Lembra-te que sou Medeia 9788586816079

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Lembra-te que sou Medeia
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N E M H egel, nem F reud, nem Lacan, n e m q u a lq u e r o u tro que tenha c ria d o u m sistem a o u so u apropriar-se de M e d é ia para ilu s ­ tra r u m a de suas tese s. E u rí-

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pides, Sêneca, Pierre Corneille e seu irmão Thomas, autor do li­ breto da ópera de Charpentier, e ainda outros tentaram se aproximar dela, mas é ela quem se apropria deles, impondo-lhes seu enigma, aterrador desafio de uma mulher que mata seus fi­ lhos e sobrevive. O próprio Eu­ ripides se submete ao enigma de Medéia. A história é conhecida, ele não pode modificá-la. Seu contemporâneo Heródoto con­ ta que Medéia, ao fugir de Ate­ nas, refugiou-se na Ásia Menor, na região cujos habitantes pas-

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Lem bra-te D« Qu* Sou Hedéla

sam, a p a rtir

de então, a usar o sobrenom e M edes. A m ulher que com eteu o mais horrível dos assassinatos não só sobreviveu, como se to rn o u “ mãe” de um povo g lo rio so , riv a l e depois alia­ do, subm isso e depois reveren­ ciado, d o im p é rio persa. Eu­ ripides consegue c ria r uma ver­ dadeira h e ro ín a , um a m ulher capaz de h e s ita r e de considerar sua p ró p ria ind e cisã o como um crim e, “M in h a covardia é vergo­ nhosa” , capaz de estremecer de d o r a té sua m a is ín tim a fibra, mas de d iz e r, “ Chorarás mais tax-

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d e !” . A M edéia de Sêneca está mais p ró xim a da im agem cor­ riq u e ira de um a m u lh e r louca furiosa, mas ela p ro nu n cia essas palavras estranhas que fazem oscilar o sentido, “Medea nunc sum” . “ Lembra-te de que sou Me­ déia” , responde, através dos séculos, a Medéia de Charpentier ao “Agora, sou Medéia” de Sêneca. Como se cada um dos autores, a despeito do que quisesse fazer de Medéia, só pudesse repetir aquilo que im-

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pele a própria Medéia. “ Ser Medéia” não é a mesma coisa que um destino, ou talvez seja exatamente o oposto de um des­ tino, que suportamos, que pro­ curamos às vezes assumir de ma­ neira exemplar. Ter de “ Ser Medéia” é da ordem do aconte­ cimento. Será que Medéia pode­ ria, a qualquer momento, fugir de Corinto no dragão alado que sobrevoa o palácio em chamas? Ou será que esse dragão, que, de repente, significa sua quase di­ vindade, é o signo de que Me­ déia, a mulher, despojou —ter-

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rível carne viva —os fios que te* ciam suas ligações hum anas, e tom ou-se aquela que havia es­ quecido, traído, para se to rn a r grega e fêmea, e tornou-se essa verdade que leva seu nom e, Medéia? M edéia te ria m o rrid o de de­ sespero se não tivesse se tom a­ do M edéia, se não tivesse encon­ tra d o , n o m om ento da m aior hu­ m ilh a çã o que pode acontecer a um a m u lh e r, o acesso ao que nela tin h a sid o anulado para dar lu g a r à m u lh e r am orosa e leal.

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Quem será tolo em dizer que Medéia tem ciúmes! Ciúmes de uma jovem princesa ignorante e futil? Ciúmes de um homem co­ varde e pusilânime, mentiroso e vaidoso? Em momento algum Medéia tem inveja de Creusa por ter conquistado seu medíocre troféu. E o sentido da sua vida que está em jogo, e não a posse de um Jasão. E a vingança é uma palavra bem medíocre para de­ signar seu ato. Se Medéia tivesse se vingado, como nós, pobres mortais, teria pago o preço da sua vingança. Ela fez um contra-

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to com a hum anidade, e o con­ trato fo i ro m p id o . “Chora para sempre os males causados pela tua paixão” ela diz a Jasão, no final da ópera de Charpentier. E ninguém lhe dá a resposta que restauraria a ordem da moral, ninguém está lá para reconfortar Jasão ou, pelo menos, anun­ ciar que a assassina será per­ seguida pelo rem orso. Jasão é castigado, Medéia fica sem casti­ go. Jasão acreditou que seu po­ der de macho havia transforma­ do a feiticeira em m ulher que se pode enganar e abandonar. Ele

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cometeu um erro e criou a pro­ va pela qual a Outra, aquela que se anulou por amor, reencon­ trou o poder de existir. Talvez seja melhor introduzir aqui, no lugar de vingança, esse termo grego tão rico, o “pânico” . Quando Medéia compreende que Jasão vai abandoná-la, que ahistória deles, dolorosa e crimi­ nosa, vai ser apagada sem dei­ xar outros vestígios a não ser aqueles, intoleráveis, de sua própria memória, ela é invadida por um verdadeiro pânico. “Não

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é possível!”. “Que preço tenho de pagar pelo meu amor!” “E esse o resultado dos meus em­ preendimentos!”, canta a Medéia de Charpentier. Esses empreen­ dimentos, para ela, eram os laços gloriosos que proclamavam um amor na medida de seu ser. E, de repente, o mundo se torna vazio, a memória se torna a ini­ miga debochada, obscena. Me­ déia, a mulher, sabe que vai morrer por causa disso, se não chamar a Outra. “Para quem procura minha morte, posso ser cruel”. Diante do pânico, é pre-

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ciso, não restituir de maneira medíocre golpe por golpe, mas poder recriar um mundo dife­ rente, em nada parecido com aquele que falta. “Ser cruel” . “Ser Medéia”. Pânico, para os gregos, não significa um estado psicológico, mas sim um momento mítico. O Deus Pan, senhor do pânico, é aquele através do qual a ordem social pode desmoronar, uma coletividade tranqüila pode se tornar uma horda bárbara e de­ sumana. De uma só vez, tudo se

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desequilibra., como se tudo aqui­ lo que estabelecesse uma ligação entre os humanos se revelasse, repentinamente, suscetível de fazer emergir um coletivo com­ pletamente diferente, de en­ gendrar aquilo que a ordem so­ cial parecia excluir, por natu­ reza. 1

A crise de pânico seria então uma espécie de fase de transição, como entre líquido e cristal, uma mudança de identidade. A crise de Medéia, quando ela hesi­ ta, quando ela duvida, quando

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elasente q u e v a i m o rre r, é ta lv e z

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dessao rd e m . E a s o lu ç ã o in v e n -

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tada p o r ela, “ S er M e d é ia ” , ro m -

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p e r os la ço s q u e a c o n d e n a m , e c ria r u m m u n d o o n d e n in g u é m p o d e rá te r p ie d a d e d e la o u p e n ­ sar e m “ p e rd o á -la ” , v a i c riá -la c o m o e n ig m a s o b re o q u a l to ­ do s, Jasão e m

p r im e ir o lu g a r,

irã o r e fle tir . N o s e n tid o e m q u e e la n ã o é m a is “ u m d o s n o s s o s ” , p a ra n e g o c ia r, a n a lis a r, in te rp re ­ ta r, m as o n d e a O u tra que ela se to r n o u n o s constitui, a nós mes­ m o s , aterrorizados, em pólos de reflexão, enviando uns aos o u -

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tros, de século em século, como um raio luminoso —impassível, através das difrações suscitadas pelos meios atravessados por eles - a pergunta: o que ela se tomou?

Medéia é uma heroína, mas nada tem de exemplar. Ela não é grega. Ela não é um dos nos­ sos, humanos civilizados. Através de Heródoto, através de Eu­ ripides é um outro mundo que persiste, lembrança ou obsessão, um mundo bárbaro talvez, mas temível, um mundo onde os

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próprios deuses seguem outras leis. Medéia se diz descendente

do Sol e, na ópera de Charpentier, é o vestido que ela conser­ vou do Sol, seu Ancestral, que Jasão ousa lhe pedir, pois ela despertou a inveja de Creusa, egoísta e demasiado humana. As negras filhas do Estige lhe devem obediência. As Eumênides furio­ sas que perseguiram Orestes, pedindo justiça para o matricídio, nada podem contra ela. O inferno está submetido a ela e o Céu para ela está aberto. Com a tragédia de Euripides, a cidade

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Grega celebra uma estranha ex­ terioridade, ameaçadora, inalcançável, que parece r ir de suas Leis e só se submeter as suas normas segundo suas próprias condições: vencida, mas sempre e irrefutavelmente ameaçadora.

De que exterioridade se trata, então? Que significa Medéia? Para alguns, existe aí o testemu­ nho histórico de um mundo es­ quecido. Um mundo “matriar­ cal” que os gregos aqueus des­ truíram mas ainda temem. Um mundo onde as mulheres reina-

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vam, sacerdotisas de uma Deusa temida. Mãe e Morte ao mesmo tempo. Medéia traiu sua pátria, Cólquida, entregando o Velo de Ouro a Jasão e matando seu irmão mais moço, cujos mem­ bros dispersou pelo mar para retardar seus perseguidores. Mas agora é chegado o momento em que vai, talvez, ser realizada a maior, a única e verdadeira traição, o momento em que va­ mos poder ter pena dela, dizer que, para Jasão, ela foi apenas um troféu a mais, signo do tri­ unfo de Afrodite, a grega, sobre

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a Mãe arcaica. O Jasão de Eu­ ripides afirma isso: “Para ti seria difícil confessar que o amor te coagiu, que não pudeste te pro­ teger de suas flechas, e é por isso que me salvaste” . É o momento mais difícil, momento em que a história fica em suspenso. Medéia, simples mulher, escrava do amor? Mas quando Medéia se torna Medéia, a ordem divina dos gregos desmorona. O Sol não é mais Apoio, tem parte com a morte, a luminosa fonte de vida se mostra, de repente, unida à escuridão infernal. E as leis da

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culpabilidade, do remorso e da justiça caem por terra. Num só ato, Medéia, infanticida, é expur­ gada da sua traição. Ela volta a ser a Mãe, reencontra a sobera­ nia que renegou para se tornar grega. Trata-se aí de lembrança, ou será a expressão por excelência do medo do homem diante da mulher, da mãe? Mãe devoradora que deve ser submetida, com toda a força, aos laços do amor conjugal e da maternidade respeitável. Para os freudianos,

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Medéia pertence à ordem do fan­ tasma, pois para eles a mulher não é assim, ela pede a submis­ são, pede ao homem aquilo de que o nascimento a privou irre­ mediavelmente. O medo, o ódio da mulher toda poderosa, castradora, que une vida e mor­ te, em nome da qual tantas feiti­ ceiras foram mortas, não designa as mulheres como tais, mas sim o enigma que persegue o peque­ no macho, desesperadamente agarrado aos símbolos da sua diferença.

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Entretanto, o enigma de Me­ déia não pertence apenas aos machos. Ele também atrai as mulheres, que vibram com seu pânico, com seus urros de revol­ ta, que reconhecem bem, muito bem, o que pode ser a covardia do homem que, de repente, es­ quece. Talvez seja essa verdade, embaralhando as cartas do fan­ tasma, que fez Freud e seus su­ cessores recuarem. Medéia fala demais às mulheres para ser imobilizada em uma interpre­ tação vienense. Ela suscita um possível presente excessivo,

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aquele talvez desse “continente negro” que o próprio Freud não pôde deixar de reconhecer, como por um lapso, embora o conjunto da sua teoria parecesse garantir a semelhança da mulher com o indígena respeitoso que deseja a lei do homem branco, a submissão à sua marca civilizadora. O enigma de Medéia per­ siste, atravessa a psicanálise, que não o resolve.

Qual é, então, o saber atesta­ do por Medéia? Por que, entre todas as heroínas trágicas, sua

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dor, sua cólera, seu pânico têm ecos tão atuais, atravessando os milênios que nos separam do mundo grego? Por que, princi­ palmente, seu ato horrível nos é compreensível de maneira ime­ diata, como se a fonte da qual ela se alimenta, a Outra Medéia impassível e terrível que ela faz surgir, lá onde havia uma mu­ lher, nós conhecêssemos em sur­ dina, soubéssemos quem ela é? Como se ela suscitasse um eco, criasse em nós uma reflexão que repete seu enigma. O enigma se refere menos ao ato do que ao

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devir ao qual esse ato dá lugar. Talvez seja preciso ousar pensar que Medéia gelada, purificada, liberada, “impessoal e introspectiva, sentimental e supra sensu­ al”, não mais tivesse, ao se tor­ nar a Outra, ódio de Jasão, “que ela não nos odeia, nem mesmo na morte, mas que ela nos es­ tende sempre essa tripla face fria, maternal, severa” . As palavras que acabam de ser citadas não foram criadas para falar do enig­ ma de Medéia, são as palavras de Gilles Deleuze, ao apresentar o ideal masoquista, “fria aliança

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entre o sentimentalismo e a cru­ eldade feminina, que fazem o homem refletir” . Fazer refletir, não no sentido de fornecer um objeto de reflexão, como Des­ cartes toma um pedaço de cera para a partir daí refletir a iden­ tidade, mas no sentido em que sofremos uma reflexão, em que repercutimos um enigma, que, frio, faz de você seu espelho. Lembra-te de que sou Medéia. Medéia não é uma mediterrânica, é uma mulher vinda do leste e que, segundo Heródoto,

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voltará para o leste, para aque­ les povos que podemos imaginar ainda nômades, os únicos onde posso a partir de agora vê-la vi­ ver, da maneira como ela se tor­ nou “Medéia” . E é para lá tam­ bém, para uma estepe que é ao mesmo tempo verdadeira, míti­ ca e presente, oculta em nós, que Deleuze se volta para dar exis­ tência à figura ideal e cruel da mulher carrasco que singulariza o masoquismo. “Na identidade da estepe, do mar e da mãe, tra­ ta-se sempre de fazer sentir que a estepe é, ao mesmo tempo,

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aquilo que enterra o mundo grego da sensualidade e aquilo que deixa aparecer o mundo moderno do sadismo, como uma potência de resfriamento que transforma o desejo e transmuta a crueldade. É o messia­ nismo, o idealismo da estepe. Não vamos acreditar, por causa disso, que a crueldade do ideal masoquista seja menor do que a crueldade primitiva ou a cruel­ dade sádica, menor do que a cru­ eldade do capricho (a de Creusa e Jasão?) ou a crueldade da maldade... O que define o ma-

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soquismo e seu teatro é, mais exatamente, a forma singular da crueldade na mulher carrasco: essa crueldade do Ideal, esse ponto específico de congela­ mento e idealização” . 2

Ponto de congelamento, cuja questão persiste através da trêmula fluidez de nossas emo­ ções. Não falemos aqui de histe­ ria ou de empatia. Ninguém so­ nha imitar Medéia, não se imita o acontecimento, não se pode antecipá-lo, não se pode vivê-lo por procuração: ele produz seu

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presente, a cada vez singular e, no entanto, a cada vez repetido. Ninguém pensa em consolar Medéia, cercá-la de uma afeição que repara e reconcilia. N in ­ guém deveria nem mesmo ousar expressar qualquer tip o de soli­ dariedade com Medéia. Ela não pode fazer mais nada, não nos pede nada, não pede mais nada a ninguém. Ela é Medéia.

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Notas

1 Sobre isso, ver Jean Pierre

Dupuy, La Panique, coll.

empêcheurs depenser en rond. Editado por Laboratoires Delagrange, Paris, 1 9 9 1 . 2 Gilles Deleuze, Presentation

de Sacher-Masoch, Paris, Minuit,

1967, p . 49.

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