cristã deve ter daS ideologias não é a de imaginá-las monólitos dogmáticos, mas valorizá.las por suas rea­ lizações históricas e pelas mudanças sofridas na mesma realização. Esquecem assim que o marxismo não é uma ideologia que subordina a sociedade ao ateismo, mas, pelo contrário, subordina o ateísmo à construção de uma sociedade mais justa, constituindo assim um de­ safio para uma fé que diz ter o mesmo objetivo: subordinar o sábado ao homem e a fé à solução dos problemas históricos. 2.

POSIÇÃO ANTI-IDEOLóGICA NAS IGREJAS EVANGJ!lLICAS

Resumir o parágrafo anterior significa descobrir uma espécie de circulo vicioso que ameaça toda a função pastoral da Igreja na

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América Latina. Por uma parb:, se reconhece que, cada vez mais, a opção da fé deve ser uma opção pessoal e livre. Nenhum ambien­ te pode hoje veiculá-la como antigamente. Isto gera uma espécie de pânico porque se descobre, ao mesmo tempo, que o que realmente interessa são as ideologias relacionadas com a fé. Que fazer então? A resposta mais comum é a tentativa de descartar as ideologias que dividem, para acentuar a importância da fé que unifica. Mas lsso supõe dar à fé um valor autônomo, independente das ideologias que ela é capaz de gerar. E iSSo leva, logicamente, a fazer cada vez mais diffcil a transmissão de uma fé cujo valor é difícil de reconhe­ cer quando o Evangelho deixa de ser essa espada decisiva que se introduz no mais profundo das relações humanas e cujo valor é tio grande que consegue dividir os seres mais próximos e torná-los ini­ migos CMt 10,34-36). Na pastoral latino-americana, pareceria que a fé deve tornar-se tanto mais importante quanto mais vazia, e, por conseguinte, gene­ ralizável. Cada vez mais os cristãos se aproximam assim da imagem terrfvel pintada por Jean Giono: um homem que atravessa um cam­ po de batalha com uma flor na mão. Essa flor é sua fé. Pode-se ima­ ginar a dificuldade crescente de transmitir tal fé a pessoas humanas livres e sadias; mais ainda, no caso de que se transmitisse, nem seria a fé cristã. A análise feita, no parágrafo anterior, do documento de trabalho dos bispos chilenos, talvez tenha mostrado aos leitores que é muito diffcil ver claro nas expressões atuais do magistério da Igreja cató­ lica na América Latina. Os mecanismos ideológicos são complexos, estio ma.is ou menos encobertos por meias-palavras e os argumentos decisivos ficam na sombra. Isso se deve, evidentemente, ao fato de que a hierarquia da Igreja católica na América Latina se sente bastante atada pelos do­ cumentos do Concilio e de Medellin. J!: evidente, por exemplo, que a afirmação do Concilio de que a fé leva a mente a soluções plena,. mente humanas, molesta o raciocínio teológico dos bispos chilenos. Sentir-se-iam muito mais à vontade em tal raciocínio se pudessem Citar um texto conciliar que dissesse: a fé, ainda que não leve a mente a soluções plenamente humanas, continua possuindo um va,. lor absoluto. Mas o fato é que o Concilio não diz tal coisa. E o mesmo acontece com Medellin, ainda que Medellin tenha mais valor e impacto "popular" do que propriamente normativo. O caso do Concilio é diferente e causa maiores problemas. Numa outra ocasião tenho feito notar que, apesar de afinnações

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como a que acabamos de citar, o Conclllo não constitui, de Jeito nenhum, um todo homogêneo. Assim por exemplo, na mesma Cons­ tituição conclllar ("A Igreja no Mundo de Hoje") em que ocorria a definição anterior do sentido da fé no parágrafo 11, lemos no pa­ rágrafo -12 que: "A missão própria que Cristo confiou a sua Igreja não é de ordem politica, econômica ou social. O fim que lhe marcou é de ordem religiosa". Este texto, usado freqüentemente pela hierar­ quia eclesiástica nos últimos tempos com a mesma orientação do documento dos bispos chilenos, é dificilmente compativel com a de­ finição anterior da fé. A não ser que se entenda por ele unicamente que a Igreja não possui respostas feitas em tais terrenos. Porém opor o "religioso" como uma furu;ão, às funções politicas, econômicas e soclals parece indicar claramente que não se trata de meios dife­ rentes, mas de '1Glores diferentes. O fato é, de qualquer modo, que a Igreja, depois do Vaticano II, está obrigada a mover-se com dificuldade dentro de um campo em que abundam elementos autoritários próprios de uma mentalidade não só diferente, mas mesmo oposta. � evidente que isto vale só para a Igreja que suportou o impacto do Vaticano II, quer dizer, a católica romana. As Igrejas protestantes, ainda que envolvidas num processo semelhante, se sentem com freqüência menos inibidas auto­ ritari1Llnente para chegar com clareza aos últimos nesta matéria, quando lhe dão uma resposta diferente à da teologia da libertação. Podemos tomar como exemplo o livro recente do pastor evangé­ lico C. Peter Wagner: A teologia latino-americana. Radical ou evan­ gélica? 1 Este livro, muito simples e ingênuo em alguns aspectos, tem o grande valor de apresentar com muita honradez a teologia protestante sobre a libertação na América Latina, teologia que ele chama "a teologia da esquerda radical". Para Wagner, o problema crucial de tal teologia é o seguinte: "A questão maiS importante não é realmente se um cristão deve ou não possuir uma ideologia de orientação marxista no campo poli­ tlco. A questão é saber se o cristianismo obriga a um homem libertado por Cristo a possuir qualquer tipo determinado de ideologia. A visão cristã do mundo transcende todos os sistemas sociais, eco­ nômicos e politicos. Na medida em que os fins de um cristão em suas relações com o mundo forem nobres e buscados com uma consciência clara, deve-se lhe permitir escolher os meios politicos 3. Latin Amerfcan theol0'1JI. Radical or evangelical?, Eerdmans, Michi­ pn 19'10. e. P. Wapr fol pastor evangélico na Bolívia.

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para realizar os fins que crê melhores sem invocar a esse respeito o verdadeiro cristianismo. Isso se aplica tanto ao cristão capitallsta como ao socialista, ao pacifista como ao revolucion4rio violento".' J!: evidente, portanto, que o problema-chave para Wagner 6 o da transcendência da fé com respeito às ideologias. J!l muito claro em dir.ê-lo, não só em abstrato, mas em d1zê-lo como critica à teologia da libertação. Com esta, segundo ele, "nos aproximamos perigosa­ mente do ponto de privar o cristianismo de sua transcendência e de convertê-lo numa instituição social a mais". 1 l!l claro que Wagner não atribui esta última intenção a nenhum dos teólogos cuja obra analisa, mas sustenta que, querendo ou não, esse 6 o termo do ca,. minho que empreendem e a conseqüência inevitável de suas premis­ sas metodológicas. O autor cita em seu favor umas frases de Gonzalo Castillo Cár­ denas falando da "tentação de klentf.ftcar o Evangelho e a Igreja, lmpllcita ou explicitamente, com um determinado programa revolu­ cionário que parece ser indispensável para o estabelecimento do Reino de Deus sobre a terra... Tenho a impressão de que alguns irmãos de Cuba cairam em tal erro e agora estão se arrependendo disso". E Wagner continua: "Os evangélicos podem sem temor fuer sua a conclusão de Castillo. Este sustenta que 'a Igreja não tem o direito de negar sua própria natureza em sua divina mensagem klentiftcando.se com um projeto humano concreto de transformação social'". 8 Talvez nenhum dos autores que Wagner estuda susumte t.al Mfen.. tiftoa.t;;oo. Não obstante, a ambigüidade da palavra pode ser uma causa adicional de confusão. O contexto teológico dos autor• IDOll­ tra que nenhum deles pensa em uma idAmttfica9Jo no sentido de Upr eatavelmente a mensagem cristã, aconteça o que acontecer, a um programa ou sistema determinado. Pois bem, se klentf.ficaçoo sig­ nifica apoio critico, o problema pode ser discutido, mas certamente o argumento de que assim se perde a transcendência do cristianismo deixa de ter valor, posto que o aspecto critico do apolo é precisa­ mente o resultado dessa transcendência. Mas o mais interessante na critica de Wagner à teologia da liber­ tação e, mais em particular, à sua concepção da relação entre fá e ideologias, está em seis pontos eclestológicoa que Wagner detecta 4. Ib., pp. 6Ui2. 5. Ib., p. 51. 8. Ib., p. 26.

na Bfblia. Com eles aparece claramente o ponto que estamos dis­ cutindo, quer dizer, a relação entre ideologia e função da Igreja. 1. A função eclesial consiste na reconcUtação inc:Hvfdual de todos os homens com Deus. Criticando um número da International Remew of missions, Wagner sublinha: "Expressões tais como 'rela­ cionar com o contexto latino-americano', 'estimular o interesse pelo estudo da responsabilidade social cristã', 'preparar o compromisso missionário com estudos sobre dimensões sociais, pollticas, econõ­ micas e culturais do contexto', 'expressar o sentido crescente de compromisso ecumênico que é inseparável da tarefa missionária', 'despertar as massas', 'descobrir na situação sócio-econõmico-polltica as rafzes dos males latino-americanos', 'lutar para destruir as prin­ cipais causas da injustiça massiva', são excelentes, mas a missão da Igreja - que é persuadir a todos os homens e mulheres que se re­ concUiem individualmente com Deus - Já não se menciona". 7 2. Entre as diferentes funções da Igreja, a prioridade está com a salvação das almas. Promover a justiça social é importante, mas secundária. Contudo, a "teologia da esquerda radical" inverteu a ordem: "Julgam a teologia evangélica não segundo sua fidelidade à Bfblla ou segundo seus resultados na salvação das almas, mas se­ gundo seus resultados na promoção da Justiça social". 'li Mais ainda, para Wagner a função secundária não se realiza à parte da principal, mas que é somente o resultado dela: a conversão individual que procura a salvação procura assim também mais justiça sem atacar as estruturas. Assim, criticando a teologia de Emflio castro, escreve o autor: "Em algum de seus escritos parece sentir aversão pelo minist.ério de salvar as almas. E assim critica a hlpótese de seu adversário de que 'se mudamos o coração do homem mudaremos também a sociedade' dizendo: 'o coração do homem? Não exisQ! se­ melhante coisa'". • 3. A obra de Cristo se reduz à sua ação através do Evangelho dentro da Igreja. Wagner, dirigindo esta vez sua critica a Mfguez. -Bonino, resume primeiro o pensamento deste último: "A tarefa de participar na obra da redenção compreende não somente pregar o Evangelho, mas 'participar na obra de Jesus Cristo que trabalha no mundo para criar paz e ordem, Justiça e liberdade, dignidade e co­ munidade' ". E comenta o autor: "Esta referência à obra de Cristo no mundo é talvez um dos mais sérios desvios de Mfguez com res7. Ib., p. 23. 8. Ib., p. 26. li. Ib., p. 50.

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peito ao ensinamento bfblico. A gente pode repassar a Bfblla toda e buscar-se-á em vão esse suposto mandamento que teriam os cristãos de fr ao mundo com esse tipo de missão". 10 4. A unidade da Igreja e a pertença a ela é mais importante do que qualquer opção sócio-econõmico-polftlca. Comentando as conclusões da Primeira Consulta Evangélica sobre Igreja e Sociedade, que teve lugar em Huampani (Peru) em 1961, Wagner opõe um argu• mento que parece resumir o já citado de Rabner e o dos bispos chilenos: "Mesmo concedendo generosamente que a Igreja, como ins­ tituição, possua a competência técnica para julgar de maneira ade­ quada a situação sócio«onõmica do mundo, nem o otimista mais empedernido pode supor que a Igreja seria capaz de levar sua fre­ guesia a se pôr de acordo sobre um único remédio a partir de um único ponto de vista". 11 E continua: "Per Lonning pergunta: 'Um cristão que faz wna determinada opção histórica, pode sustentar que tal opção é a de Cristo?' Esta pergunta constitui a advertência mais clara contra a possibilidade de que a paixão pela ação social pode chegar a ser uma tendência tão forte que inverta a ordem de prio­ ridade da Bfblia. O 'temor e tremor' devem caracterizar os cristãos, não em relação com o perigo de saltar a situações mundanas ambi­ güas, mas em relação com a possibilidade de falhar quando se trata de oferecer a salvação a toda a humantdade". 12 5. A "teologia da esquerda radical" não tem em conta o dua­ lismo bfblico e, em particular, as forças sobrenaturais negativas que regem este mundo. Criticando desta vez a R. Alves, o autor escreve: "Alves não parece turbar-se muito pela continua contradição existen­ te na filosofia da história, a qual mostra que se Deus, pelo meno!I nos últimos vinte séculos, esteve trabalhando arduamente para 'hu• manizar a humanidade', aparentemente não teve muito êxito. Duas guerras mundiais, Coréia, Hungria, Vietnam, Biafra, Tcheco-Eslová­ quia, constituem outros tantos pontos negros na trama do século Vinte. . . A exposição qqe Alves faz das 'forças que se opõem à ação de Deus' não tem sufücenternente em conta a concepção bfblica de um dualismo temporal, na qual as forças sobrenaturais do mal exercem um papel sinistro e importante. Alves busca antes as cau­ sas naturais do mal". 13 Não estaria, portanto, contemplado o sobre­ natural negativo. 10.

11.

12.

13.

lb., lb., lb., lb.,

pp. 29-30. pp. 31-32. p. 32.

p. '2.

l/51.

8. Finalmente, de acordo com Wagner, não existe promessa ou plano de salvação universal, mas somente uma salvação que passa através do evangelismo e da conversão individual. Wagner critica aqui as posições de Emillo Castro e de Richard Shaull. Escreve que Castro "se aproxima do coração da questão quando pergunta: 'Qual é o destino final daqueles que morrem sem ter .conhecido o nome de Cristo?', mas não dá nunca uma resposta satisfatória a sua pró­ pria colocação. Antes aconselha que não nos preocupemos demais por Isso, já que 'no Novo e no Antigo Testamento há indicios claros que nos permitem afirmar que o plano de Deus em Jesus Cristo incorpora a humanidade inteira' ". u � claro que o autor não está. de acordo com Castro, mas podemos compreender ,melhor sua po­ sição citando primeiro sua critica a Shaull. Este último escreve: "Não podemos continuar pensando exclusivamente em termos de li• vrar os pagãos das iminentes chamas do inferno. Os missionários podem não ter hoje muitas oportunidades para a proclamação do Evangelho. E a maior parte de nós pensa que não se faz justiça à fá bíblica quando se limita essa fé a constituir um bilhete de an­ trada no paraíso para as pessoas". 11 O comentá.rio de Wagner é o seguinte: "Com esta negação da urgência escatológica da missão no mundo, Shaull chega à ruptura decisiva com a teologia evangá­ llca. � multo digno de nota que, ao rejeitar a urg� de saloor as pes·soas do tnferno, ele pense ser fiel à Bíblia. A gente se pergunta se a exagerada ênfase de Bonhoeffer no Antigo Testamento não será a causa por que a teologia neotestamentá.ria dos teólogos seculares se tenha tomado tão diluída, que o terrivel pensamento de um ser humano arrojado ao lago de fogo já não tenha tanto poder para mover os corações como a situação de um rude campesino deser­ dado obrigado a viver em uma favela". :i.e Talvez o leitor, desconcertado pela simplicidade da critica, pela simplicidade dos argumentos invocados, pela honradez certamente fora de moda com ,que se enunciam os fundamentos teológicos da função da Igreja, possa pens:,.r que minha intenção ao citar exten­ samente a Wagner fosse pintar uma caricatura. Não á isso, de ma,­ neira alguma. Bem ao contrário. O grande mérito dos seis pontos explicitados por Wagner é o de explicar os reais fundamentos das criticas feitas pelas autoridades eclesiásticas à teologia da libertação. Os bispos 14. lb., p. 53. 15. lb., p. 55. 18. lb.

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chllenos, por exemplo, teriam feito um real serviço à Igreja expli­ citando estes mesmos seis pontos, em lugar de tentar chegar às mesmas conclusões ocultando, da maneira ma.is sofisticada, a ver­ dadeira teologia que está na base do documento estudado. Muitos cristãos sinceros na América Latina se quebram a cabeça tentando compreender como se pode citar tão copiosamente o Vaticano II e Medellfn e tirar depois conclusões tão opostas. Faria um grande bem para eles saber que essas conclusões vêm de outra teologia que precisamente se mantém oculta porque não concorda com a ten­ dência majoritária em ambos os acontecimentos da Igreja católica. Por isso sustentávamos que uma das mais dificeis situações para a teologia da libertação depois do Vaticano II e de Medellfn era a inibição que afetava a teologia oposta. Os verdadeiros fundamentos das decisões ficam, assim, ocultos e, por conseguinte, imunes a toda discussão. Invocam-se os mesmos princípios e se tiram, misterio­ samente, conclusões opostas. O não ter passado pelo Vaticano II e por Medellfn tem algumas vantagens. Pelo menos se sabe contra quem, ou contra que eclesiologia se luta. 3.

A JUSTIFICAÇÃO PELA FJ!'.: E AS IDEOLOGIAS

Do parágrafo anterior pode ter ficado claro que a teologia da libertação deve afrontar um sério problema metodológico: que suas previslveis conclusões se chocam com uma certa teologia da Igreja que continua sendo decisiva para suas autoridades e suas estruturas. Seria uma ingenuidade imaginar que a teologia da libertação pode ser séria e coerentemente aceita pelas estruturas eclesiais que exis­ tem na atualidade. Pareceria à primeira vista que a teologia da libertação tem mais afinidade, neste aspecto de critica da função eclesiástica, com a cor­ rente européia chamada "teologia politica" ou "teologia da revolu­ ção". De fato, alguns dos autores citados por Wagner, como Alvt:s, quase se pode dizer que pertencem mais à dita corrente do que à latino-americana da teologia da libertação. A influência de Moltmann sobre Alves é provavelmente mais importante que a de qualquer ou­ tro teólogo na América Latina. Precisamente Moltmann critica as pretensões triunfalistas de uma Igreja que crê, com sua imparcialidade, preservar suas possibilidades universais: "Somente mediante a dialética de tomar partido se rea­ liza no mundo o universalismo do CruoWcado, O falso universalismo

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da Igreja é, pelo contrério, uma prematura e inoportuna antecipação do Betno de Deus".ir Não obstante as aparências, vamos ver que esta teologia polltica coloca a teologia da libertação numa postura dificil frente a outra instância mais profunda e definitiva que a mesma Igreja. Essa Igreja aparece já no texto citado de Moltmann: é o Reino de Deus, quer dizer, a realidade última, ou seja, a escatologia. J!l claro que todas as Igrejas cristãs contêm um elemento esca­ tológico, dado que, se a fé é "a substância das coisas que esperamos" (Hbr 11,1), o que esperamos pode precisamente resumir-se nestas palavras: o Reino de Deus. Poderíamos, por outTo lado, dizer que as diferenças na escatologia entre as diversas Igrejas cristãs consis­ tem fundamentalmente na diferente concepção que têm da relação entre os acontecimentos e ações históricas, por uma parte, e o Reino de Deus, por outra. A Igreja católica se caracterizou, neste sentido, por acentuar, pelo menos desde o tempo da Reforma, o mérito das obras humanas para entrar no eterno Reino de Deus. Esta noção de mérito tem suma importlncia para a teologia da libertação. De fato, o mérito de uma ação humana não tem relação direta com sua eficácia histórica. Em outras palavras, não são meritórias aquelas ações que têm êxito. Tampouco o são especialmente as que fracassam. O êxito ou o fracasso, isto é, as conseqüências históricas das ações, não entram diretamente na "contabilidade" do mérito. O que realmente importa é o esforço desprendido e a intenção refe­ rida a Deus. Ponhamos por exemplo o caso de um médico. A con­ cepçlo corrente de mérito é, por si mesma, independente de que o paciente se salve, ou não, da morte. O que faz o mérito do médico é o esforço posto na cura e a intenção de fazê.lo não pela fama, nem sequer pela vida do paciente, mas por Deus. O paciente é somente a ocasião do mérito. Como se compreende, esta concepção de mérito supõe dois pla­ nos de valores e eficácia completamente diferentes e mesmo opostos. Para a sociedade, para o plano humano e histórico, o valor de um médico está em proporção direta com os resultados históricos que consegue. Para Deus, ao contrário, e para o plano de valores eter­ nos, esses resultados históricos não só não contam, mas que são pe­ rigosos, na medida mesma em que são valores históricos, satisfações 17. Art. ctt. em Dfscusskm ... , p. 72.

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reais e capazes, portanto, de rivalizar com o que conta para a eter­ nidade: o esforço e a intenção. Na teologia e na espiritualidade católica estes dois planos re­ ceberam o nome caracteristico de plano sobrenatural < o dos valores eternos) e de plano natural (o dos valores temporais). Gustavo Gu­ tiérrez, no capítulo quinto de sua Teologia da Libertação, sublinha com acerto que esta última somente se tomou possível com a perda da influência da teologia dos dois planos temporal-eterno, profano­ -sagrado, leigo-sacerdote, Estado-Igreja, natural-sobrenatural ere. A influência desta teologia dos dois planos na Igreja se deve ao fato de que, durante muito tempo, pareceu a única tradução possí­ vel e lógica de um dado dogmático decisivo introduzido, como uma cunha, durante a luta dos primeiros séculos entre cristianismo e es­ toieismo. Segundo este dado, somente a graça, quer dizer, um pre­ sente livre de Deus, permitia ao homem fazer algo de válido para um destino divino como o era a vida eterna. A tradução deste dado teológico na teologia dos dois planos su­ punha duas coisas: primeira, que um presente livre se reconhece pelo fato de que alguns o possuem e outros não, sem culpa alguma por parte do doador; segunda, que a sobrenaturalidade, isto é, a ab­ soluta gratuidade do presente supõe, portanto, a existência de esta­ dos, pessoas e valores puramente naturais, na história real. Vários anos antes do Vaticano II, estas duas posições começa­ ram a ser postas em dúvida, na medida em que não pareciam ser necessárias para manter o principio teológico da gratuidade do so­ brenatural, ainda que falar da "gratuidade" do "sobrenatural" seja um pleonasmo. De fato, um presente não deve ser reconhecido necessariamente pelo fato de que outros não o possuam. Todos podem possuir uma coisa e essa coisa pode continuar sendo um presente. Isto significa que não é necessário encontrar um ser humano sem graça, no curso da história, nem sequer por um minuto, para poder afirmar o cará­ ter sobrenatural, e por conseguinte, gratuito da graça de Deus. Em outras palavras, as duas suposições mencionadas somente valem para o tipo de presentes mesquinhos que nós homens fazemos. Utilizemos um exemplo. Uma criança, ainda antes de seu nas­ cimento, pode receber uma doação de uma fortuna em dinheiro. Isto significa, é claro, que seu nascimento vai estar rodeado de cui­ dados extraordinários, como também sua educação e, portanto, suas possibilidades futuras. Dizemos "extraordiná.rios" porque supomos

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que as demais crianças não possuirão a mesma fortuna. Para a criança de que se trata, sua vida aparecerá como a mais "natural" do mundo, enquanto não comparar sua existência com a das outras crianças e não reconhecer, mediante essa comparação, o presente recebido. Porém, suponhamos que o doador seja tão generoso que faz o mesmo presente a todas as crianças de uma geração. Isso mudará igualmente a vida de todos e fará impossivel reconhecer o presente mediante a comparação anterior. O presente, entretanto, não deixa de ser um presente. Para reconhecê-lo como tal basta pensar que teria sido possivel perfeitamente nascer sem ele. Este pensamento é necessário à criança e a todas as crianças na segunda hipótese para reconhecer um elemento decisivo de sua existência. Mas não podemos pedir a essa criança que imagine como seria sua existência verdadeiramente "natural" porque não tem ao seu redor os elementos necessários para semelhante imaginação: tudo foi mu­ dado com o presente. Algo muito semelhante, se não igual, ocorre com a teologia da graça. Se o viver em condições essencialmente gratuitas tem sido dado a todos os homens, é necessário para criá-los sem esse presen­ te, quer dizer em um estado de pura natureza. Mas não se pode pedir ao homem que imagine como seria esse estado, porque não tem em sua existência atual, nem sequer na de seus irmãos pagãos ou ateus, exemplo algum de tal existência. O conceito de natureza pura é, portanto, o que chamamos um conceito-limite, isto é, um conceito necessário para compreender outro (o da graça), mas não apto para assJnaJar alguma coisa concreta na história. A partir deste ponto de vista, elaborado sobretudo por Karl Rahner, o Vaticano II declarou que todos os seres humanos foram chamados à mesma vocação sobrenatural e dispõem, pela graça de Deus, d.os meios necessários para cumprir esse destino ("Gaudium et Spes", n. 22) tanto dentro como fora da Igreja, já que a descri• ção do que produz a graça no interior do cristão vale exatamente do mesmo modo para aquilo que a mesma graça produz em todos os homens de boa vontade (ib.). E foi assim que a Igreja católica abandonou oficialmente a teo­ logia dos dois planos, e deu passagem livre a uma nova teologia: a da libertação, incompatível com aquela. Isso não quer dizer, é claro, que com isso tenha terminado toda resistência à teologia da libertação, resistência essa inspirada em uma concepção de dois planos. Já tivemos ocasião de ver que a função da Igreja foi decla,, rada muitas vezes pelas autoridades eclesiásticas como exclusiva-

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mente "religiosa" de acordo com outros teztos conciliares, com uma clara conotação de "sobrenatural" por oposição a toda função his­ tórica, que apareceria assim como "natural". O que queremos dizer é que o Concilio é suficientemente claro para que os fundamentos teológicos da teologia da libertação não possam ser declarados heterodoxos. Poderia cm.er-se que o elemento escatológico oposto à teologia da libertação no ambiente protestante é mais forte e mais resistente do que no católico. Não porque o eterno, o último, o meta-histónco, não tenha em ambos a mesma importância, mas porque o histórico não tem certamente a mesma. A desaparição, desde a Reforma, da noção de mérito na teologia protestante, pareceria ter minado a pos­ sibilidade de uma teologia da história. 18 Com efeito, se na teologia católica o único que unia o plano das ações humanas com o plano do eterno Reino de Deus era o mérito, quer dizer, o valor "eterno" do esforço e da intenção reta, este último laço de união entre am­ bos os planos é cortado pela teologia da salvação-somente-pela-fé, isto é, pelos méritos exclusivos de Cristo. Já indicamos que, no tempo da Reforma, tinha passado o mo­ mento em que se concebeu o fundamento para a teologia dos dois planos, quer dizer, a luta contra o estoicismo. Tinha passado também outro momento importante para este plano: o da luta entre os dois grandes poderes, o do papa e o do imperador, o que fez renascer a teologia dos dois planos como uma possível solução histórica para uma guerra real. Em outras palavras, quando se enfrentou com Lutero, a Igreja católica tinha deixado de ter na teoria dos dois planos um problema agudo. Só via nela um ponto de ortodoxia. Pelo contrário, como o mostra claramente James S. Preus, a doutrina luterana dos Dois Reinos, quer dizer, dos dois planos, cons­ tituiu a base político-teológica para todo o edifício da Reforma. Com efeito, esta não podia viver sem o apoio político, e certamente armado, dos principes. Para independizá-los dos critérios teológicos, era necessário defender a diferença de planos e de reinos entre as autoridades teológicas e políticas. Segundo Preus, a doutrina dos DOis Reinos foi o preço que teve que ser pago por outros numero­ sos aspectos libertadores da Reforma. Só que, com o correr dos séculos, e, sobretudo, com o fato histórico de que a Reforma já não necessita de nenhum apoio polftico, o preço pago então pode 18. Cf., por exemplo, Harvey Cm:, obra cit., pp. 124-127. Talvez no tem­ po da Reforma, Bucero tenha sido o único que apontou para uma superação entre a Justificação pela fé somente e a edificação - com obras bist.óricas - do Reino de Deus. Valeria a pena investigar este ponto.

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hoje começar a parecer excessivo. Tal é a opinião de Preus, entre outros. E escreve assim: "O caráter político da teologia de Lutero deve ser julgado segundo o critério da Bíblia que, em seus repetidos chamados à Justiça e à retidão, e em seu compromisso com os po­ bres e oprimidos, não distingue entre corpos e almas, mas que pro­ clama o Evangelho para o homem todo. A doutrina luterana dos dois planos esquiva este chamado reduzindo o Evangelho. A triste des• politizdção da doUtrina da justificaçã.o mediante a doutrina dos dois reinos foi muito útil para os interesses - políticos - da Igreja. Po­ rém, foi útil para o mundo?" 1e Reinhold Niebuhr apresenta wn exemplo desta influência teoló­ gica no político, falando da oposição religiosa a Hitler na Alema­ nha: "O luteranismo que, em minha opinião, contém as intuições religiosas mais profundas acerca dos problemas últimos da existên­ cia hwnana, permanece muito pobre no que toca aos problemas de moral política e social ... sua doutrina dos 'dois planos', o 'plano do céu' e o 'plano da terra': um, o plano da graça 'em que não se conhe­ ce senão perdão e amor fraterno, e o outro o plano da 'lei' em que não se conhece senão a lei, a espada, o juizo e as cadeias'. Esta pode ser uma boa descrição das duas dimensões da vida e da moral; mas o defeito fatal na doutrina dos dois planos foi que um foi o plano da moral privada e outro o da moral oficial. Nwna palavra, pediu-se à política manter a ordem nwn mundo pecaminoso. E esta função puramente negativa do Estado se agravou ainda mais ao se dar a sua autoridade credenciais religiosas absolutas e ao proibir toda resis­ tência contra ela". 20 Seria, entretanto, injusto pretender que a doutrina luterana dos

Dots Reinos ou planos foi o resultado de uma determinada situação

politica ou wn instrwnento político para fazer frente a tal situação. A doutrina dos Dois Reinos tem profundas relações com outros te­ mas centrais da teologia luterana, como, por exemplo, com a justifi­ cação pela fé e com a compreensão desse elemento-chave que é a preocupação pela soli Deo gloria, isto é, que a glória seja exclusi­ vamente de Deus e não do homem. Tem, em outras palavras, muita relação com a negação, como o expressava Barth pouco antes de sua morte, desse "e" que os católicos introduzem sempre na dis­ juntiva: Deus ou o homem, a fé ou as obras etc. A supressão desse "e", por exemplo, no problema da justifica­ ção, faz com que a fé, no sentido luterano, apareça, em primeira 19. "The polltical function of Luther's Doctrina", em Concorãia theo­ logical monthly, outubro de 1972, p. 598. 20. "Germany", em Worlãview, junho ie 1973, pp. 14-15.

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instância, como a confiante, e ao mesmo tempo passiva, aceitação do plano fixado unicamente por Deus ao destino de cada homem e, por conseguinte, à const.Tução de seu Reino escatológico. l!l justamente este o argumento que alguns teólogos da escola da "teologia politica" ou "teologia da revolução" européia usam para desqualificar qualquer tentativa de atribuir ao homem uma causa­ lidade histórica na construção do Reino de Deus. Rudolf Weth, por exemplo, afirma: "Deus mesmo traz consigo a ação revolucionária decisiva para a vinda de seu Reino. Esta ação não pode ser realizada nem substituída por nenhuma ação humana.". Weth fundamenta esta afirmação num texto central de Lutero, em que este comenta o famoso texto de Mateus (25,34) onde o Juiz universal chama os escolhidos a ocupar o lugar pre­ parado para eles desde o começo do mundo. O comentário de Lu­ tero é tanto mais importante quanto foi a Carta aos Romanos, e não o Evangelho mesmo, a base para sua doutrina da justificação pela fé somente. Neste texto, porém, aplica essa doutrina a outras passagens do Novo Testamento e, especialmente, a um sobre a cons­ tituíção definitiva do Reino de Deus. A passagem de Lutero diz assim: "Como poderiam [os filhos do Reino de Deus] merecer o que já lhes pertence e que foi preparado para eles já antes de terem sido criados? Assim, seria mais just.o dizer que é o Reino de Deus que nos merece como possuidores... O Reino de Deus já está preparado. Mas os filhos de Deus devem estar preparados para o Reino; ·assim, é o Reino que merece seus filhos, e não são os filhos de Deus que merecem o Reino". :n Prescindindo por enquanto da justeza ou não de tal exegese, é óbvio que ela desqualifica radicalmente qualquer tentativa de encon­ trar uma relação causal entre a atividade histórica e a construção do Reino de Deus. Ao colocar a este no extremo passado e no ex­ tremo futuro - éschaton - a gente o desliga da atividade histórica no presente. Não estranha, por isso, observar que a "teologia polftica" alemã, dependente em grande parte da teologia luterana da justificação, 22 21. "La 'Théologie de la révolution' dans la perspective de la justlfi· cation et du royawne", em Discu.sswn ... , p. 120. A citação de Lutero per• tence a De servo arbitrio. 22. Mesmo os teólogos católicos pertencentes a esta corrente (e muitos outros fora dela) mostram uma clara infiuência luterana neste ponto, sem fazer as distinções que aqui propomos entre a justificação individual e wna extrapolação de tal problema ao da construção do Reino. Esta conver-

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trate, de maneira sistemática, de desterrar da linguagem teológico­ -politica, mesmo falando de revolução, qualquer termo que indique uma relação de causalidade entre atividade histórica. e construção do Reino escatológico. A realidade histórica produzida pelo trabalhe humano leva, salvo raras exceções, o nome de antecipação (Molt­ mann), imagem analógica ou analogia (Weth), esboço (Metz), quando se fala da relação dela com o Reino. As conseqüências desta acentuação do escatológico em detrimen­ to do histórico podem-se reconhecer, creio, em dois fatos decisivos para a teologia da libertação. 1. A relativização escatológica de toda a realidade histórica exis­ tente, a dessacralização de todo o regime polltico, tem, sem dúvida, um primeiro impacto libertador. Desinstala do Já conhecido. Desab­ solutiza as pretensões "sagradas" com que todo regime tenta perpe­ tuar-se e negar sua relatividade histórica. A palavra-chave desta teologia: a espera� está intimamente relacionada com este tipo de libertação. De fato, com ela D porvir se liberta do peso do passado. A fé permite imaginar novas possibilidades e escapar à fascinação do Já estabelecido. Não obstante, quando se examinam mais concretamente as cir­ cunstâncias especificas em que deve realizar-6e esta função liberta­ dora, seu caráter l!bcrtu..ior não aparece tão claro. De fato, num mundo intercomunicado e submetido a diferentes regimes e sistemas econômico-sociais, é irreal pensar que essa relativização dos siste­ mas estabelecidos vá ter uma espécie de eficácia cíclica. Com efeito, a relativização, em nome de Deus de todo regime humano, á im­ portante para despertar, num primeiro momento, a criatividade e a unaginação. Quando essa criatividade e essa imaginação se tiverem transformado em um novo sistema e o novo sistema tender a ins­ talar-se e a cortar as asas à imaginação e à criatividade, outro novo empurrão de relatividade e de esperança pode ser entendido facil­ mente como libertador. gência, devida em parte ao clima ecumênico reinante desde o Vaticano II, ae deve também, como o mostra, entre outros, o caso da edição conjunta da Carta aos Romanos, comentada, e o caso de Hans Küng, a um honrado reconheclmento de que a teologia católica passou por alto o ensinamento de Paulo com respeito à Justificação pela fé. Ainda que este reconhecimento não seja &critico por parte dos teólogos católicos, não é, a meu ver, bas• tante critico no que toca à extrapolação acima dita, o que equivaleria desta vez a passar por alto o aspecto verdadeiro que a Igreja católica defendeu DO tempo da Refo1'Dlll-.

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Mas, como diziamos, num mundo em que os sistemas, novos e velhos, convivem e se comunicam, a relatividade escatológica se pneraliza. Quando wn novo regime ainda não se estabilizou, já está aendo criticado em nome de uma ulterior esperança. Ao mesmo tem• po, o regime oposto está sendo criticado, debaixo do mesmo rótulo e pelos motivos opostos. Mais ainda, a busca mesma se relativiza, ao não apresentar elemento algum que possa relacionar-se casual­ mente com a construção do Reino escatológico de Deus. Nossa suspeita é que tal desinstalação ou relativização genera­ lizada termine sendo uma teologia politicamente neutra. A "revo­ lllçio" a que se refere às vezes em seu título, se parece mais com uma revolução kantiana ( revoluciona-se a maneira de colocar os pro­ blemas) que a uma revolução histórica. Com efeito, não se faz uma revolução sem entusiasmo. Pois bem, nas circunstàncias concretas em que essa escatologia se move, aparece como uma espécie de balde de água fria jogado sobre todos os entusiasmos. Não só sobre os falsos entusiasmos ideológicos criados pelo status quo, mas sobre os projetos criados pela critica e pela esperança. Talvez seja interes:::ante estudar, a este respeito, algumas passa­ pns de um discípulo de Moltmann como é Rubem Alves. Jí: interes18Dte observar, por exemplo, uma primeira conseqüência do que foi dito: os meios mais radicais de mudança são rejeitados por uma razão muito simples e profunda: ninguém os adota sem perder o aogue frio, quer dizer, sem perder o controle dos acontecimentos, l8D1 perder a quota necessária de relatividade. Assim escreve Alves: "A violência, do ponto de vista do homem que se encontra llvre para o futuro, é uma realidade totalmente diferente. Constitui aquilo que lhe nega um futuro, que lhe faz abortar o projeto de um futuro renovado; é o poder que o mantém prisioneiro das estru­ turas carentes de futuro e em um mundo sem futuro. A violência , o poder de defuturização que quer fechar o futuro à consc:lência do homem e fechar ao homem o futuro". 23 Paradoxalmente, a esperança se traduz em uma visão radical· mente pessimista de todo processo de mudança mesmo quando não for violento, precisamente porque toda mudança impulsionada pelo homem não pode senão ceder ao pecado que domina este mundo. O Reino de Deus só pode ser construido por aquele que está livre de pecado, e este é só Deus: "O humanismo messiânico - escreve Alves, identificando-se com ele - rechaça extrair sua esperança da fidelidade do escravo ao protesto que se encontra intrinsecamente 23. Obra ctt., p. 171.

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na condição do escravo. Sua experiência histórica demonstra que aqueles que foram uma vez os escravos negativos e portanto os por­ tadores da liberdade, uma vez que alcançaram sua liberdade, se vi­ ram dominados pela preocupaçã o do presente e portanto infeccio­ nados pelo pecado de seus amos. . . Seu desejo de liberdade se torna um desejo de domesticação". H A história da liberdade, por isso mesmo, não pode basear-se "nos poderes do homem apenas". Pode­ ria perguntar-se se, ao falar no parágrafo anterior do "homem apenas", Alves estaria reservando uma melhor oportunidade para o caso em que o homem trabalha com Deus. Mas a pergunta se mostra errônea, precisamente pela dificuldade, que já temos estudado, de conceber uma colaboração entre o homem e Deus para uma teologia derivada de Lutero. Por outra parte, é evidente que se o parágrafo anterior pretende, como na realidade o faz, descrever a realidade histórica objetiva, é necessário concluir que o homem trabalha sempre sozinho. Aliás, o resto da passagem esquece o ser humano: "O escravo pode esque­ cer seus sofrimentos, mas não assim Deus. Deus é o Deus sofredor, o Deus que não permite que se passe por cima das dores da história ou que fiquem cicatrizadas pelo poder hipnótico da politica de pre­ servação. Isso, porque Deus.. . é o Deus da história, e como sua presença na história é sempre repelida pelos poderes do velho, Deus é o Deus sofredor". za Esta concepção leva também Alves a rejeitar de fato toda coope­ ração com revolucionários na história: "O humanismo messiânico tem também uma contenda com o pecado oposto dos revolucioná­ rios. Devido ao fato de que o revolucionário crê que a eliminação da repressão e a restauração do sentido erótico da vida dependem dos poderes do homem apenas, acha necessário disciplinar seu pre­ sente com o fim de Juntar suas energias para a tarefa da libertação. Com o fim de destruir o. repressão que se impõe à sociedade, vê-se na necessidade de impor uma estrutura semelhante de repressão ao seu presente. O presente se perde em si mesmo. Existe somente por causa do futuro. . . O homem é absolvido da inumanidade e bruta­ lidade do presente, invocando o tempo de transição, o tempo que não conta. E o futuro, uma vez que os revolucionários o tiverem introduzido, tende a fechar-se, já que se crê que é a presença do 24. Ib., p. 177. A tradução castelhana omite estas palavras, teolog:lca• mente significativas, do orfginal inglês: "A história da liberdade, por isso mesmo, não pode basear-se nos poderes do homem apenas" < A theolof/11 o/ human hope, Corpus Books, Nova York 1969, p. 116. Ver também, na versão castelhana, a página 219). 25. Ib., p. 178.

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'11chaton'. l!l por isso que as revoluções que foram uma vez porta­ doras de novas esperanças em breve se viram crlstaUzadas, rígidas, dogmáticas, provocando uma ressurreição verdadeira dos pecados do oaoservadorismo". 2s Eis aqui por que é necessário que Deus atue sozinho, que crie, no sentido teológico mais exato, a libertação que o homem se nega e se negará. sempre a procurar: "O desenvolvimento normal da poH­ ttca do velho não pode dar nascimento ao novo. O novo é aqui nada mais que o velho sob uma forma diferente, uma má.seara diferente. Regenera-se, perpetuando assim o velho mundo do cativeiro sob uma 'pintura' diferente. Pelo fato de a polltica de Deus negar o desenvolvimento natural do velho, é que há lugar para o novo. E a pnte pode, na verdade, dizer que se cria ex nihilo, já que não se pode explicar o novo em termos de lógica de causalidade natural". 21 Inesperadamente, a distinção entre o sobrenatural e o natural, como dois planos diferentes que não se tocam nunca, reaparece nesta v1lio radicalmente escatológica do Reino para impedir todo com­ P,Omisso da teologia protestante com uma libertação histórica. A re­ volução de que fala esta teologia, quando é conseqüente consigo mesma e com suas fontes, se torna fé e esperança em algo meta-his­ tórico, e distanciamento e desgosto para com a história. 2. O segundo fato decisivo da relação entre a teologia politica e a reologia da libertação é uma dificuldade de linguagem. Com efeito, Alves não representa, em suas conclusões a-históricas, a maio­ ria dos teólogos protestantes da libertação. 28 Muitos deles, como, por exemplo, Richard Shaull, são muito mais claros nas soluções his­ tóricas que propõem em vista da libertação. Mais ainda, a interven­ ção de Shaull na Conferência de Genebra sobre Igreja e Sociedade, ao verão de 1966, escandalizou a uma boa parte dos participantes por seu concreto conteúdo revolucionário. Mesmo assim, a influência da tradição que estudamos atua, se não no conteúdo e nas opções, 1111 todo o caso na linguagem. Se nossa observação não é errônea, podem-se usar duas lingua1ens diferentes. A histórica é sumamente comprometida e revolucio­ Dl.ria. Mas quando se trata de traduzi-la teologicamente, uma certa reserva, no nivel da linguagem, começa a inibir a Shaull. O leitor 26. 27.

lb., pp. 237-238. lb., pp. 193-194.

211. Como o indica o titulo do livro estudado de C. Peter Wagner, esta Nrla bastante mais "radical", ao ponto de deixar de ser, para o autor, "evangélica".

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poderá perceber esta inibição se ler os parágrafos seguintes do ponto de vista de um cristão latino-americano que deseja orientar-se concre­ tamente num panorama polftico muito espinhoso e complexo e, por isso mesmo, pede orientação a sua fé cristã. A partir de tal pers­ pectiva e com tal expectativa, leiamos esta tipica passagem de Shaull: "O Reino de Deus está sempre acima de todo sistema social e polftico, expondo seus elementos desumanizadores e julgand0-0s. Ao mesmo tempo, o Reino é uma realidade din4mica: está 'chegan­ do', mediante a obra dAquele que restaura as nações". 211 Mais uma vez, do ponto de vista da expectativa de um cristão que pergunta o que deve fazer historicamente, a primeira frase des­ concerta. Sem dúvida, toda relativização total, longe de ser dinâmica, se converte em contemplação estática. Shaull é inteligente e leal demais para não o perceber. Por isSO, à primeira frase com seu conteúdo estático, opõe a segunda função do Reino, definindo-a, em oposição à primeira, como din4mica. O Reino está chegando me­ diante a obra de. . . Outra vez, a atenção do cristão angustiado ante a necessidade de optar num panorama desconcertante é despertada e espera receber a resposta desejada: Quem, que grupo ou tendência, ou ideologia, está trazendo o Reino à realidade histórica? Pois bem, o giro da frase final é desesperador: nenhuma pessoa nem grupo humano, nenhuma ideologia humana, nenhuma mudança humana, mas somente Deus. O cristão sofre assim a mesma desilusão que sofria quando, diante da decisiva situação chilena, recebia a respos­ ta episcopal: optamos por Cristo ressuscitado. Ou, o que é a mesma coisa, não optamos por nada de concreto na história. Para ser cristã, deve uma teologia dar esse tipo de resposta? Isso seria, é claro, fatal para a credibilidade da teologia cristã e significaria a morte da teologia da libertação. Morte dissimulada, é claro, pelo fato de que um e o mesmo homem, chamado teólogo, pode, como no caso de Shaull, ser sumamente drástico e comprometido em seus juízos históricos, mas, ao que parece, só num nível ou numa linguagem não teológicos. Quando chega a este nível, as respostas perdem inesperadamente sua relação com a história e com as neces­ sárias decisões que devem operar-se dentro dela. Porém, leiamos outra passagem de Shaull, interessante porque contém uma expressa referência à teologia de Moltmann: "O pro­ fessor Moltmann demonstrou que os simbolos cristãos apontam para 29. Em Christian social ethk:s fn a changfng world, ed. por J. e. Bennet, Assoe. Press, Nova York 1966; citado por J. M. Lochman, "Ecumenical theo­ logy of revolution", em New Theology, n. 6, pp. 121-122.

Deus que caminha à nossa frente e que está criando um novo futuro. lua palavra é essencialmente a palavra de uma promessa que des­ perta em nós a esperança de um novo futuro. J!l uma palavra que perturba as velhas estabilidades, suscita insatisfação para com o velho sistema e nos liberta para esperar e servir as coisas que hão de vir". ao Imediatamente, voltamos a encontrar aqui os dois elementos que ua1nalávamos na passagem citada anteriormente. O primeiro é que o fato de que Deus vai à nossa frente não significa que nós coopere­ mos com ele. O sujeito da frase "criar um novo futuro" é unica­ mente Deus. Nada se diz sobre o homem, apesar de o homem pre­ olumente ser o angustiado pelas decisões que deve tomar. Além disso, as palavras inglesas (bring into being) que traduzimos por cnar, são uma evidente referência a uma criação ez nihilo, isto é, 181D colaboração. O segundo elemento já presente na passagem anterior, é que também aqui se acentua a atitude critica como a correspondente, no homem e no cristão, à criação divina na história. A palavra de Deus "perturba as velhas estabilidades, suscita insatisfação para com o velho sistema ... ". Dá a impressão que temos aqui uma parcialidade que deve converter-se em decisão histórica. Porém, Shaull não pode ignorar que é muito difícil escolher concretamente em termos de wlho e novo. Independentemente do fato de que nem todo o novo li preferível ao velho, o fato mais importante é que as mesmas coi­ sas são novas e vellms segundo forem as circunstâncias históricas. Assim por exemplo, não é possível escolher entre capitalismo e socia­ lismo com critérios como novo e velho. Ambos os sistemas têm sua história em diferentes paises. Por exemplo, um sinal de como o so­ cialismo pode ser velho, é o comentário que uma revista de teologia de Praga faz da teologia da libertação na América Latina. Depois de reconhecer seus méritos, se queixa, entretanto, de que tal teologia não estabeleça claramente que a libertação já é uma realidade nos paises socialistas. 81 Em outras palavras, o novo e o velho na teolo­ gia de Shaull aparecem, mais como a atitude confiante e reverente com que o homem responde à atividade criadora de Deus apenas, do que como um elemento de Juízo para se orientar na história. Mas nesta passagem temos um tercetro elemento, ausente nos anteriores: uma gama mais ampla de atitudes humanas descritas. 30. "Christian faith as scandal in a technocratic world", em New Theo­ 'logy, ib., p. 130. 31. Cf. Adolfo Ham, artigo ctt.

Com efeito, não só temos as atitudes criticas, mas três atitudes po­ sitivas dignas de serem tidas em conta: "desperta. . . a espera11l)a de um novo futuro. . . nos liberta para esperar e servir as coisas que hão de vir". Pode-se perguntar se essas três atitudes, esperança, li­ bertação e serviço, constituem as caracterfsticas de uma opção revo­ lucionária. A resposta óbvia pareceria ser que não, a não ser que estejamos diante de uma classe estranha de revolução. De fato, o esperar e a libertação para esperar, podem ser, certa­ mente, o primeiro elemento de uma revolução, seu ponto de partida. Mas uma revolução real requer outro tipo de atitudes subseqüentes. Shaull, por outra parte, o sabe perfeitamente, já que é capaz de escandalizar a seus ouvintes com a descrição da mais real das revoluções. Fica, é certo, o terceiro aspecto ou atitude: o serviço. E IS evi­ dente que, se se der a este termo toda a sua extensão e sua profun­ didade, poderia parecer como sinônimo de revolução real, histórica. Mas esta hipótese nos fica vedada pelo final da frase, sumamente significativo: servir "as coisas que hão de vir". Exatamente como acontecia no documento dos bispos chilenos, onde uma palavra apa­ rentemente explosiva, "optamos", perde toda sua força histórica quando, inesperadamente, surge na frase seu complemento direto, "Cristo ressuscitado"; assim aqui o serviço perde seu conteúdo de­ cisório quando sabemos que o objeto desse serviço são "as coisas que hão de vir". 4.

A GRAÇA NUMA TEOLOGIA LIBERTADORA

No fim deste capitulo parece ficar claro que o problema da es­ treita e inevitável conexão entre fé e ideologias, coloca sérios pro­ blemas, primeiro às estruturas e à teologia da Igreja e, segundo, a uma concepção precisa da escatologia que tem atuado tanto na Igre­ ja católica como nas protestantes, mas que permanece mais viva a central nestas últimas. Sobre a Igreja, sua função e relação com as ideologias, conti­ nuaremos discutindo nos capftulos seguintes. Convém, por isso, di­ zer algo sobre a escatologia, para terminar o presente capitulo. A teologia da libertação é uma teologia profundamente ecumê­ nica. Aparentemente porque a preocupação cristã por colaborar pa­ ra a libertação dos irmãos une mais eficaz e mais seguramente os cristãos que a solução de antigos problemas teóricos. De fato, a

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Ubertação coloca problemas de tal magnitude que os cristãos de qualquer denominação se sentem mais próximos entre si quando têm optado pela mesma coisa na história, do que com seus próprios lrmlos de denominação. Isso se estende não só ao ecumenismo entre orlltlos, mas a um mais amplo, que une todos os homens de boa tODtade em opções decisivas e os separa da "má vontade" onde quer que esta se encontre. Mas quando a teologia da libertação examina sua própria meto dologta, encontra um segundo nível de ecumenismo e, nele, arroja uma luz nova sobre antigas e decisivas controvérsias. Partamos, por exemplo, do suposto de Paul Lehmann, de que "a pollttca de Deus é fuer e manter humana a existência do homem". 1 1 Sue mposto nos pode permitir compreender melhor o que aconte­ OIU em tempos passados e, de modo particular, o que acorreu no tempo da Reforma. As reflexões feitas neste capitulo pode servir de pano de fundo para o que vamos estabelecer. A teologfa católica oposta ao principio luterano da justificação pela fé, quer dizer, a justificação pela obras da lei, parece, à pri­ meira vista, não cristã ou, pelo menos, claramente veterotestamentã­ rl&. A única coisa que pode justificá-la, e isso é importante, é que, oposta ao servo arbítrio luterano, pretendia, de modo muito precário, talvez, manter o principio e o sentido da liberdade para algo defini· Uvo, e mesmo escatológico: a construção do Reino. Pelo contrário, a relação entre o principio luterano de salvação pela fé e não pelas obras, parece e certamente é, central para o p1D1&mento neotestamentário de Paulo, por exemplo. Se se o!ha bem, entretanto, só é fiel a uma parte do pensamento de Paulo, ao que poderiamos chamar seu aspecto de liberdade de (seguindo a distin• oi que faz Fromm entre liberdade from - de - e liberdade te para -). Em outras palavras, Lutero sublinhou muito clara e fiel­ mente que a fé devia livrar os cristãos da lei e de sua preocupação. Elta foi sua intuição criadora, e este foi seu problema interno e devorador. O terceiro elemento conciliador, o que poderia ter corrigido o llpUsmo católico e a passividade luterana, quer dizer, a liberdade para a construção do Reino, ficou assim relegado, e a controvérsia I• que ambos os extremos se consolidassem ainda mais em lugar de entrar em uma sintese fecunda e libertadora. a:a. PA'IJL LEHIIANN, Ethfcs in a Christian contut, Barper and Row, Kova York 1963, p. 101 e JX18Sim.

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A fé liberta o homem da preocupação da lei para que possa se lançar a um amor criador e não fique paralisado pelo problema de sua segurança e salvação individuais, cujo único critério estático po­ de ser a lei. Mas esta entrega de nosso destino a Deus não deve levar a pensar que Deus tem interesse em que o deixemos obrar so­ zinho, como se toda colaboração nossa fosse uma diminuição de sua glória. Pelo contrário, o Deus cristão é um Deus que, amando, neces­ sita do ser amado. Necessita de nossa criatividade para sua obra, e por isso pede que lhe entreguemos nosso próprio destino na fé. Por isso, assim como a doutrina católica foi claramente insuficiente ao colocar a lei como objetivo da liberdade, assim também o foi a doutrina luterana ao f"BZer da fé uma desprezadora do papel da li­ berdade. Será demasiada pretensão sustentar que uma teologia da liber­ tação só pode basear-se em uma profunda reconciliação e mútua correção da ambas as correntes cristãs? Não creio. E a experiência do diálogo, da busca e de decisões e compromissos libertadores simi­ lares mo faz entender assim.

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CAPtTULO VI

Ideologias e relatividade

Se aquilo que expusemos no capitulo anterior é verdadeiro, a fé constitui algo de absoluto enquanto é uma verdade revelada por Deus, que é a verdade absoluta. Entretanto, por estar destinada a uma função que não é ela mesma, até a verdade revelada e a adesão a ela na fé constituem algo relativo. Em outras palavras, o absoluto no plano desse Deus que revela uma verdade, não é que essa verdade seja aceita, mas que seja posta ao serviço dos problemas históricos e de sua solução. Pois bem, essa solução, como já vimos, é consti­ tufda por uma ideologia, isto é, por um sistema histórico de meios e fins em relação com o problema de que se trata. Do ponto de vista do valor, portanto, as ideologias constituem o absoluto de uma fé funcional e, por conseguinte, relativa a elas. Mas nem por isso deixam as ideologias de ser relativas às condições históricas que as engendram e condicionam. Nenhuma solução a um problema histórico pode pretender ter um valor absoluto, se abso­ luto significa independente de todo condicionamento circunstanclal. Pareceria, portanto, que, paradoxalmente, o absoluto fica defini­ tivamente submetido à relatividade histórica. Isto aparece claramente como a dificuldade maior, talvez, de uma teologia que sustenta a diferença e a complementariedade, estudadas no capitulo passado, entre fé e ideologias. Constitui, assim, um pro­ blema metodológico decisivo para a teologia da libertação. Se não lhe acharmos urna solução, toda esta teologia será tachada e condena­ da de relativismo. Evidentemente, o que precede pode ter mostrado que as pretensões da teologia acadêmica a um caráter absoluto eram ilusórias. Isso, entretanto, não impede que a teologia acadêmica continue se apresentando revestida com essa roupagem absoluta, en­ quanto que a teologia da libertação, a cada passo que dá, tem que

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enfrentar clara e explicitamente a acusação de não pretender sequer possuir semelhante caráter absoluto. Penso que o exemplo mais claro e, ao mesmo tempo, o terreno mais concreto e propicio para tratar deste tema metodológico é o tema da violência. Decidir qual deve ser a relação entre cristãos e violências, nos pode dar a pauta metodológica para tratar mil pro­ blemas semelhantes, com a vantagem de que, no primeiro caso, dis­ pomos de abundante material para examinar e julgar o processo de discernimento que normalmente se segue em tal terreno. Comecemos estabelecendo o fato de que os cristãos não parecem ter dificuldade nenhuma em convir que o mandamento de Jesus foi o amor mútuo. A dificuldade começa quando se trata de definir mais concretamente em que consiste um amor mútuo "cristão". Apa­ rentemente, existem duas grandes opiniões a respeito disso. Para a primeira, os fatos e a doutrina de Jesus especificam cla­ ramente que tipo de amor é requerido. Talvez o melhor resumo desta especificação o encontremos no conselho de Paulo aos Roma­ nos: "Não pagueis a ninguém o mal com o mal. . . Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem" CRom 12,17.21), isto é, assume a aventura do amor gratuito. "Oferecer a outra face", "dar também a túnica" e outros ditos semelhantes de Jesus, ainda que não sejam preceitos materiais, especificam claramente o tipo de amor que Jesus requer de seus seguidores. Para a segunda, Jesus não especifica que tipo de amor mútuo requer seu seguimento. E não o faz, precisamente para deixar livres os cristãos e para proporcionar-lhes assim uma atitude imaginativa e criadora na busca do amor que, em cada momento da história, for o mais eficaz e amplo possfvel. Evidentemente, esta segunda opinião não ignora as passagens evangélicas aduzidas pela primeira. Somente acentua sua funcionalidade e relatividade. Em outras palavras, nesses conselhos, Jesus chama a atenção dos cristãos para um tipo de amor que, por ser gratuito, parece, à primeira vista, um luxo inútil. Mas isto é tudo. A única regra que continua sendo válida é a do amor mais eficaz e amplo possfvel em cada caso. Importa notar que as duas opiniões supõem uma concepção di­ ferente da relação entre fé e ideologias. Para a primeira, o tipo es­ pecifico de amor que Jesus pareceria requerer, pertence à fé e não a uma ideologia particular na história. � um conteúdo da revelação e, sendo, além disso, o último, ele é constitufdo, pela fé, critério absoluto e irrevogável. Pelo contrário, para a segunda, a maneira

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concreta de amor que Jesus proclama constitui uma ideologfa. isto f, um sistema concreto, hisboricamente determinado, de conseguir o maior amor possível em determinada circunstAncia que, por princi­ pio, nunca poderá repetir-se nos mesmos termos: "ninguém pode to­ mar duas vezes banho no mesmo rio ... ". Para esta posição, as sur­ presas com que se pode deparar no futuro, vão desde a ressurreição de situações semelhantes às de um passado remoto e aparentemente superado, até circunstâncias quase totalmente novas e não asstmU,L veis às supostas pela mensagem concreta de Jesus. Por outra parte, a forma em que foi apresentada tal mensagem pode muito bem cons­ tituir o resultado da ideologia com que a primitiva Igreja Cristã teve que enfrentar os problemas de sua época. De qualquer modo, é evi­ dente o caráter muito mais relativista desta segunda posição. No capitulo anterior mostramos as razões que nos levam a ado­ tar esta segunda posição. Por conseguinte, não as repetiremos aqui. O que é necessário fazer agora é começar de novo uma análise feno­ menológica do que é esse amor que aparece como mandamento único do Novo Testamento. Tal análise nos permitirá aproximar-nos com maior profundidade do problema da violência e estudar, através deste 1lltimo, a relação entre a teologia normativa e o relativismo histórico. 1.

UM EXEMPID.

QUANDO E ONDE COMEÇA A VIOI.1:NCIA

Uma fenomenologia da violência em sua relação com o amor, deve começar descartando as terriveis superficialidades com que se analisam comumente os dados deste problema. De saída, devem des­ cartar-se as definições superficiais da violência, segundo as quais esta começaria com o uso de determinado tipo de armas. Assim por exemplo, ao fazer o resumo da Conferência sobre Igre­ ja e Sociedade em Genebra (1966), J. M. Lochman cita a primeira conferência, a qual, falando de revolução, estabelece que a contribui­ ção cristã a ela deve consistir na "ação •tranqWla', amante e sem armas, dos grupos cristãos". 1 As três características de bal ação são sumamente significativas. Em primeiro lugar, esta definição não toca no ponto essencial que consiste em decidir se o sujeito da violência é a pessoa armada independentemente da intenção de querer matar, defender-ae ou d& fender a outros da morte. Tampouco toca no problema de se a vio­ lência é uma ação moral ou imoral só para a pessoa armada, ou 1. Artigo ctt., p. 106.

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também para as pessoas, sociedades ou instituições que apóiam, pa­ gam ou obrigam a tais pessoas a atuar armadas. No mesmo artigo, Lochman pergunta se os cristãos podem "tomar parte em ações revo lucionárias que supõem o uso da força". Uso da força e violência serão, portanto, sinônimos? l!l violência obrigar pela força armada a outra pessoa a cumprir com a lei? Ou será que as leis necessitam sempre fazer uso da coação armada e os cristãos têm, portanto, que abandonar toda sociedade legalmente estabelecida? Porém a terrível superficialidade deste tipo corrente de defini• ções aparece ainda mais claramente quando se trata de decidir que tipo de instrumentos devem ser considerados armas. Tratar-se-á de uma arma de fogo, de um cacete, de um punho, de um insulto, de um preconceito, de uma estrutura social global? Não me interessa assinalar como hipocrisia, e sim como fato sociológico significativo o de se falar de violência com relação à revolução e não à policia ou ao exército, para só dar um exemplo. Mesmo, porém, que se pudes­ sem encontrar, contra a evidência, grupos cristãos dispostos a lutar igualmente contra a revolução armada e contra o governo armado, ficaria por ser corrigida a terrível superficialidade com que se define o que é uma arma. Se, como é evidente, tendências mentais conscientes ou incons­ cientes podem constituir uma arma mais eficaz e perigosa para a morte de milhões de pessoas do que qualquer uma das armas clás­ sicas, por que se concentra o problema da violência na tmagem de um homem carregando uma arma? Será que as armas nucleares que possuem as superpotências podem eventualmente destruir nosso planeta inteiro numa guerra nuclear? Mas o egoísmo humano já está destruindo nosso planeta consumindo sistematicamente e talvez de um modo irreversível os recursos planetários durante uma "paz" nuclear... Todos estes comentários não têm outro objetivo senão o de acentuar a profundidade com que deve ser tratado o problema da violência e a necessidade de uma séria análise fenomenológica de sua relação com o amor. Tal análise pode começar com a oposição mais radical na con• duta humana, aquela que existe entre o amor e o egoismo. Qual é o lugar que a violência ocupa dentro desta oposição? Penso que qualquer análise fenomenológica pode mostrar com facilidade que a violência pertence a ambas as tendenctas opostas, como uma terra­ -de-ninguém entre as duas. O egolsmo não é mais violento que o amor, assim como o amor não é menos violento que o egolsmo.

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A psicologia, a biologia, a física mostram com clareza que o amor, como qualquer outra atividade humana ou natural, deve ser compreendido dentro do quadro de uma economia da energia ex!& tente. Dito em outros termos mais simples, se amamos realmente um número determinado de pessoas, não podemos incorporar outras pessoas dentro de nosso amor sem distribuir de outra maneira a mesma energia disponível, isto é, sem deixar sem energia certas áreas de nosso amor pelo primeiro grupo de pessoas. Se nosso amor pela humanidade em geral permanece vago e fne. ficaz, isso não se deve simplesmente a nosso egoismo, mas à condi­ ção humana dentro da qual cada pessoa somente tem uma quanti• dade determinada de energia disporuvel. Podemos certamente fazer com ela infinitas combinações. O que certamente não podemos fazer é aumentá-la, pelo menos em termos absolutos. Por isso, nosso amor deve pôr a seu serviço os mesmos instru­ mentos que podem e costumam estar ao serviço do egofsmo: o sexo em sua forma direta ou sublimada, e a agressividade, as tendências fundamentais que Freud chama Eros e Tánatos, libido e morte. Não existe outra energia para o amor eficaz. Por isso talvez nos chama a atenção que o Evangelho nos peça que amemos a nossos próximos. Parece bastante estranho que se nos aconselhe algo que tem sido sempre o principal pretexto para todos os egoísmos. Tanto mais que numa conhecida passagem evan­ gélica se nos aconselha ou ordena amar aos inimigos. A única resposta possivel e coerente a este problema consiste em reconhecer que o amor s6 pode ser eficaz, e por conseguinte real, quando possui razões e instrumentos para amar, e tal é o caso dos próximos. O amor aos inimigos só é possivel, em termos de energia, como uma extensão do amor aos próximos, não como uma alterna­ tiva com respeito a este amor. Por isso se toma diffcil compreender posições como aquela que defende John Swomley em seu livro Liberation ethics, ao escrever: "Um movimento antibelicista que trata de compartilhar o poder (po­ litico) com o complexo militar-industrial deixa de ser uma força real para a paz. Deve escolher entre eliminar tal complexo ou tor• nar-se cativo dele". 2 Este texto, e o contexto todo da obra, parece sugerir que existe uma série de meios que têm relação exclusiva com o amor e a paz, enquanto que outros - como neste caso o po2. Liberatton etldcs, Macm111an, Nova York 1972, p. ,7.

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der polltico - têm relação exclusiva com o egolsmo e a violência. A pergunta óbvia é como se pode eliminar o complexo militar-indus­ trial sem lutar com ele pelo poder. Os militares e industriais dos Estados Unidos devem estar ainda rindo por encontrar tio ines­ perados e involuntários aliados entre seus críticos mais encarniçados. Com efeito, ao supor que existem meios exclusivos para o amor, o amor real se corta as próprias mãos e apaga a própria fonte de sua energia. J!l claro que é compreensivel que se nos chame a atenção sobre a força corruptora do poder. O mesmo pode fazer-se a propósito do dinheiro, do sexo e de tudo aquilo que é tnstrumental. Sendo, em sua essência, neutros, mas dispondo de um mecanismo interno, é fácil ao homem perder de vista a intenção inicial e tornar-se escravo de tais mecanismos. Mas o privar-se de usá-los não é nenhwna ga­ rantia contra a escravidão; pelo contrário, pode ser a omissão que permite perpetuar a escravidão existente. J!l evidente, por exemplo, que o amor pela própria mãe tem as mesmas raizes psiquicas que o patriotismo, os preconceitos, o racismo e a guerra. Significa isso, portanto, que devemos desterrar a facilidade do amor matemo para nos livrar para a paz?

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Como é sabido, a - parábola do Bom Samaritano - foi resposta de Jesus à pergunta: Quem é meu próximo, isto é, aquele qllfl deve ser objeto de meu amor? O exemplo apresentado por Cristo na pa­ rábola mostra que qualquer um pode utilizar as mil ocasiões for­ tuitas que se apresentam para fazer de outro ser humano, e mesmo de um estrangeiro, um "próximo". Jesus critica a atitude do sacer• dote e do levita que não aproveitaram essa ocasião e passaram adiante. Não fizeram desse homem ferido no caminho um "pró­ ximo". Mas, pode alguém realmente amar sem passar adiante inú­ meras vezes diante de desgraças e necessidades humanas? A pará­ bola de Jesus é apenas uma parábola, não um preceito material. Se a forçarmos e fizermos dela uma regra material e externa para todas as ocasiões semelhanms, não teremos como resultado amor, mas uma incrível dispersão de energias e uma irreparável perda de tempo para um amor real e eficaz. François Mauriac o mostrou magnificamente em sua novela O cordeiro, apresentando-nos um estranho personagem que se vê obrigado por uma extraordinária sensibilidade a sistemati­ zar ao extremo a atitude do Bom Samaritano, mas cuja tragédia consiste precisamente em sua incapacidade para amar sistemática e eficazmente a nenhum ser humano concreto.

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Por isso Jesus não conclui sua parábola dizendo: "todo ser hu­ mano é teu próximo", mas "podes fazer um próximo de qualquer ser humano aproveitando as inumeráveis ocasiões que a existência oferece". E isso é muito diferente. Afinal de contas, e voltando à parábola, se o Bom Samaritano põde encontrar-se nesse momento junto ao ferido, e com dinheiro para pagar a hospedaria e com um burro para carregar o ferido, foi certamente porque anteriormente passou adiante perante uma infinidade de outras desgraças huma­ nas. . . Do contrário não teria nem burro, nem dinheiro, nem viagem. A economia da energia no amor supõe, portanto, um mecanismo para manter a uma multidão de pessoas fora dessa "vizinhança" ou "proximidade" onde somos capazes de exercer um amor eficaz. :t claro que tal mecanismo é necessário enquanto não pudermos encon­ trar outra combinação de energia que nos permita alargar o circulo de nosso amor e incluir nele novos "próximos". Esse mecantsmo é muito simples em termos psicológicos. Trata-se de não deixar que a pessoa se acerque de nós como pessoa, que nos interpele pessoal­ mente. :t evidente que este mecanismo serve tanto para o egoismo como para o amor e constitui, portanto, um continuo perigo que requer, por sua vez, uma profunda e sincera atenção. Mais ainda, essa discriminação de pessoas reais não pode fazer-se sem ansiedades, crises e pecados. Mas essa é precisamente a condição do ser humano: a � ser sempre, e ao mesmo tempo, justo e pecador, stmul justus et peccator. O Samaritano inteiramente bom não existe. Mais ainda, é uma contradição in terminis. Mas o que sobretudo interessa comprovar aqui é que o meca­ nismo para manter determinadas pessoas ou grupos alheios de nossa "proximidade" não é precisamente o ódio, mas a violência, ou ao menos um primeiro grau de violência. Em outros termos, podemos amar a nossos próximos na me­ dida em que impedirmos a outras pessoas de aparecerem como pró­ ximos em nosso horizonte. E para tirar a essas pessoas sua "pro­ ximidade", acudimos ao conhecido mecanismo de não tratá-las como pessoas, senão como furu;ões, coisificando-as. Mais concretamente, por exemplo, temos tempo e energias para amar a nossa famDia, graças ao mecanismo pelo qual podemos desinteressar-nos dos mi­ lhares de pessoas que cruzam cada dia nosso caminho, algumas delas a todo momento. Consideramos como uma intromissão indevida quando o padeiro, o carteiro ou o juiz nos querem interessar em suas histórias pessoais, porque estamos dispostos somente a tratá­ -los na medida das funções que representam e desempenham.

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Pois bem, ninguém pode duvidar que tal mecanismo violenta a realidade, Wl& e indivisivel, de tais pessoas, e a supreme pela força de nossa mente, se não pela força de armas externas e materiais. Além disso, ainda que tal violência comece sendo interna, a necessi• dade de fazer efetiva essa segregação e essa economia, fará que a violência que ela supõe apareça imediatamente na superfície das coisas. Haverá algumas pessoas, por exemplo, que terão livre acesso a nosso tempo, a nossa atenção, a nossa casa, e outras que apar­ taremos mental ou fisicamente. Nossos p-arentes, amigos e com­ patriotas terão mental e fisicamente um tratamento diferente do que os que não o são. Por que insistimos no aspecto material desta segregação necessária para a economia do amor? Precisamente porque a qualidade de pessoas que reconhecemos em nossos próxi­ mos os coloca, como é lógico, por cima das leis. Por outro lado, nossa relação com os seres humanos que não desejamos tratar como pessoas, no mais profundo sentido da palavra, se rege pela lei. A lei, com efeito, constitui a expressão mais genérica dessas relações im­ pessoais e funcionais com outros indivíduos humanos. E uma carac­ teristica intrínseca da lei é que ela sempre está apoiada por um poder coercitivo, quer dizer pela violência fisica que obriga a cum­ pri-la. Ninguém legisla se não tem meios violentos de fazer cumprir, ainda que seja involuntariamente, o que legisla. Se, portanto, não existe, solução de continuidade entre um ne­ cessário processo mental de segregação e a violência física, mesmo a mais legal e comumente aceita, temos que renunciar às simplifica­ ções que nos fazem descobrir violências apenas quando um revolu­ cionário empunha uma arma de fogo e que falam de uma não-vio­ lência compativel com as leis impessoais e com seu apoio coercitivo e armado. Esta conclusão fenomenológica pode ser corroborada e esclare­ cida com um exemplo. Se surpreendemos um ladrão assaltando nossa casa durante a noite, podemos escolher um dos dois caminhos para enfrentar a situação: podemos tratar o ladrão como a uma pessoa, no mais estrito e profundo sentido da palavra, isto é, inte­ ressar-nos por sua história, dialogar com ele sobre sua situação e suas chances na vida, tentar colocar-nos em sua situação e conhecê-la mais intima e concretamente. Ou podemos, pelo contrário, tratá-lo como a um ser humano impessoal, isto é, dotado de certos direitos e deveres fixados pela lei; e já que a lei nos permite repelir uma agres­ são injusta, seja quem for aquele que nos ataca injustamente, pode­ mos usar a força e mesmo as armas que a lei nos permite contra o assaltante noturno. Ou, se temos repugnância ou temor de usar pessoalmente a violência, podemos faz&lo indiretamente usando a

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'1olência que pagamos por meio de impostos, quer diar, os homens armados encarregados de fazer cumprir a lei com o peso dessas mesmas armas. A primeira vista, no exemplo aludido, a primeira possibilidade parece mais compatível com o amor ou, pelo menos, com um amor que pretende ser o mais amplo e eficaz possível. Mas é ai que nos damos imediatamente conta de que o exemplo é irreal e arbitraria,. mente simplificado. Discutimos nossa relação com o ladrão como se estivéssemos sós no mundo ou mesmo como se estivéssemos sós em nossa casa. Na realidade, temos previamente compromissos de amor, e de amor eficaz, com muitas pessoas, talvez com outras pessoas que dependem de nós e que habitam na mesma casa assaltada. Isso nos obriga inexoravelmente a realizar um cálculo energético entre dois amores. Se assim é, devemos concluir que a violência é uma dimensão interna de todo amnr concreto na história, assim como é evidente­ mente também uma dimensão interna de todo egoísmo. Dentro das leis econômicas da energia que regulam a eficácia de nosso amor, devemos certamente tratar de estreitar mais e mais as proporções dessa violência necessária sem prejudicar a eficácia do amor exis­ tente. Mas tratar de escolher entre amor e violência não tem o menor sentido, falando em geral. Creio que a análise fenomenológica que acabamos de realizar nos leva a estabelecer cinco pontos fundamentais: 1) não existem fnstrumentos próprios do amor e outros próprios do egolsmo, mas os únicos instrumentos existentes trabalham em ambas as direções segundo o projeto em que se integram; 2) a eficácia do amor, quan­ do só dispõe de uma determinada quantidade de energia, requer uma prudente distribuição energética, obviamente limitada, assim como dolorosas opções muito parecidas às do egoísmo; 3) tais opções, ainda que sejam sempre perigosas por sua ambigüidade e sua possi­ vel utilização inconsciente para fins egoístas, e ainda que sejam dolorosas para outras pessoas afetadas por elas, não têm, essencial­ mente falando, nada que ver com o ódio e o egoísmo: seu meca,. Dl.smo consiste em submeter pessoas reais à lei que regula nossas relações com coisas e funções impessoais; 4) tal redução necessária em nossa maneira de pensar e de atuar é, desde o primeiro momento e desde seu nivel mais sutil, verdadeira violência, dado que opõe à livre expressão pessoal de outros seres uma força impessoal interna ou externa ou, para dizer melhor, interna e externa; 5) esta violên­ cia estrutural e básica não se opõe ao amor, mas é uma dimensão interna e essencial de todo amor eficaz dentro da condição humana,

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ainda que, por outra parte, esteja na dinâmica do amor o reduzir, na medida do possivel, a dose de violência necessária para sua efi­ cácia. 2. UMA EXEGESE EVANG1:LICA SOBRE A VIOI..l!:NCIA Com estes cinco elementos em mente, podemos agora tratar de estabelecer os pontos principais de uma cristologia em relação com a violência. Com efeito, uma cristologia libertadora deve lutar contra a he­ resia larvada que nela se esteve infiltrando inconsciente e tacita­ mente. Segundo esta heresia - ainda que nunca se explicite a su­ posição -, Jesus, sendo Deus, não pode ter sido, afinal de contas, completamente humano. As fórmulas que se usam às vezes para defini-lo: "o homem para os demais", "o homem sem pecado", "o homem do amor gratuito", "o homem do amor não-violento", podem talvez ser entendidas corre­ tamente, e em alguns casos certamente o são; mas, falando em geral, tendem a colocar Jesus para além da lei fundamental de todo ser verdadeiramente humano, a da economia da energia com suas doloro­ sas conseqüências. Ora, quando partimos da hipótese oposta, isto é, de que Jesus, sendo verdadeiro homem, teve que conceber e orientar sua existência histórica levando em conta esta lei inexorável, nos surpreende o fato de que os Evangelhos, acusados muitas vezes de idealizar a Jesus por causa de fé pós-pascal, são testemunhas perfeitamente conscien­ tes do que poderiamas chamar a característica "imperfeita" da exis­ tência de Jesus. "Quando João [Batista] foi encarcerado [na Judéia], Jesus se retirou para a Galiléia a pregar o evangelho de Deus... " (Me 1,14), anota simplesmente Marcos. Mas a mera justaposição dos dois fatos aponta para uma dolorosa alternativa. João era seu mensageiro e precursor (Me 1,2), preso por proclamar a mesma doutrina que Jesus proclama (Me 10,10). Jesus não oculta sua admiração por ele, o maior profeta de Israel (Mt 11,9; Lc 1,76). Não é lícito supor que o abandonar o Batista à sua sorte, o não solidarizar-se publicamente com ele para talvez partilhar sua sorte, teve que constituir uma dolorosa alternativa? Mas nem é necessário fazer um exercício de imaginação para chegar a tais conclusões. O próprio Batista que no Jordão protesta ante o pedido de Cristo de ser batizado: "Eu é que devo ser batizado por ti" (Mt 3,14), sofre a tal ponto o impacto dessa 178

aflltude de Jesus ant.e sua prisão que lhe manda perguntar: -. tu aquele que há de vir, ou temos que esperar por outro?" CMt 11,3). Os evangelistas certamente têm consciência de que ..o homem para oa demais" decidiu não ser, concretamente, "o homem para Joio Batista". Ou sê-lo numa forma tão indireta que não podia senão produzir uma profunda ferida e uma dolorosa crise no amigo. Pe­ cado? Se tomamos como pecado todo o mal não absolutamente ne­ ceasário infligido a uma pessoa, é claro que foi pecado. .Mas esta concepção materialista ou literal do pecado tem que ser colocada nas coordenadas reais da economia da energia. E ai certamente po­ demos compreender que Jesus põde, sem pecado, fazer opções entre dois "pecados" materiais inevitáveis. Em outras palavras, podemos compreender que a impecabilidade de Cristo não é sinônimo de uma inocência inumana. Ainda que a fórmula possa parecer estranha, o pecado tem um lugar positivo na existência de Jesus. O universalismo, por exemplo, é certamente uma qualidade do amor. Ora, facilmente esquecemos, ao ler o Evangelho, que o uni• versalismo de Jesus só foi compreendido depois de sua ressurreição. Os discipulos, de acordo com o ensinamento de Jesus, deviam reduzir aeu ministério a Israel, não indo a nenhuma parte do território dos pagãos e não entrando em nenhuma cidade dos samaritanos (Mt 10,5-6). Estamos tão acostumados a pensar no universalismo de Jesus que automaticamente entendemos estas proibições como uma estra­ tégia superficial e provisória, dominada, já. desde o começo, pela visão de uma Igreja sem fronteiras. Por isso não prestamos atenção alguma à violenta segregação que tais proibições significam para os pagãos e os samaritanos. Não podemos supor que a fonte de tal aegregação ou, se quisermos, da violência feita a pessoas humanas, ae ache radicada na própria mente e na afetividade de Jesus. Talvez seja útil, por isso mesmo, dar uma olhada sobre o en­ contro de Jesus com a mulher siro-fenicta, quer dizer, não israelita e pagã. Quando a mulher lhe pede que cure sua filha, a resposta de Jesus é uma direta alusão à economia da energia no amor: "Deixe que os filhos se saciem primeiro, porque não é bom tomar o pão dos filhos e dá-los aos cães" (.Me 7;1.7). contra todas as leis da exegese, alguém pode pensar que Jesus apenas está pondo à prova a fé daquela mulher, e não expressando seu próprio pensamento acerca das relações entre Judeus e pagãos. .Mas, ainda assim, será. licito usar - sem pecado - esse profundo tipo de violência que 1&Code as raizes mesmas da própria identidade nacional, para pôr à prova outra pessoa humana? Numa palavra, as tentativas para desculpar a Jesus o condenam ainda mais. Muito mais lógico é supor que, como em todos os seres

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humanos, o amor concreto e eficaz de Jesus por seus próximos, quer dimr, por seus compatriotas, estava feito precisamente com esse me­ canismo inconsciente que aproxima de uns e afasta de outros. E o que é esse afastar, senão o aceitar os comuns preconceitos contra os estranhos, precisamente por serem estranhos e mantê-los estra­ nhos? Como teria Jesus podido chorar sobre Jerusalém se tivesse estado ausente nele todo preconceito nacionalista? Todo preconceito é violência latente ou explicitada no exterior. Mas sem essa violência também morre o amor e fiutuam os seres humanos à mercê de uma violência ainda maior. :t: claro que cabe perguntar o que é que distingue este "amor" de Jesus, das piores formas de egolsmo e ódio, como, por exemplo, da segregação racial na .Urica do Sul. E, mais uma vez, teremos que responder que a diferença não está nos meios. Em outras pa­ lavras, não é examinando os meios empregados que vamos poder decidir se se trata de amor ou de egofsmo. Ambos dispõem dos mesmos meios porque, mais em profundidade, ambos dispõem da mesma energia, dos mesmos canais instintivos e racionais. Jesus não constituiu uma exceção a essa regra. Mais ainda, quando a teo­ logia ou a ética esquecem isSo, estão consciente ou inconscientemen­ te contribuindo para perpetuar a exploração, a segregação e o egofsmo. Mostramos no parágrafo anterior que o mecanismo que nos permite afastar de nossa atenção e de nossa sensibilidade pessoas a quem atualmente não podemos amar de um modo eficaz, consistia em submergir essas pessoas reais e únicas no anonimato de um grupo, de uma categoria, de um preconceito, de uma lei. Recordemos que toda categoria ou lei oblitera os traços pessoais e históricos dos seres que caem dentro dela. Pois bem, mais uma vez, Jesus não foi exceção no uso deste mecanismo essencialmente violento. Não resta dúvida, por exemplo, de que cada fariseu era uma pessoa única. No abstrato, nunca pode existir uma razão para cortar o diálogo com uma pessoa, porque no próprio conceito de pessoa está incluída a liberdade, a possibilidade de refiexão e de mudança, o valor absoluto de um ser pessoal. Sob o mesmo ponto de vista abstrato, cortar tal diálogo é uma violência feita a esse caráter pessoal e único, uma redução de tal pessoa à categoria de instrumento. Tudo isso em abstrato. No concreto, temos que escolher entre uma pessoa e outra para dialogar. Nossa vida não é infinita e tam­ pouco o é nossa energia. Pois bem, Jesus corta abertamente o diá­ logo com os fariseus. E usa para isso o mecanismo de submergir a essas pessoas concretas e únicas num grupo ou categoria mental onde

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perdem suas caracterfsticas Individuais: "Vós hipócritas, ..!" (Me 7,8 • JJ(llrim). A partir do momento em que algwhn Incluiu mentalmen­ te a pessoas concretas na categoria de hipócritas, surge a possibili· dade de desinteresse por elas, de cortar o dlá.logo e de dar tempo e atenção a outro grupo, o dos próximos, o dos que "estavam perto dele" (Me 4,10 a). Somente uma simpliflcaçio idealista das atitudes de Jesus pode apresentá-lo como consagrado a um amor sem limites, sem resistên­ cia, sem violência. Pouco importa, afinal, se chegou, em uma ocasião, a empunhar um chicote para expulsar do templo os comerciantes (Me 15,15 s; Jo 2,13 s). 3. OONDICIONAMENTOS RELATIVOS DE UMA FJf:

ABSOLUTA

Por enquanto, os resultados de nossa análise fenomenológica e mgética são negativos. Na medida em que forem corretos, podem -.luc:lar a destruir as simplificações que se amontoaram sobre este tipo de matérias. Por outra parte, tais análises nos colocam frente ao mais grave do problema inicial: os critérios. Tudo o que precede pode resumir­ • nisto: que o uso destes ou daqueles meios não pode decidir se o projeto em que aparecem é amor ou egoísmo. Em outras palavras, com as análises anteriores temos · atacado aa possibilidades que a ética ou a moral, inspiradas na mensagem �ti. parecem ter para decidlr de antemão se uma ação é ou não é coerente com a revelação. E certamente parece incrível que teólo1os versados na ·exegese bíbllca possam manter que o mandamento "não matarás" (� 20,13) constitui um critério divino que permite excluir, quaisquer que sejam as circunstâncias, o uso de armas mor­ tais, a revolução ou a guerra. Em primeiro lugar, qualquer Investigador sério da Bíblia sabe perfeitamente que os chamados "dez mandamP.ntos" - que sejam ou nio dez - aparecem em diversas passagens e épocas redacionals não como exigências de uma moral interna, mas como o conjunto de condutas necessário para o mantenlmento de um determinado povo em uma determinada situação histórica. Por isso, mais que uma lei moral, os mandamentos bíblicos se assemelham antes a uma "cons­ tituição" civil - é claro que religiosa - que apresenta profundas mudanças de acordo com as diversas situações históricas que Israel deve enfrentar. Somente uma Interpretação espiritualista muito pos-

terior e multo alheia da primitiva significação dos mandamentos, faz deles dez regras internas de uma moral absoluta ditada por Javé. Em segundo lugar, qualquer conhecedor mediano da Bíblia sabe que um mandamento como "não matarás" não pode ter pretensões de constituir uma regra moral absoluta, já que a mesma letra da Bíblia obriga o povo em diferentes circunstâncias a matar e supõe, assim, que matar é legitimo. Por exemplo, os israelitas foram obri­ gados pelo próprio Deus a lutar e, seguindo o exemplo divino, a matar os inimigos de Deus e de seu plano libertador. Mais ainda, nesse tipo de guerras religiosas estavam obrigados não só a matar os soldados inimigos, e sim a exterminar populações inteiras (cf. Dt 7,16; 1 Sam 15,3 s etc.). Os israelitas foram também obrigados por Deus a matar a pes­ soas do seu próprio povo, culpáveis de diversos crimes e, em par­ ticular, de crimes sociais (cf. Dt 22,13 s; 24,7; Núm 35,9 s). Mais ainda, - e isso é importante para uma sociedade em que não exis­ tem possibilidades de obter justiça legal - os indivíduos particula1·es que se tinham constituldo em "vingadores do sangue", isto é, em juízes e executores de crimes não castigados, eram respeitados em seu direito de exercer a justiça matando os culpáveis (cf. Núm 35,22 s). Resumindo, e para nos atermos à própria letra da Bíblia, o man­ damento "não matarás" nunca teve em Israel mais universalidade do que aquela que teria a fórmula "não matarás sem causa Justifi­ cada". Tudo isso, como se vê, nos devolve o problema dos critérios que permitam saber quando uma violência, que chega a tirar a vida a um outro ser, está justificada ou não. Em outros termos, o man­ damento "não matarás" nunca foi entendido como a repugnància de Deus a um determinado instrumento humano: a violência ffslca. J!l certo que, à primeira vista, Jesus no Evangelho parece ter compreendido em forma absoluta o preceito "não matarás" a ponto de modificá-lo e levá-lo a um grau de estriteza insuportável no âm­ bito das relações humanas normais: "Ouvistes o que foi dito aos an­ tigos: 'não matarás'. Eu porém vos digo que todo aquele que se aborrecer de seu irmão estará exposto a julgamento; e qualquer um que insultar a seu irmão será réu perante o Sinédrio; e todo aquele que disser 'estúpido' será exposto ao inferno de fogo" (Mt 5,21-22). Pois bem, tem-se a impressão de que Jesus teve especial cuidado em passar por alto seus próprios conselhos ou preceitos, sem dúvida para que não os tomássemos como uma adição material ao já mate­ rial "não matarás" do decálogo. "Ele os fitou.. . aborrecido .. " (Me 3,5); ". . . esta geração ad11ltera e pecadora .. .!" (Me 8,38); ". . . hi-

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pdcritas ... !" (Me 7,6). Temos que escolher. Ou temos que entender, no texto de Mt 5,22, por irmãos e irmãs somente aos que obram o bem ( com o que fica automaticamente desqualificado o aborrecer-se com eles ou o insultá-los), e se permite dizer "estllpido" ao irmão que realmente o é; ou temos que aceitar que a violência dessas ati­ tudes é um meio relativo e que Jesus, com seus conselhos, aponta para a menor violência posslvel compatlvel com um amor eficaz, pro­ porção que terá que ser estudada e determinada em cada situação humana historicamente enquadrada. Em outras palavras, tudo o que encontramos na Blblia a res­ peito da violência ou da não-violência, são ideologias. Ideologias necessárias, é claro, já que sempre teremos ante nós a tarefa de encher o vazio entre a fé e as concretas realizações históricas. O Evangelho nos ensina, assim, como o repisa São Paulo, que a lei, concebida como o tipo de ideologia que surge de um momento dado da revelação, não está acima, mas abaizo do homem. Ao dessa· cralizar as ideologias, que eram nosso antigo pedagogo (Gál 4), a revelação cristã nos coloca, entretanto, diante de um problema ainda maior. Se devemos escolher a ideologia que for apenas a mms con­ veniente C1 Cor 6,12 s; 10,23 s), qual é o critério para tal escolha? :l!l evidente que a linguagem de São Paulo, mais ainda que a do Evangelho, aponta para um amor que depende da situação concreta da pessoa que ama e da pessoa que é amada. Talvez possamos captar esta preocupação pelo concreto na tradução paulina do mandamento do amor: "Aquele que ama a seu próximo cumpriu a lei" (Rom 13,8). A fórmula parece dizer: se teu amor afetar realmente a outra pessoa, cumpriste a lei. Isso nos leva, portanto, a considerar os infinitos condicionamentos históricos necessários para que um amor- determi• nado seja eficaz. Mais ainda, Paulo adverte aos cristãos várias vezes de que devem mudar de conduta moral segundo forem as mudanças 1.1ignificativas nas circunstànclas que cercam os próximos. O que po­ deria ser permitido ou conveniente em uma situação dada, se torna inconveniente e, portanto, proibido, um momento depois com a mu­ dança de circunstância (Rom 14,1·21; 1 Cor 8,7-13; 10,2�). Mais uma vez, será que o amor mais eficaz e amplo poderá atuar como critério principal e suficiente nas opções morais? Significará isso relativismo ou, como dizem, "ética de situação"? Comecemos com o problema do relativismo, reconhecendo, de aafda, que nele se encerra um dos pontos-chaves da metodologia para uma teologia da libertação.

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Supõe-se geralmente que a fé é a única receita contra o relativiS­ mo na história. Sem a fé, o homem ficaria à mercê de diferentes valores, entre os quais só poderia estabelecer escalas tão relativas como os próprios valores. Supõe-se igualmente, e Sartre se deu ao trabalho de demonstrá-lo amplamente, que uma moral absoluta num ateu é apenas uma falta de lógica e uma reminiscência de um pas­ sado religioso: em outras palavras, a sombra da fé. "Se Deus não existe, tudo é permitido", tal é a tese com que começa Dostoievski sua obra gigante Os Irmãos Karamazov. Entretanto São Paulo su­ pôs precisamente que a existência do Deus cristão significava que "tudo é permitido". Em outras palavras, nosso problema não está justamente no fato de que, sem a fé, o homem vive em pleno relativismo, mas em que essa é também a situação com a fé cristã. J!l claro que por pleno relativismo, como vermnos a seguir, não nos referimos a um caos ou a uma vacilação ou oscilação entre valores contraditórios. Na lingua­ gem corrente identificamos muitas vezes relativismo com capricho, com um pragmatismo cru, com a instrumentalização egoísta de pes­ soas humanas etc. Mas nenhum desses traços tem razão para estar essencialmente ligado com o ateísmo nem, por conseguinte, com a falta de fé num Deus que proporciona verdades absolutas. Muitos homens sem fé teológica. podem viver uma vida sumamente moral e coerente. Ainda mais, uma certa mistura estranha de absoluto e relativo, própria de muitos crentes, dá lugar à racionalização de condutas em si mesmas caprichosas e contraditórias. Por isso mesmo creio que é útil uma breve reflexão sobre os C9��o�entos essencialmente relativos dos quais depende uma fé absoluta. Ant.es de mais nada, não pode existir tal fé sem uma base ou garantia igualmente absoluta. E está claro que tal base ou garantia só existe na medida em que o próprio Deus existe. Ora, talvez pos­ samos resumir o estado atual do problema da existência de Deus, sustentando que o valor das provas de tal existência depende, primeiro, da suposição - inverificável - de que nossos mecanismos de conhecimento trabalham i gualmente bem tanto fora quanto den­ tro da existência sensível em que podemos controlar sua eficácia; e, segundo, da suposição - igualmente inverificável - de que, quando nossos mecanismos de conhecimento e de desejo, mesmo trabalhando dentro dos limites da experiência, não podem ser explicados a não ser supondo a realidade de um fim infinito para o conhecimento e o desejo, é necessário dar por descontada a existência real de tal entidade.

Além de ser evidente que a segunda suposição supõe, por sua vez, a primeira, deve ficar manifestado que se a fé pretende romper a condição relativa de todo o conhecimento humano, seus pressu­ postos lógicos teriam que estar dotados de um caráter absoluto de certeza que, como é óbvio, não possuem. Os argumentos racionais podem mostrar que a fé não é irracional, e isso é tudo. A fé pressupõe, além disso, um encontro histórico com esse Deus que revela o que há de ser crido. E, de novo, é fácil demons­ trar que não dispomos de critérios absolutos no que se refere a tal encontro. Concretamente, achamos esse tipo de tradições sobre um encontro revelatório com Deus no seio das Igrejas (para não entrar no terreno mais amplo das "religiões"). Ora, cada Igreja, como qualquer grupo humano na história, se nos apresenta ambígua e re­ lativa, não desprovida certamente de valores, mas também não des­ provida de erros e pecados. A única maneira de apontar infalivel­ mente para uma Igreja determinada seria tirar tal certeza da própria revelação divina. Mas é justamente para encontrar tal revelação que necessitamos distinguir entre as Igrejas. A evidência desta espécie de circulo vicioso - no que se refere ao caráter absoluto da certeza - ainda se torna maior quando se toma em conta que a revelação de Deus depende da Igreja porque 86 a Igreja fixa, entre os inúmeros livros humanos, o "cânon" ou lista dos que serão aceitos como veículos da revelação. Ora, o pro­ cesso de nossa certeza deveria poder seguir e verificar o processo histórico da fixação desse cânon, do qual vai depender que en­ contremos ou não uma revelação de Deus na história. Mas tal processo de fixação do cânon escriturário permanece obscuro e in­ certo e, sobretudo, ambíguo e humano. Muitas vezes talvez não nos damos conta do impacto relativista que isto supõe: escolhemos a tradição de uma Igreja porque essa mesma Igreja selecionou entre as escrituras humanas algumas escrituras divinas que a creditam, e isso por um procedimento do qual ela mesma já não se recorda. Mas mesmo dando por concedido que a Igreja foi fiel em reco­ nhecer a divina revelação entre uma infinidade de livros particulares e históricos, fica ainda por decidir se esses livros pretendem ou não possuir uma verdade divina válida para todas as circunstâncias e períodos da história. Por exemplo, se seguimos a história da reda­ ção da Bíblia, é óbvio que o processo redacional não mostra um crescimento continuo do mesmo conjunto de verdades que se supõe reveladas. Pelo contrário, trata-se de um processo em que se opõem, ae julgam e se contradizem opiniões sobre Deus e a moral. Se concentramos o absoluto de nossa fé na divina revelação de Jesus, ainda que independentemente do fato de que o Jesus histórico

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se acha oculto atrás das diferentes interpretações que nos dão dele os diferentes autores e comunidades do Novo Testamento, que cri­ tério podemos ter de que nele reside a verdade, toda a verdade, e nada mais que a verdade? Será que temos sinais que nos permitem afirmar, por exemplo, que Deus falou na história através de Jesus e não através de Sócrates ou através das autoridades religiosas esta­ belecidas por Deus no que hoje chamamos de Antigo Testamento, mas que naquele tempo representava o único Testamento? Jesus não considera ter oferecido à sua geração nenhum sinal celestial. Menos ainda a nós, portanto. O jwzo que sobre ele pu­ deram formar seus contemporâneos dependeu da capacidade que ti· veram, capacidade por certo muito vaga e relativa, para apreciar suas ações libertadoras. Seria demais dizer que os critérios com que nós, hoje, reconhecemos uma verdade absoluta em sua mensagem, devem depender necessariamente do fato de que tais ações nos pareçam per­ tencer a um plano muito diferente do de tantos heróis anteriores ou posteriores da libertação humana, aos quais não consideramos como portadores de uma verdade absoluta. Forçosamente, o critério para fazer esta seleção do absoluto não ultrapassa o plano do relativo, por paradoxal que possa parecer. Se nesta questão dos sinais ou provas, Jesus quis fazer uma ex­ ceção com sua ressurreição dentre os mortos, devemos confessar que fracassou. As �temunhas são apenas testemunhas interessadas, os relatos mostram um grau particularmente alto de incoerência se se comparam com os equivalentes ao resto da vida pública de Jesus. A dificuldade, admitida, de reconhecer o ressuscitado e o minimo interesse deste, para não dizer o completo desinteresse, em fazer de aua ressurreição um argumento para se admitir a validade absoluta de sua doutrina, são outros tantos pontos recuperados pela relati­ vidade de todo o histórico. Mais ainda, dizer que temos fé em Jesus, quando, na realidade, não possuímos nenhum rasto direto de sua vida ou de sua palavra, significa, afinal de contas, que temos fé nos que o conheceram, interpretaram e nos deram sua versão sobre ele. Isto se aplica, é claro, aos evangelistas, aos demais escritores do Novo Testamento e, no curso da história, ao ramo principal da Igreja que defendeu uma interpretação de Jesus contra outras que hoje consideramos hetero­ doxas, mas que, no momento da discussão, se apresentaram como as únicas interpretações autênticas da vida e da doutrina de Jesus. Em outras palavras, declarar de absoluto valor essa vida e essa doutrina parece supor que a reconhecemos com absoluta certeza, o que entra em choque com a relatividade de mil jwzos históricos

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que são a base lógica necessária para poder afirmar que se teve em realidade um encontro com Deus no meio da história humana. 4.

A MORALIDADE DOS MEIOS

O leitor perguntará que sentido tem esta lista de relatividades, que parece extemporânea e longa - ainda que não completa -, que aparecem como base lógica de uma fé que pretende ser absoluta. Ainda mais intrigará, talvez, o leitor averiguar como, a partir do problema da violência, viemos parar nesta temática dos pressupos­ tlos relativos da fé. Comecemos com a tentativa de dar uma resposta a esta última pergunta. O problema da violência foi introduzido em nosso tema met.odológico como um exemplo da relatividade que significa tratar de decidir que atitude moral concreta corresponde a nossa fé. Mas Justamente esta dificuldade leva, consciente ou inconscientemente, a teologia a entrincheirar-se no dogma para preservar seu suposto ca­ ráter absolut.o em meio à circundante relatividade histórica. Evitar a aplicação moral ao que é relativo e ao que está sujeito à mudança, negar que exista tal mudança, ao menos numa proporção significa­ tiva para a moral que procede da fé, trabalhar no dogma indepen­ dentemente do plano moral e de seus problemas concretos, são outros tantos escapismos conhecidos da teologia acadêmica. Justamente por isso é necessário atacar o problema pela raiz. E mostrar que não só a aplicação da fé aos problemas históricos e concretos da moral supõe uma aceitação do relativo, mas que o próprio dogma teológico está sustentado na mesma relatividade. Está muito longe de minha intenção pretender, com a sobredita lista, minar os alicerces da fé ou tirar-lhe o valor absoluto. Como diz Nicolau Berdiaeff, o absoluto de minha fé não depende (ainda que isso pareça contraditório, à primeira vista) do fat.o de que os historiadores cheguem a provar com absoluta certeza a existência histórica e o conteúdo "objetivo" da vida e da doutrina de Jesus. O que fica exclufdo, ou pelo menos deveria ficar, é a tentativa de evadir-se do relativo apelando para o caráter absolut.o da fé. Como Já dissemos e mostramos, a fé pode ser absoluta e contudo não tem valor nenhum se não for utilizada para nos orientar no plano do relativo. E, para fazê.lo deve aceitar de contagiar-se de relatividade como de seu condicionamento natural e inevitável. Voltemos agora ao problema da moral cristã, para passar depois ao da própria fé, em suas relações com o relativo da história. Nossa amWse fenomenológica e exegética do problema da violência nos leva, 187

pelos caminhos da lógica, à conclusão, aparentemente escandalosa, mas óbvia, de que o fim justifica os meios. Nem sequer precisamos que o Evangelho no-lo dissesse claramente com sua linguagem mais concreta: "Não é aquilo que entra no homem mas o que sai do projeto do homem que o faz moral ou imoral" ( versão não literal, mas fidedigna de Me 7,16; cf. ib. 7,18-23). Basta analisar a linguagem mesma para compreender que um meio, precisamente porque não é senão um meio, não pode ter Justificação em si mesmo. O fim para que é usado é que lhe dá valor, ou pelo menos um valor moral, diferente de sua mera e neutra instrumentalidade. Podemos dizer que, por definição, o fim Justifica os meios. Talvez seja conveniente esclarecer que o escândalo diante de uma proposição tão evidente e lógica possUi aquilo que poderíamos cha­ mar de dois niveis. No primeiro nivel, o mais superficial, explicito e comum, se pressupõe que dizer que o fim Justifica os meios equi­ vale a declarar qualquer coisa como Justificada, Já que qualquer louco, sádico ou egoísta pode declarar essa coisa como meto para o seu fim. Porém isto equivale a esquecer que a moral cristã é pre­ cisamente uma moral de fins e que a mensagem cristã tem precisa• mente como projeto levar o homem aos fins mais comunitários e generosos que se possam conceber. O grande desafio da moral cristã à moral legalista e tradicional consiste no fato de que existem fins maus que não podem Justificar nenhum meio, nem sequer os mais legais e sagrados, utilizados para sua realização. Assim, na mentalidade da maioria dos cristãos, che­ gou a ser decisivo determinar que método se pode usar ou não para controlar a natalidade, enquanto existe a mais absoluta despreo­ cupação a respeito da necessidade de integrar um certo controle da nat.aJldade às finalidades mais decisivas da espécie humana, ou a respeito do problema de saber qual o controle mais adequado para tais finalidades, ou ainda a respeito do problema de saber que obscu­ ras motivações trabalham num desequilibrado controle da natalidade, usando ou não usando estes ou aqueles meios para isso. Num outro nivel mais profundo e que esconde mais seus verda­ deiros motivos, o escândalo ante a possibilidade de que o fim Jus:­ fique os meios na moral cristã, procede da dificuldade para deter­ minar os critérios válidos para tal Justificação. Em outras palavras, quando um determinado fim, que pode ser subsumido sob o termo geral de amor, pode Justificar determinados meios e rechaçar outros? Antes de tudo, podemos admitir que amor, como definição de um fim moral, é um falso singular. Raras vezes, ou mesmo talvez nunca, escolhemos entre amor ou egofsmo como finaUdade de nossa 18!

ação: optamos por um determinado amor contra outro. C8da situa­ ção humana oferece múltiplas, se não infinitas, possibilidades para diferentes tipos de amor. Não basta tampouco dizer, para eliminar a dificuldade que eza. minamos, que a qualidade do amor deve ser o criWrio para a moral cristã. Ainda que fosse assim, a qualidade não pode medir-se em abstrato, mas tendo em conta as reais possibWdades de que dispo­ mos em cada caso. De nada vale escolher um amor sublime quando não dispomos de meios para realizá.lo. Escolher a qualidade fm. possível não ajuda realmente a ninguém, enquanto teria ajudado e&COlher um amor menos sublime porém realizável, para com pessoas reais. Tudo isso nos obriga a voltar a estudar os meios. A dificuldade, entretanto, reside no fato de que Já não o fazemos procurando que o meio nos diga por si mesmo, quer dizer, sem relatividade, a sua moralidade. Devemos estudar os meios para saber quais são, numa situação histórica dada, as melhores e mais ricas possibilidades para o amor. Em outras palavras, o meio recobra aqui todo o relativismo que seu nome mesmo indica e, com isso, introduz um elemento de ansiedade e de dúvida na moral cristã. Com efeito, estamos propondo aqUi uma "ética de situação"? Para muitos, este último título está associado com a idéia de viver "em pleno relativismo", o que, por sua vez, implica uma maneira caótica e funesta de resolver os problemas morais. Ou, se preferir­ mos, uma maneira de não resolvê-los. J!': evidente que, antes de mais nada, o problema depende da definição que dermos a essas palavras "ética de situação". Se se aceita a definição de Swomley, certamente nossa posição está com­ preendida sob esse titulo. "A ética de situação - escreve ele - dife­ re da ética da regra pelo fato de começar supondo que cada situa­ Olo é única e requer, portanto, uma aplicação diferente do amor ou do respeito pelas pessoas". 3 Se tal pressuposto inicial é suficiente para que uma ética, que nele se baseie, leve o nome de "ética de 11tuação", dificilmente se poderá encontrar outro tipo de ética com­ patlvel com a razão humana e portanto também com a mensagem crlati. Talvez Swomley queira aterrorizar-nos, advertindo-nos a respeito dai conseqüências lógicas que derivam de tal critério ético: "Em cada ocasião em que é necessário fazer uma opção moral, o amor deve ser usado como norma para a conduta, de tal maneira que a 3. lb., p. 21.

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liceidade de qualquer ação, inclusive roubar ou matar, seja determi­ nada pelo resultado da soma: situação mais amor.". Confessamos que não nos sentimos aterrorizados por tal conseqüência, nem pela possibilidade de que certas situações convertam o roubar ou o matar em ações licitas. Já temos visto que isso foi assim desde o começo do Antigo Testamento e que os mais conservadores manuais de mo­ ral cristã continuam nos oferecendo exemplos de situações em que ambas essas coisas são licitas. Não resta dúvida de que Swomley percebe mais ou menos clara­ mente que, depois de tais definições, o que ele chama de "moral da regra" deve necessariamente aparecer como uma moral farisaica ou sem verdadeiro fundamento. O certo é que ele se vê obrigado a acrescentar, como que acidentalmente, um novo elemento decisivo à sua definição da "ética da situação", quando sustenta que: "A expli­ cação ou o estudo dos casos usados como ilustração nos livros da ética de situação, revelam muitas vezes um conceito limitado do amor, como o amor de um partido ou de um pafs. . . Não se faz uma análise das conseqüências ou, pelo menos, das possfveis conse­ qüências ... ". • E um pouco adiante acrescenta: "O problema dos situacionistas com a história não procede tanto das regras do pas­ sado, e sim de que fracassam em seu intento de tomar a sério a his­ tória. Não está claro o que entendem pelo termo sit�ão. As vezes o termo parece estar relacionado com um contexto mais amplo, mas na maioria das vezes a ética da situação se distingue da ética con­ textual pelo fato de ficar reduzida a um penado relativamente curto de tempo, dentro do qual se deve tomar a decisão. Parece assim concentrar-se em fatos imediatos excluindo contextos mais amplos". 1 A preocupação de Swomley é perfeitamente compreensfvel. O que não fica claro é se devemos incluir tal de/eito na própria defini­ ção de "ética de situação". E, como não se trata de solucionar pro­ blema algum na base de definições, já que estas são arbitrárias, con­ cluamos que se se prefere atribuir o nome de "ética de situação" àquela que só atende a uma situação confinada ao próprio momento em que se toma a decisão, tal ética deve ser descartada, já que ne­ nhum momento tem, em si mesmo, principio ético algum para d& finir uma conduta humana. Mas Swomley deve também convir que uma ética da regra padece do mesmo defeito: as regras, venham donde vierem, não têm, em si mesmas, moralidade alguma indepen­ dentemente do amplo contexto da realidade histórica humana. De 4. Ib., pp. 21-22. 5. Ib., p, 26.

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acordo com o vocabulário de Swomley, devemos, portanto, ficar com uma "ética contextual". O problema está no fato de, por maior amplldio que se dê ao contexto, este sempre submeterá a ética a um certo relativismo. Os contextos, por mais amplos que sejam, mudam com a história. Vamos a um exemplo. Um dos mais profundos especialistas cristãos em ética do desenvolvimento, Denis Goulet, escreve: "Deve-se aceitar, numa sociedade dada, um sistema de méritos na distribuição dos prêmios econômicos? Deve-se forçar os homens a entrar, contra sua vontade, em profissões 'necessárias'? Quais são os limites morais na manipulação de incentivos estruturais para obter comportamen­ tos compatíveis com a 'modernidade'? Não existem respostas claras para este tipo de perguntas. A possibilidade de responder a elas de­ pende do fato de que o desenvolvimento, assim como toda empresa histórica, seja concebida como um valor relativo e não como um absoluto". 8 Um pouco depois ele explica em que consiste esta relatividade e suas relações com a moral: "Somente as circunstâncias decidem se uma determinada estratégia é progressista, conservadora ou ambígua. Qual é, por exemplo, a qualidade ética de medidas tais como a na­ cionalização, a imposição de estritos controles monetários, a cong&­ lação de salários sob condições inflacionárias? Não podemos respon­ der à pergunta se isso é moral ou imoral. Cada uma dessas medidas pode ser moral ou imoral segundo as circunstdncias totais". 7 O argumento de Goulet é tão claro, tão baseado no senso comum e tão comedido em sua formulação {"circunstâncias totais" etc.) que a ninguém ocorre protestar pelo fato de que um pensador cristão tenha abandonado a ética da regra" pela "ética contextual" e tenha invocado a relatividade de todo valor histórico. Por que, então, o que é óbvio no plano da ética social e interna­ cional não o é no da ética pessoal? Comecemos, com efeito, por constatar que não o é. Como prova, basta substituir os termos so­ ciais de Goulet: nacionalização, imposição de estritos controles mone­ tários, congelação de salários sob condições inflacionárias, por outros tantos termos relativos à moral "pessoal": aborto, relações sexuais antes do matrimônio, uso da violência contra o poder polltico legal. A maioria dos cristãos retrocederão aterrados ante as conseqüências óbvias do que acabam de admitir sem se darem conta. 6. The cruel choice, Atheneum, Nova York 1973, p. 115. 7. lb., p. 116. 191

Mais uma vez, por quê? Prescindindo do escAndalo farisáico, existe uma razão sincera. As exigências da moral social ou interna­ cional são exigências que se percebem vagamente, mas que sem dúvida são novas. Enquanto que as exigências da moral pessoal se vêm repetindo desde o tempo do Evangelho. São exigências "eter­ nas", enquanto que as outras, por mais importantes que sejam, não podem pretender tal status, dado que foi a história que os trouxe. Claro que alguém poderia objetar que exigências sociais, poll­ ticas e intemacionáis existiram muito anteriormente ao Evangelho, e pertenceram claramente à lei dos inimigos de guerra, a posse de escravos ou de terras, os direitos dos desvalidos. Mas, como tudo isso desaparece aparentemente da linguagem de Jesus, supõe-se que foi substituído por obrigações moráis absolutas. As exigências do passado, como as do futuro, se atribuem à relatividade dos tempos. O Evangelho se torna, assim, um reduto do absoluto em meio ao relativo e histórico. Temos fé em Jesus, e não em Moisés. E me­ nos ainda em qualquer teórico do desenvolvimento. E assim o pro­ blema do relativismo nas atitudes morais nos conduz ao problema do relativismo em relação com a fé. 5.

O DOGMA NAO Jí: UM PAR!:NTESES DE ABSOLUTO

No parágrafo anterior tratamos de mostrar que a conduta cristã, como também a não cristã, está sujeita a uma dose "humana" de relativismo e que essa dose de relativismo não a converte em caótica, contraditória, caprichosa ou indulgente. Basta, por outra parte, a experiência diária para confirmá-lo, além da importante razão teológica de que seria impossível conceber um plano divino de salvação universal se a ausência de fé tivesse as conseqüências que se supõe, dado que a ausência de fé foi duran­ te centenas de séculos, e continua sendo para muitos, uma condição necessária, independente de sua boa ou má vontade. Além disso, ·na medida - exterior - em que podemos Julgar a conduta humana, a atitude moral de muitos cristãos, aceitando, por um lado, critérios absolutos, e deixando, por outro, campos decisi­ vos para o e.mor como moralmente indiferentes, aparece como muito máis incoerente, caprichosa e egoísta que a de muitos não-cristãos obrigados a um continuo discernimento moral. O que certamente pode ter ficado obscuro é saber o que uma conduta moral autentica.mente cristã deve à fé. Quando falamos, no

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começo deste parágrafo, de uma "dOBe de relattvtsmou, supomos acaso que uma parte dessa conduta depende de crltárlos absolutos? Se a resposta for afirmativa, como se pode combinar o absoluto da fá com a relatividade das circunstâncias em uma unidade dotada de sentido? Se não, trata-se unicamente de um eufemismo para dizer que tudo em nossa conduta depende de crltárlos relativos e que nossa fé mesma não escapa a essa concllçlo? Em outras palavras, em nosso vocabulário o relativo estava iden­ tificado com as ideologias, o absoluto com a fé. Porém, após a nossa discussão neste capitulo a pergunta pode voltar: acaso tudo é rela­ tivo? O que fica, uma vez que separamos as ideologias? O que é a fé? Que conteúdo tem? Comecemos nossa resposta estabelecendo um primeiro fato de­ cisivo: nossa liberdade é precisamente a capacidade de absolutizar o que a natureza e a história nos apresentam sempre como relativo. Em outras palavras, devemos libertar-nos do preconceito que supõe que somos mais livres quando temos os valores absolutos inscritos nas coisas e nos fatos, e só devemos escolher entre o bom e o mau. Precisamente a capacidade de absolutizar que é nossa liberdade, se desenvolve e atua na medida em que o absoluto não está adscrito às coisas e aos fatos com que topamos na realidade. Não devemos, portanto, temer a este tipo de relativismo, nem é necessário mudar esta palavra por relacionismo, como faz Mannheim (para tirar a conotação pejorativa). Como diz muito bem H. Ri­ chard Niebuhr: "Relativismo não implica em subjetivismo e ceticis­ mo. Não é evidente que a pessoa que se vê obrigada a confessar que seu ponto de vista está condicionado pela situação que ocupa deva duvidar da realidade do que vê. Não é óbvio que alguém que conhece que seus conceitos não são universais deva também duvidar se seus conceitos são conceitos do universal; ou que alguém que en­ tende como toda a experiência passa pela mediação histórica, deva supor que nada passa pela mediação histórica". 8 Niebuhr continua estabelecendo um elemento essencial para a teologia em sua relação com a realidade sempre relativa da história: "A aceitação da realidade do que vemos numa experiência psicológica e historicamente condicionada, tem sempre algo de um ato de fé. Porém tal fé é inevitável, Justifica-se a si mesma e Justificam-na aeus frutos". 11 8. The meanfng o/ revelatkm, MacrntJJan. Nova York l!Nl, pp. 18-19. 9. Ib., p. 20.

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No que se refere à mediação da Igreja, Niebuhr expressa algo muito parecido: "Mais ainda, a fé histórica, dirigida a uma realidade que aparece em nossa história e que é compreendida por seres his­ tóricos, não é privada e subjetiva, sem possibilidades de verificação. Viver na história é viver em sociedade, ainda que seja numa socie­ dade particular. Cada visão do universal, feita desde o ponto de vista limitado de cada indivíduo em tal sociedade, está sujeita ao controle das experiências feitas pelos companheiros que olham na mesma direção e a partir do mesmo ponto de vista, assim como ao controle de coerência com os princípios e os conceitos que cresce­ ram a partir da experiência passada da comunidade. Uma teologia que empreende a tarefa - limitada - de compreender e criticar, a partir de dentro da história cristã, o pensamento e a ação da Igreja, é também uma teologia que depende da Igreja no controle constante de seu trabalho critico". 10 Um segundo fato aqUi é decisivo. Se todo o conteúdo concreto da fé, todas as atitudes e todas as crenças concretas que a encarnam dependem do contexto - relativo - em que têm lugar, como é pos­ sível chamar de absoluta à fé? OU qual é essa fé absoluta cujo con­ teúdo, por mais certo que seja, é sempre relativo? Já o dissemos um pouco antes e o explicamos longamente no capítulo quarto, isto é, que nossa liberdade concentra todo o ser em um valor, declaran­ do-o incondicionado, isto é, absoluto. Confia nele, ou, se quisermos, confia todo o resto a ele, à sua realização (a imagem do Reino em Mt 6,33). Como não existe possibilidade de verificar previamente se tal valor realizado será satisfatório e "valerá a pena" e valerá o esforço que sua realização importa, estamos aqui diante de uma absolutização subjetiva e, por conseguinte, diante de um ato de con­ fiança e de entrega que logicamente deve levar o nome de fé, ainda que nem sempre leve consigo a crença em Deus ou em uma determi­ nada tradição religiosa. A literatura teológica protestante nos Estados Unidos, através de teólogos tão importantes como Tillich, H. Richard Niebuhr e Ri· chard R. Niebuhr entre outros, 11 fez uma excelente análise desta fé comum a cristãos e não-cristãos. Antes de fazer uma critica desta tendência, temos que reconhe­ cer que, qualquer que seja sua limitação quando se trata do caso especifico do cristão, apresenta uma concepção coerente de uma fé absoluta cujos conteúdos históricos são todos relativos, por mais que 10. 11.

Western

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lb., pp. 20-21. Cf., por exemplo, H. Richard Niebuhr, Radical culture, Harper and Row, Nova York 1970.

monothetsm and

proporcionem ao homem uma certeza capaz do compromisso total de uma vida. Mais ainda, explica como o absoluto da fé não deve ser buscado em uma interrupção dos acontecimentos históricos rela­ tivos, e sim na decisão humana, perfeitamente razoável, que centra­ liza toda a existência num valor, que se torna assim, para a liber­ dade do homem, absoluto e objeto da fé. O terceiro fato importante em nosso trabalho em busca de uma fé cristã absoluta, começa com uma pergunta que pode - e talvez deve - ser dirigida à concepção anterior da fé: até que ponto pode­ -se dizer que essa fé é especificamente cristã? Creio que a resposta afirmativa, implícita na obra dos teólogos mencionados, procede de um fato muito simples: para eles, tal con­ cepção da fé procede justamente de uma redução da fé cristã a ter­ mos razoáveis e modernos. Dai vem que, apesar de alguma vez se falar explicitamente de fé humana (como no caso de Tillich), tanto a procedência teológica de tais pensadores como as freqüentes alusões ao cristianismo indicam que tal é, na realidade, a fé que professa um cristão que começa a compreender sem ilusões o mecanismo ou processo pelo qual um valor "cristão", como o amor, se torna absoluto no meio de realida­ des relativas. Creio que em tais circunstâncias, a relação entre cristãos e fé é, em termos lógicos, uma coincidência. De fato, minha eleição abso­ luta subjetiva e a tradição cristã (em seu sentido mais genérico ou, se quisermos, em seu sentido mais "liberal", atacado por Bultmann) coincidem. Porque aquilo que se escolhe é um valor, não uma de­ terminada tradição entre outras. 12 12. Dai vem que, ao não considerar como compatfvel com a fé um possfvel pluralismo de sistemas de valores - ou ideologias -, a obra citada de Niebuhr, Radical monotheism, tenha suscitado, não sem fundamento, uma réplica que toma um titulo polêmico, por demais ambfguo: o livro de David L. Miller, The new polytheism, Harper and Row, Nova York 1974. l!l ilustrativo, por exemplo, o modo com que fala Tllllch a respeito dos critérios objetivos da verdade da fé: "A verdade da fé tem que ser com­ preendida sob ambos os aspectos. A partir do lado subjetivo, deve-se dizer o seguinte: fé é 'verdadeira' quando ela exprime adequadamente uma preo­ cupação incondicional". Poderfamos esperar que o ponto de vista objetivo nos desse o critério para escolher entre as diferentes tradições de fé. Mas Tillich prossegue: "Vista do lado objetivo, fé é 'verdadeira' quando seu con· teúdo é realmente incondicional. . . O outro critério que decide sobre a ver­ dade de um sfmbolo de fé é a sua capacidade de expressar em toda a sua plenitude a incondicionalidade do incondicional. O slmbolo não se pode tomar um fdolo. Todo tipo de fé tem a tendência de elevar seus slmbolos

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O terceiro fato a que me referia é que existe, a meu ver, uma maneira válida de explicar uma fé intrinsecamente cristã ou, se pre­ ferirmos, bíblica. E isso sem negar nem a relatividade do histórico nem a subjetividade como fonte de valor absoluto na história. Esta explicação, por outro lado muito relacionada com as expe­ riências existenciais analisadas no capitulo quarto, parte do fato de que uma opção cristã absolutiza não um valor nem uma doutrina, e sim um processo educativo de valores. Já tivemos ocasião de vet que o processo da fé começa absolutizando mais a pessoas que a valores desencarnados e abstratos. Mas não se absolutiza a pessoa estática. Na realidade atribui-se um valor absoluto à pessoa como companheiro da existência, como guia. através do desconhecido e inexperimentado, numa palavra, co­ mo educador. Assim por exemplo, a fé nos pais não é a absolutiza­ ção de um monumento à memória deles, e sim a absolutização de suas pessoas para e dentro de um processo educativo: a confiança com que entregamos a esse processo nossa existência e seu sentido. Aprendemos a ser homens dirigidos por outros homens. É a isto que chamávamos uma aprendizagem em segundo grau - deute­ ro-learning -, um aprender a aprender. No caso do cristianismo ou da Bíblia, aprendemos a aprender entregando nossa existência e seu sentido a esse processo histórico refletido nas experiências que se consignam em tal tradição. Absolutizamos assim, pela fé, um concreto processo histórico educador por cima de qualquer outro. Entregamo-nos a ele por um ato livre que não pode ser outra coisa do que uma absolutização, dado que damos tudo por aquilo. E absolutizar esse processo é di­ zer que Deus, o Absoluto, o dirige de uma maneira especial. Tal absolutização é, em seu principio, subjetiva e livre, não im­ posta pela necessidade, pela lógica ou pela realidade mesma. E, por outro lado, sempre foi esta a interpretação mais tradicional do ato de fé na Igreja católica. Segundo ela, a fé não é demonstrável e, por conseguinte, exige a decisão livre de nossa vontade. Mas esta decisão livre, por sua vez, não consiste em escolher um valor, e sim em entregar o sentido de nossa existência a um processo iluminador, cognoscitivo, dirigido por Deus, processo objetivo que teve lugar na história e em uma determinada história. concretos à validade absoluta. Por isso o critério para a verdade da fé está em que ele contenha em si um elemento de autocrítica" (Paul Tillich, Dtn4mica da Fé, trad. port., Edit. Sinodal, São Leopoldo, 1974, pp. 63-44).

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A dificuldade na teologia católica começa quando se trata de definir o que é ou que conteúdo tem esse processo revelador. Creio que podemos achar - e discutir - três interPretações de tal con­ teúdo, isto é, do conteúdo da fé. A primeira interPretação faz de Deus, e de Deus unicamente, o conteúdo único do processo revelatório. Dai vem que na Biblla só se tome em conta o que se refere a Deus, e se descarte como "con­ texto" o que nela se diz, de maneira mais ou menos mitológica, mais ou menos histórica, sobre o homem, sua situação, sua natureza e sua história. Obviamente, esta concepção não é fiel à mesma Biblia, pois esta, muito mais que de Deus, nos fala do homem e de suas experiên­ cias. Porém, sobretudo, tal interPretação ignora o processo educa­ tivo que está consignado na tradição judeu-cristã. Com efeito, além do fato de que se Deus tivesse querido informar-nos sobre si mesmo, a Bfblia atual seria um evidente fracasso e gasto inútil, de papel e de tinta, perde-se de vista que uma educação versa sobre o educando e difere profundamente de uma simples informação. Ora, o educan­ do é inseparável de sua circunstância, pois precisamente nela e atra­ vés dela o educador realmente educa. A segunda interPretação supõe que a finalidade do processo pode concentrar-se em seu fim, isto é, no nível de conhecimento que o homem adquire, ao final do processo, sobre suas relações com Deus. Se Deus educou durante longo tempo o seu povo, foi para que esti­ vesse preparado para receber a mensagem definitiva, a do Evan­ gelho. E esta, por sua vez, deve ser desentranhada dos próprios rela­ tos e circunstâncias neotestamentárias. Dito em outras palavras, a Biblia é a longa educação poética que deve ser traduzida no dogma definitivo. A poesia é a primeira e primitiva aproximação ao que deve ser compreendido e traduzido pela razão em proposições inva­ riáveis. Se bem que esta interPretação faz maior justiça ao processo bíblico, por outra parte o reduz a ser uma mera preparação para um conteúdo definitivo adquirido ao final do processo. Torna-se assim desnecessária a contínua volta à Escritura, uma vez que a tradução dogmática já foi realizada na Igreja. Mais ainda, perde-se o sentido da educação como um processo no qual se aprende a apren­ der. O dogma é o definitivo e a história posterior terá que acomo­ dar-se a ele, cair debaixo de seus termos para poder ser lnterPre­ tada cristãmente. Em outras palavras, estamos ainda no nível de uma primeira aprendizagem, em que s6 se aprendem respostas feitas a circunstâncias conhecidas. A terceira interPretação, que é a nossa, pretende fazer inteira justiça à revelação como processo educativo em segundo grau. Se

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com a Bíblia aprendemos a aprender, temos sempre que voltar a nos confiar a essa aprendizagem, que reconstrói as experiências his­ tóricas de um povo e de uma comunidade. Temos que voltar a vivê­ -las, dando-lhes, para isso, um valor absoluto que já não é, aqui, meramente subjetivo, pois que absolutizamos uma tradição objetiva entre todas as possiveis. Por outra parte, descartamos que o dogma seja a tradução do resultado do processo educativo. Como indicamos acima, o aprender a aprender não tem fim. Começamo-lo num pro­ cesso histórico dirigido por um educador absoluto. A partir de um dado momento, continuamos aprendendo com o desenvolvimento da própria história. O dogma constitui unicamente os limites dentro dos quais podemos dizer que continuamos dentro da mesma tradição educativa. Assim como o antigo povo de Israel tinha normas, esta­ belecidas legalmente ou proféticas a respeito de quem pertencia real­ mente à comunidade que estava sendo educada por Deus na história, assim o novo povo de Israel as tem nessas orientações < não pontoi finais) do pensamento que são os dogmas. Uma conseqüência importante do que aqui foi dito é que a fé, bem entendida, não pode nunca dissociar-se das ideologias em que se encarna, tanto na Biblia como na história posterior. Pode sim e deve - dissociar-se o mais possivel das tendências "ideológicas" que a subordinam indevidamente a uma determinada opressão histó­ rica. Mas perguntar o que seja a fé quando dela se separaram as ideologias, não tem nenhum sentido. A fé sem obras está morta. •� fé sem ideologias é morta também. A fé encarnada em sucessivas ideologias constitui um continuo processo educativo no qual o ho­ mem aprende a aprender, dirigido por Deus. Por isso não podemos jamais reduzir a fé a um determinado livro ou página da Biblia, a um determinado Credo, a um determinado dogma. Todos esses ele­ mentos mostram o caminho da fé, mas não podem dá-lo por per­ corrido.

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CAP:tTULO VII

Teologia para a religião do povo

A experiência mais comum prova que um cristão consciente de nossos dias não tem certezas preparadaa em sua fé que lhe permi­ tam obviar o relativismo que supõe atuar com aquilo que crê no meio de situações novas e em mudanc;-. Um velho adágio diz que contra os fatos não valem os argumentos. Por que, entao, o em­ penho em levantar com declarações e argumentos uma barreira con­ tra os fatos, isto é, contra dados que qualquer análise psicológica, fenomenológica, sociológica e mesmo teológica, pode estabelecer? A resposta, ainda que à primeira vista possa parecer obscura, é por demais evidente. A fé não tem necessidade alguma de declarar absolutas coisas que não só não o são, mas que, declaradas absolu­ tas, conspiram contra o caráter absoluto e transcendente da própria fé. Nem o requer a Igreja para sua missão no mundo. Muito ao contrário. E nem o requer a "salvação", mesmo no caso em que se pudesse dissociá-la da libertação histórica, libertação que depende, pelo contrário, de uma imaginação criadora ligada ao valor relativo de todas as construções históricas. Qual é, então, o fator interessado em absolutizar o que, com toda a evidência, não é absoluto? A resposta habitual a esta per­ gunta, além de supérflua, é totalmente contrária à realidade. Supõe­ -se que o caráter de absoluto, com seu cortejo de universalidade, de invulnerabilidade ao tempo e de oertem, é importante e mesmo essen­ cial para manter incólumes os valores supremos do homem. No pia,. no dos fatos sucede o contrário. Os valores essenciais do homem individual e social requerem uma continua criação frente a novas situações e problemas. O que se absolutiza é precisamente o qu& vai ser praticado de maneira mecAnica e rotineira. A absolutização é justamente a base psicossociológica para o invariável, e o invariá­ vel é o que carece de valor próprio, o que somente é importante como economia de energia dentro das coordenadas de um determi-

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nado sfst.ema de valores. O que assim se absolutiza é, portanto, a parte não humana da conduta humana. Parece, portanto, estranho que as autoridades eclesiásticas e a teologia acadêmica coincidam em sua pretensão de fixar dogmati­ camente o que pertence ao terreno dos meios - relativos por de­ finição - a partir dos quais, por outra parte, a Igreja e seus dog­ mas se têm movido historicamente com grande elasticidade e rela­ tividade, como consta nas páginas do Denzinger. Dissipa-se, entretanto, a estranheza, se tivermos em conta que a absolutização, mecanização e rotinização de condutas, por mais desa. justadas que estejam com respeito à afetividade dos supremos valo­ res humanos, é a condição psicossociológica da segurança individual no plano social e do próprio consenso social básico para a continua­ ção de um sistema sócio-polltico. Uma vez mais, a análise ideológica própria de um circulo her­ menêutico libertador nos leva à conclusão de que a mensagem evan­ gélica foi posta a serviço de outro tipo de interesses. Inconsciente­ mente, sem dúvida. O que devemos acrescentar aqui - e estudar com mais vagar - é que esta deformação da mensagem evangélica tem uma relação intrinseca com a formação dos fenômenos chama.. dos "de massa" no Ocidente. Uma teologia libertadora não pode ignorar este problema: a re­ lação entre um relativismo criador e condutas necessariamente mi­ ,zoritárlas, assim como a relação entre uma absolutização rotineira e condutas massivas. Uma das coisas mais importantes que a dimensão polltica da existência humana nos tem ensinado, é que uma ideologia de mu­ dança não se comunica pelo simples contágio de um individuo a outro até chegar a se tomar realidade na sociedade inteira. A aná­ lise de qualquer processo revolucionário mostra com clareza que não somente existem diversos nlveis de consciência quanto à complexi­ dade e às etapas da tarefa ideológica, mas também diversos meca­ nismos ideológicos conforme se tratar de movimentar massas ou grupos minoritários, chamem-se estes de minorias, elites ou van­ guardas. Falar do cristianismo e da teologia como de um elemento liber­ tador, sem ter em conta tais diferenças cruciais, constituiria um pecado de omissão contra a própria libertação. Não obstante, não é fácil penetrarmos no tema.

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1.

OS ENGANOS DA LINGUAGEM

Topamos, antes de mais nada, com o problema sem4ntic0.

Isto

1, o da significação de uma linguagem que fala de massas e minorias.

Pois é um fato de que ninguém, nem os mais entusiastas defensores do cristianismo "massivo", pode deixar de lado o fato de que na América Latina existe um cristianismo majoritário de um nfvel re­ ligioso muito baixo - por mais valores que se atribuam ao povo que o representa - e outro minoritário, caracterizado por uma com­ preensão mais profunda da mensagem cristã e do compromisso que estes postula - por mais que se insista em seu caráter classista, inte­ lectualóide e inoperante. Em outras palavras, a diferença não pode ser deixada de lado, por mais que cada um, de acordo com seu sistema de valores, de­ clare preferir uma forma religiosa a outra. E dizemos que existe um problema semântico porque infeliz­ mente a discussão se transforma neste ponto num diálogo de surdos devido às cargas valorativas e emocionais que pesam sobre as pa,. lavras. � interessante constatar, de fato, que, apesar de palavras como massas e minorias serem, em si, neutras, isto é, desprendidas de meras estatisticas que qualquer um pode verificar, se esgrimem como argumentos contundentes, independentemente de todo racioci­ Dio e, muitas vezes, em contradição aberta com as atitudes e siste­ mas ideológicos que se defendem. l!?, portanto, impossivel penetrarmos no matagal de tais aparen­ tes sinônimos que, falando valorativamente, estão muito longe de o serem, sem que abramos previamente caminho, tratando de aclarar nossos conceitos e encontrar as pegadas do caminho percorrido por seu conteúdo ideológico e valorativo. Três exemplos nos podem ajudar a destruir o terrorismo verbal que se foi acumulando sobre certas palavras. O primeiro nos mos­ tra como, insensivelmente, na América Latina, se foi formando a ainonimia entre cnstüznismo, religiosidade popular e cultura. A ter­ minologia pode variar ligeiramente, e podem aparecer assim como sinônimos pertença à Igreja, catolicismo popular e valores sócio-ew­ turats. O caminho percorrido, porém, é o mesmo. Para ter uma idéia do que isto significa, as diferenças religiosas entre a América do Norte e a América Latina se tornam relevantes. Importantes estudos sociológicos 1 têm mostrado que o estilo ameri1. Cf., por exemplo, WW Berberg, Protestant-CathoHc.Jew. An u1a11 on Ammcan reltgww socwlo{N, Doubleda:,, Nova York 1960. "cada um de sua

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cano de viver, o Amertcan way of Hfe, profano como é, acabou tor­ nando-se uma religião à sua imagem e semelhança. Esta religião é uma espécie de .,religião cívica" composta de protestantismo, cato­ licismo e judalsmo. Em outras palavras, a cultura converteu a reli­ gião em um fator cultural a mais. Pelo contrário, na América Latina, uma estranha e poderosa fusão de fatores religiosos provenientes do catolicismo conquistador e das religiões indígenas e africanas con­ quistadas deu como resultado uma "cultura religiosa".

:m claro que isto não quer dizer que a "religião cívica" norte-ame­ ricana e a "cultura religiosa" latino-americana não tenham muitos elementos comuns. O catolicismo simplificado e moralista na classe média norte-americana pode parecer, à primeira vista, como o anti­ poda do catolicismo carregado e supersticioso das massas populares da maioria dos países latino-americanos. Em ambos os casos, não obstante, podem-se observar importantes fenômenos paralelos: o cristianismo se tomou um elemento impor­ tante que ajuda a compreender, a manejar e a suportar o mundo, isto é, o sistema social estabelecido, o que FreUd chama de repressão social, ou o que Marcuse, talvez com mais propriedade, chama de "repressão sobrante", isto é, organizada para a desnecessária explo­ ração do homem pelo homem. Muitas vezes se ouvem discussões intermináveis sobre as moti­ vações que unem o tipo corrente de homo religiosus com este tipo determinado de religião estabelecida e domesticada. Perde-se de vista que a discussão não deveria versar sobre as infinitas variantes subjetivas compatíveis com a motivação original e objetiva. Uma vez que se define, de acordo com fatores à vista, o proce860 reli­ gioso e sua função dentro do sistema, já se sabe que essa variedade de motivações subjetivas é subsumida sob a motivação objetiva da busca de segurança. Por exemplo, uma vez que a pessoa admite que a pertença à Igreja, ou a recitação de certa fórmula de fé, ou o cumprimento de certos ritos são condições restritivas para a salvação eterna ou, parte - o protestante, o católico, o Judeu - podem considerar sua própria 'f6' como a melhor e mesmo como a verdadeira, porém - a não ser que se trate de um teólogo imbuido de um interesse teológico especial - con­ siderará 'da maneira mais natural' as outras como participando, Junto com sua própria confissão, de uma fundação 'espiritual' comum de 'idéias e valores' básicos, cuja cabeça é a religião mesma. A América [do Norte] tem assim sua religião-cultural subjacente, melhor compreendida sob o ti­ tulo de Amerlcan wa11 o/ Hfe - da qual se sente que as três religiões con­ vencionais constituem manifestações e expressões apropriadas" (p. 258).

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mais diretamente ainda, para "estar bem com Deus" e influenciar l8Sim positivamente sua providência, a função fundamental da se­ gurança está estabelecida. Nada impede que, a partir dessa moti­ vação, se aceitem autênticos valores humanos como a hospltalidade, o sacrificio, a solidariedade. Mas seria vão atribuir estes valores condicionados a motivações autônomas que pudessem contrabalan· çar o efeito genérico da busca de segurança. Ainda que admitamos, em oposição a Marx, uma possível função ..desinstaladora" da religião, devemos imediata e logicamente admitir Igualmente que tal função somente será compreendida e aceita por aqueles que têm segurança suficiente para se "desinstalar" do sistema reinante. E que estes não sejam normalmente senão uma minoria prova-o a dificuldade que existe em destruir tal sistema e substitui-lo por outro. 2 Em outras palavras, é uma contradição tn termtnis sus­ tentar a possibilidade de uma religião massiva ou universal e, ao mesmo tempo, desinstaladora. Com o que ficou dito não pretendemos concluir que uma religião cuja vida, no nível do individuo, começou atada ao cordão umbilical da segurança psicossociológica, não possa evoluir e tornar-se revolu­ cionária. As possibilidades e condicionamentos de um tal processo serão estudados mais adiante. Mas o que deve desde já ficar claro, é que somente um processo, isto é, uma transformação da realidade existente pode tornar "desinstaladora" uma estrutura religiosa cuja aceitação primeira pelas massas s6 pode basear-se no motivo obje­ tivo de se integrar no sistema vigente. Sem ter em conta tal proces­ so, não se pode avaliar já, quer dizer, sem mais, positivamente aquela estrutura religiosa pelo único fato de que, pertencendo à cultura popular, sempre será suscetivel de evoluir, com esse mesmo povo, no futuro. Porém, não adiantemos as conclusões. Estamos apenas estudan· do, no momento, um problema de linguagem. Para isso, voltemos às diferenças entre a "religião cívica" existente nos Estados Unidos e a .,cultura religiosa" existente na América Latina. Uma forma muito limples de visualizá-la num exemplo seria dizer que se supõe que 2. "Se o caráter dos sfmbolos principais determinasse o canl.ter da Ntrutura social, então o monopólio da comunicação de sfmbolos permitlria ao monopolizador criar novas instituições mediante a difusão de certos tipos de simbolos principais do dever-ser. E sabemos que não se dá isso. A propagação de sfmbolos , eficaz unicamente na medula em que tem re­ lminda signtftcativa para os papéis [já existentes]; não pode criar tata papéis" (Hans Gerth e e. Wright Mills, Character and soctal structure. Barcourt, Nova York 1964, p. 298).

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um norte-americano tem sentimentos "religiosos" diante de sua ban­ deira, seu hino, ou as cerimônias nacionais, enquanto que um latino­ -americano - principalmente se pertence às camadas populares tem sentimentos "patrióticos" ou cívicos perante símbolos ou ceri­ mônias religiosas tradicionais. Isto nos faz compreender uma diferença importante de nível nessa função domesticadora ou "instaladora" do religioso. Nos Es­ tados Unidos o fenômeno é mais evidente e descoberto, porque a utilização e o sentido da deformação religiosa são mais óbvios, na medida mesma em que um instrumento pode dissociar-se da máqui­ na à qual pertence. Com efeito, a classe social que nos Estados Unidos apresenta os mencionados traços religiosos, se beneficia cla­ ramente com eles e poderia facilmente desprender-se culturalmente de tais benefícios. Na América Latina, ao contrário, o religioso, seja pela razão que for, está tão integrado com o sistema de relações que dirige a men­ talidade popular, que se pode dizer que os fatores religiosos têm deixado, se não de ser religiosos, pelo menos de ser autônomos. Por isso é mais difícil estabelecer motivações especificas para "o religio­ so", dado que isto deixou, em grande parte, de constituir uma esfera especifica separável de outros ingredientes culturais. Explica-se assim a tendência geral de sociólogos e antropólogos em prevenir, na América Latina, a Igreja católica contra qualquer projeto autônomo de mudança religiosa, pelo menos no nível das massas populares. Suponhamos, com efeito, que se pudesse provar que as motive.­ ções para a prática religiosa dominical não têm nada ou muito pouco a ver com seu verdadeiro significado e função ( em termos teológi­ cos) e que eles se assemelham muito mais às que fundamentam as funções do feiticeiro de uma tribo em condições culturais primitivas. A deformação profissional de um teólogo, na medida mesma em que for progressista, poderia levá-lo à precipitada conclusão de que a libertação do homem exige a supressão da prática religiosa em questão. O problema real se estriba, entretanto, no fato de que somente por uma ficção lingüística se pode chamar de "religiosa" a tal prá­ tica ou função, dado que forma parte de um equilibrio cultural mais bem indiferenciado. O feiticeiro tanto como o chefe da tribo têm papéis sociais igualmente fundamentais numa cultura primitiva que não distingue - e menos ainda separa - as esferas sócio-polltica e religiosa. Não se podem, portanto, introduzir mudanças sob pretex-

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to de que caem sob a jurisdição religiosa, sem cometer um atentado contra todo o equilfbrio cultural. Assim, o que, considerado rellglo­ aamente, mesmo pelos que o defendem, deve ser apreciado como um cristianismo qualitativamente degradado, slncretista ou supersti­ cioso, passa, através da "religião popular", a se vestir com o respeito e mesmo a valorização positiva que toda cultura merece, mesmo pres­ cindindo do fato de que constitui a cultura mais propriamente "nacional". Em outras palavras, aquilo mesmo que, chamado de "religião de massas" ou "massiva" tinha um claro sentido pejorativo, muda su­ tllmente de valorização quando se alude a isso com o nome de "re­ ligião popular", e se veste com os valores mais profundos e sagra­ dos quando, apesar de se tratar da mesma realidade, a gente a deno­ mina (sob outro ponto de vista, aliás, a justo titulo) de "cultura". Assim o leitor o poderá apreciar a dificuldade que existe em a gente movimentar-se neste campo, em que a linguagem já prejulga as con­ clusões que se hão de tirar do estudo, a menos que se esteja sobre­ maneira atento aos deslizamentos de linguagem. Um outro deslizamento valorativo de linguagem neste campo ocorre quando se passa, sempre falando de cristianismo, de massas a minorias e de maiorias a povo. Já mostramos como e por que o termo massas está carregado de um sentido pejorativo. Mais ainda, a teologia da libertação - assim como a pedagogia libertadora de Paulo Freire, que lhe está muito próxima - brotou inteiramente da convicção de que as massas latino-americanas não só eram oprlJnt. das e exploradas, mas, o que é muito mais, alienadas, quer dizer, in­ capacitadas não apenas de dizer, mas mesmo de pensar sua própria palavra libertadora como sujeitos da história. Não é preciso ser marxista para perceber, sem perigo de falha, como, com a vinda da civilização moderna, se introjeta no oprimido a ideologia do opressor. Pois bem, se o termo massas se aproxima muito do conceito de alienação - como Lenin, por primeiro, o mostrou em Que toar? e de sua valorização negativa, já o termo mawria, ainda que abarque o mesmo conjunto de pessoas, ganha um valor muito diferente. Estamos habituados, dentro do contexto de glorificação dos sistemas democráticos, à noção de um poder estatal representante das maio­ rias, responsável ante as maiorias e, por isso - ao menos é o que se crê -, ao serviço delas. Como mostra Raymond Aron, está claro que cada sociedade "de­ mocrática" elaborou regras e mecanismos ocultos que impedem as maiorias de exercer esse poder que em teoria lhe pertence. Em

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outras palavras, as maiorias não exercem nunca diretamente o poder. Todas e cada uma das "democracias" capitalistas ou socialistas se baseiam no principio tácito de que isso seria a ruína. Fundamental­ mente, porque as maiorias não saberiam usar o poder para seu próprio proveito, pelo menos a longo prazo. De qualquer maneira, o vocabulário normal, quando se refere às maiorias, carrega consigo algo daquele pano de fundo histórico que presidiu a todas as lutas pelos ideais democráticos. Dai vem que massas e maiorias, ainda que tenham o mesmo conteúdo objetivo, não são sinônimos no terreno dos valores. Usa-se um ou outro termo segundo o que se quer provar. Isto é ainda mais evidente quando das maiorias se passa ao ou­ tro extremo, ao positivo, e se fala de povo, sobretudo quando ao substantivo se ajunta o adjetivo que identifica esse povo com a pátria: povo argentino, povo colombiano, povo "latino-americano" (da Pátria Grande). Novamente, apesar de se tratar do mesmo con­ teúdo humano de que se tratava quando se falava de massas, o sen­ tido pejorativo - e os fatos que este recorda - se esquecem e ape­ nas fica a identificação afetiva. Uma mesma pessoa, por exemplo, afirmará com freqüência, por uma parte, que "as massas estão alienadas pelo sistema político" ou "pela sociedade urbana de consumo" e, por outra, que "nosso povo é criador e revolucionário" ou que "se deve escutar e seguir o povo". E isso sem que a pessoa em questão se sinta obrigada a explicar a evidente antinomia, já que o simples fato de ter utilizado, num e noutro caso, diferentes substantivos para a mesma realidade huma­ na a exime disso. Deve-se ter presente que apelar para o povo, seja para fazer dele a mola da revolução ( ou mesmo sua bucha de canhão) ou o ti­ tulo para reclamações revolucionárias ou reformistas, seja, pelo con­ trário, para justificar regimes opressores e ditatoriais, se tomou um fato comum. E isso mostra até que ponto é difícil, quando se men­ ciona o povo ou o popular, evitar os adjetivos positivos e entusiastas. Assim a religião massiva, sem mudar de clientes, se vai colorindo de nacionalismo e positividade à medida em que se passa a denominá-la de religião majoritária e sobretudo de religião popular. Um fato que demonstra o anterior no plano teológico é que, confrontados com o espinhoso assunto de valorizar - positivamente - a religião massiva latino-americana, os bispos de Medellin, depois de terem intitulado o respectivo documento de "Pastoral de massas",

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preferiram, no último momento, mudar aquele titulo para "pastoral popular". 8 Um terceiro deslizamento critico na linguagem é o que vai do termo seita ao de religião universal e deste ao de Igreja. Como já vimos, e o veremos ainda mais claramente mais adiante, a teologia da libertação constitui uma revolução dentro da concepção cristã tradicional. Não só exige do cristão um compromisso político difícil, contra a corrente da opressão sancionada pelos sistemas so­ ciais e sua coação, mas um compromisso que já no nível religioso requer uma desinstalação das certezas e seguranças costumeiras. Não é, pois, estranho que a teologia da libertação "pegue", por assim dizer, em grupos cristãos dispostos a suportar o peso dessa mu­ dança e desse compromisso. Numa palavra, não é nenhuma coinci­ dência que se tenha tomado ao mesmo tempo, em Medellin, a opção pela libertação e a opção pelas comunidades de base. J!: certo que se esperou ingenuamente que estas comunidades fossem um complemento da pastoral massiva existente. E a reali­ dade, como era de prever, desmentiu tais esperanças. As comunida­ des de base se tornaram criticas de um "cristianismo" aliado com a injustiça estrutural e negaram a uma Igreja de massas as preten­ sões de se chamar "cristã". Dai que, ante tais exigências criticas, brotadas já não de teólogos mas de cristãos comuns, de cristãos do povo, à medida que amadu­ reciam em sua fé, tenha surgido um grito de alarme. Para designar aqueles grupos, esse alarme lançou mão do termo pejorativo de

seita.

J!: certo que o termo seita foi usado no Novo Testamento para designar a Igreja nascente (literalmente, dada a sua origem latina, na tradução latina de At 24,14). No original grego, os Atos dos Apóstolos contam que quando se pediu a Paulo que se identificasse religiosamente, ele respondeu que servia a Deus "na via que ch&­ mam de 'seita'" (ou heresia). O termo alude à cisão ou facção que a Igreja nascente constituía dentro da religião judaica. Tanto no 3. Uma primeira edição dos Documentos aprooados - em que figura o titulo "Pastoral de Massas" em lugar de "Pastoral Popular" - publicada pelas dioceses de Mercedes, San José e Salto (Uruguai), traz no inicio esta advertência: "Esta edição contém o texto quase deftntttvo dos documentos. Somente podem introduzir-se nele correções de estilo ltterdrfo". Neste caso, pelo menos, a correção alcança um plano mais decisivo do que apenas o literário.

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original grego como na tradução latina, aeita já traz a conotação minoritária de um grupo dissidente e contestatório, separado da tradição principal. Estes últimos caracteres se incorporaram a nossa linguagem de tal modo que chamamos hoje de seitas a grupos religiosos elitistas, fechados em suas próprias e especiais certezas, carismáticos e, por conseguinte, não estruturados segundo os papéis e autoridades das grandes tradições religiosas. Por oposição a tais grupos sectártos, o cristianismo, mesmo divi· d.ido, apresenta hoje todos os caracteres de wna da meia dúzia de chamadas religiões universais atualmente existentes. Jil claro que o conceito de religião untversal - tal como o usa por exemplo Toynbee - sugere, em termos sociológicos, exatamente o contrário de uma seita. Uma religião universal se chama assim por ter caracterizado a cultura de amplas regiões do planeta. Não poderia, evidentemente, tê-lo feito sem se rotinizar, sem aceitar níveis minimos ou distorcidos de pertença ou participação, sem acentuar mais a participação visivel e cúltica do que as exigências interiores. Pertencer a uma seita supõe um certo grau de inadaptação social. Pertencer a uma religião universal confere, pelo contrário, uma inte­ gração sócio-cultural. O conceito de religião universal não se encontra, é certo, no Novo Testamento como de11ignação da mensagem ou da comunidade cristã. Mas as repetidas alusões a um Reino universal, identificado em breve com a extensão da Igreja, a comunidade religiosa de Jesus e, � tarde, as lutas entre "religiões" que sucederam à consagração do cristianismo como religião do Estado Romano, levaram à conclusão de que o Evangelho era a pedra fundamental de uma reltgUío unt­ aersal destinada a competir com as outras religiões universais exis­ tentes. E desde o momento em que houve estatisticas fidedignas em escala mundial - considere-se o que era ser "cristão" para tais cõm­ putos - elas foram esquadrinhadas a partir dessa perspectiva de um universalismo religioso. Esta oposição radical entre seita e religião universal tinha que tingir finalmente com as cores da última o termo mais empregado desde o Novo Testamento para designar 11, comunidade cristã: a Igreja. Assi.m, sem mais, pela inconsciente força da linguagem, uma Igreja, concebida como direta oposição a uma seita, devia ser automaticamente concebida em termos contrários aos desta. Devia ser aberta à multidão, pouco exigente, estruturada administrativa-

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mente, desconfiada daa pret.ensões carismáttcaa - aempre grupals ou IDdividuallstas - e fundida com os valores culturais. Desta maneira, sem sentir a necessidade de fundamentar estas características na mensagem cristã, se convertem em argumentos opo­ sições verbais carregadas de valoração no uso diário. Não escapam a isto os próprios Documentos de Medellin. Talvez a opção mais anti­ libertadora foi tomada inconscientemente no documento sobre Pas­ toral Popular ao afirmar - sem outro fundamento que valores car• reados pela linguagem - que: "Esta religiosidade coloca a Igreja ante o dilema de continuar a ser Igreja universal ou converter-se em adta e, portanto, não incorporar a si os homens que se expressam 10b este tipo de religiosidade. Por ser Igreja e não setta, deve ofe. recer sua mensagem de salvação a todos os homens, correndo talve7 o risco de nem todos a aceitarem do mesmo modo e na mesma in· tensidade_ . . Não se pode também negar arbitrariamente o caráter de verdadeira adesão fiel e participação eclesial real, mesmo quando fraca, a toda expressão que manifeste elementos espúrtos ou mottva­ �s temporais, mesmo egofstas". ' Como se vê, trata-se aqui de uma das mais decisivas tomadas de posição em matéria pastoral e no que se refere à função liber­ tadora ou não libertadora da Igreja. Pois bem, o único argumento que se esgrime, ainda que pareça incrível, é o matiz valorativo de duas palavras. Como setta se usa num sentido pejorativo e Igreja não, a comunidade cristã tem que ser Igreja, e aceitar as conseqüências desta opção, sejam ou não do Evangelho. Os três exemplos estudados mostram que um deslizamento no uso de certos termos para designar a mesma realidade, com sua correspondente valoração implícita, gera às vezes um terrorismo verbal que dá soluções feitas a problemas profundos, ao mesmo tempo que impede um estudo sério da realidade em questão. Poderíamos multiplicar estes exemplos em nosso terreno e mos­ trar, por exemplo, que a palavra comunidade (ou comunidade de base) passa, mediante o perigoso adjetivo de minorttdrta, ao fran­ camente pejorativo de elitista. Mas, basta o que diSSemos até aqui 4. A Igreja na atual transformação da Ambica Latina A luz do Conci­ lio. Conclusões de MedeUfn. Vmes, Petrópolis 197()J, pp. 90-91. Compare-ae esta passagem com a do p&l'qJ'&fo 14 da Constituição Lumen omttum do ConcWo Vaticano II: "Nio se salva, contudo, embora Incorporado à Igreja, aquele que, não perseverando na caridade, permanece no seio da Igreja •com o corpo', mas não 'com o coração'... Longe de se salvarem, serio Julgados com maior severidade". J!: evidente que a comfssio encarregada de redfg1r o documento sobre a Pastoral Popular não o pensou assim.

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para alertar o leitor sobre as posições que vamos estudar nos pará­ grafos seguintes, relativas à relação entre religião cristã e massas latino-americanas. Mais adiante, no capítulo seguinte, trataremos de definír, com a maior profundeza possível, todos esses termos para examinar a questão, mais extensa e profunda, da relação entre a mensagem cristã e a libertação (não precisamente a religião) das massas na América Latina. 2.

SOCIOLOGISMO, POPULISMO E Fl!: ANTE A RELIGIAO POPULAR

Levando em consideração as observações do parágrafo anterior sobre as precauções que, especialmente neste campo, se devem t­ mar para compreender a linguagem e aquilatar os argumentos ou a falta deles, podemos adentrar-nos agora nas três principais teorias que se tem defendido no concernente às relações entre religião pe>­ pular e libertação. A) Comecemos pela mais simplificadora e superficial. Talvez nem valesse a pena tratá-la ex professo aqui, depois do que ficou dito no parágrafo anterior, se apenas tivéssemos que atender a seu valor teórico. Mas sua importância provém de dois fatores. O pri­ meiro é que ela representa uma solução de facilidade, dando boa consciência aos pastores da Igreja pelo fato de que o "povo" respon­ de quase sempre a um estimulo religioso posto a seu alcance, ativa e passivamente, isto é, providenciando minístros e cerimônías sagra­ das, e fazendo ouvidos moucos às complicadas motivações, e mesmo ritos, agregados aos existentes com caráter oficial e ortodoxo. O segundo fator é que esta primeira teoria é a que foi apresen­ tada na Conferência episcopal de Medellin e praticamente aprovada em seus Documentos, especialmente naquele que trata da "pastoral de massas" ou "pastoral popular". Com efeito, não é a primeira vez que se destaca o fato inegável de que os Documentos de Medellfn não constituem um bloco homogêneo. As vezes a tensão é visível, no interior de um mesmo documento, entre a descrição da realidade, por um lado, e a reflexão teológica ou as recomendações pastorais, por outro. Mas a tensão mais evidente é a que separa o conjunto de documentos que comprometem a Igreja frente à justiça e a paz, e os que se referem à estrutura interna do trabalho eclesiástico. Esta oposição, que levou um observador a fazer o comentário humo­ ristico de que a Igreja receitava remédios mais severos para a se>­ ciedade do que para si mesma, poderia visualizar-se destacando que o primeiro conjunto de documentos leva a marca de Gustavo Gutiér-

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rez, enquanto que no segundo, e de modo especial no documento so­ bre pastoral de massas, é visivel a de Renato Poblete. As linhas essenciais da sociologia religiosa de Poblete estão con­ densadas num artigo dele aparecido na revista Mensaje em 1965 e intitulado "Religión de masa, religión de élite". Este artigo foi, por sua vez, citado como fundamento principal para a colocação apre­ sentada sobre este tema por Mons. Luis E. Henriquez à Conferência episcopal de Medellin. a Pressuposta a tipologia weberiana, Poblete supõe que uma Igreja organizada, precisamente por pertencer ao tipo Igreja e não ao tipo seita, tende para a universalidade e a conversão de todos os homens - termos sinônimos, ao que parece - e que esta necessidade de ex­ pansão "dilui" necessariamente até certo ponto a mensagem primi­ tiva, fazendo-a perder algo de seu caráter espontâneo e carismático. Tal é, por outra parte, o preço de toda institucionalização e rotiniza.. ção do que primeiro foi carisma. Segundo Poblete, os movimentos religiosos apresentam caracte­ res comuns com os de qualquer grupo social e especialmente o de serem constituidos por vários círculos concêntricos equivalentes aos graus de profundidade com que se vivem os valores religiosos: 1) o circulo dos discípulos, dedicados completamente à atividade religiosa; 2) o círculo dos menos ativos, os que hoje poderíamos chamar de militantes; 3) o amplo círculo dos fiéis; 4) as massas, ainda abertas à recepção da mensagem religiosa. De acordo com esta tipologia, a tentação própria do circulo de discípulos seria a de interpretar radicalmente as exigências da reli­ gião, separando-se do mundo. Daqui seguiria, além disso, que uma religião chamada a ser universal e a influenciar - ou converter todos os homens, não pode ignorar as crenças populares adotando as formas que são próprias apenas do círculo dos escolhidos. Deve estar aberta às massas e manter essas mesmas massas dentro de suas organizações e influência. Pareceria quase inacreditável que esta "aparência" de sociologia chegasse a definir, sem a menor sombra de critérios teológicos, o rumo decisivo da Igreja em sua ação pastoral. Pareceria inacreditá5. Não cito literalmente o artigo de Poblete ou a conferência de Mons. Henriquez por possuir em meu poder apenas a versão Inglesa das confe­ rências preparatórias aos documentos finais, versão que apareceu como um primeiro tomo na edição dos ditos documentos: The Church fn the present­ -dag transformation of Latin America fn the Ught of the Councfl, Bogotá 1970, t. I.

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vel, mas não 6 se se t.em em conta a tendência geral de usar a "ciên­ cia" para justificar opções perigosas já tomadas por outros motivos e que não se está disposto a questionar. Por exemplo, qualquer análise sociológica séria poderia mostrar que o circulo chamado de "os discípulos dedicados completamente els' atividades religiosas" está igualmente exposto às tendências mas­ si"48 e que sua tentação mais evidente não é a radicalização das exigências evangélicas e a separação do mundo, mas exat:amente o contrário: minimizar e amputar o Evangelho, acomodando-o aos mecanismos ideológicos e pragmáticos de wn mundo alienado. Se se corrige este ponto essencial da tipologia - de acordo com os fatos conhecidos -, o que resta do argumento de Poblete? Por outra parte, qualquer sociólogo medianamente versado sabe que o uso de tipologias somente pode ser proveitoso quando os di­ ferentes tipos não são concebidos e afirmados como enteléquias, e sim empregados como tentativas de captar fenômenos repetidos com regularidade. E, por conseguinte, devem ser corrigidos pelos fatos e não decidir os fatos. No plano real, o que hoje se chama de Igreja de Cristo começou sendo uma seita e sua compreensão radical do Evangelho não a separou do mundo ou de sua vocação universal (cf., por exemplo, 1 Cor 5, 9 s). Mais ainda, é difícil imaginar como uma teologia que põe a Igreja ao serviço da libertação levaria essa mesma Igreja, por minoritária que fosse, a separar-se do mundo, cuja libertação é sua mesma razão de ser. Claro que Weber não conhecia a teologia da libertação. O que teria ocorrido no passado - e não ocorreu no caso cristão deve repetir-se indefectivelmente no futuro. E se teimasse em não querer se repetir, teria que ser obrigado a isso ... Além disso, a suposição de que a Igreja deve abarcar os quatro círculos concêntricos, não tanto por ser uma religião universal, mas porque é um "grupo social" como qualquer outro, não resiste à mais superficial análise sociológica. A constituição de um "grupo social" depende de sua tarefa, seja ela fixada pela sociedade global seja pela vocação do próprio grupo. Caso não se aceite isto, seria necessário aceitar que um batalhão detector e desarmador de explo­ sivos, sendo, como é, um grupo social, deveria contar com o grupo dos discípulos dedicados totalmente ao trato com explosivos, o grupo dos menos ativos ou militantes - destinados, sem dúvida, a serem atingidos na primeira explosão -, o amplo circulo dos fiéis que crêem na técnica ou nos explosivos e as massas abertas a crer que os explosivos são perigosos. Na teoria de Poblete se filtrou, com

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efeito, uma certa noção de "grupo soclal" semelhante àquela que, de acordo com sua teologia, tem da Igreja: a de um grupo social fun­ dado sobre a partici�ão de um privilégio. Se o Evangelho ou a teologia mostram que o grupo social tem outra função, todo o seu argumento se esvai. E a isso nada obsta que no passado a Igreja se tenha estrutu­ rado precisamente como um grupo que dispõe de um privilégio essencial e que tem que manejar as condições sociais para que tal privilégio alcance o maior número possivel de seres humanos. Se não no começo, em todo o caso em certa etapa de sua existência, a Igreja se casou com o conceito universal de "religião", isto é, com a concepção de um grupo de fiéis que dispõe de meios especiais para relacionar-se com Deus e obter dele especiais prerrogativas. Que o cristianismo, atendendo ao seu mais autêntico ser, possa não ser uma religião - nesse exato sentido - parece, contudo, a Mons. Henriquez, "uma distinção que tem antes uma origem pro­ testante e que não podemos aceitar inteiramente". e A esse respeito é tipico o fato de que Mons. Henriquez use a terminologia da reli­ gião universal ("uma religião chamada a ser universal") sem dar nenhum argumento "católico" - biblico ou teológico - de que tal deva ser a vocação da Igreja e não outra. Sem dúvida, ignora que somente na baixa Idade Média começou a utilizar-se nos meios cris­ tãos o termo de religião para designar o cristianismo em relação a outras religiões. T A "origem protestante" não é, portanto, garantia alguma de que a distinção em questão seja falsa. E quando, falando da vocação eclesial cristã, Richard Shaull escreve que "chegou o momento em que devemos redescobrir - na Igreja e na sociedade - o significado de nossa herança sectária [porque] aqueles que estão na ordem esta,. belecida, mas não são da mesma, serão os agentes da revolução",• não se está referindo à tradição de Lutero e shn à de Cristo e re­ cordando suas palavras. Só que como esta possibilidade não é tomada em consideração na tipologia adotada por Poblete (de origem protestante, entre parênteses), a hipótese deve ser descartada. Mais hnportante e perigosa é, entretanto, a tentativa de fazer da sociologia a norma da função social. Todos os sociólogos, co­ meçando pelo próprio Weber, sabem perfeitamente que uma tipologia 6. 7. Books, 8.

lb., p. 190. Cf. Wunm e. SMITH, The meanmg and end of relfgkm, Mentor Nova York 11164, capltuloa 1-4, especialmente o Em New theolow, n.• 6, p. 132.

secumo.

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não constitui uma norma para decidir qual deva ser a realidade, mas para compreendê-la no caso de os fatos se repetirem com regu­ laridade. Poblete, entretanto, pensa que interpretar radicalmente as exigêncas do Evangelho constitui uma "tentação". Onde há tentação, há logicamente pecado à vista. Contra quem ou contra quê? Talvez contra a tipologia, mas certamente não contra o Evangelho. Do que ficou dito até aqui deve ficar claro que, qualquer que seja a opinião teológica que se tenha sobre o problema da religião das massas, uma teologia da libertação deve começar por desfazer o pressuposto - ideológico - de que o cristianismo existe para en­ cher o espaço vazio numa tipologia. O problema das massas chama­ das "cristãs" não pode ser simplesmente resolvido neste rúvel. B) Uma tentativa mais profunda e complexa, mas afinal de contas contraditória, de resolver este problema é, em nossa opinião, aquela que foi feita por Aldo Büntig em sua conferência na semana de Teologia Latino-americana realizada no Escorial em 1972 e publi­ cada em Fé crtstiana y cambio social en América Latina. 9 O ponto de vista latino-americano nesta matéria aparece clara­ mente na colocação de Büntig ao sublinhar que a religião popular não é um fenômeno religioso autônomo, mas pelo menos igualmente cultural: "Em bem poucas regiões geográficas ou áreas culturais do mundo se constata ainda uma simbiose tão estreita, entre os dois tlpos de valores [religiosos e culturais]. como aquela que refietem muitas zonas religioso-culturais de nossa pátria grande. Em outras palavras, a América Latina ainda é sócio-culturalmente ininteligível sem o catolicismo". 10 Por outro lado, diferentemente de Poblete, Büntig supõe com ra­ zão que a teologia e, de um modo mais específico, uma teologia da libertação, é que deve ditar os juízos de valor sobre o aspecto reli­ gioso deste fenômeno: "1: preciso situar, impreterivelmente, este cato­ licismo popularizado e arraigado nas entranhas de nosso povo, neste processo irreversível que nosso continente está vivendo e dentro do qual os católicos são chamados - com ou sem gestos sacrais - a desempenhar um papel de protagonistas, como condição histórica de sobrevivência e como exigência teológica de fidelidade". 11 9. "Dimensiones dei catolicismo popular latinoamerlcano y su inserción en el proceso de llberación. Diagnóstico y refiexlones pastorales", na obra citada, pp. 129-150. 10. Ib., p. 131. 11. Ib., p. 132.

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Já começa, entretanto, a introduzir-se aqui um elemento de am­ bigüidade ou de confusão. Na citada passagem, Büntig fala de um povo que, religiosamente, deve ser introduzido no processo libertador no qual - segundo se supõe - já vtve em outros planos. Esta anti­ nomia é reveladora de uma situação latino-americana bastante espe­ cifica: a argentina. E creio que não faço injúria a esta colocação falando de ambigüidade, já que o movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo tropeçou abertamente com este problema, o debateu durante anos e, atrever-me-ia a dizer, se dividiu perante ele, apesar de manter uma coerente teologia libertadora e wna correta maneira geral de compreender as relações entre Evangelho e política. Voltando a Büntig, é certo que ele não sacraliza o povo e me­ nos ainda sua religião: opõe-se ao que ele chama de "atitude popular ingênua" afirmando que "estamos aqUi no terreno oposto. Como esta religião inculturada é praticamente a única coisa que o povo vive e sente e como tudo que surge do povo é bom, nisso não se deve tocar de maneira nenhuma ou muito pouco, respeitando fiel­ mente os processos populares. Do contrário - dizem - corre-se o perigo de fazer perder a 'pouca fé' que têm as nossas populações. Aqueles que criticam certos gestos sacrais populares, aparentemente adulterados, são europeizantes que não entendem o povo. Essa atitu­ de acrítica, até há pouco patrimônio de pastores rotineiros, foi re­ centemente racionalizada por alguns teólogos e pastoralistas". 12 Porém, será verdade que a religião - não a política, por exem­ plo - é a única coisa que o povo sente profundamente? Büntig não é muito claro a respeito disso. Não se sabe bem se ele partilha esse pressuposto factual da "atitude popular ingênua" ou se a nega. Parece começar aceitando-o, para depois concluir com a posição oposta: ":t necessário partir da realidade do povo também em suas maneiras de intemalizar e expressar o religioso. Por 'povo• se en­ tende, particularmente, aqueles grupos humanos que não são nem opressores, nem cúmplices da opressão, em nosso sistema social, mar­ cado pela contradição fundamental entre opressores e oprimidos. Há neste povo uma tomada d.e consciência progressiva e agressiva de sua situação de dependência e começa a lutar por sua libertação. Há neste povo uma reserva extraordinária de valores cristãos sacrais e não sacrais - que é preciso Uuminar e fazer crescer à luz do Evangelho". :u Ao sustentar que a consciência progressiva do povo pode se ex­ pressar em formas sacrais ou não sacrats, Büntig deve logicamente 12.

Ib., p. 134.

13. Ib.

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negar, antes de mais nada, que "esta religião inculturada é o dnico, na prática, que o povo vive e sente", já que, hipoteticamente pelo menos, expressa sua nova consciência em gestos não sacrais; e, de­ pois, que, contrariamente ao mencionado antes, as formas religiosas não parecem constituir um elemento decisivo do equillbrio cultural. Ao ler Büntig, vem-nos a suspeita de que não existe nele muita confiança no que a Igreja possa fazer à religião popular, por via reli­ giosa, e sim nas formas politicas que o povo buscar para se expressar, ainda que estas andem de mãos dadas com excrescências religiosas de pouco ou nenhum conteúdo libertador. Esta suspeita se confirma quando lemos: "Há no catolicismo popular uma dupla dimensão que é necessário esclarecer bem. Por um lado estão os gestos sacrais .. que constituem a dimensão tradicional do catolicismo popular; por outro está o povo mesmo, que se expressa em tais gestos. As impll­ CliÇões e conseqüências pastorais desta distinção são fundamentais. Porque para nós, no processo longo, duro e complexo da libertação que vive nosso continente, têm muito maior importAncia os valores desse povo pobre e oprimido que se expressa espontaneamente, atra­ vés desses gestos, do que os valores resgatáveis existentes nesses mesmos gestos sacrais". u A primeira vista, esta distinção tem um objetivo claro: desanimar a pastoral de uma tarefa impossivel, ainda que se possa concebê-la como plauslvel em abstrato, istn é, a de procurar o grão entre a palha na religião das massas latino-americanas, para guardar aquela e jogar fora a esta. A implicação mais óbvia desta distinção seria, com efeito, que um processo sócio-polltico de natureza secular seria o veiculo adequado da transformação dos povos latino-americanos. A contribuição mais valiosa da Igreja a tal processo parece que deveria ser uma prudente omissão no que toca ao inabalável e, final­ mente, pouco decisivo "catolicismo popular", e um compromisso em nceitar e dinamizar - como tratou de fazê.lo a parte mais lúcida do movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo - a vanguarda desse processo popular. Mas, inesperadamente, não é esta a conseqüência que Büntig tira de suas próprias premissas. Sem sabermos por que, volta il tarefa de resgatar valores do "catolicismo popular": "Por isso mesmo - esta frase segue, sem solução de continuidade, à citada antes uma pastoral popular não pode prescindir de duas dimensões que so completam reciprocamente: a) valorizar o resgatável nos gestos H. 11'., p, 135.

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sacrai8 do catolicismo popular; b) identificar os valores libertadores do povo, que se expressa nesses gestos, acompanhando-o positiva e criticamente em seus esforços de libertação". u Seja pela razão que for, e mesmo depois de dizer que Isso não era tão importante, Büntig se vê obrigado a empreender a tarefa de separar o grão da palha, tanto nos valores do povo (criticamen­ te>, quanto em suas expressões religiosas. Ora, para realizar esta difícil função, e certamente no plano eclesial, Büntig, com toda razão, observa que "uma teologia... só não basta. J!l necessário criar micro-estroturas de pertença, comunidades eclesiais de base. Ninguém é membro de uma 11U16sa [volta-se a esta terminologia para não apli­ car caracteristicas pejorativas ao termo povo]; sentimo-nos membros somenbe daqueles grupos de dimensão humana, nos quais podemos - de fato - participar ativamente". 11 A menos que Büntig esteja pensando numa comunidade de tipo pentecostal, o que não é verossimil, deve-se concluir que ele perdeu de vista o que afirmou antes em sua colocação acerca da evolução deste tipo de comunidades: "J!l óbvio o risco desta atitude, não ob& tante o atraente que possa parecer em teoria. Com efeito, estas eHtes [terminologia pejorativa que não se pode sem incômodo aplicar ao termo consagrado de comunidades de base] facilmente avançam sozinhas, desenvolvendo experiências esquisitas, talvez cheias de su­ tilezas, mas à margem do povo, que vai ser, em definitivo, o agente fundamental da libertação. Dai que essas elites não superem, fre­ qüentemente, os limites de uma mera modernização ou progressismo intra-eclesial. São muito avançadas em liturgia, nos métodos cate­ quéticos, na atualização de algumas estruturas eclesiásticas, mas não percebem as contradições que vivem as respectivas comunidades nacionais". ir J!l evidente que Büntig, nas duas últimas passagens citadas, fala dos mesmos grupos humanos, ainda que, segundo os efeitos valo­ rativos que deseja obter, chame a tais grupos comunidades de base ou elites e, correspondentemente, ao elemento oposto, de massa num caso, e de povo ou comunidade nacional no outro. Além disso, que essas "micro-estruturas de pertença" não estejam destinadas à massa, di-lo explicitamente Büntig, além de o subentender quando caracte­ riza as primeiras pela "ativa participação de seus membros". A ex­ periência pastoral mais elementar mostra, com efeito, que a conduta 15. n,, 18. n,,, p. HS. 17. n,,, p. 133.

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massiva - em todas as classes da sociedade - se recusa a tal par­ ticipação ativa, porque busca segurança e não responsabilidade em sua pertença à Igreja. Isso também está subentendido numa passa­ gem anterior em que Büntig sublinha que a pastoral popular deveria inserir-se criticalmente no processo popular. J!! diffcil supor que a conduta massiva já seja critica, pois, em tal caso, não se vê para que a pastoral deveria acrescentar criticismo ao já existente no povo. Tudo se passa como se Büntig, em primeiro lugar, se visse obri­ gado por sua própria lógica a reconhecer que a única maneira de resgatar os valores libertadores do catolicismo popular seriam es­ truturas de participação tipicamente minoritárias; e como se, em segundo lugar, se visse igualmente obrigado a adquirir um certificado de respeitabilidade, ao mesmo tempo eclesiástico e polltico, o que o leva a declarar-se anti-elitista e a falar dos perigos dessas mesmas micro-estruturas de participação. Para compreender, portanto, a posição de Büntlg, que está longe de ser a única e de carecer de elementos de valor, é necessário t.er em conta, creio eu, três fatores: 1) o grau avançado de seculariza­ ção e urbanização da sociedade argentina dá a Büntig uma maior desenvoltura para distinguir teórica e praticamente o popular, de sua expressão religiosa; 2) a tendência populista do peronismo in­ flui poderosamente para exigir dele uma identificação com o povo e uma desconfiança conseqüente para com funções minoritárias de conscientização ou de critica; 3) no âmbito eclesiástico é, multas vezes, condição sine qua non para trabalhar em organizações eclesiais, se não uma falta total de criticismo face ao "catolicismo popular", pelo menos um prudente reformismo ou o pressuposto de que, sem perder seu caráter massivo, o catolicismo popular pode ir resgatan­ do valores autênticos e mesmo revolucionários que dormem em seu selo. Os dois primeiros fatores, ainda que não sejam, de maneira alguma, exclusivos da Argentina, podem, especialmente o primeiro, não ser igualmente reconhecidos em outros pafses latino-americanos e especialmente entre os que contam com uma proporção maior de população indígena e rural. O terceiro é comum a toda a América Latina. C) O pastorallsta chileno Segundo Galilea propunha de outra ma,. neira, naquela mesma reunião do Escorial, 18 o problema das rela.. ções entre teologia da libertação e religião popular. 18. "La fe como principio critico de promoclón de la reUgtosldad po­ pular", na obra citada, pp. 151-158.

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Galilea percebe aqui dois fatos decisivos no nível da cultura po­ pular. O primeiro é que as culturas primitivas estio destinadas a desaparecer ou a se transformar com o impacto da vida moderna, e que essa transformação virá mais da efetiva mudança social (con­ dições de tT&balho, migrações, urbaolr.ação, produção econômica e nível de vida) e pela politização (tomada ele consciência das estru­ turas e relações de produção e dos interesses econômicos nela im­ plicados) do que de urna modificação de fatores altamente ideoló­ gicos (como os gestos e noções religiosas ou o que poderíamos cha­ mar de concepção da vida no nível popular). O segundo fato é que aquilo que comumente se chama de paa­ toral popular é, na realidade, um aproveitamento religioso dos traços primitivos do povo que ainda perduram e enquanto perduram. Pre­ tender que com isso o ajudamos é uma ilusão. A conclusão é, portanto, clara: "Sobre esre catolicismo popular se exerce de fato uma ação pastoral. Não vamos agora avaliá-la em seus pormenores. Somente faremos a constatação de que essa ação pastoral, na maioria esmagadora dos casos, mantém e não transfor­ ma esse tipo de catolicismo degradado. Se continuar, poderemos já agora classificar essa pastoral como alienante e reacionária. Ou no melhor dos casos ingênua: crê manter a 'fé católica' quando no fundo prepara a crise grave desta fé no momento em que se pro­ duzi rem a politizaçlío e as transformações sociais". 19 Esta colocação do problema me parece não somente mais exata, mas também mais válida para usar corretamente os dados mais decisivos que nele convergem. Pri�tro. Antes de mais nada, o mais importante para obter a transformação das culturas primitivas na América Latina - no nível das massas - não é de maneira alguma a Igreja, como tam­ pouco o sistema de educação conscientizadora (tipo Paulo Freire), e sim as exigências massivas provocadas pelas migrações, pela urba­ nização, pela demanda econômica de mão-de-obra industrial etc. Podemos não estar de acordo com este processo ou duvidar com fundamento ele que uma transformação desse tipo vá realizar-se de forma equilibrada; mas as forças nacionais e internacionais que a provocam são muito mais fortes do que nossas objeções humanistas. Mais ainda, neste processo a Igreja, longe de ser capaz de provocar ou acompanhar criticamente tais mudanças, será sem ddvida o último elemento a se mudar. Não devemos esquecer que falamos das massas 19.

lb., pp. 152-153.

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e não de comunidades minoritárias de base. A sociologia prova que massas quase totalmente int:egradas em culturas modernas se rela­ cionam com seu passado primitivo unicamente através de práticas religiosas que não têm relação alguma com seus valores ou funções atuais na vida cotidiana da sociedade moderna. Segundo. A esperança dos pafses latino-americanos não está numa preservação, impossivel, de suas culturas mais primitivas, por mais respeito que se tenha a seus valores humanos e a seu ritmo de transformação. O único caminho consiste em passar, através de uma modernização que é condição de sobrevivência, a uma revolução que humanize radicalmente as estruturas sociais da população em seu conjunto. Pois bem, podemos citar, a este respeito, a Richard Shaull, que escreve: "Uma vez mais, a revolução dependerá de uma vanguarda, livre para ver o que está acontecendo, para discernir as dimensões do futuro e para aceitar uma nova vocação oposta ao sistema estabelecido". 20 Em vista desta finalidade precisa - e talvez de nenhuma outra, salvo engano - a Igreja possui um poderoso instrumento, que consiste nesses grupos minoritários em que a fé madura não pode levar a fechá-los "sectariamente" em si mesmos, devido ao fato de que o conteúdo mesmo da fé perde sentido em tudo aquilo que não seja atuar como vanguarda revolucionária para humanizar o inevitável processo de transição. A conclusão de Shaull é de uma total correção, tanto do ponto de vista sociológico como teológico: "Se uma pequena minoria da classe média 21 ocidental se :IO. Em New theology, D.º 6, p. 130. 21. O fat.o de que aqui se trata principalmente da classe média, pode ser interpretado de duas maneiras quando o aut.or se refere k América Latina. Uma, que só a classe média neste continente está capacitada para viver segundo o modo europeu "civillmdo" ao qual, como se supõe, pertence o "cristi&n1smo". A outra interpretação é que, se tivermos em conta a si­ tuação real de um continente dividido entre muitos pobres e muitos ricos, a classe média aparece como decisiva para o tipo de atividades às quais se refere esta passagem chave de E. Fromm: "Finalmente, uma outra diver­ gência [com Freud] deve ainda ser mencionada. Refere-se k diferenciação entre os fenõmenos psicológicos de carência e os de abundAncia. O nível primitivo da existência humana é de carência. Há necessidades imperiosas que Mm de ser satisfeitas antes de mais nada. Só quando o homem dispõe de tempo e energia, após o atendiment.o das necessidades primárias, pode desenvolver-se a cultura, e, com ela, os anelos que acompanham o fenômeno da abundAncia. Os atos livres (ou espontâneos) são sempre fenômenos de abundAncia. A psicologia de Freud é uma psicologia de carência. Ele define o prazer como a satisfação oriunda da remoção de tensão dolorosa. Os fenõmenos da abundAncia, como o amor e a ternura, de fat.o não exercem qualquer papel em seu sistema" (obra cit., p. 241). Ainda que se tenha que ser cauteloso na aplicação deste principio, sobretudo a casos individuais, trataremos de mostrar no capitulo seguinte que está intimamente llpdo com a função do cristianismo na Jmmanldade.

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deve converter nwna vanguarda de transformação da sociedade tec> nológica, será que é pedir demais que alguns de seus membros pro­ cedam de uma comunidade (cristã) onde atuam tais símbolos (de libertação e transformação)?" 22

Terceiro. Supondo esta concepção da transformação cultural e do papel da Igreja nela, nós cristãos nos libertamos, na perspectiva de nosso compromisso com as massas, para introduzir nelas a criSe de uma verdadeira evangelização. De acordo com Galilea, esta crise aponta para: "- Relativimr as expressões religiosas, que o 'católico popular' tende a absolutizar e repetir ciclicamente, escravizando.se a elas. li: uma primeira formação de libertação. "- Integrar nas expressões religiosas individualistas a dimensão, original à religião cristã, da solidariedade comunitária e da frater­ nidade como parte essencial de qualquer ato religioso. . . lf: uma se­ gunda forma de libertação". 2a

Quarto. Ainda que o segundo dos pontos citados na passagem anterior possa, em rigor, ser interpretado como uma tentativa seme­ lhante àquela que quebrava a coerência da posição de BUntig, quer dizer, a de resgatar os valores existentes nos gestos sacrais, contudo o contexto geral mostra claramente que o critério libertador prima nesta posição de Galilea. A teoria e a prática confirmam, com efeito, que é impossivel ter ao mesmo tempo duas Igrejas contraditórias: uma para as condutas de massa ( em qualquer estado social em que se encontrem) e outra para as condutas minoritárias. Uma ao ser­ viço da preservação irracional das velhas culturas - ou, melhor dito, aproveitando tal conservação - e outra comprometida com a li­ bertação. Se a experiência das comunidades de base prova algo, � que, uma vez que se tomaram conscientes da função libertadora da Igreja, longe de promoverem-se a si mesmas em formas esquisitas de liturgia e renovação intra-eclesial, elas se convertem nos mais sólidos e eficazes opositores dos compromissos que uma Igreja, que se aproveita das massas, está obrigada a fazer, em detrimento da libertação dessas mesmas massas. 3.

O FALSO UNIVERSALISMO

l!l claro que cabe ao leitor escolher, dentro deste leque de opi­ niões sobre o problema da religiosidade popular, a tese que lhe pa22. R. SHAtJLL, art. ctt., p. lM. 23. GALILEA, art. ctt., p. 157.

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recer melhor. Não obstante, se se olha bem, as três posições estu­ dadas apresentam, apesar de suas diferenças, dados e colocações semelhantes que apontam para um problema mais profundo. As três supõem uma dificuldade particular para transformar, a partir dos mecanismos da Igreja, a religião popular. Na tese de Poblere, esta dificuldade procede do fato de que o cristianismo, como religião universal, está praticamente obrigado a se ver rodeado de massas com escassa participação em seu núcleo essencial. Na tese de Bilntig, a dificuldade procede do fato de que a mola para tal transformação se encontra mais na consciência popular profana do que em sua expressão religiosa: as massas populares veiculam, em seu processo político, uma transformação também religiosa, ainda que este aspecto pareça evoluir mais lentamente e por impulsos do outro. Na tese de Galilea, a dificuldade da transformação religiosa vem do fato de que, admitindo que a mola propulsora radique na evolução popular global, não se dá a evidência de que as massas populares estejam impulsionando tal processo: Wvez sejam vitimas dele por não estarem politizadas ou conscientizadas. As três colocações supõem, portanto, que estamos diante de dois tipos de religião com muito pouca coisa em comum: uma, antes mo­ nolltica, fundada na coerção exercida por atitudes mentais primitivas tais como a insegurança física e psíquica, a pressão ambiental etc., e, por conseguinte, impermeável - enquanto religião - a uma puri­ ficação libertadora em grande escala; e outra, mais fiexivel, com­ posta por "consumidores voluntários de religião", quer dizer, por gente interessada no religioso enquanto este corrobora, aprofunda e corrige os valores humanos com os quais se acham comprometidos. As três teses estudadas mostram que esta segunda classe de gente constitui uma minoria com respeito à primeira; minoria, por outro lado, mais ativa e mais disposta a comprometer-se numa liberta­ ção geral. Talvez pudéssemos esperar que, chegados a esta conclusão, e li­ bertados do terroris�o verbal analisado no primeiro parágrafo deste capitulo, conseguíssemos pôr-nos de acordo sobre a avaliação da religião popular latino-americana e das possibilidades e meios de exercer sobre elas uma influência libertadora. Infelizmente, não acontece isso. E por duas razões convergentes. A primeira é teológica. A comunidade cristã, isto é, a Igreja, não resolveu Jamais de maneira inequívoca a relação entre suas parti­ culandades - suas diminutas proporções no tempo e no espaço den­ tro de uma visão global da humanidade - e seu destino universal.

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Prescindindo do fato de que uma universaJfdade numérica futura não resolveria o problema, já que continuaria parcial em relação a um plano salvífico de Deus para a humanidade total, isso torna o problema ainda mais agudo. Com efeito, a universalidade numérica supõe o manejo e a aceitação de mecanismos de massa. Até que ponto coincide tal Igreja com a mensagem cristã? Até que ponto sua negação pode ser radical e satânica, segundo a lenda do Grande Inquisidor em Os Irmãos Karamazov de Dostoievski? Poder�ia, por outro lado, fazer a mesma pergunta a cada projeto revolucio­ nário, já que o problema não é somente teológico. Para solucionar este problema, topamos com a segunda razão, para a qual convergem dados sociológicos, filosóficos e mesmo bio­ lógicos. De fato, a única maneira de conciliar a mudança qualitativa com a universalidade numérica consiste em supor que, ao passar por um certo processo educativo, as condutas massivas se tornarão qualitativamente minoritárias. Em outras palavras, que as massas, sem deixar de atuar com seus próprios caracteres massivos quanto ao número, podem adquirir as qualidades e conceber esforços que são próprios das minorias. Assim, uma Igreja numericamente uni­ versal poderia, com o procedimento adequado, tomar-se igualmente fermento, crise e luz, coisas que hoje em dia se vêem reduzidas a grupos minoritários, devid o ao esforço desproporcionado que exigem. Cabe sublinhar igualmente aqui que o marxismo, por exemplo, não respondeu nunca de maneira explicita e convincente, à pergunta de se, na fase comunista da sociedade, as massas se terão despojado das estruturas de conduta egoísta, imediatista e simplificadora, que tornam impossível, por enquanto, mesmo nas sociedades socialistas, uma divisão do trabalho de acordo com a vocação espontânea de todos. Em outras palavras, subsiste, depois do que temos visto, a gran­ de interrogação: a divisão entre condutas majoritárias - quantita­ tivamente vitoriosas - e minoritárias - qualitativamente decisivas - constitui uma lei inexorável ou o resultado eventual de processos e estruturas históricos dados? No caso de a resposta ser afirmati­ va, poder-se-ia passar para a decisiva pergunta teológica: De que maneira conceber a tarefa "expansiva" da Igreja? Considero que a suspeita de uma radical ambigWdade neste pon­ to decisivo constitui fator essencial de um autêntico circulo herme­ nêutico em teologia.

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CAP:tTULO VIII

Um evangelho para minorias

O capitulo anterior mostrou, esperamos, que o ponto mais frágil, o "calcanhar de Aquiles" que nos últimos séculos fez ceder a b:lo­ logia ante os mecanismos ideológicos, foi a necessidade de manter as massas dentro de um nível mínimo de pertença ao cristianismo. E, por conseguinte, a necessidade de prover as massas de uma con­ cepção religiosa de acordo com tal finalidade. Isto tornou a teologia mais e mais maleável aos instrumentos que movem os mecanismos massivos dentro das sociedades do Ocidente. A Igreja procurou, consciente ou inconscientemente, aplicar à pertença ao cristianismo os mesmos mecanismos que asseguravam a perb:lnça à sociedade civil e obter assim um resultado paralelo. Aquele que considera a tarefa teológica com olhar realista, verá cla­ ramente que esta ocupação, por mais especulativa que pareça, ficou subordinada a tal intenção, mesmo em seus conteúdos mais conceituais. Prova disso é, por exemplo, a pretensão, já estudada, de possuir na revelação um código moral total, absoluto e intemporal. O Evan­ gelho teria podido estabelecer, clara e explicitamente, que a moral extraída da revelação variava segundo a madureza humana, ou, de modo mais concreto, segundo o grau de dureza ou de abertura da sensibilidade, do juízo e das possibilidades do homem. O Antigo Tes­ tamento poderia ter ilustrado este principio com mil exemplos. Paulo poderia ter explicado esta realidade evidente com uma elaborada teologia da história, desde o começo da humanidade at.é Cristo. Entretanto, pesou mais na balança um fato socialmente decisivo: as massas requerem um código absoluto para integrar-se solidamente na sociedade global. A liberdade neste plano se torna para as massas um peso intolerável, apenas suportável para uma minoria "heróica".

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Pois existe, como é lógico, uma minoria que sabe. E que mani­ pula a relatividade sem o dizer. A direita e à esquerda do leque po­ lítico. Na América Latina, é coisa sabida que se apela à democracia para suprimir à força as opiniões "não-democráticas·', e se esgrime a democracia para preparar a ditadura do proletariado. wpocnsia'/ .1."ão necessariamente. Antes, neceSS1dade C1e uvrar as masi;as do peso de uma opção relativa, da oorigação, mevitaveunente destinada ao fracasso, e1e uma coerencia insuportável com uma realidade complexa. E justamente ·aqui topamos com uma confirmação inesperada do círculo hermenêutico que estue1amos no primeiro capitulo desta obra, e com uma nova contr1bwçao para ele. Aineia que toe1o o pensa­ mento especulativo esteja condlc1onado por uma realle1acie mais de­ CJ.Siva e concreta (geralmente econórmca), este conC11c1onamento se torna mais poderoso e evidente quando se trata de um pensamento destinado a incorporar-se à �falta C1e) consciência e à conduta massivas. Ainda que todo o pensamento tenha um vinculo ideológico, pen­ sa-se diferentemente quando se tem em vista a influência direta de um pensamento nas massas ou quando se aponta para conceitos destinados em primeiro lugar a serem captados e postos em prática por minorias. Constitui, portanto, um problema metodológico essencial para a teologia latino-americana e, mais em geral, para toda a teoloKia que visa a libertação, saber se a mensagem cristã original estava desti­ nada às massas como tais e devia ser pensada e comunicada em função direta delas, ou a minorias, as quais se supõe serem elemen­ tos essenciais na transformação e libertação de tais massas. Mas, como dizíamos no fim do capitulo anterior, o problema não seria grave nem mereceria talvez nossa discussão aqUi se a passa­ gem de minorias a massas fosse um assunto meramente gradual ou numérico. Isso se daria, por exemplo, no processo de alfa­ betização. Não é fácil conseguir a alfabetização das massas através dos chamados "meios de comunicação das massas". Mas mesmo neste caso, a utilização de tais meios para um fim semelhante suporia sempre a criação de uma minoria perita em procedimentos educati­ vos. Tomando exemplos históricos conhecidos, um processo de alfa­ betização massiva começa com a preparação de minorias. Uma vez terminado isso, o resultado qualitativo - quer dizer, a alfabetização - é comum a ambos os grupos: a minoria alfabetizadora e a massa alfabetizada. Dito em outras palavras, um elemento minoritário ao

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começo, sem perder sua qualidade, se torna quantitativamente mu­ sivo ou, se quisermos, totalizador_ Já não acontece o mesmo se da al/a'betüat;ão passamos à cons­ dentizat;ão. Dai vem o problema que, cada vez mais claramente, coloca em nivel polltico o conhecido método de Paulo Freire, Em parte por estar unida a um processo de alfabetização e em parte por ser pensada em termos pollticos, a conscientização e seus result'Bdos se conceberam em um primeiro momento segundo o modelo da alfabetização. Entretanto, a experiência primeiro e a própria expli­ citação conceptual de Paulo Freire depois, estabeleceram diferenças essenciais entre os dois processos. De fato, já o próprio termo de alfabetização aponta para um mecanismo adquirido: saber ler e escrever. Ora, um mecanlsmo ou capacitação possuída supõe em primeiro lugar, o que poderiamos chamar de "lucro liquido". Em outras palavras, saber ler e escrever abre novas porta s e praticamente não fecha nenhuma. Mas ainda, a posse de tal mecanismo é facilitada com o próprio exercicio. l!l uma corrida encosta abaixo, se pudermos usar tal expressão. Tomemos agora o caso da conscientização. De acordo com a experiência e com a terminologia de Paulo Freire, Já não se pode tratar aqui de um mecanismo "possuído", mas de um processo inde­ finido. Dai que a definição mais eloqüente do resultado do processo de conscientização seja a fórmula: tomar-se sujeito - e não mais objeto - da história. Pois bem, no momento em que o mecanismo se desse por "possuído", a pessoa recairia na situação de objeto. Isto supõe duas caracteristicas exatamente opostas às estudadas na alfabetização. A medida em que se adquire e se aceita a condição de sujeito histórico, aumenta a complexidade da vida, multiplica.se a resistência da sociedade e, com ela, os perigos e sanções que pro­ vêm do sistema social e tendem a perpetuá-lo e a coisificar seus membros. Em segundo lugar, o exercício da nova capacidade, longe de facilitá-la - como um hábito - a complica e dificulta. Quanto mais "consciência" se adquirir, mais dificil se torna traduzir suas exigências crescentes na complexa e objetiva realidade social. J!l uma corrida encosta acima. Para sintetizar, o processo de conscientização recoloca o problema Já citado no capitulo anterior: a menos que mudem as proporções numéricas entre o fácil e o dificil em escala da Jiurnenldade, uma alfabetização pode ser massiva (ou total); uma conscientização, não. Empurrar para situações mais e mais dificeis, mediatas ou comple­ xas, é criar minorias.

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Que chamemos ou não a tais minorias de "elites" - com seu ma­ tiz pejorativo - dependerá, naturalmente, do fato de elas porem ou não ao serviço das massas a cllficil capacidade adquirida, ou, me­ lhor, em vias de aquisição. Os médicos, por exemplo, serão sempre minorias. Que o tipo de minoria constituída pela medicina seja ou não "elitista" dependerá do fato de a medicina se desenvolver como um privilégio para aqueles que a possuem ou do fato de ela se põr ao serviço de todos, mesmo que nunca chegue a ser uma ca?Pa,­ ctdade de todos. Será que massas e minorias constituem, portanto, uma cons­ tante essencial da humanidade? E se assim for, será que o cristia­ nismo pertence ao tipo de processos semelhantes à alfabetização isto é, massivos - ou ao da conscientizaçio - isto é, minoritá­ rios? - O presente capitulo tratará de responder a tais questões e indicar as conseqüências de suas respostas para a metodologia teológica. 1.

A FORMULAÇÃO ECLESIÃSTICA DO PROBLEMA

Ainda que pareça estranho, a Igreja cristã vive há vinte séculos diante de um problema central que foi não só esquecido mas, o que talvez seja pior, resolvido de maneira contraditória. São Paulo sublinhou, tanto em sua carta aos Romanos como na primeira aos Corintios, o paralelismo tipológico entre Cristo e Adão. Adio comunicou a todos os seres humanos o pecado e a morte. Cristo igualmente comunicou a todos a justiça e a vida. Paulo acrescentou a este paralelismo, já em si difícil de enten­ der, um elemento de desequllibrio ainda maior com aquele miste­ rioso "ainda mais" que ele aplicou à comunicação de justiça e vida Ceita por Cristo à humanidade. Dizemos misterioso porque aquele ainda mais que caracteriza a obra de Cristo pode ser suscetível de numerosas interpretações. O que, nesse paralelo, parece contraditó­ rio com a vitória com aquele ainda mais, é o fato de que o pecado e a morte chegaram, como de fato chegaram, por Adão, a todos os homens, e que a justiça e a vida, por meio de Cristo, somente che­ garam a uma parte, a uma minoria. Pois bem, qual será, segundo Paulo, o papel da Igreja, quer dizer, da comunidade cristã, nessa vitória de Cristo sobre Adão, nesse "ainda mais" com que se comunicam a justiça e a vida, se o compararmos com a comunicação do pecado e da morte? Sobretudo, sendo tio fácil e quase automática esta última?

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Ainda que não quiséssemos tomar em consideração (por ser uma interpolação) a passagem de Me 16,16 em que a fé e o batismo pa­ recem constituir uma condição restritiva para participar nessa jus­ tiça e vida salvificas, sempre ficaria em pá o fato de que tanto Marcos como Mateus 1 indicam à Igreja nascente, de acordo com o espírito de Jesus, a tarefa de ir por todo o mundo para converter os homens à doutrina de Jesus. Precisemos tudo isso um pouco mais. Qual poderia ser a rela• çio entre a vitória - universal - de Cristo sobre Adio, e a função de converter os homens em discípulos de Cristo? Relação de iden­ tidade? De imediato, sentimos aqui algo de estranho. Adão não precisou, ao que parece, e certamente segundo o pensamento de Paulo, "con­ verter" a ninguém para fazer pecadores a todos os homens. l!l por conseguinte bastante difícil imaginar uma vitória universal de Cristo sobre Adão que suponha a conversão dos próprios homens afetados pelo pecado e pela morte. Mesmo prescindindo do problema das limitações históricas de uma Igreja cuja fundação está separada por milhares de séculos do Adão histórico ou mftico, ficaria por explicar como pode ser vitorioso, quantitativamente, um processo que impli­ que uma decisão, sobre outro que atua automaticamente. Entretanto, e por estranho que pareça, a própria Igreja que, de acordo com o testemunho de Paulo, acreditava, apenas nascida, numa vitória final de Cristo sobre Adão - isto é, em relação com a huma­ nidade inteira - pareceria, por outra parte, identificar o número dos convertidos com o dos salvos. O próprio Paulo, no inicio da­ quela mesma primeira carta aos Coríntios, escreve: "Aprouve a Deus salvar os que crêem mediante a loucura da pregação ..." (1,21). · Talvez pareça· muito natural a tendência· de -uma- pequena - cõmu­ nidade entusiasta e recém-nascida identificar salvação e particip�. Em todo o caso, porém, não podia, deixar de perceber a contradição existente em proclamar a vitória, sem restrição alguma, da graça de Cristo (cf. Rom 5,18 ou, mais amplamente, Rom 5,lS-20), e sua rejeição, assimilada à perdição (cf. 2 Cor 4,3; 1 Cor 1,18; 2 Cor 2,15), pela grande multidão daqueles que se negavam cada dia a engrossar as fileiras dos discfpulos, como o indica, por outra parte, o próprio Paulo no versículo seguinte ao JIL citado (1 Cor 1,22). 1. Em passagens pó&-pasca1s, o que all1rl& uma exegese mala com­ plexa: Mt 28, 16-20; Me 18,9-20; Lc :H, t7.

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Como J4 foi dito, se Adão toma pecadores a todos os seres humanos sem uma ratificação livre e pessoal por parte de cada um deles, como o indica sua própria figura de pai fisico da humanidade em sua totalidade, não é fácil imaginar uma vitória sobre ele basea.. da numa conversão livre e pessoal. Tanto mais, se se tiver em conta que tal conversão, como mostra Paulo, tem que ser feit'a contra a corrente das convicções espontâneas da humanidade inteira, exem­ plificada, como é habitual no pensamento neotestmnent4rio, em seus dois constitutivos c14ssicos: judeus e gregos (1 Cor 1,22-24), quer dlzer, todos ... A vitória universal de Cristo como imagem da meta final, e a conversão ao Evangelho e a pertença à Igreja como imagem do ca­ minho em direção a tal meta: els a contradição forçosa que talvez seja a chave para compreender a ambigUidade dessa história de vinte séculos vivida pela comunidade cristã. Por um lado, as herói­ cas e mesmo sobre-humanas exigências - inseparáveis, porque essen­ ciais - da mensagem cristã: a cnu; por outro lado, a desesperada e inescrur:rulosa utilização de todos os meios para assegurar a partici­ pação das massas, quer dizer, de todo ser humano, a um nível mf. nimo de aceitação do Evangelho e da comunidade de fé e sacramen­ tos: a cristandade. l!! verdade que se tomou moda dividir a história eclesiástica em dois grandes períodos: o pré-constantiniano e o constantiniano ( sen­ do que este tlltimo hoje estaria sendo substitufdo por um terceiro período, ou, melhor, pela volta ao primeiro e autêntico). Porém, ainda que seja verdade que o período constantiniano deu à Igreja os meios e a ocasião para acentuar desproporcionadamente o segundo termo da contradição, o problema transcende a divisão em períodos. Tanto assim que Karl Barth, em pleno século XX, foi o primeiro teólogo a perceber claramente esta ambig{lidade ou contradição fun­ damental, a oonto de romper com um dos principais - senão o principal - doinnas luteranos: a justificação pela fé. Uma vitória universal de Cristo sobre Adão implica para Barth ciue inclusive a fé deixa de ser uma condição para a justificação e salvacão. Em termos barttllanos, a fé não é disposição humana para alcançar a salvação de Deus, mas o reconhecimento do fato da redenção e sal­ vação outorgadas a todos. Não me cabe aqui julgar este contelido dogmático preciso, e sim o impacto exercido sobre a metodologia teológica, pelo fato de esta tlltlma ter levado a supor que o número de convertidos a um mfnimo de participação eclesial tinha relação direta e proporcional com a vitória universal da graça e da salvação sobre o pecado e a morte.

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� certo que a teoria contrária ganha terreno dia por dia. Aceita­ -se oficialmente um plano de salvação operante tanto dentro como fora dos limites eclesiais ("Gaudium et Spes", n.º 22 e passim). Po­ rém, o costume oposto é tão forte que esta tendência, longe de aliviar a atividade eclesial de uma responsabilldade exagerada e doentia, provocou uma profunda crise parallsadora no conceito da atividade expansiva ou missionária da Igreja. Se o número de convertidos à fé e à prática cristã não se relaciona diretamente com o número de salvos, para que converter? Mais ainda, para que a Igreja e a fé? Estamos longe de ter chegado neste ponto a um novo consensus, e isso é uma nova e fidedigna prova da ambigüidade em que se viveu durante séculos com respeito a uma realização massiva ou minoritá­ ria do cristianismo. O que nos interessa destacar aqui são os resultados históricos desse longo vaivém entre dois pólos irreconciliáveis: um plano sal· vifico universal, por um lado, e uma exigência essencial de atitudes minoritárias, por outro. Em primeiro lugar, a tendência pastoral a identificar o número dos fiéis com o número dos salvos fracassou totalmente. Nem podia ser diferente. Já estava, por assim dizer, previsto. Na medida em que se massificava a mensagem cristã, aumentava, em verdade, sua facilldade, mas diminuía seu valor. Dai a tendência crescente de apoiar o valor cristão "desmonetizado", com outros valores alheios a ele, como a adaptação social ou os bens seculares da sociedade. Este mecanismo não obteve senão um êxito relativo, e era evidente que, desde o momento em que tais bens seculares se pudessem alcan­ çar sem passar pelas ( minimas) exigências da pertença ao cristianis­ mo, a tendência massiva iria nesta direção de facilidade. Foi essa, t' não outra, a origem do que hoje chamamos de secularismo ou pro­ cesso de secularização, ou secularidade. Em segundo lugar, esta contínua derrota no que se refere a uma meta considerada de valor absoluto, como era a da salvação, devia provocar uma exacerbação tanto teórica como prática. Em outras palavras, os conceitos para negar ou ocultar a derrota e, por outro lado, a concepção dos meios que deviam ser utilizados para conju­ rá-la, não podiam deixar de adquirir uma espécie de autonomia cancerosa. No plano teórico não faltou, por exemplo, a tentativa de descul­ par a derrota. A doutrina da predestinação e, mais especialmente, a da "massa damnata" (massa condenada) da teologia agostiniana são, muito mais que uma interpretação bíblica, o reflexo teórico de

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uma derrota pastoral, precisamente frente a essa meta que era dar a Cristo uma vitória quantitativa mediante a pertença à Igreja. Muito mais que a época de Agostinho, a Idade Média no Ociden­ te, que se chamou de cristandade, parecia negar triunfalmente a con­ tradição entre exigências cristãs e pertença numérica. Mas, mesmo então, a contradição só podia ser esquecida, não superada em ver­ dade. O preço para tal esquecimento era esquecer também os povos não-cristãos que rodeavam por todos os lados a cristandade medi­ terrânea. Ainda que o litoral marítimo fosse propicio ao engano, alguns desses povos não se deixavam facilmente negar, como o Islã. Portanto, não é de estranhar que nessa mesma Idade Média, e com respeito ao Islã, por exemplo, encontremos tentativas de racio­ nalizar artificialmente a situação, convertendo-a em um estranho triunfo. Minimizando o mundo circundante, reduzindo-o a um obstá­ culo temporal e acessório, conseguia-se ou resgatava-se a imagem de um cristianismo co-extensivo ao mundo ou, pelo menos, ao mundo verdadeiro e civilizado, ao mundo ocidental. Assim, um hino litúrgico dirigido a São Rafael pede ao arcanjo: Auferte gentem perfidam Credentium de finibus Ut omnes unus unicum Ovile nos Pastor regat. (Afasta os povos infiéis do território dos crentes, para que um wlico Pastor dirija a todos nós, seu único rebanho). Assim, uma das fórmulas mais conhecidas da vitória universal de Cristo (Jo 10,16), se converte, contra a lógica, em ideal de exclusão e separação. E que esta contradição, também no plano teórico, continua em nossos dias, é coisa que ficará clara no último parágrafo deste ca­ pitulo. No plano prático, a exacerbação dos meios pastorais frente à "missão impossível", está patente em todos os meios inumanos, violentos e injustos usados pela cristandade para manter, pelo menos em certas nações, a proporção entre seres humanos e membros da Igreja. Inquisição, cruzadas e guetos são sinais claros, não tanto de costumes violentos e primitivos, mas antes de um duplo critério moral, de uma incoerência ou esquizofrenia típica do que os psicólo­ gos chamaram de situação de double bind, onde as exigências pa­ ternas desorientam por sobreporem, sem explicação possível, ódio e amor.

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O fim (absoluto) justifica (todos) os meios: muitos séculos antes

de este princípio ser atribuído à moral marxista, foi ele conduta

normal da Igreja e dos cristt.os individuais quando atuavam em beneficio ou defesa dela.

Dissemos que o desespero ante a "missão impossível" levava a utilizar meios desumanos e a injustificá-los em nome da finalidade absoluta e universal: a salvação. E o primeiro sentido que demos a "desumanos" foi o de injustos, violentos, bárbaros e desleais. Não obstante, a desumanidade dos meios usados pela pastoral á muitissimo mais universal e torna-se evidente mesmo em séculos e nações refinados. Também hoje em dia. Se por desumano tomamos tudo o que diminui o homem, tudo que o torna domesticado e uni­ dimensional, objeto da história, a contradição maior da prática da Igreja tem sido buscar efeitos de graça e salvação (libertadores, por definição) com meios massivos (contrários à libertação). Existe, por exemplo, uma evidência sempre maior e uma desen­ volvida consciência cristã, dentro dos Estados Unidos, de que um pafs que, com 6% da população mundial, consome anualmente 40% dos recursos do planeta, constitui simplesmente um dos mecanis­ mos mais desumanos e desumanizadores da terra. Pois bem, para a Igreja católica nos Estados Unidos, a maneira costumeira de man­ ter dentro de sua freguesia as ondas sucessivas de imigrantes catói licos - irlandeses, italianos, poloneses, latino-americanos - tem sido a de integrá-los o mais estreitamente possível nesse enorme meca­ nismo desumanizador da sociedade de consumo. A tal ponto, que a ostentação material dos pastores católicos dessas minorias foi olhada e defendida como o sfmbolo da aquisição de um verdadeiro statua e cidadania dentro do sistema norte-americano. Mais ainda, um dos fatores mais importantes de adaptação ao sistema, a educação, foi usada profusa e combativamente em todos os graus para manter a freguesia católica, unindo esta ao acesso aos canais da sociedade de consumo. A tendência atual de recobrar, frente aos fatores desuma­ nizadores, os profundos valores libertadores de crítica, Justiça e li­ bertação no próprio sistema educativo, quer dizer, usando o prdprto mefo adaptador ao sistema - como se pudesse funcionar em sentido inverso -, é uma prova, e a prova mais evidente, de que a hipótese de um cristianismo de fermento e de minoria não é nem sequer tida em conta de maneira Bária diante da tendência ao universalismo numérico centrado na idéia de salvação. E assim, através da história eclesiástica, se leva adiante a con­ tradição fundamental: pregar o estilo de vida mais heróico, pessoal

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e criador, e aceitar, por outro lado, os mecanismos massivos como base para uma pertença igualmente massiva à Igreja, aceitação essa que, apesar de todos os pesares, continua sendo o critério principal da pastoral, ou, pelo menos, a chave mais coerente para com­ preendê-la. 2.

A FORMULAÇÃO SôCIO-POL:tTICA

O problema de que possa existir uma diferença constitutiva e permanente, não gradual e acidental apenas, entre massas e minorias, ou entre condutas massivas e minoritárias, é relativamente novo e, poder-se-ia quase dizer, praticamente ainda não estudado. Ainda que já há multo se fale de massas e de elites, ou minorias, de socie­ dades de massas, de homem-massa, na maioria dos casos tais termos parecem referir-se a realidades novas, suscitadas por fenômenos recentes tais como as novas descobertas em comunicações, a coerção ideológica ou politica etc. Ninguém pensa, por exemplo, que quando Martin Fierro excla­ ma: "Minha glória é viver tão livre como o pássaro do céu", possa estar expressando um ideal tão massivo co mo os que surgem em novelas de televisão. Seja como for, no começo do século (1901), Lenin, ao tratar dos problemas práticos de formular uma revolução marxista na Rússia, se vê obrigado a criticar um certo simplismo - seja do próprio Marx, seja de seus seguidores "ortodoxos" -, segundo o qual a revolução teria que ser o result:ado das contradições do capitalismo mais a espontaneidade do proletariado, isto é, das massa.s operárias, resultantes, por sua vez, da revolução industrial. A direção que Lenin vai dar ao movimento revolucionário na Rússia (pais em que ainda não tinha havido nenhuma revolução industrial) se baseia sobre o pressuposto de que entre o tempo em que Marx escreveu suas obras e o tempo em que atua Lenin, apare­ ceu um elemento novo e decisivo para a revolução. Em seu famoso livrinho O que fazer?, Lenin escreve: "Não se pode pôr em dúvida que o movtmento de massas é um fenômeno da maior importância ... Mas a questão está no modo de interpretar 'a determinação das tare­ fas' por este movimento de massas. Pode ser interpretada de duas maneiras: ou no sentido do culto da espontaneidade desse movi­ mento, quer dizer reduzindo o papel da democracia social ao de simples servidor do movimento operário como tal, ou então no sen­ tido de que o movimento de massas coloca diante de nós novas ta-

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refas teóricas, polfticas e de organização, multo ma:Js comple:ras do que as tarefas com que nos podíamos contentar no periodo que pre­ cedeu à aparição do movimento de massas". 2 Prescindamos aqui da questão de saber se Lenin cria verdadei­ ramente na novidade do fenômeno massivo ou se usava o argumento dessa novidade contra as pretensões de um marxismo literal. O que importa é que a eleição feita por Lenin da segunda hipótese seria decisiva para a história das sociedades socialistas deste século. Importa, entretanto, ainda mais para nosso propósito aqui, de­ terminar por que, na concepção de Lenin, a existência de movimentos massivos implica em novas tarefas revolucionárias. A primeira res­ posta é que, mesmo dando por aceito o determinismo economicista sustentado por seus adversários, Lenin já não pode aceitar, perante fatos novos, que a consciência das massas se torne revolucionária pelo fato de sofrer o peso crescente da exploração e o de sentir sua própria força de multidão. "Por isso mesmo a relação entre o cons­ ciente e o espont4neo oferece um enorme interesse geral." a Se perguntarmos por que, segundo ele, a classe trabalhadora como massa - "somente está em condições de elaborar uma cons­ ciência sindicalista" 4 e por que "a tarefa da democracia social con• siste em combater a espontaneidade, e em fazer com que o movi· mento operário abandone esta tendência espontânea do sindicalismo a acobertar-se sob as asas da burguesia", 0 a resposta de Lenin con­ sistirá numa análise dos mecanismos da consciência e da espontanei­ dade ao nivel das massas. A primeira vista, Lenin parece ubicar a consctencia C revolucioná­ ria) na intelectualidade burguesa dada a qualificação (profissional) desta última para compreender a complexidade do sistema social e verificar assim que os autênticos interesses do proletariado não estão no sindicalismo mas na revolução que muda de maneira radical o siS­ tema de produção. 11 Entretanto, investigando mais a fundo, na análise de Lenin as possibilidades de consciência revolucionária estão relacionadas com algo que transcende a ubicação de seus agentes dentro do esquema de luta de classes. li: certo que Lenin espera que tal consciência surja não por obra do proletariado mesmo mas "por representantes ins2. 3. 4. 5. 8.